Baixar PDF - Editora da UFPB - Universidade Federal da Paraíba

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Baixar PDF - Editora da UFPB - Universidade Federal da Paraíba
Adriano Marteleto Godinho
Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa
Filipe Lins dos Santos
Maria Cristina Santiago
ORGANIZADORES
Mais do que apresentar uma obra,
os autores deste compêndio remodelam velhos conceitos. Eis o alvorecer de novos tempos, em que
a humanização do Direito Civil
se revela como fenômeno irreversível, a colocar os institutos deste
velho ramo jurídico a serviço da
pessoa humana, para que cumpram, final e definitivamente, sua
verdadeira vocação
TEMAS DE DIREITO CIVIL
Da constitucionalização à
humanização
TEMAS DE DIREITO CIVIL
Da constitucionalização à
humanização
Reitora
Vice-Reitor
UNIVERSIDADE
FEDERAL DA PARAÍBA
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Filipe Lins doa Santos
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(organizadores)
TEMAS DE DIREITO CIVIL
Da constitucionalização à
humanização
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T278 Temas de direito civil: da constitucionalização à humanização / [recurso eletrônico] / Organizadores: Adriano Marteleto
Godinho...[et al.] .-- João Pessoa: Editora da UFPB, 2015.
1CD-ROM; 43/4pol.(2.085kb)
ISBN: 978-85-237-1087-3
1. Direito civil. 2. Arbitragem. 3. Conciliação. 4. Mediação.
5. Negociação. I. Godinho, Adriano Marteleto.
CDU: 347
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João Pessoa
2015
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SUMÁRIO
Admissibilidade das diretivas antecipadas de vontade no ordenamento
jurídico brasileiro.................................................................................10
A usucapião por abandono do lar: origem, elementos e aspectos temporais
e processuais.....................................................................................434
A abusividade nos contratos de saúde suplementar................................73
A importância da mediação familiar nos casos de alienação parental sob a
perspectiva constitucional..................................................................479
Inadimplemento contratual pelo desrespeito à boa-fé objetiva como uma
hipótese de resolução contratual.........................................................111
Ponderações sobre os impactos processuais dos alimentos gravídicos....517
A Arbitragem, a conciliação, a mediação e a negociação como formas
alternativas de soluções de conflitos no direito civil constitucional
humanizado......................................................................................134
Os novos paradigmas da responsabilidade civil na internet.....................180
O problema da responsabilidade no descarte de resíduos sólidos
(Lei 12.305/2010)...............................................................................221
Responsabilidade civil das indústrias tabagistas: civil responsibility of the
tobacco industry................................................................................268
Condutas abusivas do empregador na relação de trabalho e o dano
moral...............................................................................................312
Assédio moral organizacional: os limites do poder diretivo do empregador
e as consequências para o trabalhador.................................................347
Responsabilidade civil no abandono afetivo parental...........................403
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ADMISSIBILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS
DE VONTADE NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO
Príscila VIEIRA1
Ana Paula Correia de Albuquerque da COSTA2
RESUMO: O objetivo primordial do presente trabalho monográfico
é analisar a admissibilidade e validade das Diretivas Antecipadas
de Vontade frente ao ordenamento jurídico brasileiro, haja vista
a não regulamentação específica desse instrumento e a sua importância enquanto meio de manifestação da vontade do paciente
em estado de fim da vida. Tendo como base a ideia de que as diretivas antecipadas de vontade possibilitam a visualização do indivíduo como sujeito de direitos, ou melhor, como fim em si mesmo,
assegura-se ao paciente terminal ou incapaz a sua autonomia privada e o direito a morrer dignamente. Através desse instrumento,
o enfermo poderá discorrer sobre os tratamentos e cuidados médicos que deseja receber, ou não, em caso de incapacidade plena, temporária ou permanente, levando-se em conta, sempre, o
melhor para os interesses do mesmo, garantindo o respeito a sua
dignidade ao procurar amenizar a dor e o sofrimento advindos do
processo de terminalidade. Através do estudo pormenorizado dos
principais conceitos, elementos e prerrogativas atinentes às diretivas antecipadas, objetiva-se facilitar a compreensão desse institu1
Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, autora do trabalho
monográfico sob orientação da professora mestra Ana Paula Albuquerque.
2
Professora do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento no PPGCJ/UFPB.
Orientadora da monografia.
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to, além de construir uma sólida base conceitual e estrutural para,
enfim, observá-lo diante das particularidades do ordenamento
pátrio. Entendendo válida sua aplicabilidade, verificar a existência
de propostas legislativas e entendimentos jurisprudenciais sobre
a temática.
Palavras-chave: Bioética. Diretivas Antecipadas de Vontade. Autonomia. Dignidade. Estado terminal.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho monográfico propõe-se a examinar a
admissibilidade das Diretivas Antecipadas de Vontade perante o
ordenamento jurídico brasileiro, como são instrumentos intimamente ligados ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem
como ao Direito à Autonomia da Vontade e ao chamado Direito a
uma Morte Digna, neste diapasão, é um tópico de grande relevância a ser estudado no âmbito jurídico, principalmente quando se
verifica a inexistência, no ordenamento brasileiro, de normas jurídicas específicas tratando deste tema.
A ausência dessas normas fomenta ainda uma discussão a
respeito da validade ou não das Diretivas Antecipadas de Vontade
no Brasil. Contudo, o fato de não haver regulamentação específica sobre o tema não pode ser compreendido como uma vedação
à validade desses instrumentos, além do que, diversos elementos
normativos presentes tanto na Constituição de 1988 quanto em
legislações infraconstitucionais podem ser utilizados para fundamentar as DAV’s diante do ordenamento brasileiro.
Em situações em que o paciente encontra-se incapacitado
de expressar sua vontade a respeito de determinado tratamento a
ser recebido, seja por conta de uma incapacidade temporária ou
mesmo em casos extremos de enfermidades onde o processo de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
morte já se instaurou de forma irreversível, muito se discute sobre a possibilidade deste manifestá-la previamente, utilizando-se
de um documento que esclareça expressamente os seus desejos a
respeito de quais tratamentos gostaria receber ou não e em que situações. Este documento é tido como Diretiva Antecipada de Vontade ou, como é tratado ocasionalmente, Testamento Vital.
Neste sentido, e em vista das diversas discussões possíveis
sobre as nuances jurídicas das Diretivas Antecipadas de Vontade,
esta pesquisa se restringirá à análise dos parâmetros como a autonomia da vontade, o principio da dignidade da pessoa humana,
a caracterização específica desse instrumento de manifestação de
vontade, a fim de possibilitarem verificar alguns dos aspectos jurídicos e limitações prementes a sua aplicação no direito brasileiro.
Diante disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo pontual de como a doutrina jurídica tem se posicionado a respeito da problemática das Diretivas Antecipadas de Vontade nos
casos de pacientes tanto em estágio terminal quanto aqueles que
possam estar temporariamente incapacitados de manifestar a sua
vontade a respeito dos tratamentos ou cuidados médicos, bem
como analisar os aspectos do direito diretamente vinculados ao
tema.
O presente trabalho possui natureza dogmática e qualitativa, visto que o objetivo a ser por ele alcançado é identificar os aspectos jurídicos concernentes as Diretivas Antecipadas de Vontade
no âmbito do ordenamento brasileiro. Para se atingir o proposto
foi utilizado tanto o método de análise histórica, percorrendo-se
uma linha evolutiva de conceitos e institutos através do estudo
doutrinário, assim como o procedimento interpretativo ao se apreciar o conteúdo de princípios e dispositivos jurídicos que possam
se relacionar com a matéria e verificando a existência de jurisprudências relativas ao tema. Assim, fez-se a coleta de dados bibliográficos e documentais em livros, leis, periódicos, jurisprudências
e sites especializados a fim de tornar possível a compreensão da
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possibilidade ou não da aplicação prática da temática especificada.
No capítulo introdutório buscou-se a conceituação dos termos e expressões mais comuns no constante às diretivas antecipadas com a finalidade de facilitar a compreensão do seguinte instituto, bem como de suas prerrogativas. A seguir, fez-se necessária
a compreensão do que constituiria exatamente as Diretivas Antecipadas de Vontade, analisando mesmo que brevemente, suas
modalidades, delimitações, efeitos e princípios justificadores. Por
fim, adentrou-se no objetivo central da presente monografia que
é avaliar a admissibilidade e validade das DAV’s no Direito Pátrio.
2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERMINALIDADE DA VIDA
Embora o foco principal deste trabalho monográfico esteja
na análise das próprias Diretivas Antecipadas de Vontade, no referente à sua validade diante do ordenamento jurídico brasileiro,
diversos conceitos e apontamentos fundamentais devem ser estudados precipuamente, a fim de proporcionar a construção de uma
sólida base para chegar ao objetivo central.
Ao verificar a ideia inicial trazida pelas Diretivas Antecipadas de Vontade, resta percebível a este debate, ambientado no
campo da Bioética e do Biodireito, seu fundamento em certas premissas substancialmente controversas, ou seja, põe-se sob os refletores a possibilidade de o indivíduo atuar e decidir acerca de
situações relacionadas a terminalidade da vida, tema por si só polêmico o suficiente.
Diante disso, podemos compreender a seguinte afirmação
apresentada pela Professora Adriana Maluf (2013, p. 425):
O ser humano, em todas as suas fases de existência,
desde o início da sua vida, cujo momento preciso
não é isento de controvérsias, até o momento de
sua morte, é detentor de direitos intrínsecos à sua
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
personalidade e deve, portanto, ter a sua dignidade
respeitada.
Discussões envolvendo tais fases de existência do ser humano, destacadamente aquelas relacionadas à interferência direta dos indivíduos nesses momentos, geram inúmeras análises e
reflexões por parte da sociedade, em seus mais distintos aspectos
e áreas de conhecimento. No plano jurídico há uma variada gama
de direitos inerentes à pessoa humana, sendo possível destacar,
primordialmente, o direito à dignidade, seja relacionando-o à vida
ou à morte.
Nas Diretivas Antecipadas de Vontade, diante de suas várias
vertentes, é questionada a possibilidade de o paciente em estado
terminal, ou incapaz de manifestar sua própria vontade, deixar por
escrito instruções a respeito de como os profissionais de saúde devem agir, quais tratamentos são aceitos ou não e o limite até o qual
o tratamento pode ser estendido em casos onde não mais existe a
possibilidade de cura e/ou recuperação.
Atualmente a morte é vista como um tabu, algo a ser evitado a todo custo e, assim sendo, a maneira de encará-la é enfatizada
pelo avanço da própria medicina, onde, muitas vezes, o prolongamento da vida é levado “além dos limites de sua natureza” (DINIZ,
2014, p. 481), não importando quais os meios a serem utilizados.
No entanto, José António Saraiva Ferraz Gonçalves (2006, p. 07),
acertadamente, traz a seguinte conjectura:
“A morte é o que temos de mais certo, diz o povo.
Efectivamente, à semelhança do que sucede com
todos os outros seres animais, todos morremos.
A morte é indispensável para a renovação e para a
evolução da vida.”.
Assim, a morte consiste em algo inexorável, implacável, todavia, resta o questionamento: até onde se deve prolongar o tratamento para tentar evitá-la? E a que preço?Partindo dessas consi-
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derações, é visível a necessidade de desenvolvimento de estudos
envolvendo a terminalidade da vida, mais detidamente quando
relacionado ao processo de morte ou em casos onde o indivíduo
não está em condições de expressar seus desejos a fim de assegurar o direito à dignidade da pessoa humana. Deve ser levado em
consideração a qualidade de vida do paciente principalmente, não
apenas a quantidade de tempo possível de ser proporcionado a
ele por meio dos inúmeros avanços da medicina.
É neste contexto que surge a questão: é possível escolher a forma de morrer? Observa-se o desenvolvimento de um movimento que busca a dignidade no
processo de morrer, que não é o apressamento da
morte, a eutanásia, nem o prolongamento do processo de morrer com intenso sofrimento, a distanásia. [...] O movimento dos cuidados paliativos trouxe
de volta, no século XX, a possibilidade de rehumanização do morrer, opondo- se à idéia da morte como
o inimigo a ser combatido a todo custo. Ou seja, a
morte é vista como parte do processo da vida e, no
adoecimento, os tratamentos devem visar à qualidade dessa vida e o bem estar da pessoa, mesmo
quando a cura não é possível; mas, frente a essa
impossibilidade, nem sempre o prolongamento da
vida é o melhor, e não se está falando de eutanásia,
como muitos crêem.(KOVÁCS, 2003, p. 116)
O medo da morte é compreensível e natural, da mesma forma o é o senso de preservação do ser humano, assim, é possível
compreender a adoção de hábitos considerados saudáveis que,
consequentemente, evitam riscos à saúde do indivíduo. Há uma
valorização da qualidade de vida a fim de possibilitar o distanciamento de situações relacionada à terminalidade da vida, ou seja, o
ser humano passa boa parte da vida tentando prolongá-la ao máximo, numa cultura traduzida pela “busca da imortalidade”, entretanto, há casos onde a morte não apenas é considerada a melhor
opção, como também é bem-vinda. Com este entendimento, a
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
possibilidade de o paciente afirmar claramente a sua opinião, por
exemplo, sobre os tratamentos a serem utilizados, ou acerca dolimite até o qual quer ter sua vida estendida por meio de aparelhos,
são questões referenciais, parâmetros que devem ser analisados
diante do princípio da dignidade e da própria autonomia da vontade privada do paciente.
Ponderando o fato de o direito à vida estar sempre conectado intimamente ao princípio da dignidade humana, resta a compreensão de que, durante o fim da mesma, este princípio também
deve estar evidenciado, conjecturando entendimentos sobre o direito a uma morte digna, isso porque a morte é, assim como a vida,
um processo natural, e quaisquer meios que influenciem direta ou
indiretamente esta fase, barrando seu desenvolvimento regular,
pode ser caracterizado como inapropriado.Em suma, assim como
no decorrer da vida há uma busca por qualidade e dignidade, o
fato de o indivíduo estar em estado terminal ou incapaz de manifestar sua vontade não significa que se deve parar de lutar por
esses ideais, como afirma Adriana Maluf (2013, p. 425) “Deve-se,
portanto, lutar nesse processo de terminalidade, sair da vida com
dignidade”.
2.1 SITUAÇÕES DE FIM DE VIDA
A terminalidade da vida, como tópico essencial na discussão sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), revela ainda
a necessidade de identificar alguns dos conceitos caracterizadores
das situações de fim de vida, melhor explicando, dentre os inúmeros estágios clínicos como a doença terminal, o estado vegetativo,
a demência avançada e outras doenças crônicas, quais desses estariam passíveis da aplicação, cabimento, de uma DAV (DADALTO,
2013, p. 35).
Haja vista a importância de diferenciar tais condições, pois
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envolvem diretrizes não só médicas, mas também sociais, jurídicas e políticas. Elas influem condicionantemente na constituição
do documento prévio de vontade do paciente, a exemplo do caso
onde o doente não se encontra capaz de explanar seus desejos,
mas em momento citerior, “prevendo” esta situação de incapacidade deixou expresso quais tratamentos aceitaria receber.
2.1.1 Estado Terminal
A condição clínica do paciente determinada como estado terminal ou em estado de terminalidade, a certo modo, surge
como um produto dos progressos tecnológicos da Medicina. Doenças que em outras épocas causavam a morte subitamente, nos
dias de hoje, com o avanço dos tratamentos clínicos, já não se desenvolvem da mesma maneira. Embora muitas enfermidades ainda não tenham cura, graças a essa evolução a estimativa de vida
dos pacientes foi invariavelmente ampliada, fenômeno denominado pela Professora Maria Júlia Kovács (2009, p. 64) como “cronificação das doenças”.
Com isso, a condição de paciente terminal abanca a ideia
de manutenção da vida, entretanto, não partindo a princípiode
um contexto subjetivo, humanizado, mas sim técnico-científico,
resultado das ações médicas. Esta disposição vai claramente de
encontro aos objetivos primordiais da Medicina, “a promoção do
bem-estar e eliminação do sofrimento” (FERREIRA, 2006, p. 151).
Aqui é posto em evidência o erro cometido ao apreender a “manutenção da vida a todo custo” como fim último, assegurar o respeito
à autonomia do paciente e proporcionar ao mesmo qualidade de
vida são fatores mais importantes, aos quais se deve dar primazia.
Quando se fala em conceituação da expressão paciente terminal a
doutrina médica não é uníssona, são apresentadas variadas definições e todas gravitam sobre a ideia de impossibilidade de cura
atrelada à morte iminente.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A terminalidade parece ser o eixo central do conceito em torno do qual se situam as conseqüências. É
quando se esgotam as possibilidade de resgate das
condições de saúde do paciente e a possibilidade
de morte próxima parece inevitável e previsível. O
paciente se torna “irrecuperável” e caminha para a
morte, sem que se consiga reverter este caminhar.
(GUTIERREZ, 2001, p. 92)
José de Oliveira Ascensão (2012, p. 160) determina paciente
terminal como aquele onde “o diagnóstico é o de não haver nenhuma probabilidade de recuperação”, já Marcos Knobel e Ana Lucia Martins da Silva (2004, p.133) o compreendem como “aquele
cuja condição é irreversível, independente de ser tratado ou não,
e que apresenta uma alta probabilidade de morrer num período
relativamente curto de tempo”. Antonio Jackson Thomazella de Almeida (2012, p. 448 e 467-468) define primariamente o estado terminal como o estágio da doençaonde a possibilidade de cura não
mais existe, evoluindo para a insuficiência dos órgãos, e a morte
é instante, conquanto o paciente terminal é justamente o sujeito
encontrado nesta condição.
Em contraposição aos autores supramencionados, Pilar
Gutierrez procura definir o paciente terminal de forma mais real,
ou seja, partindo de uma perspectiva humanista e discutindo o paciente como ser autônomo, diferente da ideia generalizante normalmente empregada.
Abre-se a perspectiva de discussão deste conceito
caso a caso: um paciente é terminal em um contexto
particular de possibilidades reais e de posições pessoais, sejam de seu médico, sua família e próprias.
Esta colocação implica em reconhecer esta definição, paciente terminal, situada além da biologia, inserida em um processo cultural e subjetivo, ou seja,
humano. (GUTIERREZ, 2001, p. 92)
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Apesar dessa heterogeneidade conceitual demonstrada, na
hora de identificar os pacientes que se encontram nesta situação,
há, indiscutivelmente, um consenso dentre os profissionais, Gutierrez afirma existir uma aparente facilidade de reconhecimento,
no sentido de diagnosticar o estado terminal, em contraposição a
sua objetivação (2001, p. 92).Entrementes, a aceitação dessa condição de fim de vida, tanto pela família como pelo próprio paciente
e os profissionais de saúde, provavelmente constitui a parte mais
difícil, embora não signifique o fim exatamente, a partir desse momento várias ações com a finalidade de proporcionar ao paciente
uma melhor qualidade de vida - encaminhamento para uma morte
digna -, podem e devem ser oferecidas.
Isto acentua a concepção da pessoa enferma como ser independente, titular de direitos, afinal “mesmo que um paciente
esteja próximo de morrer, ainda está vivo, e é uma pessoa com
desejos” (KOVÁCS, 2009, p. 65), além de que o “reconhecer, sempre que possível, seu lugar ativo, sua autonomia, suas escolhas,
permite-lhe chegar ao momento de morrer, vivo, não antecipando
o momento desta morte a partir do abandono e isolamento” (GUTIERREZ, 2001, p. 92).
Partindo deste ponto temos duas possibilidades: a primeira equivale ao paciente terminal consciente, seus desejos podem e
devem ser ouvidos haja vista ele estar “plenamente capaz” de expressá-los; e a segunda é caracterizada pelo paciente inconsciente, a capacidade/autonomia está reduzida (DADALTO, 2013, 39).
É justamente este segundo caso interessante ao estudo
das Diretivas Antecipadas de Vontade. Os profissionais de saúde,
impossibilitados de terconhecimento direto dos desejos do enfermo poderiam, até mesmo devem, se valer de documento por este
avençado anteriormente, a declaração prévia de vontade para o
fim da vida, com a finalidade de atender seus desejos apontados
expressamente, reconhecendo-o como sujeito de direitos autônomo, não obstante o estado em que se encontrar.
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Na falta de documento nestes parâmetros, a família do enfermo e o próprio médico são dotados de autonomia para decidir
qual ou quais as opções mais viáveis a serem seguidas, sempre
tendo em vista o melhor para o paciente.
2.1.2 Estado vegetativo
Uma outra situação de fim de vida importante ao estudo
das Diretivas Antecipadas de Vontade é o chamado estado vegetativo persistente, condição resultante de lesões diretas ou indiretas ao Sistema Nervoso Central ocasionando alterações no nível
de consciência do enfermo, instaurando uma espécie de quadro
de coma diferenciado.No estado de coma, como explica Adriana
Maluf (2013, p. 431), “uma pessoa ou animal perde completa ou
parcialmente a consciência, não tem reações cerebrais cognitivas espontâneas ou reage pouco ou nada a estímulos externos”,
por sua vez, no estado vegetativo persistente há uma completa
ausência da consciência, contudo algumas reações basilares,
como se fossem a programação básica do cérebro, permanecem
funcionando.
Primordialmente explicando, Drauzio Varella assim descreve o EVP:
O estado vegetativo é a mais frustrante das condições humanas. A pessoa está viva, abre os olhos,
dorme, acorda, executa as funções fisiológicas, mas
durante meses, anos, permanece alheia, incapaz de
esboçar a menor reação. [...] A impossibilidade de
documentar sequer resquícios de atividade mental
através de testes comportamentais e dos exames
neurológicos clássicos criou para os que se encontram nessa condição a imagem de mortos-vivos.3
3
Disponível em: http://drauziovarella.com.br/drauzio/consciencia-no-estado-vegetativo; Acesso: 2 Jun. 2014
Capa
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21
A Multi-society Task Force on PVS (1994) realizou um estudo
detalhado sobre o EVP arrolando os critérios básicos para a sua
caracterização, além de estabelecer uma definição mais precisa da
síndrome. A publicação afirma que “o estado vegetativo é uma situação clínica de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral”.
Outra discussão apresentada pela sociedade citada acima trata da
diferenciação dos termos persistente ou permanente. Ao considerar o estado vegetativo, não há como afirmar categoricamente que
o paciente não poderá recuperar plenamente sua consciência.
Portanto, o estado vegetativo será persistente enquanto a
condição de incapacidade ocorrida perdurar até o momento de
realização do exame clínico, ou seja, é um diagnóstico, já se designado como permanente há uma denotação de irreversibilidade do
quadro, existe um alto grau de certeza quanto à irrecuperabilidade
do paciente e, consequentemente, será um prognóstico.
A relação entre o EPV e as diretivas antecipadas de vontade
gira e torno, principalmente, dos cuidados designados aos enfermos, em especial quanto à nutrição e hidratação artificial (AHA).
Pelos pacientes se encontrarem em situação de incapacidade plena e sem perspectiva concreta de recuperação, alguns especialistas entendem ineficaz e até prejudicial a continuidade da AHA,
pois resta comprovado os danos e desconfortos que acarretam.
Há quem sustente, porém, a AHA como encargos mínimos a serem
desprendidos ao acamado, e cuja suspensão resultaria na morte
do indivíduo, caracterizando a eutanásia.
O maior problema é situar a AHA como um tratamento
médico ou como um simples cuidado basilar à manutenção da
vida do paciente em EVP. Ricardo Hodelín-Tablada, citando Raanan Gillon, afirma
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
laalimentación por sonda nasogástrica o gastrostomía constituye un tratamiento médico que, como
todo tratamiento, puede suspenderse a solicitud del
enfermo o cuando se considere inútil. Dado que, según Gillon, todo tratamiento supone la intención, la
perspectiva de un beneficio, y que la mera prolongación de la vida en estos casos no puede considerarse
como tal [...]. (2002, p. 1076, grifo nosso)
Sendo o AHA um tratamento clínico, entendimento majoritário, deve ser reconhecida a possibilidade de o acamado decidir
sobre sua manutenção ou suspensão, não, obviamente, diretamente em sentido estrito, mas havendo documento por ele constituído previamente a este respeito os profissionais de saúde ficam
sujeitos a esta intenção.Uma observação a ser feita ainda é o fato
de considerar-se o paciente em estado vegetativo persistente sem
possibilidade de tratamento, afinal, tudo o que se tem a fazer é
esperar, por este motivo são postos dentre aqueles em fim de vida
(DADALTO, 2013, p. 42).
2.1.3 Demência severa
O que traz a colocação da demência severa aqui neste estudo é sua relevância no contexto social da atualidade, o aumento
imoderado no número de diagnósticos e as consequências na liberdade e autonomia do indivíduo doente.
Doenças crônicas podem ser caracterizadas, segundo a
OMS, como permanentes, produzem incapacidade ou deficiências
residuais e são ocasionadas por patologias irreversíveis, exigem
que o paciente passe por processos de reabilitação e tratamento
longos (DADALTO, 2013 p.42), muitas vezes durante toda a vida.
A demência severa ou avançada encontra-se no rol de doenças crônicas e consiste na “síndrome caracterizada por declínio
de memória associado a déficit de pelo menos uma outra função
cognitiva (linguagem, gnosias, praxias ou funções executivas) com
Capa
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23
intensidade suficiente para interferir no desempenho social ou
profissional do indivíduo” (CARAMELLI; BARBOSA, 2002, p. 7).
Por causar a perda da consciência, este estado clínico impossibilita aos enfermos a expressão clara de seus desejos e opiniões, ou seja, eles tornam-se incapazes de fato. Neste momento
as DAV’s representam uma opção essencial no reconhecimento
dos pacientes com demência severa como sujeitos de direitos,
destacadamente o direito-princípio da dignidade da pessoa humana.Poder-se-ia, através das declarações prévias de vontade,
apresentar claramente os desejos do paciente quanto à forma de
tratamento em uma possível situação de incapacidade plena, e,
mais do que isso, fazendo possível ainda a constituição, através de
um mandato duradouro, de um procurador, alguém que diante da
impossibilidade de manifestação existente atuará como se aquele
fosse, decidindo sobre os cuidados e tratamentos médicos a serem aplicados.
Estudos norte-americanos afirmam que “a maior parte dos
outorgantes de diretivas antecipadas de vontade são adultos velhos e incluem disposições sobre doenças crônicas e demência
avançada em suas DAV” (BROWN apud DADALTO, 2013, p. 43), este
dado exemplifica a importância do entendimento desta condição
para o presente trabalho.
2.2 PRÁTICAS NA TERMINALIDADE DA VIDA
Tendo em vista a situação do paciente em fim de vida, sem
perspectiva de recuperação e passando por um sofrimento inimaginável, tornam-se recorrentes os pensamentos sobre como
proporcionar o mínimo de conforto a ele. Tanto a família como o
próprio paciente e o médico começam a conjecturar a respeito das
opções para diminuir a agonia que a doença terminal traz consigo.
A manutenção dos tratamentos sem que haja realmente melhora
na qualidade de vida do paciente ou a suspensão dos mesmos per-
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mitindo que a expectativa de vida seja, amiúde, reduzida, porém
oferecendo um alívio ou amenizando a angustia do enfermo e da
família, são pontos discutidos constantemente sob perspectivas
éticas e jurídicas. Exemplificando, o desejo de morte de pessoas
em estado precário de saúde em contraponto com o dever do Estado de proteção da vida.
Nesse contexto, a identificação das principais práticas
aventadas para dar maior conforto ao paciente terminal é imprescindível, principalmente por ser tema crucial ao entendimento das
Diretivas Antecipadas de Vontade.Dentre as práticas mais destacadas encontram-se a eutanásia, a ortotanásia, a distanásia e os
cuidados paliativos.
2.2.1 Eutanásia
A dor sentida por alguns pacientes em fim de vida não pode
ser mensurada por quem vê de fora. A família está inconsolável e
o enfermo já se encontra incapaz de suportar tantas provações, o
sofrimento é uma constante.Com essa perspectiva muitos questionam a possibilidade de antecipação do momento último tendo por
justificativa a necessidade de libertar o indivíduo adoentado daquela situação insuportável, possibilitando a ele uma morte digna. A
abreviação da vida é conduzida como um ato de humanidade.
[...] poder-se-ia falar em direito de antecipar a morte
diante de uma agonia extremamente cruel e prolongada? Uma vida sofrida, seguida de dores insuportáveis, não estaria ferindo a dignidade humana e não
justificaria o entender de que o direito à vida deixaria de ser o valor primordial tutelado constitucionalmente? (DINIZ, 2014, p. 494)
A eutanásia, palavra derivada da expressão grega euthanatos que significa boa morte, constitui a “ajuda que é prestada a
uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou pelo menos em
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consideração à sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte compatível com a sua concepção de dignidade
humana” (ROXIN, 2006, p.177). Essa prática de antecipação deliberada da morte de um paciente terminal é regulamentada em diversos países, tais como a Holanda e a Bélgica, e tem por justificativa
o princípio socrático da qualidade de vida, dignidade da pessoa
humana. Todavia, muitos doutrinadores entendem o exercício da
eutanásia como um homicídio, tido por piedoso, mas ainda sim
um assassínio.
Pilar Gutierrez trata o momento de reconhecimento do estado terminal da seguinte maneira: “Admitir que se esgotaram os
recursos para o resgate de uma cura e que o paciente se encaminha
para o fim da vida, não significa que não há mais o que fazer” (2001,
p. 92). Portanto, o fato de o indivíduo se encontrar próximo ao fim de
sua existência não justifica a antecipação do mesmo. Há, apesar de
tudo, alternativas menos incisivas e capazes de dar ao paciente uma
morte digna através de um processo de morte natural.
Em lato senso, a eutanásia é caracterizada pela ação ou
omissão do médico com o objetivo de acelerar a morte do paciente
em agonia, entretanto, destrinchando esta concepção, podemos
visualizar duas formas específicas: a eutanásia ativa, assinalada
como a aquela onde o médico terá papel ativo na prática da terminalidade da vida - ele pratica o ato que conduz à morte do indivíduo; e a eutanásia passiva, haverá, neste caso, a suspensão dos
cuidados mantenedores da vida e aguardar-se-á o óbito do enfermo como resultado direto desta omissão.
No ordenamento jurídico brasileiro a prática da eutanásia
é vedada, estando tipificada como homicídio, nos moldes do art.
121 do Código Penal Brasileiro, podendo ainda ser enquadrada na
situação postulada no parágrafo primeiro do artigo supramencionado caso seja impelida por motivos de acentuado clamor social
ou moral. Esta prática também é vetada no Novo Código de Ética
Médica - Resolução do CFM nº 1.931/2009 em seu art. 41 e parágra-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
fo único:
É vedado ao médico:
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e
terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações
diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas,
levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu
representante legal. (grifo nosso)
Importante se faz a diferenciação entre o suicídio assistido e
a eutanásia, pois no primeiro caso, mesmo que o objetivo seja antecipar a morte e proporcionar um fim digno, o ato será praticado pelo
próprio paciente terminal sendo no máximo auxiliado ou orientado
por um médico ou terceiro. O artigo 122 do Código Penal Brasileiro
proíbe o induzimento, instigação ou auxilio a suicídio, de modo a dispor em lei como crime a prática da ação aqui elencada. No segundo
caso, como já bem demonstrado no correr do texto, o procedimento é
designado a outra pessoa. Invariavelmente ambos são considerados
atos de humanidade.
É válido ressaltar, por fim, a seguinte questão: antes que se
possa sequer pensar na aplicação da eutanásia, deve ser feita a análise e consideração dos reais motivos do paciente para creditar este ato
como uma solução. Vem ao caso, então, a célebre disposição de Leo
Pessini (2008, p. 176-177): “Na base de muitas solicitações de eutanásia existe muita solidão, abandono. O que a pessoa realmente necessita é assistência, tratamento especializado, espiritualidade, amor”.
2.2.2 Ortotanásia
A ortotanásia, também chamada paraeutanásia ou, erroneamente, eutanásia passiva, consiste na prática cujo resultado
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morte é alcançado por conta da suspensão dos cuidados e tratamentos usados na manutenção da vida. Quando se observa que as
intervenções médicas já não são mais uteis, e apenas estendem o
sofrimento do paciente, a renúncia a elas, evitando um excesso terapêutico, é um ato que permite ao enfermo vivenciar o processo
de morte naturalmente.
A possibilidade de proporcionar ao doente terminal uma morte digna, neste caso, passa pela ideia de morrer no momento certo,
ou melhor, o fim não pode e não deve ser apressado ou evitado a
todo custo. Cuidados básicos são destacados a fim, apenas, de amenizar o quadro sintomático da doença, não de manter a vida além do
esperado.À semelhança da eutanásia, a ortotanásia também é justificada segundo razões humanísticas, busca reconhecer ao indivíduo
em fim de vida o direito de morrer dignamente, sem sofrer desnecessária e desproporcionalmente. A possibilidade de manter uma pessoa
viva indiscriminadamente é considerada intolerável.
Maria Helena Diniz (2014, p. 500) conceitua, portanto,
esta prática como
“o ato de deixar morrer em seu tempo certo, sem
abreviação ou prolongamento desproporcionado,
mediante a suspensão de uma medida vital ou de
desligamento de máquinas sofisticadas, que substituem e controlam órgãos que entram em disfuncionamento.
Há a facilitação da morte pela suspensão de um tratamento
que prolongue a vida, entretanto, esta última não sofre qualquer
ameaça, apenas se está tentando reduzir o infortúnio do paciente
ao mínimo.Para reforçar a compreensão deste instituto, Maria Elisa Villas-Bôas (2008, p. 66) o explica da seguinte maneira:
A ortotanásia tem seu nome proveniente dos radicais gregos: orthos (reto, correto) e thanatos (morte).
Indica, então, a morte a seu tempo, correto, nem
antes nem depois. Na ortotanásia, o médico não
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
interfere no momento do desfecho letal, nem para
antecipá-lo nem para adiá-lo. Diz-se que não há
encurtamento do período vital, uma vez que já se
encontra em inevitável esgotamento. Também não
se recorre a medidas que, sem terem o condão de
reverter o quadro terminal, apenas resultariam em
prolongar o processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família. Mantêm-se os cuidados básicos.
Diferentemente da modalidade apresentada no tópico anterior, a prática elencada aqui não é considerada crime, estando
disciplinada, de forma incipiente, em algumas leis estaduais, a
exemplo da Lei nº 10.241/1999, e em resoluções do Conselho Federal de Medicina. Inclusive o Anteprojeto do Novo Código Penal,
PL nº 6.715/2009, também dispõe sobre o ortotanásia, prevendo
sua inclusão no artigo 121 como causa excludente de ilicitude.
Posteriormente este assunto será tratado mais detalhadamente,
quando a Resolução do CFM nº 1.805/2006 for analisada.
Existe uma ligação clara e evidente entre as Diretivas Antecipadas de Vontade e a ortotanásia, afinal a decisão de suspender o
tratamento dependerá não somente do estado terminal da doença,
mas também da aquiescência por parte do próprio enfermo, caso
consciente, ou da família ou terceiro designado. Desse modo, a opinião do indivíduo sobre esta prática e seus desejos para o fim da vida
podem ser declaradas previamente, compelindo os profissionais da
saúde a verificar e atender essas disposições caso constituídas.
2.2.3 Distanásia
A medicina avança a largos passos, algumas doenças antes incuráveis hoje são de fácil tratamento, vidas em estado terminal podem ser prolongadas por tempo quase que indeterminado
através de equipamentos sofisticados e de alta tecnologia. Coisas
consideradas impossíveis em outros tempos estão sendo realizadas facilmente pelos médicos atuais, o progresso nesta área de
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conhecimento é tão grande que as expressões “quase deuses” ou
“brincando de deuses” para referir-se aqueles são frequentemente
utilizadas.
Em contraposição aos institutos analisados até agora, surge adistanásia, dys - dificuldade/prolongamento mais thanatos morte, nesta modalidade em vez de tentar dar ao paciente terminal uma morte digna, diminuir-lhe o sofrimento permitindo que
siga o processo de morte natural, tudo o que estiver ao alcance
dos profissionais de saúde e que permita a vida ser prolongada o
máximo possível deve ser realizado, não importando as consequências.Também chamada de obstinação terapêutica ou futilidade
médica, a distanásia, como fruto dos progressos tecnológicos, tem
seu foco não no enfermo exatamente, mas sim na própria doença,
busca otimizar a quantidade e não a qualidade de vida do paciente. Tudo quanto for possível deve ser feito a fim de evitar a morte,
mesmo que isso traga um sofrimento imensurável.
Etimologicamente, distanásia é o oposto de eutanásia. A distanásia defende que devem ser utilizadas
todas as possibilidades para prolongar a vida de um
ser humano, ainda que a cura não seja uma possibilidade e o sofrimento se torne demasiadamente
penoso. (MALUF, 2013, p. 437)
Jean-Robert Debray, citado por Maria Helena Diniz (2014,
p. 508), diz que a distanásia é “o comportamento médico que consiste no uso de processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do
que o mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível, e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”.Da mesma forma, Adriana Maluf (2013, p. 438), ao caracterizar a distanásia
apresenta os seguintes termos:
Impõe o que se chama de tratamento fútil, que aumenta o sofrimento do doente e das pessoas ao seu
redor e na prática nenhum benefício acarreta para
este. Vele-se ainda, nesses casos, da denominada
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
obstinação terapêutica, onde o acesso à moderníssima tecnologia - em equipamentos hospitalares e
fármacos - pode vir a prolongar indefinidamente um
estado irreversível de saúde do paciente terminal
O principal questionamento feito sobre esta prática aduz a
admissibilidade de submeter paciente já em estado terminal a tratamento que tenha como objetivo apenas acrescentar alguns dias,
semanas ou meses de vida a ele. Existe um limite para manutenção da vida de um indivíduo cuja morte já é certa? Pode-se prolongar a vida indefinidamente através de meios artificiais, mesmo em
detrimento à dignidade humana? Acertadamente, o melhor a se
fazer será compreendido após a análise da situação, caso a caso,
“ponderando sobre os critérios de eficácia, benefício e onerosidade em matéria de tratamento” (MALUF, 2013, p. 438).
2.2.4 Cuidados Paliativos
Aliando a ideia de manutenção da vida, a aplicação dos tratamentos que proporcionam real benefício e o papel do médico
na garantia da qualidade de vida auferida pelo enfermo, que, independente da situação - instaurado o processo de morte ou já
caracterizado o quadro como irreversível - o paciente ainda é sujeito de direitos, e como tal, deve continuar recebendo acompanhamento médico, ele não pode ser abandonado. Esclarecendo esta
afirmação, José de Oliveira Ascensão (2012, p. 173) profere que:
A pessoa não perde nunca a sua dignidade intrínseca; por isso não pode ser nunca abandonada. Mesmo que se encontre em estado considerado terminal e não haja nenhuma perspectiva de cura deve
continuar sempre a ser acompanhada médica e espiritualmente.
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Partindo desse contexto, surge, então, o que José António
Saraiva Ferraz Gonçalves (2006, p. 167) chama de alternativa entre
o abandono e a distanásia: os cuidados paliativos. Essas práticas,
também conhecidas como hospice, foram implantadas modernamente, visto terem origem na idade média, pela inglesa CicelySaunders, que fundou em 1950 a primeira instituição voltada para
os cuidados de pacientes terminais, o St. Christopher’sHospice. O
objetivo dessa entidade, especializada em indivíduos em estado
de terminalidade, era cuidar, além dos “aspectos técnicos” ligados
à doença, “da dor física, social, espiritual e emocional do paciente” (DADALTO, 2013, p. 44).
Conceitualmente falando, os cuidados paliativos podem
ser entendidos como aquela forma de tratamento que busca dar
ao paciente uma melhor qualidade de vida, aliviando o sofrimento
não apenas físico, no combate direto à dor, mas também sob parâmetros psicológicos, trabalhando o emocional e o espiritual do
doente terminal, favorecendo e objetivando sempre a dignidade e
a integridade da pessoa humana.A Organização Mundial de Saúde (OMS), reconhecendo a importância desse instituto diante das
necessidades atuais, constituiu, em 1990, o primeiro conceito de
cuidados paliativos, sendo este atualizado em 2002, passando a
ter a seguinte redação:
Cuidado Paliativo é uma abordagem que promove
a qualidade de vida de pacientes e seus familiares,
que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alivio do
sofrimento. Requer identificação precoce, avaliação
e tratamento da dor e outros problemas de natureza
física, psicossocial e espiritual (ACADEMIA NACIONAL
DE CUIDADOS PALIATIVOS, 2009, p. 16)
Conforme a interpretação dada ao conceito apresentado,
todos os meios terapêuticos utilizados devem permitir ao paciente
estabelecer-se o mais confortável possível diante da sua situação,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
com o intento de melhor receber e perceber o fim. Os cuidados
paliativos irão, portanto, dar o suporte necessário aos enfermos
a fim de que possam se habituar às suas limitações. Esse apoio,
válido comentar, é proporcionado por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, religiosos e mesmo
voluntários.
Para a filosofia do hospice: a) deve-se aceitar a morte
como episódio natural do ciclo vital; b) não se deve
antecipar, nem prolongar a vida se a morte é inevitável; c) o paciente deve ficar unido a seus familiares
e entes queridos; d) deve a equipe interdisciplinar
cuidar da dor psicológica, espiritual e física; e) o objetivo clínico pretendido é controlar a dor e atenuar
os sintomas da moléstia; e f) deve-se dar assistência
ao paciente, independentemente das condições de
pagamento. Essa filosofia encara o “estar morrendo” (dying) como um processo normal e busca uma
melhor qualidade de vida ao paciente, controlando
sua dor. (DINIZ, 2014, p. 518)
A conclusão alcançada, por fim, implica reafirmar o paciente em estado terminal como ser social, que, embora próximo
à morte, não deve ser abandonado por não haver mais possibilidade de cura, alguém a quem deve ser proporcionado as melhores condições de vida possível, para assegurar seu direito a morrer
dignamente.
3 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
O reconhecimento do homem como ser livre e autônomo,
capaz de gerir por si mesmo seus interesses e seu modo de agir,
foi alcançado após constantes lutas e reivindicações. Dessa forma,
nada mais natural que esta conquista também fosse exercida diante das questões relativas à terminalidade da vida. Admitiu-se o di-
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reito dos pacientes à explanação de seus desejos e opiniões sobre
atos, condutas e tratamentos médicos a serem recebidos por eles.
Não só podendo decidir sobre a aceitação ou não de determinado
cuidado de forma imediata, quando o indivíduo já se encontra na
relação médico-paciente, mas também de forma mediata ao dar
instruções sobre como quer ser tratado no caso de eventuais e futuras incapacidades.
Associada ao consentimento informado, no sentido de fundamento da autodeterminação do paciente e meio de legitimar a
recusa de tratamentos (DADALTO, 2013, p. 59), as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV’s) surgem como reflexos do próprio princípio da autonomia da vontade do sujeito, um instrumento válido
para a manifestação das pretensões do indivíduo sobre questões
relativas a cuidados médicos.As Diretivas Antecipadas de Vontade
são fruto do direito estadunidense, surgiram em meados dos anos
sessenta e foram tipificadas, em 1990, no Patient Self-determinationAct. Esse diploma legal
reconhece o direito das pessoas à tomada de decisões referentes ao cuidado da saúde, aí incluídos os
direitos de aceitação e recusa do tratamento, e ao
registro por escrito, mediante documento, das mesmas opções, prevendo uma eventual futura incapacidade para o livre exercício da própria vontade.
(CLOTET, 2005, p. 6)
É percebível, primeiramente, que as DAV’s não se referem
exclusivamente as situação de terminalidade, elas podem ser
constituídas tomando por base uma possível incapacidade do indivíduo em manifestar prontamente os seus desejos, é um meio
de prevenção, de garantir que a sua opinião seja conhecida e,
preferencialmente, atendida.Tendo isso em vista “as diretivas antecipadas (advancedcaredocuments), tradicionalmente, têm sido
entendidas como o gênero do qual são espécies a declaração de
vontade para o fim da vida (living will) e o mandato duradouro (du-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
rablepowerattorney)” (DADALTO, 2013, p. 82).
Nesse contexto, para a melhor compreensão das diretivas
antecipadas de vontade e verificar sua aplicabilidade e admissibilidade no ordenamento jurídico brasileiro, é importante a análise
da sua relação com o consentimento informado, o papel do médico na sua constituição e suas modalidades - declaração de vontade para o fim da vida, também conhecida como testamento vital, e
o mandato duradouro.
3.1 O CONSENTIMENTO INFORMADO
Dois fatores influenciaram diretamente no estabelecimento do consentimento informado como elemento essencial à proteção da autonomia privada do paciente. O primeiro fator refere-se ao antigo modelo paternalista da relação médico-paciente, e
o segundo às experiências com seres humanos realizadas durante
a Segunda Guerra Mundial. Antigamente, por serem os detentores
dos conhecimentos técnicos da medicina, os médicos possuíam
uma posição privilegiada com relação aos pacientes, e esses, em
consequência, tinham um dever de obediência para com as designações dadas pelos profissionais da saúde. Dessa forma, as opiniões dos enfermos sobre a doença ou os tratamentos não eram
consideradas, visto que, pelo princípio hipocrático da beneficência, era dever do médico definir e ministrar autonomamente os
meios terapêuticos necessários para se alcançar a cura. (GODINHO,
2012, p. 948-949). Com o reconhecimento da autonomia privada
dos pacientes esta relação foi alterada, de modo que, atualmente,
o médico passou a agir não somente de acordo com seus entendimentos e convicções como também valendo-se da opinião e do
consentimento do enfermo para, assim ,decidir sobre os cuidados
mais adequados ao caso.
Assim fica clara a importância do consentimento livre e
esclarecido na relação médico-paciente. Como consequência da
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transformação do enfermo em sujeito autônomo, ele passa a ter
poder de decisão sobre todas as coisas que lhe dizem respeito diretamente, devendo, portanto ter acesso às informações sobre sua
condição, a fim de poder considerar adequadamente suas opções.
(SÀNCHEZ apud DADALTO, 2013, p.67). Da mesma forma, com o
fim da Segunda Grande Guerra, ao se observar as experiências realizadas com seres humanos “em nome do avanço da medicina”,
evidente ficou a necessidade de serem estabelecidos princípios
éticos que baseassem essas práticas, regulações firmadas com
o desígnio de barrar as intervenções médicas não autorizadas. E
foi com esse objetivo que o Código de Nuremberg, datado do ano
de 1947, foi firmado. Nesse Código, a essencialidade do consentimento voluntário foi apreciada e afirmada, além da ênfase dada
ao direito de escolha livre e do conhecimento esclarecido sobre o
estudo desenvolvido.
Esse fator proporcionou ao indivíduo tomar “consciência
do direito à autodeterminação do próprio corpo que, aliada ao
constante avanço da Medicina, gerou a valorização do consentimento do paciente nas intervenções médicas” (PEREIRA apud DADALTO, 2013, p. 62).Partindo do exposto, o consentimento livre e
esclarecido consiste no instrumento de certificação da autonomia
da vontade do paciente e é justificado como meio de proteção do
direito de escolha autônoma do sujeito
No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e paciente, o consentimento informado - expressão que se cunhou para identificar que a declaração
de vontade do paciente é externada de forma livre
e devidamente esclarecida - é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar
determinados tratamentos ou intervenções, com
base nas informações prestadas acerca dos riscos e
dos procedimentos que serão seguidos. (GODINHO,
2012, p. 948)
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
No consentimento informado o paciente valerá de informações prestadas pelo profissional da saúde para construir seu
entendimento e, só assim, apresentará seu parecer sobre os cuidados aceitos e os recusados. O fornecimento dessas explicações
constituem o dever de informar do médico, ao mesmo tempo que
salientam o direito à informação do paciente. Esse dicotomiadever-direito é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois a
relação médico-paciente é considerada, conforme a interpretação
dada ao art. 14, §4º do CDC, como consumerista.
Artigo 6º São Direitos básicos do consumidor
[...]
III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta
de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. (BRASIL. 1990)
Ademais, as informações prestadas devem ser tais que permitam ao paciente formar um consentimento verdadeiramente
qualificado, ou seja, o médico não apenas tem simplesmente de
informar sobre os tratamentos, ele tem obrigação de esclarecer
prontamente esses dados até que se perceba a compreensão do
paciente.Embora não haja consenso quanto à natureza jurídica
do consentimento informado, Luciana Dadalto (2013, p. 67-68) o
trabalha como uma relação contratual cujo caráter vai além da
perspectiva patrimonial, por estar subordinado ao princípio da
dignidade da pessoa humana, sendo, então, eminentemente existencial.Ainda sobre a relação jurídica existente entre o médico e
o paciente e o papel do consentimento livre e esclarecido dentro
dela, resta dizer o seguinte:
[...] entende-se aqui que o consentimento livre e
esclarecido na relação médico-paciente tem papel
de princípio basilar, pois é informador deste contra-
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to, e, juntamente com o princípio da dignidade da
pessoa humana, “é elemento central na relação médico-paciente, sendo resultado de um processo de
diálogo e colaboração, visando satisfazer a vontade
e os valores do paciente” (DADALTO, 2013, p. 69)
Como relação contratual, uma outra consideração a ser feita trata da capacidade do paciente como requisito de validade do
consentimento, ou seja, para ser aceita a anuência dada pelo enfermo para o início ou não do tratamento médico, resta necessário
a comprovação de que ele realmente é capaz de compreender a
situação em que se encontra, se o nível de consciência atinente ao
seu quadro clínico permite essa tomada de decisão de forma clara.
Diferentemente do entendido por capacidade civil, o mais importante diante da aval prestada é
[...] aferir a validade do consentimento informado
do paciente, pois, no caso concreto, deve-se verificar se à época da manifestação do consentimento
o paciente estava em pleno gozo de suas funções
cognitivas e não se este se enquadrava no conceito
de pessoa capaz civilmente. (DADALTO, 2013, p. 72)
A última ponderação a ser feita sobre o consentimento informado refere-se a sua distinção das Diretivas Antecipadas de
Vontade, pois, conquanto o primeiro trata da recusa ou aceitação
de um procedimento proposto para cura de uma doença vigente,
as segundas cuidam de estabelecer as diretrizes para o tratamento de quadros clínicos possíveis no futuro. Entretanto, ambos os
institutos assemelham-se tanto por terem como consequência a
aceitação ou não de algum cuidado terapêutico, como por se fundarem no respeito à autonomia pessoal do paciente (GODINHO,
2012, p. 953)
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
3.2 AS MODALIDADES DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE
Como dito anteriormente, as Diretivas Antecipadas são o
instrumento pelo qual é manifestada a vontade e os desejos dos
pacientes, é o meio garantidor do princípio da autonomia privada. Porém, elas abarcam não apenas as situações onde o indivíduo se encontra em estado terminal, também atuam como mecanismo de prevenção ao permitir que documento seja constituído
com instruções a serem percebidas em uma eventual situação de
incapacidade.O testamento vital ou declaração prévia de vontade
para o fim da vida e o mandato duradouro são as hipóteses pelas
quais as diretivas antecipadas de vontade poderão ser efetivadas.
3.2.1 Mandato Duradouro
O mandato duradouro pode ser entendido como
um documento no qual o paciente nomeia um ou
mais “procuradores” que deverão ser consultados
pelos médicos, em caso de incapacidade do paciente - definitiva ou não, quando estes tiverem que
tomar alguma decisão sobre recusa de tratamento.
O procurador de saúde decidirá tendo como base a
vontade do paciente. (DADALTO, 2013, p. 85)
Significa dizer simplesmente que em uma possível situação
de incapacidade o indivíduo poderá designar, antecipadamente,
alguém para atuar e decidir em seu nome, seguindo as instruções
fornecidas, nas situações envolvendo os cuidados médicos com a
saúde do próprio representado.Em suma, no mandato duradouro, o procurador ou curador de saúde terá como funções básicas:
assegurar o comprimento das disposições apresentadas pelo paciente em diretiva antecipada de vontade; realizar um julgamento
substitutivo, ou seja, decidir com fundamento no que ele acredita
que seria a escolha do paciente caso esse pudesse manifestá-la -
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há uma sub-rogação das decisões do paciente; e decidir o que é de
maior interesse para o paciente (CLOTET, 2005, p.10)
Especificamente falando da forma como se dá o julgamento substituto, antes que o procurador possa atuar como se fosse o
paciente é preciso compreender a forma de pensamento daquele
que ele está representando, suas opiniões e perspectivas, valores
e acepções sobre os temas a serem decididos. Enfim, é preciso conhecer o paciente para poder tomar as decisões, refletindo os desejos do mandatário.
aefectividade deste instituto dependerá de um paciente e um procurador terem previamente conversado sobre as opiniões do primeiro relativamente
aos seus valores e às opções que tomaria numa
determinada situação se estivesse capaz (PEREIRA,
2004, p. 241)
Caso o curador não cumpra com as instruções designadas,as
decisões por ele tomadas podem ser invalidadas, afinal o mandato duradouro tem como premissa básica o cumprimento exato de
suas disposições, ou seja, os valores de um terceiro, no caso o procurador em especifico, não podem sobrepor-se aos do enfermo.
Haja vista que o mandato duradouro é um documento garantidor
da autonomia privada do incapaz.Quanto a abrangência do mandato duradouro, ele caracteriza-se por ter uma amplitude maior
do que as declarações previas de vontade para o fim da vida pois
produz efeitos tanto no caso de uma incapacidade temporária
como definitiva. Cada vez que aquele que o outorgou se encontrar
impossibilitado de manifestar sua vontade o procurador poderá
assumir sua posição, decidindo o que for necessário, enquanto
isso as declarações anteriormente citadas só terão eficácia em
caso de incapacidade definitiva.
No que se refere a admissibilidade deste documento diante do ordenamento jurídico brasileiro não há impedimento algum.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Por não existir previsão legal, justifica-se a possibilidade de sua
constituição pelo fato de o paciente, livre para dispor sobre os métodos terapêuticos a quer ser submetido, poder designar espontaneamente alguém para cuidar de seus interesses médicos em
eventual incapacidade sua, sendo assim “não se pode recusar a
validade de um instrumento que, lavrado pelo próprio interessado, nomeia um terceiro para manifestar-se sobre os cuidados futuros com a sua saúde”(GODINHO, 2012, p. 968).
Um dispositivo presente na lei brasileira assemelhado ao
mandato duradouro é o mandato, desse modo, em uma possível
tipificação dessa modalidade de DAV poderiam os requisitos formais da figura codificada serem tomados como base, a exemplo
da possibilidade de firmamento por escrito. As vantagens desse
instrumento encontram-se em sua maior flexibilidade, pois mesmo diante de instruções preestabelecidas o procurador de saúde
pode avaliar o que seria melhor para o seu mandatário no situação
vigente, contudo, estando de acordo sempre com o modo de pensar deste último. Em uma situação inesperada, o fato de haver um
procurador designado, torna possível a chegada a uma solução
adequada e em conformidade com os pensamentos do doente.
3.2.2 Declaração Prévia de Vontade para o fim da vida
O segundo modelo de Diretiva Antecipada de Vontade tem
como prerrogativa básica declarar previamente os desejos do
outorgante a respeito de uma possível situação de terminalidade
onde se encontre incapaz de manifestar sua vontade de forma livre
e consciente, a exemplo de uma doença crônica incurável, estar
em estado vegetativo permanente, ou simplesmente em estado
terminal.É o que Beauchamp e Childress (1999, p. 123) entendem
como medida garantidora da autonomia do paciente diante de
uma situação onde se encontre inapto à manifestação da mesma,
numa clássica demonstração do chamado modelo da autonomia
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pura (a vontade real do indivíduo, apresentada em momento de
capacidade plena anterior, fica assegurada). Diferentemente do
mandato duradouro, onde os desejos do indivíduo são expressos
indiretamente através do procurador, nesse caso a exteriorização
se dará diretamente.
O testamento vital, ou declaração prévia de vontade para
o fim da vida, como Luciana Dadalto (2013, p. 17) indica ser uma
nomenclatura mais apropriada, é entendido como um
documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de
tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser
obedecido nos casos futuros em que se encontre em
situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma. (GODINHO, 2012,
p. 956)
Importante se faz esclarecer, antes de prosseguir com o estudo do presente instrumento, a respeito do por que a terminologia testamento vital, mais frequentemente utilizada, não perfaz a
melhor opção de nomeação. O termo testamento vital é derivado
da tradução literal de living will, nomenclatura original constituída em 1967 nos Estados Unidos, e não exatamente equipara esse
instituto ao testamento em sua concepção civil, melhor dizendo,
questiona-se se a tradução dada à dicção primária foi correta e
realmente teve a intenção de assemelhá-los. Primeiramente, embora ambos sejam negócios jurídicos unilaterais, personalíssimos,
gratuitos e revogáveis diferenciam-se terminantemente quanto à
produção dos seus efeitos.
No testamento civil há produção de efeitos post mortem, ou
seja, sua eficácia ficará suspensa até a morte do testador, enquanto
que o testamento vital será constituído para produzir efeitos quando o indivíduo estiver impossibilitado de indicar prontamente sua
vontade, consequentemente, sua eficácia é inter vivos. Adriano Go-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dinho (2012, p. 956) nós traz ainda a diferenciação quanto ao objeto de cada instituto - em um caso obsta-se uma divisão de cunho
patrimonial e no outro a garantia antecipada dada às vontades do
paciente em relação a cuidados médicos.Dessa forma, fica clara a
incongruência entre a nomenclatura usual, testamento vital, e o
real sentido deste documento, motivo pelo qual Luciana Dadalto,
como já posto, sugere a utilização da expressão declaração prévia
de vontade para o fim da vida. Ela a entende mais adequada, haja
vista permitir o estabelecimento de um pré-conceito sobre o que
seja o instituto, facilitando sua acepção.
Apenas ressaltando este ponto, é válido comentar o fato de
a produção de efeitos, no caso da modalidade de DAV aqui retratada, só se fará quando o indivíduo que a outorgou estiver em situação de incapacidade permanente, diferentemente, mais uma vez,
do mandato duradouro, cuja eficácia é concretizada tanto perante
a incapacidade permanente quanto temporária.
Isso compreendido, passa-se a apresentação de alguns
elementos primordiais à caracterização da declaração prévia, iniciando pela sua justificação, passando a características basilares
e, então, ao principal benefício da utilização desse documento.
Joaquim Clotet (2005, p. 8), ao analisar o The Patient Self-DeterminationAct, lei norte-americana que primeiro tipificou as diretivas
antecipadas de vontade, questionou, citando Ruth Purtillo (1991,
p.13-14), o seguinte: “[...] qual as providências a serem tomadas
para um paciente incapacitado de exercer a autonomia, mas que
em estado anterior de lucidez manifestou-se a respeito por meio
de documento escrito?”. Tal pergunta, segundo ele, tem como resposta o que chama de Manifestação Explícita da Própria Vontade
(MEPV), uma das formas de efetivação das diretivas antecipadas.
Acompanhando essa linha de pensamento, há duas justificativas principais para a formulação de uma declaração prévia
de vontade pelos pacientes em fim de vida. Primeiramente, Clotet
(2005, p. 9) a justifica com base “na certeza e na confiança da pes-
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soa competente no que diz respeito ao seu atendimento em estado de inconsciência”, é uma abordagem subjetiva para a constituição desse documento, partindo da ideia de autonomia privada do
paciente. Adriano Godinho, contudo, apresenta uma segunda possibilidade de caráter mais objetivo para essa diretriz, ele discute a
praticabilidade da declaração prévia de vontade do paciente em
fim de vida com supedâneo na inexistência de dispositivo do ordenamento jurídico brasileiro que negue sua validade ou eficácia.
O princípio da atipicidade, onde o particular está livre para definir
novas formas de atos jurídicos ainda não previstos, desde que não
sejam contrários à lei vigente, caracteriza-se como justificador do
instituto, servindo à sua legitimação diante do direito nacional.
No concernente aos pressupostos do Testamento Vital estabelecidos como essenciais à sua validade estão a capacidade
plena do sujeito, associada à divergência entre capacidade e discernimento - situação em que o indivíduo tem plena consciência
da sua situação -, a forma escrita do documento, uma formalidade mínima, e a livre revogabilidade da diretiva, fundamentada
na perspectiva fornecida pelo progresso constante da medicina,
onde, a qualquer momento podem ser desenvolvidos novos cuidados terapêuticos para determinadas doenças antes incuráveis,
ou, ainda, outros tratamentos que realmente melhorem a qualidade de vida do paciente.
Por fim, a instituição de uma declaração prévia desponta
como elemento assecuratório da autonomia da vontade e do direito
à dignidade a partir do atendimento aos desejos do enfermo quando
sobrevier a morte. Além disso, há o respaldo legal, imunidade civil e
criminal, proporcionado ao médico que atende essas disposições.
[...] consequências benéficas das diretivas antecipadas, como a redução do medo do paciente de situações inaceitáveis, o aumento da autoestima do
paciente, a proteção do médico contra reclamações
e denúncias, a orientação do médico ante situações
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difíceis e conflituosas, o alívio moral para os familiares diante de situações duvidosas ou “potencialmente culpabilizadoras” e a economia de recursos
da saúde. (DADALTO, 2013, p. 84)
Da mesma forma, Ernesto Lippmann (2013, p. 21) conclui
da seguinte maneira sobre a fundamentação legal das declarações prévias:
Portanto, o fundamento legal do testamento vital
é a autonomia da vontade, a livre escolha do ser
humano e o princípio constitucional de sua dignidade humana, sendo importante que seus desejos
sejam documentados e manifestados de forma
consciente e esclarecida, o que se faz através do
testamento vital, que registra o tratamento que
o paciente deseja receber quando sua morte se
aproximar.
Conclui-se, portanto, que a declaração prévia de vontade para o fim da vida é a modalidade das DAV’s onde o paciente
poderá registrar suas vontades e acepções sobre os tratamentos
médicos a serem recebidos em uma situação eventual e futura de
incapacidade, sendo assegurada pelos princípios constitucionais
da autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana e podendo ser justificada pelo princípio da atipicidade.
3.3 DELIMITAÇÕES DAS DAV’s
Considerando que as Diretivas Antecipadas de Vontade
possuem um fim específico, garantir a expressão dos desejos do
paciente (autonomia) mesmo diante da incapacidade, e lhe assegurar uma morte digna - respeito ao princípio da dignidade da
pessoa humana, através dos cuidados paliativos, proporcionados
esses de modo que haja uma melhor qualidade de vida durante
o processo terminal -, há, entretanto, diversas questões a serem
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analisadas e ponderadas no constante as suas delimitações. Esclarecimentos sobre até onde pode-se dispor em defesa dos ideais
supracitados.
3.3.1 Fundamentos e limitações das DAV’s
Quando se fala nos fundamentos das DAV’s a doutrina costumeiramente trata de três pontos em específico: a verificação dos
aspectos relativos aos tratamentos de saúde, a indicação/nomeação de um procurador e a manifestação sobre eventual doação
de órgãos (DADALTO, 2013, p. 91-92). Essas ponderações envolvem
o direcionamento da diretiva antecipada, ou seja, o objeto desse instrumento de manifestação do paciente, geralmente, toma
como prerrogativa uma ou mais destas dimensões.
Os tratamentos médicos podem ser ocasionalmente divididos em ordinários, aqueles úteis e voltados para o controle da
dor e do sofrimento pelos quais o indivíduo está passando, visa
a qualidade de vida aliada ao reconhecimento dele como sujeito
de direitos que deve ser tratado com dignidade, ou extraordinário,
cujo conceito permeia a ideia de futilidade de tratamento, portanto, método que deve ser alvo das diretivas antecipadas pois visa
apenas a manutenção da vida sem qualquer ganho real e necessário à qualidade de vida do enfermo, infringindo, muitas vezes, sua
dignidade.
Nesse caso, as diretivas cuidarão dessas nuances relacionadas aos tratamentos médicos, resolvendo quais o paciente aceita
ou não, se deve haver a chamada suspensão de esforço terapêutico (SET), a depender da situação, se quer ou não ser informado a
respeito de diagnósticos fatais, etc. (DADALTO, 2013, p. 92-93).
Sobre a nomeação do procurador não há nada para acrescentar além do que já foi discutido no tópico sobre o mandato duradouro. Ressalva-se apenas o fato de o outorgado ter o compromisso de agir segundo as instruções do outorgante e, como se ele
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fosse, decidir por base no que acredita ser o caminho mais correto
para proporcionar ao paciente incapaz, sob sua responsabilidade,
um processo de morte digno.
A última perspectiva fundamental abordada pela doutrina
como preceito a ser compreendido diante da declaração prévia de
vontade para o fim da vida é a possibilidade de manifestação de
vontade sobre eventual doação de órgãos. A lei nº 9.434/1997, alterada pela lei nº 10.211/2001, chamada Lei dos Transplantes, disciplina claramente essa matéria. A princípio, e segundo Joaquim
Clotet (2005, p. 09), essa declaração sobre o transplantes pôde ser
considerada uma manifestação explícita da própria vontade (MEPV)
do doador e, portanto, uma forma representativa das diretivas antecipadas. Contudo, Luciana Dadalto (2013, p. 149), ao tecer seus
comentários afirma que, na verdade, as
disposições sobre doação de órgãos, estas desnaturam o instituto, vez que a declaração prévia de
vontade para o fim da vida é, por essência, negócio
jurídico, com efeito, inter vivos, cujo principal objeto
é garantir a autonomia do sujeito quanto aos tratamentos a que este será submetido em caso de terminalidade da via.
Ademais, essa autora ainda faz referência ao fato de ser
dada ao cônjuge ou parente plenamente capaz a autonomia para
decidir sobre a realização ou não da doação de órgãos. Ponderando a declaração prévia de vontade para o fim da vida como expressão da autonomia do paciente, a exigência de delegação da decisão, no todo ou em parte, sobre o transplante para os familiares é
claramente incompatível com esse instrumento (DADALTO, 2013,
p. 149). Assim, a doação de órgãos, embora seja uma das formas
de manifestação da vontade do paciente, não pode ser considerado como declaração prévia de vontade, primeiro porque em geral
a doação de órgãos pode ser efetivada também post mortem e, segundo, a permissão para o transplante não é de caráter exclusivo
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do indivíduo, não é expressão apenas de sua vontade.
O direito do indivíduo em constituir uma diretiva antecipada de vontade engendra-se no princípio da autonomia, no direito à
dignidade humana eno princípio da atipicidade dos atos jurídicos,
no entanto, ao verificar acima suas diretrizes mais comuns, torna
fácil a percepção de que há uma limitação quanto à matéria, mesmo não existindo legislação específica regulamentando-a.
Doutrinariamente esses limites envolvem tanto a proibição de disposições contrárias à lei, melhor explicando, as diretivas antecipadas de vontade não podem conter determinações
incompatíveis com o ordenamento jurídico vigente, a exemplo da
eutanásia; como a impossibilidade de previsão de tratamentos ultrapassados ou contraindicados à doença sofrida pelo enfermo,
essa última justifica-se pelo seguinte ponto: a obrigatoriedade de
assegurar o que é melhor para o paciente. Frente à possibilidade
de decorrer um longo tempo antes de advir a situação de incapacidade instruída na diretiva antecipada, essa medida é legitimada
pelo avanço constante da Medicina, onde casos antes caracterizados como obstinação terapêutica atualmente podem ter novos e
eficazes tratamentos.A última colocação posta como limitação às
diretivas antecipadas de vontade, a objeção de consciência do médico, merece ser discutida em tópico específico por conta de sua
relevância jurídica.
3.3.1.1 O papel dos profissionais da saúde
Quando se falou a respeito do consentimento livre e esclarecido e o dever do médico de prestar informações completas e de
fácil compreensão para o paciente sobre a sua condição se saúde,
ficou evidente a grandiosidade da responsabilidade do médico.
Ele não somente é obrigado a levar em consideração a opinião do
enfermo diante do próprio estado, fruto do princípio da autonomia, como precisa avaliar quais os casos onde esse princípio pode
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ser flexibilizado, perante o melhor interesse para o paciente, e
informar devidamente a respeito dos diagnósticos seja ao doente seja aos seus responsáveis, dependendo da situação.Há casos
em que o diagnóstico fatal poderia levar o paciente a piora de sua
condição, prejudicando gravemente a evolução do procedimento
terapêutico utilizado, assim, cabe ao médico avaliar o estado psicológico do enfermo e tentar evitar essa reação desmesurada.
O dever de informar não deve ser entendido como o
de fazer saber a verdade a qualquer custo. O princípio de não causar maior dano físico ou psíquico ao
paciente requer que se viole o da autonomia, fazendo com que a informação lhe seja sonegada ou, até
mesmo, que se lhe oculte a verdade. As vezes, uma
mentira piedosa pode trazer benefício ao doente,
mantendo-o vivo ou dando-lhe força para recuperar
a saúde. (KONRAD, apud DINIZ, 2014, p. 524)
Da mesma forma o Código de Ética Médica prevê a exceção
ao dever de informar do médico, entretanto, se faz necessário destacar o fato de essa restrição só valer para o paciente, seus responsáveis devem ser informados detalhadamente sobre a patologia.
Art. 34 - Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa
lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.
O princípio da autonomia da vontade em si suscita, como
Maria Helena Diniz (2014, p. 529) afirma, um dever de respeito dos
demais indivíduos aos preceitos dirimidos pelo titular do direito.
Isso constitui o conceito de autodeterminação do sujeito, baseado
não apenas na autonomia, mas no princípio da dignidade da pessoa
humana.Todavia, até onde o respeito à autodeterminação no caso
do paciente pode levar o médico? Todas as diretrizes propostas pelo
enfermo precisam ser acatadas pelo médico, mesmo que prejudi-
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ciais ou simplesmente não proporcionando nenhum benefício?
O direito do paciente em expor seus desejos e opiniões é assegurado, porém o médico também possui liberdade para decidir
sobre os melhores tratamentos a serem seguidos decorrente do seu
conhecimento técnico. Obviamente a vontade do paciente é importante, e deve ser levada em conta, principalmente se há um documento prévio definido sobre questões dessa seara, mas o médico
pode decidir qual o melhor momento para o desejo do enfermo
prevalecer, fundando-se em circunstâncias ético-jurídicas.Seguindo
a mesma prerrogativa, cabe também aos profissionais da saúde objetarem, em respeito à sua própria autonomia, a aplicação de certas
instruções preferidas pelo paciente.
Pode justificar, então, sua recusa à aplicação dessas prescrições por meio tanto do Código de Ética Médica, instrumento balizador da chamada objeção de consciência, como pela recente Resolução CFM nº 1.995/2012 que prevê a possibilidade de o médico
deixar de seguir as diretivas antecipadas de vontade do enfermo no
caso dessas estarem em desacordo com preceitos fundamentados
no Código de Ética Médica.
É direito do médico, pelo cap. II, n. IX, do Código de
Ética Médica, recusar a realização de atos médicos
que, embora permitidos por lei ou por Resolução
do CFM, sejam contrários aos ditames de sua consciência.Logo, pelo bom senso, deve o profissional
de saúde concluir, sempre que o tratamento for
indispensável, estando em jogo o interesse de seu
paciente, pela prática de todos os atos terapêuticos
que sua ciência e consciência impuserem. Trata-se
do direito à objeção de consciência, que, baseado
no princípio da autonomia da pessoa, implica, por
motivo de foro íntimo, a isenção de um dever geral e
a recusa a uma ordem ou comportamento imposto.
(DINIZ, 2014, p. 530)
Assumi-se a objeção de consciência do médico como meio
de exercer sua autonomia privada, no entanto é aconselhável
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apontar a necessidade de justificação da recusa dada, sempre fundamentada em razões éticas e de foro íntimo, não podendo essa
rejeição permanecer imotivada em qualquer hipótese.
3.3.2 Os efeitos das Diretivas Antecipadas de Vontade
Como já ficou bastante claro no decorrer do texto, as diretivas antecipadas de vontade tem como objetivo assegurar ao
indivíduo, em situação de incapacidade temporária ou permanente, o atendimento ou, ao menos, a observância dos seus desejos,
evidenciando-o como sujeito de direitos. Esse instituto permite ao
paciente, especificamente, optar ou não, através de documento
escrito, pela obstinação terapêutica, a suspensão de tratamentos
que favorecem a quantidade de vida em detrimento da qualidade
ou, ainda, pela simples decisão sobre quais tratamentos, de modo
geral, aceita receber ou recusa.
Entrementes, no que consta a aplicação das diretivas antecipadas, especialmente na modalidade de declaração prévia de
vontade para o fim da vida, é importante comprovar, como sabiamente Adriano Godinho (2012, p. 972) profere, “que o paciente não
é mais capaz de tomar decisões sobre os cuidados com sua saúde
e que não há, segundo as circunstâncias e após cuidadosas análises, perspectiva de que o paciente recobre o discernimento para
tomá-las”, só assim poderão ter eficácia, quando o enfermo for
percebido em estado de terminalidade.
Os efeitos das DAV’s envolvem não somente o início do processo de morte, mas também são baseados na compatibilidade
das instruções nela contidas com os tratamentos médicos vigentes, ou seja, uma declaração constituída há muito tempo provavelmente não estará de acordo com os cuidados atuais, podendo
estar ultrapassada e, em favor do melhor interesse do paciente,
existindo método terapêutico mais adequado que propicie a ele
melhores condições, a diretiva poderá ser deixada de lado.
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Tal discussão abre portas há determinação de um prazo de
validade para as diretivas antecipadas de vontade, ao mesmo tempo em que surge a pergunta sobre o fato de o autor não tê-la revogado, após todo esse tempo, se isso sugere sua imutabilidade de
opinião, sendo que a “vontade manifestada na diretiva antecipada
corresponde à vontade atual” (GODINHO, 2012, p. 973).Outra informação necessária ao estudo da eficácia das DAV’s trata da sua produção de efeitos, em regra, erga omnes, de modo a vincular não
apenas o médico, ressalvando o caso de uma eventual objeção de
consciência, mas também os familiares do paciente e, mais determinantemente, o procurador de saúde, caso constituído.
O caráter vinculante das diretivas parece ser necessário para evitar uma perigosa ‘jurisdicionalização’
do morrer, que inevitavelmente ocorreria quando o
médico se recusasse a executar as diretivas antecipadas, decisão que precluiria uma impugnação da
sua decisão pelo fiduciário ou pelos familiares. (RODOTÀ apud DADALTO, 2013, p. 92)
Um modo de dar maior segurança às diretivas antecipadas,
segundo sugerem Adriano Godinho (2012, p. 974) e Luciana Dadalto (2013, p. 05), é a criação de um cadastro nacional onde todas as
diretivas deverão ser registradas. Essa medida foi implantada em
alguns dos países que já legislaram sobre o tema, como Espanha e
Portugal, e visa dar não apenas segurança jurídica ao instrumento,
mas possibilitar uma maior facilidade de acesso à elas pelos interessados - profissionais da saúde em geral, além favorecer a disseminação do instrumento de declaração da vontade no Brasil, incentivar a
formulação de uma legislação específica sobre a matéria.
3.4 PRINCÍPIOS RELACIONADOS ÀS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE
VONTADE
As diretivas antecipadas de vontade possuem como pre-
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missas básicas o respeito aos princípios da autonomia da vontade
e da dignidade da pessoa humana haja vista serem estes considerados como supedâneos primordiais do indivíduo e do ordenamento jurídico como um todo.
Durante todo o presente projeto, reiteradamente, esses dispositivos foram citados e interpretados de forma a proporcionarem às DAV’s sua justificativa e suporte. Contudo, apesar de poder
inferir de todo o texto a preciosidade dos mesmos, bem como o
sentido que se quis atrelar a eles, importante se faz, mesmo que
brevemente por não serem o foco do presente estudo, conceituá-los e contextualizá-los, ato a ser realizado nos seguintes tópicos.
3.4.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
O princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce de
todo o ordenamento jurídico brasileiro, está disposto no art. 1º, III,
da Carta Magna de 1988 como fundamento do Estado Democrático
de Direito. Pode ser entendido, nas palavras de UadiLammêgoBulos (2011, p. 502), como o valor constitucional supremo, o “conjunto
de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem”.
Neste diapasão, Maria Helena Diniz (2014, p. 41) o concretiza, relacionando-o diretamente à bioética e ao biodireito, como “valor
que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico”.Diante da bioética e todo o seu aparato hightech, o princípio
da dignidade da pessoa humana é indispensável, pois é elemento
limitador dessa revolução tecnológica, no sentido de conferir a importância devida aos seres humanos, impondo o respeito a eles
em todas as suas fases e, consequentemente, tentando evitar seu
desvirtuamento e transfiguração em objeto.
Relacionando-o às diretivas antecipadas de vontade, tem-se o fato de garantir o indivíduo em estado de fim da vida como
sujeito de direitos, não é por se encontrar na fase final de sua
jornada, ou incapaz de manifestar sua vontade, que ele deve ser
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abandonado ou definido como peso morto. É alguém que deve
ser respeitado e cuidado até que seu momento final chegue, assegurando-se sua dignidade.Neste contexto, partindo, então, para
a concepção de morte como algo inevitável e que possui implicações diretas no domínio legal, importante se faz a discussão sobre
o direito de morrer dignamente e sua relação com o direito à vida
digna. Não apenas considerando o direito à morte digna como um
fim em si mesmo, mas também como direito corolário do princípio
da dignidade da pessoa humana. Nas palavras dos grandes mestres Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 340):
[...] o direito à morte digna é o reverso da moeda
do direito à vida digna. [...] Até mesmo porque uma
morte digna há de ser a consequência natural de
toda e qualquer vida digna. Trata-se, pois, tão somente, de permitir que a natureza siga o seu rumo,
fazendo o seu inexorável papel, sem que isso atinja
a dignidade da pessoa, em determinadas situações.
Destaca-se a necessidade de considerar e aceitar o direito à
morte digna como derivado do próprio princípio da dignidade da
pessoa humana. E este reconhecimento se dá não ligando-o a conjecturas pessoais de ordem ética, religiosa, moral, etc, mas como
fruto de uma reflexão jurídica sobre a morte, “o reconhecimento
de que a dignidade da pessoa humana também se projeta na morte” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 341), fator que explica a relação
íntima das diretivas antecipadas de vontade com esse valor fundamental do direito, pois, há uma preocupação crescente quanto à
salvaguardar a qualidade de vida, mesmo no fim.
3.4.2 Princípio da Autonomia da Vontade do Paciente
Autonomia pode ser conceituada de modo geral como “o
poder de estabelecer por si, e não por imposição externa, as regras
da própria conduta” (RODRIGUES; RÜGER, 2007, p. 04) e tem como
fundamento a liberdade do indivíduo, no sentido de poder mani-
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festar suas vontades e opiniões de forma livre e desimpedida.Em
suma, Luciana Dadalto (2013, p. 29), citando MiracyGustin, conceitua a autonomia privada como
[...] sendo aquele (conceito) que legitima a ação do
indivíduo, conformada à ordem pública e permeada
pela dignidade da pessoa humana, ou, em outras
palavras, a autonomia privada como sendo aquela
que garante que os indivíduos persigam seus interesses individuais, sem olvidar da intersubjetividade, da interrelação entre autonomia pública e privada.
Partindo dessa concepção a relação entre a autonomia e o
paciente, em especial o em situação de terminalidade tantas vezes
citado no presente trabalho, vê-se que mesmo nesse estado ele
ainda é sujeito de direitos, e como bem visto, deve ter sua autonomia protegida e garantida mesmo que não se encontre capaz de
manifesta-la diretamente.
4 DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO
ORDENAMENTO BRASILEIRO
A inexistência de lei brasileira regulamentando as diretivas
antecipadas de vontade não obsta a validade desse instituto, sendo suficiente a interpretação dada aos princípios constitucionais
da Dignidade da Pessoa Humana e da Autonomia da Vontade para
se entender viável a declaração prévia de vontade para o fim da
vida (DADALTO, 2013, p.146).Este documento proporciona ao seu
autor a manifestação de sua vontade, de modo a assegurar que
em eventual incapacidade futura ele não seja obrigado a ser submetido a tratamentos e cuidados ineficazes, cujo único objetivo é
a manutenção da vida sem real perspectiva de melhora, ou quaisquer benefícios à saúde do indivíduo.
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Embora a lei brasileira não trate particularmente das DAV’s,
é possível utilizar-se de alguns dispositivos específicos, além dos
preceitos constitucionais citados acima, para fundamentá-las. A
exemplo disso, no artigo 15 do Código Civil, podemos destacar o
fato de ser necessária a consulta ao paciente em caso de atos médicos que encerrem grave risco a vida. In verbis: “ninguém pode
ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento
médico ou a intervenção cirúrgica”, significando dizer que é meio
de garantir a autonomia privada do sujeito.
Sendo o paciente, afinal, o titular dos bens da personalidade cuja preservação se coloca em pauta, será
ele o melhor juiz para decidir sobre os cuidados com
sua saúde, uma vez que esteja de posse das informações técnicas acerca das alternativas de tratamento
e das possíveis consequências que a aceitação ou
rejeição podem acarretar. (GODINHO, 2012, p. 955)
Outras legislações infraconstitucionais também tratam,
incipientemente, da possibilidade de recusa de tratamentos médicos pelos enfermos no caso desses constituírem procedimentos
inúteis e causadores de mais sofrimento. Entretanto, essas tipificações esparsas ainda não são o suficiente para configurar de pleno
a validade das diretivas antecipadas de vontade, visto que, embora sejam um avanço nessa direção, não são capazes de abarcar de
forma apropriada todas as premissas deste instituto o que só se
daria com a promulgação de uma lei de caráter nacional.Em último caso resta avaliar o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito das DAV’s, especialmente diante das resoluções nº 1.805/2006 e 1.995/2012, assunto para o próximo tópico.
4.1 RESOLUÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA
As Diretivas Antecipadas de Vontade tem nas Resoluções do
CFM seu principal ponto de apoio na busca pela validade jurídi-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ca, haja vista serem essas disposições o meio pelo qual são mais
difundidas. E, conquanto existam inúmeras declarações do Conselho Federal de Medicina envolvendo as mais variadas nuances
das DAV’s, duas delas se destacam por sua importância frente a
conceitos e determinações fundamentais à constituição e consideração desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro. São
elas as já citadas Resoluções CFM nº 1.805/2006, que dispõe sobre
a permissibilidade e/ou admissibilidade da ortotanásia no Brasil, e
a 1.995/2012, primeira regulação específica existente no país sobre
as próprias Diretivas Antecipadas de Vontade.
4.1.1 Resolução nº 1805/2006 - A Ortotanásia
Essa determinação do Conselho Federal de Medicina, disposta na Resolução CFM nº 1805/2006, tratou de dispor sobre
a possibilidade de os médicos, diante de enfermidades graves
onde os doentes já se encontram em fase de fim da vida, limitar
ou suspender os cuidados terapêuticos que não são mais eficazes
e apenas prolongam indefinidamente o sofrimento do paciente
e de seus familiares. De modo claro, regulamenta-se a prática da
ortotanásia como instrumento útil à garantia da autonomia e da
dignidade do paciente.
Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender
procedimentos e tratamentos que prolonguem a
vida do doente em fase terminal, de enfermidade
grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa
ou de seu representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao
doente ou a seu representante legal as modalidades
terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião
médica.
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Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual,
inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006)
Todavia, mal essa Resolução foi editada o Ministério Público Federal do Distrito Federal ajuizou uma ação civil pública questionando a legitimidade do CFM para regulamentar como conduta
ética o ato, no caso a prática da ortotanásia, tido por crime perante o Código Penal (DADALTO, 2013, 134).Em um primeiro momento,
ao apreciar a demanda, o magistrado atendeu ao apregoado pelo
Ministério Público Federal interpretando a prática da ortotanásia
como conduta típica disposta no art. 121 do Código Penal Brasileiro, fato que apenas estaria “desconstituído” diante do anteprojeto
de reforma da parte especial desse código, ainda não aprovado,
que situa a eutanásia como homicídio privilegiado e prevê a descriminalização da ortotanásia.
Contudo, por esse instituto ser entendido pelos ditames
médicos como elemento garantidor da autonomia privada e da
dignidade do paciente, não há que se falar em conduta criminosa,
até porque, do contrário, a sustentação da vida do paciente indefinidamente poderia caracterizar o crime de tortura, pois infringe ao
indivíduo um sofrimento prolongado e desnecessário. Relembrando o conceito de ortotanásia, ela consiste na prática cujo resultado
morte é alcançado por conta da suspensão dos cuidados e tratamentos usados na manutenção da vida, não tem como prerrogativa antecipar o momento da morte, mas sim, proporcionar sua
ocorrência de forma natural. Nesse parâmetro, dispõe a exposição
de motivos da Resolução CFM nº 1.805/06 o seguinte:
[...] torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que certas decisões terapêuticas
poderão apenas prolongar o sofrimento do ser hu-
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mano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares, que
possuem diferentes interpretações e percepções
morais de uma mesma situação, venham a debater
sobre a terminalidade humana e sobre o processo
do morrer.
Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença
em fase terminal, para o qual a Organização Mundial
da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada
para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto
de seus familiares frente a problemas associados a
doenças que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do
reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros
sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou
espiritual.
Posteriormente, com o advento do novo Código de Ética
Médica que disciplinou a necessidade de evitar a realização de
procedimentos clínicos exacerbados em casos irreversíveis e/ou
terminais, o MPF/DF mudou sua postura e prestou alegações finais
favoráveis ao prescrito na Resolução do CFM. O juiz, então, julgou
improcedentes os pedidos, reconhecendo a legitimidade da dita
Resolução.
4.1.2 Resolução 1995/2012 - As Diretivas Antecipadas de Vontade
A Resolução CFM nº 1.995/2012 é a primeira regulamentação existente no Brasil a tratar especificamente das diretivas antecipadas de vontade. Embora não tenha força de lei, devido ao CFM
ser um órgão de classe sem competência para legislar, foi um importante passo na direção da legalização desse instrumento.Este
dispositivo está, conforme foi cientificado pelo próprio Conselho
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Federal de Medicina, intimamente ligado à prática da ortotanásia,
pois possui como premissa fundamental o respeito à autonomia
da vontade do paciente, bem como tem por objetivo garantir uma
melhor qualidade de vida aos enfermos em estado de fim de vida
ou incapazes de manifestar sua vontade de forma direta e imediata.
Luciana Dadalto (2013, p. 140-141) ao discutir essa resolução, salienta a necessidade de registro das DAV’s como meio de garantir a segurança jurídica, segundo ela, essa formalização é justificada para asseverar o comprimento dos desejos do declarante.A
existência de um registro nacional das Diretivas Antecipadas de
Vontade, não apenas perquire a certificação do cumprimento da
vontade do paciente, mas é elemento facilitador do acesso daqueles a quem seu conhecimento se faz necessário, os médicos e demais profissionais de saúde.
Nessa Resolução estabelece-se a prerrogativa do médico
em registrar as DAV’s no prontuário, entretanto, há quase uma
restrição ao papel deste profissional,pois as diretivas antecipadas
consideradas nesse dispositivo aparentemente o entendem como
mero cumpridor dos desejos do enfermo, porém omais do que isso
o médico possui a função de informar ao paciente e a seus familiares de modo suficientemente claro sobre todos os aspectos da
condição de saúde do enfermo, da mesma forma os tratamentos
cabíveis, e aqueles que podem ou não ser recusados, bem como
possuem a prerrogativa de aceitar ou não as considerações do paciente a depender do caso.
Cabe o profissional, como técnico, esclarecer o declarante quanto aos tratamentos e procedimentos
que podem ou não ser recusados. Sendo assim, entende-se ser imprescindível a orientação do médica
da família do declarante para a realização das diretivas antecipadas, e é exatamente isso que garante
que o paciente vai manifestar, exatamente, sua vontade no documento, afinal, paciente autônomo é
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
aquele bem informado/esclarecido.
(DADALTO, 2013, p. 141)
A resolução do CFM nº 1995/2012, embora aborde apenas
superficialmente as Diretivas Antecipadas de Vontade, trouxe alguns dos pontos mais significativos para o estudo da matéria, e
é, sem a menor dúvida, um documento de suma importância, um
marco, para o início de pesquisas mais aprofundadas sobre a defesa dos direitos dos pacientes em fim de vida.
4.2 A VALIDADE DAS DAV’s NO ORDENAMENTO BRASILEIRO
Boa parte dos questionamentos referentes à validade das
diretivas antecipadas de vontade diante do ordenamento jurídico brasileiro já foram abordadas e devidamente explicadas no
decorrer do presente trabalho monográfico. Posiciona-se sobre a
admissibilidade desses instrumentos, mesmo inexistindo lei que
os regulamente, por conta de sua natureza jurídica contratual, que
independe de forma específica para tornarem as diretivas antecipadas de vontadeválidas e eficazes, fato resultante do princípio da
atipicidade dos atos jurídicos. A perspectiva considerada a partir
dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e
da autonomia da vontade do paciente, por si só, já poderia fundamentar as diretivas antecipadas e justificar sua validade diante do
ordenamento nacional.
A existência de limites à constituição das mesmas também
baliza essa validade, conquanto proíbe a existência, nas diretivas,
de disposições incompatíveis com o ordenamento jurídico e a impossibilidade de determinação sobre tratamentos ultrapassados
ou contraindicados para o paciente. Todos esses aspectos amparam-se na prerrogativa de busca de uma melhor qualidade de vida
para o enfermo, respeitando o princípio da autonomia da vontade
e garantindo a dignidade da pessoa humana.
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Sumário
61
Dito isso, é possível fazer algumas conjecturas sobre a forma como as diretivas antecipadas de vontade, seja na sua modalidade de mandato duradouro ou como declaração prévia de vontade para o fim da vida, podem ser constituídas no Brasil.Quanto
à sua forma temos duas propostas, a primeira fundada no direito
comparado, percebe as DAV’s nas modalidades pública ou privada, respectivamente caracterizando-as como um documento que
deve ser registrado em cartório constituindo uma escritura pública
e sem a necessidade de testemunhas, ou assinado por testemunhas (DADALTO, 2013, p. 150-152). A segunda proposta, apresentada por Adriano Godinho (2012, p. 962-963), é a utilização, por
analogia, das regras civis serventes aos testamentos, a exemplo
do cumprimento dos
[...] requisitos de validade da mais “informal” das
modalidades ordinárias de testamento - o particular
-, que exige que o texto seja escrito de próprio punho
ou por processo mecânico, sem rasuras, na presença
de pelo menos três testemunhas, que também devem subscrevê-lo, conforme determina o art. 1876
do Código Civil.
Este autor também reconhece que o ideal é o registro do documento perante um tabelião, de modo a assegurar
a fé pública.Quanto a alguns outros requisitos formais, como
o prazo de validade e eficácia, são entendidos conforme é
verificado o avanço da Medicina, permitindo que as instruções postas em diretivas formuladas há certo tempo fiquem
superadas,ocasionando a invalidade da DAV ou permitindo ao
profissional da saúde desconsiderá-las, diante da evolução dos
meios de cura e/ou tratamento existentes no momento da ocorrência da moléstia e incapacitação do enfermo.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
4.3 PROPOSTAS LEGISLATIVAS
Embora não haja no Direito Pátrio legislação específica sobre as diretivas antecipadas de vontade, isso não impede a validade
e eficácia desse instrumento, pois, sendo os atos jurídicos atípicos,
não precisam de forma particular para serem válidos. Contudo, a
regulamentação dessas declarações prévias é algo premente. Para
que elas possam ser efetivadas e, consequentemente, as vontades
ali estabelecidas possam ser cumpridas, imprescindível se faz a
constituição de um ato normativo que trate dos pormenores desse
instituto. Melhor explicando, para dar maior segurança jurídica às
DAV’s, a definição de alguns aspectos formais e específicos desse
documento são necessários.
Assim, essa prerrogativa estabeleceque para o real comprometimento das Diretivas Antecipadas de Vontade diante do ordenamento nacional uma legislação seja formulada.Luciana Dadalto
(2013, p. 157-160), nesse compasso, apresenta a seguinte proposta
legislativa fundada em seus estudos com o direito comparado, em
especial os ordenamentos vigentes nos EUA, Espanha, Portugal e
Argentina:
Art. 1º Fica instituído no Brasil o direito à feitura de
Diretivas Antecipadas de Vontade nos termos desta
lei.
Art. 2º É assegurado a toda pessoa capaz, o direito a
redigir diretivas antecipadas, separadas ou conjuntamente, nas quais se inserem a declaração prévia
de vontade para o fim da vida e o mandato duradouro.
§1º Declaração prévia de vontade para o fim da vida
é um documento escrito por uma pessoa capaz, no
pleno exercício de suas capacidades, com a finalidade de manifestar previamente sua vontade, acerca
dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser
submetido caso se torne um paciente em terminalidade de vida, esteja em EVP ou com uma doença
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Sumário
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crônica fora de possibilidades terapêuticas e esteja
impossibilitado de manifestá-la.
§ 2º Mandato duradouro é a nomeação de um procurador de cuidados de saúde, cujas atribuições consistem em expressar a vontade do paciente, acerca
dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser
submetido, quando estiver em estado de terminalidade.
§ 3º A capacidade será aferida, via de regra, de acordo com a lei civil, entretanto, o Poder Judiciário
poderá ser provocado pelo interessado em redigir
diretivas antecipadas, a se manifestar acerca do discernimento de indivíduos tidos, pela lei civil, como
incapazes, a fim de garantir a esses o direito de redigi-las.
§ 4º O estado de terminalidade é o quadro clínico
fora de possibilidades terapêuticas e cuja morte é
iminente.
§ 4º O EVP é o quadro clínico de completa ausência
da consciência de si e do ambiente circundante,
com ciclos de sono-vigília e preservação completa
ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco
cerebral.
§ 5º A doença crônica fora de possibilidades terapêuticas é aquela cujo quadro clinico importa em
diminuição das capacidades funcionais do paciente
e não possui possibilidades terapêuticas.
Art. 3º É facultado ao outorgante o direito de redigir uma declaração prévia de vontade para o fim
da vida contendo cláusula de nomeação de procurador, hipótese em que o mandato duradouro será
incorporado à declaração prévia de vontade para o
fim da vida.
Parágrafo único: O outorgante poderá nomear como
seu procurador, qualquer pessoa, com ou sem vínculo de parentesco, desde que o procurador seja civilmente capaz e aceite o múnus.
Art. 4º As diretivas antecipadas serão feitas no Cartório de Notas, por escritura pública.
Art. 5º O tabelião responsável pelo Cartório de Notas
em que as Diretivas Antecipadas de Vontade forem
lavradas deverá, em um prazo de quarenta e oito ho-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ras, contadas do registro, enviá-las ao Registro Nacional de Declaração prévia de vontade para o fim
da vida, criado para tal fim.
Art. 6º Compete ao Ministério da Saúde criar o Registro Nacional de Declaração prévia de vontade para
fim da vida, em prazo máximo de um ano, a contar
da publicação desta lei.
§ 1º O Registro Nacional de Declaração prévia de
vontade para o fim da vida deverá ser informatizado
e deve dispor de uma página na internet contendo
informações detalhadas sobre o documento, modelos de documentos e registro de todos os documentos.
§ 2º O outorgante poderá, a qualquer momento,
consultar sua declaração prévia de vontade para o
fim da vida, mediante senha. Contudo, qualquer alteração no documento só poderá ser realizada em
cartório de notas.
§ 3º Os médicos que estiverem tratando do paciente
terminal terão acesso ao Registro, mediante senha.
§ 4º Os hospitais, nos quais o paciente terminal estiver internado, terão acesso ao Registro mediante
senha.
Art. 7º As diretivas antecipadas devem ser redigidas
de forma clara, dispondo especificamente sobre os
tratamentos e não tratamentos a que deseja ser
submetido, a fim de não causar interprestações díspares. Para tanto, todos os hospitais públicos devem
criar um comitê especializado no assessoramento
de pessoas que desejam redigir suas declarações
prévias.
Art. 8º Para efeitos da declaração prévia de vontade
para o fim da vida serão válidas apenas disposições
de recusa de tratamentos fúteis, entendidos como
tratamentos que visam apenas prolongar a vida do
paciente, sem apresentar qualquer benefício quanto à qualidade de vida.
Art. 9º É permitido ao paciente dispor sobre suspensão de hidratação e alimentação.
Art. 10º Não serão eficazes disposições que versem
sobre suspensão ou não aplicação de medicamentos que aliviam a dor.
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Sumário
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Art. 11º As diretivas antecipadas podem ser revogadas e/ou modificadas a qualquer tempo pelo outorgante.
Art. 12º As diretivas antecipadas obrigam todos os
profissionais de saúde, os hospitais e os parentes do
outorgante.
§ 1º Os profissionais de saúde têm direito à objeção
de consciência. Neste caso, deverão encaminhar o
paciente para outro profissional.
§ 2º Caso não exista outro profissional, não será possível que o médico se valha da objeção de consciência.
Além dessa proposta supratranscrita, existem dois Projetos
de Lei do Senado Federal em tramite que contém como cerne os
direitos dos pacientes em serviços de saúde (PL nº 79/2003 - anexo B) e os direitos da pessoa em fase terminal de doença (PL nº
524/2009 - anexo C). Embora não tratem especificamente das diretivas antecipadas de vontade, ambos os projetos corroboram com
os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da
autonomia da vontade do paciente, pois suas propostas visam a
garantia dos direitos dos pacientes, sejam eles terminais ou não.
Do mesmo modo, o fato de existirem projetos de lei sobre tema
conexo às diretivas, ainda que não façam referência direta, destaca-se pois parte do que está disposto neles pode ser aproveitado,
através da analogia, na regulamentação desse instrumento.
4.4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Apesar de as Diretivas Antecipadas de Vontade abarcarem
inúmeras temáticas controversas no âmbito jurídico, a exemplo de
questionamentos sobre o direito de morrer dignamente, a ortotanásia, a eutanásia, o paciente terminal ou em estado vegetativo,
não existe ainda jurisprudência consolidada a seu respeito. Mais
factível, no entanto, é afirmar a quase inexistência de qualquer
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tipo de decisão jurisprudencial a esse respeito.O fato de não ser
um instituto regulamentado muito provavelmente favorece essa
carência e, além do mais, só recentemente, com a edição da Resolução nº 1.995/2012 do CFM, é que este tema passou a ter mais
destaque.
Partindo dessa última consideração, quando da edição da
Resolução nº 1995/2012 do CFM, uma primeira demanda foi constituída em razão da “ilegitimidade” do Conselho Federal de Medicina para discutir e dispor sobre as diretivas antecipadas de vontade. A Ação Civil Pública n. 0001039-86.2013.4.01.3500 foi proposta
pelo Procurador da República do Estado de Goiás, Ailton Benedito
de Souza, e requeria a inconstitucionalidade da Resolução supramencionada. Na ação proposta foram alegados diversos pontos,
entre eles destacam-se:
a) o inquérito civil público nº 1.18.000.001881/201238 constatou que a Resolução nº 1995/2012 do CFM,
ao regulamentar a atuação dos profissionais frente a
pacientes terminais, incidiu em inconstitucionalidade e ilegalidade; b)a pretexto de preencher o vazio
normativo deixado pela Resolução nº 1.805/2006,
que autorizou os pacientes a obtarem pela ortotanásia, a Resolução nº 1995/2012, ao invés de facultar
ao paciente a designação de um representante legal, instituiu as “diretivas antecipadas de vontade”,
a serem externadas pelos próprios pacientes e que
deverão prevalecer sobre quaisquer pareceres não
médicos e desejos dos familiares; [...] f) não foi previsto o direito de a família influenciar na formação
da vontade e fiscalizar o seu cumprimento, o que
vai de encontro ao art. 226, caput, da Constituição
Federal.4
Assim, quanto à inconstitucionalidade e a ilegalidade referidas, a lei nº 3.268/57 outorgou ao CFM competência para tratar
4
Disponível em: http://testamentovital.com.br/sistema/arquivos_legislacao/
senten%C3%A7a%20ACP%20testamento%20vital.pdf, acesso em 13 jun. 2014.
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Sumário
67
do exercício técnico e moral do paciente, de modo que, no caso, a
situação permeada trata justamente dessas recomendações disciplinares, e não de direito penal ou civil. E, de modo relativo à capacidade e autonomia, o autor da ação mostrou-se incipiente no conhecimento das características das diretrizes antecipadas, vistas
como referencial garantidor da autonomia privada do paciente. Ao
questionar tal ponto o demandante vai de encontro com o direito
à autodeterminação do indivíduo.
Invariavelmente, essa ação, cuja sentença foi prolatada no
último dia 21 de fevereiro de 2014, restou como marco para o Direito brasileiro por ter sido a primeira manifestação efetiva do judiciário a respeito das diretivas antecipadas de vontade.Todavia, essa
demanda também mostrou o desconhecimento, por parte dos
profissionais do direito, sobre esse instrumento. Apesar de as Diretivas Antecipadas de Vontade não serem um tema relativamente
novo, visto que muitos países já contam com suas próprias legislações específicas e possuem um campo doutrinário já bastante
desenvolvido, as pesquisas aqui no Brasil são poucas e o entendimento do instituto é bastante incipiente como ficou percebido.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
As Diretivas Antecipadas de Vontade constituem uma temática onde ainda se encontra, pelo menos no que diz respeito ao
ordenamento brasileiro, muitos campos inexplorados. Há pouco
debate, e o que existe concentra-se na análise do direito comparado, de modo que o conhecimento sobre o tema em âmbito nacional ainda é muito restrito e funda-se, em sua grande maioria,
em suposições sobre o que poderia se adequar melhor ao nosso
ordenamento. No que se refere a existência de uma quadro doutrinário nacional, escassos ainda são os que se dedicam ao estudo
das DAV’s.
A despeito dessa realidade, fica evidente a importância das
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
69
Diretivas antecipadas conquanto instrumento garantidor da autonomia privada do paciente e meio pelo qual sua dignidade é reconhecida - relembrando a concepção de Kant a respeito dessa última, a pessoa humana é considerada um fim em si mesmo e, como
tal, não pode ser tratada como objeto, ou seja, independente do
quadro clínico o enfermo ainda é sujeito de direitos, merecedor de
cuidados.
A partir da compreensão dos princípios da autonomia e
dignidade, previamente citados, aliada à análise comparada de
institutos já presentes no ordenamento jurídico, é definida a validade das Diretivas Antecipadas de Vontade, inclusive, a inexistência de legislação não obsta essa característica, pois a tipicidade desse documento não é requisito para a composição dos atos
jurídicos que, em geral, possuem forma livre.Todavia, há algumas
ressalvas no concernente aos ajustes a serem feitos para se adequar essas diretivas à realidade brasileira. As questões abordando
especificidades formais e materiais das DAV’s devem ser expressas
claramente, coisa que só a constituição de uma lei pode resolver.
Por fim, resta reafirmar a importância do estudo das DAV’s.
Este é um tema sensível, que aborda premissas relativas há existência de um direito à morrer dignamente, aliado a consideração
do indivíduo como sujeito de direitos, dotado de autonomia, mesmo estando em estado de fim de vida - caso em que essa será expressa pelas diretivas antecipadas. Deve ser analisado do ponto
de vista a garantir a dignidade da pessoa em estado terminal e
entendê-lo como um ser ainda vivente e que deve ser respeitado.
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A ABUSIVIDADE NOS CONTRATOS
DE SAÚDE SUPLEMENTAR
Bruna Cristina Silveira CALDAS5
Adriano Marteleto GODINHO6
RESUMO: O presente trabalho monográfico tem por objetivo analisar os principais abusos praticados pelas empresas privadas de
planos de saúde demandados ao judiciário. Para isso faz-se necessário enquadrar à saúde enquanto um direito fundamental,
estabelecer que a relação contratual entre empresas de saúde
suplementar e usuários é de natureza jurídica consumerista, para
finalmente tratar dos abusos em espécie. Busca-se descrever e
analisar os principais casos de abusos relacionados à limitação de
tempo de internação, propaganda enganosa, negativa do uso técnicas mais modernas e eficazes e a negativa de atendimento em
casos emergenciais durante a carência. Para atingir esses propósitos foi realizado um levantamento bibliográfico para compreensão preliminar, seguido de um levantamento jurisprudencial e de
um estudo minucioso sobre os temas em questão, para finalmente
analisar as decisões com base no que estabelece o método dedutivo. Por fim, foi possível verificar que os ministros e desembargadores são sensíveis à vulnerabilidade dos usuários de planos de
saúde sendo suas decisões favoráveis na maioria dos casos onde
se detecta o abuso contratual.
5
Autora, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba.
6
Orientador, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais,
doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e professor da Universidade
Federal da Paraíba.
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Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Palavras-chave: Saúde Suplementar. Planos de saúde. Contratos.
Abuso contratual.
1 INTRODUÇÃO
O crescimento econômico e o desenvolvimento social dos
últimos anos fez com que o país passasse por diversas transformações em todos os setores. Com a saúde não foi diferente. A Constituição da República de 1988 deu novo significado a ela, considerando-a um direito de primeira relevância.
Entender a saúde enquanto um direito fundamental é uma
das principais premissas para configurar os abusos praticados pelas empresas privadas de assistência à saúde. Tais abusos tem se
tornado cada vez mais frequentes na medida em que o setor de
saúde suplementar cresce no Brasil, tal crescimento aliado proporcionalmente à ineficiência dos serviços ofertados no setor público.
É nesse contexto que o presente trabalho tem como objetivo uma maior reflexão sobre o direito à saúde enquanto um
direito fundamental, o enquadramento da natureza jurídica dos
contratos de planos de saúde como uma relação consumerista e o
posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ e
Tribunais de Justiça Estaduais, frente às principais condutas abusivas por parte das empresas privadas de planos de saúde.
A análise desses abusos é de grande relevância para a população poder se prevenir das possíveis violações a seus direitos
e para o poder público tomar medidas cabíveis a fim de coibir tais
práticas. Por meio de uma análise dogmática jurídica buscou-se
encontrar soluções nos princípios fundamentais do ordenamento
jurídico e nas decisões que vem sendo aplicadas pelos tribunais.
A presente pesquisa foi realizada com base no método dedutivo, partindo da análise da saúde como um direito fundamental, passando pelo enquadramento da relação entre planos de
saúde e usuários como sendo de consumo, para finalmente ana-
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Sumário
75
lisar criticamente as posições adotadas pelos tribunais frente aos
casos judiciais de tais práticas.
Para isso, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais, em livros, revistas eletrônicas, legislações, periódicos, sites, e jurisprudenciais nos sítios eletrônicos do STJ e dos principais
Tribunais de Justiça.
