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Adriano Marteleto Godinho Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Filipe Lins dos Santos Maria Cristina Santiago ORGANIZADORES Mais do que apresentar uma obra, os autores deste compêndio remodelam velhos conceitos. Eis o alvorecer de novos tempos, em que a humanização do Direito Civil se revela como fenômeno irreversível, a colocar os institutos deste velho ramo jurídico a serviço da pessoa humana, para que cumpram, final e definitivamente, sua verdadeira vocação TEMAS DE DIREITO CIVIL Da constitucionalização à humanização TEMAS DE DIREITO CIVIL Da constitucionalização à humanização Reitora Vice-Reitor UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA MARGARETH DE FÁTIMA FORMIGA MELO DINIZ EDUARDO RAMALHO RABENHORST EDITORA DA UFPB Diretora IZABEL FRANÇA DE LIMA Supervisão de Editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JÚNIOR Supervisão de Produção JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO CONSELHO EDITORIAL BERNARDINA Mª JUVENAL FREIRE DE OLIVEIRA (CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS) ELIANA VASCONCELOS DA SILVA ESVAEL (LINGUÍSTICA E LETRAS) FABIANA SENA DA SILVA (MULTIDISCIPLINAR) ILDA ANTONIETA SALATA TOSCANO (CIÊNCIAS EXATAS E DA NATUREZA) ÍTALO DE SOUZA AQUINO (CIÊNCIAS AGRÁRIAS) JOSÉ MARIA BARBOSA FILHO (CIÊNCIAS DA SAÚDE) MARIA DE LOURDES BARRETO GOMES (ENGENHARIAS) MARIA PATRÍCIA LOPES GOLDFARD (CIÊNCIAS HUMANAS) MARIA REGINA DE VASCONCELOS BARBOSA (CIÊNCIAS BIOLÓGICAS) Adriano Marteleto Godinho Ana Paula Correia de Albuquerque da Costa Filipe Lins doa Santos Maria Cristina Santiago (organizadores) TEMAS DE DIREITO CIVIL Da constitucionalização à humanização Copyright © 2014 EDITORA UFPB Efetuado o Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme a Lei nº 10.994, de 14 de dezembro de 2004. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS À EDITORA DA UFPB De acordo com a Lei n. 9.610, de 19/2/1998, nenhuma parte deste livro pode ser fotocopiada, gravada, reproduzida ou armazenada num sistema de recuperação de informações ou transmitida sob qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico ou mecânico sem o prévio consentimento do detentor dos direitos autorais. O conteúdo desta publicação é de inteira responsabilidade dos autores. Projeto Gráfico EDITORA DA UFPB Editoração Eletrônica AMANDA PONTES Design de Capa AMANDA PONTES Catalogação na fonte: Biblioteca Central da Universidade Federal da Paraíba T278 Temas de direito civil: da constitucionalização à humanização / [recurso eletrônico] / Organizadores: Adriano Marteleto Godinho...[et al.] .-- João Pessoa: Editora da UFPB, 2015. 1CD-ROM; 43/4pol.(2.085kb) ISBN: 978-85-237-1087-3 1. Direito civil. 2. Arbitragem. 3. Conciliação. 4. Mediação. 5. Negociação. I. Godinho, Adriano Marteleto. CDU: 347 Editora da UFPB João Pessoa 2015 EDITORA DA UFPB Cidade Universitária, Campus I – s/n João Pessoa – PB CEP 58.051-970 editora.ufpb.br [email protected] Fone: (83) 3216.7147 SUMÁRIO Admissibilidade das diretivas antecipadas de vontade no ordenamento jurídico brasileiro.................................................................................10 A usucapião por abandono do lar: origem, elementos e aspectos temporais e processuais.....................................................................................434 A abusividade nos contratos de saúde suplementar................................73 A importância da mediação familiar nos casos de alienação parental sob a perspectiva constitucional..................................................................479 Inadimplemento contratual pelo desrespeito à boa-fé objetiva como uma hipótese de resolução contratual.........................................................111 Ponderações sobre os impactos processuais dos alimentos gravídicos....517 A Arbitragem, a conciliação, a mediação e a negociação como formas alternativas de soluções de conflitos no direito civil constitucional humanizado......................................................................................134 Os novos paradigmas da responsabilidade civil na internet.....................180 O problema da responsabilidade no descarte de resíduos sólidos (Lei 12.305/2010)...............................................................................221 Responsabilidade civil das indústrias tabagistas: civil responsibility of the tobacco industry................................................................................268 Condutas abusivas do empregador na relação de trabalho e o dano moral...............................................................................................312 Assédio moral organizacional: os limites do poder diretivo do empregador e as consequências para o trabalhador.................................................347 Responsabilidade civil no abandono afetivo parental...........................403 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ADMISSIBILIDADE DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Príscila VIEIRA1 Ana Paula Correia de Albuquerque da COSTA2 RESUMO: O objetivo primordial do presente trabalho monográfico é analisar a admissibilidade e validade das Diretivas Antecipadas de Vontade frente ao ordenamento jurídico brasileiro, haja vista a não regulamentação específica desse instrumento e a sua importância enquanto meio de manifestação da vontade do paciente em estado de fim da vida. Tendo como base a ideia de que as diretivas antecipadas de vontade possibilitam a visualização do indivíduo como sujeito de direitos, ou melhor, como fim em si mesmo, assegura-se ao paciente terminal ou incapaz a sua autonomia privada e o direito a morrer dignamente. Através desse instrumento, o enfermo poderá discorrer sobre os tratamentos e cuidados médicos que deseja receber, ou não, em caso de incapacidade plena, temporária ou permanente, levando-se em conta, sempre, o melhor para os interesses do mesmo, garantindo o respeito a sua dignidade ao procurar amenizar a dor e o sofrimento advindos do processo de terminalidade. Através do estudo pormenorizado dos principais conceitos, elementos e prerrogativas atinentes às diretivas antecipadas, objetiva-se facilitar a compreensão desse institu1 Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, autora do trabalho monográfico sob orientação da professora mestra Ana Paula Albuquerque. 2 Professora do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento no PPGCJ/UFPB. Orientadora da monografia. Capa Sumário 11 to, além de construir uma sólida base conceitual e estrutural para, enfim, observá-lo diante das particularidades do ordenamento pátrio. Entendendo válida sua aplicabilidade, verificar a existência de propostas legislativas e entendimentos jurisprudenciais sobre a temática. Palavras-chave: Bioética. Diretivas Antecipadas de Vontade. Autonomia. Dignidade. Estado terminal. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho monográfico propõe-se a examinar a admissibilidade das Diretivas Antecipadas de Vontade perante o ordenamento jurídico brasileiro, como são instrumentos intimamente ligados ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, bem como ao Direito à Autonomia da Vontade e ao chamado Direito a uma Morte Digna, neste diapasão, é um tópico de grande relevância a ser estudado no âmbito jurídico, principalmente quando se verifica a inexistência, no ordenamento brasileiro, de normas jurídicas específicas tratando deste tema. A ausência dessas normas fomenta ainda uma discussão a respeito da validade ou não das Diretivas Antecipadas de Vontade no Brasil. Contudo, o fato de não haver regulamentação específica sobre o tema não pode ser compreendido como uma vedação à validade desses instrumentos, além do que, diversos elementos normativos presentes tanto na Constituição de 1988 quanto em legislações infraconstitucionais podem ser utilizados para fundamentar as DAV’s diante do ordenamento brasileiro. Em situações em que o paciente encontra-se incapacitado de expressar sua vontade a respeito de determinado tratamento a ser recebido, seja por conta de uma incapacidade temporária ou mesmo em casos extremos de enfermidades onde o processo de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização morte já se instaurou de forma irreversível, muito se discute sobre a possibilidade deste manifestá-la previamente, utilizando-se de um documento que esclareça expressamente os seus desejos a respeito de quais tratamentos gostaria receber ou não e em que situações. Este documento é tido como Diretiva Antecipada de Vontade ou, como é tratado ocasionalmente, Testamento Vital. Neste sentido, e em vista das diversas discussões possíveis sobre as nuances jurídicas das Diretivas Antecipadas de Vontade, esta pesquisa se restringirá à análise dos parâmetros como a autonomia da vontade, o principio da dignidade da pessoa humana, a caracterização específica desse instrumento de manifestação de vontade, a fim de possibilitarem verificar alguns dos aspectos jurídicos e limitações prementes a sua aplicação no direito brasileiro. Diante disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo pontual de como a doutrina jurídica tem se posicionado a respeito da problemática das Diretivas Antecipadas de Vontade nos casos de pacientes tanto em estágio terminal quanto aqueles que possam estar temporariamente incapacitados de manifestar a sua vontade a respeito dos tratamentos ou cuidados médicos, bem como analisar os aspectos do direito diretamente vinculados ao tema. O presente trabalho possui natureza dogmática e qualitativa, visto que o objetivo a ser por ele alcançado é identificar os aspectos jurídicos concernentes as Diretivas Antecipadas de Vontade no âmbito do ordenamento brasileiro. Para se atingir o proposto foi utilizado tanto o método de análise histórica, percorrendo-se uma linha evolutiva de conceitos e institutos através do estudo doutrinário, assim como o procedimento interpretativo ao se apreciar o conteúdo de princípios e dispositivos jurídicos que possam se relacionar com a matéria e verificando a existência de jurisprudências relativas ao tema. Assim, fez-se a coleta de dados bibliográficos e documentais em livros, leis, periódicos, jurisprudências e sites especializados a fim de tornar possível a compreensão da Capa Sumário 13 possibilidade ou não da aplicação prática da temática especificada. No capítulo introdutório buscou-se a conceituação dos termos e expressões mais comuns no constante às diretivas antecipadas com a finalidade de facilitar a compreensão do seguinte instituto, bem como de suas prerrogativas. A seguir, fez-se necessária a compreensão do que constituiria exatamente as Diretivas Antecipadas de Vontade, analisando mesmo que brevemente, suas modalidades, delimitações, efeitos e princípios justificadores. Por fim, adentrou-se no objetivo central da presente monografia que é avaliar a admissibilidade e validade das DAV’s no Direito Pátrio. 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERMINALIDADE DA VIDA Embora o foco principal deste trabalho monográfico esteja na análise das próprias Diretivas Antecipadas de Vontade, no referente à sua validade diante do ordenamento jurídico brasileiro, diversos conceitos e apontamentos fundamentais devem ser estudados precipuamente, a fim de proporcionar a construção de uma sólida base para chegar ao objetivo central. Ao verificar a ideia inicial trazida pelas Diretivas Antecipadas de Vontade, resta percebível a este debate, ambientado no campo da Bioética e do Biodireito, seu fundamento em certas premissas substancialmente controversas, ou seja, põe-se sob os refletores a possibilidade de o indivíduo atuar e decidir acerca de situações relacionadas a terminalidade da vida, tema por si só polêmico o suficiente. Diante disso, podemos compreender a seguinte afirmação apresentada pela Professora Adriana Maluf (2013, p. 425): O ser humano, em todas as suas fases de existência, desde o início da sua vida, cujo momento preciso não é isento de controvérsias, até o momento de sua morte, é detentor de direitos intrínsecos à sua Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização personalidade e deve, portanto, ter a sua dignidade respeitada. Discussões envolvendo tais fases de existência do ser humano, destacadamente aquelas relacionadas à interferência direta dos indivíduos nesses momentos, geram inúmeras análises e reflexões por parte da sociedade, em seus mais distintos aspectos e áreas de conhecimento. No plano jurídico há uma variada gama de direitos inerentes à pessoa humana, sendo possível destacar, primordialmente, o direito à dignidade, seja relacionando-o à vida ou à morte. Nas Diretivas Antecipadas de Vontade, diante de suas várias vertentes, é questionada a possibilidade de o paciente em estado terminal, ou incapaz de manifestar sua própria vontade, deixar por escrito instruções a respeito de como os profissionais de saúde devem agir, quais tratamentos são aceitos ou não e o limite até o qual o tratamento pode ser estendido em casos onde não mais existe a possibilidade de cura e/ou recuperação. Atualmente a morte é vista como um tabu, algo a ser evitado a todo custo e, assim sendo, a maneira de encará-la é enfatizada pelo avanço da própria medicina, onde, muitas vezes, o prolongamento da vida é levado “além dos limites de sua natureza” (DINIZ, 2014, p. 481), não importando quais os meios a serem utilizados. No entanto, José António Saraiva Ferraz Gonçalves (2006, p. 07), acertadamente, traz a seguinte conjectura: “A morte é o que temos de mais certo, diz o povo. Efectivamente, à semelhança do que sucede com todos os outros seres animais, todos morremos. A morte é indispensável para a renovação e para a evolução da vida.”. Assim, a morte consiste em algo inexorável, implacável, todavia, resta o questionamento: até onde se deve prolongar o tratamento para tentar evitá-la? E a que preço?Partindo dessas consi- Capa Sumário 15 derações, é visível a necessidade de desenvolvimento de estudos envolvendo a terminalidade da vida, mais detidamente quando relacionado ao processo de morte ou em casos onde o indivíduo não está em condições de expressar seus desejos a fim de assegurar o direito à dignidade da pessoa humana. Deve ser levado em consideração a qualidade de vida do paciente principalmente, não apenas a quantidade de tempo possível de ser proporcionado a ele por meio dos inúmeros avanços da medicina. É neste contexto que surge a questão: é possível escolher a forma de morrer? Observa-se o desenvolvimento de um movimento que busca a dignidade no processo de morrer, que não é o apressamento da morte, a eutanásia, nem o prolongamento do processo de morrer com intenso sofrimento, a distanásia. [...] O movimento dos cuidados paliativos trouxe de volta, no século XX, a possibilidade de rehumanização do morrer, opondo- se à idéia da morte como o inimigo a ser combatido a todo custo. Ou seja, a morte é vista como parte do processo da vida e, no adoecimento, os tratamentos devem visar à qualidade dessa vida e o bem estar da pessoa, mesmo quando a cura não é possível; mas, frente a essa impossibilidade, nem sempre o prolongamento da vida é o melhor, e não se está falando de eutanásia, como muitos crêem.(KOVÁCS, 2003, p. 116) O medo da morte é compreensível e natural, da mesma forma o é o senso de preservação do ser humano, assim, é possível compreender a adoção de hábitos considerados saudáveis que, consequentemente, evitam riscos à saúde do indivíduo. Há uma valorização da qualidade de vida a fim de possibilitar o distanciamento de situações relacionada à terminalidade da vida, ou seja, o ser humano passa boa parte da vida tentando prolongá-la ao máximo, numa cultura traduzida pela “busca da imortalidade”, entretanto, há casos onde a morte não apenas é considerada a melhor opção, como também é bem-vinda. Com este entendimento, a Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização possibilidade de o paciente afirmar claramente a sua opinião, por exemplo, sobre os tratamentos a serem utilizados, ou acerca dolimite até o qual quer ter sua vida estendida por meio de aparelhos, são questões referenciais, parâmetros que devem ser analisados diante do princípio da dignidade e da própria autonomia da vontade privada do paciente. Ponderando o fato de o direito à vida estar sempre conectado intimamente ao princípio da dignidade humana, resta a compreensão de que, durante o fim da mesma, este princípio também deve estar evidenciado, conjecturando entendimentos sobre o direito a uma morte digna, isso porque a morte é, assim como a vida, um processo natural, e quaisquer meios que influenciem direta ou indiretamente esta fase, barrando seu desenvolvimento regular, pode ser caracterizado como inapropriado.Em suma, assim como no decorrer da vida há uma busca por qualidade e dignidade, o fato de o indivíduo estar em estado terminal ou incapaz de manifestar sua vontade não significa que se deve parar de lutar por esses ideais, como afirma Adriana Maluf (2013, p. 425) “Deve-se, portanto, lutar nesse processo de terminalidade, sair da vida com dignidade”. 2.1 SITUAÇÕES DE FIM DE VIDA A terminalidade da vida, como tópico essencial na discussão sobre as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV), revela ainda a necessidade de identificar alguns dos conceitos caracterizadores das situações de fim de vida, melhor explicando, dentre os inúmeros estágios clínicos como a doença terminal, o estado vegetativo, a demência avançada e outras doenças crônicas, quais desses estariam passíveis da aplicação, cabimento, de uma DAV (DADALTO, 2013, p. 35). Haja vista a importância de diferenciar tais condições, pois Capa Sumário 17 envolvem diretrizes não só médicas, mas também sociais, jurídicas e políticas. Elas influem condicionantemente na constituição do documento prévio de vontade do paciente, a exemplo do caso onde o doente não se encontra capaz de explanar seus desejos, mas em momento citerior, “prevendo” esta situação de incapacidade deixou expresso quais tratamentos aceitaria receber. 2.1.1 Estado Terminal A condição clínica do paciente determinada como estado terminal ou em estado de terminalidade, a certo modo, surge como um produto dos progressos tecnológicos da Medicina. Doenças que em outras épocas causavam a morte subitamente, nos dias de hoje, com o avanço dos tratamentos clínicos, já não se desenvolvem da mesma maneira. Embora muitas enfermidades ainda não tenham cura, graças a essa evolução a estimativa de vida dos pacientes foi invariavelmente ampliada, fenômeno denominado pela Professora Maria Júlia Kovács (2009, p. 64) como “cronificação das doenças”. Com isso, a condição de paciente terminal abanca a ideia de manutenção da vida, entretanto, não partindo a princípiode um contexto subjetivo, humanizado, mas sim técnico-científico, resultado das ações médicas. Esta disposição vai claramente de encontro aos objetivos primordiais da Medicina, “a promoção do bem-estar e eliminação do sofrimento” (FERREIRA, 2006, p. 151). Aqui é posto em evidência o erro cometido ao apreender a “manutenção da vida a todo custo” como fim último, assegurar o respeito à autonomia do paciente e proporcionar ao mesmo qualidade de vida são fatores mais importantes, aos quais se deve dar primazia. Quando se fala em conceituação da expressão paciente terminal a doutrina médica não é uníssona, são apresentadas variadas definições e todas gravitam sobre a ideia de impossibilidade de cura atrelada à morte iminente. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização A terminalidade parece ser o eixo central do conceito em torno do qual se situam as conseqüências. É quando se esgotam as possibilidade de resgate das condições de saúde do paciente e a possibilidade de morte próxima parece inevitável e previsível. O paciente se torna “irrecuperável” e caminha para a morte, sem que se consiga reverter este caminhar. (GUTIERREZ, 2001, p. 92) José de Oliveira Ascensão (2012, p. 160) determina paciente terminal como aquele onde “o diagnóstico é o de não haver nenhuma probabilidade de recuperação”, já Marcos Knobel e Ana Lucia Martins da Silva (2004, p.133) o compreendem como “aquele cuja condição é irreversível, independente de ser tratado ou não, e que apresenta uma alta probabilidade de morrer num período relativamente curto de tempo”. Antonio Jackson Thomazella de Almeida (2012, p. 448 e 467-468) define primariamente o estado terminal como o estágio da doençaonde a possibilidade de cura não mais existe, evoluindo para a insuficiência dos órgãos, e a morte é instante, conquanto o paciente terminal é justamente o sujeito encontrado nesta condição. Em contraposição aos autores supramencionados, Pilar Gutierrez procura definir o paciente terminal de forma mais real, ou seja, partindo de uma perspectiva humanista e discutindo o paciente como ser autônomo, diferente da ideia generalizante normalmente empregada. Abre-se a perspectiva de discussão deste conceito caso a caso: um paciente é terminal em um contexto particular de possibilidades reais e de posições pessoais, sejam de seu médico, sua família e próprias. Esta colocação implica em reconhecer esta definição, paciente terminal, situada além da biologia, inserida em um processo cultural e subjetivo, ou seja, humano. (GUTIERREZ, 2001, p. 92) Capa Sumário 19 Apesar dessa heterogeneidade conceitual demonstrada, na hora de identificar os pacientes que se encontram nesta situação, há, indiscutivelmente, um consenso dentre os profissionais, Gutierrez afirma existir uma aparente facilidade de reconhecimento, no sentido de diagnosticar o estado terminal, em contraposição a sua objetivação (2001, p. 92).Entrementes, a aceitação dessa condição de fim de vida, tanto pela família como pelo próprio paciente e os profissionais de saúde, provavelmente constitui a parte mais difícil, embora não signifique o fim exatamente, a partir desse momento várias ações com a finalidade de proporcionar ao paciente uma melhor qualidade de vida - encaminhamento para uma morte digna -, podem e devem ser oferecidas. Isto acentua a concepção da pessoa enferma como ser independente, titular de direitos, afinal “mesmo que um paciente esteja próximo de morrer, ainda está vivo, e é uma pessoa com desejos” (KOVÁCS, 2009, p. 65), além de que o “reconhecer, sempre que possível, seu lugar ativo, sua autonomia, suas escolhas, permite-lhe chegar ao momento de morrer, vivo, não antecipando o momento desta morte a partir do abandono e isolamento” (GUTIERREZ, 2001, p. 92). Partindo deste ponto temos duas possibilidades: a primeira equivale ao paciente terminal consciente, seus desejos podem e devem ser ouvidos haja vista ele estar “plenamente capaz” de expressá-los; e a segunda é caracterizada pelo paciente inconsciente, a capacidade/autonomia está reduzida (DADALTO, 2013, 39). É justamente este segundo caso interessante ao estudo das Diretivas Antecipadas de Vontade. Os profissionais de saúde, impossibilitados de terconhecimento direto dos desejos do enfermo poderiam, até mesmo devem, se valer de documento por este avençado anteriormente, a declaração prévia de vontade para o fim da vida, com a finalidade de atender seus desejos apontados expressamente, reconhecendo-o como sujeito de direitos autônomo, não obstante o estado em que se encontrar. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Na falta de documento nestes parâmetros, a família do enfermo e o próprio médico são dotados de autonomia para decidir qual ou quais as opções mais viáveis a serem seguidas, sempre tendo em vista o melhor para o paciente. 2.1.2 Estado vegetativo Uma outra situação de fim de vida importante ao estudo das Diretivas Antecipadas de Vontade é o chamado estado vegetativo persistente, condição resultante de lesões diretas ou indiretas ao Sistema Nervoso Central ocasionando alterações no nível de consciência do enfermo, instaurando uma espécie de quadro de coma diferenciado.No estado de coma, como explica Adriana Maluf (2013, p. 431), “uma pessoa ou animal perde completa ou parcialmente a consciência, não tem reações cerebrais cognitivas espontâneas ou reage pouco ou nada a estímulos externos”, por sua vez, no estado vegetativo persistente há uma completa ausência da consciência, contudo algumas reações basilares, como se fossem a programação básica do cérebro, permanecem funcionando. Primordialmente explicando, Drauzio Varella assim descreve o EVP: O estado vegetativo é a mais frustrante das condições humanas. A pessoa está viva, abre os olhos, dorme, acorda, executa as funções fisiológicas, mas durante meses, anos, permanece alheia, incapaz de esboçar a menor reação. [...] A impossibilidade de documentar sequer resquícios de atividade mental através de testes comportamentais e dos exames neurológicos clássicos criou para os que se encontram nessa condição a imagem de mortos-vivos.3 3 Disponível em: http://drauziovarella.com.br/drauzio/consciencia-no-estado-vegetativo; Acesso: 2 Jun. 2014 Capa Sumário 21 A Multi-society Task Force on PVS (1994) realizou um estudo detalhado sobre o EVP arrolando os critérios básicos para a sua caracterização, além de estabelecer uma definição mais precisa da síndrome. A publicação afirma que “o estado vegetativo é uma situação clínica de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral”. Outra discussão apresentada pela sociedade citada acima trata da diferenciação dos termos persistente ou permanente. Ao considerar o estado vegetativo, não há como afirmar categoricamente que o paciente não poderá recuperar plenamente sua consciência. Portanto, o estado vegetativo será persistente enquanto a condição de incapacidade ocorrida perdurar até o momento de realização do exame clínico, ou seja, é um diagnóstico, já se designado como permanente há uma denotação de irreversibilidade do quadro, existe um alto grau de certeza quanto à irrecuperabilidade do paciente e, consequentemente, será um prognóstico. A relação entre o EPV e as diretivas antecipadas de vontade gira e torno, principalmente, dos cuidados designados aos enfermos, em especial quanto à nutrição e hidratação artificial (AHA). Pelos pacientes se encontrarem em situação de incapacidade plena e sem perspectiva concreta de recuperação, alguns especialistas entendem ineficaz e até prejudicial a continuidade da AHA, pois resta comprovado os danos e desconfortos que acarretam. Há quem sustente, porém, a AHA como encargos mínimos a serem desprendidos ao acamado, e cuja suspensão resultaria na morte do indivíduo, caracterizando a eutanásia. O maior problema é situar a AHA como um tratamento médico ou como um simples cuidado basilar à manutenção da vida do paciente em EVP. Ricardo Hodelín-Tablada, citando Raanan Gillon, afirma Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização laalimentación por sonda nasogástrica o gastrostomía constituye un tratamiento médico que, como todo tratamiento, puede suspenderse a solicitud del enfermo o cuando se considere inútil. Dado que, según Gillon, todo tratamiento supone la intención, la perspectiva de un beneficio, y que la mera prolongación de la vida en estos casos no puede considerarse como tal [...]. (2002, p. 1076, grifo nosso) Sendo o AHA um tratamento clínico, entendimento majoritário, deve ser reconhecida a possibilidade de o acamado decidir sobre sua manutenção ou suspensão, não, obviamente, diretamente em sentido estrito, mas havendo documento por ele constituído previamente a este respeito os profissionais de saúde ficam sujeitos a esta intenção.Uma observação a ser feita ainda é o fato de considerar-se o paciente em estado vegetativo persistente sem possibilidade de tratamento, afinal, tudo o que se tem a fazer é esperar, por este motivo são postos dentre aqueles em fim de vida (DADALTO, 2013, p. 42). 2.1.3 Demência severa O que traz a colocação da demência severa aqui neste estudo é sua relevância no contexto social da atualidade, o aumento imoderado no número de diagnósticos e as consequências na liberdade e autonomia do indivíduo doente. Doenças crônicas podem ser caracterizadas, segundo a OMS, como permanentes, produzem incapacidade ou deficiências residuais e são ocasionadas por patologias irreversíveis, exigem que o paciente passe por processos de reabilitação e tratamento longos (DADALTO, 2013 p.42), muitas vezes durante toda a vida. A demência severa ou avançada encontra-se no rol de doenças crônicas e consiste na “síndrome caracterizada por declínio de memória associado a déficit de pelo menos uma outra função cognitiva (linguagem, gnosias, praxias ou funções executivas) com Capa Sumário 23 intensidade suficiente para interferir no desempenho social ou profissional do indivíduo” (CARAMELLI; BARBOSA, 2002, p. 7). Por causar a perda da consciência, este estado clínico impossibilita aos enfermos a expressão clara de seus desejos e opiniões, ou seja, eles tornam-se incapazes de fato. Neste momento as DAV’s representam uma opção essencial no reconhecimento dos pacientes com demência severa como sujeitos de direitos, destacadamente o direito-princípio da dignidade da pessoa humana.Poder-se-ia, através das declarações prévias de vontade, apresentar claramente os desejos do paciente quanto à forma de tratamento em uma possível situação de incapacidade plena, e, mais do que isso, fazendo possível ainda a constituição, através de um mandato duradouro, de um procurador, alguém que diante da impossibilidade de manifestação existente atuará como se aquele fosse, decidindo sobre os cuidados e tratamentos médicos a serem aplicados. Estudos norte-americanos afirmam que “a maior parte dos outorgantes de diretivas antecipadas de vontade são adultos velhos e incluem disposições sobre doenças crônicas e demência avançada em suas DAV” (BROWN apud DADALTO, 2013, p. 43), este dado exemplifica a importância do entendimento desta condição para o presente trabalho. 2.2 PRÁTICAS NA TERMINALIDADE DA VIDA Tendo em vista a situação do paciente em fim de vida, sem perspectiva de recuperação e passando por um sofrimento inimaginável, tornam-se recorrentes os pensamentos sobre como proporcionar o mínimo de conforto a ele. Tanto a família como o próprio paciente e o médico começam a conjecturar a respeito das opções para diminuir a agonia que a doença terminal traz consigo. A manutenção dos tratamentos sem que haja realmente melhora na qualidade de vida do paciente ou a suspensão dos mesmos per- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização mitindo que a expectativa de vida seja, amiúde, reduzida, porém oferecendo um alívio ou amenizando a angustia do enfermo e da família, são pontos discutidos constantemente sob perspectivas éticas e jurídicas. Exemplificando, o desejo de morte de pessoas em estado precário de saúde em contraponto com o dever do Estado de proteção da vida. Nesse contexto, a identificação das principais práticas aventadas para dar maior conforto ao paciente terminal é imprescindível, principalmente por ser tema crucial ao entendimento das Diretivas Antecipadas de Vontade.Dentre as práticas mais destacadas encontram-se a eutanásia, a ortotanásia, a distanásia e os cuidados paliativos. 2.2.1 Eutanásia A dor sentida por alguns pacientes em fim de vida não pode ser mensurada por quem vê de fora. A família está inconsolável e o enfermo já se encontra incapaz de suportar tantas provações, o sofrimento é uma constante.Com essa perspectiva muitos questionam a possibilidade de antecipação do momento último tendo por justificativa a necessidade de libertar o indivíduo adoentado daquela situação insuportável, possibilitando a ele uma morte digna. A abreviação da vida é conduzida como um ato de humanidade. [...] poder-se-ia falar em direito de antecipar a morte diante de uma agonia extremamente cruel e prolongada? Uma vida sofrida, seguida de dores insuportáveis, não estaria ferindo a dignidade humana e não justificaria o entender de que o direito à vida deixaria de ser o valor primordial tutelado constitucionalmente? (DINIZ, 2014, p. 494) A eutanásia, palavra derivada da expressão grega euthanatos que significa boa morte, constitui a “ajuda que é prestada a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou pelo menos em Capa Sumário 25 consideração à sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte compatível com a sua concepção de dignidade humana” (ROXIN, 2006, p.177). Essa prática de antecipação deliberada da morte de um paciente terminal é regulamentada em diversos países, tais como a Holanda e a Bélgica, e tem por justificativa o princípio socrático da qualidade de vida, dignidade da pessoa humana. Todavia, muitos doutrinadores entendem o exercício da eutanásia como um homicídio, tido por piedoso, mas ainda sim um assassínio. Pilar Gutierrez trata o momento de reconhecimento do estado terminal da seguinte maneira: “Admitir que se esgotaram os recursos para o resgate de uma cura e que o paciente se encaminha para o fim da vida, não significa que não há mais o que fazer” (2001, p. 92). Portanto, o fato de o indivíduo se encontrar próximo ao fim de sua existência não justifica a antecipação do mesmo. Há, apesar de tudo, alternativas menos incisivas e capazes de dar ao paciente uma morte digna através de um processo de morte natural. Em lato senso, a eutanásia é caracterizada pela ação ou omissão do médico com o objetivo de acelerar a morte do paciente em agonia, entretanto, destrinchando esta concepção, podemos visualizar duas formas específicas: a eutanásia ativa, assinalada como a aquela onde o médico terá papel ativo na prática da terminalidade da vida - ele pratica o ato que conduz à morte do indivíduo; e a eutanásia passiva, haverá, neste caso, a suspensão dos cuidados mantenedores da vida e aguardar-se-á o óbito do enfermo como resultado direto desta omissão. No ordenamento jurídico brasileiro a prática da eutanásia é vedada, estando tipificada como homicídio, nos moldes do art. 121 do Código Penal Brasileiro, podendo ainda ser enquadrada na situação postulada no parágrafo primeiro do artigo supramencionado caso seja impelida por motivos de acentuado clamor social ou moral. Esta prática também é vetada no Novo Código de Ética Médica - Resolução do CFM nº 1.931/2009 em seu art. 41 e parágra- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização fo único: É vedado ao médico: Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (grifo nosso) Importante se faz a diferenciação entre o suicídio assistido e a eutanásia, pois no primeiro caso, mesmo que o objetivo seja antecipar a morte e proporcionar um fim digno, o ato será praticado pelo próprio paciente terminal sendo no máximo auxiliado ou orientado por um médico ou terceiro. O artigo 122 do Código Penal Brasileiro proíbe o induzimento, instigação ou auxilio a suicídio, de modo a dispor em lei como crime a prática da ação aqui elencada. No segundo caso, como já bem demonstrado no correr do texto, o procedimento é designado a outra pessoa. Invariavelmente ambos são considerados atos de humanidade. É válido ressaltar, por fim, a seguinte questão: antes que se possa sequer pensar na aplicação da eutanásia, deve ser feita a análise e consideração dos reais motivos do paciente para creditar este ato como uma solução. Vem ao caso, então, a célebre disposição de Leo Pessini (2008, p. 176-177): “Na base de muitas solicitações de eutanásia existe muita solidão, abandono. O que a pessoa realmente necessita é assistência, tratamento especializado, espiritualidade, amor”. 2.2.2 Ortotanásia A ortotanásia, também chamada paraeutanásia ou, erroneamente, eutanásia passiva, consiste na prática cujo resultado Capa Sumário 27 morte é alcançado por conta da suspensão dos cuidados e tratamentos usados na manutenção da vida. Quando se observa que as intervenções médicas já não são mais uteis, e apenas estendem o sofrimento do paciente, a renúncia a elas, evitando um excesso terapêutico, é um ato que permite ao enfermo vivenciar o processo de morte naturalmente. A possibilidade de proporcionar ao doente terminal uma morte digna, neste caso, passa pela ideia de morrer no momento certo, ou melhor, o fim não pode e não deve ser apressado ou evitado a todo custo. Cuidados básicos são destacados a fim, apenas, de amenizar o quadro sintomático da doença, não de manter a vida além do esperado.À semelhança da eutanásia, a ortotanásia também é justificada segundo razões humanísticas, busca reconhecer ao indivíduo em fim de vida o direito de morrer dignamente, sem sofrer desnecessária e desproporcionalmente. A possibilidade de manter uma pessoa viva indiscriminadamente é considerada intolerável. Maria Helena Diniz (2014, p. 500) conceitua, portanto, esta prática como “o ato de deixar morrer em seu tempo certo, sem abreviação ou prolongamento desproporcionado, mediante a suspensão de uma medida vital ou de desligamento de máquinas sofisticadas, que substituem e controlam órgãos que entram em disfuncionamento. Há a facilitação da morte pela suspensão de um tratamento que prolongue a vida, entretanto, esta última não sofre qualquer ameaça, apenas se está tentando reduzir o infortúnio do paciente ao mínimo.Para reforçar a compreensão deste instituto, Maria Elisa Villas-Bôas (2008, p. 66) o explica da seguinte maneira: A ortotanásia tem seu nome proveniente dos radicais gregos: orthos (reto, correto) e thanatos (morte). Indica, então, a morte a seu tempo, correto, nem antes nem depois. Na ortotanásia, o médico não Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização interfere no momento do desfecho letal, nem para antecipá-lo nem para adiá-lo. Diz-se que não há encurtamento do período vital, uma vez que já se encontra em inevitável esgotamento. Também não se recorre a medidas que, sem terem o condão de reverter o quadro terminal, apenas resultariam em prolongar o processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família. Mantêm-se os cuidados básicos. Diferentemente da modalidade apresentada no tópico anterior, a prática elencada aqui não é considerada crime, estando disciplinada, de forma incipiente, em algumas leis estaduais, a exemplo da Lei nº 10.241/1999, e em resoluções do Conselho Federal de Medicina. Inclusive o Anteprojeto do Novo Código Penal, PL nº 6.715/2009, também dispõe sobre o ortotanásia, prevendo sua inclusão no artigo 121 como causa excludente de ilicitude. Posteriormente este assunto será tratado mais detalhadamente, quando a Resolução do CFM nº 1.805/2006 for analisada. Existe uma ligação clara e evidente entre as Diretivas Antecipadas de Vontade e a ortotanásia, afinal a decisão de suspender o tratamento dependerá não somente do estado terminal da doença, mas também da aquiescência por parte do próprio enfermo, caso consciente, ou da família ou terceiro designado. Desse modo, a opinião do indivíduo sobre esta prática e seus desejos para o fim da vida podem ser declaradas previamente, compelindo os profissionais da saúde a verificar e atender essas disposições caso constituídas. 2.2.3 Distanásia A medicina avança a largos passos, algumas doenças antes incuráveis hoje são de fácil tratamento, vidas em estado terminal podem ser prolongadas por tempo quase que indeterminado através de equipamentos sofisticados e de alta tecnologia. Coisas consideradas impossíveis em outros tempos estão sendo realizadas facilmente pelos médicos atuais, o progresso nesta área de Capa Sumário 29 conhecimento é tão grande que as expressões “quase deuses” ou “brincando de deuses” para referir-se aqueles são frequentemente utilizadas. Em contraposição aos institutos analisados até agora, surge adistanásia, dys - dificuldade/prolongamento mais thanatos morte, nesta modalidade em vez de tentar dar ao paciente terminal uma morte digna, diminuir-lhe o sofrimento permitindo que siga o processo de morte natural, tudo o que estiver ao alcance dos profissionais de saúde e que permita a vida ser prolongada o máximo possível deve ser realizado, não importando as consequências.Também chamada de obstinação terapêutica ou futilidade médica, a distanásia, como fruto dos progressos tecnológicos, tem seu foco não no enfermo exatamente, mas sim na própria doença, busca otimizar a quantidade e não a qualidade de vida do paciente. Tudo quanto for possível deve ser feito a fim de evitar a morte, mesmo que isso traga um sofrimento imensurável. Etimologicamente, distanásia é o oposto de eutanásia. A distanásia defende que devem ser utilizadas todas as possibilidades para prolongar a vida de um ser humano, ainda que a cura não seja uma possibilidade e o sofrimento se torne demasiadamente penoso. (MALUF, 2013, p. 437) Jean-Robert Debray, citado por Maria Helena Diniz (2014, p. 508), diz que a distanásia é “o comportamento médico que consiste no uso de processos terapêuticos cujo efeito é mais nocivo do que o mal a curar, ou inútil, porque a cura é impossível, e o benefício esperado é menor que os inconvenientes previsíveis”.Da mesma forma, Adriana Maluf (2013, p. 438), ao caracterizar a distanásia apresenta os seguintes termos: Impõe o que se chama de tratamento fútil, que aumenta o sofrimento do doente e das pessoas ao seu redor e na prática nenhum benefício acarreta para este. Vele-se ainda, nesses casos, da denominada Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização obstinação terapêutica, onde o acesso à moderníssima tecnologia - em equipamentos hospitalares e fármacos - pode vir a prolongar indefinidamente um estado irreversível de saúde do paciente terminal O principal questionamento feito sobre esta prática aduz a admissibilidade de submeter paciente já em estado terminal a tratamento que tenha como objetivo apenas acrescentar alguns dias, semanas ou meses de vida a ele. Existe um limite para manutenção da vida de um indivíduo cuja morte já é certa? Pode-se prolongar a vida indefinidamente através de meios artificiais, mesmo em detrimento à dignidade humana? Acertadamente, o melhor a se fazer será compreendido após a análise da situação, caso a caso, “ponderando sobre os critérios de eficácia, benefício e onerosidade em matéria de tratamento” (MALUF, 2013, p. 438). 2.2.4 Cuidados Paliativos Aliando a ideia de manutenção da vida, a aplicação dos tratamentos que proporcionam real benefício e o papel do médico na garantia da qualidade de vida auferida pelo enfermo, que, independente da situação - instaurado o processo de morte ou já caracterizado o quadro como irreversível - o paciente ainda é sujeito de direitos, e como tal, deve continuar recebendo acompanhamento médico, ele não pode ser abandonado. Esclarecendo esta afirmação, José de Oliveira Ascensão (2012, p. 173) profere que: A pessoa não perde nunca a sua dignidade intrínseca; por isso não pode ser nunca abandonada. Mesmo que se encontre em estado considerado terminal e não haja nenhuma perspectiva de cura deve continuar sempre a ser acompanhada médica e espiritualmente. Capa Sumário 31 Partindo desse contexto, surge, então, o que José António Saraiva Ferraz Gonçalves (2006, p. 167) chama de alternativa entre o abandono e a distanásia: os cuidados paliativos. Essas práticas, também conhecidas como hospice, foram implantadas modernamente, visto terem origem na idade média, pela inglesa CicelySaunders, que fundou em 1950 a primeira instituição voltada para os cuidados de pacientes terminais, o St. Christopher’sHospice. O objetivo dessa entidade, especializada em indivíduos em estado de terminalidade, era cuidar, além dos “aspectos técnicos” ligados à doença, “da dor física, social, espiritual e emocional do paciente” (DADALTO, 2013, p. 44). Conceitualmente falando, os cuidados paliativos podem ser entendidos como aquela forma de tratamento que busca dar ao paciente uma melhor qualidade de vida, aliviando o sofrimento não apenas físico, no combate direto à dor, mas também sob parâmetros psicológicos, trabalhando o emocional e o espiritual do doente terminal, favorecendo e objetivando sempre a dignidade e a integridade da pessoa humana.A Organização Mundial de Saúde (OMS), reconhecendo a importância desse instituto diante das necessidades atuais, constituiu, em 1990, o primeiro conceito de cuidados paliativos, sendo este atualizado em 2002, passando a ter a seguinte redação: Cuidado Paliativo é uma abordagem que promove a qualidade de vida de pacientes e seus familiares, que enfrentam doenças que ameacem a continuidade da vida, por meio da prevenção e do alivio do sofrimento. Requer identificação precoce, avaliação e tratamento da dor e outros problemas de natureza física, psicossocial e espiritual (ACADEMIA NACIONAL DE CUIDADOS PALIATIVOS, 2009, p. 16) Conforme a interpretação dada ao conceito apresentado, todos os meios terapêuticos utilizados devem permitir ao paciente estabelecer-se o mais confortável possível diante da sua situação, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização com o intento de melhor receber e perceber o fim. Os cuidados paliativos irão, portanto, dar o suporte necessário aos enfermos a fim de que possam se habituar às suas limitações. Esse apoio, válido comentar, é proporcionado por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, religiosos e mesmo voluntários. Para a filosofia do hospice: a) deve-se aceitar a morte como episódio natural do ciclo vital; b) não se deve antecipar, nem prolongar a vida se a morte é inevitável; c) o paciente deve ficar unido a seus familiares e entes queridos; d) deve a equipe interdisciplinar cuidar da dor psicológica, espiritual e física; e) o objetivo clínico pretendido é controlar a dor e atenuar os sintomas da moléstia; e f) deve-se dar assistência ao paciente, independentemente das condições de pagamento. Essa filosofia encara o “estar morrendo” (dying) como um processo normal e busca uma melhor qualidade de vida ao paciente, controlando sua dor. (DINIZ, 2014, p. 518) A conclusão alcançada, por fim, implica reafirmar o paciente em estado terminal como ser social, que, embora próximo à morte, não deve ser abandonado por não haver mais possibilidade de cura, alguém a quem deve ser proporcionado as melhores condições de vida possível, para assegurar seu direito a morrer dignamente. 3 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE O reconhecimento do homem como ser livre e autônomo, capaz de gerir por si mesmo seus interesses e seu modo de agir, foi alcançado após constantes lutas e reivindicações. Dessa forma, nada mais natural que esta conquista também fosse exercida diante das questões relativas à terminalidade da vida. Admitiu-se o di- Capa Sumário 33 reito dos pacientes à explanação de seus desejos e opiniões sobre atos, condutas e tratamentos médicos a serem recebidos por eles. Não só podendo decidir sobre a aceitação ou não de determinado cuidado de forma imediata, quando o indivíduo já se encontra na relação médico-paciente, mas também de forma mediata ao dar instruções sobre como quer ser tratado no caso de eventuais e futuras incapacidades. Associada ao consentimento informado, no sentido de fundamento da autodeterminação do paciente e meio de legitimar a recusa de tratamentos (DADALTO, 2013, p. 59), as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAV’s) surgem como reflexos do próprio princípio da autonomia da vontade do sujeito, um instrumento válido para a manifestação das pretensões do indivíduo sobre questões relativas a cuidados médicos.As Diretivas Antecipadas de Vontade são fruto do direito estadunidense, surgiram em meados dos anos sessenta e foram tipificadas, em 1990, no Patient Self-determinationAct. Esse diploma legal reconhece o direito das pessoas à tomada de decisões referentes ao cuidado da saúde, aí incluídos os direitos de aceitação e recusa do tratamento, e ao registro por escrito, mediante documento, das mesmas opções, prevendo uma eventual futura incapacidade para o livre exercício da própria vontade. (CLOTET, 2005, p. 6) É percebível, primeiramente, que as DAV’s não se referem exclusivamente as situação de terminalidade, elas podem ser constituídas tomando por base uma possível incapacidade do indivíduo em manifestar prontamente os seus desejos, é um meio de prevenção, de garantir que a sua opinião seja conhecida e, preferencialmente, atendida.Tendo isso em vista “as diretivas antecipadas (advancedcaredocuments), tradicionalmente, têm sido entendidas como o gênero do qual são espécies a declaração de vontade para o fim da vida (living will) e o mandato duradouro (du- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização rablepowerattorney)” (DADALTO, 2013, p. 82). Nesse contexto, para a melhor compreensão das diretivas antecipadas de vontade e verificar sua aplicabilidade e admissibilidade no ordenamento jurídico brasileiro, é importante a análise da sua relação com o consentimento informado, o papel do médico na sua constituição e suas modalidades - declaração de vontade para o fim da vida, também conhecida como testamento vital, e o mandato duradouro. 3.1 O CONSENTIMENTO INFORMADO Dois fatores influenciaram diretamente no estabelecimento do consentimento informado como elemento essencial à proteção da autonomia privada do paciente. O primeiro fator refere-se ao antigo modelo paternalista da relação médico-paciente, e o segundo às experiências com seres humanos realizadas durante a Segunda Guerra Mundial. Antigamente, por serem os detentores dos conhecimentos técnicos da medicina, os médicos possuíam uma posição privilegiada com relação aos pacientes, e esses, em consequência, tinham um dever de obediência para com as designações dadas pelos profissionais da saúde. Dessa forma, as opiniões dos enfermos sobre a doença ou os tratamentos não eram consideradas, visto que, pelo princípio hipocrático da beneficência, era dever do médico definir e ministrar autonomamente os meios terapêuticos necessários para se alcançar a cura. (GODINHO, 2012, p. 948-949). Com o reconhecimento da autonomia privada dos pacientes esta relação foi alterada, de modo que, atualmente, o médico passou a agir não somente de acordo com seus entendimentos e convicções como também valendo-se da opinião e do consentimento do enfermo para, assim ,decidir sobre os cuidados mais adequados ao caso. Assim fica clara a importância do consentimento livre e esclarecido na relação médico-paciente. Como consequência da Capa Sumário 35 transformação do enfermo em sujeito autônomo, ele passa a ter poder de decisão sobre todas as coisas que lhe dizem respeito diretamente, devendo, portanto ter acesso às informações sobre sua condição, a fim de poder considerar adequadamente suas opções. (SÀNCHEZ apud DADALTO, 2013, p.67). Da mesma forma, com o fim da Segunda Grande Guerra, ao se observar as experiências realizadas com seres humanos “em nome do avanço da medicina”, evidente ficou a necessidade de serem estabelecidos princípios éticos que baseassem essas práticas, regulações firmadas com o desígnio de barrar as intervenções médicas não autorizadas. E foi com esse objetivo que o Código de Nuremberg, datado do ano de 1947, foi firmado. Nesse Código, a essencialidade do consentimento voluntário foi apreciada e afirmada, além da ênfase dada ao direito de escolha livre e do conhecimento esclarecido sobre o estudo desenvolvido. Esse fator proporcionou ao indivíduo tomar “consciência do direito à autodeterminação do próprio corpo que, aliada ao constante avanço da Medicina, gerou a valorização do consentimento do paciente nas intervenções médicas” (PEREIRA apud DADALTO, 2013, p. 62).Partindo do exposto, o consentimento livre e esclarecido consiste no instrumento de certificação da autonomia da vontade do paciente e é justificado como meio de proteção do direito de escolha autônoma do sujeito No âmbito das relações estabelecidas entre médicos e paciente, o consentimento informado - expressão que se cunhou para identificar que a declaração de vontade do paciente é externada de forma livre e devidamente esclarecida - é a expressão da autonomia que se lhes confere para aceitar ou recusar determinados tratamentos ou intervenções, com base nas informações prestadas acerca dos riscos e dos procedimentos que serão seguidos. (GODINHO, 2012, p. 948) Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização No consentimento informado o paciente valerá de informações prestadas pelo profissional da saúde para construir seu entendimento e, só assim, apresentará seu parecer sobre os cuidados aceitos e os recusados. O fornecimento dessas explicações constituem o dever de informar do médico, ao mesmo tempo que salientam o direito à informação do paciente. Esse dicotomiadever-direito é regulada pelo Código de Defesa do Consumidor, pois a relação médico-paciente é considerada, conforme a interpretação dada ao art. 14, §4º do CDC, como consumerista. Artigo 6º São Direitos básicos do consumidor [...] III - a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem. (BRASIL. 1990) Ademais, as informações prestadas devem ser tais que permitam ao paciente formar um consentimento verdadeiramente qualificado, ou seja, o médico não apenas tem simplesmente de informar sobre os tratamentos, ele tem obrigação de esclarecer prontamente esses dados até que se perceba a compreensão do paciente.Embora não haja consenso quanto à natureza jurídica do consentimento informado, Luciana Dadalto (2013, p. 67-68) o trabalha como uma relação contratual cujo caráter vai além da perspectiva patrimonial, por estar subordinado ao princípio da dignidade da pessoa humana, sendo, então, eminentemente existencial.Ainda sobre a relação jurídica existente entre o médico e o paciente e o papel do consentimento livre e esclarecido dentro dela, resta dizer o seguinte: [...] entende-se aqui que o consentimento livre e esclarecido na relação médico-paciente tem papel de princípio basilar, pois é informador deste contra- Capa Sumário 37 to, e, juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana, “é elemento central na relação médico-paciente, sendo resultado de um processo de diálogo e colaboração, visando satisfazer a vontade e os valores do paciente” (DADALTO, 2013, p. 69) Como relação contratual, uma outra consideração a ser feita trata da capacidade do paciente como requisito de validade do consentimento, ou seja, para ser aceita a anuência dada pelo enfermo para o início ou não do tratamento médico, resta necessário a comprovação de que ele realmente é capaz de compreender a situação em que se encontra, se o nível de consciência atinente ao seu quadro clínico permite essa tomada de decisão de forma clara. Diferentemente do entendido por capacidade civil, o mais importante diante da aval prestada é [...] aferir a validade do consentimento informado do paciente, pois, no caso concreto, deve-se verificar se à época da manifestação do consentimento o paciente estava em pleno gozo de suas funções cognitivas e não se este se enquadrava no conceito de pessoa capaz civilmente. (DADALTO, 2013, p. 72) A última ponderação a ser feita sobre o consentimento informado refere-se a sua distinção das Diretivas Antecipadas de Vontade, pois, conquanto o primeiro trata da recusa ou aceitação de um procedimento proposto para cura de uma doença vigente, as segundas cuidam de estabelecer as diretrizes para o tratamento de quadros clínicos possíveis no futuro. Entretanto, ambos os institutos assemelham-se tanto por terem como consequência a aceitação ou não de algum cuidado terapêutico, como por se fundarem no respeito à autonomia pessoal do paciente (GODINHO, 2012, p. 953) Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 3.2 AS MODALIDADES DE DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE Como dito anteriormente, as Diretivas Antecipadas são o instrumento pelo qual é manifestada a vontade e os desejos dos pacientes, é o meio garantidor do princípio da autonomia privada. Porém, elas abarcam não apenas as situações onde o indivíduo se encontra em estado terminal, também atuam como mecanismo de prevenção ao permitir que documento seja constituído com instruções a serem percebidas em uma eventual situação de incapacidade.O testamento vital ou declaração prévia de vontade para o fim da vida e o mandato duradouro são as hipóteses pelas quais as diretivas antecipadas de vontade poderão ser efetivadas. 3.2.1 Mandato Duradouro O mandato duradouro pode ser entendido como um documento no qual o paciente nomeia um ou mais “procuradores” que deverão ser consultados pelos médicos, em caso de incapacidade do paciente - definitiva ou não, quando estes tiverem que tomar alguma decisão sobre recusa de tratamento. O procurador de saúde decidirá tendo como base a vontade do paciente. (DADALTO, 2013, p. 85) Significa dizer simplesmente que em uma possível situação de incapacidade o indivíduo poderá designar, antecipadamente, alguém para atuar e decidir em seu nome, seguindo as instruções fornecidas, nas situações envolvendo os cuidados médicos com a saúde do próprio representado.Em suma, no mandato duradouro, o procurador ou curador de saúde terá como funções básicas: assegurar o comprimento das disposições apresentadas pelo paciente em diretiva antecipada de vontade; realizar um julgamento substitutivo, ou seja, decidir com fundamento no que ele acredita que seria a escolha do paciente caso esse pudesse manifestá-la - Capa Sumário 39 há uma sub-rogação das decisões do paciente; e decidir o que é de maior interesse para o paciente (CLOTET, 2005, p.10) Especificamente falando da forma como se dá o julgamento substituto, antes que o procurador possa atuar como se fosse o paciente é preciso compreender a forma de pensamento daquele que ele está representando, suas opiniões e perspectivas, valores e acepções sobre os temas a serem decididos. Enfim, é preciso conhecer o paciente para poder tomar as decisões, refletindo os desejos do mandatário. aefectividade deste instituto dependerá de um paciente e um procurador terem previamente conversado sobre as opiniões do primeiro relativamente aos seus valores e às opções que tomaria numa determinada situação se estivesse capaz (PEREIRA, 2004, p. 241) Caso o curador não cumpra com as instruções designadas,as decisões por ele tomadas podem ser invalidadas, afinal o mandato duradouro tem como premissa básica o cumprimento exato de suas disposições, ou seja, os valores de um terceiro, no caso o procurador em especifico, não podem sobrepor-se aos do enfermo. Haja vista que o mandato duradouro é um documento garantidor da autonomia privada do incapaz.Quanto a abrangência do mandato duradouro, ele caracteriza-se por ter uma amplitude maior do que as declarações previas de vontade para o fim da vida pois produz efeitos tanto no caso de uma incapacidade temporária como definitiva. Cada vez que aquele que o outorgou se encontrar impossibilitado de manifestar sua vontade o procurador poderá assumir sua posição, decidindo o que for necessário, enquanto isso as declarações anteriormente citadas só terão eficácia em caso de incapacidade definitiva. No que se refere a admissibilidade deste documento diante do ordenamento jurídico brasileiro não há impedimento algum. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Por não existir previsão legal, justifica-se a possibilidade de sua constituição pelo fato de o paciente, livre para dispor sobre os métodos terapêuticos a quer ser submetido, poder designar espontaneamente alguém para cuidar de seus interesses médicos em eventual incapacidade sua, sendo assim “não se pode recusar a validade de um instrumento que, lavrado pelo próprio interessado, nomeia um terceiro para manifestar-se sobre os cuidados futuros com a sua saúde”(GODINHO, 2012, p. 968). Um dispositivo presente na lei brasileira assemelhado ao mandato duradouro é o mandato, desse modo, em uma possível tipificação dessa modalidade de DAV poderiam os requisitos formais da figura codificada serem tomados como base, a exemplo da possibilidade de firmamento por escrito. As vantagens desse instrumento encontram-se em sua maior flexibilidade, pois mesmo diante de instruções preestabelecidas o procurador de saúde pode avaliar o que seria melhor para o seu mandatário no situação vigente, contudo, estando de acordo sempre com o modo de pensar deste último. Em uma situação inesperada, o fato de haver um procurador designado, torna possível a chegada a uma solução adequada e em conformidade com os pensamentos do doente. 3.2.2 Declaração Prévia de Vontade para o fim da vida O segundo modelo de Diretiva Antecipada de Vontade tem como prerrogativa básica declarar previamente os desejos do outorgante a respeito de uma possível situação de terminalidade onde se encontre incapaz de manifestar sua vontade de forma livre e consciente, a exemplo de uma doença crônica incurável, estar em estado vegetativo permanente, ou simplesmente em estado terminal.É o que Beauchamp e Childress (1999, p. 123) entendem como medida garantidora da autonomia do paciente diante de uma situação onde se encontre inapto à manifestação da mesma, numa clássica demonstração do chamado modelo da autonomia Capa Sumário 41 pura (a vontade real do indivíduo, apresentada em momento de capacidade plena anterior, fica assegurada). Diferentemente do mandato duradouro, onde os desejos do indivíduo são expressos indiretamente através do procurador, nesse caso a exteriorização se dará diretamente. O testamento vital, ou declaração prévia de vontade para o fim da vida, como Luciana Dadalto (2013, p. 17) indica ser uma nomenclatura mais apropriada, é entendido como um documento, devidamente assinado, em que o interessado juridicamente capaz declara quais tipos de tratamentos médicos aceita ou rejeita, o que deve ser obedecido nos casos futuros em que se encontre em situação que o impossibilite de manifestar sua vontade, como, por exemplo, o coma. (GODINHO, 2012, p. 956) Importante se faz esclarecer, antes de prosseguir com o estudo do presente instrumento, a respeito do por que a terminologia testamento vital, mais frequentemente utilizada, não perfaz a melhor opção de nomeação. O termo testamento vital é derivado da tradução literal de living will, nomenclatura original constituída em 1967 nos Estados Unidos, e não exatamente equipara esse instituto ao testamento em sua concepção civil, melhor dizendo, questiona-se se a tradução dada à dicção primária foi correta e realmente teve a intenção de assemelhá-los. Primeiramente, embora ambos sejam negócios jurídicos unilaterais, personalíssimos, gratuitos e revogáveis diferenciam-se terminantemente quanto à produção dos seus efeitos. No testamento civil há produção de efeitos post mortem, ou seja, sua eficácia ficará suspensa até a morte do testador, enquanto que o testamento vital será constituído para produzir efeitos quando o indivíduo estiver impossibilitado de indicar prontamente sua vontade, consequentemente, sua eficácia é inter vivos. Adriano Go- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dinho (2012, p. 956) nós traz ainda a diferenciação quanto ao objeto de cada instituto - em um caso obsta-se uma divisão de cunho patrimonial e no outro a garantia antecipada dada às vontades do paciente em relação a cuidados médicos.Dessa forma, fica clara a incongruência entre a nomenclatura usual, testamento vital, e o real sentido deste documento, motivo pelo qual Luciana Dadalto, como já posto, sugere a utilização da expressão declaração prévia de vontade para o fim da vida. Ela a entende mais adequada, haja vista permitir o estabelecimento de um pré-conceito sobre o que seja o instituto, facilitando sua acepção. Apenas ressaltando este ponto, é válido comentar o fato de a produção de efeitos, no caso da modalidade de DAV aqui retratada, só se fará quando o indivíduo que a outorgou estiver em situação de incapacidade permanente, diferentemente, mais uma vez, do mandato duradouro, cuja eficácia é concretizada tanto perante a incapacidade permanente quanto temporária. Isso compreendido, passa-se a apresentação de alguns elementos primordiais à caracterização da declaração prévia, iniciando pela sua justificação, passando a características basilares e, então, ao principal benefício da utilização desse documento. Joaquim Clotet (2005, p. 8), ao analisar o The Patient Self-DeterminationAct, lei norte-americana que primeiro tipificou as diretivas antecipadas de vontade, questionou, citando Ruth Purtillo (1991, p.13-14), o seguinte: “[...] qual as providências a serem tomadas para um paciente incapacitado de exercer a autonomia, mas que em estado anterior de lucidez manifestou-se a respeito por meio de documento escrito?”. Tal pergunta, segundo ele, tem como resposta o que chama de Manifestação Explícita da Própria Vontade (MEPV), uma das formas de efetivação das diretivas antecipadas. Acompanhando essa linha de pensamento, há duas justificativas principais para a formulação de uma declaração prévia de vontade pelos pacientes em fim de vida. Primeiramente, Clotet (2005, p. 9) a justifica com base “na certeza e na confiança da pes- Capa Sumário 43 soa competente no que diz respeito ao seu atendimento em estado de inconsciência”, é uma abordagem subjetiva para a constituição desse documento, partindo da ideia de autonomia privada do paciente. Adriano Godinho, contudo, apresenta uma segunda possibilidade de caráter mais objetivo para essa diretriz, ele discute a praticabilidade da declaração prévia de vontade do paciente em fim de vida com supedâneo na inexistência de dispositivo do ordenamento jurídico brasileiro que negue sua validade ou eficácia. O princípio da atipicidade, onde o particular está livre para definir novas formas de atos jurídicos ainda não previstos, desde que não sejam contrários à lei vigente, caracteriza-se como justificador do instituto, servindo à sua legitimação diante do direito nacional. No concernente aos pressupostos do Testamento Vital estabelecidos como essenciais à sua validade estão a capacidade plena do sujeito, associada à divergência entre capacidade e discernimento - situação em que o indivíduo tem plena consciência da sua situação -, a forma escrita do documento, uma formalidade mínima, e a livre revogabilidade da diretiva, fundamentada na perspectiva fornecida pelo progresso constante da medicina, onde, a qualquer momento podem ser desenvolvidos novos cuidados terapêuticos para determinadas doenças antes incuráveis, ou, ainda, outros tratamentos que realmente melhorem a qualidade de vida do paciente. Por fim, a instituição de uma declaração prévia desponta como elemento assecuratório da autonomia da vontade e do direito à dignidade a partir do atendimento aos desejos do enfermo quando sobrevier a morte. Além disso, há o respaldo legal, imunidade civil e criminal, proporcionado ao médico que atende essas disposições. [...] consequências benéficas das diretivas antecipadas, como a redução do medo do paciente de situações inaceitáveis, o aumento da autoestima do paciente, a proteção do médico contra reclamações e denúncias, a orientação do médico ante situações Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização difíceis e conflituosas, o alívio moral para os familiares diante de situações duvidosas ou “potencialmente culpabilizadoras” e a economia de recursos da saúde. (DADALTO, 2013, p. 84) Da mesma forma, Ernesto Lippmann (2013, p. 21) conclui da seguinte maneira sobre a fundamentação legal das declarações prévias: Portanto, o fundamento legal do testamento vital é a autonomia da vontade, a livre escolha do ser humano e o princípio constitucional de sua dignidade humana, sendo importante que seus desejos sejam documentados e manifestados de forma consciente e esclarecida, o que se faz através do testamento vital, que registra o tratamento que o paciente deseja receber quando sua morte se aproximar. Conclui-se, portanto, que a declaração prévia de vontade para o fim da vida é a modalidade das DAV’s onde o paciente poderá registrar suas vontades e acepções sobre os tratamentos médicos a serem recebidos em uma situação eventual e futura de incapacidade, sendo assegurada pelos princípios constitucionais da autonomia da vontade e a dignidade da pessoa humana e podendo ser justificada pelo princípio da atipicidade. 3.3 DELIMITAÇÕES DAS DAV’s Considerando que as Diretivas Antecipadas de Vontade possuem um fim específico, garantir a expressão dos desejos do paciente (autonomia) mesmo diante da incapacidade, e lhe assegurar uma morte digna - respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, através dos cuidados paliativos, proporcionados esses de modo que haja uma melhor qualidade de vida durante o processo terminal -, há, entretanto, diversas questões a serem Capa Sumário 45 analisadas e ponderadas no constante as suas delimitações. Esclarecimentos sobre até onde pode-se dispor em defesa dos ideais supracitados. 3.3.1 Fundamentos e limitações das DAV’s Quando se fala nos fundamentos das DAV’s a doutrina costumeiramente trata de três pontos em específico: a verificação dos aspectos relativos aos tratamentos de saúde, a indicação/nomeação de um procurador e a manifestação sobre eventual doação de órgãos (DADALTO, 2013, p. 91-92). Essas ponderações envolvem o direcionamento da diretiva antecipada, ou seja, o objeto desse instrumento de manifestação do paciente, geralmente, toma como prerrogativa uma ou mais destas dimensões. Os tratamentos médicos podem ser ocasionalmente divididos em ordinários, aqueles úteis e voltados para o controle da dor e do sofrimento pelos quais o indivíduo está passando, visa a qualidade de vida aliada ao reconhecimento dele como sujeito de direitos que deve ser tratado com dignidade, ou extraordinário, cujo conceito permeia a ideia de futilidade de tratamento, portanto, método que deve ser alvo das diretivas antecipadas pois visa apenas a manutenção da vida sem qualquer ganho real e necessário à qualidade de vida do enfermo, infringindo, muitas vezes, sua dignidade. Nesse caso, as diretivas cuidarão dessas nuances relacionadas aos tratamentos médicos, resolvendo quais o paciente aceita ou não, se deve haver a chamada suspensão de esforço terapêutico (SET), a depender da situação, se quer ou não ser informado a respeito de diagnósticos fatais, etc. (DADALTO, 2013, p. 92-93). Sobre a nomeação do procurador não há nada para acrescentar além do que já foi discutido no tópico sobre o mandato duradouro. Ressalva-se apenas o fato de o outorgado ter o compromisso de agir segundo as instruções do outorgante e, como se ele Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização fosse, decidir por base no que acredita ser o caminho mais correto para proporcionar ao paciente incapaz, sob sua responsabilidade, um processo de morte digno. A última perspectiva fundamental abordada pela doutrina como preceito a ser compreendido diante da declaração prévia de vontade para o fim da vida é a possibilidade de manifestação de vontade sobre eventual doação de órgãos. A lei nº 9.434/1997, alterada pela lei nº 10.211/2001, chamada Lei dos Transplantes, disciplina claramente essa matéria. A princípio, e segundo Joaquim Clotet (2005, p. 09), essa declaração sobre o transplantes pôde ser considerada uma manifestação explícita da própria vontade (MEPV) do doador e, portanto, uma forma representativa das diretivas antecipadas. Contudo, Luciana Dadalto (2013, p. 149), ao tecer seus comentários afirma que, na verdade, as disposições sobre doação de órgãos, estas desnaturam o instituto, vez que a declaração prévia de vontade para o fim da vida é, por essência, negócio jurídico, com efeito, inter vivos, cujo principal objeto é garantir a autonomia do sujeito quanto aos tratamentos a que este será submetido em caso de terminalidade da via. Ademais, essa autora ainda faz referência ao fato de ser dada ao cônjuge ou parente plenamente capaz a autonomia para decidir sobre a realização ou não da doação de órgãos. Ponderando a declaração prévia de vontade para o fim da vida como expressão da autonomia do paciente, a exigência de delegação da decisão, no todo ou em parte, sobre o transplante para os familiares é claramente incompatível com esse instrumento (DADALTO, 2013, p. 149). Assim, a doação de órgãos, embora seja uma das formas de manifestação da vontade do paciente, não pode ser considerado como declaração prévia de vontade, primeiro porque em geral a doação de órgãos pode ser efetivada também post mortem e, segundo, a permissão para o transplante não é de caráter exclusivo Capa Sumário 47 do indivíduo, não é expressão apenas de sua vontade. O direito do indivíduo em constituir uma diretiva antecipada de vontade engendra-se no princípio da autonomia, no direito à dignidade humana eno princípio da atipicidade dos atos jurídicos, no entanto, ao verificar acima suas diretrizes mais comuns, torna fácil a percepção de que há uma limitação quanto à matéria, mesmo não existindo legislação específica regulamentando-a. Doutrinariamente esses limites envolvem tanto a proibição de disposições contrárias à lei, melhor explicando, as diretivas antecipadas de vontade não podem conter determinações incompatíveis com o ordenamento jurídico vigente, a exemplo da eutanásia; como a impossibilidade de previsão de tratamentos ultrapassados ou contraindicados à doença sofrida pelo enfermo, essa última justifica-se pelo seguinte ponto: a obrigatoriedade de assegurar o que é melhor para o paciente. Frente à possibilidade de decorrer um longo tempo antes de advir a situação de incapacidade instruída na diretiva antecipada, essa medida é legitimada pelo avanço constante da Medicina, onde casos antes caracterizados como obstinação terapêutica atualmente podem ter novos e eficazes tratamentos.A última colocação posta como limitação às diretivas antecipadas de vontade, a objeção de consciência do médico, merece ser discutida em tópico específico por conta de sua relevância jurídica. 3.3.1.1 O papel dos profissionais da saúde Quando se falou a respeito do consentimento livre e esclarecido e o dever do médico de prestar informações completas e de fácil compreensão para o paciente sobre a sua condição se saúde, ficou evidente a grandiosidade da responsabilidade do médico. Ele não somente é obrigado a levar em consideração a opinião do enfermo diante do próprio estado, fruto do princípio da autonomia, como precisa avaliar quais os casos onde esse princípio pode Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ser flexibilizado, perante o melhor interesse para o paciente, e informar devidamente a respeito dos diagnósticos seja ao doente seja aos seus responsáveis, dependendo da situação.Há casos em que o diagnóstico fatal poderia levar o paciente a piora de sua condição, prejudicando gravemente a evolução do procedimento terapêutico utilizado, assim, cabe ao médico avaliar o estado psicológico do enfermo e tentar evitar essa reação desmesurada. O dever de informar não deve ser entendido como o de fazer saber a verdade a qualquer custo. O princípio de não causar maior dano físico ou psíquico ao paciente requer que se viole o da autonomia, fazendo com que a informação lhe seja sonegada ou, até mesmo, que se lhe oculte a verdade. As vezes, uma mentira piedosa pode trazer benefício ao doente, mantendo-o vivo ou dando-lhe força para recuperar a saúde. (KONRAD, apud DINIZ, 2014, p. 524) Da mesma forma o Código de Ética Médica prevê a exceção ao dever de informar do médico, entretanto, se faz necessário destacar o fato de essa restrição só valer para o paciente, seus responsáveis devem ser informados detalhadamente sobre a patologia. Art. 34 - Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. O princípio da autonomia da vontade em si suscita, como Maria Helena Diniz (2014, p. 529) afirma, um dever de respeito dos demais indivíduos aos preceitos dirimidos pelo titular do direito. Isso constitui o conceito de autodeterminação do sujeito, baseado não apenas na autonomia, mas no princípio da dignidade da pessoa humana.Todavia, até onde o respeito à autodeterminação no caso do paciente pode levar o médico? Todas as diretrizes propostas pelo enfermo precisam ser acatadas pelo médico, mesmo que prejudi- Capa Sumário 49 ciais ou simplesmente não proporcionando nenhum benefício? O direito do paciente em expor seus desejos e opiniões é assegurado, porém o médico também possui liberdade para decidir sobre os melhores tratamentos a serem seguidos decorrente do seu conhecimento técnico. Obviamente a vontade do paciente é importante, e deve ser levada em conta, principalmente se há um documento prévio definido sobre questões dessa seara, mas o médico pode decidir qual o melhor momento para o desejo do enfermo prevalecer, fundando-se em circunstâncias ético-jurídicas.Seguindo a mesma prerrogativa, cabe também aos profissionais da saúde objetarem, em respeito à sua própria autonomia, a aplicação de certas instruções preferidas pelo paciente. Pode justificar, então, sua recusa à aplicação dessas prescrições por meio tanto do Código de Ética Médica, instrumento balizador da chamada objeção de consciência, como pela recente Resolução CFM nº 1.995/2012 que prevê a possibilidade de o médico deixar de seguir as diretivas antecipadas de vontade do enfermo no caso dessas estarem em desacordo com preceitos fundamentados no Código de Ética Médica. É direito do médico, pelo cap. II, n. IX, do Código de Ética Médica, recusar a realização de atos médicos que, embora permitidos por lei ou por Resolução do CFM, sejam contrários aos ditames de sua consciência.Logo, pelo bom senso, deve o profissional de saúde concluir, sempre que o tratamento for indispensável, estando em jogo o interesse de seu paciente, pela prática de todos os atos terapêuticos que sua ciência e consciência impuserem. Trata-se do direito à objeção de consciência, que, baseado no princípio da autonomia da pessoa, implica, por motivo de foro íntimo, a isenção de um dever geral e a recusa a uma ordem ou comportamento imposto. (DINIZ, 2014, p. 530) Assumi-se a objeção de consciência do médico como meio de exercer sua autonomia privada, no entanto é aconselhável Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização apontar a necessidade de justificação da recusa dada, sempre fundamentada em razões éticas e de foro íntimo, não podendo essa rejeição permanecer imotivada em qualquer hipótese. 3.3.2 Os efeitos das Diretivas Antecipadas de Vontade Como já ficou bastante claro no decorrer do texto, as diretivas antecipadas de vontade tem como objetivo assegurar ao indivíduo, em situação de incapacidade temporária ou permanente, o atendimento ou, ao menos, a observância dos seus desejos, evidenciando-o como sujeito de direitos. Esse instituto permite ao paciente, especificamente, optar ou não, através de documento escrito, pela obstinação terapêutica, a suspensão de tratamentos que favorecem a quantidade de vida em detrimento da qualidade ou, ainda, pela simples decisão sobre quais tratamentos, de modo geral, aceita receber ou recusa. Entrementes, no que consta a aplicação das diretivas antecipadas, especialmente na modalidade de declaração prévia de vontade para o fim da vida, é importante comprovar, como sabiamente Adriano Godinho (2012, p. 972) profere, “que o paciente não é mais capaz de tomar decisões sobre os cuidados com sua saúde e que não há, segundo as circunstâncias e após cuidadosas análises, perspectiva de que o paciente recobre o discernimento para tomá-las”, só assim poderão ter eficácia, quando o enfermo for percebido em estado de terminalidade. Os efeitos das DAV’s envolvem não somente o início do processo de morte, mas também são baseados na compatibilidade das instruções nela contidas com os tratamentos médicos vigentes, ou seja, uma declaração constituída há muito tempo provavelmente não estará de acordo com os cuidados atuais, podendo estar ultrapassada e, em favor do melhor interesse do paciente, existindo método terapêutico mais adequado que propicie a ele melhores condições, a diretiva poderá ser deixada de lado. Capa Sumário 51 Tal discussão abre portas há determinação de um prazo de validade para as diretivas antecipadas de vontade, ao mesmo tempo em que surge a pergunta sobre o fato de o autor não tê-la revogado, após todo esse tempo, se isso sugere sua imutabilidade de opinião, sendo que a “vontade manifestada na diretiva antecipada corresponde à vontade atual” (GODINHO, 2012, p. 973).Outra informação necessária ao estudo da eficácia das DAV’s trata da sua produção de efeitos, em regra, erga omnes, de modo a vincular não apenas o médico, ressalvando o caso de uma eventual objeção de consciência, mas também os familiares do paciente e, mais determinantemente, o procurador de saúde, caso constituído. O caráter vinculante das diretivas parece ser necessário para evitar uma perigosa ‘jurisdicionalização’ do morrer, que inevitavelmente ocorreria quando o médico se recusasse a executar as diretivas antecipadas, decisão que precluiria uma impugnação da sua decisão pelo fiduciário ou pelos familiares. (RODOTÀ apud DADALTO, 2013, p. 92) Um modo de dar maior segurança às diretivas antecipadas, segundo sugerem Adriano Godinho (2012, p. 974) e Luciana Dadalto (2013, p. 05), é a criação de um cadastro nacional onde todas as diretivas deverão ser registradas. Essa medida foi implantada em alguns dos países que já legislaram sobre o tema, como Espanha e Portugal, e visa dar não apenas segurança jurídica ao instrumento, mas possibilitar uma maior facilidade de acesso à elas pelos interessados - profissionais da saúde em geral, além favorecer a disseminação do instrumento de declaração da vontade no Brasil, incentivar a formulação de uma legislação específica sobre a matéria. 3.4 PRINCÍPIOS RELACIONADOS ÀS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE As diretivas antecipadas de vontade possuem como pre- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização missas básicas o respeito aos princípios da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana haja vista serem estes considerados como supedâneos primordiais do indivíduo e do ordenamento jurídico como um todo. Durante todo o presente projeto, reiteradamente, esses dispositivos foram citados e interpretados de forma a proporcionarem às DAV’s sua justificativa e suporte. Contudo, apesar de poder inferir de todo o texto a preciosidade dos mesmos, bem como o sentido que se quis atrelar a eles, importante se faz, mesmo que brevemente por não serem o foco do presente estudo, conceituá-los e contextualizá-los, ato a ser realizado nos seguintes tópicos. 3.4.1 Princípio da Dignidade da Pessoa Humana O princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce de todo o ordenamento jurídico brasileiro, está disposto no art. 1º, III, da Carta Magna de 1988 como fundamento do Estado Democrático de Direito. Pode ser entendido, nas palavras de UadiLammêgoBulos (2011, p. 502), como o valor constitucional supremo, o “conjunto de valores civilizatórios incorporados ao patrimônio do homem”. Neste diapasão, Maria Helena Diniz (2014, p. 41) o concretiza, relacionando-o diretamente à bioética e ao biodireito, como “valor que prevalecerá sobre qualquer tipo de avanço científico e tecnológico”.Diante da bioética e todo o seu aparato hightech, o princípio da dignidade da pessoa humana é indispensável, pois é elemento limitador dessa revolução tecnológica, no sentido de conferir a importância devida aos seres humanos, impondo o respeito a eles em todas as suas fases e, consequentemente, tentando evitar seu desvirtuamento e transfiguração em objeto. Relacionando-o às diretivas antecipadas de vontade, tem-se o fato de garantir o indivíduo em estado de fim da vida como sujeito de direitos, não é por se encontrar na fase final de sua jornada, ou incapaz de manifestar sua vontade, que ele deve ser Capa Sumário 53 abandonado ou definido como peso morto. É alguém que deve ser respeitado e cuidado até que seu momento final chegue, assegurando-se sua dignidade.Neste contexto, partindo, então, para a concepção de morte como algo inevitável e que possui implicações diretas no domínio legal, importante se faz a discussão sobre o direito de morrer dignamente e sua relação com o direito à vida digna. Não apenas considerando o direito à morte digna como um fim em si mesmo, mas também como direito corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Nas palavras dos grandes mestres Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2011, p. 340): [...] o direito à morte digna é o reverso da moeda do direito à vida digna. [...] Até mesmo porque uma morte digna há de ser a consequência natural de toda e qualquer vida digna. Trata-se, pois, tão somente, de permitir que a natureza siga o seu rumo, fazendo o seu inexorável papel, sem que isso atinja a dignidade da pessoa, em determinadas situações. Destaca-se a necessidade de considerar e aceitar o direito à morte digna como derivado do próprio princípio da dignidade da pessoa humana. E este reconhecimento se dá não ligando-o a conjecturas pessoais de ordem ética, religiosa, moral, etc, mas como fruto de uma reflexão jurídica sobre a morte, “o reconhecimento de que a dignidade da pessoa humana também se projeta na morte” (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 341), fator que explica a relação íntima das diretivas antecipadas de vontade com esse valor fundamental do direito, pois, há uma preocupação crescente quanto à salvaguardar a qualidade de vida, mesmo no fim. 3.4.2 Princípio da Autonomia da Vontade do Paciente Autonomia pode ser conceituada de modo geral como “o poder de estabelecer por si, e não por imposição externa, as regras da própria conduta” (RODRIGUES; RÜGER, 2007, p. 04) e tem como fundamento a liberdade do indivíduo, no sentido de poder mani- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização festar suas vontades e opiniões de forma livre e desimpedida.Em suma, Luciana Dadalto (2013, p. 29), citando MiracyGustin, conceitua a autonomia privada como [...] sendo aquele (conceito) que legitima a ação do indivíduo, conformada à ordem pública e permeada pela dignidade da pessoa humana, ou, em outras palavras, a autonomia privada como sendo aquela que garante que os indivíduos persigam seus interesses individuais, sem olvidar da intersubjetividade, da interrelação entre autonomia pública e privada. Partindo dessa concepção a relação entre a autonomia e o paciente, em especial o em situação de terminalidade tantas vezes citado no presente trabalho, vê-se que mesmo nesse estado ele ainda é sujeito de direitos, e como bem visto, deve ter sua autonomia protegida e garantida mesmo que não se encontre capaz de manifesta-la diretamente. 4 DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO ORDENAMENTO BRASILEIRO A inexistência de lei brasileira regulamentando as diretivas antecipadas de vontade não obsta a validade desse instituto, sendo suficiente a interpretação dada aos princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana e da Autonomia da Vontade para se entender viável a declaração prévia de vontade para o fim da vida (DADALTO, 2013, p.146).Este documento proporciona ao seu autor a manifestação de sua vontade, de modo a assegurar que em eventual incapacidade futura ele não seja obrigado a ser submetido a tratamentos e cuidados ineficazes, cujo único objetivo é a manutenção da vida sem real perspectiva de melhora, ou quaisquer benefícios à saúde do indivíduo. Capa Sumário 55 Embora a lei brasileira não trate particularmente das DAV’s, é possível utilizar-se de alguns dispositivos específicos, além dos preceitos constitucionais citados acima, para fundamentá-las. A exemplo disso, no artigo 15 do Código Civil, podemos destacar o fato de ser necessária a consulta ao paciente em caso de atos médicos que encerrem grave risco a vida. In verbis: “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”, significando dizer que é meio de garantir a autonomia privada do sujeito. Sendo o paciente, afinal, o titular dos bens da personalidade cuja preservação se coloca em pauta, será ele o melhor juiz para decidir sobre os cuidados com sua saúde, uma vez que esteja de posse das informações técnicas acerca das alternativas de tratamento e das possíveis consequências que a aceitação ou rejeição podem acarretar. (GODINHO, 2012, p. 955) Outras legislações infraconstitucionais também tratam, incipientemente, da possibilidade de recusa de tratamentos médicos pelos enfermos no caso desses constituírem procedimentos inúteis e causadores de mais sofrimento. Entretanto, essas tipificações esparsas ainda não são o suficiente para configurar de pleno a validade das diretivas antecipadas de vontade, visto que, embora sejam um avanço nessa direção, não são capazes de abarcar de forma apropriada todas as premissas deste instituto o que só se daria com a promulgação de uma lei de caráter nacional.Em último caso resta avaliar o entendimento do Conselho Federal de Medicina (CFM) a respeito das DAV’s, especialmente diante das resoluções nº 1.805/2006 e 1.995/2012, assunto para o próximo tópico. 4.1 RESOLUÇÕES DO CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA As Diretivas Antecipadas de Vontade tem nas Resoluções do CFM seu principal ponto de apoio na busca pela validade jurídi- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ca, haja vista serem essas disposições o meio pelo qual são mais difundidas. E, conquanto existam inúmeras declarações do Conselho Federal de Medicina envolvendo as mais variadas nuances das DAV’s, duas delas se destacam por sua importância frente a conceitos e determinações fundamentais à constituição e consideração desse instituto no ordenamento jurídico brasileiro. São elas as já citadas Resoluções CFM nº 1.805/2006, que dispõe sobre a permissibilidade e/ou admissibilidade da ortotanásia no Brasil, e a 1.995/2012, primeira regulação específica existente no país sobre as próprias Diretivas Antecipadas de Vontade. 4.1.1 Resolução nº 1805/2006 - A Ortotanásia Essa determinação do Conselho Federal de Medicina, disposta na Resolução CFM nº 1805/2006, tratou de dispor sobre a possibilidade de os médicos, diante de enfermidades graves onde os doentes já se encontram em fase de fim da vida, limitar ou suspender os cuidados terapêuticos que não são mais eficazes e apenas prolongam indefinidamente o sofrimento do paciente e de seus familiares. De modo claro, regulamenta-se a prática da ortotanásia como instrumento útil à garantia da autonomia e da dignidade do paciente. Art. 1º É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal. § 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante legal as modalidades terapêuticas adequadas para cada situação. § 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no prontuário. § 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar uma segunda opinião médica. Capa Sumário 57 Art. 2º O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar. (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 2006) Todavia, mal essa Resolução foi editada o Ministério Público Federal do Distrito Federal ajuizou uma ação civil pública questionando a legitimidade do CFM para regulamentar como conduta ética o ato, no caso a prática da ortotanásia, tido por crime perante o Código Penal (DADALTO, 2013, 134).Em um primeiro momento, ao apreciar a demanda, o magistrado atendeu ao apregoado pelo Ministério Público Federal interpretando a prática da ortotanásia como conduta típica disposta no art. 121 do Código Penal Brasileiro, fato que apenas estaria “desconstituído” diante do anteprojeto de reforma da parte especial desse código, ainda não aprovado, que situa a eutanásia como homicídio privilegiado e prevê a descriminalização da ortotanásia. Contudo, por esse instituto ser entendido pelos ditames médicos como elemento garantidor da autonomia privada e da dignidade do paciente, não há que se falar em conduta criminosa, até porque, do contrário, a sustentação da vida do paciente indefinidamente poderia caracterizar o crime de tortura, pois infringe ao indivíduo um sofrimento prolongado e desnecessário. Relembrando o conceito de ortotanásia, ela consiste na prática cujo resultado morte é alcançado por conta da suspensão dos cuidados e tratamentos usados na manutenção da vida, não tem como prerrogativa antecipar o momento da morte, mas sim, proporcionar sua ocorrência de forma natural. Nesse parâmetro, dispõe a exposição de motivos da Resolução CFM nº 1.805/06 o seguinte: [...] torna-se importante que a sociedade tome conhecimento de que certas decisões terapêuticas poderão apenas prolongar o sofrimento do ser hu- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização mano até o momento de sua morte, sendo imprescindível que médicos, enfermos e familiares, que possuem diferentes interpretações e percepções morais de uma mesma situação, venham a debater sobre a terminalidade humana e sobre o processo do morrer. Torna-se vital que o médico reconheça a importância da necessidade da mudança do enfoque terapêutico diante de um enfermo portador de doença em fase terminal, para o qual a Organização Mundial da Saúde preconiza que sejam adotados os cuidados paliativos, ou seja, uma abordagem voltada para a qualidade de vida tanto dos pacientes quanto de seus familiares frente a problemas associados a doenças que põem em risco a vida. A atuação busca a prevenção e o alívio do sofrimento, através do reconhecimento precoce, de uma avaliação precisa e criteriosa e do tratamento da dor e de outros sintomas, sejam de natureza física, psicossocial ou espiritual. Posteriormente, com o advento do novo Código de Ética Médica que disciplinou a necessidade de evitar a realização de procedimentos clínicos exacerbados em casos irreversíveis e/ou terminais, o MPF/DF mudou sua postura e prestou alegações finais favoráveis ao prescrito na Resolução do CFM. O juiz, então, julgou improcedentes os pedidos, reconhecendo a legitimidade da dita Resolução. 