De posse desse material possamos a discorre sobre os abusos praticados com maior frequência pelos planos de saúde, sendo eles a limitação do tempo de internação nos leitos oferecidos,
publicidade enganosa, negativa de uso de técnicas mais modernas e eficazes e recusa de atendimento em casos emergenciais durante a carência.
Com isso foi possível perceber O último capítulo apresenta uma análise jurisprudencial acerca das condutas abusivas dos
planos de saúde dispostas no tópico anterior, com a intenção de
demonstrar os julgados firmados, possibilitando através deste conhecimento uma maior segurança jurídica aqueles que passam
por situações semelhantes.
2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE
Conceituar os direitos fundamentais do homem de maneira
resumida e exata não é uma tarefa muito simples, já que ao longo
dos anos esses direitos foram ampliados e passaram por diversas
transformações.
A expressão “direitos fundamentais” abrange os princípios
que sintetizam o entendimento de mundo e anunciam a ideologia de cada sistema normativo. Dentre eles está o princípio da
dignidade da pessoa humana, que requer meios de limitação do
poder, evitando o arbítrio e a injustiça. Assim, percebe-se que de
um modo geral os direitos fundamentais podem ser considerados
materializações das exigências do princípio da dignidade humana.
No âmbito subjetivo, os direitos fundamentais versam so-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
bre a tutela da liberdade, autonomia e segurança dos cidadãos
não só em face do Estado, mas de qualquer cidadão, garantem um
direito individual e impõem ao Estado assegurar tal direito. Por outro lado, no âmbito objetivo, esses direitos são essenciais, demarcando os pontos para um convívio humano justo e harmônico. São
direitos intangíveis intrínsecos a natureza humana.
José Afonso da Silva (1992, p. 163) traz que os direitos fundamentais indicam,
no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e
instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza
em garantia de uma convivência digna, livre e igual
de todas as pessoas. No qualificativo fundamentaisacha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza,
não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive.
Já para Álvaro Ciarlini (2008, p.20), no âmbito subjetivo, os
direitos fundamentais:
consistem na tutela da liberdade, autonomia e segurança dos cidadãos, não só perante o Estado, mas
também em face de outros cidadãos. Por outro lado,
tais direitos consubstanciam elementos essenciais
de um ordenamento objetivo, que delimita os marcos para ‘uma convivência humana’ justa e pacífica.
Os direitos fundamentais podem ser divididos em dois grupos, os direitos de defesa e os direitos de prestação. Fazem parte do primeiro grupo os direitos de liberdade e igualdade, assim
como as garantias individuais, as liberdades sociais e os direitos
políticos. O segundo grupo é formado por direitos às prestações
materiais sociais, impõe uma ação estatal de natureza positiva e
pedem uma conduta ativa por parte dos respectivos destinatários, exigem que ações estatais versem sobre prestação fática ou
jurídica. Eles buscam garantir igualdade de condições ao livre de-
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Sumário
77
senvolvimento humano, o que seria uma liberdade real, para isso,
subdivide-se em direitos de prestação em sentido amplo e em sentido estrito ou fundamentais sociais.
Os direitos de defesa são formados pelos direitos à proteção e à participação na organização e procedimento, e por isso requerem uma atuação negativa por parte do poder público, uma
omissão, uma abstenção estatal na esfera da liberdade dos cidadãos. Esses direitos buscam limitar a atuação estatal, evitam sua
interferência sobre os bens protegidos e servem de fundamento
para uma possível pretensão de reparo pelos abusos consumados.
Esses direitos também asseguram os bens jurídicos da ação estatal. Levando em consideração o direito à vida, o Estado não pode
assumir comportamentos que interfiram na vida humana.
Os direitos prestacionais em sentido amplo ou jurídico têm
como objeto a regulamentação pelo Estado do bem jurídico protegido como direito fundamental, são aqueles direitos à prestação e
os direitos à organização e procedimento.
Existem direitos fundamentais que dependem, necessariamente, de normas infraconstitucionais para adquirirem sentido.
Eles garantem a liberdade e igualdade na dimensão defensiva.
Já os em sentido estrito ou materiais são verificados no
âmbito do Estado Social, implicam a atuação no sentido da criação, fornecimento e distribuição de prestações materiais, constituindo-se naqueles direitos fundamentais a prestações fáticas que
o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários e em existindo no mercado uma oferta suficiente, poderia obter também de
particulares. Eles são direitos fundamentais sociais mínimos, ou
seja, garantem um mínimo vital, um padrão básico de saúde, educação, moradia, trabalho, lazer, direitos esses elencados no art. 6º
da Constituição da República. Buscam reduzir as desigualdades
de fato, no âmbito da sociedade, tentando atender as necessidades aptas a tornar possível o gozo da liberdade efetiva pelo maior
número de pessoas.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Porém, a efetivação de tais direitos está sujeita a disponibilidade da riqueza nacional, sendo satisfeitos de acordo com as
situações econômicas e orçamentárias. Eles estão sujeitos ao princípio da reserva do possível.
Tendo em vista a essencialidade dos direitos fundamentais, muitos doutrinadores, como Marcelene Ramos (2010, p.57),
entendem que eles vão além de cláusulas restritivas, como a da
reserva do possível, que diz respeito ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir como prestação estatal. Essas cláusulas restritivas não podem acarretar na ineficácia dos direitos já consagrados como essenciais. Dessa forma, havendo choque de interesses,
deve haver uma ponderação entre eles.
José Afonso da Silva (2006, p.179) classifica as normas constitucionais como de eficácia plena, limitada e contida. São consideradas normas de eficácia plena aquelas que produzem efeitos
independente de complementação por norma infraconstitucional, são normas que possuem todos os elementos necessários à
sua executoriedade, possibilitando a aplicação de maneira direta,
imediata e integral.
As normas de eficácia limitada são aquelas que, para produzir a plenitude de seus efeitos, dependem de uma lei integradora. Elas não contêm os elementos necessários para sua executoriedade, dessa forma, enquanto não forem complementadas
pelo legislador a sua aplicabilidade é mediata, porém depois de
complementados tornam-se de eficácia plena. Enquanto lei suplementar não for criada elas possuem uma eficácia mínima, como
poder revogar lei anterior incompatível e inibir normas em sentido
contrário.
Por fim, as normas de eficácia contida são aquelas que produzem seus efeitos plenamente, mas podem ter seu alcance restrito. Elas também possuem aplicabilidade direta, imediata e integral, mas seu alcance pode ser reduzido em razão da existência
na própria norma de cláusula expressa que o reduza ou devido aos
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Sumário
79
princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Enquanto não
forem materializadas as restrições, a norma tem aplicação plena.
O autor (Silva, 2006, p.180) ainda fala que:
A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm
os direitos fundamentais dependem muito de seu
enunciado, pois se trata de assunto que está em
função do Direito positivo. A Constituição é expressa
sobre o assunto, quando estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm
aplicação imediata. Mas certo é que isso não resolve
todas as questões, porque a Constituição mesma
faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade
de algumas normas definidoras de direitos sociais,
enquadrados dentro os fundamentais. Por regra,
as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia
contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que
definem os direitos econômicos e sociais tendem
a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei
integradora, são de eficácia limitada, de princípios
programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são
tão jurídicas como as outras e exercem relevante
função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais
direitos fundamentais.
Assim, como bem trata José Afonso (2006, p.180) a regra
é que os direitos sociais tenham eficácia contida e aplicabilidade
imediata. É o que acontece com o direito à saúde, que deve ser realizada por meio de um serviço nacional de saúde, de acesso universal e gratuito nos termos da Constituição da República.
Com relação às normas constitucionais que tangem ao direito à saúde, podemos observar logo no preâmbulo da Carta Magna e ainda no seu art. 3º, inciso III, que os direitos sociais prestacionais estão diretamente ligados às funções do Estado, que deve
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
buscar garantir adequadamente justa distribuição e redistribuição
de bens existentes e ainda reduzir as desigualdades sociais (BRASIL,1998).
O direito à saúde pode ser visto como o intuito de preservação, ou seja, através de políticas públicas que visem à redução do
risco de doença, um direito a um ambiente saudável, ou como um
direito a proteção e recuperação, um direito individual à prevenção de doenças e seu tratamento por meio do acesso a serviços e
ações destinadas.
Previsto especialmente nos art. 196 e seguintes, o direito à
saúde no Brasil ainda é considerado como muito dependente da
intermediação legislativa. Sendo muitas vezes necessário recorrer
ao Poder Judiciário para que as prestações materiais sejam vinculadas aos poderes públicos.
Nesse sentido, de dar efetividade às normas constitucionais e garantir a aplicabilidade imediata, o poder judiciário brasileiro tem evoluído bastante desde a vigência da Constituição de
1988. Suas decisões passaram e ser mais avançadas, entendendo
direitos fundamentais sociais como direitos subjetivos individuais,
por exemplo, os inscritos nos art. 6º e 196 da Carta Magna. Garante
o direito à saúde e estabelece como obrigação político-constitucional impostergável do poder público, se negado violaria o próprio direito à vida.
O Poder Judiciário tem entendido como abusivas as exigências de cumprimento de formalidades por parte Poder Público
para o não garantir a proteção dos direitos fundamentais à vida e à
saúde. O não cumprimento viola um direito líquido e certo.
Porém, a concessão ilimitada dos ônus financeiros de elevado custo, muitas vezes em procedimentos sem comprovação
de eficácia terapêutica, acaba gerando uma redução de recursos
financeiros para execução de políticas públicas de saúde mais amplas e indispensáveis, que levou a administração a sofrer inversão
do risco de lesão à saúde e a ordem pública, já que os recursos
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Sumário
81
financeiros são finitos e obedecem uma previsão orçamentária,
além do princípio da legalidade restrita a que se submetem os administradores públicos.
Foi baseado nisso que o entendimento jurisprudencial
começou a mudar, percebeu-se a necessidade de encontrar um
“meio termo”, limitando a concessão de prestações materiais que
envolvam o direito à saúde. O Poder Judiciário passou a adotar
uma postura que reconhece o direito à saúde como um direito fundamental social, mas não apenas como uma garantia individual,
passou a observar sua dimensão subjetiva pública. Ele coloca a
Administração Pública, por meio de critérios médicos científicos,
para estabelecer e autorizar os tratamentos e remédios que devem
ser fornecidos à população, e ainda avaliar o custo benefício dos
tratamentos que serão fornecidos gratuitamente, buscando beneficiar o maior número de pessoas possível.
APELAÇÃO CÍVEL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. Seja pela
observância das cláusulas da reserva do possível
e da reserva em matéria orçamentária, seja pelos
princípios da isonomia, da seletividade e da distributividade, seja ainda pela realização dos objetivos
da República Federativa do Brasil, de justiça social
e redução das desigualdades sociais, não está o
Estado obrigado a fornecer todo e qualquer medicamento ou insumo requerido pela parte, em especial quando não padronizado pelo SUS. Reexame
necessário não conhecido. Recurso de apelação conhecido e provido.(TJ-MG - AC: 10242100017118001
MG , Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento:
30/01/2014, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data
de Publicação: 07/02/2014). (MINAS GERAIS, 2004).
Percebe-se que invocando diversos princípios o desembargador fundamenta sua decisão de usar da razoabilidade para
distribuir os recursos limitados do Estado para financiamento de
insumos médicos para a população. Embora essa seja uma pos-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tura que esteja começando a ser adotada pelos tribunais, ainda é
predominando o posicionamento no sentido de conceder todos os
pedidos demandados ao judiciário.
3 A IMPORTÂNCIA DA SAÚDE
SUPLEMENTAR NO BRASIL
A Constituição da República (BRASIL, 1988), em seu art.196,
prevê que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Quando o
constitucionalista editou tal norma ele estabeleceu que o Poder
Público deveria prestá-lo com primazia, de maneira universal e
igualitária. Porém, assim como acontece com a maior parte dos
serviços públicos, ele é falho, insuficiente para dar conta da demanda.
A culpa disso não é apenas do Poder Público que não investe recursos suficientes. A medicina e as técnicas curativas têm
evoluído bastante nos últimos anos e isso tem feito elevar os custos desses tratamentos, o que acaba inviabilizando uma prestação
eficiente para todos os cidadãos sem comprometer a prestação de
outros serviços por falta orçamentária.
A deficiência crônica na prestação de serviços por parte do
Estado, juntamente com a elevação dos custos dos tratamentos
médico-hospitalares, tem evidenciado a necessidade da existência do setor de saúde suplementar.
O sistema de saúde suplementar é gênero, do qual os planos de saúde são espécies. Aquele diz respeito à prestação de saúde fora do Sistema Único, é um setor formado por pessoas jurídicas especializadas, as operadoras de planos de saúde.
Esse segmento é de grande relevância para pessoas menos
abastadas, já que garante acesso a tratamentos mais avançados
trazidos para Brasil, sem ele essas pessoas não teriam condições
financeiras de bancar o tratamento particular.
Diante da realidade do sistema único, cada vez mais pes-
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Sumário
83
soas têm buscado operadoras de planos de saúde. Isso pode ser
observado com dado da Agência Nacional de Saúde Suplementar
– ANS. Em 2003, esse setor atendia aproximadamente 35 milhões
de pessoas. Atualmente, esse número passou para mais de 50 milhões, o que significa que mais ou menos 25% da população brasileira recorre a empresas de planos de saúde. (Francisco Dornelles,
Pronunciamento..., 2014)
Se o sistema público de saúde está caótico, imaginemos
se não existisse a Saúde Suplementar e todas as pessoas por ela
atendidas recorressem ao SUS, é nítido que ele não suportaria a
demanda.
Em 2007, o setor de saúde suplementar, que abarca planos
médico-hospitalares e odontológicos, foi responsável por 200,5
milhões de consultas, 10 milhões de internações e 420 milhões
de exames complementares (Pronunciamento..., 2014), o que resultou em uma receita de R$51,8 bilhões para atender R$ 47,8 milhões de beneficiados pelo setor. Ao mesmo tempo o Ministério
da Saúde destinou pouco mais de R$32,7 bilhões para beneficiar
136,2 milhões de pessoas. (ZIROLDO e col, 2013)
Para o senador Dornelles, não existe justificativa para haver preconceito contra a saúde suplementar, já que o “setor vem
proporcionando maior bem-estar para milhares de brasileiros e
contribuindo para o avanço social do Brasil”.
4 CONTRATOS NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO
Os contratos nascem de acordo com a realidade vivenciada
por cada sociedade, os padrões morais e o modelo econômico da
época. É o meio utilizado dentro de uma coletividade para transmitir riqueza.
Stolze e Pamplona Filho falam que classicamente os pactos
eram fundados na autonomia da vontade, não cabia ao Estado intervir nas relações econômicas, nem nas relações entre indivíduos.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A vontade do homem deveria sempre prevalecer, havia equilíbrio
formal que estabilizava essa relação.
Porém, com a evolução da sociedade, especialmente depois da Revolução Industrial, essa concepção tradicional de contrato não foi mais suficiente diante da massificação de produção
de bens e da prestação dos serviços. Foi um período em que prevaleceram os contratos de adesão, com suas cláusulas e condições
padronizadas, o que acabava despersonalizando as partes contratantes.
As mudanças não pararam por aí, no decorrer de século XX,
especialmente no que tange aos contratos. O Estado passou a intervir mais nas relações privadas, buscando equilibrar as relações
jurídicas entre partes desiguais. Ele atua limitando certos conteúdos contratuais, ou submetem a sua conclusão ou sua eficácia
a uma autorização estatal. Essa atuação busca fazer com que o
contrato cumpra sua função social, restabelecendo o equilíbrio da
relação, reconhecendo a parte mais vulnerável.
O Poder Público passa a ter uma função mais intervencionista diante da realidade dos contratos de adesão, pretendendo
restabelecer o equilíbrio perdido.
Nesse contexto, inicia-se um período de preocupação com
os direitos do consumidor. Foram estabelecidos como direitos básicos desse grupo vulnerável no mercado econômico a segurança,
a informação e o direito de escolha e de ser ouvido, que devem ser
promovidos por meios de políticas governamentais e a criações de
legislações de proteção ao consumidor.
A Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988), em
seus artigos 5º, XXXII, e 170, V, consagrou a figura do consumidor
como um sujeito de direitos e garantias fundamentais. Ela coloca
a defesa do consumidor como diretriz da atividade econômica, e
desse modo, a do direito privado, cabendo ao contrato cumprir a
função social protegendo o mais fraco na relação, de acordo com
os preceitos constitucionais diante da publicização do direito pri-
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Sumário
85
vado.
Dessa forma, o negócio jurídico estabelecido entre pelo
menos duas pessoas, que manifestem suas próprias vontades,
entendendo essa manifestação como requisito mínimo para existência, com finalidade de contrair, proteger, modificar ou extinguir
direitos é chamado de contrato.
Para Pamplona Filho e Gagliano (2013, p.49) contrato é:
um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos
patrimoniais que pretendem atingir, segundo autonomia das suas próprias vontades.
O contrato é considerado a espécie de negócio jurídico
mais importante, ele é instrumento de movimentação de riqueza,
núcleo da vida dos negócios e propulsor da expansão, tendo assim
uma função social.
Essa função social implica que os valores coletivos predominem em relação aos individuais, porém sempre preservando a
dignidade da pessoa humana. Este princípio paira sobre todos os
outros princípios que regem os contratos. Para Pamplona Filho e
Gagliano (2013, p.50) ele demonstra “um valor fundamental e respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização
pessoal e a busca da felicidade”.
No que diz respeito aos princípios contratuais, existe uma
grande aproximação entre o Código Civil - CC e o Código de Defesa
do Consumidor - CDC, já que ambos buscam concretizar as ideias
difundidas pelo Estado Social. Expressões adotadas pelo CDC acabam denotando os mesmos princípios consagrados pelo Código
Civil. Por exemplo, o fragmento do art. 4º, inciso III, CDC, (BRASIL,
1990) trata da necessidade de atender a “compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento eco-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais
se funda a ordem econômica”, tendo nitidamente a mesma intenção do princípio da função social.
Para Paulo Lôbo (2002):
Os princípios sociais adotados aproximam, muito
mais do que se imaginava, os dois códigos. A tendência, portanto, é o desaparecimento progressivo
da distinção dos regimes jurídicos dos contratos comuns e dos contratos de consumo, ao menos no que
a seus princípios e fundamentos básicos”.
O direito contratual é regido por diversos princípios, alguns
decorrentes do Estado Liberal, como os princípios da autonomia
da vontade, considerado um dos mais importantes, já que sem
ele não existe contrato, é por meio dela que as partes determinam
como, com quem e sobre o que vão contratar, não há interferência
do Estado; da obrigatoriedade contratual ou pacta sunt servanda
como também é conhecida, que revela o caráter impositivo que é
emanado do pacto; e, da relatividade subjetiva, que diz respeito
aos efeitos do contrato só atingirem quem nele manifestou vontade de fazer parte. E outros decorrentes do Estado Social, tendo
como principais os da função social, da equivalência material do
contrato e o da boa-fé objetiva.
O contrato vai além das formalidades, dos aspectos de
validade, como o agente ser capaz, possuir objeto lícito, ter forma prescrita em lei, entre outros. Para ser aprovado pelo Estado
é necessário tratar de questões maiores de cunho moral e social,
que embora sejam consideradas imensuráveis, são exigíveis judicialmente. É nesse âmbito que se encontra o princípio da função
social.
Esse princípio surgiu a partir do momento em que o Estado
passou a agir de maneira mais intervencionista, buscando satisfazer os interesses coletivos. Para o professor curitibano Paulo Nalin
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Sumário
87
(2001), a função social revela-se em dois níveis, o intrínseco e o
extrínseco. Para o primeiro, o contrato é uma relação jurídica entre
as partes pactuantes em que se exige o respeito à lealdade negocial e a boa-fé objetiva, a fim de que exista um equilíbrio material
entre as partes. Já para o segundo, o contrato é entendido dentro
da coletividade, ou seja, é levado em conta os reflexos da sua eficácia dentro da sociedade em que foi celebrado.
Nesse sentido, Reale (1986, p. 10) traz que “o contrato é um
elo que, de um lado, põe o valor do individuo como aquele que
o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar
onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de
equilíbrio e medida”
O Código Civil (BRASIL, 2002) faz expressa menção à “função social do contrato” em seu art. 421. No Código de Defesa do
Consumidor não se faz necessário, já que ele é a própria positivação da função social do contrato nas relações de consumo. A Constituição da República também não faz expressa referência, trata
apenas da justiça social, porém em vários artigos trata da função
social da propriedade.
Entende-se por propriedade a parte estática da atividade
econômica e por contrato a fração dinâmica. Dessa forma, a função social da propriedade interfere obrigatoriamente no contrato,
por se tratar de um instrumento que a faz circular.
Lôbo (2002) fala ainda que:
o princípio da função social é a mais importante
inovação do direito contratual comum brasileiro e,
talvez, a de todo novo Código Civil. Os contratos que
não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure
contrato de adesão. Segundo o modelo do direito
constitucional, o contrato deve ser interpretado em
conformidade com o princípio da função social.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Diante do exposto, percebe-se que a intenção do legislador
ao tratar da função social não é transformar a propriedade privada
em bem da coletividade, mas apenas que esta esteja submetida
aos interesses sociais. E, que para que os contratos, instrumentos
de circulação de riqueza na sociedade, atendam a função social
eles devem observar não apenas os interesses individuais, mais
também os interesse do bem comum, ou seja, os interesses privados não são anulados, apenas são voltados ao bem-estar comum.
O doutrinador Paulo Lôbo (2002) estabelece um novo princípio, o da equivalência material, que, para ele,
busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua
execução, para harmonização dos interesses. Esse
princípio preserva a equação e o justo equilíbrio
contratual, seja para manter a proporcionalidade
inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os
desequilíbrios supervenientes, pouco importando
que as mudanças de circunstâncias pudessem ser
previsíveis. O que interessa não é mais a exigência
cega do cumprimento do contrato, da forma como
foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não
acarreta vantagem excessiva para uma das partes e
desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária.
O princípio clássico pacta sunt servanda passou ser
entendido no sentido de que o contrato obriga as
partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas.
Esse princípio é um desdobramento da função social do
contrato e da boa-fé, de acordo com o entendimento do julgador
que avaliará o equilíbrio entre os poderes contratuais ou a desproporcionalidade concreta dos direitos e deveres.
Por fim, o princípio da boa-fé objetiva, expressamente mencionado no art. 422, Código Civil, determina como os indivíduos
devem se portar nas relações jurídicas obrigacionais, ela implica
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Sumário
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um comportamento honesto, leal, correto, uma conduta socialmente aprovável.
A respeito, Carlos Roberto Gonçalves(2009, p.35) aponta:
O principio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas,
como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de
direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da sua própria torpeza. Recomenda ao juiz que
presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário
ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar
a demanda na qual se discuta a relação contratual,
dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe
ao contratante um padrão de conduta, de agir com
retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as
peculiaridades dos usos e costumes do lugar.
As legislações civilistas e consumeristas tratam expressamente da boa-fé nos contratos, logo em seus primeiros artigos o Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) a coloca
como cláusula geral e, mais à frente, em seu art. 51, IV, ele a relaciona com a equidade. Já o Código Civil (BRASIL, 2002) em seu
art. 422 relaciona boa-fé com a figura do direito administrativo
da probidade.
As duas legislações ainda convergem no que diz respeito
ao alcance da boa-fé. A doutrina majoritária tem entendido que
os comportamentos devam ser analisados antes, durante e após
o contrato. E, nesse sentido, o CDC adentrou bastante no assunto,
por exemplo, estabelecendo que o fornecedor deva assegurar ao
consumidor informações ou publicidades precisas.
Não divergente a posição dos legisladores e doutrinadores,
os tribunais têm buscado aplicar esses princípios em seus julgados, fazendo com que prevaleça os interesses sociais em face dos
interesses privados, além da boa-fé.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
4.1 CONTRATOS DE PLANOS DE SAÚDE
A decadência do sistema público de saúde e o elevado
custo dos serviços de assistência médico-hospitalar privados têm
feito com que o setor da saúde tenha crescido muito nos últimos
tempos. A relação de confiança médico-paciente que existia antigamente foi transferida atualmente para os planos de saúde, a
partir do momento de sua contratação eles prometem assistência
à saúde todas as vezes que necessário o for, tendo como contra
prestação o pagamento de mensalidades.
O contrato que rege essa relação, mais do que qualquer
outro, deve cumprir a função social, além de aplicar os princípios
constitucionais já consagrados e de grande relevância, como o
principio da dignidade humana. Além disso, eles também devem
levar em consideração o art. 421 do Código Civil (BRASIL, 2002),
que estabelece que a liberdade de contratar deva ser exercida em
razão da função social do contrato e o art. 422, da mesma legislação, que trata da boa-fé objetiva.
Pra melhor compreensão do tema estudado, se faz necessário definir o que venha a ser plano privado de assistência à saúde. A própria Lei 9656/98(BRASIL, 1998), em seu art. 1º, estabelece
essa definição como sendo:
prestação continuada de serviços ou cobertura de
custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de
garantir, sem limite financeiro, assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por
profissionais ou serviços de saúde, livremente, escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada,
contratada ou referenciada, visando a assistência
médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto
ao prestador, por conta e ordem do consumidor.
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Sumário
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Assim, contratos de plano de saúde são aqueles através dos
quais a operadora, se responsabiliza perante o contratante a cobrir os riscos da assistência à saúde deste, por meio de serviços
médicos hospitalares e/ou odontológicos em rede própria, assim
como reembolsando das despesas efetuadas, ou pagando diretamente o prestador dos serviços em questão.
Ainda no art.1º, em seu §1º, alíneas “a” a “f”, o legislador
estabelece elementos para diferenciar os contratos de planos de
saúde dos contratos dos meramente financeiros. Fora esses elementos, ainda existem outros fatores que o caracterizam como ser
um contrato de adesão, sinalagmático, oneroso, formal, aleatório
e cativo de longa duração.
O contrato de adesão surgiu em um período marcado pela
produção em série e o consumo em massa. Com isso, foi necessário que o direito também se adequasse às novas exigências econômicas e sociais, a pressa de agir dos sujeitos envolvidos nas negociações que não mais queriam se reunir para discutir cláusula a
cláusula até chegar a um consenso e firmar o contrato.
Embora fosse nítida a necessidade de um instrumento diferenciado para tratar desse novo tipo de mercado, por muito tempo
o contrato de adesão só foi reconhecido pelos tribunais e doutrinadores, não existia uma legislação que o regulamentasse.
Tipicamente consumerista, esse contratos podem ser conceituados como aqueles em que uma das partes, o fornecedor, impõe a outra, o consumidor, as cláusulas contratuais sem que este
possa discuti-las.
Orlando Gomes (2001), aponta que há várias formas de caracterizar os contratos de adesão e isso acaba dificultado a sua
conceituação. Para ele a grande preocupação dos doutrinadores
não versa verdadeiramente em assinalar os atributos que permitam reconhecê-lo, o que prevalece é o interesse de descrevê-lo
antes mesmo de ensinar como identificá-lo. Argumenta ainda que
situações que permitam ou imponham a uniformização de cláu-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
sulas diante da coletividade ou a impossibilidade de discussão
contratual, fazendo com que ele seja aceito ou rejeitado, não os
diferencia de outros institutos jurídicos.
Para ele, “o traça caraterístico do contrato de adesão reside
verdadeiramente na possibilidade de predeterminação do conteúdo da relação negocial pelo sujeito de direito que faz a oferta ao
público” (Gomes, 2001).
Assim, pode-se dizer que existem alguns elementos caracterizadores dos contratos de planos de saúde, como a uniformidade, já que o estipulante busca firmar o maior número de contratos
com o mesmo conteúdo; predeterminação unilateral, as cláusulas
são estabelecidas sem nenhuma discussão prévia, elas são impostas por somente umas das partes; rigidez, não há possibilidade de
rediscussão das cláusulas contratuais; e posição de vantagem de
uma das partes, existe uma superioridade material, em razão dela
que uma das partes pode determinar as cláusulas aos demais interessados.
Embora o contrato de adesão seja uma figura típica do direito do consumidor, sendo tratado em dois artigos importantes
do CDC (BRASIL, 1990), o art.54, §4º, que impõe o dever de informação, com imediata e fácil compreensão pelo consumidor das
cláusulas que reduzam direitos e o art.51, inciso I, que considera
as cláusulas excludentes de responsabilidade abusivas e nulas, o
Código Civil (BRASIL, 2002) também preceitua dois artigos que se
referem a tal figura, são eles os artigos 423 e 424.
O primeiro estabelece que havendo cláusulas ambíguas ou
contraditórias deverá ser utilizada a interpretação mais favorável
ao consumidor. E o segundo considera como possível cláusula de
nulidade do contrato se houver renúncia antecipada de direito resultante do negócio jurídico.
Essas normatizações buscam proteger a parte mais fraca da
relação, o consumidor, especialmente por ser comum a imposição
de cláusulas abusivas, tendo em vista a superioridade econômica
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Sumário
93
do fornecedor e de ele ser o estipulante unilateral das cláusulas
gerais, restando àquele apenas a adesão.
Os contratos são considerados sinalagmáticos e onerosos
quando existir uma reciprocidade de obrigações entre o beneficiário e o fornecedor. No caso das empresas de planos de saúde, estas
se comprometem a prestar os serviços de assistência à saúde mediante o pagamento das mensalidades por parte do consumidor.
Eles são considerados formais quando necessitam obedecer a uma forma especial e aleatórios no que diz respeito à prestação devida, já que só haverá contraprestação do plano de saúde
quando um evento futuro e incerto, relacionado à saúde do consumidor vier a ocorrer. Essa eventualidade não implica na qualidade
da prestação.
E, por fim, ainda são considerados cativos de longa duração, ou seja, contratos que se perpetuam no tempo de acordo com
os interesses do contratante para que a relação entre eles seja contínua e duradoura, existe uma relação de dependência entre o consumidor e a empresa criada em função do contrato estabelecido.
Como esses contratos dispõem sobre um assunto de alta
relevância e, tendo em vista que as partes não podem dispor de
maneira livre sobre todas as cláusulas por meio da Lei nº. 9.656/98,
que dispõe sobre os Planos de Saúde, o legislador estabeleceu uma
forma especial para eles, instituindo cláusulas e condições que devem constar obrigatoriamente. Além de serem regulados por tal
legislação, os planos privados de assistência à saúde suplementar
tem íntima relação com o Código de Defesa do Consumidor, que é
plenamente aplicável a tais contratos.
Diante dessa possibilidade, houve uma grande demanda
judicial a respeito do enquadramento dos contratos de planos de
saúde como de natureza consumerista, o Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula 469, onde estabelece que o Código de Defesa do Consumidor deva ser aplicado aos contratos de planos de
saúde, o principal argumento foi o de se tratar de um contrato de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
adesão, figura tipicamente consumerista. Além do mais, o próprio
CDC em seu artigo 3º, §2º estabeleceu que contratos de seguro,
categoria que os de planos de saúde se enquadram, configuram
relação de consumo.
Vale ressaltar que durante a votação de tal súmula ficou estabelecido ainda que a aplicação do CDC seria estendida inclusive
para aqueles contratos firmados antes da vigência desse diploma
legal. Essa medida não viola o princípio da irretroatividade, já que
os esses contratos são de trato sucessivo.
Outro fator de relevância para a história dos contratos de
planos de saúde no Brasil foi a criação da Lei 9656/98, considerada
um marco, já que a após a sua vigência esses contratos foram divididos em três categorias: “antigos”, “novos” ou “adaptados”.
Sendo considerados planos antigos aqueles estabelecidos
antes de 02/01/1999, ou seja, contratos anteriores à legislação que
rege os planos de saúde, a cobertura deles é exatamente o que está
expresso na convenção, assim como as exclusões constantes nela.
Os planos novos são aqueles firmados a partir de
02/01/1999, já foram comercializados depois da Lei n° 9656/98, a
eles é garantido à cobertura assistencial deliberada pela ANS referente a todas as doenças estabelecidas pela Organização Mundial
da Saúde, além de outras garantias.
E, por fim, os contratos adaptados são aqueles firmados
antes de 02/01/1999 e que foram posteriormente adaptados às regras estabelecidas pela Lei dos Planos de Saúde, assegurando o
mesmo tratamento dado aos planos novos.
Para haver essa adaptação o consumidor deve solicitar à empresa, que é obrigada a fornecer, uma proposta de adequamento
das normas conflitantes com a nova legislação, porém o consumidor não é obrigado a aceitá-la, podendo optar permanecer no plano
antigo. Veja, o contrato permanece sendo antigo, o que muda são as
cláusulas contrárias à nova legislação infraconstitucional.
Capa
Sumário
95
5 ABUSOS PRATICADOS POR PLANOS DE SAÚDE
As operadoras de planos de saúde surgiram no Brasil por
volta da década de 1960 e por muito tempo ficaram sem nenhum
tipo de regulamentação ou fiscalização.
Com a criação da Constituição de 1988, ficou estabelecido
que os serviços de saúde poderiam ser executados por terceiros,
mas caberia ao Poder Público dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle. Porém, mesmo com o grande crescimento
do mercado e os constantes abusos cometidos pelas empresas de
saúde suplementar, só em 1998, dez anos após a promulgação da
Carta Magna, surge a Lei nº 9655/98, também conhecida com a Lei
dos Planos de Saúde, e no ano de 2000, com a Lei nº 9961/00 instituiu Agência Nacional de Saúde Suplementar- ANS, responsável
por regular o setor.
Mesmo com legislações mais rigorosas e a regulamentação da
ANS, as operadoras de planos de saúde continuam praticando abusos, sendo os mais comuns a limitação de internação, a propaganda
enganosa, a negativa do uso de técnicas mais avançadas e a negativa
de atendimento em casos emergenciais durante a carência.
Porém, a sociedade mudou, tomou mais consciência de
seus direitos e, com isso, passou a exigir mais de seus fornecedores, até mesmo judicialmente. Esse foi um dos fatores mais relevante para o aumento da judicialização da saúde suplementar.
Dados do Banco Mundial demonstram que no Brasil, em
2010, deu-se início a 240.000 novos processos sobre saúde. Fazem
parte desse número ações demandadas contra o poder público,
referentes ao sistema único de saúde, e contra operadoras de planos de saúde (DUARTE, 2013).
Quando se trata de demandas contra planos de saúde, os
principais fatores giram em torno do descumprimento de direitos
assegurados aos usuários, dúvidas contratuais decorrente de cláusulas ambíguas ou de difícil compreensão, tentativas de equipa-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ração dos contratos estabelecidos antes da Lei nº 9655/98 como
os posteriores, além dos casos em que o cidadão ciente de seus
direitos recorrem ao judiciário para tê-los assegurados.
A demanda judicial referente à saúde tem sido tão grande que alguns juristas passaram a dar designações próprias
como “Judicialização da Assistência Farmacêutica”, “Judicialização da Saúde” ou “Fenômeno da Judicialização dos Medicamentos” (FELISBINO, 2014).
Para Luís Cláudio da Silva Chaves (2009):
A judicialização atinge, também, a saúde complementar, com explosão de processos contra planos
de saúde. O aumento de processos na Justiça
contra os planos de saúde traz impactos negativos para todos os envolvidos. Primeiramente, às
operadoras de planos e seguros de saúde, que sofrem com a oneração do processo e a insegurança dos contratos celebrados, gerando distorções
nos custos e nos preços dos produtos; já o Judiciário sofre com sobrecarga de novos processos;
a ANS, pela dificuldade em realizar a regulação
do mercado; os consumidores, porque contratam
um plano, são iludidos e recebem poucas explicações e só conseguem seus direitos na justiça; e os
próprios beneficiários dos planos de saúde, que
acabam por suportar o ônus financeiro das concessões e deferimentos feitos pelo Judiciário.
Porém, mesmo com esses impactos, a Constituição da República em seu art. 5º, XXXV, assegura que a lei não negará acesso à
Justiça em casos de lesão ou ameaça a direito, no mesmo sentido
que o princípio da inafastabilidade do acesso à justiça, que garante a pessoa que sofre ameaça ou sofre lesão o direito de recorrer
ao Poder Judiciário.
Capa
Sumário
97
5.1 LIMITAÇÃO DE INTERNAÇÃO
Um dos grandes problemas enfrentados pelos consumidores ao assinarem os contratos de planos de saúde são as cláusulas que estipulam limitação do tempo de internação. Não há
como calcular o tempo necessário dela sem que o tratamento
tenha sido iniciado.
Durante muitos anos, os órgãos de defesa do consumidor
lutaram para que fosse vedada a limitação do tempo de internação dos pacientes, até que no ano de 2001 a Medida Provisória
2.177-44 deu nova redação ao art.12, II, “b”, da Lei dos Planos de
Saúde (BRASIL, 1998), estabelecendo que o tempo de internação
hospitalar, inclusive nas Unidades ou Centros de Tratamento Intensivo, deva ser determinado pelo médico assistente, sendo vedada a estipulação de tempo máximo e quantidade de internação.
É pacífico nos tribunais que essa limitação é abusiva, já que
não há como prever o tempo de internação necessário para a recuperação total do enfermo, removê-lo antes do tempo pode representar sérios riscos a sua saúde.
Ao estabelecer um contrato com uma empresa de saúde suplementar o consumidor visa transferir os riscos inerentes à saúde,
inclusive a necessidade de internação, a ela. Dessa forma, limitar
o tempo de permanência em unidades hospitalares, e até mesmo
em centros de terapia intensiva ou similares, seria uma quebra da
legítima expectativa contratual pelo contraente. De acordo com
Código de Defesa do Consumidor, cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva são consideradas nulas.
Nesse sentido, o STJ já pacificou seu entendimento ao emitir a Súmula 302 que estabelece ser “abusiva a cláusula contratual
de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do
segurado” (BRASIL, 2014a). Por meio dessa medida, a Corte Superior pretendeu uniformizar julgamento das frequentes ações impetradas nos tribunais.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
No mesmo sentido, por meio da portaria nº4/98, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, com eficácia
administrativa estendida a todos os Procons, que são consideradas abusivas, e por consequência, nulas as cláusulas que “imponham limite ao tempo de internação hospitalar eu não o prescrito
pelo médico” (GRINBERG, 2002).
Com essas medidas, se pretende dar bases legais para que
os consumidores possam se proteger de possíveis abusos.
5.2 PUBLICIDADE ENGANOSA
Toda propaganda deve ser realizada sem defeito e de maneira honesta, seguindo os preceitos legais e preservando os valores éticos estabelecidos dentro da sociedade. Não deve induzir
o consumidor a situações lesivas, além de dever ser fundada em
dados fáticos, técnicos e científicos que demonstrem a informação
veiculada, de modo a ser acessível a todos os interessados e utilizáveis para eventual demonstração de veracidade.
Não existem fórmulas para identificar uma publicidade enganosa, existem apenas indícios contidos em anúncios com informações imprecisas ou que se utilizam de artifícios para ludibriar o
leitor ou telespectador de modo que estes realizem uma compra
ou contratação de serviço sem a devida segurança e racionalidade.
Quando se trata de publicidade enganosa por parte de empresas de planos de saúde o assunto é ainda mais delicado, já que
está relacionado diretamente à saúde pública e ao bem estar da
comunidade, é a vida e a saúde dessas pessoas que estão em jogo.
Assim como acontece com os demais contratos de consumo,
não poderia ser diferente com os de planos de saúde, informações
prestadas por funcionários e vendedores, através de publicidade,
panfletos e manuais entregues e o próprio nome do plano de saúde geram expectativas consideradas legítimas que se descumpridas
geram inadimplemento contratual, como estabelece o CDC.
Capa
Sumário
99
Essas práticas não são protegidas apenas pelo Código de
Defesa do Consumidor, a própria Lei dos Planos de Saúde a fim
de evitar abusos nos contratos determina que algumas cláusulas
devam constar especificamente, como por exemplo, as que determinam períodos de carência para consultas, internações, procedimentos e exames, assim como os eventos cobertos e excluídos por
tal contrato.
Dessa forma, busca assegura ao consumidor uma maior
consciência a respeito do serviço que está contratando.
5.3 NEGATIVA DO USO DE TÉCNICAS MAIS
MODERNAS E EFICAZES
A Lei nº 9656/98 admite que as empresas de saúde suplementar estabeleçam quais doenças estão cobertas ou excluídas,
desde que assegure o mínimo definido por ela. Porém, os Planos
de Saúde não podem restringir alternativas ou determinar qual
melhor tipo de tratamento deva ser utilizado.
Esse foi o entendimento dos Ministros do Superior Tribunal
de Justiça, em decisão da Quarta Turma em recurso especial interposto contra a Itauseg Saúde S/A, que não autorizou procedimento com técnica robótica em paciente com câncer.
O fato ocorreu em São Paulo, durante uma cirurgia de prostatectomia radical laparoscópica. O procedimento chegou a ser
autorizado pela seguradora de saúde, porém, depois de realizado
o procedimento, a cobertura foi negada pelo fato de que a cirurgia
foi executada com o auxílio de um robô, que segundo o médico foi
indispensável para evitar a metástase da neoformação.
Com base nisso, a sentença considerou ilegal a exclusão da
cobertura, porém, a empresa de plano de saúde recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo que acabou reformando a decisão
no sentido de que a utilização do robô durante o procedimento teria natureza experimental, e por isso não caberia ao Itauseg Saúde
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
bancar tal método.
A empresa de saúde suplementar ainda argumentou que o
hospital havia recebido o equipamento pouco tempo antes e que
poderia ter sido aplicada a técnica convencional. Apesar disso, os
Ministros não se convenceram com a defesa.
A relatora do processo, a ministra Isabel Gallotti (BRASIL,
2012a), elucidou que a evolução das técnicas cirúrgicas não podem ser confundidas com tratamentos experimentais, como se
pode observar em um trecho de seu julgado:
Tratamento experimental é aquele em que não há
comprovação ratmédico-científica de sua eficácia,
e não o procedimento que, a despeito de efetivado com a utilização de equipamentos modernos, é
reconhecido pela ciência e escolhido pelo médico
como o método mais adequado à preservação da
integridade física e ao completo restabelecimento
do paciente.
Argumentou ainda que o STJ já vem entendendo que não
pode o paciente ser privado de um tratamento com técnicas mais
avançadas em razão de cláusulas limitadoras e conclui dizendo:
Sendo certo que o contrato celebrado entre as partes previa a cobertura para a doença que acometia
o autor da ação, é abusiva a negativa da operadora
do plano de saúde de utilização da técnica mais moderna disponível no hospital credenciado pelo convênio e indicado pelo médico que assiste o paciente,
nos termos da consolidada jurisprudência deste Tribunal sobre o tema.
Assim, observa-se o posicionamento dos tribunais no sentido de que as técnicas médicas têm evoluído e cabe às empresas
privadas de saúde suplementar assegurá-las aos seus clientes, garantindo um tratamento mais eficaz.
Capa
Sumário
101
5.4 RECUSA DE ATENDIMENTO EM CASOS EMERGENCIAIS
DURANTE A CARÊNCIA
A legislação que trata da saúde suplementar em seu art. 12,
V, “c” estabelece que em casos de urgência e emergência o prazo
máximo de carência é de vinte e quatro horas da vigência do contrato.
Entende-se por emergência os casos em que implicam em
risco de vida imediato ou de lesão irreparável para o paciente, definidos pelo médico assistente. E, por urgência, os casos derivados
de acidentes pessoais ou complicações na gestação.
A necessidade de atendimento diante da gravidade do caso
faz com que a sujeição a qualquer regra que limite ou impeça o
atendimento sejam consideradas abusivas, salvo em casos de doenças pré-existentes e de pleno conhecimento do segurado, onde
as disposições contratuais devem prevalecer.
O art. 35-C, da referida legislação, trata da obrigatoriedade
de cobertura do atendimento em casos de urgência e emergência,
aliado princípios clássicas como o da dignidade da pessoa humana, acarreta na vedação do cumprimento do período de carência
pra consultas, internações, procedimentos, exames e internação.
Porém, a resolução nº 13/98 do Conselho de Saúde Suplementar(1998), em especial seus art. 2º e 3º, tem servido de fundamento para as empresas privadas de saúde suplementar que geralmente exigem o cumprimento de uma carência de 180 dias para
internação, estabelece:
Art. 2° O plano ambulatorial deverá garantir cobertura de urgência e emergência, limitada até as primeiras 12 (doze) horas do atendimento.
Parágrafo único. Quando necessária, para a continuidade do atendimento de urgência e emergência,
a realização de procedimentos exclusivos da cobertura hospitalar, ainda que na mesma unidade pres-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tadora de serviços e em tempo menor que 12 (doze)
horas, a cobertura cessará, sendo que a responsabilidade financeira, a partir da necessidade de internação, passará a ser do contratante, não cabendo
ônus à operadora.
Art. 3º Os contratos de plano hospitalar devem oferecer cobertura aos atendimentos de urgência e
emergência que evoluírem para internação, desde
a admissão do paciente até sua alta ou que sejam
necessários à preservação da vida, órgãos e funções.
§ 1º. No plano ou seguro do segmento hospitalar,
quando o atendimento de emergência for efetuado
no decorrer dos períodos de carência, este deverá
abranger a cobertura igualmente àquela fixada para
o plano ou seguro do segmento ambulatorial, não
garantindo, portanto, cobertura para internação.
§ 2º. No plano ou seguro do segmento hospitalar,
o atendimento de urgência decorrente de acidente
pessoal, será garantido, sem restrições, após decorridas 24 (vinte e quatro) horas da vigência do contrato.
§ 3º. Nos casos em que a atenção não venha a se
caracterizar como própria do plano hospitalar, ou
como risco de vida, ou ainda de lesões irreparáveis,
não haverá a obrigatoriedade de cobertura por parte da operadora.
Posicionamento bastante divergente do que dispõe a Lei nº
9656/98, que não faz nenhuma limitação de tempo de internação
depois de decorrido às vinte e quatro horas de vigência do contrato. Não é razoável admitir que somente em casos de urgência haja
a internação, negando em casos de emergência, posicionamento
que coloca em risco a vida do paciente.
Esse posicionamento viola também o que dispõe o art. 51,
IV, CDC, que considera nula as cláusulas contratuais abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ferindo o
princípio da boa-fé.
Os tribunais têm se posicionado no sentido da incons-
Capa
Sumário
103
titucionalidade da resolução, violação das Leis nº 9656/98 e nº
9078/90, como se pode observar no julgado abaixo:
PLANO DE SAÚDE. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO NÃO
AUTORIZADO PELA CASSI. ALEGAÇÃO DE NÃO TER
ESGOTADO O PRAZO DE CARÊNCIA. 1 - A DOUTRINA E
A JURISPRUDÊNCIA MAIS MODERNAS JÁ FIRMARAM
ENTENDIMENTO SOBRE A INCIDÊNCIA DAS NORMAS
PREVISTAS NA LEI N. 8.078/90 AOS CONTRATOS DE
ASSISTÊNCIA MÉDICA CELEBRADOS POR ÓRGÃOS
PÚBLICOS OU PARTICULARES EM FAVOR DE SEUS
SERVIDORES OU EMPREGADOS. 2 - DESSA FORMA, O
PLANO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE OFERECIDO PELA
CASSI AOS SEUS ASSOCIADOS REGE-SE PELAS REGRAS CONSUMERISTAS. 3 - NA ESTEIRA DO ART. 12,
INCISO V, ALÍNEA C DA LEI N. 9.656/98 O PRAZO DE
CARÊNCIA PARA OS CASOS DE EMERGÊNCIA E DE
URGÊNCIA É DE 24 (VINTE E QUATRO) HORAS, NÃO
HAVENDO LIMITE TEMPORAL PARA O ATENDIMENTO AMBULATORIAL. 4 - ERIGIDA A PROTEÇÃO AO
CONSUMIDOR A COMANDO CONSTITUCIONAL (ART.
5º, CAPUT, INCISO XXXII DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1.988) E CONSIDERANDO QUE UMA LEI
SOMENTE PODE SER REVOGADO POR OUTRA LEI
(ART. 2º, CAPUT E PARÁGRAFOS DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DE 1.916), CONCLUI-SE
QUE É INCONSTITUCIONAL A RESOLUÇÃO N. 13 DO
CONSELHO DE SAÚDE SUPL EMENTAR (CONSU) E
POR CONSEGUINTE NULAS AS CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE LIMITAM O PRAZO DE ATENDIMENTO EM
AMBULATÓRIO E AQUELAS QUE FIXAM O PRAZO DE
180 (CENTO E OITENTA) DIAS DE CARÊNCIA PARA OS
PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS CONTIDAS NO CONTRATO FIRMADO ENTRE AS PARTES. 5 - A NULIDADE
DAS CLÁUSULAS VERIFICA-SE SEGUNDO AS REGRAS
LANÇADAS NO ART. 51, CAPUT, INCISO IV DA LEI N.
8.078/90, POSTO QUE ESTABELECEM OBRIGAÇÕES
CONSIDERADAS INÍQUAS, ABUSIVAS E COLOCAM O
CONSUMIDOR EM DESVANTAGEM EXAGERADA E SÃO
INCOMPATÍVEIS COM A BOA-FÉ E COM A EQUIDADE. 6
- DESSA FORMA, RESSAI O DIREITO DO CONSUMIDOR
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
À RESTITUIÇÃO DO VALOR DESEMBOLSADO PARA
COBRIR AS DESPESAS COM A OPERAÇÃO A QUAL FOI
SUBMETIDO E NÃO AUTORIZADA PELA CASSI, MORMENTE PORQUE ELE TROUXE AOS AUTOS PROVAS
SUFICIENTES DA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO
DE EMERGÊNCIA E OS RECIBOS DOS REFERIDOS
GASTOS. 7 - RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO.
SENTENÇA MANTIDA.(TJ-DF - ACJ: 20060710280422
DF , Relator: LEILA ARLANCH, Data de Julgamento:
02/10/2007, Primeira Turma Recursal dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais do D.F., Data de Publicação: DJU 20/02/2008 Pág. : 1595). (DISTRITO FEDERAL, 2005).
Decidir pela resolução do Conselho de Saúde Suplementar
seria violar o princípio da função social, colocar o interesse particular das empresas de planos de saúde acima dos interesses sociais e com base nisso que os tribunais têm considerado tal norma
inconstitucional. A negativa de atendimento em casos de urgência
e emergência poder ter consequências sérias e irreversíveis.
6 CONCLUSÃO
Depois de passar por diversas significações e transformações ao longo da história, a Constituição da República de 1988
consagrou à saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Porém, assim como acontece em outras funções essenciais
do Estado, o baixo investimento em estrutura básica de saúde,
agravado pelo elevado custo dos tratamentos médico-hospitalares têm feito o setor de saúde suplementar brasileiro emergir nos
últimos anos.
Mesmo com esse crescimento do mercado de planos privados de assistência a saúde, por muitos anos esses setor ficou sem
nenhum tipo de regulamentação, o que acabou favorecendo a prática de abusos por partes dessas empresas.
Capa
Sumário
105
A compreensão de que a natureza jurídica dos contratos
de planos de saúde é consumerista foi fundamental para que os
usuários do setor de saúde suplementar não ficassem totalmente
desamparados frente aos abusos sofridos. Os tribunais de maneira quase que unânime têm adotado medidas protetivas tendo em
vista a vulnerabilidade do contratante frente as empresas de saúde suplementar. Eles ainda foram além ao se posicionar no sentido
de que mesmo os contratos firmados antes da vigência do CDC devem ser protegidos por tal instrumento, já que uma das características dos contratos de planos de saúde é ser de trato sucessivo, ou
seja, é renovado automaticamente ao longo do tempo.
Com o advento das legislações que tratam especificamente
dos planos de saúde o entendimento de que o contratante é figura
vulnerável na relação só foi fortalecido, aumentando assim as bases legais para a configuração dos abusos.
As condutas analisadas, quais sejam: a limitação de internação, a propaganda enganosa, a negativa do uso de técnicas
mais avançadas e a recusa de atendimento em casos emergenciais
durante a carência, são exemplos claros de violação aos princípios
basilares do contrato, como a boa-fé, função social e ainda a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o direito à saúde está
diretamente relacionado com o direito à vida, bem mais precioso
de nosso ordenamento.
Embora esse tema seja bastante corriqueiro nos tribunais,
poucos são os doutrinadores que tratam dos abusos em espécie,
isso colabora para que a sociedade desconheça seus direitos e
continue sendo vítima dessas práticas abusivas. Porém, a recente
regulamentação do sistema de saúde suplementar tem sido um fator preponderante para que esses abusos começassem a ser identificados, e isso gerou um aumento no número ações nos tribunais
reclamando tais condutas.
Essa grande demanda também se dá pela falta de punições
e sanções mais severas por parte da agência reguladora. As empre-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
sas acabam avaliando que é mais vantajoso continuar praticando
condutas ilícitas do que prestar os serviços devidos, já que as multas aplicadas muitas vezes não cumprem o papel sancionador, e
proporcionalmente aos abusos praticados é muito pequeno o número de pessoas que recorrem ao judiciário para ter seu direito
garantido.
Se mais pessoas tiverem consciência dos seus direitos e
passarem a exigir medidas mais severas por parte das autoridades
competentes tornando essas condutas abusivas desvantajosas o
judiciário seria menos demandado, o que geraria uma economia
processual e um desafogamento dos tribunais. Essa foi a intenção
desse trabalho, fazer com que mais pessoas conheçam seus direitos, saibam identificar essas práticas reprováveis, e busquem seus
direitos.
Dessa forma, conclui-se que, embora as legislações e regulamentações do setor da saúde tenham ficado cada vez mais rígidas ainda falta uma maior aplicação delas, e por isso as empresas
de saúde suplementar continuam cometendo abusos, porém, os
tribunais têm decidido de maneira quase que uníssona no sentido
de que os interesses privados das empresas não podem prevalecer
em relação aos direitos sociais, especialmente o direito à saúde
que está diretamente ligado ao direito à vida, bem mais precioso
do nosso ordenamento.
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Capa
Sumário
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______. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Processo n° APL:
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Lindolpho Morais Marinho, Rio de Janeiro, 31 de março de 2014a.
______. Tribunal de Justiça do Rio do Janeiro. Processo nº APL:
01139641720108190001 RJ 0113964-17.2010.8.19.0001. Relator: Des.
Lindolpho Morais Marinho, Rio de Janeiro, 30 de janeiro de 2014b.
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Processo nº AC: 70029198835 RS. Relator: Antônio Corrêa Palmeiro da
Fontoura, Porto Alegre, 26 de maio de 2011.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
111
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº Recurso
Cível: 71004574372 RS. Relator: Carlos Eduardo Richinitti, Porto
Alegre, 25 de novembro de 2013.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AC:
70058581745 RS. Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Porto Alegre,
10 de março de 2014a).
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AI:
70058371220 RS. Relator: Elisa Carpim Corrêa, Porto Alegre, 14 de abril
de 2014b.
______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AC:
70054357504 RS. Relator: Isabel Dias Almeida, Porto Alegre, 4 de junho
de 2013.
SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº APL:
994092811717 SP. Relator: Luiz Antônio Costa, São Paulo, 18 de
fevereiro de 2010).
______. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo n° APL:
00078351620118260176 SP 0007835-16.2011.8.26.0176. Relator:
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INADIMPLEMENTO CONTRATUAL PELO
DESRESPEITO À BOA-FÉ OBJETIVA
COMO UMA HIPÓTESE DE
RESOLUÇÃO CONTRATUAL
Torben Fernandes MAIA7
Pedro Pontes de AZEVEDO8
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo discutir a sistemática atual do Direito dos Contratos, dentro da nova perspectiva do Direito Civil: a sua Constitucionalização. Visando o aspecto
principiológico dos pactos civis, iremos discutir,sobretudo, o princípio da boa-fé em sua dimensão objetiva, passando pelas visões
doutrinária e jurisprudencial, para avaliar como a violação dos deveres anexos de conduta, poderá ensejar em uma resolução contratual, flexibilizando o pacta sun servanda, para que assim faça
prevalecer a dignidade da pessoa como o valor maior do ordenamento jurídico, através dos deveres de lealdade e cooperação.
Palavra-chave: Direito Contratual; Princípios; Boa-fé; Violação
Contratual Positiva; Deveres Anexos;
7
Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e pesquisador pelo Grupo de Pesquisa em Direitos Reais e Contratual do Prof.Ms. Pedro Pontes de
Azevedo.
8
Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito
pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional.
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Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a entrada em vigor da atual codificação civilista brasileira em 2002, nosso
sistema jurídico abriu caminho para que se instalasse o fenômeno que cada vez mais vem ganhando espaço: a constitucionalização da legislação infraconstitucional, ou mais especificamente, a
Constitucionalização do Direito Civil.
É importante deixar claro que esse evento não se restringiu
apenas ao Direito Público, no qual já se tinha uma grande incidência de toda a carga valorativa constitucional, assim como a aplicação dos princípios fundamentais. Porém, o que se observa é uma
tendência cada vez da horizontalizarão dos direitos fundamentais,
como sendo o reconhecimento da existência e aplicação dos direitos e princípios constitucionais nas relações entre os particulares
(TARTUCE, 2012, p 82), ou seja, naquilo que se convencionou denominar Direito Privado.
Como exemplo da aplicação dessa tese, podemos citar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que em análise de Recurso
Extraordinário, negou provimento a este, encampando a tese de que
havia sido violado direito de defesa – constitucional - de associado
de sociedade civil, mandando que este fosse reintegrado:
I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente
nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando
direcionados também à proteção dos particulares
em face dos poderes privados. (RE 201.819-8/RJ, Rel.
Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acordão Mi. Gilmar Mendes,
11.10.05).
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Sumário
113
Depreende-se da análise deste julgado que o Min. Gilmar
Mendes abriu um precedente deveras relevante, segundo o qual
o ordenamento jurídico pátrio desenvolve uma característica fundamental: a superação da dicotomia entre o direito público e privado, tal qual ilhas isoladas, vivendo autonomamente e independentes entre si.
A Constituição Federal de 1988 possui destacado papel nesse sentido, pois o seu texto, além de privilegiar a dignidade da pessoa humana, ousou em unificar todo o sistema normativo. Mesmo
que diante de uma pluralidade e complexidade de normas, com
regulamentações e interpretações características, a CF/1988 unificou o ordenamento. Continua-se a aplicar todas as leis que não
contrariavam a Constituição, porém com uma diferença elementar
de que os princípios, direitos e garantias previstas no Art. 5º, bem
como os demais artigos, deverão ser o norte, a base para a aplicação de toda a legislação infraconstitucional.
2. OS NOVOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS
DO CÓDIGO CIVIL DE 2002
Dessa forma, a partir da influência e importância que passou a ter a Constituição Federal para a legislação privada, algumas
ponderações precisam ser feitas.Percebe-se que o clima de mudança cultural que já se encontrava em pauta social há algum tempo, foi finalmente atendido pelo constituinte em 1988, promulgando a primeira Constituição Social brasileira com reflexos em todo
o ordenamento jurídico, de forma crucial no Código Civil que viria
a vigorar alguns anos depois. Houve a partir de então uma reconstrução de conceitos fundamentais e inversão de valores que até
então vigoravam na nossa legislação, firmou-se compromisso para
com a pessoa humana e com a justiça social, deixando todo o patrimônio material para um segundo plano (TEPEDINO, p. 357).
Antes de adentrar a uma análise mais profunda acerca da
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nossa atual codificação civil, é interessante fazer algumas observações acerca do Código Civil de 1916, denominado de Código Beviláqua.
O referido texto, discutido ainda no século XVIII, transborda a cultura jurídica da época: um direito focalizado muito mais
na técnica, em detrimento da ética. Nesse contexto, era inegável
a posição a qual desfrutava o ter, o patrimônio, enquanto que o
ser, a dignidade, a pessoa humana, eram relegados a um segundo
plano.
Tendo herdado uma cultura jurídica dos pandectistas e das
primeiras universidades europeias, as quais deram origem à Família Romano-Germânica, berço da nossa erudição forense, os glosadores e demais escolas do século XVIII contribuíram bastante na
construção de um direito, o qual se baseia e se justifica por aquilo
que está positivo, aquilo que se encontra na norma, sendo essa a
ferramenta suficiente e exauriente de todos os questionamentos
sociais. (DAVID, 2014, P. 35).
Já na elaboração e aprovação do Código Civil de 2002, com
o objetivo de superar a cultura civilista de até então, e já influenciado pela nova codificação constitucional,eis que surgem três princípios Fundamentais que se impregnaram e, consequentemente,
vão nortear toda a nova interpretação do direito privado, são eles:
a socialidade, a operabilidade e a eticidade.
A socialidadetem como fulcro superar todo o individualismo que dominava o antigo código, elaborado ainda sob a égide
de uma sociedade predominantemente instalada no meio rural,
o que fez com que o texto, com o passar dos anos, não suprisse as
necessidades de uma população que passou a viver maciçamente nas cidades. Todos os institutos existentes até então, passam
a obrigatoriamente ter que exercer não apenas a sua função imediata, mas atender também a uma finalidade social. Atribuiu-se
ao direito privado uma finalidade social, acabando com o caráter
individualista de 1916. Nesse sentido, observe-se o art. 421 do Có-
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Sumário
115
digo Civil de 2002: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida
em razão e nos limites da função social do contrato.”.
Já a operabilidadetrouxe a razoabilidade ao Direito.Um outro aspecto da operabilidade foi a adoção das cláusulas gerais, o
que entregou ao intérprete uma árdua e importante missão: a de
aproximar a legislação à realidade social, especialmente por meio
da jurisprudência dos tribunais, cuja maior missão passou a ser a
de ter uma atuação mais efetiva, realista, sensata, onde a lei concretiza a sua finalidade (BUTSCH).
Por fim, tem-se o princípio que será objeto de nosso estudo: a Eticidade. Buscou-se superar através da nova codificação o
apego excessivo ao formalismo jurídico, cultura recebida diretamente dos Portugueses e da escola germânica dos pandectistas,
como consequência de todo o trabalho empírico exercido pelos
glosadores no renascimento do direito romano (REALE JR., 2001,
p. 3). Segundo esse princípio, as condutas dos indivíduos deverão
ser sempre guiadas pelos valores de honestidade, lealdade, sinceridade e lisura, para que então, não haja prejuízo para nenhuma das partes nessa relação. Desenvolveremos um pouco mais as
ideias acerca deste primado nos tópicos seguintes, culminando
com a análise da boa-fé objetiva, uma das suas mais importantes
consequências.
3. O PRINCÍPIO DA ETICIDADE COMO
INSTITUIDOR DA BOA-FÉ
Como já demonstrado anteriormente, o novo Constitucionalismo trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma ampla
valorização dos direitosfundamentais, com destaque para a preservação e a valorização da dignidade da pessoa humana. Como
não poderia deixar de ser, o Direito Civil igualmente passou a ter o
cânone em questão, passando a também tutelar, como epicentro
das suas normas, a dignidade dentro das relações de direito priva-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
do. Guardando a unidade do ordenamento jurídico, ainda que na
complexidade do mesmo, o qual imergido num universo de pluralidade de normas e legislações que regulam as diversas relações
sociais, essas normas guardam uma unidade na tábua axiológica
da Constituição Federal (TEPEDINO, p. 361).
A Ética pode ser aplicada como sendo a essência humana, a finalidade que deverá ser atingida mediante as condutas do
homem(FARIAS e ROSENVALD, p. 51, 2014).É mediante este paradigma que podemos perceber o avanço alcançado pelo Código Civil de 2002, quando comparado ao de 1916, esse que fora bastante
marcado por uma ciência jurídica embasada pelas correntes positivistas, as quais limitavam o direito à norma e a mera produção
estatal. Na realidade marcadamente liberal, era como se a legislação fosse um produto feito dentro de um laboratório, excluindo
da produção toda a interferência de outras ciências, como a sociologia, antropologia, e outras, com capacidade de contribuir significativamente para um direito voltado aos substratos axiológicos
fundamentais voltados à sociedade, e não ao apego excessivo ao
formalismo, direcionado a favorecer uma classe dominante.
Assim, o Código Beviláqua foi profundamente marcado
pela hermenêutica da subsunção, onde cabia ao interprete aplicar
a norma pela norma, pois uma vez obedecida a técnica legislativa e a emanação desta por autoridade competente já justificava a
sua aplicação, tornando este texto um verdadeiro sistema fechado
(FARIAS e ROSENVALD, p. 51, 2014).
Eis que no bojo do Código civil de 2002 a eticidadeamplia o
seu espaço no Direito Civil, sendo erguida a um patamar de princípio fundamental, ao lado da operabilidade e da socialidade que
também lhe darão sustância, por meio das chamadas cláusulas
gerais.
Segundo Gustavo Tepedino, cláusulas gerais são:
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Sumário
117
“Normas que não prescrevem uma certa conduta,
mas, simplesmente, definem valores e parâmetros
hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao interprete os
critérios axiológicos e os limites para aplicação das
demais disposições normativas” (TEPEDINO, p. 22,
2008).
Essas cláusulas possuem a capacidade de dinamizar e atualizar o texto frio da lei, e não sentenciá-lo à caducidade e ao obsoletismo, mas sim provocar o efeito reverso; fazer com que ele
continue sempre atualizado e adequado ao contexto social o qual
está inserido, através do intérprete. Assim, diversos são os artigos
que tratam sobre as cláusulas gerais, porém dois destes merecem
destaque em razão da discussão que aqui se irá traçar. O primeiro
deles é o art. 422 do CC/2002:“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.”
Esse artigo é fundamental importância, visto que impõe
aos contratantes - veja que o verbo utilizado foi o de “obrigar” –
a observância aos princípios éticos e de probidade, instituindo e
abrindo portas para a eticidade nas relações contratuais, sob pena
da lei. Contudo, a maneira como esse instituto foi inserido é que
nos chama a atenção: a utilização pelo legislador de termos vagos
e imprecisos, editados propositadamente, para que o intérprete
da lei, aplicando o texto normativo ao caso concreto, se utilize da
técnica integrativa para adequar as condutas dos pactuantes à
mais estrita observância à boa boa-fé objetiva.
Antes de seguir adiante na discussão, é interessante que
se aborde o aspecto do Princípio da Boa-fé sob as suas duas dimensões: boa-fé subjetiva e objetiva. A primeira consiste, segundo
Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, em “uma situação psicológica,
um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivência dada situação, sem ter ciência do vício que
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
a inquina.”(STOLZE e PAMPLONA p 64, 2010).Complementando, citamos também o raciocínio de Cristiano Chaves e Nelson
Rosenvald,que afirmam que “A boa-fé subjetiva não é um princípio,
e sim um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser
titular de um direito em que verdade só existe na aparência.”(FARIAS
e ROSENVALD, p. 159, 2014).Por fim, ainda sobre o mesmo ponto,
vejamos o conceito de Fernando Noronha:“Uma é boa-fé estado, a
outra é boa-fé espírito” (NORONHA. P. 1994).
A boa-fé objetiva, portanto, pode ser definida como um
norte para as condutas humanas e sociais, um patamar que o legislador deseja que seja perquirido, tendo em vista que se encontra em plena conformidade com a eticidade, vez que caminham
lado a lado, sendo por vezes muito tênue a sua distinção. Como
um dever jurídico e moral, a boa-fé objetiva impõe alguns deveres
secundários e mediatos, os quais devem ser obedecidos sempre e
em todas as relações jurídicas, com destaque especial para o direito obrigacional e contratual. Trata-se da “confiança adjetivada”,
uma crença efetiva no comportamento alheio e um importante
instrumento de eticização da conduta social (FARIAS e ROSENVALD, 2014, P. 159).
A boa-fé objetiva que é objeto do direito, eis a sua diferenciação para a sua versão subjetiva. Aquela impõe aos sujeitos os
deveres e padrão de conduta de não lesar outrem, o dever de uma
conduta reta, proba.
4. A BOA-FÉ OBJETIVA
É notória a função que desempenha a boa-fé objetiva nas
relações sociais, imprimindo nessas um ar de confiança, estruturando todo o convívio social. Em decorrência de sua objetividade, a
bona fides impõe estrita observação a esses três requisitos: a) dentro de uma relação jurídica, a observação aos deveres especiais e
mútuos de conduta; b) padrões de comportamento exigíveis a um
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Sumário
119
homem médio; c) visando ensejar confiança nessa relação, a reunião de condições para tal realização (FARIAS e ROSENVALD, 2014,
P. 160). Assim, podemos perceber as três funções desse instituto: a
sua função interpretativa, integrativa e de controle.
O comando normativo primordial, a tratar sobre o tema em
discussão, é o Art. 113 do CC/2002:“Art. 113. Os negócios jurídicos
devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração.”Inserido ainda nos primórdios dos dispositivos normativos, de forma intencional, ele serve de sustento para tudo o
que virá depois dele. Embora o novo texto civil tenha mantido os
mesmo institutos de seu antecessor, esse dispositivo demonstra
uma alteração cabal: a carga valorativa e axiológica não é mais a
mesma, e a boa-fé é um dos principais propulsores dessa modificação.
A boa-fé objetiva não havia sido prestigiada pelo código de
1916, embora possua origem ainda no direito romano, segundo alguns doutrinadores, os quais buscam no conceito de bonas fides,
o genitor para o conceito tal qual conhecemos atualmente. O princípio da boa-fé objetiva possui peso de normatividade, invocando
um dever, uma obrigação que é socialmente recomendada, um
dever de conduta de não frustrar a confiança alheia, muitas vezes
se confundindo com a equidade das relações negociais (LYARD,
P. 133, 2003). Esse princípio traz consigo o pressuposto de que, o
homem acredita e confia em que uma declaração de vontade terá
como efeitos os esperados em situações iguais, partindo da premissa do resultado comumente esperado de uma relação comum.
Dada a magnitude que carrega tal princípio, é feliz o reconhecimento das pessoas que enxergam na boa-fé objetiva um reflexo dos valores resguardados na Constituição Federal. Tal qual
um porta-voz, a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional, encontra um porto seguro no direito privado através daquele princípio.
As regras que antes pertenciam exclusivamente ao Direi-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
to Público, agora se aplicam ao Direito Privado, fazendo uma integração entre os valores axiológicos constitucionais. Assim, em
decorrência desse fenômeno, podemos apontar para uma verdadeira flexibilização da autonomia privada, do pacta sun servanda,
os quais podem vir a sucumbir em detrimento da prevalência da
justiça social, equilibrando as relações entre particulares, prevalecendo ideias de liberdade e justiça.
A boa-fé, conforme se infere dos dispositivos do Código Civil, deverá ser observada em todas as fases contratuais, desde a
sua germinação, nas negociações preliminares, até a fase de execução e pós-contratual:“Art. 422. Os contratantes são obrigados a
guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os
princípios de probidade e boa-fé.”
Entretanto, a sua função não se acaba ai. Chegamos ao
ponto central da presente análise: os deveres de proteção e cooperação que devem guardar os contratantes, bem como se deixarem
guiar por este, não são apenas meros acessórios contratuais, decorações que são inseridas e que podem facilmente ser trocadas,
a depender do gosto de uma das partes. Pelo contrário, eles são
verdadeiros princípios, com caráter de norma cogente, devendo
ser estritamente obedecidos, sob pena de até mesmo justificarem
uma resolução contratual, pelo instituto da violação positiva dos
contratos,que vem amplamente sendo reconhecido, sobretudo
nos tribunais brasileiros, conforme demonstraremos mais a frente.
Vejamos o que diz o Art. 187 da lei civil, o qual institui uma
verdadeira função limitadora dos direitos subjetivos, visando coibir o abuso de direito e os casos de violação desses deveres anexos
dos contratos, instituindo como ato ilícito a violação da boa-fé:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social,
pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Capa
Sumário
121
O referente artigo inovou no ordenamento, visto que trouxe
para esse instituto inaplicável até então: o abuso de direito. Assim,
até mesmo diante de casos de um legítimo exercício de seu direito,
cumprimento de dever legal, o agente poderá praticar ato ilícito,
ainda que no exercício de direito legítimo e subjetivo, desde que
ele atue com excesso, atue violando as finalidades essenciais do
código civilista: a finalidade social, os bons costumes e a boa-fé.
Vejamos o que diz o grande doutrinador Caio Mário da Silva
Pereira: “O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito
subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele
que age dentre do seu direito a ninguém prejudica (neminemlaeditquiiuresuoutitur). No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso
desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e
sendo obrigado a reparar o dano.” (PEREIRA, 2007, P. 673).
Assim, concluímos que a eticidade foi amplamente encorpada pelo artigo em questão, trazendo novidades para a lei civil,
além de imputar à boa-fé objetiva, posição que antes não gozava.
5. A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO
Com a ascensão da boa-fé objetiva ao status de cânone
fundamental, o direito obrigacional passou por uma ampla reformulação, com destaque para a figura do adimplemento. O que se
defende aqui é que o cumprimento obrigacional passa a ser alargado, uma vez que a simples execução da obrigação principal não
o satisfaz mais. Surge a ideia dos deveres anexos, deveres laterais,
interesses envolvidos mediatamente na obrigação principal, e que
adquirem o caráter de obrigação acessória, ligada à obrigação
principal, gerando deveres como o de proteção, de informação e
de cooperação, os quais, se não observados,poderão provocar o
inadimplemento, gerando até mesmo a pretensão reparatória ou
o direito potestativo à resolução do vínculo (FARIAS e ROSENVALD,
CONTRATOS, 2014, p. 540)
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Os artigos retrocitados – 113, 187 e 422 do Código Civil de
2002 – introduziram todo o fundamento legal para que fosse admitido os deveres secundários nos negócios jurídicos e nos contratos
(BARRETO, P 159, 2003).
Usualmente, tem-se como formas de inadimplemento contratual a impossibilidade física ou objetiva de entrega de coisa certa; impossibilidade física subjetiva ou involuntariedade da prestação de fazer e de não fazer; impossibilidade ou involuntariedade
do cumprimento de obrigação alternativa, indivisível, solidária, de
entrega de coisa com vício material visível ou com vício de evicção,
além do inadimplemento parcial ou relativo. Todas essa formas de
descumprimento, irão ensejar o inadimplemento da obrigação
principal em um negócio jurídico.
Segundo o entendimento tradicional, são apenas essas
obrigações acima, tidas como principais, que ensejarão a determinação do adimplemento ou inadimplemento contratual. Em
outras palavras, mesmo que tenha havido dano para pessoa do
credor ou do devedor, sendo cumprida a obrigação principal, não
haveria ofensa ao contrato, ao negócio e pacto jurídico celebrado.
O que se advoga aqui é exatamente a ampliação do conceito de inadimplemento, para abarcar os casos de descumprimento
dos deveres anexos, advindos da boa-fé objetiva, comoensejadores de inadimplemento contratual. Como exemplo, poderíamos
citar o caso de um médico que diagnostica determinado paciente
com exatidão, entretanto, na hora de escolher um tratamento para
a cura da doença, seleciona o mais penoso e duradouro (ASSIS,
1999, p. 113). Também pode ser mencionado o caso do empresário que contrata uma agência de publicidade para a confecção de
um outdoorpara expor de forma bastante visível o seu produto, no
entanto, a agencia instala o outdoor em local de pouco trânsito de
pessoas, aproveitando-se da omissão contratual na definição do
local (SILVA, 1976, p.40)
Nos dois casos exemplificativos, percebemos que a obriga-
Capa
Sumário
123
ção principal foi realizada, houve, a priori, uma satisfação com relação ao adimplemento do objeto principal do contrato. Contudo,
é inegável que a forma como a obrigação foi realizada não foi a
melhor a ser executada. Houve um adimplemento ruim, não satisfativo, vez que as obrigações secundárias, laterais ao contrato, não
foram cumpridas. Não houve uma obediência à boa-fé objetiva, o
dever de conduta proba, de conduta reta não foi obedecido, tendo
em vista que os contratantes, diante de uma pluralidade de opções, escolheram a menos favorável aos outros pactuantes,, ainda
que dispusessem de poder de executar a melhor e mais satisfativa.
Visando coibiro adimplemento ruim, inibir o descumprimento dos deveres anexos aos negócios jurídicos, surgiu a Teoria
dos deveres laterais, paralelos, anexos, instrumentais. Assim, ao
celebrar um contrato, as partes deverão cumprir não apenas com
a obrigação imediata, principal, mas também com os deveres conexos e secundários que passam a integrar o sistema obrigacional.
Dessa forma, violação positiva do contrato é sinônimo do
que a doutrina ousou por chamar de adimplemento ruim, insatisfatório, onde mesmo tendo a obrigação principal do contrato esteja sido cumprida, as obrigações laterais, conexas a esse contrato,
e resultado do da boa-fé objetiva, na sua função integrativa e criadora dos deveres laterais – Art. 422, CC/02 – não foram cumpridas,
levando a uma violação positiva contratual.
O que se defende, pois, é que a violação positiva do contrato, seja alçada a modalidade de inadimplemento obrigacional.
Conforme demonstrado, a obrigação central sempre carrega consigo outros deveres que devem ser igualmente executados, posto
que são eles quem definem objetivamente a conduta de boa-fé de
um agente. Nesse sentido, vejamos o entendimento de SILVA sobre
o tema:
“A violação positiva do contrato, no direito brasileiro, corresponde ao inadimplemento decorrente do
descumprimento de dever lateral, quando este de-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ver não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação. (SILVA, p. 266).”
Percebe-se que a estrutura da relação contratual foi encorpada para obrigações além da autonomia da vontade, para os deveres previstos nos Arts. 187 e 422 do CC.
5.1 POSSÍVEIS PRETENSÕES/TUTELAS A
OS CREDORES DA VIOLAÇÃO POSITIVA
DO CONTRATO
Admitida a tese aqui defendida, uma vez identificada a violação aos deveres conexos do negócio jurídico, o devedor se constituiria em mora, em virtude do adimplemento ruim, ou não-satisfativo, ainda que venha a adimplir a obrigação principal. Nessa
linha de raciocínio, segundo o sistema obrigacional, o contratante
prejudicado poderia buscar algumas tutelas judiciais para se ver
recompensado por eventuais perdas e danos, consoante se apresentará adiante.
Cumpre salientar que inicialmente, e em obediência ao
princípio do pacta sun servanda, é dever do intérprete e dos contratantes, prezar pela manutenção do negócio jurídico celebrado,
pleiteando o adimplemento, em detrimentoda reparação mediante perdas e danos. O Princípio da preservação do constratos encontra fundamento na função social dos contratos, vez que esses
negócios jurídicos embora encontrem interesses diretos e imediatos as partes do contrato, teremos como indiretamente interessados, a sociedade, vez que a obrigação principal desempenha,
ainda que de maneira ínfima, um reflexo no contexto social, movimenta a economia, favorecendo o desenvolvimento econômico e
social da pessoa humana.
Com a superação do individualismo excessivo do código de
beviláqua, o princípio da socilidade impôs aos institutos do direi-
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Sumário
125
to privado essa característica social, os quais deverão não mais se
restringir aos interesses das partes, deverão atendê-lo primordialmente, no entanto, subsidiariamente existe um interesse público
e social no contrato celebrado. Dessa forma, diante de possíveis
revisões contratuais, o interprete deverá prezar pela manutenção
contratual, com base no princípio da preservação dos contratos,
visto que esses desempenham também uma função perante a coletividade, podendo vir a lesar não a parte, mas todos os indivíduos indiretamente afetados.
O inadimplente repara o credor por todos os danos que a
sua conduta não proba causou à pessoa do ofendido, como no
caso do médico que tratou o paciente com o tratamento mais penoso e demorado, irá indenizar a vítima em perdas e danos.
De outro lado, e talvez a mais interessante tutela que se
passa a defender, o contratante lesado teria ao seu dispor a possibilidade de pleitear a resolução contratual. Pelo que aqui se defende, é possível requerer o rompimento contratual, ainda que
a obrigação principal tenha sido cumprida, tendo como base o
inadimplemento, o descumprimento dos deveres anexos. Considerando a violação positiva do contrato como um descumprimento dos deveres anexos, bem como a quebra de confiança entre as
partes, a afronta aos deveres de lealdade, o vínculo contratual que
une as partes contratantes se encontra plenamente prejudicado.
Assim, seria plenamente possível que o rompimento do
contrato em consequência da violação positiva dos contratos, especialmente nas ocasiões em que a conduta violadora dos deveres
anexos possui capacidade de desinteressar o lesado na manutenção contratual. Por exemplo: um reparador de telhados é contratado e realiza o trabalho para qual foi contratado de maneira
satisfatória, cumprindo com o que foi pactuado. Contudo, após
o encerramento do serviço, acende um cigarro antes de descer e
joga o fósforo aceso, causando incêndio no madeiramento do telhado. (BARRETO, 2003, P. 160)
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Com relação à responsabilidade civil decorrente da violação positiva dos contratos, segue-se a mesma regra aplicada aos
casos de mora e inadimplemento absoluto, podendo resolver o
contrato ou adequá-lo aos interesses da parte que foi lesada.
6 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL
Passando para uma análise acerca da posição que vem
sendo adotada pelos tribunais brasileiros, percebemos uma forte
tendência para o reconhecimento e aplicação da violação positiva
dos contratos como sendo uma causadora para, até mesmo, a resolução contratual.
Cumpre analisar um caso julgado pelo Tribunal de Justiça
do Rio de Janeiro, que em sede de recurso de agravo interno, negou provimento a este para manter sentença que condenou uma
seguradora ao pagamento de dano moral por violação aos deveres laterais do contrato, corroborando a tese defendida por nós no
presente trabalho.
TJ-RJ - APELACAO APL 00236895820118190204 RJ
0023689-58.2011.8.19.0204 (TJ-RJ)
Ementa:AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL.
AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA
RECUSA AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA AO BENEFICIÁRIO DE SEGURO DE VIDA. ABUSO
DO DIREITO.VIOLAÇÃOPOSITIVADOCONTRATO, CONSUBSTANCIADA NA QUEBRA DOS DEVERES DE LEALDADE, BOA-FÉ, FIDÚCIA E TRANSPARÊNCIA. DANO
MORAL CARACTERIZADO. DEVER DE INDENIZAR.
(...) 4. Ressai evidente que a ré atua de má-fé, na medida em que vem protelando o pagamento da indenização securitária há mais de 4 anos, quebrando,
com tal conduta, os deveres laterais do contrato,
consubstanciados no dever de agir com boa-fé, lealdade, transparência e fidúcia. Diante das circunstâncias do caso concreto, entendo que o valor de R$
10.000,00, revela-se justo e adequado, para fins de
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Sumário
127
indenização pelos danos morais sofridos. 5. Desprovimento do recurso.
Sobre o mesmo tema, o Tribunal de Justiça do Rio Grande
do Sul assim julgou:
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. INFRAÇÃO A DEVER INSTRUMENTAL DE INFORMAÇÃO, DERIVADO DO
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO.
É crível, assim, a versão da autora de que não teria
se interessado na locação, caso soubesse que haveria um número tão grande de stands locados. Ainda
que não houvesse a afirmação inicial, enganosa, de
que haveria um número reduzido de stands, impunha-se aos requeridos prestar a informação aos
interessados quanto ao número de stands que se
pretendia instalar. Trata-se do dever instrumental,
anexo ou lateral, de informar ao outro contratante
todas as circunstâncias que possam influir no processo de tomada de decisão de contratar ou de fixação das cláusulas do contrato. Não houve propriamente inadimplemento contratual dos requeridos,
pois locaram os stands e efetivamente os dispuseram aos locatários. Trata-se, porém, do fenômeno
denominado de violação positiva do contrato, instituto que não configura nem mora, nem inadimplemento, mas adimplemento defeituoso por não cumprimento de deveres anexos, laterais, decorrentes
do princípio da boa-fé, em sua função de proteção
ou tutela. Sentença de procedência mantida. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul. Terceira Turma Recursal Cível. Recurso Cível Nº
71000603332. Marketing e Cia e Eva Silva da Costa.
Relator: Desembargador Eugênio Facchini Neto. Porto Alegre, 14 dez. 2004).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi muito feliz
nesse julgado, vez que aplicou à realidade o que nós estamos aqui
defendendo. Ao se referir ao dever de informação da locadora, um
verdadeiro dever anexo ao contrato, cuja obrigação era alugar car-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ro seu a particular, essa empresa se viu como uma má prestadora
do serviço, tendo em vista que ainda que tenha alugado o bem móvel, não cumpriu com todos os deveres. Vejamos outro exemplo:
EMENTA: AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA - CONTRATO DE EMPREITADA - MOVEIS PARA LOJA - AUSÊNCIA
DE PAGAMENTO DO VALOR CONTRATADO - DESCUMPRIMENTO PARCIAL DA OBRIGAÇÃO - DEFEITOS DE
ACABAMENTO - CARACTERIZAÇÃO - ABATIMENTO DO
PREÇO - POSSIBILIDADE - VALOR NECESSÁRIO PARA
REPARAÇÃO DO DEFEITO - APURAÇÃOEM LIQUIDAÇÃO.
Restando demonstrado nos autos que houve cumprimento parcial do contrato, haja vista a constatação de defeitos no seu objeto está-se diante da
hipótese de “descumprimento de obrigação positiva”, sendo possível a alegação da exceptio non riteadimplenticontractus. Uma vez acatada a exceção
do contrato cumprido de forma defeituosa possível
é, em sede de ação de cobrança, o abatimento do
preço inicialmente avençado da quantia necessária
a reparação do(s) bem(s), valor este que deve ser
apurado em liquidação de sentença por arbitramento. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais. Apelação Cível 2.0000.00.512685-4/000(1).
Renata Araújo Notini e Richard Antônio Masrtins.
Relator: Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula.
Belo Horizonte, 18 ago. 2005).
Outro caso que merece análise é o de um recurso de apelação ajuizado perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, no
qual aquela corte se manifestou a favor do reconhecimento dos
deveres anexos como causadores de inadimplemento contratual
pelo seu desrespeito:
TJ-DF - APELACAO CIVEL APC 20100110030906 DF
0001550-12.2010.8.07.0001 (TJ-DF)
Ementa: CIVIL E PROCESSO CIVIL. COMPRA E VENDA
AUTOMÓVEL. PARTICULARES. AUSÊNCIA DE REGIS-
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Sumário
129
TRO. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO.
1. Em uma relação jurídica, os contratantes devem pautar-se em certo padrão ético de confiança
e lealdade, em atenção ao princípio da boa-fé, que
orienta as atuais relações negociais pela probidade, moralidade e honradez. 2. Comprovada a violação positiva do contrato, com patente desrespeito
ao seu conteúdo ético, cabível a responsabilização
da parte ofensora. 3. No presente caso, a conduta
omissiva perpetrada pelo recorrente acabou por resultar em vários transtornos para a autora, tanto de
ordem material quanto na órbita de seus direitos da
personalidade, notadamente, pela inclusão de seu
nome em dívida ativa, além do ganho de pontos em
sua carteira de habilitação e por multas de trânsito,
sobre as quais não tinha mais responsabilidade. (...)
5. Negou-se provimento ao recurso.
Por fim, encerrando a análise da jurisprudência, tem-se um
julgado do Superior Tribunal de Justiça, tribunal de superposição
sobre a temática de direito privado no Brasil. Ao analisar em sede
de recurso, ação que tratava sobre a temática da quebra da boa-fé
objetiva, bem como a violação positiva dos contratos, o STJ reconheceu o direito de consumidor que foi lesado pela violação dos
princípios de cooperação, confiança e lealdade.
AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEGURO DE VIDA.NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NÃO RECONHECIDA. RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA
CONTRATUAL. SÚMULAS Nºs 5 E 7/STJ. QUEBRA DA
BOA-FÉ OBJETIVA. PRECEDENTES. SÚMULA N° 83/
STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA.
(...) 2. Conforme já decidido por esta Corte “a
pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa
fé objetiva, da cooperação, da confiança e da
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
lealdade que deve orientar a interpretação dos
contratos que regulam relações de consumo.
(...)” (REsp 1.073.595/MG, Relatora Ministra Nancy
Andrighi, Segunda Seção, DJe 29/4/2011).
Do julgado acima, podemos perceber que até mesmo a corte
superior de justiça vem aplicando o entendimento por nós defendido, dando ampla margem de protagonismo ao princípio da boa-fé
objetiva como genitor dos deveres laterais de confiança e lealdade,
capazes de ensejar uma verdade inadimplência obrigacional.
7. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a análise da temática empreendida nos tópicos acima, entendemos estar demonstrada a viabilidade da aplicação da
violação positiva dos contratos como uma nova via de inadimplemento contratual. Os deveres laterais das relações obrigacionais
alcançam todos os interesses conexos à execução do contrato, de
forma que a lesão aos deveres genéricos de proteção, informação
e cooperação – todos com gênesis na boa-fé objetiva – são os pilares da violação positiva contratual.
A violação positiva, como um inadimplemento contratual
com relação aos deveres secundários e anexos ao contrato que
estão diretamente ligados ao dever obrigacional principal, poderá
ocasionar até mesmo a resolução do contrato. Essa é a tese que
defendemos, a qual encontra respaldo no código civil de 2002, um
diploma normativo que auxiliou no avanço do direito civil, em especial por adotar a antropocentrizaçãoda legislação civil, com enfoque central no ser humano, diretamente naquilo que ele possui
da mais importante: a sua essência, a sua dignidade.
Dessa forma, o adimplemento dos pactos não se restringe
apenas à satisfação da obrigação principal, mas exige também o
cumprimento das obrigações laterais e anexas a todos os contra-
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Sumário
131
tos, visando a coerência com a boa-fé objetiva, sob pena de provocar um inadimplemento em eventual violação.
Embora não seja ainda objeto de consenso entre a doutrina, essa tese vem ganhando espaço não apenas nos tribunais ordinários, mas também nas cortes superiores, como no caso do STJ,
o qual se manifestou pelo reconhecimento da mesma.
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Sumário
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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A ARBITRAGEM, A CONCILIAÇÃO, A MEDIAÇÃO E
A NEGOCIAÇÃO COMO FORMAS ALTERNATIVAS
DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS NO DIREITO CIVIL
CONSTITUCIONAL HUMANIZADO
Wendel Alves Sales MACÊDO9
Eduardo Jorge Pereira de OLIVEIRA10
RESUMO: Este trabalho aborda o estudo teórico e sistemático da
resolução extrajudicial dos conflitos de interesse com a teoria do
Direito Civil Constitucional Humanizado. Os métodos alternativos
de solução de conflitos de interesses são procedimentos constitucionais e extrajudiciais, simples e objetivos, que visam restabelecer o equilíbrio jurídico e social. Esses métodos são especificadamente a Arbitragem, a Conciliação, a Mediação e a Negociação. O
Objetivo do Trabalho é mencionar os principais aspectos ligados
às formas alternativas de soluções de conflitos vinculados ao Direito Civil Constitucional Humanizado. A metodologia tem como
base os métodos dedutivo, sistemático e qualitativo. A problemática está voltada a valorização do estudo das formas alternativas
de soluções de conflitos vinculadas ao Direito Civil Constitucional
Humanizado em que a resolução alternativa deve ser uma prática
efetiva pela sociedade brasileira. Justifica-se na importância do
tema para a sociedade atual, pois as formas alternativas de soluções de conflitos (arbitragem, conciliação, mediação e negociação)
9
Autor - Graduado no Curso de Bacharel em Direito pela Universidade Federal
de Campina Grande – UFCG e pesquisador do IDCC da UFPB.
10
Orientador – Professor com Mestrado da Universidade Federal de Campina
Grande - UFCG.
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Sumário
135
podem ser utilizadas para gerar uma consciência social da população, uma pacificação social, a diminuição do número de processos
no Poder Judiciário, o empoderamento das partes e a solucionar a
lide de forma rápida e menos burocrática. A Conclusão expõe que
a forma alternativa de solução de conflito é relevante para a individualidade e para a coletividade e que a informação, a explicação,
a reflexão e a ponderação são imprescindíveis para a convivência
harmônica das pessoas no século XXI.
PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Conciliação. Direito Civil Constitucional. Mediação. Negociação.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho analisa as principais perspectivas da
solução extrajudicial (ou também denominada de solução alternativa) de conflitos de interesse e do Direito Civil Constitucional
Humanizado para que seja possível formar uma base de conhecimentos acerca da Arbitragem, da Conciliação, da Mediação e da
Negociação.
O objetivo geral do trabalho consiste em analisar a teoria
do Direito Civil Constitucional Humanizado e as formas alternativas de soluções de conflitos mais precisamente a arbitragem, a
conciliação, a mediação e a negociação com vista na conscientização dos seres humanos de que o estudo a respeito dessa temática
é importante para a sociedade atual.
O objetivo específico do trabalho insiste em desenvolver
um posicionamento favorável a prática efetiva da resolução alternativa de conflitos para que a pacificação social, a ordem, a harmonia, a inclusão social, o empoderamento das pessoas e a justiça
de todas as pessoas com todas as pessoas prevaleçam de forma
célere, eficiente, duradoura, digna e humana.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A metodologia está embasada no método dedutivo, no método sistemático e no método qualitativo que primeiro estabelece
uma introdução ao estudo do Direito Civil Constitucional Humanizado para em seguida desenvolver sobre a Arbitragem, a Conciliação, a Mediação e a Negociação.
A problemática do artigo consiste na constatação de que há
uma crise no acesso à justiça por meio a jurisdição, nesse sentido,
é fundamental desenvolver um conhecimento jurídico com vistas
a oferecer a compreensão das formas alternativas de soluções de
conflitos e do Direito Civil Constitucional. O que se espera é que
o estudo seja útil para tornar possível a efetivação da resolução
alternativa dos conflitos.
Observa-se que a aplicação da conciliação e da mediação
está prevista na resolução 125, 29 de novembro de 2010 do Conselho Nacional de Justiça e no Novo Código de Processo Civil. Essa
aplicação visa a eficiência operacional, o acesso à Justiça, o empoderamento das partes e a responsabilidade social.
Com fundamento no Direito Civil Constitucional Humanizado, a priori, é interessante que antes de buscar a solução do
conflito através da jurisdição as partes façam 2 (duas) perguntas e
aplique-as, sendo elas:
✓✓ O conflito pode ser resolvido pelas próprias partes através
do acordo mútuo?
✓✓ O conflito pode ser resolvido pelos métodos alternativos?
Se as respostas dessas duas perguntas forem “não”, então,
é necessário buscar o Poder Judiciário para resolver o conflito de
interesse através da sentença judicial feita pelo juiz natural.
A justificativa funda-se na importância do tema para a sociedade atual, pois as formas alternativas de soluções de conflitos (arbitragem, conciliação, mediação e negociação) podem ser
utilizadas para gerar uma consciência social da população, uma
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Sumário
137
pacificação social, a diminuição do número de processos no Poder
Judiciário, o empoderamento das partes e a solução da lide de forma rápida e menos burocrática (simples).
Na atualidade, dados do Conselho Nacional de Justiça11,
o acesso à justiça está em crise pelo Poder Judiciário, visto que
em 2013 “tramitaram aproximadamente 95,14 milhões de processos”, desse valor, 70, por cento está congestionado. O Conselho
Nacional de Justiça constatou que houve um crescimento de 3,4
por cento do número de processo comparado com o ano de 2012.
O valor total gasto com o Poder Judiciário no ano de 2013 foi de
aproximadamente 61,6 bilhões de reais com um crescimento de
1,5 por cento em relação ao ano de 2012. Esse valor gasto é equivalente a 1,3 por cento do Produto Interno Bruto nacional. Cada
habitante no Brasil gastou em 2013 com o Poder Judiciário 306 reais e 35 centavos. Dessa forma, deve haver uma mudança cultural
para com o acesso à justiça por meio da Jurisdição, pois esse meio
de acesso à justiça é burocrático, é lento, é oneroso e consequentemente ineficaz. Nesse sentido, é interessante o estudo teórico e
prático sobre as formas alternativas de soluções de conflitos interesses para com o acesso à justiça.
O texto é estruturado da seguinte forma: DO DIREITO CIVIL
HUMANIZADO que desenvolve sobre a origem, a definição, os objetivos e a atual classificação do respectivo Direito; DA EDUCAÇÃO
EM FORMAS ALTERNATIVAS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS que dispõe sobre a educação em arbitragem, em conciliação, em mediação e em negociação; DA INTRODUÇÃO ÀS FORMAS DE SOLUÇÕES
DE CONFLITOS que estabelece de forma breve sobre a autotutela, a
jurisdição, a arbitragem, a conciliação, a mediação e a negociação;
DA ARBITRAGEM que desenvolve sobre o procedimento arbitral;
DA CONCILIAÇÃO que disciplina sobre o procedimento conciliatório; DA MEDIAÇÂO que trata sobre o procedimento da mediação;
11
Disponível em: ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf.
Disponível em: 13.01.2015
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
DA NEGOCIAÇÃO que descreve sobre o procedimento negocial.
2 DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL HUMANIZADO
Ao começar a estudar sobre o Direito Civil Constitucional
Humanizado e as Formas Alternativas de Resoluções de Conflitos
admitidas por ele, surge a primeira pergunta: o que é o Direito?
Nesse sentido, em linhas gerais, o Direito consiste no conjunto de
normas jurídicas que regulam a conduta humana para a vida harmônica em sociedade.
O Direito sofre modificação ao longo do tempo, devido ao
processo histórico, cultural, político, educacional, econômico, financeiro, enfim, das necessidades sociais. Nesse caso, constata-se
que o direito é mutável, pois ele acompanha o desenvolvimento
da sociedade e esta se beneficia com o progresso do Direito. Esse
benefício acontece, por exemplo, com a inclusão social de pessoas
que foram historicamente prejudicadas pela coletividade dominante.
Conceituando a Ciência do Direito, o jurista Rizzatto Nunes
(2009, p. 49) alude que: “é uma ciência de investigação de condutas que têm em vista um ‘dever-ser’ jurídico, isto é, a Ciência do Direito investiga e estuda as normas jurídicas. Estas prescrevem aos
indivíduos certas regras de conduta que devem ser obedecidas”.
A Ciência do Direito ou Ciências Jurídicas consiste no estudo das normas jurídicas e dos aspectos que preceituam o comportamento do indivíduo para a vida na sociedade. São exemplos de
normas jurídicas: a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988, o Código Civil de 2002, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, o
Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Cidade, o Código de
Processo Civil, a Lei da Arbitragem, o Código Penal, a Lei de Diretri-
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Sumário
139
zes e Bases da Educação Nacional, entre outras. Há outros aspectos que preceituam o comportamento humano que são: os costumes, as doutrinas, as jurisprudências, as súmulas, entre outros.
Ao estudar a Ciência do Direito é interessante que se faça
uma pesquisa e uma analise sistemática dos Princípios do Direito
Constitucional Humanizado, sendo eles: dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, fraternidade, razoabilidade, proporcionalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa,
eficiência, motivação, publicidade, legalidade, honestidade, função social, responsabilidade social; desenvolvimento sustentável,
cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, solução pacifica dos conflitos, defesa da paz, imparcialidade, autonomia de vontade, segurança jurídica, entre outros.
Segundo Fiuza (2010, p. 1):
Se o Direito é fator de adaptação social, surgido da
necessidade de ordem, justiça e segurança, caso a
natureza humana atingisse nível supremo de perfeição, sem dúvida alguma o Direito tenderia a desaparecer.
Em poucas palavras, o Direito não corresponde às
necessidades individuais de cada pessoa. Corresponde sim a uma tendência da coletividade de paz,
ordem e bem comum.
O Direito enquanto fator de adaptação social surge da necessidade de ordem, de justiça e de segurança da coletividade
para que as pessoas convivam em paz e harmonia. Ele (Direito)
acompanha as mudanças sociais em consonância com a realidade
dos povos, sendo fundamental para a convivência pacífica da coletividade, para a ordem e bem comum, assim, o cidadão expressa no convívio social o seu lado humano e solidário. Um exemplo
de acompanhamento da norma jurídica a sociedade é a chamada
mutação constitucional que visa à mudança do sentido informa de
um dispositivo constitucional com vista na adequação humaniza-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
da dele com a sociedade atual.
A ordem jurídica brasileira deve assegurar, por exemplo, o
Direito Civil Constitucional Humanizado ao acesso à justiça pela
via alternativa no Estado Democrático de Direito, sendo esse acesso à justiça um Direito Fundamental. Dessa forma, a Constituição
Cidadã é a Norma Maior do ordenamento jurídico na qual estabelece normas e princípios que visam à efetividade dos Direito Fundamentais.
A efetividade do Direito Civil Constitucional Humanizado só
pode acontecer se os cidadãos entender e valorizar, a priori, o conceito de Direito Civil Constitucional Humanizado para que, a posteriori, aconteça a aplicação da Norma Jurídica ao caso concreto
com vista na efetividade normativa. Esse caminho teórico-prático
é o que deve ser seguido pelo cientista jurídico.
Nader (2006, p. 74) expressa o seguinte:
O conceito do Direito é de suma importância não
apenas para a teoria, mas também para as atividades
práticas, que envolvem a interpretação das regras
jurídicas e sua aplicação aos casos concretos. O conceito é um valioso instrumento do raciocínio jurídico.
Enquanto em outras áreas do saber o conceito da
ciência não é essencial às práticas correspondentes,
ao cultor do Direito assume caráter fundamental.
Quando o jurista articula um processo argumentativo recorre, necessariamente, a alguns paradigmas e
o principal deles é o conceito do Direito. Diante de certas questões o jurista deve buscar no próprio conceito de Jus o grande referencial que lhe proporcionará
o encaminhamento das soluções buscadas.
Considera-se que o Direito é um instrumento que proporciona uma segurança jurídica na condução de soluções práticas.
Saber sobre a lógica do Direito Civil Constitucional Humanizado é
interessante e fundamental para a racionalidade jurídica, consequentemente, para que os profissionais da área desenvolvam os
Capa
Sumário
141
entendimentos, os argumentos, as interpretações e os apliquem
com segurança no contexto jurídico.
Diante desse contexto, surge o segundo questionamento:
quais os objetivos do Direito Civil Constitucional Humanizado?
Os objetivos principais do Direito Civil Constitucional Humanizado são: o objetivo ideal que é o da justiça; os objetivos reais, sendo eles, manter a paz, a ordem e a harmonia da sociedade;
o objetivo inclusivo que é a inclusão social das “minorias” (vulnerável e hipossuficiente) e a consequência desses objetivos (ideal,
reais e inclusivo) faz surgir o de garantir a coexistência de todos
os seres humanos, ou seja, um convívio social harmonioso, sendo,
para tanto, imprescindível a educação para a civilidade.
Em outras palavras, o objetivo primordial é promover, através do Estado, a efetivação do Direito Civil Constitucional Humanizado de todos (princípio da liberdade), entre todos (princípio da
igualdade), com todos (princípio da fraternidade). Por exemplo, os
seres humanos são livres parar fazer o que desejar com vista no
princípio da autonomia de vontade previsto no artigo 5º, inciso II,
da CFRB/88, porém essa liberdade é relativizada, pois estabelece
limites (proteção da dignidade da pessoa humana) com vista da
não violação de um bem jurídico de outrem.
O direito à liberdade, o direito à igualdade, o direito à fraternidade, o direito à inclusão social, o direito ao desenvolvimento
sustentável, o direito à paz social, assim como, o direito à autonomia de vontade são exemplos de Direito Civil Constitucional Humanizado, pois há a proteção de dispositivos no Código Civil de
2002, na Constituição Cidadã de 1988 e na Declaração Universal
dos Direitos Humanos de 1948.
O Direito vem se tornando cada vez mais escrito, codificado, e o principal motivo está sendo o fortalecimento do Estado. As
regras jurídicas precisam representar segurança jurídica, de modo
que o representante do povo (Poder Legislativo) estabeleça leis de
acordo com a sociedade vigente. Essas leis devem respeitar os Di-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
reitos Humanos, o Direito Constitucional e o Direito Civil.
As Leis devem ser interpretadas de forma sistemática, pois
o Direito é um conjunto de normas jurídicas que visa fazer com que
a justiça social prevaleça, por exemplo, as normas jurídicas “Civis-Constitucionais-Humanas” são normas de caráter essencial para
que a justiça social prepondere perante toda a sociedade.
Ressalva-se que a doutrina estabelece algumas Divisões didáticas e pedagógicas do Direito, por exemplo, o Direito é dividido
em Direito Público e Direito Privado (divisão clássica). Esse entendimento denominado de clássico. Já o entendimento moderno
do Direito consiste na união sistemática do Direito Civil, do Direito
Constitucional e dos Direitos Humanos em que forma o Direito “Civil Constitucional Humanizado”.
O Direito Civil Constitucional Humanizado é o Direito doutrinário (entendimento de doutrinadores modernos) em que há uma
relação sistemática do Direito Humano que tem por objeto o estudo
da Declaração Universal dos Direitos Humanos (por exemplo), com
o Direito Constitucional que tem por objeto principal de estudo a
Constituição Federal 1988 com o Direito Civil que tem como objeto
principal de estudo o Código Civil de 2002. Por exemplo: o código
civil de 2002 deve ser interpretado à luz da Constituição Federal de
1988 e à luz da Declaração Universal dos Direito Humanos.
Para Tartuce (2014, p. 38):
O Direito Civil Constitucional, como mudança de
postura, representa uma atitude bem pensada, que
tem contribuído para a evolução do pensamento
privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sábio diálogo entre os juristas das
mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de
que há uma inversão da forma de interação dos dois
ramos do direito – o público e o privado -, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal
em substituição do que se costumava fazer, insto é,
exatamente o inverso.
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Sumário
143
Nesse sentido, o Direito Civil Constitucional representa
uma mudança (inovação) de pensamento jurídico, ou melhor, é
uma evolução do pensamento jurídico em que há a unicidade do
Direito no qual o Código Civil é interpretado sistematicamente de
acordo com a Constituição Federal. Isso só não acontece com o
Código Civil, mas com o Código Penal, com o Código de Defesa do
Consumidor, com o Código de Processo Civil, com o Código Tributário Nacional, com o Código de Trânsito Nacional, com a Legislação Trabalhista e assim por diante.
Tartuce (2014, p. 38) ressalva que:
Deve ser feita a ressalva que, por tal interação, o Direito Civil não deixará de ser Direito Civil, e o Direito
Constitucional não deixará de ser Direito Constitucional. O Direito Civil Constitucional nada mais é do
que um novo caminho metodológico, que procura
analisar os institutos privados a partir da Constituição, e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil e da legislação infraconstitucional, em uma análise em mão dupla.
O que se pretende defender é um ponto de vista de harmo-
nia entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, pois se sabe que
tanto o primeiro como o segundo são ramos de direito dotado de
autonomia. Essa autonomia dos ramos do Direito se faz no campo
acadêmico, pois como se sabe o Direito é uno e é indivisível. Nesse
sentido, ao analisar o Código Civil o cientista jurídico deve analisar
também a Constituição Federal.