4.1.2 Resolução 1995/2012 - As Diretivas Antecipadas de Vontade A Resolução CFM nº 1.995/2012 é a primeira regulamentação existente no Brasil a tratar especificamente das diretivas antecipadas de vontade. Embora não tenha força de lei, devido ao CFM ser um órgão de classe sem competência para legislar, foi um importante passo na direção da legalização desse instrumento.Este dispositivo está, conforme foi cientificado pelo próprio Conselho Capa Sumário 59 Federal de Medicina, intimamente ligado à prática da ortotanásia, pois possui como premissa fundamental o respeito à autonomia da vontade do paciente, bem como tem por objetivo garantir uma melhor qualidade de vida aos enfermos em estado de fim de vida ou incapazes de manifestar sua vontade de forma direta e imediata. Luciana Dadalto (2013, p. 140-141) ao discutir essa resolução, salienta a necessidade de registro das DAV’s como meio de garantir a segurança jurídica, segundo ela, essa formalização é justificada para asseverar o comprimento dos desejos do declarante.A existência de um registro nacional das Diretivas Antecipadas de Vontade, não apenas perquire a certificação do cumprimento da vontade do paciente, mas é elemento facilitador do acesso daqueles a quem seu conhecimento se faz necessário, os médicos e demais profissionais de saúde. Nessa Resolução estabelece-se a prerrogativa do médico em registrar as DAV’s no prontuário, entretanto, há quase uma restrição ao papel deste profissional,pois as diretivas antecipadas consideradas nesse dispositivo aparentemente o entendem como mero cumpridor dos desejos do enfermo, porém omais do que isso o médico possui a função de informar ao paciente e a seus familiares de modo suficientemente claro sobre todos os aspectos da condição de saúde do enfermo, da mesma forma os tratamentos cabíveis, e aqueles que podem ou não ser recusados, bem como possuem a prerrogativa de aceitar ou não as considerações do paciente a depender do caso. Cabe o profissional, como técnico, esclarecer o declarante quanto aos tratamentos e procedimentos que podem ou não ser recusados. Sendo assim, entende-se ser imprescindível a orientação do médica da família do declarante para a realização das diretivas antecipadas, e é exatamente isso que garante que o paciente vai manifestar, exatamente, sua vontade no documento, afinal, paciente autônomo é Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização aquele bem informado/esclarecido. (DADALTO, 2013, p. 141) A resolução do CFM nº 1995/2012, embora aborde apenas superficialmente as Diretivas Antecipadas de Vontade, trouxe alguns dos pontos mais significativos para o estudo da matéria, e é, sem a menor dúvida, um documento de suma importância, um marco, para o início de pesquisas mais aprofundadas sobre a defesa dos direitos dos pacientes em fim de vida. 4.2 A VALIDADE DAS DAV’s NO ORDENAMENTO BRASILEIRO Boa parte dos questionamentos referentes à validade das diretivas antecipadas de vontade diante do ordenamento jurídico brasileiro já foram abordadas e devidamente explicadas no decorrer do presente trabalho monográfico. Posiciona-se sobre a admissibilidade desses instrumentos, mesmo inexistindo lei que os regulamente, por conta de sua natureza jurídica contratual, que independe de forma específica para tornarem as diretivas antecipadas de vontadeválidas e eficazes, fato resultante do princípio da atipicidade dos atos jurídicos. A perspectiva considerada a partir dos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade do paciente, por si só, já poderia fundamentar as diretivas antecipadas e justificar sua validade diante do ordenamento nacional. A existência de limites à constituição das mesmas também baliza essa validade, conquanto proíbe a existência, nas diretivas, de disposições incompatíveis com o ordenamento jurídico e a impossibilidade de determinação sobre tratamentos ultrapassados ou contraindicados para o paciente. Todos esses aspectos amparam-se na prerrogativa de busca de uma melhor qualidade de vida para o enfermo, respeitando o princípio da autonomia da vontade e garantindo a dignidade da pessoa humana. Capa Sumário 61 Dito isso, é possível fazer algumas conjecturas sobre a forma como as diretivas antecipadas de vontade, seja na sua modalidade de mandato duradouro ou como declaração prévia de vontade para o fim da vida, podem ser constituídas no Brasil.Quanto à sua forma temos duas propostas, a primeira fundada no direito comparado, percebe as DAV’s nas modalidades pública ou privada, respectivamente caracterizando-as como um documento que deve ser registrado em cartório constituindo uma escritura pública e sem a necessidade de testemunhas, ou assinado por testemunhas (DADALTO, 2013, p. 150-152). A segunda proposta, apresentada por Adriano Godinho (2012, p. 962-963), é a utilização, por analogia, das regras civis serventes aos testamentos, a exemplo do cumprimento dos [...] requisitos de validade da mais “informal” das modalidades ordinárias de testamento - o particular -, que exige que o texto seja escrito de próprio punho ou por processo mecânico, sem rasuras, na presença de pelo menos três testemunhas, que também devem subscrevê-lo, conforme determina o art. 1876 do Código Civil. Este autor também reconhece que o ideal é o registro do documento perante um tabelião, de modo a assegurar a fé pública.Quanto a alguns outros requisitos formais, como o prazo de validade e eficácia, são entendidos conforme é verificado o avanço da Medicina, permitindo que as instruções postas em diretivas formuladas há certo tempo fiquem superadas,ocasionando a invalidade da DAV ou permitindo ao profissional da saúde desconsiderá-las, diante da evolução dos meios de cura e/ou tratamento existentes no momento da ocorrência da moléstia e incapacitação do enfermo. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 4.3 PROPOSTAS LEGISLATIVAS Embora não haja no Direito Pátrio legislação específica sobre as diretivas antecipadas de vontade, isso não impede a validade e eficácia desse instrumento, pois, sendo os atos jurídicos atípicos, não precisam de forma particular para serem válidos. Contudo, a regulamentação dessas declarações prévias é algo premente. Para que elas possam ser efetivadas e, consequentemente, as vontades ali estabelecidas possam ser cumpridas, imprescindível se faz a constituição de um ato normativo que trate dos pormenores desse instituto. Melhor explicando, para dar maior segurança jurídica às DAV’s, a definição de alguns aspectos formais e específicos desse documento são necessários. Assim, essa prerrogativa estabeleceque para o real comprometimento das Diretivas Antecipadas de Vontade diante do ordenamento nacional uma legislação seja formulada.Luciana Dadalto (2013, p. 157-160), nesse compasso, apresenta a seguinte proposta legislativa fundada em seus estudos com o direito comparado, em especial os ordenamentos vigentes nos EUA, Espanha, Portugal e Argentina: Art. 1º Fica instituído no Brasil o direito à feitura de Diretivas Antecipadas de Vontade nos termos desta lei. Art. 2º É assegurado a toda pessoa capaz, o direito a redigir diretivas antecipadas, separadas ou conjuntamente, nas quais se inserem a declaração prévia de vontade para o fim da vida e o mandato duradouro. §1º Declaração prévia de vontade para o fim da vida é um documento escrito por uma pessoa capaz, no pleno exercício de suas capacidades, com a finalidade de manifestar previamente sua vontade, acerca dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser submetido caso se torne um paciente em terminalidade de vida, esteja em EVP ou com uma doença Capa Sumário 63 crônica fora de possibilidades terapêuticas e esteja impossibilitado de manifestá-la. § 2º Mandato duradouro é a nomeação de um procurador de cuidados de saúde, cujas atribuições consistem em expressar a vontade do paciente, acerca dos tratamentos e não tratamentos a que deseja ser submetido, quando estiver em estado de terminalidade. § 3º A capacidade será aferida, via de regra, de acordo com a lei civil, entretanto, o Poder Judiciário poderá ser provocado pelo interessado em redigir diretivas antecipadas, a se manifestar acerca do discernimento de indivíduos tidos, pela lei civil, como incapazes, a fim de garantir a esses o direito de redigi-las. § 4º O estado de terminalidade é o quadro clínico fora de possibilidades terapêuticas e cuja morte é iminente. § 4º O EVP é o quadro clínico de completa ausência da consciência de si e do ambiente circundante, com ciclos de sono-vigília e preservação completa ou parcial das funções hipotalâmicas e do tronco cerebral. § 5º A doença crônica fora de possibilidades terapêuticas é aquela cujo quadro clinico importa em diminuição das capacidades funcionais do paciente e não possui possibilidades terapêuticas. Art. 3º É facultado ao outorgante o direito de redigir uma declaração prévia de vontade para o fim da vida contendo cláusula de nomeação de procurador, hipótese em que o mandato duradouro será incorporado à declaração prévia de vontade para o fim da vida. Parágrafo único: O outorgante poderá nomear como seu procurador, qualquer pessoa, com ou sem vínculo de parentesco, desde que o procurador seja civilmente capaz e aceite o múnus. Art. 4º As diretivas antecipadas serão feitas no Cartório de Notas, por escritura pública. Art. 5º O tabelião responsável pelo Cartório de Notas em que as Diretivas Antecipadas de Vontade forem lavradas deverá, em um prazo de quarenta e oito ho- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ras, contadas do registro, enviá-las ao Registro Nacional de Declaração prévia de vontade para o fim da vida, criado para tal fim. Art. 6º Compete ao Ministério da Saúde criar o Registro Nacional de Declaração prévia de vontade para fim da vida, em prazo máximo de um ano, a contar da publicação desta lei. § 1º O Registro Nacional de Declaração prévia de vontade para o fim da vida deverá ser informatizado e deve dispor de uma página na internet contendo informações detalhadas sobre o documento, modelos de documentos e registro de todos os documentos. § 2º O outorgante poderá, a qualquer momento, consultar sua declaração prévia de vontade para o fim da vida, mediante senha. Contudo, qualquer alteração no documento só poderá ser realizada em cartório de notas. § 3º Os médicos que estiverem tratando do paciente terminal terão acesso ao Registro, mediante senha. § 4º Os hospitais, nos quais o paciente terminal estiver internado, terão acesso ao Registro mediante senha. Art. 7º As diretivas antecipadas devem ser redigidas de forma clara, dispondo especificamente sobre os tratamentos e não tratamentos a que deseja ser submetido, a fim de não causar interprestações díspares. Para tanto, todos os hospitais públicos devem criar um comitê especializado no assessoramento de pessoas que desejam redigir suas declarações prévias. Art. 8º Para efeitos da declaração prévia de vontade para o fim da vida serão válidas apenas disposições de recusa de tratamentos fúteis, entendidos como tratamentos que visam apenas prolongar a vida do paciente, sem apresentar qualquer benefício quanto à qualidade de vida. Art. 9º É permitido ao paciente dispor sobre suspensão de hidratação e alimentação. Art. 10º Não serão eficazes disposições que versem sobre suspensão ou não aplicação de medicamentos que aliviam a dor. Capa Sumário 65 Art. 11º As diretivas antecipadas podem ser revogadas e/ou modificadas a qualquer tempo pelo outorgante. Art. 12º As diretivas antecipadas obrigam todos os profissionais de saúde, os hospitais e os parentes do outorgante. § 1º Os profissionais de saúde têm direito à objeção de consciência. Neste caso, deverão encaminhar o paciente para outro profissional. § 2º Caso não exista outro profissional, não será possível que o médico se valha da objeção de consciência. Além dessa proposta supratranscrita, existem dois Projetos de Lei do Senado Federal em tramite que contém como cerne os direitos dos pacientes em serviços de saúde (PL nº 79/2003 - anexo B) e os direitos da pessoa em fase terminal de doença (PL nº 524/2009 - anexo C). Embora não tratem especificamente das diretivas antecipadas de vontade, ambos os projetos corroboram com os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade do paciente, pois suas propostas visam a garantia dos direitos dos pacientes, sejam eles terminais ou não. Do mesmo modo, o fato de existirem projetos de lei sobre tema conexo às diretivas, ainda que não façam referência direta, destaca-se pois parte do que está disposto neles pode ser aproveitado, através da analogia, na regulamentação desse instrumento. 4.4 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL Apesar de as Diretivas Antecipadas de Vontade abarcarem inúmeras temáticas controversas no âmbito jurídico, a exemplo de questionamentos sobre o direito de morrer dignamente, a ortotanásia, a eutanásia, o paciente terminal ou em estado vegetativo, não existe ainda jurisprudência consolidada a seu respeito. Mais factível, no entanto, é afirmar a quase inexistência de qualquer Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tipo de decisão jurisprudencial a esse respeito.O fato de não ser um instituto regulamentado muito provavelmente favorece essa carência e, além do mais, só recentemente, com a edição da Resolução nº 1.995/2012 do CFM, é que este tema passou a ter mais destaque. Partindo dessa última consideração, quando da edição da Resolução nº 1995/2012 do CFM, uma primeira demanda foi constituída em razão da “ilegitimidade” do Conselho Federal de Medicina para discutir e dispor sobre as diretivas antecipadas de vontade. A Ação Civil Pública n. 0001039-86.2013.4.01.3500 foi proposta pelo Procurador da República do Estado de Goiás, Ailton Benedito de Souza, e requeria a inconstitucionalidade da Resolução supramencionada. Na ação proposta foram alegados diversos pontos, entre eles destacam-se: a) o inquérito civil público nº 1.18.000.001881/201238 constatou que a Resolução nº 1995/2012 do CFM, ao regulamentar a atuação dos profissionais frente a pacientes terminais, incidiu em inconstitucionalidade e ilegalidade; b)a pretexto de preencher o vazio normativo deixado pela Resolução nº 1.805/2006, que autorizou os pacientes a obtarem pela ortotanásia, a Resolução nº 1995/2012, ao invés de facultar ao paciente a designação de um representante legal, instituiu as “diretivas antecipadas de vontade”, a serem externadas pelos próprios pacientes e que deverão prevalecer sobre quaisquer pareceres não médicos e desejos dos familiares; [...] f) não foi previsto o direito de a família influenciar na formação da vontade e fiscalizar o seu cumprimento, o que vai de encontro ao art. 226, caput, da Constituição Federal.4 Assim, quanto à inconstitucionalidade e a ilegalidade referidas, a lei nº 3.268/57 outorgou ao CFM competência para tratar 4 Disponível em: http://testamentovital.com.br/sistema/arquivos_legislacao/ senten%C3%A7a%20ACP%20testamento%20vital.pdf, acesso em 13 jun. 2014. Capa Sumário 67 do exercício técnico e moral do paciente, de modo que, no caso, a situação permeada trata justamente dessas recomendações disciplinares, e não de direito penal ou civil. E, de modo relativo à capacidade e autonomia, o autor da ação mostrou-se incipiente no conhecimento das características das diretrizes antecipadas, vistas como referencial garantidor da autonomia privada do paciente. Ao questionar tal ponto o demandante vai de encontro com o direito à autodeterminação do indivíduo. Invariavelmente, essa ação, cuja sentença foi prolatada no último dia 21 de fevereiro de 2014, restou como marco para o Direito brasileiro por ter sido a primeira manifestação efetiva do judiciário a respeito das diretivas antecipadas de vontade.Todavia, essa demanda também mostrou o desconhecimento, por parte dos profissionais do direito, sobre esse instrumento. Apesar de as Diretivas Antecipadas de Vontade não serem um tema relativamente novo, visto que muitos países já contam com suas próprias legislações específicas e possuem um campo doutrinário já bastante desenvolvido, as pesquisas aqui no Brasil são poucas e o entendimento do instituto é bastante incipiente como ficou percebido. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS As Diretivas Antecipadas de Vontade constituem uma temática onde ainda se encontra, pelo menos no que diz respeito ao ordenamento brasileiro, muitos campos inexplorados. Há pouco debate, e o que existe concentra-se na análise do direito comparado, de modo que o conhecimento sobre o tema em âmbito nacional ainda é muito restrito e funda-se, em sua grande maioria, em suposições sobre o que poderia se adequar melhor ao nosso ordenamento. No que se refere a existência de uma quadro doutrinário nacional, escassos ainda são os que se dedicam ao estudo das DAV’s. A despeito dessa realidade, fica evidente a importância das Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 69 Diretivas antecipadas conquanto instrumento garantidor da autonomia privada do paciente e meio pelo qual sua dignidade é reconhecida - relembrando a concepção de Kant a respeito dessa última, a pessoa humana é considerada um fim em si mesmo e, como tal, não pode ser tratada como objeto, ou seja, independente do quadro clínico o enfermo ainda é sujeito de direitos, merecedor de cuidados. A partir da compreensão dos princípios da autonomia e dignidade, previamente citados, aliada à análise comparada de institutos já presentes no ordenamento jurídico, é definida a validade das Diretivas Antecipadas de Vontade, inclusive, a inexistência de legislação não obsta essa característica, pois a tipicidade desse documento não é requisito para a composição dos atos jurídicos que, em geral, possuem forma livre.Todavia, há algumas ressalvas no concernente aos ajustes a serem feitos para se adequar essas diretivas à realidade brasileira. As questões abordando especificidades formais e materiais das DAV’s devem ser expressas claramente, coisa que só a constituição de uma lei pode resolver. Por fim, resta reafirmar a importância do estudo das DAV’s. Este é um tema sensível, que aborda premissas relativas há existência de um direito à morrer dignamente, aliado a consideração do indivíduo como sujeito de direitos, dotado de autonomia, mesmo estando em estado de fim de vida - caso em que essa será expressa pelas diretivas antecipadas. Deve ser analisado do ponto de vista a garantir a dignidade da pessoa em estado terminal e entendê-lo como um ser ainda vivente e que deve ser respeitado. aspectsofthepersistentvegetativestate - Secondoftwoparts. The New EnglandJournalof Medicine (1994), vol. 330, n. 22, p.1572-1579. REFERÊNCIAS BULOS, UadiLammêgo. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011 A MULTI-SOCIETY TASK FORCE ON PVS. Medical aspectsofthepersistentvegetativestate (firstoftwoparts). The New EnglandJournalof Medicine (1994), vol. 300, n. 21, p. 1499-1508 e A MULTI-SOCIETY TASK FORCE ON PVS. Medical CARAMELLI, Paulo; BARBOSA, Maira Tonidandel. 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A ABUSIVIDADE NOS CONTRATOS DE SAÚDE SUPLEMENTAR Bruna Cristina Silveira CALDAS5 Adriano Marteleto GODINHO6 RESUMO: O presente trabalho monográfico tem por objetivo analisar os principais abusos praticados pelas empresas privadas de planos de saúde demandados ao judiciário. Para isso faz-se necessário enquadrar à saúde enquanto um direito fundamental, estabelecer que a relação contratual entre empresas de saúde suplementar e usuários é de natureza jurídica consumerista, para finalmente tratar dos abusos em espécie. Busca-se descrever e analisar os principais casos de abusos relacionados à limitação de tempo de internação, propaganda enganosa, negativa do uso técnicas mais modernas e eficazes e a negativa de atendimento em casos emergenciais durante a carência. Para atingir esses propósitos foi realizado um levantamento bibliográfico para compreensão preliminar, seguido de um levantamento jurisprudencial e de um estudo minucioso sobre os temas em questão, para finalmente analisar as decisões com base no que estabelece o método dedutivo. Por fim, foi possível verificar que os ministros e desembargadores são sensíveis à vulnerabilidade dos usuários de planos de saúde sendo suas decisões favoráveis na maioria dos casos onde se detecta o abuso contratual. 5 Autora, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. 6 Orientador, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e professor da Universidade Federal da Paraíba. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Palavras-chave: Saúde Suplementar. Planos de saúde. Contratos. Abuso contratual. 1 INTRODUÇÃO O crescimento econômico e o desenvolvimento social dos últimos anos fez com que o país passasse por diversas transformações em todos os setores. Com a saúde não foi diferente. A Constituição da República de 1988 deu novo significado a ela, considerando-a um direito de primeira relevância. Entender a saúde enquanto um direito fundamental é uma das principais premissas para configurar os abusos praticados pelas empresas privadas de assistência à saúde. Tais abusos tem se tornado cada vez mais frequentes na medida em que o setor de saúde suplementar cresce no Brasil, tal crescimento aliado proporcionalmente à ineficiência dos serviços ofertados no setor público. É nesse contexto que o presente trabalho tem como objetivo uma maior reflexão sobre o direito à saúde enquanto um direito fundamental, o enquadramento da natureza jurídica dos contratos de planos de saúde como uma relação consumerista e o posicionamento adotado pelo Superior Tribunal de Justiça - STJ e Tribunais de Justiça Estaduais, frente às principais condutas abusivas por parte das empresas privadas de planos de saúde. A análise desses abusos é de grande relevância para a população poder se prevenir das possíveis violações a seus direitos e para o poder público tomar medidas cabíveis a fim de coibir tais práticas. Por meio de uma análise dogmática jurídica buscou-se encontrar soluções nos princípios fundamentais do ordenamento jurídico e nas decisões que vem sendo aplicadas pelos tribunais. A presente pesquisa foi realizada com base no método dedutivo, partindo da análise da saúde como um direito fundamental, passando pelo enquadramento da relação entre planos de saúde e usuários como sendo de consumo, para finalmente ana- Capa Sumário 75 lisar criticamente as posições adotadas pelos tribunais frente aos casos judiciais de tais práticas. Para isso, foram realizadas pesquisas bibliográficas e documentais, em livros, revistas eletrônicas, legislações, periódicos, sites, e jurisprudenciais nos sítios eletrônicos do STJ e dos principais Tribunais de Justiça. De posse desse material possamos a discorre sobre os abusos praticados com maior frequência pelos planos de saúde, sendo eles a limitação do tempo de internação nos leitos oferecidos, publicidade enganosa, negativa de uso de técnicas mais modernas e eficazes e recusa de atendimento em casos emergenciais durante a carência. Com isso foi possível perceber O último capítulo apresenta uma análise jurisprudencial acerca das condutas abusivas dos planos de saúde dispostas no tópico anterior, com a intenção de demonstrar os julgados firmados, possibilitando através deste conhecimento uma maior segurança jurídica aqueles que passam por situações semelhantes. 2 DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE Conceituar os direitos fundamentais do homem de maneira resumida e exata não é uma tarefa muito simples, já que ao longo dos anos esses direitos foram ampliados e passaram por diversas transformações. A expressão “direitos fundamentais” abrange os princípios que sintetizam o entendimento de mundo e anunciam a ideologia de cada sistema normativo. Dentre eles está o princípio da dignidade da pessoa humana, que requer meios de limitação do poder, evitando o arbítrio e a injustiça. Assim, percebe-se que de um modo geral os direitos fundamentais podem ser considerados materializações das exigências do princípio da dignidade humana. No âmbito subjetivo, os direitos fundamentais versam so- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização bre a tutela da liberdade, autonomia e segurança dos cidadãos não só em face do Estado, mas de qualquer cidadão, garantem um direito individual e impõem ao Estado assegurar tal direito. Por outro lado, no âmbito objetivo, esses direitos são essenciais, demarcando os pontos para um convívio humano justo e harmônico. São direitos intangíveis intrínsecos a natureza humana. José Afonso da Silva (1992, p. 163) traz que os direitos fundamentais indicam, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualificativo fundamentaisacha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive. Já para Álvaro Ciarlini (2008, p.20), no âmbito subjetivo, os direitos fundamentais: consistem na tutela da liberdade, autonomia e segurança dos cidadãos, não só perante o Estado, mas também em face de outros cidadãos. Por outro lado, tais direitos consubstanciam elementos essenciais de um ordenamento objetivo, que delimita os marcos para ‘uma convivência humana’ justa e pacífica. Os direitos fundamentais podem ser divididos em dois grupos, os direitos de defesa e os direitos de prestação. Fazem parte do primeiro grupo os direitos de liberdade e igualdade, assim como as garantias individuais, as liberdades sociais e os direitos políticos. O segundo grupo é formado por direitos às prestações materiais sociais, impõe uma ação estatal de natureza positiva e pedem uma conduta ativa por parte dos respectivos destinatários, exigem que ações estatais versem sobre prestação fática ou jurídica. Eles buscam garantir igualdade de condições ao livre de- Capa Sumário 77 senvolvimento humano, o que seria uma liberdade real, para isso, subdivide-se em direitos de prestação em sentido amplo e em sentido estrito ou fundamentais sociais. Os direitos de defesa são formados pelos direitos à proteção e à participação na organização e procedimento, e por isso requerem uma atuação negativa por parte do poder público, uma omissão, uma abstenção estatal na esfera da liberdade dos cidadãos. Esses direitos buscam limitar a atuação estatal, evitam sua interferência sobre os bens protegidos e servem de fundamento para uma possível pretensão de reparo pelos abusos consumados. Esses direitos também asseguram os bens jurídicos da ação estatal. Levando em consideração o direito à vida, o Estado não pode assumir comportamentos que interfiram na vida humana. Os direitos prestacionais em sentido amplo ou jurídico têm como objeto a regulamentação pelo Estado do bem jurídico protegido como direito fundamental, são aqueles direitos à prestação e os direitos à organização e procedimento. Existem direitos fundamentais que dependem, necessariamente, de normas infraconstitucionais para adquirirem sentido. Eles garantem a liberdade e igualdade na dimensão defensiva. Já os em sentido estrito ou materiais são verificados no âmbito do Estado Social, implicam a atuação no sentido da criação, fornecimento e distribuição de prestações materiais, constituindo-se naqueles direitos fundamentais a prestações fáticas que o indivíduo, caso dispusesse de recursos necessários e em existindo no mercado uma oferta suficiente, poderia obter também de particulares. Eles são direitos fundamentais sociais mínimos, ou seja, garantem um mínimo vital, um padrão básico de saúde, educação, moradia, trabalho, lazer, direitos esses elencados no art. 6º da Constituição da República. Buscam reduzir as desigualdades de fato, no âmbito da sociedade, tentando atender as necessidades aptas a tornar possível o gozo da liberdade efetiva pelo maior número de pessoas. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Porém, a efetivação de tais direitos está sujeita a disponibilidade da riqueza nacional, sendo satisfeitos de acordo com as situações econômicas e orçamentárias. Eles estão sujeitos ao princípio da reserva do possível. Tendo em vista a essencialidade dos direitos fundamentais, muitos doutrinadores, como Marcelene Ramos (2010, p.57), entendem que eles vão além de cláusulas restritivas, como a da reserva do possível, que diz respeito ao que o indivíduo pode razoavelmente exigir como prestação estatal. Essas cláusulas restritivas não podem acarretar na ineficácia dos direitos já consagrados como essenciais. Dessa forma, havendo choque de interesses, deve haver uma ponderação entre eles. José Afonso da Silva (2006, p.179) classifica as normas constitucionais como de eficácia plena, limitada e contida. São consideradas normas de eficácia plena aquelas que produzem efeitos independente de complementação por norma infraconstitucional, são normas que possuem todos os elementos necessários à sua executoriedade, possibilitando a aplicação de maneira direta, imediata e integral. As normas de eficácia limitada são aquelas que, para produzir a plenitude de seus efeitos, dependem de uma lei integradora. Elas não contêm os elementos necessários para sua executoriedade, dessa forma, enquanto não forem complementadas pelo legislador a sua aplicabilidade é mediata, porém depois de complementados tornam-se de eficácia plena. Enquanto lei suplementar não for criada elas possuem uma eficácia mínima, como poder revogar lei anterior incompatível e inibir normas em sentido contrário. Por fim, as normas de eficácia contida são aquelas que produzem seus efeitos plenamente, mas podem ter seu alcance restrito. Elas também possuem aplicabilidade direta, imediata e integral, mas seu alcance pode ser reduzido em razão da existência na própria norma de cláusula expressa que o reduza ou devido aos Capa Sumário 79 princípios da proporcionalidade e razoabilidade. Enquanto não forem materializadas as restrições, a norma tem aplicação plena. O autor (Silva, 2006, p.180) ainda fala que: A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm os direitos fundamentais dependem muito de seu enunciado, pois se trata de assunto que está em função do Direito positivo. A Constituição é expressa sobre o assunto, quando estatui que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas certo é que isso não resolve todas as questões, porque a Constituição mesma faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados dentro os fundamentais. Por regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia contida e aplicabilidade imediata, enquanto as que definem os direitos econômicos e sociais tendem a sê-lo também na Constituição vigente, mas algumas, especialmente as que mencionam uma lei integradora, são de eficácia limitada, de princípios programáticos e de aplicabilidade indireta, mas são tão jurídicas como as outras e exercem relevante função, porque, quanto mais se aperfeiçoam e adquirem eficácia mais ampla, mais se tornam garantias da democracia e do efetivo exercício dos demais direitos fundamentais. Assim, como bem trata José Afonso (2006, p.180) a regra é que os direitos sociais tenham eficácia contida e aplicabilidade imediata. É o que acontece com o direito à saúde, que deve ser realizada por meio de um serviço nacional de saúde, de acesso universal e gratuito nos termos da Constituição da República. Com relação às normas constitucionais que tangem ao direito à saúde, podemos observar logo no preâmbulo da Carta Magna e ainda no seu art. 3º, inciso III, que os direitos sociais prestacionais estão diretamente ligados às funções do Estado, que deve Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização buscar garantir adequadamente justa distribuição e redistribuição de bens existentes e ainda reduzir as desigualdades sociais (BRASIL,1998). O direito à saúde pode ser visto como o intuito de preservação, ou seja, através de políticas públicas que visem à redução do risco de doença, um direito a um ambiente saudável, ou como um direito a proteção e recuperação, um direito individual à prevenção de doenças e seu tratamento por meio do acesso a serviços e ações destinadas. Previsto especialmente nos art. 196 e seguintes, o direito à saúde no Brasil ainda é considerado como muito dependente da intermediação legislativa. Sendo muitas vezes necessário recorrer ao Poder Judiciário para que as prestações materiais sejam vinculadas aos poderes públicos. Nesse sentido, de dar efetividade às normas constitucionais e garantir a aplicabilidade imediata, o poder judiciário brasileiro tem evoluído bastante desde a vigência da Constituição de 1988. Suas decisões passaram e ser mais avançadas, entendendo direitos fundamentais sociais como direitos subjetivos individuais, por exemplo, os inscritos nos art. 6º e 196 da Carta Magna. Garante o direito à saúde e estabelece como obrigação político-constitucional impostergável do poder público, se negado violaria o próprio direito à vida. O Poder Judiciário tem entendido como abusivas as exigências de cumprimento de formalidades por parte Poder Público para o não garantir a proteção dos direitos fundamentais à vida e à saúde. O não cumprimento viola um direito líquido e certo. Porém, a concessão ilimitada dos ônus financeiros de elevado custo, muitas vezes em procedimentos sem comprovação de eficácia terapêutica, acaba gerando uma redução de recursos financeiros para execução de políticas públicas de saúde mais amplas e indispensáveis, que levou a administração a sofrer inversão do risco de lesão à saúde e a ordem pública, já que os recursos Capa Sumário 81 financeiros são finitos e obedecem uma previsão orçamentária, além do princípio da legalidade restrita a que se submetem os administradores públicos. Foi baseado nisso que o entendimento jurisprudencial começou a mudar, percebeu-se a necessidade de encontrar um “meio termo”, limitando a concessão de prestações materiais que envolvam o direito à saúde. O Poder Judiciário passou a adotar uma postura que reconhece o direito à saúde como um direito fundamental social, mas não apenas como uma garantia individual, passou a observar sua dimensão subjetiva pública. Ele coloca a Administração Pública, por meio de critérios médicos científicos, para estabelecer e autorizar os tratamentos e remédios que devem ser fornecidos à população, e ainda avaliar o custo benefício dos tratamentos que serão fornecidos gratuitamente, buscando beneficiar o maior número de pessoas possível. APELAÇÃO CÍVEL. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTO. CLÁUSULA DA RESERVA DO POSSÍVEL. Seja pela observância das cláusulas da reserva do possível e da reserva em matéria orçamentária, seja pelos princípios da isonomia, da seletividade e da distributividade, seja ainda pela realização dos objetivos da República Federativa do Brasil, de justiça social e redução das desigualdades sociais, não está o Estado obrigado a fornecer todo e qualquer medicamento ou insumo requerido pela parte, em especial quando não padronizado pelo SUS. Reexame necessário não conhecido. Recurso de apelação conhecido e provido.(TJ-MG - AC: 10242100017118001 MG , Relator: Albergaria Costa, Data de Julgamento: 30/01/2014, Câmaras Cíveis / 3ª CÂMARA CÍVEL, Data de Publicação: 07/02/2014). (MINAS GERAIS, 2004). Percebe-se que invocando diversos princípios o desembargador fundamenta sua decisão de usar da razoabilidade para distribuir os recursos limitados do Estado para financiamento de insumos médicos para a população. Embora essa seja uma pos- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tura que esteja começando a ser adotada pelos tribunais, ainda é predominando o posicionamento no sentido de conceder todos os pedidos demandados ao judiciário. 3 A IMPORTÂNCIA DA SAÚDE SUPLEMENTAR NO BRASIL A Constituição da República (BRASIL, 1988), em seu art.196, prevê que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Quando o constitucionalista editou tal norma ele estabeleceu que o Poder Público deveria prestá-lo com primazia, de maneira universal e igualitária. Porém, assim como acontece com a maior parte dos serviços públicos, ele é falho, insuficiente para dar conta da demanda. A culpa disso não é apenas do Poder Público que não investe recursos suficientes. A medicina e as técnicas curativas têm evoluído bastante nos últimos anos e isso tem feito elevar os custos desses tratamentos, o que acaba inviabilizando uma prestação eficiente para todos os cidadãos sem comprometer a prestação de outros serviços por falta orçamentária. A deficiência crônica na prestação de serviços por parte do Estado, juntamente com a elevação dos custos dos tratamentos médico-hospitalares, tem evidenciado a necessidade da existência do setor de saúde suplementar. O sistema de saúde suplementar é gênero, do qual os planos de saúde são espécies. Aquele diz respeito à prestação de saúde fora do Sistema Único, é um setor formado por pessoas jurídicas especializadas, as operadoras de planos de saúde. Esse segmento é de grande relevância para pessoas menos abastadas, já que garante acesso a tratamentos mais avançados trazidos para Brasil, sem ele essas pessoas não teriam condições financeiras de bancar o tratamento particular. Diante da realidade do sistema único, cada vez mais pes- Capa Sumário 83 soas têm buscado operadoras de planos de saúde. Isso pode ser observado com dado da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS. Em 2003, esse setor atendia aproximadamente 35 milhões de pessoas. Atualmente, esse número passou para mais de 50 milhões, o que significa que mais ou menos 25% da população brasileira recorre a empresas de planos de saúde. (Francisco Dornelles, Pronunciamento..., 2014) Se o sistema público de saúde está caótico, imaginemos se não existisse a Saúde Suplementar e todas as pessoas por ela atendidas recorressem ao SUS, é nítido que ele não suportaria a demanda. Em 2007, o setor de saúde suplementar, que abarca planos médico-hospitalares e odontológicos, foi responsável por 200,5 milhões de consultas, 10 milhões de internações e 420 milhões de exames complementares (Pronunciamento..., 2014), o que resultou em uma receita de R$51,8 bilhões para atender R$ 47,8 milhões de beneficiados pelo setor. Ao mesmo tempo o Ministério da Saúde destinou pouco mais de R$32,7 bilhões para beneficiar 136,2 milhões de pessoas. (ZIROLDO e col, 2013) Para o senador Dornelles, não existe justificativa para haver preconceito contra a saúde suplementar, já que o “setor vem proporcionando maior bem-estar para milhares de brasileiros e contribuindo para o avanço social do Brasil”. 4 CONTRATOS NO DIREITO CIVIL BRASILEIRO Os contratos nascem de acordo com a realidade vivenciada por cada sociedade, os padrões morais e o modelo econômico da época. É o meio utilizado dentro de uma coletividade para transmitir riqueza. Stolze e Pamplona Filho falam que classicamente os pactos eram fundados na autonomia da vontade, não cabia ao Estado intervir nas relações econômicas, nem nas relações entre indivíduos. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização A vontade do homem deveria sempre prevalecer, havia equilíbrio formal que estabilizava essa relação. Porém, com a evolução da sociedade, especialmente depois da Revolução Industrial, essa concepção tradicional de contrato não foi mais suficiente diante da massificação de produção de bens e da prestação dos serviços. Foi um período em que prevaleceram os contratos de adesão, com suas cláusulas e condições padronizadas, o que acabava despersonalizando as partes contratantes. As mudanças não pararam por aí, no decorrer de século XX, especialmente no que tange aos contratos. O Estado passou a intervir mais nas relações privadas, buscando equilibrar as relações jurídicas entre partes desiguais. Ele atua limitando certos conteúdos contratuais, ou submetem a sua conclusão ou sua eficácia a uma autorização estatal. Essa atuação busca fazer com que o contrato cumpra sua função social, restabelecendo o equilíbrio da relação, reconhecendo a parte mais vulnerável. O Poder Público passa a ter uma função mais intervencionista diante da realidade dos contratos de adesão, pretendendo restabelecer o equilíbrio perdido. Nesse contexto, inicia-se um período de preocupação com os direitos do consumidor. Foram estabelecidos como direitos básicos desse grupo vulnerável no mercado econômico a segurança, a informação e o direito de escolha e de ser ouvido, que devem ser promovidos por meios de políticas governamentais e a criações de legislações de proteção ao consumidor. A Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988), em seus artigos 5º, XXXII, e 170, V, consagrou a figura do consumidor como um sujeito de direitos e garantias fundamentais. Ela coloca a defesa do consumidor como diretriz da atividade econômica, e desse modo, a do direito privado, cabendo ao contrato cumprir a função social protegendo o mais fraco na relação, de acordo com os preceitos constitucionais diante da publicização do direito pri- Capa Sumário 85 vado. Dessa forma, o negócio jurídico estabelecido entre pelo menos duas pessoas, que manifestem suas próprias vontades, entendendo essa manifestação como requisito mínimo para existência, com finalidade de contrair, proteger, modificar ou extinguir direitos é chamado de contrato. Para Pamplona Filho e Gagliano (2013, p.49) contrato é: um negócio jurídico por meio do qual as partes declarantes, limitadas pelos princípios da função social e da boa-fé objetiva, autodisciplinam os efeitos patrimoniais que pretendem atingir, segundo autonomia das suas próprias vontades. O contrato é considerado a espécie de negócio jurídico mais importante, ele é instrumento de movimentação de riqueza, núcleo da vida dos negócios e propulsor da expansão, tendo assim uma função social. Essa função social implica que os valores coletivos predominem em relação aos individuais, porém sempre preservando a dignidade da pessoa humana. Este princípio paira sobre todos os outros princípios que regem os contratos. Para Pamplona Filho e Gagliano (2013, p.50) ele demonstra “um valor fundamental e respeito à existência humana, segundo as suas possibilidades e expectativas, patrimoniais e afetivas, indispensáveis à sua realização pessoal e a busca da felicidade”. No que diz respeito aos princípios contratuais, existe uma grande aproximação entre o Código Civil - CC e o Código de Defesa do Consumidor - CDC, já que ambos buscam concretizar as ideias difundidas pelo Estado Social. Expressões adotadas pelo CDC acabam denotando os mesmos princípios consagrados pelo Código Civil. Por exemplo, o fragmento do art. 4º, inciso III, CDC, (BRASIL, 1990) trata da necessidade de atender a “compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento eco- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica”, tendo nitidamente a mesma intenção do princípio da função social. Para Paulo Lôbo (2002): Os princípios sociais adotados aproximam, muito mais do que se imaginava, os dois códigos. A tendência, portanto, é o desaparecimento progressivo da distinção dos regimes jurídicos dos contratos comuns e dos contratos de consumo, ao menos no que a seus princípios e fundamentos básicos”. O direito contratual é regido por diversos princípios, alguns decorrentes do Estado Liberal, como os princípios da autonomia da vontade, considerado um dos mais importantes, já que sem ele não existe contrato, é por meio dela que as partes determinam como, com quem e sobre o que vão contratar, não há interferência do Estado; da obrigatoriedade contratual ou pacta sunt servanda como também é conhecida, que revela o caráter impositivo que é emanado do pacto; e, da relatividade subjetiva, que diz respeito aos efeitos do contrato só atingirem quem nele manifestou vontade de fazer parte. E outros decorrentes do Estado Social, tendo como principais os da função social, da equivalência material do contrato e o da boa-fé objetiva. O contrato vai além das formalidades, dos aspectos de validade, como o agente ser capaz, possuir objeto lícito, ter forma prescrita em lei, entre outros. Para ser aprovado pelo Estado é necessário tratar de questões maiores de cunho moral e social, que embora sejam consideradas imensuráveis, são exigíveis judicialmente. É nesse âmbito que se encontra o princípio da função social. Esse princípio surgiu a partir do momento em que o Estado passou a agir de maneira mais intervencionista, buscando satisfazer os interesses coletivos. Para o professor curitibano Paulo Nalin Capa Sumário 87 (2001), a função social revela-se em dois níveis, o intrínseco e o extrínseco. Para o primeiro, o contrato é uma relação jurídica entre as partes pactuantes em que se exige o respeito à lealdade negocial e a boa-fé objetiva, a fim de que exista um equilíbrio material entre as partes. Já para o segundo, o contrato é entendido dentro da coletividade, ou seja, é levado em conta os reflexos da sua eficácia dentro da sociedade em que foi celebrado. Nesse sentido, Reale (1986, p. 10) traz que “o contrato é um elo que, de um lado, põe o valor do individuo como aquele que o cria, mas, de outro lado, estabelece a sociedade como o lugar onde o contrato vai ser executado e onde vai receber uma razão de equilíbrio e medida” O Código Civil (BRASIL, 2002) faz expressa menção à “função social do contrato” em seu art. 421. No Código de Defesa do Consumidor não se faz necessário, já que ele é a própria positivação da função social do contrato nas relações de consumo. A Constituição da República também não faz expressa referência, trata apenas da justiça social, porém em vários artigos trata da função social da propriedade. Entende-se por propriedade a parte estática da atividade econômica e por contrato a fração dinâmica. Dessa forma, a função social da propriedade interfere obrigatoriamente no contrato, por se tratar de um instrumento que a faz circular. Lôbo (2002) fala ainda que: o princípio da função social é a mais importante inovação do direito contratual comum brasileiro e, talvez, a de todo novo Código Civil. Os contratos que não são protegidos pelo direito do consumidor devem ser interpretados no sentido que melhor contemple o interesse social, que inclui a tutela da parte mais fraca no contrato, ainda que não configure contrato de adesão. Segundo o modelo do direito constitucional, o contrato deve ser interpretado em conformidade com o princípio da função social. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Diante do exposto, percebe-se que a intenção do legislador ao tratar da função social não é transformar a propriedade privada em bem da coletividade, mas apenas que esta esteja submetida aos interesses sociais. E, que para que os contratos, instrumentos de circulação de riqueza na sociedade, atendam a função social eles devem observar não apenas os interesses individuais, mais também os interesse do bem comum, ou seja, os interesses privados não são anulados, apenas são voltados ao bem-estar comum. O doutrinador Paulo Lôbo (2002) estabelece um novo princípio, o da equivalência material, que, para ele, busca realizar e preservar o equilíbrio real de direitos e deveres no contrato, antes, durante e após sua execução, para harmonização dos interesses. Esse princípio preserva a equação e o justo equilíbrio contratual, seja para manter a proporcionalidade inicial dos direitos e obrigações, seja para corrigir os desequilíbrios supervenientes, pouco importando que as mudanças de circunstâncias pudessem ser previsíveis. O que interessa não é mais a exigência cega do cumprimento do contrato, da forma como foi assinado ou celebrado, mas se sua execução não acarreta vantagem excessiva para uma das partes e desvantagem excessiva para outra, aferível objetivamente, segundo as regras da experiência ordinária. O princípio clássico pacta sunt servanda passou ser entendido no sentido de que o contrato obriga as partes contratantes nos limites do equilíbrio dos direitos e deveres entre elas. Esse princípio é um desdobramento da função social do contrato e da boa-fé, de acordo com o entendimento do julgador que avaliará o equilíbrio entre os poderes contratuais ou a desproporcionalidade concreta dos direitos e deveres. Por fim, o princípio da boa-fé objetiva, expressamente mencionado no art. 422, Código Civil, determina como os indivíduos devem se portar nas relações jurídicas obrigacionais, ela implica Capa Sumário 89 um comportamento honesto, leal, correto, uma conduta socialmente aprovável. A respeito, Carlos Roberto Gonçalves(2009, p.35) aponta: O principio da boa-fé exige que as partes se comportem de forma correta não só durante as tratativas, como também durante a formação e o cumprimento do contrato. Guarda relação com o princípio de direito segundo o qual ninguém pode beneficiar-se da sua própria torpeza. Recomenda ao juiz que presuma a boa-fé, devendo a má-fé, ao contrário ser provada por quem a alega. Deve este, ao julgar a demanda na qual se discuta a relação contratual, dar por pressuposta a boa-fé objetiva, que impõe ao contratante um padrão de conduta, de agir com retidão, ou seja, com probidade, honestidade e lealdade, nos moldes do homem comum, atendidas as peculiaridades dos usos e costumes do lugar. As legislações civilistas e consumeristas tratam expressamente da boa-fé nos contratos, logo em seus primeiros artigos o Código de Defesa do Consumidor (BRASIL, 1990) a coloca como cláusula geral e, mais à frente, em seu art. 51, IV, ele a relaciona com a equidade. Já o Código Civil (BRASIL, 2002) em seu art. 422 relaciona boa-fé com a figura do direito administrativo da probidade. As duas legislações ainda convergem no que diz respeito ao alcance da boa-fé. A doutrina majoritária tem entendido que os comportamentos devam ser analisados antes, durante e após o contrato. E, nesse sentido, o CDC adentrou bastante no assunto, por exemplo, estabelecendo que o fornecedor deva assegurar ao consumidor informações ou publicidades precisas. Não divergente a posição dos legisladores e doutrinadores, os tribunais têm buscado aplicar esses princípios em seus julgados, fazendo com que prevaleça os interesses sociais em face dos interesses privados, além da boa-fé. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 4.1 CONTRATOS DE PLANOS DE SAÚDE A decadência do sistema público de saúde e o elevado custo dos serviços de assistência médico-hospitalar privados têm feito com que o setor da saúde tenha crescido muito nos últimos tempos. A relação de confiança médico-paciente que existia antigamente foi transferida atualmente para os planos de saúde, a partir do momento de sua contratação eles prometem assistência à saúde todas as vezes que necessário o for, tendo como contra prestação o pagamento de mensalidades. O contrato que rege essa relação, mais do que qualquer outro, deve cumprir a função social, além de aplicar os princípios constitucionais já consagrados e de grande relevância, como o principio da dignidade humana. Além disso, eles também devem levar em consideração o art. 421 do Código Civil (BRASIL, 2002), que estabelece que a liberdade de contratar deva ser exercida em razão da função social do contrato e o art. 422, da mesma legislação, que trata da boa-fé objetiva. Pra melhor compreensão do tema estudado, se faz necessário definir o que venha a ser plano privado de assistência à saúde. A própria Lei 9656/98(BRASIL, 1998), em seu art. 1º, estabelece essa definição como sendo: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente, escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor. Capa Sumário 91 Assim, contratos de plano de saúde são aqueles através dos quais a operadora, se responsabiliza perante o contratante a cobrir os riscos da assistência à saúde deste, por meio de serviços médicos hospitalares e/ou odontológicos em rede própria, assim como reembolsando das despesas efetuadas, ou pagando diretamente o prestador dos serviços em questão. Ainda no art.1º, em seu §1º, alíneas “a” a “f”, o legislador estabelece elementos para diferenciar os contratos de planos de saúde dos contratos dos meramente financeiros. Fora esses elementos, ainda existem outros fatores que o caracterizam como ser um contrato de adesão, sinalagmático, oneroso, formal, aleatório e cativo de longa duração. O contrato de adesão surgiu em um período marcado pela produção em série e o consumo em massa. Com isso, foi necessário que o direito também se adequasse às novas exigências econômicas e sociais, a pressa de agir dos sujeitos envolvidos nas negociações que não mais queriam se reunir para discutir cláusula a cláusula até chegar a um consenso e firmar o contrato. Embora fosse nítida a necessidade de um instrumento diferenciado para tratar desse novo tipo de mercado, por muito tempo o contrato de adesão só foi reconhecido pelos tribunais e doutrinadores, não existia uma legislação que o regulamentasse. Tipicamente consumerista, esse contratos podem ser conceituados como aqueles em que uma das partes, o fornecedor, impõe a outra, o consumidor, as cláusulas contratuais sem que este possa discuti-las. Orlando Gomes (2001), aponta que há várias formas de caracterizar os contratos de adesão e isso acaba dificultado a sua conceituação. Para ele a grande preocupação dos doutrinadores não versa verdadeiramente em assinalar os atributos que permitam reconhecê-lo, o que prevalece é o interesse de descrevê-lo antes mesmo de ensinar como identificá-lo. Argumenta ainda que situações que permitam ou imponham a uniformização de cláu- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização sulas diante da coletividade ou a impossibilidade de discussão contratual, fazendo com que ele seja aceito ou rejeitado, não os diferencia de outros institutos jurídicos. Para ele, “o traça caraterístico do contrato de adesão reside verdadeiramente na possibilidade de predeterminação do conteúdo da relação negocial pelo sujeito de direito que faz a oferta ao público” (Gomes, 2001). Assim, pode-se dizer que existem alguns elementos caracterizadores dos contratos de planos de saúde, como a uniformidade, já que o estipulante busca firmar o maior número de contratos com o mesmo conteúdo; predeterminação unilateral, as cláusulas são estabelecidas sem nenhuma discussão prévia, elas são impostas por somente umas das partes; rigidez, não há possibilidade de rediscussão das cláusulas contratuais; e posição de vantagem de uma das partes, existe uma superioridade material, em razão dela que uma das partes pode determinar as cláusulas aos demais interessados. Embora o contrato de adesão seja uma figura típica do direito do consumidor, sendo tratado em dois artigos importantes do CDC (BRASIL, 1990), o art.54, §4º, que impõe o dever de informação, com imediata e fácil compreensão pelo consumidor das cláusulas que reduzam direitos e o art.51, inciso I, que considera as cláusulas excludentes de responsabilidade abusivas e nulas, o Código Civil (BRASIL, 2002) também preceitua dois artigos que se referem a tal figura, são eles os artigos 423 e 424. O primeiro estabelece que havendo cláusulas ambíguas ou contraditórias deverá ser utilizada a interpretação mais favorável ao consumidor. E o segundo considera como possível cláusula de nulidade do contrato se houver renúncia antecipada de direito resultante do negócio jurídico. Essas normatizações buscam proteger a parte mais fraca da relação, o consumidor, especialmente por ser comum a imposição de cláusulas abusivas, tendo em vista a superioridade econômica Capa Sumário 93 do fornecedor e de ele ser o estipulante unilateral das cláusulas gerais, restando àquele apenas a adesão. Os contratos são considerados sinalagmáticos e onerosos quando existir uma reciprocidade de obrigações entre o beneficiário e o fornecedor. No caso das empresas de planos de saúde, estas se comprometem a prestar os serviços de assistência à saúde mediante o pagamento das mensalidades por parte do consumidor. Eles são considerados formais quando necessitam obedecer a uma forma especial e aleatórios no que diz respeito à prestação devida, já que só haverá contraprestação do plano de saúde quando um evento futuro e incerto, relacionado à saúde do consumidor vier a ocorrer. Essa eventualidade não implica na qualidade da prestação. E, por fim, ainda são considerados cativos de longa duração, ou seja, contratos que se perpetuam no tempo de acordo com os interesses do contratante para que a relação entre eles seja contínua e duradoura, existe uma relação de dependência entre o consumidor e a empresa criada em função do contrato estabelecido. Como esses contratos dispõem sobre um assunto de alta relevância e, tendo em vista que as partes não podem dispor de maneira livre sobre todas as cláusulas por meio da Lei nº. 9.656/98, que dispõe sobre os Planos de Saúde, o legislador estabeleceu uma forma especial para eles, instituindo cláusulas e condições que devem constar obrigatoriamente. Além de serem regulados por tal legislação, os planos privados de assistência à saúde suplementar tem íntima relação com o Código de Defesa do Consumidor, que é plenamente aplicável a tais contratos. Diante dessa possibilidade, houve uma grande demanda judicial a respeito do enquadramento dos contratos de planos de saúde como de natureza consumerista, o Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula 469, onde estabelece que o Código de Defesa do Consumidor deva ser aplicado aos contratos de planos de saúde, o principal argumento foi o de se tratar de um contrato de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização adesão, figura tipicamente consumerista. Além do mais, o próprio CDC em seu artigo 3º, §2º estabeleceu que contratos de seguro, categoria que os de planos de saúde se enquadram, configuram relação de consumo. Vale ressaltar que durante a votação de tal súmula ficou estabelecido ainda que a aplicação do CDC seria estendida inclusive para aqueles contratos firmados antes da vigência desse diploma legal. Essa medida não viola o princípio da irretroatividade, já que os esses contratos são de trato sucessivo. Outro fator de relevância para a história dos contratos de planos de saúde no Brasil foi a criação da Lei 9656/98, considerada um marco, já que a após a sua vigência esses contratos foram divididos em três categorias: “antigos”, “novos” ou “adaptados”. Sendo considerados planos antigos aqueles estabelecidos antes de 02/01/1999, ou seja, contratos anteriores à legislação que rege os planos de saúde, a cobertura deles é exatamente o que está expresso na convenção, assim como as exclusões constantes nela. Os planos novos são aqueles firmados a partir de 02/01/1999, já foram comercializados depois da Lei n° 9656/98, a eles é garantido à cobertura assistencial deliberada pela ANS referente a todas as doenças estabelecidas pela Organização Mundial da Saúde, além de outras garantias. E, por fim, os contratos adaptados são aqueles firmados antes de 02/01/1999 e que foram posteriormente adaptados às regras estabelecidas pela Lei dos Planos de Saúde, assegurando o mesmo tratamento dado aos planos novos. Para haver essa adaptação o consumidor deve solicitar à empresa, que é obrigada a fornecer, uma proposta de adequamento das normas conflitantes com a nova legislação, porém o consumidor não é obrigado a aceitá-la, podendo optar permanecer no plano antigo. Veja, o contrato permanece sendo antigo, o que muda são as cláusulas contrárias à nova legislação infraconstitucional. Capa Sumário 95 5 ABUSOS PRATICADOS POR PLANOS DE SAÚDE As operadoras de planos de saúde surgiram no Brasil por volta da década de 1960 e por muito tempo ficaram sem nenhum tipo de regulamentação ou fiscalização. Com a criação da Constituição de 1988, ficou estabelecido que os serviços de saúde poderiam ser executados por terceiros, mas caberia ao Poder Público dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle. Porém, mesmo com o grande crescimento do mercado e os constantes abusos cometidos pelas empresas de saúde suplementar, só em 1998, dez anos após a promulgação da Carta Magna, surge a Lei nº 9655/98, também conhecida com a Lei dos Planos de Saúde, e no ano de 2000, com a Lei nº 9961/00 instituiu Agência Nacional de Saúde Suplementar- ANS, responsável por regular o setor. Mesmo com legislações mais rigorosas e a regulamentação da ANS, as operadoras de planos de saúde continuam praticando abusos, sendo os mais comuns a limitação de internação, a propaganda enganosa, a negativa do uso de técnicas mais avançadas e a negativa de atendimento em casos emergenciais durante a carência. Porém, a sociedade mudou, tomou mais consciência de seus direitos e, com isso, passou a exigir mais de seus fornecedores, até mesmo judicialmente. Esse foi um dos fatores mais relevante para o aumento da judicialização da saúde suplementar. Dados do Banco Mundial demonstram que no Brasil, em 2010, deu-se início a 240.000 novos processos sobre saúde. Fazem parte desse número ações demandadas contra o poder público, referentes ao sistema único de saúde, e contra operadoras de planos de saúde (DUARTE, 2013). Quando se trata de demandas contra planos de saúde, os principais fatores giram em torno do descumprimento de direitos assegurados aos usuários, dúvidas contratuais decorrente de cláusulas ambíguas ou de difícil compreensão, tentativas de equipa- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ração dos contratos estabelecidos antes da Lei nº 9655/98 como os posteriores, além dos casos em que o cidadão ciente de seus direitos recorrem ao judiciário para tê-los assegurados. A demanda judicial referente à saúde tem sido tão grande que alguns juristas passaram a dar designações próprias como “Judicialização da Assistência Farmacêutica”, “Judicialização da Saúde” ou “Fenômeno da Judicialização dos Medicamentos” (FELISBINO, 2014). Para Luís Cláudio da Silva Chaves (2009): A judicialização atinge, também, a saúde complementar, com explosão de processos contra planos de saúde. O aumento de processos na Justiça contra os planos de saúde traz impactos negativos para todos os envolvidos. Primeiramente, às operadoras de planos e seguros de saúde, que sofrem com a oneração do processo e a insegurança dos contratos celebrados, gerando distorções nos custos e nos preços dos produtos; já o Judiciário sofre com sobrecarga de novos processos; a ANS, pela dificuldade em realizar a regulação do mercado; os consumidores, porque contratam um plano, são iludidos e recebem poucas explicações e só conseguem seus direitos na justiça; e os próprios beneficiários dos planos de saúde, que acabam por suportar o ônus financeiro das concessões e deferimentos feitos pelo Judiciário. Porém, mesmo com esses impactos, a Constituição da República em seu art. 5º, XXXV, assegura que a lei não negará acesso à Justiça em casos de lesão ou ameaça a direito, no mesmo sentido que o princípio da inafastabilidade do acesso à justiça, que garante a pessoa que sofre ameaça ou sofre lesão o direito de recorrer ao Poder Judiciário. Capa Sumário 97 5.1 LIMITAÇÃO DE INTERNAÇÃO Um dos grandes problemas enfrentados pelos consumidores ao assinarem os contratos de planos de saúde são as cláusulas que estipulam limitação do tempo de internação. Não há como calcular o tempo necessário dela sem que o tratamento tenha sido iniciado. Durante muitos anos, os órgãos de defesa do consumidor lutaram para que fosse vedada a limitação do tempo de internação dos pacientes, até que no ano de 2001 a Medida Provisória 2.177-44 deu nova redação ao art.12, II, “b”, da Lei dos Planos de Saúde (BRASIL, 1998), estabelecendo que o tempo de internação hospitalar, inclusive nas Unidades ou Centros de Tratamento Intensivo, deva ser determinado pelo médico assistente, sendo vedada a estipulação de tempo máximo e quantidade de internação. É pacífico nos tribunais que essa limitação é abusiva, já que não há como prever o tempo de internação necessário para a recuperação total do enfermo, removê-lo antes do tempo pode representar sérios riscos a sua saúde. Ao estabelecer um contrato com uma empresa de saúde suplementar o consumidor visa transferir os riscos inerentes à saúde, inclusive a necessidade de internação, a ela. Dessa forma, limitar o tempo de permanência em unidades hospitalares, e até mesmo em centros de terapia intensiva ou similares, seria uma quebra da legítima expectativa contratual pelo contraente. De acordo com Código de Defesa do Consumidor, cláusulas que coloquem o consumidor em desvantagem excessiva são consideradas nulas. Nesse sentido, o STJ já pacificou seu entendimento ao emitir a Súmula 302 que estabelece ser “abusiva a cláusula contratual de plano de saúde que limita no tempo a internação hospitalar do segurado” (BRASIL, 2014a). Por meio dessa medida, a Corte Superior pretendeu uniformizar julgamento das frequentes ações impetradas nos tribunais. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização No mesmo sentido, por meio da portaria nº4/98, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, com eficácia administrativa estendida a todos os Procons, que são consideradas abusivas, e por consequência, nulas as cláusulas que “imponham limite ao tempo de internação hospitalar eu não o prescrito pelo médico” (GRINBERG, 2002). Com essas medidas, se pretende dar bases legais para que os consumidores possam se proteger de possíveis abusos. 5.2 PUBLICIDADE ENGANOSA Toda propaganda deve ser realizada sem defeito e de maneira honesta, seguindo os preceitos legais e preservando os valores éticos estabelecidos dentro da sociedade. Não deve induzir o consumidor a situações lesivas, além de dever ser fundada em dados fáticos, técnicos e científicos que demonstrem a informação veiculada, de modo a ser acessível a todos os interessados e utilizáveis para eventual demonstração de veracidade. Não existem fórmulas para identificar uma publicidade enganosa, existem apenas indícios contidos em anúncios com informações imprecisas ou que se utilizam de artifícios para ludibriar o leitor ou telespectador de modo que estes realizem uma compra ou contratação de serviço sem a devida segurança e racionalidade. Quando se trata de publicidade enganosa por parte de empresas de planos de saúde o assunto é ainda mais delicado, já que está relacionado diretamente à saúde pública e ao bem estar da comunidade, é a vida e a saúde dessas pessoas que estão em jogo. Assim como acontece com os demais contratos de consumo, não poderia ser diferente com os de planos de saúde, informações prestadas por funcionários e vendedores, através de publicidade, panfletos e manuais entregues e o próprio nome do plano de saúde geram expectativas consideradas legítimas que se descumpridas geram inadimplemento contratual, como estabelece o CDC. Capa Sumário 99 Essas práticas não são protegidas apenas pelo Código de Defesa do Consumidor, a própria Lei dos Planos de Saúde a fim de evitar abusos nos contratos determina que algumas cláusulas devam constar especificamente, como por exemplo, as que determinam períodos de carência para consultas, internações, procedimentos e exames, assim como os eventos cobertos e excluídos por tal contrato. Dessa forma, busca assegura ao consumidor uma maior consciência a respeito do serviço que está contratando. 5.3 NEGATIVA DO USO DE TÉCNICAS MAIS MODERNAS E EFICAZES A Lei nº 9656/98 admite que as empresas de saúde suplementar estabeleçam quais doenças estão cobertas ou excluídas, desde que assegure o mínimo definido por ela. Porém, os Planos de Saúde não podem restringir alternativas ou determinar qual melhor tipo de tratamento deva ser utilizado. Esse foi o entendimento dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça, em decisão da Quarta Turma em recurso especial interposto contra a Itauseg Saúde S/A, que não autorizou procedimento com técnica robótica em paciente com câncer. O fato ocorreu em São Paulo, durante uma cirurgia de prostatectomia radical laparoscópica. O procedimento chegou a ser autorizado pela seguradora de saúde, porém, depois de realizado o procedimento, a cobertura foi negada pelo fato de que a cirurgia foi executada com o auxílio de um robô, que segundo o médico foi indispensável para evitar a metástase da neoformação. Com base nisso, a sentença considerou ilegal a exclusão da cobertura, porém, a empresa de plano de saúde recorreu e o Tribunal de Justiça de São Paulo que acabou reformando a decisão no sentido de que a utilização do robô durante o procedimento teria natureza experimental, e por isso não caberia ao Itauseg Saúde Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização bancar tal método. A empresa de saúde suplementar ainda argumentou que o hospital havia recebido o equipamento pouco tempo antes e que poderia ter sido aplicada a técnica convencional. Apesar disso, os Ministros não se convenceram com a defesa. A relatora do processo, a ministra Isabel Gallotti (BRASIL, 2012a), elucidou que a evolução das técnicas cirúrgicas não podem ser confundidas com tratamentos experimentais, como se pode observar em um trecho de seu julgado: Tratamento experimental é aquele em que não há comprovação ratmédico-científica de sua eficácia, e não o procedimento que, a despeito de efetivado com a utilização de equipamentos modernos, é reconhecido pela ciência e escolhido pelo médico como o método mais adequado à preservação da integridade física e ao completo restabelecimento do paciente. Argumentou ainda que o STJ já vem entendendo que não pode o paciente ser privado de um tratamento com técnicas mais avançadas em razão de cláusulas limitadoras e conclui dizendo: Sendo certo que o contrato celebrado entre as partes previa a cobertura para a doença que acometia o autor da ação, é abusiva a negativa da operadora do plano de saúde de utilização da técnica mais moderna disponível no hospital credenciado pelo convênio e indicado pelo médico que assiste o paciente, nos termos da consolidada jurisprudência deste Tribunal sobre o tema. Assim, observa-se o posicionamento dos tribunais no sentido de que as técnicas médicas têm evoluído e cabe às empresas privadas de saúde suplementar assegurá-las aos seus clientes, garantindo um tratamento mais eficaz. Capa Sumário 101 5.4 RECUSA DE ATENDIMENTO EM CASOS EMERGENCIAIS DURANTE A CARÊNCIA A legislação que trata da saúde suplementar em seu art. 12, V, “c” estabelece que em casos de urgência e emergência o prazo máximo de carência é de vinte e quatro horas da vigência do contrato. Entende-se por emergência os casos em que implicam em risco de vida imediato ou de lesão irreparável para o paciente, definidos pelo médico assistente. E, por urgência, os casos derivados de acidentes pessoais ou complicações na gestação. A necessidade de atendimento diante da gravidade do caso faz com que a sujeição a qualquer regra que limite ou impeça o atendimento sejam consideradas abusivas, salvo em casos de doenças pré-existentes e de pleno conhecimento do segurado, onde as disposições contratuais devem prevalecer. O art. 35-C, da referida legislação, trata da obrigatoriedade de cobertura do atendimento em casos de urgência e emergência, aliado princípios clássicas como o da dignidade da pessoa humana, acarreta na vedação do cumprimento do período de carência pra consultas, internações, procedimentos, exames e internação. Porém, a resolução nº 13/98 do Conselho de Saúde Suplementar(1998), em especial seus art. 2º e 3º, tem servido de fundamento para as empresas privadas de saúde suplementar que geralmente exigem o cumprimento de uma carência de 180 dias para internação, estabelece: Art. 2° O plano ambulatorial deverá garantir cobertura de urgência e emergência, limitada até as primeiras 12 (doze) horas do atendimento. Parágrafo único. Quando necessária, para a continuidade do atendimento de urgência e emergência, a realização de procedimentos exclusivos da cobertura hospitalar, ainda que na mesma unidade pres- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tadora de serviços e em tempo menor que 12 (doze) horas, a cobertura cessará, sendo que a responsabilidade financeira, a partir da necessidade de internação, passará a ser do contratante, não cabendo ônus à operadora. Art. 3º Os contratos de plano hospitalar devem oferecer cobertura aos atendimentos de urgência e emergência que evoluírem para internação, desde a admissão do paciente até sua alta ou que sejam necessários à preservação da vida, órgãos e funções. § 1º. No plano ou seguro do segmento hospitalar, quando o atendimento de emergência for efetuado no decorrer dos períodos de carência, este deverá abranger a cobertura igualmente àquela fixada para o plano ou seguro do segmento ambulatorial, não garantindo, portanto, cobertura para internação. § 2º. No plano ou seguro do segmento hospitalar, o atendimento de urgência decorrente de acidente pessoal, será garantido, sem restrições, após decorridas 24 (vinte e quatro) horas da vigência do contrato. § 3º. Nos casos em que a atenção não venha a se caracterizar como própria do plano hospitalar, ou como risco de vida, ou ainda de lesões irreparáveis, não haverá a obrigatoriedade de cobertura por parte da operadora. Posicionamento bastante divergente do que dispõe a Lei nº 9656/98, que não faz nenhuma limitação de tempo de internação depois de decorrido às vinte e quatro horas de vigência do contrato. Não é razoável admitir que somente em casos de urgência haja a internação, negando em casos de emergência, posicionamento que coloca em risco a vida do paciente. Esse posicionamento viola também o que dispõe o art. 51, IV, CDC, que considera nula as cláusulas contratuais abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ferindo o princípio da boa-fé. Os tribunais têm se posicionado no sentido da incons- Capa Sumário 103 titucionalidade da resolução, violação das Leis nº 9656/98 e nº 9078/90, como se pode observar no julgado abaixo: PLANO DE SAÚDE. PROCEDIMENTO CIRÚRGICO NÃO AUTORIZADO PELA CASSI. ALEGAÇÃO DE NÃO TER ESGOTADO O PRAZO DE CARÊNCIA. 1 - A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA MAIS MODERNAS JÁ FIRMARAM ENTENDIMENTO SOBRE A INCIDÊNCIA DAS NORMAS PREVISTAS NA LEI N. 8.078/90 AOS CONTRATOS DE ASSISTÊNCIA MÉDICA CELEBRADOS POR ÓRGÃOS PÚBLICOS OU PARTICULARES EM FAVOR DE SEUS SERVIDORES OU EMPREGADOS. 2 - DESSA FORMA, O PLANO DE ASSISTÊNCIA À SAÚDE OFERECIDO PELA CASSI AOS SEUS ASSOCIADOS REGE-SE PELAS REGRAS CONSUMERISTAS. 3 - NA ESTEIRA DO ART. 12, INCISO V, ALÍNEA C DA LEI N. 9.656/98 O PRAZO DE CARÊNCIA PARA OS CASOS DE EMERGÊNCIA E DE URGÊNCIA É DE 24 (VINTE E QUATRO) HORAS, NÃO HAVENDO LIMITE TEMPORAL PARA O ATENDIMENTO AMBULATORIAL. 4 - ERIGIDA A PROTEÇÃO AO CONSUMIDOR A COMANDO CONSTITUCIONAL (ART. 5º, CAPUT, INCISO XXXII DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1.988) E CONSIDERANDO QUE UMA LEI SOMENTE PODE SER REVOGADO POR OUTRA LEI (ART. 2º, CAPUT E PARÁGRAFOS DA LEI DE INTRODUÇÃO AO CÓDIGO CIVIL DE 1.916), CONCLUI-SE QUE É INCONSTITUCIONAL A RESOLUÇÃO N. 13 DO CONSELHO DE SAÚDE SUPL EMENTAR (CONSU) E POR CONSEGUINTE NULAS AS CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE LIMITAM O PRAZO DE ATENDIMENTO EM AMBULATÓRIO E AQUELAS QUE FIXAM O PRAZO DE 180 (CENTO E OITENTA) DIAS DE CARÊNCIA PARA OS PROCEDIMENTOS CIRÚRGICOS CONTIDAS NO CONTRATO FIRMADO ENTRE AS PARTES. 5 - A NULIDADE DAS CLÁUSULAS VERIFICA-SE SEGUNDO AS REGRAS LANÇADAS NO ART. 51, CAPUT, INCISO IV DA LEI N. 8.078/90, POSTO QUE ESTABELECEM OBRIGAÇÕES CONSIDERADAS INÍQUAS, ABUSIVAS E COLOCAM O CONSUMIDOR EM DESVANTAGEM EXAGERADA E SÃO INCOMPATÍVEIS COM A BOA-FÉ E COM A EQUIDADE. 6 - DESSA FORMA, RESSAI O DIREITO DO CONSUMIDOR Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização À RESTITUIÇÃO DO VALOR DESEMBOLSADO PARA COBRIR AS DESPESAS COM A OPERAÇÃO A QUAL FOI SUBMETIDO E NÃO AUTORIZADA PELA CASSI, MORMENTE PORQUE ELE TROUXE AOS AUTOS PROVAS SUFICIENTES DA REALIZAÇÃO DO PROCEDIMENTO DE EMERGÊNCIA E OS RECIBOS DOS REFERIDOS GASTOS. 7 - RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA.(TJ-DF - ACJ: 20060710280422 DF , Relator: LEILA ARLANCH, Data de Julgamento: 02/10/2007, Primeira Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do D.F., Data de Publicação: DJU 20/02/2008 Pág. : 1595). (DISTRITO FEDERAL, 2005). Decidir pela resolução do Conselho de Saúde Suplementar seria violar o princípio da função social, colocar o interesse particular das empresas de planos de saúde acima dos interesses sociais e com base nisso que os tribunais têm considerado tal norma inconstitucional. A negativa de atendimento em casos de urgência e emergência poder ter consequências sérias e irreversíveis. 6 CONCLUSÃO Depois de passar por diversas significações e transformações ao longo da história, a Constituição da República de 1988 consagrou à saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Porém, assim como acontece em outras funções essenciais do Estado, o baixo investimento em estrutura básica de saúde, agravado pelo elevado custo dos tratamentos médico-hospitalares têm feito o setor de saúde suplementar brasileiro emergir nos últimos anos. Mesmo com esse crescimento do mercado de planos privados de assistência a saúde, por muitos anos esses setor ficou sem nenhum tipo de regulamentação, o que acabou favorecendo a prática de abusos por partes dessas empresas. Capa Sumário 105 A compreensão de que a natureza jurídica dos contratos de planos de saúde é consumerista foi fundamental para que os usuários do setor de saúde suplementar não ficassem totalmente desamparados frente aos abusos sofridos. Os tribunais de maneira quase que unânime têm adotado medidas protetivas tendo em vista a vulnerabilidade do contratante frente as empresas de saúde suplementar. Eles ainda foram além ao se posicionar no sentido de que mesmo os contratos firmados antes da vigência do CDC devem ser protegidos por tal instrumento, já que uma das características dos contratos de planos de saúde é ser de trato sucessivo, ou seja, é renovado automaticamente ao longo do tempo. Com o advento das legislações que tratam especificamente dos planos de saúde o entendimento de que o contratante é figura vulnerável na relação só foi fortalecido, aumentando assim as bases legais para a configuração dos abusos. As condutas analisadas, quais sejam: a limitação de internação, a propaganda enganosa, a negativa do uso de técnicas mais avançadas e a recusa de atendimento em casos emergenciais durante a carência, são exemplos claros de violação aos princípios basilares do contrato, como a boa-fé, função social e ainda a dignidade da pessoa humana, tendo em vista que o direito à saúde está diretamente relacionado com o direito à vida, bem mais precioso de nosso ordenamento. Embora esse tema seja bastante corriqueiro nos tribunais, poucos são os doutrinadores que tratam dos abusos em espécie, isso colabora para que a sociedade desconheça seus direitos e continue sendo vítima dessas práticas abusivas. Porém, a recente regulamentação do sistema de saúde suplementar tem sido um fator preponderante para que esses abusos começassem a ser identificados, e isso gerou um aumento no número ações nos tribunais reclamando tais condutas. Essa grande demanda também se dá pela falta de punições e sanções mais severas por parte da agência reguladora. As empre- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização sas acabam avaliando que é mais vantajoso continuar praticando condutas ilícitas do que prestar os serviços devidos, já que as multas aplicadas muitas vezes não cumprem o papel sancionador, e proporcionalmente aos abusos praticados é muito pequeno o número de pessoas que recorrem ao judiciário para ter seu direito garantido. Se mais pessoas tiverem consciência dos seus direitos e passarem a exigir medidas mais severas por parte das autoridades competentes tornando essas condutas abusivas desvantajosas o judiciário seria menos demandado, o que geraria uma economia processual e um desafogamento dos tribunais. Essa foi a intenção desse trabalho, fazer com que mais pessoas conheçam seus direitos, saibam identificar essas práticas reprováveis, e busquem seus direitos. Dessa forma, conclui-se que, embora as legislações e regulamentações do setor da saúde tenham ficado cada vez mais rígidas ainda falta uma maior aplicação delas, e por isso as empresas de saúde suplementar continuam cometendo abusos, porém, os tribunais têm decidido de maneira quase que uníssona no sentido de que os interesses privados das empresas não podem prevalecer em relação aos direitos sociais, especialmente o direito à saúde que está diretamente ligado ao direito à vida, bem mais precioso do nosso ordenamento. REFERÊNCIAS BRASIL. 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Relator: Carlos Eduardo Richinitti, Porto Alegre, 25 de novembro de 2013. ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AC: 70058581745 RS. Relator: Carlos Eduardo Zietlow Duro, Porto Alegre, 10 de março de 2014a). ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AI: 70058371220 RS. Relator: Elisa Carpim Corrêa, Porto Alegre, 14 de abril de 2014b. ______. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Processo nº AC: 70054357504 RS. Relator: Isabel Dias Almeida, Porto Alegre, 4 de junho de 2013. SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo nº APL: 994092811717 SP. Relator: Luiz Antônio Costa, São Paulo, 18 de fevereiro de 2010). ______. Tribunal de Justiça de São Paulo. Processo n° APL: 00078351620118260176 SP 0007835-16.2011.8.26.0176. Relator: Carlos Alberto de Salles, São Paulo, 22 de maio de 2014. SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. ZIROLDO, R; GIMENES, R; CASTELO JR., C. 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Visando o aspecto principiológico dos pactos civis, iremos discutir,sobretudo, o princípio da boa-fé em sua dimensão objetiva, passando pelas visões doutrinária e jurisprudencial, para avaliar como a violação dos deveres anexos de conduta, poderá ensejar em uma resolução contratual, flexibilizando o pacta sun servanda, para que assim faça prevalecer a dignidade da pessoa como o valor maior do ordenamento jurídico, através dos deveres de lealdade e cooperação. Palavra-chave: Direito Contratual; Princípios; Boa-fé; Violação Contratual Positiva; Deveres Anexos; 7 Graduando em Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB e pesquisador pelo Grupo de Pesquisa em Direitos Reais e Contratual do Prof.Ms. Pedro Pontes de Azevedo. 8 Professor de Direito Civil na Universidade Federal da Paraíba. Mestre em direito pela UFPB. Doutorando em Direito pela UERJ. Membro do Instituto de Direito Civil-Constitucional. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS Com o advento da Constituição Federal de 1988 e a entrada em vigor da atual codificação civilista brasileira em 2002, nosso sistema jurídico abriu caminho para que se instalasse o fenômeno que cada vez mais vem ganhando espaço: a constitucionalização da legislação infraconstitucional, ou mais especificamente, a Constitucionalização do Direito Civil. É importante deixar claro que esse evento não se restringiu apenas ao Direito Público, no qual já se tinha uma grande incidência de toda a carga valorativa constitucional, assim como a aplicação dos princípios fundamentais. Porém, o que se observa é uma tendência cada vez da horizontalizarão dos direitos fundamentais, como sendo o reconhecimento da existência e aplicação dos direitos e princípios constitucionais nas relações entre os particulares (TARTUCE, 2012, p 82), ou seja, naquilo que se convencionou denominar Direito Privado. Como exemplo da aplicação dessa tese, podemos citar jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que em análise de Recurso Extraordinário, negou provimento a este, encampando a tese de que havia sido violado direito de defesa – constitucional - de associado de sociedade civil, mandando que este fosse reintegrado: I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. As violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado. Assim, os direitos fundamentais assegurados pela Constituição vinculam diretamente não apenas os poderes públicos, estando direcionados também à proteção dos particulares em face dos poderes privados. (RE 201.819-8/RJ, Rel. Min. Ellen Gracie, Rel. p/ acordão Mi. Gilmar Mendes, 11.10.05). Capa Sumário 113 Depreende-se da análise deste julgado que o Min. Gilmar Mendes abriu um precedente deveras relevante, segundo o qual o ordenamento jurídico pátrio desenvolve uma característica fundamental: a superação da dicotomia entre o direito público e privado, tal qual ilhas isoladas, vivendo autonomamente e independentes entre si. A Constituição Federal de 1988 possui destacado papel nesse sentido, pois o seu texto, além de privilegiar a dignidade da pessoa humana, ousou em unificar todo o sistema normativo. Mesmo que diante de uma pluralidade e complexidade de normas, com regulamentações e interpretações características, a CF/1988 unificou o ordenamento. Continua-se a aplicar todas as leis que não contrariavam a Constituição, porém com uma diferença elementar de que os princípios, direitos e garantias previstas no Art. 5º, bem como os demais artigos, deverão ser o norte, a base para a aplicação de toda a legislação infraconstitucional. 2. OS NOVOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Dessa forma, a partir da influência e importância que passou a ter a Constituição Federal para a legislação privada, algumas ponderações precisam ser feitas.Percebe-se que o clima de mudança cultural que já se encontrava em pauta social há algum tempo, foi finalmente atendido pelo constituinte em 1988, promulgando a primeira Constituição Social brasileira com reflexos em todo o ordenamento jurídico, de forma crucial no Código Civil que viria a vigorar alguns anos depois. Houve a partir de então uma reconstrução de conceitos fundamentais e inversão de valores que até então vigoravam na nossa legislação, firmou-se compromisso para com a pessoa humana e com a justiça social, deixando todo o patrimônio material para um segundo plano (TEPEDINO, p. 357). Antes de adentrar a uma análise mais profunda acerca da Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nossa atual codificação civil, é interessante fazer algumas observações acerca do Código Civil de 1916, denominado de Código Beviláqua. O referido texto, discutido ainda no século XVIII, transborda a cultura jurídica da época: um direito focalizado muito mais na técnica, em detrimento da ética. Nesse contexto, era inegável a posição a qual desfrutava o ter, o patrimônio, enquanto que o ser, a dignidade, a pessoa humana, eram relegados a um segundo plano. Tendo herdado uma cultura jurídica dos pandectistas e das primeiras universidades europeias, as quais deram origem à Família Romano-Germânica, berço da nossa erudição forense, os glosadores e demais escolas do século XVIII contribuíram bastante na construção de um direito, o qual se baseia e se justifica por aquilo que está positivo, aquilo que se encontra na norma, sendo essa a ferramenta suficiente e exauriente de todos os questionamentos sociais. (DAVID, 2014, P. 35). Já na elaboração e aprovação do Código Civil de 2002, com o objetivo de superar a cultura civilista de até então, e já influenciado pela nova codificação constitucional,eis que surgem três princípios Fundamentais que se impregnaram e, consequentemente, vão nortear toda a nova interpretação do direito privado, são eles: a socialidade, a operabilidade e a eticidade. A socialidadetem como fulcro superar todo o individualismo que dominava o antigo código, elaborado ainda sob a égide de uma sociedade predominantemente instalada no meio rural, o que fez com que o texto, com o passar dos anos, não suprisse as necessidades de uma população que passou a viver maciçamente nas cidades. Todos os institutos existentes até então, passam a obrigatoriamente ter que exercer não apenas a sua função imediata, mas atender também a uma finalidade social. Atribuiu-se ao direito privado uma finalidade social, acabando com o caráter individualista de 1916. Nesse sentido, observe-se o art. 421 do Có- Capa Sumário 115 digo Civil de 2002: “Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.”. Já a operabilidadetrouxe a razoabilidade ao Direito.Um outro aspecto da operabilidade foi a adoção das cláusulas gerais, o que entregou ao intérprete uma árdua e importante missão: a de aproximar a legislação à realidade social, especialmente por meio da jurisprudência dos tribunais, cuja maior missão passou a ser a de ter uma atuação mais efetiva, realista, sensata, onde a lei concretiza a sua finalidade (BUTSCH). Por fim, tem-se o princípio que será objeto de nosso estudo: a Eticidade. Buscou-se superar através da nova codificação o apego excessivo ao formalismo jurídico, cultura recebida diretamente dos Portugueses e da escola germânica dos pandectistas, como consequência de todo o trabalho empírico exercido pelos glosadores no renascimento do direito romano (REALE JR., 2001, p. 3). Segundo esse princípio, as condutas dos indivíduos deverão ser sempre guiadas pelos valores de honestidade, lealdade, sinceridade e lisura, para que então, não haja prejuízo para nenhuma das partes nessa relação. Desenvolveremos um pouco mais as ideias acerca deste primado nos tópicos seguintes, culminando com a análise da boa-fé objetiva, uma das suas mais importantes consequências. 3. O PRINCÍPIO DA ETICIDADE COMO INSTITUIDOR DA BOA-FÉ Como já demonstrado anteriormente, o novo Constitucionalismo trouxe ao ordenamento jurídico brasileiro uma ampla valorização dos direitosfundamentais, com destaque para a preservação e a valorização da dignidade da pessoa humana. Como não poderia deixar de ser, o Direito Civil igualmente passou a ter o cânone em questão, passando a também tutelar, como epicentro das suas normas, a dignidade dentro das relações de direito priva- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização do. Guardando a unidade do ordenamento jurídico, ainda que na complexidade do mesmo, o qual imergido num universo de pluralidade de normas e legislações que regulam as diversas relações sociais, essas normas guardam uma unidade na tábua axiológica da Constituição Federal (TEPEDINO, p. 361). A Ética pode ser aplicada como sendo a essência humana, a finalidade que deverá ser atingida mediante as condutas do homem(FARIAS e ROSENVALD, p. 51, 2014).É mediante este paradigma que podemos perceber o avanço alcançado pelo Código Civil de 2002, quando comparado ao de 1916, esse que fora bastante marcado por uma ciência jurídica embasada pelas correntes positivistas, as quais limitavam o direito à norma e a mera produção estatal. Na realidade marcadamente liberal, era como se a legislação fosse um produto feito dentro de um laboratório, excluindo da produção toda a interferência de outras ciências, como a sociologia, antropologia, e outras, com capacidade de contribuir significativamente para um direito voltado aos substratos axiológicos fundamentais voltados à sociedade, e não ao apego excessivo ao formalismo, direcionado a favorecer uma classe dominante. Assim, o Código Beviláqua foi profundamente marcado pela hermenêutica da subsunção, onde cabia ao interprete aplicar a norma pela norma, pois uma vez obedecida a técnica legislativa e a emanação desta por autoridade competente já justificava a sua aplicação, tornando este texto um verdadeiro sistema fechado (FARIAS e ROSENVALD, p. 51, 2014). Eis que no bojo do Código civil de 2002 a eticidadeamplia o seu espaço no Direito Civil, sendo erguida a um patamar de princípio fundamental, ao lado da operabilidade e da socialidade que também lhe darão sustância, por meio das chamadas cláusulas gerais. Segundo Gustavo Tepedino, cláusulas gerais são: Capa Sumário 117 “Normas que não prescrevem uma certa conduta, mas, simplesmente, definem valores e parâmetros hermenêuticos. Servem assim como ponto de referência interpretativo e oferecem ao interprete os critérios axiológicos e os limites para aplicação das demais disposições normativas” (TEPEDINO, p. 22, 2008). Essas cláusulas possuem a capacidade de dinamizar e atualizar o texto frio da lei, e não sentenciá-lo à caducidade e ao obsoletismo, mas sim provocar o efeito reverso; fazer com que ele continue sempre atualizado e adequado ao contexto social o qual está inserido, através do intérprete. Assim, diversos são os artigos que tratam sobre as cláusulas gerais, porém dois destes merecem destaque em razão da discussão que aqui se irá traçar. O primeiro deles é o art. 422 do CC/2002:“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Esse artigo é fundamental importância, visto que impõe aos contratantes - veja que o verbo utilizado foi o de “obrigar” – a observância aos princípios éticos e de probidade, instituindo e abrindo portas para a eticidade nas relações contratuais, sob pena da lei. Contudo, a maneira como esse instituto foi inserido é que nos chama a atenção: a utilização pelo legislador de termos vagos e imprecisos, editados propositadamente, para que o intérprete da lei, aplicando o texto normativo ao caso concreto, se utilize da técnica integrativa para adequar as condutas dos pactuantes à mais estrita observância à boa boa-fé objetiva. Antes de seguir adiante na discussão, é interessante que se aborde o aspecto do Princípio da Boa-fé sob as suas duas dimensões: boa-fé subjetiva e objetiva. A primeira consiste, segundo Pablo Stolze e Rodolfo Pamplona, em “uma situação psicológica, um estado de ânimo ou de espírito do agente que realiza determinado ato ou vivência dada situação, sem ter ciência do vício que Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização a inquina.”