Lenza (2014, p. 64) disciplina que:
Sob essa perspectiva, especialmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento
da República Federativa do Brasil e princípio-matriz
de todos os direitos fundamentais (art.1.º, da CF/88),
parece mais adequado, então, falar em um direito
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
civil-constitucional, estudando o direito civil à luz
das regras constitucionais e podendo, inclusive, em
muitos casos, reconhecer a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas [...].
Nessa perspectiva, em linhas gerais, com base no princípio
da dignidade da pessoa humana pode ser estabelecida uma evolução histórica: primeiro surgiu o estudo do Direito Civil Patrimonial,
segundo o estudo do Direito Civil Constitucional e terceiro o estudo do “Direito Civil Constitucional Humanizado”.
O Direito Civil Constitucional tem como origem o Direito
Comparado Italiano. Só que o estudo do Direito Civil Constitucional no Brasil é dotado de autonomia em que está sendo pesquisado por diversos pesquisadores jurídicos no Brasil. A Humanização
do Direito Civil Constitucional (Direito Civil Constitucional à luz
dos Direitos Humanos) está sendo pesquisado com intensidade e
expansão no Projeto de Pesquisa do IDCC – Instituto de Direito Civil
Constitucional da UFPB.
Em síntese, a teoria do “Direito Civil Constitucional Humanizado” é definida como sendo a “evolução” do Direito Civil Constitucional à luz dos Direitos Humanos em que há a valorização da
proteção humana, há proteção das minorias e há proteção das
minorias hipossuficientes (dos excluídos socialmente). Em linhas,
gerais, a finalidade do Direito Civil Constitucional Humanizado
consiste em resgatar a ética dos Direitos Humanos, ou seja, a finalidade da humanização do Direito Civil Constitucional é proporcionar a inclusão dos cidadãos excluídos socialmente.
3 DA EDUCAÇÃO EM FORMA ALTERNATIVA
DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS
A Educação consiste no processo contínuo, sistemático, didático e pedagógico no qual são ensinados, aprendidos, pondera-
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Sumário
145
dos e refletidos os valores da vida para que a convivência harmônica e o desenvolvimento da sociedade prevaleçam. O artigo 205 da
Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de
1988, prevê que: “a educação, direito de todos e dever do Estado
e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Os objetivos da Educação, conforme o mencionado dispositivo (art. 205) da Constituição Federal são o pleno desenvolvimento
da pessoa, o preparo das pessoas para o exercício da cidadania e a
qualificação dos indivíduos para o trabalho.
A Educação em Direito ou também denominada de Educação
Jurídica é a que visa ensinar, estudar e preparar os cidadãos para que
possam conhecer, exercer e cobrar os seus direitos e deveres. Segundo Nader (2006, p. 57), expondo a respeito da educação e das leis:
O progresso de uma sociedade pressupõe o seu desenvolvimento no campo técnico e cientifico. É através da educação que se pode dotar o corpo social de
um status intelectual, capaz de promover a superação de seus principais problemas. Para assegurar o
conhecimento, a cultura, a pesquisa, o Estado utiliza-se de numerosas leis que organizam a educação
em todos os seus níveis.
Os desenvolvimentos da educação e da ciência estão intrinsecamente ligados ao desenvolvimento da sociedade. Se a educação e a ciência são de qualidade, a sociedade é desenvolvida. O
estudo do Direito é importante em todos os níveis da educação,
pois ele (Direito) consiste no conjunto de normas e princípios que
visa manter a paz, a justiça e a harmonia em meio a toda sociedade. Todos devem conhecer as regras de condutas e as regras de
valores estabelecidas pelo Direito Civil Constitucional Humanizado para que se possa por em prática os comportamentos legais.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Ressalva que as condutas realizadas de acordo com a moral e com
a ética é uma conduta digna. Nesse sentido, condutas dignas são
condutas em consonância com o Direito Civil Constitucional Humanizado.
Todos têm direito ao acesso à justiça, conforme o artigo
quinto, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988 no qual descreve que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário
lesão ou ameaça a direito” e todos têm o dever de respeitar as decisões das autoridades competentes. Lembrando que as decisões
podem ser recorridas desde que, elas não transitaram em julgado.
O objetivo ideal do Direito Civil Constitucional Humanizado
é a Justiça, sendo que esta (justiça) só será alcançada através da
análise e aplicação do Direito ao caso concreto, materializando,
desse modo, a solução justa do conflito. Para que a justiça seja feita é necessário que haja a efetividade de todos os Direitos Fundamentais, as pessoas devem viver no Estado Democrático e o exercício da cidadania deve ser para todos.
A educação em Direito (gênero) visa disciplinar o estudo
das normas jurídicas que regulamentam a conduta humana. Os
métodos alternativos de solução de conflito também são estudados no Direito Civil, por exemplo, fundamentado no princípio da
autonomia de vontade em que as partes escolhem a forma de resolução; no Direito Processo Civil, por exemplo, em que estabelece
os tipos de instrumentalização das formas de resolução de conflito; no Direito Constitucional, por exemplo, no direito ao acesso a
justiça e nos Direitos Humanos, por exemplo, no direito ao julgamento justo à luz dos Direitos Humanos. Em regra (visão clássica),
é por meio da Jurisdição que a solução da controvérsia jurídica é
feita no Direito Brasileiro, mas o referido Direito autoriza as formas
alternativas (Arbitragem, Conciliação, Mediação e Negociação) de
resoluções de conflitos de interesses.
Estudar sobre as formas alternativas de soluções de conflitos é relevante devido ao fato exemplificativo de que o nosso Po-
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Sumário
147
der Judiciário está com muitos processos e a consequência disso
é esse Poder não ter a capacidade de resolver todos os conflitos
pela jurisdição em tempo razoável. A resolução do conflito pela via
judicial (jurisdição) demora demais e, às vezes, até é injusta pela
rapidez dos despachos sem total atenção da autoridade competente, esses casos são consequências da grande quantidade da demanda (processo). As formas alternativas de soluções de conflitos
não são feitas pelo Poder Judiciário, pois em regra a resolução de
conflito pela via judicial é realizada através da jurisdição. É apropriado lembrar que isso está mudando, pois o Poder Judiciário já
está realizado a conciliação e a mediação como métodos de resolução de conflito. Dessa forma, em breve as formas alternativas
vão ser tratadas como “formas complementares” à jurisdição do
Poder Judiciário.
Em relação à educação em formas alternativas de soluções
de conflitos há um projeto de extensão e pesquisa na UFPB denominado de MEDIAC que estuda sobre a Mediação, há na UFPB uma
disciplina curricular do curso de Direito que estuda sobre a Arbitragem e a Mediação, há uma Pós-graduação no Unipê que estuda a
Arbitragem e a Mediação, há o estudo teórico e prático no Centro
de Conciliação e Mediação da UFCG campus Sousa que é parceira
do Tribunal de Justiça do Estado que trata sobre a conciliação e
mediação; entre outros.
O Poder Judiciário autoriza que a sociedade (autonomia
de vontade) faça a deliberação de suas controvérsias através de
procedimentos mais simples (menos burocráticos) e rápidos que
são eles: a Arbitragem; a Conciliação; a Mediação; e a Negociação.
Um exemplo didático que é bem parecido com a realidade jurídica
brasileira é que um processo tramitando no Poder Judiciário no
procedimento ordinário demora em média 6 anos para ser concluído. Já com adoção de uma das formas alternativas de soluções
de conflitos esse intervalo de tempo poderá ser reduzido, durando
cerca de 6 meses.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
O estudo das formas alternativas de soluções de conflitos
de interesses é necessário, visto que as pessoas podem entrar
numa controvérsia a qualquer tempo e os métodos de resoluções
alternativos ou também chamados de extrajudiciais são mais simples e rápidos que o feito propriamente pelo Poder Judiciário.
Na atualidade, grandes partes das divergências estão sendo resolvidas perante o juiz de direito ou juiz federal (através do
exercício da jurisdição) e isso acaba gerando uma grande quantidade de processos e consequentemente deixa o Poder Judiciário
congestionado. Vale ressaltar que para desafogar os processos
se pode utilizar da Arbitragem, da Conciliação, da Mediação e da
Negociação que são métodos alternativos que têm por finalidade
retornar o equilíbrio social.
O estudo dos métodos alternativos de soluções de conflitos
é imprescindível para a sociedade na qual deve ser uma disciplina
autônoma no saber jurídico para que com isso a própria sociedade realize a solução legal e legitima de determinados conflitos. Há
Universidades que já possui em sua grade curricular a disciplina
autônoma “Arbitragem e Mediação”. Porém “é” interessante que
os representantes do povo (agentes políticos) criem uma lei de
acordo com o Direito Civil Constitucional Humanizado na qual
determinasse a obrigatoriedade do estudo teórico e prático das
formas alternativas de soluções de conflitos nas Universidades de
Direito.
A Disciplina de “forma alternativa de solução de conflito”
“deve” ser obrigatória nas grades curriculares do curso de Direito e
também no ensino básico com vista no estudo aprofundado e sistemático dos métodos alternativos para que a própria sociedade
consiga resolver certos conflitos.
A consequência da utilização das formas alternativas de
soluções de conflitos é uma transformação, sem precedentes, no
âmbito do Poder Judiciário, pois diminuiria o número de processos esperando solução, quando muitos destes podem ser resolvi-
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Sumário
149
dos pacificamente no âmbito dos próprios interessados. É óbvio
que o que se pretende ao dizer isto não é afastar o Poder Judiciário
de sua prerrogativa de aplicar o Direito ao caso concreto, mas beneficiar a todos, magistrados e sociedade, com decisões justas e
importantes.
As instituições públicas e privadas podem criar Centro de
Formas Alternativas de Soluções de Conflitos. Todavia “é” significativo e constitucional que em todos os Estados e no Distrito Federal possuam um “Tribunal em Formas Alternativas de Soluções de
Conflitos” para que com isso as divergências das pessoas fossem
resolvidas com celeridade e simplicidade.
4 DA INTRODUÇÃO ÀS FORMAS DE
SOLUÇÕES DE CONFLITOS
O conflito de interesse, a lide ou também conhecido como
litígio consiste na pretensão do autor e na resistência do réu, ou
seja, na aspiração de uma parte - autor - em ganhar a causa com
base nos fundamentos e pedidos admitidos pelo Direito e no anseio (resistência) da outra parte - réu - em anular, inibir ou em melhor desenvolver os fundamentos e os pedidos para que o autor
não obtenha êxito na causa.
O conflito surge por ações ou omissões humanas nas quais
se viola (prática de um ato ilícito disciplinado no artigo 187 do
CC/02) um bem jurídico protegido pelo Estado e de alguma forma
causar algum dano à outra pessoa, podendo esse dano ser patrimonial, moral ou estético. Esses tipos de danos podem ser analisados separadamente ou conjuntamente vai depender da conduta
humana.
São exemplos de ações ou omissões humanas que causam
danos a outrem: falta de diálogo; culpar as outras pessoas sem
pensar nas consequências; falar mal ou de modo violento; agredir
outra pessoa; não saber escutar; afirmar algo sem pensar; “fofo-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
car” de outras pessoas; não saber dizer a conjunção negativa (não)
no momento que for necessário; falta de tolerância; problemas
no relacionamento onde não acontece o diálogo; decepção; mentiras; falta de confiança; ambição; inveja; abandono; danificar o
patrimônio do outro; causar prejuízo financeiro ao outro; falta de
Deus nos pensamentos e nas práticas dos atos; entre outros.
No Estado Democrático de Direito onde as condutas humanas estão prevista no ordenamento jurídico pode ser mencionado
que determinada ação ou omissão do ser humano pode gerar consequências jurídicas que são legais ou ilegais. As consequências
legais são a que o Direito autoriza ou não proíbe, já as consequências jurídicas ilegais (ato ilícito) são a que o Direito proíbe no caso
do Direito Civil Constitucional Humanizado, por exemplo, estabelecendo a sua ilicitude ou ilegitimidade.
Há três tipos ou espécies de métodos de soluções de conflitos, sendo eles: método em que as próprias partes são quem escolhem (autonomia de vontade), sendo uma faculdade dos interessados, que é conhecido como Formas Alternativas de soluções
de conflitos; método que em regra é proibido pelo Direito Civil
Constitucional Humanizado, só sendo admitido em alguns casos
específicos (exceções) que é a Autodefesa ou Autotutela, sendo conhecido como justiça com as próprias mãos; método Jurisdicional
em que é a regra do nosso ordenamento jurídico brasileiro na qual
o conflito é decidido através da sentença do Estado-juiz.
Segundo Wambier e Talamini (2010, p. 93):
Os métodos extrajudiciais de solução de conflitos,
também denominados pela doutrina de equivalentes jurisdicionais, são aqueles, como o próprio
nome denuncia, que prescindem da atuação do Poder Judiciário para a que o litígio entre as partes seja
dirimido.
Os métodos extrajudiciais, alternativos, também conheci-
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Sumário
151
dos como equivalentes jurisdicionais de solução de conflito, não
são feitos diretamente pelo Poder Judiciário, mas esse Poder possibilita (autoriza) os exercícios dos métodos com o intuito da solução extrajudicial da controvérsia jurídica. Os métodos alternativos
(arbitragem, mediação e conciliação), em regra, são realizados por
particulares neutros, capazes e confiáveis nos quais se configuram
como negócio jurídico em que as partes juntamente com o terceiro imparcial devem estabelecer as regras aplicáveis na solução do
conflito, desde que se respeite o Direito Civil Constitucional Humanizado. Já a Negociação é um pouco diferente, pois é o método
extrajudicial em que as próprias partes são quem resolvem a divergência.
Em relação a autotutela Wambier e Talamini (2010, p. 93)
aludem que:
Este método produz uma solução egoísta e parcial
do conflito, uma vez que essa é resultante tão somente da imposição da vontade de apenas um dos
litigantes. Justamente por isso normalmente não é
permitida nos ordenamentos jurídicos civilizados;
pelo contrário, muitas vezes é tipificada como crime, como ocorre no Brasil, por exemplo.
A autotutela é o método que prevalece a vontade de uma
das partes (não respeita a relação jurídica horizontal do Direito
Civil nem a igualdade do Direito Constitucional), geralmente a do
mais forte. Por esse fato é que é um método de solução de conflito
egoísta e parcial. O Direito Civil Constitucional Humanizado proíbe
a autodefesa, só que essa proibição é relativa. Dessa forma, esse
método pode ser aplicado como exceção em alguns casos previsto
na legislação, sendo eles: a legítima defesa da propriedade (art.
1.210, parágrafo 1ª, CC-02), o direito de cortar ramos, galhos e raízes de árvores limítrofes que ultrapassem os limites do terreno
(art. 1.283, CC-02); o penhor legal (art. 1.434, CC-02); a prisão em
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
flagrante (art. 301, CPP), entre outras poucas exceções.
A jurisdição consiste no meio constitucionalmente “obrigatório” para resolver o conflito de interesses. Se houver um conflito
as partes “devem” procurar o Poder Judiciário para que o juiz, em
regra, aplique o Direito ao caso concreto com vista à solução do
conflito. Etimologicamente a palavra Jurisdição é de origem latina
que significa “dizer o Direito”, dessa forma, o juiz irá “dizer o direito” por meio da sentença judicial.
Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p. 150) mencionam que
a jurisdição:
É uma função do Estado e mesmo monopólio estatal, já foi dito: resta agora, a propósito, dizer que a
jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal,
conceituando como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa
o encargo que têm os órgãos estatais de promover
a pacificação de conflitos interindividuais, mediante
a realização do direito justo e através do processo. E
como atividade ela é o complexo de atos do juiz no
processo, exercendo o poder e cumprindo a função
que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade
somente transparecem legitimamente através do
processo devidamente estruturado (devido processo legal).
As três palavras interessantes para saber o que é jurisdição,
são: “poder”, “função” e “atividade”. O “poder” é pelo fato de a jurisdição emanar da soberania do Estado Constitucional onde é o
instrumento competente para resolver os litígios apresentados ao
Poder Judiciário. A “função” é porque é obrigação do Estado-juiz
em realizar a jurisdição na qual o juiz tem por atribuição jurídica
e social a de analisar e de decidir sobre o conflito apresentado. É
“atividade” pelo motivo de que a jurisdição é a instrumentalização
de uma sequência jurídica (legal) e lógica de atos processuais.
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Sumário
153
5 DA ARBITRAGEM
Conforme Garcez (2007, p. 16): “arbitragens historicamente
famosas desse tipo foram as Anglo-Americanas, realizadas entre
o Reino Unido e os Estado Unidos, após este ter declarado sua independência, em 1776, servindo para solucionar conflitos comerciais entre ambas as nações”. Os Estados Unidos eram colônia do
Reino Unido, porém, através de muita luta, em 1776, aquele país
conseguiu a tão sonhada e conquistada independência e para solucionar o conflito em relação ao comércio das Nações citadas foi
realizado o método da Arbitragem.
A arbitragem foi utilizada para separar o território que hoje
é o Brasil, em 1494. Essa separação foi realizada pelo conhecido
Tratado de Tordesilhas, segundo o qual Portugal ficou com o lado
leste e a Espanha ficou com o lado oeste, sendo árbitro imparcial
o papa Alexandre VI.
A Lei que rege a Arbitragem na sociedade brasileira atual
é a Lei de número 9.307, de 23 de setembro de 1996, conhecida
como Lei da Arbitragem brasileira, sendo composta por 44 artigos.
Quanto à constitucionalidade da Arbitragem Wambier e Talamini
(2010, p. 94) expõem: “a arbitragem, por se tratar de opção que
deva ser feita necessária e exclusivamente pelos próprios interessados, em casos hoje previstos na lei, não implica violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5ª, XXXV, da
CF- 1988)”.
O procedimento da arbitragem é um método constitucional de solução alternativo que os particulares são quem procuram
a realização dele, ou seja, as partes são quem buscam resolver os
seus conflitos de direito patrimonial disponível através do juiz arbitral imparcial, confiável e capaz. A solução pela arbitragem não
ocasiona na proibição da resolução pelo Poder Judiciário, pois as
partes são quem escolhem se querem resolver o conflito de direito
patrimonial disponível pela Arbitragem ou pela Jurisdição (Poder
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Judiciário).
O Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a Lei da
Arbitragem em 12 de dezembro de 2001 no qual entendeu que a referida lei é um avanço na regulamentação da referida matéria. Em
geral, diante da possibilidade de escolha que as partes possuem
para resolver o seu conflito de interesse de direito patrimonial disponível é que a Arbitragem é constitucional.
Carmona (2009, p. 14) conceitua a arbitragem como sendo:
“uma técnica para solução de controvérsias através
da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção, sem intervenção
do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial”.
A arbitragem pode ser chamada de técnica, método ou procedimento de solução de controvérsias jurídicas, na qual as partes
escolhem uma pessoa - particular ou uma convenção (instituição)
privada - para solucionar a questão jurídica apresentada por elas
que deve ser de direito patrimonial disponível.
A arbitragem tem natureza de uma forma “heterocompositiva” particular de resolução de conflitos, na qual um terceiro capaz, confiável e imparcial é selecionado pelas partes para decidir
o conflito de direito patrimonial disponível através da sentença arbitral que produz os mesmos efeitos da sentença realizada por um
juiz natural do Poder Judiciário.
Se for levada em conta a natureza arbitral pelo fato de a arbitragem ser um meio privado de solução de conflitos, a natureza
é privada (exemplificado analogicamente na teoria clássica como
sendo do Direito Civil); já, se partir da idéia de que a arbitragem
funda-se na prestação da solução do conflito de interesses que é
um serviço público, é de natureza pública (exemplificado analogicamente na teoria clássica como sendo do Direito Constitucional).
Capa
Sumário
155
Levando em conta a ponderação racional e jurídica, a natureza arbitral quanto ao meio é privado, pois é feita por um particular (Direito Civil); agora quanto à prestação do serviço público é
pública (Direito Constitucional), porque a solução do conflito tem
como caráter ser de função pública. Nesses termos, é estabelecido
uma Natureza Arbitral “Mista” (Direito Civil Constitucional Humanizado), desde que o entendimento a respeito do caráter privado e
público seja alcançado.
Rocha (2007, p. 88) descrevendo sobre elementos essenciais da arbitragem menciona que:
A definição supra permite deduzir os quatro elementos essenciais da arbitragem, a saber:
a arbitragem é forma de exercício da função jurisdicional do Estado por árbitros privados. Por outras
palavras, a arbitragem é um sistema privado de resolução de litígios com o mesmo valor do judiciário,
que é o sistema estatal de resolução de conflitos;
a escolha do árbitro ou árbitros pela partes, que é
seu traço mais saliente, pois serve para distingui-la
do sistema judiciário, em que o juiz é imposto às
partes pelo Estado;
o tipo de conflito que pode ser decidido pela arbitragem, isto é, os conflitos sobre direitos patrimoniais
disponíveis;
os efeitos jurídicos produzidos pelas decisões dos
árbitros, iguais aos das sentenças dos órgãos do Poder Judiciário, o que significa dizer que os efeitos da
sentença arbitral são protegidos pela coisa julgada,
que torna definitivos.
Os elementos essenciais da arbitragem estão de acordo
com os fundamentos do Direito Civil Constitucional Humanizado,
pois: é um método alternativo e privado de solução de conflito; a
escolha do juiz arbitral depende da vontade das partes; o tipo de
conflito resolvido pela arbitragem é o direito patrimonial disponível; os efeitos da sentença arbitral equiparam aos efeitos do juiz de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
direito, fazendo coisa julgada formal e material, na qual não cabe
recurso.
O objetivo da arbitragem é a solução do conflito através do
terceiro imparcial na qual as partes de vontade própria aceitam
essa técnica para resolver os litígios de direito patrimonial disponível em que a justiça social deve ser alcançada. As partes escolhem
o juiz arbitral ou os árbitros em número impar, devido ao fato de
ser mais prático, ágil e fácil, mas eles também podem escolher em
número par. O juiz árbitro pode pedir as partes um adiantamento,
para fins de despesas e diligencia se ele julgar necessário.
Para firmar o Compromisso da Arbitragem deve haver no
documento de intimação das partes: o dia, a hora e o local da
audiência. Se no caso da arbitragem uma das partes se recusar
a fazê-la, a outra parte poderá requerer ao Poder Judiciário uma
audiência especial para fazer a conciliação, se está não for aceita o
juiz de direito poderá indicar o procedimento arbitral. A ausência
do autor, sem justo motivo, perante o juiz na audiência especial
implica na extinção do processo sem resolução do mérito; já em
caso de ausência do réu, o juiz ouvirá o autor e poderá indicar o
procedimento arbitral.
O artigo 18 da Lei da Arbitragem determina que: “o árbitro
é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita
a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Em relação à
aplicação da sentença o árbitro tem autonomia e deve aplicar o
Direito ao caso concreto solucionando os conflitos de direito patrimonial disponível. A sentença arbitral será feita no prazo estabelecido entre as parte no Contrato Arbitral e na Cláusula Compromissória, caso não exista prazo, o normal é o lapso temporal de 6
meses.
A decisão será proferida (feita) por escrito e será dada uma
cópia a cada uma das partes. Os requisitos obrigatórios da sentença são: relatório; fundamento da decisão; dispositivo, data e local
da sentença. Nesta (sentença) ainda vai ter o valor dos custos com
Capa
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157
o procedimento arbitral. Caso a parte queira anular a sentença,
ela somente poderá fazer isso no prazo de até 90 dias contados da
sentença proferida pelo juiz arbitral.
A sentença arbitral é nula se for: nulo o acordo; decorreu de
quem não podia ser arbitro; não tiver os requisitos do artigo vinte e seis da Lei da Arbitragem (requisitos obrigatórios na sentença: relatório; fundamentos da decisão; o dispositivo com prazos
e questão abordada, e a data e lugar da sentença); for articulada
fora dos limites da Convenção de Arbitragem; não decidir toda a
lide contida no procedimento da Arbitragem; se for confirmado
que foi adulterada; se foi feito fora do prazo determinado; e se não
for respeitado os princípios do artigo 21 da Lei da Arbitragem (a
Arbitragem deverá corresponder ao que foi acordado entre as partes, as regras estabelecidas no contrato e deverão ser respeitados
os princípios constitucionais do contraditório, da igualdade das
partes, da imparcialidade do juiz arbitral e da franca certificação e
ainda são facultado às partes a presença de um advogado). Esses
mencionados dispositivos estão previstos nos respectivos artigos
32, 26 e 21 da Lei de número 9.307 de 1996, denominada de Lei da
Arbitragem Brasileira.
No âmbito internacional, conforme o artigo 34 da Lei da
Arbitragem: “a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou
executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência,
estritamente de acordo com os termos desta lei”. A sentença arbitral estrangeira é aquela que é feita fora do território nacional,
devendo respeitar: as Leis Nacionais; os Tratados Internacionais
e a Legislação do outro país. Para que a sentença internacional
de arbitragem tenha validade no território nacional é necessária
à homologação do Supremo Tribunal de Justiça – STJ, conforme
o artigo 105, inciso I, alínea i, da Constituição Federal de 1988 que
determina:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça:
I - processar e julgar, originariamente:
[...]
i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias;
A Lei da Arbitragem estabelece que a homologação de sentença estrangeira deve ser feita pelo Supremo Tribunal Federal
– STF, pois no tempo em que essa Lei foi publicada (1996) quem
homologava era o referido Supremo. Porém com o advento da
Emenda Constitucional 45 de 2004 o texto constitucional foi modificado passando a competência da homologação de sentença
estrangeira ao Supremo Tribunal de Justiça – STJ. No aspecto da
homologação da sentença estrangeira pelo STF a Lei da Arbitragem está ultrapassada. Observa-se que esse dispositivo da Lei da
Arbitragem só será retirado por outra lei.
6 DA CONCILIAÇÃO
Antes de estabelecer o conceito de conciliação é interessante saber o significado da palavra “conciliar”. Segundo Gorczevski (2007, p. 78):
Conciliar significa compor ânimos em diferença.
Supõe um ajuste entre interesses contrapostos; é a
harmonia estabelecida entre duas ou mais pessoas
com posições diferentes. Assim estamos também
ante uma forma autocompositiva de resolução de
conflitos.
A palavra conciliar tem relação com a harmonia de um com
o outro ou também de uns com outros com o objetivo da convivência pacífica em sociedade. As pessoas pensam diferentes, mas
esse pensamento não pode prejudicar o outro. É imprescindível
ponderar as atitudes antes de se fazer algo. É necessária atitude
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Sumário
159
preventiva para que com isso o conflito não aconteça e se no caso
ocorrer à divergência, por motivo excepcional, é necessário ponderação e reflexão para que ele (o conflito) não se agrave.
Segundo Almeida (2011, p. 5) é a “modalidade de solução
das lides por obra dos próprios litigantes, quando um deles, ou
ambos, resolvem dispor do próprio interesse ou de parte dele e,
com isso, põe-se fim ao litígio”. Em aspectos gerais, a conciliação
é uma forma constitucional e alternativa de solução de conflitos
na qual o conciliador imparcial vai auxiliar instigando os indivíduos para acordar o litígio. As partes são quem resolvem o litígio, ou
seja, uma parte ou ambas abrem mão dos seus direitos para que a
lide seja resolvida.
O objetivo principal da conciliação é o acordo das partes na
qual o particular (Conciliação Extrajudicial) vai apenas formalizar
o acordo. O conciliador é a pessoa imparcial que ajuda na solução
do conflito, devendo ter um treinamento específico para que possa acompanhar as partes na solução alternativa do litígio. O papel
do conciliador no auxilio da resolução do conflito é fundamental,
visto que ele (conciliador) deve fazer com que as parte acordem
através de meios indiretos, como, por exemplo: estabelecer sugestão para que as partes pensem na possibilidade do acordo.
São três espécies ou tipo de conciliação: desistência; submissão; ou transação. Todas essas visam ao acordo, mas com características peculiares que as diferenciam. A desistência é o tipo
de conciliação na qual o autor, sujeito ativo da relação procedimental, desiste da causa por determinado motivo legal ou moral.
A submissão é quando o réu, sujeito passivo da relação procedimental, desiste da resistência por certo motivo legal ou moral. A
transação é a espécie da conciliação na qual o autor abdica da
pretensão e o réu desiste da resistência com objetivo de acordar
o conflito.
Observa-se que o Poder Judiciário, sabendo da seriedade
que é o método da conciliação realiza, desde 2006, uma vez por
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ano, a denominada Semana Nacional de Conciliação. Conforme o
site do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, a Semana Nacional de
Conciliação:
Trata-se de campanha, realizada anualmente, que
envolve todos os tribunais brasileiros, os quais selecionam os processos que tenham possibilidade
de acordo e intimam as partes envolvidas para solucionarem o conflito. A medida faz parte da meta
de reduzir o grande estoque de processos na justiça brasileira. (Disponível: http://www.cnj.jus.
br/programas-de-a-a-z/acesso-a-justica/conciliacao/semana-nacional-de-conciliacao. Acesso em
21.01.2015, às 14 horas).
A Semana Nacional de Conciliação é uma campanha concretizada todo ano, com inicio em 2006 na qual abrangem os tribunais de todo o país, sendo escolhidos os processos que pode ser
acordados pelas partes. O objetivo dessa campanha é a pacificação social e a consequente diminuição da quantidade de processo
no Poder Judiciário brasileiro.
Em 2006, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada nos dias 8 a 12 de dezembro, foram: 112.112 audiências designadas; 83.987 audiências realizadas; 46.493 acordos
obtidos; Percentual de sucesso - 55,36%. (Dados coletados no Sistema do Conselho Nacional de Justiça).
Em 2007, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 3 a 8 de dezembro, foram: 303.638 audiências designadas; 227.564 audiências realizadas; 96.492 acordos
obtidos; percentual de sucesso - 42,40%. (Dados consolidados
pelo Conselho Nacional de Justiça).
Em 2008, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 1 a 5 de dezembro, foram: 398.012 audiências marcadas; 305.591 audiências realizadas; 130.848 acordos
efetuados; percentual de sucesso - 42,8%. (Fonte: Conselho Nacio-
Capa
Sumário
161
nal de Justiça).
Em 2009, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 7 a 11 de dezembro, foram: 333.324 audiências marcadas; 260.416 audiências realizadas; 122.943 acordos
efetuados; percentual de sucesso - 47,2%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça)
Em 2010, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 29 de novembro até 3 de dezembro, foram: 439.180 audiência marcadas; 361.945 audiência realizadas;
171.637 acordos efetuados; percentual de sucesso - 47,4%. (Fonte:
Conselho Nacional de Justiça).
Em 2011, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 28 de novembro a 2 de dezembro, foram:
434.479 audiências marcadas; 349.613 audiências realizadas;
168.841 acordos efetuados; percentual de sucesso - 48,3%. (Fonte:
Conselho Nacional de Justiça)
Em 2012, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 07 ao dia 14 de novembro de 2012, foram: 419.031 audiências marcadas; 351.898 audiências realizadas;
175.173 acordos efetuados; percentual de sucesso -49.78%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça)
Em 2013, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 2 a 6 de dezembro, foram: 387.065 audiências marcadas; 350.411 audiências realizadas; 180.795 acordos
efetuados; percentual de sucesso - 51.60%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça)
Em 2014, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 24, 25, 26, 27 e 28 de novembro foram:
337.504 audiências marcadas; 283.719 audiências realizadas;
150.499 acordos efetuados; percentual de sucesso - 53.05%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça)
A Lei da Arbitragem, Lei número 9.307, de 23 de setembro
de 1996, estabelece no artigo 7ª, parágrafos segundo, que:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Art. 7º Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem,
poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se
o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim.
[...]
§ 2º Comparecendo as partes à audiência, o juiz tentará, previamente, a conciliação acerca do litígio.
Não obtendo sucesso, tentará o juiz conduzir as partes à celebração, de comum acordo, do compromisso arbitral.
A Cláusula Compromissória é aquela em que as partes estabelecem no Contrato Arbitral que no caso de futuro conflito, o juiz
arbitral irá solucioná-lo. Caso uma das partes mude de opinião e
não queira mais realizar a Arbitragem a outra parte poderá ir ao
Poder Judiciário e requerer audiência especial para a tentativa da
Conciliação e também da Arbitragem.
Completa-se que o art. 2º, inciso VI, do Código de Ética e
Disciplina da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil estabelece
que:
Art. 2º O advogado, indispensável à administração
da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do
seu Ministério Privado à elevada função pública que
exerce.
Parágrafo único. São deveres do advogado:
[...]
VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios;
O advogado deve estimular o acordo entre as partes na qual
a tentativa da conciliação dos litígios é um dos deveres do advoga-
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Sumário
163
do. O caput, do artigo segundo do Código de Ética e Disciplina da
OAB menciona que o advogado é: defensor do Estado Democrático
de Direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça; da paz
social e o exercício de sua atividade é função pública. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 descreve no artigo
133, caput, que: “o advogado é indispensável à administração da
justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.
Dessa forma, percebe-se que a atividade da advocacia é de
extrema importância para a sociedade, pois o advogado deve tentar a Conciliação e ainda a sua atividade é função pública essencial
na qual visa defender todos os princípios que o Estado democrático de Direito.
O método da conciliação jurídica ou pública está previsto
em vários artigos do Código de Processo Civil, Lei 5.869, de 11 de
janeiro de 1973, dentre eles: art. 277; art. 278; art. 331; art. 447; art.
448; art. 449 entre outros. Já o novo Código de Processo Civil (em
vigor só em 2016) disciplina uma audiência prévia de conciliação e
mediação após a apresentação da petição inicial do autor.
A sociedade deve ser informada de que antes de algum cidadão ir ao Poder Judiciário tente fazer a conciliação, pois no acordo,
dependendo, pode as partes saírem ganhando, agora no processo
judicial uma vai sair ganhando e a outra vai sair perdendo, ou até
mesmo ambas vão saírem inconformadas. Deve-se mudar o paradigma de que a solução dos conflitos só acontece no Poder Judiciário, porque proferir sentença não é mais importante que fazer
acordo, este é mais rápido, menos complexo (menos burocrático),
simplificado e faz com que o Poder Judiciário diminua na quantidade de demanda (processo). Por exemplo: qualquer controvérsia
jurídica, os indivíduos pensam logo no processo, mas é mais viável
fazer um acordo, pois este é mais simples, célere e ainda as partes
obtêm uma pacificação jurídica e social.
Os casos que usam mais a conciliação é a relação jurídica li-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
gada ao Direito do Consumidor, ao Direito Civil e ao Direito do Trabalho. Porém a usualidade depende de outros fatores, por exemplo: a região, o costume, a população, entre outros. As questões
jurídicas do dia-a-dia (que acontece com mais frequência) podem
ser solucionadas através da conciliação, por exemplos: acidente
de trânsito, problemas pessoais, problemas familiares, entre outros. Há quem defenda que no caso de problemas familiares é mais
viável a utilização da mediação.
O Termo da Conciliação auxiliada por um particular imparcial, capaz e confiável tem o mesmo valor da sentença do juiz natural realizada no Poder Judiciário. Nesse caso, após a realização
da conciliação uma das partes pode executar o acordo firmado perante o Poder Judiciário.
7 DA MEDIAÇÃO
Conforme ensinamento de Clovis Gorczevski (2007, p. 80) a
respeito do surgimento e da solução do conflito, alude que:
Quando surge um conflito entre as pessoas, o ideal
é que as mesmas, através da reflexão, da compreensão, da confiança, e do afeto, de uma maneira colaborativa, encontrem a solução. Especialmente se
estas pessoas devem conviver juntas, pois no futuro se apoiarão uma na outra. Quando esta situação
ocorre, a melhor solução está na mediação, que
é um procedimento onde um terceiro, neutro, que
não tem poder sobre as partes, sem indicar qual
deve ser o resultado, de maneira informal, facilita e
ajuda a que as próprias partes encontrem sua solução, resolvendo seu conflito de forma aceitável.
Devido a vários fatores, em certas ocasiões, o surgimento
do conflito é inevitável, nesse caso, o ideal é utilizar através da reflexão, da compreensão, da confiança e do afeto de uma pessoa
com a outra para resolvê-lo. Por exemplo, a solução do conflito
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Sumário
165
de interesse entre familiares é mais adequada ser feita através do
método alternativo conhecido como Mediação, pois este procedimento faz com que as partes voltem a estabelecer o diálogo, a
amizade, o acordo das partes e a conseqüente solução de todo o
conflito.
Na mediação o terceiro neutro deve proporcionar para as
partes reflexões e compreensões e a consequência disso é o acordo das partes, a solução de todo o conflito que deve ser feita através da origem do problema e o restabelecimento do diálogo entre
as partes. A mediação é uma forma constitucional e alternativa
de solução de conflito na qual o mediador vai auxiliar para que as
partes comecem a resolver a divergência a partir da causa do problema até a solução do conflito na íntegra. Donizetti (2011, p. 33)
conceitua a mediação como sendo a:
Técnica de estimulo à autocomposição. Um terceiro
(mediador), munido de técnicas adequadas, ouvirá
as partes e oferecerá diferentes abordagens e enfoques para o problema, aproximando os litigantes e
facilitando a composição do litígio. A decisão caberá as partes, jamais ao mediador. A mediação assemelha-se à conciliação, uma vez que ambas visam
à autocomposição. Dela se distingue somente porque a conciliação busca sobretudo o acordo entre
as partes, enquanto a mediação objetiva debater o
conflito, surgindo o acordo como mera consequência. Trata-se mais de uma diferença de método, mas
o resultado sendo o mesmo.
A mediação ou autocomposição “complexa” é uma forma
extrajudicial de solução de conflitos onde o mediador ajuda as
partes a resolverem o problema, partindo da ascendência deste
(problema). O papel (função) do mediador é auxiliar para que o
diálogo entre as partes aconteça e a consequência jurídica e social
é a solução do problema em que as partes saiam felizes e amigas.
Tanto a mediação quanto a conciliação são formas de au-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tocomposição (mediação – autocomposição complexa e a conciliação – autocomposição simples), pois o terceiro não tem por
função resolver o conflito em si, mas auxiliar as próprias partes a
resolvê-lo. A distinção da Conciliação com a Mediação é porque
esta busca a resolução do conflito a partir da origem dele (conflito)
estabelecendo de inicio o diálogo entre as partes, já aquela (Conciliação) busca o acordo entre as próprias partes.
É interessante observar que a palavra “complexa” (motivo didático) é devido a Mediação ser método autocompositivo no
qual o mediador parte da origem do problema, buscando estabelecer o acordo, a solução e a volta da amizade das partes.
Em perspectivas gerais, na mediação o mediador faz, por
exemplo, “indagações” às partes, já na Conciliação o conciliado
faz, por exemplo, “sugestões”, ou seja, o mediador auxilia na resolução do conflito indiretamente e o conciliador ajuda no acordo
diretamente.
Para Gorczevski (2007, p. 81) conceituando o que seria mediação, descreve que é: “o encontro e a aceitação de extremos
distantes, a possibilidade de reflexão para a busca de respostas
equidistantes e equilibradas onde não exista culpa nem direitos
sacrificados, que chamamos de mediação”. A Mediação é conhecida por ser o método em que as partes se encontram para aceitar os
fatores divergentes e resolver o conflito. O mediador deve buscar
cogitações para que as partes restabeleçam a conversação, compreendam os fatos e acabem com o conflito de interesses e no final
aconteça a pacificação social.
A mediação é uma forma de autocomposição, porque são
as próprias partes quem resolvem o conflito, o mediador apenas
vai ajudar (assessorar) na resolução dessa controvérsia. Para Fredie Didier Jr. (2012, p. 106):
A mediação é uma técnica não-estatal de solução
de conflitos, pela qual um terceiro se coloca entre os
contendores e tenta conduzi-los à solução autocom-
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Sumário
167
posta. O mediador é um profissional qualificado que
tenta fazer com que os próprios litigantes descubram as causas do problema e tentem removê-las.
Trata-se de técnica para catalisar a autocomposição.
A mediação é uma forma alternativa de conflito, pelo fato
de ser extrajudicial ou também conhecida como não-estatal na
qual o Estado, em regra, não faz a mediação, apenas autoriza para
que o particular a faça. Nesse caso, o mediador não é o Estado
(agentes estatais), mas sim é um particular imparcial. Segundo
Fredie Didier Jr. (2012, p. 105) mencionando a respeito da autocomposição cita que:
É a forma de solução do conflito pelo consentimento
espontâneo de um dos contendores em sacrificar o
interesse próprio, no todo ou em parte, em favor do
interesse alheio. É a solução altruísta do litígio. Considerada, atualmente, como legitimo meio alternativo de pacificação social. Avança-se no sentido de
acabar com o dogma da exclusividade estatal para a
solução dos conflitos de interesse. Pode ocorrer fora
ou dentro do processo jurisdicional.
As próprias partes são quem concretiza a mediação, em
que o mediador é o terceiro imparcial com vista na prevalência do
procedimento e da organização da relação jurídica entre as partes na qual deve prevalecer o respeito ao Direito e a obtenção da
harmonia social. Wambier e Talamini (2010, p. 94) referem que: “a
mediação é uma espécie de autocomposição coordenada por uma
terceira pessoa, o mediador, que é um profissional qualificado que
atua no intuito de levar os litigantes a uma solução embasada na
identificação e eliminação das causas que geraram o conflito”.
A mediação é a espécie de autocomposição complexa na
qual o mediador é o profissional qualificado que coordena o conflito de interesse, em que ajuda a identificar as causas que provocaram o conflito. A mediação é um importante método alternativo
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
de solução de conflito, pois ele vai buscar a “raiz” do conflito e não
apenas se preocupa no acordo. Em regra, a mediação pode ser feita quando certo direito for desrespeitado, devendo prevenir a violência de uma parte sobre a outra.
Nos conflitos ligados entre pessoas conhecidas ou parêntes
é necessário o uso do método da mediação para que esse conflito
acabe por completo, partindo do inicio da controvérsia e encaminhando até o fim do conflito para que com isso as partes saiam
amigas e o diálogo seja restabelecido. São exemplos de conflitos
solucionados através da mediação: desrespeito com a mulher,
com a criança, com o idoso; da guarda do filho; de um vizinho com
o outro; entre consumidor e comerciantes amigos; entre outros.
Com base no Direito Civil Constitucional Humanizado, o objetivo da mediação é a solução justa e digna de todo o conflito na
qual o mediador auxilia as partes através de perguntas reflexivas
que levem à origem da controvérsia e a consequência é a pacificação social. A justiça social e jurídica deve ser alcançada com a resolução do conflito de interesses, se essa (justiça) não for atingida
não podemos falar em solução do conflito através do procedimento da mediação.
A mediação visa o restabelecimento do diálogo, da afetividade, da amizade das partes, e consequentemente da solução
do conflito através do acordo mútuo que alcança a harmonia social. A consequência do procedimento da mediação, assim como,
a dos outros métodos alternativos de solução de conflito é a difícil
possibilidade da volta do conflito ou de outra controvérsia. É um
método amigável, pois visa fazer com que o diálogo e a amizade
das partes sejam restabelecidos. As partes ganham, visto que com
a solução do conflito de interesses partindo da origem raramente
vai acontecer outro conflito por essas partes.
Na mediação o problema é resolvido da causa do conflito,
porque o foco é a solução do conflito como um todo. As partes são
quem decidem sobre o conflito de interesse na qual uma deve ou-
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Sumário
169
vir a outra, isto é, as partes devem se colocar no lugar da outra
para que haja o entendimento delas. A mediação é transformação
social onde as partes se conscientizam de que restabelecer o diálogo e a amizade são as melhores formas de solução do conflito
de interesses. O mediador não decide o conflito de interesses, ele
apenas auxilia na resolução através da facilitação do diálogo e da
compreensão das partes em que objetiva a pacificação da sociedade.
8 DA NEGOCIAÇÃO
Clovis Gorczevski (2007, p. 72 e 73) descreve sobre o inicio
do estudo sistemático da negociação, ele menciona que:
A comunidade cientifica-acadêmica só recentemente demonstrou interesse por descrever, analisar e
explicar o processo de negociação. Este interesse
cresceu principalmente nos círculos universitários
dos Estados Unidos da América, onde muitas universidades criaram centros, institutos e clinicas
para o estudo do conflito e da negociação. Afinal,
negociamos todos os dias, nas mais diversas situações. Negociamos na família, no trabalho, no lazer
ou quando pretendemos algo de alguém. Se negocia quando se faz um contrato, quando se vai à feira
comprar verduras; nos pactos e tratados internacionais, enfim, se negocia sempre que há comunicação
para conseguir resultados ou fins determinados. É
um processo tão natural que não notamos quando
estamos envolvidos em uma negociação, trata-se de
uma habilidade peculiar do ser humano. Negociar é
um hábito de conduta e também um método pelo
qual se busca a felicidade comum.
A aplicação da Negociação perante a sociedade existe desde o início da nossa civilização quando o indivíduo negociava informalmente com o outro para ambos saírem ganhando. A análise
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
sistemática do processo da negociação começou a ser estudada
atualmente pelos Estados Unidos (não foi só os EUA, mas este foi o
principal), neste país foram criadas instituições para o estudo dos
conflitos e a solução destes (conflitos) através da negociação.
A negociação informal acontece toda hora, em todos os lugares, negocia-se tanto que nem se percebe quando isso acontece.
Por exemplo, os alunos negociam com os professores sobre o dia
da prova e o assunto que vai ser cobrado, até mesmo negociam
sobre os pontos das atividades acadêmicas. Outro exemplo, é relacionado a relação afetiva em que um casal vive negociando entre
si, bem como os namorados vivem negociando. Um filho negocia
com a sua mãe propondo, por exemplo, que quando acabar de fazer a atividade de casa gostaria de ir ver um filme.
Já a negociação formal é feita em um local reservado (geralmente escritório) para que as partes negociem diretamente
sobre os assuntos ligados ao negócio ou ao conflito. Excepcionalmente, pode haver na negociação formal ou informal um terceiro
para auxiliar formalmente na negociação, mas esse (terceiro) não
é obrigatório. Na negociação formal o terceiro é interessante, pois
ele vai preparar o Contrato (Termo) de Negociação e vai explicar o
procedimento negocial.
A negociação consiste em um processo ou método constitucional e extrajudicial na qual as partes negociam a respeito do
conflito. Os negociadores, que são as próprias partes, devem descobrir os verdadeiros interesses um do outro para que a negociação aconteça. O que o procedimento negocial busca é o acordo
mútuo das partes, nesse caso, pode-se dizer que é uma forma alternativa na qual as próprias partes decidem formal ou informal
sobre o conflito de interesses.
Segundo Gorczevski (2007, p. 74):
Como se observa, a negociação deveria ser um meio
natural e habitual de superar as diferenças, resolvendo os conflitos. Dissemos ‘deveria ser’ porque a
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Sumário
171
toda hora, a todo momento, se observam oportunidades de negociar e obter resultados satisfatórios
e são frequentes não aproveitadas. Isto ocorre por
duas razões: a inata tendência de impor a própria
vontade sem aceitar a existência de situações de interdependência, e pelo desconhecimento geral do
que significa negociar. Negociar é muito mais que
uma simples conversa para se obter um resultado
favorável. Um verdadeiro processo de negociação
reconhece a interdependência dos atores, por isso
tende necessariamente à obtenção de benefícios
mútuos.
A negociação informal é feita pelas pessoas para solucionar
pequenos e simples conflitos. Só que há casos que nem esses (conflitos pequenos e simples) são resolvidos pelo método alternativo
mencionado (negociação informal). A solução do conflito através
do procedimento da negociação depende diretamente das partes,
se estas não quiserem resolver o conflito conforme esse método
ou outro alternativo (arbitragem, conciliação ou mediação) irá ser
necessário a resolução através da Jurisdição na qual o juiz do Poder Judiciário irá estabelecer uma sentença na qual apenas uma
das partes ganha ou até mesmo nenhuma delas obtém êxito.
Os cidadãos devem entender que a negociação é a solução
alternativa de conflitos na qual as partes estabelecem uma relação
de trocas de interesses, ou seja, é quando as partes negociam o
próprio acordo com vista nos seus interesses e nas suas vontades,
com isso as partes saem satisfeitas. A negociação visa o afastamento da controvérsia e o restabelecimento do diálogo para que
as partes resolvam o conflito com acordo mútuo embasados no
Direito Civil Constitucional Humanizado.
O acordo mútuo é aquele construído pelas próprias partes
mediante o diálogo e o estabelecimento de propostas e aceitações
com vista na solução do conflito de interesses. As partes saem ganhando no procedimento negocial, pois os seus interesses foram
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
expostos e aceitos por ambas as partes. As considerações a respeito da negociação foram estabelecidas, mas: o que é negociar? Em
aspectos gerais, negociar consiste na concordância de interesses
divergentes (opostos) através do diálogo das partes para obter o
melhor resultado (acordo mútuo).
O objetivo da negociação é fazer com que o verdadeiro interesse das partes seja alcançado de modo que ambas saiam ganhando
na resolução alternativa do conflito de interesses. A negociação é feita
pela sociedade a todo o momento. No entanto, é bom lembrar que
tanto na negociação formal quanto na informal o conflito deve ser
analisado com vista na solução e no bem-estar das partes.
Na negociação, não se deve ir a favor do conflito de interesses,
pois as partes devem gerenciar o conflito para que a solução (acordo mútuo) aconteça e ambas as partes saiam com vantagens. Na negociação, a linguagem deve ser simples, clara e objetiva para que as
partes saibam sobre os verdadeiros interesses uns dos outros, sendo
que isso se concretiza através do diálogo (conversa). Este (diálogo)
consiste em “falar” e em “ouvir”, ou seja, as partes devem falar, mas
também devem ouvir umas as outras. A utilização de uma linguagem
clara, simples e objetiva pelas partes irá ajudar na identificação dos
interesses das partes e a consequência disso é a solução do conflito
através do acordo mútuo. As partes devem evitar linguagens difíceis,
expressões com sentidos ambíguos ou qualquer outra linguagem que
prejudiquem o diálogo e o descobrimento do verdadeiro interesse
das partes.
Segundo Gorczevski (2007, p. 74):
Entendemos que negociar, antes de um instituto,
é um processo durante o qual duas ou mais partes
com problema comum, com o auxilio ou não de um
terceiro, mediante o emprego de técnicas de comunicação e persuasão, procuram obter um resultado
que satisfaça de uma maneira razoável e justa seus
objetivos, interesses, necessidades e aspirações.
Capa
Sumário
173
Todo o procedimento negocial é feito através de etapas
cuja observância é relevante. As partes estão com um problema
e a solução só pode ser feita por meio da análise do conflito. Por
isso que é essencial o diálogo. O problema comum das partes pode
acabar se agravando, sendo necessário o socorro dos métodos alternativos, tendo em vista que estes são simples, rápidos e menos
burocráticos que a Jurisdição do Poder Judiciário.
As partes devem utilizar técnicas de comunicação para que
os interesses delas sejam identificados e a solução do conflito justo e admissível aconteça, devendo essas saírem ganhando. A Negociação é dividida didaticamente em quatro fases. Na primeira,
o conflito deve ser gerenciado através do diálogo. Na segunda, a
parte deve perceber o interesse da outra com a análise do conflito
de interesses. Na terceira, o acordo mútuo deve acontecer pelas
partes. Na quarta, ambas as partes saem ganhando com a resolução do conflito através do método em estudo.
Gorczevski (2007, p. 76) menciona que:
O problema básico da negociação não é o conflito
entre as partes, e sim as necessidades, preocupações e temores que padecem e levam para o curso
da negociação. O objetivo da negociação é o estabelecimento de uma solução negociada, que pode
ser avaliada com base em diferentes critérios – grau
de satisfação das partes a curto prazo, o grau de
otimização do resultado em função de parâmetros
estabelecidos, etc. Boas soluções são aquelas onde
se satisfaçam ambas as partes. O mais importante é
a inexistência de ganhador e perdedor – o objetivo
da negociação é ganhar/ganhar, quer dizer, ambas
as partes devem sair vencedoras. Ainda de maior
importância é a qualidade de relação depois de concluída a negociação, medida não somente em função do resultado, mas também pela satisfação em
relação ao processo em si, que permitiu o conhecimento e a aceitação das diferenças, com isto não só
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
se dirime o conflito presente como se evita, de forma
efetiva o surgimento de novos.
O conflito não é o problema básico da negociação, o verdadeiro problema são os choques (divergências) de interesses entre
as partes, que podem ser necessidades, preocupações, temores,
entre outros. A negociação tem por objetivo a resolução alternativa, justa e digna dos conflitos, ou seja, as descobertas dos verdadeiros interesses das partes nas quais essas estabelecem um
acordo mútuo em que ambos saem ganhando.
Só que por alguns fatos (necessidades, preocupação, temores, entre outros) o conflito negociável acaba se tornando inegociável. Neste caso o que pode ser feito? Quando o conflito se torna
inegociável deve-se fazer de tudo que o Direito admita para que
ele se torne negociável novamente, caso isso não aconteça é necessário buscar a intervenção do Poder Judiciário no qual o juiz vai
analisar o caso concreto e estabelecer uma sentença onde apenas
uma das partes irá sair ganhando ou até mesmo nenhuma das partes saiam vitoriosas.
Na negociação inexiste a idéia de um ganhador e de um
perdedor, ou seja, todos saem ganhando tanto no âmbito econômico como também no pessoal, profissional, social, entre outros.
Com base no acordo mútuo onde as partes saem ganhando em
vários aspectos, há uma pequena probabilidade da incidência de
um novo conflito. Caso esse novo conflito aconteça, o que é pouco
provável, as próprias partes vão saber resolver de forma autônoma, justa e digna, pois adquiriram experiência com a primeira negociação formal realizada.
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito Civil Constitucional Humanizado consiste no conjunto de normas jurídicas relacionada com o Código Civil, com a
Capa
Sumário
175
Constituição Federal e com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos. Ao estudar o Direito Civil Constitucional Humanizado,
constata-se que há os métodos alternativos de soluções de conflitos de interesses. Tanto o estudo do Direito como também o dos
métodos extrajudiciais de resoluções de controvérsias “devem”
ser obrigatórios em todos os níveis de ensino.
Os métodos alternativos constitucionais são chamados assim porque não é o Poder Judiciário quem decide a demanda, concedendo, no entanto, expressa autorização para que um particular
neutro ou as próprias partes cheguem a uma decisão justa e digna
com vista na profunda resolução do conflito admitida pelo Direito.
A denominação “métodos alternativos” pode mudar futuramente
para “métodos complementares”, visto que há uma tendência de
haver a aplicação da conciliação, da mediação e da negociação de
“forma complementar” ao Poder Judiciário.
A arbitragem é um método alternativo e uma forma de heterocomposição de solução de conflito em que as partes escolhem
uma pessoa capaz, confiável e imparcial para analisar os fatos, os
fundamentos e os pedidos das partes, desse modo o juiz arbitral
resolve o conflito por meio de uma sentença arbitral que faz coisa
julgada formal e material após 90 dias (contados da feitura da respectiva sentença).
A conciliação é um método alternativo e uma forma de autocomposição “simples” na qual as partes escolhem uma pessoa,
denominada de conciliador, para auxiliar diretamente no acordo.
O conciliador irá ajudar com, por exemplo, sugestões para que as
partes cheguem a um acordo do problema.
A mediação é um método alternativo e uma forma de autocomposição “complexa”, em que as partes escolhem um terceiro
capacitado, conhecido por mediador, em que irá ajudar indiretamente na resolução do conflito, partindo da origem da controvérsia. O mediador irá ajudar as partes na resolução do conflito com,
por exemplo, indagações
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A negociação é um método alternativo em que as partes
através de uma linguagem simples e objetiva irão descobrir os verdadeiros interesse uns dos outros, realizando ao final do procedimento negocial um acordo mútuo.
As três principais características da resolução do conflito
de interesses pelas vias alternativas, também denominadas extrajudiciais, são: o fato de serem mais rápidas (devem respeitar o
princípio da economia), menos burocráticas (devem ser decididas
conforme o Direito, com menos burocracia do que a Jurisdição) e
tem como base a pacificação social, o empoderamento, o efetivo
acesso à justiça e etc.
É preciso fazer uma grande campanha (inclusiva) de informação e explicação a respeito dos métodos alternativos, pois toda
a sociedade necessita conhecer essas formas de soluções de conflitos de interesses. A educação em formas alternativas de soluções de
conflitos é um interessante meio para disseminar a idéia da resolução de um litígio através da arbitragem, da conciliação, da mediação
e da negociação na qual visam atingir a harmonia de toda a sociedade. Informar, descrever, explicar e conscientizar a coletividade de
que há métodos extrajudiciais (arbitragem, conciliação, mediação e
negociação) que têm por finalidade a solução do conflito que visa o
equilíbrio social é um grande desafio para o século XXI.
Teoricamente se percebe que há diferenças básicas entre
os métodos alternativos de soluções de conflitos. Já na prática
pode acontecer a utilização dos métodos conjuntamente, porém
sempre há a predominância de um sobre os outros.
De acordo com as fontes pesquisadas, verifica-se que, com
a resolução do conflito através dos métodos alternativos, poucas são as possibilidades de um novo conflito surgir. Nesse caso,
a conscientização da sociedade sobre as formas extrajudiciais de
soluções de conflitos visam uma finalidade comum: a harmonia de
toda a coletividade.
Diante do exposto, percebe-se que muito já se caminhou na
Capa
Sumário
177
realização dos meios alternativos ou extrajudiciais de soluções de
conflitos de interesses. Nesses termos, essa caminhada continua e
a resolução alternativa é uma das grandes tendências jurídicas do
século XXI.
Na Paraíba já há o estudo da Arbitragem e da Mediação na
UFPB (disciplina curricular do Curso de Direito) e na Unipê (Curso
de Especialização em Arbitragem e Mediação); há a aplicação da
Mediação Familiar no Centro de Mediação Familiar do Fórum Cível de João Pessoa-PB Desembargador Mário Moacyr Porto; há a
aplicação da Conciliação e da Mediação no Centro de Conciliação
e Mediação da UFCG campus Sousa em parceria com o Tribunal de
Justiça do Estado; há a aplicação da Negociação em escritórios de
advocacia e de contabilidade; ou seja; é constatado que já existe o
estudo teórico e a prática das formas alternativas de soluções de
conflitos no Estado da Paraíba.
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Sumário
179
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processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento,
volume 1. 11ª. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2010.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
OS NOVOS PARADIGMAS DA RESPONSABILIDADE
CIVIL NA INTERNET
Erick Lucena Campos PEIXOTO12
Marcos EHRHARDT JÚNIOR13
Resumo:O presente trabalho trata sobre a responsabilidade civil
na Internet e os danos decorrentes da violação aos direitos da personalidade, em especial, o direito à honra e o direito à privacidade
e os critérios para fixação do valor da indenização, bem como busca soluções para os conflitos na Rede, através da regulação, seja
através da própria arquitetura, seja através de leis, como o Marco
Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Embora os direitos da personalidade tenham como atributo a indisponibilidade, a autolimitação ao exercício desses direitos pode ser admitida em favor da
plena realização da dignidade da pessoa, sem que isto implique
em renúncia, como no caso de uma foto postada no Facebook.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Internet. Dano Moral.
Direitos da Personalidade. Direito à Honra. Direito à Privacidade.
Quantificação do Dano. Regulação. Marco Civil da Internet. Indenização Não Pecuniária.
12
Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas(UFAL). E-mail:
[email protected].
13
Advogado, Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor
de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: contato@marcosehrhardt.
com.br.
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Sumário
181
1 INTRODUÇÃO
A Internet evoluiu a ponto de nos trazer tantos benefícios e facilidades para o nosso dia a dia, mas por outro lado, passamos a ser vigiados ininterruptamente. Nunca a vida privada se expôs
tanto à praça. Postamos fotos, compartilhamos nossos pensamentos.
Pessoas completamente estranhas sabem de nossas vidas com um
clique. Mas estes, ao menos, são os dados que lançamos ao público
por conta própria. Fora estes, temos nossas informações pessoais espalhadas por lugares que não imaginamos.
Hoje, o computador pessoal, no seu modelo tradicional, representado pelo desktop, ou computador de mesa, vem perdendo espaço para modelos menores e portáveis. O notebook, hoje em sua versão mais leve e poderosa, o “ultrabook”, faz as vezes do PC de mesa.
Junto dele, seguem-se o tablet e o smartphone. E não para por aí. O
acesso a Internet está presente em vários dispositivos presentes nos
lares e não mais está restrito ao trio computador/tablet/smartphone.
Aparelhos de TV (smart TV), consoles de vídeo game e até geladeiras
dispõem de acesso Internet.
O smartphone é o símbolo da atual era na Internet. Este pequeno aparato, antes uma novidade reservada para poucos que podiam pagar, caiu nas graças do povo. Sua popularização deve-se à variedade de modelos, muitos importados, de marcas desconhecidas e
extremamente baratas; deve-se também ao sistema operacional Android, da empresa Google, sistema este de código aberto e gratuito,
utilizado por vários fabricantes.
Ao se visitar um sítio eletrônico, ao mandar um e-mail, ao fazer
uma compra on-line, deixamos nossos rastros digitais. De repente, a
caixa de mensagens de e-mail está lotada de spams e mensagens de
conteúdo malicioso. E não sabemos o porquê nem de onde vêm.
Nossa realidade, na atual fase tecnológica se assemelha ao
futuro distópico14 imaginado por George Orwell em sua renomada
14
Distopia, termo este que na patologia, parte da medicina que estuda as doen-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
obra 1984. Certo que vivemos numa democracia, mas temos todo
o aparato de vigilância digno de um Estado totalitário. Expomos
nossas famílias, nossa própria imagem.
No presente trabalho, serão abordados no primeiro tópico aspectos gerais sobre a Internet, como o seu conceito, sua
estrutura, bem como o ciberespaço, e a Web 2.0.
Os direitos da personalidade serão objeto do segundo
tópico, onde será discutida a situação atual do direito à honra e
do direito à privacidade.Neste mesmo capítulo ainda será abordada a violação dos direitos da personalidade na Internet, neste trabalho sendo tratados somente o direito à honra e o direito
à privacidade, por uma questão didática. Depois será discutida
a questão da quantificação do dano moral na Internet e os critérios utilizados para aferir a extensão do dano.
Também será tratada a questão da disponibilidade relativa dos direitos da personalidade, que traz uma discussão sobre as
postagens em redes sociais e a irrenunciabilidade desses direitos.
No terceiro e último tópico serão apresentadas possíveis
soluções à problemática da responsabilidade civil na Internet,
desde a arquitetura e regulamentação da Rede até o Marco Civil
da Internet e ainda, um tópico sobre a indenização não pecuniária.
2 LINHAS GERAIS SOBRE A INTERNET E A
RESPONSABILIDADE CIVIL
2.1 CARACTERÍSTICAS DA INTERNET E SUAS
IMPLICAÇÕES JURÍDICAS
Muitos dos casos envolvendo a Internet que permeiam o
Judiciário deixam de ser resolvidos satisfatoriamente ou simplesmente são julgados de forma inadequada pela falta de preparo
ças, se refere à localização anormal de um órgão. Literalmente quer dizer “lugar ruim ou
perturbado”. Aqui, “futuro distópico” é a antítese de um “futuro utópico”.
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Sumário
183
dos operadores do direito quanto às questões técnicas da rede.
Conhecer o funcionamento da Internet, além de alguns conceitos,
como o de provedor, é de fundamental importância tanto para o
estudo do tema quanto para a aplicação do Direito.
Na Exposição de Motivos Interministerial - EMI Nº 00086 MJ/MP/MCT/MC15 de 25 de abril de 2011, que corresponde à exposição de motivos do Projeto de Lei (PL) nº 2.126, que deu origem ao
Marco Civil da Internet, consta no parágrafo n. 4:
Para o Poder Judiciário, a ausência de definição legal específica, em face da realidade diversificada das
relações virtuais, tem gerado decisões judiciais conflitantes, e mesmo contraditórias. Não raro, controvérsias simples sobre responsabilidade civil obtêm
respostas que, embora direcionadas a assegurar a
devida reparação de direitos individuais, podem,
em razão das peculiaridades da Internet, colocar em
risco as garantias constitucionais de privacidade e
liberdade de expressão de toda a sociedade. (BRASIL, 2011).
O conceito de Internet não é difícil de ser apreendido. Consiste num sistema, a nível mundial, de computadores interligados
entre si, que possibilita a troca de informação de forma instantânea e interativa.
O Projeto de Lei nº 2.126acabou se transformando na Lei nº
12.965, de 23 de abril de 2014 (BRASIL, 2014), passando a definir o
conceito de Internet em seu artigo 5º, I, onde a Internet é o sistema constituído de conjunto de protocolos lógicos, estruturado em
escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de
possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de
diferentes redes.
15
MJ (Ministério da Justiça); MP (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão); MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia); e MC (Ministério das Comunicações).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
2.1.1 Ciberespaço
Nenhum país, organismo internacional ou entidade privada exerce controle de forma absoluta na rede, ante sua estrutura
global. E se existe uma infraestrutura física da Internet, existe ainda um espaço virtual, ou ciberespaço. Tal espaço não existe como
realidade do mundo físico, mas apenas como uma representação
audiovisual (SILVA, 2012, p. 81). O ciberespaço é o “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores
e das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, p. 94-5), o que inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos, na medida em que transmitem informações vindas de fontes digitais ou
destinadas à digitalização.
O ciberespaço permite alguns modos de comunicação e interação especiais, isto é, que lhe são próprios. É possível o acesso
à distância aos diversos recursos de um computador e também a
transferência de arquivos entre as máquinas. O correio eletrônico
também é outro modo de comunicação do espaço virtual, permitindo a troca de mensagens entre os usuários. As conferências eletrônicas são mais um modo de interação, que permitem que várias
pessoas discutam em conjunto sobre temas específicos.
Além desses modos que lhe são particulares, o cyberspace
também apresenta formas de comunicação tradicionais, como a
televisão, telefone, rádio e jornal. Resumindo, o ciberespaço permite que sejam combinados vários modos de interação.
O fato de o ciberespaço não existir como um território físico
traz à tona a questão da lei aplicável ao caso e a determinação da
competência para sua aplicação (EHRHARDT JÚNIOR, 2014).
Marcos Ehrhardt Jr. anota que antes mesmo da definição
da competência, é necessário determinar qual a lei aplicável às
transações via internet. O emprego da tradicional regra locusregitactum às transações eletrônicas mostra-se insuficiente, dada a
dificuldade em determinar o lugar no qual a obrigação se constitui
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Sumário
185
(Idem, ibidem).
O autor ensina que a solução está contida a Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro), que no seu art. 9.º determina que a obrigação resultante de um contrato reputa-se constituída no lugar em que reside o
proponente.
Há portanto uma pretensão absoluta de se considerar os negócios interabsents constituídos no lugar
em que o proponente tiver sua residência, ainda
que acidental, pouco importando a lex loci actum e
a lei domiciliar do proponente ou aceitante. (Idem,
Ibidem).
Conclui Marcos Ehrhardt Jr. que independentemente de
onde estiver localizado o computador base da homepage como
também qualquer que seja a extensão do endereço do correio eletrônico (e-mail) utilizado, a lei aplicável é a do foro do proponente.
2.1.1.1 Web 2.0 e redes sociais
O termo “Web 2.0” designa o atual momento de mudanças
que a Internet está sofrendo em busca de uma otimização, e foi lançado em 2004 por Tim O’Reilly e DaleDougherty, numa conferência
em São Francisco, E.U.A., onde participaram gigantes do meio da
Internet, como Google, Microsoft e Amazon (FRAGOSO, 2009, p.81).
Segundo Cabral Filho e Coutinho (FRAGOSO, Ibidem, p. 83),
o usuário da web tradicional, em comparação com o usuário da
Web 2.0, procura alguma informação. Quando tem suas necessidades atendidas, não interfere no conteúdo dos sítios por ele visitados.
Já o usuário da Web 2.0 precisa de velocidade e de resultados imediatos na tela do seu computador, ou qual seja o dispositivo que utilize para acessar a rede. Para este usuário, a Internet
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
é um meio importantíssimo na sua rede social, afetiva e profissional, e por isso os softwares de mensagens instantâneas e os sites
de comunidades e relacionamentos ganham enorme importância
(Idem. Ibidem, p. 83).
A rede social pode ser entendida como uma metáfora estrutural para compreensão dos grupos expressos na internet, para a
observação das conexões de grupos sociais a partir das conexões
estabelecidas entre seus diversos atores (BARRETO, 2012, p. 103).
As redes sociais são estruturas sem um tipo de organização física
específica, porém, se revelam através dos relacionamentos criados entre sujeitos ou grupos que se organizam desse jeito.
Uma rede social se constitui como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e
suas conexões (interações ou laços sociais). (RECUERO, 2009, p. 24)
Os atores são o elemento principal. É cada pessoa envolvida na rede, através de representações na Internet, como por
exemplo, um perfil no Facebook, um blog ou microblog, um diário de fotos virtual etc. Como partes do sistema, os atores atuam
de forma a moldar as estruturas sociais, através da interação e da
constituição de laços sociais (RECUERO, Ibidem, p. 25).
Já as conexões, segue Recuero, podem ser percebidas de
diversos modos. Em termos gerais, as conexões em uma rede social são constituídas dos laços sociais, que, por sua vez, são formados através da interação social entre os atores. De um certomodo,
são as conexões o principal foco do estudo das redes sociais, pois
é sua variação que altera as estruturas desses grupos.(RECUERO,
Ibidem, p. 30).
A título de exemplo de redes sociais, citamos, pela popularidade e número de usuários, o Facebook, o Twitter, o Google Plus,
e o Instagram. Este último, exclusivo para celulares do tipo smartphone.
É a partir destas conexões, destas interações que começam
a surgir alguns problemas relevantes para o Direito. Veremos mais
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Sumário
187
adiante como as redes sociais na internet potencializam o dano a
direitos da personalidade, como a privacidade e a honra.
3 DIREITOS DA PERSONALIDADE E INTERNET
3.1 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE
Os direitos da personalidade, segundo trata Paulo Lôbo,
são “os direitos não patrimoniais inerentes à pessoa, compreendidos no núcleo essencial de sua dignidade”. E ainda, “os direitos
da personalidade concretizam a dignidade da pessoa humana, no
âmbito civil”. (LÔBO, 2012, p. 130).
São características dos direitos da personalidade, segundo o mesmo autor, a intransmissibilidade, a indisponibilidade, a
irrenunciabilidade, a inexpropriabilidade, a imprescritibilidade e
a vitaliciedade. A titularidade, dos direitos em questão, é única e
exclusiva, não podendo ser transferida para terceiros, herdeiros ou
sucessores. (LÔBO, Ibidem, p. 133).
No ordenamento jurídico brasileiro não há uma tipicidade
fechada de direitos da personalidade. Existem os tipos exemplificativos, presentes na Constituição Federal e na legislação civil,
bem como os tipos reconhecidos socialmente, em conformidade
com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dos tipos mais gerais, interessa-nos para os fins deste trabalho, o direito à privacidade e o direito à honra.
O direito à privacidade é uma denominação genérica para
os direitos que visam proteger a pessoa de interferências externas
sobre fatos que não devem ser expostos à público. Compreende o
direito à intimidade, à vida privada, à imagem e ao sigilo.
Pontes de Miranda, que tratava o direito à privacidade por
“direito de velar à intimidade”, dizia que este direito é “efeito de
exercício da liberdade de fazer e de não fazer: há quem possa não
revelar, porque há quem pode não fazer; é a liberdade que está à
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
base disso.” (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 198, tomo VII). Continua o autor: “Essa liberdade é que pode ser direito de personalidade inato; o direito a velar a intimidade provém dela, como o direito
ao sigilo provém da liberdade de se não emitir o pensamento ou
sentimento.” (Idem, Ibidem). Esclarece ainda que as limitações à
intimidade ou à renúncia da mesma dizem respeito à liberdade,
pois todos têm que respeitar o mínimo de intimidade e ao mesmo
tempo ninguém pode ser privado de tal mínimo de intimidade.
O direito à intimidade remete a fatos, acontecimentos em
geral, que a pessoa deseja resguardar para si e não deseja dividir
com qualquer outra. O direito à vida privada protege o ambiente
familiar, sendo aqui mais abrangente que o direito à intimidade,
pois sua violação pode atingir as várias pessoas componentes do
grupo. O direito à imagem protege a qualquer forma de reprodução da figura humana. Não deve ser confundido com direito à honra, como muitas vezes o é. Por fim, o direito ao sigilo diz respeito à
proteção do conteúdo das correspondências e comunicações.
Roxana Borges exemplifica algumas hipóteses de como o
direito à privacidade pode ser violado. A primeira delas é quando
há intromissão não consentida em relação à vida privada de alguém; a segunda, quando o acesso às informações da vida privada
de uma pessoa for por esta autorizado, mas a divulgação dessas
informações a terceiros não for concedida; e por último, quando
a intromissão não foi consentida e, além disso, houve divulgação
das informações obtidas ilicitamente. (BORGES, 2007, p. 163).
O direito à honra, também chamado de direito à reputação,
resguarda a boa fama, a consideração, o respeito que a pessoa
desfruta dentro da sociedade. Segundo Paulo Lôbo: “A honra pode
ser entendida como subjetiva, quando toca à pessoa física, porque
somente ela pode sofrer constrangimentos, humilhações, vexames. É objetiva a honra que resulta dos padrões morais existentes
em determinada sociedade, considerada a conduta razoável ou
média”. (LÔBO, 2012, p. 148).
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Sumário
189
Para Pontes de Miranda, “A dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima e a consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra.” (PONTES
DE MIRANDA, 2012, p. 102, tomo VII). Ainda segundo o autor, o direito à honra é absoluto, público e subjetivo.
Os danos extrapatrimoniais que ocorrem na Internet geralmente decorrem de violação a estes dois tipos de direitos da
personalidade. Se há alguma dificuldade no tratamento do tema
pelos tribunais, em reconhecer o dano moral e sua extensão quando ocorrem na rede mundial de computadores, além da responsabilidade do provedor de internet, se objetiva ou subjetiva, se é
relação de consumo ou não, há mais dificuldade ainda quando o
dano atinge não só um indivíduo, mas uma coletividade.
3.2 VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE
NA INTERNET: HONRA E PRIVACIDADE
A lesão a direitos da personalidade – aqui tratados somente
os direitos à honra e à privacidade – ocorre de várias formas na
Internet. Não há uma homogeneidade nem tampouco um limite.
Conforme evolui a tecnologia, novas formas de dano também surgem e disso resulta que é praticamente impossível catalogar todas
as situações em que ocorram danos extrapatrimoniais na Internet,
não restando alternativa senão a de tentar descrever as principais.
A violação do direito à imagem ainda consiste numa das
principais formas de violação do direito à privacidade. Tal direito é
autônomo em relação ao direito à honra, com o qual muitas vezes
é confundido. Tal confusão se operou até mesmo no Código Civil
de 2002, no caput do polêmico artigo 20:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a
divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou
a publicação, a exposição ou a utilização da imagem
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se
lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Antônio dos Reis, em seu artigo sobre o direito à honra, assim trata sobre essa confusão: “Destarte, não há falar em confusão
entre os conceitos, tampouco em ponto de interseção entre eles,
restando a imagem autônoma em relação à honra, motivo pelo
qual ambos os atributos devem ser considerados autônomos e
com disciplinas próprias”. (REIS, 2014).
O simples uso da imagem sem autorização já é apto a causar dano, mesmo que não seja atingida a honra da vítima.
A realidade atual tem mostrado que o uso indevido da imagem na Internet tem gerado danos incalculáveis, sobretudo pelo
fato da facilidade na exposição. Em cada esquina tem alguém
sempre pronto para fotografar ou filmar qualquer pessoa em uma
situação constrangedora ou mesmo da normalidade. Câmeras
ocultas em canetas, bonés etc. são encontradas com facilidade
custam muito pouco. Qualquer um pode ser um pequeno espião,
cujas imagens captadas têm uma potencialidade lesiva altíssima.
A violação do direito à honra teve um crescimento vertiginoso com o advento da Web 2.0. As redes sociais facilitaram o
agrupamento de pessoas, tornando possível um contato direto e
efetivo, superando obstáculos físicos. Com isso, a velha conversa de botequim ganhou novas dimensões. O assunto conversado
numa mesa de bar entre colegas, ali mesmo encontrava seu fim,
nascia e morria na mesma noite. Agora, nesta nova face interativa
da Internet, o mesmo assunto lançado na rede num simples comentário tem um poder de propagação enorme.
O comentário postado em uma rede social, mesmo quando
passa despercebido, ficará gravado lá por tempo indefinido, ou até
que o autor o exclua. Futuramente, caso não excluído, tal conteú-
Capa
Sumário
191
do pode ser objeto de indexação pelos motores de busca de sites
como o Google e Bing.
A prática de intimidação e agressão por meio da Internet
vem sido denominada de cyberbullying, em comparação com o
bullynig tradicional (termo em inglês que quer dizer “intimidar”,
“amedrontar”). O dicionário Priberan caracteriza o bullying16 como
“Conjunto de maus-tratos, ameaças, coações ou outros atos de intimidação física ou psicológica exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada fraca ou vulnerável”.
Não é incomum que a prática do cyberbullyingfira mais de
um direito da personalidade, por isso, tanto a honra quanto a imagem são alvos desses ataques. 3.3 A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL NA INTERNET
Existe um lugar-comum quando se fala em quantificação
do dano extrapatrimonial ocorrido na Internet e é justamente em
relação à repercussão que o dano pode ter se comparada com a
repercussão nos demais meios de comunicação.
É certo que a Internet, como uma grande rede mundial de
computadores interligados, possibilita o acesso a conteúdos praticamente ilimitados, quando comparados com os que são ofertados pela TV, rádio, periódicos e etc. Mas existem vários fatores que
devem ser considerados quando se fala de propagação de conteúdo na Internet, principalmente aquele conteúdo lesivo, e, até que
ponto ele pode, de forma eficaz, causar dano.
Dois pontos devem ser analisados. O primeiro é a potencialidade do dano, onde se deve traçar um limite até onde a violação
dos direitos da personalidade pode ou poderia causar um dano
juridicamente relevante. O segundo ponto é a efetividade do dano,
aqui tratada como sendo o dano já concretizado.
16
Dicionário Príberan da Língua Portuguesa, disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
O processo para aferir a potencialidade do dano é relativamente simples. Por exemplo, comparando a uma régua escolar de
30 cm, o dano em potencial seria representado pela própria régua,
sendo graduado de zero a trinta centímetros. O dano efetivo, por
sua vez, nunca poderia ultrapassar o limite dessa régua, mas no
máximo, igualá-la.
O raciocínio acima permite algumas conclusões: a) mesmo
o dano em potencial tem seus limites, não se prolongando ao infinito, como se pensa comumente; b) o dano concreto pode não
coincidir com o dano em potencial, o que muitas vezes acontece,
mas jamais será maior que este.
Marcel Leonardi (2012, p. 226) leciona que para a delimitação da extensão do dano, a análise de alguns fatores se faz útil.
Primeiro, os registros de acesso e de volume de tráfego de
dados do sítio eletrônico, que podem ser disponibilizados pelos
provedores de hospedagem.
Segundo, o exame da popularidade do sítio eletrônico, ou
seja, se este atrai um grande número de visitantes diariamente é
restrito a poucos usuários ou a determinado grupo de pessoas.
Terceiro, o exame da forma pela qual o sítio eletrônico explora a divulgação de informações, ou seja, se é comercialmente,
cobrando pelo acesso ao conteúdo exclusivo ou recebendo quantias de anunciantes em suas páginas, ou, se não é simples diário
eletrônico de interesse de um grupo restrito de colegas e conhecidos.
Quarto, o período em que as informações ofensivas permaneceram disponíveis na Rede, sendo o dano, na maioria das vezes,
proporcional ao tempo de duração da divulgação do conteúdo lesivo.
Além desses fatores apresentados, Leonardi (2012, p. 227)
indica três elementos adicionais: a) a veiculação de informações
ilícitas ocorrida em sítios eletrônicos frequentados por grupos sociais próximos à vítima, como parentes, amigos e colegas de traba-
Capa
Sumário
193
lho, tem uma repercussão muito maior e mais intensa que se a publicação tivesse sido feita em um sítio de público mais abrangente,
para uma massa desconhecida de pessoas; b) se caso o conteúdo
não seja removido nem sofra nenhuma alteração, poderia ser localizado depois, por prazo indefinido e através de mecanismos de
busca na da Internet (Google, Bing, Yahoo), projetando os efeitos
danosos para o futuro; c) a relevância do contexto em que as informações se encontram, reconhecendo-se o valor do debate e da
crítica fomentada por certos sítios eletrônicos.
O debate proposto por este autor é interessante e de grande utilidade na aferição da extensão do dano. A informação jogada em meio a uma multidão de desconhecidos na Rede é volátil,
tendente a sumir em virtude do desinteresse alheio. Se alguém,
aqui do Brasil, entra em uma comunidade virtual de um bairro de
Estocolmo e lá escreve o seguinte texto: “Minha vizinha Maria é
uma prostituta barata”. Certamente que as consequências deste
ato lesivo à honra de Maria seriam mínimas, quiçá nulas.
Isto tem uma explicação. Além dos elementos delimitadores da extensão do dano acima mencionados, existem outros que
lhes são anteriores. São barreiras com as quais o homem convive
há muito tempo, como o idioma, a barreira geográfica e a cultura
em geral.
Do exemplo acima, o texto ofensivo escrito em português
dificilmente seria compreendido pelos suecos, salvo aqueles que
possuem conhecimento no idioma, resultando assim na não compreensão da mensagem postada. Do mesmo modo um japonês,
que pode escrever o que bem quiser que os brasileiros, em sua
maioria, não farão a menor ideia do que se trata. Mas caso essa
barreira reste superada, tendo a mensagem sido compreendida de
alguma forma, quer por conhecimento do idioma, uso de tradutores na própria Internet etc., restam outras duas a serem analisadas.
A barreira geográfica, por mais estranho que soe falar dis-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
so quando se ouve de todos os lados que a Internet a superou, é
algo ainda a ser considerado em se tratando da extensão do dano.
Isto porque, ainda aproveitando o exemplo acima, o dano moral
será mais efetivo na região onde vive a pessoa. Qual o interesse
de um habitante de Estocolmo em saber que uma pessoa de Coité
do Nóia, em Alagoas, é uma prostituta? O dano efetivo será quase
nulo se a publicação ofensiva à comunidade virtual sueca mencionada.
Por ultimo, se tratando do aspecto cultural de uma forma
mais ampla, há certos tipos de linguagens que são feitos para serem compreendidos limitadamente, ou seja, são específicos para
determinados grupos de pessoas. O uso de uma língua portuguesa
alternativa na Internet, gírias, até mesmo significados alternativos
de palavras e expressões somente conhecidas em determinado
grupo impõe limites à efetividade do dano.
No agreste meridional pernambucano, não é raro se ouvir
a expressão “nega” (negra) com o fim de designar mulher, moça
ou menina. Esta mesma expressão pode ser tida como injuriosa e
racista em outra região. O vocabulário utilizado por uma comunidade de skatistas não será o mesmo usado por uma comunidade
de advogados, nem o de uma comunidade de peões de rodeio será
igual ao de uma comunidade de marinheiros. Há sempre diferenças a serem consideradas na aferição do dano.
Existem, porém, exposições massivas na Internet que superam todas as barreiras e que ganharam relevância recentemente.
São os chamados “memes da internet”. O termo “meme” foi criado
pelo escritor Richard Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta (The
Selfish Gene), de 1976. É usado para designar conceitos que se
espalham como um vírus pela Internet. Geralmente possuem motivo cômico, e são compostos de imagens com textos, vídeos ou
somente textos. Alguns memes com pessoas famosas tornaram-se
clássicos, como os memes de Barack Obama (com o texto “notbad”), presidente dos Estados Unidos da América e Jackie Chan
Capa
Sumário
195
(com o texto “WTF”), ator chinês.
O problema nasce quando essa veia cômica é perdida e
cede lugar ao cyberbulling, onde imagens de pessoas comuns são
captadas, muitas vezes aleatoriamente na própria Internet, e a
elas são escritas pequenas legendas com algum texto ridicularizante. O meme rapidamente se espalha, virando motivo de chacota para a vítima.
Aqui o problema é generalizado, atingindo, algumas vezes, nível mundial. Quem nunca viu o meme do garoto nerdcom
óculos, rosto repleto de acne e cabelo rabo-de-cavalo? O meme
é conhecido como “gordo granudo” (GUILHERME NETO, 2014), e
teve origem a partir da foto de perfil de um finlandês em um fórum
virtual, onde era conhecido pelo pseudônimo de KimmoKM. Uma
pessoa que caia na mesma situação que este rapaz não encontrará
nenhuma solução para mitigar a exposição sofrida, devendo esta
irreversibilidade do dano ser levada em conta na quantificação.
A irreversibilidade aqui está no sentido de que, não importa
qual a medida que venha a ser tomada, mesmo jurídica, o dano
não cessará sua tendência é se propagar por muito tempo pela Internet.
3.4 A DISPONIBILIDADE RELATIVA DOS
DIREITOS DA PERSONALIDADE
Um problema interessante surge quando a própria pessoa
publica um conteúdo na Internet e este vem a ser utilizado por
terceiros de forma agressiva. Warren e Brandeis ensinavam que o
direito à privacidade cessa na publicação dos fatos pelo indivíduo,
ou com o seu consentimento (BRANDEIS; WARREN, 1890).
Partindo do ensinamento dos articulistas norte-americanos, se uma pessoa posta em seu perfil particular do Facebook
uma foto, esta estaria abdicando da proteção à privacidade, pouco importando o uso que se desse à sua imagem posteriormente.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Muito tempo se passou desde que Warren e Brandeis escreveram o artigo sobre o direito da privacidade. Houve uma evolução no pensamento, que fica clara quando da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que trouxe como estandarte
a dignidade da pessoa humana.
O Código Civil de 2002, em seu artigo 11, diz que “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são
intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Interpretado literalmente, tal dispositivo
negaria efeito ao consentimento do titular no campo dos direitos
da personalidade (SCHREIBER, 2013, p. 26).
Anderson Schreiber (Ibidem, p. 27) ensina que
197
Roxana Borges, tratando sobre o direito à privacidade e o
lixo, fala sobre a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade.
Quando se trata de resíduos sólidos domiciliares, ou lixo, o abandono não desprotege a privacidade da pessoa que dispôs aqueles
resíduos, havendo expectativa de privacidade sobre o lixo.
Exagera, contudo, o art. 11 quando veda toda e qualquer “limitação voluntária” ao exercício dos direitos
da personalidade. A vedação lançaria na ilititude
não só os reality shows, mas também atos bem mais
prosaicos como furar a orelha, lutar boxe ou expor
informações pessoais em redes sociais, como o
Twitter e o Orkut.
O abandono de coisa como lixo ou resíduo sólido
revela exclusivamente a intenção de mero descarte,
de disponibilização da coisa em si, não havendo intenção ou sequer consciência, por parte da pessoa
geradora, de revelação de dados da sua vida privada. Normalmente, principalmente para as pessoas
comuns, há expectativa de privacidade sobre os
resíduos sólidos que gera. Embora atue com a cautela média de inutilizar certas coisas ou dilacerar
documentos, é possível — faticamente — sempre
reconstruir dados e levantar aspectos da vida privada da pessoa sobre os quais ela tem expectativa de
privacidade. A cautela média de dilacerar documentos, por exemplo, revela expectativa de privacidade
sobre seu conteúdo, expectativa de que não será reconstruído. (BORGES, 2014).
A autolimitação ao exercício dos direitos da personalidade
pode ser admitida quando esta atenda ao fim de realização pessoal
do seu titular. Não deve ser admitida caso esteja guiada por interesses outros, que não os que velam pela dignidade daquela pessoa.
A legitimidade da autolimitação poderá ser aferida observando-se a sua duração e o seu alcance. Uma autolimitação sem
restrições ou permanente deve ser rechaçada, pois é o mesmo que
se renunciar ao direito.
O Enunciado nº 4 da I Jornada de Direito Civil do Centro de
Estudos Judiciários da Justiça Federal diz o seguinte: “o exercício
dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária,
desde que não seja permanente nem geral” 17.
Trazendo analogicamente para a Internet, uma publicação
no Facebook não autorizaria sua reprodução sem o consentimento
expresso do autor. Apesar de se poder colher qualquer fotografia
publicada com facilidade, o ambiente do Facebook ou outra rede
social, não é exatamente um ambiente aberto, visto precisar de senha vinculada a um perfil para poder navegar entre suas páginas.
A publicação pode está disponível tanto ao público, quanto
somente a amigos ou mesmo a círculos menores de pessoas, portanto, a intensão do autor não é jogar seus dados ao vento. Além
disso, o fato de publicar um conteúdo não é a mesma coisa que
renunciar a um direito da personalidade, dado que esses direitos
são irrenunciáveis.
17
Capa
Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf.
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
4 SOLUÇÕES POSSÍVEIS
4.1 ARQUITETURA E REGULAMENTAÇÃO DA REDE
No decorrer dos anos, surgiram algumas correntes doutrinárias sobre como lidar com conflitos originados da Internet. Marcel Leonardi (2012, p. 130) aponta quatro delas, que seriam: a) a
autorregulação, mediante regras e princípios estabelecidos pelos
próprios participantes do ciberespaço; b) criação de um “direito
do ciberespaço”, separado do direito convencional, com apoio em
tratados e convenções internacionais; c) aplicação dos institutos
jurídicos tradicionais, com o emprego da analogia; e d) abordagem
mista, utilizando o sistema jurídico em conjunto com a própria arquitetura da Internet.
4.1.1 Autorregulação da Rede
Em 1996, John Perry Barlow, um dos fundadores da Eletronic FrontierFundation18, escreveu um texto intitulado Uma Declaração da Independência do Ciberespaço19.A Declaração estabelece,
em dezesseis curtos parágrafos, uma refutação à governança da
Internet por qualquer força externa, especificamente nos Estados
Unidos. Ela afirma que os Estados Unidos não têm o consentimento dos governados para aplicar leis para a Internet, e que a Internet
estava fora das fronteiras de qualquer país:
Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the
new home of Mind. On behalf of the future, I ask you
of the past to leave us alone. You are not welcome
among us. You have no sovereignty where we gather.
[...]
Governments derive their just powers from the con18
19
Capa
https://www.eff.org/
No original, eminglês, A Declaration of the Independence of Cyberspace.
Sumário
199
sent of the governed. You have neither solicited nor
received ours. We did not invite you. You do not know
us, nor do you know our world. Cyberspace does not
lie within your borders. Do not think that you can build
it, as though it were a public construction project.
You cannot. It is an act of nature and it grows itself
through our collective actions.
[...]
You claim there are problems among us that you need
to solve. You use this claim as an excuse to invade our
precincts. Many of these problems don’t exist. Where
there are real conflicts, where there are wrongs, we
will identify them and address them by our means. We
are forming our own Social Contract . This governance
will arise according to the conditions of our world, not
yours. Our world isdifferent.(BARLOW, 2014).
Em tradução livre: Governos do Mundo Industrial, vocês gigantes aborrecidos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético,
o novo lar da Mente. Em nome do futuro, eu peço a vocês do passado
que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês
não têm a soberania onde nós nos reunimos. [...] Governos obtêm
seus justos poderes a partir do consentimento daqueles a quem governa. Vocês não solicitaram ou receberam o nosso. Nós não os convidamos. Vocês não nos conhecem nem conhecem nosso mundo.
O ciberespaço não está nas suas fronteiras. Não pensem que vocês
podem construí-lo como se fosse um projeto de construção pública.
Vocês não o podem. É um ato natural e cresce por si próprio através
de nossas ações coletivas. [...] Vocês alegam que existem problemas
entre nós que somente vocês podem solucionar. Vocês usam essa
alegação como uma desculpa para invadir nossos distritos. Muitos
desses problemas não existem. Onde existirem conflitos reais, onde
existirem erros, iremos identificá-los e resolvê-los por nossos próprios meios. Estamos formando nosso próprio Contrato Social. Essa
maneira de governar surgirá de acordo com as condições do nosso
mundo, não do seu. Nosso mundo é diferente.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Apesar de combater a regulação heterônoma do Estado,
essa visão romântica da Internet teve o mérito de reconhecer a necessidade de regras e princípios entre os internautas.
O modelo de autorregulação, como afirma Leonardi (2012,
p. 135), não se sustenta em larga escala, pois além dos problemas
que dizem respeito à adesão e ao desligamento dos participantes às
normas conforme a sua própria conveniência, não há uma homogeneidade cultural na Internet, e sim um “ecossistema de subculturas”.
Porém, continua Leonardi, é de se levar em conta que o
sistema de autorregulação pelos próprios participantes funciona
muito bem em fóruns e listas de discussão voltadas para um tópico ou interesse específico, desde que contando com um número
limitado de participantes e com moderadores que façam cumprir
as regras estabelecidas.
4.1.2 Direito do ciberespaço
Em oposição à autorregulação, surge a ideia de um ramo
do direito separado do direito convencional, que entende que a
Internet, por ser diferente de qualquer outro meio de comunicação tradicional e por ter um alcance mundial, teria sua regulação
impossibilitada por jurisdições separadas.
David G. Jonhson e David G. Post (1996, passim) propuseram, em seu artigo Law andborders – theriseoflaw in cyberspace,
na Stanford Law Review, a criação de um “direito do ciberespaço”.
Para estes autores, tratar o ciberespaço como um lugar diferente, em separado, ao qual normas especiais seriam aplicadas,
deveria ser encarado naturalmente. O ingresso no ciberespaço não
acontece por acaso. O indivíduo usa uma tela e uma senha, que
agem como fronteiras, ou seja, o usuário da Internet sabe quando
está no ciberespaço e o faz conscientemente.
Para essa teoria, a regulação que decorre da soberania do
Estado, de forma tradicional, baseada em fronteiras físicas, não
Capa
Sumário
201
poderia funcionar efetivamente no espaço cibernético, pois a natureza descentralizada e intangível deste locus, além de suas características técnicas impedira qualquer forma de controle concentrado por um governo territorial e a única regulação possível
seria desenvolvida ao longo do tempo, com o consentimento da
maioria dos usuários da Internet. (LEONARDI, 2012, p. 136).
O argumento principal dessa corrente é o de uma abordagem internacional para a regulação da Internet. Governos trabalhariam juntos, por meio de organismos internacionais, a formular
normas a nível global para a Internet.
Apesar ser um pensamento interessante, o que o pano de
fundo do cenário internacional mostra é outra realidade. É muito difícil obter algum consenso para a proteção efetiva de direitos
fundamentais entre as nações, por mais que existam acordos e
tratados internacionais. Os valores sociais são diferentes não só
entre vários países, mas também em cada um deles. Não existe
unanimidade, mas uma gama de interesses diversos, muitos deles
antagônicos.
O ponto comum entre a corrente da autorregulação e a do
direito do ciberespaço fica justamente na descrença de que o sistema tradicional de governo, sob a limitação de uma jurisdição territorial, possa regulamentar efetivamente a Internet.
4.1.3 Analogia e Internet
Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 4º diz que
“Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a
analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
Miguel Reale ensina que a analogia atende ao princípio
de que o Direito é um sistema de fins. Pelo processo analógico,
estende-se a um caso não previsto aquilo que o legislador previu
para outro semelhante, em igualdade de razões. Se o sistema do
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Direito é um todo que obedece a certas finalidades fundamentais,
pressupõe-se que caso haja identidade de razão jurídica, haverá
identidade de disposição nos casos análogos. Isto partiria de um
antigo ensinamento, segundo Reale (2002, p. 296): ubieademratio,
ibieadem juris dispositivo, que quer dizer que onde há a mesma razão, deve haver a mesma disposição de direito.
Podem-se destacar três requisitos para o emprego da analogia: a) o caso não deve estar previsto em norma jurídica; b)deve
existir ao menos uma relação de semelhança entre o caso sub judice e o caso previsto em lei; c) o elemento de identidade entre
os casos deve ser fundamental, e não qualquer um, ou deve estar
representado por um fato que motivou a elaboração do dispositivo legal que estabelece a situação utilizada para a comparação.
(LEONARDI, 2012, p.140).
Diferentemente das correntes anteriores, esta pretende
que a regulação da Internet se dê pela simples aplicação de institutos jurídicos tradicionais, a partir da similitude dos problemas
enfrentados na Internet com situações comuns fora desse meio.
Nesse ponto, reside um perigo na utilização da analogia em
questões jurídicas envolvendo a Internet. Em muitos dos casos,
devido à falta de conhecimento do funcionamento da Rede, são
criadas equiparações bastante equivocadas. Um exemplo, apontado por Marcel Leonardi, mostra o quanto a aplicação da analogia pode ser indevida: certo provedor de acesso à Internet havia
fornecido um programa de navegação que continha restrições
técnicas que impossibilitavam a visitação de determinados sítios
na Internet. Então, a consumidora inconformada com a situação,
impetrou um habeas corpus(TJMG, Recursoem Sentido Estrito n.
472.032-9)20, sob o argumento de que sua “liberdade de locomoção virtual” restaria prejudicada em virtude do bloqueio de alguns
20
HABEAS Corpus não protege liberdade de locomoção virtual. In: Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2005-abr-19/habeas_corpus_nao_protege_liberdade_locomocao_virtual. Acessoem: 17 de abril de 2014.
Capa
Sumário
203
sítios pelo navegador. (LEONARDI. In: SILVA, 2012, p. 89-91).
4.1.4 Direito e arquitetura da Rede
Devido às posturas mais radicais e utópicas em relação à
regulação da Internet, por muito tempo se acreditou que seria impossível que houvesse uma regulação eficaz por parte do Poder
Público. Cometiam-se três erros. Primeiro, exageravam nas diferenças existentes entre os atos ocorridos no ciberespaço e outros
atos transnacionais; segundo, não se atentavam à distinção entre
normas sociais, sem sansão, e normas de cumprimento obrigatório, impostas pelo Estado; e terceiro, subestimavam o potencial
das ferramentas jurídicas tradicionais e da tecnologia para resolver os problemas multijurisdicionais causados pelo ciberespaço
(LEONARDI, 2012, p. 146-7).
Com o aparecimento das primeiras decisões judiciais e
também das primeiras normas, a postura geral de antes, de se negar a regulamentação da Internet foi sendo mudada, passando-se
a buscar como isto deveria ser feito e também a melhor maneira
de fazê-lo.
Surge, em meio a esse contexto, uma nova corrente que
sustenta uma abordagem mista para a regulamentação dos conflitos na Internet, utilizando para isso o sistema jurídico, atuando em
conjunto com a arquitetura da Internet.
Lawrence Lessig defende que no âmbito da Rede, as normas criadas pela programação podem ser mais eficazes do que
normas tradicionais, ainda que estas últimas não deixem de ser
utilizadas para sua regulação. (LEONARDI, 2012, p. 148).
Segundo o professor Lessig (Cf. LESSIG, 2006), pode-se regular a Internet de quatro modos: a) por arquiteturas de controle;
b) pelo próprio sistema jurídico, aliado c) às normas sociais e d) às
normas de mercado.
As arquiteturas de controle a que se refere Lessig, são me-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
canismos tecnológicos sobrepostos às características originais da
Internet que restringem de forma intencional o comportamento
dos seus usuários, podendo forçar determinadas condutas ou coibir certas práticas.
Não é difícil compreender a ideia de regulação por meio da
arquitetura. Em contextos mais simples, ela encontra-se no cotidiano das pessoas. Por exemplo, nas ruas de áreas residenciais,
em que pedestres transitam com frequência, é comum haver quebra-molas, com o intuito de que os veículos automotores reduzam
a velocidade e assim o risco de atropelamento seja reduzido.
Dentro dos ônibus, normalmente há uma catraca por onde
os passageiros passam, um por cada vez, a fim de que o cobrador
exerça um controle sobre quem já pagou a passagem e quem ainda falta pagar, ou seja, o objetivo é facilitar a cobrança do bilhete
de viagem.
Lawrence Lessig menciona o trabalho de Robert Moses, que
projetou pontes baixas em LongIsland, Nova Iorque, para impedir
a passagem de ônibus em certos locais, mas que o real objetivo era
dificultar o acesso da população negra – maior usuária do sistema
de ônibus na época – às praias públicas, promovendo a segregação21.
Isto mostra que a arquitetura pode suprimir a aparência de
algo ruim facilmente, levando ao pensamento de que é a “normalidade” das coisas. Isso se dá porque a arquitetura dispõe de uma
executoriedade instantânea, ao passo que as demais modalidades
de regulação pressupõem a existência de um controle social e estatal para o efetivo cumprimento das normas.
Essa autoexecutoriedade da regulação por meio da arqui21
Neither is the principle limited to virtuous regulation: Robert Moses built bridges on Long Island to block buses, so that African Americans, who depended primarily on
public transportation, could not easily get to public beaches.That was regulation through
architecture, invidious yet familiar. LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. Nova Iorque:
Basic Books, 2006. Disponívelem: http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf,
p. 128.
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Sumário
205
tetura pode facilitar a adoção de medidas inconvenientes para o
Estado, e até mesmo injustas, visto que ela se dá de forma indireta,
muitas vezes escondendo qual o responsável pela regulação.
As quatro modalidades de regulação de Lessig (direito, normas sociais, mercado e arquitetura), explica Marcel Leonardi, não
são estanques, nem mutuamente exclusivas. Ao contrário, elas interagem entre si, cada uma exercendo coerção do seu modo. Por
vezes, essas modalidades se complementam e se reforçam, e em
alguns casos, entram em conflito. (LEONARDI, 2012, p.166).
O Direito continua sendo, por excelência, a modalidade
tradicional e preponderante de regulação da Internet. Porém, no
âmbito da Rede, nem sempre é a modalidade mais eficiente. Em
vários casos, a limitação da jurisdição e do sistema jurídico de um
país geram dificuldades para obtenção de tutela para a vítima de
violação de um direito da personalidade.
O exemplo mais notório disso é a Lei n. 9.610 de 1998, que
regula os direitos autorais. A grande facilidade de reprodução de
obras digitais, como por exemplo, músicas, vídeos, livros etc, exige mecanismos que sejam eficazes, ante a incapacidade da tutela
da Lei em proteger os direitos autorais. Por isso, meios alternativos são criados, como os “bloqueios” presentes nas mídias com o
objetivo de barrar a pirataria. Ou seja, neste caso, diante de uma
necessidade do mercado, este atua em conjunto com a arquitetura
de forma a garantir a tutela dos direitos previstos em Lei.
Ao lado da arquitetura e do direito, as normas sociais também regulam a Internet. Quando se escreve em letras garrafais,
sabe-se que quem o fez está expressando uma irritação, equivalente a falar gritando em uma conversa comum, e por isso deve ser
evitado. Deve-se evitar repassar correspondência eletrônica contendo correntes e demais coisas sem importância, bem como não
espalhar boatos. Em grupos de discussão, sempre se deve checar
as respostas anteriores antes de se fazer uma pergunta, pois esta
pode ter sido respondida já. Estas são exemplos de normas sociais,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
bastante comuns para qualquer usuário da Rede.
O mercado, conforme já visto acima, tem o poder de exercer
regulação na Internet. Além disso, a regulação se dá pelo próprio
fornecimento de serviços, visto que é cobrado um preço, que pode
servir de barreira a uma determinada parte da população, bem
como os métodos de pagamento utilizados. Muitos serviços, como
o Netflix, serviço de streaming de vídeos (transmissão online de filmes, séries, shows, por exemplo, sem precisar “baixar” o arquivo
de vídeo, que fica armazenado no servidor da empresa), aceitam
somente pagamentos através de cartão de crédito, excluindo as
pessoas que não dispõe desse meio.
Importa aqui ressaltar que nenhuma dessas modalidades
de regulação tem uma efetividade tão grande quanto a arquitetura. Aduz Leonardi que o hardware e o software que compõe a Rede,
constituem um conjunto de entraves que permitem, proíbem e
inibem certas condutas, funcionando de modo automatizado, até
que sejam reprogramados para operar de modo diverso. Assim, a
estrutura física e lógica acaba por determinar normativamente o
funcionamento da Internet. (LEONARDI, 2012, p. 172).
Apesar disso, o “código”, ou arquitetura, que tem sua aplicação imediata, quase infalível e a níveis de perfeição sobre-humanos, não pode ser esquecido pelo Direito e tratado como solução única para todo e qualquer problema. Estaria se correndo um
risco de se trocar o direito emanado do Estado por um poder de
fato daqueles que controlam a tecnologia. (Idem, Ibidem, p.176).
Analisando as ideias de Lessig, Marcel Leonardi (Ibidem, p.
177) retira quatro conclusões: a) no âmbito da Internet, seu “código” é o Direito; b) esse “código” é plástico, ou seja, a arquitetura da
Rede pode ser modificada; c) a ausência de normas jurídicas pode
fomentar a criação de “código” de má qualidade; e d) boas leis podem invalidar “código” de má qualidade.
Capa
Sumário
207
4.2 O MARCO CIVIL DA INTENET
O Projeto de Lei nº 2.126, conhecido como Marco Civil da
Internet, depois de idas e vindas nas casas do Congresso, acabou
sendo sancionado pela Presidência da República em 23 de abril de
2014, transformando-se na Lei nº 12.965.
Não há como negar a importância histórica dessa lei, não só
para o Brasil, mas a nível mundial, por se tratar da primeira legislação do tipo, cujo artigo 1º explica a sua função: “Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet
no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”.
No que toca aos direitos da personalidade, o Marco Civil da
Internet, já em seu artigo 2º, destaca em seu inciso II o “desenvolvimento da personalidade em meios digitais” como um de seus
fundamentos.
O artigo 3º trata dos princípios que disciplinam o uso da Internet no Brasil, indicando a “proteção da privacidade” no inciso II.
No parágrafo único, consta que os princípios aí expressos não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.
A própria lei indica como deve ser procedida a interpretação dela. Serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a “natureza da internet”, seus usos e
costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural.
Interessante o posicionamento de Lawrence Lessig a respeito da “natureza” da Internet:
Nature.Essence.Innate. The way things are. This kind
of rhetoric should raise suspicions in any context. It
should especially raise suspicion here. If there is any
place where nature has no rule, it is in cyberspace.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
If there is any place that is constructed, cyberspace
is it. Yet the rhetoric of “essence” hides this constructedness. It misleads our intuitions in dangerous
ways.
Em uma tradução livre: Natureza. Essência. Inata. A forma
como as coisas são. Este tipo de retórica deve levantar suspeitas
em qualquer contexto. Deve especialmente levantar suspeitas
aqui. Se houver qualquer lugar onde a natureza não governa, é no
ciberespaço. Se há qualquer lugar que foi construído, este é o ciberespaço. No entanto, a retórica da “essência” esconde essa artificialidade. Ele engana nossas intuições de formas perigosas.
Essa crítica se dirige ao fato de a Internet ser uma criação,
cuja arquitetura pode ser mudada, reescrita a qualquer momento.
Diferente da água, por exemplo, que sempre vai ser dois átomos
de hidrogênio e um de oxigênio, vai ter ponto de ebulição a 100º C
e ponto de fusão a 0º C em condições atmosféricas de 1Atm, esta
é sua natureza. Já a Internet, será como for feita. Obedecerá a seu
“código”, conforme a programação que lhe é dada. Produto do homem ou até mesmo de uma inteligência artificial.
O artigo 7º da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014 assegura aos
usuários da Internet uma série de direitos. Dentre eles, a proteção
a direitos da personalidade é destacada nos incisos I, que garante
a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e
indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; no inciso II, que garante a inviolabilidade e sigilo do fluxo
de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na
forma da lei; e no inciso III, garantindo a inviolabilidade e sigilo de
suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial.
O inciso XIII do mesmo artigo garante a aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo
realizadas na internet, não restando dúvidas quanto à incidência
Capa
Sumário
209
do CDC nestes casos.
O artigo 8º trata diretamente do direito à privacidade, estabelecendo nulidade de cláusulas que impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas ou não ofereçam
como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para
solução de conflitos decorrentes de serviços prestados em território nacional:
Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para
o pleno exercício do direito de acesso à internet.
Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput,
tais como aquelas que:
I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das
comunicações privadas, pela internet; ou
II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro
para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil.
Surge uma questão: se o ambiente da Rede, o ciberespaço, não pode ser considerado um espaço físico, como identificar o
serviço prestado “no Brasil”? A solução é simples: primeiro, quem
utiliza a internet, sempre o faz de algum terminal, seja um computador, um tablete, um smartphone. A partir desse meio físico
é que o usuário interage com a Rede e pode contratar serviços. A
Lei de Introdução das normas do Direito Brasileiro (LINDB) acaba,
por fim, resolvendo o problema, em seu art. 9º, § 2º, dispõe que
a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar
em que residir o proponente.
A grande crítica ao Marco Civil da Internet faz-se justamente por conta da responsabilidade civil, disciplinada no Capítulo III,
seção III da Lei.
Dispõe o artigo 18 que o provedor de conexão à internet não
será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conte-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
údo gerado por terceiros. Já o artigo 19 diz que com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor
de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado
civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, “após ordem judicial específica”, não tomar as providências
para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do
prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como
infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Ao contrário de alguns julgados já mencionados no corpo
do presente trabalho, em que os provedores responderam por não
tomarem providências depois de terem sido informados de um
possível dano à direitos da personalidade, sem tomar nenhuma
medida a mitigar o dano, aqui a responsabilidade do provedor só
nasce quando este recebe “ordem judicial específica”.
Neste ponto, e em sentido contrário, surge o artigo 21, dizendo que o provedor de aplicações de internet que disponibilize
conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado “subsidiariamente” pela “violação da intimidade” decorrente da divulgação,
sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou
de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais
de caráter privado quando, “após o recebimento de notificação
pelo participante ou seu representante legal”, deixar de promover,
de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço,
a indisponibilização desse conteúdo.
Seu parágrafo único ainda estabelece que a notificação
prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado
como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
Se no artigo 19 o provedor só pode ser responsabilizado depois de “ordem judicial específica”, aqui, no artigo 21, o provedor
será responsabilizado de forma subsidiária se, após “notificação
da vítima”, não tomar as providências cabíveis para tornar indis-
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Sumário
211
ponível material de cunho sexual desautorizado.
Pecou o legislador em incluir somente a “violação da intimidade” decorrente de materiais contendo cenas de nudez ou de
sexo. Aquela pessoa que for vítima de uma brincadeira de mau
gosto, de uma situação constrangedora que não de cunho sexual, ficaria desamparada, a depender de ingressar com uma ação
pleiteando a retirada do conteúdo, pois os provedores só teriam
obrigação de retirar o mesmo depois de ordem judicial. A lesão à
honra e à privacidade não deixa de ser um dano significativo só
porque não está expondo a pessoa em um ato sexual. O dano causado pelo cyberbullying pode ter consequências nefastas na personalidade do indivíduo e merece a tutela do artigo 21.
4.3 INDENIZAÇÃO NÃO PECUNIÁRIA
Ao dano extrapatrimonial, apesar do seu reconhecimento
e desenvolvimento na doutrina e jurisprudência através dos anos,
quando se fala em indenização, é oferecida como resposta uma
quantia, ou seja, a indenização de algo não patrimonial se dá por
meio pecuniário.
Muitas das vezes essa indenização não é o suficiente para
satisfazer a vítima, seja pela quantia, seja pelo sofrimento interno
dela. Para muitas empresas pagar uma indenização a uma vítima
não surte muito efeito, pois o lucro auferido com práticas danosas
supera o prejuízo com uma eventual indenização.
Ao buscar soluções não pecuniárias para a resolução de
conflitos decorrentes da Internet, primeiramente se encontra um
instrumento presente na Lei de Imprensa (lei que não foi recepcionada pela Constituição e 1988, conforme o STF na ADPF 130-7), a
retratação pública. (SCHREIBER, 2013, p. 196).
Embora haja algum receio de aplicar a retratação pública
em situações fora daquelas que a lei de imprensa regia, este vem
a ser um instrumento de bastante utilidade na resolução de confli-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tos na Internet.
Será formidável para os casos em que houve violação do
direito à honra, pois um sítio eletrônico, por exemplo, que causou
dano a alguém poderia ser condenado a publicar desculpas públicas em sua página principal, podendo também, cumulativamente,
ser condenado em quantia pecuniária. Mas a indenização não pecuniária seria a principal.
Já no caso de violação aos direitos da privacidade, a retratação pública deve ser evitada. A vítima, neste caso, quer o máximo de
discrição possível, de modo a não piorar o dano que já sofreu.
Leonardi explica que o Streisand effect, ou efeito Streisand é
uma expressão cunhada por Mike Masnick para descrever situações
em que a tentativa de remoção de determinado conteúdo de um sítio eletrônico causa o resultado oposto, e o conteúdo passa a ser
reproduzido e divulgado de forma viral. (LEONARDI, 2012, p. 351-2).
O efeito Streisand tem origem no incidente que ocorreu em
2003 com a cantora Barbara Streisand, que pediu uma indenização
de cinquenta milhões de dólares por uma fotografia aérea de sua
casa em Malibu. Após esse episódio, a foto foi reproduzida descontroladamente na Rede.
No Brasil, esse efeito ocorreu no famoso caso Cicarelli, em
que a modelo Daniela Cicarelli foi filmada numa troca de carícias
com o namorado numa praia espanhola. Após conseguir um bloqueio temporário do Youtube, canal que exibiu o vídeo na Internet,
a cena se espalhou por toda a rede, mesmo o vídeo original tendo
sido retirado do ar, e até hoje pode ser encontrada alguma versão
do vídeo.
Uma questão surge quanto ao aspecto processual da indenização não pecuniária: pode o juiz impor a retratação pública? No
caso de a vítima pleitear somente a indenização em forma de pecúnia, o magistrado poderia atuar por conta própria, concedendo
também a reparação não pecuniária?
Schreiber (2013, p. 202) aponta que a doutrina tradicional
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Sumário
213
diz que não, pois o magistrado estaria adstrito à resposta pecuniária, condenando o réu à indenização ou deixando de condená-lo.
O mesmo autor aduz que as inovações em matéria processual, como o amplo poder dado aos magistrados para se alcançar
a chamada tutela específica, presente nos artigos 461 e 461-A do
Código de Processo Civil22, são completamente aplicáveis em se falando de responsabilidade civil.
Quando se compreende que a indenização é apenas um
dos meios de se alcançar a compensação pelo dano sofrido, ao juiz
resta uma ampla liberdade para combinar a indenização pecuniária com outros elementos desprovidos de valor monetário.
O Projeto de Lei nº 5.139 (BRASIL b, 2014), em tramitação
no Congresso, que disciplina a ação civil pública para a tutela de
interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e dá outras providências, em seu artigo 25 traz uma solução interessante, que coloca a reparação específica em uma posição privilegiada, dispondo que na ação reparatória dos danos provocados ao
bem indivisivelmente considerado, sempre que possível e “independentemente de pedido do autor”, a condenação consistirána
prestação de obrigações específicas, destinadas à reconstituição
do bem, mitigação e compensação do dano sofrido.
E ainda, no parágrafo único, dependendo das características dos bens jurídicos afetados, da extensão territorial abrangida
e de outras circunstâncias, o juiz poderá determinar, em decisão
fundamentada e “independentemente do pedido do autor”, as
providências a serem tomadas para a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar, entre outras, a realização de atividades
tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se repita.
22
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o
pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do
adimplemento.
Art. 461-A. Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela
específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Ainda se trata de um projeto de lei, mas mesmo assim tem
sua importância por indicar avanços, ou pelo menos tendências,
no sentido de que o direito processual melhor satisfaça o direito
material. Por enquanto, o que se vê na prática é que os magistrados seguem a corrente tradicional, sendo o pedido da parte uma
baliza para suas decisões.
O ultimo ponto a ser abordado é sobre o pedido de desculpas do ofensor e a possibilidade de condenação em danos morais.
Primeiramente, há de se levar em conta as peculiaridades
do caso concreto. O dano extrapatrimonial no âmbito da Internet
assume características próprias, como já abordado nos itens 2.2 e
2.3 do presente trabalho, podendo se propagar de forma rápida,
além de poder também se perpetuar no tempo.
O artigo 944 do Código Civil diz que a indenização mede-se
pela extensão do dano. Se o dano for tal que somente a retratação
seja suficiente à compensação, a indenização pecuniária mostra-se desnecessária e fora de propósito. Porém, existem casos em
que a o dano extrapatrimonial atinge proporções tamanhas que,
apenas o pedido de desculpas isolado não é o bastante.
O STJ, no REsp959.565 – SP23 reformou acórdão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que
substituiu a reparação pecuniária pela retratação, na imprensa,
num caso em que uma empresa foi vítima de protesto indevido de
duplicata mercantil.
No voto, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino es23
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. CONDENAÇÃO APENAS À RETRATAÇÃO PÚBLICA. INSUFICIÊNCIA. INDENIZAÇÃO PECUNIÁRIA. REPARAÇÃO INTEGRAL DO DANO MORAL. 1. Limitação da reparação por danos
morais pelo tribunal de origem à retratação junto à imprensa.2. A reparação natural do
dano moral, mesmo se tratando de pessoajurídica, não se mostra suficiente para a compensação dos prejuízos sofridos pelo lesado.3. Concreção do princípio da reparação integral, determinando a imposição de indenização pecuniária como compensação pelos
danos morais sofridos pela empresa lesada.4. Sentença restabelecida, mantendo-se o
valor da indenização por ela arbitrado com razoabilidade. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO
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Sumário
215
clarece que a reparação in natura e a reparação pecuniária não são
excludentes entre si, devendo-se respeito ao princípio da reparação integral, expresso no art. 944 do Código Civil, além de que a
reparação nos danos extrapatrimoniais, conforme a tradição brasileira, é feita através de dinheiro (BRASIL c, 2014).
A reparação natural a que alude o ministro é conceituada
por ele em sua obra “Princípio da reparação integral” no sentido
de que se deve restituir ao lesado exatamente o mesmo bem extraído do seu patrimônio para que ele seja colocado no estado em
que se encontraria caso não tivesse ocorrido o ato ilícito (SANSEVERINO, 2010, p. 34).
Segundo Sanseverino, os prejuízos extrapatrimoniais, dada
sua própria natureza, não se coadunam com a reparação in natura,
com exceções de algumas situações apontadas pela doutrina.
Tais medidas – como a retratação pública – não constituem
propriamente casos de reparação natural, segundo o autor, pois
não se conseguiria sanar completamente os prejuízos extrapatrimonais, restando que apenas serviriam para minorar os efeitos
dos danos, visto que é impossível a recomposição de um bem jurídico sem conteúdo econômico, como os direitos da personalidade.
Conclui que, sendo inviável ou insuficiente a reparação natural, a solução é a indenização pecuniária. (SANSEVERINO, 2010, 227).
Ora, se o ofensor desculpa-se de modo eficaz, como a publicação de uma nota em sua linha do tempo (timeline) do Facebook periodicamente, na mesma proporção do dano à honra por
ele causado, o dano restará reparado, sendo desnecessária uma
condenação em danos morais, que caso ocorra, será totalmente
desvirtuada de seu propósito.
Portanto, no caso de a retratação ser inócua, não há outra
solução senão a condenação do ofensor em danos morais, e para
isso, que sejam observados os critérios já descritos no capítulo segundo, na quantificação do dano.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
5 CONCLUSÕES
No presente trabalho, foram apresentadas no primeiro tópcio as características da Internet, bem como a definições trazidas
pela Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, o Marco Civil da Internet, e
ainda, conceitos como o de ciberespaço, Web 2.0, redes sociais e
provedores de Internet.
O direito à honra e o direito à privacidade – nele compreendidos o direito à imagem, o direito à intimidade, o direito à vida
privada e o direito ao sigilo – são os principais direitos da personalidade violados no âmbito da Internet. Conforme a tecnologia
avança, novas formas de causar dano também surgem. Disso decorre que é praticamente impossível apontar todas as situações
em que ocorrem danos extrapatrimoniais na Internet.
O uso da imagem pessoal (vídeo, fotografia digital, áudio
ou qualquer outro formato de mídia) sem autorização é apto a
causar dano, independente de ter ou não ferido a honra da pessoa.
As redes sociais tornaram-se instrumentos de propagação
de informação. Os comentários nelas postados podem causar sérias lesões à honra, principalmente no chamado cyberbullying, ou
intimidação cibernética.
Para a quantificação do dano moral na Internet, alguns critérios devem ser observados. Os dois principais são a potencialidade e a efetividade do dano.
Na delimitação da extensão do dano, quatro fatores são de
imensa utilidade: 1) registros de acesso e trafego de dados do sítio
eletrônico; 2) a popularidade do sítio eletrônico (número de visitantes por dia etc); 3) forma de exploração do conteúdo divulgado
(comercial ou apenas divulgação pessoal sem fins lucrativos); e 4)
o período de tempo em que o conteúdo ficar disponível na Rede.
No que diz respeito à indisponibilidade dos direitos da personalidade, observa-se que pode ser admitida uma autolimitação
dos mesmos, desde que atenda a uma realização pessoal no seu
Capa
Sumário
217
titular. Uma pessoa pode publicar sua fotografia em uma rede social sem que isso implique em renúncia ao direito à imagem, e o
uso dessa fotografia por terceiros estaria sujeito à autorização da
pessoa titular do direito.
O último tópico traz soluções possíveis para os conflitos
surgidos na Internet. São apontadas pela doutrina quatro formas:
1) autoregulação; 2) direito do ciberespaço (separado do direito
comum); 3) analogia; e 4) uma abordagem mista.
A abordagem mista mostra-se como uma solução mais
eficiente, na medida em que permite uma regulação da Internet
através da própria arquitetura, em conjunto com o próprio sistema
jurídico, aliado às normas de mercado e às normas sociais.
O Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 23 de abril de 2014),
que passou a estabelecer princípios e garantias, direitos e deveres
para o uso da Internet no Brasil, possui uma grande importância
histórica, por ter sido a primeira legislação do tipo no mundo.
Um dos fundamentos desta lei é o “desenvolvimento da
personalidade em meios digitais” (art. 2º, II), ao lado do princípio
da proteção da privacidade (art. 3º II).
Por fim, quanto à indenização não pecuniária, esta se mostra viável em se tratando de danos à honra, em que o réu poderia
ser condenado a publicar desculpas públicas em sua página na
Internet, por exemplo. E, no caso de violação à privacidade, uma
retratação pública poderia agravar a situação, ocorrendo o que se
chama de efeito Streisand.
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O PROBLEMA DA RESPONSABILIDADE
NO DESCARTE DE RESÍDUOS SÓLIDOS
(LEI 12.305/2010)
Luanna Marília Araujo Padilha de HOLANDA24
Marcos EHRHARDT JR.25
RESUMO: A sociedade moderna, marcada pelo consumo em massa e pela esgotabilidade dos recursos naturais, vem há certo tempo
tendo que lidar com o problema de encontrar o adequado destino
para os rejeitos da produção. Este desafio é ainda maior nas grandes cidades que até o momento ainda possuem como principal
destino para os resíduos os lixões a céu aberto localizados no meio
dos centros urbanos, prejudicando a saúde de toda a população
que habite as áreas próximas. Tendo em vista esta preocupação,
surge a Lei 12.305/2010, Política Nacional de Resíduos Sólidos, visando incentivar a reciclagem e uma produção e consumo mais
conscientes, tendo como principal objetivo acabar com esses lixões a céu aberto, que maculam a realidade ambiental brasileira
urbana. Para alcançar tais objetivos, a nova lei federal implanta a
logística reversa e a responsabilidade compartilhada entre Estado, Empresa e Consumidor, que serão devidamente explanados ao
longo desta dissertação, no intuito de, ao final, demonstrar qual a
responsabilidade de cada um destes entes no moderno tratamento dos resíduos, expondo os principais problemas que a novel legislação trouxe para a responsabilidade civil nesta seara.
24
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL.
25
Advogado,Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da graduação
e do mestrado da Universidade Federal de Alagoas.
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Palavras-chave:Política Nacional de Resíduos Sólidos. Empresa.
Consumidor. Estado. Responsabilidade Civil.
1 INTRODUÇÃO
O consumo desenfreado e a busca incessante pelo lucro, característicos da sociedade moderna, possuem a tendência de não
apenas disponibilizar ao mercado a circulação de bens e capitais,
mas de trazer para o meio ambiente os detritos desta fabricação
que no Brasil ainda não possuíam o devido tratamento, sendo lançados de qualquer maneira na natureza, comprometendo a saúde
e preservação do meio circundante.
A despreocupação com os rejeitos da industrialização é
concepção ultrapassada, fruto de um momento histórico onde o
acúmulo desses materiais ainda não havia alcançado uma escala preocupante, como a atual. Nesse contexto, a concepção de irresponsabilidade do consumidor e da empresa pelos refugos dos
produtos consumidos, deixando para o Estado o ônus da limpeza
pública, cai por terra embasado na solidariedade ambiental, dando lugar para uma responsabilidade compartilhada entre todos
participantes da cadeia consumerista.
Dessarte, a necessidade de gerir os resíduos advindos da
produção industrial e a incapacidade do ente estatal realizar esta
tarefa sozinho, inaugurou a responsabilidade do proprietário pelos dejetos gerados no meio ambiente, configurando hipótese de
aplicação do princípio da função social da propriedade (GUILHERMINO, 2012, p.52.), que não mais se esgota na forma de produzir,
mas se amplia e alcança o descarte, reciclagem e diversas outras
fases antes sequer consideradas parte do ciclo produtivo. É impensável que o proprietário, “ao usufruir das vantagens que o bem lhe
oferece, descarte a parcela indesejável no meio ambiente e reduza
ou prejudique a qualidade de vida de uma população que jamais
usufruiu daquele artigo”(PHILLIPI JR, 2005, p.757).
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Sumário
223
Neste viés, é imprescindível examinar primeiramente como
o lixo é tratado no Brasil, para demonstrar o panorama que inspirou a edição da PNRS, ao tempo que em um segundo momento,
observar-se-á o ônus da empresa e do Estado antes de sua edição
e as modificações por ela empregadas, no objetivo de esquadrinhar as alterações que a logística reversa, grande trunfo desta norma, trouxe para a propriedade e responsabilidade civil ambiental.
2 A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
(LEI 12.305/2010): INOVAÇÕES PARA O
TRATAMENTO DO LIXO NO BRASIL
2.1 O PANORAMA GERAL DO LIXO NO BRASIL
Faz parte do cotidiano nacional os imensos lixões a céu
aberto, esgotos que deságuam em mares ou rios, queimadas e
tantas outras formas fáceis e menos custosas de exterminar os resíduos. Porém, esta suposta praticidade esconde a perversidade
dos danos futuros e dificilmente reversíveis que a disposição inadequada dos rejeitos pode carrear.
Conforme a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico
1989/2008, realizada pelo IBGE (BRASIL, 2008), restou verificado
que 50,8% dos resíduos sólidos são despejados indiscriminadamente em vazadouros a céu aberto, sendo 22,5% em aterros controlados e 27,2% a aterros sanitários, sem contar o sem-número
de dejetos lançados diariamente em outros locais inapropriados.
Neste mesmo estudo, constatou-se que dos 5.564 municípios só
998 realizavam coleta seletiva de lixo, sendo a região Norte a pior
classificada na escala de reaproveitamento dos detritos.
Em adição, há o entrave do crescimento populacional, o
qual configura mais um desafio para equacionar a produção, consumo sustentável e controle ambiental de descarte de rejeitos. No
último censo do IBGE em 2010 (BRASIL, 2010), atestou-se que a po-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
pulação brasileira chegou a 190.732.694 pessoas, o que aumenta
ainda mais a preocupação com o manejo dos resíduos sólidos, vez
que por dia no Brasil, no ano 2000, eram produzidos 228.413 toneladas de lixo (BRASIL, 2000).
Outra face da problemática cinge-se ao saneamento público que também é caótico no país. De acordo com a pesquisa do
IBGE noticiada, unicamente 55,25% dos entes munícipes estão
servidos com esgoto sanitário, demonstrando o atraso deste segmento na saúde e limpeza urbana brasileira. Nessa toada, o destino nacional preferido para os resíduos sólidos permanece sendo
os lixões a céu aberto; entretanto, este tipo de unidades acarretam
inúmeros prejuízos para a população cercana, que sofre com os
odores, gases tóxicos e poluentes provenientes da decomposição,
além de problemas respiratórios, cancerígenos e tantos outros.
Em estudo realizado pela ABRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Publica e Resíduos Especiais) restou
demonstrado que de 2009 para 2010 a geração de resíduos sólidos urbanos superou a taxa de crescimento populacional, o que
evidencia a majoração da quantidade de lixo produzido por pessoa ((PANÔRAMA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL, 2010). Insta
salientar que a referida pesquisa apontou Alagoas como o estado
com pior sistema de armazenamento regular de lixo do país. De
acordo com o levantamento, 96,9% das 2.891 toneladas do lixo
produzido diariamente pela população alagoana são despejadas
em lugares considerados inadequados.. Como se não bastasse, quando se trata de produtos oriundos do desenvolvimento da tecnologia, os quais se desatualizam
e inutilizam-se em velocidade diretamente proporcional ao lançamento de novos modelos, como os computadores, celulares,
tablets, etc., integrantes do hoje conhecido lixo tecnológico e que
contêm compostos químicos extremamente danosos ao meio ambiente, entre eles: lítio, cádmio, urânio, chumbo, etc; o Brasil ainda é inexperiente para conduzir a adequada disposição pós-uso e
Capa
Sumário
225
o reaproveitamento destes artigos. De acordo com o Conselho de
Logística Reversa Brasileiro (CLRB), de 1994 a 2006, o país passou
por uma expansão na geração desta espécie de bens de consumo,
a exemplo dos aparelhos celulares que passaram de 0,5 milhões de
unidades, para 10 milhões, neste intervalo de tempo(LEITE, 2012).
Os chamados EEE (Equipamentos Eletro Eletrônicos) são
cobiçados por todo o planeta e já fazem parte do nosso dia-a-dia, o
problema inicia-se quando ele precisa ser descartado, pois maioria dos usuários não detém o conhecimento do que pode ser feito
para dispor adequadamente materiais como carcaças de discos rígidos, monitores, impressoras ou mesmo aparelhos inteiros. Estes
dejetos se bem reaproveitados, podem transformar-se em novos
equipamentos, principalmente após a fundição do metal, mercúrio e outros compostos químicos neles enquadrados. Todavia,
como já descrito, são poucas as iniciativas neste sentido no território brasileiro, em que pese a ONU em 2010 ter publicado relatório no qual o Brasil foi considerado o pais emergente com maior
produção per capita de lixo eletrônico por ano, cerca de 0,5 quilos
por pessoa26.
Mais um problema relacionado ao lixo no Brasil está no uso
de pneus e utensílios feitos de plástico que segundo o CLRB, também tiveram considerável crescimento nos últimos anos, levando,
como é de conhecimento público, à proibição em alguns estados
brasileiros, do uso das sacolas plásticas em supermercados. Não
se pode olvidar ainda a borracha, componente basilar dos pneumáticos, possui um tempo muito incerto de degradação e tem
atingido níveis altíssimos, segundo a Reciclanip27, chegando à
monta de 67,3 milhões produzidos no ano de 2010. Já quanto aos
materiais de plástico, os dados de pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Tecnológica do Estado de São Paulo apontam que
26__________. Recycling – From E-waste to resources.Disponível em: <http://
www.unep.org/PDF/PressReleases/E-Waste_publication_screen_FINALVERSION-sml.
pdf>. Acesso em agosto de 2013.
27Disponívelem :<http://www.reciclanip.com.br/v3/>.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
desde 2009, o brasileiro está consumindo mais de trinta quilos de
plástico reciclável anualmente, o que demonstra um crescimento de 50% em relação há dez anos anteriores (KONCHINSCKI, 2011),
já havendo sido divulgado que o Brasil deixa de reaproveitar 80%
deste plástico consumido28.
As pilhas e baterias são outro problema, anualmente são
produzidas 800 milhões de pilhas comuns, 10 milhões de baterias
de celular, 12 milhões de baterias automotivas e 200 mil baterias
industriais (ABREU, 2012). Sem falar da quantidade de metais perigosos que as compõem, como zinco, cádmio, manganês, que podem
levar a danos no sistema nervoso central humano.
Estima-se que sejam descartadas pela sociedade brasileira cerca de cem milhões de lâmpadas fluorescentes por ano, das
quais 94% vão para aterros sanitários sem o devido tratamento.
Desde 2001 o consumo deste produto cresceu 20%29, fator preocupante haja vista que o vapor de mercúrio de sua composição,
quando liberado, pode contaminar os lençóis freáticos e gerar outros danos para a cadeia alimentar dos organismos vivos.
Ressalte-se que apesar dos dados coligidos, não é o aumento da população o exclusivo responsável pelo crescimento de
refugos gerados, há de levar-se em conta a tendência faticamente constatada da expressiva introdução no mercado de produtos
descartáveis (PRESTES, p.304), a exemplo das garrafas de refrigerante, hoje plásticas e anteriormente de vidro e reutilizáveis; o barateamento das matérias primas hodiernamente utilizadas nestas
embalagens e nos próprios utensílios comercializados tornou a
sociedade descartável e geradora compulsiva de resíduos.
28
Disponível em :<http://www.ecodesenvolvimento.org/posts/2011/outubro/
brasil-deixa-de-reaproveitar-80-do-plastico>. Acesso em 31 de julho de 2012.
29
Disponível em:
<http://sustentabilidades.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13:reciclagem-de-lampadas- fluorescentes>. Acesso em 28/10/2012.
Capa
Sumário
227
2.2 TRATAMENTO LEGAL DOS RESÍDUOS
SÓLIDOS NO BRASIL
Quando se trata da regularização normativa do lixo ou
dos resíduos sólidos a legislação brasileira ainda é muito incipiente, sendo esta uma das razões para edição da Lei Federal
12.305/2010. Primeiramente, a lei ambiental por si só não se debruça com afinco sobre o assunto, a Política Nacional do Meio
Ambiente sequer o menciona em seu texto.
A despeito desta omissão, existiam outras citações pontuais em trechos da Lei 11.445/2007 (Plano de Saneamento Básico Nacional); na Lei 9.974/2000 que ordenou o recolhimento
das embalagens de agrotóxicos pelos usuários; no Dec.875/93
que rege o movimento transfronteiriço e armazenamento de
rejeitos potencialmente perigosos, e ainda na Lei 10.308/2001
estipuladora de critérios para a disposição final de refugos radioativos.
Sob outro viés, no âmbito administrativo, o CONAMA
(Conselho Nacional do Meio Ambiente) é rico em resoluções,
principalmente acerca dos resíduos sólidos. Buscando cumprir
o disposto na PNMA, ele editou com mais significação sobre a
matéria, exemplificativamente, a Res. 5/1993 que regula a situação dos resíduos gerados nos portos, aeroportos, terminais
ferroviários e rodoviários; a Res. 307/2002 que estabeleceu critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos da construção civil; a Res. 313/2012 acerca do Inventário Nacional de Resíduos Sólidos Industriais, a Res. 358/2005 que regulamentou os
critérios e procedimentos a serem adotados para a disposição
final dos dejetos oriundos dos serviços de saúde e as mais importantes de todas elas para o nosso estudo, a Res. 401/2008
que dirimiu as questões envolvendo o descarte e recolhimento
de pilhas e baterias; e a Res. 416/2009 que dispôs sobre a prevenção à degradação ambiental causada por pneus inservíveis
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
e sua destinação ambientalmente adequada.
No
plano
federal
existe ainda o Decreto-Lei 5.940 de 2006, o qual
Institui a separação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, na fonte geradora, e a sua destinação às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis.
No cenário estadual, a situação é bastante variada, havendo aqueles que possuem forte preocupação com o tema e outros
que unicamente se restringem a seguir as determinações da União
sem editar o correspondente instrumento normativo local. Exemplo de estados que manifestaram alguma preocupação com o
tema foram o Rio de Janeiro através da Lei 4.191 de 2003 que institui uma Política Estadual de Resíduos Sólidos; a Lei Municipal de
Diadema n° 2.336 de 2004 em São Paulo que estabelece um sistema de recolhimento desses resíduos no município e a Lei Estadual
12.493 de 1999 no Paraná que estabelece princípios, procedimentos, normas e critérios referentes à geração, acondicionamento,
armazenamento, coleta, transporte, tratamento e destinação final
dos resíduos sólidos no Estado do Paraná30.
Retrocedendo um pouco, é possível observar que o grande
número de resoluções editadas pelo CONAMA reflete a intenção
de suprir a omissão do poder legislativo federal. Porém, apesar do
esforço empregado, ainda restaram muitas arestas a serem aparadas, de tal forma, que o próprio Fiorillo afirmava não estar o gerenciamento dos resíduos sólidos submetido a um regime jurídico
único, porquanto este variava de acordo com a localidade onde
fossem gerados e com seu conteúdo (FIORILLO, 2012, p.371).
Estas resoluções já tiveram por diversas vezes sua constitucionalidade questionada pela doutrina brasileira, exemplo disso é
o posicionamento do autor Paulo de Bessa (2002, p. 556) acerca da
Disponível
em:<http://www.lixo.com.br/index.php?Itemid=255&id=148&option=com_content&task=view>. Acesso em dezembro de 2012.
30
Capa
Sumário
229
Resolução 257/99 que trata das pilhas e baterias:
“O ato normativo baixado pelo CONAMA, entretanto, do ponto de vista jurídico, é grandemente controverso e, em tais circunstâncias, de legalidade e
constitucionalidade bastante duvidosos. Em primeiro lugar, merece registro o fato de que a referida
Resolução do CONAMA não encontra fundamento
imediato em nenhum diploma legal elaborado pelo
Poder Legislativo. Igualmente, não consigo vislumbrar, nas competências estabelecidas pelo artigo 8º
da Lei n. 6.938/81, qualquer autorização para que o
CONAMA possa dispor sobre direitos e obrigações
comerciais de produtores e comerciantes de pilhas
e baterias; nem mesmo o Regimento Interno do CONAMA, que foi baixado por uma simples Portaria,
chega a cogitar da competência à qual ora estou me
referindo. É curial que, nos termos da Constituição
vigente em nosso País, inexiste, em nosso direito positivo, a figura jurídica do regulamento autônomo.
Há que se considerar, contudo, que a Resolução ora
sob comento deve ser atendida pelas partes envolvidas até que uma declaração de ilegalidade ou inconstitucionalidade – conforme seja o caso – venha
a ser proferida pelo Poder Judiciário. Assim é, pois
as normas jurídicas, em princípio, gozam de presunção de constitucionalidade.”
Este posicionamento se estenderia para todos os casos regulamentados por atos do CONAMA, porém atente ser a responsabilidade pós-consumo, o real objeto que permeia estes atos administrativos, e esta como veremos a seguir, é uma vertente do princípio
do poluidor-pagador, nesta senda, estas resoluções apenas regulam
de modo prático a forma de cumprimento desta orientação principiológica e não criam uma nova obrigação (LOUBET, 2012).
A PNRS, modifica então o condicionamento e disposição
dos resíduos sólidos no Brasil, introduz conceitos inovadores à
solução da problemática, reconhecendo a possibilidade de imple-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
mentação por instrumentos infra-legais desta regulação.
2.3 A NOVA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS
A ideia de criar uma regulamentação para o descarte de resíduos sólidos no Brasil não é recente, o ideal surge com o projeto
de lei 203/1991 apresentado em 01.04.1991 pelo Senador Francisco Rollemberg (PFL/SE) e somente após 19 anos de emendas
e discussões foi regulamentado pelo Decreto 7.404 de 23.12.2010,
transformando-se na PNRS (FERRI, 2011, p.96).O projeto originário
deteve-se a disciplinar unicamente o descarte final de resíduos do
serviço de saúde, abrangendo depois todos os dejetos excluindo
os radioativos que tem legislação específica.
Estão sujeitas à sua observância pessoas físicas ou
jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou
indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e desenvolvam
ações relacionadas à sua gestão integrada ou gerenciamento; une-se Estado, Empresa e Consumidor, elo tripartite da responsabilidade civil compartilhada deste segmento.
Dentre os seus objetivos estão a proteção da saúde pública
e da qualidade ambiental; estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e serviços; adoção, desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias limpas como forma
de minimizar impactos ambientais; articulação entre as diferentes
esferas do poder público, e destas com o setor empresarial, com
vistas à cooperação técnica e financeira para a gestão integrada de
resíduos; e a prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para: a) produtos reciclados e recicláveis; e b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de
consumo social e ambientalmente sustentáveis (art. 7°).
Todavia, o objetivo geral da política nacional em espeque
cinge-se à gestão integrada e gerenciada dos resíduos sólidos através de um arcabouço de ações isoladas ou em regime de coopera-
Capa
Sumário
231
ção dos Estados, Distrito Federal, Municípios e particulares, neste
particular os incisos X e XI do artigo 3° da nova lei federal, diferenciam estes dois sistemas, veja-se:
X - gerenciamento de resíduos sólidos: conjunto de
ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento
e destinação final ambientalmente adequada dos
resíduos sólidos e disposição final ambientalmente
adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com
plano de gerenciamento de resíduos sólidos, exigidos na forma desta Lei; XI - gestão integrada de resíduos sólidos: conjunto
de ações voltadas para a busca de soluções para os
resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável; Para melhor compreender o seu objeto, urge diferençar resíduos sólidos de rejeitos, conforme os incisos XV e XVI do mesmo
dispositivo supramencionado, in verbis:
XV - rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e
economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente
adequada; XVI - resíduos sólidos: material, substância, objeto ou
bem descartado resultante de atividades humanas
em sociedade, a cuja destinação final se procede, se
propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos
estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades
tornem inviável o seu lançamento na rede pública de
esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face
da melhor tecnologia disponível; Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Destarte, ampliou-se consideravelmente o conceito de
resíduos sólidos e apenas os rejeitos é que serão vistos propriamente como lixo em face da PNRS, devendo receber a destinação
ambientalmente adequada que seria realizada em aterros autorizados, enquanto os resíduos sólidos deverão ser geridos através
das políticas estaduais e municipais que primarão essencialmente
pela reutilização e na sua impossibilidade, a reciclagem, conhecido como o sistema de disposição final ambientalmente adequada.
Nesse esteio, a grande inovação foi sem dúvida a incorporação da logística reversa, conhecida responsabilidade pós-consumo, que permite o retorno do produto ao fabricante para integrar
outra mercadoria ou ser descartado adequadamente, retirando
a exclusividade do dever dos estados e municípios de velar pelo
descarte dos detritos, o que será responsabilidade compartilhada
destes e dos fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores, tal como descreve seu art. 25, veja-se:
Art. 25. O poder público, o setor empresarial e a
coletividade são responsáveis pela efetividade das
ações voltadas para assegurar a observância da Política Nacional de Resíduos Sólidos e das diretrizes e
demais determinações estabelecidas nesta Lei e em
seu regulamento. Cada um dos entes participantes da fabricação, consumo
e descarte dos produtos, terá um papel específico dentro do ciclo
de vida dos resíduos sólidos, conforme descrito no capitulo III da
legislação, a começar pelo titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, que passa a ser o responsável pela organização e prestação direta ou indireta desses
serviços, desde que observados o respectivo plano municipal de
gestão integrada de resíduos sólidos, a Lei nº 11.445, de 2007 e seu
regulamento (art.26). De mais a mais, é relevante enaltecer que a realização pelo
Capa
Sumário
233
serviço público de limpeza e coleta de resíduos não isenta as pessoas físicas ou jurídicas da responsabilidade por danos que vierem
a ser provocados pelo gerenciamento inadequado dos respectivos
resíduos ou rejeitos, pois estas são igualmente responsáveis pela
implementação e operacionalização integral do plano de gerenciamento de resíduos sólidos aprovado pelo órgão competente. Com este novo regramento o consumidor, gerador de resíduos sólidos domiciliares, passa a ter uma tarefa primordial no
ciclo de vida do produto e na implementação da política nacional
in fine, devendo dispor adequadamente os dejetos gerados pelo
seu consumo.
No art. 33 há orientação para que os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem,
após o uso, constitua resíduo perigoso; além de pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; lâmpadas fluorescentes; produtos eletroeletrônicos e seus componentes; estruturarem e implementem sistemas de logística reversa,
mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de
forma independente do serviço público de limpeza urbana e de
manejo dos resíduos sólidos, demonstrando o compromisso da
norma federal em melhor disciplinar o antes apenas dirimido por
meio de resoluções do CONAMA, atendendo ainda as exigências da
ONU ao conferir maior atenção ao compostos químicos e eletrônicos dos artigos de consumo. Este rol, contudo, não é taxativo, ainda que não haja menção expressa no dispositivo legal, pois como
veremos a logística reversa decorre do princípio do poluidor-pagador que é plenamente aplicável a todo produto que tenha capacidade de desequilibrar o meio-ambiente.
O setor público titular do serviço de limpeza urbana pode
firmar acordo setorial com o setor empresarial, encarregando-se
das atividades de responsabilidade deste último, contanto que sejam suas ações remuneradas de acordo com a forma por eles pac-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tuada (art. 33, §7°) e o poder público poderá conceder incentivos
financeiros para o consumidor que disponibilizar adequadamente
os resíduos sólidos nos programas de reciclagem ou reutilização,
além de outras medidas indutoras e linhas de financiamento que
prestigiem as disposições contidas na PNRS, estando presente
aqui mais um exemplo do instituto civil da sanção premial, a qual
abordaremos com maior propriedade nas linhas vindouras.
É certo que nem sempre será possível identificar o causador do dano, tampouco se foi o consumidor que não cumpriu com
seu papel de descartar adequadamente os resíduos, existindo o
que denomina-se de área órfã contaminada, que segundo o art. 3°,
III da citada lei federal é aquela “área contaminada cujos responsáveis pela disposição não sejam identificáveis ou individualizáveis”. Nestes casos, a ação estatal será imprescindível, seguindo os
moldes habituais, sem considerar os ditames da responsabilidade
compartilhada.
O instrumento básico para esta política nacional ser efetivada é o plano nacional de resíduos sólidos, que segundo o art. 15
da Lei 12.305 será elaborado pela União, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente. Os Estados também terão de elaborar
seus respectivos planos com vigência por prazo indeterminado,
abrangendo todo seu território, como condição para receber os
recursos da União ou por ela controlados, destinados a empreendimentos e serviços relacionados à gestão de resíduos sólidos. Nos
mesmos moldes que os planos estaduais, os municipais configuram requisito básico para o Distrito Federal e os Municípios terem
acesso aos recursos supracitados. Estes instrumentos serão explanados com mais vagar no decorrer do trabalho em liça.
Os geradores de resíduos sólidos dos serviços públicos de
saneamento básico; industriais; de serviços de saúde; os estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços que gerem resíduos perigosos ou que por sua natureza, composição ou volume,
não sejam equiparados aos resíduos domiciliares pelo poder pú-
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Sumário
235
blico municipal; as empresas de construção civil e os responsáveis
por atividades agrossilvopastoris, se exigido pelo órgão competente do Sisnama, do SNVS ou do Suasa; nos casos em que forem
realizadas pelo poder público, as etapas de responsabilidade dos
primeiros, terão seus gastos devidamente remunerados por estes,
demonstrando a necessidade do compartilhamento de responsabilidade e divisão de tarefas para a adequada execução desta nova
política federal. Estes também deverão editar seus planos, os Planos de Gerenciamento de Resíduos Sólidos.
Esta norma federal é regida por diversos princípios listados em seu art. 6°, destes há um realce ao aspecto do direito da
sociedade à informação, revelando o intuito de manter a população ciente do que esta acontecendo com os resíduos, e da forma
adequada de descartá-los, como também para conservar todos os
eixos da responsabilidade compartilhada em perfeita interação,
coordenados, a tal ponto que com “exceção dos consumidores,
todos os participantes dos sistemas de logística reversa manterão atualizadas e disponíveis ao órgão municipal competente e a
outras autoridades informações completas sobre a realização das
ações sob sua responsabilidade” (art. 33, §8°, Lei 12.305/2010). Ademais, como esta norma possui natureza jurídica ambiental, aplicam-se à esta política federal todos os princípios constitucionais
do direito ambiental brasileiro (FIORILLO, 2012, p.384).
Para colocar em prática todas estas diretrizes, o governo
utilizará instrumentos financeiros, como linhas indutoras e de financiamento para desenvolvimento de produtos com menores
impactos à saúde humana e à qualidade ambiental em seu ciclo
de vida; estruturação de sistemas de coleta seletiva e de logística
reversa; podendo o poder público conceder fomento e crédito a
projetos, entidades e empresas voltadas para reciclagem e limpeza urbana, tudo isto respeitando os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como com as diretrizes e objetivos do respectivo plano plurianual, as metas e as prioridades fixadas pelas leis de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
diretrizes orçamentárias e no limite das disponibilidades das leis
orçamentárias anuais.
A questão do lançamento de lixos em mares, vazadouros ou
queimadas não licenciadas, quedou proibida com as disposições
contidas na Lei em tela, ficando ainda vedada segundo seu art. 49,
a importação de alguns destes resíduos:
Art. 49. É proibida a importação de resíduos sólidos
perigosos e rejeitos, bem como de resíduos sólidos
cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal,
ainda que para tratamento, reforma,reúso, reutilização ou recuperação.
Cumpre salientar que não há relação de hierarquia entre a
Política Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Federal de Saneamento Básico (prevista na Lei 11.445/2007), elas são complementares, estipuladas por lei federal, mas que tangenciam em alguns
pontos, tal como o serviço público de limpeza urbana e manejo de
resíduos sólidos (CONCEIÇÃO,2012).
A Presidência da República, em 23 de dezembro de 2010
editou o decreto nº. 7.404, onde definiu os ministérios e secretarias
do governo envolvidos na aplicação da PNRS através da criação
do Comitê Interministerial da Política Nacional de Resíduos Sólidos e do Comitê Orientador, bem como as funções dos mesmos.
Em linhas gerais, pode-se entender que o Comitê Interministerial
responderá pela implementação da Logística Reversa e que o Comitê Orientador terá um papel consultor ao definir metodologias,
critérios e avaliar os sistemas de Logística Reversa apresentados;
ambos terão a possibilidade de convidar representantes da sociedade empresarial, de entidades afins e criar corpos técnicos específicos (LEITE, 2012).
Um defeito deste decreto está no não estabelecimento de
metas de qualquer natureza, deixando aos setores ou empresas o
Capa
Sumário
237
estudo e apresentação de seus projetos de Logística Reversa. Somado a isto, vê-se que a Lei 12.305/2010 apesar de ter entrado em
vigor na data de sua publicação (02 de agosto de 2010), ofertou
um prazo de quatro anos para que fosse imposta a disposição final
adequada dos rejeitos e dois anos para que os estados e municípios criem seus planos de resíduos sólidos, não fixando um decurso temporal fixo para a utilização da logística reversa nos setores
que trabalham com lâmpadas e produtos eletroeletrônicos, de
forma que o problema do lixo tecnológico ainda permanece em
aberto na atualidade.
Quanto ao aspecto sancionador, ou melhor, às restrições
que algum dos componentes da responsabilidade compartilhada
pelo descarte de resíduos sólidos, poderá sofrer caso não siga os
preceitos do instrumento normativo em debate, restringe-se ao
não recebimento dos recursos ofertados pela União para estes
fins, impossibilitando que os Estados ou Municípios desobedientes aufiram qualquer vantagem decorrente dos instrumentos financeiros descritos, sem prejuízo da aplicação da responsabilidade civil objetiva pelos danos ambientais e das sanções contidas na
Lei 9.605/98, consoante prega o art. 51:
Art. 51. Sem prejuízo da obrigação de, independentemente da existência de culpa, reparar os danos
causados, a ação ou omissão das pessoas físicas ou
jurídicas que importe inobservância aos preceitos
desta Lei ou de seu regulamento sujeita os infratores às sanções previstas em lei, em especial às fixadas na Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que
“dispõe sobre as sanções penais e administrativas
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio
ambiente, e dá outras providências”, e em seu regulamento. O legislador não logrou êxito ao estabelecer a forma de
sancionar caso as disposições legais aqui expostas sejam descum-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
pridas, dado que as possíveis penas a serem adotadas são muito
brandas ou até mesmo equivalentes àquelas aplicadas atualmente em casos de danos ambientais e que, como ressabido, possuem
aplicabilidade pratica ínfima. Assim, não há uma incitação aos sujeitos passivos destas determinações legais para adotar uma postura condizente com a sustentabilidade então pregada, conferindo
espaço para que estes descumpram seus encargos e esta norma
não passe de mais uma carta de boas intenções no direito brasileiro, sendo um de nossos intentos, propor soluções dentro do sistema para equacionar estas falhas legislativa.
3. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DESCARTE
DE RESÍDUOS SÓLIDOS
Uma vez fixados os parâmetros legais imbuídos na Lei
12.305/2010 e o tratamento dos resíduos sólidos no Brasil após a
sua edição, insta realizar um corte epistemológico e eleger como
objeto principal as duas modificações que demonstram melhor
a intersecção entre o direito ambiental e a responsabilidade civil
dentro da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que são a responsabilidade compartilhada e a logística reversa.
Tais institutos são considerados as mais relevantes inovações trazidas pela Lei 12.305/2010 e pretendiam acoplar novos deveres ao Estado, Empresa e Consumidor no que tange aos dejetos
do consumo, influenciando de forma estanque na tradicional responsabilidade civil pelos danos ambientais e no modo de exercício da atividade empresarial e até mesmo da estatal, no tocante à
limpeza urbana, de forma que passamos ao estudo destes e de sua
relação e influência com os demais ramos jurídicos.
3.1 LOGÍSTICA REVERSA
Tornou-se imprescindível no cenário socioeconômico ho-
Capa
Sumário
239
dierno a percepção de que os produtos comercializados podem ter
outras utilidades diferentes daquela para qual foi essencialmente
produzido, podendo ser empregado inclusive na fabricação de outros artigos, senão de forma total ao menos alguns de seus componentes, como acontece com os computadores e os diversos metais
que constituem seus discos rígidos e monitores.
A única forma de se concretizar esta ideia de forma eficaz é
através do retorno destes materiais aos fabricantes ou distribuidores, que estão aptos a encaminhar o produto para o destino mais
apropriado. Esta tem sido a concepção basilar deste trabalho e
um dos grandes trunfos para a consolidação da PNRS, que voltada
para a conscientização e educação do consumidor, empresa e estado elegeu a logística reversa como seu instrumento base.
Esta nomenclatura não era a adotada pela doutrina nacional, e sim a mais conhecida responsabilidade pós-consumo; porém ela evidencia o viés prático deste princípio que por sua vez, é
um dos corolários do princípio do poluidor-pagador.
3.1.1. O princípio do poluidor pagador e o
corolário da responsabilidade pós-consumo
O princípio ambiental do poluidor-pagador surge para tentar frear o avanço descontrolado da economia em detrimento do
meio ambiente, sem considerar o impacto que a atividade econômica pode causar ou tão menos, reservar a possibilidade da reparação destes. Dessarte, busca-se equacionar o desequilíbrio entre
as externalidades positivas e negativas, as quais refletem a internalização dos custos da proteção ambiental.
Esta norma está expressamente prevista na legislação infraconstitucional, mais especificamente no art. 4º, VII, da Lei n.
6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), afirmando que
esta legislação visará “à imposição, ao poluidor e ao predador, da
obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais
com fins econômicos”. Para Paulo Casella, este princípio procura
desestimular as atividades que se beneficiam com a adoção de padrões de qualidade ambiental muito baixos em detrimento de atividades concorrentes que adotem práticas mais protetivas e, por
conseguinte, mais custosas; dessa forma, ao invés de atribuir estes
custos ao Poder Público, aos investidores ou à própria comunidade internacional, o empreendedor, poluidor, deve integrar esses
custos na sua produção (CASELLA, 2010, p.673).
Machado vai ainda mais além e afirma ser o uso gratuito
dos recursos naturais uma representação do enriquecimento ilícito do usuário, pois a comunidade que não o utiliza fica onerada
com as consequências do desequilíbrio ambiental provocado por
este uso indiscriminado, gerador de poluição, havendo uma invasão da propriedade pessoal daqueles que não poluem o ecossistema (MACHADO, 2005, p.59 e 60).
Nessa toada, identifica-se que por se referir também a uma
internalização de uma externalidade ambiental, só que desta vez
relacionada ao resíduo oriundo do consumo, surge a responsabilidade pós-consumo como corolário do princípio do poluidor-pagador, obrigando o poluidor potencial, qual seja, o consumidor, a retornar o produto utilizado ou com defeito ao fabricante,
com fins de evitar a degradação ambiental por meio do descarte
inadequado(LOUBET, 2011).
Normalmente, a responsabilidade pelo tratamento dos refugos do consumo fica com o Poder Público, principal responsável
pelo saneamento, assim a sociedade finda por arcar com o custeio do ciclo de tratamento destes resíduos através dos impostos
e demais taxas, apesar de ter sido o fornecedor a lucrar com isso
e o único consumidor que utilizou aquele bem. A logística reversa
busca justamente corrigir esta distorção e dar a estes dois polos de
onde se originou o resíduo, a responsabilidade pela externalidade
ambiental oriunda.
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Sumário
241
O estudo sobre esta espécie de responsabilidade no Brasil
ainda é escasso, tendo a Lei 12.305/2010 dado a regulamentação
geral que esta necessitava através da adoção do conceito de logística reversa que consoante Loubet, constitui a faceta prática do
princípio da responsabilidade pós-consumo e não se confunde,
com a obrigatoriedade da empresa tratar adequadamente o resíduo de sua produção (como os efluentes que uma indústria emite antes de despejá-los em rios), pois neste caso o mesmo não é
oriundo da relação de consumo, mas sim anterior, fundando-se tal
obrigatoriedade no princípio do poluidor-pagador (LOUBET, 2011).
3.1.2 A faceta prática do princípio da responsabilidade
pós-consumo na Lei 12.305: Logística Reversa
Esta concepção não é assim tão recente, um exemplo é
o recolhimento de pilhas e baterias que é uma realidade antiga
no Brasil através da resolução 257/99 do CONAMA, demonstrando a utilidade que estes materiais podem ter para seus fabricantes e a periculosidade de serem descartados impropriamente no
meio-ambiente, além dos pneus e agrotóxicos que seguem estas
mesmas características, fundamentando adoção da logística reversa em seus ciclos de vida. Observa-se que tanto nestes como
em maior parte dos casos, os dois fundamentos para adoção de
um sistema de responsabilidade pós-consumo são o consumo em
massa e a periculosidade intrínseca do produto, que podem estar
ou não associados, pois a presença de somente um deles já justifica a adoção desta prática (LOUBET, 2011).
A doutrina jurídica também mencionava esta postura antes da PNRS, como Paulo Bessa ao falar da responsabilidade pós-consumo, explanou que esta possui como raciocínio subjacente a
ideia de que as empresas são as maiores beneficiárias econômicas
da comercialização dos produtos, além da óbvia questão da impossível responsabilização de milhares de pessoas que descartam
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
estas espécies de materiais em lugares inapropriados, em oposição à fácil identificação das empresas produtoras e seu consequente acionamento judicial.
A Política Nacional de Resíduos Sólidos a definiu em seu
art. 3°, inciso XII:
XII - logística reversa: instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um
conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos
sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou
outra destinação final ambientalmente adequada;
Desta forma, a responsabilidade do consumidor e da empresa não se esgotará com a compra do bem de consumo, voltando
a se materializar com a obrigação de devolver o objeto após o uso
para a empresa, seja de forma direta, ou de forma intermediada,
no local da compra, onde se construirá outro vínculo por meio do
repasse ao produtor. Isto nada mais é do que a materialização da
responsabilidade pós-contratual nas relações jurídicas que envolvam a gestão de resíduos sólidos oriundos do consumo. Conforme ressalta Silvio Venosa, o contrato já cumprido pode apresentar
reflexos residuais, tratando-se, em geral, de um dever acessório de
conduta dos contratantes após o estérmino das relações contratuais, como uma pós-eficácia das obrigações firmadas, podendo
os envolvidos praticarem ações ou omissões responsabilizáveis, o
que se denominaria de responsabilidade pós-contratual (VENOSA,
2010, p. 493). Este é a natureza do elo firmado entre consumidor e
empresa na logística reversa.
No Brasil existe um Conselho Regional de Logística Reversa,
que vê esta nova relação da seguinte forma:
A logística reversa planeja, opera e controla o fluxo
físico e de informações, do retorno dos bens de pós
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Sumário
243
-venda e de pós-consumo ao ciclo de negócios ou
ao ciclo produtivo. Isso é feito por meio de Canais
de Distribuição Reversos, agregando-lhes valor de
diversas naturezas: econômico, ecológico, legal, de
prestação de serviços, de imagem corporativa31.
Deste enunciado infere-se que a mencionada pós-venda
(bem de consumo comprado ainda não efetivamente consumido)
se diferencia do pós-consumo (produto que já passou pela fase de
uso). Esta questão interessa, pois guarda relação com o princípio
da precaução, objeto dos próximos tópicos, demonstrando que
ainda que a vida útil do produto não tenha se esgotado, pode ele
participar do processo de logística reversa, embora este não seja
o foco principal da PNRS, como defendeu o Professor Leite (2012):
Embora a PNRS envolva especificamente os produtos usados (pós-consumo na terminologia apropriada), o fato de alguns dos segmentos de produtos
e suas embalagens identificados nesta legislação
apresentarem alto grau de obsolescência ou de duração mercadológica, alta exigência de assistência
técnica, entre outras razões, faz com que a Logística
Reversa de pós-venda (que se ocupa do retorno de
produtos ainda não consumidos ou em condições
de assistência técnica) também esteja diretamente envolvida com esta legislação. Por exemplo, um
equipamento de informática que tenha necessidade
de assistência técnica poderá ter alguns componentes trocados ou ser destinado a processos de reaproveitamentos como produto de pós-consumo.
Para os autores Gonçalves e Marins (2006, p.400) o processo
de logística reversa envolve três aspectos relevantes:
“Do ponto de vista logístico, o ciclo de vida de um
produto não se encerra com a sua entrega ao cliente. Produtos que se tornam obsoletos, danificados
31
Disponível em: <http://www.clrb.com.br/ns/conselho.asp>.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ou não funcionam devem retornar ao seu ponto de
origem para serem adequadamente descartados, reparados ou reaproveitados. Do ponto de vista financeiro, existe o custo relacionado ao gerenciamento
do fluxo reverso, que se soma aos custos de compra
de matéria prima, de armazenagem, transporte e estocagem e de produção, já tradicionalmente considerados na Logística. E do ponto de vista ambiental,
devem ser considerados e avaliados, os impactos do
produto sobre o meio ambiente durante toda sua
vida. Este tipo de visão sistêmica é importante para
que o planejamento da rede logística envolva todas
as etapas do ciclo do produto”.
Estas considerações são relevantes vez que esta prática
configurava, antes da lei 12.305/2010, responsabilidade social da
empresa, atraindo consumidores que buscavam atitudes sustentáveis, porém após a edição do instrumento normativo em liça,
este posicionamento passa a integrar a função social da empresa
e da propriedade empresária, de tal forma, que sendo descumprida sujeitará o responsável às sanções cominadas no instrumento
legal supra.
Ainda existem autores, como Ferri, que encaram a logística
reversa como um mecanismo para aprimorar a responsabilidade
ambiental da empresa, consolidando a sustentabilidade empresarial e conquistar consumidores, fatores inseridos no plano de
concorrência comercial (FERRI, 2011, p.114); todavia, esta não é a
conclusão que ora se filia este trabalho, uma vez que existe uma
diferença basilar entre função e responsabilidade da empresa, a
qual parte essencialmente da facultatividade para esta última em
oposição à obrigatoriedade da primeira, neste passo, a redação do
artigo 33 da Lei 12.305/2010, a seguir trazida à baila, aclara este
embate, pois utiliza do modal obrigação e não permissão, dando
à logística reversa o caráter de integrante da função social da empresa.
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Sumário
245
No mesmo sentido aqui defendido, está Marcelo Conceição que diz não se tratar a logística reversa de acordo de vontades
entre administrado e administração, não podendo ter natureza
contratual em sentido estrito. Sua importância dentro da PNRS, e
por se tratar de contrato administrativo a ser firmado pelo Poder
Público (por meio do Ministro de Estado do Meio Ambiente), auxiliado pelo fato do Decreto 7.404/10, em seu artigo 23, estabelecer
os requisitos mínimos que deverão conter os acordos setoriais; reforça seu regime jurídico de direito público (CONCEIÇÃO, 2012).
Não se contesta que a responsabilidade pós-consumo pode
atuar como meio de cativar o consumidor, cada vez mais ambientalmente consciente, voltado para a busca do consumo verde, mas
no quadro atual, com a entrada em vigor da PNRS, a logística reversa ganha outra natureza, muito mais coercitiva do que política.
Passada esta breve cizânia, confere-se que a cadeia que
guiará o funcionamento da logística reversa na PNRS está descriminada no parágrafo 3° do seu artigo 33 e se resume na devolução
após o uso pelos consumidores aos comerciantes ou distribuidores, dos produtos e embalagens a que se referem os incisos I a VI32
do mesmo artigo, que são os efetivamente obrigados a integrar
este tipo de logística; para em seguida estes comerciantes e distribuidores efetuem a devolução aos fabricantes ou importadores
dos materiais reunidos e devolvidos, para finalmente ser dada a
32
Art. 33. São obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente
do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes,
importadores, distribuidores e comerciantes de: I - agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso, observadas as regras de gerenciamento de
resíduos perigosos previstas em lei ou regulamento, em normas estabelecidas pelos órgãos do Sisnama, do SNVS e do Suasa, ou em normas técnicas; II - pilhas e baterias; III - pneus; IV - óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; V - lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; VI - produtos eletroeletrônicos e seus componentes. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
destinação ambientalmente adequada, sendo os rejeitos encaminhados para a disposição final.
Como grande estudioso do tema, o Presidente do Conselho Regional de Logística Reversa no Brasil, Paulo Leite, ressalta
que a legislação em tela, ao tentar designar somente alguns produtos, entre os quais aqueles que já possuem legislações específicas e cadeias reversas bem constituídas, como o caso dos pneus
e agrotóxicos que apresentam a cadeia de retorno funcionando
com eficiência, ter-se-ia perdido a oportunidade de envolver outros produtos com cadeias reversas ainda pouco eficientes (LEITE,
2011). Isto, porém, acaba por auxiliar certas deficiências da Lei
12.305/2010 dado que como nem ela nem seu decreto, estabeleceram prazos ou metas para sistematização de alguns casos de logística reversa, as resoluções do CONAMA funcionam para manter
plenamente exigíveis desde já a efetivação deste sistema, vez que
já previam esta espécie de obrigação.
Doutra banda, para o eixo empresarial é observado que a
operacionalização deste sistema necessitará do compartilhamento da responsabilidade entre fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, que implantarão procedimentos de compra de embalagens ou produtos usados, disponibilizar postos de
entrega de resíduos reutilizáveis e recicláveis e atuar em parceria
com outras formas de associação de catadores destes bens (Art. 33,
§3°, I a III, da Lei 12.305/2010).
Por fim, insta unicamente mencionar que como postulado
pela doutrina ambiental, o instrumento judicial adequado para a
defesa do meio-ambiente, é o ajuizamento de ação civil pública ou
de ação popular, sendo este o mesmo meio de defesa para exigência da efetiva implantação da logística reversa, sendo relevante o
ensinamento de Loubet (2012) sobre esta matéria:
Neste caso, esta é a verdadeira participação cidadã
na implementação desta política pública, pois, ainda que haja omissão por parte de todos os órgãos
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Sumário
247
públicos incumbidos da defesa ambiental, poderá a
sociedade, seja através de uma associação (art. 5º,
V, da Lei n. 7.347/85) – via ação civil pública – seja
através de qualquer cidadão (art. 5º, LXIII, da CF e
art. 1º, da Lei n. 4.717/65) – via ação popular – levar
o caso ao Poder Judiciário exigindo a implementação da logística reversa em face a uma empresa ou
várias, exigindo-se do Poder Público que rompa sua
omissão em não implementar esta política.
Em complemento, sobre a questão judicial, houve no Tribunal de Justiça do Paraná, decisão inovadora e que se tornou
celebre na comunidade jurídica que estuda o tema, através da
Apelação Cível n°. 118.652-1, na qual a ré, uma engarrafadora de
refrigerantes, foi condenada a recolher 50% (cinquenta por cento)
das embalagens PET que vendia e aplicar 20% (vinte por cento) de
sua verba publicitária em propaganda sobre a necessidade de devolução das garrafas vazias. A ementa do decisum em debate teve
o seguinte teor:
AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DANO AMBIENTAL - LIXO RESULTANTE DE EMBALAGENS PLÁSTICAS TIPO “PET”
(POLIETILENO TEREFTALATO) - EMPRESA ENGARRAFADORA DE REFRIGERANTES - RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE
- ACOLHIMENTO DO PEDIDO - OBRIGAÇÕES DE FAZER - CONDENAÇÃO DA REQUERIDA SOB PENA DE
MULTA - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEI Nº 7347/85, ARTIGOS 1º E 4º DA
LEI ESTADUAL Nº 12.943/99, 3º e 14, § 1º DA LEI Nº
6.938/81 - SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA.
Apelo provido em parte. 1. Se os avanços tecnológicos induzem o crescente emprego de vasilhames de
matéria plástica tipo “PET” (polietileno tereftalato),
propiciando que os fabricantes que delas se utilizam
aumentem lucros e reduzam custos, não é justo que
a responsabilidade pelo crescimento exponencial
do volume do lixo resultante seja transferida apenas
para o governo ou a população. 2. A chamada res-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ponsabilidade pós-consumo no caso de produtos de
alto poder poluente, como as embalagens plásticas,
envolve o fabricante de refrigerantes que delas se
utiliza, em ação civil pública, pelos danos ambientais decorrentes. Esta responsabilidade é objetiva
nos termos da Lei nº 7347/85, artigos 1º e 4º da Lei
Estadual nº 12.943/99, e artigos 3º e 14, § 1º da Lei
nº 6.938/81, e implica na sua condenação nas obrigações de fazer, a saber: adoção de providências em
relação a destinação final e ambientalmente adequada das embalagens plásticas de seus produtos,
e destinação de parte dos seus gastos com publicidade em educação ambiental, sob pena de multa.
(BRASIL, TJPR - 8ª C.Cível - AC 118652-1 - Curitiba Rel.: Ivan Bortoleto - Unânime - J. 05.08.2002)
Sabe-se que o empresário no exercício da atividade empresarial tem autonomia para escolher a forma como irá gerir seu
negócio, expressamente representado pela liberdade de contratar,
por exemplo. Este tipo de interferência na autonomia da empresa,
mencionada na decisão supra, pode, de início, parecer contrária
a tais pressupostos e à já firmada liberdade de mercado, consagrada no país, entretanto, não se pode esquecer que no caso em
epígrafe trata-se de conduta ofensiva ao meio-ambiente, logo que
deve sofrer os influxos dos princípios ambientais, que estão mais
diretamente ligados ao direito público do que ao privado.
Nesse sentido, deve-se lembrar que estamos diante de matéria que invoca a incidência de múltiplas searas do direito, assim a primazia do interesse público sobre o privado orientaria na querela em
apreço, a imposição pelo ente Estatal, representado aqui pelo órgão
julgador, à empresa, da obrigação de reduzir o impacto ambiental de
suas atividades, dando a destinação adequada às embalagens plásticas de seus produtos, em prol do bem-estar ambiental coletivo.
Tratando-se de empresa de considerável porte, razoável
também a reserva de parte da destinação de seus gastos com
propagandas de conscientização ambiental, tal postura, além de
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Sumário
249
ser condizente com os novos preceitos da PNRS, reflete o caráter
educacional da sanção, tão pregado pela doutrina, mas que dificilmente se efetiva, resvalando sempre na punibilidade, que não
vem, em maioria das vezes, evitando a reincidência. A autonomia
privada não pode superar o bem estar coletivo e a proteção do
meio ambiente.
Logo, resta cabalmente demonstrada a importância da logística reversa para defesa e proteção do meio-ambiente, surgindo no universo jurisprudencial órgãos julgadores que reconhecem
este feito, trilhando os primeiros passos para uma justiça atualizada e consciente, imprescindível na sociedade contemporânea.
3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL COMPARTILHADA
Se a logística reversa é o principal meio de concretização
das disposições contidas na PNRS, a responsabilidade compartilhada é com certeza, a forma mais eficaz de conquistá-la.
Diversas são as razões para chegar-se nesta espécie de responsabilidade, tanto envolvendo critérios econômicos como ecológicos, porém como insistentemente exposto nesta dissertação,
há na responsabilidade ambiental uma solidariedade latente que
contagia todos aqueles que dela usufruam, tornando-se também
coobrigados por sua preservação. Notável é a compreensão de Jeanne Machado (2006, p.98) sobre o assunto:
“(...) sendo o meio-ambiente comum, indisponível
e inapropriável, cabe ao Poder Público e a toda sociedade, em conjunto e diretamente, sua defesa,
constituindo tal atividade, simultaneamente, um
direito e um dever, impondo-se, por conseguinte, o
compartilhamento da responsabilidade pelo dano”.
Esta ideia também não é nova, e independe da PNRS, já havendo sido apontada como modo de solucionar as dificuldades da
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
reparação pelo dano ambiental e de atingir os preceitos do princípio da precaução. A Carta Magna, na esteira de seu art. 225, ao
dizer ser dever de todos proteger o meio-ambiente, semeia os pilares para edificação deste compartilhamento.
Como evidenciado outrora, o Direito Civil incorporou valores fundamentais e inalienáveis tentando manter a autonomia
privada em sintonia, ou a serviço da utilidade social, neste campo,
princípios como da boa-fé objetiva, da função social e da solidariedade agem conjuntamente para limitar ou regrar a ordem econômica, não ficando o principio da solidariedade restrito ao direito
ambiental, mas invadindo também a esfera contratual. Esta, no
âmbito contratual, embasa o princípio da função social dos contratos que segundo o art. 421 do Código Civil, norteia a liberdade
de contratar. Ela obrigaria à consolidação de um regime de cooperação entre as partes e também terceiros afetados pela relação
jurídica que devem contribuir para o adimplemento contratual, visando que o contrato cumpra sua função social não ficando adstrito aos interesses individuais dos pactuantes. Sobre esta temática,
acrescenta Jairo Gomes (2005, p.131):
A solidariedade e cooperação funcionam como
princípios hermenêuticos, influindo diretamente na
aplicação do direito, e pois, na definição da regra
a ser aplicada ao caso prático. Nessa perspectiva,
pode haver a reconfiguração de situação jurídica envolvendo partes, além da imposição de certos deveres não expressamente previstos na avença.
Sendo assim, as relações contratuais firmadas, que de
qualquer forma interfiram na vida de outras pessoas, como normalmente se caracterizam as relações envolvendo o meio ambiente, reclamam dos celebrantes e dos demais envolvidos na relação
uma postura cooperativa que vise o bem comum, englobando,
portanto, novos deveres não necessariamente explícitos ou pac-
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Sumário
251
tuados mas que decorrem das novas necessidades sociais, como
reflexo da pós-modernidade.
A produção e consumo em massa trouxeram para o consumidor o ônus de auxiliar as Empresas e o Estado a evitar a degradação ambiental. Deixa-se de lado o vínculo bipartite antes existente,
com o Estado implantando o saneamento básico e fiscalizando a
atividade das empresas, as quais respondiam pelo dano decorrente de sua produção, para alcançar aquele que faz uso do bem de
consumo e que pode se tornar parceiro do cerco empresarial na
adequada disposição de seus produtos e auxiliando o estado na
fiscalização desta tarefa (FIGUEIREDO, 2005, p.747).
Com a edição da PNRS, exige-se um maior envolvimento da
sociedade, estando delineada no inciso XVIII, do art. 3° da citada
política, o conteúdo que terá este instituto:
“XVIII- responsabilidade compartilhada pelo ciclo
de vida dos produtos: conjunto de atribuições individuadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza
urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar os volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como reduzir impactos causados à saúde
humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos da Lei...”.
Nesse viés, passam a ter responsabilidade pelos dejetos do
consumo, Estado, Empresa, Consumidor, e demais participantes
do ciclo de comercialização e de limpeza pública.
Algumas mudanças foram significativas, outras se restringiram a formalizar realidades já existentes, mantendo o Estado como
principal responsável e encarregado de maior parte das tarefas e
funções dentro do novo sistema. Por conta disto, serão agora listadas setorialmente as principais modificações, especialmente as
obrigacionais e sua forma de repercussão na responsabilidade ci-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
vil pelo descarte de resíduos sólidos, para estes três integrantes da
responsabilidade compartilhada.
3.2.1 O papel do Estado na Política Nacional
de Resíduos Sólidos
O Estado, na acepção de organização do poder sobre determinado povo em um território, sempre foi responsável pela coleta
e tratamento dos resíduos sólidos, pois o art. 23, inciso VI da Carta
Magna diz ser competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a proteção do meio-ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Ademais, a Constituição Federal nos incisos do §1° do art. 225 elenca expressamente, mas não
de forma exaustiva, uma série de medidas protetivas do ambiente
que devem ser efetuadas pelo Estado, consubstanciando um dever geral de proteção deste (SARLET, 2008, p.79). Entre elas, estão
o controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas,
métodos e substâncias que comportem risco para vida do meio-ambiente (inciso V), dentro da qual pode se inserir a disposição e
produção de resíduos sólidos.
A fiscalização e controle de atividades potencialmente poluidoras, a elaboração e execução de políticas públicas ambientais
e a adoção de medidas legislativas e administrativas capazes de
conservar o ecossistema, inclusa a educação da população, são
todas obrigações da administração pública, que através do juízo
de conveniência e oportunidade decide o melhor momento para
sua edição. Nesse passo, qualquer omissão ou ação sua na execução deste dever, constitui causa adequada para responsabilização
pelo dano direto ou indireto resultante, sendo a destinação inadequada do lixo doméstico e industrial expressão da sua omissão.
Há para o Estado uma assunção dos riscos que decorrem
de suas obras ou atividades, de forma que se um dano ambiental
delas emanar será dever desta pessoa jurídica por ele responder,
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Sumário
253
até mesmo porque conforme vimos anteriormente, predomina no
direito brasileiro a responsabilidade objetiva estatal pelos danos
causados pela Administração e seus agentes na prestação de serviços públicos, assegurado o direito de regresso em caso de dolo
ou culpa, concorde ao art. 37, § 6° da Constituição da República.
Lembre-se que o controle e fiscalização de atividades possivelmente nocivas, também é incumbência do Poder Público, através do exercício do poder de polícia, corroborando na responsabilidade solidária com o poluidor devido à culpa in omittendo(SILVA,
2005, p. 458). Ademais, ao mesmo tempo o art. 30 em seu inciso V
diz competir ao Município prestar diretamente ou em regime de
concessão ou permissão os serviços públicos de interesse local,
onde podemos evidentemente inserir a coleta de lixo. Como bem
lembrado por Machado, o Município tem peculiar interesse na organização dos serviços de limpeza pública, coleta, transporte e depósito dos resíduos sólidos, predominando nestes casos sobre os
interesses do Estado e da União, os quais, entretanto, não podem
se eximir de também regular a matéria e conferir o devido auxílio
financeiro (MACHADO, Paulo. 2005, p. 554).
Diversos são os instrumentos de gestão a serem empregados pelo ente munícipe na gestão dos resíduos sólidos, desde
ações preventivas como o planejamento ambiental e a educação
ambiental, como o exercício do poder de polícia através de leis
municipais e aplicação de penalidades, como também o licenciamento ambiental de atividades empresariais e cadastro daquelas
que fizerem a disposição final de resíduos (PRESTES, p. 303 e 304). A
PNRS impulsionada por estas diretrizes estabelece em seu art. 10
ser obrigação do Município o serviço de coleta e tratamento dos
resíduos sólidos, acompanhe:
“Art. 10. Incumbe ao Distrito Federal e aos Municípios a gestão integrada dos resíduos sólidos gerados
nos respectivos territórios, sem prejuízo das competências de controle e fiscalização dos órgãos fede-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
rais e estaduais do Sisnama, do SNVS e do Suasa,
bem como da responsabilidade do gerador pelo gerenciamento de resíduos, consoante o estabelecido
nesta Lei.”
O instrumento básico para esta política federal ser efetivada é o plano nacional de resíduos sólidos, que segundo o art.
15 da Lei 12.305 será elaborado pela União, sob a coordenação
do Ministério do Meio Ambiente, com vigência por prazo indeterminado e horizonte de 20 (vinte) anos, a ser atualizado a cada 4
(quatro) anos, tendo como conteúdo mínimo (entre outras disposições): o diagnóstico da situação atual dos resíduos sólidos; metas de redução, reutilização, reciclagem; metas para o aproveitamento energético dos gases gerados nas unidades de disposição
final de resíduos sólidos; metas para a eliminação e recuperação
de lixões, associadas à inclusão social e à emancipação econômica de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis; normas e
diretrizes para a disposição final de rejeitos e, quando couber, de
resíduos; meios a serem utilizados para o controle e a fiscalização,
no âmbito nacional, de sua implementação e operacionalização,
assegurado o controle social. Os Estados também terão de elaborar seus respectivos
planos com os mesmos prazos, abrangendo todo o território do
Estado, como condição para receber os recursos da União ou por
ela controlados, destinados a empreendimentos e serviços relacionados à gestão de resíduos sólidos, ou para serem beneficiados
por incentivos ou financiamentos de entidades federais de crédito
ou fomento desta finalidade, o qual conterá as mesmas disposições do plano federal acima descrito mas voltadas para o espectro
estadual, incluindo a previsão, em conformidade com os demais
instrumentos de planejamento territorial, especialmente o zoneamento ecológico-econômico e o zoneamento costeiro, de: a) zonas favoráveis para a localização de unidades de tratamento de
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255
resíduos sólidos ou de disposição final de rejeitos; b) áreas degradadas em razão de disposição inadequada de resíduos sólidos ou
rejeitos a serem objeto de recuperação ambiental (art. 17, inciso XI,
Lei 12.305/2010).
Há ainda a possibilidade do ente estatal elaborar planos
microrregionais ou específicos voltados para regiões metropolitanas ou de grande aglomeração urbana, desde que haja a participação obrigatória dos Municípios envolvidos, não ficando excluídas
ou substituídas qualquer das prerrogativas a cargo deste ultimo,
dentre as quais esta a previsão de confecção pelo ente munícipe
dos Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. Nos mesmos moldes que os planos estaduais, os municipais configuram requisito básico para o Distrito Federal e os Municípios terem acesso a recursos da União, ou por ela controlados;
dotado de conteúdo mínimo semelhante, conforme explícito no
art. 19 da legislação em comento, disciplinando que para aqueles municípios com menos de 20.000 habitantes, o plano adotado
terá conteúdo simplificado e que será permitido ao Município optar por soluções consorciadas intermunicipais para a gestão dos
resíduos sólidos. Não integralmente adotada a logística reversa, o
Município pode prestar compromisso de atividades parciais, como
pontos de coleta ou armazenagem de resíduos. Além disto, vê-se
que os acordos no âmbito nacional prevalecem sobre os regionais
ou estaduais, porém quando o assunto é a salvaguarda ambiental,
predomina a regra mais restritiva, ou seja, para funcionar a logística reversa, valerá a regra mais abrangente, que abarque o maior
número de participantes, já quanto às metas, prazos e questões
relacionadas à proteção ambiental aplica-se a regra mais restritiva, independente de ser federal ou municipal (LOUBET, 2011).
Urge avultar que conforme explanado no capítulo anterior,
ao tratarmos da responsabilidade civil pelos danos ambientais e
vermos que o Estado é responsável subsidiariamente pelos prejuízos advindos desta espécie danosa, podendo ser chamado a com-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
por prejuízos individuais ou coletivos; a PNRS revelou a intenção
de manter este entendimento, veja-se:
Art. 29. Cabe ao poder público atuar, subsidiariamente, com vistas a minimizar ou cessar o dano,
logo que tome conhecimento de evento lesivo ao
meio ambiente ou à saúde pública relacionado ao
gerenciamento de resíduos sólidos. Parágrafo único. Os responsáveis pelo dano ressarcirão integralmente o poder público pelos gastos decorrentes das ações empreendidas na forma
do caput. Assim o ente estatal permanece ocupando um polo de grande importância na responsabilidade pelo descarte de resíduos sólidos, sendo o detentor do maior número de tarefas, pois além de ter
de desempenhar atividades positivas, com o desenvolvimento de
programas, contratação de pessoas, tem ainda de atuar como fiscal
dos outros polos (empresa e consumidor), tanto que tendo notícia
de algum problema desta alçada, causado por qualquer das outras
pessoas componentes do vínculo logístico, deverá atuar para minimizar ou cessar o dano, demandando posteriormente em face daquele a quem cabia tal tarefa, o qual o ressarcirá pelos gastos desta
execução, assim como disciplina o artigo acima transcrito.
Quanto ao papel do Estado na gestão integrada de resíduos
sólidos, não houve grandes alterações do sistema tradicional, com
poucas implicações práticas para a área da responsabilidade civil,
dado que permanece a subsidiariedade e possível responsabilização por culpa, tendo a Lei 12.305/2010 aberto possibilidade de convênios com empresas e outros prestadores de serviços de coleta e
limpeza urbana. O que acaba ricocheteando na responsabilidade
deste ente são as novas atribuições do consumidor e da empresa,
que podem amenizar a carga estatal, como analisaremos a seguir.
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3.2.2 A responsabilidade do consumidor na gestão
compartilhada de resíduos sólidos
Normalmente, o consumidor, encarado como elo hipossuficiente da relação consumerista, tende a não ser responsabilizado
nos danos que desta decorrem, especialmente quando se trata de
danos ambientais, recaindo a responsabilidade sobre a empresa
ou fabricante do produto e sobre o Estado que, encarregado da
limpeza urbana e saneamento público, queda por auferir os custos
da destinação final inadequada dos resíduos subjacentes.
Quando se fala em responsabilidade civil na relação de
consumo, é recomendável lembrar que incide o tipo objetivo, fundada na teoria do risco do empreendimento, imputando maior
parte dos deveres ao fornecedor. Com o desenvolvimento tecnológico, houve um aumento dos riscos para o consumidor, vez que
como asseverou Cavalieri, “na produção em série um único defeito
de concepção ou fabricação pode gerar riscos e danos efetivos a
um número indeterminado de consumidores. São os riscos do consumo, riscos em série, riscos coletivos” (CAVALIERI FILHO, 2010, p.482).
Por óbvio que dentre estes riscos, estão os decorrentes dos resíduos e rejeitos dos bens de consumo, vez que ainda que gerados por
um único consumidor, ou fornecedor, dispersa no meio-ambiente
como um todo seus poluentes, atingindo toda coletividade.
Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, os riscos deixam de correr por conta deste para se chegar à
responsabilidade direta do fornecedor pelo dever de segurança
ou garantia de idoneidade do produto lançado no mercado. Estas
considerações são importantes, pois, aplica-se o CDC sempre que
se estiver em face de uma relação de consumo, qualquer que seja
a área do direito em que ela vier a ocorrer (CAVALIERI FILHO, 2010, p.
487), logo, a geração de resíduos sólidos, instantaneamente ligada
ao direito ambiental, também pode sofrer os efeitos de sua incidência, uma vez que estes ditos resíduos surgem da utilização do
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
bem de consumo.
Consumidor, segundo o art. 2º do CDC é “toda pessoa física
ou jurídica que adquire ou utiliza o produto ou serviço como destinatário final”, por ser o último a ter acesso ao artigo comprado ele
passa a ser o elo capaz de escolher o destino que terão os restos
da mercadoria utilizada, não havendo como a empresa interferir
nisto. Esta constatação também não é recente, existindo menções
nos atos administrativos e resoluções do CONAMA, porém ganhando viés legal com formalização dada pela PNRS, conforme realçado no inciso XVII de seu art. 3º. Este papel do consumidor será de
extrema importância para complementação das atividades da Empresa no mesmo instrumento legal, vez que esta só poderá dispor
adequadamente os resíduos de seu produto, caso o consumidor
promova o retorno deste, cabendo ao cerco empresarial incentivá-los neste sentido.
Importante destacar que, diante dos conceitos apregoados e das determinações legais gerais do nosso sistema jurídico,
infere-se que a responsabilidade do consumidor dentro da responsabilidade compartilhada, será subsidiária, pois apenas tendo
a empresa demonstrado que não pode dar a destinação adequada
aos resíduos por conta da omissão do consumidor em levar aos
postos de coleta os dejetos do consumo, é que poderá este último
ser demandado.
Poderia se questionar ser esta responsabilidade solidária
dado que a classificação como responsabilidade compartilhada
levaria a crer tratar-se de um vínculo solidário entre os participantes, todavia, podem existir diversos tipos de compartilhamento,
não equânimes, ou onde um não assuma a responsabilidade pela
tarefa do outro, não sendo justo que aquele que não se comprometeu com determinada parcela do negócio assuma os encargos
da parte inadimplente; assim ocorre no descarte de resíduos sólidos, o consumidor não assume qualquer dever sobre as atividades
da empresa ainda que exista uma ligação de dependência entre
Capa
Sumário
259
ambos, ademais, é sabível que solidariedade não se presume, não
podendo se falar nela caso não exista disposição legal expressa ou
manifesto da vontade das partes.
Não se olvide que estamos diante de relação consumerista,
pelo menos no que tange à ligação entre empresa e consumidor
no desempenho das regras da PNRS, logo, ao se deparar com dúvidas acerca do cabimento de excludentes nestes casos deve ser
seguido os mesmos preceitos da responsabilidade na relação de
consumo, que apesar de ser objetiva, comporta algumas ponderações. Dessarte, relevantes os ensinamentos de Cavalieri que relembra e defende a possibilidade de se alegar neste ramo, a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, apesar deste não ser
o entendimento unânime da doutrina. Narra o citado autor que
“se o comportamento do consumidor é a única causa do acidente
de consumo, não há como responsabilizar o produtor ou fornecedor por ausência de nexo de causalidade entre sua atividade e o
dano” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 499), ele vai ainda mais além e admite
a concorrência de culpa do consumidor “desde que o defeito do
produto não tenha sido a causa preponderante para o acidente de
consumo” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 500), lembrando que em ambos
os casos o ônus da prova será da empresa.
Doutra banda, foi duramente explanado que a questão
objeto desta digressão não pode restringir-se à influência de um
único ramo jurídico, fora os regramentos do direito civil, as contendas envolvendo as normas da PNRS passam prioritariamente
pelo dilema dos danos ambientais, neste passo, será praticamente
impossível para a empresa a alegação de certas excludentes pois
a rigidez na responsabilidade por danos ecológicos é muito maior
do que na relação do consumidor, vez que apesar de ambas serem do tipo objetivo a primeira rege-se pela teoria do risco integral
(ressalvadas as controvérsias doutrinarias), sendo necessária a
imposição da obrigação de indenizar a todos aqueles que concorram para a ocorrência do dano, de forma direta ou indireta.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
O consumidor exerce ainda uma função fiscalizadora da
atividade empresarial, conferindo se esta está desempenhando
adequadamente as obrigações a ela inerentes, podendo acioná-la
judicialmente caso isto não esteja ocorrendo. Houve um enorme
esforço em normatizar esta parceria entre Empresa e Consumidor,
justamente no intuito de através da conscientização deste último
evitar a consumação do dano pela disposição incorreta do lixo,
como clara nuance do princípio da precaução.
Entretanto, o art. 28 da Lei 12.305/2010, diz cessar a responsabilidade deste indivíduo “com a disponibilização adequada para
a coleta ou, nos casos abrangidos pelo art. 33, com a devolução”.
Em que pese a evolução que a possibilidade de dar um papel específico ao consumidor no gerenciamento integrado de resíduos
sólidos trouxe para o ordenamento, reconhecendo sua importância, não parece ter agido o legislador com o rigor necessário, dado
que não sancionou nenhuma forma de fazê-lo cumprir tal encargo,
possibilitando apenas, no que tange à responsabilidade civil, que
a Empresa tenha uma justificativa para suas falhas na destinação
dos refugos caso o consumidor não cumpra sua parte.
3.2.3 A nova forma de exercício da atividade
empresarial após a Lei 12.305/2010
Nas relações de consumo a antiga irresponsabilidade da
empresa ou do fornecedor foi substituída pela responsabilidade
objetiva, respondendo estes últimos pelo risco de seu empreendimento e por quaisquer eventuais vícios ou defeitos dos bens e
serviços fornecidos, independente de culpa, ele passa a ser o garante da qualidade e segurança dos mesmos. Não há duvida, que
em relação ao meio ambiente seja da mesma forma.
A empresa, justamente, por produzir e colocar no mercado os produtos que posteriormente se transformarão em resíduos
a serem descartados deve prestar especial atenção os riscos que
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Sumário
261
suas mercadorias podem trazer para o ecossistema, e também
na própria forma de produção, evitando a contaminação de rios
(através de esgotos ou canais que escoam nas águas) e da atmosfera (pelos gases dispersos das máquinas).
Embasado pelo conceito atual de função social da propriedade, vê-se que a empresa adquiriu novos dogmas para seu
exercício, arraigada em diversos princípios que disciplinam a responsabilidade deste eixo, como o da reparação integral por danos
patrimoniais e morais consagrado no art. 6°, VI do CDC; que também assegura o princípio da prevenção reforçado no art. 10, §1° do
mesmo código que assim reza:
§ 1º - O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que
apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores,
mediante anúncios publicitários.
Seguidamente, orientam a responsabilidade empresarial o
princípio da informação, que segundo o art. 6°, III é um dos direitos
básicos do consumidor a informação adequada e clara dos diferentes serviços e produtos, inclusive quanto aos riscos que apresentem; e por fim, mas exaustivamente, o princípio da segurança,
que é a raiz da responsabilidade civil nas relações consumeristas,
pois a responsabilidade objetiva nos casos de acidente de consumo decorrem ou do fato do produto ou do serviço, ou seja, de um
defeito, e neste sentido é que deve se verificar a questão da seguridade, conforme dispõem os artigos do CDC, in verbis:
Art. 12 - O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem,
independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por
defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresenta-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ção ou acondicionamento de seus produtos, bem
como por informações insuficientes ou inadequadas
sobre sua utilização e riscos.
§ 1º - O produto é defeituoso quando não oferece a
segurança que dele legitimamente se espera (...)
Art. 14 - O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como
por informações insuficientes ou inadequadas sobre
sua fruição e riscos.
§ 1º - O serviço é defeituoso quando não fornece a
segurança que o consumidor dele pode esperar (...)
Esta segurança é aferida, portanto, do exame entre a desconformidade com uma expectativa do consumidor e a capacidade de causar um acidente de consumo. Aqui é importante notar
que com a PNRS imputou aos fabricantes diversas obrigações, que
direcionam o novo modo de realizar sua atividade em conformidade com a sustentabilidade, entre elas o dever de utilizar materiais
propensos a serem reutilizados e reciclados, tanto no conteúdo,
como na embalagem do bem de consumo.
Para além, os fabricantes, distribuidores e comerciantes
passaram a ter de recolher os produtos e resíduos remanescentes
após o uso, podendo programar procedimentos de compra dos
produtos e embalagens usados, disponibilizar postos de entrega
de resíduos reutilizáveis e recicláveis ou através de parcerias com
catadores, especialmente para aqueles que estão envolvidos com
agrotóxicos, pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas
fluorescentes, produtos eletroeletrônicos e seus componentes.
A atividade primordial de integração entre os elos da responsabilidade compartilhada insere-se no setor empresarial que
deve através da educação conscientizar seus clientes da necessidade de retorno do produto pós-consumo. Esta atitude se assemelha aos casos conhecidos de recall, quando o fornecedor iden-
Capa
Sumário
263
tificando alguma falha na fabricação ou defeito que possa vir a
comprometer a utilização daquele bem, convoca os compradores
a devolverem as mercadorias para serem consertadas; na PNRS o
“recall” independerá do defeito de um produto, estará relacionado
à segurança do meio ambiente.
Não resta dúvida de que esta sustentabilidade a ser incorporada à fabricação, comercialização, utilização e disposição final
adequada, redundará em custos mais elevados para a Empresa,
o que fatalmente ocasionará uma elevação no preço do produto
que acomodará esta externalidade negativa, influenciando consequentemente, no poder de compra do consumidor. Este mecanismo de preço visa promover a repartição dos custos sociais dos
danos através da justiça distributiva (CAVALIERI FILHO, 2010, p.
485)e colabora para que sejam colocadas em prática as ações epigrafadas na PNRS, dado que uma vez não sendo possível esta partilha dos custos, dificilmente as empresas poderiam manter seus
negócios e adotar posturas sustentáveis ao mesmo tempo, devido
ao ainda elevado valor destas técnicas.
Com algumas especificidades, a responsabilidade civil da
empresa no que se refere ao descarte de resíduos sólidos, segue os
mesmos parâmetros da responsabilidade civil nas relações de consumo, como podemos observar das comparações ora realizadas,
inclusive quanto à responsabilidade subsidiária do comerciante
quando o produtor não puder ser identificado. A Lei 12.305/2010,
com a adoção da logística reversa trouxe mais uma incumbência
ao setor empresarial, especialmente no retorno dos produtos pós-uso e na fabricação das respectivas embalagens, podendo este
ser acionado caso descumpra tais deveres.
4. CONCLUSÃO
O presente estudo pretendeu analisar somo se da atualmente a responsabilidade pelo descarte de resíduos sólidos oriun-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
265
dos da relação de consumo após a edição da Lei 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos).
Observado o papel de cada um dos entes da responsabilidade civil compartilhada, vê-se que a Política Nacional de Resíduos Sólidos, trouxe para a empresa e consumidor deveres para partilhar com o Estado o ônus da limpeza urbana, como único modo
de frear o avanço da degradação ambiental decorrente do consumo e produção em massa, repassando para aqueles que de fato
lucram com isso, os custos sociais inerentes. Porém, tais inovações
seriam facialmente dedutíveis dos conceitos de responsabilidade
civil já existentes, atuando a PNRS como uma formalização deste
instituto na área do descarte de resíduos sólidos
Desta feita, é imperioso destacar que a reparação na área
ambiental, apesar das constantes inovações, permanece dificultosa, surtindo escassos efeitos práticos, sendo imprescindível primar pela precaução e por atitudes que incentivem comportamentos em prol da preservação ambiental.
Assim, diversas podem ser as opções dentro do sistema legal pátrio para tentar incentivar o cumprimento das disposições da
nova legislação e para conferir a esta maior efetividade, que podem
ser buscadas através de institutos já consagrados como a sanção
premial e os incentivos fiscais, incentivando comportamentos desejáveis e reprimindo os prejudiciais ao meio ambiente, além de uma
postura mais focada na preservação e reconstrução que pode ser tomada pelo judiciário no julgamento de causas que envolvam danos
ambientais e neste caso, o descarte de resíduos sólidos.
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Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INDÚSTRIAS
TABAGISTAS: CIVIL RESPONSIBILITY
OF THE TOBACCO INDUSTRY
Deixar de fumar é a coisa mais fácil do mundo.
Sei muito bem do que se trata, já o fiz
cinquenta vezes. Mark Twain
Raíssa Ester Maia de BARROS33
Resumo: Partindo de um diálogo multidisciplinar e apoiando-se
nos subsídios teórico/metodológicos oferecidos pelo Direito Civil
e Consumerista, este artigo pretende analisar o tratamento legal
concernente às regras impostas aos produtos considerados perigosos ao consumo, como é o caso do cigarro. Considerando os
fumantes pessoas vulneráveis que precisam de proteção legal e o
cigarro como um produto muito viciante, nocivo e perigoso, torna-se necessário que as empresas de cigarros estejam sob um controle rígido e serem severamente punidas quando da violação dos
preceitos legais que lhe são impostos. Devido ao descaso de todos
esses preceitos e princípios do direito, é necessário exigir a responsabilidade dos fabricantes para reparar todos os danos ocasionados pelo hábito de fumar. Contudo, esta ainda não é uma realidade nas jurisprudências brasileiras que tendem, cada vez mais, a
decidirem pela irresponsabilidade das indústrias de cigarro.
33
Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFCG; Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, PUC-MG; Pós-Graduanda em Direito Civil Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, UFPB/
ESMA PB. Advogada.
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Sumário
269
Palavras-Chave: Cigarro. Dano. Responsabilidade Civil.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objeto de análise a Responsabilidade Civil das Indústrias Tabagistas, tendo em vista a quantidade imensurável de danos decorrentes da relação de consumo
composta pelo fumante e as indústrias tabaqueiras visando, dessa
forma, contribuir para o entendimento do tema em estudo. Diante
de uma temática de complexidade e controvérsias, tentar-se-á abarcar os principais assuntos que a circundam objetivando, destarte,
demonstrar as violações dos dispositivos legais, bem como a necessidade de reparação dos prejuízos decorrente deste tipo de relação.
Através de estudos e pesquisas, restaram comprovados os
malefícios advindos do cigarro. Mais intrigante, ainda, é afirmar
que muito antes dessas pesquisas serem reveladas, as indústrias
tabaqueiras já detinham o conhecimento de todos esses malefícios, bem como da poderosa dependência química decorrente da
nicotina, mas que, intencionalmente, não facilitavam o conhecimento pelos seus consumidores.
Ademais, o trabalho fora realizado pautando-se na pesquisa bibliográfica, tendo em vista a demasiada importância de
obras, estudos e pesquisas para o desenvolvimento do tema, colocando o pesquisador em contato direto com o que já foi produzido
e registrado acerca do tema pesquisado. Fora utilizado o método
Sociológico, tendo em vista o aspecto multidisciplinar deste trabalho, uma vez que abarcou não somente os estudos do direito
civil, mas, também, o estudo do direito do consumidor e do direito
constitucional, ocorrendo a interdisciplinaridade como forma de
aclarar sobre determinados fenômenos que serão, aqui, trabalhados. Registra-se, por derradeiro, a utilização do método qualitativo que facilitou a demonstração da complexidade do tema abordado permitindo, assim, a sua compreensão.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
2 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE
RESPONSABILIDADE CIVIL
Apesar de ser um assunto tratado desde as sociedades
primitivas, a Responsabilidade Civil configura-se, hoje, como um
dos temas mais complexos do Direito Civil, não só por se tratar de
um instrumento utilizado diariamente no cotidiano da sociedade,
mas, também, por ser objeto de opiniões doutrinárias e jurisprudenciais complexas, estando no patamar dos temas mais árduos e
complexos da seara civilista.
A responsabilidade Civil, portanto, nas palavras da doutrinadora Maria Helena Diniz “[...]se dirige à restauração de um
equilíbrio moral e patrimonial desfeito e à redistribuição da riqueza de conformidade com os ditames da justiça, tutelando a
pertinência de um bem a um sujeito determinado”34. É, pois, a solução legal para que o equilíbrio que fora violado se reestabeleça.
Temos a premissa de que para que haja a Responsabilidade Civil,
necessariamente, estaremos diante de uma situação anterior que
ensejou uma transgressão ao direito de outrem. Sendo assim, é
cediço afirmar que para a existência de Responsabilidade haverá,
anteriormente, a ocorrência de um dano. Não há que se falar em
reparação de dano quando não há dano.
A reparação do dano decorrente da responsabilidade civil encontra guarida na disposição do artigo 186 (equivalente ao
art.159 do Código Civil de 1916) Código Civil de 2002. O art. 186
dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência,
ou imprudência, violar direito, e causar dano a outrem, ainda que
exclusivamente moral, comete ato ilícito”.35 Analisando este dispositivo, encontramos os ‘pressupostos (ou elementos) caracteriza34
.DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 5.
35
BRASIL. Código Civil (2002). Vade Mecum. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p.
163.
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271
dores da responsabilidade civil’, quais sejam: a) conduta, comissiva
ou omissiva, violadora do dever jurídico; b) culpa ou risco do agente;
c) o dano; d) nexo de causalidade entre a conduta e o dano; e e) o
dano. Havendo esses elementos constituintes da responsabilidade, surge para aquele que teve a sua seara jurídica violada o direito
à sua devida reparação.
O primeiro pressuposto, ‘a conduta violadora’, nada mais é
do que o próprio ato ilícito ocasionado tanto por uma ação quanto
por uma omissão. É um ato decorrente da vontade humana que
produz consequências jurídicas. Essa conduta violadora do bom
direito pode ter tanto um cunho objetivo, como um cunho subjetivo, conforme esteja ou não diante do elemento “culpa”.
O segundo pressuposto é o ‘nexo de causalidade’. Este elemento pode ser definido como o liame entre a conduta violadora e
o dano. Ou seja, só haverá reparação civil se o dano, efetivamente,
decorrer de uma ação do agente. Em outras palavras, não basta a
mera ocorrência do dano. É primordial que o dano seja resultado
da conduta comissiva ou omissiva. Destarte, este elemento caracteriza uma relação de causa e efeito. Nesse sentido, só haverá o
direito à reparação ao se provar esta relação de causalidade, comprovação esta que, via de regra, deve ser feita pelo autor da demanda. Por derradeiro, ressalta-se que no que tange ao nexo de
causalidade, existem algumas teorias. Contudo, é a teoria da causalidade adequada é considerada a majoritária.
Por derradeiro, o último elemento caracterizador da responsabilidade civil: ‘o dano’. É cediço o entendimento de que não
existe reparação sem que, anteriormente, haja um dano, um prejuízo, que pode ser tanto patrimonial, ou seja, quando o prejuízo
recai sob o patrimônio da vítima, diminuindo seu valor ou, até
mesmo, restringindo sua utilidade (perda ou deterioração); moral,
quando fere um direito inerente a personalidade da vítima; ou estético, quando causa à vítima um ferimento à sua estética.
Neste diapasão, é válido ressaltar a existência das ‘Exclu-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dentes de Responsabilidade’, quais sejam, o Fato exclusivo da vítima, Fato de Terceiro, Caso Fortuito e Força Maior. O conceito de
excludente de responsabilidade é pautado no elemento “nexo
causal”. Quando este liame é rompido, a responsabilidade também será quebrada. Daí, a importância de analisar as excludentes
de responsabilidade, tendo em vista que são instrumentos capazes de fulminar a responsabilidade do agente.
3 TUTELA CONSTITUCIONAL DO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Foi plausível a previsão do Código de Defesa do Consumidor (CDC) dentre as normas da Constituição Federal. Resta inequívoca tamanha importância deste feito, uma vez que fora originada
por expressa previsão constitucional e por encontrar-se no rol dos
direitos e garantias fundamentais, no art. 5º, XXXII, da Carta Maior,
passando a integrar o ordenamento jurídico com toda a força, dando alicerce e servindo de instrumento utilizado não somente para
regulamentar relações de consumo, mas, também, todas as relações provenientes desta.
Em 11 de setembro de 1990, foi editado o Código de Defesa
do Consumidor, cujo conteúdo material passou a integrar nosso
ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei 8.078/90. Nessa esteira, fora instituído um microssistema normativo completo, tendo
em vista que o CDC é formado por uma diversidade de normas de
direito civil, administrativo, penal e até processual coletivo.
Com o objetivo de salvaguardar os interesses dos sujeitos
da relação de consumo, sobretudo, os mais frágeis (consumidores), o CDC veio tutelar pessoas submetidas ao poderio econômico, à capacidade científica e técnica de outrem. Resta clara a
intenção do legislador em proteger os interesses dos sujeitos das
relações de consumo, embasando-se, acima de tudo, na dignidade
da pessoa humana, bem como de estabelecer tutelas adequadas e
Capa
Sumário
273
instrumentos que servissem de alicerces para quaisquer celeumas
que, por ventura, surgissem. O CDC representa, assim, um conjunto normativo de ordem pública, ou seja, de aplicação obrigatória,
cogente, de interesse social, principiológica, pois veicula valores
e fins a serem alcançados, conferindo privilégios aos consumidores já que, economicamente, aparecem como o lado mais fraco da
relação de consumo. Como forma de suprir esta desigualdade, o
CDC surge garantindo o equilíbrio, a igualdade e justiça nas relações de consumo.
Para que se torne possível conceituar os sujeitos da relação
de consumo, faz-se mister o entendimento de que relação jurídica de consumo pode ser conceituada como aquela existente entre
consumidor e fornecedor e que tem como objeto um produto ou
a contratação de um serviço. Os sujeitos da relação de consumo
configuram como elementos subjetivos. São eles: O consumidor e
o Fornecedor. Nós temos no CDC, no caput do seu art. 2º, o conceito do que vem a ser Consumidor. Este artigo afirma que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto
ou serviço como destinatário final”.36
Conforme dito anteriormente, o consumidor configura-se
como o elo mais fraco da relação de consumo e, por este motivo,
com a elaboração do CDC, este passou a ser mais protegido, possuindo ‘superioridade jurídica’ em relação ao fornecedor, medida
esta fruto da sua vulnerabilidade. O princípio da vulnerabilidade
em comento, encontra guarida no art.4º, I, do CDC, que prega a
proteção do “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor
no mercado de consumo”.37
Em relação as principais vulnerabilidades adotadas pelo
STJ, baseado na doutrina de Cláudia Lima Marques, temos que vulnerabilidade pode ser dividida em três aspectos: a vulnerabilidade
36
.BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Senado, 1990. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm . Acesso em: 18/10/2012
37
BRASIL, op. cit., nota 4.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
técnica, vulnerabilidade jurídica e vulnerabilidade econômica.
Leonardo de Medeiros Garcia dá os seguintes conceitos a
estas vulnerabilidades:
Vulnerabilidade Técnica seria aquela no qual o comprador não possui conhecimentos específicos sobre
o produto ou o serviço, podendo, portanto, ser mais
facilmente iludido no momento da contratação.
Vulnerabilidade Jurídica seria a própria falta de conhecimentos jurídicos, ou de outros pertinentes à
relação, como contabilidade, matemática financeira
e economia. Vulnerabilidade Econômica é a vulnerabilidade real diante do parceiro contratual, seja
em decorrência do grande poderio econômico deste
último, seja pela sua posição de monopólio, ou em
razão da essencialidade do serviço que presta, impondo, numa relação contratual, uma posição de
superioridade.38
Em nosso ordenamento jurídico, fala-se em correntes ou
teorias que surgiram para explicar o conceito de destinatário final
que é colocado no caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor: a Teoria Finalista ou Subjetiva, a Teoria Maximalista e a Teoria Mista. Segundo o CDC, a teoria adotada é a chamada Finalista
ou Subjetiva.
A Teoria Finalista afirma que consumidor é o destinatário
final que adquire um produto ou uma prestação de serviços para
si ou para outrem, desde que o produto ou o serviço não tenha caráter para desenvolver atividade comercial e/ou profissional. Contudo, apesar da lei ser bem expressa, o STJ embasado na doutrina
de Cláudia Lima Marques, aprofundou a teoria ora narrada. Assim
sendo, abrandou o critério subjetivo da teoria finalista para incluir
certas pessoas na qualidade de consumidor como, por exemplo,
os microempresários e empresários individuais, desde que feita a
38
.GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor. 5. ed. Bahia: Podium,
2011, p. 23.
Capa
Sumário
275
prova de vulnerabilidade. A partir desta mitigação da teoria finalista realizada pelo STJ, surgiu a chamada Teoria Finalista Aprofundada ou também chamada de Teoria Finalista Mitigada, que pode ser
definida como o resultado do abrandamento da teoria finalista, ou
seja, alguém que não era atingido pelo conceito de consumidor,
por esta teoria, passou a ser atingido.
Para que possamos concluir o conceito e aspectos gerais
acerca do consumidor padrão, vejamos um acórdão do Superior
Tribunal de Justiça, que retrata a mitigação da teoria finalista
quando do abrandamento do aspecto subjetivo, abrangendo pequenas empresas e profissionais quando estas provam suas vulnerabilidades. Segue abaixo o Recurso Especial 476428/SC, Rel. min.
Nancy Andrighi:
[...] Com vistas, porém, ao esgotamento da questão,
cumpre consignar a existência de certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em
que se admite, excepcionalmente e desde que demonstrada in concreto a vulnerabilidade técnica,
jurídica ou econômica , a aplicação das normas
do Código de Defesa do Consumidor a determinados consumidores profissionais, como pequenas empresas e profissionais liberais. Quer dizer,
não se deixa de perquirir acerca do uso, profissional
ou não, do bem ou serviço; apenas, como exceção,
e à vista da hipossuficiência concreta de determinado adquirente ou utente, não obstante seja um
profissional, passa-se a considerá-lo consumidor.”39
(STJ, Resp 476428/SC, Rel. min. Nancy Andrighi, pub
09.05.2005)
Em suma, é possível afirmar que Fornecedor é qualquer
39
.BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 476428/SC. Recorrente: AGIPLIQUIGAS. Recorrido: GRACHER Hotéis e Turismo LTDA. Terceira Turma.
Relatora: Min. Nancy Andrighi. Santa Catarina, julgado em 19/04/2005. Publicado no DJ
em 09/05/2005. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/justica/detalhe.
asp?numreg=200201456245>. Acesso em: 27/09/2012.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
pessoa que, com habitualidade, fornece no mercado produtos ou
prestação de serviços, de modo a preencher as necessidades daqueles que compõem a sociedade de consumo.