(STOLZE e PAMPLONA p 64, 2010).Complementando, citamos também o raciocínio de Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald,que afirmam que “A boa-fé subjetiva não é um princípio, e sim um estado psicológico em que a pessoa possui a crença de ser titular de um direito em que verdade só existe na aparência.”(FARIAS e ROSENVALD, p. 159, 2014).Por fim, ainda sobre o mesmo ponto, vejamos o conceito de Fernando Noronha:“Uma é boa-fé estado, a outra é boa-fé espírito” (NORONHA. P. 1994). A boa-fé objetiva, portanto, pode ser definida como um norte para as condutas humanas e sociais, um patamar que o legislador deseja que seja perquirido, tendo em vista que se encontra em plena conformidade com a eticidade, vez que caminham lado a lado, sendo por vezes muito tênue a sua distinção. Como um dever jurídico e moral, a boa-fé objetiva impõe alguns deveres secundários e mediatos, os quais devem ser obedecidos sempre e em todas as relações jurídicas, com destaque especial para o direito obrigacional e contratual. Trata-se da “confiança adjetivada”, uma crença efetiva no comportamento alheio e um importante instrumento de eticização da conduta social (FARIAS e ROSENVALD, 2014, P. 159). A boa-fé objetiva que é objeto do direito, eis a sua diferenciação para a sua versão subjetiva. Aquela impõe aos sujeitos os deveres e padrão de conduta de não lesar outrem, o dever de uma conduta reta, proba. 4. A BOA-FÉ OBJETIVA É notória a função que desempenha a boa-fé objetiva nas relações sociais, imprimindo nessas um ar de confiança, estruturando todo o convívio social. Em decorrência de sua objetividade, a bona fides impõe estrita observação a esses três requisitos: a) dentro de uma relação jurídica, a observação aos deveres especiais e mútuos de conduta; b) padrões de comportamento exigíveis a um Capa Sumário 119 homem médio; c) visando ensejar confiança nessa relação, a reunião de condições para tal realização (FARIAS e ROSENVALD, 2014, P. 160). Assim, podemos perceber as três funções desse instituto: a sua função interpretativa, integrativa e de controle. O comando normativo primordial, a tratar sobre o tema em discussão, é o Art. 113 do CC/2002:“Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”Inserido ainda nos primórdios dos dispositivos normativos, de forma intencional, ele serve de sustento para tudo o que virá depois dele. Embora o novo texto civil tenha mantido os mesmo institutos de seu antecessor, esse dispositivo demonstra uma alteração cabal: a carga valorativa e axiológica não é mais a mesma, e a boa-fé é um dos principais propulsores dessa modificação. A boa-fé objetiva não havia sido prestigiada pelo código de 1916, embora possua origem ainda no direito romano, segundo alguns doutrinadores, os quais buscam no conceito de bonas fides, o genitor para o conceito tal qual conhecemos atualmente. O princípio da boa-fé objetiva possui peso de normatividade, invocando um dever, uma obrigação que é socialmente recomendada, um dever de conduta de não frustrar a confiança alheia, muitas vezes se confundindo com a equidade das relações negociais (LYARD, P. 133, 2003). Esse princípio traz consigo o pressuposto de que, o homem acredita e confia em que uma declaração de vontade terá como efeitos os esperados em situações iguais, partindo da premissa do resultado comumente esperado de uma relação comum. Dada a magnitude que carrega tal princípio, é feliz o reconhecimento das pessoas que enxergam na boa-fé objetiva um reflexo dos valores resguardados na Constituição Federal. Tal qual um porta-voz, a dignidade da pessoa humana, princípio constitucional, encontra um porto seguro no direito privado através daquele princípio. As regras que antes pertenciam exclusivamente ao Direi- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização to Público, agora se aplicam ao Direito Privado, fazendo uma integração entre os valores axiológicos constitucionais. Assim, em decorrência desse fenômeno, podemos apontar para uma verdadeira flexibilização da autonomia privada, do pacta sun servanda, os quais podem vir a sucumbir em detrimento da prevalência da justiça social, equilibrando as relações entre particulares, prevalecendo ideias de liberdade e justiça. A boa-fé, conforme se infere dos dispositivos do Código Civil, deverá ser observada em todas as fases contratuais, desde a sua germinação, nas negociações preliminares, até a fase de execução e pós-contratual:“Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.” Entretanto, a sua função não se acaba ai. Chegamos ao ponto central da presente análise: os deveres de proteção e cooperação que devem guardar os contratantes, bem como se deixarem guiar por este, não são apenas meros acessórios contratuais, decorações que são inseridas e que podem facilmente ser trocadas, a depender do gosto de uma das partes. Pelo contrário, eles são verdadeiros princípios, com caráter de norma cogente, devendo ser estritamente obedecidos, sob pena de até mesmo justificarem uma resolução contratual, pelo instituto da violação positiva dos contratos,que vem amplamente sendo reconhecido, sobretudo nos tribunais brasileiros, conforme demonstraremos mais a frente. Vejamos o que diz o Art. 187 da lei civil, o qual institui uma verdadeira função limitadora dos direitos subjetivos, visando coibir o abuso de direito e os casos de violação desses deveres anexos dos contratos, instituindo como ato ilícito a violação da boa-fé: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.” Capa Sumário 121 O referente artigo inovou no ordenamento, visto que trouxe para esse instituto inaplicável até então: o abuso de direito. Assim, até mesmo diante de casos de um legítimo exercício de seu direito, cumprimento de dever legal, o agente poderá praticar ato ilícito, ainda que no exercício de direito legítimo e subjetivo, desde que ele atue com excesso, atue violando as finalidades essenciais do código civilista: a finalidade social, os bons costumes e a boa-fé. Vejamos o que diz o grande doutrinador Caio Mário da Silva Pereira: “O abuso de direito consiste no uso imoderado do direito subjetivo, de modo a causar dano a outrem. Em princípio, aquele que age dentre do seu direito a ninguém prejudica (neminemlaeditquiiuresuoutitur). No entanto, o titular do direito subjetivo, no uso desse direito, pode prejudicar terceiros, configurando ato ilícito e sendo obrigado a reparar o dano.” (PEREIRA, 2007, P. 673). Assim, concluímos que a eticidade foi amplamente encorpada pelo artigo em questão, trazendo novidades para a lei civil, além de imputar à boa-fé objetiva, posição que antes não gozava. 5. A VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO Com a ascensão da boa-fé objetiva ao status de cânone fundamental, o direito obrigacional passou por uma ampla reformulação, com destaque para a figura do adimplemento. O que se defende aqui é que o cumprimento obrigacional passa a ser alargado, uma vez que a simples execução da obrigação principal não o satisfaz mais. Surge a ideia dos deveres anexos, deveres laterais, interesses envolvidos mediatamente na obrigação principal, e que adquirem o caráter de obrigação acessória, ligada à obrigação principal, gerando deveres como o de proteção, de informação e de cooperação, os quais, se não observados,poderão provocar o inadimplemento, gerando até mesmo a pretensão reparatória ou o direito potestativo à resolução do vínculo (FARIAS e ROSENVALD, CONTRATOS, 2014, p. 540) Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Os artigos retrocitados – 113, 187 e 422 do Código Civil de 2002 – introduziram todo o fundamento legal para que fosse admitido os deveres secundários nos negócios jurídicos e nos contratos (BARRETO, P 159, 2003). Usualmente, tem-se como formas de inadimplemento contratual a impossibilidade física ou objetiva de entrega de coisa certa; impossibilidade física subjetiva ou involuntariedade da prestação de fazer e de não fazer; impossibilidade ou involuntariedade do cumprimento de obrigação alternativa, indivisível, solidária, de entrega de coisa com vício material visível ou com vício de evicção, além do inadimplemento parcial ou relativo. Todas essa formas de descumprimento, irão ensejar o inadimplemento da obrigação principal em um negócio jurídico. Segundo o entendimento tradicional, são apenas essas obrigações acima, tidas como principais, que ensejarão a determinação do adimplemento ou inadimplemento contratual. Em outras palavras, mesmo que tenha havido dano para pessoa do credor ou do devedor, sendo cumprida a obrigação principal, não haveria ofensa ao contrato, ao negócio e pacto jurídico celebrado. O que se advoga aqui é exatamente a ampliação do conceito de inadimplemento, para abarcar os casos de descumprimento dos deveres anexos, advindos da boa-fé objetiva, comoensejadores de inadimplemento contratual. Como exemplo, poderíamos citar o caso de um médico que diagnostica determinado paciente com exatidão, entretanto, na hora de escolher um tratamento para a cura da doença, seleciona o mais penoso e duradouro (ASSIS, 1999, p. 113). Também pode ser mencionado o caso do empresário que contrata uma agência de publicidade para a confecção de um outdoorpara expor de forma bastante visível o seu produto, no entanto, a agencia instala o outdoor em local de pouco trânsito de pessoas, aproveitando-se da omissão contratual na definição do local (SILVA, 1976, p.40) Nos dois casos exemplificativos, percebemos que a obriga- Capa Sumário 123 ção principal foi realizada, houve, a priori, uma satisfação com relação ao adimplemento do objeto principal do contrato. Contudo, é inegável que a forma como a obrigação foi realizada não foi a melhor a ser executada. Houve um adimplemento ruim, não satisfativo, vez que as obrigações secundárias, laterais ao contrato, não foram cumpridas. Não houve uma obediência à boa-fé objetiva, o dever de conduta proba, de conduta reta não foi obedecido, tendo em vista que os contratantes, diante de uma pluralidade de opções, escolheram a menos favorável aos outros pactuantes,, ainda que dispusessem de poder de executar a melhor e mais satisfativa. Visando coibiro adimplemento ruim, inibir o descumprimento dos deveres anexos aos negócios jurídicos, surgiu a Teoria dos deveres laterais, paralelos, anexos, instrumentais. Assim, ao celebrar um contrato, as partes deverão cumprir não apenas com a obrigação imediata, principal, mas também com os deveres conexos e secundários que passam a integrar o sistema obrigacional. Dessa forma, violação positiva do contrato é sinônimo do que a doutrina ousou por chamar de adimplemento ruim, insatisfatório, onde mesmo tendo a obrigação principal do contrato esteja sido cumprida, as obrigações laterais, conexas a esse contrato, e resultado do da boa-fé objetiva, na sua função integrativa e criadora dos deveres laterais – Art. 422, CC/02 – não foram cumpridas, levando a uma violação positiva contratual. O que se defende, pois, é que a violação positiva do contrato, seja alçada a modalidade de inadimplemento obrigacional. Conforme demonstrado, a obrigação central sempre carrega consigo outros deveres que devem ser igualmente executados, posto que são eles quem definem objetivamente a conduta de boa-fé de um agente. Nesse sentido, vejamos o entendimento de SILVA sobre o tema: “A violação positiva do contrato, no direito brasileiro, corresponde ao inadimplemento decorrente do descumprimento de dever lateral, quando este de- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ver não tenha uma vinculação direta com os interesses do credor na prestação. (SILVA, p. 266).” Percebe-se que a estrutura da relação contratual foi encorpada para obrigações além da autonomia da vontade, para os deveres previstos nos Arts. 187 e 422 do CC. 5.1 POSSÍVEIS PRETENSÕES/TUTELAS A OS CREDORES DA VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO Admitida a tese aqui defendida, uma vez identificada a violação aos deveres conexos do negócio jurídico, o devedor se constituiria em mora, em virtude do adimplemento ruim, ou não-satisfativo, ainda que venha a adimplir a obrigação principal. Nessa linha de raciocínio, segundo o sistema obrigacional, o contratante prejudicado poderia buscar algumas tutelas judiciais para se ver recompensado por eventuais perdas e danos, consoante se apresentará adiante. Cumpre salientar que inicialmente, e em obediência ao princípio do pacta sun servanda, é dever do intérprete e dos contratantes, prezar pela manutenção do negócio jurídico celebrado, pleiteando o adimplemento, em detrimentoda reparação mediante perdas e danos. O Princípio da preservação do constratos encontra fundamento na função social dos contratos, vez que esses negócios jurídicos embora encontrem interesses diretos e imediatos as partes do contrato, teremos como indiretamente interessados, a sociedade, vez que a obrigação principal desempenha, ainda que de maneira ínfima, um reflexo no contexto social, movimenta a economia, favorecendo o desenvolvimento econômico e social da pessoa humana. Com a superação do individualismo excessivo do código de beviláqua, o princípio da socilidade impôs aos institutos do direi- Capa Sumário 125 to privado essa característica social, os quais deverão não mais se restringir aos interesses das partes, deverão atendê-lo primordialmente, no entanto, subsidiariamente existe um interesse público e social no contrato celebrado. Dessa forma, diante de possíveis revisões contratuais, o interprete deverá prezar pela manutenção contratual, com base no princípio da preservação dos contratos, visto que esses desempenham também uma função perante a coletividade, podendo vir a lesar não a parte, mas todos os indivíduos indiretamente afetados. O inadimplente repara o credor por todos os danos que a sua conduta não proba causou à pessoa do ofendido, como no caso do médico que tratou o paciente com o tratamento mais penoso e demorado, irá indenizar a vítima em perdas e danos. De outro lado, e talvez a mais interessante tutela que se passa a defender, o contratante lesado teria ao seu dispor a possibilidade de pleitear a resolução contratual. Pelo que aqui se defende, é possível requerer o rompimento contratual, ainda que a obrigação principal tenha sido cumprida, tendo como base o inadimplemento, o descumprimento dos deveres anexos. Considerando a violação positiva do contrato como um descumprimento dos deveres anexos, bem como a quebra de confiança entre as partes, a afronta aos deveres de lealdade, o vínculo contratual que une as partes contratantes se encontra plenamente prejudicado. Assim, seria plenamente possível que o rompimento do contrato em consequência da violação positiva dos contratos, especialmente nas ocasiões em que a conduta violadora dos deveres anexos possui capacidade de desinteressar o lesado na manutenção contratual. Por exemplo: um reparador de telhados é contratado e realiza o trabalho para qual foi contratado de maneira satisfatória, cumprindo com o que foi pactuado. Contudo, após o encerramento do serviço, acende um cigarro antes de descer e joga o fósforo aceso, causando incêndio no madeiramento do telhado. (BARRETO, 2003, P. 160) Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Com relação à responsabilidade civil decorrente da violação positiva dos contratos, segue-se a mesma regra aplicada aos casos de mora e inadimplemento absoluto, podendo resolver o contrato ou adequá-lo aos interesses da parte que foi lesada. 6 ANÁLISE JURISPRUDENCIAL Passando para uma análise acerca da posição que vem sendo adotada pelos tribunais brasileiros, percebemos uma forte tendência para o reconhecimento e aplicação da violação positiva dos contratos como sendo uma causadora para, até mesmo, a resolução contratual. Cumpre analisar um caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que em sede de recurso de agravo interno, negou provimento a este para manter sentença que condenou uma seguradora ao pagamento de dano moral por violação aos deveres laterais do contrato, corroborando a tese defendida por nós no presente trabalho. TJ-RJ - APELACAO APL 00236895820118190204 RJ 0023689-58.2011.8.19.0204 (TJ-RJ) Ementa:AGRAVO INTERNO EM APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C/C INDENIZATÓRIA RECUSA AO PAGAMENTO DE INDENIZAÇÃO SECURITÁRIA AO BENEFICIÁRIO DE SEGURO DE VIDA. ABUSO DO DIREITO.VIOLAÇÃOPOSITIVADOCONTRATO, CONSUBSTANCIADA NA QUEBRA DOS DEVERES DE LEALDADE, BOA-FÉ, FIDÚCIA E TRANSPARÊNCIA. DANO MORAL CARACTERIZADO. DEVER DE INDENIZAR. (...) 4. Ressai evidente que a ré atua de má-fé, na medida em que vem protelando o pagamento da indenização securitária há mais de 4 anos, quebrando, com tal conduta, os deveres laterais do contrato, consubstanciados no dever de agir com boa-fé, lealdade, transparência e fidúcia. Diante das circunstâncias do caso concreto, entendo que o valor de R$ 10.000,00, revela-se justo e adequado, para fins de Capa Sumário 127 indenização pelos danos morais sofridos. 5. Desprovimento do recurso. Sobre o mesmo tema, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul assim julgou: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. INFRAÇÃO A DEVER INSTRUMENTAL DE INFORMAÇÃO, DERIVADO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO. É crível, assim, a versão da autora de que não teria se interessado na locação, caso soubesse que haveria um número tão grande de stands locados. Ainda que não houvesse a afirmação inicial, enganosa, de que haveria um número reduzido de stands, impunha-se aos requeridos prestar a informação aos interessados quanto ao número de stands que se pretendia instalar. Trata-se do dever instrumental, anexo ou lateral, de informar ao outro contratante todas as circunstâncias que possam influir no processo de tomada de decisão de contratar ou de fixação das cláusulas do contrato. Não houve propriamente inadimplemento contratual dos requeridos, pois locaram os stands e efetivamente os dispuseram aos locatários. Trata-se, porém, do fenômeno denominado de violação positiva do contrato, instituto que não configura nem mora, nem inadimplemento, mas adimplemento defeituoso por não cumprimento de deveres anexos, laterais, decorrentes do princípio da boa-fé, em sua função de proteção ou tutela. Sentença de procedência mantida. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul. Terceira Turma Recursal Cível. Recurso Cível Nº 71000603332. Marketing e Cia e Eva Silva da Costa. Relator: Desembargador Eugênio Facchini Neto. Porto Alegre, 14 dez. 2004). O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul foi muito feliz nesse julgado, vez que aplicou à realidade o que nós estamos aqui defendendo. Ao se referir ao dever de informação da locadora, um verdadeiro dever anexo ao contrato, cuja obrigação era alugar car- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ro seu a particular, essa empresa se viu como uma má prestadora do serviço, tendo em vista que ainda que tenha alugado o bem móvel, não cumpriu com todos os deveres. Vejamos outro exemplo: EMENTA: AÇÃO ORDINÁRIA DE COBRANÇA - CONTRATO DE EMPREITADA - MOVEIS PARA LOJA - AUSÊNCIA DE PAGAMENTO DO VALOR CONTRATADO - DESCUMPRIMENTO PARCIAL DA OBRIGAÇÃO - DEFEITOS DE ACABAMENTO - CARACTERIZAÇÃO - ABATIMENTO DO PREÇO - POSSIBILIDADE - VALOR NECESSÁRIO PARA REPARAÇÃO DO DEFEITO - APURAÇÃOEM LIQUIDAÇÃO. Restando demonstrado nos autos que houve cumprimento parcial do contrato, haja vista a constatação de defeitos no seu objeto está-se diante da hipótese de “descumprimento de obrigação positiva”, sendo possível a alegação da exceptio non riteadimplenticontractus. Uma vez acatada a exceção do contrato cumprido de forma defeituosa possível é, em sede de ação de cobrança, o abatimento do preço inicialmente avençado da quantia necessária a reparação do(s) bem(s), valor este que deve ser apurado em liquidação de sentença por arbitramento. (BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais. Apelação Cível 2.0000.00.512685-4/000(1). Renata Araújo Notini e Richard Antônio Masrtins. Relator: Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula. Belo Horizonte, 18 ago. 2005). Outro caso que merece análise é o de um recurso de apelação ajuizado perante o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, no qual aquela corte se manifestou a favor do reconhecimento dos deveres anexos como causadores de inadimplemento contratual pelo seu desrespeito: TJ-DF - APELACAO CIVEL APC 20100110030906 DF 0001550-12.2010.8.07.0001 (TJ-DF) Ementa: CIVIL E PROCESSO CIVIL. COMPRA E VENDA AUTOMÓVEL. PARTICULARES. AUSÊNCIA DE REGIS- Capa Sumário 129 TRO. VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO. DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. 1. Em uma relação jurídica, os contratantes devem pautar-se em certo padrão ético de confiança e lealdade, em atenção ao princípio da boa-fé, que orienta as atuais relações negociais pela probidade, moralidade e honradez. 2. Comprovada a violação positiva do contrato, com patente desrespeito ao seu conteúdo ético, cabível a responsabilização da parte ofensora. 3. No presente caso, a conduta omissiva perpetrada pelo recorrente acabou por resultar em vários transtornos para a autora, tanto de ordem material quanto na órbita de seus direitos da personalidade, notadamente, pela inclusão de seu nome em dívida ativa, além do ganho de pontos em sua carteira de habilitação e por multas de trânsito, sobre as quais não tinha mais responsabilidade. (...) 5. Negou-se provimento ao recurso. Por fim, encerrando a análise da jurisprudência, tem-se um julgado do Superior Tribunal de Justiça, tribunal de superposição sobre a temática de direito privado no Brasil. Ao analisar em sede de recurso, ação que tratava sobre a temática da quebra da boa-fé objetiva, bem como a violação positiva dos contratos, o STJ reconheceu o direito de consumidor que foi lesado pela violação dos princípios de cooperação, confiança e lealdade. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. SEGURO DE VIDA.NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL NÃO RECONHECIDA. RESCISÃO UNILATERAL DO CONTRATO. ABUSIVIDADE DA CLÁUSULA CONTRATUAL. SÚMULAS Nºs 5 E 7/STJ. QUEBRA DA BOA-FÉ OBJETIVA. PRECEDENTES. SÚMULA N° 83/ STJ. MANUTENÇÃO DA DECISÃO AGRAVADA. (...) 2. Conforme já decidido por esta Corte “a pretensão da seguradora de modificar abruptamente as condições do seguro, não renovando o ajuste anterior, ofende os princípios da boa fé objetiva, da cooperação, da confiança e da Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização lealdade que deve orientar a interpretação dos contratos que regulam relações de consumo. (...)” (REsp 1.073.595/MG, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, DJe 29/4/2011). Do julgado acima, podemos perceber que até mesmo a corte superior de justiça vem aplicando o entendimento por nós defendido, dando ampla margem de protagonismo ao princípio da boa-fé objetiva como genitor dos deveres laterais de confiança e lealdade, capazes de ensejar uma verdade inadimplência obrigacional. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a análise da temática empreendida nos tópicos acima, entendemos estar demonstrada a viabilidade da aplicação da violação positiva dos contratos como uma nova via de inadimplemento contratual. Os deveres laterais das relações obrigacionais alcançam todos os interesses conexos à execução do contrato, de forma que a lesão aos deveres genéricos de proteção, informação e cooperação – todos com gênesis na boa-fé objetiva – são os pilares da violação positiva contratual. A violação positiva, como um inadimplemento contratual com relação aos deveres secundários e anexos ao contrato que estão diretamente ligados ao dever obrigacional principal, poderá ocasionar até mesmo a resolução do contrato. Essa é a tese que defendemos, a qual encontra respaldo no código civil de 2002, um diploma normativo que auxiliou no avanço do direito civil, em especial por adotar a antropocentrizaçãoda legislação civil, com enfoque central no ser humano, diretamente naquilo que ele possui da mais importante: a sua essência, a sua dignidade. Dessa forma, o adimplemento dos pactos não se restringe apenas à satisfação da obrigação principal, mas exige também o cumprimento das obrigações laterais e anexas a todos os contra- Capa Sumário 131 tos, visando a coerência com a boa-fé objetiva, sob pena de provocar um inadimplemento em eventual violação. Embora não seja ainda objeto de consenso entre a doutrina, essa tese vem ganhando espaço não apenas nos tribunais ordinários, mas também nas cortes superiores, como no caso do STJ, o qual se manifestou pelo reconhecimento da mesma. REFERÊNCIAS ASSIS, Araken De. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR INADIMPLEMENTO. 3ª Edição, São Paulo: RT, 1999. 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Os métodos alternativos de solução de conflitos de interesses são procedimentos constitucionais e extrajudiciais, simples e objetivos, que visam restabelecer o equilíbrio jurídico e social. Esses métodos são especificadamente a Arbitragem, a Conciliação, a Mediação e a Negociação. O Objetivo do Trabalho é mencionar os principais aspectos ligados às formas alternativas de soluções de conflitos vinculados ao Direito Civil Constitucional Humanizado. A metodologia tem como base os métodos dedutivo, sistemático e qualitativo. A problemática está voltada a valorização do estudo das formas alternativas de soluções de conflitos vinculadas ao Direito Civil Constitucional Humanizado em que a resolução alternativa deve ser uma prática efetiva pela sociedade brasileira. Justifica-se na importância do tema para a sociedade atual, pois as formas alternativas de soluções de conflitos (arbitragem, conciliação, mediação e negociação) 9 Autor - Graduado no Curso de Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – UFCG e pesquisador do IDCC da UFPB. 10 Orientador – Professor com Mestrado da Universidade Federal de Campina Grande - UFCG. Capa Sumário 135 podem ser utilizadas para gerar uma consciência social da população, uma pacificação social, a diminuição do número de processos no Poder Judiciário, o empoderamento das partes e a solucionar a lide de forma rápida e menos burocrática. A Conclusão expõe que a forma alternativa de solução de conflito é relevante para a individualidade e para a coletividade e que a informação, a explicação, a reflexão e a ponderação são imprescindíveis para a convivência harmônica das pessoas no século XXI. PALAVRAS-CHAVE: Arbitragem. Conciliação. Direito Civil Constitucional. Mediação. Negociação. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho analisa as principais perspectivas da solução extrajudicial (ou também denominada de solução alternativa) de conflitos de interesse e do Direito Civil Constitucional Humanizado para que seja possível formar uma base de conhecimentos acerca da Arbitragem, da Conciliação, da Mediação e da Negociação. O objetivo geral do trabalho consiste em analisar a teoria do Direito Civil Constitucional Humanizado e as formas alternativas de soluções de conflitos mais precisamente a arbitragem, a conciliação, a mediação e a negociação com vista na conscientização dos seres humanos de que o estudo a respeito dessa temática é importante para a sociedade atual. O objetivo específico do trabalho insiste em desenvolver um posicionamento favorável a prática efetiva da resolução alternativa de conflitos para que a pacificação social, a ordem, a harmonia, a inclusão social, o empoderamento das pessoas e a justiça de todas as pessoas com todas as pessoas prevaleçam de forma célere, eficiente, duradoura, digna e humana. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização A metodologia está embasada no método dedutivo, no método sistemático e no método qualitativo que primeiro estabelece uma introdução ao estudo do Direito Civil Constitucional Humanizado para em seguida desenvolver sobre a Arbitragem, a Conciliação, a Mediação e a Negociação. A problemática do artigo consiste na constatação de que há uma crise no acesso à justiça por meio a jurisdição, nesse sentido, é fundamental desenvolver um conhecimento jurídico com vistas a oferecer a compreensão das formas alternativas de soluções de conflitos e do Direito Civil Constitucional. O que se espera é que o estudo seja útil para tornar possível a efetivação da resolução alternativa dos conflitos. Observa-se que a aplicação da conciliação e da mediação está prevista na resolução 125, 29 de novembro de 2010 do Conselho Nacional de Justiça e no Novo Código de Processo Civil. Essa aplicação visa a eficiência operacional, o acesso à Justiça, o empoderamento das partes e a responsabilidade social. Com fundamento no Direito Civil Constitucional Humanizado, a priori, é interessante que antes de buscar a solução do conflito através da jurisdição as partes façam 2 (duas) perguntas e aplique-as, sendo elas: ✓✓ O conflito pode ser resolvido pelas próprias partes através do acordo mútuo? ✓✓ O conflito pode ser resolvido pelos métodos alternativos? Se as respostas dessas duas perguntas forem “não”, então, é necessário buscar o Poder Judiciário para resolver o conflito de interesse através da sentença judicial feita pelo juiz natural. A justificativa funda-se na importância do tema para a sociedade atual, pois as formas alternativas de soluções de conflitos (arbitragem, conciliação, mediação e negociação) podem ser utilizadas para gerar uma consciência social da população, uma Capa Sumário 137 pacificação social, a diminuição do número de processos no Poder Judiciário, o empoderamento das partes e a solução da lide de forma rápida e menos burocrática (simples). Na atualidade, dados do Conselho Nacional de Justiça11, o acesso à justiça está em crise pelo Poder Judiciário, visto que em 2013 “tramitaram aproximadamente 95,14 milhões de processos”, desse valor, 70, por cento está congestionado. O Conselho Nacional de Justiça constatou que houve um crescimento de 3,4 por cento do número de processo comparado com o ano de 2012. O valor total gasto com o Poder Judiciário no ano de 2013 foi de aproximadamente 61,6 bilhões de reais com um crescimento de 1,5 por cento em relação ao ano de 2012. Esse valor gasto é equivalente a 1,3 por cento do Produto Interno Bruto nacional. Cada habitante no Brasil gastou em 2013 com o Poder Judiciário 306 reais e 35 centavos. Dessa forma, deve haver uma mudança cultural para com o acesso à justiça por meio da Jurisdição, pois esse meio de acesso à justiça é burocrático, é lento, é oneroso e consequentemente ineficaz. Nesse sentido, é interessante o estudo teórico e prático sobre as formas alternativas de soluções de conflitos interesses para com o acesso à justiça. O texto é estruturado da seguinte forma: DO DIREITO CIVIL HUMANIZADO que desenvolve sobre a origem, a definição, os objetivos e a atual classificação do respectivo Direito; DA EDUCAÇÃO EM FORMAS ALTERNATIVAS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS que dispõe sobre a educação em arbitragem, em conciliação, em mediação e em negociação; DA INTRODUÇÃO ÀS FORMAS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS que estabelece de forma breve sobre a autotutela, a jurisdição, a arbitragem, a conciliação, a mediação e a negociação; DA ARBITRAGEM que desenvolve sobre o procedimento arbitral; DA CONCILIAÇÃO que disciplina sobre o procedimento conciliatório; DA MEDIAÇÂO que trata sobre o procedimento da mediação; 11 Disponível em: ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf. Disponível em: 13.01.2015 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização DA NEGOCIAÇÃO que descreve sobre o procedimento negocial. 2 DO DIREITO CIVIL CONSTITUCIONAL HUMANIZADO Ao começar a estudar sobre o Direito Civil Constitucional Humanizado e as Formas Alternativas de Resoluções de Conflitos admitidas por ele, surge a primeira pergunta: o que é o Direito? Nesse sentido, em linhas gerais, o Direito consiste no conjunto de normas jurídicas que regulam a conduta humana para a vida harmônica em sociedade. O Direito sofre modificação ao longo do tempo, devido ao processo histórico, cultural, político, educacional, econômico, financeiro, enfim, das necessidades sociais. Nesse caso, constata-se que o direito é mutável, pois ele acompanha o desenvolvimento da sociedade e esta se beneficia com o progresso do Direito. Esse benefício acontece, por exemplo, com a inclusão social de pessoas que foram historicamente prejudicadas pela coletividade dominante. Conceituando a Ciência do Direito, o jurista Rizzatto Nunes (2009, p. 49) alude que: “é uma ciência de investigação de condutas que têm em vista um ‘dever-ser’ jurídico, isto é, a Ciência do Direito investiga e estuda as normas jurídicas. Estas prescrevem aos indivíduos certas regras de conduta que devem ser obedecidas”. A Ciência do Direito ou Ciências Jurídicas consiste no estudo das normas jurídicas e dos aspectos que preceituam o comportamento do indivíduo para a vida na sociedade. São exemplos de normas jurídicas: a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o Código Civil de 2002, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Lei de Introdução as Normas do Direito Brasileiro, o Código de Defesa do Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o Estatuto do Idoso, o Estatuto da Cidade, o Código de Processo Civil, a Lei da Arbitragem, o Código Penal, a Lei de Diretri- Capa Sumário 139 zes e Bases da Educação Nacional, entre outras. Há outros aspectos que preceituam o comportamento humano que são: os costumes, as doutrinas, as jurisprudências, as súmulas, entre outros. Ao estudar a Ciência do Direito é interessante que se faça uma pesquisa e uma analise sistemática dos Princípios do Direito Constitucional Humanizado, sendo eles: dignidade da pessoa humana, liberdade, igualdade, fraternidade, razoabilidade, proporcionalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, eficiência, motivação, publicidade, legalidade, honestidade, função social, responsabilidade social; desenvolvimento sustentável, cooperação entre os povos para o progresso da humanidade, solução pacifica dos conflitos, defesa da paz, imparcialidade, autonomia de vontade, segurança jurídica, entre outros. Segundo Fiuza (2010, p. 1): Se o Direito é fator de adaptação social, surgido da necessidade de ordem, justiça e segurança, caso a natureza humana atingisse nível supremo de perfeição, sem dúvida alguma o Direito tenderia a desaparecer. Em poucas palavras, o Direito não corresponde às necessidades individuais de cada pessoa. Corresponde sim a uma tendência da coletividade de paz, ordem e bem comum. O Direito enquanto fator de adaptação social surge da necessidade de ordem, de justiça e de segurança da coletividade para que as pessoas convivam em paz e harmonia. Ele (Direito) acompanha as mudanças sociais em consonância com a realidade dos povos, sendo fundamental para a convivência pacífica da coletividade, para a ordem e bem comum, assim, o cidadão expressa no convívio social o seu lado humano e solidário. Um exemplo de acompanhamento da norma jurídica a sociedade é a chamada mutação constitucional que visa à mudança do sentido informa de um dispositivo constitucional com vista na adequação humaniza- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização da dele com a sociedade atual. A ordem jurídica brasileira deve assegurar, por exemplo, o Direito Civil Constitucional Humanizado ao acesso à justiça pela via alternativa no Estado Democrático de Direito, sendo esse acesso à justiça um Direito Fundamental. Dessa forma, a Constituição Cidadã é a Norma Maior do ordenamento jurídico na qual estabelece normas e princípios que visam à efetividade dos Direito Fundamentais. A efetividade do Direito Civil Constitucional Humanizado só pode acontecer se os cidadãos entender e valorizar, a priori, o conceito de Direito Civil Constitucional Humanizado para que, a posteriori, aconteça a aplicação da Norma Jurídica ao caso concreto com vista na efetividade normativa. Esse caminho teórico-prático é o que deve ser seguido pelo cientista jurídico. Nader (2006, p. 74) expressa o seguinte: O conceito do Direito é de suma importância não apenas para a teoria, mas também para as atividades práticas, que envolvem a interpretação das regras jurídicas e sua aplicação aos casos concretos. O conceito é um valioso instrumento do raciocínio jurídico. Enquanto em outras áreas do saber o conceito da ciência não é essencial às práticas correspondentes, ao cultor do Direito assume caráter fundamental. Quando o jurista articula um processo argumentativo recorre, necessariamente, a alguns paradigmas e o principal deles é o conceito do Direito. Diante de certas questões o jurista deve buscar no próprio conceito de Jus o grande referencial que lhe proporcionará o encaminhamento das soluções buscadas. Considera-se que o Direito é um instrumento que proporciona uma segurança jurídica na condução de soluções práticas. Saber sobre a lógica do Direito Civil Constitucional Humanizado é interessante e fundamental para a racionalidade jurídica, consequentemente, para que os profissionais da área desenvolvam os Capa Sumário 141 entendimentos, os argumentos, as interpretações e os apliquem com segurança no contexto jurídico. Diante desse contexto, surge o segundo questionamento: quais os objetivos do Direito Civil Constitucional Humanizado? Os objetivos principais do Direito Civil Constitucional Humanizado são: o objetivo ideal que é o da justiça; os objetivos reais, sendo eles, manter a paz, a ordem e a harmonia da sociedade; o objetivo inclusivo que é a inclusão social das “minorias” (vulnerável e hipossuficiente) e a consequência desses objetivos (ideal, reais e inclusivo) faz surgir o de garantir a coexistência de todos os seres humanos, ou seja, um convívio social harmonioso, sendo, para tanto, imprescindível a educação para a civilidade. Em outras palavras, o objetivo primordial é promover, através do Estado, a efetivação do Direito Civil Constitucional Humanizado de todos (princípio da liberdade), entre todos (princípio da igualdade), com todos (princípio da fraternidade). Por exemplo, os seres humanos são livres parar fazer o que desejar com vista no princípio da autonomia de vontade previsto no artigo 5º, inciso II, da CFRB/88, porém essa liberdade é relativizada, pois estabelece limites (proteção da dignidade da pessoa humana) com vista da não violação de um bem jurídico de outrem. O direito à liberdade, o direito à igualdade, o direito à fraternidade, o direito à inclusão social, o direito ao desenvolvimento sustentável, o direito à paz social, assim como, o direito à autonomia de vontade são exemplos de Direito Civil Constitucional Humanizado, pois há a proteção de dispositivos no Código Civil de 2002, na Constituição Cidadã de 1988 e na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. O Direito vem se tornando cada vez mais escrito, codificado, e o principal motivo está sendo o fortalecimento do Estado. As regras jurídicas precisam representar segurança jurídica, de modo que o representante do povo (Poder Legislativo) estabeleça leis de acordo com a sociedade vigente. Essas leis devem respeitar os Di- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização reitos Humanos, o Direito Constitucional e o Direito Civil. As Leis devem ser interpretadas de forma sistemática, pois o Direito é um conjunto de normas jurídicas que visa fazer com que a justiça social prevaleça, por exemplo, as normas jurídicas “Civis-Constitucionais-Humanas” são normas de caráter essencial para que a justiça social prepondere perante toda a sociedade. Ressalva-se que a doutrina estabelece algumas Divisões didáticas e pedagógicas do Direito, por exemplo, o Direito é dividido em Direito Público e Direito Privado (divisão clássica). Esse entendimento denominado de clássico. Já o entendimento moderno do Direito consiste na união sistemática do Direito Civil, do Direito Constitucional e dos Direitos Humanos em que forma o Direito “Civil Constitucional Humanizado”. O Direito Civil Constitucional Humanizado é o Direito doutrinário (entendimento de doutrinadores modernos) em que há uma relação sistemática do Direito Humano que tem por objeto o estudo da Declaração Universal dos Direitos Humanos (por exemplo), com o Direito Constitucional que tem por objeto principal de estudo a Constituição Federal 1988 com o Direito Civil que tem como objeto principal de estudo o Código Civil de 2002. Por exemplo: o código civil de 2002 deve ser interpretado à luz da Constituição Federal de 1988 e à luz da Declaração Universal dos Direito Humanos. Para Tartuce (2014, p. 38): O Direito Civil Constitucional, como mudança de postura, representa uma atitude bem pensada, que tem contribuído para a evolução do pensamento privado, para a evolução dos civilistas contemporâneos e para um sábio diálogo entre os juristas das mais diversas áreas. Essa inovação reside no fato de que há uma inversão da forma de interação dos dois ramos do direito – o público e o privado -, interpretando o Código Civil segundo a Constituição Federal em substituição do que se costumava fazer, insto é, exatamente o inverso. Capa Sumário 143 Nesse sentido, o Direito Civil Constitucional representa uma mudança (inovação) de pensamento jurídico, ou melhor, é uma evolução do pensamento jurídico em que há a unicidade do Direito no qual o Código Civil é interpretado sistematicamente de acordo com a Constituição Federal. Isso só não acontece com o Código Civil, mas com o Código Penal, com o Código de Defesa do Consumidor, com o Código de Processo Civil, com o Código Tributário Nacional, com o Código de Trânsito Nacional, com a Legislação Trabalhista e assim por diante. Tartuce (2014, p. 38) ressalva que: Deve ser feita a ressalva que, por tal interação, o Direito Civil não deixará de ser Direito Civil, e o Direito Constitucional não deixará de ser Direito Constitucional. O Direito Civil Constitucional nada mais é do que um novo caminho metodológico, que procura analisar os institutos privados a partir da Constituição, e, eventualmente, os mecanismos constitucionais a partir do Código Civil e da legislação infraconstitucional, em uma análise em mão dupla. O que se pretende defender é um ponto de vista de harmo- nia entre o Direito Civil e o Direito Constitucional, pois se sabe que tanto o primeiro como o segundo são ramos de direito dotado de autonomia. Essa autonomia dos ramos do Direito se faz no campo acadêmico, pois como se sabe o Direito é uno e é indivisível. Nesse sentido, ao analisar o Código Civil o cientista jurídico deve analisar também a Constituição Federal. Lenza (2014, p. 64) disciplina que: Sob essa perspectiva, especialmente diante do princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil e princípio-matriz de todos os direitos fundamentais (art.1.º, da CF/88), parece mais adequado, então, falar em um direito Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização civil-constitucional, estudando o direito civil à luz das regras constitucionais e podendo, inclusive, em muitos casos, reconhecer a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas [...]. Nessa perspectiva, em linhas gerais, com base no princípio da dignidade da pessoa humana pode ser estabelecida uma evolução histórica: primeiro surgiu o estudo do Direito Civil Patrimonial, segundo o estudo do Direito Civil Constitucional e terceiro o estudo do “Direito Civil Constitucional Humanizado”. O Direito Civil Constitucional tem como origem o Direito Comparado Italiano. Só que o estudo do Direito Civil Constitucional no Brasil é dotado de autonomia em que está sendo pesquisado por diversos pesquisadores jurídicos no Brasil. A Humanização do Direito Civil Constitucional (Direito Civil Constitucional à luz dos Direitos Humanos) está sendo pesquisado com intensidade e expansão no Projeto de Pesquisa do IDCC – Instituto de Direito Civil Constitucional da UFPB. Em síntese, a teoria do “Direito Civil Constitucional Humanizado” é definida como sendo a “evolução” do Direito Civil Constitucional à luz dos Direitos Humanos em que há a valorização da proteção humana, há proteção das minorias e há proteção das minorias hipossuficientes (dos excluídos socialmente). Em linhas, gerais, a finalidade do Direito Civil Constitucional Humanizado consiste em resgatar a ética dos Direitos Humanos, ou seja, a finalidade da humanização do Direito Civil Constitucional é proporcionar a inclusão dos cidadãos excluídos socialmente. 3 DA EDUCAÇÃO EM FORMA ALTERNATIVA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS A Educação consiste no processo contínuo, sistemático, didático e pedagógico no qual são ensinados, aprendidos, pondera- Capa Sumário 145 dos e refletidos os valores da vida para que a convivência harmônica e o desenvolvimento da sociedade prevaleçam. O artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988, prevê que: “a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. Os objetivos da Educação, conforme o mencionado dispositivo (art. 205) da Constituição Federal são o pleno desenvolvimento da pessoa, o preparo das pessoas para o exercício da cidadania e a qualificação dos indivíduos para o trabalho. A Educação em Direito ou também denominada de Educação Jurídica é a que visa ensinar, estudar e preparar os cidadãos para que possam conhecer, exercer e cobrar os seus direitos e deveres. Segundo Nader (2006, p. 57), expondo a respeito da educação e das leis: O progresso de uma sociedade pressupõe o seu desenvolvimento no campo técnico e cientifico. É através da educação que se pode dotar o corpo social de um status intelectual, capaz de promover a superação de seus principais problemas. Para assegurar o conhecimento, a cultura, a pesquisa, o Estado utiliza-se de numerosas leis que organizam a educação em todos os seus níveis. Os desenvolvimentos da educação e da ciência estão intrinsecamente ligados ao desenvolvimento da sociedade. Se a educação e a ciência são de qualidade, a sociedade é desenvolvida. O estudo do Direito é importante em todos os níveis da educação, pois ele (Direito) consiste no conjunto de normas e princípios que visa manter a paz, a justiça e a harmonia em meio a toda sociedade. Todos devem conhecer as regras de condutas e as regras de valores estabelecidas pelo Direito Civil Constitucional Humanizado para que se possa por em prática os comportamentos legais. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Ressalva que as condutas realizadas de acordo com a moral e com a ética é uma conduta digna. Nesse sentido, condutas dignas são condutas em consonância com o Direito Civil Constitucional Humanizado. Todos têm direito ao acesso à justiça, conforme o artigo quinto, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988 no qual descreve que: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” e todos têm o dever de respeitar as decisões das autoridades competentes. Lembrando que as decisões podem ser recorridas desde que, elas não transitaram em julgado. O objetivo ideal do Direito Civil Constitucional Humanizado é a Justiça, sendo que esta (justiça) só será alcançada através da análise e aplicação do Direito ao caso concreto, materializando, desse modo, a solução justa do conflito. Para que a justiça seja feita é necessário que haja a efetividade de todos os Direitos Fundamentais, as pessoas devem viver no Estado Democrático e o exercício da cidadania deve ser para todos. A educação em Direito (gênero) visa disciplinar o estudo das normas jurídicas que regulamentam a conduta humana. Os métodos alternativos de solução de conflito também são estudados no Direito Civil, por exemplo, fundamentado no princípio da autonomia de vontade em que as partes escolhem a forma de resolução; no Direito Processo Civil, por exemplo, em que estabelece os tipos de instrumentalização das formas de resolução de conflito; no Direito Constitucional, por exemplo, no direito ao acesso a justiça e nos Direitos Humanos, por exemplo, no direito ao julgamento justo à luz dos Direitos Humanos. Em regra (visão clássica), é por meio da Jurisdição que a solução da controvérsia jurídica é feita no Direito Brasileiro, mas o referido Direito autoriza as formas alternativas (Arbitragem, Conciliação, Mediação e Negociação) de resoluções de conflitos de interesses. Estudar sobre as formas alternativas de soluções de conflitos é relevante devido ao fato exemplificativo de que o nosso Po- Capa Sumário 147 der Judiciário está com muitos processos e a consequência disso é esse Poder não ter a capacidade de resolver todos os conflitos pela jurisdição em tempo razoável. A resolução do conflito pela via judicial (jurisdição) demora demais e, às vezes, até é injusta pela rapidez dos despachos sem total atenção da autoridade competente, esses casos são consequências da grande quantidade da demanda (processo). As formas alternativas de soluções de conflitos não são feitas pelo Poder Judiciário, pois em regra a resolução de conflito pela via judicial é realizada através da jurisdição. É apropriado lembrar que isso está mudando, pois o Poder Judiciário já está realizado a conciliação e a mediação como métodos de resolução de conflito. Dessa forma, em breve as formas alternativas vão ser tratadas como “formas complementares” à jurisdição do Poder Judiciário. Em relação à educação em formas alternativas de soluções de conflitos há um projeto de extensão e pesquisa na UFPB denominado de MEDIAC que estuda sobre a Mediação, há na UFPB uma disciplina curricular do curso de Direito que estuda sobre a Arbitragem e a Mediação, há uma Pós-graduação no Unipê que estuda a Arbitragem e a Mediação, há o estudo teórico e prático no Centro de Conciliação e Mediação da UFCG campus Sousa que é parceira do Tribunal de Justiça do Estado que trata sobre a conciliação e mediação; entre outros. O Poder Judiciário autoriza que a sociedade (autonomia de vontade) faça a deliberação de suas controvérsias através de procedimentos mais simples (menos burocráticos) e rápidos que são eles: a Arbitragem; a Conciliação; a Mediação; e a Negociação. Um exemplo didático que é bem parecido com a realidade jurídica brasileira é que um processo tramitando no Poder Judiciário no procedimento ordinário demora em média 6 anos para ser concluído. Já com adoção de uma das formas alternativas de soluções de conflitos esse intervalo de tempo poderá ser reduzido, durando cerca de 6 meses. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização O estudo das formas alternativas de soluções de conflitos de interesses é necessário, visto que as pessoas podem entrar numa controvérsia a qualquer tempo e os métodos de resoluções alternativos ou também chamados de extrajudiciais são mais simples e rápidos que o feito propriamente pelo Poder Judiciário. Na atualidade, grandes partes das divergências estão sendo resolvidas perante o juiz de direito ou juiz federal (através do exercício da jurisdição) e isso acaba gerando uma grande quantidade de processos e consequentemente deixa o Poder Judiciário congestionado. Vale ressaltar que para desafogar os processos se pode utilizar da Arbitragem, da Conciliação, da Mediação e da Negociação que são métodos alternativos que têm por finalidade retornar o equilíbrio social. O estudo dos métodos alternativos de soluções de conflitos é imprescindível para a sociedade na qual deve ser uma disciplina autônoma no saber jurídico para que com isso a própria sociedade realize a solução legal e legitima de determinados conflitos. Há Universidades que já possui em sua grade curricular a disciplina autônoma “Arbitragem e Mediação”. Porém “é” interessante que os representantes do povo (agentes políticos) criem uma lei de acordo com o Direito Civil Constitucional Humanizado na qual determinasse a obrigatoriedade do estudo teórico e prático das formas alternativas de soluções de conflitos nas Universidades de Direito. A Disciplina de “forma alternativa de solução de conflito” “deve” ser obrigatória nas grades curriculares do curso de Direito e também no ensino básico com vista no estudo aprofundado e sistemático dos métodos alternativos para que a própria sociedade consiga resolver certos conflitos. A consequência da utilização das formas alternativas de soluções de conflitos é uma transformação, sem precedentes, no âmbito do Poder Judiciário, pois diminuiria o número de processos esperando solução, quando muitos destes podem ser resolvi- Capa Sumário 149 dos pacificamente no âmbito dos próprios interessados. É óbvio que o que se pretende ao dizer isto não é afastar o Poder Judiciário de sua prerrogativa de aplicar o Direito ao caso concreto, mas beneficiar a todos, magistrados e sociedade, com decisões justas e importantes. As instituições públicas e privadas podem criar Centro de Formas Alternativas de Soluções de Conflitos. Todavia “é” significativo e constitucional que em todos os Estados e no Distrito Federal possuam um “Tribunal em Formas Alternativas de Soluções de Conflitos” para que com isso as divergências das pessoas fossem resolvidas com celeridade e simplicidade. 4 DA INTRODUÇÃO ÀS FORMAS DE SOLUÇÕES DE CONFLITOS O conflito de interesse, a lide ou também conhecido como litígio consiste na pretensão do autor e na resistência do réu, ou seja, na aspiração de uma parte - autor - em ganhar a causa com base nos fundamentos e pedidos admitidos pelo Direito e no anseio (resistência) da outra parte - réu - em anular, inibir ou em melhor desenvolver os fundamentos e os pedidos para que o autor não obtenha êxito na causa. O conflito surge por ações ou omissões humanas nas quais se viola (prática de um ato ilícito disciplinado no artigo 187 do CC/02) um bem jurídico protegido pelo Estado e de alguma forma causar algum dano à outra pessoa, podendo esse dano ser patrimonial, moral ou estético. Esses tipos de danos podem ser analisados separadamente ou conjuntamente vai depender da conduta humana. São exemplos de ações ou omissões humanas que causam danos a outrem: falta de diálogo; culpar as outras pessoas sem pensar nas consequências; falar mal ou de modo violento; agredir outra pessoa; não saber escutar; afirmar algo sem pensar; “fofo- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização car” de outras pessoas; não saber dizer a conjunção negativa (não) no momento que for necessário; falta de tolerância; problemas no relacionamento onde não acontece o diálogo; decepção; mentiras; falta de confiança; ambição; inveja; abandono; danificar o patrimônio do outro; causar prejuízo financeiro ao outro; falta de Deus nos pensamentos e nas práticas dos atos; entre outros. No Estado Democrático de Direito onde as condutas humanas estão prevista no ordenamento jurídico pode ser mencionado que determinada ação ou omissão do ser humano pode gerar consequências jurídicas que são legais ou ilegais. As consequências legais são a que o Direito autoriza ou não proíbe, já as consequências jurídicas ilegais (ato ilícito) são a que o Direito proíbe no caso do Direito Civil Constitucional Humanizado, por exemplo, estabelecendo a sua ilicitude ou ilegitimidade. Há três tipos ou espécies de métodos de soluções de conflitos, sendo eles: método em que as próprias partes são quem escolhem (autonomia de vontade), sendo uma faculdade dos interessados, que é conhecido como Formas Alternativas de soluções de conflitos; método que em regra é proibido pelo Direito Civil Constitucional Humanizado, só sendo admitido em alguns casos específicos (exceções) que é a Autodefesa ou Autotutela, sendo conhecido como justiça com as próprias mãos; método Jurisdicional em que é a regra do nosso ordenamento jurídico brasileiro na qual o conflito é decidido através da sentença do Estado-juiz. Segundo Wambier e Talamini (2010, p. 93): Os métodos extrajudiciais de solução de conflitos, também denominados pela doutrina de equivalentes jurisdicionais, são aqueles, como o próprio nome denuncia, que prescindem da atuação do Poder Judiciário para a que o litígio entre as partes seja dirimido. Os métodos extrajudiciais, alternativos, também conheci- Capa Sumário 151 dos como equivalentes jurisdicionais de solução de conflito, não são feitos diretamente pelo Poder Judiciário, mas esse Poder possibilita (autoriza) os exercícios dos métodos com o intuito da solução extrajudicial da controvérsia jurídica. Os métodos alternativos (arbitragem, mediação e conciliação), em regra, são realizados por particulares neutros, capazes e confiáveis nos quais se configuram como negócio jurídico em que as partes juntamente com o terceiro imparcial devem estabelecer as regras aplicáveis na solução do conflito, desde que se respeite o Direito Civil Constitucional Humanizado. Já a Negociação é um pouco diferente, pois é o método extrajudicial em que as próprias partes são quem resolvem a divergência. Em relação a autotutela Wambier e Talamini (2010, p. 93) aludem que: Este método produz uma solução egoísta e parcial do conflito, uma vez que essa é resultante tão somente da imposição da vontade de apenas um dos litigantes. Justamente por isso normalmente não é permitida nos ordenamentos jurídicos civilizados; pelo contrário, muitas vezes é tipificada como crime, como ocorre no Brasil, por exemplo. A autotutela é o método que prevalece a vontade de uma das partes (não respeita a relação jurídica horizontal do Direito Civil nem a igualdade do Direito Constitucional), geralmente a do mais forte. Por esse fato é que é um método de solução de conflito egoísta e parcial. O Direito Civil Constitucional Humanizado proíbe a autodefesa, só que essa proibição é relativa. Dessa forma, esse método pode ser aplicado como exceção em alguns casos previsto na legislação, sendo eles: a legítima defesa da propriedade (art. 1.210, parágrafo 1ª, CC-02), o direito de cortar ramos, galhos e raízes de árvores limítrofes que ultrapassem os limites do terreno (art. 1.283, CC-02); o penhor legal (art. 1.434, CC-02); a prisão em Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização flagrante (art. 301, CPP), entre outras poucas exceções. A jurisdição consiste no meio constitucionalmente “obrigatório” para resolver o conflito de interesses. Se houver um conflito as partes “devem” procurar o Poder Judiciário para que o juiz, em regra, aplique o Direito ao caso concreto com vista à solução do conflito. Etimologicamente a palavra Jurisdição é de origem latina que significa “dizer o Direito”, dessa forma, o juiz irá “dizer o direito” por meio da sentença judicial. Cintra, Grinover e Dinamarco (2010, p. 150) mencionam que a jurisdição: É uma função do Estado e mesmo monopólio estatal, já foi dito: resta agora, a propósito, dizer que a jurisdição é, ao mesmo tempo, poder, função e atividade. Como poder, é manifestação do poder estatal, conceituando como capacidade de decidir imperativamente e impor decisões. Como função, expressa o encargo que têm os órgãos estatais de promover a pacificação de conflitos interindividuais, mediante a realização do direito justo e através do processo. E como atividade ela é o complexo de atos do juiz no processo, exercendo o poder e cumprindo a função que a lei lhe comete. O poder, a função e a atividade somente transparecem legitimamente através do processo devidamente estruturado (devido processo legal). As três palavras interessantes para saber o que é jurisdição, são: “poder”, “função” e “atividade”. O “poder” é pelo fato de a jurisdição emanar da soberania do Estado Constitucional onde é o instrumento competente para resolver os litígios apresentados ao Poder Judiciário. A “função” é porque é obrigação do Estado-juiz em realizar a jurisdição na qual o juiz tem por atribuição jurídica e social a de analisar e de decidir sobre o conflito apresentado. É “atividade” pelo motivo de que a jurisdição é a instrumentalização de uma sequência jurídica (legal) e lógica de atos processuais. Capa Sumário 153 5 DA ARBITRAGEM Conforme Garcez (2007, p. 16): “arbitragens historicamente famosas desse tipo foram as Anglo-Americanas, realizadas entre o Reino Unido e os Estado Unidos, após este ter declarado sua independência, em 1776, servindo para solucionar conflitos comerciais entre ambas as nações”. Os Estados Unidos eram colônia do Reino Unido, porém, através de muita luta, em 1776, aquele país conseguiu a tão sonhada e conquistada independência e para solucionar o conflito em relação ao comércio das Nações citadas foi realizado o método da Arbitragem. A arbitragem foi utilizada para separar o território que hoje é o Brasil, em 1494. Essa separação foi realizada pelo conhecido Tratado de Tordesilhas, segundo o qual Portugal ficou com o lado leste e a Espanha ficou com o lado oeste, sendo árbitro imparcial o papa Alexandre VI. A Lei que rege a Arbitragem na sociedade brasileira atual é a Lei de número 9.307, de 23 de setembro de 1996, conhecida como Lei da Arbitragem brasileira, sendo composta por 44 artigos. Quanto à constitucionalidade da Arbitragem Wambier e Talamini (2010, p. 94) expõem: “a arbitragem, por se tratar de opção que deva ser feita necessária e exclusivamente pelos próprios interessados, em casos hoje previstos na lei, não implica violação ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional (art. 5ª, XXXV, da CF- 1988)”. O procedimento da arbitragem é um método constitucional de solução alternativo que os particulares são quem procuram a realização dele, ou seja, as partes são quem buscam resolver os seus conflitos de direito patrimonial disponível através do juiz arbitral imparcial, confiável e capaz. A solução pela arbitragem não ocasiona na proibição da resolução pelo Poder Judiciário, pois as partes são quem escolhem se querem resolver o conflito de direito patrimonial disponível pela Arbitragem ou pela Jurisdição (Poder Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Judiciário). O Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a Lei da Arbitragem em 12 de dezembro de 2001 no qual entendeu que a referida lei é um avanço na regulamentação da referida matéria. Em geral, diante da possibilidade de escolha que as partes possuem para resolver o seu conflito de interesse de direito patrimonial disponível é que a Arbitragem é constitucional. Carmona (2009, p. 14) conceitua a arbitragem como sendo: “uma técnica para solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada, decidindo com base nesta convenção, sem intervenção do Estado, sendo a decisão destinada a assumir eficácia de sentença judicial”. A arbitragem pode ser chamada de técnica, método ou procedimento de solução de controvérsias jurídicas, na qual as partes escolhem uma pessoa - particular ou uma convenção (instituição) privada - para solucionar a questão jurídica apresentada por elas que deve ser de direito patrimonial disponível. A arbitragem tem natureza de uma forma “heterocompositiva” particular de resolução de conflitos, na qual um terceiro capaz, confiável e imparcial é selecionado pelas partes para decidir o conflito de direito patrimonial disponível através da sentença arbitral que produz os mesmos efeitos da sentença realizada por um juiz natural do Poder Judiciário. Se for levada em conta a natureza arbitral pelo fato de a arbitragem ser um meio privado de solução de conflitos, a natureza é privada (exemplificado analogicamente na teoria clássica como sendo do Direito Civil); já, se partir da idéia de que a arbitragem funda-se na prestação da solução do conflito de interesses que é um serviço público, é de natureza pública (exemplificado analogicamente na teoria clássica como sendo do Direito Constitucional). Capa Sumário 155 Levando em conta a ponderação racional e jurídica, a natureza arbitral quanto ao meio é privado, pois é feita por um particular (Direito Civil); agora quanto à prestação do serviço público é pública (Direito Constitucional), porque a solução do conflito tem como caráter ser de função pública. Nesses termos, é estabelecido uma Natureza Arbitral “Mista” (Direito Civil Constitucional Humanizado), desde que o entendimento a respeito do caráter privado e público seja alcançado. Rocha (2007, p. 88) descrevendo sobre elementos essenciais da arbitragem menciona que: A definição supra permite deduzir os quatro elementos essenciais da arbitragem, a saber: a arbitragem é forma de exercício da função jurisdicional do Estado por árbitros privados. Por outras palavras, a arbitragem é um sistema privado de resolução de litígios com o mesmo valor do judiciário, que é o sistema estatal de resolução de conflitos; a escolha do árbitro ou árbitros pela partes, que é seu traço mais saliente, pois serve para distingui-la do sistema judiciário, em que o juiz é imposto às partes pelo Estado; o tipo de conflito que pode ser decidido pela arbitragem, isto é, os conflitos sobre direitos patrimoniais disponíveis; os efeitos jurídicos produzidos pelas decisões dos árbitros, iguais aos das sentenças dos órgãos do Poder Judiciário, o que significa dizer que os efeitos da sentença arbitral são protegidos pela coisa julgada, que torna definitivos. Os elementos essenciais da arbitragem estão de acordo com os fundamentos do Direito Civil Constitucional Humanizado, pois: é um método alternativo e privado de solução de conflito; a escolha do juiz arbitral depende da vontade das partes; o tipo de conflito resolvido pela arbitragem é o direito patrimonial disponível; os efeitos da sentença arbitral equiparam aos efeitos do juiz de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização direito, fazendo coisa julgada formal e material, na qual não cabe recurso. O objetivo da arbitragem é a solução do conflito através do terceiro imparcial na qual as partes de vontade própria aceitam essa técnica para resolver os litígios de direito patrimonial disponível em que a justiça social deve ser alcançada. As partes escolhem o juiz arbitral ou os árbitros em número impar, devido ao fato de ser mais prático, ágil e fácil, mas eles também podem escolher em número par. O juiz árbitro pode pedir as partes um adiantamento, para fins de despesas e diligencia se ele julgar necessário. Para firmar o Compromisso da Arbitragem deve haver no documento de intimação das partes: o dia, a hora e o local da audiência. Se no caso da arbitragem uma das partes se recusar a fazê-la, a outra parte poderá requerer ao Poder Judiciário uma audiência especial para fazer a conciliação, se está não for aceita o juiz de direito poderá indicar o procedimento arbitral. A ausência do autor, sem justo motivo, perante o juiz na audiência especial implica na extinção do processo sem resolução do mérito; já em caso de ausência do réu, o juiz ouvirá o autor e poderá indicar o procedimento arbitral. O artigo 18 da Lei da Arbitragem determina que: “o árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”. Em relação à aplicação da sentença o árbitro tem autonomia e deve aplicar o Direito ao caso concreto solucionando os conflitos de direito patrimonial disponível. A sentença arbitral será feita no prazo estabelecido entre as parte no Contrato Arbitral e na Cláusula Compromissória, caso não exista prazo, o normal é o lapso temporal de 6 meses. A decisão será proferida (feita) por escrito e será dada uma cópia a cada uma das partes. Os requisitos obrigatórios da sentença são: relatório; fundamento da decisão; dispositivo, data e local da sentença. Nesta (sentença) ainda vai ter o valor dos custos com Capa Sumário 157 o procedimento arbitral. Caso a parte queira anular a sentença, ela somente poderá fazer isso no prazo de até 90 dias contados da sentença proferida pelo juiz arbitral. A sentença arbitral é nula se for: nulo o acordo; decorreu de quem não podia ser arbitro; não tiver os requisitos do artigo vinte e seis da Lei da Arbitragem (requisitos obrigatórios na sentença: relatório; fundamentos da decisão; o dispositivo com prazos e questão abordada, e a data e lugar da sentença); for articulada fora dos limites da Convenção de Arbitragem; não decidir toda a lide contida no procedimento da Arbitragem; se for confirmado que foi adulterada; se foi feito fora do prazo determinado; e se não for respeitado os princípios do artigo 21 da Lei da Arbitragem (a Arbitragem deverá corresponder ao que foi acordado entre as partes, as regras estabelecidas no contrato e deverão ser respeitados os princípios constitucionais do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do juiz arbitral e da franca certificação e ainda são facultado às partes a presença de um advogado). Esses mencionados dispositivos estão previstos nos respectivos artigos 32, 26 e 21 da Lei de número 9.307 de 1996, denominada de Lei da Arbitragem Brasileira. No âmbito internacional, conforme o artigo 34 da Lei da Arbitragem: “a sentença arbitral estrangeira será reconhecida ou executada no Brasil de conformidade com os tratados internacionais com eficácia no ordenamento interno e, na sua ausência, estritamente de acordo com os termos desta lei”. A sentença arbitral estrangeira é aquela que é feita fora do território nacional, devendo respeitar: as Leis Nacionais; os Tratados Internacionais e a Legislação do outro país. Para que a sentença internacional de arbitragem tenha validade no território nacional é necessária à homologação do Supremo Tribunal de Justiça – STJ, conforme o artigo 105, inciso I, alínea i, da Constituição Federal de 1988 que determina: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I - processar e julgar, originariamente: [...] i) a homologação de sentenças estrangeiras e a concessão de exequatur às cartas rogatórias; A Lei da Arbitragem estabelece que a homologação de sentença estrangeira deve ser feita pelo Supremo Tribunal Federal – STF, pois no tempo em que essa Lei foi publicada (1996) quem homologava era o referido Supremo. Porém com o advento da Emenda Constitucional 45 de 2004 o texto constitucional foi modificado passando a competência da homologação de sentença estrangeira ao Supremo Tribunal de Justiça – STJ. No aspecto da homologação da sentença estrangeira pelo STF a Lei da Arbitragem está ultrapassada. Observa-se que esse dispositivo da Lei da Arbitragem só será retirado por outra lei. 6 DA CONCILIAÇÃO Antes de estabelecer o conceito de conciliação é interessante saber o significado da palavra “conciliar”. Segundo Gorczevski (2007, p. 78): Conciliar significa compor ânimos em diferença. Supõe um ajuste entre interesses contrapostos; é a harmonia estabelecida entre duas ou mais pessoas com posições diferentes. Assim estamos também ante uma forma autocompositiva de resolução de conflitos. A palavra conciliar tem relação com a harmonia de um com o outro ou também de uns com outros com o objetivo da convivência pacífica em sociedade. As pessoas pensam diferentes, mas esse pensamento não pode prejudicar o outro. É imprescindível ponderar as atitudes antes de se fazer algo. É necessária atitude Capa Sumário 159 preventiva para que com isso o conflito não aconteça e se no caso ocorrer à divergência, por motivo excepcional, é necessário ponderação e reflexão para que ele (o conflito) não se agrave. Segundo Almeida (2011, p. 5) é a “modalidade de solução das lides por obra dos próprios litigantes, quando um deles, ou ambos, resolvem dispor do próprio interesse ou de parte dele e, com isso, põe-se fim ao litígio”. Em aspectos gerais, a conciliação é uma forma constitucional e alternativa de solução de conflitos na qual o conciliador imparcial vai auxiliar instigando os indivíduos para acordar o litígio. As partes são quem resolvem o litígio, ou seja, uma parte ou ambas abrem mão dos seus direitos para que a lide seja resolvida. O objetivo principal da conciliação é o acordo das partes na qual o particular (Conciliação Extrajudicial) vai apenas formalizar o acordo. O conciliador é a pessoa imparcial que ajuda na solução do conflito, devendo ter um treinamento específico para que possa acompanhar as partes na solução alternativa do litígio. O papel do conciliador no auxilio da resolução do conflito é fundamental, visto que ele (conciliador) deve fazer com que as parte acordem através de meios indiretos, como, por exemplo: estabelecer sugestão para que as partes pensem na possibilidade do acordo. São três espécies ou tipo de conciliação: desistência; submissão; ou transação. Todas essas visam ao acordo, mas com características peculiares que as diferenciam. A desistência é o tipo de conciliação na qual o autor, sujeito ativo da relação procedimental, desiste da causa por determinado motivo legal ou moral. A submissão é quando o réu, sujeito passivo da relação procedimental, desiste da resistência por certo motivo legal ou moral. A transação é a espécie da conciliação na qual o autor abdica da pretensão e o réu desiste da resistência com objetivo de acordar o conflito. Observa-se que o Poder Judiciário, sabendo da seriedade que é o método da conciliação realiza, desde 2006, uma vez por Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ano, a denominada Semana Nacional de Conciliação. Conforme o site do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, a Semana Nacional de Conciliação: Trata-se de campanha, realizada anualmente, que envolve todos os tribunais brasileiros, os quais selecionam os processos que tenham possibilidade de acordo e intimam as partes envolvidas para solucionarem o conflito. A medida faz parte da meta de reduzir o grande estoque de processos na justiça brasileira. (Disponível: http://www.cnj.jus. br/programas-de-a-a-z/acesso-a-justica/conciliacao/semana-nacional-de-conciliacao. Acesso em 21.01.2015, às 14 horas). A Semana Nacional de Conciliação é uma campanha concretizada todo ano, com inicio em 2006 na qual abrangem os tribunais de todo o país, sendo escolhidos os processos que pode ser acordados pelas partes. O objetivo dessa campanha é a pacificação social e a consequente diminuição da quantidade de processo no Poder Judiciário brasileiro. Em 2006, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada nos dias 8 a 12 de dezembro, foram: 112.112 audiências designadas; 83.987 audiências realizadas; 46.493 acordos obtidos; Percentual de sucesso - 55,36%. (Dados coletados no Sistema do Conselho Nacional de Justiça). Em 2007, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 3 a 8 de dezembro, foram: 303.638 audiências designadas; 227.564 audiências realizadas; 96.492 acordos obtidos; percentual de sucesso - 42,40%. (Dados consolidados pelo Conselho Nacional de Justiça). Em 2008, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 1 a 5 de dezembro, foram: 398.012 audiências marcadas; 305.591 audiências realizadas; 130.848 acordos efetuados; percentual de sucesso - 42,8%. (Fonte: Conselho Nacio- Capa Sumário 161 nal de Justiça). Em 2009, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 7 a 11 de dezembro, foram: 333.324 audiências marcadas; 260.416 audiências realizadas; 122.943 acordos efetuados; percentual de sucesso - 47,2%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça) Em 2010, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 29 de novembro até 3 de dezembro, foram: 439.180 audiência marcadas; 361.945 audiência realizadas; 171.637 acordos efetuados; percentual de sucesso - 47,4%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça). Em 2011, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 28 de novembro a 2 de dezembro, foram: 434.479 audiências marcadas; 349.613 audiências realizadas; 168.841 acordos efetuados; percentual de sucesso - 48,3%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça) Em 2012, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 07 ao dia 14 de novembro de 2012, foram: 419.031 audiências marcadas; 351.898 audiências realizadas; 175.173 acordos efetuados; percentual de sucesso -49.78%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça) Em 2013, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 2 a 6 de dezembro, foram: 387.065 audiências marcadas; 350.411 audiências realizadas; 180.795 acordos efetuados; percentual de sucesso - 51.60%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça) Em 2014, os resultados finais da Semana Nacional de Conciliação realizada no dia 24, 25, 26, 27 e 28 de novembro foram: 337.504 audiências marcadas; 283.719 audiências realizadas; 150.499 acordos efetuados; percentual de sucesso - 53.05%. (Fonte: Conselho Nacional de Justiça) A Lei da Arbitragem, Lei número 9.307, de 23 de setembro de 1996, estabelece no artigo 7ª, parágrafos segundo, que: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Art. 7º Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim. [...] § 2º Comparecendo as partes à audiência, o juiz tentará, previamente, a conciliação acerca do litígio. Não obtendo sucesso, tentará o juiz conduzir as partes à celebração, de comum acordo, do compromisso arbitral. A Cláusula Compromissória é aquela em que as partes estabelecem no Contrato Arbitral que no caso de futuro conflito, o juiz arbitral irá solucioná-lo. Caso uma das partes mude de opinião e não queira mais realizar a Arbitragem a outra parte poderá ir ao Poder Judiciário e requerer audiência especial para a tentativa da Conciliação e também da Arbitragem. Completa-se que o art. 2º, inciso VI, do Código de Ética e Disciplina da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil estabelece que: Art. 2º O advogado, indispensável à administração da Justiça, é defensor do Estado democrático de direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça e da paz social, subordinando a atividade do seu Ministério Privado à elevada função pública que exerce. Parágrafo único. São deveres do advogado: [...] VI – estimular a conciliação entre os litigantes, prevenindo, sempre que possível, a instauração de litígios; O advogado deve estimular o acordo entre as partes na qual a tentativa da conciliação dos litígios é um dos deveres do advoga- Capa Sumário 163 do. O caput, do artigo segundo do Código de Ética e Disciplina da OAB menciona que o advogado é: defensor do Estado Democrático de Direito, da cidadania, da moralidade pública, da Justiça; da paz social e o exercício de sua atividade é função pública. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 descreve no artigo 133, caput, que: “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”. Dessa forma, percebe-se que a atividade da advocacia é de extrema importância para a sociedade, pois o advogado deve tentar a Conciliação e ainda a sua atividade é função pública essencial na qual visa defender todos os princípios que o Estado democrático de Direito. O método da conciliação jurídica ou pública está previsto em vários artigos do Código de Processo Civil, Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, dentre eles: art. 277; art. 278; art. 331; art. 447; art. 448; art. 449 entre outros. Já o novo Código de Processo Civil (em vigor só em 2016) disciplina uma audiência prévia de conciliação e mediação após a apresentação da petição inicial do autor. A sociedade deve ser informada de que antes de algum cidadão ir ao Poder Judiciário tente fazer a conciliação, pois no acordo, dependendo, pode as partes saírem ganhando, agora no processo judicial uma vai sair ganhando e a outra vai sair perdendo, ou até mesmo ambas vão saírem inconformadas. Deve-se mudar o paradigma de que a solução dos conflitos só acontece no Poder Judiciário, porque proferir sentença não é mais importante que fazer acordo, este é mais rápido, menos complexo (menos burocrático), simplificado e faz com que o Poder Judiciário diminua na quantidade de demanda (processo). Por exemplo: qualquer controvérsia jurídica, os indivíduos pensam logo no processo, mas é mais viável fazer um acordo, pois este é mais simples, célere e ainda as partes obtêm uma pacificação jurídica e social. Os casos que usam mais a conciliação é a relação jurídica li- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização gada ao Direito do Consumidor, ao Direito Civil e ao Direito do Trabalho. Porém a usualidade depende de outros fatores, por exemplo: a região, o costume, a população, entre outros. As questões jurídicas do dia-a-dia (que acontece com mais frequência) podem ser solucionadas através da conciliação, por exemplos: acidente de trânsito, problemas pessoais, problemas familiares, entre outros. Há quem defenda que no caso de problemas familiares é mais viável a utilização da mediação. O Termo da Conciliação auxiliada por um particular imparcial, capaz e confiável tem o mesmo valor da sentença do juiz natural realizada no Poder Judiciário. Nesse caso, após a realização da conciliação uma das partes pode executar o acordo firmado perante o Poder Judiciário. 7 DA MEDIAÇÃO Conforme ensinamento de Clovis Gorczevski (2007, p. 80) a respeito do surgimento e da solução do conflito, alude que: Quando surge um conflito entre as pessoas, o ideal é que as mesmas, através da reflexão, da compreensão, da confiança, e do afeto, de uma maneira colaborativa, encontrem a solução. Especialmente se estas pessoas devem conviver juntas, pois no futuro se apoiarão uma na outra. Quando esta situação ocorre, a melhor solução está na mediação, que é um procedimento onde um terceiro, neutro, que não tem poder sobre as partes, sem indicar qual deve ser o resultado, de maneira informal, facilita e ajuda a que as próprias partes encontrem sua solução, resolvendo seu conflito de forma aceitável. Devido a vários fatores, em certas ocasiões, o surgimento do conflito é inevitável, nesse caso, o ideal é utilizar através da reflexão, da compreensão, da confiança e do afeto de uma pessoa com a outra para resolvê-lo. Por exemplo, a solução do conflito Capa Sumário 165 de interesse entre familiares é mais adequada ser feita através do método alternativo conhecido como Mediação, pois este procedimento faz com que as partes voltem a estabelecer o diálogo, a amizade, o acordo das partes e a conseqüente solução de todo o conflito. Na mediação o terceiro neutro deve proporcionar para as partes reflexões e compreensões e a consequência disso é o acordo das partes, a solução de todo o conflito que deve ser feita através da origem do problema e o restabelecimento do diálogo entre as partes. A mediação é uma forma constitucional e alternativa de solução de conflito na qual o mediador vai auxiliar para que as partes comecem a resolver a divergência a partir da causa do problema até a solução do conflito na íntegra. Donizetti (2011, p. 33) conceitua a mediação como sendo a: Técnica de estimulo à autocomposição. Um terceiro (mediador), munido de técnicas adequadas, ouvirá as partes e oferecerá diferentes abordagens e enfoques para o problema, aproximando os litigantes e facilitando a composição do litígio. A decisão caberá as partes, jamais ao mediador. A mediação assemelha-se à conciliação, uma vez que ambas visam à autocomposição. Dela se distingue somente porque a conciliação busca sobretudo o acordo entre as partes, enquanto a mediação objetiva debater o conflito, surgindo o acordo como mera consequência. Trata-se mais de uma diferença de método, mas o resultado sendo o mesmo. A mediação ou autocomposição “complexa” é uma forma extrajudicial de solução de conflitos onde o mediador ajuda as partes a resolverem o problema, partindo da ascendência deste (problema). O papel (função) do mediador é auxiliar para que o diálogo entre as partes aconteça e a consequência jurídica e social é a solução do problema em que as partes saiam felizes e amigas. Tanto a mediação quanto a conciliação são formas de au- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tocomposição (mediação – autocomposição complexa e a conciliação – autocomposição simples), pois o terceiro não tem por função resolver o conflito em si, mas auxiliar as próprias partes a resolvê-lo. A distinção da Conciliação com a Mediação é porque esta busca a resolução do conflito a partir da origem dele (conflito) estabelecendo de inicio o diálogo entre as partes, já aquela (Conciliação) busca o acordo entre as próprias partes. É interessante observar que a palavra “complexa” (motivo didático) é devido a Mediação ser método autocompositivo no qual o mediador parte da origem do problema, buscando estabelecer o acordo, a solução e a volta da amizade das partes. Em perspectivas gerais, na mediação o mediador faz, por exemplo, “indagações” às partes, já na Conciliação o conciliado faz, por exemplo, “sugestões”, ou seja, o mediador auxilia na resolução do conflito indiretamente e o conciliador ajuda no acordo diretamente. Para Gorczevski (2007, p. 81) conceituando o que seria mediação, descreve que é: “o encontro e a aceitação de extremos distantes, a possibilidade de reflexão para a busca de respostas equidistantes e equilibradas onde não exista culpa nem direitos sacrificados, que chamamos de mediação”. A Mediação é conhecida por ser o método em que as partes se encontram para aceitar os fatores divergentes e resolver o conflito. O mediador deve buscar cogitações para que as partes restabeleçam a conversação, compreendam os fatos e acabem com o conflito de interesses e no final aconteça a pacificação social. A mediação é uma forma de autocomposição, porque são as próprias partes quem resolvem o conflito, o mediador apenas vai ajudar (assessorar) na resolução dessa controvérsia. Para Fredie Didier Jr. (2012, p. 106): A mediação é uma técnica não-estatal de solução de conflitos, pela qual um terceiro se coloca entre os contendores e tenta conduzi-los à solução autocom- Capa Sumário 167 posta. O mediador é um profissional qualificado que tenta fazer com que os próprios litigantes descubram as causas do problema e tentem removê-las. Trata-se de técnica para catalisar a autocomposição. A mediação é uma forma alternativa de conflito, pelo fato de ser extrajudicial ou também conhecida como não-estatal na qual o Estado, em regra, não faz a mediação, apenas autoriza para que o particular a faça. Nesse caso, o mediador não é o Estado (agentes estatais), mas sim é um particular imparcial. Segundo Fredie Didier Jr. (2012, p. 105) mencionando a respeito da autocomposição cita que: É a forma de solução do conflito pelo consentimento espontâneo de um dos contendores em sacrificar o interesse próprio, no todo ou em parte, em favor do interesse alheio. É a solução altruísta do litígio. Considerada, atualmente, como legitimo meio alternativo de pacificação social. Avança-se no sentido de acabar com o dogma da exclusividade estatal para a solução dos conflitos de interesse. Pode ocorrer fora ou dentro do processo jurisdicional. As próprias partes são quem concretiza a mediação, em que o mediador é o terceiro imparcial com vista na prevalência do procedimento e da organização da relação jurídica entre as partes na qual deve prevalecer o respeito ao Direito e a obtenção da harmonia social. Wambier e Talamini (2010, p. 94) referem que: “a mediação é uma espécie de autocomposição coordenada por uma terceira pessoa, o mediador, que é um profissional qualificado que atua no intuito de levar os litigantes a uma solução embasada na identificação e eliminação das causas que geraram o conflito”. A mediação é a espécie de autocomposição complexa na qual o mediador é o profissional qualificado que coordena o conflito de interesse, em que ajuda a identificar as causas que provocaram o conflito. A mediação é um importante método alternativo Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização de solução de conflito, pois ele vai buscar a “raiz” do conflito e não apenas se preocupa no acordo. Em regra, a mediação pode ser feita quando certo direito for desrespeitado, devendo prevenir a violência de uma parte sobre a outra. Nos conflitos ligados entre pessoas conhecidas ou parêntes é necessário o uso do método da mediação para que esse conflito acabe por completo, partindo do inicio da controvérsia e encaminhando até o fim do conflito para que com isso as partes saiam amigas e o diálogo seja restabelecido. São exemplos de conflitos solucionados através da mediação: desrespeito com a mulher, com a criança, com o idoso; da guarda do filho; de um vizinho com o outro; entre consumidor e comerciantes amigos; entre outros. Com base no Direito Civil Constitucional Humanizado, o objetivo da mediação é a solução justa e digna de todo o conflito na qual o mediador auxilia as partes através de perguntas reflexivas que levem à origem da controvérsia e a consequência é a pacificação social. A justiça social e jurídica deve ser alcançada com a resolução do conflito de interesses, se essa (justiça) não for atingida não podemos falar em solução do conflito através do procedimento da mediação. A mediação visa o restabelecimento do diálogo, da afetividade, da amizade das partes, e consequentemente da solução do conflito através do acordo mútuo que alcança a harmonia social. A consequência do procedimento da mediação, assim como, a dos outros métodos alternativos de solução de conflito é a difícil possibilidade da volta do conflito ou de outra controvérsia. É um método amigável, pois visa fazer com que o diálogo e a amizade das partes sejam restabelecidos. As partes ganham, visto que com a solução do conflito de interesses partindo da origem raramente vai acontecer outro conflito por essas partes. Na mediação o problema é resolvido da causa do conflito, porque o foco é a solução do conflito como um todo. As partes são quem decidem sobre o conflito de interesse na qual uma deve ou- Capa Sumário 169 vir a outra, isto é, as partes devem se colocar no lugar da outra para que haja o entendimento delas. A mediação é transformação social onde as partes se conscientizam de que restabelecer o diálogo e a amizade são as melhores formas de solução do conflito de interesses. O mediador não decide o conflito de interesses, ele apenas auxilia na resolução através da facilitação do diálogo e da compreensão das partes em que objetiva a pacificação da sociedade. 