Por fim, o último elemento da relação de consumo é o Produto ou Serviço. Ao definir produto e serviço, prevê o CDC, no §1º
do art. 3º, “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material
ou imaterial. Já o §2º, define o conceito de Serviço como sendo
qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive de natureza bancária, financeira [...]” 40.
4 RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO
DE DEFESA DO CONSUMIDOR
Conforme dito anteriormente, a responsabilidade civil no
Código de Defesa do Consumidor aparece como uma evolução no
ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que adota a responsabilidade objetiva do fornecedor, ou seja, a responsabilidade sem a necessidade de provar a culpa do agente. Neste sentido,
afirma Cavalieri Filho que “atualmente, a responsabilidade civil
pode ser dividida em duas partes: a responsabilidade tradicional e
a responsabilidade nas relações de consumo” 41
Diante desse avanço jurídico, leciona Lúcio Delfino que:
Chegava-se a falar em aventura de consumo; afinal,
se o consumidor fosse lesado por algum produto
ou serviço, dificilmente conseguiria demonstrar a
culpa do fornecedor, tendo, por conseguinte, que
arcar com os danos sofridos. Com a situação invertida, cabe aos fornecedores garantirem a solidez e
segurança de seus produtos e serviços, mormente
porque, hodiernamente, nenhum consumidor que
buscar amparo no Judiciário deixará de ser indenizado por lesões sofridas em acidentes de consumo,
40
BRASIL, op. cit., nota 4.
41
.CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 3.Ed. São
Paulo: Malheiros, 2002.
Capa
Sumário
277
bem assim nenhum fornecedor se esquivará da responsabilidade de indenizar aqueles danos causados
por produtos ou serviços imperfeitos de sua responsabilidade.42
A responsabilidade civil edificada na Lei 8.078/90, nada
mais trouxe que a responsabilidade do fornecedor pela segurança
dos produtos e serviços por ele prestados, independentemente da
configuração de culpa, tendo em vista que a comprovação desta,
antes da responsabilidade objetiva, tornava o fornecedor quase
que ‘irresponsável’ deixando, assim, o consumidor impossibilitado da verdadeira proteção jurídica. Para tanto, leciona mais uma
vez Lúcio Delfino, que “em se tratando de relação de consumo, a
responsabilidade civil terá por pressuposto não a culpa do fornecedor, senão o descumprimento de um dever jurídico primário de
segurança” 43.
Dessa forma, os fornecedores ficam obrigados a garantir
solidez e segurança, de modo que, caso não o façam, serão responsabilizados e obrigados a reparar o prejuízo causado aos seus
consumidores, independentemente de culpa. Essa inovação se
traduz como um dever legal de segurança imposta ao fornecedor,
oferecendo maior conforto e tutela efetiva ao consumidor para
que, havendo necessidade, não se torne tão dificultosa a sua reparação.
5 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO
DO PRODUTO E TABAGISMO
Fato do produto e Acidente de consumo, muitas vezes, são
considerados sinônimos, ou seja, anomalias que tornam produtos
inadequados aos fins que se destinam. São imperfeições intrínsecas/ extrínsecas, capazes de contaminar o produto, bem como
42
43
DELFINO, Lúcio. Responsabilidade Civil e Tabagismo. Curitiba: Juruá, 2007
.Ibid, p.178.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
causar lesões à esfera material e/ou psíquica do consumidor. Ambos são alavancas de danos morais e materiais ao consumidor que
fora prejudicado decorrente de imperfeição do produto.44
A responsabilidade civil pelo fato do produto encontra
guarida no disposto do artigo 12, do CDC, que nos traz a chamada responsabilidade objetiva do fornecedor (responsabilidade independente de culpa). Analisando este dispositivo, percebe-se a
intenção do legislador em priorizar este tipo de responsabilidade
quando elenca a expressão “independentemente de culpa”. Aqui
não há que se falar em culpa, tendo em vista que a lei 8.078/90 se
desprendeu da forma tradicional antes adotada, baseada sempre
na culpa. Nesta situação, não se torna importante se o agente agiu
culposamente ou não. O que importa para essa responsabilidade
prevista no artigo 12 do CDC é a anomalia, a imperfeição do produto que não gera a devida segurança que o consumidor tem expectativa quando o adquire.
Ainda, é de demasiada importância ressaltar acerca de um
equívoco bastante corriqueiro nas fundamentações de julgados
que beneficiam as indústrias tabagistas, em ações contra elas promovidas. Sobre isso, ensina Lúcio Delfino:
Refere-se aqui à premissa insustentável, no mais
das vezes utilizada como alicerce de tais julgados,
fundada na ideia de que a licitude da atividade da
indústria do fumo conduziria a um raciocínio por
meio do qual se poderia. concluir ser ela absolutamente irresponsável pelos danos que os cigarros
acarretam aos seus consumidores. Nada mais ilógico, data vênia. Tal ideia, fragilizada mesmo que por
uma análise rasa do tema, apenas vem a comprovar
que, ainda hoje, o CDC não é uma legislação adequadamente compreendida pelos operadores do
direito.45
44
45
Capa
DELFINO, op. cit., p.200, nota 10.
Ibid., p. 201
Sumário
279
Ou seja, baseado nessa ideia, não deveria ser levado em
consideração, para efeitos de responsabilidade, a legalidade ou
ilegalidade da atividade exercida pelo fornecedor. A adoção desta ideia torna a responsabilidade objetiva, inovação do CDC, uma
letra morta em nosso ordenamento jurídico. Esse tipo de entendimento configura-se como um empecilho de o consumidor ver seu
prejuízo reparado, tendo em vista que a grande maioria das atividades é lícita, acarretando numa quase completa irresponsabilidade por parte do fornecedor.
Na verdade mesmo, o que se deve ser levado em consideração é a obrigação por parte do fornecedor em fornecer segurança
aos seus consumidores, de modo a preservar uma justa e coerente
relação de consumo. Ratificando este pensamento, nas palavras
de Lúcio Delfino, “o fato gerador não corresponde à ilicitude da atividade, senão aquelas imperfeições rotuladas pelo CDC de vícios/
defeitos”.46 E é exatamente isso que buscou proteger o legislador
na elaboração do art.12, §1º e seus incisos do CDC. Vejamos o teor
deste dispositivo:
[...] §1º O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera,
levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais:
I – sua apresentação;
II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam;
III – a época em que foi colocado em circulação.
Analisando este artigo, conseguimos visualizar os três elementos determinantes da segurança dos produtos. São elementos
que os produtos necessariamente deverão possuir resguardando,
assim, sua segurança. São eles: a apresentação do produto, o uso
e riscos que o consumidor razoavelmente espera do produto, bem
como a época em que foi colocado no mercado.
46
DELFINO, op. cit., p.201, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
No que diz respeito ao Vício ou Defeito de Concepção/ Criação do Cigarro, esse tipo de defeito decorre de erro ocasionado na
época da execução do projeto. O art.12 do CDC assegura que o fabricante será responsável, independentemente de culpa, por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, fórmulas, manipulação e
entre outros. Sendo assim, colocado no mercado de consumo um
produto que, desde a sua origem, já era considerado danoso ao
uso do consumidor, deveria (em tese) ensejar a responsabilidade
de seu fabricante. Esse tipo de defeito/vício atinge toda a categoria do produto sendo necessário, dessa forma, a sua retirada total
do mercado. Isso se aplica perfeitamente ao caso do cigarro, já que
em sua composição utiliza-se substâncias danosas à saúde, especialmente a nicotina, causadora de dependência ( inclusive, seu
uso fora considerado uma doença crônica pela OMS).
Em virtude disso, o Estado através da ANVISA, Agencia Nacional de Vigilância Sanitária, reconheceu a nicotina, na Resolução
de Diretoria Colegiada (RDC) n. 104, de 31/05/2001, como produto
psicotrópico obrigando que os fabricantes de cigarro informassem
em suas propagandas todos os males advindos do uso do cigarro.
Contudo, mesmo sendo do conhecimento do Estado que a nicotina
causa dependência, não houve a sua inclusão na Portaria SVS/MS
343, que trás em seu conteúdo a lista de substâncias psicotrópicas
merecedoras de controle especial. Desse modo, parafraseando as
palavras de Lúcio Delfino, necessário seria se o Estado intervisse
regulamentando o uso da nicotina, de maneira mais incisiva, impondo regras mais claras e específicas, no sentido de educar a sociedade e evitando a quantidade exacerbada de mortes pelo uso
desse produto.47
Já no que tange ao Vício ou Defeito de informação do cigarro, como se sabe, o CDC assegurou, em seu art. 6º, o direito básico
do consumidor acerca da “informação adequada e clara sobre os
diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quan47
Capa
DELFINO, op.cit., nota 10.
Sumário
281
tidade, característica, composição, qualidade e preço, bem como
sobre os riscos que apresentem”.48 Este dever de informação é reforçado, ainda, pelo disposto no art. 31. Não obstante, vincula-se
ao princípio da Transparência, consagrado no art.4º do CDC.
Além disso, o CDC prevê em seu art. 9º, que os produtos
potencialmente nocivos devem conter, além do que estabelece o
art.6º, III, e art.31, a “complementação, de forma especial, no que
diz respeito à nocividade e periculosidade do mesmo, que deverá
ser informada de forma ostensiva e adequada.”49 Havendo o desrespeito a essas regras, necessário se faz a responsabilização do
infrator, independentemente do consumidor provar a sua culpa.
Contudo, esse dever de informação não é algo corriqueiro entre as
indústrias fumígenas. Elas não fornecem informações ostensivas
acerca dos riscos do cigarro. Interessante seria a adoção de regras
mais contundentes e punições mais severas para força-las ao cumprimento das regras estabelecidas pelo nosso ordenamento jurídico, salvaguardando os interesses dos consumidores vulneráveis
que carecem de proteção jurídica.
Nesse Contexto de Responsabilidade Civil no bojo do CDC,
há de se falar, ainda, da Falta de Segurança Legitimamente Esperada. Ao afirmar que o produto é defeituoso quando não oferece
segurança que dele legitimamente se espera, o legislador não foi
tão sábio. Esse conceito foi colocado de forma vaga, fazendo com
que o juiz, ao se deparar com o caso concreto, deverá levar em consideração as expectativas objetivas dos consumidores em geral e
não as expectativas subjetivas do lesado.
A apresentação do produto está ligado intimamente na necessidade das indústrias tabagistas informarem acerca de todos os
riscos, componentes do cigarro, garantia, validade, riscos à saúde
e entre outros aspectos que são fundamentais, capazes de influenciar o consumidor em adquirir o produto ou não. Infelizmente, a
48
49
BRASIL, op.cit., nota 4.
BRASIL, op.cit., nota 4.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
indústria do tabaco não respeita esse preceito legal na sua forma
integral, fornecendo aos seus clientes informações superficiais,
não suficientes ao seu uso. Essa inobservância legal origina o que
chamamos de publicidade enganosa por omissão.
Já em relação ao uso e riscos que o consumidor razoavelmente espera do produto, é sabido que todos os produtos e serviços, quando são anunciados, acabam gerando certa expectativa ao
consumidor. Mas, muitas vezes, o que o consumidor espera desse
produto não se concretiza, gerando uma enorme frustração, já que
não gerou a devida segurança e proteção legitimamente esperada.
Produto ou serviço defeituoso é inadequado, imprestável ao consumo. Por isso que se entende “produto defeituoso não somente
aquele viciado mas, também, aquele produto que não atenda as
expectativas do consumidor, não atenda à segurança e ao aperfeiçoamento ditados pela lei.50
Por fim, quanto à época da colocação do produto no mercado, afirma James Marins:
levando-se em conta a época em que o produto foi
colocado no mercado, não poderá haver legítima expectativa de segurança que vá além da ciência existente; ou seja, qualquer expectativa de segurança
somente será legítima se não pretender que o produto possa superar o próprio grau de conhecimento
científico existente no momento em que se deu sua
introdução no mercado.51
Em relação às indústrias tabagistas, a época de colocação
no mercado não deve ser considerada como uma excludente de
responsabilidade, tendo em vista que a partir de documentos secretos, restou provado que a indústria do fumo, há mais de quatro
50
.FORMIGA, José Carlos. Responsabilidade Civil do fabricante de cigarro. Trabalho de Conclusão de curso. (Graduação em Direito) – Centro Universitário de João Pessoa, Paraíba, 2007.
51
.MARINS, apud DELFINO, op. cit., p. 261, nota 10.
Capa
Sumário
283
décadas, é ciente do efeito de dependência gerado pela nicotina e
de que o tabagismo é causador de câncer.52 Nesse prisma, detendo conhecimentos sobre a capacidade mortífera de seu produto
por décadas, qualquer tentativa de se obter uma decisão elidindo
a sua responsabilidade, com base no inciso III do art. 12 da lei n.
8.078/90, seria absolutamente inócua.53
Sendo assim, no desrespeito a essas três determinantes de
segurança, fica o fornecedor obrigado a reparar o dano, caso tenha
como resultado dano moral ou material ao consumidor. Daí a importância do termo “segurança”. Lúcio Delfino afirma:
Ao rotular de inseguro aquele produto que não oferece a segurança legitimamente esperada pelo consumidor, o CDC impõe um ônus legal ao fornecedor,
de sorte que, se esse disponibilizar, no mercado de
consumo, produto imperfeito/inseguro e, por conseqüência, consumidores se virem prejudicados por
situação que atinge outros bens seus (saúde, vida,
patrimônio material ou moral), que não o próprio
produto em si, surge o seu dever indenizatório, fincado no art. 12 do citado Diploma legal. A lesão ao
dever de segurança implica a real possibilidade de
se atingir o patrimônio jurídico do consumidor em
sua mais ampla acepção, notadamente naquilo que
se refere a sua saúde e própria vida.54
Para tanto, não importa o argumento das indústrias tabagistas de executarem atividade lícita – o que se questiona é o fato
do produto ser dotado de defeito/imperfeição atender as expectativas do consumidor.
A saúde, como se sabe, é assegurada na Constituição Federal como direito de todos e dever do Estado. A lei 8078/90, seguindo os ditames da Constituição Federal, também estabeleceu
52
53
54
Loc. cit.
DELFINO, op. cit., p. 261, nota 10.
DELFINO, op. cit., p. 203, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
a proteção à saúde como um dos direitos básicos do consumidor.
Qualquer situação que venha a contrariar essas regras deve ser
considerada ilegal ou prejudicial ao ser humano, tendo em vista
que a saúde é o bem mais precioso que existe. O cigarro, por causar tantos males à saúde, é um típico produto defeituoso, devendo
ser mola propulsora de reparação dos danos causados aos consumidores que dele se utilizam.
285
Apesar das consequências negativas provocadas pelo tabaco aos seres humanos, o seu consumo se materializa por todos
os lados do mundo. Considerado como um dos maiores males da
humanidade, disseminou-se por todos os países do mundo causando inúmeras doenças e mortes aos que dele se utilizavam.
A respeito do surgimento do tabaco, não há unanimidade.
Alguns historiadores afirmam ter sido o tabaco originário da América Central e somente em 1000 a.C. passou a ser utilizado pelos
povos indígenas para tratamentos de purificação religiosa e para
tratamentos de doenças. Já em relação à sua chegada à Europa,
alguns historiadores atribuem este fato a Jean Nicot, diplomata
francês, que residia em Lisboa. De acordo com a história, Jean Nicot era portador de uma doença na perna. Até então, este diplomata não havia encontrado cura para seu problema. Foi quando
se encontrou com Damião de Góis, que lhe entregara um pouco da
planta recolhida em uma de suas viagens. Ao utilizar-se da planta,
teve sua perna cicatrizada.55 Jean Nicot é considerado, por muitos,
o responsável pela propagação do tabaco por todo o continente
europeu e, por isso, teve o seu nome homenageado (que de home-
nagem não tem nada!) associado a esta erva: nicotiana tabacum.56
Durante muito tempo, o povo daquela época utilizava-se
bastante do tabaco como fonte medicinal para diversos tratamentos de doenças, tais como enxaquecas, reumatismo, doenças
venéreas e entre outras. Como era novidade para as pessoas, foi
muito fácil o tabaco se espalhar para os quatro cantos do mundo como algo bom e que trazia benefícios à saúde, já que estava
diretamente ligado à cura. Contudo, apesar das advertências dos
médicos da época, que nem tinham tanto conhecimento como os
médicos de hoje, houve o desvirtuamento do uso do tabaco, que
passou a ser utilizado, meramente, por prazer. Passado certo tempo, foram verificados vários males ocasionados pelo uso do tabaco. O uso foi tão intenso que os médicos da época afirmavam que
se o uso da erva do tabaco continuasse tão desenfreado, chegaria
a um ponto em que os governos não teriam pessoas suficientes
para seus exércitos57.
Desenfreadamente, a utilização do tabaco passou a ser perseguida pelos governos e pela igreja, sendo o seu uso equiparado
a crime punido com pena de morte. Porém, com a expansão acelerada do tabaco, os governos perceberam que não conseguiriam
privar o seu uso. A partir deste momento, utilizou-se como contramedida a sua elevada tributação.
A fumaça do cigarro é resultado de uma verdadeira mistura de componentes químicos. Tem-se notícia de que é formada
por, aproximadamente, 4.700 substâncias tóxicas, constituindo-se
de duas fases: a fase condensada e a fase gasosa. Na fase gasosa,
podemos citar como exemplos o monóxido de carbono, a nicotina,
cetonas e formaldeído. Já na fase condensada, encontramos novamente a nicotina, bem como outras 43 substâncias cancerígenas,
como o chumbo, níquel, além das substâncias radioativas como
o carbono 14, polônio 210, rádio 226 e etc. Dentre as substâncias
55
.NUNES, Pedro. (1994, p.750) apud MORAES, Carlos Alexandre. Responsabilidade Civil das Empresas Tabagistas. 1. Ed. Curitiba: Juruá, 2010. p.33.
56ROSEMBERG, apud DELFINO, op. cit., p. 31, nota 10.
57
DELFINO, op. cit., p. 30, nota 10.
6 PERSPECTIVA HISTÓRICA DO CIGARRO
E INSERÇÃO DESSE PRODUTO
NO CONTEXTO SOCIAL
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tóxicas elencadas, uma delas ganha bastante relevância. Estamos
falando de uma droga potentíssima, responsável pelo surgimento
da dependência e vício nos tabagistas: a nicotina.
A Organização Mundial de Saúde, bem como outros organismos internacionais, consideram a nicotina uma droga. Por este
motivo, podemos encontrar a dependência do cigarro como uma
doença, colocada pela Organização Mundial da Saúde, na Classificação Internacional de doenças como F.17.2, leia-se, síndrome da
tabaco dependência (grifo nosso).58
Acerca da dependência da nicotina no organismo, ensina
Mario Cesar Carvalho:
Embora a sensação de prazer seja verdadeira, a impressão de que o cigarro acalma, relaxa e funciona
como estabilizador do humor é tão falsa como uma
nota de 3 reais. Na verdade, a sensação de relaxamento ocorre porque a nicotina agiu sobre um
mecanismo produzido por ela própria: o da dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se
pois estava em crise de abstinência. A nicotina eu
ele consumira já havia se dissipado do organismo.
Aí começaram os sintomas da falta da nicotina –
uma ansiedade que parece irritação, nervosismo e
incapacidade de concentrar-se. Quando se aspira o
cigarro, a crise de abstinência é interrompida e tem-se a sensação de relaxamento. 59
287
bricantes do cigarro, qual seja, de que o cigarro é um produto cuja
periculosidade lhe é inerente. Como se sabe, O art. 8º do CDC prescreve que “os produtos colocados no mercado de consumo não
acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores” 60. Entretanto, o mesmo artigo prevê uma exceção: é o caso dos produtos que apresentam riscos considerados normais e previsíveis em
decorrência de sua natureza e fruição. Nesse caso, poderão esses
produtos ser colocados no mercado, desde que contenham a adequada informação61.
É exatamente nessa exceção que os fabricantes de cigarro
se baseiam. Alegam que o cigarro possui risco considerado normal
e previsível em decorrência de sua natureza e fruição. Contudo,
jamais poderia lograr êxito esse argumento, pois, se assim fosse,
estaríamos diante de uma excludente de responsabilidade, hipótese em que jamais as indústrias tabaqueiras poderiam reparar
qualquer prejuízo causado aos fumantes em virtude do uso de seu
produto. Nesse sentido, afirma Lúcio Delfino:
Não se podem considerar tais riscos normais em
decorrência da natureza e fruição do cigarro. Em
primeiro lugar, a natureza do cigarro, vista como
conjunto de substancias que o compõem e que dele
emanam quando aceso, é desconhecida pelo consumidor de inteligência mediana. Só para se ter uma
idéia, são quase cinco mil substancias lançadas ao
ar com a fumaça do cigarro, dentre elas substancias
tóxicas, cancerígenas e, ate mesmo, radioativas. [...]
Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, fruir
significa gozar, desfrutar. Quem fuma não tem como
pretensão desfrutar, no futuro, um câncer no pulmão
ou uma diminuição do desejo sexual. Não pretende,
logicamente, perder grande parte da sensibilidade
de seu paladar ou, ainda, gozar um envelhecimento
precoce. Não existe no fumante o desejo de, ao adquirir um maço de cigarros, depreciarem sua saúde
Sendo assim, percebe-se que a nicotina, fonte causadora
da dependência e falsa sensação de bem-estar, revela-se como um
remédio para algo ocasionado por ela mesmo. Assim, o mal-estar
causado pela ausência desta substância no organismo, pode ser suprido com o bem-estar que tão somente ela proporciona. A nicotina
nada mais é do que a forma de tornar o fumante escravo do tabaco.
Oportunamente, menciona-se um dos argumentos dos fa58
59
Capa
Ibid, p.38.
.CARVALHO, apud DELFINO, op. cit., p. 39, nota 10.
Sumário
60
61
BRASIL, op. cit., nota 4.
DELFINO, op.cit., p.205, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ou de buscar sua morte prematura. Considerar esses
fatos como verdadeiros seria o mesmo que admitir a
premissa insustentável de existir no mundo mais de
um milhão de suicidas.62
Nos dias hodiernos, o tabagismo é entendido como uma
doença crônica. Isto porque a ciência encarregou-se de provar que,
mesmo havendo vontade do fumante em parar de fumar, na prática, é muito difícil abandonar o consumo do tabaco.63 Não é sábio
acreditar que apenas a força de vontade do fumante em abandonar o vício de fumar é suficiente para que alcance tal objetivo. Vai
muito mais além do que a própria vontade. Além da consciência
de saber que fumar faz mal a própria saúde, ainda há a frustração
ocasionada pela incapacidade de combater o vício.
Em linhas gerais, podemos destacar várias doenças ocasionadas pelo uso do cigarro. Podemos citar, como exemplo, o câncer
de pulmão, câncer de garganta, bronquite crônica, enfisema pulmonar, doenças coronarianas, acidentes vasculares cerebrais, doenças nos ossos, impotência, além de outros problemas de saúde
resultantes do tabagismo. Através de pesquisas, registrou-se que
em torno de 98 % dos tabagistas possuem em suas mucosas células compatíveis com lesões pré-cancerígenas, que se desenvolvem,
cada vez mais, na medida em que o vício vai perdurando. Quando
ocorre o diagnóstico do câncer de pulmão, há três alternativas para
se tratar a doença: quimioterapia, radioterapia e a cirurgia.64
No que diz respeito ao uso de cigarro por crianças e adolescentes, sabe-se que por serem naturalmente inexperientes e inseguros, crianças e adolescentes acabam se tornando alvos fáceis
das indústrias tabagistas. Não são poucas as crianças que já têm
experiência com o cigarro na vida intrauterina. Algumas mulheres
viciadas no fumo, quando engravidam, não conseguem se desven62
63
64
Capa
Ibid, p.207.
DELFINO, op.cit., p.45, nota 10
.SILVA; GOLDFARB, apud DELFINO, op. cit., p. 48, nota 10.
Sumário
289
cilhar do cigarro por causa do efeito de dependência ocasionada
pela nicotina no organismo. Estudos mostram que mulheres, durante o período gestacional, que fumavam 10 cigarros por dia, causaram retardamento na criança no que diz respeito ao seu aprendizado de leitura e matemática, ao serem comparadas com outras
que não vivenciaram este problema. 65
Sobre isso, Lúcio Delfino demonstra em uma de suas obras:
Em 2003, uma pesquisa nacional revelou que a
nicotina é a droga mais consumida no país por
crianças e adolescentes entre 10 e 18 anos. Segundo
o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas(Cebrid), da Universidade Federal de
São Paulo, 44,5% dos jovens consomem tabaco.
A pesquisa foi realizada a pedido da Secretaria
Nacional Antidrogas e ouviu 2.807 pessoas nos 27
estados do país.66
Segundo a Organização Mundial de Saúde, se nada for feito
para frear as indústrias tabagistas e o consequente consumo de
seus clientes fieis, até 2025 o cigarro será o responsável por matar
500 milhões de pessoas em todo o mundo. Afirma, ainda, que deste total, 200 milhões serão crianças e adolescentes que começaram a fumar na última década67.
7 FUMANTE PASSIVO E SUA FIGURAÇÃO
COMO CONSUMIDOR
Além de fazer mal a saúde do próprio fumante, o cigarro
também faz mal às pessoas que estão ao seu redor. São os chama65
.INCA. Efeitos da fumaça sobre a saúde da criança. Disponível em: http://
www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=passivo&link=crianca.htm>.
Acesso
em: 04/10/2012.
66
DELFINO, op. cit., p. 64, nota 10.
67
. DELFINO, op. cit., p. 64, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dos fumantes passivos. Fumante passivo é aquele indivíduo que
não tem o hábito de inalar o fumo da forma convencional, mas
que está inserido em um ambiente que tenha exposição à nicotina,
monóxido de carbono e outras substâncias tóxicas que compõem
o cigarro.
Incrivelmente, o mal causado pelo cigarro ao fumante passivo
é tão devastador quanto ao fumante ativo. Durante a combustão do
cigarro, são liberadas quantidades maiores de nicotina e de substâncias tóxicas. O fumante passivo está exposto não somente à inalação
da fumaça liberada pelo fumante ativo como, também, exposto à
queima da ponta do cigarro. Para isso, explica José Rosemberg:
A constituição do fumo inalado pelos chamados
fumantes ativos e a do fumo to tabaco disperso no
ambiente são diferentes, existindo, no último, maior
número de substâncias cancerígenas.[...] a mais importante colaboração para a poluição é a fumaça
que se evola da ponta do cigarro aceso. É a chamada “corrente secundária”, contendo praticamente
todas as substâncias do tabaco e, muitas delas, em
maiores proporções que a “corrente principal”. Essa
corrente secundária é produzida 96% do tempo total
do consumo de um cigarro, contendo, em comparação com a corrente principal- aquela expelida pelo
fumante- três vezes mais nicotina, três a oito vezes
mais monóxido de carbono, 47 vezes mais amônia, 4
vezes mais benzopireno e 52 vezes mais dimetil, nitrosamina, piridil, butanona, estes dois último, potentes cancerígenos. Essa fumaça tóxica espalha-se
no ambiente, fazendo com que as pessoas próximas
inalem suas concentrações tóxicas.68
Diante de tantos males causados ao fumante passivo, torna-se necessário proteger não somente aquele que consome diretamente o cigarro mas, também, aquele que é atingido indiretamente
pela relação de consumo. Acerca do assunto, afirma Lúcio Delfino:
68
Capa
.ROSEMBERG, apud DELFINO, op. cit., p. 31, nota 10.
Sumário
291
Os fumantes passivos são aqueles que, embora não
possuam o vício de fumar, convivem diretamente
com fumante, inalando, dia-a-dia, a fumaça tóxica
do cigarro. É certo que tais pessoas não se encaixam
no conceito de consumidor padrão. Não adquirem
ou usam (por vontade própria) o cigarro como destinatário final.No entanto, muitas vezes, acabam
por se tornar vítimas de uma relação de consumo
na qual não tiveram participação.Embora nunca tenham comprado um cigarro na vida, foram vítimas
de uma relação de consumo.69
A configuração de consumidor por equiparação encontra
guarida no art. 17 do CDC que consagra, para os efeitos de responsabilidade civil, a possibilidade de qualquer pessoa ser alcançada
pelo conceito de consumidor, caso sofra algum evento danoso derivado de imperfeição do produto ou do serviço. Necessário se faz,
apenas, que tenha existido anteriormente uma relação de consumo,
(nexo causal) mesmo que desconhecida pela vítima, ocasionando-a
danos físicos ou psíquicos. Destarte, baseando-se neste dispositivo
legal, o fumante passivo poderia utilizar-se do CDC para embasar
uma pretensão indenizatória. Afinal, ele também se tornou uma vítima de uma relação de consumo anteriormente existente.
8 RESTRIÇÃO DA OFERTA DO CIGARRO
Diferentemente da Publicidade, o conceito de Oferta nos
é fornecido pelo CDC, em seu art. 30, que diz que “toda informação ou publicidade suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e
serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a
fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser
celebrado”.70 Alguns doutrinadores consumeristas entendem que
69
70
DELFINO, op. cit., p. 141, nota 10.
.BRASIL, op. cit., nota 4.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
293
a ‘publicidade’ seria uma espécie do gênero ‘oferta’. Vejamos o entendimento de Markus Samuel Leite Norat:
necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.72
Na acepção consumerista, oferta é, portanto, toda
informação ou publicidade. Desta maneira, percebemos que a publicidade está inserida na oferta,
sendo, deste modo, toda publicidade uma oferta
(oferta publicitária, quando, por exemplo, o supermercado faz anúncio na televisão , oferecendo um
produto por determinado preço), mas nem toda
oferta é uma publicidade. Em outras palavras, a
oferta é gênero ao qual a publicidade está inserida.71
A publicidade de produtos fumígenos passa por diversas
restrições para preservar o consumidor dos males que este tipo
de produto acarreta. Essas restrições foram de sabedoria sublime
pela Constituição Federal, Lei 9294/96 Lei 10167/00 e da Portaria
nº. 490 do Ministério da Saúde, de 1988. Antes da elaboração destas leis, a publicidade do tabaco, no Brasil, não possuía regulamentação, realizando-se através dos meios de comunicação social
a bel prazer dos fornecedores.
A lei 9294/96 dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos. Percebe-se que, desde o ano de 1996, o
legislador reflete sobre a necessidade e preocupa-se com a devida
regulação da oferta de cigarros. Na elaboração desta lei, tentou-se coibir publicidades e oferta abusivas dos produtos derivados
do tabaco, protegendo a sociedade deste mal que mata milhões
de pessoas em todo o mundo. Com o advento da Lei 12.546/11,
o artigo 3º da lei 9294/96, que versa sobre propaganda/ oferta de
cigarros, sofreu alteração. Segue o respectivo artigo alterado por
esta lei superveniente:
É o chamado Princípio da vinculação da Oferta e, por esta
razão, cria-se um direito potestativo ao consumidor, ou seja, cria-se o poder de se exigir exatamente aquilo que foi ofertado. O fornecedor, por este princípio, se obriga a cumprir o negócio pelas
mesmas condições que foram anunciadas.
Como foi dito anteriormente, a saúde constitui um dos
maiores bens da vida do ser humano e, por este e tantos outros
motivos, a Constituição Federal, nossa Carta Maior, estabelece no
inciso II e no §4º do art.220, a restrição da propaganda comercial
de produtos nocivos à saúde, como é o caso do cigarro. Vejamos
abaixo este dispositivo:
Art.220. Omissis
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de
programas ou programações de rádio e televisão
que contrariem o disposto no art. 221, bem como da
propaganda de produtos, práticas e serviços que
possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente.
§4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas
alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias
estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que
71
.NORAT, Markus Samuel Leite. Direito do Consumidor: Oferta e Publicidade.
Leme: Anhanguera, 2010.
Capa
Sumário
Art.3 É vedada, em todo o território nacional, a propaganda comercial de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, com exceção apenas
da exposição dos referidos produtos nos locais de
vendas, desde que acompanhada das cláusulas de
advertência a que se referem[...]73
72
.BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/
con1988/CON1988_21.12.2011/ índex.shtm>. Acesso em: 18/10/2012.
73
.BRASIL, Lei nº 9294/96, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao
uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias
e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal. Diário
Oficial da República.Federativa do Brasil. Brasília, 16 de julho de 1996. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9294.htm>. Acesso em: 26 set. 2012.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Além disso, se analisarmos os parágrafos deste artigo 3º,
citado logo acima, perceberemos que a Lei 9294/96, estabelece alguns requisitos que deverão ser obedecidos quando da oferta do
cigarro. É o caso, por exemplo, da proibição do uso de crianças ou
adolescentes na publicidade do cigarro, bem como associar a publicidade à práticas esportivas. Já a lei 10.167/00, que também realiza algumas alterações na lei 9294/96, estabelece em seu art. 3º :
Art.3º Propaganda comercial dos produtos referidos
no artigo anterior só poderá ser efetuada através de
pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda”.74
Vale registrar, ainda, que vários países vedam totalmente
a publicidade do produto cigarro, demonstrando uma clara evolução em seus ordenamentos jurídicos e, por este motivo, tanto
as leis 9.294/96 e 10.167/00 foram objeto de críticas por parte da
população que resta indignada com publicidades maquiadas. Carlos Alexandre Moraes afirma que alguns especialistas em saúde
criticaram a Lei 10.167/00, já que o cigarro não deveria ser objeto
de qualquer tipo de propaganda, uma vez que esta incentiva e aumenta o número de fumantes, bem como o consumo entre eles.75
O Decreto 2018/96, por exemplo, também veda, entre outros, a apologia ao prazer e bem estar social daquele que usa
o cigarro, em seu art.7, §1º, alínea “d” – “não associar o uso do
produto à prática de esportes olímpicos, nem sugerir ou induzir
seu consumo em locais ou situações perigosas ou ilegais”.76 Já a
74
BRASIL. Lei nº 10.167/00, de 27 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Lei
no 9.294, de 15 de julho de 1996. Diário Oficial da República.Federativa do Brasil. Brasília, 28 de dezembro de 2000. Disponível em: ...<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l10167.htm>. Acesso em: 26 set. 2012.
75
.MORAES, op. cit., p. 123, nota 23.
76
.BRASIL. Decreto nº 2018/96 de 1º de outubro de 1996. Regulamenta a Lei nº
9.294, de 15 de ..julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de
produtos fumígenos, ..bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agríco-
Capa
Sumário
295
União Europeia, por exemplo, aprovou a ilegalidade de anúncios
de cigarro em revistas, jornais, internet e em eventos esportivos
internacionais, nos 15 países do bloco, a partir de julho de 2005. O
ministro dinamarquês da Saúde, Lars Lokke Rasmessen afirmou:
“Demos um grande passo na direção de uma forte política comum
de proteção ao público contra a promoção de produtos da indústria de tabaco. Completou, ainda, o comissário para a saúde da EU,
David Byme, que “a nova lei vai possibilitar às nações da comunidade combater o consumo de cigarros.”77
Desta forma, resta inequívoca tamanha necessidade de
controle por parte do governo brasileiro das campanhas publicitárias e ofertas das indústrias tabagistas, de modo a preservar a
integridade e saúde do consumidor, para que este não caia na armadilha e torne-se mais uma vítima deste produto capaz de matar
tantas pessoas de forma tão disfarçada e cruel.
9 DO DEVER DE INFORMAÇÃO: O TABACO E A
PUBLICIDADE ENGANOSA POR OMISSÃO
A publicidade pode ser considerada como o elemento que
movimenta as relações de compra e venda. É, pois, a maior ferramenta de marketing e, por isso, a forma mais empregada pelos fornecedores para fazer com que seus produtos sejam conhecidos.78 A
publicidade de produtos e serviços somente passou a ser regulada
no ordenamento jurídico brasileiro com o surgimento do Código
de Defesa do Consumidor.
Através da lei 8078/90, que estabelece o CDC, os fornecedores tornaram-se obrigados a respeitar as normas preconizadas,
las, nos termos do § 4º do art. 220 ..da Constituição. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 2 de outubro de ..1996. Disponível em: <http://www2.camara.
gov.br/legin/fed/decret/1996/decreto-2018-1-outubro-..1996-435811-norma-pe.html>.
Acesso em: 26 set. 2012.
77
. MORAES, op. cit., p. 122, nota 23.
78
NORAT, op. cit., p. 93, nota 39.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
297
bem como os consumidores passaram a contar com um alicerce
jurídico que veio para protegê-los contra situações abusivas e enganosas. Por ser um produto nocivo à saúde, impera a necessidade
da informação completa do produto cigarro pelos seus fornecedores evitando, assim, o consumo de um produto sem o conhecimento de informações acerca de sua composição e dos efeitos colaterais por ele ocasionados.
Neste sentido, o art.37 e os parágrafos 1º e 3º do Código
CDC, nos trouxeram o conceito de publicidade enganosa e publicidade enganosa por omissão. Dispõe este artigo:
Art.6º São direitos básicos do consumidor:[...] III- a
informação adequada e clara sobre os diferentes
produtos e serviços com especificação correta de
quantidade, características, composição, qualidade
e preço, bem como os riscos que apresentem.
Art.31 A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa
sobre suas características, qualidades, quantidade,
composição, preço, garantia, prazos de validade e
origem, entre outros dados, bem como sobre os
riscos que apresentam à saúde e segurança dos
consumidores.81
Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira
ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo,
mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o
consumidor a respeito da natureza, características,
qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço
e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. [...]
§ 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre
dado essencial do produto ou serviço.79
Por esses argumentos, é possível afirmar que o caso do cigarro é típico de propaganda enganosa por omissão, pois deixa de
informar dados essenciais sobre os danos causados à saúde que,
se fossem do conhecimento real da população, interferiria em
seu poder de decisão, em virtude da consciência dos seus riscos.
Ressalte-se que a jurisprudência vem, aos poucos, recepcionando
esse posicionamento. Lúcio Delfino traz, em sua obra, trecho do
brilhante voto do Desembargador do Tribunal do Rio Grande do
Sul, Arthur Arnildo Ludwig:
Assim, no meu ponto de vista, o cigarro integra
aquela classificação prevista no art. 9º, do CDC, ou
seja, trata-se de um produto potencialmente nocivo.ou perigoso à saúde dos consumidores, por isso,
a fabricante de cigarros deve informar nos rótulos
e mensagens publicitárias de maneira ostensiva e
adequada a respeito da sua nocividade ou periculosidade.82
(Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Ap. Cível.
70000840264 – Rel. Des. José Conrado de Souza Junior. Julgado em 02/06/2004.)
Norat afirma em seu livro, intitulado “Direito do Consumidor: Oferta e Publicidade”, que “a publicidade é enganosa por
omissão quando deixa de informar sobre algum dado essencial do
produto ou serviço[...]proíbe-se a omissão daquelas informações
mais importantes que o consumidor precisa ter conhecimento
antes de adquirir o produto.”80 Ao analisarmos o CDC minuciosamente, verificamos em seu art. 6, inciso III, bem como no art.31, as
seguintes determinações:
79
80
Capa
BRASIL, op. cit., nota 4.
NORAT, op. cit., p. 132, nota 39.
Sumário
81
82
BRASIL, op. cit., nota 4.
DELFINO, op. cit., p. 219, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
10 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INDÚSTRIAS
FUMÍGENAS PELOS DANOS OCASIONADOS
AOS FUMANTES
O tabaco se disseminou pelo mundo por se encontrar intimamente rotulado como algo prazeroso e capaz de trazer bem
estar. Ao longo do tempo, pesquisadores e cientistas começaram a
demonstrar com suas teses e pesquisas que, ao invés de ser fonte
prazerosa, o tabaco era algo que ao ser ingerido pelo organismo
humano, acarretava doenças, muitas vezes, irreversíveis. Não é
preciso pesquisas e levantamentos para ter a compreensão que o
ser humano foge do mal, foge do perigo. Em sã consciência, ao saber que algo faz mal a sua saúde, tenta desviar o máximo possível
desse tipo de enrascada.
O mais interessante vem agora: as indústrias tabagistas foram protagonistas da maior indenização da história. Com receio de
que essas demandas se tornassem populares nos Estados Unidos
e receosas, principalmente, com a revolta dos estados americanos
por estarem gastando milhões com o sistema de saúde devido aos
problemas causados pelo uso do cigarro, e para que decisões judiciais em seu desfavor não virasse febre nesse país, as indústrias
tabagistas foram responsáveis pelo pagamento de aproximadamente 246 bilhões de dólares – em troca disso, os Estados americanos desistiriam de todos os processos que moviam por fraude
contra a saúde pública.83 Diante desses fatos, data máxima vênia,
percebe-se a malandragem e a jogada de interesses envolvendo as
indústrias tabagistas.
Infelizmente, apesar das legislações que vigoram em nosso
ordenamento jurídico demonstrarem que o cigarro é um produto
nocivo à saúde, que seus fornecedores não são obedientes às regras de publicidade, bem como não informam, adequadamente,
a informação ostensiva ao consumidor, a jurisprudência brasileira
83
Capa
DELFINO, op. cit., p. 339, nota 10.
Sumário
299
caminha no sentido de não responsabilizar as indústrias tabagistas, deixando sem amparo aquelas pessoas vítimas pelo uso do
cigarro e pela dependência deste produto. É um bombardeio de
decisões no sentido contrário aos interesses dos fumantes. Para
esse ceticismo da jurisprudência, afirma Lúcio Delfino:
Muitas dessas decisões mostram absoluto descrédito quanto às argumentações apresentadas pelos
autores de tais ações indenizatórias. E tal resultado, fruto da novidade que o tema representa para
os operadores do direito, tem também por alavanca
a excelente qualidade dos trabalhos desenvolvidos
pelos advogados da indústria do fumo, esses que se
valem de argumentos sedutores, bem elaborados,
sempre escorados em pareceres aparentemente sólidos, elaborados por medalhões do mundo jurídico
nacional.84
Contudo, apesar de muitos acreditarem que não há mais
luz no fim do túnel, acredita-se que esse posicionamento jurisprudencial tem escopo na imaturidade do tema em nosso país e que,
com a evolução doutrinária, bem como o surgimento de dados
reveladores e conflitantes envolvendo as indústrias tabagistas, a
jurisprudência brasileira há de amadurecer no sentido de analisar
com maior afinco essa celeuma. Acreditando em um amadurecimento jurisprudencial, os demandantes acionam o Poder Judiciário a fim de obterem êxito na prestação jurisdicional.
São vários os argumentos levados ao Judiciário. No que diz
respeito aos argumentos dos demandantes, alegam que o cigarro
é um produto perigoso, tendo em vista que já restou comprovado
ser causador de doenças e mortes aos que dele consomem, bem
como para aqueles que não o consomem (mas, por serem fumantes passivos, também são prejudicados). Pior ainda é que este produto ao ser consumido e ser causador de tantas mazelas, causa
84
Loc. Cit.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
danos quase que irreparáveis, já que aqueles que não são favorecidos financeiramente ficam nas mãos do sistema de saúde, que
não possui suporte suficiente para tratar todos os efeitos advindos
do tabagismo. Outro argumento utilizado pelos demandantes é a
publicidade enganosa do cigarro. Apesar de recentemente ser instituída a advertência deste produto, verifica-se que a publicidade
é muito superior à estas advertências que, muitas vezes, são feitas
somente pelo Ministério da Saúde. (“O Ministério da Saúde adverte:
fumar pode causar danos à saúde”.). Para Lúcio Delfino, as informações acerca do cigarro são de extrema importância,
A deficiência de informações do consumidor, quanto aos males originados do tabagismo, tem íntima
relação com as primeiras experiências de consumo
do cigarro e, consequentemente, com a deflagração
do vício causada por esse produto.85
Como já dito alhures, o conhecimento de que a nicotina é
um psicotrópico muito poderoso já se fazia presente entre os fabricantes de cigarro há décadas, mas que foi mantido em segredo,
estrategicamente, para continuar no ramo do fumo e manter acorrentadas milhares de pessoas ignorantes dos males causados pelo
produto. Vale salientar, ainda, que aqueles que não sabem ler, são
atraídos unicamente por imagens atrativas e sedutoras na televisão. Infelizmente, as pessoas menos esclarecidas são as mais prejudicadas, tendo em vista que acabam reféns do vício e presas nas
mãos do Sistema de Saúde, que não possui suporte o mínimo para
tratar milhares de pessoas vitimas dos terríveis efeitos do cigarro.
Outra alegação bastante presente entre os demandantes é
que o cigarro causa dependência química. Já foi comprovado cientificamente o poder incontrolável que a nicotina exerce no organismo humano. Como já explicitado acima, a Organização Mundial
da Saúde enquadra o tabagismo como um doença crônica chama85
Capa
DELFINO, op. cit., p. 347, nota 10.
Sumário
301
da “nicotina-dependência” e, mesmo após tantos estudos, nos deparamos com algumas frases bastante em voga nas decisões dos
tribunais brasileiros, como: “a cessação da atividade de fumar é
um fato notório e que depende única e exclusivamente do usuário[...]; e “ sabe-se que a decisão de experimentar, como a decisão
de continuar fumando[...] é tão somente do fumante”86
Esses são os argumentos mais corriqueiros utilizados pelos
demandantes que, alicerçando-se nos diplomas legais, lutam na
tentativa de mudar o perfil da jurisprudência em nosso país, tentando a todo custo enquadrar a responsabilidade civil das indústrias
tabagistas na responsabilidade objetiva prevista na Lei 8078/90.
Já no que diz respeito aos argumentos das Indústrias de
Cigarro, através de uma análise feita a fundo no repertório jurisprudencial em nosso país, constatou-se que entre as teses trazidas
pela indústria do tabaco, se sobressaem: a licitude da atividade, a
quebra do nexo causal e a notoriedade de informações.
Acerca da licitude da atividade, afirmam os demandados,
conforme já explanado, que a comercialização do cigarro é uma
atividade lícita, argumento que, muitas vezes, tem sido aceito pelos tribunais. Ou seja, tem-se levado em consideração, não o que
prevê o CDC (responsabilidade objetiva), mas, sim, a licitude ou
não do produto. Essas decisões, data máxima vênia, só corroboram para um efeito dominó em nossos tribunais pátrios de fragilizar as regras colocadas pela Lei 8079/90, tornando-a uma simples
letra morta. Os demandados tentam convencer os tribunais de que
sua atividade se pauta na responsabilidade subjetiva (sendo necessário provar a culpa), de modo a se esquivar da aplicação do
CDC (responsabilidade objetiva). Argumentam, ainda, que sua atividade nada mais é do que um exercício regular de um direito (ou
seja, excludente de imputabilidade) e, em vista disso, não há que
se falar em nenhum tipo de responsabilidade, já que não existe
86
Ibid., p. 372.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
qualquer tipo de violação de dever jurídico.87 Para melhor ilustrar
esse tipo de posição nos tribunais pátrios, segue ementa de decisão da 7ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo:
RESPONSABILIDADE CIVIL Pleito de reparação de
dano moral fundada em doenças causadas pela
prática de tabagismo. Sentença improcedente. Inconformismo do autor. Licitude da fabricação e
comercialização de cigarros que indicam a falta
de responsabilidade da empresa fabricante (grifo nosso). Consumo de tabaco que se vincula ao livre arbítrio do autor, o qual, inevitavelmente, tem
ciência dos malefícios que o uso continuado do cigarro poderia causar Manutenção da sentença Recurso desprovido. 9247635592008826 SP 924763559.2008.8.26.0000, Relator: Ramon Mateo Júnior,
Data de Julgamento: 05/09/2012, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/09/201288
303
do dano causal direto e imediato que considera “causa do evento
danoso aquela capaz de se ligar a ele numa relação de necessariedade , mesmo que não seja essa causa a mais próxima do dano, ou
a única que o ensejou.”89
Essa teoria torna-se um verdadeiro
estorvo. Para Delfino, essa teoria não deve ser encarada como um
óbice para o consumidor, tendo em vista que havendo uma perícia bem trabalhada, aliada às demais provas presentes nos autos,
permitirá ao julgador a conclusão do vínculo causal entre o tabagismo e o prejuízo ao fumante demandante. Neste diapasão, válido se faz demonstrar a decisão da décima terceira câmara cível do
Rio de Janeiro, no dia 09/08/2012:
PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. TABAGISTA QUE ATRIBUI
À FABRICANTE DE CIGARROS A CAUSA DE SUA ENFERMIDADE. INEXISTÊNCIA DE NEXO. LAUDO PERICIAL. PRECEDENTES DO STJ. PRIMEIRO RECURSO AO
QUAL SE NEGA SEGUIMENTO - ART. 557, DO CÓDIGO
DE PROCESSO CIVIL. SEGUNDA APELAÇÃO À QUAL SE
DÁ PROVIMENTO, COM AMPARO NO ARTIGO 557, §1ºA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.I
[...]II - No entanto, para a responsabilização da indústria fumageira, ou de alguma das fabricantes
de cigarro, imprescindível O nexo causal, ou seja,
a prova de que o de cujus faleceu em razão do uso
do tabaco e que ao longo de sua experiência como
fumante, se utilizou desta, ou daquela espécie, fabricada pela ré;III - “A arte médica está limitada a
afirmar a existência de fator de risco entre o fumo e
o câncer, tal como outros fatores, como a alimentação, álcool, carga genética e o modo de vida. Assim,
somente se fosse possível, no caso concreto, determinar quão relevante foi o cigarro para o infortúnio
(morte), ou seja, qual a proporção causal existente
entre o tabagismo e o falecimento, poderse-ia cogitar de se estabelecer um nexo causal juridicamente satisfatório”(grifo nosso) ...]
Com todo o respeito aos prolatores de decisões que se baseiam nesse argumento de licitude ou não do cigarro, ressalta-se,
aqui, que o que deveria ser levado em consideração era o prejuízo
causado por esta relação de consumo, independente se a mesma
é pautada ou não em licitude, uma vez que o CDC prevê o dever de
segurança do fornecedor, bem como sua responsabilidade objetiva, ou seja, qualquer infortúnio que ocorra ao consumidor decorrente do produto, deverá ser sanado por meio da responsabilização do fornecedor independentemente de culpa.
Outro argumento utilizado pelos demandados é a quebra
do nexo causal. O direito civil brasileiro acolheu a chamada teoria
87
.FORMIGA, op.cit., p. 51, nota 18.
88
BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo/SP. Apelação Cível nº 9247635592008826. Apelante: Sebastião Torres Leite. Apelado: Souza Cruz S A. 7ª Camara de Direito Privado. Relator: Ramon Mateo Júnior.
Comarca de Santos. Julgado em 05/09/2012. Publicado no DJ em 07/09/2012. Disponível
em:<http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.do?paginaConsulta=1&localPesquisa.
cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPROC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=9247635592008&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=924763559.2008.8.26.0000&dePesquisa=>. Acesso em: 15/10/2012.
Capa
Sumário
89
DELFINO, op. cit., p.394, nota 10.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
(802541620048190001
RJ
008025416.2004.8.19.0001, Relator: DES. ADEMIR PIMENTEL,
Data de Julgamento: 09/08/2012, DECIMA TERCEIRA
CAMARA CIVEL)90
Sendo assim, por meio desta teoria, as indústrias de tabaco afirmam inexistir relação de causalidade entre as doenças
e o tabagismo afirmando, ainda, que não há como se ter certeza médica de que o cigarro foi um fator determinante. Aduzem
que inúmeros outros fatores podem, por si só, serem capazes
de ocasionar uma patologia. Para solidificar seus argumentos,
citam como exemplo o caso do não fumante que, assim como o
fumante, também é acometido de câncer de pulmão.
Além disso, aduzem, ainda, a quebra do nexo causal pela
culpa exclusiva da vítima. A decisão de fumar, para as empresas
tabaqueiras, decorre exclusivamente da vontade do indivíduo,
principalmente após o advento da regulamentação da publicidade e da advertência dos malefícios causados. Argumentam
que fumar decorre de um mero hábito e não de um vício e, sendo um hábito, é passível de controle pelo usuário. De modo a
reforçar essa tese, eles citam a distinção realizada pela OMS de
vício e hábito, num relatório que remonta ao ano de 1957. Vejamos:
“vicio era um estado de intoxicação caracterizado pela compulsão, tolerância, dependência psicológica e comumente física, com sequelas no
comportamento pessoal e social. Já o hábito foi
considerado uma “condição” caracterizada pelo
desejo por uma droga, pequena ou nenhuma tolerância, dependência meramente psicológica
90
.BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/RJ. Apelação Cível n.
802541620048190001. .Apelante: Alan Cavalcante Duarte e outros. Apelado: os mesmos.
Décima Terceira Câmara Cível. ....Relator: DES. Ademir Pimentel. Rio de Janeiro. Julgado
em 09/08/2012. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22288333/
apelacao-apl-802541620048190001-rj-....0080254-1620048190001-tjrj>. Acesso em:
15/10/2012.
Capa
Sumário
305
(inexistência de dependência física ou síndrome
de abstinência), com consequências puramente
individuais”.91
Alegam, ainda, que considerar o uso do cigarro como um
vício, deriva simplesmente da política antitabagista que se desenvolveu em meados da década de 80 e que não há sentido considerar o cigarro como algo que cause dependência. Para eles, qualquer fumante é capaz de deixar de fumar se essa for a sua vontade.
Mas a situação não é bem assim. Como prova, podemos citar como
exemplo a opinião de especialistas que afirmam não haver tratamento para 5% dos fumantes (a dependência da nicotina é alta).
Para esses 5%, o cigarro seria o seu companheiro pelo resto de
suas vidas e com o cigarro estariam fadados a morrer92.
Por derradeiro, trazem o argumento da notoriedade de informações que circunda o cigarro. Sobre isso, seu principal argumento é de que este assunto é regulamentado por lei específica
federal (lei n. 9294/96 / lei n. 10167/00) e que os preceitos estabelecidos nas mesmas são respeitados pelas indústrias tabaqueiras. Alegam que a publicidade realizada por eles respeita a livre
concorrência e que nunca objetivaram enganar os consumidores
com falsas informações, mas tão somente em vender a sua marca.
Para eles, “os anúncios, ao contrário do que se pretende afirmar,
expressam um esforço de atrair o consumidor para uma determinada marca, e não para dar início ao hábito de fumar”93. Lúcio Delfino afirma em sua obra que seria interessante que, assim como os
remédios, o cigarro deveria ser acompanhado por uma bula, prospectos informativos. Vejamos:
É por tal razão, que os maços de cigarro deveriam,
outrossim, vir acompanhados, a exemplo das bulas
91
FORMIGA, op. cit., p.53, nota 18.
92
.VARELLA, Drauzio. Nicotina.Disponível em: <http://www.drauziovarella.com.
br/entrevista/nicotina5asp.>. Acesso em: 04/10/2012
93
.FORMIGA, op.cit., p. 57, nota 18.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
de remédios, de prospectos informando o consumidor sobre a verdadeira natureza do produto tóxico,
a quantidade de substâncias tóxicas existentes em
cada unidade, a origem do fumo utilizado na sua
confecção, advertir acerca dos inúmeros malefícios
que o produto nocivo poderá gerar à saúde daqueles que o consomem, além de outros esclarecimentos necessários e imprescindíveis à real conscientização do consumidor brasileiro.94
Esses argumentos acerca da publicidade têm sido bastante
amparados pela jurisprudência de nosso país eximindo, dessa forma, a responsabilidade civil das indústrias tabaqueiras. Os tribunais brasileiros, de fato, reconhecem que a publicidade do tabaco
somente veio a ser regulada recentemente e que antes disso o produto era associado à erudição e ao charme daqueles que dele se
utilizavam. Mas ocorre que hoje a situação é diferente. Para os Tribunais, esse tema é devidamente regulado nos dias atuais e pelo
que parece, as indústrias tabaqueiras “respeitam” essas regras.
Ainda, nesse sentido, julgou nosso Colendo Superior Tribunal de
Justiça, o Recurso Especial 1.113.804 - RS (2009/0043881-7), no dia
27/04/2010:
RESPONSABILIDADE CIVIL. TABAGISMO. AÇAO REPARATÓRIA AJUIZADA POR FAMILIARES DE FUMANTE
FALECIDO. PRESCRIÇAO INOCORRENTE. PRODUTO
DE PERICULOSIDADE INERENTE. INEXISTÊNCIA DE
VIOLAÇAO A DEVER JURÍDICO RELATIVO À INFORMAÇAO. NEXO CAUSAL INDEMONSTRADO. TEORIA DO DANO DIREITO E IMEDIATO (INTERRUPÇAO
DO NEXO CAUSAL). IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO
INICIAL.
[...]6. Em realidade, afirmar que o homem não age
segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta
“contaminação propagandista” arquitetada pelas
indústrias do fumo, é afirmar que nenhuma opção
feita pelo homem é genuinamente livre, porquanto
94
Capa
DELFINO, op. cit., p.353, nota 10.
Sumário
307
toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio
social e do marketing. É desarrazoado
afirmar-se que nessas hipóteses a vontade não é livre.95
Em linhas gerais, esses são os principais argumentos levantados pelas indústrias tabagistas para que possam se eximir de
qualquer tipo de responsabilidade devido “à ausência de ilicitude e, consequentemente, de culpa em seu comportamento; bem
como da ausência de nexo causal entre o comportamento do fumante e os danos que teriam sido por ele suportados”. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, é possível perceber que,
infelizmente, ainda é bastante tímida a evolução jurisprudencial
brasileira no sentido de responsabilizar as indústrias tabagistas.
O que se constata é a predominância nos julgados no sentindo de
isentar as demandadas de qualquer tipo de responsabilidade. Se
formos analisar minuciosamente a jurisprudência em nossos tribunais, perceberemos que, em média, a cada dez decisões, nove
são a favor das indústrias tabagistas. Esse é o cenário em nossos
Tribunais.
11 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O traçar destas linhas teve como objetivo demonstrar os
inúmeros problemas advindos do cigarro. Ainda que clarividente
os males ocasionados por ele, nossa Jurisprudência tende a irresponsabilizar as indústrias tabagistas. São raros os casos em que
tiveram êxito os fumantes que acionaram o poder judiciário.
95
.BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.113.804 - RS
(2009/0043881-7). Recorrente: SOUZA CRUZ S/A. Recorrido: SÔNIA MARIA HOFFMANN
MATTIAZZI E OUTROS. .Relator: Ministro Luis Felipe Salomao. Julgado em: 27/04/2010.
Publicado no DJ em 24/06/2010. .Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19141037/recurso-especial-resp-.....1113804-rs2009-0043881-7-stj. Acesso
em: 15/10/2012.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Como se não fosse suficiente, grande maioria das decisões
a favor dos fumantes ao chegarem aos tribunais superiores, são
quase que integralmente reformadas. Data máxima vênia, o presente trabalho diverge da opinião dos Tribunais pátrios no sentido
de acreditar na responsabilidade Civil das Indústrias Tabagistas
por comercializarem um produto nocivo à saúde desrespeitando o
CDC, que fora instituído pela Carta Maior como instrumento de garantia aos vulneráveis da relação de consumo, mas, também, por
comercializarem uma doença capaz de matar quase 5 milhões de
pessoas por ano.
Acredita-se, fielmente, que com estudos de casos concretos
com maior afinco, bem como um amadurecimento na jurisprudência
brasileira, assim como acontece na jurisprudência norte-americana,
o posicionamento futuramente será no sentido de não desamparar
os fumantes que tem suas vidas tiradas por essa droga objetivando,
principalmente, não tornar o Código de Defesa do Consumidor, garantia constitucional fundamental, uma mera letra morta.
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BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo/SP. Apelação Cível nº
9247635592008826. Apelante: Sebastião Torres Leite. Apelado:
Souza Cruz S A. 7ª Camara de Direito Privado. Relator: Ramon Mateo
Capa
Sumário
309
Júnior. Comarca de Santos. Julgado em 05/09/2012. Publicado no DJ
em 07/09/2012. Disponível em:<http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.
do?paginaConsulta=1&localPesquisa.cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPR
OC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=924763
5592008&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=924763559.2008.8.26.0000&dePesquisa=>. Acesso em: 15/10/2012.
_________. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/RJ. Apelação Cível
n. 802541620048190001. Apelante: Alan Cavalcante Duarte e outros.
Apelado: os mesmos. Décima Terceira Câmara Cível. Relator: DES.
Ademir Pimentel. Rio de Janeiro. Julgado em 09/08/2012. Disponível
em: ...<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22288333/
apelacao-apl-802541620048190001-rj-....0080254-1620048190001-tjrj>.
Acesso em: 15/10/2012.
_________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.
1.113.804 - RS (2009/0043881-7). Recorrente: SOUZA CRUZ S/A.
Recorrido: SÔNIA MARIA HOFFMANN MATTIAZZI E OUTROS. Relator:
Ministro Luis Felipe Salomao. Julgado em: 27/04/2010. Publicado
no DJ em 24/06/2010. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/
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_________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.
476428/SC. Recorrente: AGIPLIQUIGAS. Recorrido: GRACHER Hotéis e
Turismo LTDA. Terceira Turma. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Santa
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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
311
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as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, bebidas
alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas. Diário
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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
CONDUTAS ABUSIVAS DO EMPREGADOR
NA RELAÇÃO DE TRABALHO
E O DANO MORAL
Talita Gentilini CAROSI96
Adriano Marteleto GODINHO97
RESUMO: Objetiva apreciar a problemática que envolve a relação
de trabalho, o poder diretivo do empregador e seus possíveis abusos, tendo como base a jurisprudência atual sobre o tema, assim
como o entendimento doutrinário, buscando trazer uma perspectiva mais aprofundada da dinâmica trabalhista e estabelecer limites simbólicos para a atuação das partes (empregador e empregado) na relação jurídica trabalhista, a fim de garantir o equilíbrio
da relação e a proteção dos direitos constitucionalmente garantidos às partes. Além disso, são destacados os pontos em que os
tribunais tem se posicionado de maneira coerente com a doutrina
e legislação atual. Ressalta-se, ainda, que o dano moral resulta do
exercício abusivo do poder diretivo concedido ao empregador, resultando na violação àdireitos da personalidade do trabalhador.
Dessa forma, este estudo faz reflexões teóricas sobre as decisões
do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região e Tribunal Superior do Trabalho. No tocante ao método de abordagem, será utilizada a dedução, uma vez que se partirá do estudo da relação de
trabalho em seus aspectos gerais, conceituando-o e expondo suas
características, até chegar ao ramo mais específico, culminando
96
Autora, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraiba
97
Orientador, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais,
doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e professor da Universidade
Federal da Paraíba.
Capa
Sumário
313
com o entendimento dos tribunais a respeito do tema em casos de
abuso do direito do empregador e a violação a dignidade do trabalhador. Demonstrar-se-á que embora a Justiça venha denotando
uma significativa mudança de posicionamento, nos últimos anos,
quanto às decisões no âmbito da responsabilização por dano morais decorrentes de conduta abusiva do empregador, ainda carece
de uma concepção mais protetora no tocante aos direitos fundamentais do empregado.
Palavras-chave: Relação de Trabalho. Danos Morais. Condutas
Abusivas. Direitos Fundamentais. Poder Diretivo do Empregador.
1 INTRODUÇÃO
As relações trabalhistas constituem parte relevante na dinâmica social ao qual estamos inseridos, e sua regulamentação
demonstra-se essencial para que sejam assegurados às partes
seus direitos fundamentais, bem como, sejam estabelecidos limites de atuação do empregador a fim de se alcançar os objetivos
aos quais a relação se propõe.
As relações de trabalho, em especial a relação de emprego, têm suas diretrizes e restrições estabelecidas pela Constituição
Federal (BRASIL, 1988) e Consolidação das Leis Trabalhistas –CLT
(BRASIL, 1943), sendo as principais normas legislativas brasileiras
a regulamentar o Direito do Trabalho.
Neste diapasão, a CLT trouxe consigo elementos que tornaram possível distinguir as relações de trabalho existentes, em
especial, a relação de emprego. Um dos elementos primordiais
éa subordinação, estando o empregador investido de poder para
orientar, fiscalizar e punir o empregado quando assim for necessário.
Todavia, o empregado, incumbido de cumprir as suas ativi-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dades, tem assegurados os direitos da personalidade e condições
de trabalho favoráveis, não podendo ser submetido a condições
de trabalho que venham a causar-lhe prejuízos de qualquer natureza, bem como a situações que ofendam a sua moral e dignidade.
Assim, havendo extrapolação do poder diretivo por parte
do empregador, que venha a causar danos de natureza moral ao
empregado, caber-lhe-ás er indenizado, sendo o empregador responsabilizado civilmente pela atitude ensejadora do dano.
2 RELAÇÃO DE TRABALHO
A expressão relação de trabalho, a priori, remete-nos a idéia
de prestação de serviço de maneira ampla, isto é, relação de emprego, trabalho autônomo, trabalho eventual, trabalho avulso, entre outras modalidades. Desta forma, trabalho diz respeito a toda
atividade exercida pelo homem com uma finalidade.
A relação de emprego, portanto, é espécie do gênero relação de trabalho. A despeito de tratar-se de espécie do gênero, sua
relevância no âmbito econômico-social transformou-a na principal modalidade de relação de trabalho, tendo em vista sua compatibilidade com o mercado laboral, razão pela qual se estabeleceu
como prática jurídica a utilização do termo relação de trabalho
(gênero) para designar relação de emprego (espécie). Sendo assim, ao tratarmos das condutas abusivas do empregador nas relações de trabalho, trataremos apenas das relações empregatícias.
A priori, faz-se mister elencar os elementos –também denominados pressupostos –que caracterizam a relação de trabalho.
Os requisitos encontram-se dispostos no caput dos artigos 2º e 3º
da Consolidação das Leis do Trabalho, afirmando que:
Art. 2ºConsidera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço.
Capa
Sumário
315
Art. 3ºConsidera-se empregado toda pessoa física
que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.(BRASIL, 1943)98.
Assim, para que estejamos diante de um contrato empregatício, é necessário que o trabalho seja executado por pessoa física,
isto é, não pode figurar como empregado pessoa jurídica. Ademais,
em decorrência deste primeiro requisito, surge o segundo pressuposto, qual seja o da pessoalidade: o serviço deve ser realizado
pelo mesmo trabalhador; em outras palavras, intuitu personae, o
que impossibilita a alternância de obreiros na execução dos serviços. Outro elemento é a não-eventualidade, de modo que, para
que haja a relação de trabalho, é necessário que o trabalhador a
exerça com habitualidade, o que nos remete à idéia de permanência (mesmo que por curto período). A atribuição de remuneração
pelos serviços prestados também compõe a estrutura empregatícia do contrato, sendo imprescindível que haja por parte do empregador uma contraprestação equivalente ao trabalho realizado
pelo obreiro. Por fim, a subordinação, para o posicionamento dos
doutrinadores Mauricio Godinho Delgado e Renato Saraiva, é compreendida como uma subordinação jurídica, não estando atrelada
a uma sujeição intelectual ou financeira, mas à condição de sujeição do empregado ao poder diretivo do empregador no que tange
à realização de serviços, isto é, trata-se de uma subordinação objetiva, que atinge a maneira de executar o serviço e não a figura do
trabalhador (status subjectiones).
2.1 EMPREGADOR
A CLT, em seu artigo 2º, conceitua o empregador como sendo “a empresa, individual ou coletiva que, assumindo os riscos
da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação de
98
Documento eletrônico, sem paginação.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
serviços”(BRASIL, 1943). O parágrafo único, por sua vez, traz figuras adicionais que se equiparam à concepção de empregador, tais
quais: os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as
associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos.
Este conceito, porém, sofreu diversas críticas em razão da
utilização do termo empresa, sem que se pensasse no empregador
de maneira ampla, bem como em razão da concepção de empregador por equiparação. Atualmente tem-se entendido o empregador enquanto pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado que
possua empregados a seu serviço, ou seja, não há previsão legal
que estabeleça a observância de quaisquer requisitos especiais
tais como se verá adiante ao tratarmos da figura do empregado.
Desta forma, basta que haja empregados à sua disposição
para que se torne um empregador. Entretanto, ao encontrar-se
nesta posição dentro da relação de trabalho, lhe serão outorgados
certos poderes e prerrogativas que visam à manutenção da relação, a fim de que se alcancem os objetivos que deram ensejo à relação empregatícia.
A relação de trabalho, portanto, deve ser compreendida
como um contrato bilateral e sinalagmático, no qual as partes estabelecem para si direitos e obrigações recíprocos e antagônicos, a
exemplo do serviço em troca de remuneração. Éo que preceitua o
caput do artigo 442 da CLT. Vejamos: “Art. 442. Contrato individual
do trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”(BRASIL, 1943).
Logo, em decorrência da relação de trabalho, surge o poder
hierárquico ou poder empregatício, consolidando uma posição de
direção e administração por parte do empregador, quanto ao serviço prestado pelo obreiro. Trata-se de prerrogativas atribuídas ao
empregador, a fim de atingir o propósito que motivou o surgimento do contrato, através de ações de direção, fiscalização, regulamentação e disciplina.
Nesse diapasão, há de se destacar o entendimento de Del-
Capa
Sumário
317
gado (2013, p. 664) que define o poder empregatício como “o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação,
fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e
correspondente prestação de serviços”.
Uma das modalidades do poder hierárquico do empregador - a qual iremos nos ater - éo poder diretivo, que se entende
como o poder conferido ao empregador de gerenciar e direcionar
o exercício laboral e a dinâmica interna. Através do poder diretivo,
o empregador estabelece padrões de comportamento e diretrizes
organizacionais que visam tornar a prestação de serviço mais satisfatória tanto para o empregador, como para o empregado, ao
facilitar sua compreensão quanto às expectativas do empregador
em face de suas atribuições.
Desta maneira, o poder diretivo está intimamente ligado à
produtividade da empresa e a sua gestão, levando-se em conta a
função social do contrato de trabalho, pretendendo, assim, dispor
adequadamente da energia laboral existente no ambiente de trabalho onde os seus empregados encontram-se inseridos.
2.2 EMPREGADO
Entende-se o empregado enquanto pessoa física que exerce
uma atividade de maneira habitual, estando subordinado e recebendo uma contraprestação monetária em troca. Nesta esteira, Cairo Júnior conceitua o empregador como “o contratante que assume
uma obrigação principal de fazer, mais precisamente de prestar serviços, qualificados pela pessoalidade, não-eventualidade, por conta
alheia e mediante remuneração”(CAIRO JÚNIOR, 2013,p. 282).
A caracterização do empregado na relação de trabalho dar-se-á através da observância dos elementos supracitados, quais
sejam: realizado por pessoa física, pessoalidade, onerosidade,
não-eventualidade, subordinação.
O requisito da subordinação, por sua vez, merece desta-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
que. Inicialmente, é importante compreender que a subordinação equivale à mesma concepção de poder diretivo do empregador, porém sob o enfoque do empregado. Portanto, quando
se fala em subordinação, entende-se como sendo a atuação do
empregador –através do poder a ele conferido –de direcionar e
ordenar o empregado a realizar certas atividades.
A subordinação, segundo Cassar (2011, p. 267), “nada
mais é que o dever de obediência ou o estado de dependência na conduta profissional, a sujeição às regras, orientações e
normas estabelecidas pelo empregador inerentes ao contrato,
à função, desde que legais e não abusivas”.
Na concepção trabalhista do que vem a ser subordinação, configura-se mais adequado utilizar a conceituação de
subordinação jurídica. No tocante a esta concepção, Delgado
(2013, p. 294) afirma que
a subordinação jurídica é o pólo reflexo e combinado do poder de direção empresarial, também
de matriz jurídica. Ambos resultam da natureza da
relação de emprego, da qualidade que lhe éínsita
e distintiva perante as demais formas de utilização
do trabalho humano que já foram hegemônicas em
períodos anteriores da história da humanidade: a
escravidão e a servidão.
Portanto, ao se falar no fenômeno da subordinação, compreender-se-á sob a perspectiva jurídica, desvencilhando-se da
idéia de subordinação enquanto dependência (econômica, técnica, etc.) anteriormente defendida por doutrinadores.
2.3 O DESEQUILÍBRIO NA RELAÇÃO DE TRABALHO E O
ABUSO DE PODER POR PARTE DO EMPREGADOR
Ao tratarmos da relação de trabalho, é inegável a disparidade entre os pólos que compõem a relação. Diferentemente do
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Sumário
319
Direito Comum, em que se observa uma igualdade entre as partes na situação fática, no Direito do Trabalho, deparamo-nos com
uma flagrante desproporção entre as partes contratantes, o que
leva à constituição de princípios básicos que orientem a aplicação
do direito trabalhista de maneira a proteger o trabalhador que se
encontra em posição de desequilíbrio em relação ao empregador.
Surgem, assim, princípios norteadores do Direito do Trabalho, dentre os quais merece destaque o princípio da proteção.
Delgado (2013, p. 190) pontifica:
Princípio da Proteção –Informa este princípio que o
Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com
suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente
na relação empregatícia –o obreiro -, visando retificar (ou atenuar) no plano jurídico, o desequilíbrio
inerente ao plano fático do contrato de trabalho.
Deste modo, o Direito do Trabalho busca tratar equitativamente as partes, ou seja, tratar de maneira desigual os desiguais.
O empregado, portanto, figura como hipossuficiente, estando –
desde o início da relação –em situação de vulnerabilidade por diversas razões, a exemplo da dificuldade financeira, que o leva a
manter-se no emprego e, desta forma, a sujeitar-se a condições
deveras desfavoráveis.
É neste contexto que se insere a atuação do Estado, estabelecendo diretrizes mínimas que visam garantir ao trabalhador
uma condição mais equânime na relação contratual em que está
enquadrado. Atualmente, tem sido debatida a supremacia deste
princípio e sua flexibilização em face da dificuldade econômica enfrentada pelo país; no entanto, é válido atentar para a necessidade
de se resguardar um equilíbrio nas relações de trabalho, a fim de
garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Observa-se que o empregador possui prerrogativas a serem
utilizadas na organização e direcionamento da empresa. Neste
contexto, o empregador tem o direito de fiscalizar, direcionar, disciplinar e gerenciar as atividades realizadas por seus empregados,
em decorrência dos poderes atribuídos à sua figura, posto que assume o risco da atividade e tem sob sua autonomia o poder de
contratação.
Ocorre que, a despeito de lhe serem garantido tais direitos
e poderes, o empregador possui deveres advindos do contrato de
trabalho e da condição pessoal de seus obreiros, os quais devem
ser considerados no decorrer da relação estabelecida entre as partes. Posto isto, nas palavras de Cairo Júnior. (2013), o empregador
deve observar também as normas jurídicas que protegem a dignidade e intimidade de qualquer ser humano.
O art. 1º, inciso III da Carta Magna, consolida a dignidade
da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, de modo que, apesar da concepção hipossuficiente
do empregado na relação de trabalho, o contrato firmado entre
as partes deve prezar pela garantia deste princípio constitucional.
Em consonância com o princípio trazido, a Constituição Federal
estabelece direitos e garantias fundamentais –como os direitos
da vida privada e da intimidade –garantindo sua inviolabilidade
(BRASIL, 1988).
O empregador passa a ter seu poder diretivo limitado em
prol da garantia dos direitos da personalidade do trabalhador,
sendo-lhe defeso atuar de maneira excessivamente rigorosa ou
que venha a agredir a integridade física ou moral; caso contrário,
estará praticando uma conduta abusiva que poderá motivar a extinção do vínculo empregatício, bem como suportar eventual indenização por danos materiais e morais.
Assim sendo, compreende-se como conduta abusiva a utilização indevida ou exacerbada dos poderes concedidos ao empregador dentro de suas atribuições, de maneira a ferir os direitos
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Sumário
321
fundamentais do trabalhador.
Busca-se, portanto, um equilíbrio entre o interesse do empregador em auferir lucros através da mão-de-obra do trabalhador e o interesse do obreiro em realizar seus serviços em troca de
uma contraprestação monetária, respeitando sempre a saúde e o
bem-estar daqueles que compõem a relação.
3 DANO MORAL
A consciência social sobre a importância dos direitos individuais trouxe consigo a necessidade de protegê-los, bem como nos
casos em que houvesse a ofensa a tais direitos que fosse possível
repará-los. Essa preocupação acompanhou o desenvolver das sociedades que remetem a períodos históricos anteriores àCristo.
O desenvolvimento das sociedades resultou no aumento
dos conflitos entre os indivíduos, surgindo a necessidade de responsabilização daquele que cometesse ato prejudicial a outrem,
buscando-se resguardar as partes e restabelecer o equilíbrio comprometido pelo ato danoso.
A despeito da inquestionável compreensão da existência
do dano moral e do direito à indenização, ainda pairam controvérsias quanto à sua conceituação.
Por muito tempo a caracterização do dano extrapatrimonal
era concluída pela doutrina sob a forma negativa, na sua contraposição ao dano patrimonial, conforme descrição de Cupis (1970,
p. 51, apud CAHALI, 2011, p. 21) “danno non patrimoniale, conformemente alla sua negativa espressione letterale, è ogni danno privato che non rientra nel danno patrimoniale, avendo per oggetto
un interesse non patrimoniale, vale dire relativo a bene non patrimoniale”.
Ainda na concepção negativista do dano moral, Miranda
(1959) afirma que dano patrimonial é aquele que atinge o patrimônio do ofendido; o dano não patrimonial atinge o ofendido como
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ser humano, não atingindo seu patrimônio. Gomes (2008, p. 364)
sob o mesmo enfoque narra que “a expressão dano moral deve ser
reservada exclusivamente para designar agravo que não produz
efeito patrimonial.”
Contudo, resta superado o conceito “excludente”do dano
extrapatrimonial. Atualmente a doutrina tem se posicionado sob
duas vertentes, parte da doutrina entende o dano moral enquanto
dor ou sofrimento suportado pela vítima, enquanto outra parte o
percebe enquanto violação à bem jurídico.
Cahali (2011, p. 20) entende que:
Tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais
inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela
sociedade em que está integrado, qualifica-se em
linha de princípio, como dano moral; não há como
enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na
dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio,
na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da
privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão
ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral.
Nesta mesma concepção, Bittar (1994, p. 31) preconiza que
os danos morais “se traduzem em turbações de ânimo, em reações
desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras, ou outras
desse nível, produzidas na esfera do lesado.
Para os doutrinadores que defendem esta corrente, o dano
moral sempre estará atrelado à percepção interna, espiritual do
lesado, não podendo se falar em dano moral sem que o mesmo
esteja relacionado à dor ou padecimento.
A acepção unitária de dano moral e sofrimento - duramente
confrontada por doutrinadores contemporâneos - pode levar ao
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Sumário
323
que alguns doutrinadores consideram um equívoco conceitual,
uma vez que a dor pode ser experimentada em todo tipo de dano,
inclusive patrimonial, o que nos remete à corrente que estabelece o dano enquanto ofensa à direito ou bem jurídico. Neste caso,
a turbação do estado psicológico do ofendido é conseqüência do
dano já sofrido, isto é, ocorrido em momento anterior.
Brebbia (1950, p. 67) dispõe que
De todas as classificações que se formulam a respeito dos danos reconhecidos pelo Direito, é, sem deixar lugar à menor dúvida, a mais importante, a distinção que se efetua tendo em conta à natureza do
direito violado, ou, o que é a mesma coisa, do bem
jurídico menoscabado.
O dano moral, neste prisma, é qualificado pela ofensa a certa categoria de interesses ou direitos, que trazem enquanto reflexo o sofrimento outrora consubstanciado no próprio dano moral.
Categoria compreendida pelos Direitos da Personalidade, assim,
o dano moral passa a ser visto enquanto decorrência da violação
dos direitos personalíssimos.
Melo (2012, p. 21), por sua vez, estabelece o dano moral
trabalhista enquanto: “o agravo ou o constrangimento moral infligindo quer o empregado, quer o empregador, mediante violação
a direitos ínsitos à personalidade, como conseqüência da relação
de emprego”.
O Professor Cavalieri Filho, de modo notável, estabelece
que: “o dano moral é lesão de bem integrante da personalidade,
tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à
vítima”(CAVALIERI FILHO, 1998; p. 74).
Em razão de tratar-se de prejuízo interno muito se discute
quanto à sua comprovação; entretanto, como veremos adiante,
esta problemática vem sendo pacificada pela doutrina, bem como
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
pela jurisprudência dos tribunais, necessitando que a parte lesada
preencha quatro elementos fundamentais para ensejar a responsabilidade civil.
Para compreender-se o dano moral é preciso primeiramente entender o instituto jurídico da responsabilidade civil. A ideia
de responsabilidade civil está ligada à necessidade de reparação
de um ato ou omissão praticado por alguém que venha a ocasionar um dano, seja este material, estético ou moral.
Segundo o entendimento de Diniz, a responsabilidade civil
conceitua-se enquanto a “aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros
em razão de ato próprio imputado, de pessoas por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de
simples imposição legal”(DINIZ, 2006, p. 40).
De maneira mais objetiva, Norris (1996, p. 27) estabelece
que “o traço mais característico da responsabilidade civil talvez
seja o fato de se constituir especialmente em um instrumento de
compensação”.
O instituto da responsabilidade civil é consagrado pelo código civil de 2002 em seu artigo 186, ao prever que:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito. (BRASIL, 2002)99.
Tal dispositivo encontra-se em consonância com o previsto
na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso V, que assegura o direito a indenização por dano material, moral ou à imagem.
A análise aprofundada desses elementos é de extrema importância para a correta apreciação da responsabilidade e da sua
posterior reparação, a fim de recompor a lesão financeira ou moral
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Sumário
325
infligida à vítima.
Para que se caracterize a responsabilidade civil, e conseqüentemente o dever de indenizar o prejuízo causado pelo agente,
devem ser verificados alguns requisitos essenciais que são: a) ação
ou omissão do agente, b) culpa do agente, c) relação de causalidade, d) dano experimentado pela vítima.
A ação e omissão do agente poderão decorrer de três maneiras distintas.
1. Por ato próprio, que é aquele que o agente por ação
pessoal prejudica terceiro, ao infringir um dever legal
ou social;
2. Por ato de terceiro, que ocorre quando o dano é causado a outrem por ato de terceiro que esteja sob a responsabilidade do agente, criando, por exemplo, uma
responsabilidade solidaria entre o empregador e empregado que diretamente causou o dano;
3. Por fim, quando os danos são causados por coisas que
estejam sob a guarda do agente, ou seja, deverá reparar
o dano causado por coisa ou animal que estava sob sua
guarda e causar prejuízo.
A conduta abarca o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) realizado pela própria pessoa, por terceiro de
quem detém guarda ou por coisas ou animais que lhe pertençam.
O legislador, ao utilizar o termo “ação ou omissão voluntária”, acrescenta ao conceito de responsabilidade a figura jurídica do
dolo, que segundo Gonçalves (2012, p. 53) “éa violação deliberada,
consciente, intencional, do dever jurídico”. Mais a diante o Código
Civil acrescenta a ideia de culpa (“negligência ou imprudência”)
que se compreende enquanto a falta de diligência do agente.
No ordenamento brasileiro, em regra, a responsabilidade
civil se dá pela comprovação do dolo ou culpa do agente por parte
da vítima. Trata-se da responsabilidade civil subjetiva. Ocorre que,
em certos casos torna-se muito difícil comprovar o ato ou imissão,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
em razão da desigualdade entre agente e vítima; nestes casos, o
elemento da culpa ou dolo se demonstra inexigível, isto é, basta
que haja ato ou omissão e dano estando estes ligados por um nexo
de causalidade, éo que a doutrina denomina responsabilidade civil objetiva.
Entende-se por dano todo prejuízo de cunho financeiro ou
moral que a vítima sofra em razão da violação de direito realizada
pelo agente. Sendo imprescindível para que haja a necessidade de
indenizar, isto é, nas palavras de Gonçalves (2012, p. 55) “a obrigação de indenizar decorre, pois, da existência da violação de direito
e do dano, concomitantemente”.
E o último e primordial elemento na verificação de responsabilidade civil é o nexo causal. Para que se possa imputar a alguém o dever de indenizar, é necessário que se constate a existência de uma conexão entre a ação ou omissão do agente e o dano
observado à vítima, sem este elemento os eventos tornam-se independentes e insusceptíveis de responsabilização.
O caráter repressivo da indenização deve ser levado em conta pelo juiz, atribuídas a ele as prerrogativas para a devida análise,
podendo recorrer apenas a título de critério secundário ou subsidiário, e nunca como dado principal ou determinante do cálculo de
arbitramento, sob pena de se desvirtuar a responsabilidade civil e
de aplicá-la com cunho repressivo exorbitante e incompatível com
sua natureza privada e reparativa de quem sofreu a lesão, devendo
se levar em consideração a situação financeira de ambas as partes.
O caráter compensatório seria destinado ao agredido, por
meio de uma quantia suficiente a lhe proporcionar alegrias, felicidade, para compensar de alguma forma a dor, que sofreu diante
da conduta ilícita. E por derradeiro o caráter exemplar que destinasse a toda sociedade, para que esta tenha consciência de que os
atos ilícitos, geradores de danos morais, são reprimidos pelo Judiciário, o que levaria a sociedade ter um maior respeito aos direitos
personalíssimos do indivíduo.
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Sumário
327
3.1 DANO MORAL NA ESFERA TRABALHISTA
Com a promulgação da Emenda Constitucional nº45 de 2004
tornou-se possível a discussão abrangente a cerca do dano moral
no Direito do Trabalhista. A Constituição Federal passou a prever a
competência ampliada da Justiça do Trabalho para julgar as ações
de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho, conforme estabelece o art. 114, em seu inciso VI:
Art. 114. Compete àJustiça do Trabalho processar e
julgar:
[...] VI- as ações de indenização por dano moral ou
patrimonial, decorrentes da relação de trabalho
(BRASIL, 2004)100.
O legislador constitucional atribuiu ao exame da Justiça do
Trabalho todas as ações envolvendo relações pessoais de trabalho, ampliando o que outrora se limitava apenas aos casos previstos em lei, como era o caso das relações de trabalho temporário regidas pela Lei 6.019/74. Assim, a Justiça do Trabalho passou
a julgar e processar as relações de trabalho que forem prestadas
pessoalmente e de maneira não empresarial e de cunho contratual, não abrangendo as relações estatutárias.
Conforme elucida Belmonte (2007a, p. 110):
ocorrendo o dano moral decorrência direta do desenvolvimento do contrato de trabalho, o conflito e
o enfoque desse conflito eram trabalhistas e, igualmente, a responsabilização decorrente e não poderia existir jurisdição diferente que, com justiça e
conhecimento especializado da dinâmica e características da relação de trabalho, sujeitos envolvidos e
condições da prestação de serviços, pudesse melhor
decidir sobre a eventual ocorrência de dano moral e
a justa reparação.
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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
O contrato de trabalho vincula dois sujeitos que, em princípio, são desiguais. Há entre o empregador e o empregado uma
relação de poder. Este se subordina àquele, o que não encontra
similar nas demais espécies de contratos, em que a regra é a igualdade entre os contratantes.
O empregador detém os meios de produção, contrata os
trabalhadores, dirige a prestação pessoal de serviços, está investido dos poderes diretivo, disciplinar e fiscalizatório, e supervisiona
e emite ordens ao trabalhador com a finalidade de atingir os objetivos da atividade econômica. Tem o direito potestativo de rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, desde que não aja
com abusividade. A conseqüência é o pagamento da indenização
estipulada em lei.
A superioridade do empregador, via de regra, dá-se nos
campos jurídico, econômico-financeiro, social e cultural.
Para as finalidades almejadas neste estudo, trataremos
unicamente das relações de emprego, não adentrando nas demais
relações passíveis de julgamento pela Justiça Especializada.
Passemos à compreensão do que constitui a responsabilidade trabalhista. De acordo com o juiz Alexandre Agra Belmonte, do
Tribunal Regional do Trabalho da 1ªRegião: “é o dever de reparar o
dano moral ou patrimonial causado a um dos sujeitos da relação
de trabalho, em decorrência do vínculo”(BELMONTE, 2007b, p. 159).
O direto do trabalho trata de estabelecer a igualdade material
e não a meramente formal, em tentativa incansável de eliminar as diferenças existentes entre um sujeito e outro no contrato de emprego.
A proteção à pessoa do hipossuficiente é o ponto principal
de onde decorrem muitos outros. Desta maneira, se pretende estabelecer um sistema de compensação, atingindo-se o real alcance do
principio da isonomia, alçado a condição de garantia constitucional, em virtude da maior proteção jurídica atribuída ao empregado.
Em sua notável obra respeitante aos princípios do direito
do trabalho Rodriguez (1996), ensina que o principio da proteção
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Sumário
329
se traduz em critério fundamental que orienta o direito do trabalho, pois, este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a
uma das partes: o trabalhador.
A responsabilização no âmbito trabalhista e conseqüente
reparação do dano moral são importantíssimas para o campo do
Direito do Trabalho, conformo visto anteriormente as relações de
trabalho são fundadas em uma desigualdade originária. Sendo
a responsabilização por dano extrapatrimonial, por sua vez, um
avanço significativo na proteção dos direitos da personalidade
dos trabalhadores, devendo ser respeitados pelo empregador sob
pena de ser-lhe imputada a obrigação de indenizar o empregado
pelo prejuízo causado.
Ressalta-se que a responsabilização decorrente da violação de direitos personalíssimos se aplica à ambas as partes constituintes da relação de trabalho. Todavia, trataremos apenas da
responsabilização em virtude de condutas abusivas perpetradas
pelo empregador.
Nas palavras de Martins (2008, p. 63-64),
o dano moral praticado pelo empregador ao empregado ocorre quando aquele no seu papel de controlar, disciplinar e fiscalizar comete excessos atingindo assim a honra e desrespeitando a dignidade do
empregado. Nas relações de trabalho é necessário
ter-se um respeito mútuo.
A Consolidação das Leis Trabalhistas não dispõe de maneira específica quanto à possibilidade de indenização em razão de
atos lesivos à moral. Entretanto, utilizando-se do princípio da subsidiariedade preconizado no parágrafo único do art. 8º da CLT, bem
como no art. 796 da mesma lei, aplicar-se-á a legislação comum
nos casos em que se demonstrar compatibilidade principiológica.
Logo, aproveitar-se-á o disposto no art. 12 do Código Civil de 2002
que prevê a possibilidade de se pleitear indenização por perdas e
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
danos.
As abusividades por parte do empregador se evidenciam
de diversas formas: através de atos discriminatórios por motivo de
cor, estado civil, sexo, gravidez, etc. Iremos mais adiante tratar de
casos específicos em que se evidenciam ou ao menos de discute a
possibilidade de ensejar danos morais ao empregado.
Por hora, cumpre entender que os danos morais na esfera trabalhista podem decorrer de ofensas de natureza individual,
quais sejam: ofensas às qualidades da personalidade (honra imagem, etc.); ofensas à condição física do trabalhador (vida, saúde,
etc.) e lesões aos atributos espirituais da personalidade, isto é, à
integridade psicológica (intimidade, igualdade, etc.).
As normas legais e constitucionais que asseguram aos cidadãos o direito de obter do lesante reparação pecuniária pelo dano
moral sofrido, têm incidência em todos os campos do direito, incluindo, com maior ênfase o direito do trabalho.
Assim sendo, verificam-se avanços significativos neste ramo
especializado do Poder Judiciário, tendo mais autonomia para regular as relações entre empregado e empregador e possibilitando
a proteção aos direitos individuais das partes que a compõem.
4 DAS CONDUTAS ABUSIVAS DO EMPREGADOR
E O DANO MORAL
O dano moral se consubstancia na atuação exacerbada do
poder diretivo do empregador (lato senso), acarretando na violação de direito inerente à pessoa do empregado, quais sejam, direito à vida, à liberdade, à honra, à saúde, à integridade física e
psicológica, entre outros, o que por sua vez poderá desencadear
sentimentos de tristeza, dor e sofrimento.
Trata-se da proteção integral aos direitos do homem e de
sua dignidade, compreendendo todos os direitos necessários para
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Sumário
331
o desenvolvimento integral da pessoa humana, em suas diversas
esferas. Ao se estabelecer condutas denominadas abusivas, busca-se resguardar e ratificar o valor da pessoa humana e o reconhecimento dos seus direitos fundamentais.
Desta maneira, todos os atos realizados pelo empregador
no exercício regular do seu direito fiscalizatório e diretivo serão
considerados lícitos e, conseqüentemente insuscetíveis de responsabilização. Contudo, caso o empregador ultrapasse os limites
conferidos em razão de seu poder diretivo, acarretará em responsabilização por danos ao empregado (materiais, morais ou estéticos), em decorrência do exercício abusivo do direito, incorrendo
na prática de ato ilícito.
Éo que preleciona o Código Civil de 2002 em seus artigos
187 e 927, a seguir elencados: “Art. 187. Também comete ato ilícito
o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente
os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”e “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”(BRASIL, 2002).
De tal modo, compreende-se enquanto conduta ilícita,
todo gesto, comportamento, palavra, requerimento, atitude, desvirtuada da natureza diretiva das condutas do empregador, que
impliquem em lesão à dignidade do trabalhador.
De maneira assertiva, parte da doutrina entende que a
comprovação do dano se dá unicamente pela análise substancial
do ato e seu reflexo nos direitos personalíssimos do trabalhador,
ou seja, não se faz necessária a comprovação de dor, sofrimento,
angústia. Como dito anteriormente, os sentimentos são consequências do efetivo dano moral, razão pela qual sua constituição
deve ser feita por meio da compreensão da conduta em si, sem
adentrar na esfera sentimental de cada trabalhador.
Isto posto, faz-se pertinente analisar de maneira aprofundada certas condutas frequentemente questionadas, tanto pela
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
doutrina quanto pela jurisprudência, quanto à sua licitude.
Após a exposição das diversas nuanças teóricas do dano
moral trabalhista, necessário se faz apresentarem-se exemplos
práticos e atuais. Objetiva-se ilustrar a exposição sobre o assunto,
tornando-a mais concreta e demonstrando com alguns exemplos
como é rica a possibilidade de ocorrer tais eventos danosos.
4.1 REVISTA PESSOAL
A revista pessoal é meio através do qual o empregador fiscaliza seus subordinados a fim de resguardar o seu patrimônio.
Ocorre que, se realizada descomedidamente caracterizará abuso
de direito ou ato ilícito.
Existem diversos meios de se realizar a revista pessoal, podendo ser exigido que o trabalhador retire suas roupas ficando
completamente nu, que levante partes de roupas, que seja apalpado, que tenha seus pertences vistoriados podendo retirar objetos
de dentro de bolsas e sacolas do empregado, bem como lhe seja
solicitado que abra a bolsa para vistoria sem que haja contato físico com o empregador ou seus pertences.
Observa-se assim que ao falar de revista pessoal, abarcam-se diversos meios, envolvendo contato físico direto ou apenas
contato visual.
O cerne da questão está em ponderar dois direitos constitucionais previstos no art. 5º da Carta Magna. O inciso XXII estabelece a defesa e proteção do direito de propriedade, enquanto
o inciso X do mesmo artigo prevê a defesa dos direitos à intimidade, privacidade sendo sua violação passível de responsabilização.
Surge, portanto a necessidade de se valorar tais direitos e estabelecer qual deve prevalecer e quais as situações em que é possível
constatar abuso.
O empregador possui enquanto prerrogativa inerente a sua
natureza, o poder fiscalizatório. Podendo assim, utilizar-se de me-
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Sumário
333
canismos de controle que visem salvaguardar o seu patrimônio,
a exemplo de seguranças, controle interno de filmagem, detector
de metal, revistas. Entretanto, este controle não deve sobrepor-se
aos direitos inerentes à natureza do homem, neste caso, do empregado.
Na concepção do corregedor-geral da Justiça do Trabalho,
ministro Antonio Levenhagen (BRASIL, 2011) “a revista deve ser
realizada com moderação, por que se assim o for não caracteriza
abuso de direito ou ato ilícito, constituindo, na realidade exercício
regular do direito do empregador ao seu poder diretivo de fiscalização”. Citando como exemplo a revista em bolsas, sacolas ou
mochilas que não revelam excesso por parte do empregador e em
regra não ensejam reparação.
Entretanto, esta posição não é unânime. O Tribunal Regional do Trabalho da 13ªRegião vem se posicionando no sentido de
que o exame dos pertences e das roupas dos empregados constitui
ato ilícito, ensejando responsabilização civil visto que o empregador age com abuso de poder.
Este também tem sido o posicionamento do Ministro Cláudio Brandão (BRASIL, 2013b), que no proc. nºTST-AIRR-529-68.2012.5.15.0159 estabeleceu que “revista pessoal- íntima ou não -, viola a dignidade da pessoa humana e a intimidade
do trabalhador”. A despeito de seu posicionamento pessoal, o
ministro tem se curvado ao entendimento da SBDI-1 do TST, que
entende que a revista pessoal (sem contato físico), não afronta a
intimidade, a dignidade e a honra.
Observa-se, portanto, que a compreensão do que vem a ser
revista abusiva não está completamente consolidada. Parte da doutrina e jurisprudência entende que a revista a pertences apenas não
configura ato abusivo, enquanto outra parte entende que se trata
da intimidade do empregado e sendo assim, configura-se abusiva.
A Consolidação das Leis Trabalhistas em seu artigo 373-A,
inciso VI, estabelece que:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam acesso
da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é
vedado: [...] VI- proceder o empregador ou preposto
a revistas íntimas nas empregadas e funcionárias
(BRASIL, 1999)101.
Por analogia, o Poder Judiciário tem aplicado a mesma vedação à revista íntima realizada em funcionários do sexo masculino, respaldado no princípio constitucional da isonomia.
Para Barros (2009), o direito à intimidade do trabalhador,
tendo em vista sua posição de subordinação, sofre limitações, visto
que a própria Constituição assegura o direito à propriedade, fundamento constitucional ao poder diretivo do empregador. Entretanto,
a autora complementa seu posicionamento, afirmando que essa limitação não deve atingir a dignidade da pessoa humana.
Doutrinadores como Barros (2009) entendem ser plausível a
revista pessoal apenas nos casos em que esta se mostrar indispensável, ou seja, quando houver outros meios de fiscalização eficientes (filmagem, segurança, etc.) não será admitida a revista pessoal.
Porém, nos casos em que se demonstrar a necessidade de revistas
pessoais por se tratar de bens susceptíveis de subtração (pedras
preciosas), com valor material ou de extrema relevância para a atividade empresarial, será permitida a revista pessoal de forma moderada a fim de unicamente cumprir o seu papel fiscalizatório.
No entanto, há doutrinadores como Simón (2000), que em
sua obra A proteção constitucional da intimidade e da vida privada
do empregado, traz a concepção de revista pessoal enquanto atentatória à dignidade da pessoa humana, ferindo princípios como o
da igualdade, uma vez que privilegia o empregador em detrimento
do empregado e o princípio da presunção de inocência, pois ao
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realizar a revista o empregador está duvidando da idoneidade do
trabalhador. Entendendo assim, que há meios alternativos para
controlar as atividades dos empregados sem ferir sua dignidade.
A falta de legislação par regulamentar o poder diretivo do
empregador e suas limitações frente aos direitos fundamentais
conferidos ao obreiro acarretam em um embate sem fim da doutrina e jurisprudência.
Mostra-se mais coerente a compreensão da revista pessoal
enquanto ensejadora do dano moral nos casos em que se comprovar a desnecessidade do meio utilizado ou a utilização imoderada
deste. É primordial que ao analisar o caso concreto se observe a
presença de abusividades e desvirtuamento da proteção patrimonial atingindo a esfera íntima do trabalhador, culminando na reparação do dano moral causado.
De modo que, não se deve compreender a proibição da revista pessoal, seja íntima ou visual, como violação do direito a propriedade, visto que o empregador possui outros recursos disponíveis para controlar e fiscalizar a atividade empresarial, sem que se
ponha em risco a integridade moral do obreiro.
4.2 ANTECEDENTES CRIMINAIS
A exigência de certidão de antecedentes criminais tem sido
alvo de calorosos debates quanto a sua licitude. Sendo prática freqüente dos empregadores na fase de seleção de novos empregados,
tornando-se, em certos casos, critério indispensável de admissão.
De acordo com a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso X, considera-se inviolável a intimidade e vida privada do indivíduo, o que limita a atuação do empregador no tocante ao passado do seu empregado, visto que atingiria direitos fundamentais do
empregado, não podendo, portanto se utilizar de tais informações
na admissão ou manutenção do empregado do trabalhador.
Sabe-se que o empregador usufrui de liberdade quanto à ad-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
missão de seus empregados, podendo estabelecer regras e critérios
indispensáveis para seleção. Entretanto, não poderá usar meios vexatórios, abusivos ou discriminatórios, o que violaria os princípios
da igualdade, da intimidade do empregado, bem como o da dignidade da pessoa humana, princípio basilar a ser garantido.
Neste diapasão, entende-se que a exigência de antecedentes criminais constitui ato discriminatório, por conseguinte, abusivo por parte do empregador. Entretanto, faz-se necessário compreender o que vem a caracterizar o ato enquanto discriminatório.
Nas palavras de Nascimento (2011; p. 733):
A discriminação caracteriza-se pela presença de um
elemento subjetivo, a intenção de discriminar, e de
um elemento objetivo, a preferência efetiva por alguém em detrimento de outro sem causa justificada, em especial por motivo evidenciado, revelando
escolha de preconceito em razão do sexo, raça, cor,
língua, religião, opinião, compleição física ou outros
fatores.
Complementa o autor que:
É importante, para distinguir situações, a finalidade do ato praticado pela empresa e não a simples
diferenciação de tratamento, pois na discriminação o que se tem por fim é a preferência destinada
a excluir a oportunidade de trabalho de alguém em
razão de um dos fatores distintivos elencados em
lei. Quanto à não discriminação, a finalidade é dar
atendimento a circunstâncias concretas impeditivas
da entrega da função a uma pessoa que não pode
exercê-la.
Em regra, quaisquer perguntas ou investigações referentes
aos antecedentes criminais do empregado ou pretendente a cargo na empresa demonstram invasão direta à vida privada do empregado, atingindo sua intimidade. Dando ensejo à reparação do
Capa
Sumário
337
dano moral por meio de indenização.
Acontece que, em certos casos, a exigência de antecedentes criminais tem-se mostrado razoável, sendo a idoneidade de
conduta imperativa para a realização da atividade. Éo caso de gerentes de banco, que por tratar-se de atividade que requer plena
confiança do empregador no que tange a condição do empregado e sua capacidade de lidar com o dinheiro da clientela, sendo
assim admitido o critério de antecedentes criminais desde que os
pretendentes ao cargo tenham ciência deste critério, bem como a
possibilidade de desistência do processo seletivo.
Meireles (2005) afirma que, a exigência de antecedentes criminais é razoável nos casos de empregado doméstico, vigilante,
trabalhador em contato direto com criança.
Entretanto, a tendência legislativa e jurisprudencial tem se
direcionado no sentido de suprimir a possibilidade de exigência
de antecedentes criminais, sob o argumento de ferir a presunção
de inocência preconizada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição
Federal de1988.
A Ministra Dora Maria da Costa se pronunciou no sentido
de que
o procedimento patronal consubstanciado na exigência de apresentação de antecedentes criminais
configura conduta discriminatória, por viabilizar
preterição motivada por razões destituídas de legitimidade jurídica, e importa em ofensa a princípios de
ordem constitucional, como a dignidade da pessoa
humana, o valor social do trabalho, a isonomia e a
não discriminação (BRASIL, 2014h).
Ainda nessa trilha, a Portaria do Ministério Público do Trabalho nº41 de 2007, resolve:
Art. 1ºProibir ao empregador que, na contratação ou
na manutenção do emprego do trabalhador, faça a
exigência de quaisquer documentos discriminató-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
rios ou obstativos para a contratação, especialmente certidão negativa de reclamatória trabalhista,
teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez
(BRASIL, 2007).
Além do mais, a legislação brasileira não dispõe sobre a
obrigatoriedade de apresentação de certidão de antecedentes
criminais durante processo seletivo de admissão. Logo, em consonância com o disposto no artigo 5º, inciso II, não poderá ser imposta ao empregado obrigação de fazer senão em virtude de lei.
Ocorre que, em regra, os trabalhadores que não apresentam a documentação solicitada no momento da seleção são desclassificados, o que demonstra uma violação ao preceito constitucional acima tratado. A exigência da certidão se torna, portanto
obstáculo para o acesso dos trabalhadores com informações negativas ferindo o direito ao livre ingresso na relação de trabalho.
A despeito de parte da doutrina considerar a prática abusiva, ainda há grande polêmica acerca da limitação ao poder diretivo imposta ao empregador.
Alguns juízes entendem que o direito de se obter certidão
de antecedentes criminais, nada mais é do que informação de interesse geral, ou seja, informação garantida a todos os cidadãos,
conforme o artigo 5º, inciso XXXIV, da CF/88. Compreendendo que
a certidão de antecedentes criminais é de domínio público e, portanto não se caracterizaria ofensa à privacidade e à intimidade do
trabalhador.
Não parece razoável tal entendimento. A despeito de tratar-se de documento público, sua exigência não deve ser deliberada. Sendo plausível sua requisição em casos específicos em
que se demonstrar justificável, como nos casos de ingresso à cargo público, vigilantes (Lei nº7.102/83)(BRASIL, 1983), transporte
de valores, etc.
Deve-se, portanto atentar para o princípio da proporciona-
Capa
Sumário
339
lidade, bem como o exercício regular do direito do empregador em
selecionar seus funcionários. Ocorre que, de maneira genérica não
se faz necessária a cobrança da certidão de antecedentes criminais para que se ocupem certas funções, e sendo assim, a conduta
do empregador se torna ilegítima.
Ainda há quem defenda que havendo a contratação não se
poderia pleitear indenização por danos morais apesar de ter-lhe
sido exigida a apresentação da certidão de antecedentes criminais, pois não se verificaria prejuízo ao trabalhador.
Trata-se de compreensão equivocada do que vem a ensejar
o dano moral. Configura-se o dano moral quando há violação a direito fundamental do obreiro, não se fazendo pertinente analisar
as situações posteriores ao ato danoso.
Logo, a mera exigência de certidão de antecedentes criminais já caracteriza o dano moral e, por conseguinte a responsabilização do empregador, independentemente de posterior
contratação. Ressalte-se, contudo os casos excepcionais em que
a exigência de certidão de antecedentes criminais será compatível
com os pressupostos necessários para o exercício de determinadas funções.
Observa-se, portanto que a constituição de uma conduta
abusiva, isto é, ilícita, se dá através da valoração dos direitos das
partes- empregado e empregador- no caso concreto. Só sendo
possível determinar a licitude da cobrança quando se observar a
sua plausibilidade.
4. 3 LIMITAÇÃO AO USO DO BANHEIRO
O poder diretivo do empregador lhe dá a possibilidade de
estabelecer regras e procedimentos a serem seguidos pelos seus
empregados a fim de assegurar a boa execução das atividades empresariais. Tais regras dependerão da natureza da atividade exercida, não havendo legislação específica que preveja o que o empre-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
gador pode ou não exigir de seus funcionários.
Em razão da falta de regulamentação quanto aos limites
do poder diretivo do empregador, estabeleceu-se sua limitação
em face dos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal. Sendo assim, toda e qualquer atuação do empregador que demonstrar violação direta ao princípio da dignidade
da pessoa humana e aos demais princípios constitucionais, serão
exemplos claros de condutas abusivas.
Neste contexto, a restrição ao uso do banheiro revela conduta humilhante à qual o empregado é submetido, atingindo diretamente sua dignidade. Trata-se de necessidade fisiológica, não
sendo passível de controle por parte do empregador.
Esta conduta é frequentemente adotada em empresas de
telemarketing, em que se busca alcançar metas exorbitantes, exigindo-se do empregado atuação além de suas condições físicas e
psicológicas, caracterizando lesão à integridade do obreiro.
Não parece correta a afirmação de que a depender da atividade exercida, a empresa necessita de funcionários sempre a
postos, a fim de não prejudicar a operação realizada, sendo imprescindível a organização e, por conseguinte a limitação do uso
do banheiro por meio de controle de minutos.
Destaque-se o brilhante posicionamento da 7ªTurma do c.
TST, que ao julgar um Recurso de Revisa:
Embora se reconheça a possibilidade de serem introduzidas no ambiente de trabalho modernas técnicas de incentivo à produção, mostra-se abusiva a
atitude do empregador em restringir o uso do banheiro por empregados, quando não se identifica,
parte destes últimos, abuso nas ausências ao posto
de trabalho (BRASIL, 2008).
Mostra-se razoável o entendimento de que a limitação imposta ao uso do banheiro acarreta ofensa à dignidade do trabalha-
Capa
Sumário
341
dor. A satisfação de necessidades fisiológicas está ligada a fatores
de natureza pessoal, não podendo ser aferida de modo objetivo,
além do mais, as relações de trabalho devem ser norteadas pela
boa-fé das partes.
A dignidade do trabalhador deve ser garantida, independentemente das metas de produtividade da empresa. Cabendo ao
empregador conscientizar seus funcionários quanto à importância
de suas funções e os objetivos da empresa no tocante à produtividade sem, contudo ofender sua integridade.
A abusividade da restrição por parte do empregador ao uso
ao banheiro tem sido corroborada pela maioria das Turmas do c.
TST notando-se uma evolução jurisprudencial por parte do Colendo Tribunal, no sentido de conferir aos trabalhadores condições
dignas de trabalho, através da proteção às garantias constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana.
Todavia, ainda se observa posicionamentos divergentes de
tribunais do trabalho, que compreendem a limitação ao uso do
banheiro enquanto liberalidade do empregador, não constituindo prejuízo de cunho moral ao trabalhador, visto que não lhe fora
negada a ida ao banheiro, mas apenas limitada a fim de manter a
ordem e a produtividade da empresa, se mostrando justificável.
Seriam os casos de empresas de telecomunicação que estabelecem intervalos pré-fixados para utilização do banheiro, bem
como a quantidade máxima de vezes por jornada de trabalho,
além de em muitos casos exigir que o funcionário comunique ao
superior a necessidade de utilização do banheiro para que o mesmo pudesse estabelecer o momento de ida ao banheiro para que
não prejudicasse o funcionamento da empresa.
Não parece correto tal posicionamento, uma vez que o interesse econômico da atividade empresarial não pode sobrepor-se à dignidade humana. Portanto, deve o empregador atuar de
maneira a - respeitados os direitos do trabalhador –estimular a
produtividade dentro da esfera empresarial através de técnicas e
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
incentivos que tornem a relação de trabalho satisfatória para as
partes que a compõem sem que excedam seus direitos.
Logo, a dignidade do trabalhador deve ser resguardada em
detrimento de interesses econômicos privados. Sendo a boa-fé
fundamento da relação de emprego, razão pela qual a limitação
ao uso do banheiro não constitui conduta admissível. Antes, a valoração dos direitos fundamentais é de extrema importância para
a manutenção e segurança das relações trabalhistas.
6 CONCLUSÃO
As relações de trabalho fazem parte da vida cotidiana de
todos os cidadãos e épor esta razão que sua proteção e manutenção são de grande importância para a consolidação dos direitos e
garantias fundamentais constitucionalmente previstos.
A compreensão aprofundada do que vem a constituir o
dano moral e sua repercussão na relação contratual, faz com que
o Direito do Trabalho cumpra cada vez mais o seu papel, qual seja,
tutelar e resguardar as partes que compõem a relação trabalhista.
A concepção do dano moral tem sido positivamente transformada e a proteção à dignidade do trabalhador tem adquirido
uma posição de destaque, na qual o princípio da proteção ao trabalhador passa a efetivamente nortear as condutas das partes,
não podendo mais se analisar a relação de trabalho apenas sob o
enfoque econômico, assim como, o dano moral deixa de ser apenas resultado de um estado emocional (tristeza, angustia, humilhação) e passa a figurar enquanto decorrência de violação direta
à dignidade do trabalhador.
Observa-se uma evolução doutrinária e jurisprudencial no
tocante à compreensão do que caracteriza o exercício abusivo do
poder diretivo do empregador, e, por conseguinte ato ilícito ensejador de compensação. Entretanto, ainda existem controvérsias
com relação à limitação do poder diretivo do empregador em ra-
Capa
Sumário
343
zão de violação a direito fundamental, sua implicação na gestão
interna da empresa e possível efeito econômico.
Contudo, parece-nos evidente que com o advento da Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias fundamentais levando-se em consideração o princípio da proporcionalidade e
ponderação- devem ser valorados acima de qualquer interesse
econômico-social.
As condutas trazidas a análise, quais sejam: revista pessoal
(íntima ou não), restrição ao uso do banheiro e exigência de antecedentes criminais, são exemplos claros do exercício abusivo
de direitos por parte do empregador, que sob a prerrogativa dos
poderes a ele atribuídos fere direitos inerentes ao trabalhador.
Evidencia-se que, observado o caso concreto e considerando os
princípios da proporcionalidade e ponderação, uma vez constatada conduta injustificável ou excessiva por parte do empregador,
caberá ao mesmo compensar o dano causado ao trabalhador.
É sob este enfoque, que de maneira satisfatória percebe-se
uma preocupação maior em se estabelecer medidas e restrições
que tornem o ambiente de trabalho saudável para as partes desempenharem seus papéis e, sobretudo consagra a dignidade da
pessoa humana enquanto fundamento de valor supremo.
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ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL: OS LIMITES
DO PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR E AS
CONSEQUÊNCIAS PARA O TRABALHADOR
Antônio Davi de LIMA NETO 102
Ana Paula Correia de Albuquerque da COSTA103
RESUMO: Com a globalização e o aumento da concorrência em diversas áreas econômicas, o número de relações de trabalho acompanharam este avanço. No entanto, com esta evolução surgiram
novas práticas dentro do ambiente de trabalho na qual as empresas buscam extrair o máximo do desempenho dos trabalhadores
em virtude do poder diretivo do empregador. Assim, o presente
trabalho monográfico, intitulado de “Assédio Moral Organizacional:os Limites do Poder Diretivo do Empregador e as Consequências para o Trabalhador”, tem por objetivo estudar estas novas
práticas que colocam os trabalhadores em situações complicadas,
na qual devem atingir metas inalcançáveis, seguir fielmente a cultura da empresa e aqueles que não conseguem são humilhados na
frente dos outros colaboradores. Este modelo de gestão busca ainda retirar dos quadros da organização aqueles que não se adaptem a esta forma de gestão, no entanto, retirando da empresa a
obrigação de arcar com os custos de uma rescisão trabalhista sem
justa causa. Para tanto, serão analisados os conceitos relativos
102
Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraiba, autor do trabalho
monográfico sob orientação da professora mestra Ana Paula Albuquerque.
103
Professora do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento no PPGCJ/UFPB.
Orientadora da monografia.
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ao assédio moral e ao assédio moral organizacional, considerando os elementos caracterizadores desta conduta. Nesse sentido,
foi estudado até que ponto o poder diretivo do empregador pode
ser usado para orientar, organizar e disciplinar os trabalhadores.
Por fim, buscou-se mostrar as consequências desta prática para os
trabalhadores, bem como sugerir algumas condutas para evitar e
reparar os danos causados pelo assédio moral organizacional.
Palavras-chave: Assédio Moral. Assédio Moral Organizacional.
Poder Diretivo do Empregador. Consequências do Assédio Moral
Organizacional.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma abordagem sobre o assédio moral, em especial, o assédio moral organizacional e o poder diretivo
do empregador. O conteúdo a ser tratado neste trabalho se encontra em diversas áreas do conhecimento, passando pela medicina,
psicologia, e claro, pelo direito. No campo do direito o conteúdo a
ser tratado também passa por diferentes áreas do mundo jurídico,
entre elas, o direito constitucional, direito do trabalho eo direito
civil.A escolha do tema se deu diante da sua importância e relevância jurídica, uma vez que é recorrente os casos de assédio moral
em vários locais seja no trabalho, no ambiente escolar e até mesmo no ambiente familiar.
A legislação brasileira protege os trabalhadores de uma
maneira geral, garantindo-lhes condições dignas de trabalho, no
entanto, falta uma legislação específica no que tange ao assédio
moral dificultando a proteção ao trabalhador vítima desta prática. Por isso, continua sendo importante uma pesquisa nesta área,
pois é um tema relativamente novo e de notável importância jurídica.No caso do assédio moral organizacional, que foi tratado de
Capa
Sumário
349
maneira mais específica, será demonstrado como funciona essa
modalidade de assédio moral e porque é necessário fazer um estudo sobre ela, visto que na maioria dos casos nem os próprios
trabalhadores sabem que estão sendo vítimas desta prática.
A metodologia adotada quanto à natureza da pesquisa
será dogmática, tendo por base o posicionamento da doutrina e
da jurisprudência nacional no que se referem ao assédio moral e
ao assédio moral organizacional. Será utilizado, quanto ao procedimento, o método interpretativo, em que se busca através da coleta de dados bibliográficos, entre eles consulta a doutrina, jurisprudência, leis e sites especializados, os conceitos e classificações
pertinentes ao tema.
Para se tornar mais didático, o presente trabalho foi dividido em três capítulos.O primeiro capítulo trata do fenômeno do
assédio moral no ambiente de trabalho, estudando os conceitos
doutrinários sobre o tema, os elementos caracterizadores do assédio moral, as classificações, bem como o posicionamento do ordenamento jurídico brasileiro sobre este tema.Ainda no primeiro
capítulo será tratada a questão da proteção à dignidade humana,
em especial do princípio da proteção conferida aos trabalhadores
pela Constituição Federal de 1988.
O segundo capítulo dedica-se a mostrar o assédio moral organizacional, como uma forma de gestão empresarial, que busca
aumentar a produção, diminuir custos e melhorar o desempenho
da empresa. No entanto, para isso, institui um ambiente de trabalho altamente estressante, com o uso de práticas abusivas que
expõem os trabalhadores a situações humilhantes e geram diversas consequências negativas para eles e para as pessoas que estão
ao seu redor. Assim, busca fundamentação para o limite do poder
diretivo do empregador em organizar e gerir seu negócios. Por fim,
trará no terceiro e último capítulo as consequências da prática do
assédio moral organizacional para os trabalhadores, elencando
ainda formas de prevenção e reparação dos danos decorrentes
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
desde modelo de gestão.
2 ASSÉDIO MORAL E A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR
2.1 ASSÉDIO MORAL
Desde a revolução industrial, as relações de trabalho vêm
crescendo em uma escala nunca vista, uma vez que com a globalização dos mercados e as novas tecnologias fizeram surgir comportamentos, normas e até mesmo algumas atividades comerciais
que até então não existiam. No entanto, algumas consequências
negativas também sobrevieram de toda essa revolução global e
tecnológica, em especial para dos trabalhadores, que acabaram
sofrendo algumas das conseqüências negativas desta forma de
gestão que está sendo implementada nas empresas de todo o
mundo.
Esta nova forma de gestão está surgindo da necessidade
das empresas se manterem lucrativas, pois na medida que os encargos, custos e a concorrência aumentam há também a necessidade por mais resultados.A concorrência é um dos fatores fundamentais que estimulam o assédio mora, uma vez que com a
globalização dos mercados, a concorrência se tornou mais acirrada, visto que hoje as empresas do Brasil, por exemplo, competem
não só com empresas do mercado local mas também com outras
grandes indústrias na China, Índia e outros países. Devido a isso,
as empresas têm a necessidade de apresentar bons resultados
para se manterem viáveis e lucrativas no mercado.
Sob essa premissa, as empresas buscam extrair o máximo
de seus colaboradores, com programas de incentivos e metas que
objetivam mostrar quais os resultados que devem ser entregues e
em qual prazo.
Nesse sentido, o aumento das relações de
trabalho e a cobrança excessiva por resultados positivos faz surgir
um maior número de trabalhadores insatisfeitos com as empresas
Capa
Sumário
351
e o ambiente de trabalho em que estão inseridas.
Uma das insatisfações mais recorrentes no mundo empresarial e corporativo relatadas pelos trabalhadores é o chamado
assédio moral, que é um fenômeno presente em diversas relações
humanas,no âmbito escolar, em repartições públicas ou privadas e
até mesmo no âmbito familiar.Contudo, como já exposto, o estudo
do assédio moral aqui tratado será desenvolvido especificamente
nas relações de emprego. Compreendido que este mal pode acontecer em diversos locais, no ambiente de trabalho ele se manifesta
mediante um comportamento de uma pessoa para com outra dentro do ambiente de trabalho, existindo, na maioria dos casos, uma
relação de dependência ou subordinação entre elas.
São diversos os motivos que levam o assédio moral a acontecer nos locais de trabalho, entre eles,cor, raça, orientação sexual, atitudes e diferenças de opinião entre as pessoas.Já as conseqüências advindas destas práticas são inúmeras, que vão desde
pequenos estresses e alterações de humor até a casos de depressão, doenças cardíacas e psíquicas que levam os trabalhadores a
situações deploráveis em alguns casos.
O assédio moral no ambiente de trabalho pode começar
de diversas formas, como uma brincadeira ou até mesmo uma
cobrança excessiva de resultados pelo empregador. No entanto,a
prática de assédio moral acaba sempre de maneira desastrosa,
com um pedido de demissão ou até, em casos graves, os males
advindos do estresse causado pelo assédio moral culminam com
a morte do trabalhador através do suicídio.
Dessa forma,
deve-se destrinchar o tema, analisando a história, os conceitos a
as vertentes que levam a configuração do assédio moral.
2.1.1 Contexto histórico sobre o estudo do assédio moral
Ao analisarmos o contexto histórico das relações de trabalho chega-se a época em que em que os trabalhadores sequer ti-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nham direito a receber pelos serviços prestados. No entanto, no
que se refere ao assédio moral, concluímos que não se trata de
um fenômeno recente mas os estudos que tratam deste tema são
relativamente novos.Os primeiros estudos sobre o assédio moral
surgiram em áreas diferentes do ramo do direito, quando biólogo
austríaco Konrad Lorenz analisou o comportamento de animais de
pequeno porte que entravam em conflito com outros animais, em
geral, de um porte maior. Desta forma avaliou o comportamento
agressivo dos animais que se viam ameaçados por outros e chamou esse comportamento de mobbing, termo inglês para a palavra mob, que traduzindo para o português significa o ato de maltratar, perseguir ou atacar.
Anos depois, por volta de 1960, o médico sueco Perter-Paul
Heinemann, iniciou pesquisas com crianças no ambiente escolar.
E durante estas pesquisas encontrou um padrão de comportamento que se relacionava com o estudo do biólogo Konrad Lorenz, em
que observou que outras crianças adotavam uma postura mais
agressiva contra outras para evitar que elas se destacassem, assim
este conhecimento foi aplicado agora nas relações humanas e não
mais dos animais.
Na década de 1980 o psicólogo alemão Heinz Leymann introduziu o conceito desta prática chamada mobbing para o ambiente de trabalho, em que verificou que o comportamento dos
animais em seu habitat e o comportamento das crianças nas escolas forma um padrão quando estes se sentiam ameaçados de
alguma forma.Também observou que nos locais de trabalho, no
entanto, as agressões eram mais difíceis de serem percebidas pois
raramente o assédio se materializava na forma de violência física.
Por fim, o assédio moral no ambiente de trabalho se tornou um
conteúdo relevante para estudo quando a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen lançou em 1998 um livro que traduzido para o
português pode ser chamado de “Assédio Moral: a violência diária
perversa”.
Capa
Sumário
353
A partir desse momento, a discussão sobre assédio moral
foi lançada no ordenamento jurídico e até o momento continua
sendo um tema de bastante relevância, visto que ocorre com frequência nos locais de trabalho do Brasil e do mundo inteiro.
2.1.2 Conceito
Para conceituar o assédio moral vale destacar antes o significado do verbo assediar, que segundo a versão eletrônica do Dicionário Aurélio, é o ato de importunar, molestar com pretensões
insistentes. Trazendo para o campo do direito do trabalho, a prática do assédio moral pode ser entendida como a degradação gratuita das condições de trabalho do empregado através da importunação insistente. No entanto, esta degradação pode acontecer de
diversas formas sendo a mais comum a exposição do trabalhador
a situações constrangedoras, humilhantes e vexatórias de forma
repetitiva e que perdura ao longo do tempo do contrato de trabalho.
Tal conceito encontra respaldo na doutrina pátria do ordenamento jurídico brasileiro, conforme ensina a professora Sônia
Mascaro Nascimento (2011, p. 14):
[...] uma conduta abusiva, de natureza psicológica,
que atenta contra a dignidade psíquica, de forma
repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador
a situações humilhantes e constrangedoras, capazes
de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à
integridade psíquica, e que tem por efeito excluir o
empregado de sua função ou deteriorar o ambiente
de trabalho.
Contribuindo para este entendimento segue o conceito exposto por André Luiz Souza Aguiar (2005, p. 28)ao tratar do assédio
moral no ambiente de trabalho:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Exposição prolongada e repetitiva a condições de
trabalho que, deliberadamente, vão sendo degradadas. Surge e se propaga em relações hierárquicas
assimétricas, desumanas e sem ética, marcadas
pelo abuso de poder e manipulações perversas. São
condutas e atitudes cruéis de um(a) contra o(a) subordinado (a) ou, mais raramente, entre os colegas.
Importante destacar também o posicionamento do professor Jorge Luís de Oliveira da Silva (2005, p. 12)
[...] o assédio moral vem a ser a submissão do trabalhador a situações humilhantes, vexaminosas e
constrangedoras, de maneira reiterada e prolongada, durante a jornada de trabalho ou mesmo fora
dela, mas sempre em razão das funções exercidas
pela vítima. Isto posto, não significa que a conduta assediadora se relacione necessariamente com
alusões ou indicações ao trabalho, pois geralmente
o foco da violência é qualquer ponto da vítima que
possa determinar uma desestabilização desta com
o ambiente de trabalho, facilitando as condutas tendentes a desqualificá-la, não só como profissional,
mas também como ser humano.
E do advogado César Luís Pacheco Glöckner (2004, p. 19)
Podemos então conceituar o assédio moral, unindo
os vários conceitos que anteriormente foram apresentados, como sendo toda a conduta abusiva, através de gestos, palavras, comportamentos, atitudes,
que atente, seja pela sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade física de um
trabalhador, ameaçando seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho. Trata-se, portanto, da
exposição do trabalhador a situações humilhantes
e constrangedoras, feitas de forma repetitiva e prolongada durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções.
Capa
Sumário
355
Tendo ciência que estudo do assédio moral também teve
sua origem no campo da medicina e da psicologia, faz-se necessário trazer o conceito da psiquiatra Marie-France Hirigoyen (2011, p.
17):
O assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou
sistematização, contra a dignidade ou integridade
psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu
emprego ou degradando o clima de trabalho.
O assédio moral também pode ser descrito como um terrorismo psicológico, hostilização no ambiente de trabalho, bullying,
mobbing, entre outros.O termo “mobbing”hojeestá mais ligado a
idéia de perseguições coletivas, mas não se confunde com assédio
moral. Já o termo bullying teve origem na Inglaterra, e se relaciona
também com a idéia de tratar os outros com grosseria e humilhação. Esteúltimose tornou mais conhecido desde que o tema virou
febre na mídia devido a atentados corridos em escolas americanase até mesmo no Brasil realizado por estudantes vítimas de
bullying, ou seja, vítimas de chacotas e outras condutas humilhantes que vão desde pequenas brincadeiras à violentas agressões físicas.
Pode-se afirmar que tanto o mobbing quanto o bullying são
condutas que visam perseguir e humilhar as pessoas, no entanto,
elas se diferenciam pelo fato de a primeira estar relacionada a idéia
de perseguições coletivas feitas por uma entidade organizada e a
segunda quando as ofensas são cometidas por uma pessoa contra
outra.Todos estes conceitos são importantes para que fique claro
que não é todo conflito dentro do ambiente de trabalho que caracteriza o assédio moral mas sim aquelas condutas que, de fato,
sejam repetitivas e sistemáticas com o único objetivo de denegrir
a dignidade do trabalhador.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Portanto, atos isolados e em momentos distintos não devem ser vistos como assédio moral, apesar do fato não ser considerado assédio moral não quer dizer que empregado não possa se
valer de meios para evitar ou mesmo reparar qualquer dano que
venha sofrer durante o curso do contrato de trabalho.
2.1.3 Elementos caracterizadores do assédio moral
Ainda não existe um entendimento pacificado no ordenamento jurídico brasileiro sobre todos os elementos caracterizadores do assédio moral. No entanto existem elementos que são comuns em todos os casos estudados e são defendidos por grande
parte da doutrina, nesse sentido pode-se afirmar que o primeiro
deles é a intencionalidade ou dolo do agente, o segundo é a frequência e repetição das condutas e por fim o dano causado a vítima.
2.1.3.1 Dolo ou intencionalidade
Para a maioria dos pesquisadores e doutrinadores, o dolo
do agente é um elemento fundamental para a caracterização de
uma conduta como assédio moral, ou seja, é necessário que fique
claro que o agressor tenha a intenção de desconcertar a vítima e o
colocá-la em uma situação constrangedora e humilhante.
A psiquiatra Mari-France Hirigoyen(2002, p. 64) afirma que
só se configura assédio moral quando existe a intenção de atingir
a vítima, isto é, a vontade do agente deve ser direcionada no sentido de gerar sofrimento para a pessoa assediada. No entanto, ela
divide a intencionalidade em duas vertentes, a primeira é a intencionalidade consciente na qual o agressor tem certeza absoluta do
que está fazendo e com um objetivo claro de constranger a vítima,
já na segunda vertente, existe a intencionalidade inconsciente, em
que o agente pratica a conduta do assédio moral mas sem a intenção de trazer sofrimento à a pessoa agredida mas sim interagir
Capa
Sumário
357
com a mesma. Neste mesmo sentido, uma parte da jurisprudência
já se manifestou afirmando que a intencionalidade é um elemento
necessário para a caracterização do assédio moral (grifo nosso):
Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE
REVISTA. PROFESSORA DE ESCOLA EVANGÉLICA.
ASSÉDIOMORAL NÃO CONFIGURADO. PRÁTICA NÃO
REITERADA DA RECLAMADA DE UTILIZAÇÃODECRITÉRIODE PREFERÊNCIA PARA PAGAMENTO DOS SALÁRIOS EM SITUAÇÃO DE DIFICULDADE ECONÔMICA: PRIMEIRO AS TRABALHADORAS COM FILHOS E
SITUAÇÃO FINANCEIRA MAIS DIFÍCIL. RECLAMANTE
QUE FICOU NA ÚLTIMA POSIÇÃO DA ORDEM DE RECEBIMENTO. O assédio moral pressupõe intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e degradação deliberada das condições de trabalho. E, no caso dos
autos, segundo o TRT, não houve a prática reiterada
do preterimento no pagamento dos salários da reclamante, tampouco situação vexatória. Assim, embora relevante o caso dos autos, não está demonstrada a viabilidade do conhecimento do recurso de
revista especificamente quanto ao alegado assédio
moral. Nega-se provimento a agravo de instrumento pelo qual o recorrente não consegue infirmar os
fundamentos do despacho denegatório do recurso
de revista.
Processo: AIRR - 418-77.2011.5.04.0013 Data de
Julgamento: 28/05/2014, Relatora Ministra: Kátia
Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 30/05/2014.
Ementa: I - AGRAVO DE INSTRUMENTO DA COOPERATIVA DE ECONOMIA E CRÉDITO MÚTUO DOS MÉDICOS E DEMAIS PROFISSIONAIS DE NÍVEL SUPERIOR
DA SAÚDE DE SALVADOR LTDA. - UNICRED SALVADOR.
RECURSO DE REVISTA. NEGATIVADE PRESTAÇÃO
JURISDICIONAL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA.
GRUPO ECONÔMICO. NÃO PROVIMENTO. Nega-se
provimento a agravo de instrumento pelo qual o recorrente não consegue infirmar os fundamentos do
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
despacho denegatório do recurso de revista.
[ ... ]
ASSÉDIOMORAL. O assédio moral fica configurado
quando há atos reiterados e abusivos, uma atitude de contínua e ostensiva perseguição, um processo discriminatório de situações humilhantes e
constrangedoras. Em tese, pressupõe repetição
sistemática, intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e degradação deliberada das
condições de trabalho. No caso, os fatos consignados no acórdão demonstram um conjunto de atos
ilícitos da empregadora, que violam a dignidade,
a honra e a imagem da empregada, na medida em
que, ao ter reduzidas suas atribuições na empresa,
ficou sujeita a situação vexatória diante de seus colegas de trabalho e clientes, o que é suficiente para
configurar o assédio moral. Não é difícil presumir o
abalo psíquico, a angústia e o constrangimento pelos quais passa uma pessoa que assim é tratada. Demonstrados, pois, que os efeitos da afronta sofrida
na esfera subjetiva da empregada são flagrantes. Assim, conclui-se configurado o dano moral, e é devido
o pagamento da respectiva indenização. Recurso de
revista de que não se conhece.
[ ... ]
Processo: ARR - 87700-76.2009.5.05.0020 Data
de Julgamento: 14/08/2013, Relatora Ministra: Kátia
Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 23/08/2013.
Acontece que, outra parte da doutrina entende que a intencionalidade não é um elemento obrigatório para configuração do
assédio moral, uma vez que o elemento a ser observados para a
caracterização do assédio moral é o atentado a dignidade e direitos fundamentais do trabalhador independentemente do perseguidor ter ou não a intenção de humilhar o empregado.O próprio
Capa
Sumário
359
Tribunal Superior do Trabalho já reconheceu em outro momento
que é desnecessário o elemento da intencionalidade esteja presente para ser configurado o assédio moral (grifo nosso):
(...) Pouco importa, ainda, que a reclamada não
tivesse a intenção de humilhar o reclamante ou
forçá-lo a sair do emprego: estando suficientemente comprovado nos autos que o autor não tinha
acesso a instalações sanitárias adequadas, tendo
que fazer as necessidades fisiológicas com o trem
em movimento, porque não podia pará-lo, e que
nem sempre a locomotiva era adequadamente limpa, cumpre reiterar que tais fatos, por si sós, atentam contra a sua dignidade humana, lembrando-se
que são invioláveis, enquanto bens tutelados juridicamente, a honra, a dignidade e a integridade física
e psíquica da pessoa, por força do disposto nos artigos 1º, III, 4º, II e 5º, III e V, da Carta Maior, garantias
que têm destacada importância também no contexto do contrato de trabalho, fonte de dignidade do
trabalhador. Daí porque a violação a qualquer desses bens jurídicos, no âmbito do contrato de trabalho, ensejará ao infringente a obrigação de reparar
os danos dela decorrentes. Cumpre ressaltar que a
igualdade preconizada no artigo 5º da Magna Carta
deve ser considerada também na relação de respeito
que deve nortear o contrato de trabalho, na medida
em que toda pessoa, vista como sujeito do direito à
inviolabilidade dos valores subjetivos mencionados,
deles não se despe quando contrata relação de trabalho subordinada, tornando-se empregado. Como
se vê, se por um lado é certo não teve a ré a intenção
de humilhar o seu empregado, por outro lado, verifica-se que agiu a mesma com inaceitável indiferença
para com o sofrimento a ele causado por tais condições de trabalho, por si só degradantes. Surge, daí, a
culpa da ré, consubstanciada em seu ato omissivo, e
que vai ensejar a obrigação de indenizar. (...) Observa-se que a prova dos autos, analisadas à minúcia
pelo Regional e por ele transcritas, revela que, de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
fato, restou caracterizado assédio, na medida em
que o reclamante ficou sujeito a situação humilhante, por não poder fazer suas necessidades fisiológicas com o mínimo de dignidade, conforme pode
ser verificado da transcrição da decisão recorrida no
item anterior.
(AI - 55240-18.2007.5.03.0099, Relatora Ministra:
Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação:
DEJT 22/07/2010)
Acontece que a jurisprudência brasileira em sua maioria
oferece um suporte maior ao estudo da psiquiatra Mari-France Hirigoyen afirmando que a intencionalidade é um elemento essencial para caracterização do assédio moral, no entanto, na visão
de pesquisador deste tema, acredito que este não deveria ser um
requisito obrigatório uma vez que cada caso deve ser analisado
isoladamente, levando em consideração os fatos e provas expostos pela partes, até porque na maioria dos casos nem o próprio
assediador se vê como um praticante de assédio moral mas isso
não retira-lhe a culpa nem os danos causados pela sua conduta,
devendo portanto, verificar a presença dos outros pressupostos.
2.1.3.2 Frequência e duração no tempo
Diferentemente da intencionalidade, a frequência e a repetição são requisitos que se encontram mais pacificados na doutrina e na jurisprudência do Brasil quando se trata da caracterização
do assédio moral. Conforme preleciona a professora Sônia Mascaro Nascimento (2011, p. 64) “o comportamento realizado de maneira reiterada é elemento essencial para configuração do assédio
moral”.
De acordo com este entendimento, uma humilhação ou um
ato que coloque o trabalhador em uma situação constrangedora,
de maneira isolada, por si só não deve ser considerado um assédio
Capa
Sumário
361
moral, por faltar exatamente o elemento essencial que é a repetição e a reiteração dos comportamentos ofensivos à dignidade do
mesmo.
Segundo FERREIRA (2010, p. 42) “o assédio moral é processo
de exposição repetitiva e prolongada do trabalhador a condições
humilhantes e degradantes e a um tratamento hostil no ambiente
de trabalho, debilitando sua saúde física e mental. Trata-se de uma
guerra de nervos, a qual conduz a vítima ao chamado “assassinato
psíquico”.”Nesse norte foi direcionado o entendimento do Tribunal
Superior do Trabalho, para confirmar que o elemento da frequência é essencial para configuração do assédio moral (grifo nosso):
I - AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA.
INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL.
Agravo de instrumento a que se dá provimento, ante
a provável violação do art. 5º, III e V, da Constituição
Federal, nos termos do art. 228 do RI do TST. II - RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. A hipótese de assédio moral
fica configurada quando há atos reiterados e abusivos, uma atitude de contínua e ostensiva perseguição, um processo discriminatório de situações humilhantes e constrangedoras. O assédio
moral, em tese, pressupõe repetição sistemática,
intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e
degradação deliberada das condições de trabalho.
No caso concreto, os fatos consignados no acórdão
revelam um conjunto de atos ilícitos da empregadora que violam a dignidade, a honra e a imagem
da empregada, na medida em que era submetida a
tratamento inadequado. A reclamada a chamava de
-feia-, mandava que ela -calasse a boca-, falava para
ela que -nunca iria se casar- e -somente teria folga
no dia em que sua mãe falecesse-, constantemente
a ameaçava de demissão, o que é suficiente para
configurar a hipótese de assédio moral. Não é difícil
presumir o abalo psíquico, a angústia e o constrangimento pelos quais passa uma pessoa que sofre
esse tratamento. Demonstrados, pois, que os efeitos
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
363
da afronta sofrida na esfera subjetiva da empregada
são flagrantes. Assim, conclui-se configurado o dano
moral, sendo devido o pagamento da respectiva indenização. Recurso de revista a que se dá provimento.
(RR - 4172-79.2010.5.12.0032, Relatora Ministra:
Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento:
26/09/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT
28/09/2012)
desnecessário, quando se tratar do dano moral decorrente do ato
ilícito, provar o sofrimento da vítima, uma vez que é presumível.É
importante destacar que devem estar presentes os elementos da
responsabilidade civil para que possa ser indenizado os danos decorrente do assédio moral, isto é, o dano causado deve ter uma
ligação direta com a conduta do agente conforme o entendimento
da 2ª turma do TST (grifo nosso):
Desta forma,fica claro que o entendimento jurisprudencial e doutrinário já está pacificado no sentido que é necessário
a existência de uma repetição sistemática da conduta abusiva, no
entanto, não existe ainda uma fórmula exata que se encaixe na
questão da temporalidade, devendo cada caso ser analisado de
maneira isolada levando-se em conta o período em que ocorria o
assédio e em quanto tempo a mesma conduta se repetia.
DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ASSÉDIO MORAL. A
responsabilidade civil do empregador para indenizar dano moral oriundo das relações de trabalho,
em regra, baseia-se na teoria subjetiva, calcada na
culpa do agente (artigo 186 do CC). Segundo esse
preceito, o dever de indenizar passa, inevitavelmente, pela aferição da culpa, do dano e do nexo
causal. Na espécie, a Corte Regional registrou que
ficou comprovado o assédio moral, consistente no
tratamento habitualmente agressivo do preposto
da reclamada e chefe do autor, e que esse comportamento atuou como concausa no agravamento da
doença psíquica que vitimou o obreiro (transtorno
do pânico), estando evidenciado o nexo causal entre
a conduta culposa da reclamada e o evento danoso,
era devido o pagamento da indenização daí decorrente Assim, comprovado que o dano sofrido pelo
autor tem nexo causal com a atividade por ele desempenhada na reclamada, a consequência lógica é a condenação ao pagamento de indenização
por dano moral daí decorrente. Afronta ao artigo
5º, XXXV e LV, da Constituição Federal não configurada. Divergência jurisprudencial inespecífica, incidência da Súmula nº 296. Agravo de instrumento a
que se nega provimento.
(TST - AIRR: 1597402020085030029 15974020.2008.5.03.0029, Relator: Guilherme Augusto
Caputo Bastos, Data de Julgamento: 02/05/2012, 2ª
Turma, Data de Publicação: DEJT 11/05/2012)
2.1.3.3 Dano
Para que não reste nenhuma dúvida de que o ato praticado
pelo agente se caracteriza como assédio moral é obrigatório a existência de um dano. No entanto, diferentemente de outras formas
de agressão, o assédio moral tem como requisito que o dano seja
direcionado à dignidade do trabalhador. Nesse sentido, os danos
são diversos, vão desde um simples constrangimentos no ambiente de trabalhão por uma brincadeira ou humilhação até quadros
de depressão causados por um ambiente de trabalho extremamente hostil.
Na prática, os danos devem ser comprovados, mas no caso
do assédio moral não há necessidade de uma prova direta dos danos sofridos uma vez que a própria degradação do ambiente de
trabalho já configura uma conduta abusiva conforme preleciona
a juíza Candy Florencio Thome (2009, p. 28) em sua obra “O assédio moral nas relações de emprego”, afirma ainda que também é
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Dessa forma, o assédio moral estará configurado quando for
observado que a conduta do assediador está causando um dano
a saúde física e mental da vítima, no entanto, pode-se afirmar que
o simples fato de uma conduta estar gerando um ambiente de trabalho degradante, por si só já caracteriza um dano ao trabalhador
mesmo que ele não seja o alvo direto das agressões.
2.1.4 Classificação do assédio moral
O assédio moral no âmbito das relações trabalhistas é dividido para a maioria dos doutrinadores, em três modalidades, a
primeira é o chamado assédio moral vertical, a segunda o assédio moral horizontal e por fim o assédio moral misto. O que será
primordial para definir em que modalidade se encaixa a forma de
assédio será a posição hierárquica do agente dentro da empresa
com relação a posição hierárquica da vítima.
2.1.4.1 Assédio moral vertical
O assédio moral vertical pode ser estudado em duas modalidades, uma mais comum de acontecer,que é o assédio moral vertical descendente, e outra mais rara de ocorrer que é o assédio moral
ascendente. O descendente está presente na maioria das vezes, é
também conhecido como assédio moral estratégico ou ainda como
“bossing”, termo em inglês que remete a idéia de superioridade.
O assédio moral descendente é verificado quando é praticado por um superior hierárquico contra um subordinado, ou seja,
um gerente ou até mesmo o dono da empresa utiliza-se da sua
posição privilegiada na empresa para destratar e aborrecer algum
trabalhador e colocá-lo em uma situação desconfortável.Muitas
vezes, o superior hierárquico ainda se aproveita da sua posição e
poderes para delegar obrigações humanamente impossíveis, com
o escopo de desestabilizar mentalmente o trabalhador e deixá-lo
Capa
Sumário
365
constrangido.
É importante destacar também que pode acontecer a situação inversa, onde o empregador retira as obrigações do trabalhador deixando-o com aspecto de pessoa ociosa e conseqüentemente desnecessária para a empresa, gerando com isso sua demissão
e o afastamento do trabalhador.
Nesse sentido,Marie-France Hirigoyen (2011, p. 113)revela que o assédio moral descendente ainda podes er estudado em
três tipos diferentes a depender do objetivo do agressor.Entre as
formas citadas pela psiquiatra está o assédio moral perverso, no
qual o superior hierárquico utiliza-se desta conduta apenas para
valorizar o seu próprio poder, massageando seu ego e atingindo
diretamente a autoestima do trabalhador; outro tipo citado pela
professora é o assédio estratégico, quando o objetivo do assediador é induzir o empregado a pedir demissão e assim evitar que a
empresa arque com os custos de uma rescisão trabalhista sem justa causa.
Por fim traz a figura do assédio moral institucional, que
ocorre quando o assédio moral é uma prática corriqueira na empresa sendo utilizado como uma forma de gestão de pessoas, fazendo com que todos os subordinados sigam fielmente as instruções dadas pelos superiores hierárquicos. O assédio moral vertical
descendente já foi debatido no nosso ordenamento jurídico conforme a jurisprudência (grifo nosso):
ASSÉDIO MORAL. REQUISITOS. CONFIGURAÇÃO. 1.
Constitui assédio moral vertical a atitude do superior hierárquico que dispensa ao empregado
tratamento vexatório, incompatível com o padrão médio de conduta na sociedade. Demonstrada a sua prática, do contexto emerge o direito
ao recebimento de indenização pelo dano. 2. A definição do montante a ser pago, a esse título, exige
a avaliação sobre aspectos de fato que são próprios
a cada lide, como a condição social dos envolvidos,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
a natureza, a extensão da lesão e o grau de culpa do
ofensor, bem como suas consequências na esfera
subjetiva da vítima.
(TRT-10 - RO: 01713201200910005 DF 01713-2012009-10-00-5 RO, Relator: Desembargador João Amílcar, Data de Julgamento: 26/03/2014, 2ª Turma, Data
de Publicação: 04/04/2014 no DEJT)
Nesta modalidade de assédio moral, o trabalhador está sujeito a um dano relativamente maior, pois, indiscutivelmente se encontra em uma posição bem mais vulnerável que o agressor, visto
que este é seu empregador, tornando difícil defender-se ou pedir
ajuda aos outros colegas de trabalho, que evitam se envolver no
conflito com o objetivo de proteger o seu emprego, além do que, temem serem as novas vítimas do assédio moral dos agressores.
Além da modalidade supracitada existe também o assédio
moral vertical ascendente, que é um pouco mais difícil de acontecer.Configura-se quando um trabalhador hierarquicamente inferior nos quadros organizacionais da empresa assedia pessoa em
cargo superior ao seu com comportamentos que objetivam depreciar o superior hierárquico e colocá-lo situação de constrangimento no ambiente de trabalho.
Geralmente o assédio moral vertical ascendente se inicia
quando alguém mais jovem e mais novo na empresa é promovido
a um cargo de comando ou direção deixando os outros empregado
mais velhos e que trabalham a mais tempo na empresa com certa
inveja do novo chefe e com isso começam a menosprezar as ordens e direcionamentos do mesmo.O Ministro Alexandre de Souza
Agra Belmonte (2008, p. 1330) tratou desta forma de assédio moral
vertical em sua obra “O assédio moral nas relações de trabalho”
afirmando que:
[...] assédio moral vertical ascendente caracteriza-se pela prática de atos vexatórios contra superior
Capa
Sumário
367
hierárquico. Desobediência ou hostilização a ordens
pelos subalternos em relação a superior inexperiente ou inseguro, visando desacreditá-lo para desestabilizá-lo no cargo.
Os comportamentos destes empregados contra seu superior geram uma instabilidade no ambiente de trabalho e conseqüentemente a redução do rendimento do mesmo que aos poucos vai se distanciando da sua função de chefia e diminuindo sua
atuação do seu poder diretivo uma vez que o mesmo não se sente
respeitado por seus comandados e acaba se vendo como desnecessário para aquela função.
2.1.4.2 Assédio moral horizontal
Diferentemente do que ocorre na modalidade vertical de
assédio moral em que ambos os sujeitos da relação de assédio se
encontram em diferentes níveis hierárquicos e com certa subordinação, no assédio moral horizontal, também conhecido como assédio moral simétrico, acontece o desaparecimento da relação de
subordinação e os sujeitos desta relação encontram-se no mesmo
nível hierárquico dentro da empresa.Nesta modalidade de assédio, as agressões geralmente se iniciam quando existe uma disputa por um cargo ou promoção dentro da empresa e se manifesta
através de brincadeiras depreciativas, piadas e humilhações com
o objetivo de diminuir o outro.
No entanto, são diversos os motivos que levam ao assédio
moral horizontal, entre eles: conflitos interpessoais, diferenças de
opiniões, ciúmes, falta de destaque no cumprimento de suas funções ou falta de cooperação com os demais colegas de trabalho.
Uma das formas pela qual pode-se verificar a presença de assédio
moral horizontal no ambiente de trabalho é quando um grupo de
trabalhadores se recusa a aceitar um novo colega de trabalho, tra-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tando-o de forma hostil e rejeitando-o, deixando claro que o mesmo não pertence ao grupo.Assim, tanto o assédio moral vertical
como o horizontal podem ser praticados por um grupo contra uma
pessoa ou por uma pessoa contra determinado grupo.
É importante destacar também que o fato do assédio moral
ser praticado por empregados da empresa não isenta o empregador da responsabilidade de reparar os danos causados aos trabalhadores, visto que é obrigação dele zelar por um ambiente de trabalho livre de riscos à saúde do trabalhador conforme estabelece o
Art. 7º, XXII da Constituição Federal de 1988 e a grande maioria da
jurisprudência nacional:
ASSÉDIO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. O assédio moral é a exposição do trabalhador a situações
humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. Nesse escólio, tanto o assédio
moral por parte dos superiores hierárquicos (assédio moral vertical) quanto pelos colegas de trabalho
(assédio moral horizontal), induvidosamente, acarretam a responsabilidade empresarial, ante o direito fundamental do trabalhador ao meio ambiente
de trabalho livre de riscos à sua saúde (art. 7º, XXII
da CF/88), “in casu”, a higidez psíquica. Recurso ordinário provido parcialmente.
(TRT-19
RO:
257200800619001
AL
00257.2008.006.19.00-1, Relator: Vanda Lustosa,
Data de Publicação: 21/09/2009)
Nesse sentido, pode-se concluir que o assédio moral horizontal é uma prática bastante comum nos locais de trabalho, sendo incentivada de forma discreta pelos empregadores, na medida
que eles estimulam uma competitividade dentro da empresa para
que os trabalhadores se tornem mais eficientes, no entanto, este
tipo de conduta empresarial estimula uma concorrência exacerba-
Capa
Sumário
369
da entre os trabalhadores, fazendo desaparecer a figura do colega
de trabalho e surgindo um concorrente no trabalho.
2.1.4.3 Assédio moral misto
Por fim, existe também o assédio moral na modalidade mista,
que ocorre quando a vítima é hostilizada tanto pelos colegas de trabalho quanto por seus superiores hierárquico.
É verificado normalmente em empresas na qual a competitividade é estimulada constantemente, isto é, há uma cobrança excessiva de resultados positivos entre os trabalhadores.
No assédio moral misto, acontece a união do assédio moral
vertical com o assédio moral horizontal tendo como resultado um
ambiente de trabalho extremamente hostil e estressante para todos
que estão nele.
No entanto, na maioria dos casos, o assédio inicia-se na figura
do superior hierárquico e então os demais colegas para “entrarem na
brincadeira” se unem ao assediador e passam a agir como ele, com
gozações e brincadeiras direcionadas a outro colega de trabalho.
Sônia Mascaro Nascimento (2011, p. 16) afirma ainda que no
caso do assédio moral misto a vítima “é atacada por todos os lados,
o que configurará uma situação insustentável num curto espaço de
tempo.”.
Por fim, a pessoa assediada acaba se isolando para evitar continuar sendo o alvo agressões tornando-se uma pessoa de difícil convivência pois já fica bastante desgastada com a situação, tendendo
afastar-se de forma permanente da empresa.
2.2 PROTEÇÃO AO TRABALHADOR NO AMBIENTE
DE TRABALHO
Durante as últimas décadas, o Direito do Trabalho evoluiu de maneira bastante significativa com relação ao instituto da
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
proteção do trabalhador. Se analisarmos como se davam as relações de trabalho no mundo há séculos atrás, chega-se em períodos onde a escravidão era o sistema universal de trabalho, onde
o trabalhador era tratado como objeto, exercendo suas funções
de acordo com a vontade de seu “dono”. Este exercia um domínio total sobre o trabalhador, inclusive até sobre o patrimônio do
mesmo (SÜSSEKIND, 2002).Com o passar do tempo, as relações
de trabalho evoluíram a um ponto em que a escravidão deu lugar
para a servidão. Este sistema consistia basicamente em uma troca,
na qual o servo cultivava nas terras do senhor com o pagamento
de taxas e uma parte da produção mas em troca recebia o direito
de ficar com uma parte de sua produção. Dessa forma obtinha os
gêneros alimentícios para sua subsistência e a da sua família.
Após o fim do regime feudal e com a explosão da revolução
industrial, começaram a surgir as primeira relações de trabalho livre fazendo insurgir um novo grupo dentro da sociedade, chamado de operariado. Este grupo era composto em sua maioria por
pessoas que vieram dos campos movidas pelas promessas oferecidas nas cidades, no entanto, encontravam diversas dificuldades.
Foi durante este período em que iniciou-se o movimento para regulamentar as relações de trabalho e com isso acabar abusos que
até então eram cometidos regularmente pelos empregadores.Estes movimentos articulavam-se na tentativa de promoverem melhores condições de saúde e higiene, bem como aumentar a valorização dos trabalhadores.
Assim, as condições de trabalho acompanharam a evolução
dos direitos humanos em quase todas as suas vertentes, primando
principalmente pela dignidade da pessoa humana.A partir deste
momento o ordenamento jurídico criou um norte para toda a legislação trabalhista abolindo as relações de trabalho em que os
seres humanos não possuíam nem as mínimas garantias relativas
a dignidade humana.Gerou-se, com isso, um ambiente de trabalho
mais justo e digno onde os trabalhadores podiam ter a possibilida-
Capa
Sumário
371
de de melhorar, de fato, sua qualidade de vida.
Portanto, a proteção do trabalhador nas relações de trabalho também se revela uma matéria dinâmica e em constante
evolução. Ela não se restringe apenas à previsão legal da proteção
da dignidade da pessoa humana trazidas Constituição Federal de
1988, mas também todos os direitos a ela inerentes como os direitos da personalidade. Além disso, há de se destacar toda proteção conferida especialmente à pessoa do trabalhador, em razão
da sua hipossuficiência em relação ao empregador.Diante disso,
se faz necessário destacar alguns princípios norteadores e outras
prerrogativas conferias pelo ordenamento jurídico à proteção da
pessoa física do trabalhador.
2.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Como um dos princípios norteadores de maior relevância no nosso sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa
humana teve seu primeiro destaque na Declaração Universal dos
Direito Humanos da ONU no ano de 1948, trazendo como uma máxima a afirmação de que “todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos”.O conceito de dignidade humana
pode ser de extraído com bastante precisão através dos ensinamentos de André Ramos Tavares (2010) quando o mesmo afirma
que “a dignidade da pessoa humana se destina também a proteger o indivíduo de qualquer humilhação ou situação vexatória,
além de proporcionar a possibilidade de desenvolvimento e crescimento pessoal”.
O Brasil, seguindo as diretrizes mundiais também trouxe
expressamente na Constituição Federal de 1988, como fundamento do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da
pessoa humana que se apresenta como um princípio norteador,
devendo garantir proteção e direcionamento a todas as outras
normas do ordenamento jurídico.Nesse sentido, observe-se o se-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
guinte julgado do Tribunal Regional do Trabalho (grifo nosso):
DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. ATITUDE ABUSIVA
DO EMPREGADOR. Dispensa imotivada no curso de
licença médica caracteriza ofensa à dignidade da
pessoa humana do trabalhador.
(TRT-1 - RO: 00010359620125010009 RJ, Relator:
Monica Batista Vieira Puglia, Data de Julgamento: 10/12/2013, Quarta Turma, Data de Publicação:
13/01/2014)
Pedido de demissão. “Opção” dada pela empregadora frente à possibilidade de ruptura contratual
por justa causa. Coação. Violação à dignidade da
pessoa humana do trabalhador. Configuração.
Inteligência do artigo 151, do Código Civil e do artigo 9º, da CLT. A toda evidência o trabalhador que é
“convocado” pelo empregador e recebe a informação de que ou pede demissão ou lhe será aplicada
a penalidade máxima de que trata o artigo 482, da
CLT, ficará com a primeira hipótese. Além de notória a coação, nos exatos moldes estabelecidos pelo
artigo 151, do Código Civil, a conduta da empresa
demandada avilta a dignidade da pessoa humana
do trabalhador, eis que o mesmo, necessitando de
parcela remuneratória para a sua sobrevivência,
rende-se à superioridade do poder diretivo do empregador, com o que não pode ser conivente esta
Justiça Especializada. Se de fato a empresa reunia
motivos ponderáveis para a dispensa do reclamante por justa causa, que assim o fizesse, viabilizando,
se o caso, ampla discussão e eventual reversão por
esta Justiça Obreira (artigo 5º, inciso XXXV, da Lei
Maior). Todavia, assim não procedeu a demandada, “optando” por acatar o “pedido de demissão”, o
qual merece ser invalidado por completo, diante da
notória coação praticada em relação ao laborista.
(TRT-2
RO:
19378820105020
SP
00019378820105020042 A28, Relator: JANE GRANZOTO TORRES DA SILVA, Data de Julgamento: 01/08/2013, 9ª TURMA, Data de Publicação:
13/08/2013)
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Sumário
373
Nesse sentido, pode-se concluir que todas as leis formuladas no nosso ordenamento jurídico não podem ir de encontro a
esta máxima apresentada e da mesma forma as disposições relativas ao direito do trabalho, devem resguardar em todas as suas
normas, alguns dispositivos que protejam os trabalhadores para
eles possam desempenhar suas funções com respeito a sua integridade física, intelectual e moral.Desta forma, a garantia constitucional da dignidade humana se relaciona diretamente com a
proteção do trabalhador, visando assegurar a estes o direito a um
ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade.
2.2.2 Princípio da Proteção
Os princípios, no entendimento da professora Carmen Camino (2004, p. 91), servem tanto para o legisladores como também
para os intérpretes. No primeiro caso, orientam a produção legislativa, no segundo, servem para ajudar na compreensão das normas
existentes e eventualmente como forma de preencher as lacunas
existentes na legislação.Na seara trabalhista, os princípios devem
garantir a coerência do ordenamento jurídico evitando-se assim
contradição entre as normas e os preceitos legais bem como haja
interpretações diferentes pelos órgãos do Poder Judiciário.
O princípio da proteção segundo RODRIGUEZ (1996, p. 28)
é dos um dos princípios basilares do Direito do Trabalho, relacionando-se diretamente com princípio da dignidade da pessoa humana citado anteriormente, vindo para trazer uma maior proteção
aos trabalhadores em virtude da sua hipossuficiência em relação
ao empregador com o objetivo de alcançar uma paridade entre as
partes. De acordo com Maurício Godinho Delgado (2010, p. 198),
este princípio estrutura o Direito do Trabalho em seu interior para
que se corrija o desequilíbrio existente dentro da relação trabalho.
Outros doutrinadores ainda desdobram este princípio em
outros três: o primeiro é o Princípio do in dúbio pro operário (pro
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
375
misero) que tem a intenção de proteger o trabalhador sempre que
surgir uma dúvida na interpretação das normas jurídicas; o segundo é o Princípio da norma mais favorável ao trabalhador. Na
existência de duas ou mais normas a serem aplicadas no caso em
concreto sempre será observada aquela que for mais benéfica ao
mesmo. Por fim o Princípio da Condição mais Benéfica que inclusive está disposto na Consolidação das Leis do Trabalho em seu
artigo 468:
Este princípio, portanto, protege o trabalhador de alterações contratuais lesivas e unilaterais feitas pelo empregador, garantindo que o mesmo possa reverter a condição atual para uma
anterior na gozava de benefícios em virtude do contrato de trabalho. O princípio da proteção é base para diversas decisões judiciais, constituindo-se como uma das fontes primordiais para a
resolução das divergências na Justiça do Trabalho, a exemplo do
julgado que se segue (grifo nosso):
Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só
é lícita a alteração das respectivas condições por
mútuo consentimento, e ainda assim desde que não
resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia
DANOS MORAIS. MORA SALARIAL. PRINCÍPIO DA
PROTEÇÃO AO TRABALHADOR HIPOSSUFICIENTE.
Dado o caráter alimentar do salário, e considerando que seu pagamento é a principal obrigação do
empregador, a mora no seu pagamento enseja dano
moral. É notório que, sendo hipossuficiente, é por
meio do salário, normalmente a única fonte financeira de sobrevivência, que o trabalhador adquire
gêneros alimentícios para si e sua família, além de
dele se utilizar para as demais utilidades de seu viver, como habitação, saúde e lazer. O princípio da
proteção ao trabalhador hipossuficiente é o mais
caro ao Direito do Trabalho, e é exatamente ele
que resta violado quando ocorre a mora salarial.
(TRT-3 - RO: 00560201209003005 000056037.2012.5.03.0090, Relator: Convocada Rosemary
de O.Pires, Sexta Turma, Data de Publicação:
11/11/2013 08/11/2013. DEJT. Página 244. Boletim:
Sim.)
Nesse sentido segue também o entendimento da 1ª Turma
do TRT da 10ª Região no que concerne a aplicação do princípio da
proteção:
ACÚMULO DE FUNÇÃO. FUNDAMENTO JURÍDICO.
PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO TRABALHADOR. ALTERAÇÃO ILÍCIA DO CONTRATO DE TRABALHO. Em
se tratando de alegação de acúmulo de função a
condenação baseia-se no princípio de proteção ao
trabalhador. Pactuadas as condições de trabalho
referentes às atividades a serem exercidas pelo empregado, o acúmulo de outras funções para além
daquelas inicialmente ajustadas dá ao trabalhador
o direito de perceber incremento salarial compatível
com a alteração promovida, sob pena de violação
ao artigo 468 da CLT. Recurso parcialmente conhecido e não provido.
(TRT-10 - RO: 619201302010007 DF 01835-2012-00910-00-1 RO, Relator: Desembargador Mário Macedo
Fernandes Caron, Data de Julgamento: 27/11/2013,
1ª Turma, Data de Publicação: 06/12/2013 no DEJT)
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Sumário
Diante de todo o exposto, no que tange o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da proteção do trabalhador
não restam dúvidas de que o assédio moral no ambiente de trabalho é uma afronta à todo o ordenamento jurídico nacional quando
se refere aos direitos dos trabalhadores
Portanto, o Direito do Trabalho juntamente com Justiça
do Trabalho vêm para materializar a proteção que a própria Constituição garante ao trabalhador colocando-os em condições de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
377
igualdade com seus empregadores. E assim, promover a justiça
prezando sempre por um ambiente de trabalho saudável e consequentemente pela saúde física e mental do trabalhador.
tiva deve-se analisar como funciona o poder diretivo do empregador e os poderes derivados desta prerrogativa, isto é, o poder de
organização, poder de controle e o poder disciplinar.
3 O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL E O
PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR
3.1.1 Do poder de organização
Neste capítulo será abordada a questão relativa ao assédio
moral organizacional, os elementos que caracterizam esta prática, analisando ainda o poder diretivo do empregador e os limites
que as empresas devem obedecer para promover e assegurar um
ambiente de trabalho livre de situações que gerem um agressão a
integridade física e mental de seus trabalhadores.
3.1 PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR
As relações de emprego possuem um papel fundamental
para o desenvolvimento das sociedades. Esta relação consiste na
prestação de trabalho por uma pessoa física, executada com pessoalidade, de forma não eventual, sob a subordinação de um empregador e de maneira onerosa.
Dentro desta relação está a
figura do Empregado e do Empregador, existindo entre eles uma
subordinação em razão do contrato de trabalho. Esta subordinação garante ao empregador uma prerrogativa de organizar, dirigir
e comandar toda e qualquer atividade relativa a empresa.Cabe
também ao empregador o dever de chefiar seus empregador e punir, quando necessário, as transgressões que os mesmos venham
cometer.
Todas estas características pertinentes ao empregador, são
reunidas no que chama-se Poder Diretivo, que se manifesta através da regulamentação, fiscalização e organização do ambiente de
trabalho, garantindo ao empregador a influência necessária para
administrar e dirigir os seus negócios.
Diante desta perspec-
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Sumário
O poder de organização é um direito conferido ao empresário para que este ordene as atividades da empresa e assim possa
atingir os objetivos sociais e econômicos da mesma. Em razão desse poder, segundo Sérgio Pinto Martins (2010, p. 99), o empregador
pode determinar as regras para o andamento dos serviços da empresa, bem como o número de funcionário que ele precisa, local de
trabalho e o horário que a empresa funcionará.
Derivado do poder diretivo do empregador, o poder de organização garante autonomia para que este possa determinar as
normas de caráter técnico às quais os empregados estão subordinados.
3.1.2 Do poder de fiscalização
Também conhecido como poder de controle, é a capacidade conferida ao empregador para fiscalizar as atividades relativas
a seus empregados no âmbito da empresa, a fim de averiguar se
os mesmos estão agindo de acordo com as normas impostas pelo
empregador e se estes estão desempenhando suas atividades da
maneira estabelecida.Desta forma, o poder de fiscalização também é derivado do poder diretivo do empregador, sendo que este
se manifesta de diversas formas, as mais comuns são, a revista do
empregado e de seus pertences, circuito interno de monitoramento, no qual os trabalhadores são mantidos durante o período da
jornada de trabalho sob fiscalização constante. Se manifesta ainda através da verificação dos livros de registro de entrada e saída
dos empregados.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
No entanto, o alcance deste poder não deve ultrapassar os
limites legais, como ocorre no caso da revista intima, em que os
trabalhadores são colocados em situações humilhantes apenas
para empregador verificar se os mesmos não estão levando pertences da empresa. Nesse sentido a jurisprudência já se posicionou contra a pratica de revistas intimas:
RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS. REVISTA ÍNTIMA. A jurisprudência desta
Corte, nos casos de revistas íntimas habituais em
que os empregados expõem parte de seu corpo e revista de bolsas com a manipulação dos pertences ali
guardados entende configurado o exercício abusivo
do poder diretivo do empregador (art. 187 do Código
Civil) e a ofensa à intimidade do empregado, sendo
devida a indenização por dano moral, nos termos do
inciso X do art. 5º da Constituição Federal. No caso,
ficou demonstrada a existência do fato danoso, qual
seja: a revista íntima habitual dos empregados mediante exposição parcial de seus corpos ao levantarem a camisa e o contato físico entre o empregado
vistoriado e o vigilante que encostava o detector de
metais no corpo do empregado. E, ainda, a revista
mediante a retirada de objetos de dentro das bolsas
dos empregados pelo vigilante responsável pela revista. Recurso de revista não conhecido. QUANTUM
INDENIZATÓRIO. O valor arbitrado a título de reparação por dano moral somente pode ser revisado na
instância extraordinária nos casos em que vulnera
os preceitos de lei ou Constituição que emprestam
caráter normativo ao princípio da proporcionalidade. E, considerando a moldura factual definida pelo
Regional e insusceptível de revisão (Súmula 126 do
TST), o valor atribuído não se mostra irrisório ou
excessivamente elevado a ponto de se o conceber
desproporcional. Recurso de revista não conhecido.
(TST - RR: 9843920115190003, Relator: Augusto César
Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 09/04/2014,
6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 25/04/2014)
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Sumário
379
Dentro desta perspectiva, pode-se concluir que o poder de
fiscalização se faz necessário para averiguar se os trabalhadores
estão respeitando as exigências estabelecidas pela empresa e consequentemente o poder diretivo do empregador. No entanto, deve
ser exercido respeitando a honra e dignidade dos trabalhadores.
3.1.3 Do poder disciplinar
Além do poder de organização e do poder de fiscalização
citados anteriormente, existe o poder disciplinar, que também é
derivado do poder diretivo do empregador.De acordo com Maurício Godinho Delgado (2010, p. 292) este poder confere ao empregador um conjunto de direitos, que permite que ele imponha sanções aos trabalhadores que não estão cumprindo as diretrizes do
empregador valendo-se assim de um instrumento que o permite
exigir a correção da conduta com o escopo de que o trabalhador se
adeque as necessidades da função desempenhada.
As sanções disciplinares podem se materializar de diversas
formas, desde advertências, suspensões e até mesmo em dispensa
por justa causa, a sanção mais grave que um trabalhador pode sofrer, uma vez que configurada ele sofre a perda de diversos direitos
e prerrogativas, inclusive, perdendo até garantias de estabilidade
de emprego. Desta forma, verifica-se que o objetivo do poder disciplinar deve ser sempre corretivo e educacional, fazendo com que
o trabalhador não cometa a mesmo erro novamente.
O excesso ou abuso de poder disciplinar que não tenha por
objetivo melhorar a execução do trabalho não é legítimo. O uso
em excesso do poder disciplinar gera na maioria das vezes, danos aos trabalhadores, configurando assédio moral quando o uso
é frequente. Como se pode ver, tanto o uso do poder disciplinar
como os outros poderes do empregador devem ser exercidos com
responsabilidade para que não haja nenhum desvio de finalidade
destas prerrogativas.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
3.2 ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL
O estudo do assédio moral organizacional exige que se tenha em mente todos os conceitos expostos no capítulo anterior,
mormente ao que se refere sobre conceitos de assédio moral.O
assédio moral organizacional é tema recente e de extrema importância, por isso a importância de seu estudo, constituindo-se uma
prática recorrente e cada vez mais comum nos ambientes de trabalho do Brasil como no restante do mundo.
Importante destacar também que não há um consenso
quanto nomenclatura utilizada para o assédio moral organizacional. Renato Muçouçah (2011), por exemplo, o chama de “assédio
moral coletivo”, enquanto Lis Andréa Soboll (2008, p. 22) refere-se
ao mesmo termo como apenas “assédio organizacional”.
No entanto, neste trabalho utilizar-se-á a expressão “assédio moral organizacional” termo introduzido por Adriane Reis de
Araújo (2012, p. 76)pois reflete o tema de uma maneira mais completa, visto que se trata de uma modalidade de assédio moral que
se destaca por ter um meio de aplicação específico.
3.2.1 Conceito
Para conceituar o assédio moral organizacional se faz necessário uma breve uma distinção entre ele e o assédio moral propriamente dito. No caso do assédio moral, como dito anteriormente
pela psiquiatra Marie-France Hirigoyen (2011, p. 17) é “toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...)
que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando
seu emprego ou degradando o clima de trabalho”, podendo este
ser dividido em três modalidade assédio moral vertical, horizontal
ou misto, de acordo com origem de agressão.
Já o assédio moral organizacional pode ser conceituado
Capa
Sumário
381
de acordo com o entendimento da professora Adriane Reis Araújo
(2012, p. 76):
(...) o conjunto de condutas abusivas, de qualquer
natureza, exercido de forma sistemática durante
certo tempo, em decorrência de relação de trabalho,e que resulte no vexame,humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todos
os grupos às políticas e metas da administração, por
meio de ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos e psíquicos
Bem como pelo conceito exposto da professora Lis Soboll
(2008, p. 22), em que afirma que o assédio moral organizacional é:
Um processo no qual a violência está inserida nos
aparatos, nas estruturas e nas políticas organizacionais ou gerenciais, que são abusivas e inadequadas.
O propósito é exercer o gerenciamento do trabalho
e do grupo, visando produtividade e controle organizacional. O assédio organizacional é também processual e agressivo - como no assédio moral - mas
não é personalizado e nem mal-intencionado (no
sentido de querer prejudicar ou destruir). O objetivo
do assédio organizacional não é atingir uma pessoa
em especial, mas sim controlar todo o grupo indiscriminadamente.
Já Renato Muçouçah (2011, p. 187) conceitua assédio moral
organizacional, utilizando o termo assédio moral coletivo da seguinte forma:
(...) aquele em que o empregador, utilizando-se abusivamente do seu direito subjetivo de organizar, regulamentar, fiscalizar a produção e punir os empregados, utiliza-se desses direitos de forma reiterada
e sistemática, como política gerencial, atentando
contra os direitos humanos fundamentais dos em-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
pregados em todas as suas dimensões, geralmente
para o incremento de sua produção.
Diante destes conceitos, o assédio moral organizacional
se confunde com o assédio moral propriamente dito em várias de
suas características, como o dano, a repetição sistemática, no entanto, uma diferença primordial que deve ser extraída destes conceitos é o fato de que no assédio moral organizacional, a forma
de agressão está institucionalizada nas diretrizes da empresa de
diversas formas, atingindo diretamente grande parte dos trabalhadores, enquanto no assédio moral as agressões são dirigidas a
um indivíduo ou a um grupo de indivíduos.
A principal finalidade do assédio moral organizacional é
engajar os trabalhadores a um controle e disciplina de acordo com
as políticas da empresa para eles batam as metas de produção e
sigam fielmente todas as instruções da administração. Ou seja, diferentemente do assédio moral em que o objetivo do agressor é
causar dano ao empregado, transformando-o em motivo de chacota e assim gerar um ambiente de trabalho insustentável, o assédio moral organizacional tem a finalidade de aumentar a produção dos trabalhadores ou até mesmo descartar aqueles que não
conseguem se adaptar a cultura da empresa.
Portanto, o que deve ser analisado é até que ponto o poder
diretivo do empregador pode ser utilizado para orientar, disciplinar e punir os trabalhadores que se encontram hierarquicamente
sob suas ordens, visto que no Brasil, como citado anteriormente, o
trabalhador deve ter direito a um ambiente de trabalho saudável e
que respeite seu direito fundamental a dignidade humana.
3.2.2 Elementos caracterizadores do assédio moral organizacional
No momento em que é feito um comparativo entre os elementos caracterizadores dos institutos do assédio moral e do
assédio moral organizacional não se pode negar quem eles com-
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Sumário
383
partilham diversas características, entre elas, a habitualidade e o
dano.O assédio moral organizacional possui alguns elementos específicos para sua configuração, pois é uma forma de violência que
se encontra enraizada na estrutura, gestão e políticas da empresa.
Na lição de Lis Andréa Soboll (2008, p. 33) as principais diferenças são:a distribuição indiscriminada da violência para todos
os empregados da empresa, sem, contudo,atingir de forma específica algum trabalhador; a presença da violência na estrutura da
empresa e não em um agressor ou grupo isolado. Nessa modalidade todos os empregados estão expostos às práticas de assédio,
para que, com isso, possam ser controlados e deles retirada a máxima produtividade.A professora afirma que dentro das principais
estratégias de gestão adotas pelas empresas para extrair o máximo do rendimento de seus colaboradores está o modelo de gestão
por injúria, na qual aqueles trabalhadores que não cumprem as
metas estabelecidas são expostos constantemente a tratamentos
humilhantes, que atinge diretamente a dignidade dos mesmos. É
relevante destacar que o ordenamento jurídico brasileiro já se deparou com casos de gestão por injúria e se posicionou a favor do
trabalhador como neste julgado:
ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL. TROFÉUS
LANTERNA E TARTARUGA. O pseudo procedimento
de incentivo de vendas adotado pela empresa, consistente em atribuir troféus lanterna e tartaruga aos
vendedores e coordenadores de vendas com menores desempenhos na semana, trouxe-lhes desequilíbrio emocional incontestável, independentemente
de quem efetivamente os recebiam, visto que na semana seguinte qualquer deles poderia ser o próximo
agraciado com este abuso patronal, que ocorreu de
forma generalizada e reiterada. Ficou evidente que
o clima organizacional no ambiente de trabalho era
de constante pressão, com abuso do poder diretivo
na condução do processo de vendas. Não há outra
conclusão a se chegar senão a de que todos que ali
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
trabalhavam estavam expostos às agressões emocionais, com possibilidades de serem o próximo alvo
de chacota. Nesse contexto, o tratamento humilhante direcionado ao Autor e existente no seu ambiente
de trabalho mostra-se suficiente para caracterizar o
fenômeno do assédio moral organizacional, máxime
quando presente prova de que a conduta desrespeitosa se perpetrou no tempo, de forma repetitiva e
sistemática. Configurado o assédio moral e a culpa
patronal, é devida a indenização pretendida pelo
Reclamante.
(TRT-23
RO:
795201000223003
MT
00795.2010.002.23.00-3, Relator: DESEMBARGADOR
TARCÍSIO VALENTE Data de Julgamento: 06/09/2011,
1ª Turma, Data de Publicação: 09/09/2011)
Ou seja, a política da empresa era humilhar os trabalhadores que vendessem menos que os outros. Esta prática se adequa
a figura do assédio moral organizacional pois todos os colaboradores estavam sujeitos semanalmente a esta forma de gestão que
tem como consequência um ambiente de trabalho extremamente
hostil.Outra forma descrita pela autora de configuração do assédio
moral organizacional é o modelo de gestão por estresse, existindo
um exagero de cobrança aos trabalhadores para que estes aumentem sua produção, através de prazo impossíveis e metas inalcançáveis. A gestão por estresse também foi alvo em uma reclamação
trabalhista em que em que a Justiça do Trabalho se valendo do
princípio da proteção se posicionou novamente a favor do empregado.
ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL. GESTÃO POR
ESTRESSE. STRAINING. PRÁTICA CONSISTENTE NO
INCENTIVO AOS EMPREGADOS DE ELEVAREM SUA
PRODUTIVIDADE, POR MEIO DE MÉTODOS CONDENÁVEIS, COMO AMEAÇAS DE HUMILHAÇÕES E RIDICULARIZAÇÕES. DEVIDA INDENIZAÇÃO POR DANOS
MORAIS COLETIVOS. REDUÇÃO DO QUANTUM FIXADO PELA INSTÂNCIA A QUO. A gestão por estresse,
Capa
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385
também conhecida como assédio moral organizacional ou straining consiste em uma “técnica gerencial” por meio da qual os empregados são levados
ao limite de sua produtividade em razão de ameaças
que vão desde a humilhação e ridicularização em
público até a demissão, sendo consideravelmente
mais grave que o assédio moral interpessoal (tradicional) por se tratar de uma prática institucionalizada pela empresa, no sentido de aumentar seus
lucros às custas da dignidade humana dos trabalhadores. Caracterizada tal situação, é devida indenização pelo dano moral coletivo causado, que deve ser
suficiente, sobretudo, para punir a conduta (função
punitiva) e para desestimular os infratores (função
pedagógica específica) e a sociedade (função pedagógica genérica) a incorrerem em tal prática, mas
também para proporcionar, na medida do possível,
a reparação dos bens lesados, como preceitua o art.
13 da Lei 7.347/85. Assim, tendo em vista a amplitude das lesões e suas repercussões, razoável a redução do quantum indenizatório para R$ 200.000,00
(duzentos mil reais). Recurso ordinário do Sr. Alessandro Martins não admitido, por deserto. Recurso
ordinário da Euromar conhecido e, no mérito, parcialmente provido.
(TRT-16 772200801616005 MA 00772-2008-01616-00-5, Relator: JOSÉ EVANDRO DE SOUZA, Data
de Julgamento: 13/04/2011, Data de Publicação:
26/04/2011)
Por fim, ela destaca a gestão pelo medo, na qual os trabalhadores são constantemente ameaçados de demissão caso não
cumpram as exigências da empresa e não alcancem as metas estipuladas.Diante de todo o exposto, fica clara a diferença entre os
institutos e o motivo pelo qual o assédio moral organizacional merece uma atenção maior no nosso ordenamento jurídico, uma vez
que com a globalização e o desenvolvimento econômico do Brasil
as empresas tendem a adotar medidas de gestão na qual os trabalhadores são expostos constantemente a um ambiente de tra-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
balho estressante e com metas de produção elevadas para que as
empresas possam se manter lucrativas.
Além do que, merece uma observação maior pois na maioria dos casos o assédio moral organizacional se encontra disfarçado de uma política de incentivos quando na verdade os trabalhadores estão sendo constantemente lesados nos seus direitos da
personalidade bem como na sua dignidade humana, tendo consequências negativas tanto para sua integridade física como mental.
3.2.3 Limites do poder diretivo do empregador e o
assédio moral organizacional
Levando em consideração que o assédio moral organizacional se configura com quando é verificado que o modelo de gestão adotado pela empresa gera um ambiente de trabalho hostil,
colocando os trabalhadores em situações estressantes trazendo
riscos para saúde física e mental, deve-se traçar um critério objetivo para deixar claro o momento em que o uso do poder diretivo do
empregador gera esta modalidade de assédio.
Como visto no
capítulo anterior, o poder diretivo do empregador deve ser exercido de forma responsável, coerente e transparente para que assim o
empregador tenha legitimidade para exercê-lo. Acontece que, em
alguns casos, o empregador utiliza-se do seu poder diretivo para
orientar metas, objetivos e condutas que extrapolam o bom senso,
além do que utiliza-se deste poder para punir os trabalhadores de
forma pejorativa e humilhante. Assim a falta de uma previsão legal específica que determine o limite do uso do poder diretivo cria
dificuldades para enxergar a configuração do instituto do assédio
moral organizacional de forma clara.
Portanto, é necessário fazer uma análise das legislações
que visam uma proteção específica aos direitos dos trabalhadores
e também dos direitos da personalidade para que se possa determinar até que ponto o empregador pode se valer do seu poder di-
Capa
Sumário
387
retivo para orientar, organizar e punir os trabalhadores.
A Constituição Federal de 1988 veio com o objetivo de trazer proteção e garantir a dignidade às pessoas. Em seu inciso III
do artigo 5º, afirma que “ninguém será submetido à tortura nem
a tratamento desumano ou degradante”. Frise-se ainda, que está
previsto na Constituição a “igualdade de todos perante a lei e da
inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”. Por consequência, pode-se afirmar que o
poder diretivo do empregador esbarra na Lei Maior não podendo
ultrapassar as garantias apresentadas por ela.
Importante destacar também, que outros parâmetros podem ser utilizados para limitar o poder diretivo e disciplinar do
empregador, como a doutrina e a própria jurisprudência, no entanto, fica claro que os limites estão sempre relacionados aos direitos da personalidade do empregados conforme entendimento
de Eugênio Hainzenreder Júnior (2009, p. 89):
A subordinação jurídica oriunda da relação laboral
não autoriza o empregador a extrapolar as prerrogativas de controle, fiscalização e direção adentrando
na esfera pessoal do empregado. O exercício do poder diretivo está relacionado tão somente ao bom
desenvolvimento e a segurança da atividade empresarial. Por essa razão, pode-se afirmar que a direção
empresarial será limitada pelo próprio princípio da
dignidade da pessoa humana, pelos direitos da personalidade do empregado, ainda que no ambiente
do trabalho, pois são indissociáveis da pessoa do
trabalhador. Tal conclusão, ainda que não definitiva, naturalmente, comporta controvérsias em situações consideradas “cinzentas” em que se verifica
uma colisão de direitos e conflito de interesses entre
empregado e empregador.
Da mesma forma Alice Monteiro de Barros(2009, p. 585)
preceitua:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Cumpre ressaltar que as ordens emitidas por quem
não está legitimado a fazê-lo, as ordens ilícitas ou
capazes de lesar direitos à integridade física ou moral do empregado poderão ser desobedecidas. Logo,
não está o empregado obrigado a acatar ordens que
lhe exijam uma conduta ilegal (prática de um crime).
Aliás, ele tem até mesmo o dever de descumprir a
determinação, sob pena de incorrer em sanção penal. Também não está obrigado a obedecer ordens
que lhe acarretem e a outrem perigo à vida, como o
piloto de aeronave que não decola por dificuldades
meteorológicas, ou as que exponham a situações indignas, vexatórias ou atentatórias à sua dignidade
ou ao seu prestígio profissional. Nesses casos justifica-se, respectivamente, a desobediência jurídico-penal, a “desobediência técnica” e a desobediência
civil ou extra laboral.
Além dos direitos relativos à personalidade e a dignidade
humana, a Constituição prevê outros limites ao poder diretivo
sempre que ele for de encontro aos Valores Sociais do Trabalho,
Direito à Imagem e a Intimidade dos trabalhadores.Diante do exposto pode-se afirmar que, apesar dos limites não estarem explicitamente em uma legislação específica, o ordenamento jurídico
brasileiro de forma ampla traz a proteção ao trabalhador e ao ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade ou danos a sua
integridade física e moral.Fica evidenciado que o empregador tem
o direito de organizar, fiscalizar, controlar e disciplinar seus subordinados em decorrência do poder diretivo conferido pela legislação. Da mesma forma, os trabalhadores tem obrigação de seguir
as normas da empresa.
No entanto, este poder sofre limitações sempre que enfrenta questões de ordem pública, sejam direitos ou garantias
fundamentais, uma vez que a dignidade da pessoa humana é um
dos pilares de sustentação da Constituição Federal, sendo assim,
reprovável todo e qualquer direito que afronte este fundamento.
Capa
Sumário
389
Qualquer conduta do empregador que ponha seus trabalhadores
em condições desumanas devem ser limitadas pelo ordenamento
jurídico.
4 CONSEQUÊNCIAS DO ASSÉDIO
MORAL ORGANIZACIONAL
Como estudado anteriormente a prática de assédio moral
organizacional tem diversas consequências negativas para a vida
do trabalhador, isso em diversos aspectos, tanto para sua saúde
física e mental como também para sua vida pessoal e seus relacionamentos.Além das consequências vistas anteriormente para
o trabalhador, existem prejuízos para as empresas bem como para
toda a sociedade, visto que os trabalhadores encontram-se na
base da sustentação da economia e quando a base é atingida gera
reflexos para todos que se apóiam nessa estrutura.Desta forma é
necessário traçar as consequências que este mal acarreta para os
trabalhadores, para as empresas e a sociedade.
4.1 CONSEQUÊNCIAS PARA O TRABALHADOR
Quando se trata das consequências do assédio moral organizacional é inevitável fazer uma ligação com as consequências do
assédio moral propriamente dito.Em ambos os institutos o lado
emocional das vítimas fica bastante abalado, além de outras patologias que surgem.Uma das principais consequências do assédio
moral organizacional que pode-se observar é no ambiente de trabalho, que se transforma em um local extremamente hostil, onde
a competitividade é estimulada de maneira sufocante. E devido a
isso, os trabalhadores sofrem reflexos em sua vida pessoal e profissional.
Nos ambientes em que se verifica a presença do assédio
moral organizacional há uma desvalorização dos funcionários, fa-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
zendo com que eles desenvolvam aspectos emocionais negativos,
conforme explica da professora Lis Soboll (2008, p. 150), afirmando que quando o trabalhador não vê seu esforço e dedicação reconhecidos tendem a entrar em uma situação chamada de “solidão alienante”, acontecendo pois, por mais que o trabalhadores
desempenhem suas funções da maneira correta eles nunca conseguem atingir as metas estabelecidas pela empresa.
As vítimas do assédio moral organizacional geralmente sofrem um estresse prolongado, e consequentemente apresentam
alguns distúrbios mentais. Acontece ainda do trabalhador apresentar uma diminuição das suas condições sociais, fazendo com
que tenha dificuldade de se inserir no mercado de trabalho novamente e em casos mais graves fique em uma situação de desemprego permanente.Nas pesquisas apresentadas por Hirigoyen, as
vítimas, na maioria das vezes, saem do emprego em um estado tão
desgastado que suas condições físicas e psicológicas a impedem
de conseguir um novo emprego.
Lis Andréa Soboll (2008, p. 176) afirma que uma das consequências mais graves do assédio moral organizacional é o chamado Ciclo de Ameaças de Aborrecimento, que ocorre quando com
trabalhadores que ficam doentes e não podem comparecer ao
ambiente de trabalho, sendo considerados “os fracos da empresa”
apenas por não demonstrarem o rendimento esperado. Dessa forma, ficar doente transforma-se em um fator de tensão constante,
pois caso isso ocorra existe a possibilidade do trabalhador perder
gratificações além de que sofre constantemente com o medo de
ser demitido. Desta maneira, a doença piora e o empregado tende
entrar em um estado de sofrimento constante.
Sobre isso asseverou a professora Margarida BARRETO(2010) que:
Frequentemente os trabalhadores adoecidos são
responsabilizados pela queda da produção, acidentes e doenças, desqualificação profissional, demis-
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Sumário
391
são e consequente desemprego. São atitudes como
estas que reforçam o medo individual ao mesmo
tempo em que aumenta a submissão coletiva construída e alicerçada no medo. Por medo, passam a
produzir acima de suas forças, ocultando suas queixas e evitando, simultaneamente, serem humilhados/as e demiti/os.
Além consequências já citadas, os trabalhadores vítimas
de assédio moral tendem a apresentar um comportamento mais
agressivo dentro do ambiente familiar, alimentando uma depressão que faz com que ele se isole e se afaste das pessoas de sua
família.Segundo Fiorelli, Fiorelli e Malhadas Júnior (2007, p. 145)
a pessoa assediada enfrenta diversas situações humilhantes e
angustiantes que são chamadas de “mutilação psíquica”, e essa
mutilação atinge a capacidade de pensar, a visão de mundo, as
emoções e as percepções das vítimas.Jorge Luiz de Oliveira da Silva (2005, p. 53) também afirma que:
O processo de assédio moral atinge frontalmente a
dignidade da vítima. Para cumprir sua finalidade,
o assédio moral provoca graves consequências em
duas áreas especificas em relação à vítima: saúde
e patrimônio. Deste binômio de danos, surge um
terceiro, que pode derivar de um ou de outro ou
mesmo de ambos, quer seja o dano provocado pelo
processo psicoterrorista às relações interpessoais
da vítima, em especial no que se relaciona à família
e ao convívio social. Aí não estão incluídos os danos
às relações interpessoais no trabalho, pois estes já
estão implícitos na própria dinâmica do fenômeno.
Nesse sentido, as consequências do assédio moral organizacional não se verifica apenas em prejuízos materiais como a
perda do emprego ou perda de gratificações ou bônus mas também traz prejuízos no lado psíquico e moral dos trabalhadores.
Com relação a saúde do trabalhador, alguns dos sintomas verifica-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dos nas vítimas de assédio moral organizacional são o estresse e a
ansiedade, a depressão, distúrbios psicossomáticos.Pode-se afirmar, em resumo, que o assédio moral organizacional traz prejuízos
inestimáveis para a saúde do trabalhador, tanto no aspecto físico
como mental, dessa forma as vítimas tendem a ter um comportamento depressivo que levam a crises profissionais e familiares,
com a redução a longo prazo da sua produtividade e isolamento
das pessoas devido ao estresse prolongado e baixa na sua alto-estima.
Além de todas as consequências expostas para os trabalhadores, é fato que tanto a empresa como a sociedade no geral perde com o assédio moral organizacional. Para a empresa o assédio
moral ocasiona em prejuízos econômicos, tendo sua lucratividade
afetada pela falta e abstenções dos trabalhadores, alta rotatividade de mão-de-obra, uma vez que aqueles que não se encaixam no
modelo de gestão empresarial adotado pela empresa são demitidos ou levados a pedir demissão, por fim ainda acarreta prejuízos
com as rescisões contratuais e todas as verbas resilitórias devidas
aos trabalhadores.
Também existem consequências para a sociedade, visto
que aumentam-se os casos de brigas familiares, pois o trabalhador
que sofre assédio moral organizacional tente a ficar mais agressivo e intolerante, descontando muitas vezes suas frustrações nos
outros membros da família. Além disso, a sociedade ainda deve
suportar o trabalhador que foi afastado do emprego através da
previdência social que agora em vez de contribuir passa a receber
benefícios previdenciários (FERREIRA, 2004).
Portanto, pode-se concluir que o assédio moral organizacional é uma prática que merece ser condenada por toda a sociedade bem como por todo o ordenamento jurídico, visto que sua
prática traz malefícios tanto para a saúde física e mental do trabalhador, para as empresas e por fim ainda oferece prejuízos para
toda a coletividade.
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Sumário
393
4.2 FORMAS DE PREVENÇÃO E REPARAÇÃO
DO ASSÉDIO MORAL
Diante de todos os males que a prática do assédio moral
quanto do assédio moral organizacional podem trazer para toda a
sociedade, deve-se estudar formas que ajudem a prevenir e reparar as consequências negativas estas práticas.
4.2.1 Prevenção
O Brasil ainda é um país tímido com relação a uma legislação específica para prevenção do assédio moral. Contudo, alguns
estados e municípios tomaram iniciativas na tentativa de coibir
essa prática no âmbito das relações de trabalho, como é o caso do
estado de Pernambuco, Rio de Janeiro e o estado de São Paulo.
No XXXVI encontro da ANPAD em 2012, Thiago Soares Nunes
e Suzana da Rosa Tolfo apresentaram uma pesquisa que consistia
no desenvolvimento de uma política anti-assédio moral, atentando desde medidas educacionais à criação de códigos de ética e
conduta para serem utilizados dentro das empresas.
Nesse sentido, a prevenção vem a ser uma forma eficiente
de se evitar as consequências advindas da prática do assédio moral, uma vez que os danos podem ser reduzidos consideravelmente se houver uma política de valorização do ser humana bem como
dos trabalhadores em um sentido geral.
Roberto Heloani (2005) traz algumas medidas para que se
possa conter esta onda de violência dentro dos locais de trabalho,
como o estimulo a criação de códigos de organização e conduta
para que se possa dar o direito aos trabalhadores se queixarem de
forma sigilosa sobre abusos que estão sendo cometidos contra os
trabalhadores, no entanto, esta é apenas uma forma de reduzir as
agressões e amenizar o problema, mas não para colocar um fim.
Desta forma, expuseram também medidas divulgadas por
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
(EINARSEN; HOEL, 2008) em que elencaram alguns métodos eficazes para prevenção do assédio moral, listando-os da seguinte
forma:
•
Criação de um clima social com uma atmosfera
aberta e respeitosa, com tolerância a diversidade, e onde a existência de frustração e atrito é
aceita, mas também propriamente administrada;
•
Garantia que os estilos de liderança e práticas
administrativas na organização são aplicados
a todos os funcionários de forma igual, garantindo tratamento justo e com respeito, e que a
sensibilidade para necessidades pessoais e vulnerabilidades é levada em conta;
•
Garantia que os gestores têm treinamento e
capacidade necessárias para administrar conflitos;
•
Construção de uma organização com metas, regras e responsabilidades claras e nítidas,e com
uma forte ética de trabalho;
•
Criação e manutenção de uma cultura organizacional onde o assédio moral e os maus tratos
aos funcionários não são tolerados.
Além da criação de dispositivos legais que visem diminuir
os casos de assédio, é importante também criar uma política dentro das empresas que coíbam os fatores que possam provocar
estes comportamentos, bem como aumentar a divulgação das
consequências de tais atitudes para os agressores (SALIN, 2008).
Pode-se concluir que as consequências negativas da prática do
assédio moral podem ser e reduzidas de maneira significativa ou
até mesmo extinguidas se houver uma política que conscientize as
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Sumário
395
pessoas dos males causados por esta forma de gestão, além disso é necessário informar os trabalhadores que muitas vezes não
sabem que estão sendo vítimas de assédio. Devendo ser criado algum mecanismo que garanta aos trabalhadores a possibilidade de
relatar as violências sofridas.
Assim, na medida em que os trabalhadores estiverem informados sobre estas práticas, haverá uma diminuição dos abusos
cometidos pelos empregadores.No caso do assédio moral organizacional esta prevenção ainda se dá de forma mais difícil uma vez
que a violência está enraizada na cultura da empresa. No entanto,
é importante ser estimulada uma revisão de valores, implicando
na construção de uma nova mentalidade de trabalho.
4.2.2 Reparação
Na maioria dos casos, é muito difícil para as vítimas se defenderem das diversas agressões próprias do assédio moral, isto
porque, sempre se encontra em número ou posição desprivilegiada em relação ao assediador. No entanto, ao perceber que está
sendo vítima de assédio moral ou verificar que o modelo de gestão
adotado pela empresa contamina o ambiente de trabalho, tornando-o estressante e insuportável, deve em primeiro lugar buscar
ajuda dentro da empresa procurando o setor de Recursos Humanos com o objetivo de solucionar o caso de maneira amigável.
Caso não tenha sua pretensão atendida, deve o trabalhador buscar ajuda através dos Órgãos Jurisdicionais para solucionar os conflitos dentro do ambiente de trabalho ou ainda buscar
uma reparação pelos danos sofridos. Ocorre que o Poder Judiciário brasileiro deixa a desejar com relação a celeridade processual
fazendo com que o trabalhador espere meses ou até mesmo anos
para resolver seu problema, desta forma ele deve sempre que possível procurar uma opção alternativa para solução de conflitos.
São diversas as formas em que o trabalhador pode buscar
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
a resolução deste litígio, entre elas, a mediação, conciliação e arbitragem. Marie-France Hirigoyen estimula sempre o uso da mediação, visto que é um procedimento simples, rápido e que preserva
a dignidade e saúde do empregado.É importante destacar que a
Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações
relativa à dano moral, da mesma forma que tem competência para
julgar qualquer ação em que esteja envolvido algum descumprimento de normas trabalhistas relativa à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores, tal entendimento se encontra nos seguintes
dispositivos: súmula 736 do STF, no artigo 114 VI da CF/88 e na súmula 392 do TST.
Diante do exposto, todos os trabalhadores que se sentirem
ofendidos por situações ocorridas dentro do ambiente de trabalho
e estas se caracterizarem como assédio moral ou assédio moral organizacional devem em primeiro lugar tentar uma solução amigável para resolver esta situação com o objetivo de melhorar seu ambiente de trabalho e de seus colegas. Caso não ocorra a resolução
amigável, os trabalhadores possuem o direito de reclamar junto a
Justiça do Trabalho, requerendo além de todas as verbas rescisórias, caso haja o afastamento da empresa, o pedido de dano material e moral, sendo calculado levando em consideração toda dor
sofrida pela vítima e a extensão das consequências que o assédio
moral trouxe para sua vida.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou caracterizar o assédio moral organizacional como uma forma de agressão ao ambiente de
trabalho e consequentemente aos trabalhadores.Por isso, se fez
necessário estudar os conceitos relativos ao assédio moral propriamente dito para embasar as características que se aplicam ao
assédio moral organizacional com o objetivo de diferenciar ambos
os institutos.
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Sumário
397
Além disso, procurou-se identificar os dispositivos presentes na legislação brasileira que protegem os trabalhadores bem
como os entendimentos jurisprudenciais que fornecem uma base
para os limites do poder diretivo do empregador.Assim, considerando que o assédio moral organizacional é uma prática adotada
por diversas empresas, que tomam este modelo de gestão para cobrar desempenho e resultados dos trabalhadores, através do estabelecimento de metas abusivas e punições caso estas metas não
sejam alcançadas. Este modelo de gestão cria um ambiente de
trabalho altamente desgastante para os trabalhadores, atingindo
tanto sua saúde como sua dignidade. O ambiente estressante causado pelo assédio moral e assédio moral organizacional possuem
diversas consequências negativas para vida do trabalhador, bem
como para as empresas e a sociedade.No que tange a saúde do
trabalhador, são diversos os resultados do assédio moral, sendo
de desde dores de cabeça e até depressão devido as humilhações
sofridas pelos trabalhadores, gerando um ambiente de instabilidade tanto no ambiente de trabalho como fora deste, atingindo a
vida íntima e pessoal do trabalhador.
Todos os efeitos do assédio moral organizacional, na maioria dos casos, são decorrentes do abuso do poder diretivo do empregador, que se vale desta prerrogativa para aumentar a produtividade da empresa e consequentemente o seu lucro.Desta forma,
o assédio moral organizacional deve ser uma prática completamente repelida dentro das organizações, visto que os males oriundas desta forma de gestão ocasiona prejuízos inestimáveis para os
trabalhadores, devendo ser criada uma política anti-assédio para
que os agressores sejam realmente punidos evitando assim novos
casos.
Esta política anti-assédio se faz necessário também para
informar os trabalhadores sobre como funciona o assédio moral
organizacional visto que muitos deles não sabem que estão sendo
vítimas de um modelo de gestão que ataca diretamente sua digni-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dade.Por fim, pode-se concluir que o poder diretivo do empregador deverá sempre respeitar os direitos e garantias fundamentais
dos trabalhadores, devendo sempre zelar por um ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade e mecanismos que agridam
a saúde física e mental dos mesmos.
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RESPONSABILIDADE CIVIL NO
ABANDONO AFETIVO PARENTAL
Ísis Nunes Siqueira MARQUES104
Maria Cristina SANTIAGO105
RESUMO: A partir da Constitucionalização do Direito Civil, programou-se a sua submissão aos princípios constitucionais, valorizando, fundamentalmente, a figura do indivíduo. Nesse momento, a
família é vista com o enfoque na Constituição e nos princípios da
dignidade da pessoa humana, paternidade responsável, proteção
integral à crianças e adolescentes e, da afetividade. Ademais, a
responsabilidade parental deverá está relacionada a esses princípios, de modo a assegurar o desenvolvimento dos filhos em um
ambiente familiar saudável. Em razão disso, a responsabilidade
civil decorrente do abandono afetivo vem expor a preocupação jurídico-doutrinária em tutelar aquele que se encontra em situação
de vulnerabilidade. O objetivo principal é analisar e comprovar o
dano à integridade moraldo filho em razão do abandono afetivo
parental, bem como, a possibilidade de indenização. Logo, deverá ser observada a criança como titular de direitos fundamentais
previstos na Constituição Federal, sendo merecedora de cuidados
por parte da família e do Estado. O procedimento metodológico
104
Graduanda no Curso de Bacharel em Direito do Centro Universitário de João
Pessoa – UNIPÊ, [email protected], Rua Maria Rosa Padilha, 196, Aeroclube, João Pessoa-PB.
105
Advogada, mestra em Direito Econômico pelo Programa de Pós-Graduação do
Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, , graduada em Direito
pela Universidade Federal da Paraíba(1992). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de
Família e Sucessões –IBDFAN, professora da Universidade da Paraíba – UFPB e do Centro
Universitário de João Pessoa – Unipê. Professora Orientadora.
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
trata de pesquisa bibliográfica e de análises jurisprudenciais. Com
efeito, a afetividade, pautada no princípio da dignidade da pessoa
humana, colabora para o desenvolvimento psíquico-social da pessoa. Destarte, a criança e o adolescente têm a sua integridade física, moral e psíquica protegidas de qualquer lesão a sua dignidade,
caso seja violado o direito de personalidade, será cabível o dano
moral, atenuando, em parte, o prejuízo. Portanto, os pais devem
prestar assistência moral, além da material, visto que a ausência
de afeto dos pais na formação dos filhos poderá gerar problemas
sociais e psíquicos. A análise do tema não se trata de quantificar o
amor, nem tão pouco compensar a dor daquele que foi vítima do
abandono. O aspecto relevante é alcançar a função punitiva com o
objetivo de conscientizar o ato como grave, que deverá ser evitado
e cessado.
Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono Afetivo. Dignidade da Pessoa Humana.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 fazsurgir um novo sistema
de interpretação do Direito Civil, programado na submissão aos
princípios constitucionais. No tocante ao direito de família, foi a
Constituição que mais interveio nas relações familiares, proclamando a família como a base da sociedade. Além de, garantir à
criança, ao adolescente e ao jovem, o direito à uma vida digna, ao
respeito e à convivência familiar.A responsabilidade parental deve
está relacionada a esses princípios de modo a assegurar o desenvolvimento dos filhos em um ambiente familiar saudável. Assim
sendo, o desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver o indivíduo em toda a sua dimensão ontológica e não
como simples e abstrato sujeito de relação jurídica.
Capa
Sumário
405
A evolução histórica da instituição familiar será exposta
com o intuito de observar o processo de transformação de unidade econômica para uma compreensão afetiva. A partir daí,o conceito de família será analisado em face da constitucionalização do
direito civil, levando em consideração os princípios da dignidade
humana, da paternidade responsável,o da solidariedade familiar,
o da proteção integral da criança e do adolescente e o da afetividade, como fundamentos para a defesa das questões relacionadas
ao abandono afetivo. Assim sendo, são demonstradas as alterações na entidade familiar, rompendo com o modelo patriarcal e
patrimonial, cedendo espaço para as relações familiares permeadas por laços afetivos. Por conseguinte, é apontada a responsabilidade civil dos paispelo abandono afetivo, demonstrando tal
conduta como ato ilícito que poderá gerar um dano àquele que se
encontra em condição de vulnerabilidade.
Em razão disso, a responsabilidade civil decorrente do
abandono afetivo vem expor a preocupação jurídico-doutrinária
em tutelar aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade.
E em seguida, analisar e comprovar o dano à integridade moral,
sofrido pelo filho, vítima do abandono afetivo, além de, demonstrar a possibilidade de reparação por via indenizatória.
Por fim, o tema abordado é situado na legislação vigente
e são apontados posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais
em relação à concessão de indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo parental.A doutrina e jurisprudência divergem quanto ao assunto, porém tem se tornando cada vez
mais comum o reconhecimento de tais ações nos tribunais.
2 FÁMÍLIA
2.1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA
A compreensão da família altera-se ao longo dos tempos,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
posto que, entre vários organismos sociais e jurídicos,seu conceito
e extensão foram os que mais apresentaram mutações, partindo
de um caráter meramente reprodutivo e patrimonial para, posteriormente, caminhar em direção as relações sociais de afetividade.
Na Antiguidade o que unia os membros da família era a religião, já que os laços afetivos, embora pudessem existir, não era
o elo entre eles, os objetivos eram,apenas, procriar e conservar os
bens.Segundo Venosa106em Roma, o poder do pater era exercido
de forma absoluta sobre a mulher e filhos e, o tratamento desigual
entre os filhos se observava no momento em que nenhum patrimônio legal, poderia serlegado para a filha, mesmo que, ele nutrisse um sentimento por ela.
Com a queda do Império Romano houve um deslocamento do poder de Roma para a Igreja Católica Romana que, desenvolveu o Direito Canônico, influenciando o direito de família.De
acordo com Caio Mário da Silva Pereira107, a partir desse momento
a Igreja passou a empenhar-se em combater tudo o que pudesse
desagregar o seio familiar:
Posteriormente, com a Reforma protestante, a Igreja Católica deixa de ser representante exclusiva dos princípios cristãos e o
Estado passa a interferir nas relações familiares. Conforme observa Maria Berenice Dias108, ao longo da história tanto o Estado como
a Igreja buscaram meios para se apropriar do fenômeno familiar, a
igreja atribuiu a família a função reprodutivae o Estado, a institucionalizou. Nesse momento, algumas funções da família são modificadas, pois os indivíduos passam a ter assistência e proteção
do Estado.
106
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. – 2. Ed. – São Paulo:
Atlas, 2002.
107
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família.
15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 3v.
108
DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ed. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2009.
Capa
Sumário
407
Eliane Goulart Martins Carossi109 explica o período da modernidade pela a forma de sociedade marcada pela Revolução Industrial no final do século XVIII. A partir daí o panorama se transforma, os homens vão trabalhar nas fábricas e as mulheres vão para o
mercado de trabalho. Os valores morais e afetivos são inseridos no
seio familiar, pela necessidade de assistência mútua.
O pós-modernismo surge com a ruptura da era moderna,
no final do século XIX. A família da pós-modernidade está baseada
no afeto entre seus membros, e no dever de cuidado. Na lição de
Pedro Belmiro Welter110:
A partir desse momento histórico a família se abre
para configurar-se em um mundo cruel, uma forma
de abrigo, um pouco de calor humano, um lar onde
entre seus membros se pratique a solidariedade, a
fraternidade, e acima de tudo, os laços de afeto e
amor. Esse é o sentido da família na atualidade.
Na mesma linha de argumentos Paulo Lôbo111 afirma:
A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de
liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de
vida.
O afeto é o elemento que caracteriza a família na concepção pós-moderna, tido como princípio fomentador do elo entre
os seus membros. Na medida em que, assegura uma vida digna
e colabora para o desenvolvimento saudável psíquico e moral dos
indivíduos.
109
CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no
século XXI. Revista Faculdade de Direito, Caxias do Sul. v. 12, p. 55, 2003.
110
WELTER, Pedro Belmiro. Igualdade entre filiação biológica e socioafetiva. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 31.
111
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
2.2 FAMÍLIA: EM BUSCA DE UMA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL
O conceito de famíliaé relativo e vem sofrendoalterações
constantemente, impondo, ao analisá-lo,observar o momento histórico e o sistema normativo em vigor. Com base nos entendimentos de Perlingieri112, conceitua-se que:
a família representa uma formação social, um lugar-comunidade, destinado à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes, de
modo que exprime uma função instrumental para
uma melhor realização dos interesses afetivos e
existenciais de seus componentes.
Perlingieri ressalta ainda que, a família é um lugar destinado à formação e desenvolvimentoda personalidade de indivíduos.
Considerando que a família é o ponto de origem das pessoas, os
pais devem educar e prestar assistência afetiva aos seus filhos de
modo a assegurar o seu pleno desenvolvimento.
Por sua vez Paulo Lôbo113 indicar que:
Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de
duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos.
Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou
existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos
de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental
(pais e filhos), grupos secundários (outros parentes
e afins).
Portanto, corroborando com os ensinamentos de Paulo
Lôbo, a família consiste na organização social formada a partir de
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2002.
112
113
Capa
LÔBO, P.Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2.
Sumário
409
laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos. Assim, apesar das várias
formas assumidas e das transformações que ocorreram ao longo
da evolução dos povos, a família é responsável pela humanização
e socialização das pessoas, bem com uma condição ao desenvolvimento e realização pessoal do ser humano.
2.3 PERSPECTIVA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
A compreensão da família altera-se ao longo dos tempos. O
pátrio poder foi substituído pelo poder familiar, desse modo, passa a existir igualdade entre os descendentes e o indivíduo passa a
ser prioridade em detrimento do patrimônio. Com efeito, os valores tais como o afeto, dignidade e solidariedade deixam de lado
a concepção da família como um núcleo econômico, passando as
relações familiares a serem firmadasem função de um elo afetivo,
o que tem colaborado para o desenvolvimento psíquico-social da
pessoa.
A visão patriarcal e exclusivamente matrimonializada adotada no Brasil durante a colônia, império e boa parte do vigente
período republicano entrou em crise, o que resultou em sua derrocada no plano jurídico pelos valores introduzidos pela festejada
Constituição de 1988(LÔBO, 2008, p. 1). Nesse momento, a sociedade brasileira se defrontou com um novo modelo de conjunto familiar, que possui como elemento caracterizador o afeto.
Destaca-se que o modelo de família constitucionalizada
contemporânea se contrapõe ao modelo do Código Civil anterior.
O princípio da dignidade da pessoa humana, o consenso e a solidariedade são os fundamentos da mudança de paradigma que
inspiram o marco regulatório estampado no Capítulo VII da Constituição Federal, que diz respeito à Família, Criança, Adolescente,
Jovem e Idoso.
O Estado social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas.O seu aspecto
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo alcança a família, com o intuito de promover a dignidade humana no ambiente familiar. No Brasil, desde a
primeira Constituição social, em 1934, até a Constituição de 1988,
a família é destinatária de normas que assegurem a liberdade e a
igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade.
Logo, a Constituição do Estado social de 1988 foi a que mais
interveio nas relações familiares e a que mais as libertou. Paulo Lôbo114menciona que o sentido de intervenção que o Estado assumiu
foi de proteção do espaço familiar.Ademais,a Constituição de 1988
proclama a família como base da sociedade.
As transformações promovidas pela Constituição nas relações familiares e, consequentemente, no direito de família, puseram o Brasil na dianteira da refundação dos novos institutos jurídicos.
3 PRINCÍPIOS APLICADOS AO DIREITO DE FAMÍLIA
Corroborando, a visão referida de Paulo Lôbo, o processo
da constitucionalizaçãodo Direito Civil tem a finalidade de submeter o direito positivo aos fundamentos de constitucionalidade
estabelecidos, assim impõe a releitura conceitual, com base nos
ditames constitucionais. Sendo assim, o jurista deve interpretar as
instituições de Direito Civil com base nos princípios e regras constitucionais.
Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos.
Estes últimos podem derivar da interpretação do sistema constitucional adotado ou podem brotar da interpretação harmonizadora
de normas constitucionais específicas (por exemplo, o princípio da
afetividade).
114
Capa
LÔBO, Paulo. Direito civil : famílias. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 2011, p. 35;
Sumário
411
3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Um dos mais importantes reflexos ocasionados pela constitucionalização do Direito Civil consiste na proclamação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado pelo artigo 1º, III,
da Constituição Federal115, o qual se constitui em princípio jurídico
fundamental integrado no direito positivo vigente.Com efeito, o
reconhecimento da dignidade coloca o indivíduo no centro do ordenamento, em detrimento do patrimônio e, em torno das normas
e princípios jurídicos.