8 DA NEGOCIAÇÃO Clovis Gorczevski (2007, p. 72 e 73) descreve sobre o inicio do estudo sistemático da negociação, ele menciona que: A comunidade cientifica-acadêmica só recentemente demonstrou interesse por descrever, analisar e explicar o processo de negociação. Este interesse cresceu principalmente nos círculos universitários dos Estados Unidos da América, onde muitas universidades criaram centros, institutos e clinicas para o estudo do conflito e da negociação. Afinal, negociamos todos os dias, nas mais diversas situações. Negociamos na família, no trabalho, no lazer ou quando pretendemos algo de alguém. Se negocia quando se faz um contrato, quando se vai à feira comprar verduras; nos pactos e tratados internacionais, enfim, se negocia sempre que há comunicação para conseguir resultados ou fins determinados. É um processo tão natural que não notamos quando estamos envolvidos em uma negociação, trata-se de uma habilidade peculiar do ser humano. Negociar é um hábito de conduta e também um método pelo qual se busca a felicidade comum. A aplicação da Negociação perante a sociedade existe desde o início da nossa civilização quando o indivíduo negociava informalmente com o outro para ambos saírem ganhando. A análise Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização sistemática do processo da negociação começou a ser estudada atualmente pelos Estados Unidos (não foi só os EUA, mas este foi o principal), neste país foram criadas instituições para o estudo dos conflitos e a solução destes (conflitos) através da negociação. A negociação informal acontece toda hora, em todos os lugares, negocia-se tanto que nem se percebe quando isso acontece. Por exemplo, os alunos negociam com os professores sobre o dia da prova e o assunto que vai ser cobrado, até mesmo negociam sobre os pontos das atividades acadêmicas. Outro exemplo, é relacionado a relação afetiva em que um casal vive negociando entre si, bem como os namorados vivem negociando. Um filho negocia com a sua mãe propondo, por exemplo, que quando acabar de fazer a atividade de casa gostaria de ir ver um filme. Já a negociação formal é feita em um local reservado (geralmente escritório) para que as partes negociem diretamente sobre os assuntos ligados ao negócio ou ao conflito. Excepcionalmente, pode haver na negociação formal ou informal um terceiro para auxiliar formalmente na negociação, mas esse (terceiro) não é obrigatório. Na negociação formal o terceiro é interessante, pois ele vai preparar o Contrato (Termo) de Negociação e vai explicar o procedimento negocial. A negociação consiste em um processo ou método constitucional e extrajudicial na qual as partes negociam a respeito do conflito. Os negociadores, que são as próprias partes, devem descobrir os verdadeiros interesses um do outro para que a negociação aconteça. O que o procedimento negocial busca é o acordo mútuo das partes, nesse caso, pode-se dizer que é uma forma alternativa na qual as próprias partes decidem formal ou informal sobre o conflito de interesses. Segundo Gorczevski (2007, p. 74): Como se observa, a negociação deveria ser um meio natural e habitual de superar as diferenças, resolvendo os conflitos. Dissemos ‘deveria ser’ porque a Capa Sumário 171 toda hora, a todo momento, se observam oportunidades de negociar e obter resultados satisfatórios e são frequentes não aproveitadas. Isto ocorre por duas razões: a inata tendência de impor a própria vontade sem aceitar a existência de situações de interdependência, e pelo desconhecimento geral do que significa negociar. Negociar é muito mais que uma simples conversa para se obter um resultado favorável. Um verdadeiro processo de negociação reconhece a interdependência dos atores, por isso tende necessariamente à obtenção de benefícios mútuos. A negociação informal é feita pelas pessoas para solucionar pequenos e simples conflitos. Só que há casos que nem esses (conflitos pequenos e simples) são resolvidos pelo método alternativo mencionado (negociação informal). A solução do conflito através do procedimento da negociação depende diretamente das partes, se estas não quiserem resolver o conflito conforme esse método ou outro alternativo (arbitragem, conciliação ou mediação) irá ser necessário a resolução através da Jurisdição na qual o juiz do Poder Judiciário irá estabelecer uma sentença na qual apenas uma das partes ganha ou até mesmo nenhuma delas obtém êxito. Os cidadãos devem entender que a negociação é a solução alternativa de conflitos na qual as partes estabelecem uma relação de trocas de interesses, ou seja, é quando as partes negociam o próprio acordo com vista nos seus interesses e nas suas vontades, com isso as partes saem satisfeitas. A negociação visa o afastamento da controvérsia e o restabelecimento do diálogo para que as partes resolvam o conflito com acordo mútuo embasados no Direito Civil Constitucional Humanizado. O acordo mútuo é aquele construído pelas próprias partes mediante o diálogo e o estabelecimento de propostas e aceitações com vista na solução do conflito de interesses. As partes saem ganhando no procedimento negocial, pois os seus interesses foram Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização expostos e aceitos por ambas as partes. As considerações a respeito da negociação foram estabelecidas, mas: o que é negociar? Em aspectos gerais, negociar consiste na concordância de interesses divergentes (opostos) através do diálogo das partes para obter o melhor resultado (acordo mútuo). O objetivo da negociação é fazer com que o verdadeiro interesse das partes seja alcançado de modo que ambas saiam ganhando na resolução alternativa do conflito de interesses. A negociação é feita pela sociedade a todo o momento. No entanto, é bom lembrar que tanto na negociação formal quanto na informal o conflito deve ser analisado com vista na solução e no bem-estar das partes. Na negociação, não se deve ir a favor do conflito de interesses, pois as partes devem gerenciar o conflito para que a solução (acordo mútuo) aconteça e ambas as partes saiam com vantagens. Na negociação, a linguagem deve ser simples, clara e objetiva para que as partes saibam sobre os verdadeiros interesses uns dos outros, sendo que isso se concretiza através do diálogo (conversa). Este (diálogo) consiste em “falar” e em “ouvir”, ou seja, as partes devem falar, mas também devem ouvir umas as outras. A utilização de uma linguagem clara, simples e objetiva pelas partes irá ajudar na identificação dos interesses das partes e a consequência disso é a solução do conflito através do acordo mútuo. As partes devem evitar linguagens difíceis, expressões com sentidos ambíguos ou qualquer outra linguagem que prejudiquem o diálogo e o descobrimento do verdadeiro interesse das partes. Segundo Gorczevski (2007, p. 74): Entendemos que negociar, antes de um instituto, é um processo durante o qual duas ou mais partes com problema comum, com o auxilio ou não de um terceiro, mediante o emprego de técnicas de comunicação e persuasão, procuram obter um resultado que satisfaça de uma maneira razoável e justa seus objetivos, interesses, necessidades e aspirações. Capa Sumário 173 Todo o procedimento negocial é feito através de etapas cuja observância é relevante. As partes estão com um problema e a solução só pode ser feita por meio da análise do conflito. Por isso que é essencial o diálogo. O problema comum das partes pode acabar se agravando, sendo necessário o socorro dos métodos alternativos, tendo em vista que estes são simples, rápidos e menos burocráticos que a Jurisdição do Poder Judiciário. As partes devem utilizar técnicas de comunicação para que os interesses delas sejam identificados e a solução do conflito justo e admissível aconteça, devendo essas saírem ganhando. A Negociação é dividida didaticamente em quatro fases. Na primeira, o conflito deve ser gerenciado através do diálogo. Na segunda, a parte deve perceber o interesse da outra com a análise do conflito de interesses. Na terceira, o acordo mútuo deve acontecer pelas partes. Na quarta, ambas as partes saem ganhando com a resolução do conflito através do método em estudo. Gorczevski (2007, p. 76) menciona que: O problema básico da negociação não é o conflito entre as partes, e sim as necessidades, preocupações e temores que padecem e levam para o curso da negociação. O objetivo da negociação é o estabelecimento de uma solução negociada, que pode ser avaliada com base em diferentes critérios – grau de satisfação das partes a curto prazo, o grau de otimização do resultado em função de parâmetros estabelecidos, etc. Boas soluções são aquelas onde se satisfaçam ambas as partes. O mais importante é a inexistência de ganhador e perdedor – o objetivo da negociação é ganhar/ganhar, quer dizer, ambas as partes devem sair vencedoras. Ainda de maior importância é a qualidade de relação depois de concluída a negociação, medida não somente em função do resultado, mas também pela satisfação em relação ao processo em si, que permitiu o conhecimento e a aceitação das diferenças, com isto não só Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização se dirime o conflito presente como se evita, de forma efetiva o surgimento de novos. O conflito não é o problema básico da negociação, o verdadeiro problema são os choques (divergências) de interesses entre as partes, que podem ser necessidades, preocupações, temores, entre outros. A negociação tem por objetivo a resolução alternativa, justa e digna dos conflitos, ou seja, as descobertas dos verdadeiros interesses das partes nas quais essas estabelecem um acordo mútuo em que ambos saem ganhando. Só que por alguns fatos (necessidades, preocupação, temores, entre outros) o conflito negociável acaba se tornando inegociável. Neste caso o que pode ser feito? Quando o conflito se torna inegociável deve-se fazer de tudo que o Direito admita para que ele se torne negociável novamente, caso isso não aconteça é necessário buscar a intervenção do Poder Judiciário no qual o juiz vai analisar o caso concreto e estabelecer uma sentença onde apenas uma das partes irá sair ganhando ou até mesmo nenhuma das partes saiam vitoriosas. Na negociação inexiste a idéia de um ganhador e de um perdedor, ou seja, todos saem ganhando tanto no âmbito econômico como também no pessoal, profissional, social, entre outros. Com base no acordo mútuo onde as partes saem ganhando em vários aspectos, há uma pequena probabilidade da incidência de um novo conflito. Caso esse novo conflito aconteça, o que é pouco provável, as próprias partes vão saber resolver de forma autônoma, justa e digna, pois adquiriram experiência com a primeira negociação formal realizada. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Direito Civil Constitucional Humanizado consiste no conjunto de normas jurídicas relacionada com o Código Civil, com a Capa Sumário 175 Constituição Federal e com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao estudar o Direito Civil Constitucional Humanizado, constata-se que há os métodos alternativos de soluções de conflitos de interesses. Tanto o estudo do Direito como também o dos métodos extrajudiciais de resoluções de controvérsias “devem” ser obrigatórios em todos os níveis de ensino. Os métodos alternativos constitucionais são chamados assim porque não é o Poder Judiciário quem decide a demanda, concedendo, no entanto, expressa autorização para que um particular neutro ou as próprias partes cheguem a uma decisão justa e digna com vista na profunda resolução do conflito admitida pelo Direito. A denominação “métodos alternativos” pode mudar futuramente para “métodos complementares”, visto que há uma tendência de haver a aplicação da conciliação, da mediação e da negociação de “forma complementar” ao Poder Judiciário. A arbitragem é um método alternativo e uma forma de heterocomposição de solução de conflito em que as partes escolhem uma pessoa capaz, confiável e imparcial para analisar os fatos, os fundamentos e os pedidos das partes, desse modo o juiz arbitral resolve o conflito por meio de uma sentença arbitral que faz coisa julgada formal e material após 90 dias (contados da feitura da respectiva sentença). A conciliação é um método alternativo e uma forma de autocomposição “simples” na qual as partes escolhem uma pessoa, denominada de conciliador, para auxiliar diretamente no acordo. O conciliador irá ajudar com, por exemplo, sugestões para que as partes cheguem a um acordo do problema. A mediação é um método alternativo e uma forma de autocomposição “complexa”, em que as partes escolhem um terceiro capacitado, conhecido por mediador, em que irá ajudar indiretamente na resolução do conflito, partindo da origem da controvérsia. O mediador irá ajudar as partes na resolução do conflito com, por exemplo, indagações Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização A negociação é um método alternativo em que as partes através de uma linguagem simples e objetiva irão descobrir os verdadeiros interesse uns dos outros, realizando ao final do procedimento negocial um acordo mútuo. As três principais características da resolução do conflito de interesses pelas vias alternativas, também denominadas extrajudiciais, são: o fato de serem mais rápidas (devem respeitar o princípio da economia), menos burocráticas (devem ser decididas conforme o Direito, com menos burocracia do que a Jurisdição) e tem como base a pacificação social, o empoderamento, o efetivo acesso à justiça e etc. É preciso fazer uma grande campanha (inclusiva) de informação e explicação a respeito dos métodos alternativos, pois toda a sociedade necessita conhecer essas formas de soluções de conflitos de interesses. A educação em formas alternativas de soluções de conflitos é um interessante meio para disseminar a idéia da resolução de um litígio através da arbitragem, da conciliação, da mediação e da negociação na qual visam atingir a harmonia de toda a sociedade. Informar, descrever, explicar e conscientizar a coletividade de que há métodos extrajudiciais (arbitragem, conciliação, mediação e negociação) que têm por finalidade a solução do conflito que visa o equilíbrio social é um grande desafio para o século XXI. Teoricamente se percebe que há diferenças básicas entre os métodos alternativos de soluções de conflitos. Já na prática pode acontecer a utilização dos métodos conjuntamente, porém sempre há a predominância de um sobre os outros. De acordo com as fontes pesquisadas, verifica-se que, com a resolução do conflito através dos métodos alternativos, poucas são as possibilidades de um novo conflito surgir. Nesse caso, a conscientização da sociedade sobre as formas extrajudiciais de soluções de conflitos visam uma finalidade comum: a harmonia de toda a coletividade. Diante do exposto, percebe-se que muito já se caminhou na Capa Sumário 177 realização dos meios alternativos ou extrajudiciais de soluções de conflitos de interesses. Nesses termos, essa caminhada continua e a resolução alternativa é uma das grandes tendências jurídicas do século XXI. Na Paraíba já há o estudo da Arbitragem e da Mediação na UFPB (disciplina curricular do Curso de Direito) e na Unipê (Curso de Especialização em Arbitragem e Mediação); há a aplicação da Mediação Familiar no Centro de Mediação Familiar do Fórum Cível de João Pessoa-PB Desembargador Mário Moacyr Porto; há a aplicação da Conciliação e da Mediação no Centro de Conciliação e Mediação da UFCG campus Sousa em parceria com o Tribunal de Justiça do Estado; há a aplicação da Negociação em escritórios de advocacia e de contabilidade; ou seja; é constatado que já existe o estudo teórico e a prática das formas alternativas de soluções de conflitos no Estado da Paraíba. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Roberto Moreira de. Teoria geral do processo: penal, civil e trabalhista. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2011. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. _______. Código Civil, de 10 de janeiro de 2002. _______. Código de Ética da Advocacia e da OAB. _______. Lei da Arbitragem, 9.307, 23 de setembro de 1996. _______. Resolução 125, de 29 de novembro de 2010. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo. Atlas, 2009. CINTRA, Antonio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido Rangel; Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização GRINOVER, Ada Pellegrini e. Teoria Geral do Processo. 26. ed. São Paulo. Malheiros, 2010. DIDIER, Frendie Jr. Curso de Direito Processual Civil. Introdução ao Direito processual Civil e processo de conhecimento. Volume 1, 14ª ed. Salvador, Bahia : JusPODIVM, 2012. Disponível: http://www.cnj.jus.br/programas-de-a-a-z/acesso-a-justica/ conciliacao/semana-nacional-de-conciliacao. Acesso no dia 21/01/2015, às 14 horas. Disponível: Disponível em: ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/ relatorio_jn2014.pdf. Acesso em 13.01.2015. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 15. ed. rev., ampl. e atual. até a Lei nº 12.322/2010. São Paulo: Atlas, 2011. FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 14ª. ed. revista, atualizada e ampliada. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. GARCEZ, José Maria Rossani. Arbitragem nacional e internacional: progresso recente. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. GORCZEVSKI, Clovis. Jurisdição paraestatal: solução de conflito com respeito à cidadania e aos direitos humanos na sociedade multicultural. Porto Alegre: Imprensa Livre, 2007. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18. ed. ver., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2014. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 26ª. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006. NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 9ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. ROCHA, José de Albuquerque. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2007. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 4. ed. ver., atual. e ampl. Rio Capa Sumário 179 de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2014. WAMBIER, Luiz Rodrigues e TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: teoria geral do processo e processo de conhecimento, volume 1. 11ª. ed. ver., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização OS NOVOS PARADIGMAS DA RESPONSABILIDADE CIVIL NA INTERNET Erick Lucena Campos PEIXOTO12 Marcos EHRHARDT JÚNIOR13 Resumo:O presente trabalho trata sobre a responsabilidade civil na Internet e os danos decorrentes da violação aos direitos da personalidade, em especial, o direito à honra e o direito à privacidade e os critérios para fixação do valor da indenização, bem como busca soluções para os conflitos na Rede, através da regulação, seja através da própria arquitetura, seja através de leis, como o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014). Embora os direitos da personalidade tenham como atributo a indisponibilidade, a autolimitação ao exercício desses direitos pode ser admitida em favor da plena realização da dignidade da pessoa, sem que isto implique em renúncia, como no caso de uma foto postada no Facebook. Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Internet. Dano Moral. Direitos da Personalidade. Direito à Honra. Direito à Privacidade. Quantificação do Dano. Regulação. Marco Civil da Internet. Indenização Não Pecuniária. 12 Graduado em Direito pela Universidade Federal de Alagoas(UFAL). E-mail: [email protected]. 13 Advogado, Doutor pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas. E-mail: contato@marcosehrhardt. com.br. Capa Sumário 181 1 INTRODUÇÃO A Internet evoluiu a ponto de nos trazer tantos benefícios e facilidades para o nosso dia a dia, mas por outro lado, passamos a ser vigiados ininterruptamente. Nunca a vida privada se expôs tanto à praça. Postamos fotos, compartilhamos nossos pensamentos. Pessoas completamente estranhas sabem de nossas vidas com um clique. Mas estes, ao menos, são os dados que lançamos ao público por conta própria. Fora estes, temos nossas informações pessoais espalhadas por lugares que não imaginamos. Hoje, o computador pessoal, no seu modelo tradicional, representado pelo desktop, ou computador de mesa, vem perdendo espaço para modelos menores e portáveis. O notebook, hoje em sua versão mais leve e poderosa, o “ultrabook”, faz as vezes do PC de mesa. Junto dele, seguem-se o tablet e o smartphone. E não para por aí. O acesso a Internet está presente em vários dispositivos presentes nos lares e não mais está restrito ao trio computador/tablet/smartphone. Aparelhos de TV (smart TV), consoles de vídeo game e até geladeiras dispõem de acesso Internet. O smartphone é o símbolo da atual era na Internet. Este pequeno aparato, antes uma novidade reservada para poucos que podiam pagar, caiu nas graças do povo. Sua popularização deve-se à variedade de modelos, muitos importados, de marcas desconhecidas e extremamente baratas; deve-se também ao sistema operacional Android, da empresa Google, sistema este de código aberto e gratuito, utilizado por vários fabricantes. Ao se visitar um sítio eletrônico, ao mandar um e-mail, ao fazer uma compra on-line, deixamos nossos rastros digitais. De repente, a caixa de mensagens de e-mail está lotada de spams e mensagens de conteúdo malicioso. E não sabemos o porquê nem de onde vêm. Nossa realidade, na atual fase tecnológica se assemelha ao futuro distópico14 imaginado por George Orwell em sua renomada 14 Distopia, termo este que na patologia, parte da medicina que estuda as doen- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização obra 1984. Certo que vivemos numa democracia, mas temos todo o aparato de vigilância digno de um Estado totalitário. Expomos nossas famílias, nossa própria imagem. No presente trabalho, serão abordados no primeiro tópico aspectos gerais sobre a Internet, como o seu conceito, sua estrutura, bem como o ciberespaço, e a Web 2.0. Os direitos da personalidade serão objeto do segundo tópico, onde será discutida a situação atual do direito à honra e do direito à privacidade.Neste mesmo capítulo ainda será abordada a violação dos direitos da personalidade na Internet, neste trabalho sendo tratados somente o direito à honra e o direito à privacidade, por uma questão didática. Depois será discutida a questão da quantificação do dano moral na Internet e os critérios utilizados para aferir a extensão do dano. Também será tratada a questão da disponibilidade relativa dos direitos da personalidade, que traz uma discussão sobre as postagens em redes sociais e a irrenunciabilidade desses direitos. No terceiro e último tópico serão apresentadas possíveis soluções à problemática da responsabilidade civil na Internet, desde a arquitetura e regulamentação da Rede até o Marco Civil da Internet e ainda, um tópico sobre a indenização não pecuniária. 2 LINHAS GERAIS SOBRE A INTERNET E A RESPONSABILIDADE CIVIL 2.1 CARACTERÍSTICAS DA INTERNET E SUAS IMPLICAÇÕES JURÍDICAS Muitos dos casos envolvendo a Internet que permeiam o Judiciário deixam de ser resolvidos satisfatoriamente ou simplesmente são julgados de forma inadequada pela falta de preparo ças, se refere à localização anormal de um órgão. Literalmente quer dizer “lugar ruim ou perturbado”. Aqui, “futuro distópico” é a antítese de um “futuro utópico”. Capa Sumário 183 dos operadores do direito quanto às questões técnicas da rede. Conhecer o funcionamento da Internet, além de alguns conceitos, como o de provedor, é de fundamental importância tanto para o estudo do tema quanto para a aplicação do Direito. Na Exposição de Motivos Interministerial - EMI Nº 00086 MJ/MP/MCT/MC15 de 25 de abril de 2011, que corresponde à exposição de motivos do Projeto de Lei (PL) nº 2.126, que deu origem ao Marco Civil da Internet, consta no parágrafo n. 4: Para o Poder Judiciário, a ausência de definição legal específica, em face da realidade diversificada das relações virtuais, tem gerado decisões judiciais conflitantes, e mesmo contraditórias. Não raro, controvérsias simples sobre responsabilidade civil obtêm respostas que, embora direcionadas a assegurar a devida reparação de direitos individuais, podem, em razão das peculiaridades da Internet, colocar em risco as garantias constitucionais de privacidade e liberdade de expressão de toda a sociedade. (BRASIL, 2011). O conceito de Internet não é difícil de ser apreendido. Consiste num sistema, a nível mundial, de computadores interligados entre si, que possibilita a troca de informação de forma instantânea e interativa. O Projeto de Lei nº 2.126acabou se transformando na Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014 (BRASIL, 2014), passando a definir o conceito de Internet em seu artigo 5º, I, onde a Internet é o sistema constituído de conjunto de protocolos lógicos, estruturado em escala mundial para uso público e irrestrito, com a finalidade de possibilitar a comunicação de dados entre terminais por meio de diferentes redes. 15 MJ (Ministério da Justiça); MP (Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão); MCT (Ministério da Ciência e Tecnologia); e MC (Ministério das Comunicações). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 2.1.1 Ciberespaço Nenhum país, organismo internacional ou entidade privada exerce controle de forma absoluta na rede, ante sua estrutura global. E se existe uma infraestrutura física da Internet, existe ainda um espaço virtual, ou ciberespaço. Tal espaço não existe como realidade do mundo físico, mas apenas como uma representação audiovisual (SILVA, 2012, p. 81). O ciberespaço é o “espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos computadores e das memórias dos computadores” (LÉVY, 1999, p. 94-5), o que inclui o conjunto dos sistemas de comunicação eletrônicos, na medida em que transmitem informações vindas de fontes digitais ou destinadas à digitalização. O ciberespaço permite alguns modos de comunicação e interação especiais, isto é, que lhe são próprios. É possível o acesso à distância aos diversos recursos de um computador e também a transferência de arquivos entre as máquinas. O correio eletrônico também é outro modo de comunicação do espaço virtual, permitindo a troca de mensagens entre os usuários. As conferências eletrônicas são mais um modo de interação, que permitem que várias pessoas discutam em conjunto sobre temas específicos. Além desses modos que lhe são particulares, o cyberspace também apresenta formas de comunicação tradicionais, como a televisão, telefone, rádio e jornal. Resumindo, o ciberespaço permite que sejam combinados vários modos de interação. O fato de o ciberespaço não existir como um território físico traz à tona a questão da lei aplicável ao caso e a determinação da competência para sua aplicação (EHRHARDT JÚNIOR, 2014). Marcos Ehrhardt Jr. anota que antes mesmo da definição da competência, é necessário determinar qual a lei aplicável às transações via internet. O emprego da tradicional regra locusregitactum às transações eletrônicas mostra-se insuficiente, dada a dificuldade em determinar o lugar no qual a obrigação se constitui Capa Sumário 185 (Idem, ibidem). O autor ensina que a solução está contida a Lei de Introdução ao Código Civil (atual Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), que no seu art. 9.º determina que a obrigação resultante de um contrato reputa-se constituída no lugar em que reside o proponente. Há portanto uma pretensão absoluta de se considerar os negócios interabsents constituídos no lugar em que o proponente tiver sua residência, ainda que acidental, pouco importando a lex loci actum e a lei domiciliar do proponente ou aceitante. (Idem, Ibidem). Conclui Marcos Ehrhardt Jr. que independentemente de onde estiver localizado o computador base da homepage como também qualquer que seja a extensão do endereço do correio eletrônico (e-mail) utilizado, a lei aplicável é a do foro do proponente. 2.1.1.1 Web 2.0 e redes sociais O termo “Web 2.0” designa o atual momento de mudanças que a Internet está sofrendo em busca de uma otimização, e foi lançado em 2004 por Tim O’Reilly e DaleDougherty, numa conferência em São Francisco, E.U.A., onde participaram gigantes do meio da Internet, como Google, Microsoft e Amazon (FRAGOSO, 2009, p.81). Segundo Cabral Filho e Coutinho (FRAGOSO, Ibidem, p. 83), o usuário da web tradicional, em comparação com o usuário da Web 2.0, procura alguma informação. Quando tem suas necessidades atendidas, não interfere no conteúdo dos sítios por ele visitados. Já o usuário da Web 2.0 precisa de velocidade e de resultados imediatos na tela do seu computador, ou qual seja o dispositivo que utilize para acessar a rede. Para este usuário, a Internet Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização é um meio importantíssimo na sua rede social, afetiva e profissional, e por isso os softwares de mensagens instantâneas e os sites de comunidades e relacionamentos ganham enorme importância (Idem. Ibidem, p. 83). A rede social pode ser entendida como uma metáfora estrutural para compreensão dos grupos expressos na internet, para a observação das conexões de grupos sociais a partir das conexões estabelecidas entre seus diversos atores (BARRETO, 2012, p. 103). As redes sociais são estruturas sem um tipo de organização física específica, porém, se revelam através dos relacionamentos criados entre sujeitos ou grupos que se organizam desse jeito. Uma rede social se constitui como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais). (RECUERO, 2009, p. 24) Os atores são o elemento principal. É cada pessoa envolvida na rede, através de representações na Internet, como por exemplo, um perfil no Facebook, um blog ou microblog, um diário de fotos virtual etc. Como partes do sistema, os atores atuam de forma a moldar as estruturas sociais, através da interação e da constituição de laços sociais (RECUERO, Ibidem, p. 25). Já as conexões, segue Recuero, podem ser percebidas de diversos modos. Em termos gerais, as conexões em uma rede social são constituídas dos laços sociais, que, por sua vez, são formados através da interação social entre os atores. De um certomodo, são as conexões o principal foco do estudo das redes sociais, pois é sua variação que altera as estruturas desses grupos.(RECUERO, Ibidem, p. 30). A título de exemplo de redes sociais, citamos, pela popularidade e número de usuários, o Facebook, o Twitter, o Google Plus, e o Instagram. Este último, exclusivo para celulares do tipo smartphone. É a partir destas conexões, destas interações que começam a surgir alguns problemas relevantes para o Direito. Veremos mais Capa Sumário 187 adiante como as redes sociais na internet potencializam o dano a direitos da personalidade, como a privacidade e a honra. 3 DIREITOS DA PERSONALIDADE E INTERNET 3.1 OS DIREITOS DA PERSONALIDADE Os direitos da personalidade, segundo trata Paulo Lôbo, são “os direitos não patrimoniais inerentes à pessoa, compreendidos no núcleo essencial de sua dignidade”. E ainda, “os direitos da personalidade concretizam a dignidade da pessoa humana, no âmbito civil”. (LÔBO, 2012, p. 130). São características dos direitos da personalidade, segundo o mesmo autor, a intransmissibilidade, a indisponibilidade, a irrenunciabilidade, a inexpropriabilidade, a imprescritibilidade e a vitaliciedade. A titularidade, dos direitos em questão, é única e exclusiva, não podendo ser transferida para terceiros, herdeiros ou sucessores. (LÔBO, Ibidem, p. 133). No ordenamento jurídico brasileiro não há uma tipicidade fechada de direitos da personalidade. Existem os tipos exemplificativos, presentes na Constituição Federal e na legislação civil, bem como os tipos reconhecidos socialmente, em conformidade com o princípio da dignidade da pessoa humana. Dos tipos mais gerais, interessa-nos para os fins deste trabalho, o direito à privacidade e o direito à honra. O direito à privacidade é uma denominação genérica para os direitos que visam proteger a pessoa de interferências externas sobre fatos que não devem ser expostos à público. Compreende o direito à intimidade, à vida privada, à imagem e ao sigilo. Pontes de Miranda, que tratava o direito à privacidade por “direito de velar à intimidade”, dizia que este direito é “efeito de exercício da liberdade de fazer e de não fazer: há quem possa não revelar, porque há quem pode não fazer; é a liberdade que está à Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização base disso.” (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 198, tomo VII). Continua o autor: “Essa liberdade é que pode ser direito de personalidade inato; o direito a velar a intimidade provém dela, como o direito ao sigilo provém da liberdade de se não emitir o pensamento ou sentimento.” (Idem, Ibidem). Esclarece ainda que as limitações à intimidade ou à renúncia da mesma dizem respeito à liberdade, pois todos têm que respeitar o mínimo de intimidade e ao mesmo tempo ninguém pode ser privado de tal mínimo de intimidade. O direito à intimidade remete a fatos, acontecimentos em geral, que a pessoa deseja resguardar para si e não deseja dividir com qualquer outra. O direito à vida privada protege o ambiente familiar, sendo aqui mais abrangente que o direito à intimidade, pois sua violação pode atingir as várias pessoas componentes do grupo. O direito à imagem protege a qualquer forma de reprodução da figura humana. Não deve ser confundido com direito à honra, como muitas vezes o é. Por fim, o direito ao sigilo diz respeito à proteção do conteúdo das correspondências e comunicações. Roxana Borges exemplifica algumas hipóteses de como o direito à privacidade pode ser violado. A primeira delas é quando há intromissão não consentida em relação à vida privada de alguém; a segunda, quando o acesso às informações da vida privada de uma pessoa for por esta autorizado, mas a divulgação dessas informações a terceiros não for concedida; e por último, quando a intromissão não foi consentida e, além disso, houve divulgação das informações obtidas ilicitamente. (BORGES, 2007, p. 163). O direito à honra, também chamado de direito à reputação, resguarda a boa fama, a consideração, o respeito que a pessoa desfruta dentro da sociedade. Segundo Paulo Lôbo: “A honra pode ser entendida como subjetiva, quando toca à pessoa física, porque somente ela pode sofrer constrangimentos, humilhações, vexames. É objetiva a honra que resulta dos padrões morais existentes em determinada sociedade, considerada a conduta razoável ou média”. (LÔBO, 2012, p. 148). Capa Sumário 189 Para Pontes de Miranda, “A dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima e a consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra.” (PONTES DE MIRANDA, 2012, p. 102, tomo VII). Ainda segundo o autor, o direito à honra é absoluto, público e subjetivo. Os danos extrapatrimoniais que ocorrem na Internet geralmente decorrem de violação a estes dois tipos de direitos da personalidade. Se há alguma dificuldade no tratamento do tema pelos tribunais, em reconhecer o dano moral e sua extensão quando ocorrem na rede mundial de computadores, além da responsabilidade do provedor de internet, se objetiva ou subjetiva, se é relação de consumo ou não, há mais dificuldade ainda quando o dano atinge não só um indivíduo, mas uma coletividade. 3.2 VIOLAÇÃO DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE NA INTERNET: HONRA E PRIVACIDADE A lesão a direitos da personalidade – aqui tratados somente os direitos à honra e à privacidade – ocorre de várias formas na Internet. Não há uma homogeneidade nem tampouco um limite. Conforme evolui a tecnologia, novas formas de dano também surgem e disso resulta que é praticamente impossível catalogar todas as situações em que ocorram danos extrapatrimoniais na Internet, não restando alternativa senão a de tentar descrever as principais. A violação do direito à imagem ainda consiste numa das principais formas de violação do direito à privacidade. Tal direito é autônomo em relação ao direito à honra, com o qual muitas vezes é confundido. Tal confusão se operou até mesmo no Código Civil de 2002, no caput do polêmico artigo 20: Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais. Antônio dos Reis, em seu artigo sobre o direito à honra, assim trata sobre essa confusão: “Destarte, não há falar em confusão entre os conceitos, tampouco em ponto de interseção entre eles, restando a imagem autônoma em relação à honra, motivo pelo qual ambos os atributos devem ser considerados autônomos e com disciplinas próprias”. (REIS, 2014). O simples uso da imagem sem autorização já é apto a causar dano, mesmo que não seja atingida a honra da vítima. A realidade atual tem mostrado que o uso indevido da imagem na Internet tem gerado danos incalculáveis, sobretudo pelo fato da facilidade na exposição. Em cada esquina tem alguém sempre pronto para fotografar ou filmar qualquer pessoa em uma situação constrangedora ou mesmo da normalidade. Câmeras ocultas em canetas, bonés etc. são encontradas com facilidade custam muito pouco. Qualquer um pode ser um pequeno espião, cujas imagens captadas têm uma potencialidade lesiva altíssima. A violação do direito à honra teve um crescimento vertiginoso com o advento da Web 2.0. As redes sociais facilitaram o agrupamento de pessoas, tornando possível um contato direto e efetivo, superando obstáculos físicos. Com isso, a velha conversa de botequim ganhou novas dimensões. O assunto conversado numa mesa de bar entre colegas, ali mesmo encontrava seu fim, nascia e morria na mesma noite. Agora, nesta nova face interativa da Internet, o mesmo assunto lançado na rede num simples comentário tem um poder de propagação enorme. O comentário postado em uma rede social, mesmo quando passa despercebido, ficará gravado lá por tempo indefinido, ou até que o autor o exclua. Futuramente, caso não excluído, tal conteú- Capa Sumário 191 do pode ser objeto de indexação pelos motores de busca de sites como o Google e Bing. A prática de intimidação e agressão por meio da Internet vem sido denominada de cyberbullying, em comparação com o bullynig tradicional (termo em inglês que quer dizer “intimidar”, “amedrontar”). O dicionário Priberan caracteriza o bullying16 como “Conjunto de maus-tratos, ameaças, coações ou outros atos de intimidação física ou psicológica exercido de forma continuada sobre uma pessoa considerada fraca ou vulnerável”. Não é incomum que a prática do cyberbullyingfira mais de um direito da personalidade, por isso, tanto a honra quanto a imagem são alvos desses ataques. 3.3 A QUANTIFICAÇÃO DO DANO MORAL NA INTERNET Existe um lugar-comum quando se fala em quantificação do dano extrapatrimonial ocorrido na Internet e é justamente em relação à repercussão que o dano pode ter se comparada com a repercussão nos demais meios de comunicação. É certo que a Internet, como uma grande rede mundial de computadores interligados, possibilita o acesso a conteúdos praticamente ilimitados, quando comparados com os que são ofertados pela TV, rádio, periódicos e etc. Mas existem vários fatores que devem ser considerados quando se fala de propagação de conteúdo na Internet, principalmente aquele conteúdo lesivo, e, até que ponto ele pode, de forma eficaz, causar dano. Dois pontos devem ser analisados. O primeiro é a potencialidade do dano, onde se deve traçar um limite até onde a violação dos direitos da personalidade pode ou poderia causar um dano juridicamente relevante. O segundo ponto é a efetividade do dano, aqui tratada como sendo o dano já concretizado. 16 Dicionário Príberan da Língua Portuguesa, disponível em: http://www.priberam.pt/DLPO/. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização O processo para aferir a potencialidade do dano é relativamente simples. Por exemplo, comparando a uma régua escolar de 30 cm, o dano em potencial seria representado pela própria régua, sendo graduado de zero a trinta centímetros. O dano efetivo, por sua vez, nunca poderia ultrapassar o limite dessa régua, mas no máximo, igualá-la. O raciocínio acima permite algumas conclusões: a) mesmo o dano em potencial tem seus limites, não se prolongando ao infinito, como se pensa comumente; b) o dano concreto pode não coincidir com o dano em potencial, o que muitas vezes acontece, mas jamais será maior que este. Marcel Leonardi (2012, p. 226) leciona que para a delimitação da extensão do dano, a análise de alguns fatores se faz útil. Primeiro, os registros de acesso e de volume de tráfego de dados do sítio eletrônico, que podem ser disponibilizados pelos provedores de hospedagem. Segundo, o exame da popularidade do sítio eletrônico, ou seja, se este atrai um grande número de visitantes diariamente é restrito a poucos usuários ou a determinado grupo de pessoas. Terceiro, o exame da forma pela qual o sítio eletrônico explora a divulgação de informações, ou seja, se é comercialmente, cobrando pelo acesso ao conteúdo exclusivo ou recebendo quantias de anunciantes em suas páginas, ou, se não é simples diário eletrônico de interesse de um grupo restrito de colegas e conhecidos. Quarto, o período em que as informações ofensivas permaneceram disponíveis na Rede, sendo o dano, na maioria das vezes, proporcional ao tempo de duração da divulgação do conteúdo lesivo. Além desses fatores apresentados, Leonardi (2012, p. 227) indica três elementos adicionais: a) a veiculação de informações ilícitas ocorrida em sítios eletrônicos frequentados por grupos sociais próximos à vítima, como parentes, amigos e colegas de traba- Capa Sumário 193 lho, tem uma repercussão muito maior e mais intensa que se a publicação tivesse sido feita em um sítio de público mais abrangente, para uma massa desconhecida de pessoas; b) se caso o conteúdo não seja removido nem sofra nenhuma alteração, poderia ser localizado depois, por prazo indefinido e através de mecanismos de busca na da Internet (Google, Bing, Yahoo), projetando os efeitos danosos para o futuro; c) a relevância do contexto em que as informações se encontram, reconhecendo-se o valor do debate e da crítica fomentada por certos sítios eletrônicos. O debate proposto por este autor é interessante e de grande utilidade na aferição da extensão do dano. A informação jogada em meio a uma multidão de desconhecidos na Rede é volátil, tendente a sumir em virtude do desinteresse alheio. Se alguém, aqui do Brasil, entra em uma comunidade virtual de um bairro de Estocolmo e lá escreve o seguinte texto: “Minha vizinha Maria é uma prostituta barata”. Certamente que as consequências deste ato lesivo à honra de Maria seriam mínimas, quiçá nulas. Isto tem uma explicação. Além dos elementos delimitadores da extensão do dano acima mencionados, existem outros que lhes são anteriores. São barreiras com as quais o homem convive há muito tempo, como o idioma, a barreira geográfica e a cultura em geral. Do exemplo acima, o texto ofensivo escrito em português dificilmente seria compreendido pelos suecos, salvo aqueles que possuem conhecimento no idioma, resultando assim na não compreensão da mensagem postada. Do mesmo modo um japonês, que pode escrever o que bem quiser que os brasileiros, em sua maioria, não farão a menor ideia do que se trata. Mas caso essa barreira reste superada, tendo a mensagem sido compreendida de alguma forma, quer por conhecimento do idioma, uso de tradutores na própria Internet etc., restam outras duas a serem analisadas. A barreira geográfica, por mais estranho que soe falar dis- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização so quando se ouve de todos os lados que a Internet a superou, é algo ainda a ser considerado em se tratando da extensão do dano. Isto porque, ainda aproveitando o exemplo acima, o dano moral será mais efetivo na região onde vive a pessoa. Qual o interesse de um habitante de Estocolmo em saber que uma pessoa de Coité do Nóia, em Alagoas, é uma prostituta? O dano efetivo será quase nulo se a publicação ofensiva à comunidade virtual sueca mencionada. Por ultimo, se tratando do aspecto cultural de uma forma mais ampla, há certos tipos de linguagens que são feitos para serem compreendidos limitadamente, ou seja, são específicos para determinados grupos de pessoas. O uso de uma língua portuguesa alternativa na Internet, gírias, até mesmo significados alternativos de palavras e expressões somente conhecidas em determinado grupo impõe limites à efetividade do dano. No agreste meridional pernambucano, não é raro se ouvir a expressão “nega” (negra) com o fim de designar mulher, moça ou menina. Esta mesma expressão pode ser tida como injuriosa e racista em outra região. O vocabulário utilizado por uma comunidade de skatistas não será o mesmo usado por uma comunidade de advogados, nem o de uma comunidade de peões de rodeio será igual ao de uma comunidade de marinheiros. Há sempre diferenças a serem consideradas na aferição do dano. Existem, porém, exposições massivas na Internet que superam todas as barreiras e que ganharam relevância recentemente. São os chamados “memes da internet”. O termo “meme” foi criado pelo escritor Richard Dawkins, em seu livro O Gene Egoísta (The Selfish Gene), de 1976. É usado para designar conceitos que se espalham como um vírus pela Internet. Geralmente possuem motivo cômico, e são compostos de imagens com textos, vídeos ou somente textos. Alguns memes com pessoas famosas tornaram-se clássicos, como os memes de Barack Obama (com o texto “notbad”), presidente dos Estados Unidos da América e Jackie Chan Capa Sumário 195 (com o texto “WTF”), ator chinês. O problema nasce quando essa veia cômica é perdida e cede lugar ao cyberbulling, onde imagens de pessoas comuns são captadas, muitas vezes aleatoriamente na própria Internet, e a elas são escritas pequenas legendas com algum texto ridicularizante. O meme rapidamente se espalha, virando motivo de chacota para a vítima. Aqui o problema é generalizado, atingindo, algumas vezes, nível mundial. Quem nunca viu o meme do garoto nerdcom óculos, rosto repleto de acne e cabelo rabo-de-cavalo? O meme é conhecido como “gordo granudo” (GUILHERME NETO, 2014), e teve origem a partir da foto de perfil de um finlandês em um fórum virtual, onde era conhecido pelo pseudônimo de KimmoKM. Uma pessoa que caia na mesma situação que este rapaz não encontrará nenhuma solução para mitigar a exposição sofrida, devendo esta irreversibilidade do dano ser levada em conta na quantificação. A irreversibilidade aqui está no sentido de que, não importa qual a medida que venha a ser tomada, mesmo jurídica, o dano não cessará sua tendência é se propagar por muito tempo pela Internet. 3.4 A DISPONIBILIDADE RELATIVA DOS DIREITOS DA PERSONALIDADE Um problema interessante surge quando a própria pessoa publica um conteúdo na Internet e este vem a ser utilizado por terceiros de forma agressiva. Warren e Brandeis ensinavam que o direito à privacidade cessa na publicação dos fatos pelo indivíduo, ou com o seu consentimento (BRANDEIS; WARREN, 1890). Partindo do ensinamento dos articulistas norte-americanos, se uma pessoa posta em seu perfil particular do Facebook uma foto, esta estaria abdicando da proteção à privacidade, pouco importando o uso que se desse à sua imagem posteriormente. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Muito tempo se passou desde que Warren e Brandeis escreveram o artigo sobre o direito da privacidade. Houve uma evolução no pensamento, que fica clara quando da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que trouxe como estandarte a dignidade da pessoa humana. O Código Civil de 2002, em seu artigo 11, diz que “Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Interpretado literalmente, tal dispositivo negaria efeito ao consentimento do titular no campo dos direitos da personalidade (SCHREIBER, 2013, p. 26). Anderson Schreiber (Ibidem, p. 27) ensina que 197 Roxana Borges, tratando sobre o direito à privacidade e o lixo, fala sobre a irrenunciabilidade dos direitos da personalidade. Quando se trata de resíduos sólidos domiciliares, ou lixo, o abandono não desprotege a privacidade da pessoa que dispôs aqueles resíduos, havendo expectativa de privacidade sobre o lixo. Exagera, contudo, o art. 11 quando veda toda e qualquer “limitação voluntária” ao exercício dos direitos da personalidade. A vedação lançaria na ilititude não só os reality shows, mas também atos bem mais prosaicos como furar a orelha, lutar boxe ou expor informações pessoais em redes sociais, como o Twitter e o Orkut. O abandono de coisa como lixo ou resíduo sólido revela exclusivamente a intenção de mero descarte, de disponibilização da coisa em si, não havendo intenção ou sequer consciência, por parte da pessoa geradora, de revelação de dados da sua vida privada. Normalmente, principalmente para as pessoas comuns, há expectativa de privacidade sobre os resíduos sólidos que gera. Embora atue com a cautela média de inutilizar certas coisas ou dilacerar documentos, é possível — faticamente — sempre reconstruir dados e levantar aspectos da vida privada da pessoa sobre os quais ela tem expectativa de privacidade. A cautela média de dilacerar documentos, por exemplo, revela expectativa de privacidade sobre seu conteúdo, expectativa de que não será reconstruído. (BORGES, 2014). A autolimitação ao exercício dos direitos da personalidade pode ser admitida quando esta atenda ao fim de realização pessoal do seu titular. Não deve ser admitida caso esteja guiada por interesses outros, que não os que velam pela dignidade daquela pessoa. A legitimidade da autolimitação poderá ser aferida observando-se a sua duração e o seu alcance. Uma autolimitação sem restrições ou permanente deve ser rechaçada, pois é o mesmo que se renunciar ao direito. O Enunciado nº 4 da I Jornada de Direito Civil do Centro de Estudos Judiciários da Justiça Federal diz o seguinte: “o exercício dos direitos da personalidade pode sofrer limitação voluntária, desde que não seja permanente nem geral” 17. Trazendo analogicamente para a Internet, uma publicação no Facebook não autorizaria sua reprodução sem o consentimento expresso do autor. Apesar de se poder colher qualquer fotografia publicada com facilidade, o ambiente do Facebook ou outra rede social, não é exatamente um ambiente aberto, visto precisar de senha vinculada a um perfil para poder navegar entre suas páginas. A publicação pode está disponível tanto ao público, quanto somente a amigos ou mesmo a círculos menores de pessoas, portanto, a intensão do autor não é jogar seus dados ao vento. Além disso, o fato de publicar um conteúdo não é a mesma coisa que renunciar a um direito da personalidade, dado que esses direitos são irrenunciáveis. 17 Capa Disponível em: http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf. Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 4 SOLUÇÕES POSSÍVEIS 4.1 ARQUITETURA E REGULAMENTAÇÃO DA REDE No decorrer dos anos, surgiram algumas correntes doutrinárias sobre como lidar com conflitos originados da Internet. Marcel Leonardi (2012, p. 130) aponta quatro delas, que seriam: a) a autorregulação, mediante regras e princípios estabelecidos pelos próprios participantes do ciberespaço; b) criação de um “direito do ciberespaço”, separado do direito convencional, com apoio em tratados e convenções internacionais; c) aplicação dos institutos jurídicos tradicionais, com o emprego da analogia; e d) abordagem mista, utilizando o sistema jurídico em conjunto com a própria arquitetura da Internet. 4.1.1 Autorregulação da Rede Em 1996, John Perry Barlow, um dos fundadores da Eletronic FrontierFundation18, escreveu um texto intitulado Uma Declaração da Independência do Ciberespaço19.A Declaração estabelece, em dezesseis curtos parágrafos, uma refutação à governança da Internet por qualquer força externa, especificamente nos Estados Unidos. Ela afirma que os Estados Unidos não têm o consentimento dos governados para aplicar leis para a Internet, e que a Internet estava fora das fronteiras de qualquer país: Governments of the Industrial World, you weary giants of flesh and steel, I come from Cyberspace, the new home of Mind. On behalf of the future, I ask you of the past to leave us alone. You are not welcome among us. You have no sovereignty where we gather. [...] Governments derive their just powers from the con18 19 Capa https://www.eff.org/ No original, eminglês, A Declaration of the Independence of Cyberspace. Sumário 199 sent of the governed. You have neither solicited nor received ours. We did not invite you. You do not know us, nor do you know our world. Cyberspace does not lie within your borders. Do not think that you can build it, as though it were a public construction project. You cannot. It is an act of nature and it grows itself through our collective actions. [...] You claim there are problems among us that you need to solve. You use this claim as an excuse to invade our precincts. Many of these problems don’t exist. Where there are real conflicts, where there are wrongs, we will identify them and address them by our means. We are forming our own Social Contract . This governance will arise according to the conditions of our world, not yours. Our world isdifferent.(BARLOW, 2014). Em tradução livre: Governos do Mundo Industrial, vocês gigantes aborrecidos de carne e aço, eu venho do espaço cibernético, o novo lar da Mente. Em nome do futuro, eu peço a vocês do passado que nos deixem em paz. Vocês não são bem-vindos entre nós. Vocês não têm a soberania onde nós nos reunimos. [...] Governos obtêm seus justos poderes a partir do consentimento daqueles a quem governa. Vocês não solicitaram ou receberam o nosso. Nós não os convidamos. Vocês não nos conhecem nem conhecem nosso mundo. O ciberespaço não está nas suas fronteiras. Não pensem que vocês podem construí-lo como se fosse um projeto de construção pública. Vocês não o podem. É um ato natural e cresce por si próprio através de nossas ações coletivas. [...] Vocês alegam que existem problemas entre nós que somente vocês podem solucionar. Vocês usam essa alegação como uma desculpa para invadir nossos distritos. Muitos desses problemas não existem. Onde existirem conflitos reais, onde existirem erros, iremos identificá-los e resolvê-los por nossos próprios meios. Estamos formando nosso próprio Contrato Social. Essa maneira de governar surgirá de acordo com as condições do nosso mundo, não do seu. Nosso mundo é diferente. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Apesar de combater a regulação heterônoma do Estado, essa visão romântica da Internet teve o mérito de reconhecer a necessidade de regras e princípios entre os internautas. O modelo de autorregulação, como afirma Leonardi (2012, p. 135), não se sustenta em larga escala, pois além dos problemas que dizem respeito à adesão e ao desligamento dos participantes às normas conforme a sua própria conveniência, não há uma homogeneidade cultural na Internet, e sim um “ecossistema de subculturas”. Porém, continua Leonardi, é de se levar em conta que o sistema de autorregulação pelos próprios participantes funciona muito bem em fóruns e listas de discussão voltadas para um tópico ou interesse específico, desde que contando com um número limitado de participantes e com moderadores que façam cumprir as regras estabelecidas. 4.1.2 Direito do ciberespaço Em oposição à autorregulação, surge a ideia de um ramo do direito separado do direito convencional, que entende que a Internet, por ser diferente de qualquer outro meio de comunicação tradicional e por ter um alcance mundial, teria sua regulação impossibilitada por jurisdições separadas. David G. Jonhson e David G. Post (1996, passim) propuseram, em seu artigo Law andborders – theriseoflaw in cyberspace, na Stanford Law Review, a criação de um “direito do ciberespaço”. Para estes autores, tratar o ciberespaço como um lugar diferente, em separado, ao qual normas especiais seriam aplicadas, deveria ser encarado naturalmente. O ingresso no ciberespaço não acontece por acaso. O indivíduo usa uma tela e uma senha, que agem como fronteiras, ou seja, o usuário da Internet sabe quando está no ciberespaço e o faz conscientemente. Para essa teoria, a regulação que decorre da soberania do Estado, de forma tradicional, baseada em fronteiras físicas, não Capa Sumário 201 poderia funcionar efetivamente no espaço cibernético, pois a natureza descentralizada e intangível deste locus, além de suas características técnicas impedira qualquer forma de controle concentrado por um governo territorial e a única regulação possível seria desenvolvida ao longo do tempo, com o consentimento da maioria dos usuários da Internet. (LEONARDI, 2012, p. 136). O argumento principal dessa corrente é o de uma abordagem internacional para a regulação da Internet. Governos trabalhariam juntos, por meio de organismos internacionais, a formular normas a nível global para a Internet. Apesar ser um pensamento interessante, o que o pano de fundo do cenário internacional mostra é outra realidade. É muito difícil obter algum consenso para a proteção efetiva de direitos fundamentais entre as nações, por mais que existam acordos e tratados internacionais. Os valores sociais são diferentes não só entre vários países, mas também em cada um deles. Não existe unanimidade, mas uma gama de interesses diversos, muitos deles antagônicos. O ponto comum entre a corrente da autorregulação e a do direito do ciberespaço fica justamente na descrença de que o sistema tradicional de governo, sob a limitação de uma jurisdição territorial, possa regulamentar efetivamente a Internet. 4.1.3 Analogia e Internet Decreto-Lei nº 4.657 de 4 de setembro de 1942, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em seu artigo 4º diz que “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”. Miguel Reale ensina que a analogia atende ao princípio de que o Direito é um sistema de fins. Pelo processo analógico, estende-se a um caso não previsto aquilo que o legislador previu para outro semelhante, em igualdade de razões. Se o sistema do Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Direito é um todo que obedece a certas finalidades fundamentais, pressupõe-se que caso haja identidade de razão jurídica, haverá identidade de disposição nos casos análogos. Isto partiria de um antigo ensinamento, segundo Reale (2002, p. 296): ubieademratio, ibieadem juris dispositivo, que quer dizer que onde há a mesma razão, deve haver a mesma disposição de direito. Podem-se destacar três requisitos para o emprego da analogia: a) o caso não deve estar previsto em norma jurídica; b)deve existir ao menos uma relação de semelhança entre o caso sub judice e o caso previsto em lei; c) o elemento de identidade entre os casos deve ser fundamental, e não qualquer um, ou deve estar representado por um fato que motivou a elaboração do dispositivo legal que estabelece a situação utilizada para a comparação. (LEONARDI, 2012, p.140). Diferentemente das correntes anteriores, esta pretende que a regulação da Internet se dê pela simples aplicação de institutos jurídicos tradicionais, a partir da similitude dos problemas enfrentados na Internet com situações comuns fora desse meio. Nesse ponto, reside um perigo na utilização da analogia em questões jurídicas envolvendo a Internet. Em muitos dos casos, devido à falta de conhecimento do funcionamento da Rede, são criadas equiparações bastante equivocadas. Um exemplo, apontado por Marcel Leonardi, mostra o quanto a aplicação da analogia pode ser indevida: certo provedor de acesso à Internet havia fornecido um programa de navegação que continha restrições técnicas que impossibilitavam a visitação de determinados sítios na Internet. Então, a consumidora inconformada com a situação, impetrou um habeas corpus(TJMG, Recursoem Sentido Estrito n. 472.032-9)20, sob o argumento de que sua “liberdade de locomoção virtual” restaria prejudicada em virtude do bloqueio de alguns 20 HABEAS Corpus não protege liberdade de locomoção virtual. In: Conjur. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2005-abr-19/habeas_corpus_nao_protege_liberdade_locomocao_virtual. Acessoem: 17 de abril de 2014. Capa Sumário 203 sítios pelo navegador. (LEONARDI. In: SILVA, 2012, p. 89-91). 4.1.4 Direito e arquitetura da Rede Devido às posturas mais radicais e utópicas em relação à regulação da Internet, por muito tempo se acreditou que seria impossível que houvesse uma regulação eficaz por parte do Poder Público. Cometiam-se três erros. Primeiro, exageravam nas diferenças existentes entre os atos ocorridos no ciberespaço e outros atos transnacionais; segundo, não se atentavam à distinção entre normas sociais, sem sansão, e normas de cumprimento obrigatório, impostas pelo Estado; e terceiro, subestimavam o potencial das ferramentas jurídicas tradicionais e da tecnologia para resolver os problemas multijurisdicionais causados pelo ciberespaço (LEONARDI, 2012, p. 146-7). Com o aparecimento das primeiras decisões judiciais e também das primeiras normas, a postura geral de antes, de se negar a regulamentação da Internet foi sendo mudada, passando-se a buscar como isto deveria ser feito e também a melhor maneira de fazê-lo. Surge, em meio a esse contexto, uma nova corrente que sustenta uma abordagem mista para a regulamentação dos conflitos na Internet, utilizando para isso o sistema jurídico, atuando em conjunto com a arquitetura da Internet. Lawrence Lessig defende que no âmbito da Rede, as normas criadas pela programação podem ser mais eficazes do que normas tradicionais, ainda que estas últimas não deixem de ser utilizadas para sua regulação. (LEONARDI, 2012, p. 148). Segundo o professor Lessig (Cf. LESSIG, 2006), pode-se regular a Internet de quatro modos: a) por arquiteturas de controle; b) pelo próprio sistema jurídico, aliado c) às normas sociais e d) às normas de mercado. As arquiteturas de controle a que se refere Lessig, são me- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização canismos tecnológicos sobrepostos às características originais da Internet que restringem de forma intencional o comportamento dos seus usuários, podendo forçar determinadas condutas ou coibir certas práticas. Não é difícil compreender a ideia de regulação por meio da arquitetura. Em contextos mais simples, ela encontra-se no cotidiano das pessoas. Por exemplo, nas ruas de áreas residenciais, em que pedestres transitam com frequência, é comum haver quebra-molas, com o intuito de que os veículos automotores reduzam a velocidade e assim o risco de atropelamento seja reduzido. Dentro dos ônibus, normalmente há uma catraca por onde os passageiros passam, um por cada vez, a fim de que o cobrador exerça um controle sobre quem já pagou a passagem e quem ainda falta pagar, ou seja, o objetivo é facilitar a cobrança do bilhete de viagem. Lawrence Lessig menciona o trabalho de Robert Moses, que projetou pontes baixas em LongIsland, Nova Iorque, para impedir a passagem de ônibus em certos locais, mas que o real objetivo era dificultar o acesso da população negra – maior usuária do sistema de ônibus na época – às praias públicas, promovendo a segregação21. Isto mostra que a arquitetura pode suprimir a aparência de algo ruim facilmente, levando ao pensamento de que é a “normalidade” das coisas. Isso se dá porque a arquitetura dispõe de uma executoriedade instantânea, ao passo que as demais modalidades de regulação pressupõem a existência de um controle social e estatal para o efetivo cumprimento das normas. Essa autoexecutoriedade da regulação por meio da arqui21 Neither is the principle limited to virtuous regulation: Robert Moses built bridges on Long Island to block buses, so that African Americans, who depended primarily on public transportation, could not easily get to public beaches.That was regulation through architecture, invidious yet familiar. LESSIG, Lawrence. Code: version 2.0. Nova Iorque: Basic Books, 2006. Disponívelem: http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf, p. 128. Capa Sumário 205 tetura pode facilitar a adoção de medidas inconvenientes para o Estado, e até mesmo injustas, visto que ela se dá de forma indireta, muitas vezes escondendo qual o responsável pela regulação. As quatro modalidades de regulação de Lessig (direito, normas sociais, mercado e arquitetura), explica Marcel Leonardi, não são estanques, nem mutuamente exclusivas. Ao contrário, elas interagem entre si, cada uma exercendo coerção do seu modo. Por vezes, essas modalidades se complementam e se reforçam, e em alguns casos, entram em conflito. (LEONARDI, 2012, p.166). O Direito continua sendo, por excelência, a modalidade tradicional e preponderante de regulação da Internet. Porém, no âmbito da Rede, nem sempre é a modalidade mais eficiente. Em vários casos, a limitação da jurisdição e do sistema jurídico de um país geram dificuldades para obtenção de tutela para a vítima de violação de um direito da personalidade. O exemplo mais notório disso é a Lei n. 9.610 de 1998, que regula os direitos autorais. A grande facilidade de reprodução de obras digitais, como por exemplo, músicas, vídeos, livros etc, exige mecanismos que sejam eficazes, ante a incapacidade da tutela da Lei em proteger os direitos autorais. Por isso, meios alternativos são criados, como os “bloqueios” presentes nas mídias com o objetivo de barrar a pirataria. Ou seja, neste caso, diante de uma necessidade do mercado, este atua em conjunto com a arquitetura de forma a garantir a tutela dos direitos previstos em Lei. Ao lado da arquitetura e do direito, as normas sociais também regulam a Internet. Quando se escreve em letras garrafais, sabe-se que quem o fez está expressando uma irritação, equivalente a falar gritando em uma conversa comum, e por isso deve ser evitado. Deve-se evitar repassar correspondência eletrônica contendo correntes e demais coisas sem importância, bem como não espalhar boatos. Em grupos de discussão, sempre se deve checar as respostas anteriores antes de se fazer uma pergunta, pois esta pode ter sido respondida já. Estas são exemplos de normas sociais, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização bastante comuns para qualquer usuário da Rede. O mercado, conforme já visto acima, tem o poder de exercer regulação na Internet. Além disso, a regulação se dá pelo próprio fornecimento de serviços, visto que é cobrado um preço, que pode servir de barreira a uma determinada parte da população, bem como os métodos de pagamento utilizados. Muitos serviços, como o Netflix, serviço de streaming de vídeos (transmissão online de filmes, séries, shows, por exemplo, sem precisar “baixar” o arquivo de vídeo, que fica armazenado no servidor da empresa), aceitam somente pagamentos através de cartão de crédito, excluindo as pessoas que não dispõe desse meio. Importa aqui ressaltar que nenhuma dessas modalidades de regulação tem uma efetividade tão grande quanto a arquitetura. Aduz Leonardi que o hardware e o software que compõe a Rede, constituem um conjunto de entraves que permitem, proíbem e inibem certas condutas, funcionando de modo automatizado, até que sejam reprogramados para operar de modo diverso. Assim, a estrutura física e lógica acaba por determinar normativamente o funcionamento da Internet. (LEONARDI, 2012, p. 172). Apesar disso, o “código”, ou arquitetura, que tem sua aplicação imediata, quase infalível e a níveis de perfeição sobre-humanos, não pode ser esquecido pelo Direito e tratado como solução única para todo e qualquer problema. Estaria se correndo um risco de se trocar o direito emanado do Estado por um poder de fato daqueles que controlam a tecnologia. (Idem, Ibidem, p.176). Analisando as ideias de Lessig, Marcel Leonardi (Ibidem, p. 177) retira quatro conclusões: a) no âmbito da Internet, seu “código” é o Direito; b) esse “código” é plástico, ou seja, a arquitetura da Rede pode ser modificada; c) a ausência de normas jurídicas pode fomentar a criação de “código” de má qualidade; e d) boas leis podem invalidar “código” de má qualidade. Capa Sumário 207 4.2 O MARCO CIVIL DA INTENET O Projeto de Lei nº 2.126, conhecido como Marco Civil da Internet, depois de idas e vindas nas casas do Congresso, acabou sendo sancionado pela Presidência da República em 23 de abril de 2014, transformando-se na Lei nº 12.965. Não há como negar a importância histórica dessa lei, não só para o Brasil, mas a nível mundial, por se tratar da primeira legislação do tipo, cujo artigo 1º explica a sua função: “Esta Lei estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet no Brasil e determina as diretrizes para atuação da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios em relação à matéria”. No que toca aos direitos da personalidade, o Marco Civil da Internet, já em seu artigo 2º, destaca em seu inciso II o “desenvolvimento da personalidade em meios digitais” como um de seus fundamentos. O artigo 3º trata dos princípios que disciplinam o uso da Internet no Brasil, indicando a “proteção da privacidade” no inciso II. No parágrafo único, consta que os princípios aí expressos não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. A própria lei indica como deve ser procedida a interpretação dela. Serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a “natureza da internet”, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural. Interessante o posicionamento de Lawrence Lessig a respeito da “natureza” da Internet: Nature.Essence.Innate. The way things are. This kind of rhetoric should raise suspicions in any context. It should especially raise suspicion here. If there is any place where nature has no rule, it is in cyberspace. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização If there is any place that is constructed, cyberspace is it. Yet the rhetoric of “essence” hides this constructedness. It misleads our intuitions in dangerous ways. Em uma tradução livre: Natureza. Essência. Inata. A forma como as coisas são. Este tipo de retórica deve levantar suspeitas em qualquer contexto. Deve especialmente levantar suspeitas aqui. Se houver qualquer lugar onde a natureza não governa, é no ciberespaço. Se há qualquer lugar que foi construído, este é o ciberespaço. No entanto, a retórica da “essência” esconde essa artificialidade. Ele engana nossas intuições de formas perigosas. Essa crítica se dirige ao fato de a Internet ser uma criação, cuja arquitetura pode ser mudada, reescrita a qualquer momento. Diferente da água, por exemplo, que sempre vai ser dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio, vai ter ponto de ebulição a 100º C e ponto de fusão a 0º C em condições atmosféricas de 1Atm, esta é sua natureza. Já a Internet, será como for feita. Obedecerá a seu “código”, conforme a programação que lhe é dada. Produto do homem ou até mesmo de uma inteligência artificial. O artigo 7º da Lei 12.965 de 23 de abril de 2014 assegura aos usuários da Internet uma série de direitos. Dentre eles, a proteção a direitos da personalidade é destacada nos incisos I, que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada, sua proteção e indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; no inciso II, que garante a inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; e no inciso III, garantindo a inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial. O inciso XIII do mesmo artigo garante a aplicação das normas de proteção e defesa do consumidor nas relações de consumo realizadas na internet, não restando dúvidas quanto à incidência Capa Sumário 209 do CDC nestes casos. O artigo 8º trata diretamente do direito à privacidade, estabelecendo nulidade de cláusulas que impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo de comunicações privadas ou não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de conflitos decorrentes de serviços prestados em território nacional: Art. 8º A garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações é condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet. Parágrafo único. São nulas de pleno direito as cláusulas contratuais que violem o disposto no caput, tais como aquelas que: I - impliquem ofensa à inviolabilidade e ao sigilo das comunicações privadas, pela internet; ou II - em contrato de adesão, não ofereçam como alternativa ao contratante a adoção do foro brasileiro para solução de controvérsias decorrentes de serviços prestados no Brasil. Surge uma questão: se o ambiente da Rede, o ciberespaço, não pode ser considerado um espaço físico, como identificar o serviço prestado “no Brasil”? A solução é simples: primeiro, quem utiliza a internet, sempre o faz de algum terminal, seja um computador, um tablete, um smartphone. A partir desse meio físico é que o usuário interage com a Rede e pode contratar serviços. A Lei de Introdução das normas do Direito Brasileiro (LINDB) acaba, por fim, resolvendo o problema, em seu art. 9º, § 2º, dispõe que a obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente. A grande crítica ao Marco Civil da Internet faz-se justamente por conta da responsabilidade civil, disciplinada no Capítulo III, seção III da Lei. Dispõe o artigo 18 que o provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conte- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização údo gerado por terceiros. Já o artigo 19 diz que com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, “após ordem judicial específica”, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. Ao contrário de alguns julgados já mencionados no corpo do presente trabalho, em que os provedores responderam por não tomarem providências depois de terem sido informados de um possível dano à direitos da personalidade, sem tomar nenhuma medida a mitigar o dano, aqui a responsabilidade do provedor só nasce quando este recebe “ordem judicial específica”. Neste ponto, e em sentido contrário, surge o artigo 21, dizendo que o provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado “subsidiariamente” pela “violação da intimidade” decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, “após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal”, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo. Seu parágrafo único ainda estabelece que a notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido. Se no artigo 19 o provedor só pode ser responsabilizado depois de “ordem judicial específica”, aqui, no artigo 21, o provedor será responsabilizado de forma subsidiária se, após “notificação da vítima”, não tomar as providências cabíveis para tornar indis- Capa Sumário 211 ponível material de cunho sexual desautorizado. Pecou o legislador em incluir somente a “violação da intimidade” decorrente de materiais contendo cenas de nudez ou de sexo. Aquela pessoa que for vítima de uma brincadeira de mau gosto, de uma situação constrangedora que não de cunho sexual, ficaria desamparada, a depender de ingressar com uma ação pleiteando a retirada do conteúdo, pois os provedores só teriam obrigação de retirar o mesmo depois de ordem judicial. A lesão à honra e à privacidade não deixa de ser um dano significativo só porque não está expondo a pessoa em um ato sexual. O dano causado pelo cyberbullying pode ter consequências nefastas na personalidade do indivíduo e merece a tutela do artigo 21. 4.3 INDENIZAÇÃO NÃO PECUNIÁRIA Ao dano extrapatrimonial, apesar do seu reconhecimento e desenvolvimento na doutrina e jurisprudência através dos anos, quando se fala em indenização, é oferecida como resposta uma quantia, ou seja, a indenização de algo não patrimonial se dá por meio pecuniário. Muitas das vezes essa indenização não é o suficiente para satisfazer a vítima, seja pela quantia, seja pelo sofrimento interno dela. Para muitas empresas pagar uma indenização a uma vítima não surte muito efeito, pois o lucro auferido com práticas danosas supera o prejuízo com uma eventual indenização. Ao buscar soluções não pecuniárias para a resolução de conflitos decorrentes da Internet, primeiramente se encontra um instrumento presente na Lei de Imprensa (lei que não foi recepcionada pela Constituição e 1988, conforme o STF na ADPF 130-7), a retratação pública. (SCHREIBER, 2013, p. 196). Embora haja algum receio de aplicar a retratação pública em situações fora daquelas que a lei de imprensa regia, este vem a ser um instrumento de bastante utilidade na resolução de confli- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tos na Internet. Será formidável para os casos em que houve violação do direito à honra, pois um sítio eletrônico, por exemplo, que causou dano a alguém poderia ser condenado a publicar desculpas públicas em sua página principal, podendo também, cumulativamente, ser condenado em quantia pecuniária. Mas a indenização não pecuniária seria a principal. Já no caso de violação aos direitos da privacidade, a retratação pública deve ser evitada. A vítima, neste caso, quer o máximo de discrição possível, de modo a não piorar o dano que já sofreu. Leonardi explica que o Streisand effect, ou efeito Streisand é uma expressão cunhada por Mike Masnick para descrever situações em que a tentativa de remoção de determinado conteúdo de um sítio eletrônico causa o resultado oposto, e o conteúdo passa a ser reproduzido e divulgado de forma viral. (LEONARDI, 2012, p. 351-2). O efeito Streisand tem origem no incidente que ocorreu em 2003 com a cantora Barbara Streisand, que pediu uma indenização de cinquenta milhões de dólares por uma fotografia aérea de sua casa em Malibu. Após esse episódio, a foto foi reproduzida descontroladamente na Rede. No Brasil, esse efeito ocorreu no famoso caso Cicarelli, em que a modelo Daniela Cicarelli foi filmada numa troca de carícias com o namorado numa praia espanhola. Após conseguir um bloqueio temporário do Youtube, canal que exibiu o vídeo na Internet, a cena se espalhou por toda a rede, mesmo o vídeo original tendo sido retirado do ar, e até hoje pode ser encontrada alguma versão do vídeo. Uma questão surge quanto ao aspecto processual da indenização não pecuniária: pode o juiz impor a retratação pública? No caso de a vítima pleitear somente a indenização em forma de pecúnia, o magistrado poderia atuar por conta própria, concedendo também a reparação não pecuniária? Schreiber (2013, p. 202) aponta que a doutrina tradicional Capa Sumário 213 diz que não, pois o magistrado estaria adstrito à resposta pecuniária, condenando o réu à indenização ou deixando de condená-lo. O mesmo autor aduz que as inovações em matéria processual, como o amplo poder dado aos magistrados para se alcançar a chamada tutela específica, presente nos artigos 461 e 461-A do Código de Processo Civil22, são completamente aplicáveis em se falando de responsabilidade civil. Quando se compreende que a indenização é apenas um dos meios de se alcançar a compensação pelo dano sofrido, ao juiz resta uma ampla liberdade para combinar a indenização pecuniária com outros elementos desprovidos de valor monetário. O Projeto de Lei nº 5.139 (BRASIL b, 2014), em tramitação no Congresso, que disciplina a ação civil pública para a tutela de interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e dá outras providências, em seu artigo 25 traz uma solução interessante, que coloca a reparação específica em uma posição privilegiada, dispondo que na ação reparatória dos danos provocados ao bem indivisivelmente considerado, sempre que possível e “independentemente de pedido do autor”, a condenação consistirána prestação de obrigações específicas, destinadas à reconstituição do bem, mitigação e compensação do dano sofrido. E ainda, no parágrafo único, dependendo das características dos bens jurídicos afetados, da extensão territorial abrangida e de outras circunstâncias, o juiz poderá determinar, em decisão fundamentada e “independentemente do pedido do autor”, as providências a serem tomadas para a reconstituição dos bens lesados, podendo indicar, entre outras, a realização de atividades tendentes a minimizar a lesão ou a evitar que se repita. 22 Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento. Art. 461-A. Na ação que tenha por objeto a entrega de coisa, o juiz, ao conceder a tutela específica, fixará o prazo para o cumprimento da obrigação. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Ainda se trata de um projeto de lei, mas mesmo assim tem sua importância por indicar avanços, ou pelo menos tendências, no sentido de que o direito processual melhor satisfaça o direito material. Por enquanto, o que se vê na prática é que os magistrados seguem a corrente tradicional, sendo o pedido da parte uma baliza para suas decisões. O ultimo ponto a ser abordado é sobre o pedido de desculpas do ofensor e a possibilidade de condenação em danos morais. Primeiramente, há de se levar em conta as peculiaridades do caso concreto. O dano extrapatrimonial no âmbito da Internet assume características próprias, como já abordado nos itens 2.2 e 2.3 do presente trabalho, podendo se propagar de forma rápida, além de poder também se perpetuar no tempo. O artigo 944 do Código Civil diz que a indenização mede-se pela extensão do dano. Se o dano for tal que somente a retratação seja suficiente à compensação, a indenização pecuniária mostra-se desnecessária e fora de propósito. Porém, existem casos em que a o dano extrapatrimonial atinge proporções tamanhas que, apenas o pedido de desculpas isolado não é o bastante. O STJ, no REsp959.565 – SP23 reformou acórdão da 9ª Câmara Cível do Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo que substituiu a reparação pecuniária pela retratação, na imprensa, num caso em que uma empresa foi vítima de protesto indevido de duplicata mercantil. No voto, o relator, ministro Paulo de Tarso Sanseverino es23 RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. PESSOA JURÍDICA. CONDENAÇÃO APENAS À RETRATAÇÃO PÚBLICA. INSUFICIÊNCIA. INDENIZAÇÃO PECUNIÁRIA. REPARAÇÃO INTEGRAL DO DANO MORAL. 1. Limitação da reparação por danos morais pelo tribunal de origem à retratação junto à imprensa.2. A reparação natural do dano moral, mesmo se tratando de pessoajurídica, não se mostra suficiente para a compensação dos prejuízos sofridos pelo lesado.3. Concreção do princípio da reparação integral, determinando a imposição de indenização pecuniária como compensação pelos danos morais sofridos pela empresa lesada.4. Sentença restabelecida, mantendo-se o valor da indenização por ela arbitrado com razoabilidade. 5. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE PROVIDO Capa Sumário 215 clarece que a reparação in natura e a reparação pecuniária não são excludentes entre si, devendo-se respeito ao princípio da reparação integral, expresso no art. 944 do Código Civil, além de que a reparação nos danos extrapatrimoniais, conforme a tradição brasileira, é feita através de dinheiro (BRASIL c, 2014). A reparação natural a que alude o ministro é conceituada por ele em sua obra “Princípio da reparação integral” no sentido de que se deve restituir ao lesado exatamente o mesmo bem extraído do seu patrimônio para que ele seja colocado no estado em que se encontraria caso não tivesse ocorrido o ato ilícito (SANSEVERINO, 2010, p. 34). Segundo Sanseverino, os prejuízos extrapatrimoniais, dada sua própria natureza, não se coadunam com a reparação in natura, com exceções de algumas situações apontadas pela doutrina. Tais medidas – como a retratação pública – não constituem propriamente casos de reparação natural, segundo o autor, pois não se conseguiria sanar completamente os prejuízos extrapatrimonais, restando que apenas serviriam para minorar os efeitos dos danos, visto que é impossível a recomposição de um bem jurídico sem conteúdo econômico, como os direitos da personalidade. Conclui que, sendo inviável ou insuficiente a reparação natural, a solução é a indenização pecuniária. (SANSEVERINO, 2010, 227). Ora, se o ofensor desculpa-se de modo eficaz, como a publicação de uma nota em sua linha do tempo (timeline) do Facebook periodicamente, na mesma proporção do dano à honra por ele causado, o dano restará reparado, sendo desnecessária uma condenação em danos morais, que caso ocorra, será totalmente desvirtuada de seu propósito. Portanto, no caso de a retratação ser inócua, não há outra solução senão a condenação do ofensor em danos morais, e para isso, que sejam observados os critérios já descritos no capítulo segundo, na quantificação do dano. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 5 CONCLUSÕES No presente trabalho, foram apresentadas no primeiro tópcio as características da Internet, bem como a definições trazidas pela Lei 12.965 de 23 de abril de 2014, o Marco Civil da Internet, e ainda, conceitos como o de ciberespaço, Web 2.0, redes sociais e provedores de Internet. O direito à honra e o direito à privacidade – nele compreendidos o direito à imagem, o direito à intimidade, o direito à vida privada e o direito ao sigilo – são os principais direitos da personalidade violados no âmbito da Internet. Conforme a tecnologia avança, novas formas de causar dano também surgem. Disso decorre que é praticamente impossível apontar todas as situações em que ocorrem danos extrapatrimoniais na Internet. O uso da imagem pessoal (vídeo, fotografia digital, áudio ou qualquer outro formato de mídia) sem autorização é apto a causar dano, independente de ter ou não ferido a honra da pessoa. As redes sociais tornaram-se instrumentos de propagação de informação. Os comentários nelas postados podem causar sérias lesões à honra, principalmente no chamado cyberbullying, ou intimidação cibernética. Para a quantificação do dano moral na Internet, alguns critérios devem ser observados. Os dois principais são a potencialidade e a efetividade do dano. Na delimitação da extensão do dano, quatro fatores são de imensa utilidade: 1) registros de acesso e trafego de dados do sítio eletrônico; 2) a popularidade do sítio eletrônico (número de visitantes por dia etc); 3) forma de exploração do conteúdo divulgado (comercial ou apenas divulgação pessoal sem fins lucrativos); e 4) o período de tempo em que o conteúdo ficar disponível na Rede. No que diz respeito à indisponibilidade dos direitos da personalidade, observa-se que pode ser admitida uma autolimitação dos mesmos, desde que atenda a uma realização pessoal no seu Capa Sumário 217 titular. Uma pessoa pode publicar sua fotografia em uma rede social sem que isso implique em renúncia ao direito à imagem, e o uso dessa fotografia por terceiros estaria sujeito à autorização da pessoa titular do direito. O último tópico traz soluções possíveis para os conflitos surgidos na Internet. São apontadas pela doutrina quatro formas: 1) autoregulação; 2) direito do ciberespaço (separado do direito comum); 3) analogia; e 4) uma abordagem mista. A abordagem mista mostra-se como uma solução mais eficiente, na medida em que permite uma regulação da Internet através da própria arquitetura, em conjunto com o próprio sistema jurídico, aliado às normas de mercado e às normas sociais. O Marco Civil da Internet (Lei 12.965 de 23 de abril de 2014), que passou a estabelecer princípios e garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, possui uma grande importância histórica, por ter sido a primeira legislação do tipo no mundo. Um dos fundamentos desta lei é o “desenvolvimento da personalidade em meios digitais” (art. 2º, II), ao lado do princípio da proteção da privacidade (art. 3º II). Por fim, quanto à indenização não pecuniária, esta se mostra viável em se tratando de danos à honra, em que o réu poderia ser condenado a publicar desculpas públicas em sua página na Internet, por exemplo. E, no caso de violação à privacidade, uma retratação pública poderia agravar a situação, ocorrendo o que se chama de efeito Streisand. REFERÊNCIAS BARLOW, John Perry. A declaration of the Independence of cyberspace. In: Eletronic Frontier Foundation. Disponível em: https://w2.eff.org/ Censorship/Internet_censorship_bills/barlow_0296.declaration. Acesso em 16 de abril de 2014. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização BARRETO, Ricardo de Macedo Menna. Redes sociais na internet e direito: a proteção do consumidor no comércio eletrônico. Curitiba: Juruá, 2012. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Direito à privacidade e lixo: abandono de coisa e irrenunciabilidade a direitos de personalidade. 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O PROBLEMA DA RESPONSABILIDADE NO DESCARTE DE RESÍDUOS SÓLIDOS (LEI 12.305/2010) Luanna Marília Araujo Padilha de HOLANDA24 Marcos EHRHARDT JR.25 RESUMO: A sociedade moderna, marcada pelo consumo em massa e pela esgotabilidade dos recursos naturais, vem há certo tempo tendo que lidar com o problema de encontrar o adequado destino para os rejeitos da produção. Este desafio é ainda maior nas grandes cidades que até o momento ainda possuem como principal destino para os resíduos os lixões a céu aberto localizados no meio dos centros urbanos, prejudicando a saúde de toda a população que habite as áreas próximas. Tendo em vista esta preocupação, surge a Lei 12.305/2010, Política Nacional de Resíduos Sólidos, visando incentivar a reciclagem e uma produção e consumo mais conscientes, tendo como principal objetivo acabar com esses lixões a céu aberto, que maculam a realidade ambiental brasileira urbana. Para alcançar tais objetivos, a nova lei federal implanta a logística reversa e a responsabilidade compartilhada entre Estado, Empresa e Consumidor, que serão devidamente explanados ao longo desta dissertação, no intuito de, ao final, demonstrar qual a responsabilidade de cada um destes entes no moderno tratamento dos resíduos, expondo os principais problemas que a novel legislação trouxe para a responsabilidade civil nesta seara. 24 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL. 25 Advogado,Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da graduação e do mestrado da Universidade Federal de Alagoas. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Palavras-chave:Política Nacional de Resíduos Sólidos. Empresa. Consumidor. Estado. Responsabilidade Civil. 1 INTRODUÇÃO O consumo desenfreado e a busca incessante pelo lucro, característicos da sociedade moderna, possuem a tendência de não apenas disponibilizar ao mercado a circulação de bens e capitais, mas de trazer para o meio ambiente os detritos desta fabricação que no Brasil ainda não possuíam o devido tratamento, sendo lançados de qualquer maneira na natureza, comprometendo a saúde e preservação do meio circundante. A despreocupação com os rejeitos da industrialização é concepção ultrapassada, fruto de um momento histórico onde o acúmulo desses materiais ainda não havia alcançado uma escala preocupante, como a atual. Nesse contexto, a concepção de irresponsabilidade do consumidor e da empresa pelos refugos dos produtos consumidos, deixando para o Estado o ônus da limpeza pública, cai por terra embasado na solidariedade ambiental, dando lugar para uma responsabilidade compartilhada entre todos participantes da cadeia consumerista. Dessarte, a necessidade de gerir os resíduos advindos da produção industrial e a incapacidade do ente estatal realizar esta tarefa sozinho, inaugurou a responsabilidade do proprietário pelos dejetos gerados no meio ambiente, configurando hipótese de aplicação do princípio da função social da propriedade (GUILHERMINO, 2012, p.52.), que não mais se esgota na forma de produzir, mas se amplia e alcança o descarte, reciclagem e diversas outras fases antes sequer consideradas parte do ciclo produtivo. É impensável que o proprietário, “ao usufruir das vantagens que o bem lhe oferece, descarte a parcela indesejável no meio ambiente e reduza ou prejudique a qualidade de vida de uma população que jamais usufruiu daquele artigo”(PHILLIPI JR, 2005, p.757). Capa Sumário 223 Neste viés, é imprescindível examinar primeiramente como o lixo é tratado no Brasil, para demonstrar o panorama que inspirou a edição da PNRS, ao tempo que em um segundo momento, observar-se-á o ônus da empresa e do Estado antes de sua edição e as modificações por ela empregadas, no objetivo de esquadrinhar as alterações que a logística reversa, grande trunfo desta norma, trouxe para a propriedade e responsabilidade civil ambiental. 