A dignidade humana foi lançada na Declaração Universal
da ONU, em 1948, em seu artigo 1º, segundo o qual:“todos os seres
humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados
de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”116.Vê-se que a dignidade, como qualidade intrínseca do ser humano, é irrenunciável e inalienável.
Na esteira do que estabelece o art. 227 da Constituição Fe117
deral , é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à
criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
115
CF/88 - Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana;
116
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações
Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: < http://www.humanrights.com/pt/
what-are-human-rights/universal-declaration-of-human-rights/articles-01-10.html
>
Acesso em: 20 out. 2014.
117
CF/88 - Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito,
à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010);
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão.
Tal é a importância do princípio que o Estatuto da Criança e
do Adolescente transcreveu em seu texto legal:
Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos
na Constituição e nas leis.
Denota-se que esse princípio garante direitos e deveres fundamentais, com o objetivo de assegurar condições saudáveis para
o desenvolvimento do indivíduo. Se as condições mínimas para
uma existência não forem asseguradas e os direitos fundamentais
não forem reconhecidos, não haverá espaço para a dignidade da
pessoa humana.
É com base nesse princípio fundamental, em combinação
com os demais princípios constitucionais, que se fundamenta a
reparação civil dos pais em face dos filhos, ocasionada pelo abandono afetivo.
3.2 PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL
O artigo 226, § 7º da Constituição Federal enuncia:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial
proteção do Estado.
[...]§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da
pessoa humana e da paternidade responsável, o
planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais
e científicos para o exercício desse direito, vedada
qualquer forma coercitiva por parte de instituições
oficiais ou privadas.
Capa
Sumário
413
A responsabilidade materna ou paterna não se esgota no
planejamento familiar, é necessário proporcionar uma vida digna
para os filhos, bem como cumprir além das obrigações materiais,
as morais, a fim de assegurar um desenvolvimento saudável. Esse
princípio tem o objetivo de conscientizar os pais à respeito da responsabilidade do planejamento familiar, portanto, no momento
em que decidem ter um filho devem dispor do suporte material,
moral, espiritual e afetivo, de modo que priorizem o bem-estar físico e psíquico.
3.3 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR
O princípio jurídico da solidariedade resulta da superação
do individualismo jurídico, que superou o modo de pensar e viver
da sociedade. Marcando, assim, os primeiros séculos da modernidade, com reflexos até a atualidade.
A matrizdo princípio da solidariedade constitui um objetivo
fundamental da República Federativa do Brasil, elencado no artigo
3º, inciso I, da Constituição Federal, trata que elenca “Constituem
objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”.
No capítulo destinado à família na Carta Magna, o princípio
é revelado incisivamente no dever imposto, à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro), de
proteção ao grupo familiar, à criança e ao adolescente.
A solidariedade em relação aos filhos diz respeito a necessidade desse indivíduo de ser cuidado até atingir a idade adulta,
isto é, de ser instruído e educado para sua plena formação social.
Por isso, é importante que, no ambiente familiar os pais prestem a
assistência material e moral, colaborando, assim, para o desenvolvimento e bem estar daqueles que,ainda, necessitam de cuidados.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
3.4 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTENGRAL DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
O artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente traz
prevista a doutrina da proteção integral à criançae ao adolescente,
amparando-se no artigo 227 da Constituição Federal, o qual reza:
118
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado
assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta
prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação,
à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura,
à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência
familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de
toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Assim sendo, é de responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e da família, fornecer
essa atenção especialàs crianças, adolescentes ejovens, devido a
sua condição de vulnerabilidade. Ademais, é necessário garantir
esses direitos elencados no artigo mencionado, com o objetivo de
desenvolver as habilidades cognitivas, bem como a sua formação
profissional, assegurando, também, a formação moral.
Como se evidencia no princípio da proteção integral, a família exerce um papel fundamental para efetivação dos direitos e
garantias. O fato da criança e do adolescente estarem imaturos,
não interfere na condição jurídica de exercerem os seus direitos.
Por isso, devido a condição de vulnerável, é preciso um indivíduo
que os proteja, sendo imprescindível que os pais forneçam toda a
assistência necessária para o pleno desenvolvimento da criança e
do adolescente.
118
LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e
do Adolescente e dá outras providências.
Capa
Sumário
415
3.5 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE
Surge dos desdobramentos do princípio da dignidade da
pessoa humana.Percebe-se que não há de se falar dos direitos fundamentais sem extrair o princípio da afetividade, na medida em
que a orientação jurídica desenvolve-se no sentido de garantir ao
indivíduo uma vida digna, atribui valor jurídico ao afeto, sobretudo nas relações entre pais e filhos.
Para tanto, é o princípio da afetividade que confere a base
material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do
já citado artigo 227 da Constituição Federal. Logo, a convivência
familiar é um direito da criança e do adolescente, bem como dever
dos pais com sua prole, tendo em vista a paternidade e maternidade reciprocamente responsável. Os pais devem respeitar o princípio da afetividade, que concretiza o melhor interesse dos menores, na medida em que, o afeto é imprescindível na sua formação e
desenvolvimento saudável.
Nessa linha de raciocínio,Paulo Lôbo elucida que119:
A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas
sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como
objeto de suas ciências, entrou nascogitações dos
juristas, que buscam explicar as relações familiares
contemporâneas.
À vista disso, percebe-se que o elemento nuclear da família
constitucionalizada é a afetividade, assegurando que a atenção
e o cuidado especiais a que fazem jus a criança e o adolescente
devem ser iniciados no núcleo familiar. Ademais, importa destacar
que, a afetividade como princípio jurídico, não se confunde com o
afeto, como fato psicológico, uma vez que a afetividade é imposta
aos pais em relação aos filhos, ainda que exista desamor ou desafeição. Contudo, o princípio da afetividade apenas deixará de in119
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
cidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do
poder familiar.
4 RESPONSABILLIDADE CIVIL
A responsabilidade civil se assenta, segundo a teoria clássica enunciada por Carlos Roberto Gonçalves120, em três pressupostos: o dano, a culpa do autor e a relação de causalidade.O instituto da responsabilidade civil é norteado pela concepção de que
sempre que alguém causa um dano a outrem, deve ser compelido
a restituir o lesado ao status quo ante.Ou seja, o objetivo da obrigação de indenizar é colocar a vítima na situação em que estaria sem
a ocorrência do fato danoso. Contudo, em relação ao dano extrapatrimonial, a condenação não é de caráter indenizatório, mas sim
compensatório, visando compensar ou dirimir de alguma maneira
o dano, ou, até mesmo, evitar que o ofensor ou outros indivíduos
venham a cometer o ato ilícito.
4.1 CLASSIFICAÇÕES
4.1.1 Responsabilidade Civil Contratual e Extracontratual
A depender da natureza da norma jurídica violada pelo
agente causador do dano, responsabilidade civil pode ser subdividida, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves em: contratual
e extracontratual. Quando a responsabilidade não deriva de contrato, diz que ela é extracontratual, neste caso o agente inflige o
dever legal. Por outro lado, para caracterizar a responsabilidade
contratual, faz-se necessário que, a vítima e o autor já tenham se
aproximado e se vinculado para o cumprimento de prestações, ou
seja, houve um prejuízo devido o não cumprimento da obrigação
120
GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009.
Capa
Sumário
417
contratual.
Nessa linha de classificação, a responsabilidade civil dos
pais decorrente do abandono afetivo é a extracontratual, mormente ter seu fundamento no dever legal imposto no Código Civil121,
especificamente nos artigos 186 e 927, os quais elencam que:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito.
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187),
causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o
dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Assim sendo, aquele que cometer ato ilícito e causar dano a
outrem, fica obrigado a reparar, independente de culpa ou, ainda,
quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar riscos aos direitos de outrem. Portanto, os paisque abandonarem afetivamente seus filhos, incorrem na prática de ato ilícito devido ao
fato de estarem sendo omissos, agindo de maneira negligente,uma
vez que o ato implica pôr em riscos os direitos fundamentais da
criança e do adolescente, ocasionando o dano moral e psíquico.
Os pais estarão sujeitos a reparar o dano causado, com
base no especificado em lei, no momento em que foi assegurado
que a criança e o adolescente deverão ser criados sob a garantia
do princípio da dignidade da pessoa humana e, no da afetividade,
que confere a base material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do artigo 227 da Constituição Federal.
121
Vade Mecum / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de
Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – 6.
ed. atual e ampl. – São Paulo: Savaiva, 2008.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
419
4.1.2 Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva
A diferença entre essas espécies de responsabilidade civil
consiste no elemento subjetivo da culpa. Conforme Gonçalves122, a
responsabilidade subjetiva, a culpa ou o dolo do agente é requisito
necessário para configurar o dever de reparar o dano. Por enquanto que a objetiva, é reconhecida, independente de culpa. Basta,
apenas, que haja relação de causalidade entra a ação e o dano.
Para efeito do estudo arespeito da responsabilidade civil
dos pais decorrente do abandono afetivo, interessa a responsabilidade subjetiva, ou seja, a prova de culpa dos agentes é pressuposto necessário do dano indenizável.
4.2 ELEMENTOS
De acordo com Carlos Roberto Gonçalves123, a análise do artigo
186 do Código Civil evidencia quatro elementos essenciais da responsabilidade civil: ação ou omissão; culpa ou dolo do agente; relação de
causalidade; e, o dano experimentado pela vitima.Nesse caso, é necessário identificar os elementos, pois na ausência de um deles, não
há que se falar em dever de reparar, ou seja,para obter a reparação do
dano, a vítima deve provar os pressupostos da responsabilidade Civil.
Inicialmente, para se configurar a responsabilidade civil subjetiva é necessário a existência do ato ilícito, que pressupõe ação ou
omissão, contrário ao ordenamento jurídico. Na esteira do entendimento de Maria Helena Diniz124, vê-se que:
A ação, fato gerador da responsabilidade, poderá
ser ilícita ou lícita. Aresponsabilidadedecorrente122
GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009.
123
GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35.
124
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro–Direito de Família.v.5,26ed.
SãoPaulo:Saraiva,2011, pág. 56.
Capa
Sumário
deatoilícitobaseia-sena
ideiadeculpa,earesponsabilidadesemculpa funda-se no risco, quesevemimpondonaatualidade,principalmenteanteainsuficiênciada culpaparasolucionartodososdanos.
Ocomportamentodoagentepoderáserumacomissãoouumaomissão.Acomissãovemaserapráticadeumatoquenãodeveriaseefetivar,eaomissão,anãoobservânciadeumdeverdeagiroudapráticadecertoatoquedeveriarealizar-se.
Ao se falar de omissão deve-se entender que a pessoa se
omitiu quando tinha a obrigação de agir e não o fez, ocasionando
um dano. Percebe-se que a omissão é relevante, na medida em que,
a lei exige uma conduta do sujeito, e o seu descumprimento poderá
acarretar danos a outrem. É o que acontece no abandono afetivo
parental, devido a uma conduta, omissa dos pais,de não assegurar
aos filhos uma vida digna, com direito ao convívio familiar saudável.
Em relação ao dolo, consiste na vontade de cometer uma
violação de direito e a culpa na falta de diligência. Na visão do doutrinador Carlos Roberto Gonçalves125,o artigo 186 do Código Civil
cogita o dolo no início: “ação ou omissão voluntária”, passando a
referir-se à culpa: “negligência ou imprudência”. Portanto, para
obter a reparação do dano, a vítima deve provar o dolo ou a culpa
stricto sensu do agente.
Quanto ao dano, é o elemento essencial da responsabilidade civil, não havendo que se falar em responsabilidade civil sem
sua comprovação.Esse poderá ser material ou moral, ou seja, sem
repercussão na órbita financeira do ofendido. O artigo 186 do Código Civil menciona que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a
outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.Deste
modo, o dano moral deverá está diretamente relacionado com a
conduta praticada, para repará-lo, visto que, causa lesão psíquica
125
GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit., p. 35.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
à vitima, atingindo os seus direitos da personalidade.
O Nexo de Causalidade é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado.Silvio de
Salvo Venosa126 aduz que:
O que importa é estabelecer em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um
dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre um e outro.
O artigo 927 do Código Civil enuncia:
Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado à repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o
dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Antes mesmo da discussão acerca da conduta do agente
ter sido com dolo ou culpa, cumpre analisar se com sua conduta
ele deu causa ao resultado, dano.O nexo causal nasce em face
da omissão parental e o dano moral ocasionado. Logo, diante
do ato ilícito cometido pelos pais e o direito que foi violado, é
perceptível o dano que poderá gerar em uma criança ou adolescente que, pela sua condição de vulnerável, necessita de um
ambiente familiar solidário, com pais cientes das suas responsabilidades matérias e morais, que possibilitem uma vida digna
aos seus filhos menores, assim protegendo-os e permitindo um
desenvolvimento saudável.
421
5 RESPONSABILIDADE CIVIL NO ABANDONO
AFETIVO PARENTAL
A instituição da família recebe proteção especial da Constituição em seu artigo 226, que dispõe ser “a família, base da sociedade”, com “especial proteção do Estado”, além de ter seus deveres tutelados pelo artigo 227. Sendo a família, a base da sociedade
e essencial para o desenvolvimento do indivíduo, esse instituto
deve ser protegido e preservado com o intuito de que no seio familiar sejam formadaspessoas capazes e equilibradas, que possam
contribuir para uma sociedade mais justa e humanitária.
A dignidade constitui um fator primordialà formação da
personalidade da pessoa, por isso se faz necessária a sua presença no relacionamento paterno-filial. Além de ser um princípio fundamental que deve ser respeitado, pois, pressupõe todas as condições para uma vida saudável e feliz. É com base naquele que o
princípio da afetividade se fundamenta.
Cleber A. Angeluci127afirma que “o afeto é um valor, inerente à formação da dignidade humana, tal como o direito à herança
genética, guardadas as proporções.” Por isso deve ser levado em
consideração nas lides forenses, além de que, o afeto já é qualificado pelo direito brasileiro, como dever jurídico. É nesse sentido
que a jurisprudênciatem acatado a afetividade como conduta exigível dos pais em relação aos filhos, e a sua omissão, acarretará
um dano, que deverá ser indenizado.
5.1 PROTEÇÃO JURÍDICA DO AFETO NAS
RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS
De acordo com Lôbo128, os princípios da responsabilidade
126
VENOSA,Sílvio de Salvo. Direito Civil:responsabilidadecivil. 10ed.SãoPaulo:Atlas,2010, p. 46.
Capa
Sumário
127ANGELUCI,CleberAffonso.Amortempreço?RevistaCEJ,
Brasília,n.35,out;dez,2006, p. 50
128
Lôbo, Paulo.Direito civil : famílias / Paulo Lôbo. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva,
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
civil se aplicam nas relações familiares.Isso se justifica pela previsão do artigo 186 do Código civil que dispõe sobre a prática do ato
ilícito, vejamos:
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito.
Dessa forma, o ato ilícito pode ser caracterizado quando,
por qualquer razão, os pais não convivem, privando o filho da convivência familiar saudável; ou negligenciam os direitos da sua prole, abandonando-os afetivamente.
O artigo 927 do Código Civil elenca que:
Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar
dano a outrem, fica obrigado à repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o
dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar,
por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Portanto, nos casos de abando afetivo parental, o artigo
186 do Código Civil deve ser interpretado de forma cominada com
o art. 927 do Código Civil. Ou seja, aquele que cometer ato ilícito
e assim, causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
fica obrigado a repará-lo. Com base nessa premissa, o abandono
afetivo nada mais é do que o inadimplemento dos deveres jurídicos da paternidade, dessa forma, ficando os pais sujeitos a serem
responsabilizados civilmente.
A privação do cuidado afetuoso obstrui a estruturação saudável da mente de uma criança ao longo do seu desenvolvimento.É
preciso esclarecer que o afeto sob o enfoque jurídico não deve
ser interpretado como sendo apenas o sentimento de amor. A
afetividade, não se confunde com o afeto como fato psicológico,
o conceito abarca, assim, todo o suporte moral que os pais devem alcançar aos filhos, como a real participação em sua criação,
convivência,diálogo, educação, entre outros fatores.
Nesse sentido, a assistência moral se dá no apoio, no cuidado, na participação na vida do filho e no respeito por seus direitos
da personalidade, como o direito de conviver no âmbito da família.
5.2 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS
A responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo
vem expor a preocupação jurídico-doutrinária em tutelar aquele
que se encontra em situação de vulnerabilidade. A interpretação
doutrinária, no que concerne a possibilidade de responsabilização
civil dos genitores, em caso de abandono afetivo dos filhos,é recente e bastantedivergente.
Em seguida, alguns apontamentos de autores que são favoráveis à tese, isto é, os que defendem ser o abandono afetivo
fato apto a ensejar danos de ordem moral passíveis de reparação
pecuniária.
Madaleno129 assevera que:
Diferentemente dos adultos, os menores são incapazes de compreender a imotivada ausência do pai
ou da mãe, fato que pode gerar o direito à reparação
do agravo moral sofrido pela negativa do direito que
tem a criança/adolescente à sadia convivência e referência parental.
Além do direito ao nome paterno, o filho tem a necessidade e o direito, e o pai tem o dever de acolher
social e afetivamente o seu rebento, sendo esse
acolhimento inerente ao desenvolvimento moral e
psíquico de seu descendente. Recusando aos filhos
129
319.
2011.
Capa
423
Sumário
MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense,2008, p.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
esses caracteres indissociáveis de sua estrutura em
formação, age o pai em injustificável ilicitude civil, e
assim gera o dever de indenizar também a dor causada pelas carências, traumas e prejuízos morais
sofridos pelo filho imotivadamente rejeitado pela
desumana segregação do pai.
Na mesma linha de argumentos, Lôbo130 conclui que “o
princípio da paternidade responsável, estabelecido no art. 226 da
Constituição, não se resume ao cumprimento do dever de assistência material, abrangendo também a assistência moral, dever
jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória”.
Por sua vez Nader131 trata que:
Embora haja direito à reparação moral na situação aqui tratada, a questão é bastante complexa e
seriam raros na prática os casos de sucesso em tal
pleito, porquanto o ônus da prova incumbiria ao
ofendido e seria necessária a comprovação do dano
psicológico, da conduta culposa do pai e/ou da mãe
(responsabilidade subjetiva) e, por fim, do nexo de
causalidade, todos de difícil apuração.
Em contrapartida, existe autores que não concordam com a
possibilidade de responsabilização civil no caso de abandono afetivo dos filhosmenores, a exemplo de Carbone132, que pontua:
Na verdade, não existe dano moral nem situação
similar que permita uma penalidade indenizatória
por abandono afetivo. O pai deve cumprir suas responsabilidades financeiras. O pagamento regular da
130
LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.284.
131
NADER, Paulo. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 346.
132
CARBONE, Angelo. Abandono afetivo e a justiça Disponível em: <http://www.
paranaonline.com.br/canal/ direito-ejustica/news/155565/?noticia=ABANDONO+AFETIVO+E+A +JUSTICA>. Acesso em: 25 out. 2014.
Capa
Sumário
425
pensão alimentícia supre outras lacunas, inclusive
sentimentais. Para sustentar o filho, os pais têm que
trabalhar, com o objetivo de manter um bom nível
de vida até a maioridade ou a formatura na faculdade. Isso já é um ato de afeto e respeito.
Surge na doutrina apontamentos direcionados ao entendimento que a reparação indenizatória pode prejudicar ainda mais o
desenvolvimento saudável da criança e do adolesceste, em razão
de um suporto efeito colateral decorrente da imposição judicial de
tal reparação. Nessa linha de argumentos, Castro133 descreve que:
[...] podemos criar um problema mais grave. Muitos
pais, não por amor, mas por temer a Justiça, passarão a exigir o direito de participar ativamente da vida
do filho. Ainda que seja um mau pai, fará questão da
convivência, e a mãe, zelosa, será obrigada a partilhar a guarda com alguém que claramente não possui qualquer afeto pela criança. A condição de amor
compulsório poderá ser ainda pior que a ausência.
Em relação aos precedentes jurisprudenciais, a primeira
sentençano mundo favorável ao ressarcimento ao filho por abandono afetivo parental foi emanada pela justiça italiana no ano de
2000, entendendo que a conduta paterna gera sofrimento aofilho
em face da ausência de aporte constitucionalmente garantido.
Na jurisprudência pátria, o primeiro caso que deu provimento ao pleito indenizatório por abandono afetivo parental,
ocorreu em 2003, na comarca de Capão da Canoa no Rio Grande
do Sul. No caso, o pai foi condenado a pagara título de danos morais a importância de R$ 48 mil reais (200 salários mínimos da época), pois descumpriu os deveres de visitas acordados judicialmente em ação de alimentos. Tal entendimento foi adotado por parte
133
CASTRO, Leonardo. O preço do abandono afetivo. Disponível em: <http://www.
webartigos.com/articles/2866/1/O-Preco-Do-Abandono-Afetivo/pagina1.html>. Acesso
em: 09 maio 2011.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
dos Tribunais Pátrios, dentre eles o Tribunal de Justiça de Santa
Catarina, ao decidir que:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INSURGÊNCIA DO GENITOR. ABANDONO E NEGLIGÊNCIA
EVIDENCIADOS. CONDUTAS INCOMPATÍVEIS COM OS
DEVERES PARENTAIS. DESCASO EM RELAÇÃO À INFANTE. PROVA TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL QUE
CORROBORA O DESPREPARO PARA O EXERCÍCIO DA
FUNÇÃO PARENTAL. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR OS INTERESSES DA MENOR.
SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A destituição do pátrio poder de um pai e/ou de uma mãe
sobre seu filho é medida drástica e somente deve
ser determinada em situações em que se verifique
a negligência dos genitores para com seus filhos,
por não fornecerem condições mínimas necessárias
para o desenvolvimento afetivo, psicológico, moral,
educacional e material a eles. Comprovada a negligência e o abandono perpetrados pelo genitor no tocante aos cuidados com a filha menor, é de destituir
o poder familiar sobre ela134.
A tese adotada para indenizar à vítima do abandono afetivo, embora já reconhecida no Brasil, ainda encontra divergência
quanto ao preenchimento dos pressupostos elementares, ou seja,
sobre o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Nessa esteira
de pensamento divergente, destaca-se o que decidiu o julgado do
Tribunal de Justina do Distrito Federal, in verbis:
DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO
AFETIVO PELO GENITOR. NEXO DE CAUSALIDADE.
AUSÊNCIA. DANO MORAL. NÃO CONFIGURADO. 1. A
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL, DECORRENTE DA PRÁTICA ATO ILÍCITO, DEPENDE DA
134
TJ-SC - AC: 20130216122 SC 2013.021612-2 (Acórdão), Relator: Jairo Fernandes
Gonçalves, Data de Julgamento: 10/07/2013, Quinta Câmara de Direito Civil Julgado.
Capa
Sumário
427
PRESENÇA DE TRÊS PRESSUPOSTOS ELEMENTARES:
CONDUTA CULPOSA OU DOLOSA, DANO E NEXO DE
CAUSALIDADE. 2. AUSENTE O NEXO DE CAUSALIDADE
ENTRE A CONDUTA OMISSIVA DO GENITOR E O ABALO PSÍQUICO CAUSADO AO FILHO, NÃO HÁ QUE SE
FALAR EM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, PORQUE NÃO RESTARAM VIOLADOS QUAISQUER DIREITOS DA PERSONALIDADE. 3. ADEMAIS, NÃO HÁ FALAR
EM ABANDONO AFETIVO, POIS QUE IMPOSSÍVEL SE
EXIGIR INDENIZAÇÃO DE QUEM NEM SEQUER SABIA
QUE ERA PAI. 4. RECURSO IMPROVIDO135.
Paraa Ministra Nancy Andrighi não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o
consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família.
Completou a Ministra Nancy Andrighi que, a interpretação técnica
e sistemática do Código Civil e da Constituição Federal apontam
que o tema dos danos morais é tratado de forma ampla e irrestrita,
regulando inclusive os intrincados meandros das relações familiares.Entendimento esse consolidado no brilhante voto de sua relatoria, no julgamento de Recurso Especial, in verbis:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO
AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE.
1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras
concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de
Família.
2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com
essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88.
3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da
prole foi descumprida implica em se reconhecer a
135
TJ-DF - APC: 20090110466999 DF 0089809-17.2009.8.07.0001, Relator: GETÚLIO
DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/07/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 16/07/2013 . Pág.: 100.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão.
Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de
criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação
por danos morais por abandono psicológico.
4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a
possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores
em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de
cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto
à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social.
5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes
- por demandarem revolvimento de matéria fática não podem ser objeto de reavaliação na estreita via
do recurso especial.
6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo
Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido.136
Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça assegura à
criança e o adolescente a possibilidade de ver reparado o dano
sofrido em decorrência do abandono afetivo parental, pois, como
bem tratou Ministra Nancy Andrighi, “AMAR É FACULDADE, CUIDAR
É DEVER”.
5.3 PROJETO DE LEI DO SENADO N.700/2007
O projeto tem o objetivo de modificar a Lei 8.069, de 13 de
julho de 1990 (ECA) para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, assim a proposta alteraria o ECA para atribuir além
136
REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em
24/04/2012, DJe 10/05/2012
Capa
Sumário
429
de deveres de sustento, guarda e educação dos filhos menores, os
deveres de convivência e assistência material e moral.
O senador Marcelo Crivella, autor do projeto, ressalta: que a
pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação aos
seus filhos, posto que os cuidados devidos às crianças e adolescentes compreendem atenção, presença e orientação. Portanto, o
projeto de lei idealiza prevenir e solucionar os casos de negligência
para com os filhos, visando estabelecer medidas no âmbito civil e
penal.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em decorrência do processo evolutivo sofrido pelo Direito de Família, sobretudo após a promulgação da Magna Carta de
1988, a família é vista com base nos princípios constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, delineia-se que o avanço da legislação acerca dos direitos da pessoa humanaafetou, profundamente, o Direito de Família, ampliando os
mecanismos de tutela desse instituto, dando ênfase às crianças e
aos adolescentes, assegurando à eles o direito a uma vida digna
e a convivência familiarbaseada nos laços de afetividade. Logo, a
afetividade se apresenta como elemento nuclear que dá o suporte
fático da família contemporânea.
O modelo igualitário da família constitucionalizada contemporânea se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade e o respeito à dignidade das pessoas que a integram, são os fundamentos dessa imensa mudança.
Demarcando seu conceito, é o princípio da dignidade que
fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.
Em virtude do elenco de direitos que são titulares as crianças
e os adolescentes, é importante se fazer a análise dos instrumentos
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
431
de que se dispõe com o fito de que sejam efetivamente respeitados.
Com a noção de culpa inovada, tornou-se possível fundamentar a responsabilidade, visto que o agente dessa se eximiriacaso tivesse agido sem o elemento culposo. Portanto, surge as bases
da responsabilidade extracontratual mediante a previsão de um
valor a ser pago em dinheiro à título de indenização do prejuízo.
O Estado passou a intervir nos conflitos privados, fixando
o valor dos danos, obrigando a vítima a aceitar a composição, renunciando a vingança. Portanto, observa-se, ainda hoje, que as
principais funções da responsabilidade são: compensar o dano à
vítima e punir o ofensor. Nesse caso, demonstrando a sociedade
que condutas típicas do ofensor, não serão toleras pela sociedade.
Ressalta-se, ainda, que a compreensão da família altera-se ao
longo dos tempos, o pátrio poder foi substituído pelo poder familiar,
portanto, passa a existir igualdade entre os descendentes e o indivíduo passa a ser prioridade em detrimento do patrimônio. Com efeito,
a afetividade, pautada no princípio da dignidade humana, colabora
para o desenvolvimento psíquico-social da pessoa.
A criança e o adolescente têm a sua integridade física, moral
e psíquica protegidas de qualquer lesão à sua dignidade, caso seja
violado o direito de personalidade, lato sensu, será cabível dano moral, atenuando, em parte, o prejuízo. Portanto, os pais devem prestar
além da assistência material, a moral, visto que a ausência de afeto
dos pais na formação dos filhos poderá gerar problemas psíquicos.
A análise do tema não se trata de quantificar o amor nem
tão pouco compensar a dor daquele que foi vítima do abandono.
O aspecto relevante é alcançar a função punitiva com o objetivo de
conscientizar o ato grave, que deverá ser evitado e cessado.
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume VI: Direito
de Família. 5ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008;
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433
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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
A USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR:
ORIGEM, ELEMENTOS E ASPECTOS TEMPORAIS
E PROCESSUAIS
Uma análise dos elementos que
compõem a nova modalidade
de usucapião à luz de seu
contexto de criação
Marianna Albuquerque DANTAS137
Marcos EHRHARDT JR.138
RESUMO: Entrou em vigor no Brasil, em 16 de junho de 2011, a
Lei nº 12.424/11 que, a pretexto de realizar reformas no Programa
Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, inseriu o art. 1.240A no Código Civil, por meio do qual introduziu no sistema nova
modalidade de prescrição aquisitiva, denominada pela doutrina
“usucapião por abandono do lar”. Segundo a redação conferida
ao art.1240-A, pode adquirir o domínio pleno de bem imóvel urbano de até 250m², cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou
ex-companheiro que abandonou o lar, aquele que exerça posse
direta, exclusiva, pacífica, ininterrupta e sem oposição pelo prazo
de 2 (dois) anos, desde que não possua outro imóvel urbano ou
rural, sendo que o direito em tela não será reconhecido mais de
uma vez ao mesmo possuidor. O retrocitado instituto veio à lume
impregnado de imprecisões técnicas, que anuviam a tarefa de sua
aplicação pelo operador do direito. Diante disso, o estudo em liça
busca, além do exame dos elementos que compõem a usucapião
137
Advogada, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL.
138
Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da graduação e do mestrado da Universidade Federal de Alagoas.
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Sumário
435
por abandono do lar, abordar, de forma circunstanciada, os questionamentos de ordem temporal e processual que envolvem o assunto.
Palavras-chave: Usucapião. Direito de Moradia. Art. 1.240-A.
Abandono do Lar. Vigência. Aplicabilidade.Eficácia. Aspectos Processuais
1. INTRODUÇÃO
Em 16 de junho de 2011, o ordenamento jurídico brasileiro
assistiu ao nascimento de uma nova modalidade de aquisição originária da propriedade, através da promulgação da Lei nº 12.424
que, ao regulamentar o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, do
Governo Federal, acabou por criar nova espécie de usucapião especial urbana, a chamada usucapião por abandono do lar ou usucapião pro-família, inserindo, no Código Civil , o art. 1.240-A.
Ao compulsar minuciosamente o dispositivo retrocitado,
observa-se que foi responsável por trazer à lume forma de usucapião sem precedentes no direito brasileiro, pela exiguidade do
lapso temporal da prescrição aquisitiva, de 2 (dois) anos apenas.
Como fator agravante, tem início a contagem do prazo a partir do
abandono, por um dos cônjuges ou companheiros, do imóvel de
propriedade compartilhada entre ambos, ou seja, do fim da convivência na união estável e do fim da sociedade conjugal pela separação física do casal.
O art. 1.240-A do Código Civil pretendeu constituir mais um
instrumento de realização da função social da propriedade, imbrincado nas relações de família, uma vez que o imóvel usucapiendo, urbano e de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), deve ter utilidade de moradia do titular da pretensão ou de
sua família, e só pode ser reconhecido o domínio em sendo aquele
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
não proprietário de outro imóvel urbano ou rural, uma única vez
em face do mesmo possuidor. Notável, logo, a inspiração protetiva do indivíduo que emana da previsão legal, tendo em vista que
consagra o direito à moradia e a segurança jurídica daquele que
permanece no imóvel.
A problemática insere-se no entorno das consequências
acarretadas pelo aludido instituto, diante das perplexidades que
vem despertando na doutrina. Inicialmente, impende ressaltar as
dificuldades de operacionalização do instituto, emergentes da indefinição de sua localização essencial, se no campo exclusivo dos
direitos reais, se mergulhado nas implicações das relações do Direito de Família, o que levanta questões processuais relevantes,
acerca, por exemplo, da competência, do rito, da conexão com
eventuais processos de divórcio, entre outras, que serão convenientemente atacadas no decorrer do presente trabalho.
Diante do panorama acima exposto, faz-se mister destacar
que o tema examinado, pela brevidade do período de vigência já decorrido da Lei nº 12.424/11, que introduziu o art. 1.240-A do Código
Civil, apresenta-se recente, ainda pendente de análise aprofundada
por parte da doutrina, sendo escassos os registros jurisprudenciais,
uma vez que, segundo será abordado adiante, a produção de seus
efeitos jurídicos teve início apenas recentemente.
Outrossim, a nova forma do instituto apresenta-se parcamente disseminada no meio jurídico e acadêmico, contudo já vem
operando seus efeitos em diversas relações familiares cotidianamente, sem que os titulares de direitos e deveres dela decorrentes
tomem ciência de sua força de incidência. Assim é que a consecução da abordagem de parâmetros minimamente científicos e jurídicos tende a ampliar o debate e levar o conhecimento do instituto a novos territórios, daí a relevância da proposta deste artigo
residir na necessidade de estudo mais acurado do tema, de forma
a contribuir para o delineamento e aplicação efetivos do instituto, otimizando a atividade do intérprete, operador jurídico, que se
Capa
Sumário
437
vê destituído de diretrizes e bases sólidas para decidir fundado na
inexorável segurança jurídica.
Em síntese, o presente trabalho visa, dentre seus objetivos gerais e específicos, perquirir as motivações que ensejaram a
criação da nova modalidade de usucapião, através da análise de
instrumentos do processo legislativo, assentar os requisitos da
usucapião por abandono do lar, a fim de delinear o seu regime jurídico e avaliar os aspectos processuais peculiares a esta espécie
de usucapião e a eficácia jurídica do instituto.
No que concerne à metodologia aplicada, a redação do artigofoi pautada pelo levantamento bibliográfico da área jurídica
pertinente ao tema, reunindo, através das obras localizadas, dentre publicações científicas, coletâneas, tratados e artigos especializados, elementos de definição dos contornos jurídicos do novel
instituto, com base na doutrina especializada em usucapião e no
Direito das coisas, bem como pelo exame acurado da legislação
relativa ao tema, penetrando na investigação das razões que motivaram a criação de nova modalidade de usucapião, através da
Exposição de Motivos, do processo legislativo de criação da Lei nº
12.424/11.
Sem distanciar-se do método lógico-dedutivo, que orientará todo o percurso da pesquisa, pretende-se ainda buscar respaldo jurisprudencial da, ainda incipiente, eficácia jurídica do tema,
analisando o tratamento que o Poder Judiciário vem conferindo à
matéria, diante de sua novidade no mundo jurídico, por meio da
pormenorização dos caracteres da decisão judicial.
Por fim, com fulcro na reunião de informações fundada nas
atividades anteriormente mencionadas, como forma de enriquecer o mundo acadêmico e suscitar aspectos que despertem o interesse pelo tema, visualizar-se-á a sugestão de ideias, parâmetros e
modos de otimização na interpretação e aplicação da usucapião
por abandono do lar.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
2. O CONTEXTO QUE MOTIVOU A EDIÇÃO DA
LEI Nº 12.424/11 E A INTRODUÇÃO DO
ARTIGO 1.240-A NO CÓDIGO CIVIL:
UMA BREVE ANÁLISE DA EXPOSIÇÃO
DE MOTIVOS
Em 16 (dezesseis) de junho de 2011, ingressavano ordenamento jurídico brasileiro, por meio do instrumento da Lei nº 12.424
(BRASIL, 2011) que introduziu o artigo 1.240-A no Código Civil, nova
modalidade de prescrição aquisitiva, a chamada usucapião por
abandono do lar, que desde seu nascedouro esteve imbrincada de
perplexidades, sobre as quais a doutrina, paulatinamente, porém
de maneira ousada, vem se debruçando. Os diversos problemas
apresentados pela inovação legislativa vão desde a nomenclatura utilizada pelo legislador, que promete ressuscitar conceitos
e discussões ultrapassadas, sobretudo no Direito de Família, até
controvérsias acerca de aspectos processuais. Preliminarmente
à investigação dos requisitos de configuração desta espécie de
usucapião, assim como dos pontos de discussão propostos, faz-se
importante compreender como se deu o surgimento de pitoresco
instituto, suas possíveis motivações, colimando o delineamento
de algumas de suas principais consequências.
Inicialmente, cumpre ressaltar o contexto no qual foi trazido a lume o art. 1.240-A do Código Civil, vez que o instrumento
legislativo que o contempla trata, sobremaneira, do aperfeiçoamento do “Programa Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal, inserto nas políticas públicas habitacionais da atual gestão
governamental, que visa, segundo o art. 1º, da Lei nº 12.424/11:
Art. 1º. O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV
tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à
produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias
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Sumário
439
com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil,
seiscentos e cinquenta reais) e compreende os seguintes subprogramas: [...]
O referido programa habitacional foi instituído pela Lei nº
11.977, de 7 (sete) de julho de 2009 (BRASIL, 2009), a qual a Lei nº
12.424/11 cumpriu alterar. Esta, por sua vez, é produto da conversão em lei da Medida Provisória nº 514, de 1º (primeiro) de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010). Observa-se de plano que a criação de
nova modalidade de usucapião logrou-se, em tese, por meio de
uma medida provisória, cuja tramitação para sua conversão em lei
apresenta-se mais simplificada em relação ao processo legislativo
que envolve as leis ordinárias, o que traz certas implicações.
Nota-se, todavia, que o texto original da supramencionada Medida Provisória (BRASIL, Medida Provisória nº 514, 2010)
não continha qualquer alusão ao art. 1.240-A ou mesmo menção
a alterações no Código Civil (GALLON, 2012, p. 2), razão pela qual a
análise da exposição de motivos daquele instrumento revelou-se
infrutífera para os fins deste trabalho, dada a ausência de quaisquer justificativas para a inserção do retrocitado artigo (BRASIL,
Exposição de Motivos Interministerial nº 00008, 2010), o que demonstra que a elaboração do mesmo perpetrou-se no âmbito do
Poder Legislativo, quando da edição do Projeto de Lei de Conversão nº 10, de 2011, de relatoria do Deputado André Vargas do PT/
PR, no qual desponta, no art. 9º, a inoculação do dispositivo 1.240A no Código Civil (BRASIL, 2011).
Ocorre que a leitura dos documentos de tramitação daquele Projeto de Lei apontou a inexistência de motivação da inclusão
do art. 1.240-A139 pelo Congresso Nacional, que simplesmente
aprovou, após 52 emendas, frise-se, nenhuma tratando da novel
usucapião (BRASIL, Projeto de Lei de Conversão nº 10, 2011), em
139
Documentos disponíveis em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/
detalhes.asp?p_cod_mate=100078>.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
27 de abril de 2011 na Câmara dos Deputados e em 10 de maio
de 2011 no Senado Federal, sendo sancionado pela Presidente da
República em 16 de junho de 2011 (GALLON, 2012, p. 3), após vetar
o dispositivo contido no §2º140. Deste modo, deixou o legislador ao
campo das indagações as razões pelas quais entendeu adequado
e necessário o implemento de novo modo de aquisição originário
de propriedade.
Ao ver de Leandro Gallon, o instituto encontra-se eivado
de inconstitucionalidade, acentuadamente quanto ao aspecto
formal, em virtude de ter pretendido a criação de espécie distinta
de usucapião por meio de instrumento inadequado, qual seja, a
medida provisória, haja vista que esta impende aferição dos requisitos de relevância e urgência, ausentes quanto ao tema em comento (2012, p. 4). Neste sentido também se posicionam Ricardo
Henrique Pereira Amorim (2011) e Helena Azeredo Orselli (2012).
Nesse ínterim, o autor até procura admitir, com muita resistência, a presença do elemento da relevância, “notadamente
porque pretende resolver diversas questões fundiárias afetas à
população de baixa renda, o que é de real importância” (GALLON,
2012, p. 3), considerando seu âmbito de surgimento – programa
de habitação para pessoas com renda de atéR$ 4.650,00 (quatro
mil, seiscentos e cinquenta reais). Contudo, no que toca ao requisito da urgência, conclui que não haveria qualquer prejuízo para
os indivíduos afetados pela norma se esta fosse veiculada em seu
processo legislativo ordinário (GALLON, 2012, p. 4), o que seria o
140
A redação do dispositivo vetado propugnava: “§ 2o No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de
previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça,
bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer
título ou denominação.” As razões do veto consignaram a violação do pacto federativo
pelo supracitado parágrafo, ao interferir na competência tributária dos Estados, conforme exposto na Mensagem de Veto nº 203, de 16 de junho de 2011.Disponível em: http://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Msg/VEP-203.htm. Acesso em: 05
set. 2013.
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Sumário
441
mais adequado, inclusive, com o respectivo “debate do tema, sob
a forma de projeto de lei, nas duas Casas Legislativas, em tempo
adequado, com a realização de diversos estudos, e jamais da maneira como aconteceu, por meio do açodado e excepcional procedimento da medida provisória” (GALLON, 2012, p. 4).
Outra observação realizada por Gallon, que desponta à primeira análise do texto integral da Lei nº 12.424/11, é a total impertinência da veiculação de nova espécie de usucapião no contexto
das alterações ao Programa Minha Casa, Minha Vida (2012, p. 4),
uma vez que o modo de aquisição de propriedade previsto no art.
1.240-A do Código Civil não se restringe ao público-alvo do programa, é genérico, incidindo para conferir titularidade exclusiva
de bem imóvel a todo indivíduo que preencha os requisitos legais,
independentemente de qualquer critério de natureza econômica.
Prova disso é que, embora trazida no bojo de lei que alterou o programa, propôs-se a alterar também o Código Civil, a fim de atingir
a generalidade das pessoas, de modo que o texto do artigo não faz
ressalvas a esse respeito.
Destarte, apenas para fomentar o debate, é possível concluir que o carreamento desordenado de temas diversos em sede
de medida provisória é mais um argumento em favor da inconstitucionalidade do instituto concebido da forma narrada, já que
se trata de matéria estranha ao objeto da Medida Provisória nº
514/10, o que é proibido pelo art. 7º, II, da Lei Complementar nº
95/1998. Curioso notar que em parecer acerca do Projeto de Lei de
Conversão nº 10/2011, o relator faz restrição em relação a 8 (oito)
emendas por tratarem de matéria estranha ao objeto da medida
provisória (BRASIL, 2011, p. 85), sequer analisando a inclusão do
art. 1.240-A no Código Civil, contida no art. 9º do Projeto de Lei.
À parte disto, sob pena de fuga do foco deste trabalho, converge a doutrina no que tange à finalidade da criação da usucapião
por abandono do lar: prestigiar o direito à moradia do cônjuge ou
companheiro que permanece no imóvel, ao abandono de seu con-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
443
sorte, o que vai ensejar calorosa discussão acerca da significação
dos termos utilizados pelo legislador, com interessantes e diversas
conclusões, a enriquecer a discussão acerca do tema.
Como espécie de usucapião especial urbana, a usucapião
entre ex-casais141 procura, como aquela em sua forma ordinária, privilegiar o direito à moradia, erigido à categoria de direito fundamental pelo art. 6º da Constituição Federal. Em que pese inexistir plausibilidade jurídica na exclusão dos imóveis rurais da sujeição a esta
espécie de usucapião, dado que o direito à moradia também é de
todo modo exercido pelas famílias no meio rural, argumenta José
Fernando Simão que “é a moradia e não o trabalho que se privilegia. Por isto o artigo 1.240-A surge em sede de regulamentação do
programa do Governo Federal ‘Minha casa, Minha vida’” (2011, p. 2).
A intenção por trás da inovação legislativa que representa a
nova modalidade de usucapião é de se supor que seja o escopo de
evitar a insegurança jurídica provocada pelo cônjuge ou companheiro
que deixa o imóvel e a família sem regularização do imóvel de propriedade de ambos os consortes, reaparecendo após longo tempo para
exigir sua meação sem que tenha exercido, neste interregno, seus deveres de coproprietário ou contribuído para a manutenção do imóvel,
que ficou a cargo daquele que nele permaneceu (FREITAS, 2011, p. 39).
No interessante escólio de Everson Manjinski, o objetivo da
previsão do art. 1.240-A tem à ordem a realização do princípio da
função social da propriedade, ao conferir àquele que exerce o direito à moradia e confere ao imóvel utilidade de acordo com seu fim
social, a exclusividade na propriedade do bem, em detrimento daquele que o abandona (2013, p. 1).
Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho sintetizam a finalidade da norma contida naquele artigo: “dar segurança jurídica ao
status do coproprietário que possui o bem com exclusividade após
a cessação da composse, retirando-o da partilha” (2011, p. 371).
Contudo, a maior parte da doutrina não se mostra otimista com o
destino conferido ao fim das relações conjugais e de companheirismo por infausta norma, tachando de desnecessária a usucapião
familiar, em virtude de agregar mais prejuízos que benefícios às relações familiares e à própria segurança jurídica, vez que se intenta
proteger o direito de moradia de um, em detrimento do outro, que
dá adeus à sua parte do imóvel, porque se retirou à convivência
conjugal. Vide o magistério de Priscila Fonseca:
141
Terminologia atribuída por Maria AglaéTedescoVilardo em VILARDO, Maria
AglaéTedesco. Usucapião Especial e Abandono do Lar – Usucapião entre ex-casal. .In:Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, ano XIV, n. 27, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 46-60, abr/mai. 2012.
Como dito alhures, à medida em que se penetra no exame
dos aspectos do multicitado artigo 1.240-A do Código Civil, exsur-
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Sumário
A norma ora introduzida alinha-se entre muitas outras recente e desnecessariamente editadas (v.g.,
guarda compartilhada, alienação parental etc). Mas,
desta feita, a novel disposição legal não se revela
apenas despicienda: a sua edição afigura-se inescusavelmente nociva. Com efeito, a forma de aquisição de domínio contemplada pelo art. 1.240-A não
apenas subverte regras e institutos tradicionalmente vigentes no Direito Civil, como, sem qualquer fundamento aparente, afigura-se geradora de danosa
insegurança (2011, p. 118).
Neste diapasão, de melhor forma não poderia manifestar-se
Maria Berenice Dias, ao afirmar que “boas intenções nem sempre geram boas leis” (2011, p. 1), o que resume as primeiras impressões da
doutrina acerca desta ousada empreitada do Poder Legislativo, diante dos problemas que dela inexoravelmente decorrem, e das gravosas
consequências para as relações familiares, na contramão da evolução
do Direito de Família, conforme submergimos na análise do tema.
3.VIGÊNCIA, APLICABILIDADE E EFICÁCIA
DA LEI Nº 12.424/11
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ge o delineamento de seus contornos jurídicos, ainda difusos em
virtude de sua recente instituição, sobretudo pela escassa coleção
jurisprudencial efetivamente produzida, inópia esta verificada justamente em função da peculiar aplicabilidade da Lei nº 12.424/11,
comungada, não raro, por outros instrumentos legislativos que incorporam espécies de usucapião.
No que concerne ao início de vigência propriamente dita
das normas compiladas na susomencionada lei, inexiste maiores
questionamentos, porquanto cristalina a redação do seu artigo 12,
ao consignar que a lei entra em vigor na data de publicação, qual
seja, 16 de junho de 2011.
Entrementes, a celeuma em torno de sua aplicabilidade e
eficácia, por ocasião do escoamento do lapso temporal aquisitivo, ainda não encontra pacificação na doutrina. Inobstante, parecem convergir os autores em um ponto crucial: a aplicabilidade
da usucapião por abandono do lar, isto é, o momento em que se
torna exigível a pretensão em torno da obtenção da titularidade
exclusiva do imóvel outrora pertencente a ambos os cônjuges ou
companheiros, tendo em vista a natureza declaratória da sentença
de usucapião, dar-se-á ao término da contagem do biênio eleito
pelo legislador como lapso prescricional aquisitivo, considerando
como marco o início da vigência da lei.
Com isto, se quer dizer que conta-se o prazo de 2 (dois)
anos para usucapir em face de ex-cônjuge ou ex-companheiro, sob
chancela do art. 1.240-A do Código Civil, de forma integral, a partir
de 16 de junho de 2011, razão pela qual a eficácia jurídica da Lei nº
12.424/11, neste particular, é postergada a 16 de junho de 2013, ou
seja, a sua produção de efeitos no mundo jurídico inaugura-se nesta data. Isso implica dizer que, embora possa estar consolidada, na
data de início de vigência da lei, a posse direta e ininterrupta exercida por um dos cônjuges ou companheiros em face do outro há 2
(dois) anos ou mais, não nasce a pretensão aquisitiva, senão após
a fluência de dois anos após a entrada em vigor da lei, em nome da
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445
segurança jurídica (SILVA, 2012, p. 4).
A conclusão acima é compartilhada pela doutrina majoritária do assunto, notadamente Farias e Rosenvald, que aplicaram
raciocínio semelhante por ocasião da criação de outras espécies
de usucapião (2012, p. 466), Maria AglaéTedescoVilardo (2012, p.
53), Flávio Tartuce (2011, p. 3), Douglas Philips Freitas (2011, p. 39),
Everson Manjinski (2013, p. 5) e Marcos Ehrhardt Jr (2011a, p. 2).
Urge destacar ainda a aprovação do Enunciado nº 498 da V
Jornada de Direito Civil do Conselho Nacional de Justiça Federal,
no mesmo sentido, com a seguinte redação:
Enunciado nº 498 - A fluência do prazo de 2 (dois)
anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início
com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011 (CSJ,
2012, p. 79).
Conquanto eminentemente doutrinário este entendimento, recordando-se da parca disciplina conferida pelo legislador ao
instituto em comento, desnubla-se adequado à ordem jurídica vigente, pois é comezinha a regra da irretroatividade da lei quanto
aos seus efeitos no tempo, em resguardo ao direito adquirido (VILARDO, 2012, p. 54), consagrado pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, sob pena de se autorizar temerária insegurança
jurídica. Acolher posicionamento diverso significaria malferir o
susomencionado direito, afrontando ainda as regras de disciplina
dos efeitos da lei no tempo contida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Lei nº 4.657/42, em especial o art. 6º.
O escólio de Maria AglaéTedescoVilardo reforça:
A lei só retroage em situações específicas de acordo
com o interesse social. As leis que regulamentam os
direitos das coisas são aplicadas aos fatos futuros
para que não seja gerada insegurança jurídica. Dian-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
te disso, somente poderá ser iniciada a contagem do
prazo da usucapião entre ex-cônjuges ou ex-companheiros a partir da vigência da lei (2012, p. 54).
Arremata Stephanie Pena:
O enunciado supracitado veio como forma de não
surpreender o ex-cônjuge/ex-companheiro a quem
se impute o abandono do lar. Logo, ainda que os
laços afetivos foram extintos antes do advento da
Lei n. 12.424, o usucapiente deverá esperar o lapso
temporal que prevê o artigo 1.240-A, para só então
invocar a nova modalidade de usucapir. E ainda,
para não violar o princípio da segurança jurídica.
Insta ressaltar que a nenhuma lei é dada a possibilidade de retroagir ferindo um direito adquirido,
nesse diapasão a norma sobre o usucapião familiar
passará a valer somente para os casos em que ficar
caracterizado o abandono de no mínimo dois anos a
contar de 16 de junho de 2011, ou seja, aqueles que
completem o biênio a partir de 16 de junho de 2013
(2013).
Dessarte, em epítome, a eficácia jurídica da usucapião pró-família condiciona-se ao escoamento do lapso temporal de dois
anos a partir da vigência da Lei nº 12.424/11, somente após o qual
poderá ser reconhecido em juízo o direito à usucapir a meação do
outro cônjuge no que pertine ao imóvel usucapiendo.
Neste diapasão, cumpre trazer à baila decisão pioneira em
matéria de jurisprudência sobre a usucapião por abandono do lar:
a Apelação Cível nº 1.0702.11.079218-2/001, julgada pelo Egrégio
Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de relatoria do Desembargador Moreira Diniz, que corroborou a tese de irretroatividade do art.
1.240-A, denegando recurso de apelante que não reunia o prazo
de dois anos de posse ininterrupta a partir da vigência da Lei nº
12.424/11, cuja ementa segue abaixo:
DIREITO DE FAMÍLIA - DIVÓRCIO LITIGIOSO - APELA-
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447
ÇÃO – USUCAPIÃO FAMILIAR - ARTIGO 1.240-A DO CÓDIGO CIVIL – APLICAÇÃO RETROATIVA - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DESPROVIDO. - O artigo 1.240-A do
Código Civil não possui aplicação retroativa, porque
comprometeria a estabilidade das relações jurídicas. (TJ/MG - Ap. Cível nº 1.0702.11.079218-2/001/AL,
4ª Câmara Cível, Rel. Des. Moreira Diniz, julgado em
11/07/2013, DJ: 16/07/2013).
Em seu voto, o relator consigna:
a aplicação retroativa do prazo comprometeria a
estabilidade das relações jurídicas e, conseqüentemente, ofenderia o princípio da segurança jurídica, na medida em que surpreenderia os cônjuges
e companheiros que estivessem fora da residência
por mais de dois anos, porém cientes de que seus
interesses patrimoniais estariam sendo preservados. Logo, somente a partir da entrada em vigor da
lei 12.424, que ocorreu em 16 de junho de 2011, será
possível iniciar a contagem do lapso temporal. No
caso, como a ação foi proposta em 08 de março de
2012, resta claro que não restou demonstrado o lapso temporal exigido pela lei (MINAS GERAIS, Tribunal
de Justiça, Ap. Cível nº 1.0702.11.079218-2/001/AL,
Rel. Des. Moreira Diniz, 2013, p. 3).
Por outro lado, notícia veiculada no sítio eletrônico do mesmo Tribunal de Justiça de Minas Gerais demonstra a diversidade de
argumentação jurídica que o Poder Judiciário vem apresentando
no assunto, ao divulgar a prolação de sentença do magistrado Geraldo Claret de Arantes, atuante na 3ª Vara de Família de Belo Horizonte, em setembro de 2011, declarando o direito de usucapião de
cônjuge virago em face do varão sobre imóvel de propriedade de
ambos, com base na dicção do art. 1.240-A (MINAS GERAIS, 2011).
No caso em apreço, o juiz posicionou-se pela retroatividade da Lei
nº 12.424/11, computando como tempo de prescrição aquisitiva,
prazo reunido anteriormente à vigência daquela, o que, data ve-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nia, não é recomendável, por desestabilizar acintosamente o direito de propriedade, com base nos argumentos já expostos.
Entretanto, campo pouco explorado em sede doutrinária é
o questionamento acerca da necessidade de configuração do ato
de abandonar o lar no período de vigência da lei. Em outros termos, é possível invocar o direito à usucapião familiar se o marco
de saída do cônjuge ou companheiro do imóvel tenha ocorrido
antes da entrada em vigor da lei, desde que tenha completado os
dois anos de posse ininterrupta após a vigência da lei? A controvérsia instala-se, acentuada pelo próprio conceito do termo “abandono do lar” pelo legislador, que, conforme veremos adiante, não é
uníssono entre os autores.
A esse respeito, elucida Marcos Ehrhardt Jr:
O novo prazo já pode ser utilizado por quem dissolveu seu casamento, digamos, há dois anos e alguns
meses anos e aguardava o completar 5 anos de posse mansa, pacífica e sem oposição para ingressar
com a ação? Para mim a resposta é negativa. O prazo
para exercício desse novo direito deve ser contado
por inteiro, a partir do início da vigência da alteração legislativa, afinal não se deve mudar as regras
do jogo no meio de uma partida (2011, p. 2).
Fernanda Martins, interpretando as lições do supracitado
autor, bem como de Tartuce e Fernando Simão, compreende não
ser “possível que o consorte, separado há mais de dois anos, que
aguardava o prazo de cinco anos para utilizar-se da usucapião especial urbana regular, do artigo 1.240 do Código Civil, utilize-se
agora, do novo instituto que imprime prazo bem inferior” (2012, p.
28). Deste modo, a autora afasta do reconhecimento da usucapião
por abandono do lar as pretensões fundadas na saída do cônjuge
ou companheiro do lar anteriores à publicação da Lei nº 12.424/11,
tomando como premissa que o marco do abandono deve estar
compreendido na vigência da lei para que a ela se submeta.
Capa
Sumário
449
Em sentido contrário, Everson Manjinski consigna que “o
prazo para concessão da usucapião familiar somente terá início
após a vigência da lei que o instituiu, mesmo nos casos em que a
posse tenha iniciado anteriormente” (2013, p. 5) (grifos nossos),
compreendendo a incidência do instituto também nos casos em
que o marco inicial do abandono tenha sido praticado antes da
vigência da nova lei, desde que sob esta se atinja o biênio.
A nosso ver, a compreensão mais exata do instituto permite
a declaração do direito à usucapião por abandono do lar, uma vez
persistente abandono do lar pelo consorte por tempo de 2 (dois)
anos ininterruptos, durante o qual é exercida a posse exclusiva do
outro consorte, independentemente de ter ocorrido o ato de abandonar o lar durante ou previamente à vigência da lei. Isto porque
a leitura, ainda que sucinta, do texto do art. 1.240-A não desnuda
qualquer restrição neste sentido, exigindo apenas a posse mansa,
pacífica e ininterrupta por dois anos após a vigência da lei – por
óbvio – de imóvel cuja propriedade é dividida entre aquele que
permanece no imóvel e o que o abandona.
É o que também defende Stephanie Pena, ao afirmar que,
“ainda que os laços afetivos foram (sic) extintos antes do advento
da Lei n. 12.424, o usucapiente deverá esperar o lapso temporal
que prevê o artigo 1.240-A, para só então invocar a nova modalidade de usucapir. E ainda, para não violar o princípio da segurança
jurídica” (2013, p. 20).
Por conseguinte, edificar uma espécie de interpretação restritiva para afastar os casais que, já separados de fato quando da
promulgação da lei, alcancem o lapso temporal de dois anos na vigência desta e preencham os demais requisitos para usucapir nesta modalidade, consistiria numa redução equivocada do alcance
da norma, não efetivada pelo legislador quando de sua elaboração. Neste viés, decorre do próprio magistério do Professor Marcos
Ehrhardt Jr. a necessidade de existência da posse, e consequentemente, da manutenção do abandono, por dois anos após 16 de
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
junho de 2011; assim, aquele que nesta data exercia a posse exclusiva do bem nas demais condições do art. 1.240-A por mais de dois
anos, na esperança de completar os cinco anos da usucapião especial urbana na forma ordinária, necessitaria aguardar mais dois
anos no exercício possessório para que se configurasse a prescrição aquisitiva da usucapião por abandono do lar (EHRHARDT JR,
2011a, p. 2), pelo que, a partir de 16 de junho de 2013, poderia ter
reconhecido em juízo o direito à mesma.
Milita em favor do entendimento perfilhado a decisão da
8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no
julgamento da Apelação Cível nº 70046433967/RS, em 22 de março
de 2012, ao indeferir o pedido de declaração do direito à usucapião por abandono do lar, em virtude da ausência de completude
do prazo aquisitivo. O Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, relator do processo, fundamentou seu voto conforme a seguir
colaciona-se:
Ainda, não merece acolhida a pretensão da insurgente de incidência à espécie da nova modalidade
de usucapião prevista no art. 1.240-A do CC (usucapião familiar), pois que, sem necessidade de maiores digressões sobre o tema, verifica-se não ter
transcorrido o prazo legal de dois anos de posse
direta, com exclusividade, desde a data em que o
apelado se afastou do imóvel em que resida o casal, o que se deu em julho de 2010, com o término
do relacionamento estável havido, como reconhecido judicialmente (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de
Justiça, Ap. Cível nº 70046433967, Rel. Des. Ricardo
Moreira Lins Pastl, 2012). (grifos nossos)
A decisão acima, em que pese considerar como baliza inicial a contagem do prazo a partir do abandono do lar ocorrido
antes da vigência da lei, a nosso ver equivocadamente, assume a
produção de um precedente que autoriza que, fluídos dois anos
de posse exclusiva ininterrupta após a entrada em vigor da lei,
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Sumário
451
em continuação de uma posse exclusiva que teve início por fato
anterior à sua vigência, reconheça-se a pretensão fundada no art.
1.240-A do Código Civil, por não deixar de prolongar o estado de
abandono do bem diante da desídia do cônjuge ou companheiro
que se retira do imóvel e não mais contribui para sua manutenção
ou exerce seus deveres de coproprietário.
4. OS REQUISITOS DA USUCAPIÃO
POR ABANDONO DO LAR
Segundo a divisão didática realizada por Benedito Silvério
Ribeiro (2007a, 2007b), os requisitos da usucapião, de forma genérica, podem ser bifurcados sob as categorias material e processual, sendo que esta última consiste, basicamente, numa especificação dos requisitos gerais da petição inicial dos arts. 282 e 283 do
Código de Processo Civil agregada a determinadas peculiaridades
contidas no Capítulo VII do CPC.
Neste momento, é interessante manter o foco nos requisitos materiais, que se ramificam em pessoais ou subjetivos, reais ou
objetivos, formais e especiais (RIBEIRO, 2007a, p. 251). A assimilação do perfil da usucapião prevista no art. 1.240-A parte inexoravelmente da decomposição de seus elementos, a fim de enquadrar
as hipóteses suscetíveis dessa nova forma de adquirir propriedade. Preliminarmente, é aconselhável a leitura cautelosa do texto
do art. 1.240-A, in verbis:
Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anosininterruptamente e sem oposição, posse direta,
com exclusividade, sobre imóvel urbano de até
250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados)
cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o
para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o
domínio integral, desde que não seja proprietário
de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nº 12.424, de 2011)
§ 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. (grifos
nossos)
Conformando o conteúdo do dispositivo acima à retromencionada ramificação dos requisitos materiais, o primeiro aspecto
que emerge trata dos requisitos pessoais, isto é, quem pode usucapir o bem e contra quem pode ser usucapido o mesmo que, no
caso da usucapião por abandono do lar, recai nas pessoas outrora
formadoras do casal, seja este formado através de casamento (“ex-cônjuge”) ou de união estável (“ex-companheiro”). Deste modo,
como o artigo menciona “cuja propriedade divida com ex-cônjuge
ou ex-companheiro”, resta claro tratar-se de usucapião de uma
das partes do antigo casal em face da outra, vez que só poderia
recair sobre imóvel de propriedade de ambos, afastando, assim,
qualquer tentativa de usucapir imóvel de propriedade de terceiros
através desta modalidade.
Em consonância com essa interpretação, o Professor Marcos Ehrhardt Jr. complementa:
O art. 1.240-A apenas poderia ser utilizado entre
cônjuges ou companheiros por ocasião do fim do
relacionamento, não sendo possível sua utilização
ante terceiros. Dentro desse raciocínio, o cônjuge
ou companheiro que for abandonado irá usucapir a
parte do abandonante na propriedade que têm em
comum, servindo o dispositivo para acabar com o
condomínio entre os membros da entidade familiar
(2011b, p. 2).
Deste modo, a legitimidade ad usucapionem é atribuída
pela lei ao ex-consorte – cônjuge ou companheiro – que permanece no exercício da posse, para usucapir, e ao que se retira em condição de abandono, para sofrer a perda da sua parte da propriedade, restringido o âmbito de atuação do instituto ao seio familiar
(TARTUCE, 2011, p. 2). Fernando Simão simplifica:
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Sumário
453
Para a usucapião em face de terceiros prossegue o
prazo de 5 anos, já para a usucapião entre cônjuges
prevalece o prazo de 2 anos. Assim, se João casado
com Maria adquirem o imóvel de José e deixam de
pagar as prestações, José nada faz. Após 5 anos,
sendo o imóvel urbano de no máximo 250m², e o
único da família, haverá a possibilidade da usucapião pelos cônjuges em face de José. Por outro lado,
para João ou Maria usucapir a metade do bem que
pertence ao outro cônjuge, é necessário apenas período de 2 anos após a separação de fato ou de direto do casal (2011, p. 2).
Lembrança relevante presente em Fernando Simão (2011, p.
2), Flávio Tartuce (2011, p. 2), e Maria AglaéTedescoVilardo (2012,
p. 47), é a que inclui como titulares de legitimidade ad usucapionem
para esta modalidade de usucapião também entre pessoas do mesmo
sexo que preencham os demais requisitos para usucapir, tendo em
foco a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4277 e na
ADPF nº 132, que reconheceu a união estável homoafetiva, equiparando-a às demais entidades familiares constitucionalmente reconhecidas (STF, 2011). O Conselho Nacional de Justiça Federal, por meio do Enunciado nº 500 da V Jornada de Direito Civil, sedimentou a inclusão dos
casais homoafetivos na legitimidade para usucapir na forma do art.
1.240-A do Código Civil. Segue a transcrição do retromencionado
enunciado:
Enunciado nº 500 - A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as
formas de família ou entidades familiares, inclusive
homoafetivas (CSJ, 2012, p. 79).
Outrossim, para determinar o correto alcance do requisito
pessoal, faz-se mister esclarecer o conteúdo dos termos “ex-côn-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
juge” e “ex-companheiro”, empregados pelo legislador. Ambas
as expressões acima denotam o fim da conjugalidade, com a decretação do divórcio, e o fim da união estável, com a sua dissolução também decretada, respectivamente, o que indica o término
formal, jurídico, das entidades do casamento e da união estável
(FONSECA, 2011, p. 121). Todavia, se entendidas neste sentido, o
dispositivo do art. 1.240-A perderia a coerência, senão seu propósito, por pretender permitir a usucapião de um bem que já teria
sido submetido à partilha, após a qual poderia ter sido, inclusive,
alienado a terceiros.
Deste modo, a despeito da clara atecnia do legislador, a
doutrina142 vem considerando que, no emprego daquelas expressões, este fez alusão ao consorte separado de fato, como fim fático
da sociedade conjugal e da convivência, quando o bem objeto da
usucapião encontra-se em situação de co-propriedade, sem estabilidade para aquele que continua no exercício da posse. A esse
respeito, vide os ensinamentos de Fernando Simão:
A partícula “ex” significa que a união estável ou o casamento acabaram de fato ou de direito. A extinção
de direito significa que houve sentença ou escritura
pública reconhecendo o fim da união estável (ação
declaratória de extinção da união estável), ou sentença ou escritura pública de divórcio ou separação
de direito, bem como liminar em medida cautelar de
separação de corpos. A extinção de fato significa fim
da comunhão de vidas entre cônjuges e companheiros que não se valeram de meios judiciais ou extrajudiciais para reconhecer que a conjugalidade. É a
simples saída do lar conjugal. A separação de fato,
portanto, permite o início da contagem do prazo da
usucapião familiar, desde que caracterizado o abandono. A separação de fato tem sido admitida como
motivo para que se reconheça o fim da sociedade
conjugal e do regime de bens (2011, p. 2).
142
Notadamente, FONSECA, Priscila Maria Pereira Corrêa da. Op. cit. e SIMÃO, José
Fernando. Op. cit.
Capa
Sumário
455
Cabe mencionar ainda a uniformização deste posicionamento perpetrada pelo Enunciado nº 501 da V Jornada de Direito
Civil do Conselho Nacional de Justiça Federal, litteris:
Enunciado nº 501 - As expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro”, contidas no art. 1.240-A do Código
Civil, correspondem à situação fática da separação,
independentemente de divórcio (CSJ, 2012, p. 79).
Na seara dos requisitos reais, trata-se, em suma, do objeto da usucapião, ou seja, dos bens que podem ser submetidos à
aquisição de propriedade por meio da usucapião. No que toca à
espécie do art. 1.240-A, o legislador foi sucinto ao erigir como alvo
apenas o bem “imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou
ex-companheiro que abandonou o lar” (grifos nossos).
Nota-se a semelhança patente com o objeto da usucapião
especial urbana do art. 1.240 do Código Civil, razão pela qual a
usucapião por abandono do lar enquadra-se como espécie daquela, sendo mantidos a condição de bem imóvel, a fim de privilegiar
a moradia em detrimento de outros direitos, a localidade do imóvel em zona urbana, e a metragem limite de 250m². Embora inspirados em modalidade de usucapião há tempos consolidada no ordenamento jurídico, estes aspectos vão suscitar algumas críticas
dos doutrinadores.
Em primeiro lugar, a natureza urbana do imóvel usucapiendo da prescrição aquisitiva do art. 1.240-A levanta dúvidas a
respeito da não contemplação dos imóveis rurais. Ainda que se
considere o âmbito de surgimento da usucapião por abandono do
lar – instrumento legal de implementação de política de habitação
urbana – e sua aposição no Código Civil, umbilicalmente relacionada à usucapião especial urbana, não se justifica a exclusão dos
imóveis rurais, haja vista que nestes também se exerce a finalidade
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
de moradia, não apenas a de produção; assim como porque a usucapião especial urbana possui um correspondente para os imóveis
da zona rural, a usucapião especial rural, que premia ainda o labor,
e a usucapião familiar não, afastando de sua incidência as famílias
residentes na zona rural.
Como bem frisa Priscila Fonseca, “se o objetivo do legislador era a tutela do ex-cônjuge ou ex-companheiro abandonado,
olvidou-se daqueles que, em iguais condições, residem em área
rural. Trata-se de omissão absolutamente injustificada” (2011,
p. 120). Nos mesmos moldes, se questionam Farias e Rosenvald
(2012, p. 467).
Quanto à área máxima de 250m² do imóvel usucapiendo,
Marcos Ehrhardt repisa a premente contradição da Lei nº 12.424/11,
que tenciona o estímulo ao direito de moradia das populações de
baixa renda, ao figurar em seu contexto, espécie de usucapião que
autoriza a aquisição da titularidade de imóveis atualmente considerados luxuosos e bem valorizados no mercado, ipsis litteris:
f) se a ideia era proteger o hipossuficiente, os menos
favorecidos e cuidar da regularização fundiárias em
áreas de grande adensamento populacional, mas
com grandes dificuldades de formalização dos títulos de propriedades (loteamentos e condomínios
irregulares, áreas de invasão, etc....) por que manter
a área até 250 m²?
g) fico pensando quantos apartamentos de alto padrão, em áreas nobres de qualquer capital possuem
área privativa maior do que essa. Dentro do projeto
Mina (sic) Casa, Minha Vida, os imóveis não costuma
ultrapassar 80 m² em minha região, e acredito que
isso reflita o cenário nacional da construção civil
desse nicho de mercado (2011a, p. 2).
A novidade no âmbito dos requisitos reais fica por conta
da necessidade de co-propriedade do imóvel entre ambos os ex-cônjuges ou ex-companheiros. Isso significa que, cessada a com-
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Sumário
457
posse pelo abandono do lar por um dos consortes, o outro, também proprietário, tem direito a usucapir a meação do primeiro no
bem imóvel, após 2 anos de posse ininterrupta e sem oposição. A
exigência de co-propriedade, a nosso ver adequada aos propósitos do art. 1.240-A, torna a usucapião familiar alvo de críticas por
parte da doutrina, que considera que a mesma macula as normas
aplicáveis ao regime de bens e à partilha, tornando sem efeito as
disposições pré-nupciais (SILVA, 2012, p. 9).
A princípio, importa para a letra da lei que o imóvel seja
de propriedade de ambas as partes, ignorando-se o modo como
o bem ingressou na propriedade comum, seja pelos regimes de
comunhão parcial de bens e de comunhão universal, seja pela
aquisição conjunta em condomínio nos demais regimes (ALBUQUERQUE JR; GOUVEIA FILHO, 2011, p. 371). Afasta-se, portanto, a
possibilidade de usucapião por abandono do lar sobre bem imóvel
particular de um dos consortes. A polêmica ficaria a cargo da exclusão do bem da partilha, gerando um desrespeito ao regime de
bens adotado (BLAUTH; FARIA, 2012, p. 13).
Contudo, em sentido diametralmente oposto, manifesta-se
a douta Maria AglaéTedescoVilardo:
Se o bem for adquirido, mas apenas por um deles,
durante a união estável ou casamento, e utilizado
como moradia do casal, deverá incidir o prazo da
usucapião entre ex-casal. [...] O regime de bens não
deve ser utilizado para fazer diferença entre famílias. Exigir o prazo maior de cinco anos na forma da
usucapião especial por não haver copropriedade
geraria discriminação injustificada entre os casais
(2012, p. 54).
Data maximavenia, não merece guarida o argumento acima
esposado, vez que vai frontalmente colidir com o disposto no texto
legal, que exige a co-propriedade como requisito indispensável ao
imóvel usucapiendo. O raciocínio aplicado pela doutrinadora não
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nos parece justo, tendo em vista que quer ir além do escopo legal
de contemplar aquele que já possui fração ideal da propriedade
com um prazo menor para usucapir, pretendendo conferir o mesmo lapso temporal exíguo para quem não possui qualquer parcela
de propriedade sobre o bem, em detrimento daquele que deixa
seu próprio imóvel em benefício do consorte, a fim de não quedar
este e a prole ao desamparo.
No que concerne aos requisitos formais, quais sejam, a posse ad usucapionem e o prazo, a nova espécie de usucapião prevê
algumas peculiaridades. A respeito da posse, é sabido que, em
geral, esta necessita ser ininterrupta, pacífica e sem oposição por
parte do detentor da propriedade, o que não se revela diferente na
usucapião por abandono do lar. Todavia, o dispositivo legal agrega ainda a necessidade de posse direta e exclusiva. Por exclusiva,
cabe frisar, deve-se entender aquela exercida apenas por um dos
ex-cônjuges ou ex-companheiros, cessada a composse quando o
outro deixa o lar.
Atrelado ao elemento da exclusividade, vem a literalidade
do art. 1.240-A exigir que a posse seja direta. Mas o que seria ela?
Benedito Silvério Ribeiro leciona ser nada mais do que um desdobramento do elemento posse, implicando “a posse direta a apreensão efetiva da coisa” (2007, p. 689). Deste modo, vai ser exercida,
no caso da usucapião por abandono do lar, por aquele cônjuge ou
companheiro, que após a saída do outro, permanece residindo no
imóvel, vez que o fundamento deste modo de aquisição da propriedade, ou em melhores termos, da “nova forma de extinção da
compropriedade” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 465), é o direito à
moradia.
Deste modo, a residência daquele que pretende usucapir
fixada no imóvel objeto da usucapião constitui requisito indispensável aos auspícios do art. 1.240-A, sendo que “que(sic) não utiliza
o imóvel como residência não poderá se valer da usucapião famíliar” (SIMÃO, 2011, p. 4). Isso significa que vai restar descaracteri-
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Sumário
459
zada a posse direta se ocorre cessão, comodato, locação, etc, do
bem a terceiros, não podendo o consorte usucapiente aproveitar a
posse exercida por aqueles (MANJINSKI, 2013, p. 4).
Nesse diapasão, a contradição na disciplina da posse entre
o dispositivo legal e a base doutrinária presente em Orlando Gomes, donde a posse ad usucapionem contém, de forma intrínseca,
o animus domini, o que afastaria quem exerce apenas a posse direta, por direito ou obrigação (2008, p. 189), é meramente aparente,
em virtude desse animus ser claramente dispensado pelo legislador no caso da usucapião por abandono do lar. É o que explica
Maria AglaéTedescoVilardo, litteris:
Não se pode ter essa intenção, esse animus, quando
a posse se desdobra em direta e indireta, como no
caso de se estar alugando um imóvel ou o ocupando
por empréstimo. Com a saída do cônjuge ou companheiro do lar comum teríamos o possuidor direto (o
cônjuge que ficar no imóvel) e o possuidor indireto
(aquele que deixou o imóvel). Por força da lei, a inexistência neste caso de animus domini entre possuidor direto e indireto em nada altera a possibilidade
legal desta nova forma de usucapião (2012, p. 48).
Em arremate, nas palavras de Roberto Paulino e Roberto
Gouveia Filho, “a aquisição decorre de ato-fato jurídico, em que a
vontade é irrelevante, pois é abstraída pela norma jurídica” (2011,
p. 370). A despeito da convergência doutrinária acerca do sentido
da expressão “posse direta” apresentada acima, seu emprego pelo
órgão legiferante não passa ileso aos olhos perscrutantes dos professores Farias e Rosenvald que, com razão, ponderam:
Ao se valer da expressão “posse direta” para descrever a situação jurídica do cônjuge que permanece no
lar comum o legislador não se importou com a boa
técnica, pois inexiste relação de direito obrigacional
ou real entre o ex-convivente que sai do lar comum
e aquele que fica. O correto é entender que um dos
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
compossuidores se converte em possuidor exclusivo
e, posteriormente, no concurso de todos os requisitos legais, único proprietário (2012, p. 466).
Sem embargos, não pode passar despercebida a discussão em torno de um dos atributos da posse que levanta opiniões
díspares no caso da usucapião familiar, qual seja, a ausência de
oposição. É ponto pacífico entre os autores que, na usucapião em
geral, a posse necessita ser inconteste, ou seja, que não seja impugnada pelo proprietário do bem. A cizânia se instala em torno da
qualificação da manifestação do co-proprietário do imóvel sujeito
à usucapião familiar, apta a desconstituir a posse ad usucapionem.
De um lado, posicionam-se os autores que consideram quaisquer
manifestações do outro cônjuge ou companheiro hábeis a descaracterizar a posse sem oposição, como irresignação verbal ou escrita comprovada por testemunhas, documentos ou outro lastro
probante, para Priscilla Fonseca (2011, p. 121), ou mesmo notificações anuais de demonstração do impasse em relação ao imóvel,
para Flávio Tartuce (2011, p. 2).
Em direção oposta, encontra-se Maria AglaéTedescoVilardo, para quem, por mais que possa ser oposta a impugnação sob
maneiras distintas, não basta a mera notificação ou registro de
natureza policial, diante da necessária demonstração de exercício
dos poderes e direitos atinentes à propriedade (2012, p. 48), pelo
que o adequado seria utilização de instrumentos judiciais, ou mesmo extrajudiciais adequados à contestação da posse. Do mesmo
modo, Douglas Philips Freitas complementa:
para desnaturar a posse ininterrupta e sem oposição, não adianta ao cônjuge temeroso de perder sua
meação promover notificações ou realizar boletins
de ocorrência em delegacias de polícia; há, sim, que
reivindicar seu direito sobre o bem em ação de divórcio ou de dissolução de união estável, mediante
pedido de arbitramento de aluguel, concessão de
Capa
Sumário
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usufruto, fixação de comodato, utilização do bem
em pagamento de alimentos in natura ou como
parte da pensão alimentícia, ou pelo menos sob
o argumento de que contribuiu para o custeio das
despesas necessárias à manutenção do bem (não
necessariamente de seu uso) (2011, p. 3).
Assiste razão, a nosso ver, ao segundo grupo de doutrinadores, vez que restaria prejudicado o direito a usucapir na modalidade tratada se a oposição pudesse se configurar no mero aviso
do ex-convivente de que ainda mantém interesse no bem, permanecendo na inércia quanto aos seus deveres de co-proprietário,
sobretudo no que diz respeito à manutenção do imóvel.
Ainda no âmbito dos requisitos formais, impõe-se o requisito do prazo mínimo legal para usucapir, que apresenta-se reduzido
para 2 (dois) anos na usucapião por abandono do lar, o que deixou
perplexos os doutrinadores, em face da exiguidade do mesmo, levando a doutrina a enveredar-se nos porquês para a fixação de tão
sucinto lapso temporal. A perplexidade se instala porque as espécies de usucapião de bem imóvel que apresentam os menores prazos são aquelas inclusas na categoria das usucapiões especiais,
cuja finalidade, de moradia ou de labor, tem o condão de reduzir
para 5 (cinco) anos o tempo para adquirir bem imóvel através da
prescrição aquisitiva. Por outro lado, o prazo prescricional aquisitivo da usucapião do art. 1.240-A vem a ser inferior até mesmo ao
prazo da usucapião de bens móveis que,segundo o art. 1.260 do
Código Civil, é de3 (três) anos de posse ad usucapionem, desde que
seja dotada de justo título e boa-fé. Na ausência destes requisitos
especiais, o prazo eleva-se para cinco anos (art. 1.261).
A esse respeito, sentencia com propriedade Marcos Ehrhardt Jr (2011b, p. 2): “se a constituição já consagrava um prazo diferenciado para as modalidades de usucapião especial urbano e
rural, essa nova modalidade parece ser uma forma ‘sumaríssima’
de aquisição da propriedade” (2011a, p. 1).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
No que toca à motivação da redução do prazo legal para
usucapir na novel usucapião, Flávio Tartuce atribui à iniciativa a
uma “tendência pós-moderna” de redução de prazos legais em
geral, como uma espécie de demanda da realidade hodierna, nos
quais a presteza no processo decisivo dita a velocidade em que
devem caminhar as relações jurídicas (2011, p. 2). Com a devida
vênia, ainda que nisto consistisse o propósito do legislador neste
caso, o que se mostra bastante plausível, olvida-se este que as relações de natureza familiar e afetivas em geral nem sempre obedecem à marcha frenética das demais relações de cunho patrimonial
reguladas pelo Direito Civil, como o ramo dos contratos, por seu
inevitável enredamento com questões psicológicas e emocionais.
Embora patente a necessidade de aprofundamento da análise do
prazo legal mencionado, foge ao objeto deste trabalho a consecução de tal estudo, resguardado para outro momento.
Por derradeiro, no que concerne ao início de contagem do
prazo de dois anos para usucapir nos moldes do art. 1.240-A, nada
há que se acrescentar ao que já foi exposto no tópico anterior, atinente à vigência, aplicabilidade e eficácia da Lei nº 12.424/11, para
o qual remetemos o leitor.
Por fim, cumpre registrar a presença dos requisitos especiais,
peculiares a cada espécie de usucapião, que, em geral, consistem no
justo título, na boa-fé e na moradia ou no trabalho. Como tipo de
usucapião especial urbana, já que “desmembrada” do art. 1.240 do
Código Civil, a usucapião por abandono do lar mantém o requisito
de moradia como finalidade do exercício da posse ad usucapionem.
Da mesma forma, é dispensado o exame do justo título, presumindo-se este e a investigação da boa-fé, também presumida.
Subsistem, pois, outros requisitos especiais da usucapião
por abandono do lar, quais sejam: a exigência de que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, prevista
no caput, e a limitação do reconhecimento do direito conferido no
caput do artigo a uma única vez ao mesmo possuidor, pelo pará-
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Sumário
463
grafo §1º do dispositivo, requisitos comuns à usucapião especial
urbana; e o abandono do lar, que figura como marco do fim da
composse e do início da contagem do prazo de dois anos para usucapir.
No tocante a este último requisito, que não cabe aqui esmiuçar, sob pena de fuga do objeto proposto neste trabalho, é relevante salientar a dificuldade doutrinária em sua definição haja
vista a pesada carga semântica que já lhe fora atribuída no âmbito
do direito de família, como violação de dever conjugal (art. 1.573
do CC). Em decorrência disto, bem como da imprecisão com que o
legislador tratou o tema, as conclusões doutrinárias em torno de
uma adequada definição de abandono são plúrimas, indo desde a
restrição a aspectos patrimoniais, situando-o na seara do Direito
das Coisas, até seu completo envolvimento no Direito de Família,
relacionando-o diretamente à assistência familiar.
A nosso ver, sem ingressar num estudo detalhado dessas
correntes, o que será feito em ocasião oportuna, a melhor definição
reside na identificação do abandono do lar com o abandono patrimonial, isto é, através a cessação do exercício da posse direta, com
a separação de fato e a retirada do consorte do lar, bem como dos
demais direitos e deveres inerentes à condição de proprietário do
imóvel, permanecendo em estado de inércia em relação à posse direta e ativa daquele que permanece residindo no bem. Esta linha de
raciocínio se revela apropriada por conjugar adequadamente elementos do Direito de Família, pertinentes à nova espécie, com os
elementos do Direito das Coisas naturais ao instituto da usucapião.
5 ASPECTOS PROCESSUAIS RELEVANTES:
RITO, COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE AD CAUSAM
As ações de usucapião, em regra, devem obediência, em
matéria processual, às regras específicas previstas nos arts. 941
a 945 do Código de Processo Civil, o que faz com que o procedi-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
mento das ações de usucapião, que não foge ao ordinário, com
certas peculiaridades, ganhe no meio doutrinário, a pecha de “rito
especial”. A diferença em relação a uma ação ordinária comum reside, basicamente, na necessidade de requerer a citação, além do
proprietário do bem usucapiendo, dos confinantes e de eventuais
interessados (art. 942), bem como na exigência de intimação dos
representantes da Fazenda Pública, a fim de que manifestem interesse na causa (art. 943).
Com efeito, tendo em mente toda a longevidade comum ao
feito na usucapião, com frequente necessidade de perícia, e também devido à previsão de citação por edital dos réus em locais incertos, fato recorrente em ações desta natureza, no anseio de conferir maior celeridade à ação de usucapião especial urbana, o art.
14 do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, estabelece:
Art. 14. Na ação judicial de usucapião especial de
imóvel urbano, o rito processual a ser observado é
o sumário.
Ora, ao determinar a aplicação do rito sumário nas ações de
usucapião especial urbana, o legislador tencionou afastar o chamado
“rito especial” da usucapião, eliminando suas especificidades no afã
de otimizar a aplicação do princípio da duração razoável do processo,
o que é ojerizado por Benedito Silvério Ribeiro, que preleciona:
Não foi feliz na escolha do rito o legislador, que se induziu pelo termo sumário, no pressuposto de celeridade. O procedimento sumário é inapropriado para
causas como as referentes a usucapião de imóvel,
dada uma série de providências que devem ser levadas em conta. Não se trata de chamar à lide a parte passiva tão-somente, sendo necessária a citação
daquele em cujo nome esteja registrado o imóvel,
dos confrontantes e dos réus em lugar incerto e dos
eventuais interessados. Essas pessoas devem ser
convocadas à audiência de tentativa de conciliação
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Sumário
465
previamente marcada, à qual também devem ser
cientificados os representantes das Fazendas Públicas da União, do Estado e do Município. A perícia,
na maioria das vezes necessária, é outro ponto de
estrangulamento do processo, sabido que o edital
citatório de pessoas em lugar incerto e de eventuais
interessados pode gerar até o adiamento da audiência [...] (2007b, p. 974).
A solução para o impasse, já adotada na práxis forense (RIBEIRO, 2007b, p. 974), seria, segundo o escólio de Marcus Felipe Botelho Pereira, a conversão no procedimento comum ordinário, com
fundamento no art. 277, §4º, do CPC, sendo mais produtivo do que
tentar compatibilizar os ritos sumário e especial (2012, p. 127).
Feitas essas considerações gerais, convenientes à análise
do rito aplicável à usucapião por abandono do lar, uma vez que o
legislador permaneceu silente acerca da matéria, é preciso verificar qual seria o procedimento adequado a tal instituto, que mescla a questão possessória com aspectos atinentes ao Direito de
Família. Como bem pontua Marcos Ehrhardt Jr., “parece não haver
nenhuma preocupação quanto à simplificação dos procedimentos
processuais para reconhecimento da usucapião” (2011a, p. 1), o
que deixa espaço a divagações a fim de lapidar asua aplicação.
Everson Manjinski insiste na tramitação da ação de usucapião por abandono do lar através do rito especial da usucapião,
previsto no art. 941 e ss. do Código de Processo Civil, pois não vê
disparidade perante as características das demais ações de usucapião (2013, p. 5). Entretanto, não é nesta senda que se posiciona a
melhor doutrina sobre o tema. Senão, vejamos.
Fernanda Martins atesta a desnecessidade da utilização do
rito especial, haja vista a própria natureza do pedido, restrita à meação do cônjuge no que toca ao imóvel, ao revés do pedido de natureza erga omnes das outras espécies, o que tornaria despicienda
a citação de confinantes, de terceiros interessados, ou mesmo da
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Fazenda Pública, por não ferir quaisquer interesses destes (2012,
p. 29). Logo, o rito adequado seria o ordinário, pois a “lei nova não
explicita o rito a ser seguido e há permissivo legal para ser adotado
o procedimento ordinário (art. 271 do CPC)” (VILARDO, 2012, p. 57).
Parece correto o entendimento esposado, especialmente
se recordarmos que a praxe jurídica recomenda, nos casos de usucapião especial urbana, a conversão do rito sumário em ordinário,
apesar da disposição expressa do art. 14 do Estatuto da Cidade,
enquanto que, para a usucapião familiar, o legislador sequer emitiu comando semelhante. Indispensáveis as lições de Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho, segundo as quais:
O rito especial, com toda a sua complexidade, tem
uma função particularmente clara, que é a de formalizar uma relação processual que se dá contra todos, para a declaração de que foi adquirido o direito
real, cujo exercício se dá erga omnes. A especialidade de tal procedimento está no edital convocatório
dos réus hipotéticos, fixado no art. 942 do CPC. Trata-se de uma técnica de sumariedade de cunho pré-processual. Como, de acordo com o exposto acima,
não há réus hipotéticos em tal ação, o procedimento
especial não tem o menor sentido (2011, p. 373).
Por conseguinte, em sendo dispensável a tramitação da
ação de usucapião por abandono do lar pelo rito especial da usucapião previsto no CPC, a própria competência para o processamento da ação também pode ser compreendida em vara diversa
da cível, para integrar as lides familistas, em razão da proximidade com questões concernentes ao Direito de Família, sobretudo
no modo como afeta a partilha dos bens. Estando restrita a legitimidade ad usucapionem aos ex-integrantes do casal de conviventes, sejam cônjuges ou companheiros, conforme já explicado
anteriormente, por óbvio que a legitimidade ad causam para ação
de usucapião por abandono do lar também vai cingir-se aos ex-
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Sumário
467
-cônjuges ou ex-companheiros, mais especificamente, será parte
autora aquele que permanece na posse direta do imóvel, após a
separação fática do casal; por sua vez, será réu aquele que se retira
do imóvel e protela o estado de abandono por prazo superior a 2
anos, contra quem se pretende adquirir a parte na propriedade.
Outrossim, se foi trazido ao ordenamento instituto de direito real tão intrincado com a matéria objeto de disciplinamento
do Direito de Família, qual seja, as relações familiares, nascendo
exclusivamente desta o direito à usucapião por abandono do lar, e
estando limitada subjetivamente aos seus integrantes, adequado
que a atribuição para o processamento da ação esteja submersa
no leque de competência das Varas de Família que, frise-se, decorre de especialização das Varas Cíveis, dada a necessidade de
utilização de diferentes métodos de abordagem perante seus atores processuais. Sintetizando a adequação das Varas de Família ao
julgamento das ações de usucapião familiar, Maria AglaéTedescoVilardo enfatiza, a seguir:
A especialização existe para dar maior profundidade no conhecimento de casos peculiares, e as relações entre cônjuges ou companheiros têm suas peculiaridades bem conhecidas daqueles que atuam
nestas Varas. Os negócios jurídicos entre familiares
possuem repercussão emocional e permitem outro tipo de atuação não comum às Varas Cíveis, inclusive com a realização de acordos que levam em
consideração a abordagem psicológica e social das
quais são dotadas as Varas de Família de sua equipe
técnica (2012, p. 56).
Ademais, outros argumentos a favor da propositura das
ações de usucapião por abandono do lar nas Varas especializadas
em Direito de Família coligidos, a contento, pelos mestres Roberto
Paulino e Roberto Gouveia Filho, podem ser resumidos no excerto
doutrinário abaixo transcrito, in verbis:
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Embora se trate de dispositivo fadado à polêmica,
não será possível aplica-lo sem reconhecer a relação
familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro
lado, é preciso igualmente fazer prova da separação
de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta
diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja
meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para
conhecer da dissolução do casamento ou da união
estável e da partilha de bens, evitando a remessa à
vara cível de questões que lhe são estranhas (2011,
p. 373).
Destarte, verifica-se que a ação de usucapião por abandono do lar, se ajuizada, suscita diversos pontos prejudiciais inerentes ao Direito de Família, como a prova da separação de fato e da
união estável, por exemplo, o que demanda um tratamento jurídico, e porque não assistencial, condizente com aquele ofertado
nas lides de família, razão pela qual as Varas de Família são melhor
preparadas para atender à demanda proveniente da usucapião
por abandono do lar.
Por fim, impende ressaltar a patente ligação entre os aspectos processuais colimados, pelo que a disciplina de um afeta,
inexoravelmente, a do outro, sendo mais coerente, portanto, que,
se a legitimidade processual da ação é titularizada apenas pelos
integrantes da sociedade conjugal desfeita ou da união estável
cuja convivência feneceu, a competência para o seu processamento seja das Varas de Família; e o rito, o ordinário, diante da dispensabilidade dos atos e comunicações processuais característicos do
oneroso rito especial da usucapião de terras particulares.
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Sumário
469
6. CONCLUSÃO
À guisa de conclusão, faz-se mister tecer alguns comentários
acerca do exame da estrutura da usucapião por abandono do lar e
dos aspectos procedimentais que a rodeiam. Preliminarmente, à luz
do contexto de surgimento do art. 1.240-A,verificou-se que a principal finalidade da introdução da usucapião familiar no ordenamento
pátrio é a tentativa de garantia do direito de moradia, a priori, o que
justificaria sua inserção no sistema por meio de um instrumento legislativo que visou realizar reformas no Programa Minha Casa Minha
Vida do Governo Federal, caracterizado no âmbito de políticas públicas habitacionais. Ocorre que, do modo como prevista, esta espécie de usucapião não se restringiu ao público-alvo do programa, vez
que não traz critérios econômicos outros que não a área máxima do
imóvel usucapiendo, que é de 250m² (duzentos e cinquenta metros
quadrados), à semelhança das outras espécies de usucapião especial urbana, demonstrando que não se destina apenas à população
de baixa renda, pois a metragem eleita corresponde a propriedades
altamente valorizadas atualmente no mercado imobiliário em diversos Municípios do país.
Destituída de correlação direta com o teor dos demais dispositivos da Lei nº 12.424/11, percebe-se que a norma contida em
seu art. 9º foi sorrateiramente incorporada ao sistema. Isto porque
sua edição ocorreu por ocasião do processo legislativo de conversão da Medida Provisória nº 514/2010 em lei, visto que a redação
original desta não contemplava a previsão de nova usucapião, o
que explica inexistir, em sua exposição de motivos, quaisquer explanações que justifiquem a inserção do art. 1.240-A no Código
Civil. Sem embargo, tampouco o Projeto de Lei de Conversão nº
10/2011 tece motivações neste sentido, relegando ao campo das
especulações a “axiomática” necessidade que reclamou a inauguração de novo modelo de prescrição aquisitiva.
Em seguida, detectou-se problemas na interpretação dos
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
aspectos de direito intertemporal. Quanto à vigência, não houve
maiores dificuldades, visto que a própria lei contém disposição expressa nesse sentido. Por outro lado, no que tange à aplicabilidade,
averiguou-se que a contagem do lapso prescricional para usucapir
encontra conforto a partir da data de vigência da lei, devendo-se
aguardar, após este marco, o biênio legal previsto no art. 1.240A, desprezando-se, para este fim, qualquer posse anterior à data
de início dessa vigência, por força da regra da irretroatividade das
normas jurídicas, em nome da garantia da segurança jurídica. Isto
traz implicações relevantes para a disciplina da eficácia do instituto, vez que, a depender da concreção do prazo bienal, a produção
de feitos somente se opera a partir de 16 de junho de 2013, razão
pela qual é ainda prematura a jurisprudência que cerca o assunto.
Esclarecidas aquelas questões preliminares, partiu-se para
a decomposição dos requisitos da usucapião por abandono do lar
com base em seu texto legal. Além de repisar o território comungado com as demais espécies de usucapião, pretendeu-se concentrar
o foco naqueles elementos peculiares à nova espécie, que representaram inovações na disciplina da usucapião em geral. O primeiro deles situa-se na categoria dos requisitos pessoais, resumindo
os sujeitos da usucapião aos ex-integrantes de um casamento ou
de uma união estável, vez que a literalidade da norma a restringe
expressamente aos “ex-cônjuges” e “ex-companheiros”, aqui inclusas as uniões homoafetivas, de acordo com novos precedentes do
STJ e do STF.
O correto alcance das expressões retro, inobstante a atecnia
do órgão legiferante ao empregar a partícula “ex” que, em seu sentido normal, denota o término formal das entidades do casamento
e da união estável, equivale ao consorte separado de fato, antes
da partilha dos bens, quando o objeto da usucapião encontra-se
em situação de co-propriedade, sem estabilidade para aquele que
continua no exercício da posse, sob pena de se esvaziar o conteúdo do preceito normativo.
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Sumário
471
Na seara dos requisitos reais, o art. 1.240-A, como desmembramento do art. 1.240 do Código Civil, que prevê a usucapião especial urbana, não afastou-se desta, elegendo como bem
usucapiendo o imóvel urbano de até 250m². Todavia, olvidou-se
o legislador que a usucapião especial urbana não se encontra isolada no sistema, possuindo correspondente previsão de aquisição
de domínio para os imóveis rurais. Em que pese ser esta norteada
essencialmente pela finalidade de labor e produtividade, o escopo de moradia é traço inconteste deste arcabouço estrutural. Em
decorrência disto, a usucapião familiar recebe a pecha da inconstitucionalidade ao realizar discriminação injustificada entre as famílias residentes na zona rural e na zona urbana, privando aquelas
do acesso ao direito de usucapir com o prazo mais célere.
A inovação nos requisitos reais fica por conta da exigência
legal de que o imóvel seja de propriedade de ambas as partes da
ação de usucapião, sendo irrelevante a forma pela qual o bem ingressou na propriedade comum, se pelos regimes de comunhão
parcial de bens e de comunhão universal, ou se pela aquisição
conjunta em condomínio, o que automaticamente exclui qualquer
possibilidade de usucapião por abandono do lar em face de terceiros estranhos à relação de conjugalidade ou de convivência. O
requisito é polêmico, à proporção em que pode ser acusado de gerar insegurança jurídica, vez que interfere nas disposições nupciais
adotadas pelo regime de bens, tornando-o sem efeitos.
Dentre os requisitos formais, instalou-se a problemática da
caracterização de uma manifestação do co-proprietário que não
exerce a posse, hábil a desconstituir a posse legítima do outro,
pelo que firmou-se a necessidade de comprovação do exercício
dos poderes e direitos atinentes à propriedade do ausente, mormente através de instrumentos formais, judiciais ou extrajudiciais,
tendo em vista o escopo precípuo da prescrição aquisitiva, qual
seja, retirar a titularidade do indivíduo que não exerce os deveres
e direitos de proprietário para conferi-la a outrem que exerce uma
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
de suas maiores expressões, a posse estável.
Para além, o dispositivo legal adiciona à posse ad usucapionem mais dois atributos: que seja direta, isto é, que o usucapiente
efetivamente resida no imóvel, estando nele presente fisicamente, de maneira habitual, já que a finalidade da posse deve ser a
moradia, descaracterizando-a em caso de cessão, locação, entre
outras formas representativas de alienação a terceiros; e que seja
exclusiva, exercida apenas por um dos titulares da propriedade, o
usucapiente, após a cessação da composse com o abandono do
outro titular.
É possível perceber o terreno movediço pelo qual devem
transitar aqueles que enfrentam o tema, anuviado nos diversos
ângulos em que é posto em perspectiva, o que sobremaneira evidencia o grande desafio lançado ao operador do direito, que necessita emitir respostas de forma ágil e diligente. Não é diferente
o exame do lapso temporal da prescrição aquisitiva, que, a despeito de restar estabelecido de forma cristalina em dois anos no
art. 1.240-A, suscitou, perplexidades a respeito da necessidade de
prazo tão exíguo para usucapir, especialmente porque se realiza
no âmbito do rompimento das relações de conjugalidade, que naturalmente requer tempo para acomodar-se, dado o alto teor de
emoções envolvidas.
Encerrando o rol de requisitos, dentre aqueles chamados
especiais, desponta que trouxe a lei uma exigência sem precedentes no Direito das Coisas, qual seja, o requisito do abandono
do lar, sem dúvida o mais controverso. O emprego da expressão
pelo legislador dividiu os doutrinadores, especialmente pela carga
axiológica negativa que a locução já carregou no direito brasileiro,
pelo que optou-se por uma otimização do referido conceito para
compreender o abandono patrimonial típico do Direito das Coisas,
aliado à separação de fato dos cônjugues ou companheiros do Direito de Família.
Diante da força imperativa da nova norma, resta superar as
Capa
Sumário
473
dificuldades advindas da precariedade com que foi concebido o
instituto a fim de moldá-lo para a ele conferir aplicação condizente
com a harmonia sistemática da ordem constitucional vigente. Em
epítome, a usucapião por abandono do lar, embora exorbitante
em imprecisões terminológicas e de equilibrar-se perigosamente
em elementos obsoletos, enquanto sobreviver no ordenamento
jurídico pátrio, necessita de lapidação profunda, a fim de proporcionar o melhor tratamento jurídico.
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Capa
Sumário
475
de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa,
Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos
localizados em áreas urbanas, as Leis nos 10.188, de 12 de fevereiro de
2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de
1979, 4.591, de 16 de dezembro de 1964, 8.212, de 24 de julho de 1991,
e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; revoga dispositivos
da Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras
providências. In:SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 2011. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm>. Acesso em: 24 jun. 2013.
BRASIL. Medida Provisória nº 514, de 1º de dezembro de 2010. Altera
a Lei no 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa
Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de
assentamentos localizados em áreas urbanas, as Leis nos 10.188, de 12
de fevereiro de 2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19
de dezembro de 1979, e 4.591, de 16 de dezembro de 1964, e dá outras
providências. . In:SENADO FEDERAL. Legislação Republicana Brasileira.
Brasília, 2010. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2010/Mpv/514.htm>. Acesso em: 27 ago. 2013.
BRASIL. Projeto de Lei de Conversão nº 10, de 2011. Altera a Lei nº
11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa Minha Casa,
Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos
localizados em áreas urbanas, as Leis nºs 10.188, de 12 de fevereiro de
2001, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 6.766, de 19 de dezembro de
1979, 4.591, de 16 de dezembro de 1964, 8.212, de 24 de julho de 1991,
e 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil; revoga dispositivos da
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Capa
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A IMPORTÂNCIA DA MEDIAÇÃO FAMILIAR NOS CASOS
DE ALIENAÇÃO PARENTAL SOB A PERSPECTIVA
CONSTITUCIONAL
Milena Ferreira BELTRÃO
Maria Cristina Paiva SANTIAGO
RESUMO: O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do instituto da mediação familiar na resolução dos conflitos originados
pela prática da alienação parental, sob a luz da Constituição Federal de 1988, analisando a evolução histórica da sociedade, da família e de seus conflitos que traz à baila a necessidade de aprimoramento dos profissionais para lidarem com as novas problemáticas
familiares como a alienação parental exigindo um tratamento
adequado. Nesse sentido, observa-se um maior crescimento dos
denominados “meios alternativos” de resolução de conflitos decorrente de sua eficácia e menores custos. O método utilizado é
o bibliográfico por meio de livros e artigos sobre mediação e alienação parental disponíveis. Assim, os profissionais das ciências
jurídicas necessitam valorizar meios diversos dos litigiosos para
solucionar questões oriundas do seio familiar que carregam consigo uma forte carga emocional fortalecendo a importância da interdisciplinaridade nesses conflitos e apresentando um resultado
menos prejudicial aos envolvidos.
Palavras-chave: Direito de família. Alienação parental. Mediação.
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
1 INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo caracterizar a alienação parental e demonstrar que a mediação é o instrumento adequado
para a solução dos problemas oriundos daquela prática explicitando os benefícios de sua utilização e a necessidade de uma interligação das áreas de conhecimento com vistas à concretização dos
princípios constitucionais.
Nessa perspectiva, o estudo focou-se nos menores impactos causados pela mediação na resolução dos conflitos originados
pela alienação parental utilizando-o como forma de prevenir e remediar qualquer celeuma referente à causa.Por esse ângulo, faz-se
necessário a expansão e divulgação da mediação como forma de
resolver os conflitos decorrentes da alienação parental que traga
menos danos aos envolvidos, mormente à prole, e mais benefícios
afastando o eventual esvaziamento de um processo judicial.
Assim, vislumbra-se na mediação familiar o mecanismo
adequado para os casos de alienação parental, uma vez que trabalhará o conflito de forma positiva trazendo crescimento e responsabilidade aos conflitantes conscientizando-os dos prejuízos que
estão causando aos seus filhos quando da existência da alienação
parental e permitindo a efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal.
481
protetor para que evite maiores danos aos seus componentes.
Coadunando com tal posicionamento preleciona Giselle
Câmara Groeninga:
A família é sistema de relações que traduz em conceitos e preconceitos, idéias (sic) eideais, sonhos e
realizações. Uma instituição que mexe com nossos
mais carossentimentos. Paradigmática para outros
relacionamentos, célula mater da sociedade143.
Assim, é na família que o indivíduo tem suas primeiras experiências, descobertas,alegrias e decepções encabeçando a primeira rede de relações interpessoais que influenciará o desenvolvimento da criança em um adulto saudável, exigindo uma postura
ativa do Estado em tutelar o núcleo familiar.
2.1.1 Delineamento histórico da família
2.1 CONCEITO
O que se depreende das relações familiares da Antiguidade
é que as mesmasnão se fundavam no afeto, como hodiernamente
ocorre, visavam, basicamente, uma instintiva luta pela sobrevivência (independente de isso gerar, ou não, uma relação de afeto)144.
Neste ensejo, o modelo da Antiguidade, em particular de
Roma, persistiu, predominantemente, por muitas gerações recorrentes ao sistema familiar como uma “unidade econômica, política, militar e religiosa, que era comandada sempre por uma figura
do sexo masculino, o pater famílias,”145autoridade máxima sobre
todos os integrantes de sua família.
Já o advento do século XX trouxe consigo modificações na
A família é o núcleo social basilar que, constantemente, evolui e se molda àscaracterísticas do tempo vigente. Logo, o conceito
de família é de cunho dinâmico e, por ser o centro das primeiras
experiências de cada indivíduo, demanda do Estado um apanágio
143
GROENINGA, Giselle Câmara. Família: um caleidoscópio de relações In: GROENINGA, GiselleCâmara;PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Orgs.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 125
144
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Direito de Família. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 48
145
Ibid. p. 49
2 A FAMÍLIA CIVIL-CONSTITUCIONAL PÓS CARTA
MAGNA DE 1988
Capa
Sumário
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
estrutura familiarrechaçando o modelo único e conservador da família até então vigente. Essas mudanças foram trazidas pela evolução dos centros urbanos, pela revolução sexual, pela possibilidade do divórcio e, principalmente, pela sobreposição dos valores
que protegem o ser humano, como a dignidade do indivíduo, sobre todo e qualquer valor patrimonial146.
Nessa seara, observa-se acrescente despatrimonialização
e afastamento da definição fechada de família cristãpossibilitando a abertura para a formação e conjectura dos mais variados e
possíveis modelosde família e sendo-lhes assegurado proteção de
cunho constitucional.