2 A POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS (LEI 12.305/2010): INOVAÇÕES PARA O TRATAMENTO DO LIXO NO BRASIL 2.1 O PANORAMA GERAL DO LIXO NO BRASIL Faz parte do cotidiano nacional os imensos lixões a céu aberto, esgotos que deságuam em mares ou rios, queimadas e tantas outras formas fáceis e menos custosas de exterminar os resíduos. Porém, esta suposta praticidade esconde a perversidade dos danos futuros e dificilmente reversíveis que a disposição inadequada dos rejeitos pode carrear. Conforme a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico 1989/2008, realizada pelo IBGE (BRASIL, 2008), restou verificado que 50,8% dos resíduos sólidos são despejados indiscriminadamente em vazadouros a céu aberto, sendo 22,5% em aterros controlados e 27,2% a aterros sanitários, sem contar o sem-número de dejetos lançados diariamente em outros locais inapropriados. Neste mesmo estudo, constatou-se que dos 5.564 municípios só 998 realizavam coleta seletiva de lixo, sendo a região Norte a pior classificada na escala de reaproveitamento dos detritos. Em adição, há o entrave do crescimento populacional, o qual configura mais um desafio para equacionar a produção, consumo sustentável e controle ambiental de descarte de rejeitos. No último censo do IBGE em 2010 (BRASIL, 2010), atestou-se que a po- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização pulação brasileira chegou a 190.732.694 pessoas, o que aumenta ainda mais a preocupação com o manejo dos resíduos sólidos, vez que por dia no Brasil, no ano 2000, eram produzidos 228.413 toneladas de lixo (BRASIL, 2000). Outra face da problemática cinge-se ao saneamento público que também é caótico no país. De acordo com a pesquisa do IBGE noticiada, unicamente 55,25% dos entes munícipes estão servidos com esgoto sanitário, demonstrando o atraso deste segmento na saúde e limpeza urbana brasileira. Nessa toada, o destino nacional preferido para os resíduos sólidos permanece sendo os lixões a céu aberto; entretanto, este tipo de unidades acarretam inúmeros prejuízos para a população cercana, que sofre com os odores, gases tóxicos e poluentes provenientes da decomposição, além de problemas respiratórios, cancerígenos e tantos outros. Em estudo realizado pela ABRELPE (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Publica e Resíduos Especiais) restou demonstrado que de 2009 para 2010 a geração de resíduos sólidos urbanos superou a taxa de crescimento populacional, o que evidencia a majoração da quantidade de lixo produzido por pessoa ((PANÔRAMA DOS RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL, 2010). Insta salientar que a referida pesquisa apontou Alagoas como o estado com pior sistema de armazenamento regular de lixo do país. De acordo com o levantamento, 96,9% das 2.891 toneladas do lixo produzido diariamente pela população alagoana são despejadas em lugares considerados inadequados.. Como se não bastasse, quando se trata de produtos oriundos do desenvolvimento da tecnologia, os quais se desatualizam e inutilizam-se em velocidade diretamente proporcional ao lançamento de novos modelos, como os computadores, celulares, tablets, etc., integrantes do hoje conhecido lixo tecnológico e que contêm compostos químicos extremamente danosos ao meio ambiente, entre eles: lítio, cádmio, urânio, chumbo, etc; o Brasil ainda é inexperiente para conduzir a adequada disposição pós-uso e Capa Sumário 225 o reaproveitamento destes artigos. De acordo com o Conselho de Logística Reversa Brasileiro (CLRB), de 1994 a 2006, o país passou por uma expansão na geração desta espécie de bens de consumo, a exemplo dos aparelhos celulares que passaram de 0,5 milhões de unidades, para 10 milhões, neste intervalo de tempo(LEITE, 2012). Os chamados EEE (Equipamentos Eletro Eletrônicos) são cobiçados por todo o planeta e já fazem parte do nosso dia-a-dia, o problema inicia-se quando ele precisa ser descartado, pois maioria dos usuários não detém o conhecimento do que pode ser feito para dispor adequadamente materiais como carcaças de discos rígidos, monitores, impressoras ou mesmo aparelhos inteiros. Estes dejetos se bem reaproveitados, podem transformar-se em novos equipamentos, principalmente após a fundição do metal, mercúrio e outros compostos químicos neles enquadrados. Todavia, como já descrito, são poucas as iniciativas neste sentido no território brasileiro, em que pese a ONU em 2010 ter publicado relatório no qual o Brasil foi considerado o pais emergente com maior produção per capita de lixo eletrônico por ano, cerca de 0,5 quilos por pessoa26. Mais um problema relacionado ao lixo no Brasil está no uso de pneus e utensílios feitos de plástico que segundo o CLRB, também tiveram considerável crescimento nos últimos anos, levando, como é de conhecimento público, à proibição em alguns estados brasileiros, do uso das sacolas plásticas em supermercados. Não se pode olvidar ainda a borracha, componente basilar dos pneumáticos, possui um tempo muito incerto de degradação e tem atingido níveis altíssimos, segundo a Reciclanip27, chegando à monta de 67,3 milhões produzidos no ano de 2010. Já quanto aos materiais de plástico, os dados de pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Tecnológica do Estado de São Paulo apontam que 26__________. Recycling – From E-waste to resources.Disponível em: <http:// www.unep.org/PDF/PressReleases/E-Waste_publication_screen_FINALVERSION-sml. pdf>. Acesso em agosto de 2013. 27Disponívelem :<http://www.reciclanip.com.br/v3/>. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização desde 2009, o brasileiro está consumindo mais de trinta quilos de plástico reciclável anualmente, o que demonstra um crescimento de 50% em relação há dez anos anteriores (KONCHINSCKI, 2011), já havendo sido divulgado que o Brasil deixa de reaproveitar 80% deste plástico consumido28. As pilhas e baterias são outro problema, anualmente são produzidas 800 milhões de pilhas comuns, 10 milhões de baterias de celular, 12 milhões de baterias automotivas e 200 mil baterias industriais (ABREU, 2012). Sem falar da quantidade de metais perigosos que as compõem, como zinco, cádmio, manganês, que podem levar a danos no sistema nervoso central humano. Estima-se que sejam descartadas pela sociedade brasileira cerca de cem milhões de lâmpadas fluorescentes por ano, das quais 94% vão para aterros sanitários sem o devido tratamento. Desde 2001 o consumo deste produto cresceu 20%29, fator preocupante haja vista que o vapor de mercúrio de sua composição, quando liberado, pode contaminar os lençóis freáticos e gerar outros danos para a cadeia alimentar dos organismos vivos. Ressalte-se que apesar dos dados coligidos, não é o aumento da população o exclusivo responsável pelo crescimento de refugos gerados, há de levar-se em conta a tendência faticamente constatada da expressiva introdução no mercado de produtos descartáveis (PRESTES, p.304), a exemplo das garrafas de refrigerante, hoje plásticas e anteriormente de vidro e reutilizáveis; o barateamento das matérias primas hodiernamente utilizadas nestas embalagens e nos próprios utensílios comercializados tornou a sociedade descartável e geradora compulsiva de resíduos. 28 Disponível em :<http://www.ecodesenvolvimento.org/posts/2011/outubro/ brasil-deixa-de-reaproveitar-80-do-plastico>. Acesso em 31 de julho de 2012. 29 Disponível em: <http://sustentabilidades.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=13:reciclagem-de-lampadas- fluorescentes>. Acesso em 28/10/2012. Capa Sumário 227 2.2 TRATAMENTO LEGAL DOS RESÍDUOS SÓLIDOS NO BRASIL Quando se trata da regularização normativa do lixo ou dos resíduos sólidos a legislação brasileira ainda é muito incipiente, sendo esta uma das razões para edição da Lei Federal 12.305/2010. Primeiramente, a lei ambiental por si só não se debruça com afinco sobre o assunto, a Política Nacional do Meio Ambiente sequer o menciona em seu texto. A despeito desta omissão, existiam outras citações pontuais em trechos da Lei 11.445/2007 (Plano de Saneamento Básico Nacional); na Lei 9.974/2000 que ordenou o recolhimento das embalagens de agrotóxicos pelos usuários; no Dec.875/93 que rege o movimento transfronteiriço e armazenamento de rejeitos potencialmente perigosos, e ainda na Lei 10.308/2001 estipuladora de critérios para a disposição final de refugos radioativos. Sob outro viés, no âmbito administrativo, o CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) é rico em resoluções, principalmente acerca dos resíduos sólidos. Buscando cumprir o disposto na PNMA, ele editou com mais significação sobre a matéria, exemplificativamente, a Res. 5/1993 que regula a situação dos resíduos gerados nos portos, aeroportos, terminais ferroviários e rodoviários; a Res. 307/2002 que estabeleceu critérios e procedimentos para a gestão dos resíduos da construção civil; a Res. 313/2012 acerca do Inventário Nacional de Resíduos Sólidos Industriais, a Res. 358/2005 que regulamentou os critérios e procedimentos a serem adotados para a disposição final dos dejetos oriundos dos serviços de saúde e as mais importantes de todas elas para o nosso estudo, a Res. 401/2008 que dirimiu as questões envolvendo o descarte e recolhimento de pilhas e baterias; e a Res. 416/2009 que dispôs sobre a prevenção à degradação ambiental causada por pneus inservíveis Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização e sua destinação ambientalmente adequada. No plano federal existe ainda o Decreto-Lei 5.940 de 2006, o qual Institui a separação dos resíduos recicláveis descartados pelos órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta, na fonte geradora, e a sua destinação às associações e cooperativas dos catadores de materiais recicláveis. No cenário estadual, a situação é bastante variada, havendo aqueles que possuem forte preocupação com o tema e outros que unicamente se restringem a seguir as determinações da União sem editar o correspondente instrumento normativo local. Exemplo de estados que manifestaram alguma preocupação com o tema foram o Rio de Janeiro através da Lei 4.191 de 2003 que institui uma Política Estadual de Resíduos Sólidos; a Lei Municipal de Diadema n° 2.336 de 2004 em São Paulo que estabelece um sistema de recolhimento desses resíduos no município e a Lei Estadual 12.493 de 1999 no Paraná que estabelece princípios, procedimentos, normas e critérios referentes à geração, acondicionamento, armazenamento, coleta, transporte, tratamento e destinação final dos resíduos sólidos no Estado do Paraná30. Retrocedendo um pouco, é possível observar que o grande número de resoluções editadas pelo CONAMA reflete a intenção de suprir a omissão do poder legislativo federal. Porém, apesar do esforço empregado, ainda restaram muitas arestas a serem aparadas, de tal forma, que o próprio Fiorillo afirmava não estar o gerenciamento dos resíduos sólidos submetido a um regime jurídico único, porquanto este variava de acordo com a localidade onde fossem gerados e com seu conteúdo (FIORILLO, 2012, p.371). Estas resoluções já tiveram por diversas vezes sua constitucionalidade questionada pela doutrina brasileira, exemplo disso é o posicionamento do autor Paulo de Bessa (2002, p. 556) acerca da Disponível em:<http://www.lixo.com.br/index.php?Itemid=255&id=148&option=com_content&task=view>. Acesso em dezembro de 2012. 30 Capa Sumário 229 Resolução 257/99 que trata das pilhas e baterias: “O ato normativo baixado pelo CONAMA, entretanto, do ponto de vista jurídico, é grandemente controverso e, em tais circunstâncias, de legalidade e constitucionalidade bastante duvidosos. Em primeiro lugar, merece registro o fato de que a referida Resolução do CONAMA não encontra fundamento imediato em nenhum diploma legal elaborado pelo Poder Legislativo. Igualmente, não consigo vislumbrar, nas competências estabelecidas pelo artigo 8º da Lei n. 6.938/81, qualquer autorização para que o CONAMA possa dispor sobre direitos e obrigações comerciais de produtores e comerciantes de pilhas e baterias; nem mesmo o Regimento Interno do CONAMA, que foi baixado por uma simples Portaria, chega a cogitar da competência à qual ora estou me referindo. É curial que, nos termos da Constituição vigente em nosso País, inexiste, em nosso direito positivo, a figura jurídica do regulamento autônomo. Há que se considerar, contudo, que a Resolução ora sob comento deve ser atendida pelas partes envolvidas até que uma declaração de ilegalidade ou inconstitucionalidade – conforme seja o caso – venha a ser proferida pelo Poder Judiciário. Assim é, pois as normas jurídicas, em princípio, gozam de presunção de constitucionalidade.” Este posicionamento se estenderia para todos os casos regulamentados por atos do CONAMA, porém atente ser a responsabilidade pós-consumo, o real objeto que permeia estes atos administrativos, e esta como veremos a seguir, é uma vertente do princípio do poluidor-pagador, nesta senda, estas resoluções apenas regulam de modo prático a forma de cumprimento desta orientação principiológica e não criam uma nova obrigação (LOUBET, 2012). A PNRS, modifica então o condicionamento e disposição dos resíduos sólidos no Brasil, introduz conceitos inovadores à solução da problemática, reconhecendo a possibilidade de imple- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização mentação por instrumentos infra-legais desta regulação. 2.3 A NOVA POLÍTICA NACIONAL DE RESÍDUOS SÓLIDOS A ideia de criar uma regulamentação para o descarte de resíduos sólidos no Brasil não é recente, o ideal surge com o projeto de lei 203/1991 apresentado em 01.04.1991 pelo Senador Francisco Rollemberg (PFL/SE) e somente após 19 anos de emendas e discussões foi regulamentado pelo Decreto 7.404 de 23.12.2010, transformando-se na PNRS (FERRI, 2011, p.96).O projeto originário deteve-se a disciplinar unicamente o descarte final de resíduos do serviço de saúde, abrangendo depois todos os dejetos excluindo os radioativos que tem legislação específica. Estão sujeitas à sua observância pessoas físicas ou jurídicas, de direito público ou privado, responsáveis, direta ou indiretamente, pela geração de resíduos sólidos e desenvolvam ações relacionadas à sua gestão integrada ou gerenciamento; une-se Estado, Empresa e Consumidor, elo tripartite da responsabilidade civil compartilhada deste segmento. Dentre os seus objetivos estão a proteção da saúde pública e da qualidade ambiental; estímulo à adoção de padrões sustentáveis de produção e consumo de bens e serviços; adoção, desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias limpas como forma de minimizar impactos ambientais; articulação entre as diferentes esferas do poder público, e destas com o setor empresarial, com vistas à cooperação técnica e financeira para a gestão integrada de resíduos; e a prioridade, nas aquisições e contratações governamentais, para: a) produtos reciclados e recicláveis; e b) bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis (art. 7°). Todavia, o objetivo geral da política nacional em espeque cinge-se à gestão integrada e gerenciada dos resíduos sólidos através de um arcabouço de ações isoladas ou em regime de coopera- Capa Sumário 231 ção dos Estados, Distrito Federal, Municípios e particulares, neste particular os incisos X e XI do artigo 3° da nova lei federal, diferenciam estes dois sistemas, veja-se: X - gerenciamento de resíduos sólidos: conjunto de ações exercidas, direta ou indiretamente, nas etapas de coleta, transporte, transbordo, tratamento e destinação final ambientalmente adequada dos resíduos sólidos e disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, de acordo com plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos ou com plano de gerenciamento de resíduos sólidos, exigidos na forma desta Lei; XI - gestão integrada de resíduos sólidos: conjunto de ações voltadas para a busca de soluções para os resíduos sólidos, de forma a considerar as dimensões política, econômica, ambiental, cultural e social, com controle social e sob a premissa do desenvolvimento sustentável; Para melhor compreender o seu objeto, urge diferençar resíduos sólidos de rejeitos, conforme os incisos XV e XVI do mesmo dispositivo supramencionado, in verbis: XV - rejeitos: resíduos sólidos que, depois de esgotadas todas as possibilidades de tratamento e recuperação por processos tecnológicos disponíveis e economicamente viáveis, não apresentem outra possibilidade que não a disposição final ambientalmente adequada; XVI - resíduos sólidos: material, substância, objeto ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, a cuja destinação final se procede, se propõe proceder ou se está obrigado a proceder, nos estados sólido ou semissólido, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgotos ou em corpos d’água, ou exijam para isso soluções técnica ou economicamente inviáveis em face da melhor tecnologia disponível; Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Destarte, ampliou-se consideravelmente o conceito de resíduos sólidos e apenas os rejeitos é que serão vistos propriamente como lixo em face da PNRS, devendo receber a destinação ambientalmente adequada que seria realizada em aterros autorizados, enquanto os resíduos sólidos deverão ser geridos através das políticas estaduais e municipais que primarão essencialmente pela reutilização e na sua impossibilidade, a reciclagem, conhecido como o sistema de disposição final ambientalmente adequada. Nesse esteio, a grande inovação foi sem dúvida a incorporação da logística reversa, conhecida responsabilidade pós-consumo, que permite o retorno do produto ao fabricante para integrar outra mercadoria ou ser descartado adequadamente, retirando a exclusividade do dever dos estados e municípios de velar pelo descarte dos detritos, o que será responsabilidade compartilhada destes e dos fabricantes, importadores, distribuidores, comerciantes e consumidores, tal como descreve seu art. 25, veja-se: Art. 25. O poder público, o setor empresarial e a coletividade são responsáveis pela efetividade das ações voltadas para assegurar a observância da Política Nacional de Resíduos Sólidos e das diretrizes e demais determinações estabelecidas nesta Lei e em seu regulamento. Cada um dos entes participantes da fabricação, consumo e descarte dos produtos, terá um papel específico dentro do ciclo de vida dos resíduos sólidos, conforme descrito no capitulo III da legislação, a começar pelo titular dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo de resíduos sólidos, que passa a ser o responsável pela organização e prestação direta ou indireta desses serviços, desde que observados o respectivo plano municipal de gestão integrada de resíduos sólidos, a Lei nº 11.445, de 2007 e seu regulamento (art.26). De mais a mais, é relevante enaltecer que a realização pelo Capa Sumário 233 serviço público de limpeza e coleta de resíduos não isenta as pessoas físicas ou jurídicas da responsabilidade por danos que vierem a ser provocados pelo gerenciamento inadequado dos respectivos resíduos ou rejeitos, pois estas são igualmente responsáveis pela implementação e operacionalização integral do plano de gerenciamento de resíduos sólidos aprovado pelo órgão competente. Com este novo regramento o consumidor, gerador de resíduos sólidos domiciliares, passa a ter uma tarefa primordial no ciclo de vida do produto e na implementação da política nacional in fine, devendo dispor adequadamente os dejetos gerados pelo seu consumo. No art. 33 há orientação para que os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso; além de pilhas e baterias; pneus; óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; lâmpadas fluorescentes; produtos eletroeletrônicos e seus componentes; estruturarem e implementem sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, demonstrando o compromisso da norma federal em melhor disciplinar o antes apenas dirimido por meio de resoluções do CONAMA, atendendo ainda as exigências da ONU ao conferir maior atenção ao compostos químicos e eletrônicos dos artigos de consumo. Este rol, contudo, não é taxativo, ainda que não haja menção expressa no dispositivo legal, pois como veremos a logística reversa decorre do princípio do poluidor-pagador que é plenamente aplicável a todo produto que tenha capacidade de desequilibrar o meio-ambiente. O setor público titular do serviço de limpeza urbana pode firmar acordo setorial com o setor empresarial, encarregando-se das atividades de responsabilidade deste último, contanto que sejam suas ações remuneradas de acordo com a forma por eles pac- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tuada (art. 33, §7°) e o poder público poderá conceder incentivos financeiros para o consumidor que disponibilizar adequadamente os resíduos sólidos nos programas de reciclagem ou reutilização, além de outras medidas indutoras e linhas de financiamento que prestigiem as disposições contidas na PNRS, estando presente aqui mais um exemplo do instituto civil da sanção premial, a qual abordaremos com maior propriedade nas linhas vindouras. É certo que nem sempre será possível identificar o causador do dano, tampouco se foi o consumidor que não cumpriu com seu papel de descartar adequadamente os resíduos, existindo o que denomina-se de área órfã contaminada, que segundo o art. 3°, III da citada lei federal é aquela “área contaminada cujos responsáveis pela disposição não sejam identificáveis ou individualizáveis”. Nestes casos, a ação estatal será imprescindível, seguindo os moldes habituais, sem considerar os ditames da responsabilidade compartilhada. O instrumento básico para esta política nacional ser efetivada é o plano nacional de resíduos sólidos, que segundo o art. 15 da Lei 12.305 será elaborado pela União, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente. Os Estados também terão de elaborar seus respectivos planos com vigência por prazo indeterminado, abrangendo todo seu território, como condição para receber os recursos da União ou por ela controlados, destinados a empreendimentos e serviços relacionados à gestão de resíduos sólidos. Nos mesmos moldes que os planos estaduais, os municipais configuram requisito básico para o Distrito Federal e os Municípios terem acesso aos recursos supracitados. Estes instrumentos serão explanados com mais vagar no decorrer do trabalho em liça. Os geradores de resíduos sólidos dos serviços públicos de saneamento básico; industriais; de serviços de saúde; os estabelecimentos comerciais e de prestação de serviços que gerem resíduos perigosos ou que por sua natureza, composição ou volume, não sejam equiparados aos resíduos domiciliares pelo poder pú- Capa Sumário 235 blico municipal; as empresas de construção civil e os responsáveis por atividades agrossilvopastoris, se exigido pelo órgão competente do Sisnama, do SNVS ou do Suasa; nos casos em que forem realizadas pelo poder público, as etapas de responsabilidade dos primeiros, terão seus gastos devidamente remunerados por estes, demonstrando a necessidade do compartilhamento de responsabilidade e divisão de tarefas para a adequada execução desta nova política federal. Estes também deverão editar seus planos, os Planos de Gerenciamento de Resíduos Sólidos. Esta norma federal é regida por diversos princípios listados em seu art. 6°, destes há um realce ao aspecto do direito da sociedade à informação, revelando o intuito de manter a população ciente do que esta acontecendo com os resíduos, e da forma adequada de descartá-los, como também para conservar todos os eixos da responsabilidade compartilhada em perfeita interação, coordenados, a tal ponto que com “exceção dos consumidores, todos os participantes dos sistemas de logística reversa manterão atualizadas e disponíveis ao órgão municipal competente e a outras autoridades informações completas sobre a realização das ações sob sua responsabilidade” (art. 33, §8°, Lei 12.305/2010). Ademais, como esta norma possui natureza jurídica ambiental, aplicam-se à esta política federal todos os princípios constitucionais do direito ambiental brasileiro (FIORILLO, 2012, p.384). Para colocar em prática todas estas diretrizes, o governo utilizará instrumentos financeiros, como linhas indutoras e de financiamento para desenvolvimento de produtos com menores impactos à saúde humana e à qualidade ambiental em seu ciclo de vida; estruturação de sistemas de coleta seletiva e de logística reversa; podendo o poder público conceder fomento e crédito a projetos, entidades e empresas voltadas para reciclagem e limpeza urbana, tudo isto respeitando os ditames da Lei de Responsabilidade Fiscal, bem como com as diretrizes e objetivos do respectivo plano plurianual, as metas e as prioridades fixadas pelas leis de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização diretrizes orçamentárias e no limite das disponibilidades das leis orçamentárias anuais. A questão do lançamento de lixos em mares, vazadouros ou queimadas não licenciadas, quedou proibida com as disposições contidas na Lei em tela, ficando ainda vedada segundo seu art. 49, a importação de alguns destes resíduos: Art. 49. É proibida a importação de resíduos sólidos perigosos e rejeitos, bem como de resíduos sólidos cujas características causem dano ao meio ambiente, à saúde pública e animal e à sanidade vegetal, ainda que para tratamento, reforma,reúso, reutilização ou recuperação. Cumpre salientar que não há relação de hierarquia entre a Política Nacional de Resíduos Sólidos e a Política Federal de Saneamento Básico (prevista na Lei 11.445/2007), elas são complementares, estipuladas por lei federal, mas que tangenciam em alguns pontos, tal como o serviço público de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos (CONCEIÇÃO,2012). A Presidência da República, em 23 de dezembro de 2010 editou o decreto nº. 7.404, onde definiu os ministérios e secretarias do governo envolvidos na aplicação da PNRS através da criação do Comitê Interministerial da Política Nacional de Resíduos Sólidos e do Comitê Orientador, bem como as funções dos mesmos. Em linhas gerais, pode-se entender que o Comitê Interministerial responderá pela implementação da Logística Reversa e que o Comitê Orientador terá um papel consultor ao definir metodologias, critérios e avaliar os sistemas de Logística Reversa apresentados; ambos terão a possibilidade de convidar representantes da sociedade empresarial, de entidades afins e criar corpos técnicos específicos (LEITE, 2012). Um defeito deste decreto está no não estabelecimento de metas de qualquer natureza, deixando aos setores ou empresas o Capa Sumário 237 estudo e apresentação de seus projetos de Logística Reversa. Somado a isto, vê-se que a Lei 12.305/2010 apesar de ter entrado em vigor na data de sua publicação (02 de agosto de 2010), ofertou um prazo de quatro anos para que fosse imposta a disposição final adequada dos rejeitos e dois anos para que os estados e municípios criem seus planos de resíduos sólidos, não fixando um decurso temporal fixo para a utilização da logística reversa nos setores que trabalham com lâmpadas e produtos eletroeletrônicos, de forma que o problema do lixo tecnológico ainda permanece em aberto na atualidade. Quanto ao aspecto sancionador, ou melhor, às restrições que algum dos componentes da responsabilidade compartilhada pelo descarte de resíduos sólidos, poderá sofrer caso não siga os preceitos do instrumento normativo em debate, restringe-se ao não recebimento dos recursos ofertados pela União para estes fins, impossibilitando que os Estados ou Municípios desobedientes aufiram qualquer vantagem decorrente dos instrumentos financeiros descritos, sem prejuízo da aplicação da responsabilidade civil objetiva pelos danos ambientais e das sanções contidas na Lei 9.605/98, consoante prega o art. 51: Art. 51. Sem prejuízo da obrigação de, independentemente da existência de culpa, reparar os danos causados, a ação ou omissão das pessoas físicas ou jurídicas que importe inobservância aos preceitos desta Lei ou de seu regulamento sujeita os infratores às sanções previstas em lei, em especial às fixadas na Lei no 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que “dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências”, e em seu regulamento. O legislador não logrou êxito ao estabelecer a forma de sancionar caso as disposições legais aqui expostas sejam descum- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização pridas, dado que as possíveis penas a serem adotadas são muito brandas ou até mesmo equivalentes àquelas aplicadas atualmente em casos de danos ambientais e que, como ressabido, possuem aplicabilidade pratica ínfima. Assim, não há uma incitação aos sujeitos passivos destas determinações legais para adotar uma postura condizente com a sustentabilidade então pregada, conferindo espaço para que estes descumpram seus encargos e esta norma não passe de mais uma carta de boas intenções no direito brasileiro, sendo um de nossos intentos, propor soluções dentro do sistema para equacionar estas falhas legislativa. 3. A RESPONSABILIDADE CIVIL NO DESCARTE DE RESÍDUOS SÓLIDOS Uma vez fixados os parâmetros legais imbuídos na Lei 12.305/2010 e o tratamento dos resíduos sólidos no Brasil após a sua edição, insta realizar um corte epistemológico e eleger como objeto principal as duas modificações que demonstram melhor a intersecção entre o direito ambiental e a responsabilidade civil dentro da Política Nacional de Resíduos Sólidos, que são a responsabilidade compartilhada e a logística reversa. Tais institutos são considerados as mais relevantes inovações trazidas pela Lei 12.305/2010 e pretendiam acoplar novos deveres ao Estado, Empresa e Consumidor no que tange aos dejetos do consumo, influenciando de forma estanque na tradicional responsabilidade civil pelos danos ambientais e no modo de exercício da atividade empresarial e até mesmo da estatal, no tocante à limpeza urbana, de forma que passamos ao estudo destes e de sua relação e influência com os demais ramos jurídicos. 3.1 LOGÍSTICA REVERSA Tornou-se imprescindível no cenário socioeconômico ho- Capa Sumário 239 dierno a percepção de que os produtos comercializados podem ter outras utilidades diferentes daquela para qual foi essencialmente produzido, podendo ser empregado inclusive na fabricação de outros artigos, senão de forma total ao menos alguns de seus componentes, como acontece com os computadores e os diversos metais que constituem seus discos rígidos e monitores. A única forma de se concretizar esta ideia de forma eficaz é através do retorno destes materiais aos fabricantes ou distribuidores, que estão aptos a encaminhar o produto para o destino mais apropriado. Esta tem sido a concepção basilar deste trabalho e um dos grandes trunfos para a consolidação da PNRS, que voltada para a conscientização e educação do consumidor, empresa e estado elegeu a logística reversa como seu instrumento base. Esta nomenclatura não era a adotada pela doutrina nacional, e sim a mais conhecida responsabilidade pós-consumo; porém ela evidencia o viés prático deste princípio que por sua vez, é um dos corolários do princípio do poluidor-pagador. 3.1.1. O princípio do poluidor pagador e o corolário da responsabilidade pós-consumo O princípio ambiental do poluidor-pagador surge para tentar frear o avanço descontrolado da economia em detrimento do meio ambiente, sem considerar o impacto que a atividade econômica pode causar ou tão menos, reservar a possibilidade da reparação destes. Dessarte, busca-se equacionar o desequilíbrio entre as externalidades positivas e negativas, as quais refletem a internalização dos custos da proteção ambiental. Esta norma está expressamente prevista na legislação infraconstitucional, mais especificamente no art. 4º, VII, da Lei n. 6.938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente), afirmando que esta legislação visará “à imposição, ao poluidor e ao predador, da obrigação de recuperar e/ou indenizar os danos causados e, ao Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização usuário, da contribuição pela utilização de recursos ambientais com fins econômicos”. Para Paulo Casella, este princípio procura desestimular as atividades que se beneficiam com a adoção de padrões de qualidade ambiental muito baixos em detrimento de atividades concorrentes que adotem práticas mais protetivas e, por conseguinte, mais custosas; dessa forma, ao invés de atribuir estes custos ao Poder Público, aos investidores ou à própria comunidade internacional, o empreendedor, poluidor, deve integrar esses custos na sua produção (CASELLA, 2010, p.673). Machado vai ainda mais além e afirma ser o uso gratuito dos recursos naturais uma representação do enriquecimento ilícito do usuário, pois a comunidade que não o utiliza fica onerada com as consequências do desequilíbrio ambiental provocado por este uso indiscriminado, gerador de poluição, havendo uma invasão da propriedade pessoal daqueles que não poluem o ecossistema (MACHADO, 2005, p.59 e 60). Nessa toada, identifica-se que por se referir também a uma internalização de uma externalidade ambiental, só que desta vez relacionada ao resíduo oriundo do consumo, surge a responsabilidade pós-consumo como corolário do princípio do poluidor-pagador, obrigando o poluidor potencial, qual seja, o consumidor, a retornar o produto utilizado ou com defeito ao fabricante, com fins de evitar a degradação ambiental por meio do descarte inadequado(LOUBET, 2011). Normalmente, a responsabilidade pelo tratamento dos refugos do consumo fica com o Poder Público, principal responsável pelo saneamento, assim a sociedade finda por arcar com o custeio do ciclo de tratamento destes resíduos através dos impostos e demais taxas, apesar de ter sido o fornecedor a lucrar com isso e o único consumidor que utilizou aquele bem. A logística reversa busca justamente corrigir esta distorção e dar a estes dois polos de onde se originou o resíduo, a responsabilidade pela externalidade ambiental oriunda. Capa Sumário 241 O estudo sobre esta espécie de responsabilidade no Brasil ainda é escasso, tendo a Lei 12.305/2010 dado a regulamentação geral que esta necessitava através da adoção do conceito de logística reversa que consoante Loubet, constitui a faceta prática do princípio da responsabilidade pós-consumo e não se confunde, com a obrigatoriedade da empresa tratar adequadamente o resíduo de sua produção (como os efluentes que uma indústria emite antes de despejá-los em rios), pois neste caso o mesmo não é oriundo da relação de consumo, mas sim anterior, fundando-se tal obrigatoriedade no princípio do poluidor-pagador (LOUBET, 2011). 3.1.2 A faceta prática do princípio da responsabilidade pós-consumo na Lei 12.305: Logística Reversa Esta concepção não é assim tão recente, um exemplo é o recolhimento de pilhas e baterias que é uma realidade antiga no Brasil através da resolução 257/99 do CONAMA, demonstrando a utilidade que estes materiais podem ter para seus fabricantes e a periculosidade de serem descartados impropriamente no meio-ambiente, além dos pneus e agrotóxicos que seguem estas mesmas características, fundamentando adoção da logística reversa em seus ciclos de vida. Observa-se que tanto nestes como em maior parte dos casos, os dois fundamentos para adoção de um sistema de responsabilidade pós-consumo são o consumo em massa e a periculosidade intrínseca do produto, que podem estar ou não associados, pois a presença de somente um deles já justifica a adoção desta prática (LOUBET, 2011). A doutrina jurídica também mencionava esta postura antes da PNRS, como Paulo Bessa ao falar da responsabilidade pós-consumo, explanou que esta possui como raciocínio subjacente a ideia de que as empresas são as maiores beneficiárias econômicas da comercialização dos produtos, além da óbvia questão da impossível responsabilização de milhares de pessoas que descartam Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização estas espécies de materiais em lugares inapropriados, em oposição à fácil identificação das empresas produtoras e seu consequente acionamento judicial. A Política Nacional de Resíduos Sólidos a definiu em seu art. 3°, inciso XII: XII - logística reversa: instrumento de desenvolvimento econômico e social caracterizado por um conjunto de ações, procedimentos e meios destinados a viabilizar a coleta e a restituição dos resíduos sólidos ao setor empresarial, para reaproveitamento, em seu ciclo ou em outros ciclos produtivos, ou outra destinação final ambientalmente adequada; Desta forma, a responsabilidade do consumidor e da empresa não se esgotará com a compra do bem de consumo, voltando a se materializar com a obrigação de devolver o objeto após o uso para a empresa, seja de forma direta, ou de forma intermediada, no local da compra, onde se construirá outro vínculo por meio do repasse ao produtor. Isto nada mais é do que a materialização da responsabilidade pós-contratual nas relações jurídicas que envolvam a gestão de resíduos sólidos oriundos do consumo. Conforme ressalta Silvio Venosa, o contrato já cumprido pode apresentar reflexos residuais, tratando-se, em geral, de um dever acessório de conduta dos contratantes após o estérmino das relações contratuais, como uma pós-eficácia das obrigações firmadas, podendo os envolvidos praticarem ações ou omissões responsabilizáveis, o que se denominaria de responsabilidade pós-contratual (VENOSA, 2010, p. 493). Este é a natureza do elo firmado entre consumidor e empresa na logística reversa. No Brasil existe um Conselho Regional de Logística Reversa, que vê esta nova relação da seguinte forma: A logística reversa planeja, opera e controla o fluxo físico e de informações, do retorno dos bens de pós Capa Sumário 243 -venda e de pós-consumo ao ciclo de negócios ou ao ciclo produtivo. Isso é feito por meio de Canais de Distribuição Reversos, agregando-lhes valor de diversas naturezas: econômico, ecológico, legal, de prestação de serviços, de imagem corporativa31. Deste enunciado infere-se que a mencionada pós-venda (bem de consumo comprado ainda não efetivamente consumido) se diferencia do pós-consumo (produto que já passou pela fase de uso). Esta questão interessa, pois guarda relação com o princípio da precaução, objeto dos próximos tópicos, demonstrando que ainda que a vida útil do produto não tenha se esgotado, pode ele participar do processo de logística reversa, embora este não seja o foco principal da PNRS, como defendeu o Professor Leite (2012): Embora a PNRS envolva especificamente os produtos usados (pós-consumo na terminologia apropriada), o fato de alguns dos segmentos de produtos e suas embalagens identificados nesta legislação apresentarem alto grau de obsolescência ou de duração mercadológica, alta exigência de assistência técnica, entre outras razões, faz com que a Logística Reversa de pós-venda (que se ocupa do retorno de produtos ainda não consumidos ou em condições de assistência técnica) também esteja diretamente envolvida com esta legislação. Por exemplo, um equipamento de informática que tenha necessidade de assistência técnica poderá ter alguns componentes trocados ou ser destinado a processos de reaproveitamentos como produto de pós-consumo. Para os autores Gonçalves e Marins (2006, p.400) o processo de logística reversa envolve três aspectos relevantes: “Do ponto de vista logístico, o ciclo de vida de um produto não se encerra com a sua entrega ao cliente. Produtos que se tornam obsoletos, danificados 31 Disponível em: <http://www.clrb.com.br/ns/conselho.asp>. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ou não funcionam devem retornar ao seu ponto de origem para serem adequadamente descartados, reparados ou reaproveitados. Do ponto de vista financeiro, existe o custo relacionado ao gerenciamento do fluxo reverso, que se soma aos custos de compra de matéria prima, de armazenagem, transporte e estocagem e de produção, já tradicionalmente considerados na Logística. E do ponto de vista ambiental, devem ser considerados e avaliados, os impactos do produto sobre o meio ambiente durante toda sua vida. Este tipo de visão sistêmica é importante para que o planejamento da rede logística envolva todas as etapas do ciclo do produto”. Estas considerações são relevantes vez que esta prática configurava, antes da lei 12.305/2010, responsabilidade social da empresa, atraindo consumidores que buscavam atitudes sustentáveis, porém após a edição do instrumento normativo em liça, este posicionamento passa a integrar a função social da empresa e da propriedade empresária, de tal forma, que sendo descumprida sujeitará o responsável às sanções cominadas no instrumento legal supra. Ainda existem autores, como Ferri, que encaram a logística reversa como um mecanismo para aprimorar a responsabilidade ambiental da empresa, consolidando a sustentabilidade empresarial e conquistar consumidores, fatores inseridos no plano de concorrência comercial (FERRI, 2011, p.114); todavia, esta não é a conclusão que ora se filia este trabalho, uma vez que existe uma diferença basilar entre função e responsabilidade da empresa, a qual parte essencialmente da facultatividade para esta última em oposição à obrigatoriedade da primeira, neste passo, a redação do artigo 33 da Lei 12.305/2010, a seguir trazida à baila, aclara este embate, pois utiliza do modal obrigação e não permissão, dando à logística reversa o caráter de integrante da função social da empresa. Capa Sumário 245 No mesmo sentido aqui defendido, está Marcelo Conceição que diz não se tratar a logística reversa de acordo de vontades entre administrado e administração, não podendo ter natureza contratual em sentido estrito. Sua importância dentro da PNRS, e por se tratar de contrato administrativo a ser firmado pelo Poder Público (por meio do Ministro de Estado do Meio Ambiente), auxiliado pelo fato do Decreto 7.404/10, em seu artigo 23, estabelecer os requisitos mínimos que deverão conter os acordos setoriais; reforça seu regime jurídico de direito público (CONCEIÇÃO, 2012). Não se contesta que a responsabilidade pós-consumo pode atuar como meio de cativar o consumidor, cada vez mais ambientalmente consciente, voltado para a busca do consumo verde, mas no quadro atual, com a entrada em vigor da PNRS, a logística reversa ganha outra natureza, muito mais coercitiva do que política. Passada esta breve cizânia, confere-se que a cadeia que guiará o funcionamento da logística reversa na PNRS está descriminada no parágrafo 3° do seu artigo 33 e se resume na devolução após o uso pelos consumidores aos comerciantes ou distribuidores, dos produtos e embalagens a que se referem os incisos I a VI32 do mesmo artigo, que são os efetivamente obrigados a integrar este tipo de logística; para em seguida estes comerciantes e distribuidores efetuem a devolução aos fabricantes ou importadores dos materiais reunidos e devolvidos, para finalmente ser dada a 32 Art. 33. São obrigados a estruturar e implementar sistemas de logística reversa, mediante retorno dos produtos após o uso pelo consumidor, de forma independente do serviço público de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, os fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes de: I - agrotóxicos, seus resíduos e embalagens, assim como outros produtos cuja embalagem, após o uso, constitua resíduo perigoso, observadas as regras de gerenciamento de resíduos perigosos previstas em lei ou regulamento, em normas estabelecidas pelos órgãos do Sisnama, do SNVS e do Suasa, ou em normas técnicas; II - pilhas e baterias; III - pneus; IV - óleos lubrificantes, seus resíduos e embalagens; V - lâmpadas fluorescentes, de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista; VI - produtos eletroeletrônicos e seus componentes. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização destinação ambientalmente adequada, sendo os rejeitos encaminhados para a disposição final. Como grande estudioso do tema, o Presidente do Conselho Regional de Logística Reversa no Brasil, Paulo Leite, ressalta que a legislação em tela, ao tentar designar somente alguns produtos, entre os quais aqueles que já possuem legislações específicas e cadeias reversas bem constituídas, como o caso dos pneus e agrotóxicos que apresentam a cadeia de retorno funcionando com eficiência, ter-se-ia perdido a oportunidade de envolver outros produtos com cadeias reversas ainda pouco eficientes (LEITE, 2011). Isto, porém, acaba por auxiliar certas deficiências da Lei 12.305/2010 dado que como nem ela nem seu decreto, estabeleceram prazos ou metas para sistematização de alguns casos de logística reversa, as resoluções do CONAMA funcionam para manter plenamente exigíveis desde já a efetivação deste sistema, vez que já previam esta espécie de obrigação. Doutra banda, para o eixo empresarial é observado que a operacionalização deste sistema necessitará do compartilhamento da responsabilidade entre fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, que implantarão procedimentos de compra de embalagens ou produtos usados, disponibilizar postos de entrega de resíduos reutilizáveis e recicláveis e atuar em parceria com outras formas de associação de catadores destes bens (Art. 33, §3°, I a III, da Lei 12.305/2010). Por fim, insta unicamente mencionar que como postulado pela doutrina ambiental, o instrumento judicial adequado para a defesa do meio-ambiente, é o ajuizamento de ação civil pública ou de ação popular, sendo este o mesmo meio de defesa para exigência da efetiva implantação da logística reversa, sendo relevante o ensinamento de Loubet (2012) sobre esta matéria: Neste caso, esta é a verdadeira participação cidadã na implementação desta política pública, pois, ainda que haja omissão por parte de todos os órgãos Capa Sumário 247 públicos incumbidos da defesa ambiental, poderá a sociedade, seja através de uma associação (art. 5º, V, da Lei n. 7.347/85) – via ação civil pública – seja através de qualquer cidadão (art. 5º, LXIII, da CF e art. 1º, da Lei n. 4.717/65) – via ação popular – levar o caso ao Poder Judiciário exigindo a implementação da logística reversa em face a uma empresa ou várias, exigindo-se do Poder Público que rompa sua omissão em não implementar esta política. Em complemento, sobre a questão judicial, houve no Tribunal de Justiça do Paraná, decisão inovadora e que se tornou celebre na comunidade jurídica que estuda o tema, através da Apelação Cível n°. 118.652-1, na qual a ré, uma engarrafadora de refrigerantes, foi condenada a recolher 50% (cinquenta por cento) das embalagens PET que vendia e aplicar 20% (vinte por cento) de sua verba publicitária em propaganda sobre a necessidade de devolução das garrafas vazias. A ementa do decisum em debate teve o seguinte teor: AÇÃO CIVIL PÚBLICA - DANO AMBIENTAL - LIXO RESULTANTE DE EMBALAGENS PLÁSTICAS TIPO “PET” (POLIETILENO TEREFTALATO) - EMPRESA ENGARRAFADORA DE REFRIGERANTES - RESPONSABILIDADE OBJETIVA PELA POLUIÇÃO DO MEIO AMBIENTE - ACOLHIMENTO DO PEDIDO - OBRIGAÇÕES DE FAZER - CONDENAÇÃO DA REQUERIDA SOB PENA DE MULTA - INTELIGÊNCIA DO ARTIGO 225 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEI Nº 7347/85, ARTIGOS 1º E 4º DA LEI ESTADUAL Nº 12.943/99, 3º e 14, § 1º DA LEI Nº 6.938/81 - SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. Apelo provido em parte. 1. Se os avanços tecnológicos induzem o crescente emprego de vasilhames de matéria plástica tipo “PET” (polietileno tereftalato), propiciando que os fabricantes que delas se utilizam aumentem lucros e reduzam custos, não é justo que a responsabilidade pelo crescimento exponencial do volume do lixo resultante seja transferida apenas para o governo ou a população. 2. A chamada res- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ponsabilidade pós-consumo no caso de produtos de alto poder poluente, como as embalagens plásticas, envolve o fabricante de refrigerantes que delas se utiliza, em ação civil pública, pelos danos ambientais decorrentes. Esta responsabilidade é objetiva nos termos da Lei nº 7347/85, artigos 1º e 4º da Lei Estadual nº 12.943/99, e artigos 3º e 14, § 1º da Lei nº 6.938/81, e implica na sua condenação nas obrigações de fazer, a saber: adoção de providências em relação a destinação final e ambientalmente adequada das embalagens plásticas de seus produtos, e destinação de parte dos seus gastos com publicidade em educação ambiental, sob pena de multa. (BRASIL, TJPR - 8ª C.Cível - AC 118652-1 - Curitiba Rel.: Ivan Bortoleto - Unânime - J. 05.08.2002) Sabe-se que o empresário no exercício da atividade empresarial tem autonomia para escolher a forma como irá gerir seu negócio, expressamente representado pela liberdade de contratar, por exemplo. Este tipo de interferência na autonomia da empresa, mencionada na decisão supra, pode, de início, parecer contrária a tais pressupostos e à já firmada liberdade de mercado, consagrada no país, entretanto, não se pode esquecer que no caso em epígrafe trata-se de conduta ofensiva ao meio-ambiente, logo que deve sofrer os influxos dos princípios ambientais, que estão mais diretamente ligados ao direito público do que ao privado. Nesse sentido, deve-se lembrar que estamos diante de matéria que invoca a incidência de múltiplas searas do direito, assim a primazia do interesse público sobre o privado orientaria na querela em apreço, a imposição pelo ente Estatal, representado aqui pelo órgão julgador, à empresa, da obrigação de reduzir o impacto ambiental de suas atividades, dando a destinação adequada às embalagens plásticas de seus produtos, em prol do bem-estar ambiental coletivo. Tratando-se de empresa de considerável porte, razoável também a reserva de parte da destinação de seus gastos com propagandas de conscientização ambiental, tal postura, além de Capa Sumário 249 ser condizente com os novos preceitos da PNRS, reflete o caráter educacional da sanção, tão pregado pela doutrina, mas que dificilmente se efetiva, resvalando sempre na punibilidade, que não vem, em maioria das vezes, evitando a reincidência. A autonomia privada não pode superar o bem estar coletivo e a proteção do meio ambiente. Logo, resta cabalmente demonstrada a importância da logística reversa para defesa e proteção do meio-ambiente, surgindo no universo jurisprudencial órgãos julgadores que reconhecem este feito, trilhando os primeiros passos para uma justiça atualizada e consciente, imprescindível na sociedade contemporânea. 3.2 RESPONSABILIDADE CIVIL COMPARTILHADA Se a logística reversa é o principal meio de concretização das disposições contidas na PNRS, a responsabilidade compartilhada é com certeza, a forma mais eficaz de conquistá-la. Diversas são as razões para chegar-se nesta espécie de responsabilidade, tanto envolvendo critérios econômicos como ecológicos, porém como insistentemente exposto nesta dissertação, há na responsabilidade ambiental uma solidariedade latente que contagia todos aqueles que dela usufruam, tornando-se também coobrigados por sua preservação. Notável é a compreensão de Jeanne Machado (2006, p.98) sobre o assunto: “(...) sendo o meio-ambiente comum, indisponível e inapropriável, cabe ao Poder Público e a toda sociedade, em conjunto e diretamente, sua defesa, constituindo tal atividade, simultaneamente, um direito e um dever, impondo-se, por conseguinte, o compartilhamento da responsabilidade pelo dano”. Esta ideia também não é nova, e independe da PNRS, já havendo sido apontada como modo de solucionar as dificuldades da Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização reparação pelo dano ambiental e de atingir os preceitos do princípio da precaução. A Carta Magna, na esteira de seu art. 225, ao dizer ser dever de todos proteger o meio-ambiente, semeia os pilares para edificação deste compartilhamento. Como evidenciado outrora, o Direito Civil incorporou valores fundamentais e inalienáveis tentando manter a autonomia privada em sintonia, ou a serviço da utilidade social, neste campo, princípios como da boa-fé objetiva, da função social e da solidariedade agem conjuntamente para limitar ou regrar a ordem econômica, não ficando o principio da solidariedade restrito ao direito ambiental, mas invadindo também a esfera contratual. Esta, no âmbito contratual, embasa o princípio da função social dos contratos que segundo o art. 421 do Código Civil, norteia a liberdade de contratar. Ela obrigaria à consolidação de um regime de cooperação entre as partes e também terceiros afetados pela relação jurídica que devem contribuir para o adimplemento contratual, visando que o contrato cumpra sua função social não ficando adstrito aos interesses individuais dos pactuantes. Sobre esta temática, acrescenta Jairo Gomes (2005, p.131): A solidariedade e cooperação funcionam como princípios hermenêuticos, influindo diretamente na aplicação do direito, e pois, na definição da regra a ser aplicada ao caso prático. Nessa perspectiva, pode haver a reconfiguração de situação jurídica envolvendo partes, além da imposição de certos deveres não expressamente previstos na avença. Sendo assim, as relações contratuais firmadas, que de qualquer forma interfiram na vida de outras pessoas, como normalmente se caracterizam as relações envolvendo o meio ambiente, reclamam dos celebrantes e dos demais envolvidos na relação uma postura cooperativa que vise o bem comum, englobando, portanto, novos deveres não necessariamente explícitos ou pac- Capa Sumário 251 tuados mas que decorrem das novas necessidades sociais, como reflexo da pós-modernidade. A produção e consumo em massa trouxeram para o consumidor o ônus de auxiliar as Empresas e o Estado a evitar a degradação ambiental. Deixa-se de lado o vínculo bipartite antes existente, com o Estado implantando o saneamento básico e fiscalizando a atividade das empresas, as quais respondiam pelo dano decorrente de sua produção, para alcançar aquele que faz uso do bem de consumo e que pode se tornar parceiro do cerco empresarial na adequada disposição de seus produtos e auxiliando o estado na fiscalização desta tarefa (FIGUEIREDO, 2005, p.747). Com a edição da PNRS, exige-se um maior envolvimento da sociedade, estando delineada no inciso XVIII, do art. 3° da citada política, o conteúdo que terá este instituto: “XVIII- responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos: conjunto de atribuições individuadas e encadeadas dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, dos consumidores e dos titulares dos serviços públicos de limpeza urbana e de manejo dos resíduos sólidos, para minimizar os volume de resíduos sólidos e rejeitos gerados, bem como reduzir impactos causados à saúde humana e à qualidade ambiental decorrentes do ciclo de vida dos produtos, nos termos da Lei...”. Nesse viés, passam a ter responsabilidade pelos dejetos do consumo, Estado, Empresa, Consumidor, e demais participantes do ciclo de comercialização e de limpeza pública. Algumas mudanças foram significativas, outras se restringiram a formalizar realidades já existentes, mantendo o Estado como principal responsável e encarregado de maior parte das tarefas e funções dentro do novo sistema. Por conta disto, serão agora listadas setorialmente as principais modificações, especialmente as obrigacionais e sua forma de repercussão na responsabilidade ci- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização vil pelo descarte de resíduos sólidos, para estes três integrantes da responsabilidade compartilhada. 3.2.1 O papel do Estado na Política Nacional de Resíduos Sólidos O Estado, na acepção de organização do poder sobre determinado povo em um território, sempre foi responsável pela coleta e tratamento dos resíduos sólidos, pois o art. 23, inciso VI da Carta Magna diz ser competência comum da União, Estados, Distrito Federal e Municípios a proteção do meio-ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas. Ademais, a Constituição Federal nos incisos do §1° do art. 225 elenca expressamente, mas não de forma exaustiva, uma série de medidas protetivas do ambiente que devem ser efetuadas pelo Estado, consubstanciando um dever geral de proteção deste (SARLET, 2008, p.79). Entre elas, estão o controle da produção, comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para vida do meio-ambiente (inciso V), dentro da qual pode se inserir a disposição e produção de resíduos sólidos. A fiscalização e controle de atividades potencialmente poluidoras, a elaboração e execução de políticas públicas ambientais e a adoção de medidas legislativas e administrativas capazes de conservar o ecossistema, inclusa a educação da população, são todas obrigações da administração pública, que através do juízo de conveniência e oportunidade decide o melhor momento para sua edição. Nesse passo, qualquer omissão ou ação sua na execução deste dever, constitui causa adequada para responsabilização pelo dano direto ou indireto resultante, sendo a destinação inadequada do lixo doméstico e industrial expressão da sua omissão. Há para o Estado uma assunção dos riscos que decorrem de suas obras ou atividades, de forma que se um dano ambiental delas emanar será dever desta pessoa jurídica por ele responder, Capa Sumário 253 até mesmo porque conforme vimos anteriormente, predomina no direito brasileiro a responsabilidade objetiva estatal pelos danos causados pela Administração e seus agentes na prestação de serviços públicos, assegurado o direito de regresso em caso de dolo ou culpa, concorde ao art. 37, § 6° da Constituição da República. Lembre-se que o controle e fiscalização de atividades possivelmente nocivas, também é incumbência do Poder Público, através do exercício do poder de polícia, corroborando na responsabilidade solidária com o poluidor devido à culpa in omittendo(SILVA, 2005, p. 458). Ademais, ao mesmo tempo o art. 30 em seu inciso V diz competir ao Município prestar diretamente ou em regime de concessão ou permissão os serviços públicos de interesse local, onde podemos evidentemente inserir a coleta de lixo. Como bem lembrado por Machado, o Município tem peculiar interesse na organização dos serviços de limpeza pública, coleta, transporte e depósito dos resíduos sólidos, predominando nestes casos sobre os interesses do Estado e da União, os quais, entretanto, não podem se eximir de também regular a matéria e conferir o devido auxílio financeiro (MACHADO, Paulo. 2005, p. 554). Diversos são os instrumentos de gestão a serem empregados pelo ente munícipe na gestão dos resíduos sólidos, desde ações preventivas como o planejamento ambiental e a educação ambiental, como o exercício do poder de polícia através de leis municipais e aplicação de penalidades, como também o licenciamento ambiental de atividades empresariais e cadastro daquelas que fizerem a disposição final de resíduos (PRESTES, p. 303 e 304). A PNRS impulsionada por estas diretrizes estabelece em seu art. 10 ser obrigação do Município o serviço de coleta e tratamento dos resíduos sólidos, acompanhe: “Art. 10. Incumbe ao Distrito Federal e aos Municípios a gestão integrada dos resíduos sólidos gerados nos respectivos territórios, sem prejuízo das competências de controle e fiscalização dos órgãos fede- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização rais e estaduais do Sisnama, do SNVS e do Suasa, bem como da responsabilidade do gerador pelo gerenciamento de resíduos, consoante o estabelecido nesta Lei.” O instrumento básico para esta política federal ser efetivada é o plano nacional de resíduos sólidos, que segundo o art. 15 da Lei 12.305 será elaborado pela União, sob a coordenação do Ministério do Meio Ambiente, com vigência por prazo indeterminado e horizonte de 20 (vinte) anos, a ser atualizado a cada 4 (quatro) anos, tendo como conteúdo mínimo (entre outras disposições): o diagnóstico da situação atual dos resíduos sólidos; metas de redução, reutilização, reciclagem; metas para o aproveitamento energético dos gases gerados nas unidades de disposição final de resíduos sólidos; metas para a eliminação e recuperação de lixões, associadas à inclusão social e à emancipação econômica de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis; normas e diretrizes para a disposição final de rejeitos e, quando couber, de resíduos; meios a serem utilizados para o controle e a fiscalização, no âmbito nacional, de sua implementação e operacionalização, assegurado o controle social. Os Estados também terão de elaborar seus respectivos planos com os mesmos prazos, abrangendo todo o território do Estado, como condição para receber os recursos da União ou por ela controlados, destinados a empreendimentos e serviços relacionados à gestão de resíduos sólidos, ou para serem beneficiados por incentivos ou financiamentos de entidades federais de crédito ou fomento desta finalidade, o qual conterá as mesmas disposições do plano federal acima descrito mas voltadas para o espectro estadual, incluindo a previsão, em conformidade com os demais instrumentos de planejamento territorial, especialmente o zoneamento ecológico-econômico e o zoneamento costeiro, de: a) zonas favoráveis para a localização de unidades de tratamento de Capa Sumário 255 resíduos sólidos ou de disposição final de rejeitos; b) áreas degradadas em razão de disposição inadequada de resíduos sólidos ou rejeitos a serem objeto de recuperação ambiental (art. 17, inciso XI, Lei 12.305/2010). Há ainda a possibilidade do ente estatal elaborar planos microrregionais ou específicos voltados para regiões metropolitanas ou de grande aglomeração urbana, desde que haja a participação obrigatória dos Municípios envolvidos, não ficando excluídas ou substituídas qualquer das prerrogativas a cargo deste ultimo, dentre as quais esta a previsão de confecção pelo ente munícipe dos Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. Nos mesmos moldes que os planos estaduais, os municipais configuram requisito básico para o Distrito Federal e os Municípios terem acesso a recursos da União, ou por ela controlados; dotado de conteúdo mínimo semelhante, conforme explícito no art. 19 da legislação em comento, disciplinando que para aqueles municípios com menos de 20.000 habitantes, o plano adotado terá conteúdo simplificado e que será permitido ao Município optar por soluções consorciadas intermunicipais para a gestão dos resíduos sólidos. Não integralmente adotada a logística reversa, o Município pode prestar compromisso de atividades parciais, como pontos de coleta ou armazenagem de resíduos. Além disto, vê-se que os acordos no âmbito nacional prevalecem sobre os regionais ou estaduais, porém quando o assunto é a salvaguarda ambiental, predomina a regra mais restritiva, ou seja, para funcionar a logística reversa, valerá a regra mais abrangente, que abarque o maior número de participantes, já quanto às metas, prazos e questões relacionadas à proteção ambiental aplica-se a regra mais restritiva, independente de ser federal ou municipal (LOUBET, 2011). Urge avultar que conforme explanado no capítulo anterior, ao tratarmos da responsabilidade civil pelos danos ambientais e vermos que o Estado é responsável subsidiariamente pelos prejuízos advindos desta espécie danosa, podendo ser chamado a com- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização por prejuízos individuais ou coletivos; a PNRS revelou a intenção de manter este entendimento, veja-se: Art. 29. Cabe ao poder público atuar, subsidiariamente, com vistas a minimizar ou cessar o dano, logo que tome conhecimento de evento lesivo ao meio ambiente ou à saúde pública relacionado ao gerenciamento de resíduos sólidos. Parágrafo único. Os responsáveis pelo dano ressarcirão integralmente o poder público pelos gastos decorrentes das ações empreendidas na forma do caput. Assim o ente estatal permanece ocupando um polo de grande importância na responsabilidade pelo descarte de resíduos sólidos, sendo o detentor do maior número de tarefas, pois além de ter de desempenhar atividades positivas, com o desenvolvimento de programas, contratação de pessoas, tem ainda de atuar como fiscal dos outros polos (empresa e consumidor), tanto que tendo notícia de algum problema desta alçada, causado por qualquer das outras pessoas componentes do vínculo logístico, deverá atuar para minimizar ou cessar o dano, demandando posteriormente em face daquele a quem cabia tal tarefa, o qual o ressarcirá pelos gastos desta execução, assim como disciplina o artigo acima transcrito. Quanto ao papel do Estado na gestão integrada de resíduos sólidos, não houve grandes alterações do sistema tradicional, com poucas implicações práticas para a área da responsabilidade civil, dado que permanece a subsidiariedade e possível responsabilização por culpa, tendo a Lei 12.305/2010 aberto possibilidade de convênios com empresas e outros prestadores de serviços de coleta e limpeza urbana. O que acaba ricocheteando na responsabilidade deste ente são as novas atribuições do consumidor e da empresa, que podem amenizar a carga estatal, como analisaremos a seguir. Capa Sumário 257 3.2.2 A responsabilidade do consumidor na gestão compartilhada de resíduos sólidos Normalmente, o consumidor, encarado como elo hipossuficiente da relação consumerista, tende a não ser responsabilizado nos danos que desta decorrem, especialmente quando se trata de danos ambientais, recaindo a responsabilidade sobre a empresa ou fabricante do produto e sobre o Estado que, encarregado da limpeza urbana e saneamento público, queda por auferir os custos da destinação final inadequada dos resíduos subjacentes. Quando se fala em responsabilidade civil na relação de consumo, é recomendável lembrar que incide o tipo objetivo, fundada na teoria do risco do empreendimento, imputando maior parte dos deveres ao fornecedor. Com o desenvolvimento tecnológico, houve um aumento dos riscos para o consumidor, vez que como asseverou Cavalieri, “na produção em série um único defeito de concepção ou fabricação pode gerar riscos e danos efetivos a um número indeterminado de consumidores. São os riscos do consumo, riscos em série, riscos coletivos” (CAVALIERI FILHO, 2010, p.482). Por óbvio que dentre estes riscos, estão os decorrentes dos resíduos e rejeitos dos bens de consumo, vez que ainda que gerados por um único consumidor, ou fornecedor, dispersa no meio-ambiente como um todo seus poluentes, atingindo toda coletividade. Com a entrada em vigor do Código de Defesa do Consumidor, os riscos deixam de correr por conta deste para se chegar à responsabilidade direta do fornecedor pelo dever de segurança ou garantia de idoneidade do produto lançado no mercado. Estas considerações são importantes, pois, aplica-se o CDC sempre que se estiver em face de uma relação de consumo, qualquer que seja a área do direito em que ela vier a ocorrer (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 487), logo, a geração de resíduos sólidos, instantaneamente ligada ao direito ambiental, também pode sofrer os efeitos de sua incidência, uma vez que estes ditos resíduos surgem da utilização do Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização bem de consumo. Consumidor, segundo o art. 2º do CDC é “toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza o produto ou serviço como destinatário final”, por ser o último a ter acesso ao artigo comprado ele passa a ser o elo capaz de escolher o destino que terão os restos da mercadoria utilizada, não havendo como a empresa interferir nisto. Esta constatação também não é recente, existindo menções nos atos administrativos e resoluções do CONAMA, porém ganhando viés legal com formalização dada pela PNRS, conforme realçado no inciso XVII de seu art. 3º. Este papel do consumidor será de extrema importância para complementação das atividades da Empresa no mesmo instrumento legal, vez que esta só poderá dispor adequadamente os resíduos de seu produto, caso o consumidor promova o retorno deste, cabendo ao cerco empresarial incentivá-los neste sentido. Importante destacar que, diante dos conceitos apregoados e das determinações legais gerais do nosso sistema jurídico, infere-se que a responsabilidade do consumidor dentro da responsabilidade compartilhada, será subsidiária, pois apenas tendo a empresa demonstrado que não pode dar a destinação adequada aos resíduos por conta da omissão do consumidor em levar aos postos de coleta os dejetos do consumo, é que poderá este último ser demandado. Poderia se questionar ser esta responsabilidade solidária dado que a classificação como responsabilidade compartilhada levaria a crer tratar-se de um vínculo solidário entre os participantes, todavia, podem existir diversos tipos de compartilhamento, não equânimes, ou onde um não assuma a responsabilidade pela tarefa do outro, não sendo justo que aquele que não se comprometeu com determinada parcela do negócio assuma os encargos da parte inadimplente; assim ocorre no descarte de resíduos sólidos, o consumidor não assume qualquer dever sobre as atividades da empresa ainda que exista uma ligação de dependência entre Capa Sumário 259 ambos, ademais, é sabível que solidariedade não se presume, não podendo se falar nela caso não exista disposição legal expressa ou manifesto da vontade das partes. Não se olvide que estamos diante de relação consumerista, pelo menos no que tange à ligação entre empresa e consumidor no desempenho das regras da PNRS, logo, ao se deparar com dúvidas acerca do cabimento de excludentes nestes casos deve ser seguido os mesmos preceitos da responsabilidade na relação de consumo, que apesar de ser objetiva, comporta algumas ponderações. Dessarte, relevantes os ensinamentos de Cavalieri que relembra e defende a possibilidade de se alegar neste ramo, a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, apesar deste não ser o entendimento unânime da doutrina. Narra o citado autor que “se o comportamento do consumidor é a única causa do acidente de consumo, não há como responsabilizar o produtor ou fornecedor por ausência de nexo de causalidade entre sua atividade e o dano” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 499), ele vai ainda mais além e admite a concorrência de culpa do consumidor “desde que o defeito do produto não tenha sido a causa preponderante para o acidente de consumo” (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 500), lembrando que em ambos os casos o ônus da prova será da empresa. Doutra banda, foi duramente explanado que a questão objeto desta digressão não pode restringir-se à influência de um único ramo jurídico, fora os regramentos do direito civil, as contendas envolvendo as normas da PNRS passam prioritariamente pelo dilema dos danos ambientais, neste passo, será praticamente impossível para a empresa a alegação de certas excludentes pois a rigidez na responsabilidade por danos ecológicos é muito maior do que na relação do consumidor, vez que apesar de ambas serem do tipo objetivo a primeira rege-se pela teoria do risco integral (ressalvadas as controvérsias doutrinarias), sendo necessária a imposição da obrigação de indenizar a todos aqueles que concorram para a ocorrência do dano, de forma direta ou indireta. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização O consumidor exerce ainda uma função fiscalizadora da atividade empresarial, conferindo se esta está desempenhando adequadamente as obrigações a ela inerentes, podendo acioná-la judicialmente caso isto não esteja ocorrendo. Houve um enorme esforço em normatizar esta parceria entre Empresa e Consumidor, justamente no intuito de através da conscientização deste último evitar a consumação do dano pela disposição incorreta do lixo, como clara nuance do princípio da precaução. Entretanto, o art. 28 da Lei 12.305/2010, diz cessar a responsabilidade deste indivíduo “com a disponibilização adequada para a coleta ou, nos casos abrangidos pelo art. 33, com a devolução”. Em que pese a evolução que a possibilidade de dar um papel específico ao consumidor no gerenciamento integrado de resíduos sólidos trouxe para o ordenamento, reconhecendo sua importância, não parece ter agido o legislador com o rigor necessário, dado que não sancionou nenhuma forma de fazê-lo cumprir tal encargo, possibilitando apenas, no que tange à responsabilidade civil, que a Empresa tenha uma justificativa para suas falhas na destinação dos refugos caso o consumidor não cumpra sua parte. 3.2.3 A nova forma de exercício da atividade empresarial após a Lei 12.305/2010 Nas relações de consumo a antiga irresponsabilidade da empresa ou do fornecedor foi substituída pela responsabilidade objetiva, respondendo estes últimos pelo risco de seu empreendimento e por quaisquer eventuais vícios ou defeitos dos bens e serviços fornecidos, independente de culpa, ele passa a ser o garante da qualidade e segurança dos mesmos. Não há duvida, que em relação ao meio ambiente seja da mesma forma. A empresa, justamente, por produzir e colocar no mercado os produtos que posteriormente se transformarão em resíduos a serem descartados deve prestar especial atenção os riscos que Capa Sumário 261 suas mercadorias podem trazer para o ecossistema, e também na própria forma de produção, evitando a contaminação de rios (através de esgotos ou canais que escoam nas águas) e da atmosfera (pelos gases dispersos das máquinas). Embasado pelo conceito atual de função social da propriedade, vê-se que a empresa adquiriu novos dogmas para seu exercício, arraigada em diversos princípios que disciplinam a responsabilidade deste eixo, como o da reparação integral por danos patrimoniais e morais consagrado no art. 6°, VI do CDC; que também assegura o princípio da prevenção reforçado no art. 10, §1° do mesmo código que assim reza: § 1º - O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários. Seguidamente, orientam a responsabilidade empresarial o princípio da informação, que segundo o art. 6°, III é um dos direitos básicos do consumidor a informação adequada e clara dos diferentes serviços e produtos, inclusive quanto aos riscos que apresentem; e por fim, mas exaustivamente, o princípio da segurança, que é a raiz da responsabilidade civil nas relações consumeristas, pois a responsabilidade objetiva nos casos de acidente de consumo decorrem ou do fato do produto ou do serviço, ou seja, de um defeito, e neste sentido é que deve se verificar a questão da seguridade, conforme dispõem os artigos do CDC, in verbis: Art. 12 - O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresenta- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ção ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. § 1º - O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera (...) Art. 14 - O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. § 1º - O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar (...) Esta segurança é aferida, portanto, do exame entre a desconformidade com uma expectativa do consumidor e a capacidade de causar um acidente de consumo. Aqui é importante notar que com a PNRS imputou aos fabricantes diversas obrigações, que direcionam o novo modo de realizar sua atividade em conformidade com a sustentabilidade, entre elas o dever de utilizar materiais propensos a serem reutilizados e reciclados, tanto no conteúdo, como na embalagem do bem de consumo. Para além, os fabricantes, distribuidores e comerciantes passaram a ter de recolher os produtos e resíduos remanescentes após o uso, podendo programar procedimentos de compra dos produtos e embalagens usados, disponibilizar postos de entrega de resíduos reutilizáveis e recicláveis ou através de parcerias com catadores, especialmente para aqueles que estão envolvidos com agrotóxicos, pilhas e baterias, pneus, óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes, produtos eletroeletrônicos e seus componentes. A atividade primordial de integração entre os elos da responsabilidade compartilhada insere-se no setor empresarial que deve através da educação conscientizar seus clientes da necessidade de retorno do produto pós-consumo. Esta atitude se assemelha aos casos conhecidos de recall, quando o fornecedor iden- Capa Sumário 263 tificando alguma falha na fabricação ou defeito que possa vir a comprometer a utilização daquele bem, convoca os compradores a devolverem as mercadorias para serem consertadas; na PNRS o “recall” independerá do defeito de um produto, estará relacionado à segurança do meio ambiente. Não resta dúvida de que esta sustentabilidade a ser incorporada à fabricação, comercialização, utilização e disposição final adequada, redundará em custos mais elevados para a Empresa, o que fatalmente ocasionará uma elevação no preço do produto que acomodará esta externalidade negativa, influenciando consequentemente, no poder de compra do consumidor. Este mecanismo de preço visa promover a repartição dos custos sociais dos danos através da justiça distributiva (CAVALIERI FILHO, 2010, p. 485)e colabora para que sejam colocadas em prática as ações epigrafadas na PNRS, dado que uma vez não sendo possível esta partilha dos custos, dificilmente as empresas poderiam manter seus negócios e adotar posturas sustentáveis ao mesmo tempo, devido ao ainda elevado valor destas técnicas. Com algumas especificidades, a responsabilidade civil da empresa no que se refere ao descarte de resíduos sólidos, segue os mesmos parâmetros da responsabilidade civil nas relações de consumo, como podemos observar das comparações ora realizadas, inclusive quanto à responsabilidade subsidiária do comerciante quando o produtor não puder ser identificado. A Lei 12.305/2010, com a adoção da logística reversa trouxe mais uma incumbência ao setor empresarial, especialmente no retorno dos produtos pós-uso e na fabricação das respectivas embalagens, podendo este ser acionado caso descumpra tais deveres. 4. CONCLUSÃO O presente estudo pretendeu analisar somo se da atualmente a responsabilidade pelo descarte de resíduos sólidos oriun- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 265 dos da relação de consumo após a edição da Lei 12.305/2010 (Política Nacional de Resíduos Sólidos). Observado o papel de cada um dos entes da responsabilidade civil compartilhada, vê-se que a Política Nacional de Resíduos Sólidos, trouxe para a empresa e consumidor deveres para partilhar com o Estado o ônus da limpeza urbana, como único modo de frear o avanço da degradação ambiental decorrente do consumo e produção em massa, repassando para aqueles que de fato lucram com isso, os custos sociais inerentes. Porém, tais inovações seriam facialmente dedutíveis dos conceitos de responsabilidade civil já existentes, atuando a PNRS como uma formalização deste instituto na área do descarte de resíduos sólidos Desta feita, é imperioso destacar que a reparação na área ambiental, apesar das constantes inovações, permanece dificultosa, surtindo escassos efeitos práticos, sendo imprescindível primar pela precaução e por atitudes que incentivem comportamentos em prol da preservação ambiental. Assim, diversas podem ser as opções dentro do sistema legal pátrio para tentar incentivar o cumprimento das disposições da nova legislação e para conferir a esta maior efetividade, que podem ser buscadas através de institutos já consagrados como a sanção premial e os incentivos fiscais, incentivando comportamentos desejáveis e reprimindo os prejudiciais ao meio ambiente, além de uma postura mais focada na preservação e reconstrução que pode ser tomada pelo judiciário no julgamento de causas que envolvam danos ambientais e neste caso, o descarte de resíduos sólidos. __________. Recycling – From E-waste to resources.Disponível em: <http://www.unep.org/PDF/PressReleases/E-Waste_publication_screen_ FINALVERSION-sml.pdf>. Acesso em agosto de 2013. REFERÊNCIAS CAMPOS JÚNIOR, Raimundo Alves de. Oconflito entre o direito de propriedade e o meio ambiente: e a questão da indenização das áreas de preservação florestal. Curitiba: Juruá, 2004. ___________. 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Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Tabela 110 - Quantidade diária de lixo coletado, por unidade de destino final do lixo coletado, segundo as Grandes Regiões, Unidades da Federação, Regiões Metropolitanas e Municípios das Capitais 2000. Disponível em<http://www.ibge.gov. br/home/estatistica/populacao/condicaodevida/pnsb/lixo_coletado/ lixo_coletado110.shtm>. BRASIL. TJ/PR –8ª C.Cível - AC 118652-1 - Curitiba - Rel.: Ivan Bortoleto - Unânime - J. 05.08.2002. Disponível em: <http://portal.tjpr.jus.br/ jurisprudencia/publico/pesquisa.do?actionType=visualizar#>. Acesso em 28/10/2012. CASELLA, Paulo Borba; ACCIOLY, Hildebrando; SILVA, G. E. do Nascimento e. Manual de direito internacional público. 18 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. CONCEIÇÃO, Marcelo Moura da. 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Mark Twain Raíssa Ester Maia de BARROS33 Resumo: Partindo de um diálogo multidisciplinar e apoiando-se nos subsídios teórico/metodológicos oferecidos pelo Direito Civil e Consumerista, este artigo pretende analisar o tratamento legal concernente às regras impostas aos produtos considerados perigosos ao consumo, como é o caso do cigarro. Considerando os fumantes pessoas vulneráveis que precisam de proteção legal e o cigarro como um produto muito viciante, nocivo e perigoso, torna-se necessário que as empresas de cigarros estejam sob um controle rígido e serem severamente punidas quando da violação dos preceitos legais que lhe são impostos. Devido ao descaso de todos esses preceitos e princípios do direito, é necessário exigir a responsabilidade dos fabricantes para reparar todos os danos ocasionados pelo hábito de fumar. Contudo, esta ainda não é uma realidade nas jurisprudências brasileiras que tendem, cada vez mais, a decidirem pela irresponsabilidade das indústrias de cigarro. 33 Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFCG; Pós-Graduanda em Direito do Trabalho e Previdenciário, PUC-MG; Pós-Graduanda em Direito Civil Constitucional pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas, UFPB/ ESMA PB. Advogada. Capa Sumário 269 Palavras-Chave: Cigarro. Dano. Responsabilidade Civil. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objeto de análise a Responsabilidade Civil das Indústrias Tabagistas, tendo em vista a quantidade imensurável de danos decorrentes da relação de consumo composta pelo fumante e as indústrias tabaqueiras visando, dessa forma, contribuir para o entendimento do tema em estudo. Diante de uma temática de complexidade e controvérsias, tentar-se-á abarcar os principais assuntos que a circundam objetivando, destarte, demonstrar as violações dos dispositivos legais, bem como a necessidade de reparação dos prejuízos decorrente deste tipo de relação. Através de estudos e pesquisas, restaram comprovados os malefícios advindos do cigarro. Mais intrigante, ainda, é afirmar que muito antes dessas pesquisas serem reveladas, as indústrias tabaqueiras já detinham o conhecimento de todos esses malefícios, bem como da poderosa dependência química decorrente da nicotina, mas que, intencionalmente, não facilitavam o conhecimento pelos seus consumidores. Ademais, o trabalho fora realizado pautando-se na pesquisa bibliográfica, tendo em vista a demasiada importância de obras, estudos e pesquisas para o desenvolvimento do tema, colocando o pesquisador em contato direto com o que já foi produzido e registrado acerca do tema pesquisado. Fora utilizado o método Sociológico, tendo em vista o aspecto multidisciplinar deste trabalho, uma vez que abarcou não somente os estudos do direito civil, mas, também, o estudo do direito do consumidor e do direito constitucional, ocorrendo a interdisciplinaridade como forma de aclarar sobre determinados fenômenos que serão, aqui, trabalhados. Registra-se, por derradeiro, a utilização do método qualitativo que facilitou a demonstração da complexidade do tema abordado permitindo, assim, a sua compreensão. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 2 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE RESPONSABILIDADE CIVIL Apesar de ser um assunto tratado desde as sociedades primitivas, a Responsabilidade Civil configura-se, hoje, como um dos temas mais complexos do Direito Civil, não só por se tratar de um instrumento utilizado diariamente no cotidiano da sociedade, mas, também, por ser objeto de opiniões doutrinárias e jurisprudenciais complexas, estando no patamar dos temas mais árduos e complexos da seara civilista. A responsabilidade Civil, portanto, nas palavras da doutrinadora Maria Helena Diniz “[...]se dirige à restauração de um equilíbrio moral e patrimonial desfeito e à redistribuição da riqueza de conformidade com os ditames da justiça, tutelando a pertinência de um bem a um sujeito determinado”34. É, pois, a solução legal para que o equilíbrio que fora violado se reestabeleça. Temos a premissa de que para que haja a Responsabilidade Civil, necessariamente, estaremos diante de uma situação anterior que ensejou uma transgressão ao direito de outrem. Sendo assim, é cediço afirmar que para a existência de Responsabilidade haverá, anteriormente, a ocorrência de um dano. Não há que se falar em reparação de dano quando não há dano. A reparação do dano decorrente da responsabilidade civil encontra guarida na disposição do artigo 186 (equivalente ao art.159 do Código Civil de 1916) Código Civil de 2002. O art. 186 dispõe: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.35 Analisando este dispositivo, encontramos os ‘pressupostos (ou elementos) caracteriza34 .DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 5. 35 BRASIL. Código Civil (2002). Vade Mecum. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 163. Capa Sumário 271 dores da responsabilidade civil’, quais sejam: a) conduta, comissiva ou omissiva, violadora do dever jurídico; b) culpa ou risco do agente; c) o dano; d) nexo de causalidade entre a conduta e o dano; e e) o dano. Havendo esses elementos constituintes da responsabilidade, surge para aquele que teve a sua seara jurídica violada o direito à sua devida reparação. O primeiro pressuposto, ‘a conduta violadora’, nada mais é do que o próprio ato ilícito ocasionado tanto por uma ação quanto por uma omissão. É um ato decorrente da vontade humana que produz consequências jurídicas. Essa conduta violadora do bom direito pode ter tanto um cunho objetivo, como um cunho subjetivo, conforme esteja ou não diante do elemento “culpa”. O segundo pressuposto é o ‘nexo de causalidade’. Este elemento pode ser definido como o liame entre a conduta violadora e o dano. Ou seja, só haverá reparação civil se o dano, efetivamente, decorrer de uma ação do agente. Em outras palavras, não basta a mera ocorrência do dano. É primordial que o dano seja resultado da conduta comissiva ou omissiva. Destarte, este elemento caracteriza uma relação de causa e efeito. Nesse sentido, só haverá o direito à reparação ao se provar esta relação de causalidade, comprovação esta que, via de regra, deve ser feita pelo autor da demanda. Por derradeiro, ressalta-se que no que tange ao nexo de causalidade, existem algumas teorias. Contudo, é a teoria da causalidade adequada é considerada a majoritária. Por derradeiro, o último elemento caracterizador da responsabilidade civil: ‘o dano’. É cediço o entendimento de que não existe reparação sem que, anteriormente, haja um dano, um prejuízo, que pode ser tanto patrimonial, ou seja, quando o prejuízo recai sob o patrimônio da vítima, diminuindo seu valor ou, até mesmo, restringindo sua utilidade (perda ou deterioração); moral, quando fere um direito inerente a personalidade da vítima; ou estético, quando causa à vítima um ferimento à sua estética. Neste diapasão, é válido ressaltar a existência das ‘Exclu- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dentes de Responsabilidade’, quais sejam, o Fato exclusivo da vítima, Fato de Terceiro, Caso Fortuito e Força Maior. O conceito de excludente de responsabilidade é pautado no elemento “nexo causal”. Quando este liame é rompido, a responsabilidade também será quebrada. Daí, a importância de analisar as excludentes de responsabilidade, tendo em vista que são instrumentos capazes de fulminar a responsabilidade do agente. 3 TUTELA CONSTITUCIONAL DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Foi plausível a previsão do Código de Defesa do Consumidor (CDC) dentre as normas da Constituição Federal. Resta inequívoca tamanha importância deste feito, uma vez que fora originada por expressa previsão constitucional e por encontrar-se no rol dos direitos e garantias fundamentais, no art. 5º, XXXII, da Carta Maior, passando a integrar o ordenamento jurídico com toda a força, dando alicerce e servindo de instrumento utilizado não somente para regulamentar relações de consumo, mas, também, todas as relações provenientes desta. Em 11 de setembro de 1990, foi editado o Código de Defesa do Consumidor, cujo conteúdo material passou a integrar nosso ordenamento jurídico pátrio por meio da Lei 8.078/90. Nessa esteira, fora instituído um microssistema normativo completo, tendo em vista que o CDC é formado por uma diversidade de normas de direito civil, administrativo, penal e até processual coletivo. Com o objetivo de salvaguardar os interesses dos sujeitos da relação de consumo, sobretudo, os mais frágeis (consumidores), o CDC veio tutelar pessoas submetidas ao poderio econômico, à capacidade científica e técnica de outrem. Resta clara a intenção do legislador em proteger os interesses dos sujeitos das relações de consumo, embasando-se, acima de tudo, na dignidade da pessoa humana, bem como de estabelecer tutelas adequadas e Capa Sumário 273 instrumentos que servissem de alicerces para quaisquer celeumas que, por ventura, surgissem. O CDC representa, assim, um conjunto normativo de ordem pública, ou seja, de aplicação obrigatória, cogente, de interesse social, principiológica, pois veicula valores e fins a serem alcançados, conferindo privilégios aos consumidores já que, economicamente, aparecem como o lado mais fraco da relação de consumo. Como forma de suprir esta desigualdade, o CDC surge garantindo o equilíbrio, a igualdade e justiça nas relações de consumo. Para que se torne possível conceituar os sujeitos da relação de consumo, faz-se mister o entendimento de que relação jurídica de consumo pode ser conceituada como aquela existente entre consumidor e fornecedor e que tem como objeto um produto ou a contratação de um serviço. Os sujeitos da relação de consumo configuram como elementos subjetivos. São eles: O consumidor e o Fornecedor. Nós temos no CDC, no caput do seu art. 2º, o conceito do que vem a ser Consumidor. Este artigo afirma que “Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final”.36 Conforme dito anteriormente, o consumidor configura-se como o elo mais fraco da relação de consumo e, por este motivo, com a elaboração do CDC, este passou a ser mais protegido, possuindo ‘superioridade jurídica’ em relação ao fornecedor, medida esta fruto da sua vulnerabilidade. O princípio da vulnerabilidade em comento, encontra guarida no art.4º, I, do CDC, que prega a proteção do “reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo”.37 Em relação as principais vulnerabilidades adotadas pelo STJ, baseado na doutrina de Cláudia Lima Marques, temos que vulnerabilidade pode ser dividida em três aspectos: a vulnerabilidade 36 .BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Senado, 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm . Acesso em: 18/10/2012 37 BRASIL, op. cit., nota 4. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização técnica, vulnerabilidade jurídica e vulnerabilidade econômica. Leonardo de Medeiros Garcia dá os seguintes conceitos a estas vulnerabilidades: Vulnerabilidade Técnica seria aquela no qual o comprador não possui conhecimentos específicos sobre o produto ou o serviço, podendo, portanto, ser mais facilmente iludido no momento da contratação. Vulnerabilidade Jurídica seria a própria falta de conhecimentos jurídicos, ou de outros pertinentes à relação, como contabilidade, matemática financeira e economia. Vulnerabilidade Econômica é a vulnerabilidade real diante do parceiro contratual, seja em decorrência do grande poderio econômico deste último, seja pela sua posição de monopólio, ou em razão da essencialidade do serviço que presta, impondo, numa relação contratual, uma posição de superioridade.38 Em nosso ordenamento jurídico, fala-se em correntes ou teorias que surgiram para explicar o conceito de destinatário final que é colocado no caput do art. 2º do Código de Defesa do Consumidor: a Teoria Finalista ou Subjetiva, a Teoria Maximalista e a Teoria Mista. Segundo o CDC, a teoria adotada é a chamada Finalista ou Subjetiva. A Teoria Finalista afirma que consumidor é o destinatário final que adquire um produto ou uma prestação de serviços para si ou para outrem, desde que o produto ou o serviço não tenha caráter para desenvolver atividade comercial e/ou profissional. Contudo, apesar da lei ser bem expressa, o STJ embasado na doutrina de Cláudia Lima Marques, aprofundou a teoria ora narrada. Assim sendo, abrandou o critério subjetivo da teoria finalista para incluir certas pessoas na qualidade de consumidor como, por exemplo, os microempresários e empresários individuais, desde que feita a 38 .GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor. 5. ed. Bahia: Podium, 2011, p. 23. Capa Sumário 275 prova de vulnerabilidade. A partir desta mitigação da teoria finalista realizada pelo STJ, surgiu a chamada Teoria Finalista Aprofundada ou também chamada de Teoria Finalista Mitigada, que pode ser definida como o resultado do abrandamento da teoria finalista, ou seja, alguém que não era atingido pelo conceito de consumidor, por esta teoria, passou a ser atingido. Para que possamos concluir o conceito e aspectos gerais acerca do consumidor padrão, vejamos um acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que retrata a mitigação da teoria finalista quando do abrandamento do aspecto subjetivo, abrangendo pequenas empresas e profissionais quando estas provam suas vulnerabilidades. Segue abaixo o Recurso Especial 476428/SC, Rel. min. Nancy Andrighi: [...] Com vistas, porém, ao esgotamento da questão, cumpre consignar a existência de certo abrandamento na interpretação finalista, na medida em que se admite, excepcionalmente e desde que demonstrada in concreto a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica , a aplicação das normas do Código de Defesa do Consumidor a determinados consumidores profissionais, como pequenas empresas e profissionais liberais. Quer dizer, não se deixa de perquirir acerca do uso, profissional ou não, do bem ou serviço; apenas, como exceção, e à vista da hipossuficiência concreta de determinado adquirente ou utente, não obstante seja um profissional, passa-se a considerá-lo consumidor.”39 (STJ, Resp 476428/SC, Rel. min. Nancy Andrighi, pub 09.05.2005) Em suma, é possível afirmar que Fornecedor é qualquer 39 .BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 476428/SC. Recorrente: AGIPLIQUIGAS. Recorrido: GRACHER Hotéis e Turismo LTDA. Terceira Turma. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Santa Catarina, julgado em 19/04/2005. Publicado no DJ em 09/05/2005. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/justica/detalhe. asp?numreg=200201456245>. Acesso em: 27/09/2012. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização pessoa que, com habitualidade, fornece no mercado produtos ou prestação de serviços, de modo a preencher as necessidades daqueles que compõem a sociedade de consumo. Por fim, o último elemento da relação de consumo é o Produto ou Serviço. Ao definir produto e serviço, prevê o CDC, no §1º do art. 3º, “Produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial. Já o §2º, define o conceito de Serviço como sendo qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive de natureza bancária, financeira [...]” 40. 4 RESPONSABILIDADE CIVIL NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR Conforme dito anteriormente, a responsabilidade civil no Código de Defesa do Consumidor aparece como uma evolução no ordenamento jurídico brasileiro, tendo em vista que adota a responsabilidade objetiva do fornecedor, ou seja, a responsabilidade sem a necessidade de provar a culpa do agente. Neste sentido, afirma Cavalieri Filho que “atualmente, a responsabilidade civil pode ser dividida em duas partes: a responsabilidade tradicional e a responsabilidade nas relações de consumo” 41 Diante desse avanço jurídico, leciona Lúcio Delfino que: Chegava-se a falar em aventura de consumo; afinal, se o consumidor fosse lesado por algum produto ou serviço, dificilmente conseguiria demonstrar a culpa do fornecedor, tendo, por conseguinte, que arcar com os danos sofridos. Com a situação invertida, cabe aos fornecedores garantirem a solidez e segurança de seus produtos e serviços, mormente porque, hodiernamente, nenhum consumidor que buscar amparo no Judiciário deixará de ser indenizado por lesões sofridas em acidentes de consumo, 40 BRASIL, op. cit., nota 4. 41 .CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. 3.Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. Capa Sumário 277 bem assim nenhum fornecedor se esquivará da responsabilidade de indenizar aqueles danos causados por produtos ou serviços imperfeitos de sua responsabilidade.42 A responsabilidade civil edificada na Lei 8.078/90, nada mais trouxe que a responsabilidade do fornecedor pela segurança dos produtos e serviços por ele prestados, independentemente da configuração de culpa, tendo em vista que a comprovação desta, antes da responsabilidade objetiva, tornava o fornecedor quase que ‘irresponsável’ deixando, assim, o consumidor impossibilitado da verdadeira proteção jurídica. Para tanto, leciona mais uma vez Lúcio Delfino, que “em se tratando de relação de consumo, a responsabilidade civil terá por pressuposto não a culpa do fornecedor, senão o descumprimento de um dever jurídico primário de segurança” 43. Dessa forma, os fornecedores ficam obrigados a garantir solidez e segurança, de modo que, caso não o façam, serão responsabilizados e obrigados a reparar o prejuízo causado aos seus consumidores, independentemente de culpa. Essa inovação se traduz como um dever legal de segurança imposta ao fornecedor, oferecendo maior conforto e tutela efetiva ao consumidor para que, havendo necessidade, não se torne tão dificultosa a sua reparação. 5 RESPONSABILIDADE CIVIL PELO FATO DO PRODUTO E TABAGISMO Fato do produto e Acidente de consumo, muitas vezes, são considerados sinônimos, ou seja, anomalias que tornam produtos inadequados aos fins que se destinam. São imperfeições intrínsecas/ extrínsecas, capazes de contaminar o produto, bem como 42 43 DELFINO, Lúcio. Responsabilidade Civil e Tabagismo. Curitiba: Juruá, 2007 .Ibid, p.178. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização causar lesões à esfera material e/ou psíquica do consumidor. Ambos são alavancas de danos morais e materiais ao consumidor que fora prejudicado decorrente de imperfeição do produto.44 A responsabilidade civil pelo fato do produto encontra guarida no disposto do artigo 12, do CDC, que nos traz a chamada responsabilidade objetiva do fornecedor (responsabilidade independente de culpa). Analisando este dispositivo, percebe-se a intenção do legislador em priorizar este tipo de responsabilidade quando elenca a expressão “independentemente de culpa”. Aqui não há que se falar em culpa, tendo em vista que a lei 8.078/90 se desprendeu da forma tradicional antes adotada, baseada sempre na culpa. Nesta situação, não se torna importante se o agente agiu culposamente ou não. O que importa para essa responsabilidade prevista no artigo 12 do CDC é a anomalia, a imperfeição do produto que não gera a devida segurança que o consumidor tem expectativa quando o adquire. Ainda, é de demasiada importância ressaltar acerca de um equívoco bastante corriqueiro nas fundamentações de julgados que beneficiam as indústrias tabagistas, em ações contra elas promovidas. Sobre isso, ensina Lúcio Delfino: Refere-se aqui à premissa insustentável, no mais das vezes utilizada como alicerce de tais julgados, fundada na ideia de que a licitude da atividade da indústria do fumo conduziria a um raciocínio por meio do qual se poderia. concluir ser ela absolutamente irresponsável pelos danos que os cigarros acarretam aos seus consumidores. Nada mais ilógico, data vênia. Tal ideia, fragilizada mesmo que por uma análise rasa do tema, apenas vem a comprovar que, ainda hoje, o CDC não é uma legislação adequadamente compreendida pelos operadores do direito.45 44 45 Capa DELFINO, op. cit., p.200, nota 10. Ibid., p. 201 Sumário 279 Ou seja, baseado nessa ideia, não deveria ser levado em consideração, para efeitos de responsabilidade, a legalidade ou ilegalidade da atividade exercida pelo fornecedor. A adoção desta ideia torna a responsabilidade objetiva, inovação do CDC, uma letra morta em nosso ordenamento jurídico. Esse tipo de entendimento configura-se como um empecilho de o consumidor ver seu prejuízo reparado, tendo em vista que a grande maioria das atividades é lícita, acarretando numa quase completa irresponsabilidade por parte do fornecedor. Na verdade mesmo, o que se deve ser levado em consideração é a obrigação por parte do fornecedor em fornecer segurança aos seus consumidores, de modo a preservar uma justa e coerente relação de consumo. Ratificando este pensamento, nas palavras de Lúcio Delfino, “o fato gerador não corresponde à ilicitude da atividade, senão aquelas imperfeições rotuladas pelo CDC de vícios/ defeitos”.46 E é exatamente isso que buscou proteger o legislador na elaboração do art.12, §1º e seus incisos do CDC. Vejamos o teor deste dispositivo: [...] §1º O produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I – sua apresentação; II – o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III – a época em que foi colocado em circulação. Analisando este artigo, conseguimos visualizar os três elementos determinantes da segurança dos produtos. São elementos que os produtos necessariamente deverão possuir resguardando, assim, sua segurança. São eles: a apresentação do produto, o uso e riscos que o consumidor razoavelmente espera do produto, bem como a época em que foi colocado no mercado. 46 DELFINO, op. cit., p.201, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização No que diz respeito ao Vício ou Defeito de Concepção/ Criação do Cigarro, esse tipo de defeito decorre de erro ocasionado na época da execução do projeto. O art.12 do CDC assegura que o fabricante será responsável, independentemente de culpa, por defeitos decorrentes do projeto, fabricação, fórmulas, manipulação e entre outros. Sendo assim, colocado no mercado de consumo um produto que, desde a sua origem, já era considerado danoso ao uso do consumidor, deveria (em tese) ensejar a responsabilidade de seu fabricante. Esse tipo de defeito/vício atinge toda a categoria do produto sendo necessário, dessa forma, a sua retirada total do mercado. Isso se aplica perfeitamente ao caso do cigarro, já que em sua composição utiliza-se substâncias danosas à saúde, especialmente a nicotina, causadora de dependência ( inclusive, seu uso fora considerado uma doença crônica pela OMS). Em virtude disso, o Estado através da ANVISA, Agencia Nacional de Vigilância Sanitária, reconheceu a nicotina, na Resolução de Diretoria Colegiada (RDC) n. 104, de 31/05/2001, como produto psicotrópico obrigando que os fabricantes de cigarro informassem em suas propagandas todos os males advindos do uso do cigarro. Contudo, mesmo sendo do conhecimento do Estado que a nicotina causa dependência, não houve a sua inclusão na Portaria SVS/MS 343, que trás em seu conteúdo a lista de substâncias psicotrópicas merecedoras de controle especial. Desse modo, parafraseando as palavras de Lúcio Delfino, necessário seria se o Estado intervisse regulamentando o uso da nicotina, de maneira mais incisiva, impondo regras mais claras e específicas, no sentido de educar a sociedade e evitando a quantidade exacerbada de mortes pelo uso desse produto.47 Já no que tange ao Vício ou Defeito de informação do cigarro, como se sabe, o CDC assegurou, em seu art. 6º, o direito básico do consumidor acerca da “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quan47 Capa DELFINO, op.cit., nota 10. Sumário 281 tidade, característica, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.48 Este dever de informação é reforçado, ainda, pelo disposto no art. 31. Não obstante, vincula-se ao princípio da Transparência, consagrado no art.4º do CDC. Além disso, o CDC prevê em seu art. 9º, que os produtos potencialmente nocivos devem conter, além do que estabelece o art.6º, III, e art.31, a “complementação, de forma especial, no que diz respeito à nocividade e periculosidade do mesmo, que deverá ser informada de forma ostensiva e adequada.”49 Havendo o desrespeito a essas regras, necessário se faz a responsabilização do infrator, independentemente do consumidor provar a sua culpa. Contudo, esse dever de informação não é algo corriqueiro entre as indústrias fumígenas. Elas não fornecem informações ostensivas acerca dos riscos do cigarro. Interessante seria a adoção de regras mais contundentes e punições mais severas para força-las ao cumprimento das regras estabelecidas pelo nosso ordenamento jurídico, salvaguardando os interesses dos consumidores vulneráveis que carecem de proteção jurídica. Nesse Contexto de Responsabilidade Civil no bojo do CDC, há de se falar, ainda, da Falta de Segurança Legitimamente Esperada. Ao afirmar que o produto é defeituoso quando não oferece segurança que dele legitimamente se espera, o legislador não foi tão sábio. Esse conceito foi colocado de forma vaga, fazendo com que o juiz, ao se deparar com o caso concreto, deverá levar em consideração as expectativas objetivas dos consumidores em geral e não as expectativas subjetivas do lesado. A apresentação do produto está ligado intimamente na necessidade das indústrias tabagistas informarem acerca de todos os riscos, componentes do cigarro, garantia, validade, riscos à saúde e entre outros aspectos que são fundamentais, capazes de influenciar o consumidor em adquirir o produto ou não. Infelizmente, a 48 49 BRASIL, op.cit., nota 4. BRASIL, op.cit., nota 4. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização indústria do tabaco não respeita esse preceito legal na sua forma integral, fornecendo aos seus clientes informações superficiais, não suficientes ao seu uso. Essa inobservância legal origina o que chamamos de publicidade enganosa por omissão. Já em relação ao uso e riscos que o consumidor razoavelmente espera do produto, é sabido que todos os produtos e serviços, quando são anunciados, acabam gerando certa expectativa ao consumidor. Mas, muitas vezes, o que o consumidor espera desse produto não se concretiza, gerando uma enorme frustração, já que não gerou a devida segurança e proteção legitimamente esperada. Produto ou serviço defeituoso é inadequado, imprestável ao consumo. Por isso que se entende “produto defeituoso não somente aquele viciado mas, também, aquele produto que não atenda as expectativas do consumidor, não atenda à segurança e ao aperfeiçoamento ditados pela lei.50 Por fim, quanto à época da colocação do produto no mercado, afirma James Marins: levando-se em conta a época em que o produto foi colocado no mercado, não poderá haver legítima expectativa de segurança que vá além da ciência existente; ou seja, qualquer expectativa de segurança somente será legítima se não pretender que o produto possa superar o próprio grau de conhecimento científico existente no momento em que se deu sua introdução no mercado.51 Em relação às indústrias tabagistas, a época de colocação no mercado não deve ser considerada como uma excludente de responsabilidade, tendo em vista que a partir de documentos secretos, restou provado que a indústria do fumo, há mais de quatro 50 .FORMIGA, José Carlos. Responsabilidade Civil do fabricante de cigarro. Trabalho de Conclusão de curso. (Graduação em Direito) – Centro Universitário de João Pessoa, Paraíba, 2007. 51 .MARINS, apud DELFINO, op. cit., p. 261, nota 10. Capa Sumário 283 décadas, é ciente do efeito de dependência gerado pela nicotina e de que o tabagismo é causador de câncer.52 Nesse prisma, detendo conhecimentos sobre a capacidade mortífera de seu produto por décadas, qualquer tentativa de se obter uma decisão elidindo a sua responsabilidade, com base no inciso III do art. 12 da lei n. 8.078/90, seria absolutamente inócua.53 Sendo assim, no desrespeito a essas três determinantes de segurança, fica o fornecedor obrigado a reparar o dano, caso tenha como resultado dano moral ou material ao consumidor. Daí a importância do termo “segurança”. Lúcio Delfino afirma: Ao rotular de inseguro aquele produto que não oferece a segurança legitimamente esperada pelo consumidor, o CDC impõe um ônus legal ao fornecedor, de sorte que, se esse disponibilizar, no mercado de consumo, produto imperfeito/inseguro e, por conseqüência, consumidores se virem prejudicados por situação que atinge outros bens seus (saúde, vida, patrimônio material ou moral), que não o próprio produto em si, surge o seu dever indenizatório, fincado no art. 12 do citado Diploma legal. A lesão ao dever de segurança implica a real possibilidade de se atingir o patrimônio jurídico do consumidor em sua mais ampla acepção, notadamente naquilo que se refere a sua saúde e própria vida.54 Para tanto, não importa o argumento das indústrias tabagistas de executarem atividade lícita – o que se questiona é o fato do produto ser dotado de defeito/imperfeição atender as expectativas do consumidor. A saúde, como se sabe, é assegurada na Constituição Federal como direito de todos e dever do Estado. A lei 8078/90, seguindo os ditames da Constituição Federal, também estabeleceu 52 53 54 Loc. cit. DELFINO, op. cit., p. 261, nota 10. DELFINO, op. cit., p. 203, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização a proteção à saúde como um dos direitos básicos do consumidor. Qualquer situação que venha a contrariar essas regras deve ser considerada ilegal ou prejudicial ao ser humano, tendo em vista que a saúde é o bem mais precioso que existe. O cigarro, por causar tantos males à saúde, é um típico produto defeituoso, devendo ser mola propulsora de reparação dos danos causados aos consumidores que dele se utilizam. 285 Apesar das consequências negativas provocadas pelo tabaco aos seres humanos, o seu consumo se materializa por todos os lados do mundo. Considerado como um dos maiores males da humanidade, disseminou-se por todos os países do mundo causando inúmeras doenças e mortes aos que dele se utilizavam. A respeito do surgimento do tabaco, não há unanimidade. Alguns historiadores afirmam ter sido o tabaco originário da América Central e somente em 1000 a.C. passou a ser utilizado pelos povos indígenas para tratamentos de purificação religiosa e para tratamentos de doenças. Já em relação à sua chegada à Europa, alguns historiadores atribuem este fato a Jean Nicot, diplomata francês, que residia em Lisboa. De acordo com a história, Jean Nicot era portador de uma doença na perna. Até então, este diplomata não havia encontrado cura para seu problema. Foi quando se encontrou com Damião de Góis, que lhe entregara um pouco da planta recolhida em uma de suas viagens. Ao utilizar-se da planta, teve sua perna cicatrizada.55 Jean Nicot é considerado, por muitos, o responsável pela propagação do tabaco por todo o continente europeu e, por isso, teve o seu nome homenageado (que de home- nagem não tem nada!) associado a esta erva: nicotiana tabacum.56 Durante muito tempo, o povo daquela época utilizava-se bastante do tabaco como fonte medicinal para diversos tratamentos de doenças, tais como enxaquecas, reumatismo, doenças venéreas e entre outras. Como era novidade para as pessoas, foi muito fácil o tabaco se espalhar para os quatro cantos do mundo como algo bom e que trazia benefícios à saúde, já que estava diretamente ligado à cura. Contudo, apesar das advertências dos médicos da época, que nem tinham tanto conhecimento como os médicos de hoje, houve o desvirtuamento do uso do tabaco, que passou a ser utilizado, meramente, por prazer. Passado certo tempo, foram verificados vários males ocasionados pelo uso do tabaco. O uso foi tão intenso que os médicos da época afirmavam que se o uso da erva do tabaco continuasse tão desenfreado, chegaria a um ponto em que os governos não teriam pessoas suficientes para seus exércitos57. Desenfreadamente, a utilização do tabaco passou a ser perseguida pelos governos e pela igreja, sendo o seu uso equiparado a crime punido com pena de morte. Porém, com a expansão acelerada do tabaco, os governos perceberam que não conseguiriam privar o seu uso. A partir deste momento, utilizou-se como contramedida a sua elevada tributação. A fumaça do cigarro é resultado de uma verdadeira mistura de componentes químicos. Tem-se notícia de que é formada por, aproximadamente, 4.700 substâncias tóxicas, constituindo-se de duas fases: a fase condensada e a fase gasosa. Na fase gasosa, podemos citar como exemplos o monóxido de carbono, a nicotina, cetonas e formaldeído. Já na fase condensada, encontramos novamente a nicotina, bem como outras 43 substâncias cancerígenas, como o chumbo, níquel, além das substâncias radioativas como o carbono 14, polônio 210, rádio 226 e etc. Dentre as substâncias 55 .NUNES, Pedro. (1994, p.750) apud MORAES, Carlos Alexandre. Responsabilidade Civil das Empresas Tabagistas. 1. Ed. Curitiba: Juruá, 2010. p.33. 56ROSEMBERG, apud DELFINO, op. cit., p. 31, nota 10. 57 DELFINO, op. cit., p. 30, nota 10. 6 PERSPECTIVA HISTÓRICA DO CIGARRO E INSERÇÃO DESSE PRODUTO NO CONTEXTO SOCIAL Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tóxicas elencadas, uma delas ganha bastante relevância. Estamos falando de uma droga potentíssima, responsável pelo surgimento da dependência e vício nos tabagistas: a nicotina. A Organização Mundial de Saúde, bem como outros organismos internacionais, consideram a nicotina uma droga. Por este motivo, podemos encontrar a dependência do cigarro como uma doença, colocada pela Organização Mundial da Saúde, na Classificação Internacional de doenças como F.17.2, leia-se, síndrome da tabaco dependência (grifo nosso).58 Acerca da dependência da nicotina no organismo, ensina Mario Cesar Carvalho: Embora a sensação de prazer seja verdadeira, a impressão de que o cigarro acalma, relaxa e funciona como estabilizador do humor é tão falsa como uma nota de 3 reais. Na verdade, a sensação de relaxamento ocorre porque a nicotina agiu sobre um mecanismo produzido por ela própria: o da dependência. Ao tragar um cigarro, o fumante acalma-se pois estava em crise de abstinência. A nicotina eu ele consumira já havia se dissipado do organismo. Aí começaram os sintomas da falta da nicotina – uma ansiedade que parece irritação, nervosismo e incapacidade de concentrar-se. Quando se aspira o cigarro, a crise de abstinência é interrompida e tem-se a sensação de relaxamento. 59 287 bricantes do cigarro, qual seja, de que o cigarro é um produto cuja periculosidade lhe é inerente. Como se sabe, O art. 8º do CDC prescreve que “os produtos colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores” 60. Entretanto, o mesmo artigo prevê uma exceção: é o caso dos produtos que apresentam riscos considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição. Nesse caso, poderão esses produtos ser colocados no mercado, desde que contenham a adequada informação61. É exatamente nessa exceção que os fabricantes de cigarro se baseiam. Alegam que o cigarro possui risco considerado normal e previsível em decorrência de sua natureza e fruição. Contudo, jamais poderia lograr êxito esse argumento, pois, se assim fosse, estaríamos diante de uma excludente de responsabilidade, hipótese em que jamais as indústrias tabaqueiras poderiam reparar qualquer prejuízo causado aos fumantes em virtude do uso de seu produto. Nesse sentido, afirma Lúcio Delfino: Não se podem considerar tais riscos normais em decorrência da natureza e fruição do cigarro. Em primeiro lugar, a natureza do cigarro, vista como conjunto de substancias que o compõem e que dele emanam quando aceso, é desconhecida pelo consumidor de inteligência mediana. Só para se ter uma idéia, são quase cinco mil substancias lançadas ao ar com a fumaça do cigarro, dentre elas substancias tóxicas, cancerígenas e, ate mesmo, radioativas. [...] Segundo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, fruir significa gozar, desfrutar. Quem fuma não tem como pretensão desfrutar, no futuro, um câncer no pulmão ou uma diminuição do desejo sexual. Não pretende, logicamente, perder grande parte da sensibilidade de seu paladar ou, ainda, gozar um envelhecimento precoce. Não existe no fumante o desejo de, ao adquirir um maço de cigarros, depreciarem sua saúde Sendo assim, percebe-se que a nicotina, fonte causadora da dependência e falsa sensação de bem-estar, revela-se como um remédio para algo ocasionado por ela mesmo. Assim, o mal-estar causado pela ausência desta substância no organismo, pode ser suprido com o bem-estar que tão somente ela proporciona. A nicotina nada mais é do que a forma de tornar o fumante escravo do tabaco. Oportunamente, menciona-se um dos argumentos dos fa58 59 Capa Ibid, p.38. .CARVALHO, apud DELFINO, op. cit., p. 39, nota 10. Sumário 60 61 BRASIL, op. cit., nota 4. DELFINO, op.cit., p.205, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ou de buscar sua morte prematura. Considerar esses fatos como verdadeiros seria o mesmo que admitir a premissa insustentável de existir no mundo mais de um milhão de suicidas.62 Nos dias hodiernos, o tabagismo é entendido como uma doença crônica. Isto porque a ciência encarregou-se de provar que, mesmo havendo vontade do fumante em parar de fumar, na prática, é muito difícil abandonar o consumo do tabaco.63 Não é sábio acreditar que apenas a força de vontade do fumante em abandonar o vício de fumar é suficiente para que alcance tal objetivo. Vai muito mais além do que a própria vontade. Além da consciência de saber que fumar faz mal a própria saúde, ainda há a frustração ocasionada pela incapacidade de combater o vício. Em linhas gerais, podemos destacar várias doenças ocasionadas pelo uso do cigarro. Podemos citar, como exemplo, o câncer de pulmão, câncer de garganta, bronquite crônica, enfisema pulmonar, doenças coronarianas, acidentes vasculares cerebrais, doenças nos ossos, impotência, além de outros problemas de saúde resultantes do tabagismo. Através de pesquisas, registrou-se que em torno de 98 % dos tabagistas possuem em suas mucosas células compatíveis com lesões pré-cancerígenas, que se desenvolvem, cada vez mais, na medida em que o vício vai perdurando. Quando ocorre o diagnóstico do câncer de pulmão, há três alternativas para se tratar a doença: quimioterapia, radioterapia e a cirurgia.64 No que diz respeito ao uso de cigarro por crianças e adolescentes, sabe-se que por serem naturalmente inexperientes e inseguros, crianças e adolescentes acabam se tornando alvos fáceis das indústrias tabagistas. Não são poucas as crianças que já têm experiência com o cigarro na vida intrauterina. Algumas mulheres viciadas no fumo, quando engravidam, não conseguem se desven62 63 64 Capa Ibid, p.207. DELFINO, op.cit., p.45, nota 10 .SILVA; GOLDFARB, apud DELFINO, op. cit., p. 48, nota 10. Sumário 289 cilhar do cigarro por causa do efeito de dependência ocasionada pela nicotina no organismo. Estudos mostram que mulheres, durante o período gestacional, que fumavam 10 cigarros por dia, causaram retardamento na criança no que diz respeito ao seu aprendizado de leitura e matemática, ao serem comparadas com outras que não vivenciaram este problema. 65 Sobre isso, Lúcio Delfino demonstra em uma de suas obras: Em 2003, uma pesquisa nacional revelou que a nicotina é a droga mais consumida no país por crianças e adolescentes entre 10 e 18 anos. Segundo o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas(Cebrid), da Universidade Federal de São Paulo, 44,5% dos jovens consomem tabaco. A pesquisa foi realizada a pedido da Secretaria Nacional Antidrogas e ouviu 2.807 pessoas nos 27 estados do país.66 Segundo a Organização Mundial de Saúde, se nada for feito para frear as indústrias tabagistas e o consequente consumo de seus clientes fieis, até 2025 o cigarro será o responsável por matar 500 milhões de pessoas em todo o mundo. Afirma, ainda, que deste total, 200 milhões serão crianças e adolescentes que começaram a fumar na última década67. 7 FUMANTE PASSIVO E SUA FIGURAÇÃO COMO CONSUMIDOR Além de fazer mal a saúde do próprio fumante, o cigarro também faz mal às pessoas que estão ao seu redor. São os chama65 .INCA. Efeitos da fumaça sobre a saúde da criança. Disponível em: http:// www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=passivo&link=crianca.htm>. Acesso em: 04/10/2012. 66 DELFINO, op. cit., p. 64, nota 10. 67 . DELFINO, op. cit., p. 64, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dos fumantes passivos. Fumante passivo é aquele indivíduo que não tem o hábito de inalar o fumo da forma convencional, mas que está inserido em um ambiente que tenha exposição à nicotina, monóxido de carbono e outras substâncias tóxicas que compõem o cigarro. Incrivelmente, o mal causado pelo cigarro ao fumante passivo é tão devastador quanto ao fumante ativo. Durante a combustão do cigarro, são liberadas quantidades maiores de nicotina e de substâncias tóxicas. O fumante passivo está exposto não somente à inalação da fumaça liberada pelo fumante ativo como, também, exposto à queima da ponta do cigarro. Para isso, explica José Rosemberg: A constituição do fumo inalado pelos chamados fumantes ativos e a do fumo to tabaco disperso no ambiente são diferentes, existindo, no último, maior número de substâncias cancerígenas.[...] a mais importante colaboração para a poluição é a fumaça que se evola da ponta do cigarro aceso. É a chamada “corrente secundária”, contendo praticamente todas as substâncias do tabaco e, muitas delas, em maiores proporções que a “corrente principal”. Essa corrente secundária é produzida 96% do tempo total do consumo de um cigarro, contendo, em comparação com a corrente principal- aquela expelida pelo fumante- três vezes mais nicotina, três a oito vezes mais monóxido de carbono, 47 vezes mais amônia, 4 vezes mais benzopireno e 52 vezes mais dimetil, nitrosamina, piridil, butanona, estes dois último, potentes cancerígenos. Essa fumaça tóxica espalha-se no ambiente, fazendo com que as pessoas próximas inalem suas concentrações tóxicas.68 Diante de tantos males causados ao fumante passivo, torna-se necessário proteger não somente aquele que consome diretamente o cigarro mas, também, aquele que é atingido indiretamente pela relação de consumo. Acerca do assunto, afirma Lúcio Delfino: 68 Capa .ROSEMBERG, apud DELFINO, op. cit., p. 31, nota 10. Sumário 291 Os fumantes passivos são aqueles que, embora não possuam o vício de fumar, convivem diretamente com fumante, inalando, dia-a-dia, a fumaça tóxica do cigarro. É certo que tais pessoas não se encaixam no conceito de consumidor padrão. Não adquirem ou usam (por vontade própria) o cigarro como destinatário final.No entanto, muitas vezes, acabam por se tornar vítimas de uma relação de consumo na qual não tiveram participação.Embora nunca tenham comprado um cigarro na vida, foram vítimas de uma relação de consumo.69 A configuração de consumidor por equiparação encontra guarida no art. 17 do CDC que consagra, para os efeitos de responsabilidade civil, a possibilidade de qualquer pessoa ser alcançada pelo conceito de consumidor, caso sofra algum evento danoso derivado de imperfeição do produto ou do serviço. Necessário se faz, apenas, que tenha existido anteriormente uma relação de consumo, (nexo causal) mesmo que desconhecida pela vítima, ocasionando-a danos físicos ou psíquicos. Destarte, baseando-se neste dispositivo legal, o fumante passivo poderia utilizar-se do CDC para embasar uma pretensão indenizatória. Afinal, ele também se tornou uma vítima de uma relação de consumo anteriormente existente. 8 RESTRIÇÃO DA OFERTA DO CIGARRO Diferentemente da Publicidade, o conceito de Oferta nos é fornecido pelo CDC, em seu art. 30, que diz que “toda informação ou publicidade suficientemente precisa, veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação com relação a produtos e serviços oferecidos ou apresentados, obriga o fornecedor que a fizer veicular ou dela se utilizar e integra o contrato que vier a ser celebrado”.70 Alguns doutrinadores consumeristas entendem que 69 70 DELFINO, op. cit., p. 141, nota 10. .BRASIL, op. cit., nota 4. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 293 a ‘publicidade’ seria uma espécie do gênero ‘oferta’. Vejamos o entendimento de Markus Samuel Leite Norat: necessário, advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.72 Na acepção consumerista, oferta é, portanto, toda informação ou publicidade. Desta maneira, percebemos que a publicidade está inserida na oferta, sendo, deste modo, toda publicidade uma oferta (oferta publicitária, quando, por exemplo, o supermercado faz anúncio na televisão , oferecendo um produto por determinado preço), mas nem toda oferta é uma publicidade. Em outras palavras, a oferta é gênero ao qual a publicidade está inserida.71 A publicidade de produtos fumígenos passa por diversas restrições para preservar o consumidor dos males que este tipo de produto acarreta. Essas restrições foram de sabedoria sublime pela Constituição Federal, Lei 9294/96 Lei 10167/00 e da Portaria nº. 490 do Ministério da Saúde, de 1988. Antes da elaboração destas leis, a publicidade do tabaco, no Brasil, não possuía regulamentação, realizando-se através dos meios de comunicação social a bel prazer dos fornecedores. A lei 9294/96 dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos. Percebe-se que, desde o ano de 1996, o legislador reflete sobre a necessidade e preocupa-se com a devida regulação da oferta de cigarros. Na elaboração desta lei, tentou-se coibir publicidades e oferta abusivas dos produtos derivados do tabaco, protegendo a sociedade deste mal que mata milhões de pessoas em todo o mundo. Com o advento da Lei 12.546/11, o artigo 3º da lei 9294/96, que versa sobre propaganda/ oferta de cigarros, sofreu alteração. Segue o respectivo artigo alterado por esta lei superveniente: É o chamado Princípio da vinculação da Oferta e, por esta razão, cria-se um direito potestativo ao consumidor, ou seja, cria-se o poder de se exigir exatamente aquilo que foi ofertado. O fornecedor, por este princípio, se obriga a cumprir o negócio pelas mesmas condições que foram anunciadas. Como foi dito anteriormente, a saúde constitui um dos maiores bens da vida do ser humano e, por este e tantos outros motivos, a Constituição Federal, nossa Carta Maior, estabelece no inciso II e no §4º do art.220, a restrição da propaganda comercial de produtos nocivos à saúde, como é o caso do cigarro. Vejamos abaixo este dispositivo: Art.220. Omissis II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. §4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que 71 .NORAT, Markus Samuel Leite. Direito do Consumidor: Oferta e Publicidade. Leme: Anhanguera, 2010. Capa Sumário Art.3 É vedada, em todo o território nacional, a propaganda comercial de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, com exceção apenas da exposição dos referidos produtos nos locais de vendas, desde que acompanhada das cláusulas de advertência a que se referem[...]73 72 .BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/legislacao/const/ con1988/CON1988_21.12.2011/ índex.shtm>. Acesso em: 18/10/2012. 73 .BRASIL, Lei nº 9294/96, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal. Diário Oficial da República.Federativa do Brasil. Brasília, 16 de julho de 1996. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9294.htm>. Acesso em: 26 set. 2012. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Além disso, se analisarmos os parágrafos deste artigo 3º, citado logo acima, perceberemos que a Lei 9294/96, estabelece alguns requisitos que deverão ser obedecidos quando da oferta do cigarro. É o caso, por exemplo, da proibição do uso de crianças ou adolescentes na publicidade do cigarro, bem como associar a publicidade à práticas esportivas. Já a lei 10.167/00, que também realiza algumas alterações na lei 9294/96, estabelece em seu art. 3º : Art.3º Propaganda comercial dos produtos referidos no artigo anterior só poderá ser efetuada através de pôsteres, painéis e cartazes, na parte interna dos locais de venda”.74 Vale registrar, ainda, que vários países vedam totalmente a publicidade do produto cigarro, demonstrando uma clara evolução em seus ordenamentos jurídicos e, por este motivo, tanto as leis 9.294/96 e 10.167/00 foram objeto de críticas por parte da população que resta indignada com publicidades maquiadas. Carlos Alexandre Moraes afirma que alguns especialistas em saúde criticaram a Lei 10.167/00, já que o cigarro não deveria ser objeto de qualquer tipo de propaganda, uma vez que esta incentiva e aumenta o número de fumantes, bem como o consumo entre eles.75 O Decreto 2018/96, por exemplo, também veda, entre outros, a apologia ao prazer e bem estar social daquele que usa o cigarro, em seu art.7, §1º, alínea “d” – “não associar o uso do produto à prática de esportes olímpicos, nem sugerir ou induzir seu consumo em locais ou situações perigosas ou ilegais”.76 Já a 74 BRASIL. Lei nº 10.167/00, de 27 de dezembro de 2000. Altera dispositivos da Lei no 9.294, de 15 de julho de 1996. Diário Oficial da República.Federativa do Brasil. Brasília, 28 de dezembro de 2000. Disponível em: ...<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/l10167.htm>. Acesso em: 26 set. 2012. 75 .MORAES, op. cit., p. 123, nota 23. 76 .BRASIL. Decreto nº 2018/96 de 1º de outubro de 1996. Regulamenta a Lei nº 9.294, de 15 de ..julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, ..bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agríco- Capa Sumário 295 União Europeia, por exemplo, aprovou a ilegalidade de anúncios de cigarro em revistas, jornais, internet e em eventos esportivos internacionais, nos 15 países do bloco, a partir de julho de 2005. O ministro dinamarquês da Saúde, Lars Lokke Rasmessen afirmou: “Demos um grande passo na direção de uma forte política comum de proteção ao público contra a promoção de produtos da indústria de tabaco. Completou, ainda, o comissário para a saúde da EU, David Byme, que “a nova lei vai possibilitar às nações da comunidade combater o consumo de cigarros.”77 Desta forma, resta inequívoca tamanha necessidade de controle por parte do governo brasileiro das campanhas publicitárias e ofertas das indústrias tabagistas, de modo a preservar a integridade e saúde do consumidor, para que este não caia na armadilha e torne-se mais uma vítima deste produto capaz de matar tantas pessoas de forma tão disfarçada e cruel. 9 DO DEVER DE INFORMAÇÃO: O TABACO E A PUBLICIDADE ENGANOSA POR OMISSÃO A publicidade pode ser considerada como o elemento que movimenta as relações de compra e venda. É, pois, a maior ferramenta de marketing e, por isso, a forma mais empregada pelos fornecedores para fazer com que seus produtos sejam conhecidos.78 A publicidade de produtos e serviços somente passou a ser regulada no ordenamento jurídico brasileiro com o surgimento do Código de Defesa do Consumidor. Através da lei 8078/90, que estabelece o CDC, os fornecedores tornaram-se obrigados a respeitar as normas preconizadas, las, nos termos do § 4º do art. 220 ..da Constituição. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 2 de outubro de ..1996. Disponível em: <http://www2.camara. gov.br/legin/fed/decret/1996/decreto-2018-1-outubro-..1996-435811-norma-pe.html>. Acesso em: 26 set. 2012. 77 . MORAES, op. cit., p. 122, nota 23. 78 NORAT, op. cit., p. 93, nota 39. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 297 bem como os consumidores passaram a contar com um alicerce jurídico que veio para protegê-los contra situações abusivas e enganosas. Por ser um produto nocivo à saúde, impera a necessidade da informação completa do produto cigarro pelos seus fornecedores evitando, assim, o consumo de um produto sem o conhecimento de informações acerca de sua composição e dos efeitos colaterais por ele ocasionados. Neste sentido, o art.37 e os parágrafos 1º e 3º do Código CDC, nos trouxeram o conceito de publicidade enganosa e publicidade enganosa por omissão. Dispõe este artigo: Art.6º São direitos básicos do consumidor:[...] III- a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como os riscos que apresentem. Art.31 A oferta e apresentação de produtos ou serviços devem assegurar informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa sobre suas características, qualidades, quantidade, composição, preço, garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados, bem como sobre os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores.81 Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva. § 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços. [...] § 3° Para os efeitos deste código, a publicidade é enganosa por omissão quando deixar de informar sobre dado essencial do produto ou serviço.79 Por esses argumentos, é possível afirmar que o caso do cigarro é típico de propaganda enganosa por omissão, pois deixa de informar dados essenciais sobre os danos causados à saúde que, se fossem do conhecimento real da população, interferiria em seu poder de decisão, em virtude da consciência dos seus riscos. Ressalte-se que a jurisprudência vem, aos poucos, recepcionando esse posicionamento. Lúcio Delfino traz, em sua obra, trecho do brilhante voto do Desembargador do Tribunal do Rio Grande do Sul, Arthur Arnildo Ludwig: Assim, no meu ponto de vista, o cigarro integra aquela classificação prevista no art. 9º, do CDC, ou seja, trata-se de um produto potencialmente nocivo.ou perigoso à saúde dos consumidores, por isso, a fabricante de cigarros deve informar nos rótulos e mensagens publicitárias de maneira ostensiva e adequada a respeito da sua nocividade ou periculosidade.82 (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Ap. Cível. 70000840264 – Rel. Des. José Conrado de Souza Junior. Julgado em 02/06/2004.) Norat afirma em seu livro, intitulado “Direito do Consumidor: Oferta e Publicidade”, que “a publicidade é enganosa por omissão quando deixa de informar sobre algum dado essencial do produto ou serviço[...]proíbe-se a omissão daquelas informações mais importantes que o consumidor precisa ter conhecimento antes de adquirir o produto.”80 Ao analisarmos o CDC minuciosamente, verificamos em seu art. 6, inciso III, bem como no art.31, as seguintes determinações: 79 80 Capa BRASIL, op. cit., nota 4. NORAT, op. cit., p. 132, nota 39. Sumário 81 82 BRASIL, op. cit., nota 4. DELFINO, op. cit., p. 219, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 10 RESPONSABILIDADE CIVIL DAS INDÚSTRIAS FUMÍGENAS PELOS DANOS OCASIONADOS AOS FUMANTES O tabaco se disseminou pelo mundo por se encontrar intimamente rotulado como algo prazeroso e capaz de trazer bem estar. Ao longo do tempo, pesquisadores e cientistas começaram a demonstrar com suas teses e pesquisas que, ao invés de ser fonte prazerosa, o tabaco era algo que ao ser ingerido pelo organismo humano, acarretava doenças, muitas vezes, irreversíveis. Não é preciso pesquisas e levantamentos para ter a compreensão que o ser humano foge do mal, foge do perigo. Em sã consciência, ao saber que algo faz mal a sua saúde, tenta desviar o máximo possível desse tipo de enrascada. O mais interessante vem agora: as indústrias tabagistas foram protagonistas da maior indenização da história. Com receio de que essas demandas se tornassem populares nos Estados Unidos e receosas, principalmente, com a revolta dos estados americanos por estarem gastando milhões com o sistema de saúde devido aos problemas causados pelo uso do cigarro, e para que decisões judiciais em seu desfavor não virasse febre nesse país, as indústrias tabagistas foram responsáveis pelo pagamento de aproximadamente 246 bilhões de dólares – em troca disso, os Estados americanos desistiriam de todos os processos que moviam por fraude contra a saúde pública.83 Diante desses fatos, data máxima vênia, percebe-se a malandragem e a jogada de interesses envolvendo as indústrias tabagistas. Infelizmente, apesar das legislações que vigoram em nosso ordenamento jurídico demonstrarem que o cigarro é um produto nocivo à saúde, que seus fornecedores não são obedientes às regras de publicidade, bem como não informam, adequadamente, a informação ostensiva ao consumidor, a jurisprudência brasileira 83 Capa DELFINO, op. cit., p. 339, nota 10. Sumário 299 caminha no sentido de não responsabilizar as indústrias tabagistas, deixando sem amparo aquelas pessoas vítimas pelo uso do cigarro e pela dependência deste produto. É um bombardeio de decisões no sentido contrário aos interesses dos fumantes. Para esse ceticismo da jurisprudência, afirma Lúcio Delfino: Muitas dessas decisões mostram absoluto descrédito quanto às argumentações apresentadas pelos autores de tais ações indenizatórias. E tal resultado, fruto da novidade que o tema representa para os operadores do direito, tem também por alavanca a excelente qualidade dos trabalhos desenvolvidos pelos advogados da indústria do fumo, esses que se valem de argumentos sedutores, bem elaborados, sempre escorados em pareceres aparentemente sólidos, elaborados por medalhões do mundo jurídico nacional.84 Contudo, apesar de muitos acreditarem que não há mais luz no fim do túnel, acredita-se que esse posicionamento jurisprudencial tem escopo na imaturidade do tema em nosso país e que, com a evolução doutrinária, bem como o surgimento de dados reveladores e conflitantes envolvendo as indústrias tabagistas, a jurisprudência brasileira há de amadurecer no sentido de analisar com maior afinco essa celeuma. Acreditando em um amadurecimento jurisprudencial, os demandantes acionam o Poder Judiciário a fim de obterem êxito na prestação jurisdicional. São vários os argumentos levados ao Judiciário. No que diz respeito aos argumentos dos demandantes, alegam que o cigarro é um produto perigoso, tendo em vista que já restou comprovado ser causador de doenças e mortes aos que dele consomem, bem como para aqueles que não o consomem (mas, por serem fumantes passivos, também são prejudicados). Pior ainda é que este produto ao ser consumido e ser causador de tantas mazelas, causa 84 Loc. Cit. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização danos quase que irreparáveis, já que aqueles que não são favorecidos financeiramente ficam nas mãos do sistema de saúde, que não possui suporte suficiente para tratar todos os efeitos advindos do tabagismo. Outro argumento utilizado pelos demandantes é a publicidade enganosa do cigarro. Apesar de recentemente ser instituída a advertência deste produto, verifica-se que a publicidade é muito superior à estas advertências que, muitas vezes, são feitas somente pelo Ministério da Saúde. (“O Ministério da Saúde adverte: fumar pode causar danos à saúde”.). Para Lúcio Delfino, as informações acerca do cigarro são de extrema importância, A deficiência de informações do consumidor, quanto aos males originados do tabagismo, tem íntima relação com as primeiras experiências de consumo do cigarro e, consequentemente, com a deflagração do vício causada por esse produto.85 Como já dito alhures, o conhecimento de que a nicotina é um psicotrópico muito poderoso já se fazia presente entre os fabricantes de cigarro há décadas, mas que foi mantido em segredo, estrategicamente, para continuar no ramo do fumo e manter acorrentadas milhares de pessoas ignorantes dos males causados pelo produto. Vale salientar, ainda, que aqueles que não sabem ler, são atraídos unicamente por imagens atrativas e sedutoras na televisão. Infelizmente, as pessoas menos esclarecidas são as mais prejudicadas, tendo em vista que acabam reféns do vício e presas nas mãos do Sistema de Saúde, que não possui suporte o mínimo para tratar milhares de pessoas vitimas dos terríveis efeitos do cigarro. Outra alegação bastante presente entre os demandantes é que o cigarro causa dependência química. Já foi comprovado cientificamente o poder incontrolável que a nicotina exerce no organismo humano. Como já explicitado acima, a Organização Mundial da Saúde enquadra o tabagismo como um doença crônica chama85 Capa DELFINO, op. cit., p. 347, nota 10. Sumário 301 da “nicotina-dependência” e, mesmo após tantos estudos, nos deparamos com algumas frases bastante em voga nas decisões dos tribunais brasileiros, como: “a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e exclusivamente do usuário[...]; e “ sabe-se que a decisão de experimentar, como a decisão de continuar fumando[...] é tão somente do fumante”86 Esses são os argumentos mais corriqueiros utilizados pelos demandantes que, alicerçando-se nos diplomas legais, lutam na tentativa de mudar o perfil da jurisprudência em nosso país, tentando a todo custo enquadrar a responsabilidade civil das indústrias tabagistas na responsabilidade objetiva prevista na Lei 8078/90. Já no que diz respeito aos argumentos das Indústrias de Cigarro, através de uma análise feita a fundo no repertório jurisprudencial em nosso país, constatou-se que entre as teses trazidas pela indústria do tabaco, se sobressaem: a licitude da atividade, a quebra do nexo causal e a notoriedade de informações. Acerca da licitude da atividade, afirmam os demandados, conforme já explanado, que a comercialização do cigarro é uma atividade lícita, argumento que, muitas vezes, tem sido aceito pelos tribunais. Ou seja, tem-se levado em consideração, não o que prevê o CDC (responsabilidade objetiva), mas, sim, a licitude ou não do produto. Essas decisões, data máxima vênia, só corroboram para um efeito dominó em nossos tribunais pátrios de fragilizar as regras colocadas pela Lei 8079/90, tornando-a uma simples letra morta. Os demandados tentam convencer os tribunais de que sua atividade se pauta na responsabilidade subjetiva (sendo necessário provar a culpa), de modo a se esquivar da aplicação do CDC (responsabilidade objetiva). Argumentam, ainda, que sua atividade nada mais é do que um exercício regular de um direito (ou seja, excludente de imputabilidade) e, em vista disso, não há que se falar em nenhum tipo de responsabilidade, já que não existe 86 Ibid., p. 372. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização qualquer tipo de violação de dever jurídico.87 Para melhor ilustrar esse tipo de posição nos tribunais pátrios, segue ementa de decisão da 7ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo: RESPONSABILIDADE CIVIL Pleito de reparação de dano moral fundada em doenças causadas pela prática de tabagismo. Sentença improcedente. Inconformismo do autor. Licitude da fabricação e comercialização de cigarros que indicam a falta de responsabilidade da empresa fabricante (grifo nosso). Consumo de tabaco que se vincula ao livre arbítrio do autor, o qual, inevitavelmente, tem ciência dos malefícios que o uso continuado do cigarro poderia causar Manutenção da sentença Recurso desprovido. 9247635592008826 SP 924763559.2008.8.26.0000, Relator: Ramon Mateo Júnior, Data de Julgamento: 05/09/2012, 7ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 07/09/201288 303 do dano causal direto e imediato que considera “causa do evento danoso aquela capaz de se ligar a ele numa relação de necessariedade , mesmo que não seja essa causa a mais próxima do dano, ou a única que o ensejou.”89 Essa teoria torna-se um verdadeiro estorvo. Para Delfino, essa teoria não deve ser encarada como um óbice para o consumidor, tendo em vista que havendo uma perícia bem trabalhada, aliada às demais provas presentes nos autos, permitirá ao julgador a conclusão do vínculo causal entre o tabagismo e o prejuízo ao fumante demandante. Neste diapasão, válido se faz demonstrar a decisão da décima terceira câmara cível do Rio de Janeiro, no dia 09/08/2012: PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. TABAGISTA QUE ATRIBUI À FABRICANTE DE CIGARROS A CAUSA DE SUA ENFERMIDADE. INEXISTÊNCIA DE NEXO. LAUDO PERICIAL. PRECEDENTES DO STJ. PRIMEIRO RECURSO AO QUAL SE NEGA SEGUIMENTO - ART. 557, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. SEGUNDA APELAÇÃO À QUAL SE DÁ PROVIMENTO, COM AMPARO NO ARTIGO 557, §1ºA DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.I [...]II - No entanto, para a responsabilização da indústria fumageira, ou de alguma das fabricantes de cigarro, imprescindível O nexo causal, ou seja, a prova de que o de cujus faleceu em razão do uso do tabaco e que ao longo de sua experiência como fumante, se utilizou desta, ou daquela espécie, fabricada pela ré;III - “A arte médica está limitada a afirmar a existência de fator de risco entre o fumo e o câncer, tal como outros fatores, como a alimentação, álcool, carga genética e o modo de vida. Assim, somente se fosse possível, no caso concreto, determinar quão relevante foi o cigarro para o infortúnio (morte), ou seja, qual a proporção causal existente entre o tabagismo e o falecimento, poderse-ia cogitar de se estabelecer um nexo causal juridicamente satisfatório”(grifo nosso) ...] Com todo o respeito aos prolatores de decisões que se baseiam nesse argumento de licitude ou não do cigarro, ressalta-se, aqui, que o que deveria ser levado em consideração era o prejuízo causado por esta relação de consumo, independente se a mesma é pautada ou não em licitude, uma vez que o CDC prevê o dever de segurança do fornecedor, bem como sua responsabilidade objetiva, ou seja, qualquer infortúnio que ocorra ao consumidor decorrente do produto, deverá ser sanado por meio da responsabilização do fornecedor independentemente de culpa. Outro argumento utilizado pelos demandados é a quebra do nexo causal. O direito civil brasileiro acolheu a chamada teoria 87 .FORMIGA, op.cit., p. 51, nota 18. 88 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo/SP. Apelação Cível nº 9247635592008826. Apelante: Sebastião Torres Leite. Apelado: Souza Cruz S A. 7ª Camara de Direito Privado. Relator: Ramon Mateo Júnior. Comarca de Santos. Julgado em 05/09/2012. Publicado no DJ em 07/09/2012. Disponível em:<http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search.do?paginaConsulta=1&localPesquisa. cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPROC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=9247635592008&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=924763559.2008.8.26.0000&dePesquisa=>. Acesso em: 15/10/2012. Capa Sumário 89 DELFINO, op. cit., p.394, nota 10. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização (802541620048190001 RJ 008025416.2004.8.19.0001, Relator: DES. ADEMIR PIMENTEL, Data de Julgamento: 09/08/2012, DECIMA TERCEIRA CAMARA CIVEL)90 Sendo assim, por meio desta teoria, as indústrias de tabaco afirmam inexistir relação de causalidade entre as doenças e o tabagismo afirmando, ainda, que não há como se ter certeza médica de que o cigarro foi um fator determinante. Aduzem que inúmeros outros fatores podem, por si só, serem capazes de ocasionar uma patologia. Para solidificar seus argumentos, citam como exemplo o caso do não fumante que, assim como o fumante, também é acometido de câncer de pulmão. Além disso, aduzem, ainda, a quebra do nexo causal pela culpa exclusiva da vítima. A decisão de fumar, para as empresas tabaqueiras, decorre exclusivamente da vontade do indivíduo, principalmente após o advento da regulamentação da publicidade e da advertência dos malefícios causados. Argumentam que fumar decorre de um mero hábito e não de um vício e, sendo um hábito, é passível de controle pelo usuário. De modo a reforçar essa tese, eles citam a distinção realizada pela OMS de vício e hábito, num relatório que remonta ao ano de 1957. Vejamos: “vicio era um estado de intoxicação caracterizado pela compulsão, tolerância, dependência psicológica e comumente física, com sequelas no comportamento pessoal e social. Já o hábito foi considerado uma “condição” caracterizada pelo desejo por uma droga, pequena ou nenhuma tolerância, dependência meramente psicológica 90 .BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/RJ. Apelação Cível n. 802541620048190001. .Apelante: Alan Cavalcante Duarte e outros. Apelado: os mesmos. Décima Terceira Câmara Cível. ....Relator: DES. Ademir Pimentel. Rio de Janeiro. Julgado em 09/08/2012. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22288333/ apelacao-apl-802541620048190001-rj-....0080254-1620048190001-tjrj>. Acesso em: 15/10/2012. Capa Sumário 305 (inexistência de dependência física ou síndrome de abstinência), com consequências puramente individuais”.91 Alegam, ainda, que considerar o uso do cigarro como um vício, deriva simplesmente da política antitabagista que se desenvolveu em meados da década de 80 e que não há sentido considerar o cigarro como algo que cause dependência. Para eles, qualquer fumante é capaz de deixar de fumar se essa for a sua vontade. Mas a situação não é bem assim. Como prova, podemos citar como exemplo a opinião de especialistas que afirmam não haver tratamento para 5% dos fumantes (a dependência da nicotina é alta). Para esses 5%, o cigarro seria o seu companheiro pelo resto de suas vidas e com o cigarro estariam fadados a morrer92. Por derradeiro, trazem o argumento da notoriedade de informações que circunda o cigarro. Sobre isso, seu principal argumento é de que este assunto é regulamentado por lei específica federal (lei n. 9294/96 / lei n. 10167/00) e que os preceitos estabelecidos nas mesmas são respeitados pelas indústrias tabaqueiras. Alegam que a publicidade realizada por eles respeita a livre concorrência e que nunca objetivaram enganar os consumidores com falsas informações, mas tão somente em vender a sua marca. Para eles, “os anúncios, ao contrário do que se pretende afirmar, expressam um esforço de atrair o consumidor para uma determinada marca, e não para dar início ao hábito de fumar”93. Lúcio Delfino afirma em sua obra que seria interessante que, assim como os remédios, o cigarro deveria ser acompanhado por uma bula, prospectos informativos. Vejamos: É por tal razão, que os maços de cigarro deveriam, outrossim, vir acompanhados, a exemplo das bulas 91 FORMIGA, op. cit., p.53, nota 18. 92 .VARELLA, Drauzio. Nicotina.Disponível em: <http://www.drauziovarella.com. br/entrevista/nicotina5asp.>. Acesso em: 04/10/2012 93 .FORMIGA, op.cit., p. 57, nota 18. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização de remédios, de prospectos informando o consumidor sobre a verdadeira natureza do produto tóxico, a quantidade de substâncias tóxicas existentes em cada unidade, a origem do fumo utilizado na sua confecção, advertir acerca dos inúmeros malefícios que o produto nocivo poderá gerar à saúde daqueles que o consomem, além de outros esclarecimentos necessários e imprescindíveis à real conscientização do consumidor brasileiro.94 Esses argumentos acerca da publicidade têm sido bastante amparados pela jurisprudência de nosso país eximindo, dessa forma, a responsabilidade civil das indústrias tabaqueiras. Os tribunais brasileiros, de fato, reconhecem que a publicidade do tabaco somente veio a ser regulada recentemente e que antes disso o produto era associado à erudição e ao charme daqueles que dele se utilizavam. Mas ocorre que hoje a situação é diferente. Para os Tribunais, esse tema é devidamente regulado nos dias atuais e pelo que parece, as indústrias tabaqueiras “respeitam” essas regras. Ainda, nesse sentido, julgou nosso Colendo Superior Tribunal de Justiça, o Recurso Especial 1.113.804 - RS (2009/0043881-7), no dia 27/04/2010: RESPONSABILIDADE CIVIL. TABAGISMO. AÇAO REPARATÓRIA AJUIZADA POR FAMILIARES DE FUMANTE FALECIDO. PRESCRIÇAO INOCORRENTE. PRODUTO DE PERICULOSIDADE INERENTE. INEXISTÊNCIA DE VIOLAÇAO A DEVER JURÍDICO RELATIVO À INFORMAÇAO. NEXO CAUSAL INDEMONSTRADO. TEORIA DO DANO DIREITO E IMEDIATO (INTERRUPÇAO DO NEXO CAUSAL). IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO INICIAL. [...]6. Em realidade, afirmar que o homem não age segundo o seu livre-arbítrio em razão de suposta “contaminação propagandista” arquitetada pelas indústrias do fumo, é afirmar que nenhuma opção feita pelo homem é genuinamente livre, porquanto 94 Capa DELFINO, op. cit., p.353, nota 10. Sumário 307 toda escolha da pessoa, desde a compra de um veículo a um eletrodoméstico, sofre os influxos do meio social e do marketing. É desarrazoado afirmar-se que nessas hipóteses a vontade não é livre.95 Em linhas gerais, esses são os principais argumentos levantados pelas indústrias tabagistas para que possam se eximir de qualquer tipo de responsabilidade devido “à ausência de ilicitude e, consequentemente, de culpa em seu comportamento; bem como da ausência de nexo causal entre o comportamento do fumante e os danos que teriam sido por ele suportados”. Diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, é possível perceber que, infelizmente, ainda é bastante tímida a evolução jurisprudencial brasileira no sentido de responsabilizar as indústrias tabagistas. O que se constata é a predominância nos julgados no sentindo de isentar as demandadas de qualquer tipo de responsabilidade. Se formos analisar minuciosamente a jurisprudência em nossos tribunais, perceberemos que, em média, a cada dez decisões, nove são a favor das indústrias tabagistas. Esse é o cenário em nossos Tribunais. 11 CONSIDERAÇÕES FINAIS O traçar destas linhas teve como objetivo demonstrar os inúmeros problemas advindos do cigarro. Ainda que clarividente os males ocasionados por ele, nossa Jurisprudência tende a irresponsabilizar as indústrias tabagistas. São raros os casos em que tiveram êxito os fumantes que acionaram o poder judiciário. 95 .BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.113.804 - RS (2009/0043881-7). Recorrente: SOUZA CRUZ S/A. Recorrido: SÔNIA MARIA HOFFMANN MATTIAZZI E OUTROS. .Relator: Ministro Luis Felipe Salomao. Julgado em: 27/04/2010. Publicado no DJ em 24/06/2010. .Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19141037/recurso-especial-resp-.....1113804-rs2009-0043881-7-stj. Acesso em: 15/10/2012. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Como se não fosse suficiente, grande maioria das decisões a favor dos fumantes ao chegarem aos tribunais superiores, são quase que integralmente reformadas. Data máxima vênia, o presente trabalho diverge da opinião dos Tribunais pátrios no sentido de acreditar na responsabilidade Civil das Indústrias Tabagistas por comercializarem um produto nocivo à saúde desrespeitando o CDC, que fora instituído pela Carta Maior como instrumento de garantia aos vulneráveis da relação de consumo, mas, também, por comercializarem uma doença capaz de matar quase 5 milhões de pessoas por ano. Acredita-se, fielmente, que com estudos de casos concretos com maior afinco, bem como um amadurecimento na jurisprudência brasileira, assim como acontece na jurisprudência norte-americana, o posicionamento futuramente será no sentido de não desamparar os fumantes que tem suas vidas tiradas por essa droga objetivando, principalmente, não tornar o Código de Defesa do Consumidor, garantia constitucional fundamental, uma mera letra morta. REFERÊNCIAS BRASIL, Código de Defesa do Consumidor. Brasília: Senado, 1990. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406. htm>. Acesso em: 18/10/2012. _________. Código Civil (2002). Vade Mecum. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. _________. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988. Disponível em: <http://www.senado. gov.br/legislacao/const/con1988/CON1988_21.12.2011/ índex.shtm>. Acesso em: 18/10/2012. BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo/SP. Apelação Cível nº 9247635592008826. Apelante: Sebastião Torres Leite. Apelado: Souza Cruz S A. 7ª Camara de Direito Privado. Relator: Ramon Mateo Capa Sumário 309 Júnior. Comarca de Santos. Julgado em 05/09/2012. Publicado no DJ em 07/09/2012. Disponível em:<http://esaj.tjsp.jus.br/cpo/sg/search. do?paginaConsulta=1&localPesquisa.cdLocal=-1&cbPesquisa=NUMPR OC&tipoNuProcesso=UNIFICADO&numeroDigitoAnoUnificado=924763 5592008&foroNumeroUnificado=0000&dePesquisaNuUnificado=924763559.2008.8.26.0000&dePesquisa=>. Acesso em: 15/10/2012. _________. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/RJ. Apelação Cível n. 802541620048190001. Apelante: Alan Cavalcante Duarte e outros. Apelado: os mesmos. Décima Terceira Câmara Cível. Relator: DES. Ademir Pimentel. Rio de Janeiro. Julgado em 09/08/2012. Disponível em: ...<http://www.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22288333/ apelacao-apl-802541620048190001-rj-....0080254-1620048190001-tjrj>. Acesso em: 15/10/2012. _________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.113.804 - RS (2009/0043881-7). Recorrente: SOUZA CRUZ S/A. Recorrido: SÔNIA MARIA HOFFMANN MATTIAZZI E OUTROS. Relator: Ministro Luis Felipe Salomao. Julgado em: 27/04/2010. Publicado no DJ em 24/06/2010. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/ jurisprudencia/19141037/recurso-especial-resp-1113804-rs-20090043881-7-stj. Acesso em: 15/10/2012. _________. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 476428/SC. Recorrente: AGIPLIQUIGAS. Recorrido: GRACHER Hotéis e Turismo LTDA. Terceira Turma. Relatora: Min. Nancy Andrighi. Santa Catarina, julgado em 19/04/2005. Publicado no DJ em 09/05/2005. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/justica/detalhe. asp?numreg=200201456245>. Acesso em: 27/09/2012. _________. Lei nº 9294/96, de 15 de julho de 1996. Dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4° do art. 220 da Constituição Federal. 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Regulamenta a Lei nº 9.294, de 15 de julho de 1996, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4º do art. 220 da Constituição. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília, 2 de outubro de 1996. Disponível em: http://www2. camara.gov.br/legin/fed/decret/1996/decreto-2018-1-outubro-1996435811-norma-pe.html> Acesso em: 26 set. 2012. INCA. Tabagismo & Saúde nos países em desenvolvimento. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>. Acesso em: 20/09/2012. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2002. DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo no código de defesa do consumidor. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. __________. Responsabilidade Civil e Tabagismo. Curitiba: Juruá. 2007 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. 24. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010. VARELLA, Drauzio. Nicotina. 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Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização CONDUTAS ABUSIVAS DO EMPREGADOR NA RELAÇÃO DE TRABALHO E O DANO MORAL Talita Gentilini CAROSI96 Adriano Marteleto GODINHO97 RESUMO: Objetiva apreciar a problemática que envolve a relação de trabalho, o poder diretivo do empregador e seus possíveis abusos, tendo como base a jurisprudência atual sobre o tema, assim como o entendimento doutrinário, buscando trazer uma perspectiva mais aprofundada da dinâmica trabalhista e estabelecer limites simbólicos para a atuação das partes (empregador e empregado) na relação jurídica trabalhista, a fim de garantir o equilíbrio da relação e a proteção dos direitos constitucionalmente garantidos às partes. Além disso, são destacados os pontos em que os tribunais tem se posicionado de maneira coerente com a doutrina e legislação atual. Ressalta-se, ainda, que o dano moral resulta do exercício abusivo do poder diretivo concedido ao empregador, resultando na violação àdireitos da personalidade do trabalhador. Dessa forma, este estudo faz reflexões teóricas sobre as decisões do Tribunal Regional do Trabalho da 13ª Região e Tribunal Superior do Trabalho. No tocante ao método de abordagem, será utilizada a dedução, uma vez que se partirá do estudo da relação de trabalho em seus aspectos gerais, conceituando-o e expondo suas características, até chegar ao ramo mais específico, culminando 96 Autora, bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraiba 97 Orientador, mestre em Direito Civil pela Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em Ciências Jurídicas pela Universidade de Lisboa e professor da Universidade Federal da Paraíba. Capa Sumário 313 com o entendimento dos tribunais a respeito do tema em casos de abuso do direito do empregador e a violação a dignidade do trabalhador. Demonstrar-se-á que embora a Justiça venha denotando uma significativa mudança de posicionamento, nos últimos anos, quanto às decisões no âmbito da responsabilização por dano morais decorrentes de conduta abusiva do empregador, ainda carece de uma concepção mais protetora no tocante aos direitos fundamentais do empregado. Palavras-chave: Relação de Trabalho. Danos Morais. Condutas Abusivas. Direitos Fundamentais. Poder Diretivo do Empregador. 1 INTRODUÇÃO As relações trabalhistas constituem parte relevante na dinâmica social ao qual estamos inseridos, e sua regulamentação demonstra-se essencial para que sejam assegurados às partes seus direitos fundamentais, bem como, sejam estabelecidos limites de atuação do empregador a fim de se alcançar os objetivos aos quais a relação se propõe. As relações de trabalho, em especial a relação de emprego, têm suas diretrizes e restrições estabelecidas pela Constituição Federal (BRASIL, 1988) e Consolidação das Leis Trabalhistas –CLT (BRASIL, 1943), sendo as principais normas legislativas brasileiras a regulamentar o Direito do Trabalho. Neste diapasão, a CLT trouxe consigo elementos que tornaram possível distinguir as relações de trabalho existentes, em especial, a relação de emprego. Um dos elementos primordiais éa subordinação, estando o empregador investido de poder para orientar, fiscalizar e punir o empregado quando assim for necessário. Todavia, o empregado, incumbido de cumprir as suas ativi- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dades, tem assegurados os direitos da personalidade e condições de trabalho favoráveis, não podendo ser submetido a condições de trabalho que venham a causar-lhe prejuízos de qualquer natureza, bem como a situações que ofendam a sua moral e dignidade. Assim, havendo extrapolação do poder diretivo por parte do empregador, que venha a causar danos de natureza moral ao empregado, caber-lhe-ás er indenizado, sendo o empregador responsabilizado civilmente pela atitude ensejadora do dano. 2 RELAÇÃO DE TRABALHO A expressão relação de trabalho, a priori, remete-nos a idéia de prestação de serviço de maneira ampla, isto é, relação de emprego, trabalho autônomo, trabalho eventual, trabalho avulso, entre outras modalidades. Desta forma, trabalho diz respeito a toda atividade exercida pelo homem com uma finalidade. A relação de emprego, portanto, é espécie do gênero relação de trabalho. A despeito de tratar-se de espécie do gênero, sua relevância no âmbito econômico-social transformou-a na principal modalidade de relação de trabalho, tendo em vista sua compatibilidade com o mercado laboral, razão pela qual se estabeleceu como prática jurídica a utilização do termo relação de trabalho (gênero) para designar relação de emprego (espécie). Sendo assim, ao tratarmos das condutas abusivas do empregador nas relações de trabalho, trataremos apenas das relações empregatícias. A priori, faz-se mister elencar os elementos –também denominados pressupostos –que caracterizam a relação de trabalho. Os requisitos encontram-se dispostos no caput dos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, afirmando que: Art. 2ºConsidera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço. Capa Sumário 315 Art. 3ºConsidera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.(BRASIL, 1943)98. Assim, para que estejamos diante de um contrato empregatício, é necessário que o trabalho seja executado por pessoa física, isto é, não pode figurar como empregado pessoa jurídica. Ademais, em decorrência deste primeiro requisito, surge o segundo pressuposto, qual seja o da pessoalidade: o serviço deve ser realizado pelo mesmo trabalhador; em outras palavras, intuitu personae, o que impossibilita a alternância de obreiros na execução dos serviços. Outro elemento é a não-eventualidade, de modo que, para que haja a relação de trabalho, é necessário que o trabalhador a exerça com habitualidade, o que nos remete à idéia de permanência (mesmo que por curto período). A atribuição de remuneração pelos serviços prestados também compõe a estrutura empregatícia do contrato, sendo imprescindível que haja por parte do empregador uma contraprestação equivalente ao trabalho realizado pelo obreiro. Por fim, a subordinação, para o posicionamento dos doutrinadores Mauricio Godinho Delgado e Renato Saraiva, é compreendida como uma subordinação jurídica, não estando atrelada a uma sujeição intelectual ou financeira, mas à condição de sujeição do empregado ao poder diretivo do empregador no que tange à realização de serviços, isto é, trata-se de uma subordinação objetiva, que atinge a maneira de executar o serviço e não a figura do trabalhador (status subjectiones). 2.1 EMPREGADOR A CLT, em seu artigo 2º, conceitua o empregador como sendo “a empresa, individual ou coletiva que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação de 98 Documento eletrônico, sem paginação. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização serviços”(BRASIL, 1943). O parágrafo único, por sua vez, traz figuras adicionais que se equiparam à concepção de empregador, tais quais: os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos. Este conceito, porém, sofreu diversas críticas em razão da utilização do termo empresa, sem que se pensasse no empregador de maneira ampla, bem como em razão da concepção de empregador por equiparação. Atualmente tem-se entendido o empregador enquanto pessoa física, jurídica ou ente despersonalizado que possua empregados a seu serviço, ou seja, não há previsão legal que estabeleça a observância de quaisquer requisitos especiais tais como se verá adiante ao tratarmos da figura do empregado. Desta forma, basta que haja empregados à sua disposição para que se torne um empregador. Entretanto, ao encontrar-se nesta posição dentro da relação de trabalho, lhe serão outorgados certos poderes e prerrogativas que visam à manutenção da relação, a fim de que se alcancem os objetivos que deram ensejo à relação empregatícia. A relação de trabalho, portanto, deve ser compreendida como um contrato bilateral e sinalagmático, no qual as partes estabelecem para si direitos e obrigações recíprocos e antagônicos, a exemplo do serviço em troca de remuneração. Éo que preceitua o caput do artigo 442 da CLT. Vejamos: “Art. 442. Contrato individual do trabalho é o acordo tácito ou expresso, correspondente à relação de emprego”(BRASIL, 1943). Logo, em decorrência da relação de trabalho, surge o poder hierárquico ou poder empregatício, consolidando uma posição de direção e administração por parte do empregador, quanto ao serviço prestado pelo obreiro. Trata-se de prerrogativas atribuídas ao empregador, a fim de atingir o propósito que motivou o surgimento do contrato, através de ações de direção, fiscalização, regulamentação e disciplina. Nesse diapasão, há de se destacar o entendimento de Del- Capa Sumário 317 gado (2013, p. 664) que define o poder empregatício como “o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços”. Uma das modalidades do poder hierárquico do empregador - a qual iremos nos ater - éo poder diretivo, que se entende como o poder conferido ao empregador de gerenciar e direcionar o exercício laboral e a dinâmica interna. Através do poder diretivo, o empregador estabelece padrões de comportamento e diretrizes organizacionais que visam tornar a prestação de serviço mais satisfatória tanto para o empregador, como para o empregado, ao facilitar sua compreensão quanto às expectativas do empregador em face de suas atribuições. Desta maneira, o poder diretivo está intimamente ligado à produtividade da empresa e a sua gestão, levando-se em conta a função social do contrato de trabalho, pretendendo, assim, dispor adequadamente da energia laboral existente no ambiente de trabalho onde os seus empregados encontram-se inseridos. 2.2 EMPREGADO Entende-se o empregado enquanto pessoa física que exerce uma atividade de maneira habitual, estando subordinado e recebendo uma contraprestação monetária em troca. Nesta esteira, Cairo Júnior conceitua o empregador como “o contratante que assume uma obrigação principal de fazer, mais precisamente de prestar serviços, qualificados pela pessoalidade, não-eventualidade, por conta alheia e mediante remuneração”(CAIRO JÚNIOR, 2013,p. 282). A caracterização do empregado na relação de trabalho dar-se-á através da observância dos elementos supracitados, quais sejam: realizado por pessoa física, pessoalidade, onerosidade, não-eventualidade, subordinação. O requisito da subordinação, por sua vez, merece desta- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização que. Inicialmente, é importante compreender que a subordinação equivale à mesma concepção de poder diretivo do empregador, porém sob o enfoque do empregado. Portanto, quando se fala em subordinação, entende-se como sendo a atuação do empregador –através do poder a ele conferido –de direcionar e ordenar o empregado a realizar certas atividades. A subordinação, segundo Cassar (2011, p. 267), “nada mais é que o dever de obediência ou o estado de dependência na conduta profissional, a sujeição às regras, orientações e normas estabelecidas pelo empregador inerentes ao contrato, à função, desde que legais e não abusivas”. Na concepção trabalhista do que vem a ser subordinação, configura-se mais adequado utilizar a conceituação de subordinação jurídica. No tocante a esta concepção, Delgado (2013, p. 294) afirma que a subordinação jurídica é o pólo reflexo e combinado do poder de direção empresarial, também de matriz jurídica. Ambos resultam da natureza da relação de emprego, da qualidade que lhe éínsita e distintiva perante as demais formas de utilização do trabalho humano que já foram hegemônicas em períodos anteriores da história da humanidade: a escravidão e a servidão. Portanto, ao se falar no fenômeno da subordinação, compreender-se-á sob a perspectiva jurídica, desvencilhando-se da idéia de subordinação enquanto dependência (econômica, técnica, etc.) anteriormente defendida por doutrinadores. 2.3 O DESEQUILÍBRIO NA RELAÇÃO DE TRABALHO E O ABUSO DE PODER POR PARTE DO EMPREGADOR Ao tratarmos da relação de trabalho, é inegável a disparidade entre os pólos que compõem a relação. Diferentemente do Capa Sumário 319 Direito Comum, em que se observa uma igualdade entre as partes na situação fática, no Direito do Trabalho, deparamo-nos com uma flagrante desproporção entre as partes contratantes, o que leva à constituição de princípios básicos que orientem a aplicação do direito trabalhista de maneira a proteger o trabalhador que se encontra em posição de desequilíbrio em relação ao empregador. Surgem, assim, princípios norteadores do Direito do Trabalho, dentre os quais merece destaque o princípio da proteção. Delgado (2013, p. 190) pontifica: Princípio da Proteção –Informa este princípio que o Direito do Trabalho estrutura em seu interior, com suas regras, institutos, princípios e presunções próprias, uma teia de proteção à parte hipossuficiente na relação empregatícia –o obreiro -, visando retificar (ou atenuar) no plano jurídico, o desequilíbrio inerente ao plano fático do contrato de trabalho. Deste modo, o Direito do Trabalho busca tratar equitativamente as partes, ou seja, tratar de maneira desigual os desiguais. O empregado, portanto, figura como hipossuficiente, estando – desde o início da relação –em situação de vulnerabilidade por diversas razões, a exemplo da dificuldade financeira, que o leva a manter-se no emprego e, desta forma, a sujeitar-se a condições deveras desfavoráveis. É neste contexto que se insere a atuação do Estado, estabelecendo diretrizes mínimas que visam garantir ao trabalhador uma condição mais equânime na relação contratual em que está enquadrado. Atualmente, tem sido debatida a supremacia deste princípio e sua flexibilização em face da dificuldade econômica enfrentada pelo país; no entanto, é válido atentar para a necessidade de se resguardar um equilíbrio nas relações de trabalho, a fim de garantir os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Observa-se que o empregador possui prerrogativas a serem utilizadas na organização e direcionamento da empresa. Neste contexto, o empregador tem o direito de fiscalizar, direcionar, disciplinar e gerenciar as atividades realizadas por seus empregados, em decorrência dos poderes atribuídos à sua figura, posto que assume o risco da atividade e tem sob sua autonomia o poder de contratação. Ocorre que, a despeito de lhe serem garantido tais direitos e poderes, o empregador possui deveres advindos do contrato de trabalho e da condição pessoal de seus obreiros, os quais devem ser considerados no decorrer da relação estabelecida entre as partes. Posto isto, nas palavras de Cairo Júnior. (2013), o empregador deve observar também as normas jurídicas que protegem a dignidade e intimidade de qualquer ser humano. O art. 1º, inciso III da Carta Magna, consolida a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento da República Federativa do Brasil, de modo que, apesar da concepção hipossuficiente do empregado na relação de trabalho, o contrato firmado entre as partes deve prezar pela garantia deste princípio constitucional. Em consonância com o princípio trazido, a Constituição Federal estabelece direitos e garantias fundamentais –como os direitos da vida privada e da intimidade –garantindo sua inviolabilidade (BRASIL, 1988). O empregador passa a ter seu poder diretivo limitado em prol da garantia dos direitos da personalidade do trabalhador, sendo-lhe defeso atuar de maneira excessivamente rigorosa ou que venha a agredir a integridade física ou moral; caso contrário, estará praticando uma conduta abusiva que poderá motivar a extinção do vínculo empregatício, bem como suportar eventual indenização por danos materiais e morais. Assim sendo, compreende-se como conduta abusiva a utilização indevida ou exacerbada dos poderes concedidos ao empregador dentro de suas atribuições, de maneira a ferir os direitos Capa Sumário 321 fundamentais do trabalhador. Busca-se, portanto, um equilíbrio entre o interesse do empregador em auferir lucros através da mão-de-obra do trabalhador e o interesse do obreiro em realizar seus serviços em troca de uma contraprestação monetária, respeitando sempre a saúde e o bem-estar daqueles que compõem a relação. 3 DANO MORAL A consciência social sobre a importância dos direitos individuais trouxe consigo a necessidade de protegê-los, bem como nos casos em que houvesse a ofensa a tais direitos que fosse possível repará-los. Essa preocupação acompanhou o desenvolver das sociedades que remetem a períodos históricos anteriores àCristo. O desenvolvimento das sociedades resultou no aumento dos conflitos entre os indivíduos, surgindo a necessidade de responsabilização daquele que cometesse ato prejudicial a outrem, buscando-se resguardar as partes e restabelecer o equilíbrio comprometido pelo ato danoso. A despeito da inquestionável compreensão da existência do dano moral e do direito à indenização, ainda pairam controvérsias quanto à sua conceituação. Por muito tempo a caracterização do dano extrapatrimonal era concluída pela doutrina sob a forma negativa, na sua contraposição ao dano patrimonial, conforme descrição de Cupis (1970, p. 51, apud CAHALI, 2011, p. 21) “danno non patrimoniale, conformemente alla sua negativa espressione letterale, è ogni danno privato che non rientra nel danno patrimoniale, avendo per oggetto un interesse non patrimoniale, vale dire relativo a bene non patrimoniale”. Ainda na concepção negativista do dano moral, Miranda (1959) afirma que dano patrimonial é aquele que atinge o patrimônio do ofendido; o dano não patrimonial atinge o ofendido como Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ser humano, não atingindo seu patrimônio. Gomes (2008, p. 364) sob o mesmo enfoque narra que “a expressão dano moral deve ser reservada exclusivamente para designar agravo que não produz efeito patrimonial.” Contudo, resta superado o conceito “excludente”do dano extrapatrimonial. Atualmente a doutrina tem se posicionado sob duas vertentes, parte da doutrina entende o dano moral enquanto dor ou sofrimento suportado pela vítima, enquanto outra parte o percebe enquanto violação à bem jurídico. Cahali (2011, p. 20) entende que: Tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral. Nesta mesma concepção, Bittar (1994, p. 31) preconiza que os danos morais “se traduzem em turbações de ânimo, em reações desagradáveis, desconfortáveis ou constrangedoras, ou outras desse nível, produzidas na esfera do lesado. Para os doutrinadores que defendem esta corrente, o dano moral sempre estará atrelado à percepção interna, espiritual do lesado, não podendo se falar em dano moral sem que o mesmo esteja relacionado à dor ou padecimento. A acepção unitária de dano moral e sofrimento - duramente confrontada por doutrinadores contemporâneos - pode levar ao Capa Sumário 323 que alguns doutrinadores consideram um equívoco conceitual, uma vez que a dor pode ser experimentada em todo tipo de dano, inclusive patrimonial, o que nos remete à corrente que estabelece o dano enquanto ofensa à direito ou bem jurídico. Neste caso, a turbação do estado psicológico do ofendido é conseqüência do dano já sofrido, isto é, ocorrido em momento anterior. Brebbia (1950, p. 67) dispõe que De todas as classificações que se formulam a respeito dos danos reconhecidos pelo Direito, é, sem deixar lugar à menor dúvida, a mais importante, a distinção que se efetua tendo em conta à natureza do direito violado, ou, o que é a mesma coisa, do bem jurídico menoscabado. O dano moral, neste prisma, é qualificado pela ofensa a certa categoria de interesses ou direitos, que trazem enquanto reflexo o sofrimento outrora consubstanciado no próprio dano moral. Categoria compreendida pelos Direitos da Personalidade, assim, o dano moral passa a ser visto enquanto decorrência da violação dos direitos personalíssimos. Melo (2012, p. 21), por sua vez, estabelece o dano moral trabalhista enquanto: “o agravo ou o constrangimento moral infligindo quer o empregado, quer o empregador, mediante violação a direitos ínsitos à personalidade, como conseqüência da relação de emprego”. O Professor Cavalieri Filho, de modo notável, estabelece que: “o dano moral é lesão de bem integrante da personalidade, tal como a honra, a liberdade, a saúde, a integridade psicológica, causando dor, sofrimento, tristeza, vexame e humilhação à vítima”(CAVALIERI FILHO, 1998; p. 74). Em razão de tratar-se de prejuízo interno muito se discute quanto à sua comprovação; entretanto, como veremos adiante, esta problemática vem sendo pacificada pela doutrina, bem como Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização pela jurisprudência dos tribunais, necessitando que a parte lesada preencha quatro elementos fundamentais para ensejar a responsabilidade civil. Para compreender-se o dano moral é preciso primeiramente entender o instituto jurídico da responsabilidade civil. A ideia de responsabilidade civil está ligada à necessidade de reparação de um ato ou omissão praticado por alguém que venha a ocasionar um dano, seja este material, estético ou moral. Segundo o entendimento de Diniz, a responsabilidade civil conceitua-se enquanto a “aplicação de medidas que obriguem alguém a reparar o dano moral ou patrimonial causado a terceiros em razão de ato próprio imputado, de pessoas por quem ele responde, ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda ou, ainda, de simples imposição legal”(DINIZ, 2006, p. 40). De maneira mais objetiva, Norris (1996, p. 27) estabelece que “o traço mais característico da responsabilidade civil talvez seja o fato de se constituir especialmente em um instrumento de compensação”. O instituto da responsabilidade civil é consagrado pelo código civil de 2002 em seu artigo 186, ao prever que: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. (BRASIL, 2002)99. Tal dispositivo encontra-se em consonância com o previsto na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso V, que assegura o direito a indenização por dano material, moral ou à imagem. A análise aprofundada desses elementos é de extrema importância para a correta apreciação da responsabilidade e da sua posterior reparação, a fim de recompor a lesão financeira ou moral 99 Capa Documento eletrônico, sem paginação. Sumário 325 infligida à vítima. Para que se caracterize a responsabilidade civil, e conseqüentemente o dever de indenizar o prejuízo causado pelo agente, devem ser verificados alguns requisitos essenciais que são: a) ação ou omissão do agente, b) culpa do agente, c) relação de causalidade, d) dano experimentado pela vítima. A ação e omissão do agente poderão decorrer de três maneiras distintas. 1. Por ato próprio, que é aquele que o agente por ação pessoal prejudica terceiro, ao infringir um dever legal ou social; 2. Por ato de terceiro, que ocorre quando o dano é causado a outrem por ato de terceiro que esteja sob a responsabilidade do agente, criando, por exemplo, uma responsabilidade solidaria entre o empregador e empregado que diretamente causou o dano; 3. Por fim, quando os danos são causados por coisas que estejam sob a guarda do agente, ou seja, deverá reparar o dano causado por coisa ou animal que estava sob sua guarda e causar prejuízo. A conduta abarca o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) realizado pela própria pessoa, por terceiro de quem detém guarda ou por coisas ou animais que lhe pertençam. O legislador, ao utilizar o termo “ação ou omissão voluntária”, acrescenta ao conceito de responsabilidade a figura jurídica do dolo, que segundo Gonçalves (2012, p. 53) “éa violação deliberada, consciente, intencional, do dever jurídico”. Mais a diante o Código Civil acrescenta a ideia de culpa (“negligência ou imprudência”) que se compreende enquanto a falta de diligência do agente. No ordenamento brasileiro, em regra, a responsabilidade civil se dá pela comprovação do dolo ou culpa do agente por parte da vítima. Trata-se da responsabilidade civil subjetiva. Ocorre que, em certos casos torna-se muito difícil comprovar o ato ou imissão, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização em razão da desigualdade entre agente e vítima; nestes casos, o elemento da culpa ou dolo se demonstra inexigível, isto é, basta que haja ato ou omissão e dano estando estes ligados por um nexo de causalidade, éo que a doutrina denomina responsabilidade civil objetiva. Entende-se por dano todo prejuízo de cunho financeiro ou moral que a vítima sofra em razão da violação de direito realizada pelo agente. Sendo imprescindível para que haja a necessidade de indenizar, isto é, nas palavras de Gonçalves (2012, p. 55) “a obrigação de indenizar decorre, pois, da existência da violação de direito e do dano, concomitantemente”. E o último e primordial elemento na verificação de responsabilidade civil é o nexo causal. Para que se possa imputar a alguém o dever de indenizar, é necessário que se constate a existência de uma conexão entre a ação ou omissão do agente e o dano observado à vítima, sem este elemento os eventos tornam-se independentes e insusceptíveis de responsabilização. O caráter repressivo da indenização deve ser levado em conta pelo juiz, atribuídas a ele as prerrogativas para a devida análise, podendo recorrer apenas a título de critério secundário ou subsidiário, e nunca como dado principal ou determinante do cálculo de arbitramento, sob pena de se desvirtuar a responsabilidade civil e de aplicá-la com cunho repressivo exorbitante e incompatível com sua natureza privada e reparativa de quem sofreu a lesão, devendo se levar em consideração a situação financeira de ambas as partes. O caráter compensatório seria destinado ao agredido, por meio de uma quantia suficiente a lhe proporcionar alegrias, felicidade, para compensar de alguma forma a dor, que sofreu diante da conduta ilícita. E por derradeiro o caráter exemplar que destinasse a toda sociedade, para que esta tenha consciência de que os atos ilícitos, geradores de danos morais, são reprimidos pelo Judiciário, o que levaria a sociedade ter um maior respeito aos direitos personalíssimos do indivíduo. Capa Sumário 327 3.1 DANO MORAL NA ESFERA TRABALHISTA Com a promulgação da Emenda Constitucional nº45 de 2004 tornou-se possível a discussão abrangente a cerca do dano moral no Direito do Trabalhista. A Constituição Federal passou a prever a competência ampliada da Justiça do Trabalho para julgar as ações de indenização por danos morais e patrimoniais decorrentes da relação de trabalho, conforme estabelece o art. 114, em seu inciso VI: Art. 114. Compete àJustiça do Trabalho processar e julgar: [...] VI- as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho (BRASIL, 2004)100. O legislador constitucional atribuiu ao exame da Justiça do Trabalho todas as ações envolvendo relações pessoais de trabalho, ampliando o que outrora se limitava apenas aos casos previstos em lei, como era o caso das relações de trabalho temporário regidas pela Lei 6.019/74. Assim, a Justiça do Trabalho passou a julgar e processar as relações de trabalho que forem prestadas pessoalmente e de maneira não empresarial e de cunho contratual, não abrangendo as relações estatutárias. Conforme elucida Belmonte (2007a, p. 110): ocorrendo o dano moral decorrência direta do desenvolvimento do contrato de trabalho, o conflito e o enfoque desse conflito eram trabalhistas e, igualmente, a responsabilização decorrente e não poderia existir jurisdição diferente que, com justiça e conhecimento especializado da dinâmica e características da relação de trabalho, sujeitos envolvidos e condições da prestação de serviços, pudesse melhor decidir sobre a eventual ocorrência de dano moral e a justa reparação. 100 Documento eletrônico, sem paginação. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização O contrato de trabalho vincula dois sujeitos que, em princípio, são desiguais. Há entre o empregador e o empregado uma relação de poder. Este se subordina àquele, o que não encontra similar nas demais espécies de contratos, em que a regra é a igualdade entre os contratantes. O empregador detém os meios de produção, contrata os trabalhadores, dirige a prestação pessoal de serviços, está investido dos poderes diretivo, disciplinar e fiscalizatório, e supervisiona e emite ordens ao trabalhador com a finalidade de atingir os objetivos da atividade econômica. Tem o direito potestativo de rescindir unilateralmente o contrato de trabalho, desde que não aja com abusividade. A conseqüência é o pagamento da indenização estipulada em lei. A superioridade do empregador, via de regra, dá-se nos campos jurídico, econômico-financeiro, social e cultural. Para as finalidades almejadas neste estudo, trataremos unicamente das relações de emprego, não adentrando nas demais relações passíveis de julgamento pela Justiça Especializada. Passemos à compreensão do que constitui a responsabilidade trabalhista. De acordo com o juiz Alexandre Agra Belmonte, do Tribunal Regional do Trabalho da 1ªRegião: “é o dever de reparar o dano moral ou patrimonial causado a um dos sujeitos da relação de trabalho, em decorrência do vínculo”(BELMONTE, 2007b, p. 159). O direto do trabalho trata de estabelecer a igualdade material e não a meramente formal, em tentativa incansável de eliminar as diferenças existentes entre um sujeito e outro no contrato de emprego. A proteção à pessoa do hipossuficiente é o ponto principal de onde decorrem muitos outros. Desta maneira, se pretende estabelecer um sistema de compensação, atingindo-se o real alcance do principio da isonomia, alçado a condição de garantia constitucional, em virtude da maior proteção jurídica atribuída ao empregado. Em sua notável obra respeitante aos princípios do direito do trabalho Rodriguez (1996), ensina que o principio da proteção Capa Sumário 329 se traduz em critério fundamental que orienta o direito do trabalho, pois, este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade, responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes: o trabalhador. A responsabilização no âmbito trabalhista e conseqüente reparação do dano moral são importantíssimas para o campo do Direito do Trabalho, conformo visto anteriormente as relações de trabalho são fundadas em uma desigualdade originária. Sendo a responsabilização por dano extrapatrimonial, por sua vez, um avanço significativo na proteção dos direitos da personalidade dos trabalhadores, devendo ser respeitados pelo empregador sob pena de ser-lhe imputada a obrigação de indenizar o empregado pelo prejuízo causado. Ressalta-se que a responsabilização decorrente da violação de direitos personalíssimos se aplica à ambas as partes constituintes da relação de trabalho. Todavia, trataremos apenas da responsabilização em virtude de condutas abusivas perpetradas pelo empregador. Nas palavras de Martins (2008, p. 63-64), o dano moral praticado pelo empregador ao empregado ocorre quando aquele no seu papel de controlar, disciplinar e fiscalizar comete excessos atingindo assim a honra e desrespeitando a dignidade do empregado. Nas relações de trabalho é necessário ter-se um respeito mútuo. A Consolidação das Leis Trabalhistas não dispõe de maneira específica quanto à possibilidade de indenização em razão de atos lesivos à moral. Entretanto, utilizando-se do princípio da subsidiariedade preconizado no parágrafo único do art. 8º da CLT, bem como no art. 796 da mesma lei, aplicar-se-á a legislação comum nos casos em que se demonstrar compatibilidade principiológica. Logo, aproveitar-se-á o disposto no art. 12 do Código Civil de 2002 que prevê a possibilidade de se pleitear indenização por perdas e Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização danos. As abusividades por parte do empregador se evidenciam de diversas formas: através de atos discriminatórios por motivo de cor, estado civil, sexo, gravidez, etc. Iremos mais adiante tratar de casos específicos em que se evidenciam ou ao menos de discute a possibilidade de ensejar danos morais ao empregado. Por hora, cumpre entender que os danos morais na esfera trabalhista podem decorrer de ofensas de natureza individual, quais sejam: ofensas às qualidades da personalidade (honra imagem, etc.); ofensas à condição física do trabalhador (vida, saúde, etc.) e lesões aos atributos espirituais da personalidade, isto é, à integridade psicológica (intimidade, igualdade, etc.). As normas legais e constitucionais que asseguram aos cidadãos o direito de obter do lesante reparação pecuniária pelo dano moral sofrido, têm incidência em todos os campos do direito, incluindo, com maior ênfase o direito do trabalho. Assim sendo, verificam-se avanços significativos neste ramo especializado do Poder Judiciário, tendo mais autonomia para regular as relações entre empregado e empregador e possibilitando a proteção aos direitos individuais das partes que a compõem. 4 DAS CONDUTAS ABUSIVAS DO EMPREGADOR E O DANO MORAL O dano moral se consubstancia na atuação exacerbada do poder diretivo do empregador (lato senso), acarretando na violação de direito inerente à pessoa do empregado, quais sejam, direito à vida, à liberdade, à honra, à saúde, à integridade física e psicológica, entre outros, o que por sua vez poderá desencadear sentimentos de tristeza, dor e sofrimento. Trata-se da proteção integral aos direitos do homem e de sua dignidade, compreendendo todos os direitos necessários para Capa Sumário 331 o desenvolvimento integral da pessoa humana, em suas diversas esferas. Ao se estabelecer condutas denominadas abusivas, busca-se resguardar e ratificar o valor da pessoa humana e o reconhecimento dos seus direitos fundamentais. Desta maneira, todos os atos realizados pelo empregador no exercício regular do seu direito fiscalizatório e diretivo serão considerados lícitos e, conseqüentemente insuscetíveis de responsabilização. Contudo, caso o empregador ultrapasse os limites conferidos em razão de seu poder diretivo, acarretará em responsabilização por danos ao empregado (materiais, morais ou estéticos), em decorrência do exercício abusivo do direito, incorrendo na prática de ato ilícito. Éo que preleciona o Código Civil de 2002 em seus artigos 187 e 927, a seguir elencados: “Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”e “Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (art. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”(BRASIL, 2002). De tal modo, compreende-se enquanto conduta ilícita, todo gesto, comportamento, palavra, requerimento, atitude, desvirtuada da natureza diretiva das condutas do empregador, que impliquem em lesão à dignidade do trabalhador. De maneira assertiva, parte da doutrina entende que a comprovação do dano se dá unicamente pela análise substancial do ato e seu reflexo nos direitos personalíssimos do trabalhador, ou seja, não se faz necessária a comprovação de dor, sofrimento, angústia. Como dito anteriormente, os sentimentos são consequências do efetivo dano moral, razão pela qual sua constituição deve ser feita por meio da compreensão da conduta em si, sem adentrar na esfera sentimental de cada trabalhador. Isto posto, faz-se pertinente analisar de maneira aprofundada certas condutas frequentemente questionadas, tanto pela Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização doutrina quanto pela jurisprudência, quanto à sua licitude. Após a exposição das diversas nuanças teóricas do dano moral trabalhista, necessário se faz apresentarem-se exemplos práticos e atuais. Objetiva-se ilustrar a exposição sobre o assunto, tornando-a mais concreta e demonstrando com alguns exemplos como é rica a possibilidade de ocorrer tais eventos danosos. 4.1 REVISTA PESSOAL A revista pessoal é meio através do qual o empregador fiscaliza seus subordinados a fim de resguardar o seu patrimônio. Ocorre que, se realizada descomedidamente caracterizará abuso de direito ou ato ilícito. Existem diversos meios de se realizar a revista pessoal, podendo ser exigido que o trabalhador retire suas roupas ficando completamente nu, que levante partes de roupas, que seja apalpado, que tenha seus pertences vistoriados podendo retirar objetos de dentro de bolsas e sacolas do empregado, bem como lhe seja solicitado que abra a bolsa para vistoria sem que haja contato físico com o empregador ou seus pertences. Observa-se assim que ao falar de revista pessoal, abarcam-se diversos meios, envolvendo contato físico direto ou apenas contato visual. O cerne da questão está em ponderar dois direitos constitucionais previstos no art. 5º da Carta Magna. O inciso XXII estabelece a defesa e proteção do direito de propriedade, enquanto o inciso X do mesmo artigo prevê a defesa dos direitos à intimidade, privacidade sendo sua violação passível de responsabilização. Surge, portanto a necessidade de se valorar tais direitos e estabelecer qual deve prevalecer e quais as situações em que é possível constatar abuso. O empregador possui enquanto prerrogativa inerente a sua natureza, o poder fiscalizatório. Podendo assim, utilizar-se de me- Capa Sumário 333 canismos de controle que visem salvaguardar o seu patrimônio, a exemplo de seguranças, controle interno de filmagem, detector de metal, revistas. Entretanto, este controle não deve sobrepor-se aos direitos inerentes à natureza do homem, neste caso, do empregado. Na concepção do corregedor-geral da Justiça do Trabalho, ministro Antonio Levenhagen (BRASIL, 2011) “a revista deve ser realizada com moderação, por que se assim o for não caracteriza abuso de direito ou ato ilícito, constituindo, na realidade exercício regular do direito do empregador ao seu poder diretivo de fiscalização”. Citando como exemplo a revista em bolsas, sacolas ou mochilas que não revelam excesso por parte do empregador e em regra não ensejam reparação. Entretanto, esta posição não é unânime. O Tribunal Regional do Trabalho da 13ªRegião vem se posicionando no sentido de que o exame dos pertences e das roupas dos empregados constitui ato ilícito, ensejando responsabilização civil visto que o empregador age com abuso de poder. Este também tem sido o posicionamento do Ministro Cláudio Brandão (BRASIL, 2013b), que no proc. nºTST-AIRR-529-68.2012.5.15.0159 estabeleceu que “revista pessoal- íntima ou não -, viola a dignidade da pessoa humana e a intimidade do trabalhador”. A despeito de seu posicionamento pessoal, o ministro tem se curvado ao entendimento da SBDI-1 do TST, que entende que a revista pessoal (sem contato físico), não afronta a intimidade, a dignidade e a honra. Observa-se, portanto, que a compreensão do que vem a ser revista abusiva não está completamente consolidada. Parte da doutrina e jurisprudência entende que a revista a pertences apenas não configura ato abusivo, enquanto outra parte entende que se trata da intimidade do empregado e sendo assim, configura-se abusiva. A Consolidação das Leis Trabalhistas em seu artigo 373-A, inciso VI, estabelece que: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Art. 373-A. Ressalvadas as disposições legais destinadas a corrigir as distorções que afetam acesso da mulher ao mercado de trabalho e certas especificidades estabelecidas nos acordos trabalhistas, é vedado: [...] VI- proceder o empregador ou preposto a revistas íntimas nas empregadas e funcionárias (BRASIL, 1999)101. Por analogia, o Poder Judiciário tem aplicado a mesma vedação à revista íntima realizada em funcionários do sexo masculino, respaldado no princípio constitucional da isonomia. Para Barros (2009), o direito à intimidade do trabalhador, tendo em vista sua posição de subordinação, sofre limitações, visto que a própria Constituição assegura o direito à propriedade, fundamento constitucional ao poder diretivo do empregador. Entretanto, a autora complementa seu posicionamento, afirmando que essa limitação não deve atingir a dignidade da pessoa humana. Doutrinadores como Barros (2009) entendem ser plausível a revista pessoal apenas nos casos em que esta se mostrar indispensável, ou seja, quando houver outros meios de fiscalização eficientes (filmagem, segurança, etc.) não será admitida a revista pessoal. Porém, nos casos em que se demonstrar a necessidade de revistas pessoais por se tratar de bens susceptíveis de subtração (pedras preciosas), com valor material ou de extrema relevância para a atividade empresarial, será permitida a revista pessoal de forma moderada a fim de unicamente cumprir o seu papel fiscalizatório. No entanto, há doutrinadores como Simón (2000), que em sua obra A proteção constitucional da intimidade e da vida privada do empregado, traz a concepção de revista pessoal enquanto atentatória à dignidade da pessoa humana, ferindo princípios como o da igualdade, uma vez que privilegia o empregador em detrimento do empregado e o princípio da presunção de inocência, pois ao 101 Capa Documento eletrônico, sem paginação. Sumário 335 realizar a revista o empregador está duvidando da idoneidade do trabalhador. Entendendo assim, que há meios alternativos para controlar as atividades dos empregados sem ferir sua dignidade. A falta de legislação par regulamentar o poder diretivo do empregador e suas limitações frente aos direitos fundamentais conferidos ao obreiro acarretam em um embate sem fim da doutrina e jurisprudência. Mostra-se mais coerente a compreensão da revista pessoal enquanto ensejadora do dano moral nos casos em que se comprovar a desnecessidade do meio utilizado ou a utilização imoderada deste. É primordial que ao analisar o caso concreto se observe a presença de abusividades e desvirtuamento da proteção patrimonial atingindo a esfera íntima do trabalhador, culminando na reparação do dano moral causado. De modo que, não se deve compreender a proibição da revista pessoal, seja íntima ou visual, como violação do direito a propriedade, visto que o empregador possui outros recursos disponíveis para controlar e fiscalizar a atividade empresarial, sem que se ponha em risco a integridade moral do obreiro. 4.2 ANTECEDENTES CRIMINAIS A exigência de certidão de antecedentes criminais tem sido alvo de calorosos debates quanto a sua licitude. Sendo prática freqüente dos empregadores na fase de seleção de novos empregados, tornando-se, em certos casos, critério indispensável de admissão. De acordo com a Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso X, considera-se inviolável a intimidade e vida privada do indivíduo, o que limita a atuação do empregador no tocante ao passado do seu empregado, visto que atingiria direitos fundamentais do empregado, não podendo, portanto se utilizar de tais informações na admissão ou manutenção do empregado do trabalhador. Sabe-se que o empregador usufrui de liberdade quanto à ad- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização missão de seus empregados, podendo estabelecer regras e critérios indispensáveis para seleção. Entretanto, não poderá usar meios vexatórios, abusivos ou discriminatórios, o que violaria os princípios da igualdade, da intimidade do empregado, bem como o da dignidade da pessoa humana, princípio basilar a ser garantido. Neste diapasão, entende-se que a exigência de antecedentes criminais constitui ato discriminatório, por conseguinte, abusivo por parte do empregador. Entretanto, faz-se necessário compreender o que vem a caracterizar o ato enquanto discriminatório. Nas palavras de Nascimento (2011; p. 733): A discriminação caracteriza-se pela presença de um elemento subjetivo, a intenção de discriminar, e de um elemento objetivo, a preferência efetiva por alguém em detrimento de outro sem causa justificada, em especial por motivo evidenciado, revelando escolha de preconceito em razão do sexo, raça, cor, língua, religião, opinião, compleição física ou outros fatores. Complementa o autor que: É importante, para distinguir situações, a finalidade do ato praticado pela empresa e não a simples diferenciação de tratamento, pois na discriminação o que se tem por fim é a preferência destinada a excluir a oportunidade de trabalho de alguém em razão de um dos fatores distintivos elencados em lei. Quanto à não discriminação, a finalidade é dar atendimento a circunstâncias concretas impeditivas da entrega da função a uma pessoa que não pode exercê-la. Em regra, quaisquer perguntas ou investigações referentes aos antecedentes criminais do empregado ou pretendente a cargo na empresa demonstram invasão direta à vida privada do empregado, atingindo sua intimidade. Dando ensejo à reparação do Capa Sumário 337 dano moral por meio de indenização. Acontece que, em certos casos, a exigência de antecedentes criminais tem-se mostrado razoável, sendo a idoneidade de conduta imperativa para a realização da atividade. Éo caso de gerentes de banco, que por tratar-se de atividade que requer plena confiança do empregador no que tange a condição do empregado e sua capacidade de lidar com o dinheiro da clientela, sendo assim admitido o critério de antecedentes criminais desde que os pretendentes ao cargo tenham ciência deste critério, bem como a possibilidade de desistência do processo seletivo. Meireles (2005) afirma que, a exigência de antecedentes criminais é razoável nos casos de empregado doméstico, vigilante, trabalhador em contato direto com criança. Entretanto, a tendência legislativa e jurisprudencial tem se direcionado no sentido de suprimir a possibilidade de exigência de antecedentes criminais, sob o argumento de ferir a presunção de inocência preconizada no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal de1988. A Ministra Dora Maria da Costa se pronunciou no sentido de que o procedimento patronal consubstanciado na exigência de apresentação de antecedentes criminais configura conduta discriminatória, por viabilizar preterição motivada por razões destituídas de legitimidade jurídica, e importa em ofensa a princípios de ordem constitucional, como a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, a isonomia e a não discriminação (BRASIL, 2014h). Ainda nessa trilha, a Portaria do Ministério Público do Trabalho nº41 de 2007, resolve: Art. 1ºProibir ao empregador que, na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, faça a exigência de quaisquer documentos discriminató- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização rios ou obstativos para a contratação, especialmente certidão negativa de reclamatória trabalhista, teste, exame, perícia, laudo, atestado ou declaração relativos à esterilização ou a estado de gravidez (BRASIL, 2007). Além do mais, a legislação brasileira não dispõe sobre a obrigatoriedade de apresentação de certidão de antecedentes criminais durante processo seletivo de admissão. Logo, em consonância com o disposto no artigo 5º, inciso II, não poderá ser imposta ao empregado obrigação de fazer senão em virtude de lei. Ocorre que, em regra, os trabalhadores que não apresentam a documentação solicitada no momento da seleção são desclassificados, o que demonstra uma violação ao preceito constitucional acima tratado. A exigência da certidão se torna, portanto obstáculo para o acesso dos trabalhadores com informações negativas ferindo o direito ao livre ingresso na relação de trabalho. A despeito de parte da doutrina considerar a prática abusiva, ainda há grande polêmica acerca da limitação ao poder diretivo imposta ao empregador. Alguns juízes entendem que o direito de se obter certidão de antecedentes criminais, nada mais é do que informação de interesse geral, ou seja, informação garantida a todos os cidadãos, conforme o artigo 5º, inciso XXXIV, da CF/88. Compreendendo que a certidão de antecedentes criminais é de domínio público e, portanto não se caracterizaria ofensa à privacidade e à intimidade do trabalhador. Não parece razoável tal entendimento. A despeito de tratar-se de documento público, sua exigência não deve ser deliberada. Sendo plausível sua requisição em casos específicos em que se demonstrar justificável, como nos casos de ingresso à cargo público, vigilantes (Lei nº7.102/83)(BRASIL, 1983), transporte de valores, etc. Deve-se, portanto atentar para o princípio da proporciona- Capa Sumário 339 lidade, bem como o exercício regular do direito do empregador em selecionar seus funcionários. Ocorre que, de maneira genérica não se faz necessária a cobrança da certidão de antecedentes criminais para que se ocupem certas funções, e sendo assim, a conduta do empregador se torna ilegítima. Ainda há quem defenda que havendo a contratação não se poderia pleitear indenização por danos morais apesar de ter-lhe sido exigida a apresentação da certidão de antecedentes criminais, pois não se verificaria prejuízo ao trabalhador. Trata-se de compreensão equivocada do que vem a ensejar o dano moral. Configura-se o dano moral quando há violação a direito fundamental do obreiro, não se fazendo pertinente analisar as situações posteriores ao ato danoso. Logo, a mera exigência de certidão de antecedentes criminais já caracteriza o dano moral e, por conseguinte a responsabilização do empregador, independentemente de posterior contratação. Ressalte-se, contudo os casos excepcionais em que a exigência de certidão de antecedentes criminais será compatível com os pressupostos necessários para o exercício de determinadas funções. Observa-se, portanto que a constituição de uma conduta abusiva, isto é, ilícita, se dá através da valoração dos direitos das partes- empregado e empregador- no caso concreto. Só sendo possível determinar a licitude da cobrança quando se observar a sua plausibilidade. 4. 3 LIMITAÇÃO AO USO DO BANHEIRO O poder diretivo do empregador lhe dá a possibilidade de estabelecer regras e procedimentos a serem seguidos pelos seus empregados a fim de assegurar a boa execução das atividades empresariais. Tais regras dependerão da natureza da atividade exercida, não havendo legislação específica que preveja o que o empre- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização gador pode ou não exigir de seus funcionários. Em razão da falta de regulamentação quanto aos limites do poder diretivo do empregador, estabeleceu-se sua limitação em face dos direitos e garantias fundamentais previstas na Constituição Federal. Sendo assim, toda e qualquer atuação do empregador que demonstrar violação direta ao princípio da dignidade da pessoa humana e aos demais princípios constitucionais, serão exemplos claros de condutas abusivas. Neste contexto, a restrição ao uso do banheiro revela conduta humilhante à qual o empregado é submetido, atingindo diretamente sua dignidade. Trata-se de necessidade fisiológica, não sendo passível de controle por parte do empregador. Esta conduta é frequentemente adotada em empresas de telemarketing, em que se busca alcançar metas exorbitantes, exigindo-se do empregado atuação além de suas condições físicas e psicológicas, caracterizando lesão à integridade do obreiro. Não parece correta a afirmação de que a depender da atividade exercida, a empresa necessita de funcionários sempre a postos, a fim de não prejudicar a operação realizada, sendo imprescindível a organização e, por conseguinte a limitação do uso do banheiro por meio de controle de minutos. Destaque-se o brilhante posicionamento da 7ªTurma do c. TST, que ao julgar um Recurso de Revisa: Embora se reconheça a possibilidade de serem introduzidas no ambiente de trabalho modernas técnicas de incentivo à produção, mostra-se abusiva a atitude do empregador em restringir o uso do banheiro por empregados, quando não se identifica, parte destes últimos, abuso nas ausências ao posto de trabalho (BRASIL, 2008). Mostra-se razoável o entendimento de que a limitação imposta ao uso do banheiro acarreta ofensa à dignidade do trabalha- Capa Sumário 341 dor. A satisfação de necessidades fisiológicas está ligada a fatores de natureza pessoal, não podendo ser aferida de modo objetivo, além do mais, as relações de trabalho devem ser norteadas pela boa-fé das partes. A dignidade do trabalhador deve ser garantida, independentemente das metas de produtividade da empresa. Cabendo ao empregador conscientizar seus funcionários quanto à importância de suas funções e os objetivos da empresa no tocante à produtividade sem, contudo ofender sua integridade. A abusividade da restrição por parte do empregador ao uso ao banheiro tem sido corroborada pela maioria das Turmas do c. TST notando-se uma evolução jurisprudencial por parte do Colendo Tribunal, no sentido de conferir aos trabalhadores condições dignas de trabalho, através da proteção às garantias constitucionais relativos à dignidade da pessoa humana. Todavia, ainda se observa posicionamentos divergentes de tribunais do trabalho, que compreendem a limitação ao uso do banheiro enquanto liberalidade do empregador, não constituindo prejuízo de cunho moral ao trabalhador, visto que não lhe fora negada a ida ao banheiro, mas apenas limitada a fim de manter a ordem e a produtividade da empresa, se mostrando justificável. Seriam os casos de empresas de telecomunicação que estabelecem intervalos pré-fixados para utilização do banheiro, bem como a quantidade máxima de vezes por jornada de trabalho, além de em muitos casos exigir que o funcionário comunique ao superior a necessidade de utilização do banheiro para que o mesmo pudesse estabelecer o momento de ida ao banheiro para que não prejudicasse o funcionamento da empresa. Não parece correto tal posicionamento, uma vez que o interesse econômico da atividade empresarial não pode sobrepor-se à dignidade humana. Portanto, deve o empregador atuar de maneira a - respeitados os direitos do trabalhador –estimular a produtividade dentro da esfera empresarial através de técnicas e Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização incentivos que tornem a relação de trabalho satisfatória para as partes que a compõem sem que excedam seus direitos. Logo, a dignidade do trabalhador deve ser resguardada em detrimento de interesses econômicos privados. Sendo a boa-fé fundamento da relação de emprego, razão pela qual a limitação ao uso do banheiro não constitui conduta admissível. Antes, a valoração dos direitos fundamentais é de extrema importância para a manutenção e segurança das relações trabalhistas. 6 CONCLUSÃO As relações de trabalho fazem parte da vida cotidiana de todos os cidadãos e épor esta razão que sua proteção e manutenção são de grande importância para a consolidação dos direitos e garantias fundamentais constitucionalmente previstos. A compreensão aprofundada do que vem a constituir o dano moral e sua repercussão na relação contratual, faz com que o Direito do Trabalho cumpra cada vez mais o seu papel, qual seja, tutelar e resguardar as partes que compõem a relação trabalhista. A concepção do dano moral tem sido positivamente transformada e a proteção à dignidade do trabalhador tem adquirido uma posição de destaque, na qual o princípio da proteção ao trabalhador passa a efetivamente nortear as condutas das partes, não podendo mais se analisar a relação de trabalho apenas sob o enfoque econômico, assim como, o dano moral deixa de ser apenas resultado de um estado emocional (tristeza, angustia, humilhação) e passa a figurar enquanto decorrência de violação direta à dignidade do trabalhador. Observa-se uma evolução doutrinária e jurisprudencial no tocante à compreensão do que caracteriza o exercício abusivo do poder diretivo do empregador, e, por conseguinte ato ilícito ensejador de compensação. Entretanto, ainda existem controvérsias com relação à limitação do poder diretivo do empregador em ra- Capa Sumário 343 zão de violação a direito fundamental, sua implicação na gestão interna da empresa e possível efeito econômico. Contudo, parece-nos evidente que com o advento da Constituição Federal de 1988, os direitos e garantias fundamentais levando-se em consideração o princípio da proporcionalidade e ponderação- devem ser valorados acima de qualquer interesse econômico-social. As condutas trazidas a análise, quais sejam: revista pessoal (íntima ou não), restrição ao uso do banheiro e exigência de antecedentes criminais, são exemplos claros do exercício abusivo de direitos por parte do empregador, que sob a prerrogativa dos poderes a ele atribuídos fere direitos inerentes ao trabalhador. Evidencia-se que, observado o caso concreto e considerando os princípios da proporcionalidade e ponderação, uma vez constatada conduta injustificável ou excessiva por parte do empregador, caberá ao mesmo compensar o dano causado ao trabalhador. É sob este enfoque, que de maneira satisfatória percebe-se uma preocupação maior em se estabelecer medidas e restrições que tornem o ambiente de trabalho saudável para as partes desempenharem seus papéis e, sobretudo consagra a dignidade da pessoa humana enquanto fundamento de valor supremo. REFERÊNCIAS BARROS, Alice Monteiro de. Proteção à intimidade do empregado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2009. BELMONTE, Alexandre Agra. Danos Morais no Direito do Trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007a. ______. Responsabilidade por danos morais nas relações de trabalho. Rev. TST, Brasília, v. 73, n. 2, abr/jun 2007. Disponível em: <http://www. tst.jus.br/s/1295387/1312860/7.+Responsabilidade+por+danos+morais +nas+rela%C3%A7%C3%B5es+de+trabalho>. Acesso: 03 jul. 2014b. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 345 BITTAR, Carlos Alberto. Reparação Civil por Danos Morais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. CAIRO JÚNIOR, José. 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Emenda Constitucional nº45, de 30 de dezembro de 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ Emendas/Emc/emc45.htm>. Acesso: 03 jul. 2014. ______. Ministério do Trabalho e Emprego. Disciplina o registro e a anotação de Carteira de Trabalho e Previdência Social de empregados. Portaria nº41, 30 de março de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2007. ______. Tribunal Superior do Trabalho. 7ªTurma. Processo NºRR0000502-94.2010.5.06.0001. Relator: Ministro Cláudio Mascarenhas Brandão, Brasília, DF, 25 de setembro de 2008. BREBBIA, Roberto H. El Daño Moral. Buenos Aires: Bibliográfica Argentina, 1950. CAHALI, Yussef Said. Dano Moral. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. Capa Sumário CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil. São Paulo: Atlas, 1998. CUPIS, Adriano de. Il danno: teoria generale della responsabilità civile. Milão: Giuffrè, 1970. DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 12. ed. 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Assim, o presente trabalho monográfico, intitulado de “Assédio Moral Organizacional:os Limites do Poder Diretivo do Empregador e as Consequências para o Trabalhador”, tem por objetivo estudar estas novas práticas que colocam os trabalhadores em situações complicadas, na qual devem atingir metas inalcançáveis, seguir fielmente a cultura da empresa e aqueles que não conseguem são humilhados na frente dos outros colaboradores. Este modelo de gestão busca ainda retirar dos quadros da organização aqueles que não se adaptem a esta forma de gestão, no entanto, retirando da empresa a obrigação de arcar com os custos de uma rescisão trabalhista sem justa causa. Para tanto, serão analisados os conceitos relativos 102 Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraiba, autor do trabalho monográfico sob orientação da professora mestra Ana Paula Albuquerque. 103 Professora do Centro de Ciências Jurídicas da UFPB. Mestra em Ciências Jurídicas pela UFPB. Doutoranda em Direitos Humanos e Desenvolvimento no PPGCJ/UFPB. Orientadora da monografia. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ao assédio moral e ao assédio moral organizacional, considerando os elementos caracterizadores desta conduta. Nesse sentido, foi estudado até que ponto o poder diretivo do empregador pode ser usado para orientar, organizar e disciplinar os trabalhadores. Por fim, buscou-se mostrar as consequências desta prática para os trabalhadores, bem como sugerir algumas condutas para evitar e reparar os danos causados pelo assédio moral organizacional. Palavras-chave: Assédio Moral. Assédio Moral Organizacional. Poder Diretivo do Empregador. Consequências do Assédio Moral Organizacional. 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho é uma abordagem sobre o assédio moral, em especial, o assédio moral organizacional e o poder diretivo do empregador. O conteúdo a ser tratado neste trabalho se encontra em diversas áreas do conhecimento, passando pela medicina, psicologia, e claro, pelo direito. No campo do direito o conteúdo a ser tratado também passa por diferentes áreas do mundo jurídico, entre elas, o direito constitucional, direito do trabalho eo direito civil.A escolha do tema se deu diante da sua importância e relevância jurídica, uma vez que é recorrente os casos de assédio moral em vários locais seja no trabalho, no ambiente escolar e até mesmo no ambiente familiar. A legislação brasileira protege os trabalhadores de uma maneira geral, garantindo-lhes condições dignas de trabalho, no entanto, falta uma legislação específica no que tange ao assédio moral dificultando a proteção ao trabalhador vítima desta prática. Por isso, continua sendo importante uma pesquisa nesta área, pois é um tema relativamente novo e de notável importância jurídica.No caso do assédio moral organizacional, que foi tratado de Capa Sumário 349 maneira mais específica, será demonstrado como funciona essa modalidade de assédio moral e porque é necessário fazer um estudo sobre ela, visto que na maioria dos casos nem os próprios trabalhadores sabem que estão sendo vítimas desta prática. A metodologia adotada quanto à natureza da pesquisa será dogmática, tendo por base o posicionamento da doutrina e da jurisprudência nacional no que se referem ao assédio moral e ao assédio moral organizacional. Será utilizado, quanto ao procedimento, o método interpretativo, em que se busca através da coleta de dados bibliográficos, entre eles consulta a doutrina, jurisprudência, leis e sites especializados, os conceitos e classificações pertinentes ao tema. Para se tornar mais didático, o presente trabalho foi dividido em três capítulos.O primeiro capítulo trata do fenômeno do assédio moral no ambiente de trabalho, estudando os conceitos doutrinários sobre o tema, os elementos caracterizadores do assédio moral, as classificações, bem como o posicionamento do ordenamento jurídico brasileiro sobre este tema.Ainda no primeiro capítulo será tratada a questão da proteção à dignidade humana, em especial do princípio da proteção conferida aos trabalhadores pela Constituição Federal de 1988. O segundo capítulo dedica-se a mostrar o assédio moral organizacional, como uma forma de gestão empresarial, que busca aumentar a produção, diminuir custos e melhorar o desempenho da empresa. No entanto, para isso, institui um ambiente de trabalho altamente estressante, com o uso de práticas abusivas que expõem os trabalhadores a situações humilhantes e geram diversas consequências negativas para eles e para as pessoas que estão ao seu redor. Assim, busca fundamentação para o limite do poder diretivo do empregador em organizar e gerir seu negócios. Por fim, trará no terceiro e último capítulo as consequências da prática do assédio moral organizacional para os trabalhadores, elencando ainda formas de prevenção e reparação dos danos decorrentes Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização desde modelo de gestão. 2 ASSÉDIO MORAL E A PROTEÇÃO DO TRABALHADOR 2.1 ASSÉDIO MORAL Desde a revolução industrial, as relações de trabalho vêm crescendo em uma escala nunca vista, uma vez que com a globalização dos mercados e as novas tecnologias fizeram surgir comportamentos, normas e até mesmo algumas atividades comerciais que até então não existiam. No entanto, algumas consequências negativas também sobrevieram de toda essa revolução global e tecnológica, em especial para dos trabalhadores, que acabaram sofrendo algumas das conseqüências negativas desta forma de gestão que está sendo implementada nas empresas de todo o mundo. Esta nova forma de gestão está surgindo da necessidade das empresas se manterem lucrativas, pois na medida que os encargos, custos e a concorrência aumentam há também a necessidade por mais resultados.A concorrência é um dos fatores fundamentais que estimulam o assédio mora, uma vez que com a globalização dos mercados, a concorrência se tornou mais acirrada, visto que hoje as empresas do Brasil, por exemplo, competem não só com empresas do mercado local mas também com outras grandes indústrias na China, Índia e outros países. Devido a isso, as empresas têm a necessidade de apresentar bons resultados para se manterem viáveis e lucrativas no mercado. Sob essa premissa, as empresas buscam extrair o máximo de seus colaboradores, com programas de incentivos e metas que objetivam mostrar quais os resultados que devem ser entregues e em qual prazo. Nesse sentido, o aumento das relações de trabalho e a cobrança excessiva por resultados positivos faz surgir um maior número de trabalhadores insatisfeitos com as empresas Capa Sumário 351 e o ambiente de trabalho em que estão inseridas. Uma das insatisfações mais recorrentes no mundo empresarial e corporativo relatadas pelos trabalhadores é o chamado assédio moral, que é um fenômeno presente em diversas relações humanas,no âmbito escolar, em repartições públicas ou privadas e até mesmo no âmbito familiar.Contudo, como já exposto, o estudo do assédio moral aqui tratado será desenvolvido especificamente nas relações de emprego. Compreendido que este mal pode acontecer em diversos locais, no ambiente de trabalho ele se manifesta mediante um comportamento de uma pessoa para com outra dentro do ambiente de trabalho, existindo, na maioria dos casos, uma relação de dependência ou subordinação entre elas. São diversos os motivos que levam o assédio moral a acontecer nos locais de trabalho, entre eles,cor, raça, orientação sexual, atitudes e diferenças de opinião entre as pessoas.Já as conseqüências advindas destas práticas são inúmeras, que vão desde pequenos estresses e alterações de humor até a casos de depressão, doenças cardíacas e psíquicas que levam os trabalhadores a situações deploráveis em alguns casos. O assédio moral no ambiente de trabalho pode começar de diversas formas, como uma brincadeira ou até mesmo uma cobrança excessiva de resultados pelo empregador. No entanto,a prática de assédio moral acaba sempre de maneira desastrosa, com um pedido de demissão ou até, em casos graves, os males advindos do estresse causado pelo assédio moral culminam com a morte do trabalhador através do suicídio. Dessa forma, deve-se destrinchar o tema, analisando a história, os conceitos a as vertentes que levam a configuração do assédio moral. 2.1.1 Contexto histórico sobre o estudo do assédio moral Ao analisarmos o contexto histórico das relações de trabalho chega-se a época em que em que os trabalhadores sequer ti- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nham direito a receber pelos serviços prestados. No entanto, no que se refere ao assédio moral, concluímos que não se trata de um fenômeno recente mas os estudos que tratam deste tema são relativamente novos.Os primeiros estudos sobre o assédio moral surgiram em áreas diferentes do ramo do direito, quando biólogo austríaco Konrad Lorenz analisou o comportamento de animais de pequeno porte que entravam em conflito com outros animais, em geral, de um porte maior. Desta forma avaliou o comportamento agressivo dos animais que se viam ameaçados por outros e chamou esse comportamento de mobbing, termo inglês para a palavra mob, que traduzindo para o português significa o ato de maltratar, perseguir ou atacar. Anos depois, por volta de 1960, o médico sueco Perter-Paul Heinemann, iniciou pesquisas com crianças no ambiente escolar. E durante estas pesquisas encontrou um padrão de comportamento que se relacionava com o estudo do biólogo Konrad Lorenz, em que observou que outras crianças adotavam uma postura mais agressiva contra outras para evitar que elas se destacassem, assim este conhecimento foi aplicado agora nas relações humanas e não mais dos animais. Na década de 1980 o psicólogo alemão Heinz Leymann introduziu o conceito desta prática chamada mobbing para o ambiente de trabalho, em que verificou que o comportamento dos animais em seu habitat e o comportamento das crianças nas escolas forma um padrão quando estes se sentiam ameaçados de alguma forma.Também observou que nos locais de trabalho, no entanto, as agressões eram mais difíceis de serem percebidas pois raramente o assédio se materializava na forma de violência física. Por fim, o assédio moral no ambiente de trabalho se tornou um conteúdo relevante para estudo quando a psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen lançou em 1998 um livro que traduzido para o português pode ser chamado de “Assédio Moral: a violência diária perversa”. Capa Sumário 353 A partir desse momento, a discussão sobre assédio moral foi lançada no ordenamento jurídico e até o momento continua sendo um tema de bastante relevância, visto que ocorre com frequência nos locais de trabalho do Brasil e do mundo inteiro. 2.1.2 Conceito Para conceituar o assédio moral vale destacar antes o significado do verbo assediar, que segundo a versão eletrônica do Dicionário Aurélio, é o ato de importunar, molestar com pretensões insistentes. Trazendo para o campo do direito do trabalho, a prática do assédio moral pode ser entendida como a degradação gratuita das condições de trabalho do empregado através da importunação insistente. No entanto, esta degradação pode acontecer de diversas formas sendo a mais comum a exposição do trabalhador a situações constrangedoras, humilhantes e vexatórias de forma repetitiva e que perdura ao longo do tempo do contrato de trabalho. Tal conceito encontra respaldo na doutrina pátria do ordenamento jurídico brasileiro, conforme ensina a professora Sônia Mascaro Nascimento (2011, p. 14): [...] uma conduta abusiva, de natureza psicológica, que atenta contra a dignidade psíquica, de forma repetitiva e prolongada, e que expõe o trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, capazes de causar ofensa à personalidade, à dignidade ou à integridade psíquica, e que tem por efeito excluir o empregado de sua função ou deteriorar o ambiente de trabalho. Contribuindo para este entendimento segue o conceito exposto por André Luiz Souza Aguiar (2005, p. 28)ao tratar do assédio moral no ambiente de trabalho: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Exposição prolongada e repetitiva a condições de trabalho que, deliberadamente, vão sendo degradadas. Surge e se propaga em relações hierárquicas assimétricas, desumanas e sem ética, marcadas pelo abuso de poder e manipulações perversas. São condutas e atitudes cruéis de um(a) contra o(a) subordinado (a) ou, mais raramente, entre os colegas. Importante destacar também o posicionamento do professor Jorge Luís de Oliveira da Silva (2005, p. 12) [...] o assédio moral vem a ser a submissão do trabalhador a situações humilhantes, vexaminosas e constrangedoras, de maneira reiterada e prolongada, durante a jornada de trabalho ou mesmo fora dela, mas sempre em razão das funções exercidas pela vítima. Isto posto, não significa que a conduta assediadora se relacione necessariamente com alusões ou indicações ao trabalho, pois geralmente o foco da violência é qualquer ponto da vítima que possa determinar uma desestabilização desta com o ambiente de trabalho, facilitando as condutas tendentes a desqualificá-la, não só como profissional, mas também como ser humano. E do advogado César Luís Pacheco Glöckner (2004, p. 19) Podemos então conceituar o assédio moral, unindo os vários conceitos que anteriormente foram apresentados, como sendo toda a conduta abusiva, através de gestos, palavras, comportamentos, atitudes, que atente, seja pela sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade física de um trabalhador, ameaçando seu emprego ou degradando o ambiente de trabalho. Trata-se, portanto, da exposição do trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, feitas de forma repetitiva e prolongada durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. Capa Sumário 355 Tendo ciência que estudo do assédio moral também teve sua origem no campo da medicina e da psicologia, faz-se necessário trazer o conceito da psiquiatra Marie-France Hirigoyen (2011, p. 17): O assédio moral no trabalho é definido como qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho. O assédio moral também pode ser descrito como um terrorismo psicológico, hostilização no ambiente de trabalho, bullying, mobbing, entre outros.O termo “mobbing”hojeestá mais ligado a idéia de perseguições coletivas, mas não se confunde com assédio moral. Já o termo bullying teve origem na Inglaterra, e se relaciona também com a idéia de tratar os outros com grosseria e humilhação. Esteúltimose tornou mais conhecido desde que o tema virou febre na mídia devido a atentados corridos em escolas americanase até mesmo no Brasil realizado por estudantes vítimas de bullying, ou seja, vítimas de chacotas e outras condutas humilhantes que vão desde pequenas brincadeiras à violentas agressões físicas. Pode-se afirmar que tanto o mobbing quanto o bullying são condutas que visam perseguir e humilhar as pessoas, no entanto, elas se diferenciam pelo fato de a primeira estar relacionada a idéia de perseguições coletivas feitas por uma entidade organizada e a segunda quando as ofensas são cometidas por uma pessoa contra outra.Todos estes conceitos são importantes para que fique claro que não é todo conflito dentro do ambiente de trabalho que caracteriza o assédio moral mas sim aquelas condutas que, de fato, sejam repetitivas e sistemáticas com o único objetivo de denegrir a dignidade do trabalhador. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Portanto, atos isolados e em momentos distintos não devem ser vistos como assédio moral, apesar do fato não ser considerado assédio moral não quer dizer que empregado não possa se valer de meios para evitar ou mesmo reparar qualquer dano que venha sofrer durante o curso do contrato de trabalho. 2.1.3 Elementos caracterizadores do assédio moral Ainda não existe um entendimento pacificado no ordenamento jurídico brasileiro sobre todos os elementos caracterizadores do assédio moral. No entanto existem elementos que são comuns em todos os casos estudados e são defendidos por grande parte da doutrina, nesse sentido pode-se afirmar que o primeiro deles é a intencionalidade ou dolo do agente, o segundo é a frequência e repetição das condutas e por fim o dano causado a vítima. 2.1.3.1 Dolo ou intencionalidade Para a maioria dos pesquisadores e doutrinadores, o dolo do agente é um elemento fundamental para a caracterização de uma conduta como assédio moral, ou seja, é necessário que fique claro que o agressor tenha a intenção de desconcertar a vítima e o colocá-la em uma situação constrangedora e humilhante. A psiquiatra Mari-France Hirigoyen(2002, p. 64) afirma que só se configura assédio moral quando existe a intenção de atingir a vítima, isto é, a vontade do agente deve ser direcionada no sentido de gerar sofrimento para a pessoa assediada. No entanto, ela divide a intencionalidade em duas vertentes, a primeira é a intencionalidade consciente na qual o agressor tem certeza absoluta do que está fazendo e com um objetivo claro de constranger a vítima, já na segunda vertente, existe a intencionalidade inconsciente, em que o agente pratica a conduta do assédio moral mas sem a intenção de trazer sofrimento à a pessoa agredida mas sim interagir Capa Sumário 357 com a mesma. Neste mesmo sentido, uma parte da jurisprudência já se manifestou afirmando que a intencionalidade é um elemento necessário para a caracterização do assédio moral (grifo nosso): Ementa: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. PROFESSORA DE ESCOLA EVANGÉLICA. ASSÉDIOMORAL NÃO CONFIGURADO. PRÁTICA NÃO REITERADA DA RECLAMADA DE UTILIZAÇÃODECRITÉRIODE PREFERÊNCIA PARA PAGAMENTO DOS SALÁRIOS EM SITUAÇÃO DE DIFICULDADE ECONÔMICA: PRIMEIRO AS TRABALHADORAS COM FILHOS E SITUAÇÃO FINANCEIRA MAIS DIFÍCIL. RECLAMANTE QUE FICOU NA ÚLTIMA POSIÇÃO DA ORDEM DE RECEBIMENTO. O assédio moral pressupõe intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e degradação deliberada das condições de trabalho. E, no caso dos autos, segundo o TRT, não houve a prática reiterada do preterimento no pagamento dos salários da reclamante, tampouco situação vexatória. Assim, embora relevante o caso dos autos, não está demonstrada a viabilidade do conhecimento do recurso de revista especificamente quanto ao alegado assédio moral. Nega-se provimento a agravo de instrumento pelo qual o recorrente não consegue infirmar os fundamentos do despacho denegatório do recurso de revista. Processo: AIRR - 418-77.2011.5.04.0013 Data de Julgamento: 28/05/2014, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 30/05/2014. Ementa: I - AGRAVO DE INSTRUMENTO DA COOPERATIVA DE ECONOMIA E CRÉDITO MÚTUO DOS MÉDICOS E DEMAIS PROFISSIONAIS DE NÍVEL SUPERIOR DA SAÚDE DE SALVADOR LTDA. - UNICRED SALVADOR. RECURSO DE REVISTA. NEGATIVADE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. GRUPO ECONÔMICO. NÃO PROVIMENTO. Nega-se provimento a agravo de instrumento pelo qual o recorrente não consegue infirmar os fundamentos do Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização despacho denegatório do recurso de revista. [ ... ] ASSÉDIOMORAL. O assédio moral fica configurado quando há atos reiterados e abusivos, uma atitude de contínua e ostensiva perseguição, um processo discriminatório de situações humilhantes e constrangedoras. Em tese, pressupõe repetição sistemática, intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e degradação deliberada das condições de trabalho. No caso, os fatos consignados no acórdão demonstram um conjunto de atos ilícitos da empregadora, que violam a dignidade, a honra e a imagem da empregada, na medida em que, ao ter reduzidas suas atribuições na empresa, ficou sujeita a situação vexatória diante de seus colegas de trabalho e clientes, o que é suficiente para configurar o assédio moral. Não é difícil presumir o abalo psíquico, a angústia e o constrangimento pelos quais passa uma pessoa que assim é tratada. Demonstrados, pois, que os efeitos da afronta sofrida na esfera subjetiva da empregada são flagrantes. Assim, conclui-se configurado o dano moral, e é devido o pagamento da respectiva indenização. Recurso de revista de que não se conhece. [ ... ] Processo: ARR - 87700-76.2009.5.05.0020 Data de Julgamento: 14/08/2013, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 23/08/2013. Acontece que, outra parte da doutrina entende que a intencionalidade não é um elemento obrigatório para configuração do assédio moral, uma vez que o elemento a ser observados para a caracterização do assédio moral é o atentado a dignidade e direitos fundamentais do trabalhador independentemente do perseguidor ter ou não a intenção de humilhar o empregado.O próprio Capa Sumário 359 Tribunal Superior do Trabalho já reconheceu em outro momento que é desnecessário o elemento da intencionalidade esteja presente para ser configurado o assédio moral (grifo nosso): (...) Pouco importa, ainda, que a reclamada não tivesse a intenção de humilhar o reclamante ou forçá-lo a sair do emprego: estando suficientemente comprovado nos autos que o autor não tinha acesso a instalações sanitárias adequadas, tendo que fazer as necessidades fisiológicas com o trem em movimento, porque não podia pará-lo, e que nem sempre a locomotiva era adequadamente limpa, cumpre reiterar que tais fatos, por si sós, atentam contra a sua dignidade humana, lembrando-se que são invioláveis, enquanto bens tutelados juridicamente, a honra, a dignidade e a integridade física e psíquica da pessoa, por força do disposto nos artigos 1º, III, 4º, II e 5º, III e V, da Carta Maior, garantias que têm destacada importância também no contexto do contrato de trabalho, fonte de dignidade do trabalhador. Daí porque a violação a qualquer desses bens jurídicos, no âmbito do contrato de trabalho, ensejará ao infringente a obrigação de reparar os danos dela decorrentes. Cumpre ressaltar que a igualdade preconizada no artigo 5º da Magna Carta deve ser considerada também na relação de respeito que deve nortear o contrato de trabalho, na medida em que toda pessoa, vista como sujeito do direito à inviolabilidade dos valores subjetivos mencionados, deles não se despe quando contrata relação de trabalho subordinada, tornando-se empregado. Como se vê, se por um lado é certo não teve a ré a intenção de humilhar o seu empregado, por outro lado, verifica-se que agiu a mesma com inaceitável indiferença para com o sofrimento a ele causado por tais condições de trabalho, por si só degradantes. Surge, daí, a culpa da ré, consubstanciada em seu ato omissivo, e que vai ensejar a obrigação de indenizar. (...) Observa-se que a prova dos autos, analisadas à minúcia pelo Regional e por ele transcritas, revela que, de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização fato, restou caracterizado assédio, na medida em que o reclamante ficou sujeito a situação humilhante, por não poder fazer suas necessidades fisiológicas com o mínimo de dignidade, conforme pode ser verificado da transcrição da decisão recorrida no item anterior. (AI - 55240-18.2007.5.03.0099, Relatora Ministra: Dora Maria da Costa, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 22/07/2010) Acontece que a jurisprudência brasileira em sua maioria oferece um suporte maior ao estudo da psiquiatra Mari-France Hirigoyen afirmando que a intencionalidade é um elemento essencial para caracterização do assédio moral, no entanto, na visão de pesquisador deste tema, acredito que este não deveria ser um requisito obrigatório uma vez que cada caso deve ser analisado isoladamente, levando em consideração os fatos e provas expostos pela partes, até porque na maioria dos casos nem o próprio assediador se vê como um praticante de assédio moral mas isso não retira-lhe a culpa nem os danos causados pela sua conduta, devendo portanto, verificar a presença dos outros pressupostos. 2.1.3.2 Frequência e duração no tempo Diferentemente da intencionalidade, a frequência e a repetição são requisitos que se encontram mais pacificados na doutrina e na jurisprudência do Brasil quando se trata da caracterização do assédio moral. Conforme preleciona a professora Sônia Mascaro Nascimento (2011, p. 64) “o comportamento realizado de maneira reiterada é elemento essencial para configuração do assédio moral”. De acordo com este entendimento, uma humilhação ou um ato que coloque o trabalhador em uma situação constrangedora, de maneira isolada, por si só não deve ser considerado um assédio Capa Sumário 361 moral, por faltar exatamente o elemento essencial que é a repetição e a reiteração dos comportamentos ofensivos à dignidade do mesmo. Segundo FERREIRA (2010, p. 42) “o assédio moral é processo de exposição repetitiva e prolongada do trabalhador a condições humilhantes e degradantes e a um tratamento hostil no ambiente de trabalho, debilitando sua saúde física e mental. Trata-se de uma guerra de nervos, a qual conduz a vítima ao chamado “assassinato psíquico”.”Nesse norte foi direcionado o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho, para confirmar que o elemento da frequência é essencial para configuração do assédio moral (grifo nosso): I - AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. Agravo de instrumento a que se dá provimento, ante a provável violação do art. 5º, III e V, da Constituição Federal, nos termos do art. 228 do RI do TST. II - RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. ASSÉDIO MORAL. A hipótese de assédio moral fica configurada quando há atos reiterados e abusivos, uma atitude de contínua e ostensiva perseguição, um processo discriminatório de situações humilhantes e constrangedoras. O assédio moral, em tese, pressupõe repetição sistemática, intencionalidade, direcionalidade, temporalidade e degradação deliberada das condições de trabalho. No caso concreto, os fatos consignados no acórdão revelam um conjunto de atos ilícitos da empregadora que violam a dignidade, a honra e a imagem da empregada, na medida em que era submetida a tratamento inadequado. A reclamada a chamava de -feia-, mandava que ela -calasse a boca-, falava para ela que -nunca iria se casar- e -somente teria folga no dia em que sua mãe falecesse-, constantemente a ameaçava de demissão, o que é suficiente para configurar a hipótese de assédio moral. Não é difícil presumir o abalo psíquico, a angústia e o constrangimento pelos quais passa uma pessoa que sofre esse tratamento. Demonstrados, pois, que os efeitos Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 363 da afronta sofrida na esfera subjetiva da empregada são flagrantes. Assim, conclui-se configurado o dano moral, sendo devido o pagamento da respectiva indenização. Recurso de revista a que se dá provimento. (RR - 4172-79.2010.5.12.0032, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 26/09/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 28/09/2012) desnecessário, quando se tratar do dano moral decorrente do ato ilícito, provar o sofrimento da vítima, uma vez que é presumível.É importante destacar que devem estar presentes os elementos da responsabilidade civil para que possa ser indenizado os danos decorrente do assédio moral, isto é, o dano causado deve ter uma ligação direta com a conduta do agente conforme o entendimento da 2ª turma do TST (grifo nosso): Desta forma,fica claro que o entendimento jurisprudencial e doutrinário já está pacificado no sentido que é necessário a existência de uma repetição sistemática da conduta abusiva, no entanto, não existe ainda uma fórmula exata que se encaixe na questão da temporalidade, devendo cada caso ser analisado de maneira isolada levando-se em conta o período em que ocorria o assédio e em quanto tempo a mesma conduta se repetia. DANO MORAL. INDENIZAÇÃO. ASSÉDIO MORAL. A responsabilidade civil do empregador para indenizar dano moral oriundo das relações de trabalho, em regra, baseia-se na teoria subjetiva, calcada na culpa do agente (artigo 186 do CC). Segundo esse preceito, o dever de indenizar passa, inevitavelmente, pela aferição da culpa, do dano e do nexo causal. Na espécie, a Corte Regional registrou que ficou comprovado o assédio moral, consistente no tratamento habitualmente agressivo do preposto da reclamada e chefe do autor, e que esse comportamento atuou como concausa no agravamento da doença psíquica que vitimou o obreiro (transtorno do pânico), estando evidenciado o nexo causal entre a conduta culposa da reclamada e o evento danoso, era devido o pagamento da indenização daí decorrente Assim, comprovado que o dano sofrido pelo autor tem nexo causal com a atividade por ele desempenhada na reclamada, a consequência lógica é a condenação ao pagamento de indenização por dano moral daí decorrente. Afronta ao artigo 5º, XXXV e LV, da Constituição Federal não configurada. Divergência jurisprudencial inespecífica, incidência da Súmula nº 296. Agravo de instrumento a que se nega provimento. (TST - AIRR: 1597402020085030029 15974020.2008.5.03.0029, Relator: Guilherme Augusto Caputo Bastos, Data de Julgamento: 02/05/2012, 2ª Turma, Data de Publicação: DEJT 11/05/2012) 2.1.3.3 Dano Para que não reste nenhuma dúvida de que o ato praticado pelo agente se caracteriza como assédio moral é obrigatório a existência de um dano. No entanto, diferentemente de outras formas de agressão, o assédio moral tem como requisito que o dano seja direcionado à dignidade do trabalhador. Nesse sentido, os danos são diversos, vão desde um simples constrangimentos no ambiente de trabalhão por uma brincadeira ou humilhação até quadros de depressão causados por um ambiente de trabalho extremamente hostil. Na prática, os danos devem ser comprovados, mas no caso do assédio moral não há necessidade de uma prova direta dos danos sofridos uma vez que a própria degradação do ambiente de trabalho já configura uma conduta abusiva conforme preleciona a juíza Candy Florencio Thome (2009, p. 28) em sua obra “O assédio moral nas relações de emprego”, afirma ainda que também é Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Dessa forma, o assédio moral estará configurado quando for observado que a conduta do assediador está causando um dano a saúde física e mental da vítima, no entanto, pode-se afirmar que o simples fato de uma conduta estar gerando um ambiente de trabalho degradante, por si só já caracteriza um dano ao trabalhador mesmo que ele não seja o alvo direto das agressões. 2.1.4 Classificação do assédio moral O assédio moral no âmbito das relações trabalhistas é dividido para a maioria dos doutrinadores, em três modalidades, a primeira é o chamado assédio moral vertical, a segunda o assédio moral horizontal e por fim o assédio moral misto. O que será primordial para definir em que modalidade se encaixa a forma de assédio será a posição hierárquica do agente dentro da empresa com relação a posição hierárquica da vítima. 2.1.4.1 Assédio moral vertical O assédio moral vertical pode ser estudado em duas modalidades, uma mais comum de acontecer,que é o assédio moral vertical descendente, e outra mais rara de ocorrer que é o assédio moral ascendente. O descendente está presente na maioria das vezes, é também conhecido como assédio moral estratégico ou ainda como “bossing”, termo em inglês que remete a idéia de superioridade. O assédio moral descendente é verificado quando é praticado por um superior hierárquico contra um subordinado, ou seja, um gerente ou até mesmo o dono da empresa utiliza-se da sua posição privilegiada na empresa para destratar e aborrecer algum trabalhador e colocá-lo em uma situação desconfortável.Muitas vezes, o superior hierárquico ainda se aproveita da sua posição e poderes para delegar obrigações humanamente impossíveis, com o escopo de desestabilizar mentalmente o trabalhador e deixá-lo Capa Sumário 365 constrangido. É importante destacar também que pode acontecer a situação inversa, onde o empregador retira as obrigações do trabalhador deixando-o com aspecto de pessoa ociosa e conseqüentemente desnecessária para a empresa, gerando com isso sua demissão e o afastamento do trabalhador. Nesse sentido,Marie-France Hirigoyen (2011, p. 113)revela que o assédio moral descendente ainda podes er estudado em três tipos diferentes a depender do objetivo do agressor.Entre as formas citadas pela psiquiatra está o assédio moral perverso, no qual o superior hierárquico utiliza-se desta conduta apenas para valorizar o seu próprio poder, massageando seu ego e atingindo diretamente a autoestima do trabalhador; outro tipo citado pela professora é o assédio estratégico, quando o objetivo do assediador é induzir o empregado a pedir demissão e assim evitar que a empresa arque com os custos de uma rescisão trabalhista sem justa causa. Por fim traz a figura do assédio moral institucional, que ocorre quando o assédio moral é uma prática corriqueira na empresa sendo utilizado como uma forma de gestão de pessoas, fazendo com que todos os subordinados sigam fielmente as instruções dadas pelos superiores hierárquicos. O assédio moral vertical descendente já foi debatido no nosso ordenamento jurídico conforme a jurisprudência (grifo nosso): ASSÉDIO MORAL. REQUISITOS. CONFIGURAÇÃO. 1. Constitui assédio moral vertical a atitude do superior hierárquico que dispensa ao empregado tratamento vexatório, incompatível com o padrão médio de conduta na sociedade. Demonstrada a sua prática, do contexto emerge o direito ao recebimento de indenização pelo dano. 2. A definição do montante a ser pago, a esse título, exige a avaliação sobre aspectos de fato que são próprios a cada lide, como a condição social dos envolvidos, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização a natureza, a extensão da lesão e o grau de culpa do ofensor, bem como suas consequências na esfera subjetiva da vítima. (TRT-10 - RO: 01713201200910005 DF 01713-2012009-10-00-5 RO, Relator: Desembargador João Amílcar, Data de Julgamento: 26/03/2014, 2ª Turma, Data de Publicação: 04/04/2014 no DEJT) Nesta modalidade de assédio moral, o trabalhador está sujeito a um dano relativamente maior, pois, indiscutivelmente se encontra em uma posição bem mais vulnerável que o agressor, visto que este é seu empregador, tornando difícil defender-se ou pedir ajuda aos outros colegas de trabalho, que evitam se envolver no conflito com o objetivo de proteger o seu emprego, além do que, temem serem as novas vítimas do assédio moral dos agressores. Além da modalidade supracitada existe também o assédio moral vertical ascendente, que é um pouco mais difícil de acontecer.Configura-se quando um trabalhador hierarquicamente inferior nos quadros organizacionais da empresa assedia pessoa em cargo superior ao seu com comportamentos que objetivam depreciar o superior hierárquico e colocá-lo situação de constrangimento no ambiente de trabalho. Geralmente o assédio moral vertical ascendente se inicia quando alguém mais jovem e mais novo na empresa é promovido a um cargo de comando ou direção deixando os outros empregado mais velhos e que trabalham a mais tempo na empresa com certa inveja do novo chefe e com isso começam a menosprezar as ordens e direcionamentos do mesmo.O Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte (2008, p. 1330) tratou desta forma de assédio moral vertical em sua obra “O assédio moral nas relações de trabalho” afirmando que: [...] assédio moral vertical ascendente caracteriza-se pela prática de atos vexatórios contra superior Capa Sumário 367 hierárquico. Desobediência ou hostilização a ordens pelos subalternos em relação a superior inexperiente ou inseguro, visando desacreditá-lo para desestabilizá-lo no cargo. Os comportamentos destes empregados contra seu superior geram uma instabilidade no ambiente de trabalho e conseqüentemente a redução do rendimento do mesmo que aos poucos vai se distanciando da sua função de chefia e diminuindo sua atuação do seu poder diretivo uma vez que o mesmo não se sente respeitado por seus comandados e acaba se vendo como desnecessário para aquela função. 2.1.4.2 Assédio moral horizontal Diferentemente do que ocorre na modalidade vertical de assédio moral em que ambos os sujeitos da relação de assédio se encontram em diferentes níveis hierárquicos e com certa subordinação, no assédio moral horizontal, também conhecido como assédio moral simétrico, acontece o desaparecimento da relação de subordinação e os sujeitos desta relação encontram-se no mesmo nível hierárquico dentro da empresa.Nesta modalidade de assédio, as agressões geralmente se iniciam quando existe uma disputa por um cargo ou promoção dentro da empresa e se manifesta através de brincadeiras depreciativas, piadas e humilhações com o objetivo de diminuir o outro. No entanto, são diversos os motivos que levam ao assédio moral horizontal, entre eles: conflitos interpessoais, diferenças de opiniões, ciúmes, falta de destaque no cumprimento de suas funções ou falta de cooperação com os demais colegas de trabalho. Uma das formas pela qual pode-se verificar a presença de assédio moral horizontal no ambiente de trabalho é quando um grupo de trabalhadores se recusa a aceitar um novo colega de trabalho, tra- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tando-o de forma hostil e rejeitando-o, deixando claro que o mesmo não pertence ao grupo.Assim, tanto o assédio moral vertical como o horizontal podem ser praticados por um grupo contra uma pessoa ou por uma pessoa contra determinado grupo. É importante destacar também que o fato do assédio moral ser praticado por empregados da empresa não isenta o empregador da responsabilidade de reparar os danos causados aos trabalhadores, visto que é obrigação dele zelar por um ambiente de trabalho livre de riscos à saúde do trabalhador conforme estabelece o Art. 7º, XXII da Constituição Federal de 1988 e a grande maioria da jurisprudência nacional: ASSÉDIO MORAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. O assédio moral é a exposição do trabalhador a situações humilhantes e constrangedoras, repetitivas e prolongadas durante a jornada de trabalho e no exercício de suas funções. Nesse escólio, tanto o assédio moral por parte dos superiores hierárquicos (assédio moral vertical) quanto pelos colegas de trabalho (assédio moral horizontal), induvidosamente, acarretam a responsabilidade empresarial, ante o direito fundamental do trabalhador ao meio ambiente de trabalho livre de riscos à sua saúde (art. 7º, XXII da CF/88), “in casu”, a higidez psíquica. Recurso ordinário provido parcialmente. (TRT-19 RO: 257200800619001 AL 00257.2008.006.19.00-1, Relator: Vanda Lustosa, Data de Publicação: 21/09/2009) Nesse sentido, pode-se concluir que o assédio moral horizontal é uma prática bastante comum nos locais de trabalho, sendo incentivada de forma discreta pelos empregadores, na medida que eles estimulam uma competitividade dentro da empresa para que os trabalhadores se tornem mais eficientes, no entanto, este tipo de conduta empresarial estimula uma concorrência exacerba- Capa Sumário 369 da entre os trabalhadores, fazendo desaparecer a figura do colega de trabalho e surgindo um concorrente no trabalho. 2.1.4.3 Assédio moral misto Por fim, existe também o assédio moral na modalidade mista, que ocorre quando a vítima é hostilizada tanto pelos colegas de trabalho quanto por seus superiores hierárquico. É verificado normalmente em empresas na qual a competitividade é estimulada constantemente, isto é, há uma cobrança excessiva de resultados positivos entre os trabalhadores. No assédio moral misto, acontece a união do assédio moral vertical com o assédio moral horizontal tendo como resultado um ambiente de trabalho extremamente hostil e estressante para todos que estão nele. No entanto, na maioria dos casos, o assédio inicia-se na figura do superior hierárquico e então os demais colegas para “entrarem na brincadeira” se unem ao assediador e passam a agir como ele, com gozações e brincadeiras direcionadas a outro colega de trabalho. Sônia Mascaro Nascimento (2011, p. 16) afirma ainda que no caso do assédio moral misto a vítima “é atacada por todos os lados, o que configurará uma situação insustentável num curto espaço de tempo.”. Por fim, a pessoa assediada acaba se isolando para evitar continuar sendo o alvo agressões tornando-se uma pessoa de difícil convivência pois já fica bastante desgastada com a situação, tendendo afastar-se de forma permanente da empresa. 2.2 PROTEÇÃO AO TRABALHADOR NO AMBIENTE DE TRABALHO Durante as últimas décadas, o Direito do Trabalho evoluiu de maneira bastante significativa com relação ao instituto da Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização proteção do trabalhador. Se analisarmos como se davam as relações de trabalho no mundo há séculos atrás, chega-se em períodos onde a escravidão era o sistema universal de trabalho, onde o trabalhador era tratado como objeto, exercendo suas funções de acordo com a vontade de seu “dono”. Este exercia um domínio total sobre o trabalhador, inclusive até sobre o patrimônio do mesmo (SÜSSEKIND, 2002).Com o passar do tempo, as relações de trabalho evoluíram a um ponto em que a escravidão deu lugar para a servidão. Este sistema consistia basicamente em uma troca, na qual o servo cultivava nas terras do senhor com o pagamento de taxas e uma parte da produção mas em troca recebia o direito de ficar com uma parte de sua produção. Dessa forma obtinha os gêneros alimentícios para sua subsistência e a da sua família. Após o fim do regime feudal e com a explosão da revolução industrial, começaram a surgir as primeira relações de trabalho livre fazendo insurgir um novo grupo dentro da sociedade, chamado de operariado. Este grupo era composto em sua maioria por pessoas que vieram dos campos movidas pelas promessas oferecidas nas cidades, no entanto, encontravam diversas dificuldades. Foi durante este período em que iniciou-se o movimento para regulamentar as relações de trabalho e com isso acabar abusos que até então eram cometidos regularmente pelos empregadores.Estes movimentos articulavam-se na tentativa de promoverem melhores condições de saúde e higiene, bem como aumentar a valorização dos trabalhadores. Assim, as condições de trabalho acompanharam a evolução dos direitos humanos em quase todas as suas vertentes, primando principalmente pela dignidade da pessoa humana.A partir deste momento o ordenamento jurídico criou um norte para toda a legislação trabalhista abolindo as relações de trabalho em que os seres humanos não possuíam nem as mínimas garantias relativas a dignidade humana.Gerou-se, com isso, um ambiente de trabalho mais justo e digno onde os trabalhadores podiam ter a possibilida- Capa Sumário 371 de de melhorar, de fato, sua qualidade de vida. Portanto, a proteção do trabalhador nas relações de trabalho também se revela uma matéria dinâmica e em constante evolução. Ela não se restringe apenas à previsão legal da proteção da dignidade da pessoa humana trazidas Constituição Federal de 1988, mas também todos os direitos a ela inerentes como os direitos da personalidade. Além disso, há de se destacar toda proteção conferida especialmente à pessoa do trabalhador, em razão da sua hipossuficiência em relação ao empregador.Diante disso, se faz necessário destacar alguns princípios norteadores e outras prerrogativas conferias pelo ordenamento jurídico à proteção da pessoa física do trabalhador. 2.2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana Como um dos princípios norteadores de maior relevância no nosso sistema jurídico, o princípio da dignidade da pessoa humana teve seu primeiro destaque na Declaração Universal dos Direito Humanos da ONU no ano de 1948, trazendo como uma máxima a afirmação de que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”.O conceito de dignidade humana pode ser de extraído com bastante precisão através dos ensinamentos de André Ramos Tavares (2010) quando o mesmo afirma que “a dignidade da pessoa humana se destina também a proteger o indivíduo de qualquer humilhação ou situação vexatória, além de proporcionar a possibilidade de desenvolvimento e crescimento pessoal”. O Brasil, seguindo as diretrizes mundiais também trouxe expressamente na Constituição Federal de 1988, como fundamento do Estado Democrático de Direito, o princípio da dignidade da pessoa humana que se apresenta como um princípio norteador, devendo garantir proteção e direcionamento a todas as outras normas do ordenamento jurídico.Nesse sentido, observe-se o se- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização guinte julgado do Tribunal Regional do Trabalho (grifo nosso): DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. ATITUDE ABUSIVA DO EMPREGADOR. Dispensa imotivada no curso de licença médica caracteriza ofensa à dignidade da pessoa humana do trabalhador. (TRT-1 - RO: 00010359620125010009 RJ, Relator: Monica Batista Vieira Puglia, Data de Julgamento: 10/12/2013, Quarta Turma, Data de Publicação: 13/01/2014) Pedido de demissão. “Opção” dada pela empregadora frente à possibilidade de ruptura contratual por justa causa. Coação. Violação à dignidade da pessoa humana do trabalhador. Configuração. Inteligência do artigo 151, do Código Civil e do artigo 9º, da CLT. A toda evidência o trabalhador que é “convocado” pelo empregador e recebe a informação de que ou pede demissão ou lhe será aplicada a penalidade máxima de que trata o artigo 482, da CLT, ficará com a primeira hipótese. Além de notória a coação, nos exatos moldes estabelecidos pelo artigo 151, do Código Civil, a conduta da empresa demandada avilta a dignidade da pessoa humana do trabalhador, eis que o mesmo, necessitando de parcela remuneratória para a sua sobrevivência, rende-se à superioridade do poder diretivo do empregador, com o que não pode ser conivente esta Justiça Especializada. Se de fato a empresa reunia motivos ponderáveis para a dispensa do reclamante por justa causa, que assim o fizesse, viabilizando, se o caso, ampla discussão e eventual reversão por esta Justiça Obreira (artigo 5º, inciso XXXV, da Lei Maior). Todavia, assim não procedeu a demandada, “optando” por acatar o “pedido de demissão”, o qual merece ser invalidado por completo, diante da notória coação praticada em relação ao laborista. (TRT-2 RO: 19378820105020 SP 00019378820105020042 A28, Relator: JANE GRANZOTO TORRES DA SILVA, Data de Julgamento: 01/08/2013, 9ª TURMA, Data de Publicação: 13/08/2013) Capa Sumário 373 Nesse sentido, pode-se concluir que todas as leis formuladas no nosso ordenamento jurídico não podem ir de encontro a esta máxima apresentada e da mesma forma as disposições relativas ao direito do trabalho, devem resguardar em todas as suas normas, alguns dispositivos que protejam os trabalhadores para eles possam desempenhar suas funções com respeito a sua integridade física, intelectual e moral.Desta forma, a garantia constitucional da dignidade humana se relaciona diretamente com a proteção do trabalhador, visando assegurar a estes o direito a um ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade. 2.2.2 Princípio da Proteção Os princípios, no entendimento da professora Carmen Camino (2004, p. 91), servem tanto para o legisladores como também para os intérpretes. No primeiro caso, orientam a produção legislativa, no segundo, servem para ajudar na compreensão das normas existentes e eventualmente como forma de preencher as lacunas existentes na legislação.Na seara trabalhista, os princípios devem garantir a coerência do ordenamento jurídico evitando-se assim contradição entre as normas e os preceitos legais bem como haja interpretações diferentes pelos órgãos do Poder Judiciário. O princípio da proteção segundo RODRIGUEZ (1996, p. 28) é dos um dos princípios basilares do Direito do Trabalho, relacionando-se diretamente com princípio da dignidade da pessoa humana citado anteriormente, vindo para trazer uma maior proteção aos trabalhadores em virtude da sua hipossuficiência em relação ao empregador com o objetivo de alcançar uma paridade entre as partes. De acordo com Maurício Godinho Delgado (2010, p. 198), este princípio estrutura o Direito do Trabalho em seu interior para que se corrija o desequilíbrio existente dentro da relação trabalho. Outros doutrinadores ainda desdobram este princípio em outros três: o primeiro é o Princípio do in dúbio pro operário (pro Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 375 misero) que tem a intenção de proteger o trabalhador sempre que surgir uma dúvida na interpretação das normas jurídicas; o segundo é o Princípio da norma mais favorável ao trabalhador. Na existência de duas ou mais normas a serem aplicadas no caso em concreto sempre será observada aquela que for mais benéfica ao mesmo. Por fim o Princípio da Condição mais Benéfica que inclusive está disposto na Consolidação das Leis do Trabalho em seu artigo 468: Este princípio, portanto, protege o trabalhador de alterações contratuais lesivas e unilaterais feitas pelo empregador, garantindo que o mesmo possa reverter a condição atual para uma anterior na gozava de benefícios em virtude do contrato de trabalho. O princípio da proteção é base para diversas decisões judiciais, constituindo-se como uma das fontes primordiais para a resolução das divergências na Justiça do Trabalho, a exemplo do julgado que se segue (grifo nosso): Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia DANOS MORAIS. MORA SALARIAL. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO TRABALHADOR HIPOSSUFICIENTE. Dado o caráter alimentar do salário, e considerando que seu pagamento é a principal obrigação do empregador, a mora no seu pagamento enseja dano moral. É notório que, sendo hipossuficiente, é por meio do salário, normalmente a única fonte financeira de sobrevivência, que o trabalhador adquire gêneros alimentícios para si e sua família, além de dele se utilizar para as demais utilidades de seu viver, como habitação, saúde e lazer. O princípio da proteção ao trabalhador hipossuficiente é o mais caro ao Direito do Trabalho, e é exatamente ele que resta violado quando ocorre a mora salarial. (TRT-3 - RO: 00560201209003005 000056037.2012.5.03.0090, Relator: Convocada Rosemary de O.Pires, Sexta Turma, Data de Publicação: 11/11/2013 08/11/2013. DEJT. Página 244. Boletim: Sim.) Nesse sentido segue também o entendimento da 1ª Turma do TRT da 10ª Região no que concerne a aplicação do princípio da proteção: ACÚMULO DE FUNÇÃO. FUNDAMENTO JURÍDICO. PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO AO TRABALHADOR. ALTERAÇÃO ILÍCIA DO CONTRATO DE TRABALHO. Em se tratando de alegação de acúmulo de função a condenação baseia-se no princípio de proteção ao trabalhador. Pactuadas as condições de trabalho referentes às atividades a serem exercidas pelo empregado, o acúmulo de outras funções para além daquelas inicialmente ajustadas dá ao trabalhador o direito de perceber incremento salarial compatível com a alteração promovida, sob pena de violação ao artigo 468 da CLT. Recurso parcialmente conhecido e não provido. (TRT-10 - RO: 619201302010007 DF 01835-2012-00910-00-1 RO, Relator: Desembargador Mário Macedo Fernandes Caron, Data de Julgamento: 27/11/2013, 1ª Turma, Data de Publicação: 06/12/2013 no DEJT) Capa Sumário Diante de todo o exposto, no que tange o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da proteção do trabalhador não restam dúvidas de que o assédio moral no ambiente de trabalho é uma afronta à todo o ordenamento jurídico nacional quando se refere aos direitos dos trabalhadores Portanto, o Direito do Trabalho juntamente com Justiça do Trabalho vêm para materializar a proteção que a própria Constituição garante ao trabalhador colocando-os em condições de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 377 igualdade com seus empregadores. E assim, promover a justiça prezando sempre por um ambiente de trabalho saudável e consequentemente pela saúde física e mental do trabalhador. tiva deve-se analisar como funciona o poder diretivo do empregador e os poderes derivados desta prerrogativa, isto é, o poder de organização, poder de controle e o poder disciplinar. 3 O ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL E O PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR 3.1.1 Do poder de organização Neste capítulo será abordada a questão relativa ao assédio moral organizacional, os elementos que caracterizam esta prática, analisando ainda o poder diretivo do empregador e os limites que as empresas devem obedecer para promover e assegurar um ambiente de trabalho livre de situações que gerem um agressão a integridade física e mental de seus trabalhadores. 3.1 PODER DIRETIVO DO EMPREGADOR As relações de emprego possuem um papel fundamental para o desenvolvimento das sociedades. Esta relação consiste na prestação de trabalho por uma pessoa física, executada com pessoalidade, de forma não eventual, sob a subordinação de um empregador e de maneira onerosa. Dentro desta relação está a figura do Empregado e do Empregador, existindo entre eles uma subordinação em razão do contrato de trabalho. Esta subordinação garante ao empregador uma prerrogativa de organizar, dirigir e comandar toda e qualquer atividade relativa a empresa.Cabe também ao empregador o dever de chefiar seus empregador e punir, quando necessário, as transgressões que os mesmos venham cometer. Todas estas características pertinentes ao empregador, são reunidas no que chama-se Poder Diretivo, que se manifesta através da regulamentação, fiscalização e organização do ambiente de trabalho, garantindo ao empregador a influência necessária para administrar e dirigir os seus negócios. Diante desta perspec- Capa Sumário O poder de organização é um direito conferido ao empresário para que este ordene as atividades da empresa e assim possa atingir os objetivos sociais e econômicos da mesma. Em razão desse poder, segundo Sérgio Pinto Martins (2010, p. 99), o empregador pode determinar as regras para o andamento dos serviços da empresa, bem como o número de funcionário que ele precisa, local de trabalho e o horário que a empresa funcionará. Derivado do poder diretivo do empregador, o poder de organização garante autonomia para que este possa determinar as normas de caráter técnico às quais os empregados estão subordinados. 3.1.2 Do poder de fiscalização Também conhecido como poder de controle, é a capacidade conferida ao empregador para fiscalizar as atividades relativas a seus empregados no âmbito da empresa, a fim de averiguar se os mesmos estão agindo de acordo com as normas impostas pelo empregador e se estes estão desempenhando suas atividades da maneira estabelecida.Desta forma, o poder de fiscalização também é derivado do poder diretivo do empregador, sendo que este se manifesta de diversas formas, as mais comuns são, a revista do empregado e de seus pertences, circuito interno de monitoramento, no qual os trabalhadores são mantidos durante o período da jornada de trabalho sob fiscalização constante. Se manifesta ainda através da verificação dos livros de registro de entrada e saída dos empregados. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização No entanto, o alcance deste poder não deve ultrapassar os limites legais, como ocorre no caso da revista intima, em que os trabalhadores são colocados em situações humilhantes apenas para empregador verificar se os mesmos não estão levando pertences da empresa. Nesse sentido a jurisprudência já se posicionou contra a pratica de revistas intimas: RECURSO DE REVISTA. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. REVISTA ÍNTIMA. A jurisprudência desta Corte, nos casos de revistas íntimas habituais em que os empregados expõem parte de seu corpo e revista de bolsas com a manipulação dos pertences ali guardados entende configurado o exercício abusivo do poder diretivo do empregador (art. 187 do Código Civil) e a ofensa à intimidade do empregado, sendo devida a indenização por dano moral, nos termos do inciso X do art. 5º da Constituição Federal. No caso, ficou demonstrada a existência do fato danoso, qual seja: a revista íntima habitual dos empregados mediante exposição parcial de seus corpos ao levantarem a camisa e o contato físico entre o empregado vistoriado e o vigilante que encostava o detector de metais no corpo do empregado. E, ainda, a revista mediante a retirada de objetos de dentro das bolsas dos empregados pelo vigilante responsável pela revista. Recurso de revista não conhecido. QUANTUM INDENIZATÓRIO. O valor arbitrado a título de reparação por dano moral somente pode ser revisado na instância extraordinária nos casos em que vulnera os preceitos de lei ou Constituição que emprestam caráter normativo ao princípio da proporcionalidade. E, considerando a moldura factual definida pelo Regional e insusceptível de revisão (Súmula 126 do TST), o valor atribuído não se mostra irrisório ou excessivamente elevado a ponto de se o conceber desproporcional. Recurso de revista não conhecido. (TST - RR: 9843920115190003, Relator: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 09/04/2014, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 25/04/2014) Capa Sumário 379 Dentro desta perspectiva, pode-se concluir que o poder de fiscalização se faz necessário para averiguar se os trabalhadores estão respeitando as exigências estabelecidas pela empresa e consequentemente o poder diretivo do empregador. No entanto, deve ser exercido respeitando a honra e dignidade dos trabalhadores. 3.1.3 Do poder disciplinar Além do poder de organização e do poder de fiscalização citados anteriormente, existe o poder disciplinar, que também é derivado do poder diretivo do empregador.De acordo com Maurício Godinho Delgado (2010, p. 292) este poder confere ao empregador um conjunto de direitos, que permite que ele imponha sanções aos trabalhadores que não estão cumprindo as diretrizes do empregador valendo-se assim de um instrumento que o permite exigir a correção da conduta com o escopo de que o trabalhador se adeque as necessidades da função desempenhada. As sanções disciplinares podem se materializar de diversas formas, desde advertências, suspensões e até mesmo em dispensa por justa causa, a sanção mais grave que um trabalhador pode sofrer, uma vez que configurada ele sofre a perda de diversos direitos e prerrogativas, inclusive, perdendo até garantias de estabilidade de emprego. Desta forma, verifica-se que o objetivo do poder disciplinar deve ser sempre corretivo e educacional, fazendo com que o trabalhador não cometa a mesmo erro novamente. O excesso ou abuso de poder disciplinar que não tenha por objetivo melhorar a execução do trabalho não é legítimo. O uso em excesso do poder disciplinar gera na maioria das vezes, danos aos trabalhadores, configurando assédio moral quando o uso é frequente. Como se pode ver, tanto o uso do poder disciplinar como os outros poderes do empregador devem ser exercidos com responsabilidade para que não haja nenhum desvio de finalidade destas prerrogativas. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 3.2 ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL O estudo do assédio moral organizacional exige que se tenha em mente todos os conceitos expostos no capítulo anterior, mormente ao que se refere sobre conceitos de assédio moral.O assédio moral organizacional é tema recente e de extrema importância, por isso a importância de seu estudo, constituindo-se uma prática recorrente e cada vez mais comum nos ambientes de trabalho do Brasil como no restante do mundo. Importante destacar também que não há um consenso quanto nomenclatura utilizada para o assédio moral organizacional. Renato Muçouçah (2011), por exemplo, o chama de “assédio moral coletivo”, enquanto Lis Andréa Soboll (2008, p. 22) refere-se ao mesmo termo como apenas “assédio organizacional”. No entanto, neste trabalho utilizar-se-á a expressão “assédio moral organizacional” termo introduzido por Adriane Reis de Araújo (2012, p. 76)pois reflete o tema de uma maneira mais completa, visto que se trata de uma modalidade de assédio moral que se destaca por ter um meio de aplicação específico. 3.2.1 Conceito Para conceituar o assédio moral organizacional se faz necessário uma breve uma distinção entre ele e o assédio moral propriamente dito. No caso do assédio moral, como dito anteriormente pela psiquiatra Marie-France Hirigoyen (2011, p. 17) é “toda e qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude...) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, ameaçando seu emprego ou degradando o clima de trabalho”, podendo este ser dividido em três modalidade assédio moral vertical, horizontal ou misto, de acordo com origem de agressão. Já o assédio moral organizacional pode ser conceituado Capa Sumário 381 de acordo com o entendimento da professora Adriane Reis Araújo (2012, p. 76): (...) o conjunto de condutas abusivas, de qualquer natureza, exercido de forma sistemática durante certo tempo, em decorrência de relação de trabalho,e que resulte no vexame,humilhação ou constrangimento de uma ou mais vítimas com a finalidade de se obter o engajamento subjetivo de todos os grupos às políticas e metas da administração, por meio de ofensa a seus direitos fundamentais, podendo resultar em danos morais, físicos e psíquicos Bem como pelo conceito exposto da professora Lis Soboll (2008, p. 22), em que afirma que o assédio moral organizacional é: Um processo no qual a violência está inserida nos aparatos, nas estruturas e nas políticas organizacionais ou gerenciais, que são abusivas e inadequadas. O propósito é exercer o gerenciamento do trabalho e do grupo, visando produtividade e controle organizacional. O assédio organizacional é também processual e agressivo - como no assédio moral - mas não é personalizado e nem mal-intencionado (no sentido de querer prejudicar ou destruir). O objetivo do assédio organizacional não é atingir uma pessoa em especial, mas sim controlar todo o grupo indiscriminadamente. Já Renato Muçouçah (2011, p. 187) conceitua assédio moral organizacional, utilizando o termo assédio moral coletivo da seguinte forma: (...) aquele em que o empregador, utilizando-se abusivamente do seu direito subjetivo de organizar, regulamentar, fiscalizar a produção e punir os empregados, utiliza-se desses direitos de forma reiterada e sistemática, como política gerencial, atentando contra os direitos humanos fundamentais dos em- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização pregados em todas as suas dimensões, geralmente para o incremento de sua produção. Diante destes conceitos, o assédio moral organizacional se confunde com o assédio moral propriamente dito em várias de suas características, como o dano, a repetição sistemática, no entanto, uma diferença primordial que deve ser extraída destes conceitos é o fato de que no assédio moral organizacional, a forma de agressão está institucionalizada nas diretrizes da empresa de diversas formas, atingindo diretamente grande parte dos trabalhadores, enquanto no assédio moral as agressões são dirigidas a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos. A principal finalidade do assédio moral organizacional é engajar os trabalhadores a um controle e disciplina de acordo com as políticas da empresa para eles batam as metas de produção e sigam fielmente todas as instruções da administração. Ou seja, diferentemente do assédio moral em que o objetivo do agressor é causar dano ao empregado, transformando-o em motivo de chacota e assim gerar um ambiente de trabalho insustentável, o assédio moral organizacional tem a finalidade de aumentar a produção dos trabalhadores ou até mesmo descartar aqueles que não conseguem se adaptar a cultura da empresa. Portanto, o que deve ser analisado é até que ponto o poder diretivo do empregador pode ser utilizado para orientar, disciplinar e punir os trabalhadores que se encontram hierarquicamente sob suas ordens, visto que no Brasil, como citado anteriormente, o trabalhador deve ter direito a um ambiente de trabalho saudável e que respeite seu direito fundamental a dignidade humana. 