Hoje a família caracteriza-sepela “revalorização do aspecto
afetivo, a busca de autenticidade nas relações familiares e apreservação do interesse de crianças e adolescentes”147
Dessa forma, confirma-se que o novo rumo a seguir da ordem jurídica positiva, é ir além dos valores individuais e patrimoniais buscando a realização pessoal e o crescimento, individual e
coletivo, de todos osmembros familiares.
2.2 A ÉTICA NO DIREITO DE FAMÍLIA
Para além de uma questão jurídica, todas as relações intersubjetivas, em particular astraçadas no âmbito familiar, exigem dos
seres humanos sensibilidade, ética e moral no tratodas mesmas.
Seguindo o escóliode Maria Berenice Dias observa-se que:
Assim, o direito não pode afastar-se da ética, sob
pena de perder a efetividade.Nenhuma norma, nenhuma decisão que chegue a resultado que se divorcie de umasolução de conteúdo ético pode subsistir. Essa preocupação não deve ser só dolegislador.
146
GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro - direito de família. v. 6. 8.
ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32
147
PEREIRA, Sérgio Gischkow apud THOMÉ, Liane Maria Burnello. Dignidade da
pessoa humana e mediação familiar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 37
Capa
Sumário
483
Também os aplicadores do direito precisam conduzir suas decisões deforma que a solução não se afaste de padrões éticos e morais148.
Dessa forma, apesar de distintos, a ética, a moral e o Direito
se correlacionam ao abordar as relações humanas servindo aqueles como guias na regulação jurídica devendo sernorte tanto para
os legisladores quanto para os operadores do Direito. Esse entrelaçamento éexplicado por Lara Oleques de Almeida:
O Direito é ciência essencialmente humana e, como
tal, não pode se distanciar daÉtica, que dá suporte
ao desenvolvimento de sua função promocional, em
prol darealização da justiça (...) o Direitofomenta a
promoção da proteção eficaz dos direitos fundamentais
e colabora para aconstrução de uma cultura de paz no
interior das famílias...149
Enfim, o que resta assentado, na leitura da doutrina e na jurisprudência, é anecessidade de sedimentação e fundamentação
do Direito na ética, na busca contínua einterminável da realização
dos valores previstos na Constituição Federal almejando oaproveitamento máximo dos princípios norteadores do ordenamento
familiar: dignidade dapessoa humana, afetividade, solidariedade,
pluralidade, entre outros.
2.3 DIREITO DE FAMÍLIA SOB UMAVERTENTE CONSTITUCIONAL
Em contraposição a Codificação Substantiva de 1916, de
caráter eminentemente
148
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista
dos tribunais, 2009. p. 72 et seq
149
ALMEIDA, Lara Oleques de. A função social da família e a ética do afeto:
transformações jurídicas no direito de família. p. 90 et seq. Disponível em:
<http://revista.univem.edu.br/index.php/REGRAD/article/viewFile/43/70>. Acesso em:
24/09/2011.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
liberal, o “Código Civil de 2002, finalmente, rendeu-se aos
princípios, compatibilizando-se ao paradigma do Estado social”150
Nesse norte, a constitucionalização do direito civil, uma construção doutrinária, “tomou corpo principalmente a partir do século
XX, entre os juristas preocupados com a revitalização do direito civil e sua adequação aos valores que tinham sido consagrados”151
na Carta Magna de 1988.
Dessa maneira, verifica-se no âmbito do Direito de Família,
como todos os outros ramos jurídicos, a preponderância da dignidade do indivíduo como barreira limitadora de direitos e deveres,
constituindo um núcleo imutável sobre o qual as normas jurídicas
se desenvolvem.
Destarte, entende-se a “dignidade da pessoa humana como
um valor supremo que atrai o conteúdo detodos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”152 Conforme vaticina
Liane Maria Busnello Thomé:
A constitucionalização do Direito Civil é um fenômeno que decorre da necessária interpretação dos princípios aprovados na Constituição Federal brasileira,
emespecial, do princípio da dignidade da pessoa
humana, acarretando uma releitura doCódigo Civil
brasileiro, elevando o interesse da pessoa humana
sobre qualquer outrovalor que seja o de reconhecer,
proteger e promover seu desenvolvimento153.
Ratificada está a importância e a magnitude da tutela do
Estado e da aplicabilidade dasnormas jurídicas protetoras do núcleo familiar para que alcancemos uma máxima na evoluçãodos
indivíduos tanto pessoalmente como conjuntamente.
150
LÔBO, Paulo. A constitucionalização do direito civil brasileiro In: TEPEDINO,
Gustavo. (Org.) Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 24
151
Id. p. 18
152
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São
Paulo: Malheiros, 2008. p. 105
153
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 32
Capa
Sumário
485
2.4 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS E A FAMÍLIA
Nosso ordenamento pátrio adotou a aplicabilidade imediata para osdireitos e garantias fundamentais e essafoi uma das
maiores conquistas da Constituição Federal de 1988, qual seja,
o“reconhecimento da força normativa de seus princípios, que interagem nas relaçõesfamiliares, incidindo diretamente”154
Nesse sentido, leciona Ingo Wolfgang Sarlet acerca da tendência seguida pelos direitosfundamentais:
Independentemente da possibilidade de sustentar-se, relativamente aos direitosfundamentais da
Constituição de 1988 (...) o fato é que a coerênciainterna do sistema dos direitos fundamentais encontra justificativa (...) em referenciais fornecidos pelo
próprio direito constitucional positivo. Neste sentido, assume papelrelevante a norma contida no art.
5º, §1º, da CF de 1988, de acordo com a qual todosos
direitos e garantias fundamentais foram elevados à
condição de normas jurídicasdiretamente aplicáveis
e, portanto, capazes de gerar efeitos jurídicos155.
Já no que diz respeito à eficácia horizontal a mesma abrange a obrigação do respeitoaos direitos fundamentais, em especial
na esfera familiar, por todos os indivíduos em suasrelações entre
particulares. Logo, é de suma importância o acesso a “um ambiente harmônicoentre os interesses da própria família, enquanto núcleo social, e os interesses pessoais dos seusmembros, com o propósito de garantir a efetividade desses direitos fundamentais”156.
154
LÔBO, Paulo apud TARTUCE, Flávio. Princípios constitucionais e direito de família. In: CHINELATTO, Silmara Juny de Abreu; SIMÃO, José Fernando; FUJITA, Jorge Shiguemitsu; ZUCCHI, Maria Cristina. (Org.) Direito de família no novo milênio. São Paulo:
Atlas, 2010. p. 39 et seq.
155
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais na perspectiva
constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 72 et seq
156
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op.cit., p. 58
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Portanto, resta demonstrada a importância da eficácia irradiante dos princípiosconstitucionais que abrangem todo ordenamento jurídico brasileiro servindo como condiçãosine qua non para
sua interpretação em conformidade com a Constituição Federal.
2.4.1 A função social da família
A função social da família cresceu combinado com a constitucionalização do direitocivil acompanhando as transformações
familiares, conforme relatado por Lara Oleques deAlmeida:
A função social da família é importante mecanismo
a permitir a incorporação devalores sociais para o
interior do ordenamento quando da interpretação
do Direito, apartir da dicção do art. 226, caput, da
Constituição Federal c/c art. 1º, III, daConstituição
Federal. Ressalta-se, ainda, que a função social da
família implica oreconhecimento do conceito contemporâneo de família, inferido na ConstituiçãoFederal, em interpretação extensiva157.
Nesse espeque, atua a função social como meio “para que
o jurista interprete e apliqueo direito segundo valores éticos e sociais, dada a função social que o próprio Direito(representado pelo
juiz, advogado, etc.) deve desempenhar”158. Assim, valoriza o homemcomo “centro epistemológico da ciência jurídica, [que] configura importante mecanismo apermitir a incorporação de valores
éticos e sociais para o interior do ordenamento quando dainterpretação e aplicação do Direito”159 coadunando com a legislação
de tutela e preocupaçãodo indivíduo.
157
158
159
Capa
ALMEIDA, Lara Oleques de. Op. cit., p. 60
Ibid. p. 84
Ibid. p. 89
Sumário
487
2.5 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DAS FAMÍLIAS
É importante a extensão dos princípios em qualquer ordenamento legal, uma vez queesses são o norte servindo como
norma balizadora de toda produção legal. Logo, os princípios tornaram-se “o norte axiológico de todo o ordenamento jurídico,eis
que funcionam como comandos éticos permeados de valores socialmente relevantes”160 queserão utilizados pelos aplicadores do
Direito na interpretação e aplicação das normas.
2.5.1 Princípio da dignidade da pessoa humana
Elevada à categoria de fundamento do Estado de Direito, o
princípio da dignidade dapessoa humana tornou-se, na Carta Magna de 1988, um princípio constitucional expresso,com previsão no
art. 1º, inciso III161, sendo o sustentáculo do desenvolvimento do
Estado e detodas as relações sociais nele inseridas.
Apesar de uma árdua dificuldade em sua conceituação, por
ser uma definição em
aberto e assaz ampla, tentar definir a dignidade do indivíduo significa assegurar uma “íntimarelação com o seu querer, com
seu desejo de reconhecimento individual, com seu devido valor
pessoal”162. Nessa linha, Liane Thomé preceitua:
Dignidade é ser visto e reconhecido por suas próprias qualidades e diferenças. É serolhado por inteiro e merecedor de respeito e proteção. É poder ser
respeitado emsuas diferenças e poder expressá-las
sem receio de não ser reconhecido ou comreceio de
160
Ibid. p. 66
161
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos:
[...]
III - a dignidade da pessoa humana;
162
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 45
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ser agredido, ofendido ou ignorado e está condicionada por valorespróprios e influenciados pela educação, meio social e imagem que as pessoas fazem
de si próprias163.
Outrossim, o princípio da dignidade humana limita a atuação do Estado que deverespeitar e fomentar uma estrutura para
o indivíduo viver, dignamente, no seio da família e em sociedade.
Assim, compreende-se que a dignidade personifica a ideia de que
o ser humano é livrepara desenvolver seus potenciais e sonhos na
vida social, sendo obrigação do Estado fornecere proteger esse espaço para dita evolução.
2.5.2 Princípio da igualdade
O princípio da igualdade, decorrência direta do princípio
da dignidade humana,exprime-se no sentido de que todos devem
ser tratados de forma isonômica no cumprimentode deveres e direitos “e é na família o lugar primeiro em que deve ser reconhecida
e aplicadaessa isonomia, que por força da legislação e da cultura,
tratava os seres humanos de forma distinta”164.
Garantia constitucional, prevista no art. 226, §5º165 e no art.
227, §6º166 da Carta Magna,a isonomia abordada engloba tanto a
igualdade entre homens e mulheres no âmbito familiar,quanto o
tratamento igualitário direcionado aos filhos, independente de
sua origem.
163
Ibid. p. 55 et seq.
164
Ibid. p. 68
165
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado[...] §
5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo
homem e pela mulher.
166
Art. 227
[...]
§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos
direitos e
qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
Capa
Sumário
489
Todavia, imperioso salientar que a previsão constitucional
não equipara o homem e amulher em termos físicos ou psicológicos “proíbe, na verdade, o tratamento jurídicodiferenciado entre
pessoas que estão na mesma situação”167.
No que concerne à igualdade entre os filhos, todos os filhos independentemente de sua origem, se adotados,decorrentes
do laço socioafetivo ou de inseminação heterogênea, merecem a
mesma tutelatanto de cunho material quanto pessoal, uma vez
que agora gozam da posição de sujeitos dedireito.
2.5.3 Princípio da afetividade
O direito ao afeto é “imprescindível à saúde física e psíquica,
à estabilidade econômicae social e ao desenvolvimento material e
cultural da família e do seu lar”168 e possui comogrande vantagem
“a possibilidade da realização da ternura na vida de cada um, nos
momentosde paz e nas ameaças de conflito,”169 sendo hoje o principal elemento unificador das famílias.
Por fim, a interpretação do Direito de Família sob o aspecto
da afetividade significa orespeito às diferenças e à valorização do
afeto que liga os indivíduos de uma família.
2.5.4 Princípio do pluralismo familiar
No que tange ao princípio do pluralismo familiar a Consti167
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de
Janeiro: Lumen juris, 2010. p.43
168
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais
aos operacionais. In:
GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Org.). Direito de Família e
Psicanálise:
rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 149
169
CUNHA, João Paulo. A ética do afeto. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA,
Rodrigo da Cunha. (Org.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 86
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tuição Federal de 1988
“alargou o conceito de família, permitindo o reconhecimento de entidades familiares nãocasamentárias”170 tutelando toda e
qualquer forma de família fundada no afeto.
Dessa feita, coadunando com os novos parâmetros adotados pela família, tendo em suabase o afeto como traço distintivo,
os seres humanos podem se aglomerar sob as mais variadas formas “quantas sejam as possibilidades de se relacionar, ou melhor,
de expressar oamor”171 o que autoriza a tutela legal sobre todos os
núcleos familiares. Esse é basicamente oconteúdo do princípio em
comento que leva “ao reconhecimento e à efetiva proteção, peloEstado, das múltiplas possibilidades de arranjos familiares”172.
2.5.5 Princípio da solidariedade social
O princípio da solidariedadesocial é previsto na Carta Política de 1988173 gerando efeitos na esfera familiar incorrendo
no“respeito e consideração mútuos nos relacionamentos entre os
membros da família”174.
Seguindo a tendência evolutiva da família brasileira, o princípio da solidariedade seapresenta como corolário de tais mudanças, haja vista que os princípios atinentes “se voltarammuito mais
para os aspectos pessoais de cada membro da família do que para
ospatrimoniais”175. No escólio de Liane Thomé:
A solidariedade tem incidência permanente sobre a
família, expressando-se nasuperação do individua170
FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 41
171
Ibid. p. 29
172
DIAS, Maria Berenice apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson.
Op. cit., p. 42
173
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
[...]
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária
174
TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 45
175
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 56
Capa
Sumário
491
lismo sobre o interesse do bem comum, no respeito
recíproco, nos deveres de cooperação financeira
e emocional entre os membros dogrupo familiar e
destes com a comunidade e o meio ambiente em
que vivem176.
Enfim, pode-se afirmar, no que concerne à concretização
do princípio em análise, queo mesmo materializa-se por meio da
ação de cada parte da família ao manter o afeto,cooperando, respeitando, amparando e ajudando uns aos outros.
2.5.6 Princípio da proteção integral da criança e do adolescente
No Brasil, com fundamento na Carta Magna de1988 e previsto no Estatuto das Crianças e do Adolescente177, o princípio da
proteção plena dacriança e do adolescente surge em oposição ao
sistema outrora vigente do modelo da situaçãoirregular “que tinha
como fonte formal o Código de Menores de 1979”178.
O que decorre, basicamente, desse princípio, além de um
leque de outros princípiosderivados como o da responsabilidade
parental e o da prevalência da família, é o tratamentodestinado
às crianças e adolescentes como sujeitos de direito e não como
meros objetos deproteção. O fato de serem considerados como
sujeitos de direito implica que lhes é garantidoum rol de direitos
fundamentais destinados aos adultos podendo, inclusive, “manifestaroposição e exercer seus direitos em face de qualquer pessoa,
inclusive seus pais”179.
Contudo, há um óbice na aplicação no caso concreto desse
princípio, pois o mesmocarrega consigo uma alta carga de subjetividade, haja vista inexistir um critério objetivo a serseguido para
176
Ibid. p. 59
177
Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990
178
ROSSANTO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo. Comentários à lei nacional da adoção – lei 12.010. de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 20
179
Id. p. 21
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
definir o “melhor interesse” exigindo assaz sensibilidade e cautela do magistradopara que não resulte em prejuízo aos menores.
Além disso, a importância desse princípioreside no fato do menor
ainda estar em processo de formação de sua personalidade, sedefinindo como ser humano por meio de suas escolhas e valores
que carregará ao longo desua vida formando “sua identidade no
grupo familiar e social,”180 e compondo sua individualização como
ser humano.
3 ALIENAÇÃO PARENTAL
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Antes de tudo, deve-se priorizar o caráter constitucional e
os valores que estãoarraigados ao Direito de Família que determinam o novo tratamento ofertado aos arranjos familiares fundados
na ética, no afeto e na concretização da dignidade humana. Porisso, deve ser condenada toda e qualquer manifestação contrária ao
desenvolvimento saudáveldos entes participantes da família autorizando a atuação imediata do Poder Público quando doindício de
existência da alienação parental.
Nesse ensejo, sintetiza Guilherme Calmon:
A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice
do ordenamento jurídico,
encontra na família o solo apropriado para o seu
enraizamento e desenvolvimento,daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetivaproteção à família, independentemente
de sua espécie181.
180
PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do “melhor interesse da criança” no âmbito das relações familiares. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha.
(Org.) Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 210
181
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A emocionalidade em áreas jurídicas
específicas. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. (Org.) Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed. Campinas: Millenium, 2010. p. 195
Capa
Sumário
493
Forçoso reforçar a necessidade de tutela da família contra
todo e qualquer tipo deviolência que, por ser o indivíduo eminentemente emoção, demanda um tratamento baseadono respeito,
na consideração e na paciência.
3.2 A RUPTURA DE UM RELACIONAMENTO:
O ESTOPIM PARA A ALIENAÇÃOPARENTAL
Cumpre salientar que “a unidade da família não seconfunde com a convivência do casal, [que] é um elo que se perpetua independentemente darelação dos genitores,”182 pois que “a separação implica em fim da conjugalidade e não daparentalidade”183.
Apesar de cada indivíduo reagir diferente diante de cada situação na vida, há três formas que merecem destaque por serem as
mais recorrentes.A primeira delas éo instinto vingativo que se imbui
o indivíduo incorrendo em um surto de ira que desembocaem “um
denegrimento público daquele(a) que a(o) rejeitou, expondo mazelas
íntimas e manchando a reputação”184 A segunda forma mais habitual,
a que interessa a esse estudo, é ofato dos conviventes “utilizar os
filhos como munição de guerra entre eles, e isso tanto podeser feito de forma ostensiva quanto de maneira velada e sutil”185. A última
maneira,igualmente comum, de vingança “recai na contabilidade, na
divisão dos bens, no confrontoentre direitos alegados como legais,
mas que nem sempre são morais e éticos”186.
A celeuma reside no fato de certos pais não saberem lidar
com antigos sentimentos e novos ressentimentos provocados pelo
182
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito
das famílias. Op. cit., p. 386
183
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia jurídica. São Paulo: Atlas, 2009. p. 302
184
ZIMERMAN, David. O processo judicial pode estar sendo uma forma de manutenção do vínculo do casal? In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias.
(Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 173
185
Loc cit.
186
Loc cit.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
fim do relacionamento, conforme explica Maria Berenice:
A criança é induzida a afastar-se de quem ama e que
também a ama. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos. Restando
órfão dogenitor alienado, acaba identificando-se
com o genitor patológico, passando a aceitarcomo
verdadeiro tudo que lhe é informado187.
Tais episódios demandam muita cautela e preparo dos
envolvidos na identificação dossintomas da alienação parental
sendo salutar a presença de uma equipe multidisciplinar e deum
juiz preparado e capacitado para lidar com as situações expostas.
Cumpre ressaltar,também, a grande valia de se verificar a ocorrência da alienação o quanto antes possível, vistoque a alienação
parental é um abuso contra a criança ou adolescente que põe em
perigo opsicológico e o emocional destes arriscando o desenvolvimento saudável da criança.
Assim, quando da comunicação da notícia do fim do relacionamento aos filhos, essecomunicado deve ser feito, preferencialmente, pelos dois oportunizando a ambos explicar a sua prole
a situação vigente. Além disso, tranqüiliza-se a criança acerca dacontinuidade do relacionamento, com ambos os pais, e exime-a de
qualquer culpareferente ao fim da união. A comunicação em conjunto serve, igualmente, para evitar “queaquele que noticia seja o
único responsável ou que aproveite o momento para desqualificar
ooutro, facilitando o aparecimento da alienação parental”188.
Ante o exposto, quando um conflito abarca nas varas de
família, todos os profissionaisenvolvidos devem estar conscientes
da forte carga emocional que o mesmo carrega, ainda que negados
187
DIAS, Maria Berenice. Alienação parental – um abuso invisível. Disponível em:
<http://www.mariaberenice.com.br/uploads/4_-aliena%E7%E3o_parental_um_abuso_invis%EDvel.pdf>.
Acesso em: 25/01/2012. p. 1
188
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 304
Capa
Sumário
495
ou não mencionados pelos litigantes, devendo ser abordado com
muito respeito,preparo e sensibilidade, independente de qual seja
a questão suscitada.
3.3 CONCEITO DE ALIENAÇÃO PARENTAL
Cunhada por Richard Gardner, professor do departamento
de psiquiatria infantil dafaculdade de Columbia em Nova York, a
nomenclatura “síndrome da alienação parental” foicaracterizada
em 1985 como um “distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente nocontexto de disputas de custódia de crianças”189.
Consiste a mesma em uma campanhanegativa feita por um dos
genitores contra o outro denegrindo a imagem alheia e imbuindo
namente dos filhos fatos falsos ou maquiados consistindo em uma
“interferência psicológicaindevida realizada por um dos pais com
o propósito de fazer com que repudie o outrogenitor,”190 realizando
uma lavagem cerebral na criança, a qual culminará por contribuirtambém na “trajetória de campanha de desmoralização”191.
Nesse jogo de falsidades e manipulações não há limites
para o alienador que faz usode todos os mecanismos possíveis
para denegrir, equivocadamente, a imagem do outro. Apósconstantes investidas do alienador nas falsas e maquiadas histórias, o
filho começa a acreditare a repetir tudo que lhe é contado como
se verdade fosse e, com o passar do tempo, nem ogenitor consegue mais diferenciar “entre [a] verdade e [a] mentira. A sua verdade passa a serverdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantando-se,assim, falsas
189
GARDNER, Richard A. apud GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona.
Op. cit., 603
190
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., 603
191
TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do Direito.
3. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2009. p. 309
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
memórias”192.E essa é também, claramente, um abuso que arrisca
a saúde e odesenvolvimento psíquico-emocional da criança que
“acaba passando por uma crise delealdade, o que gera um sentimento de culpa quando, na fase adulta, constatar que foicúmplice
de uma grande injustiça”193.
Há algumas atitudes que devem ser sopesadas quando daanálise acerca da presença ou não da alienação. Nessa esfera, é
considerado um equívocoanalisar exclusivamente a opinião dos
filhos, pois essa provavelmente encontra-se fundida dasfalsas memórias interpeladas pelo alienador, também reputa-se um erro o
tratamento daalienação por um terapia tradicional, pois é inequívoco lembrar que o agente alienador é assazmanipulador podendo enganar até os profissionais mais preparados194.
Outrossim, é um engano deixar que apenas um dos pais decida sobre a vida dos filhos,independente se o genitor é o agente
alienador ou alienado, requerendo a presença de umolhar imparcial e distante da situação para auxiliar todos os envolvidos na celeuma, “sem aintervenção externa e sem ajuda psicológica, é provável que o filho nunca se aperceba do quese passou”195.
No concernente ao alienador, esse age como se ele e o filho fossem um único ser e queo outro cônjuge fosse um estranho,
um agressor que deve ser rechaçado a “qualquer preço,sendo que
esse conjunto de manobras constitui o jogo e o cenário que conferem prazer aoalienador em sua trajetória de promoção da exclusão, da separação, da divisão e da destruição do outro”196.
Ademais, por, a princípio, ter consciência de todas as mentiras que conta aofilho, o alienador é bastante resistente ao cumprimento das decisões judiciais, bem como aoaceitar intervenção
192
seq.
193
194
195
196
Capa
DIAS, Maria Berenice. Alienação parental – um abuso invisível. Op. cit. p. 1 et
Loc cit.
TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 312 et seq
Ibid. p. 312
Ibid. p. 313
Sumário
497
de terceiros podendo, inclusive, durante uma avaliação incorrer
em erros econtradições oferecendo indícios da alienação197.
3.4 CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL
Apesar da Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010 prever e
definir a alienação parental,impreterível observar alguns vestígios
que podem antever a existência da alienação parental que, quanto
mais cedo detectada será seu combate mais eficiente e menos danoso. Dentreesses elementos estão a tentativa de obstar o contato do filho com o alienado sob diversosargumentos, desde não se
sentir bem na casa do outro cônjuge a um simples atraso ser motivode xingamento e acusações. Outra forma de se observar previamente a existência da alienaçãoé baseada nas falsas acusações de
abusos físico, emocional e sexual, todavia qualquerdenúncia deve
sim ser averiguada detidamente, especialmente, a de abuso sexual que, severdadeira, é causadora de um dano sem precedente na
criança198.
Já o abuso físico é mais fácil de ser detectado autorizando
uma avaliação maisobjetiva, porém uma forma de acusação de
abuso bastante utilizada pelo alienador é oemocional por ser extremamente difícil de ser verificado até porque, frequentemente,
nãopassa de “meras diferenças de juízo moral e de opinião entre
os genitores,”199.
Uma terceira maneira é observar o relacionamento do filho
antes da rupturaconjugal e fazer uma comparação com a atual situação, obviamente não deixando deconsiderar os desgastes que
ocorrem normalmente e as mudanças inerentes à separação.
Por último, é analisar o medo dos filhos quanto à desobediência ao alienador, vez que este faz chantagens emocio197
198
199
Loc cit.
TRINDADE, Jorge.,passim
Ibid. p. 315
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nais ao dizer que o filho o traiu e foi desleal se tomar partido do
alienado. Isso posto, denota-se a dificuldadeimposta aos filhos
que ficam condicionados a uma mentira e a uma dualidade de
sentimentos,dúvidas e culpas, além de perder a “noção do certo e
do errado [que] fica flutuante,favorecendo prejuízos na formação
do caráter”200.
Esses são os indícios que devem ser observados para já antever a probabilidade deocorrência da alienação e maiores danos
aos filhos, porém a própria Lei que instituiu aalienação parental no
Brasil (Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010) previu, em rolexemplificativo, as formas de alienação em seu art. 2º, parágrafo único201. Imperioso salientar que para a caracterização da alienação,
a nível processual, basta o mero indício da prática damesma não
exigindo a prova cabal do ilícito.
Ademais, segundo os estudos de Richard Gardner,202os
comportamentos observados nos filhos dividem-se emestágio
200
Ibid. p. 316
201
Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do
adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou
adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que
cause prejuízo ao
estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim
declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio
de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício
da paternidade ou maternidade;
II - dificultar o exercício da autoridade parental;
III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor;
IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar;
V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou
adolescente,
inclusive escolares, médicas e alterações de endereço;
VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para
obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente;
VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós.
202
TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 317 et seq
Capa
Sumário
499
leve, médio e grave. De tal sorte, no estágio leve a campanha dedesmoralização e o sentimento de culpa são pequenos e as situações fingidas são pouco freqüentes.No nível médio essas características se acentuam e começam a ter problemas narelação, bem
como surgem as situações fingidas e o comportamento da criança
começa a semodificar tornando-se agressivo ou inoportuno. Já no
estágio grave se apresenta um sériodano ao vínculo filho-alienado, surgindo um forte traço de ódio contra o alienado, “os quaispodem ser estendidos à sua família e àqueles que o rodeiam,”203 além
de aumentar ascampanhas de desmoralização contra o mesmo.
Necessário salientar que “os estágios da síndrome não dependem tão-somente dasartimanhas feitas pelo genitor alienador,
mas do grau de êxito que ele obtém com o filho,”204além de que só
será considerado alienação parental, obviamente, quando afastada aconcretude das denúncias e acusações de abuso ou descuido,
pois havendo abuso real afastadaestá a alienação parental205.
Gardner vereda pela linhade pensamento de que a alienação parental constitui um distúrbio psiquiátrico nomeando-o
desíndrome. O que levaria, inclusive, o genitor a apresentar um
“déficit na capacidadeparental,”206 desconsiderando as nuances
subjetivos dos atores envolvidos em cada caso concreto.
Em contraposição à postura adotada por Gardner de uma
“espécie de ‘sindromização’do sofrimento humano e de patologização de toda sorte de comportamento,”207a alienaçãoparental
não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais rechaçando oreconhecimento científico de distúrbio psiquiátrico.
Igualmente, a previsão legal queregulamentou a alienação
203
Id. p. 318
204
Loc cit.
205
Loc cit.
206
SOUSA, Analicia Martins de. Síndrome da alienação parental: um novo tema
nos juízos defamília. São Paulo. Cortez, 2010. p. 108
207
Ibid. p. 111
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
parental no ordenamento jurídico brasileiro208 afastou a abordagemda prática como uma síndrome, pois que essa é um “conjunto
de sintomas e manifestações”209e a considerou como “ato de alienação parental,”210 haja vista que o legislador entendeu quetanto
“a constatação e o enfrentamento da alienação parental se dêem
(sic) muito antes deinstaurada uma síndrome”211.
3.5 DISTINÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL
DE OUTROS INSTITUTOS
Enquanto a vítima daalienação quando questionada sobre
os fatos referentes à alienação demonstra insegurança ecerta dúvida ao relatar o caso, haja vista que a mesma não vivenciou aquilo
sendo meraimagem implantada pelo alienador.Avítima de abuso
lembradetalhadamente o ocorrido com ela. Ademais, o principal
ponto distintivo é que a campanhacontra o alienado só tem início
após a separação, enquanto que o abuso já apresenta queixasdesde a constância da união212.
Há ainda outra diferenciação feita pela doutrina entre a
alienação parental e o ambientefamiliar hostil, denominado pela
doutrina estrangeira de hostile aggressive parenting. Enquanto
que a alienação ocorre após a ruptura conjugal e se refere mais a
guarda dos filhos,casos análogos ou de divórcio o ambiente familiar hostil apresenta um amplo espectroocorrendo, até durante a
união conjugal, quando “duas ou mais pessoas ligadas à criança
ouao adolescente estejam divergindo sobre educação, valores, religião, sobre como a mesma deva ser criada etc”213.
208
Lei 12.318/2010
209
COSTA, Sirlei Martins da. Violência sexual e falsas memórias na alienação parental. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. v. 26. fev/mar 2012. p.
74
210
Loc cit.
211
Loc cit.
212
TRINDADE, Jorge.,passim
213
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., 605
Capa
Sumário
501
3.6 CONSEQUÊNCIAS DA ALIENAÇÃO PARENTAL
Cada vez mais se observa a existência da prática da alienação parental no seio dasfamílias que devem, ao identificar a existência da mesma, de imediato combater com osmecanismos e os
profissionais adequados com vistas à redução dos efeitos colaterais daalienação que podem se perpetuar na vida adulta.
Contudo, o crescimento linear é corrompido e ameaçado
pela alienação parentalrequisitando a imperiosa necessidade de
intervenção estatal na tutela dos menores, pois que odesenvolvimento da criança e sua incolumidade física-mental encontra-se
em perigo ao serexposta às denúncias e mentiras perpetradas pelo
alienador214.
É preciso muita atenção na observação da incidência da
alienação, haja vista que amesma é de difícil constatação precoce
uma vez que, apesar de apresentar indícios é árduodistinguir entre
uma mera chateação ou comentário infeliz de uma série de atos
prejudiciaisaos filhos e ao alienado.
Como efeito decorrente do abuso oriundo da alienação,
obviamente ocorre prejuízos edanos aos filhos fluindo entre a depressão, ao sentimento de culpa e de isolamento.
Ante o exposto, conclui-se que a influência e a amplitude
das consequências e doimpacto da alienação parental nos filhos
vão depender segundo Analicia Martins, ao citarRamires, do “nível
de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social”215 que ajudam duranteessa mudança familiar, “favorecendo as crianças mais velhas
e os adolescentes”216resguardada, obviamente, as particularidades do amadurecimento de cada criança eadolescente que varia
de um para outro.
214
215
216
TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 310 et seq
RAMIRES apud SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 39
Loc cit.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
4 MEDIAÇÃO
4.1 CONCEITO
Apesar de o Direito ser uma ciência normativa, essencialmente de cunho objetivo e racional,tem crescido em seu âmago a
tendência de abordar os assuntos a ele inerentes comuma maior
humanização para solucionar os conflitos e, mormente, com os
atores envolvidosna celeuma.217
Os conflitos, inerentes à natureza humana, são observados
mais detidamente no seiofamiliar que trazem consigo uma dualidade no sentimento de amor e ódio sedimentando econstruindo
o ser humano e a maneira como o mesmo se desenvolverá dentro
da família e emsociedade218. Em decorrência das novasconjecturas
da sociedade e de seus novos anseios e desejos, a prestação jurisdicional ofertadapelo Estado, através da construção de uma lide,
já se mostra insuficiente para suprir asnecessidades das partes em
conflito. Segundo aborda Liane Thomé:
No Judiciário não há espaço para oferecer atenção
às carências emocionais daspartes envolvidas em
conflitos, especialmente familiares, como frustrações,abandono, honra e respeito, que são aspectos
subjetivos das pessoas, mas quequando afetados
pelos conflitos, acarretam na disputa judicial, compensaçãofinanceira, como se constata nos longos
processos litigiosos de separação e divórcio,com
disputas acerca de guarda, visitas e alimentos para
os cônjuges, para os filhosmenores ou incapazes e
na partilha de bens219.
217
PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do direito civil na legalidade constitucional.
In: TEPEDINO, Gustavo (Org.) Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da
legalidade constitucional. Op. cit., p. 3
218
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Op. cit., p. 80
219
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 112
Capa
Sumário
503
Assim, visualizada as dificuldades do Estado julgador, em
particular na esfera familiar, abre-seo âmbito de atuação de resolução de conflitos, para além do Judiciário cogente, permitindoa
entrada de outros mecanismos de busca da paz social, objetivo
desejado por todos nosconflitos
Destarte, necessário se faz viabilizar e estimular mecanismos que reduzam os impactosdo fim do relacionamento e da prática da alienação parental sobre a prole estimulando aconvivência
e a solidariedade familiar. Dessa feita, a mediação se apresenta comoinstrumento adequado para a espécie de conflito familiar que
carrega consigo uma forte cargaemocional exigindo dos envolvidos um maior preparo psicológico, além do conhecimentojurídico
atinente ao caso220.
Logo, considera-se mediação a participação de um terceiro
imparcial ao conflito quefacilitará o diálogo, por vezes inexistente
entre os conflitantes, e auxiliará as partes
estimulando a conversação e o fechamento de uma decisão que será conclusiva para os
envolvidos. Decisão essa tomada pelos conflitantes que
chegarão a um consenso, inexistindouma decisão prolatada e imposta pelo mediador, que funciona como uma ponte de comunicação entre os mediandos221.
Apresentando-se a mediaçãocomo meio ideal de resolução
familiar, haja vista que os próprios envolvidos tomamconhecimento e ciência de suas atitudes, sopesando as consequências, seus
atos eresponsabilidades afastando, dessa forma, a típica atitude
de “transferência deresponsabilidade para a figura do juiz, buscando nele solução mágica e instantânea para todos os conflitos”222.
A mediação, método que modifica o conflito pelo diálogo,
fortifica os laços parentaise se apresenta como uma boa forma
220
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 299
221
BARBOSA, Águida Arruda. A linguagem da inclusão. In: Boletim IBDFAM, nº 67,
Ano 11, março/abril 2011. p. 4
222
FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 299
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
505
de liderar o conflito e a comunicação entre os entes, alémde atuar como um centro de convergência entre a família, o Direito e a
sociedade facilitando aconcretização dos princípios constitucionais, norte do ordenamento jurídico, “devolvendo aosenvolvidos
no processo de mediação a capacidade de responsabilidade por
seus atos, pois é nafamília que os modelos de relacionamento são
apreendidos e utilizados nas relações sociais”223.
Segundo Águida Arruda Barbosa,224 a mediação é um artifício social com fulcro noconhecimento teórico e que faz uso da
linguagem ternária,225 de inclusão em contraposição alinguagem
binária (“ou”), que é excludente, abarcando vários caminhos a serem seguidos adepender dos envolvidos na mediação e do alcance
do mediador encarregado do caso.Logo“trata-se da dinâmica da
intersubjetividade, visando ao exercício da humanização do acesso àjustiça, afastando qualquer forma de julgamento”226.
Nessa seara, a mediação aborda a comunicação entre as
partes conduzidas pelomediador que, nada julga ou decide, apenas busca a conscientização dos mediandos para queeles se comuniquem e busquem uma solução por si “com inclusão de ideias, de
respeitomútuo e de reconhecimento das diferenças”227 almejando
a comunicação dos envolvidos, umavez que o acordo em si não é
objeto direto da mediação, mas simples consequência.
Essaforma de resolução de pacificação deve ser estimulada
por políticas públicas, uma vez que éarraigado em nossa cultura o
cunho litigioso e conflituoso das relações estimulando o binômiovencedor versus vencido nas lides processuais. Para tanto, todavia,
é primordial aperfeiçoar osistema da mediação no País além de,
concomitantemente, educar as pessoas para uma culturade paz
por meio do diálogo e não do embate, o qual por vezes perdura o
conflito e apenas trazdesgaste aos envolvidos.
223
224
225
228
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 121
BARBOSA, Águida Arruda. Op.cit.,p. 3
Nos dizeres de Águida Arruda Barbosa “a linguagem ternária representa a concretude da filosofia da discussão”, o que condiz perfeitamente com o ideal
proposto pela mediação.
226
BARBOSA, Águida Arruda. Op. cit., p. 3
227
Id. p. 4
Capa
Sumário
4.1.1 O princípio da intervenção mínima
A dicção legal do art. 226, §6º da Carta Magna228 ratificou a
tendência estatal deredução da intervenção na vida privada valorizando a intimidade e a autonomia dasfamílias229. Assim, a priori,
o papel do Estado restringe-se à tutela e ao apoio assistencialgarantindo aos integrantes da família que vivam em um ambiente
saudável e digno quefomente o melhor desenvolvimento dos indivíduos envolvidos230. Dessa forma, observa-se oredimensionamento da atuação do Estado afastando-o das decisões tomadas
pela famíliapreservando sua autonomia e privacidade.
Todavia, a família não está desassistida, haja vista que o Estado está autorizado a intervir na mesma sempre que “houver ameaça
ou lesão a interesse jurídico de qualquer dos integrantes da estrutura
familiar,”231 seja em desfavor de terceiros ou dos próprios familiaresresguardando, assim, a incolumidade física e psíquica de cada um e
permitindo odesenvolvimento pleno e saudável de seus membros.
4.2 DISTINÇÃO ENTRE NEGOCIAÇÃO,
CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM
Enquanto a mediação “promove uma reflexão sobre o valor positivo do conflito, o quefaz com que seus partícipes, sob a
[...]
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado
§ 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio.
229
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 49
230
PEREIRA, Rodrigo da Cunha apud GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo
Pamplona. Op. cit., p. 104
231
GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., p. 104
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
atitude eqüidistante (sic) do mediador, libertem-se de suacarga
destrutiva”232 a negociação consiste, basicamente, na inexistência
de um terceiroinfluente sendo uma conversa entre os participantes do conflito que visam uma resoluçãoamigável caracterizando-se pela “conversa direta entre os envolvidos sem qualquerintervenção de terceiro como auxiliar ou facilitador”233.
Assim, a conciliação pode ocorrer antes ou durante o processo e, com a participaçãodo conciliador que liderará a conciliação, incorrerá na formação de um título executivo,objetivando
“formalizar um acordo e pôr fim à controvérsia ou ao processo
judicial”234.
A diferença crucial da conciliação para a mediação reside na
pessoa que conduz osprocedimentos, enquanto o conciliador emite
sua opinião e auxilia as partes no que eleacredita ser o melhor acordo para os envolvidos, o mediador conduz o procedimento damediação “abstendo-se de assessorar, aconselhar, emitir opinião e de
propor fórmulas deacordo,”235 haja vista que o cerne da mediação é
imbuir aos participantes a ideia deautorresponsabilidade.
No que tange à arbitragem, regulamentada no ordenamento brasileiro pela Lei 9.307/1996, ela consiste na faculdade das partes de escolherem essa forma de resolução deconflito, por meio de
compromisso arbitral236 ou cláusula compromissória,237 e no qual
ANDRADE, Gustavo. Mediação familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola
Santos; EHRHARDT JUNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de. (Coord.).
Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz
Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 506
232
233
CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 113
234
MILANEZ, Márcia; MAIA NETO, Francisco; VELOSO, Beatriz Bovendorp.
Conciliação e mediação. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=663>. Acesso em: 14/04/2012
235
236
CALMON, Petrônio. Op. cit., p. 144
Art. 9º, Lei 9.307/96 O compromisso arbitral é a convenção através da
qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial.
237
Art. 4º, Lei 9.307/96 A cláusula compromissória é a convenção através
da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os
Capa
Sumário
507
oárbitro proferirá uma decisão vinculativa às partes podendo “somente ser realizada porvontade expressa dos envolvidos no conflito ou prevista em contrato antecedente”238.
4.3 A INTERDISCIPLINARIDADE E O INCENTIVO À MEDIAÇÃO
É notório que “as disposições legislativas, bem como a forma como os processosjudiciais, por vezes, são encaminhados nas
Varas de Família podem contribuir para acirrar acontenda entre os
ex-parceiros”239 causando prejuízo à função parental. O fim de um
relacionamento e a ocorrência daalienação parental ocorre sob as
mais diversas variantes devendo-se “favorecer o diálogo nogrupamento familiar, ao mesmo tempo que promovem o respeito aos
direitos de pais, mães e filhos na família pós-divórcio”240.
Nesse esteio, observa-se a tendência contemporânea de
preocupação com aincolumidade psíquica dos indivíduos que
deve ser priorizada por meio de mecanismos quevisem “mais à
convivência familiar do que à punição de seus membros”241 como
a mediaçãofamiliar, a qual ainda auxilia na concretização dos princípios constitucionais vigentesrechaçando o binômio diagnóstico
versus punição. Assim, tem-se que repensar o “enfoquesobre o indivíduo; [as] patologias como explicação para os atos humanos, e
apunição/tratamento como solução de problemas sociais”242.
Ademais, apesar da necessidade do auxílio de outras áreas
do saber para a atuação damediação e no combate a alienação
parental, é forçoso atentar para a “questão do litígioconjugal [que]
deve ser analisada não por um viés psiquiátrico, que prioriza o
exame doindivíduo, mas por uma perspectiva sócio-histórica, que
litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.
238
239
240
241
242
CALMON, Petrônio. Op. cit., p. 97
SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 41
Ibid. p. 48
Ibid. p. 187
Loc cit.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
não opõe indivíduo e sociedade”243.
Posição essa adotada por Wânia Lima que defende que a
celeuma extrapola a esfera jurídicaabrangendo “uma questão psicojurídica, que envolve conflitos da dinâmica profissional dodireito, mas acima de tudo, abrange a subjetividade humana, objeto
atual de estudo da própriapsicologia”244.
Assim, a “mediação interdisciplinar contém (sic) a contribuição simultânea de muitosoutros saberes. Trata-se de um universo de reflexões do conhecimento”245. A necessidade de uma
equipemultidisciplinar (com psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras) para auxiliar na mediaçãodecorre da existência de vários
aspectos subjetivos246 subjacentes aos conflitos de alienaçãoparental que demandam a combinação de conhecimentos de diversas áreas.
A mediação deve ser divulgada e criada uma estrutura para
ser realizada para que aspessoas se sintam seguras na escolha
desse procedimento para resolver os conflitos oriundosda alienação parental.
A mediação proporciona uma série de vantagens, dentre
elas, a facilitação nacomunicação familiar, mormente após o fim
do relacionamento quando os envolvidos estãomais fragilizados,
o auxílio no processo psicológico de perda valorizando odiálogo e
o respeito entre os mediandos.E, acima de tudo, a incorporação de
uma maiorresponsabilidade e consciência às partes facilitando o
cumprimento de eventuais acordos edecisões tomadas, haja vista
243
Ibid. p. 198
244
LIMA, Wânia Claúdia Gomes Di Lorenzo. A produção de provas pessoais por
crianças e adolescentes: uma questão interdisciplinar. In: PAULO, Beatrice Marinho.
(Coord.). Psicologia na prática jurídica: a criança em foco. Niterói: Impetus, 2009. p. 276
245
BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: uma vivência interdisciplinar. In:
GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 344
246
GUIMARÃES, Ana Cristina Silveira; GUIMARÃES, Marilene Silveira. Guarda – um
olhar interdisciplinar sobre casos judiciais complexos. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. (Org.) Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 480
Capa
Sumário
509
que “a cultura da mediação muda a perspectiva e o olhar sobre o
conflito”247.
Rodrigo da Cunha ao relatar a importância da mediação
prescreve que a mesmavisa:
Desestimular a briga ao instalar a lógica conflitante
que constrói histórias de
degradação do outro para instalar a lógica consensual em que se pode vislumbrar aresponsabilidade
de cada um por suas escolhas e atitudes de modo
a não buscar nooutro as causas de sua infelicidade,
do insucesso conjugal e do seu desamparo estrutural248.
Pode-se afirmar a existência de uma cultura de litigiosidade do brasileiro que enxergao Judiciário como primeira opção
para resolver as celeumas, “em decorrência desse aspectocultural,
o número de mediadores e de interessados em praticar essa atividade é inexpressivoem face das dimensões e da população do
país”249.Demanda-se tempo e investimento para setransmudar de
uma cultura conflituosa para uma de diálogo e complementaridade.
Nessesentido preleciona Petrônio Calmon que “qualquer empreendimento complexo somente ébem-sucedido
quando qualificado por essas duas atividades: planejamento e
coordenação”250.
É crescente, porém, ainda incipiente a quantidade de pessoas que optam pela mediaçãopara resolver seus conflitos, seja
por falta de conhecimento desse instituto, seja pela cultura doenfrentamento arraigada em nossa história ou mesmo pela falta de
estrutura disponibilizada.
247
248
249
250
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 225
Loc cit.
CALMON, Petrônio. Op. cit.,p. 139
Ibid. p. 318
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
4.4 A MEDIAÇÃO E O MEDIADOR
Um dos maiores pontos distintivos da mediação para o
processo consiste na amplitudede atuação da mediação que
transborda os limites objetivos delimitados pela lide propiciandoaos envolvidos uma compreensão melhor de seus interesses,
compatibilizando-os. Como esclareceMarilene Marodin e Stella
Breitman a mediação facilita a resolução da disputa, “o que nãosignifica resolver o conflito ou mesmo chegar a um acordo. Ele alcança as ferramentas para aspessoas refletirem sobre o que está
acontecendo”251.
Apesar de ser imparcial o mediador “se vale de técnicas especiais ecom habilidade escuta as partes, as interroga apaga o problema, cria opções e tem como alvoque as partes cheguem à sua
própria solução para o conflito (autocomposição)”252.Esseterceiro
imparcial estimulará as partes para que elas desenvolvam seus
próprios recursos paraque transformem o conflito, estimulando o
diálogo entre elas tornando-o mais claro e direto eidentificando
os principais pontos que dão origem ao conflito intervindo “quando as partesinterrompem o diálogo, auxiliando-as a retomarem as
negociações e estimulando a procura desoluções adequadas às
suas expectativas e realidades”253.
Nesse esteio, pode ser mediador qualquer profissional, seja
da área do Direito, daPsicologia, da Assistência Social, desde que
se apresente capacitado e qualificado para afunção “por entidades reconhecidas e que ofereçam, além da teoria, a possibilidade doexercício da mediação, pois a mediação se aperfeiçoa com a
prática do procedimento”254.
251
MARODIN, Marilene; BREITMAN, Stella. A prática da moderna mediação: integração entre a psicologia e o direito. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 502
252
CALMON, Petrônio.Op. cit. p. 121
253
THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 125
254
Loc cit.
Capa
Sumário
511
Diante dessa exposição depreende-se a magnitude da importância do mediador que,ainda que imparcial e neutro, lidera a
mediação modificando as vidas dos envolvidos.
4.5 MEDIAÇÃO NO COMBATE À ALIENAÇÃO PARENTAL
O incentivo à mediação deve ser feito por meio da disseminação dessa forma deresolução de conflito e de suas benesses,
bem como de uma melhor estrutura e preparação dosprofissionais envolvidos para que se torne uma opção confiável às partes
demonstrando que amediação é a forma mais eficaz e vantajosa,
especialmente na esfera emocional.
Nessa seara, valoriza-se o caráter globalizante que se reveste a alienação parental quenão deve ser determinada por uma única causa e que, tampouco, apresenta apenas umaconseqüência
demandando dos profissionais um estudo complexo e em conjunto dosindivíduos e da dinâmica familiar para, só assim, extrair um
laudo mais acurado e com menosequívocos sobre a intensidade e
extensão da alienação na família255.
O rol de punições previstas ao alienador pela legislação
brasileira (Lei 12.318/2010,art. 6º274) que variam desde a multa
até a perda do poder familiar segue um ultrapassadométodo e hábito de punir para educar, método esse cada vez mais condenado,
haja vista mostrar-se inócuo.
Destarte, preza-se pela não punição e sim pela conscientização por meio da mediação,a qual se apresenta como instrumento para imbuir a responsabilidade dos atos aos envolvidos.
Por exemplo,o afastamento do alienador nem sempre deve ser
a medida mais adequada e vantajosa aomenor podendo “em realidade, ocultar uma outra forma de violência contra a própria
criança,causando a ela ainda mais sofrimento”256incorrendo, por
255
256
SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 47
Ibid. p. 177
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
vezes, em punição ao filho quando oque ele mais necessita é proteção.
Nesse sentido, a mediação agirá sobre a essência do problema causador da alienaçãoparental em contraposição ao processo judicial, conformeexpõe Maria Berenice:
A sentença raramente produz o efeito apaziguador
desejado pela justiça.Principalmente nos processos
que envolvem vínculos afetivos (...) A resposta judicial jamais responde aos anseios de quem busca
muitomais resgatar prejuízos emocionais pelo sofrimento de sonhos acabados do quereparações patrimoniais ou compensações de ordem econômica257.
O meio mais efetivo é o que busca a conscientização e mudança de atitude do alienador. Ademais, é imperioso utilizar “tempo e habilidadepara se buscar motivações e comunicações latentes
da criança e sensibilidade para interpretarcomportamentos”258o
que transcende a interpretação puramente legal.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A sociedade se transformou, a família mudou e a forma
como as relações são regidastambém se modificou. A família brasileira se transformou substancialmente ao longo dos anospassando de um núcleo patriarcal, patrimonial para uma esfera baseada na afetividade, napluralidade e na igualdade dos indivíduos
valorizando as máximas constitucionais.
Nessa seara, a transformação ocorrida na família, bem
como, na realidade brasileirademanda uma nova postura e atitude
em face da resolução dos conflitos devendo-se superar aarraigada
cultura de litigiosidade presente nos brasileiros para conscientizá257
258
Capa
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Op. cit., p. 83
LIMA, Wânia Claúdia Gomes Di Lorenzo. Op. cit., p. 276
Sumário
513
-los e educá-loscom vistas à autocomposição.
Para tanto, oPoder Público deve investir em políticas públicas que almejem difundir os benefícios da suautilização ampliando, assim, a esfera de atuação dos meios de autocomposição.
Há muitas questões não ditas, subjacentes ao conflito judicial, que o processo não irásolucionar. Apenas uma análise aprofundada da origem do problema, feita por meio damediação, poderá desvendar. Contudo, o primeiro passo da mediação dentro de
um caso dealienação parental é conscientizar o alienador acerca
dos males causados aos filhos. Isto é,chamar sua atenção acerca
da responsabilidade de seus atos para que, ciente da importância
desua figura na família, se torne mais fácil a reversão de sua atitude, partindo do próprio aconscientização e o desejo de mudar
para evitar danos aos filhos.
Ademais, com a caracterização da alienação parental no
ordenamento jurídicobrasileiro, por meio da Lei nº 12.318/2010,
os afetados com essa prática passaram a serassistidos pelo Direito
que passou a tutelá-los especificamente. Todavia, as previsõespunitivas ao alienador elencadas na Lei, que demandam um processo judicial, comumente serevelam ineficazes não coibindo os
agentes de perpetuarem o ato de alienação.
Ante o exposto, vislumbra-se a necessidade de mudança
de pensamentoconscientizando de que o litígio judicial pode ser
mais prejudicial e danoso aos envolvidos doque próprio conflito
sendo fundamental ofertar aos indivíduos um meio de solucionar
osconflitos, oriundos da alienação parental, pela via da mediação.
Almeja-se, assim, a manutenção dosvínculos parentais saudáveis
e da parentalidade responsável visando sempre a aplicabilidade
eo não esvaziamento dos princípios constitucionais.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
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Capa
Sumário
PONDERAÇÕES SOBRE OS IMPACTOS
PROCESSUAIS DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS
Daniela de Fátima Ramos Santiago MELO
Maria Cristina Paiva SANTIAGO
RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso, cujo título é
“ Ponderações sobre os impactos processuais dos alimentos gravídicos” tem como objetivo analisar o recebimento de alimentos
por um nascituro, possível em nosso ordenamento jurídico desde
a publicação da Lei 11.804/08. Foi analisado o direito à sobrevivência do nascituro, com um período de gravidez estável para a
gestante e para o nascituro. Também foram analisadas as críticas à
lei dos alimentos gravídicos, pela falta de comprovação taxativa de
quem é o pai para concessão dos alimentos. Se comentou sobre o
direito que a mulher grávida possui, mediante propositura da ação
antes do nascimento da prole, de buscar o ressarcimento e o auxílio financeiro do suposto pai, na parte que lhe cabe.
Palavras-chaves: Alimentos Gravídicos. Nascituro. Gestante. Ressarcimento.
1 INTRODUÇÃO
Esta pesquisa analisa os estudos jurídicos sobre o tema
alimentos gravídicos, em que o nascituro, através da sua genitora, vai poder adquirir direitos aos alimentos, ou seja, tutelar o direito à sobrevivência. Os alimentos gravídicos se baseiam na Lei
11.804/2008 e perante as Teorias da personalidade.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
Asa abordagens deste trabalho foram estabelecidas acerca
dos alimentos que estão relacionados ao direito à vida e um dever
de amparo entre parentes, cônjuges e companheiros, conforme
dispõe o art. 1.694 do CC. O início da personalidade acontece com
o nascimento com vida do ser humano, mas é salvaguardado pelo
Código Civil, desde a concepção, os direitos do nascituro.
É preciso dar importância ao bem estar e a saúde da mãe
durante esses nove meses de gestação, pois não seria justo que
as despesas necessárias no período pré-natal ficassem todas por
conta da gestante. Vale ressaltar que, a mulher pode estar desempregada no momento, e não podendo arcar com os gastos, sem
falar que, pode acontecer de ser uma gravidez de risco, com problemas, colocando a vida dela e do bebê em perigo.
É indispensável a responsabilidade do pai de contribuir
para o desenvolvimento saudável da criança, pois a lei visa proteger a gestação, e não há como separarmos a gestante do nascituro,
sendo assim, é por meio dela que irá se efetivar o direito do filho,
e esta é quem será a representante dele. Negar tal direito ao nascituro é negar o próprio direito fundamental à vida.
Não há como esperar provas contudentes, salvo as presunções de paternidade que basicamente dispensam qualquer outra
prova, deve a parte autora ter alguma prova de seu relacionamento, mas também deve o magistrado levar em consideração a presunção da boa-fé da parte autora, pois entende-se que a prova de
relacionamentos afetivos, principalmente aqueles poucos duradouros são de difícil produção.
Infelizmente, é observado que esta ação será a forma que
algumas mulheres terão para obter vantagens ilícitas de ex-parceiros ou mesmo de homens que nunca tiveram qualquer relacionamento.
Porém, concordar com essa posição, é contrariar toda a
construção jurídica de presunção de boa-fé. Não há dúvidas de
que muitas gestantes irão abusar desse direito concedido, mas
Capa
Sumário
519
nestes casos, responderão severamente pelo seu ato, pois há de
ser lembrado que o abuso de direito é ato ilícito e consequente
fonte para indenização por danos materiais ou morais.
Não se pode prejudicar as gestantes que têm na Ação de
Alimentos Gravídicos a única forma de obter um auxílio para gestação e atendimento aos interesses da criança de forma digna, por
conta da má utilização do instituto por algumas mulheres de má
índole.
2 REFLEXÕES SOBRE A PERSONALIDADE
JURÍDICA DO NASCITURO E DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
O nosso Código Civil prevê em seu art. 2º: “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” O texto legal afirma
que a personalidade jurídica não inicia com a concepção, como ocorre em outro países.259 Mas apesar de ainda não possuir personalidade
jurídica, o nascituro deve ter seus direitos preservados.
Três teorias principais discutem o tema da personalidade
jurídica dos nascituros: Teoria Natalista, Concepcionista e da Personalidade condicional. Para a teoria natalista,260 o nascituro só
adquire personalidade jurídica com o nascimento com vida. Esta
teoria foi adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, segundo
a doutrina majoritária conforme Maria Helena Diniz, Pablo Stolze
Gagliano e Silvio de Salvo Venosa, por exemplo. A teoria da personalidade condicional subordina os direitos do nascituro a uma
condição suspensiva que consiste no nascimento com vida. Ape259
Países onde vigora a Teoria Concepcionista: França, Holanda e Argentina, por
exemplo, dentre outros. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.21.ed.rev.,atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1.p. 179-180.
260
Países onde vigora a Teoria natalista: Itália, Alemanha e Brasil. FREITAS, Douglas Philipps. Alimentos gravídicos: comentários à Lei 11.804/2008 – 3. ed. -Rio de Janeiro: Forense,2011.p. 42
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
nas nascendo com vida o nascituro passa a ser reconhecido como
pessoa, de acordo com Yussef Said Cahali. Já a teoria concepcionista defende que todos os direitos e obrigações do nascituro começam da concepção, de acordo com Silmara Chinelato.
Mesmo antes da lei dos alimentos gravídicos, a doutrina já
tinha preocupações com a dignidade da pessoa, da grávida e do
nascituro. Autores como Pontes de Miranda261 já afirmavam que
durante a gestação pode ser preciso à vida do feto e do ente humano após o nascimento, outra alimentação ou medicação. Dizia ele
que os cuidados não pertencem à mãe, mas ao concebido.
Com os alimentos gravídicos se tornou possível proteger o
nascituro, concedendo alimentos em favor destes seres humanos.
A lei dos alimentos gravídicos262 preservou o nascituro por meio de
sua mãe, a gestante. Esta previsão legal se deu por conta da discussão doutrinária envolvendo as teorias natalistas e concepcionistas, ainda não definida no direito civil brasileiro. Portanto, não
era possível destinar os alimentos diretamente ao nascituro, mas
sim em favor da mãe, para que os beneficie por consequência, já
que estão em desenvolvimento no ventre materno.
Antes da lei 11.804/2008 a jurisprudência do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul263 já concedia os alimentos para os
nascituros, mas apenas nos casos de presunção legal de paternidade, conforme dispõe o art. 1.597 do CC264. A partir do nascimento
261
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito de Família. Campinas: Bookseller,
2001.p.292.
262
Lei 11.804/2008, publicado em 5 de novembro de 2008.
263
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação de Alimentos, n
596067629. Rel. Des. Tupinambá Miguel do Nascimento. Jugado em 17/07/96. Disponível
em :< http:// www. tjrs.jus.br/site> Acesso em 22 out.2014.
264
Art. 1.597 CC.Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por
morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes
Capa
Sumário
521
com vida, a titularidade dos alimentos até então gravídicos passa
a ser do recém-nascido, sendo convertidos em pensão alimentícia,
podendo estes alimentos serem revistos posteriormente para se
adequarem à necessidade da criança.
A mãe nos alimentos gravídicos atua em nome próprio no
período de gestante, como representante legal do nascituro, sendo
substituta processual após o nascimento da criança, pois o titular
da ação será o filho que defenderá em nome próprio seus direitos.
Os alimentos gravídicos representam uma verdadeira evolução no
direito de família, pois concedeu proteção real ao nascituro. Por
outro lado, é importante que existam políticas públicas265 inibitórias da maternidade irresponsável, dando preferência a uma
gravidez planejada.
2.1 O DIREITO À VIDA E OS ALIMENTOS GRAVÍDICOS
Nascituro é uma palavra que deriva do latim e significa
criança que está para nascer, segundo Cristiano Chaves de Farias.
O direito à vida no nascituro tem uma maior proteção com os alimentos gravídicos. A lei salvaguarda os interesses do nascituro,
que são a vida, honra, imagem, nome, principalmente, e também,
os alimentos. O fato do nascituro possuir proteção legal provoca
um dissenso doutrinário, uma parte acredita que os nascituros
possuem personalidade jurídica, sendo estes adeptos da teoria
concepcionista. Já outros doutrinadores rejeitam a personalidade
jurídica dos nascituros, estes defensores da teoria natalista, como
já comentado anteriormente no tópico anterior.
de concepção artificial homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do
marido.
265
Políticas públicas são conjuntos de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado diretamente ou indiretamente, com a participação de entes públicos
ou privados, que visam assegurar determinado direito de cidadania, de forma difusa ou
para determinado seguimento social, cultural, étnico ou econômico.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
O Código Civil brasileiro traz em seu art. 2º: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida: mas a lei
põe a salvo, desde à concepção, os direitos do nascituro.” Mesmo
para os doutrinadores que não aceitam a personalidade jurídica
do nascituro, não há discussão de que para os nascituros devem
ser assegurados o direito à vida, observando o princípio da dignidade humana. No Brasil o aborto é crime, contra a vida humana pelo Código Penal Brasileiro, apenas com exceções quando há
risco de vida da mãe causado pela gravidez, quando essa é resultante de um estupro e se o feto não tiver cérebro. Quando essa decide abortar, deve realizar o procedimento gratuito pelo Sistema
Único de Saúde.Como os alimentos são uma consequência direta
do direto à vida, aos nascituros não pode ser negado o direito aos
alimentos.
Os alimentos gravídicos dificilmente eram concedidos sem
a comprovação da paternidade antes da Lei 11.804/08, de acordo
com a maioria da jurisprudência. A gestante tinha que aguardar o
nascimento do bebê para que pudesse ajuizar uma ação investigatória de paternidade. Nesse período a mulher precisa de cuidados maiores e acaba existindo mais despesas, como alimentação
especial, assistência médica e etc. O Código Civil de 1916 já fazia
a previsão de por a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Leis esparsas anteriores ao novo código civil também protegiam o nascituro, como a lei 9434/97. O Estatuto da Criança e do
Adolescente também protege o nascituro em alguns artigos, como
no art. 8º, que determina o atendimento pré-natal à gestante pelo
Sistema Único de Saúde. Até mesmo o Código Penal preserva o
nascituro quando prevê crime o aborto provocado.
Os alimentos gravídicos, pela sua natureza, precisam ser
deferidos rapidamente pelo Judiciário, de acordo a proteção à
maternidade e à infância, descrito do art. 6º, caput da CF que trata
dos direitos sociais266. Não é aceitável que perdure por todo o perí266
Capa
Art. 6º CF. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho,
Sumário
523
odo gestacional, pois pode comprometer o bom desenvolvimento
do nascituro e por consequência, da criança, caso a gestante não
tenha condições de arcar com as despesas.
A Lei dos alimentos gravídicos ingressou no mundo jurídico
com o objetivo de proteger os nascituros gestados principalmente
por mães solteiras sem condições financeiras de bem alimentar a
futura criança. Se a mulher for casada, se aplica o art. 1.597 do Código Civil, o qual considera presumida a paternidade do marido, se
for alegada pela gestante casada.
O direto à vida é uma dos direitos das personalidade mais
importantes. A proteção do direito à vida é garantida com os alimentos gravídicos, pois sem os cuidados necessários, a criança no
ventre da sua mãe pode ter o desenvolvimento comprometido e
até perder a vida, sendo não observado o princípio da solidariedade que é a base do direito alimentar. A gestante tem o dever de cuidar bem do nascituro, mas deve ter o auxílio do pai, nem que seja
apenas financeiro, já que a responsabilidade pela integridade da
criança deve pertencer ao pai e a mãe em igualdade de condições.
Sobre os alimentos ao nascituro, já sustentava Pontes de
Miranda (2001,p. 292):
“[…] no caso de mulher, que engravidou e que tem,
por este fato, direito a maior prestação de alimentos, não se leva em conta o ter nascido ou não com
vida, o filho. O que importa é o alimento da mãe durante o tempo de gravidez e o alimento indireto do
feto. O que deve alimentos ao filho deve-os à mãe,
durante a gestação e a amamentação.”
A lei de alimentos gravídicos sedimentou o posicionamento concepcionista do ordenamento jurídico pátrio, acerca da personalidade do nascituro. O direito à vida inicia-se desde a concepa moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
ção no útero da mãe, e também nasce na concepção o direito à
percepção dos alimentos pelo nascituro. Sobre a personalidade
jurídica do nascituro, observa Maria Helena Diniz (1999.p. 09):
“Na vida intrauterina, tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, passando a
ter personalidade jurídica material, alcançando os
direitos patrimoniais que permaneciam em estado
potencial, somente com o nascimento com vida.
Se nascer com vida, adquire personalidade jurídica
material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá”
A gestante pleiteia os alimentos em nome do nascituro que
carrega em seu ventre como verdadeira representante267, para obter os cuidados necessários para o sustento durante a gestação,
bem como medicamentos ou atendimentos médicos e hospitalares. Os alimentos gravídicos pertencem ao nascituro, não à gestante, muito embora a legitimidade ativa para ajuizar a ação seja da
gestante. Assim, a concepção pode ser considerada a partir da nidação do ovo nas paredes do útero, sendo a partir deste momento
o nascituro merecedor do direito à vida e alimentos, para a teoria
concepcionista, segundo Fernanda Martins Simões.
O conceito jurídico dos alimentos desde as ordenações filipinas era ampliado em relação ao estrito limite de mantimentos
e cura, incluindo vestuário e habitação. No atual conceito de alimentos, entram as necessidades intelectuais, morais, recreativas
e sociais, reconhecidas como necessidades da pessoa. O conceito
267
Art. 3o CC. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da
vida civil:
I - os menores de dezesseis anos;
II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Capa
Sumário
525
jurídico dos alimentos pode ser definido como valor destinado a
satisfazer as necessidades naturais e sociais do ser humano em
sentido pleno, fixados com base nesta necessidade. A teoria moderna acerca da fixação dos alimentos é liderada por Rui Portanova, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.
Ele fala em três itens fundamentais para a fixação dos alimentos:
necessidade, disponibilidade e proporcionalidade, segundo Fernanda Martins Simões.
O ordenamento jurídico vigente no Brasil ampliou o dever
de alimentos, conforme previstos nos artigos 227, caput268 e 230269
da Constituição Federal e o novo Código Civil de 2002, dos artigos
1694 a 1710 CC. Neste cenário de ampliação da importância dos
alimentos em nosso ordenamento jurídico, os alimentos gravídicos vieram proteger o nascituro, responsabilizando o pai desde a
concepção na concorrência de todas as despesas decorrentes da
gravidez, forçando-o a cumprir uma paternidade responsável.
Os alimentos gravídicos podem ser conceituados como
“alimentos prestados durante o período gestacional, em que a grávida imprescinde para ter um pleno desenvolvimento saudável do
bebê que está em seu ventre” (Simões, 2013, p.208). Para se chegar
aos alimentos gravídicos, foram considerados alguns princípios
constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa humana, pois se considera um valor espiritual e moral inerente à pessoa,
que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente
268
Art. 227 CF. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança,
ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma
de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
269
Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e
bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
§ 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus
lares.
§ 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes
coletivos urbanos.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao
respeito por parte das demais pessoas. Tal princípio teve seu conceito expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos no
seu artigo 1º270 e foi efetivado internacionalmente com o Pacto de
São José da Costa Rica.
Como o período da gestação requer muitos cuidados, pois
a mulher fica mais vulnerável, os alimentos gravídicos devem cobrir todas as necessidades da mulher e do nascituro, como ingestão de suplementos vitamínicos, alimentação especial, assistência
médica e psicológica, internações, o parto, dentre outras. As despesas a que se refere a lei dos alimentos gravídicos são direcionadas apenas ao período gestacional e em benefício do nascituro,
não abarcando gastos pessoais da gestante, que devem suportados pela mãe ou por parentes.
A finalidade dos alimentos gravídicos é garantir um nascimento digno para a criança, com um comprometimento dos pais
na saúde e segurança do nascituro que se tornará uma criança. Alimentos estes devidos deste a concepção.
2.2 A LEI 11.804/08 : UMA ANÁLISE À LUZ DOS
PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO ALIMENTAR
A lei 11.804/2008 foi publicada no Diário Oficial da União
em 6 de novembro de 2008. Ela foi vetada parcialmente pelo Presidente da República Luís Inácio “Lula” da Silva, dos seus doze
artigos originais restaram seis, mas estes foram suficientes para
garantir os alimentos gravídicos no país. Esta lei também trouxe
bastante polêmica, pois abria a possibilidade de uma mãe solicitar
alimentos de um homem sem comprovação de paternidade.
270
Artigo 1: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São
dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade.
Capa
Sumário
527
A lei dos alimentos gravídicos veio do projeto de lei
7.376/2006, proposto pelo senador Rodolpho Tourinho no dia 28
de julho de 2006. (FREITAS, 2011, p.19). Após dois anos e alguns
meses de tramitação no Congresso Nacional, a lei foi aprovada,
em um procedimento relativamente rápido para os padrões do
congresso nacional. O projeto de lei enfrentou críticas do IBDFAM –
Instituto Brasileiro de Direito de Família. Dentre as críticas, estava
a determinação do foro competente como o do réu, o que poderia
prejudicar muito as mulheres grávidas, ainda observando que o
foro deve ser privilegiado ao credor de alimentos. Tal artigo não
permaneceu na lei aprovada. Outro artigo exigia exame pericial
caso houvesse oposição à paternidade, exame este que poderia
pôr em risco a vida da criança. Este dispositivo também não permaneceu na lei 11.804/08.
Na época do projeto de Lei 7.376/2006 alguns operadores
do direito imaginaram que a lei dos alimentos gravídicos traria
uma avalanche de ações no judiciário com o objetivo único de retirar dinheiro de pessoas inocentes, acusadas de paternidade indevidamente, já que não haveria exigência de prova pericial. Entretanto, não foi o que ocorreu após a promulgação da lei, com um
volume de ações bem inferior ao que se esperava e em sua grande
maioria ajuizadas contra o verdadeiro pai.
A lei 11.804/08 traz em seu art. 2º que os alimentos gravídicos deverão cobrir as despesas decorrentes do período de gravidez
e as despesas adicionais, como alimentação especial, assistência
médica e psicológica e outras despesas. Os alimentos devem ser
custeados pelo futuro pai, considerando-se a contribuição da mãe
na proporção de suas possibilidades econômicas, devendo ser
avaliado pelo juiz o caso concreto.
O art. 6º da lei determina que o juiz fixará alimentos gravídicos até o nascimento da criança, considerando sempre as possibilidades do futuro pai e as necessidades da futura mãe. Deve se
ressaltar que os alimentos gravídicos se tornarão automaticamen-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
te em pensão alimentícia em favor da criança até que seja ajuizada
uma ação revisional de alimentos. O artigo 7º prevê que o réu será
citado para apresentar resposta em até cinco dias.
A Lei 11.804/08 trouxe grandes avanços no direito de família, mesmo com poucos artigos conseguiu firmar os alimentos gravídicos no ordenamento jurídico nacional.
2.3 ASPECTOS POLÊMICOS DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS
A Lei dos alimentos gravídicos tem alguns aspectos que
podem ser considerados polêmicos. A titularidade da ação é um
destes aspectos. A legitimidade ativa pertence à mãe e não ao nascituro, de acordo com a Lei 11.804/08. Os alimentos são dedicados
na realidade ao nascituro e não para satisfazer as necessidades
pessoais da mãe. As despesas da mãe devem ser decorrentes da
necessidades da gestação.
Deve ser observado que a pensão devida à criança após o
nascimento se rege pela Lei de Alimentos 5.478/68. Esta lei exige
uma prova pré-constituída, ou seja, junto a peticão inicial deve
constar a prova, de que há um parentesco ou então pelo menos
uma relação conjugal. Já na lei que protege o nascituro não há
esta exigência, apenas devem existir indícios de paternidade. Estas comparações podem parecer que as leis são incongruentes,
pois a exigência é bem maior para concessão de alimentos à criança após o nascimento.
Pode se supor que a lei deveria exigir um teste de comprovação de paternidade para fins de concessão dos alimentos gravídicos. Mas este teste pericial deveria ser feito retirando líquido
amniótico da gestante, o que poderia colocar em risco a gravidez,
pois há intervenção cirúrgica. Por esta razão, não é prudente se
realizar um teste pericial de comprovação da paternidade antes no
nascimento do bebê.
De acordo com a lei 11.804/08, a concessão dos alimentos
Capa
Sumário
529
gravídicos depende apenas de indícios de paternidade juntados
aos autos da ação de alimentos. Todas as provas admitidas em
Direito são aceitas para que se comprovem os indícios de paternidade. A fumaça do bom direito deve estar presente para que o
juiz conceda os alimentos em favor do nascituro, condenando um
suposto pai apenas pelos indícios.
Decisões judiciais divergem quanto à avaliação das provas
e da concessão dos alimentos gravídicos, por conta do subjetivismo na avaliação destes indícios de paternidade.Enquanto já houve concessão de alimentos gravídicos em razão de troca de e-mails
entre a mãe e o suposto pai, outro Tribunal de Justiça negou os alimentos gravídicos mesmo com fotografias de relação entre a mãe
e o suposto pai.
Existe uma questão polêmica envolvendo os alimentos
gravídicos no que diz respeito à possibilidade da mãe escolher
qualquer pessoa para ser o réu da ação, já que não há exigência de
prova robusta para concessão dos alimentos. Uma mulher pode
chantagear um homem casado com quem ela mantenha relações
extraconjugais, ameaçando entrar com ação de alimentos gravídicos mesmo sem saber se está grávida mesmo daquela pessoa.
Ou até em uma situação extrema, uma mãe ajuizar uma ação de
alimentos gravídicos citando como réu um homem com quem ela
não tem qualquer relação afetiva, motivada por dificilmente existir
possibilidade de restituição futura quando comprovada a não paternidade do acusado. Nestes casos, há evidente má-fé da autoria
da ação, que deve ser condenada de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil discriminadas no Código Civil.
Outra questão importante em uma ação de alimentos
gravídicos é que o réu pode alegar que a gestante não mantinha
relações sexuais exclusivamente com ele. Pode ser cogitado um
litisconsórcio passivo necessário271 com os outros parceiros da fu271 Litisconsórcio é uma pluralidade de pessoas atuando como parte no mesmo
polo da relação processual.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
tura mãe. Entretanto, quando existe apenas uma incerteza sobre o
verdadeiro pai é difícil para o judiciário considerar o litisconsórcio
passivo, pois há pequenas possibilidades de prova. Também existe
o prejuízo de o processo poder se alongar por mais tempo, o que
seria prejudicial ao nascituro, que necessita dos alimentos com urgência.
Já em casos de violência sexual contra a mulher por mais
de um homem o litisconsórcio passivo é viável, pois pode ser anexado aos autos a prova da violência sofrida pela gestante, como
laudo médico e boletim de ocorrência, por exemplo. A defesa do
réu calcada na pluralidade de parceiros sexuais da gestante configura uma dúvida que pode até favorecer a futura mãe e não o réu,
como ocorre nas ações de investigação de paternidade, pois nos
alimentos gravídicos a produção probatória deve ser superficial,
apenas indícios já permitem ao juiz conceder os alimentos gravídicos em favor do nascituro(Simões, 2013 p. 220).
Um outro aspecto polêmico, também bastante discutido
em sede de análise da lei dos alimentos gravídicos é a má-fé que
algumas gestantes poderiam se utilizar para responsabilizar homens sabidamente inocentes, se aproveitando do fato de que esta
lei não exige a prova da paternidade para concessão dos alimentos gravídicos. Nestes casos, quando a gestante ajuíza uma ação
sabendo que o réu não é o verdadeiro pai, se comprovado o ato
de má-fé, o prejudicado poderá ser ressarcido futuramente, com
base no art. 187272 do Código Civil, que reprime o abuso no direito
de ação. O réu prejudicado poderá ingressar com ação de indenização pelos danos materiais e morais sofridos.
Outro ponto polêmico é quando ocorre a omissão do verdadeiro pai, quando ele sabe que o filho é dele, permite que a mãe
intente ação contra outro réu. Neste caso também cabe indeniza272
Art. 187 CC. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo,
excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
Capa
Sumário
531
ção em favor do prejudicado réu, caso provada a má-fé do verdadeiro pai em se omitir ao tomar conhecimento do ajuizamento da
ação de alimentos gravídicos contra outra pessoa. A dificuldade
nestes casos reside na prova, pois não é fácil provar a má-fé do pai
omisso, assim como não é fácil provar a malícia da mãe ao entrar
com uma ação contra um réu sabidamente inocente. Como não é
possível fazer o exame de DNA sem prejudicar a saúde do nascituro, é praticamente impossível obter prova conclusiva a respeito da
paternidade do futuro bebê.
O exame pericial de DNA pode ser feito logo após o nascimento da criança sem qualquer risco ao bebê, mas apenas após o
nascimento. Atualmente na ação de investigação de paternidade,
caso o suposto pai se recuse a fazer o exame de DNA, se presume273 a paternidade, esta uma presunção relativa expressa na lei
8.560/92, alterada em 2009.
Ao nascer a criança, os alimentos gravídicos passarão a ser
dirigidos a ela como titular, substituindo a gestante. Se o suposto
pai, réu na ação de alimentos gravídicos, se recusar a fazer o exame de DNA, não se livrará da pensão alimentícia devido à presunção de paternidade legal. Entretanto, se a mãe se recusa ao exame
de DNA após o nascimento da criança, a pedido do suposto pai
que pagou os alimentos gravídicos durante a gestação, o juiz pode
considerar a presunção de inocência do réu, pois não há motivos
plausíveis para a mãe se esquivar do exame pericial de DNA após o
nascimento do bebê.
Outro ponto que deve ser abordado na seara alimentícia
é sobre os alimentos avoengos, de responsabilidade dos avós da
criança. Esta responsabilidade dos avós é subsidiária e complementar à dos pais, que devem compartilhar igualmente a responsabilidade pelos alimentos dos filhos. Os avós só respondem caso
273
Presunção é um processo racional do intelecto, pelo qual do conhecimento de
um fato infere-se com razoável probabilidade a existência de outro ou o estado de uma
pessoa ou coisa”. Cândido Rangel Dinamarco.p.213.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
o pai e a mãe não possuam qualquer condição de arcar com os
alimentos da criança. O código civil traz esta previsão em seu art.
1.698274.
O Conselho da Justiça Federal sumulou o entendimento
de que os avós serão obrigados a prestar alimentos aos netos em
caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não-solidário, quando os pais estiverem impossibilitados de fazê-lo. Esta súmula é a
342275 do CJF (Conselho de Justiça Federal). Esta súmula na realidade visa a proteger os avós, que só devem ser chamados a pagar
os alimentos em caso de completa impossibilidade dos pais e não
de qualquer forma, assumindo muitas vezes a irresponsabilidade
dos seus filhos, tendo que dividir as despesas próprias com os alimentos contando geralmente apenas com os poucos recursos auferidos dos proventos de aposentadoria.
Se os avós da criança possuírem um boa condição financeira, ainda assim os pais não devem se esquivar de sua obrigação,
os alimentos avoengos permanecem com um caráter subsidiário
e complementar. A mãe da criança não pode ignorar o pai e solicitar os alimentos diretamente aos avós, por medida de justiça, pois
quem detêm a responsabilidade de criar e educar os filhos são os
pais.
A doutrina considera que estes alimentos gravídicos em favor do nascituro devem ser ajuizados primeiramente em face do
pai. Caso se verifique sua impossibilidade financeira nos autos do
processo, os avós poderiam teoricamente fazer parte do proces274
Art. 1.698.CC Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver
em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau
imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer
na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as
demais ser chamadas a integrar a lide.
275
342 do CJF — Observadas as suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não-solidário, quando os pais destes estiverem impossibilitados de faze-lo,
caso em que as necessidades básicas dos alimentandos serão aferidas, prioritariamente,
segundo o nível econômico-financeiro dos seus genitores.
Capa
Sumário
533
so como réus. Mas neste caso não seriam exatamente alimentos
gravídicos, mas alimentos em favor do nascituro, devidamente representado pela gestante nos autos do processo. A doutrina ainda
diverge quanto a esta possibilidade dos alimentos avoengos ao
nascituro, pois não há ligação parental da gestante com os avós
paternos do bebê e por outro lado o nascituro sempre deve ser
protegido conforme a lei de alimentos gravídicos.
Por causa da possibilidade de responsabilização subsidiária dos avós, vários pais na prática deixaram de temer a prisão civil
por inadimplemento da pensão alimentícia, já que na prática em
muitas ações a justiça obriga os pais do devedor principal a arcar
com o débito alimentício e livrar o pai da criança da prisão. Uma
alternativa interessante, que se discute no meio jurídico, segundo
Simões e Ferreira, para forçar o pai a pagar sem atrasos as parcelas
da pensão alimentícia seria a inserção do nome do pai devedor
nos serviços de proteção ao crédito, como o SPC e SERASA, por
exemplo. Com o nome inscrito nestes órgãos de proteção ao crédito, a pessoa tem muito prejuízo, pois não pode fazer nenhum empréstimo, comprar produtos financiados nas lojas, terá dificuldades para firmar contratos de aluguéis, tomar posse em concursos
públicos, dentre outros problemas financeiros.
A inserção do nome do devedor de pensão alimentícia nos
órgãos de proteção ao crédito pode ser perfeitamente aplicável
aos alimentos gravídicos. Não há qualquer impedimento legal,
mas a jurisprudência e doutrina em regra opõe resistência a esta
sanção (Simões, 2013,p. 232) por não existir previsão expressa na
legislação, não existe nenhuma norma que preveja a inclusão do
nome do devedor de alimentos nos serviços de proteção ao crédito, como forma de efetivar a percepção da verba alimentícia pelo
nascituro ou criança. Esta inserção pode ser também uma alternativa à prisão civil por inadimplemento da pensão alimentícia.
Para sanar a falta de previsão legal no que diz respeito à
inclusão do nome do pai devedor de pensão alimentícia, tramita
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
no Congresso Nacional o projeto de lei 7.862/2010, que pretende
alterar o art. 733276 do CPC para possibilitar a inserção do nome do
devedor de alimentos nos cadastros de restrição ao crédito. Em
outros países, como na Argentina, já existe norma semelhante277 a
esta do projeto de lei 7862/2010. Apesar de parecer uma boa proposta, tal projeto de lei foi arquivado em janeiro de 2011.
Existe também o projeto de lei 7.841/2010, que visa alterar
o mesmo art. 733 do Código de Processo Civil, regulamentando o
protesto extrajudicial de dívidas alimentares, incluindo a possibilidade de criar um rol de maus pagadores de pensão, que deixem
de pagar 3 parcelas seguidas de pensão ou 5 alternadas, evitando
a prisão civil por dívida.
Vozes contrárias a estas medidas de inserção dos devedores de pensão alimentícia no rol de maus pagadores alegam que
o registro nestas listas viola os direitos individuais do devedor,
como privacidade e intimidade. Por outro lado, os inadimplentes
de pensão alimentícia causam um grave problema social, no caso
dos alimentos gravídicos podem comprometer até a viabilidade
do nascimento de uma vida, caso a gestante não possua condições
mínimas para ter uma gravidez tranquila e segura.
A inserção do nome do pai inadimplente no rol do maus
pagadores ou nos serviços de proteção ao crédito seria mais uma
segurança para a mãe e para o nascituro no caso de alimentos gravídicos de que o devedor deverá honrar a sua obrigação de prestação desses alimentos.
276
Art. 733.CPC Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos
provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento,
provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo.
§ 1oSe o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de
1 (um) a 3 (três) meses.
§ 2oO cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas
§ 3oPaga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão.
277
Lei 13.074 da Província de Buenos Aires que criou o registro de devedores alimentários morosos.
Capa
Sumário
535
2.4 QUESTÕES PROCESSUAIS DOS
ALIMENTOS GRAVÍDICOS
Neste item discorreremos sobre os aspectos processuais da
ação de alimentos gravídicos, e acordo com a lei 11.804/08 e legislação aplicável. De acordo com a lei dos alimentos gravídicos, a
mulher pode propor ação antes do nascimento do filho, de buscar
o ressarcimento e o auxílio financeiro do suposto pai, na proporção dos recursos de cada um deles, desde a concepção até o parto,
sendo convertidos os alimentos gravídicos em pensão de alimentos após o nascimento da criança.
Assim como na pensão alimentícia, os alimentos gravídicos
são exequíveis e irrepetíveis, não se pode pedir restituição do que
se pagou, mesmo que depois se descubra que o pai na realidade
não era o acionado pelos alimentos gravídicos. Ao nascer, o bebê
será o novo alimentando, a lei aplicável deixa de ser a 11.804/08 e
passa a ser a pensão alimentícia, de acordo com o o art. 6º da própria Lei de alimentos gravídicos. A pensão alimentícia será paga
em favor do menor até que seja solicitada sua revisão.
O domicílio para propor a ação de alimentos gravídicos é o
da gestante, em razão de ela ser a alimentada beneficiada por lei
e por deter a posse em nome do nascituro. Este é o entendimento
predominante da doutrina e da jurisprudência, pois a competência não está expressa na lei.
A súmula 383278 do STJ traz a previsão de que a competência
para processar e julgar ações conexas de interesse do menor cabe
ao foro do domicílio do detentor da guarda. No caso dos alimentos gravídicos, a competência é sempre do foro da gestante, que
carrega o nascituro em seu ventre. Entretanto, o projeto de lei dos
alimentos gravídicos previa em seu art. 3º que o for seria o domicílio do réu, mas este artigo foi vetado na publicação da lei. De toda
278
STJ Súmula 383 : A competência para processar e julgar as ações conexas de
interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda.
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
forma, não há impedimento legal para que a ação de alimentos
gravídicos seja interposta no domicílio do réu, se por acaso a autora entender que facilitará o andamento da ação.
A propositura da ação de alimentos gravídicos deve ocorrer
após a concepção e antes do parto, pois só faz sentido no período
da gravidez. Se a mãe buscar os seus direitos após o nascimento no que diz respeito aos gastos com despesas de gravidez, deve
ajuizar ação indenizatória. Para solicitar alimentos ao menor, deve
entrar com a ação de alimentos, que pode ser cumulada à ação de
investigação de paternidade.
Na ação de alimentos gravídicos, a gestante pode pleitear
todas as despesas já realizadas desde a concepção até o parto,
mesmo que tenha entrado com a ação alguns meses após a confirmação da gravidez. Ao receber a citação, o réu estará obrigado
ao pagamento das despesas da gravidez e da pensão para os filhos
quando nascerem, segundo Douglas Freitas.
Sobre o polo ativo da ação de alimentos gravídicos, a mulher gestante é a legitimada pra o ingresso da ação de alimentos
gravídicos de acordo com o caput do art. 1º da Lei 11.804/08. Se a
gestante for menor ou incapaz, pode ser assistida ou representada
por quem possuir a tutela, esta para maiores de 16 e menores de
18 anos ou a curatela.
O polo passivo da ação de alimentos gravídicos é o pretenso pai, sugerido por indícios279 de paternidade apresentadas no
processo. Também pode ocorrer a indicação de paternidade presumida, de acordo com o art. 1.597280 do Código Civil. Nos casos de
279
Indícios são sinais aparentes ,Vestígios que um fato existe.
280
Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;
II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por
morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;
III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes
de concepção artificial homóloga;
Capa
Sumário
537
indício de paternidade não há prova pericial a ser realizada, pois o
art. 8º da lei original foi vetado. O projeto de lei previa a realização
de exame intrauterino, o que era condenado por especialistas médicos, já que tal exame de DNA antes do nascimento poderia pôr
em risco a vida do nascituro.
Como não é possível fazer o teste de DNA, não há prova
conclusiva de paternidade até que o bebê nasça, logo as demais
provas são cercadas de dúvidas e são em várias situações bem frágeis, são na realidade meros indícios de paternidade, bastando a
verossimilhança das alegações e de documentos que porventura
possam ser apresentados.
A presunção de boa-fé281 da autora deve ser considerada
pelo magistrado para conceder os alimentos gravídicos, mesmo
sem qualquer prova documental ou pericial, se for constatado que
existem ao menos indícios de paternidade.
Parte da doutrina entende que algumas mulheres poderiam se utilizar da ação de alimentos gravídicos para maliciosamente prejudicar ex-parceiros ou até terceiros que não conhecem
quando sabidamente não são os pais da criança que elas esperam.
Nestes casos a má-fé poderia ser comprovada posteriormente, e
os prejudicados devem entrar com uma ação de reparação por danos morais e materiais causados pela gestante de má-fé. Na época da promulgação da lei 11.804/08 se imaginava que poderiam
existir muitos casos de má-fé, mas na prática houve pouquíssimas
situações desta natureza.
Os casos de paternidade presumida estão dispostos no art.
1.597 do Código Civil. De acordo com este diploma legal presumem-se concebidos durante o casamento os filhos que nascerem
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do
marido.
281
A boa-fé é uma diretriz principiológica de fundo ético e expectro eficacial jurídico, se traduz em um princípio de substrato moral que ganhou contornos e matiz de
natureza jurídica cogente.( Gagliano, 2010.v.4 p.100.).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
após 180 dias da data do casamento ou até 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal, seja por separação, morte ou anulação do casamento.
Esta presunção de paternidade se aplica perfeitamente à
concessão dos alimentos gravídicos, que precisam apenas de uma
simples comprovação da situação de paternidade presumida nos
autos do processo. Portanto, quando há presunção de paternidade não há necessidade de outras provas, esta presunção por si só
autoriza a fixação dos alimentos gravídicos contra o suposto pai e
também contra outros parentes, como os avós.
Há possibilidade de responsabilização dos avós, na dificuldade de efetivação do crédito alimentar do suposto pai. Os avós,
quando réus, não poderão argumentar que o filho desconhece a
autora, se o casal manteve relações sexuais ou se as circunstâncias alegadas pela gestante na petição inicial são verdadeiras. O
STJ decidiu recentemente que a pensão alimentícia pode ser ampliada para os avós mas não para os tios e sobrinhos.
Processualmente existe uma finalidade dúplice na ação de
alimentos gravídicos, há uma conversão automática do pagamento dos alimentos gravídicos em pensão de alimentos com o nascimento da criança. Neste sistema dual deverão ser fixados valores
diferenciados para alimentos gravídicos e pensão de alimentos,
por questão de justiça, já que o cálculo de ambos é diferente. O
cálculo de pensão por alimentos se dá na proporção entre necessidade, disponibilidade e proporcionalidade. Já os alimentos gravídicos se calculam apenas pelas despesas realizadas em razão da
gravidez.
A dualidade na relação entre alimentos gravídicos e pensão
de alimentos pode justificar que na sentença seja necessário fixar
um valor para os alimentos gravídicos baseado nas despesas da
gestante e outro valor para o momento da conversão em pensão
de alimentos, desta feita baseada na renda do réu e outros parâmetros não analisados para os alimentos gravídicos.
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Sumário
539
Os alimentos gravídicos têm uma natureza indenizatória
elevada ao padrão de alimentos, pois não é uma mera indenização
e sim protege a vida de um nascituro. O termo inicial dos alimentos
gravídicos é a concepção, semelhante à regra das indenizações, em
que o termo inicial é o do fato ou ilícito praticado. Nos alimentos
gravídicos é possível buscar valores retroativos, da mesma forma
que ocorre nas ações indenizatórias. Já na pensão de alimentos,
não é possível exigir valores retroativos, já que a natureza da pensão é diferente de indenizatória.
A ação dos alimentos gravídicos é um procedimento especial que adota o mesmo rito das cautelares. Entretanto, não se
considera esta ação uma cautelar propriamente dita, já que ela é
satisfativa282 e não depende de qualquer ação posterior à concessão da tutela antecipada. O término da ação de alimentos gravídicos sinaliza ao réu a possibilidade de revisão dos alimentos ou
extinção da obrigação na propositura da ação declaratória de paternidade. Caso não seja solicitado, os alimentos gravídicos serão
convertidos automaticamente em pensão alimentícia, como já comentado neste trabalho.
O art. 5º do projeto original da Lei 11.804/08 afirmava que o
rito da ação de alimentos gravídicos seria sumário, mas havia necessidade de uma audiência de justificação. Como esta audiência
de justificação poderia causar uma grande morosidade ao Judiciário nestas causas, este artigo foi vetado. Portanto, esta audiência
não é mais obrigatória. Porém facultativamente poderá ser realizada pelo juiz para o seu convencimento a audiência de justificação.
De acordo com Douglas Freitas (2011, p.92), o procedimento da ação de alimentos gravídicos segue os seguintes passos, resumidamente: despacho inicial, concessão ou não da tutela ante282
Tutela satisfativa: satisfazer o direito é realizá-lo no plano das relações humanas. É fazer com que o núcleo do seu conceito passe a ter existência efetiva no plano da
realidade social. ( CÂMARA,2009. p. 83).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
cipada; Citação do réu; Contestação do réu, concessão, revogação
ou modificação da tutela antecipada; Vistas ao Ministério Público;
Sentença.
Sobre as provas na ação de alimentos gravídicos, se destaca primeiramente o atestado de gravidez pela autora, já que não
pode haver dúvidas do estado gravídico. Esta prova é importante,
mesmo com o veto do art. 4º da redação original da lei, que exigia
o atestado médico de gravidez e a sua viabilidade. Por causa desta
exigência de comprovação de viabilidade da gravidez, o artigo 4º
foi vetado, pois dificultaria bastante o pedido de alimentos gravídicos, já que não é simples para o médico avaliar a viabilidade de
uma gravidez.
Como outras provas que podem ser importantes na avaliação e deferimento pelo juiz, podem constar provas de relacionamento entre o suposto pai e a gestante, tais como mensagens,
e-mails, fotos e até impressão de tela de sites de relacionamentos
pela internet podem ser juntados ao processo, que possam comprovar a ligação entre a autora e o suposto pai.
No que se refere às provas, pode ser alegada a presunção de
paternidade do art. 1.597 do Código Civil, já visto neste trabalho,
no qual se presume a paternidade quando os filhos são nascidos
com pelo menos 180 dias depois do convivência conjugal ou até
300 após a dissolução da sociedade conjugal. Nestes casos, basta
juntar aos autos a certidão de casamento ou contrato de união estável, em que conste claramente a data para verificação se incide
o art. 1.597 do Código Civil. Neste casos o juiz deve deferir a tutela
antecipada sem ouvir a outra parte. Se em uma união estável não
existir um contrato comprobatório deverá ser provada por outros
meios a união estável, como a oitiva de testemunhas, por exemplo.
A tutela antecipada deve ser pedida na ação de alimentos
gravídicos, amparada no art. 273 do Código de Processo Civil. A
lei 11.804/08 em seu art. 6º determina que o juiz fixará os alimen-
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Sumário
541
tos gravídicos somente quando estiver convencido da existência
de indícios de paternidade. O magistrado deverá avaliar se deve
deferir a tutela inaudita altera parte, se convencendo dos meros
indícios de paternidade apresentados.
O pedido da autora da ação de alimentos gravídicos deve
ser misto, requerendo a fixação de valores para cobrir o valor das
despesas decorrentes da gravidez ou para reembolsá-la destas
despesas. Ainda deve requerer a título de alimentos um percentual sobre a remuneração do suposto pai após o nascimento do
bebê. Este pedido de alimentos pós-nascimento não é obrigatório.
É importante ressaltar que nesta ação de alimentos gravídicos não é possível pedir a declaração de paternidade, já que
existe outra ação específica para tal fim. Nos alimentos gravídicos
as despesas da gravidez deverão ser custeadas pelo suposto pai
independentemente da sua condição financeira.
O Ministério Público também deve participar dos processos
de alimentos gravídicos, conforme prevê o art. 82, inc. I do Código
de Processo Civil, que estabelece que o Ministério Público deverá
intervir nas causas em que há interesses de incapazes, como devem ser considerados os nascituros.
O réu possui cinco dias para contestação após a citação, no
qual pode alegar e tentar provar cabalmente que não é o pai, mostrando que não teve relacionamento com a autora na época da
concepção ou até que é estéril, mediante exame comprobatório.
Também pode alegar que os valores solicitados pela gestante não
correspondem à realidade dos custos para uma gravidez. Em regra
não sobram muitas alternativas de defesa para o suposto pai, que
conta comum prazo exíguo para defesa em razão da natureza urgente da ação de alimentos gravídicos, que visa a proteger o nascituro em desenvolvimento embrionário.
O processo de execução relativo aos alimentos gravídicos
está previsto no art. 11 da Lei 11.804/08. Este artigo dispõe que
aplicam-se supletivamente nos processos a lei dos alimentos (Lei
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
5.478/68) e o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73). Se houver o
inadimplemento do pagamento de alguma parcela, a gestante poderá promover o cumprimento da sentença por meio de execução
específica prevista nos art. 732283 e 733 do CPC, a mesma execução
para a pensão alimentícia.
Também pode haver pedido de prisão do devedor, da mesma forma que na pensão de alimentos, sendo o débito alimentar
que autorize a prisão de três prestações anteriores ao ajuizamento
da execução e as que se vencerem no curso do processo. Quando se tratar de alimentos gravídicos de natureza indenizatória, a
execução se dará pelo rito da expropriação, conforme art. 732 do
Código de Processo Civil.
Outras questões processuais devem ser citadas. Uma delas
é a impossibilidade de repetição dos valores pagos a título de alimentos gravídicos, com restituição. Nestes casos o réu prejudicado
pode entrar posteriormente com uma ação de indenização contra
a autora, provando que ela usou de má-fé e abuso de direito. Também pode entrar contra o verdadeiro pai quando ele sabidamente
deixou outra pessoa se encarregar dos valores de alimentos gravídicos.
Uma situação que tem provocado decisões divergentes nos
tribunais é o nascimento do bebê antes da sentença de alimentos
gravídicos. Alguns juízes tem extinguido a ação de alimentos gravídicos alegando perda do objeto da ação284. Outra corrente da jurisprudência não extingue a ação em tais situações, pois ela deve
283
Art. 732. A execução de sentença, que condena ao pagamento de prestação
alimentícia, far-se-á conforme o disposto no Capítulo IV deste Título.
Parágrafo único. Recaindo a penhora em dinheiro, o oferecimento de embargos não obsta a que o exeqüente levante mensalmente a importância da prestação.
284
BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Ação de alimentos gravídicos,
Nascimento da criança durante o decurso do processo. Sentença extintiva sem resolução do mérito […] Diante do exposto, julgo extinto o processo sem exame de mérito, na
forma do art. 267, VI do CPC, ante a ausência de uma das condições da ação ( falta de
interesse processual- perda do objeto), AC 2011.032988-7, DJ 25.08.2011.
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Sumário
543
ser convertida em pensão alimentícia logo após o nascimento da
criança e além do mais a ação de alimentos gravídicos também se
presta a reembolsar as despesas da gravidez. Este segunda corrente tem prevalecido na jurisprudência285.
A ação de alimentos gravídicos pode ser encerrada nas seguintes situações: proposta de pagamento de alimentos à criança
pelo pai após o nascimento da criança, quando haverá extinção
sem julgamento do mérito; quando provados os indícios de paternidade, sendo procedente o pleito com julgamento do mérito;
quando não houver produção de provas, sendo julgado improcedente. Mesmo quando houver sentença de improcedência a mãe
poderá entrar com uma ação indenizatória solicitando o reembolso das despesas do período de gravidez não arcadas pelo pai.
2.5 ALIMENTOS GRAVÍDICOS E DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA
A dignidade da pessoa humana foi respeitada na Lei de alimentos gravídicos, considerando a dignidade por extensão de um
ser humano em potencial, o nascituro. O ideal de dignidade humana foi fortalecido com a Lei 11.804/2008, tendo confirmada a ideia
de solidarismo social que abarca o tema dos alimentos.
A principal finalidade da Lei dos alimentos gravídicos é estimular a paternidade responsável, desde o período que o filho
está no ventre da sua mãe. O nascituro, como ser ainda frágil e
vulnerável, por estar em desenvolvimento, precisa de alimentos,
285
BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Nascimento da criança. Ausência de registro pelo indigitado pai. Extinção do feito sem resolução do mérito por perda
superveniente do interesse de agir da gestante inocorrência. Conversão em pensão alimentícia para o menor. Incidência do parágrafo único do artigo 6º da Lei nº 11.804/08.
“Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão
alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão”. Provimento do recurso ( AC 0002591-42.2010.8.19.207, Rel. Des. Maria Henriqueta Lobo, DJ
23.03.2011).
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
não importando se existem desavenças e desentendimentos entre
a mãe e o pai. O nascituro deve ter assegurado o direito alimentar,
considerando que este já possui personalidade jurídica desde a
concepção.
O direito à vida é um direito da personalidade da mais alta
importância, é tido por essencial, inato ao indivíduo, incluindo os
nascituros nesta concepção. A proteção do direito à vida se acentua cada vez mais nos tempos atuais, seja em favor dos já concebidos mas ainda não nascidos ou em favor dos já nascidos. Todos os
segmentos da sociedade devem ter como objetivo promover uma
vida sadia e digna do ser humano.
O nascituro deve ter, além dos alimentos, todo o cuidado e
afeto dos pais. O dever de cuidados dos pais em sua forma abrangente é mais importante do que o alimento em si. No desenvolvimento de uma criança é muito importante o carinho e o afeto
dos pais, que influi diretamente na vida de uma criança e provavelmente interferirá na sua vida adulta.
Esta ligação afetiva é estudada na psicologia como teoria
do apego, defendida por John Bowlby, citada por Simões ( 2013, p.
240),como forma de explicar a importância do carinho e afeto na
vida de uma criança. A ligação afetiva resulta em comportamentos
que garantem a proximidade de indivíduos queridos. Esta ligação
afetiva é mais sentida nos primeiros anos de vida. Estudos científicos mostram que o bebê ainda no ventre pode sentir a voz da
mãe e das pessoas que a cercam, como o pai, por exemplo. Elas
podem sentir até se estão em um ambiente harmonioso ou não
(Bowlby,1990, p.283-316 apud Simões, 2013, p.241).
A necessidade de dar afeto e carinho aos nascituros não há
dúvida, só que é algo difícil de avaliar e de se comprovar, sendo
avaliado subjetivamente. Para a lei e os operadores jurídicos, a forma mais fácil de proteger o nascituro se dá por meio de alimentos.
A proteção quantificada de forma objetiva são os alimentos, no
caso dos nascituros os alimentos gravídicos prevista na lei e facil-
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Sumário
545
mente exigível no Poder judiciário. Já o carinho e afeto dificilmente poderiam ser exigidos no Judiciário.
A importância dos alimentos gravídicos corretamente destinados aos nascituros é enorme, pois ajuda no bom desenvolvimento no ventre materno e garante a aplicação do princípio da
dignidade humana. É fundamental que se compreenda no meio
jurídico de que os alimentos gravídicos se destinam ao nascituro e
não à mãe, pois se está protegendo o direto à vida do nascituro.
No caso concreto o juiz de direito deverá avaliar os indícios
de paternidade, como fumaça do bom direito e o perigo na demora
em atender o pedido jurisdicional, já que o estado de gravidez só
dura no máximo nove meses. Deve considerar sempre o princípio
da dignidade humana do nascituro, para garantir um desenvolvimento mais tranquilo no ventre materno.
O direito à vida deve ser considerada a mais importante
dentre todos os direitos da personalidade, logo a vida deve sempre
ser protegida, a dignidade desta vida deve estar presente de forma
ininterrupta em toda a duração da vida de uma pessoa, desde a
concepção, por isto é bastante importante proteger os nascituros
com os alimentos gravídicos, trazidos para o nosso ordenamento
jurídico pela Lei 11.804/08.
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os alimentos gravídicos são uma importante ferramenta
para efetivação do direito à vida desde a concepção, como preconiza o Código Civil em seu art. 2º. A incerteza da paternidade em
algumas situações não deve afetar o bom desenvolvimento do
nascituro dentro do ventre materno. A negação de paternidade
também não pode prejudicar e pôr em risco a vida do nascituro.
A Lei 11.804/08 trouxe para o ordenamento jurídico pátrio
a proteção ao nascituro, prevendo a concessão de alimentos para
estes seres humanos ainda em formação, mesmo sem a compro-
Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização
vação taxativa de paternidade, o que gerou muita polêmica acerca
da lei dos alimentos gravídicos.
As relações familiares, especialmente a dos pais com os
filhos, se solidificam na solidariedade familiar não apenas no
sentido de que os pais têm obrigação de sustentar os filhos, mas
também auxiliá-los para que os filhos consigam seguir seu próprio
caminho.
Os alimentos gravídicos trouxeram à tona e para o ordenamento jurídico os princípios da paternidade responsável, estimulando ou mesmo forçando os pais a terem uma conduta mais
responsável no que se refere à concepção de um filho. Além dos
alimentos gravídicos em si, também deve ser dado ao nascituro
o carinho e a atenção necessários para que haja um desenvolvimento sadio no ventre materno, tornando viável a vida de um ser
humano.
Todo ser humano precisa de condições mínimas para a sua
sobrevivência digna e isto não é diferente para os nascituros, que
também devem ter um mínimo de condições para se desenvolver
dignamente, protegendo essencialmente o direito à vida, mesmo
dos nascituros.
A Lei 11.804/08 encontrou muitas resistências no meio jurídico e na sociedade, com o temor de alguns homens de serem
responsabilizados indevidamente por uma gestante de má-fé, já
que os alimentos gravídicos podem ser concedidos sem uma prova cabal de paternidade, como o exame de DNA, pois podem ser
perigosos e prejudicarem o nascituro no ventre. Mas a experiência
dos tribunais nestes seis anos de vigência da lei confirma que não
houve muitos casos de mães mal intencionadas e quisessem cobrar alimentos gravídicos de quem sabidamente não era o pai do
bebê, mas em quase totalidade era realmente o pai da criança em
desenvolvimento no útero materno.
A Lei dos alimentos gravídicos trouxe assim, muitos benefícios e efetivou direitos antes não alcançados. Esta lei preserva o
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Sumário
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direito à vida e a dignidade da pessoa humana, com os alimentos
sendo concedidos desde a concepção, que devem ser partilhados
pelo pai e pela mãe, para garantir um desenvolvimento sadio do
nascituro no ventre materno e tendo como consequência uma
vida saudável de uma ser humano após o nascimento.
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