3.2.2 Elementos caracterizadores do assédio moral organizacional No momento em que é feito um comparativo entre os elementos caracterizadores dos institutos do assédio moral e do assédio moral organizacional não se pode negar quem eles com- Capa Sumário 383 partilham diversas características, entre elas, a habitualidade e o dano.O assédio moral organizacional possui alguns elementos específicos para sua configuração, pois é uma forma de violência que se encontra enraizada na estrutura, gestão e políticas da empresa. Na lição de Lis Andréa Soboll (2008, p. 33) as principais diferenças são:a distribuição indiscriminada da violência para todos os empregados da empresa, sem, contudo,atingir de forma específica algum trabalhador; a presença da violência na estrutura da empresa e não em um agressor ou grupo isolado. Nessa modalidade todos os empregados estão expostos às práticas de assédio, para que, com isso, possam ser controlados e deles retirada a máxima produtividade.A professora afirma que dentro das principais estratégias de gestão adotas pelas empresas para extrair o máximo do rendimento de seus colaboradores está o modelo de gestão por injúria, na qual aqueles trabalhadores que não cumprem as metas estabelecidas são expostos constantemente a tratamentos humilhantes, que atinge diretamente a dignidade dos mesmos. É relevante destacar que o ordenamento jurídico brasileiro já se deparou com casos de gestão por injúria e se posicionou a favor do trabalhador como neste julgado: ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL. TROFÉUS LANTERNA E TARTARUGA. O pseudo procedimento de incentivo de vendas adotado pela empresa, consistente em atribuir troféus lanterna e tartaruga aos vendedores e coordenadores de vendas com menores desempenhos na semana, trouxe-lhes desequilíbrio emocional incontestável, independentemente de quem efetivamente os recebiam, visto que na semana seguinte qualquer deles poderia ser o próximo agraciado com este abuso patronal, que ocorreu de forma generalizada e reiterada. Ficou evidente que o clima organizacional no ambiente de trabalho era de constante pressão, com abuso do poder diretivo na condução do processo de vendas. Não há outra conclusão a se chegar senão a de que todos que ali Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização trabalhavam estavam expostos às agressões emocionais, com possibilidades de serem o próximo alvo de chacota. Nesse contexto, o tratamento humilhante direcionado ao Autor e existente no seu ambiente de trabalho mostra-se suficiente para caracterizar o fenômeno do assédio moral organizacional, máxime quando presente prova de que a conduta desrespeitosa se perpetrou no tempo, de forma repetitiva e sistemática. Configurado o assédio moral e a culpa patronal, é devida a indenização pretendida pelo Reclamante. (TRT-23 RO: 795201000223003 MT 00795.2010.002.23.00-3, Relator: DESEMBARGADOR TARCÍSIO VALENTE Data de Julgamento: 06/09/2011, 1ª Turma, Data de Publicação: 09/09/2011) Ou seja, a política da empresa era humilhar os trabalhadores que vendessem menos que os outros. Esta prática se adequa a figura do assédio moral organizacional pois todos os colaboradores estavam sujeitos semanalmente a esta forma de gestão que tem como consequência um ambiente de trabalho extremamente hostil.Outra forma descrita pela autora de configuração do assédio moral organizacional é o modelo de gestão por estresse, existindo um exagero de cobrança aos trabalhadores para que estes aumentem sua produção, através de prazo impossíveis e metas inalcançáveis. A gestão por estresse também foi alvo em uma reclamação trabalhista em que em que a Justiça do Trabalho se valendo do princípio da proteção se posicionou novamente a favor do empregado. ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL. GESTÃO POR ESTRESSE. STRAINING. PRÁTICA CONSISTENTE NO INCENTIVO AOS EMPREGADOS DE ELEVAREM SUA PRODUTIVIDADE, POR MEIO DE MÉTODOS CONDENÁVEIS, COMO AMEAÇAS DE HUMILHAÇÕES E RIDICULARIZAÇÕES. DEVIDA INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS COLETIVOS. REDUÇÃO DO QUANTUM FIXADO PELA INSTÂNCIA A QUO. A gestão por estresse, Capa Sumário 385 também conhecida como assédio moral organizacional ou straining consiste em uma “técnica gerencial” por meio da qual os empregados são levados ao limite de sua produtividade em razão de ameaças que vão desde a humilhação e ridicularização em público até a demissão, sendo consideravelmente mais grave que o assédio moral interpessoal (tradicional) por se tratar de uma prática institucionalizada pela empresa, no sentido de aumentar seus lucros às custas da dignidade humana dos trabalhadores. Caracterizada tal situação, é devida indenização pelo dano moral coletivo causado, que deve ser suficiente, sobretudo, para punir a conduta (função punitiva) e para desestimular os infratores (função pedagógica específica) e a sociedade (função pedagógica genérica) a incorrerem em tal prática, mas também para proporcionar, na medida do possível, a reparação dos bens lesados, como preceitua o art. 13 da Lei 7.347/85. Assim, tendo em vista a amplitude das lesões e suas repercussões, razoável a redução do quantum indenizatório para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Recurso ordinário do Sr. Alessandro Martins não admitido, por deserto. Recurso ordinário da Euromar conhecido e, no mérito, parcialmente provido. (TRT-16 772200801616005 MA 00772-2008-01616-00-5, Relator: JOSÉ EVANDRO DE SOUZA, Data de Julgamento: 13/04/2011, Data de Publicação: 26/04/2011) Por fim, ela destaca a gestão pelo medo, na qual os trabalhadores são constantemente ameaçados de demissão caso não cumpram as exigências da empresa e não alcancem as metas estipuladas.Diante de todo o exposto, fica clara a diferença entre os institutos e o motivo pelo qual o assédio moral organizacional merece uma atenção maior no nosso ordenamento jurídico, uma vez que com a globalização e o desenvolvimento econômico do Brasil as empresas tendem a adotar medidas de gestão na qual os trabalhadores são expostos constantemente a um ambiente de tra- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização balho estressante e com metas de produção elevadas para que as empresas possam se manter lucrativas. Além do que, merece uma observação maior pois na maioria dos casos o assédio moral organizacional se encontra disfarçado de uma política de incentivos quando na verdade os trabalhadores estão sendo constantemente lesados nos seus direitos da personalidade bem como na sua dignidade humana, tendo consequências negativas tanto para sua integridade física como mental. 3.2.3 Limites do poder diretivo do empregador e o assédio moral organizacional Levando em consideração que o assédio moral organizacional se configura com quando é verificado que o modelo de gestão adotado pela empresa gera um ambiente de trabalho hostil, colocando os trabalhadores em situações estressantes trazendo riscos para saúde física e mental, deve-se traçar um critério objetivo para deixar claro o momento em que o uso do poder diretivo do empregador gera esta modalidade de assédio. Como visto no capítulo anterior, o poder diretivo do empregador deve ser exercido de forma responsável, coerente e transparente para que assim o empregador tenha legitimidade para exercê-lo. Acontece que, em alguns casos, o empregador utiliza-se do seu poder diretivo para orientar metas, objetivos e condutas que extrapolam o bom senso, além do que utiliza-se deste poder para punir os trabalhadores de forma pejorativa e humilhante. Assim a falta de uma previsão legal específica que determine o limite do uso do poder diretivo cria dificuldades para enxergar a configuração do instituto do assédio moral organizacional de forma clara. Portanto, é necessário fazer uma análise das legislações que visam uma proteção específica aos direitos dos trabalhadores e também dos direitos da personalidade para que se possa determinar até que ponto o empregador pode se valer do seu poder di- Capa Sumário 387 retivo para orientar, organizar e punir os trabalhadores. A Constituição Federal de 1988 veio com o objetivo de trazer proteção e garantir a dignidade às pessoas. Em seu inciso III do artigo 5º, afirma que “ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Frise-se ainda, que está previsto na Constituição a “igualdade de todos perante a lei e da inviolabilidade do direito à vida, a liberdade, a igualdade, a segurança e a propriedade”. Por consequência, pode-se afirmar que o poder diretivo do empregador esbarra na Lei Maior não podendo ultrapassar as garantias apresentadas por ela. Importante destacar também, que outros parâmetros podem ser utilizados para limitar o poder diretivo e disciplinar do empregador, como a doutrina e a própria jurisprudência, no entanto, fica claro que os limites estão sempre relacionados aos direitos da personalidade do empregados conforme entendimento de Eugênio Hainzenreder Júnior (2009, p. 89): A subordinação jurídica oriunda da relação laboral não autoriza o empregador a extrapolar as prerrogativas de controle, fiscalização e direção adentrando na esfera pessoal do empregado. O exercício do poder diretivo está relacionado tão somente ao bom desenvolvimento e a segurança da atividade empresarial. Por essa razão, pode-se afirmar que a direção empresarial será limitada pelo próprio princípio da dignidade da pessoa humana, pelos direitos da personalidade do empregado, ainda que no ambiente do trabalho, pois são indissociáveis da pessoa do trabalhador. Tal conclusão, ainda que não definitiva, naturalmente, comporta controvérsias em situações consideradas “cinzentas” em que se verifica uma colisão de direitos e conflito de interesses entre empregado e empregador. Da mesma forma Alice Monteiro de Barros(2009, p. 585) preceitua: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Cumpre ressaltar que as ordens emitidas por quem não está legitimado a fazê-lo, as ordens ilícitas ou capazes de lesar direitos à integridade física ou moral do empregado poderão ser desobedecidas. Logo, não está o empregado obrigado a acatar ordens que lhe exijam uma conduta ilegal (prática de um crime). Aliás, ele tem até mesmo o dever de descumprir a determinação, sob pena de incorrer em sanção penal. Também não está obrigado a obedecer ordens que lhe acarretem e a outrem perigo à vida, como o piloto de aeronave que não decola por dificuldades meteorológicas, ou as que exponham a situações indignas, vexatórias ou atentatórias à sua dignidade ou ao seu prestígio profissional. Nesses casos justifica-se, respectivamente, a desobediência jurídico-penal, a “desobediência técnica” e a desobediência civil ou extra laboral. Além dos direitos relativos à personalidade e a dignidade humana, a Constituição prevê outros limites ao poder diretivo sempre que ele for de encontro aos Valores Sociais do Trabalho, Direito à Imagem e a Intimidade dos trabalhadores.Diante do exposto pode-se afirmar que, apesar dos limites não estarem explicitamente em uma legislação específica, o ordenamento jurídico brasileiro de forma ampla traz a proteção ao trabalhador e ao ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade ou danos a sua integridade física e moral.Fica evidenciado que o empregador tem o direito de organizar, fiscalizar, controlar e disciplinar seus subordinados em decorrência do poder diretivo conferido pela legislação. Da mesma forma, os trabalhadores tem obrigação de seguir as normas da empresa. No entanto, este poder sofre limitações sempre que enfrenta questões de ordem pública, sejam direitos ou garantias fundamentais, uma vez que a dignidade da pessoa humana é um dos pilares de sustentação da Constituição Federal, sendo assim, reprovável todo e qualquer direito que afronte este fundamento. Capa Sumário 389 Qualquer conduta do empregador que ponha seus trabalhadores em condições desumanas devem ser limitadas pelo ordenamento jurídico. 4 CONSEQUÊNCIAS DO ASSÉDIO MORAL ORGANIZACIONAL Como estudado anteriormente a prática de assédio moral organizacional tem diversas consequências negativas para a vida do trabalhador, isso em diversos aspectos, tanto para sua saúde física e mental como também para sua vida pessoal e seus relacionamentos.Além das consequências vistas anteriormente para o trabalhador, existem prejuízos para as empresas bem como para toda a sociedade, visto que os trabalhadores encontram-se na base da sustentação da economia e quando a base é atingida gera reflexos para todos que se apóiam nessa estrutura.Desta forma é necessário traçar as consequências que este mal acarreta para os trabalhadores, para as empresas e a sociedade. 4.1 CONSEQUÊNCIAS PARA O TRABALHADOR Quando se trata das consequências do assédio moral organizacional é inevitável fazer uma ligação com as consequências do assédio moral propriamente dito.Em ambos os institutos o lado emocional das vítimas fica bastante abalado, além de outras patologias que surgem.Uma das principais consequências do assédio moral organizacional que pode-se observar é no ambiente de trabalho, que se transforma em um local extremamente hostil, onde a competitividade é estimulada de maneira sufocante. E devido a isso, os trabalhadores sofrem reflexos em sua vida pessoal e profissional. Nos ambientes em que se verifica a presença do assédio moral organizacional há uma desvalorização dos funcionários, fa- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização zendo com que eles desenvolvam aspectos emocionais negativos, conforme explica da professora Lis Soboll (2008, p. 150), afirmando que quando o trabalhador não vê seu esforço e dedicação reconhecidos tendem a entrar em uma situação chamada de “solidão alienante”, acontecendo pois, por mais que o trabalhadores desempenhem suas funções da maneira correta eles nunca conseguem atingir as metas estabelecidas pela empresa. As vítimas do assédio moral organizacional geralmente sofrem um estresse prolongado, e consequentemente apresentam alguns distúrbios mentais. Acontece ainda do trabalhador apresentar uma diminuição das suas condições sociais, fazendo com que tenha dificuldade de se inserir no mercado de trabalho novamente e em casos mais graves fique em uma situação de desemprego permanente.Nas pesquisas apresentadas por Hirigoyen, as vítimas, na maioria das vezes, saem do emprego em um estado tão desgastado que suas condições físicas e psicológicas a impedem de conseguir um novo emprego. Lis Andréa Soboll (2008, p. 176) afirma que uma das consequências mais graves do assédio moral organizacional é o chamado Ciclo de Ameaças de Aborrecimento, que ocorre quando com trabalhadores que ficam doentes e não podem comparecer ao ambiente de trabalho, sendo considerados “os fracos da empresa” apenas por não demonstrarem o rendimento esperado. Dessa forma, ficar doente transforma-se em um fator de tensão constante, pois caso isso ocorra existe a possibilidade do trabalhador perder gratificações além de que sofre constantemente com o medo de ser demitido. Desta maneira, a doença piora e o empregado tende entrar em um estado de sofrimento constante. Sobre isso asseverou a professora Margarida BARRETO(2010) que: Frequentemente os trabalhadores adoecidos são responsabilizados pela queda da produção, acidentes e doenças, desqualificação profissional, demis- Capa Sumário 391 são e consequente desemprego. São atitudes como estas que reforçam o medo individual ao mesmo tempo em que aumenta a submissão coletiva construída e alicerçada no medo. Por medo, passam a produzir acima de suas forças, ocultando suas queixas e evitando, simultaneamente, serem humilhados/as e demiti/os. Além consequências já citadas, os trabalhadores vítimas de assédio moral tendem a apresentar um comportamento mais agressivo dentro do ambiente familiar, alimentando uma depressão que faz com que ele se isole e se afaste das pessoas de sua família.Segundo Fiorelli, Fiorelli e Malhadas Júnior (2007, p. 145) a pessoa assediada enfrenta diversas situações humilhantes e angustiantes que são chamadas de “mutilação psíquica”, e essa mutilação atinge a capacidade de pensar, a visão de mundo, as emoções e as percepções das vítimas.Jorge Luiz de Oliveira da Silva (2005, p. 53) também afirma que: O processo de assédio moral atinge frontalmente a dignidade da vítima. Para cumprir sua finalidade, o assédio moral provoca graves consequências em duas áreas especificas em relação à vítima: saúde e patrimônio. Deste binômio de danos, surge um terceiro, que pode derivar de um ou de outro ou mesmo de ambos, quer seja o dano provocado pelo processo psicoterrorista às relações interpessoais da vítima, em especial no que se relaciona à família e ao convívio social. Aí não estão incluídos os danos às relações interpessoais no trabalho, pois estes já estão implícitos na própria dinâmica do fenômeno. Nesse sentido, as consequências do assédio moral organizacional não se verifica apenas em prejuízos materiais como a perda do emprego ou perda de gratificações ou bônus mas também traz prejuízos no lado psíquico e moral dos trabalhadores. Com relação a saúde do trabalhador, alguns dos sintomas verifica- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dos nas vítimas de assédio moral organizacional são o estresse e a ansiedade, a depressão, distúrbios psicossomáticos.Pode-se afirmar, em resumo, que o assédio moral organizacional traz prejuízos inestimáveis para a saúde do trabalhador, tanto no aspecto físico como mental, dessa forma as vítimas tendem a ter um comportamento depressivo que levam a crises profissionais e familiares, com a redução a longo prazo da sua produtividade e isolamento das pessoas devido ao estresse prolongado e baixa na sua alto-estima. Além de todas as consequências expostas para os trabalhadores, é fato que tanto a empresa como a sociedade no geral perde com o assédio moral organizacional. Para a empresa o assédio moral ocasiona em prejuízos econômicos, tendo sua lucratividade afetada pela falta e abstenções dos trabalhadores, alta rotatividade de mão-de-obra, uma vez que aqueles que não se encaixam no modelo de gestão empresarial adotado pela empresa são demitidos ou levados a pedir demissão, por fim ainda acarreta prejuízos com as rescisões contratuais e todas as verbas resilitórias devidas aos trabalhadores. Também existem consequências para a sociedade, visto que aumentam-se os casos de brigas familiares, pois o trabalhador que sofre assédio moral organizacional tente a ficar mais agressivo e intolerante, descontando muitas vezes suas frustrações nos outros membros da família. Além disso, a sociedade ainda deve suportar o trabalhador que foi afastado do emprego através da previdência social que agora em vez de contribuir passa a receber benefícios previdenciários (FERREIRA, 2004). Portanto, pode-se concluir que o assédio moral organizacional é uma prática que merece ser condenada por toda a sociedade bem como por todo o ordenamento jurídico, visto que sua prática traz malefícios tanto para a saúde física e mental do trabalhador, para as empresas e por fim ainda oferece prejuízos para toda a coletividade. Capa Sumário 393 4.2 FORMAS DE PREVENÇÃO E REPARAÇÃO DO ASSÉDIO MORAL Diante de todos os males que a prática do assédio moral quanto do assédio moral organizacional podem trazer para toda a sociedade, deve-se estudar formas que ajudem a prevenir e reparar as consequências negativas estas práticas. 4.2.1 Prevenção O Brasil ainda é um país tímido com relação a uma legislação específica para prevenção do assédio moral. Contudo, alguns estados e municípios tomaram iniciativas na tentativa de coibir essa prática no âmbito das relações de trabalho, como é o caso do estado de Pernambuco, Rio de Janeiro e o estado de São Paulo. No XXXVI encontro da ANPAD em 2012, Thiago Soares Nunes e Suzana da Rosa Tolfo apresentaram uma pesquisa que consistia no desenvolvimento de uma política anti-assédio moral, atentando desde medidas educacionais à criação de códigos de ética e conduta para serem utilizados dentro das empresas. Nesse sentido, a prevenção vem a ser uma forma eficiente de se evitar as consequências advindas da prática do assédio moral, uma vez que os danos podem ser reduzidos consideravelmente se houver uma política de valorização do ser humana bem como dos trabalhadores em um sentido geral. Roberto Heloani (2005) traz algumas medidas para que se possa conter esta onda de violência dentro dos locais de trabalho, como o estimulo a criação de códigos de organização e conduta para que se possa dar o direito aos trabalhadores se queixarem de forma sigilosa sobre abusos que estão sendo cometidos contra os trabalhadores, no entanto, esta é apenas uma forma de reduzir as agressões e amenizar o problema, mas não para colocar um fim. Desta forma, expuseram também medidas divulgadas por Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização (EINARSEN; HOEL, 2008) em que elencaram alguns métodos eficazes para prevenção do assédio moral, listando-os da seguinte forma: • Criação de um clima social com uma atmosfera aberta e respeitosa, com tolerância a diversidade, e onde a existência de frustração e atrito é aceita, mas também propriamente administrada; • Garantia que os estilos de liderança e práticas administrativas na organização são aplicados a todos os funcionários de forma igual, garantindo tratamento justo e com respeito, e que a sensibilidade para necessidades pessoais e vulnerabilidades é levada em conta; • Garantia que os gestores têm treinamento e capacidade necessárias para administrar conflitos; • Construção de uma organização com metas, regras e responsabilidades claras e nítidas,e com uma forte ética de trabalho; • Criação e manutenção de uma cultura organizacional onde o assédio moral e os maus tratos aos funcionários não são tolerados. Além da criação de dispositivos legais que visem diminuir os casos de assédio, é importante também criar uma política dentro das empresas que coíbam os fatores que possam provocar estes comportamentos, bem como aumentar a divulgação das consequências de tais atitudes para os agressores (SALIN, 2008). Pode-se concluir que as consequências negativas da prática do assédio moral podem ser e reduzidas de maneira significativa ou até mesmo extinguidas se houver uma política que conscientize as Capa Sumário 395 pessoas dos males causados por esta forma de gestão, além disso é necessário informar os trabalhadores que muitas vezes não sabem que estão sendo vítimas de assédio. Devendo ser criado algum mecanismo que garanta aos trabalhadores a possibilidade de relatar as violências sofridas. Assim, na medida em que os trabalhadores estiverem informados sobre estas práticas, haverá uma diminuição dos abusos cometidos pelos empregadores.No caso do assédio moral organizacional esta prevenção ainda se dá de forma mais difícil uma vez que a violência está enraizada na cultura da empresa. No entanto, é importante ser estimulada uma revisão de valores, implicando na construção de uma nova mentalidade de trabalho. 4.2.2 Reparação Na maioria dos casos, é muito difícil para as vítimas se defenderem das diversas agressões próprias do assédio moral, isto porque, sempre se encontra em número ou posição desprivilegiada em relação ao assediador. No entanto, ao perceber que está sendo vítima de assédio moral ou verificar que o modelo de gestão adotado pela empresa contamina o ambiente de trabalho, tornando-o estressante e insuportável, deve em primeiro lugar buscar ajuda dentro da empresa procurando o setor de Recursos Humanos com o objetivo de solucionar o caso de maneira amigável. Caso não tenha sua pretensão atendida, deve o trabalhador buscar ajuda através dos Órgãos Jurisdicionais para solucionar os conflitos dentro do ambiente de trabalho ou ainda buscar uma reparação pelos danos sofridos. Ocorre que o Poder Judiciário brasileiro deixa a desejar com relação a celeridade processual fazendo com que o trabalhador espere meses ou até mesmo anos para resolver seu problema, desta forma ele deve sempre que possível procurar uma opção alternativa para solução de conflitos. São diversas as formas em que o trabalhador pode buscar Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização a resolução deste litígio, entre elas, a mediação, conciliação e arbitragem. Marie-France Hirigoyen estimula sempre o uso da mediação, visto que é um procedimento simples, rápido e que preserva a dignidade e saúde do empregado.É importante destacar que a Justiça do Trabalho é competente para processar e julgar as ações relativa à dano moral, da mesma forma que tem competência para julgar qualquer ação em que esteja envolvido algum descumprimento de normas trabalhistas relativa à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores, tal entendimento se encontra nos seguintes dispositivos: súmula 736 do STF, no artigo 114 VI da CF/88 e na súmula 392 do TST. Diante do exposto, todos os trabalhadores que se sentirem ofendidos por situações ocorridas dentro do ambiente de trabalho e estas se caracterizarem como assédio moral ou assédio moral organizacional devem em primeiro lugar tentar uma solução amigável para resolver esta situação com o objetivo de melhorar seu ambiente de trabalho e de seus colegas. Caso não ocorra a resolução amigável, os trabalhadores possuem o direito de reclamar junto a Justiça do Trabalho, requerendo além de todas as verbas rescisórias, caso haja o afastamento da empresa, o pedido de dano material e moral, sendo calculado levando em consideração toda dor sofrida pela vítima e a extensão das consequências que o assédio moral trouxe para sua vida. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou caracterizar o assédio moral organizacional como uma forma de agressão ao ambiente de trabalho e consequentemente aos trabalhadores.Por isso, se fez necessário estudar os conceitos relativos ao assédio moral propriamente dito para embasar as características que se aplicam ao assédio moral organizacional com o objetivo de diferenciar ambos os institutos. Capa Sumário 397 Além disso, procurou-se identificar os dispositivos presentes na legislação brasileira que protegem os trabalhadores bem como os entendimentos jurisprudenciais que fornecem uma base para os limites do poder diretivo do empregador.Assim, considerando que o assédio moral organizacional é uma prática adotada por diversas empresas, que tomam este modelo de gestão para cobrar desempenho e resultados dos trabalhadores, através do estabelecimento de metas abusivas e punições caso estas metas não sejam alcançadas. Este modelo de gestão cria um ambiente de trabalho altamente desgastante para os trabalhadores, atingindo tanto sua saúde como sua dignidade. O ambiente estressante causado pelo assédio moral e assédio moral organizacional possuem diversas consequências negativas para vida do trabalhador, bem como para as empresas e a sociedade.No que tange a saúde do trabalhador, são diversos os resultados do assédio moral, sendo de desde dores de cabeça e até depressão devido as humilhações sofridas pelos trabalhadores, gerando um ambiente de instabilidade tanto no ambiente de trabalho como fora deste, atingindo a vida íntima e pessoal do trabalhador. Todos os efeitos do assédio moral organizacional, na maioria dos casos, são decorrentes do abuso do poder diretivo do empregador, que se vale desta prerrogativa para aumentar a produtividade da empresa e consequentemente o seu lucro.Desta forma, o assédio moral organizacional deve ser uma prática completamente repelida dentro das organizações, visto que os males oriundas desta forma de gestão ocasiona prejuízos inestimáveis para os trabalhadores, devendo ser criada uma política anti-assédio para que os agressores sejam realmente punidos evitando assim novos casos. Esta política anti-assédio se faz necessário também para informar os trabalhadores sobre como funciona o assédio moral organizacional visto que muitos deles não sabem que estão sendo vítimas de um modelo de gestão que ataca diretamente sua digni- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dade.Por fim, pode-se concluir que o poder diretivo do empregador deverá sempre respeitar os direitos e garantias fundamentais dos trabalhadores, devendo sempre zelar por um ambiente de trabalho livre de qualquer insalubridade e mecanismos que agridam a saúde física e mental dos mesmos. REFERÊNCIAS AGUIAR, André Luiz Souza. Assédio Moral: o direito à indenização pelos maus-tratos e humilhações no ambiente de trabalho. São Paulo: LTr, 2005. ANDRADE, Maria Luiza de Oliveira. Assédio Moral no Ambiente de Trabalho e Responsabilidade Civil. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Faculdades Integradas Antonio Eufrásio de Toledo, Presidente Prudente, 2005. ARAÚJO, Adriane Reis de. 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Recurso ordinário TRT-16 772200801616005 MA 00772-2008016-16-00-5, Relator: JOSÉ EVANDRO DE SOUZA, Data de Julgamento: 13/04/2011, Data de Publicação: 26/04/2011. Disponível em: <http:// trt-16.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/19564286/772200801616005ma-00772-2008-016-16-00-5>. Acesso em 23 de junho de 2014. ______. Recurso de Revista TST - RR: 9843920115190003 , Relator: Augusto César Leite de Carvalho, Data de Julgamento: 09/04/2014, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 25/04/2014. Disponível em: <http:// tst.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/121596461/recurso-de-revistarr-9843920115190003>. Acesso em: 25 de junho de 2014. ______. Recurso ordinário TRT-23 - RO: 795201000223003 MT 00795.2010.002.23.00-3, Relator: DESEMBARGADOR TARCÍSIO VALENTE, Data de Julgamento: 06/09/2011, 1ª Turma, Data de Publicação: 09/09/2011. Disponível em: <http://trt-23.jusbrasil. com.br/jurisprudencia/20392504/recurso-ordinario-trabalhista-ro795201000223003-mt-0079520100022300-3>. 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Ademais, a responsabilidade parental deverá está relacionada a esses princípios, de modo a assegurar o desenvolvimento dos filhos em um ambiente familiar saudável. Em razão disso, a responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo vem expor a preocupação jurídico-doutrinária em tutelar aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade. O objetivo principal é analisar e comprovar o dano à integridade moraldo filho em razão do abandono afetivo parental, bem como, a possibilidade de indenização. Logo, deverá ser observada a criança como titular de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, sendo merecedora de cuidados por parte da família e do Estado. O procedimento metodológico 104 Graduanda no Curso de Bacharel em Direito do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, [email protected], Rua Maria Rosa Padilha, 196, Aeroclube, João Pessoa-PB. 105 Advogada, mestra em Direito Econômico pelo Programa de Pós-Graduação do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, , graduada em Direito pela Universidade Federal da Paraíba(1992). Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família e Sucessões –IBDFAN, professora da Universidade da Paraíba – UFPB e do Centro Universitário de João Pessoa – Unipê. Professora Orientadora. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização trata de pesquisa bibliográfica e de análises jurisprudenciais. Com efeito, a afetividade, pautada no princípio da dignidade da pessoa humana, colabora para o desenvolvimento psíquico-social da pessoa. Destarte, a criança e o adolescente têm a sua integridade física, moral e psíquica protegidas de qualquer lesão a sua dignidade, caso seja violado o direito de personalidade, será cabível o dano moral, atenuando, em parte, o prejuízo. Portanto, os pais devem prestar assistência moral, além da material, visto que a ausência de afeto dos pais na formação dos filhos poderá gerar problemas sociais e psíquicos. A análise do tema não se trata de quantificar o amor, nem tão pouco compensar a dor daquele que foi vítima do abandono. O aspecto relevante é alcançar a função punitiva com o objetivo de conscientizar o ato como grave, que deverá ser evitado e cessado. Palavras-chave: Responsabilidade Civil. Abandono Afetivo. Dignidade da Pessoa Humana. 1 INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 fazsurgir um novo sistema de interpretação do Direito Civil, programado na submissão aos princípios constitucionais. No tocante ao direito de família, foi a Constituição que mais interveio nas relações familiares, proclamando a família como a base da sociedade. Além de, garantir à criança, ao adolescente e ao jovem, o direito à uma vida digna, ao respeito e à convivência familiar.A responsabilidade parental deve está relacionada a esses princípios de modo a assegurar o desenvolvimento dos filhos em um ambiente familiar saudável. Assim sendo, o desafio que se coloca ao jurista e ao direito é a capacidade de ver o indivíduo em toda a sua dimensão ontológica e não como simples e abstrato sujeito de relação jurídica. Capa Sumário 405 A evolução histórica da instituição familiar será exposta com o intuito de observar o processo de transformação de unidade econômica para uma compreensão afetiva. A partir daí,o conceito de família será analisado em face da constitucionalização do direito civil, levando em consideração os princípios da dignidade humana, da paternidade responsável,o da solidariedade familiar, o da proteção integral da criança e do adolescente e o da afetividade, como fundamentos para a defesa das questões relacionadas ao abandono afetivo. Assim sendo, são demonstradas as alterações na entidade familiar, rompendo com o modelo patriarcal e patrimonial, cedendo espaço para as relações familiares permeadas por laços afetivos. Por conseguinte, é apontada a responsabilidade civil dos paispelo abandono afetivo, demonstrando tal conduta como ato ilícito que poderá gerar um dano àquele que se encontra em condição de vulnerabilidade. Em razão disso, a responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo vem expor a preocupação jurídico-doutrinária em tutelar aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade. E em seguida, analisar e comprovar o dano à integridade moral, sofrido pelo filho, vítima do abandono afetivo, além de, demonstrar a possibilidade de reparação por via indenizatória. Por fim, o tema abordado é situado na legislação vigente e são apontados posicionamentos doutrinários e jurisprudenciais em relação à concessão de indenização por danos morais em decorrência do abandono afetivo parental.A doutrina e jurisprudência divergem quanto ao assunto, porém tem se tornando cada vez mais comum o reconhecimento de tais ações nos tribunais. 2 FÁMÍLIA 2.1. BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A EVOLUÇÃO DA FAMÍLIA A compreensão da família altera-se ao longo dos tempos, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização posto que, entre vários organismos sociais e jurídicos,seu conceito e extensão foram os que mais apresentaram mutações, partindo de um caráter meramente reprodutivo e patrimonial para, posteriormente, caminhar em direção as relações sociais de afetividade. Na Antiguidade o que unia os membros da família era a religião, já que os laços afetivos, embora pudessem existir, não era o elo entre eles, os objetivos eram,apenas, procriar e conservar os bens.Segundo Venosa106em Roma, o poder do pater era exercido de forma absoluta sobre a mulher e filhos e, o tratamento desigual entre os filhos se observava no momento em que nenhum patrimônio legal, poderia serlegado para a filha, mesmo que, ele nutrisse um sentimento por ela. Com a queda do Império Romano houve um deslocamento do poder de Roma para a Igreja Católica Romana que, desenvolveu o Direito Canônico, influenciando o direito de família.De acordo com Caio Mário da Silva Pereira107, a partir desse momento a Igreja passou a empenhar-se em combater tudo o que pudesse desagregar o seio familiar: Posteriormente, com a Reforma protestante, a Igreja Católica deixa de ser representante exclusiva dos princípios cristãos e o Estado passa a interferir nas relações familiares. Conforme observa Maria Berenice Dias108, ao longo da história tanto o Estado como a Igreja buscaram meios para se apropriar do fenômeno familiar, a igreja atribuiu a família a função reprodutivae o Estado, a institucionalizou. Nesse momento, algumas funções da família são modificadas, pois os indivíduos passam a ter assistência e proteção do Estado. 106 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. – 2. Ed. – São Paulo: Atlas, 2002. 107 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil: Direito de Família. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. 3v. 108 DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 5ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Capa Sumário 407 Eliane Goulart Martins Carossi109 explica o período da modernidade pela a forma de sociedade marcada pela Revolução Industrial no final do século XVIII. A partir daí o panorama se transforma, os homens vão trabalhar nas fábricas e as mulheres vão para o mercado de trabalho. Os valores morais e afetivos são inseridos no seio familiar, pela necessidade de assistência mútua. O pós-modernismo surge com a ruptura da era moderna, no final do século XIX. A família da pós-modernidade está baseada no afeto entre seus membros, e no dever de cuidado. Na lição de Pedro Belmiro Welter110: A partir desse momento histórico a família se abre para configurar-se em um mundo cruel, uma forma de abrigo, um pouco de calor humano, um lar onde entre seus membros se pratique a solidariedade, a fraternidade, e acima de tudo, os laços de afeto e amor. Esse é o sentido da família na atualidade. Na mesma linha de argumentos Paulo Lôbo111 afirma: A família atual está matrizada em paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver affectio haverá família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria, na colaboração, na comunhão de vida. O afeto é o elemento que caracteriza a família na concepção pós-moderna, tido como princípio fomentador do elo entre os seus membros. Na medida em que, assegura uma vida digna e colabora para o desenvolvimento saudável psíquico e moral dos indivíduos. 109 CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. Revista Faculdade de Direito, Caxias do Sul. v. 12, p. 55, 2003. 110 WELTER, Pedro Belmiro. Igualdade entre filiação biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. p. 31. 111 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 2.2 FAMÍLIA: EM BUSCA DE UMA DELIMITAÇÃO CONCEITUAL O conceito de famíliaé relativo e vem sofrendoalterações constantemente, impondo, ao analisá-lo,observar o momento histórico e o sistema normativo em vigor. Com base nos entendimentos de Perlingieri112, conceitua-se que: a família representa uma formação social, um lugar-comunidade, destinado à formação e ao desenvolvimento da personalidade de seus participantes, de modo que exprime uma função instrumental para uma melhor realização dos interesses afetivos e existenciais de seus componentes. Perlingieri ressalta ainda que, a família é um lugar destinado à formação e desenvolvimentoda personalidade de indivíduos. Considerando que a família é o ponto de origem das pessoas, os pais devem educar e prestar assistência afetiva aos seus filhos de modo a assegurar o seu pleno desenvolvimento. Por sua vez Paulo Lôbo113 indicar que: Sob o ponto de vista do direito, a família é feita de duas estruturas associadas: os vínculos e os grupos. Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental (pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins). Portanto, corroborando com os ensinamentos de Paulo Lôbo, a família consiste na organização social formada a partir de PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução: Maria Cristina de Cicco. 2.ed. Rio de Janeiro: Renovar: 2002. 112 113 Capa LÔBO, P.Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 2. Sumário 409 laços sanguíneos, jurídicos ou afetivos. Assim, apesar das várias formas assumidas e das transformações que ocorreram ao longo da evolução dos povos, a família é responsável pela humanização e socialização das pessoas, bem com uma condição ao desenvolvimento e realização pessoal do ser humano. 2.3 PERSPECTIVA A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 A compreensão da família altera-se ao longo dos tempos. O pátrio poder foi substituído pelo poder familiar, desse modo, passa a existir igualdade entre os descendentes e o indivíduo passa a ser prioridade em detrimento do patrimônio. Com efeito, os valores tais como o afeto, dignidade e solidariedade deixam de lado a concepção da família como um núcleo econômico, passando as relações familiares a serem firmadasem função de um elo afetivo, o que tem colaborado para o desenvolvimento psíquico-social da pessoa. A visão patriarcal e exclusivamente matrimonializada adotada no Brasil durante a colônia, império e boa parte do vigente período republicano entrou em crise, o que resultou em sua derrocada no plano jurídico pelos valores introduzidos pela festejada Constituição de 1988(LÔBO, 2008, p. 1). Nesse momento, a sociedade brasileira se defrontou com um novo modelo de conjunto familiar, que possui como elemento caracterizador o afeto. Destaca-se que o modelo de família constitucionalizada contemporânea se contrapõe ao modelo do Código Civil anterior. O princípio da dignidade da pessoa humana, o consenso e a solidariedade são os fundamentos da mudança de paradigma que inspiram o marco regulatório estampado no Capítulo VII da Constituição Federal, que diz respeito à Família, Criança, Adolescente, Jovem e Idoso. O Estado social, desenvolvido ao longo do século XX, caracterizou-se pela intervenção nas relações privadas.O seu aspecto Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dominante é a solidariedade social ou a promoção da justiça social. O intervencionismo alcança a família, com o intuito de promover a dignidade humana no ambiente familiar. No Brasil, desde a primeira Constituição social, em 1934, até a Constituição de 1988, a família é destinatária de normas que assegurem a liberdade e a igualdade materiais, inserindo-a no projeto da modernidade. Logo, a Constituição do Estado social de 1988 foi a que mais interveio nas relações familiares e a que mais as libertou. Paulo Lôbo114menciona que o sentido de intervenção que o Estado assumiu foi de proteção do espaço familiar.Ademais,a Constituição de 1988 proclama a família como base da sociedade. As transformações promovidas pela Constituição nas relações familiares e, consequentemente, no direito de família, puseram o Brasil na dianteira da refundação dos novos institutos jurídicos. 3 PRINCÍPIOS APLICADOS AO DIREITO DE FAMÍLIA Corroborando, a visão referida de Paulo Lôbo, o processo da constitucionalizaçãodo Direito Civil tem a finalidade de submeter o direito positivo aos fundamentos de constitucionalidade estabelecidos, assim impõe a releitura conceitual, com base nos ditames constitucionais. Sendo assim, o jurista deve interpretar as instituições de Direito Civil com base nos princípios e regras constitucionais. Os princípios constitucionais são expressos ou implícitos. Estes últimos podem derivar da interpretação do sistema constitucional adotado ou podem brotar da interpretação harmonizadora de normas constitucionais específicas (por exemplo, o princípio da afetividade). 114 Capa LÔBO, Paulo. Direito civil : famílias. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 2011, p. 35; Sumário 411 3.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Um dos mais importantes reflexos ocasionados pela constitucionalização do Direito Civil consiste na proclamação do princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado pelo artigo 1º, III, da Constituição Federal115, o qual se constitui em princípio jurídico fundamental integrado no direito positivo vigente.Com efeito, o reconhecimento da dignidade coloca o indivíduo no centro do ordenamento, em detrimento do patrimônio e, em torno das normas e princípios jurídicos. A dignidade humana foi lançada na Declaração Universal da ONU, em 1948, em seu artigo 1º, segundo o qual:“todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito e fraternidade”116.Vê-se que a dignidade, como qualidade intrínseca do ser humano, é irrenunciável e inalienável. Na esteira do que estabelece o art. 227 da Constituição Fe117 deral , é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de 115 CF/88 - Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) III - a dignidade da pessoa humana; 116 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: < http://www.humanrights.com/pt/ what-are-human-rights/universal-declaration-of-human-rights/articles-01-10.html > Acesso em: 20 out. 2014. 117 CF/88 - Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.(Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010); Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Tal é a importância do princípio que o Estatuto da Criança e do Adolescente transcreveu em seu texto legal: Art. 15. A criança e o adolescente têm direito à liberdade, ao respeito e à dignidade como pessoas humanas em processo de desenvolvimento e como sujeitos de direitos civis, humanos e sociais garantidos na Constituição e nas leis. Denota-se que esse princípio garante direitos e deveres fundamentais, com o objetivo de assegurar condições saudáveis para o desenvolvimento do indivíduo. Se as condições mínimas para uma existência não forem asseguradas e os direitos fundamentais não forem reconhecidos, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana. É com base nesse princípio fundamental, em combinação com os demais princípios constitucionais, que se fundamenta a reparação civil dos pais em face dos filhos, ocasionada pelo abandono afetivo. 3.2 PRINCÍPIO DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL O artigo 226, § 7º da Constituição Federal enuncia: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...]§ 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. Capa Sumário 413 A responsabilidade materna ou paterna não se esgota no planejamento familiar, é necessário proporcionar uma vida digna para os filhos, bem como cumprir além das obrigações materiais, as morais, a fim de assegurar um desenvolvimento saudável. Esse princípio tem o objetivo de conscientizar os pais à respeito da responsabilidade do planejamento familiar, portanto, no momento em que decidem ter um filho devem dispor do suporte material, moral, espiritual e afetivo, de modo que priorizem o bem-estar físico e psíquico. 3.3 PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE FAMILIAR O princípio jurídico da solidariedade resulta da superação do individualismo jurídico, que superou o modo de pensar e viver da sociedade. Marcando, assim, os primeiros séculos da modernidade, com reflexos até a atualidade. A matrizdo princípio da solidariedade constitui um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, elencado no artigo 3º, inciso I, da Constituição Federal, trata que elenca “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária”. No capítulo destinado à família na Carta Magna, o princípio é revelado incisivamente no dever imposto, à sociedade, ao Estado e à família (como entidade e na pessoa de cada membro), de proteção ao grupo familiar, à criança e ao adolescente. A solidariedade em relação aos filhos diz respeito a necessidade desse indivíduo de ser cuidado até atingir a idade adulta, isto é, de ser instruído e educado para sua plena formação social. Por isso, é importante que, no ambiente familiar os pais prestem a assistência material e moral, colaborando, assim, para o desenvolvimento e bem estar daqueles que,ainda, necessitam de cuidados. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 3.4 PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO INTENGRAL DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE O artigo 1º do Estatuto da Criança e do Adolescente traz prevista a doutrina da proteção integral à criançae ao adolescente, amparando-se no artigo 227 da Constituição Federal, o qual reza: 118 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Assim sendo, é de responsabilidade, não apenas dos poderes públicos, mas também da sociedade e da família, fornecer essa atenção especialàs crianças, adolescentes ejovens, devido a sua condição de vulnerabilidade. Ademais, é necessário garantir esses direitos elencados no artigo mencionado, com o objetivo de desenvolver as habilidades cognitivas, bem como a sua formação profissional, assegurando, também, a formação moral. Como se evidencia no princípio da proteção integral, a família exerce um papel fundamental para efetivação dos direitos e garantias. O fato da criança e do adolescente estarem imaturos, não interfere na condição jurídica de exercerem os seus direitos. Por isso, devido a condição de vulnerável, é preciso um indivíduo que os proteja, sendo imprescindível que os pais forneçam toda a assistência necessária para o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente. 118 LEI Nº 8.069, DE 13 DE JULHO DE 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Capa Sumário 415 3.5 PRINCÍPIO DA AFETIVIDADE Surge dos desdobramentos do princípio da dignidade da pessoa humana.Percebe-se que não há de se falar dos direitos fundamentais sem extrair o princípio da afetividade, na medida em que a orientação jurídica desenvolve-se no sentido de garantir ao indivíduo uma vida digna, atribui valor jurídico ao afeto, sobretudo nas relações entre pais e filhos. Para tanto, é o princípio da afetividade que confere a base material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do já citado artigo 227 da Constituição Federal. Logo, a convivência familiar é um direito da criança e do adolescente, bem como dever dos pais com sua prole, tendo em vista a paternidade e maternidade reciprocamente responsável. Os pais devem respeitar o princípio da afetividade, que concretiza o melhor interesse dos menores, na medida em que, o afeto é imprescindível na sua formação e desenvolvimento saudável. Nessa linha de raciocínio,Paulo Lôbo elucida que119: A afetividade, cuidada inicialmente pelos cientistas sociais, pelos educadores, pelos psicólogos, como objeto de suas ciências, entrou nascogitações dos juristas, que buscam explicar as relações familiares contemporâneas. À vista disso, percebe-se que o elemento nuclear da família constitucionalizada é a afetividade, assegurando que a atenção e o cuidado especiais a que fazem jus a criança e o adolescente devem ser iniciados no núcleo familiar. Ademais, importa destacar que, a afetividade como princípio jurídico, não se confunde com o afeto, como fato psicológico, uma vez que a afetividade é imposta aos pais em relação aos filhos, ainda que exista desamor ou desafeição. Contudo, o princípio da afetividade apenas deixará de in119 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização cidir com o falecimento de um dos sujeitos ou se houver perda do poder familiar. 4 RESPONSABILLIDADE CIVIL A responsabilidade civil se assenta, segundo a teoria clássica enunciada por Carlos Roberto Gonçalves120, em três pressupostos: o dano, a culpa do autor e a relação de causalidade.O instituto da responsabilidade civil é norteado pela concepção de que sempre que alguém causa um dano a outrem, deve ser compelido a restituir o lesado ao status quo ante.Ou seja, o objetivo da obrigação de indenizar é colocar a vítima na situação em que estaria sem a ocorrência do fato danoso. Contudo, em relação ao dano extrapatrimonial, a condenação não é de caráter indenizatório, mas sim compensatório, visando compensar ou dirimir de alguma maneira o dano, ou, até mesmo, evitar que o ofensor ou outros indivíduos venham a cometer o ato ilícito. 4.1 CLASSIFICAÇÕES 4.1.1 Responsabilidade Civil Contratual e Extracontratual A depender da natureza da norma jurídica violada pelo agente causador do dano, responsabilidade civil pode ser subdividida, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves em: contratual e extracontratual. Quando a responsabilidade não deriva de contrato, diz que ela é extracontratual, neste caso o agente inflige o dever legal. Por outro lado, para caracterizar a responsabilidade contratual, faz-se necessário que, a vítima e o autor já tenham se aproximado e se vinculado para o cumprimento de prestações, ou seja, houve um prejuízo devido o não cumprimento da obrigação 120 GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009. Capa Sumário 417 contratual. Nessa linha de classificação, a responsabilidade civil dos pais decorrente do abandono afetivo é a extracontratual, mormente ter seu fundamento no dever legal imposto no Código Civil121, especificamente nos artigos 186 e 927, os quais elencam que: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Assim sendo, aquele que cometer ato ilícito e causar dano a outrem, fica obrigado a reparar, independente de culpa ou, ainda, quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano implicar riscos aos direitos de outrem. Portanto, os paisque abandonarem afetivamente seus filhos, incorrem na prática de ato ilícito devido ao fato de estarem sendo omissos, agindo de maneira negligente,uma vez que o ato implica pôr em riscos os direitos fundamentais da criança e do adolescente, ocasionando o dano moral e psíquico. Os pais estarão sujeitos a reparar o dano causado, com base no especificado em lei, no momento em que foi assegurado que a criança e o adolescente deverão ser criados sob a garantia do princípio da dignidade da pessoa humana e, no da afetividade, que confere a base material à convivência familiar como direito-dever, nos moldes do artigo 227 da Constituição Federal. 121 Vade Mecum / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – 6. ed. atual e ampl. – São Paulo: Savaiva, 2008. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 419 4.1.2 Responsabilidade Civil Objetiva e Subjetiva A diferença entre essas espécies de responsabilidade civil consiste no elemento subjetivo da culpa. Conforme Gonçalves122, a responsabilidade subjetiva, a culpa ou o dolo do agente é requisito necessário para configurar o dever de reparar o dano. Por enquanto que a objetiva, é reconhecida, independente de culpa. Basta, apenas, que haja relação de causalidade entra a ação e o dano. Para efeito do estudo arespeito da responsabilidade civil dos pais decorrente do abandono afetivo, interessa a responsabilidade subjetiva, ou seja, a prova de culpa dos agentes é pressuposto necessário do dano indenizável. 4.2 ELEMENTOS De acordo com Carlos Roberto Gonçalves123, a análise do artigo 186 do Código Civil evidencia quatro elementos essenciais da responsabilidade civil: ação ou omissão; culpa ou dolo do agente; relação de causalidade; e, o dano experimentado pela vitima.Nesse caso, é necessário identificar os elementos, pois na ausência de um deles, não há que se falar em dever de reparar, ou seja,para obter a reparação do dano, a vítima deve provar os pressupostos da responsabilidade Civil. Inicialmente, para se configurar a responsabilidade civil subjetiva é necessário a existência do ato ilícito, que pressupõe ação ou omissão, contrário ao ordenamento jurídico. Na esteira do entendimento de Maria Helena Diniz124, vê-se que: A ação, fato gerador da responsabilidade, poderá ser ilícita ou lícita. Aresponsabilidadedecorrente122 GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009. 123 GONÇALVES, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil– 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 35. 124 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro–Direito de Família.v.5,26ed. SãoPaulo:Saraiva,2011, pág. 56. Capa Sumário deatoilícitobaseia-sena ideiadeculpa,earesponsabilidadesemculpa funda-se no risco, quesevemimpondonaatualidade,principalmenteanteainsuficiênciada culpaparasolucionartodososdanos. Ocomportamentodoagentepoderáserumacomissãoouumaomissão.Acomissãovemaserapráticadeumatoquenãodeveriaseefetivar,eaomissão,anãoobservânciadeumdeverdeagiroudapráticadecertoatoquedeveriarealizar-se. Ao se falar de omissão deve-se entender que a pessoa se omitiu quando tinha a obrigação de agir e não o fez, ocasionando um dano. Percebe-se que a omissão é relevante, na medida em que, a lei exige uma conduta do sujeito, e o seu descumprimento poderá acarretar danos a outrem. É o que acontece no abandono afetivo parental, devido a uma conduta, omissa dos pais,de não assegurar aos filhos uma vida digna, com direito ao convívio familiar saudável. Em relação ao dolo, consiste na vontade de cometer uma violação de direito e a culpa na falta de diligência. Na visão do doutrinador Carlos Roberto Gonçalves125,o artigo 186 do Código Civil cogita o dolo no início: “ação ou omissão voluntária”, passando a referir-se à culpa: “negligência ou imprudência”. Portanto, para obter a reparação do dano, a vítima deve provar o dolo ou a culpa stricto sensu do agente. Quanto ao dano, é o elemento essencial da responsabilidade civil, não havendo que se falar em responsabilidade civil sem sua comprovação.Esse poderá ser material ou moral, ou seja, sem repercussão na órbita financeira do ofendido. O artigo 186 do Código Civil menciona que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”.Deste modo, o dano moral deverá está diretamente relacionado com a conduta praticada, para repará-lo, visto que, causa lesão psíquica 125 GONÇALVES, Carlos Roberto. Op. Cit., p. 35. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização à vitima, atingindo os seus direitos da personalidade. O Nexo de Causalidade é a relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano verificado.Silvio de Salvo Venosa126 aduz que: O que importa é estabelecer em face do direito positivo, que houve uma violação de direito alheio e um dano, e que existe um nexo causal, ainda que presumido, entre um e outro. O artigo 927 do Código Civil enuncia: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado à repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Antes mesmo da discussão acerca da conduta do agente ter sido com dolo ou culpa, cumpre analisar se com sua conduta ele deu causa ao resultado, dano.O nexo causal nasce em face da omissão parental e o dano moral ocasionado. Logo, diante do ato ilícito cometido pelos pais e o direito que foi violado, é perceptível o dano que poderá gerar em uma criança ou adolescente que, pela sua condição de vulnerável, necessita de um ambiente familiar solidário, com pais cientes das suas responsabilidades matérias e morais, que possibilitem uma vida digna aos seus filhos menores, assim protegendo-os e permitindo um desenvolvimento saudável. 421 5 RESPONSABILIDADE CIVIL NO ABANDONO AFETIVO PARENTAL A instituição da família recebe proteção especial da Constituição em seu artigo 226, que dispõe ser “a família, base da sociedade”, com “especial proteção do Estado”, além de ter seus deveres tutelados pelo artigo 227. Sendo a família, a base da sociedade e essencial para o desenvolvimento do indivíduo, esse instituto deve ser protegido e preservado com o intuito de que no seio familiar sejam formadaspessoas capazes e equilibradas, que possam contribuir para uma sociedade mais justa e humanitária. A dignidade constitui um fator primordialà formação da personalidade da pessoa, por isso se faz necessária a sua presença no relacionamento paterno-filial. Além de ser um princípio fundamental que deve ser respeitado, pois, pressupõe todas as condições para uma vida saudável e feliz. É com base naquele que o princípio da afetividade se fundamenta. Cleber A. Angeluci127afirma que “o afeto é um valor, inerente à formação da dignidade humana, tal como o direito à herança genética, guardadas as proporções.” Por isso deve ser levado em consideração nas lides forenses, além de que, o afeto já é qualificado pelo direito brasileiro, como dever jurídico. É nesse sentido que a jurisprudênciatem acatado a afetividade como conduta exigível dos pais em relação aos filhos, e a sua omissão, acarretará um dano, que deverá ser indenizado. 5.1 PROTEÇÃO JURÍDICA DO AFETO NAS RELAÇÕES PATERNO-FILIAIS De acordo com Lôbo128, os princípios da responsabilidade 126 VENOSA,Sílvio de Salvo. Direito Civil:responsabilidadecivil. 10ed.SãoPaulo:Atlas,2010, p. 46. Capa Sumário 127ANGELUCI,CleberAffonso.Amortempreço?RevistaCEJ, Brasília,n.35,out;dez,2006, p. 50 128 Lôbo, Paulo.Direito civil : famílias / Paulo Lôbo. – 4. ed. – São Paulo : Saraiva, Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização civil se aplicam nas relações familiares.Isso se justifica pela previsão do artigo 186 do Código civil que dispõe sobre a prática do ato ilícito, vejamos: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito. Dessa forma, o ato ilícito pode ser caracterizado quando, por qualquer razão, os pais não convivem, privando o filho da convivência familiar saudável; ou negligenciam os direitos da sua prole, abandonando-os afetivamente. O artigo 927 do Código Civil elenca que: Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado à repará-lo. Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem. Portanto, nos casos de abando afetivo parental, o artigo 186 do Código Civil deve ser interpretado de forma cominada com o art. 927 do Código Civil. Ou seja, aquele que cometer ato ilícito e assim, causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, fica obrigado a repará-lo. Com base nessa premissa, o abandono afetivo nada mais é do que o inadimplemento dos deveres jurídicos da paternidade, dessa forma, ficando os pais sujeitos a serem responsabilizados civilmente. A privação do cuidado afetuoso obstrui a estruturação saudável da mente de uma criança ao longo do seu desenvolvimento.É preciso esclarecer que o afeto sob o enfoque jurídico não deve ser interpretado como sendo apenas o sentimento de amor. A afetividade, não se confunde com o afeto como fato psicológico, o conceito abarca, assim, todo o suporte moral que os pais devem alcançar aos filhos, como a real participação em sua criação, convivência,diálogo, educação, entre outros fatores. Nesse sentido, a assistência moral se dá no apoio, no cuidado, na participação na vida do filho e no respeito por seus direitos da personalidade, como o direito de conviver no âmbito da família. 5.2 POSICIONAMENTOS DOUTRINÁRIOS E JURISPRUDENCIAIS A responsabilidade civil decorrente do abandono afetivo vem expor a preocupação jurídico-doutrinária em tutelar aquele que se encontra em situação de vulnerabilidade. A interpretação doutrinária, no que concerne a possibilidade de responsabilização civil dos genitores, em caso de abandono afetivo dos filhos,é recente e bastantedivergente. Em seguida, alguns apontamentos de autores que são favoráveis à tese, isto é, os que defendem ser o abandono afetivo fato apto a ensejar danos de ordem moral passíveis de reparação pecuniária. Madaleno129 assevera que: Diferentemente dos adultos, os menores são incapazes de compreender a imotivada ausência do pai ou da mãe, fato que pode gerar o direito à reparação do agravo moral sofrido pela negativa do direito que tem a criança/adolescente à sadia convivência e referência parental. Além do direito ao nome paterno, o filho tem a necessidade e o direito, e o pai tem o dever de acolher social e afetivamente o seu rebento, sendo esse acolhimento inerente ao desenvolvimento moral e psíquico de seu descendente. Recusando aos filhos 129 319. 2011. Capa 423 Sumário MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense,2008, p. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização esses caracteres indissociáveis de sua estrutura em formação, age o pai em injustificável ilicitude civil, e assim gera o dever de indenizar também a dor causada pelas carências, traumas e prejuízos morais sofridos pelo filho imotivadamente rejeitado pela desumana segregação do pai. Na mesma linha de argumentos, Lôbo130 conclui que “o princípio da paternidade responsável, estabelecido no art. 226 da Constituição, não se resume ao cumprimento do dever de assistência material, abrangendo também a assistência moral, dever jurídico cujo descumprimento pode levar à pretensão indenizatória”. Por sua vez Nader131 trata que: Embora haja direito à reparação moral na situação aqui tratada, a questão é bastante complexa e seriam raros na prática os casos de sucesso em tal pleito, porquanto o ônus da prova incumbiria ao ofendido e seria necessária a comprovação do dano psicológico, da conduta culposa do pai e/ou da mãe (responsabilidade subjetiva) e, por fim, do nexo de causalidade, todos de difícil apuração. Em contrapartida, existe autores que não concordam com a possibilidade de responsabilização civil no caso de abandono afetivo dos filhosmenores, a exemplo de Carbone132, que pontua: Na verdade, não existe dano moral nem situação similar que permita uma penalidade indenizatória por abandono afetivo. O pai deve cumprir suas responsabilidades financeiras. O pagamento regular da 130 LÔBO, Paulo. Direito Civil: família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.284. 131 NADER, Paulo. Curso de direito civil: responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 346. 132 CARBONE, Angelo. Abandono afetivo e a justiça Disponível em: <http://www. paranaonline.com.br/canal/ direito-ejustica/news/155565/?noticia=ABANDONO+AFETIVO+E+A +JUSTICA>. Acesso em: 25 out. 2014. Capa Sumário 425 pensão alimentícia supre outras lacunas, inclusive sentimentais. Para sustentar o filho, os pais têm que trabalhar, com o objetivo de manter um bom nível de vida até a maioridade ou a formatura na faculdade. Isso já é um ato de afeto e respeito. Surge na doutrina apontamentos direcionados ao entendimento que a reparação indenizatória pode prejudicar ainda mais o desenvolvimento saudável da criança e do adolesceste, em razão de um suporto efeito colateral decorrente da imposição judicial de tal reparação. Nessa linha de argumentos, Castro133 descreve que: [...] podemos criar um problema mais grave. Muitos pais, não por amor, mas por temer a Justiça, passarão a exigir o direito de participar ativamente da vida do filho. Ainda que seja um mau pai, fará questão da convivência, e a mãe, zelosa, será obrigada a partilhar a guarda com alguém que claramente não possui qualquer afeto pela criança. A condição de amor compulsório poderá ser ainda pior que a ausência. Em relação aos precedentes jurisprudenciais, a primeira sentençano mundo favorável ao ressarcimento ao filho por abandono afetivo parental foi emanada pela justiça italiana no ano de 2000, entendendo que a conduta paterna gera sofrimento aofilho em face da ausência de aporte constitucionalmente garantido. Na jurisprudência pátria, o primeiro caso que deu provimento ao pleito indenizatório por abandono afetivo parental, ocorreu em 2003, na comarca de Capão da Canoa no Rio Grande do Sul. No caso, o pai foi condenado a pagara título de danos morais a importância de R$ 48 mil reais (200 salários mínimos da época), pois descumpriu os deveres de visitas acordados judicialmente em ação de alimentos. Tal entendimento foi adotado por parte 133 CASTRO, Leonardo. O preço do abandono afetivo. Disponível em: <http://www. webartigos.com/articles/2866/1/O-Preco-Do-Abandono-Afetivo/pagina1.html>. Acesso em: 09 maio 2011. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização dos Tribunais Pátrios, dentre eles o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, ao decidir que: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE DE DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR. PROCEDÊNCIA NA ORIGEM. INSURGÊNCIA DO GENITOR. ABANDONO E NEGLIGÊNCIA EVIDENCIADOS. CONDUTAS INCOMPATÍVEIS COM OS DEVERES PARENTAIS. DESCASO EM RELAÇÃO À INFANTE. PROVA TESTEMUNHAL E DOCUMENTAL QUE CORROBORA O DESPREPARO PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO PARENTAL. DESCUMPRIMENTO DOS DEVERES INERENTES AO PODER FAMILIAR. NECESSIDADE DE SE RESGUARDAR OS INTERESSES DA MENOR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A destituição do pátrio poder de um pai e/ou de uma mãe sobre seu filho é medida drástica e somente deve ser determinada em situações em que se verifique a negligência dos genitores para com seus filhos, por não fornecerem condições mínimas necessárias para o desenvolvimento afetivo, psicológico, moral, educacional e material a eles. Comprovada a negligência e o abandono perpetrados pelo genitor no tocante aos cuidados com a filha menor, é de destituir o poder familiar sobre ela134. A tese adotada para indenizar à vítima do abandono afetivo, embora já reconhecida no Brasil, ainda encontra divergência quanto ao preenchimento dos pressupostos elementares, ou seja, sobre o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Nessa esteira de pensamento divergente, destaca-se o que decidiu o julgado do Tribunal de Justina do Distrito Federal, in verbis: DIREITO CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ABANDONO AFETIVO PELO GENITOR. NEXO DE CAUSALIDADE. AUSÊNCIA. DANO MORAL. NÃO CONFIGURADO. 1. A RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL, DECORRENTE DA PRÁTICA ATO ILÍCITO, DEPENDE DA 134 TJ-SC - AC: 20130216122 SC 2013.021612-2 (Acórdão), Relator: Jairo Fernandes Gonçalves, Data de Julgamento: 10/07/2013, Quinta Câmara de Direito Civil Julgado. Capa Sumário 427 PRESENÇA DE TRÊS PRESSUPOSTOS ELEMENTARES: CONDUTA CULPOSA OU DOLOSA, DANO E NEXO DE CAUSALIDADE. 2. AUSENTE O NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA OMISSIVA DO GENITOR E O ABALO PSÍQUICO CAUSADO AO FILHO, NÃO HÁ QUE SE FALAR EM INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS, PORQUE NÃO RESTARAM VIOLADOS QUAISQUER DIREITOS DA PERSONALIDADE. 3. ADEMAIS, NÃO HÁ FALAR EM ABANDONO AFETIVO, POIS QUE IMPOSSÍVEL SE EXIGIR INDENIZAÇÃO DE QUEM NEM SEQUER SABIA QUE ERA PAI. 4. RECURSO IMPROVIDO135. Paraa Ministra Nancy Andrighi não existem restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar, no direito de família. Completou a Ministra Nancy Andrighi que, a interpretação técnica e sistemática do Código Civil e da Constituição Federal apontam que o tema dos danos morais é tratado de forma ampla e irrestrita, regulando inclusive os intrincados meandros das relações familiares.Entendimento esse consolidado no brilhante voto de sua relatoria, no julgamento de Recurso Especial, in verbis: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO. COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a 135 TJ-DF - APC: 20090110466999 DF 0089809-17.2009.8.07.0001, Relator: GETÚLIO DE MORAES OLIVEIRA, Data de Julgamento: 03/07/2013, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no DJE : 16/07/2013 . Pág.: 100. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido.136 Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça assegura à criança e o adolescente a possibilidade de ver reparado o dano sofrido em decorrência do abandono afetivo parental, pois, como bem tratou Ministra Nancy Andrighi, “AMAR É FACULDADE, CUIDAR É DEVER”. 5.3 PROJETO DE LEI DO SENADO N.700/2007 O projeto tem o objetivo de modificar a Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (ECA) para caracterizar o abandono moral como ilícito civil e penal, assim a proposta alteraria o ECA para atribuir além 136 REsp 1159242/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 10/05/2012 Capa Sumário 429 de deveres de sustento, guarda e educação dos filhos menores, os deveres de convivência e assistência material e moral. O senador Marcelo Crivella, autor do projeto, ressalta: que a pensão alimentícia não esgota os deveres dos pais em relação aos seus filhos, posto que os cuidados devidos às crianças e adolescentes compreendem atenção, presença e orientação. Portanto, o projeto de lei idealiza prevenir e solucionar os casos de negligência para com os filhos, visando estabelecer medidas no âmbito civil e penal. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em decorrência do processo evolutivo sofrido pelo Direito de Família, sobretudo após a promulgação da Magna Carta de 1988, a família é vista com base nos princípios constitucionais, sobretudo o da dignidade da pessoa humana. Assim sendo, delineia-se que o avanço da legislação acerca dos direitos da pessoa humanaafetou, profundamente, o Direito de Família, ampliando os mecanismos de tutela desse instituto, dando ênfase às crianças e aos adolescentes, assegurando à eles o direito a uma vida digna e a convivência familiarbaseada nos laços de afetividade. Logo, a afetividade se apresenta como elemento nuclear que dá o suporte fático da família contemporânea. O modelo igualitário da família constitucionalizada contemporânea se contrapõe ao modelo autoritário do Código Civil anterior. O consenso, a solidariedade e o respeito à dignidade das pessoas que a integram, são os fundamentos dessa imensa mudança. Demarcando seu conceito, é o princípio da dignidade que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico. Em virtude do elenco de direitos que são titulares as crianças e os adolescentes, é importante se fazer a análise dos instrumentos Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 431 de que se dispõe com o fito de que sejam efetivamente respeitados. Com a noção de culpa inovada, tornou-se possível fundamentar a responsabilidade, visto que o agente dessa se eximiriacaso tivesse agido sem o elemento culposo. Portanto, surge as bases da responsabilidade extracontratual mediante a previsão de um valor a ser pago em dinheiro à título de indenização do prejuízo. O Estado passou a intervir nos conflitos privados, fixando o valor dos danos, obrigando a vítima a aceitar a composição, renunciando a vingança. Portanto, observa-se, ainda hoje, que as principais funções da responsabilidade são: compensar o dano à vítima e punir o ofensor. Nesse caso, demonstrando a sociedade que condutas típicas do ofensor, não serão toleras pela sociedade. Ressalta-se, ainda, que a compreensão da família altera-se ao longo dos tempos, o pátrio poder foi substituído pelo poder familiar, portanto, passa a existir igualdade entre os descendentes e o indivíduo passa a ser prioridade em detrimento do patrimônio. Com efeito, a afetividade, pautada no princípio da dignidade humana, colabora para o desenvolvimento psíquico-social da pessoa. A criança e o adolescente têm a sua integridade física, moral e psíquica protegidas de qualquer lesão à sua dignidade, caso seja violado o direito de personalidade, lato sensu, será cabível dano moral, atenuando, em parte, o prejuízo. Portanto, os pais devem prestar além da assistência material, a moral, visto que a ausência de afeto dos pais na formação dos filhos poderá gerar problemas psíquicos. A análise do tema não se trata de quantificar o amor nem tão pouco compensar a dor daquele que foi vítima do abandono. O aspecto relevante é alcançar a função punitiva com o objetivo de conscientizar o ato grave, que deverá ser evitado e cessado. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume VI: Direito de Família. 5ª edição, revista e atualizada. São Paulo: Saraiva, 2008; REFERÊNCIAS ______, Carlos Roberto, 1938- Direito civil brasileiro, volume IV: responsabilidade civil – 4. Ed. Ver. – São Paulo: Saraiva, 2009. ANGELUCI,CleberAffonso.Amortempreço?RevistaCEJ,Brasília,n.35,p.4753,out;dez,2006; HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, v. 1, n. Capa Sumário BRASIL. Código civil. São Paulo: Saraiva, 2013; CANEZIN, Claudete Carvalho. Da Reparação do dano existencial ao filho decorrente do abandono paterno-filial.In.: Revista Brasileira de Direito de Família, v. 8, n. 36, jun/jul, 2006, p.71); CARBONE, Angelo. Abandono afetivo e a justiça. Disponível em: <http://www.paranaonline.com.br/canal/direito-ejustica/ news/155565/?noticia=ABANDONO +AFETIVO+E+A +JUSTICA>. Acesso em: 25 out. 2014. CAROSSI, Eliane Goulart Martins. As relações familiares e o direito de família no século XXI. 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WELTER, Pedro Belmiro. Igualdade entre filiação biológica e socioafetiva. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização A USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR: ORIGEM, ELEMENTOS E ASPECTOS TEMPORAIS E PROCESSUAIS Uma análise dos elementos que compõem a nova modalidade de usucapião à luz de seu contexto de criação Marianna Albuquerque DANTAS137 Marcos EHRHARDT JR.138 RESUMO: Entrou em vigor no Brasil, em 16 de junho de 2011, a Lei nº 12.424/11 que, a pretexto de realizar reformas no Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, inseriu o art. 1.240A no Código Civil, por meio do qual introduziu no sistema nova modalidade de prescrição aquisitiva, denominada pela doutrina “usucapião por abandono do lar”. Segundo a redação conferida ao art.1240-A, pode adquirir o domínio pleno de bem imóvel urbano de até 250m², cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, aquele que exerça posse direta, exclusiva, pacífica, ininterrupta e sem oposição pelo prazo de 2 (dois) anos, desde que não possua outro imóvel urbano ou rural, sendo que o direito em tela não será reconhecido mais de uma vez ao mesmo possuidor. O retrocitado instituto veio à lume impregnado de imprecisões técnicas, que anuviam a tarefa de sua aplicação pelo operador do direito. Diante disso, o estudo em liça busca, além do exame dos elementos que compõem a usucapião 137 Advogada, Graduada em Direito pela Universidade Federal de Alagoas- UFAL. 138 Doutor em Direito pela UFPE. Professor de Direito Civil da graduação e do mestrado da Universidade Federal de Alagoas. Capa Sumário 435 por abandono do lar, abordar, de forma circunstanciada, os questionamentos de ordem temporal e processual que envolvem o assunto. Palavras-chave: Usucapião. Direito de Moradia. Art. 1.240-A. Abandono do Lar. Vigência. Aplicabilidade.Eficácia. Aspectos Processuais 1. INTRODUÇÃO Em 16 de junho de 2011, o ordenamento jurídico brasileiro assistiu ao nascimento de uma nova modalidade de aquisição originária da propriedade, através da promulgação da Lei nº 12.424 que, ao regulamentar o Programa “Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal, acabou por criar nova espécie de usucapião especial urbana, a chamada usucapião por abandono do lar ou usucapião pro-família, inserindo, no Código Civil , o art. 1.240-A. Ao compulsar minuciosamente o dispositivo retrocitado, observa-se que foi responsável por trazer à lume forma de usucapião sem precedentes no direito brasileiro, pela exiguidade do lapso temporal da prescrição aquisitiva, de 2 (dois) anos apenas. Como fator agravante, tem início a contagem do prazo a partir do abandono, por um dos cônjuges ou companheiros, do imóvel de propriedade compartilhada entre ambos, ou seja, do fim da convivência na união estável e do fim da sociedade conjugal pela separação física do casal. O art. 1.240-A do Código Civil pretendeu constituir mais um instrumento de realização da função social da propriedade, imbrincado nas relações de família, uma vez que o imóvel usucapiendo, urbano e de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), deve ter utilidade de moradia do titular da pretensão ou de sua família, e só pode ser reconhecido o domínio em sendo aquele Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização não proprietário de outro imóvel urbano ou rural, uma única vez em face do mesmo possuidor. Notável, logo, a inspiração protetiva do indivíduo que emana da previsão legal, tendo em vista que consagra o direito à moradia e a segurança jurídica daquele que permanece no imóvel. A problemática insere-se no entorno das consequências acarretadas pelo aludido instituto, diante das perplexidades que vem despertando na doutrina. Inicialmente, impende ressaltar as dificuldades de operacionalização do instituto, emergentes da indefinição de sua localização essencial, se no campo exclusivo dos direitos reais, se mergulhado nas implicações das relações do Direito de Família, o que levanta questões processuais relevantes, acerca, por exemplo, da competência, do rito, da conexão com eventuais processos de divórcio, entre outras, que serão convenientemente atacadas no decorrer do presente trabalho. Diante do panorama acima exposto, faz-se mister destacar que o tema examinado, pela brevidade do período de vigência já decorrido da Lei nº 12.424/11, que introduziu o art. 1.240-A do Código Civil, apresenta-se recente, ainda pendente de análise aprofundada por parte da doutrina, sendo escassos os registros jurisprudenciais, uma vez que, segundo será abordado adiante, a produção de seus efeitos jurídicos teve início apenas recentemente. Outrossim, a nova forma do instituto apresenta-se parcamente disseminada no meio jurídico e acadêmico, contudo já vem operando seus efeitos em diversas relações familiares cotidianamente, sem que os titulares de direitos e deveres dela decorrentes tomem ciência de sua força de incidência. Assim é que a consecução da abordagem de parâmetros minimamente científicos e jurídicos tende a ampliar o debate e levar o conhecimento do instituto a novos territórios, daí a relevância da proposta deste artigo residir na necessidade de estudo mais acurado do tema, de forma a contribuir para o delineamento e aplicação efetivos do instituto, otimizando a atividade do intérprete, operador jurídico, que se Capa Sumário 437 vê destituído de diretrizes e bases sólidas para decidir fundado na inexorável segurança jurídica. Em síntese, o presente trabalho visa, dentre seus objetivos gerais e específicos, perquirir as motivações que ensejaram a criação da nova modalidade de usucapião, através da análise de instrumentos do processo legislativo, assentar os requisitos da usucapião por abandono do lar, a fim de delinear o seu regime jurídico e avaliar os aspectos processuais peculiares a esta espécie de usucapião e a eficácia jurídica do instituto. No que concerne à metodologia aplicada, a redação do artigofoi pautada pelo levantamento bibliográfico da área jurídica pertinente ao tema, reunindo, através das obras localizadas, dentre publicações científicas, coletâneas, tratados e artigos especializados, elementos de definição dos contornos jurídicos do novel instituto, com base na doutrina especializada em usucapião e no Direito das coisas, bem como pelo exame acurado da legislação relativa ao tema, penetrando na investigação das razões que motivaram a criação de nova modalidade de usucapião, através da Exposição de Motivos, do processo legislativo de criação da Lei nº 12.424/11. Sem distanciar-se do método lógico-dedutivo, que orientará todo o percurso da pesquisa, pretende-se ainda buscar respaldo jurisprudencial da, ainda incipiente, eficácia jurídica do tema, analisando o tratamento que o Poder Judiciário vem conferindo à matéria, diante de sua novidade no mundo jurídico, por meio da pormenorização dos caracteres da decisão judicial. Por fim, com fulcro na reunião de informações fundada nas atividades anteriormente mencionadas, como forma de enriquecer o mundo acadêmico e suscitar aspectos que despertem o interesse pelo tema, visualizar-se-á a sugestão de ideias, parâmetros e modos de otimização na interpretação e aplicação da usucapião por abandono do lar. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 2. O CONTEXTO QUE MOTIVOU A EDIÇÃO DA LEI Nº 12.424/11 E A INTRODUÇÃO DO ARTIGO 1.240-A NO CÓDIGO CIVIL: UMA BREVE ANÁLISE DA EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS Em 16 (dezesseis) de junho de 2011, ingressavano ordenamento jurídico brasileiro, por meio do instrumento da Lei nº 12.424 (BRASIL, 2011) que introduziu o artigo 1.240-A no Código Civil, nova modalidade de prescrição aquisitiva, a chamada usucapião por abandono do lar, que desde seu nascedouro esteve imbrincada de perplexidades, sobre as quais a doutrina, paulatinamente, porém de maneira ousada, vem se debruçando. Os diversos problemas apresentados pela inovação legislativa vão desde a nomenclatura utilizada pelo legislador, que promete ressuscitar conceitos e discussões ultrapassadas, sobretudo no Direito de Família, até controvérsias acerca de aspectos processuais. Preliminarmente à investigação dos requisitos de configuração desta espécie de usucapião, assim como dos pontos de discussão propostos, faz-se importante compreender como se deu o surgimento de pitoresco instituto, suas possíveis motivações, colimando o delineamento de algumas de suas principais consequências. Inicialmente, cumpre ressaltar o contexto no qual foi trazido a lume o art. 1.240-A do Código Civil, vez que o instrumento legislativo que o contempla trata, sobremaneira, do aperfeiçoamento do “Programa Minha Casa, Minha Vida”, do Governo Federal, inserto nas políticas públicas habitacionais da atual gestão governamental, que visa, segundo o art. 1º, da Lei nº 12.424/11: Art. 1º. O Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV tem por finalidade criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias Capa Sumário 439 com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais) e compreende os seguintes subprogramas: [...] O referido programa habitacional foi instituído pela Lei nº 11.977, de 7 (sete) de julho de 2009 (BRASIL, 2009), a qual a Lei nº 12.424/11 cumpriu alterar. Esta, por sua vez, é produto da conversão em lei da Medida Provisória nº 514, de 1º (primeiro) de dezembro de 2010 (BRASIL, 2010). Observa-se de plano que a criação de nova modalidade de usucapião logrou-se, em tese, por meio de uma medida provisória, cuja tramitação para sua conversão em lei apresenta-se mais simplificada em relação ao processo legislativo que envolve as leis ordinárias, o que traz certas implicações. Nota-se, todavia, que o texto original da supramencionada Medida Provisória (BRASIL, Medida Provisória nº 514, 2010) não continha qualquer alusão ao art. 1.240-A ou mesmo menção a alterações no Código Civil (GALLON, 2012, p. 2), razão pela qual a análise da exposição de motivos daquele instrumento revelou-se infrutífera para os fins deste trabalho, dada a ausência de quaisquer justificativas para a inserção do retrocitado artigo (BRASIL, Exposição de Motivos Interministerial nº 00008, 2010), o que demonstra que a elaboração do mesmo perpetrou-se no âmbito do Poder Legislativo, quando da edição do Projeto de Lei de Conversão nº 10, de 2011, de relatoria do Deputado André Vargas do PT/ PR, no qual desponta, no art. 9º, a inoculação do dispositivo 1.240A no Código Civil (BRASIL, 2011). Ocorre que a leitura dos documentos de tramitação daquele Projeto de Lei apontou a inexistência de motivação da inclusão do art. 1.240-A139 pelo Congresso Nacional, que simplesmente aprovou, após 52 emendas, frise-se, nenhuma tratando da novel usucapião (BRASIL, Projeto de Lei de Conversão nº 10, 2011), em 139 Documentos disponíveis em: <http://www.senado.gov.br/atividade/materia/ detalhes.asp?p_cod_mate=100078>. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 27 de abril de 2011 na Câmara dos Deputados e em 10 de maio de 2011 no Senado Federal, sendo sancionado pela Presidente da República em 16 de junho de 2011 (GALLON, 2012, p. 3), após vetar o dispositivo contido no §2º140. Deste modo, deixou o legislador ao campo das indagações as razões pelas quais entendeu adequado e necessário o implemento de novo modo de aquisição originário de propriedade. Ao ver de Leandro Gallon, o instituto encontra-se eivado de inconstitucionalidade, acentuadamente quanto ao aspecto formal, em virtude de ter pretendido a criação de espécie distinta de usucapião por meio de instrumento inadequado, qual seja, a medida provisória, haja vista que esta impende aferição dos requisitos de relevância e urgência, ausentes quanto ao tema em comento (2012, p. 4). Neste sentido também se posicionam Ricardo Henrique Pereira Amorim (2011) e Helena Azeredo Orselli (2012). Nesse ínterim, o autor até procura admitir, com muita resistência, a presença do elemento da relevância, “notadamente porque pretende resolver diversas questões fundiárias afetas à população de baixa renda, o que é de real importância” (GALLON, 2012, p. 3), considerando seu âmbito de surgimento – programa de habitação para pessoas com renda de atéR$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais). Contudo, no que toca ao requisito da urgência, conclui que não haveria qualquer prejuízo para os indivíduos afetados pela norma se esta fosse veiculada em seu processo legislativo ordinário (GALLON, 2012, p. 4), o que seria o 140 A redação do dispositivo vetado propugnava: “§ 2o No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação.” As razões do veto consignaram a violação do pacto federativo pelo supracitado parágrafo, ao interferir na competência tributária dos Estados, conforme exposto na Mensagem de Veto nº 203, de 16 de junho de 2011.Disponível em: http:// www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Msg/VEP-203.htm. Acesso em: 05 set. 2013. Capa Sumário 441 mais adequado, inclusive, com o respectivo “debate do tema, sob a forma de projeto de lei, nas duas Casas Legislativas, em tempo adequado, com a realização de diversos estudos, e jamais da maneira como aconteceu, por meio do açodado e excepcional procedimento da medida provisória” (GALLON, 2012, p. 4). Outra observação realizada por Gallon, que desponta à primeira análise do texto integral da Lei nº 12.424/11, é a total impertinência da veiculação de nova espécie de usucapião no contexto das alterações ao Programa Minha Casa, Minha Vida (2012, p. 4), uma vez que o modo de aquisição de propriedade previsto no art. 1.240-A do Código Civil não se restringe ao público-alvo do programa, é genérico, incidindo para conferir titularidade exclusiva de bem imóvel a todo indivíduo que preencha os requisitos legais, independentemente de qualquer critério de natureza econômica. Prova disso é que, embora trazida no bojo de lei que alterou o programa, propôs-se a alterar também o Código Civil, a fim de atingir a generalidade das pessoas, de modo que o texto do artigo não faz ressalvas a esse respeito. Destarte, apenas para fomentar o debate, é possível concluir que o carreamento desordenado de temas diversos em sede de medida provisória é mais um argumento em favor da inconstitucionalidade do instituto concebido da forma narrada, já que se trata de matéria estranha ao objeto da Medida Provisória nº 514/10, o que é proibido pelo art. 7º, II, da Lei Complementar nº 95/1998. Curioso notar que em parecer acerca do Projeto de Lei de Conversão nº 10/2011, o relator faz restrição em relação a 8 (oito) emendas por tratarem de matéria estranha ao objeto da medida provisória (BRASIL, 2011, p. 85), sequer analisando a inclusão do art. 1.240-A no Código Civil, contida no art. 9º do Projeto de Lei. À parte disto, sob pena de fuga do foco deste trabalho, converge a doutrina no que tange à finalidade da criação da usucapião por abandono do lar: prestigiar o direito à moradia do cônjuge ou companheiro que permanece no imóvel, ao abandono de seu con- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 443 sorte, o que vai ensejar calorosa discussão acerca da significação dos termos utilizados pelo legislador, com interessantes e diversas conclusões, a enriquecer a discussão acerca do tema. Como espécie de usucapião especial urbana, a usucapião entre ex-casais141 procura, como aquela em sua forma ordinária, privilegiar o direito à moradia, erigido à categoria de direito fundamental pelo art. 6º da Constituição Federal. Em que pese inexistir plausibilidade jurídica na exclusão dos imóveis rurais da sujeição a esta espécie de usucapião, dado que o direito à moradia também é de todo modo exercido pelas famílias no meio rural, argumenta José Fernando Simão que “é a moradia e não o trabalho que se privilegia. Por isto o artigo 1.240-A surge em sede de regulamentação do programa do Governo Federal ‘Minha casa, Minha vida’” (2011, p. 2). A intenção por trás da inovação legislativa que representa a nova modalidade de usucapião é de se supor que seja o escopo de evitar a insegurança jurídica provocada pelo cônjuge ou companheiro que deixa o imóvel e a família sem regularização do imóvel de propriedade de ambos os consortes, reaparecendo após longo tempo para exigir sua meação sem que tenha exercido, neste interregno, seus deveres de coproprietário ou contribuído para a manutenção do imóvel, que ficou a cargo daquele que nele permaneceu (FREITAS, 2011, p. 39). No interessante escólio de Everson Manjinski, o objetivo da previsão do art. 1.240-A tem à ordem a realização do princípio da função social da propriedade, ao conferir àquele que exerce o direito à moradia e confere ao imóvel utilidade de acordo com seu fim social, a exclusividade na propriedade do bem, em detrimento daquele que o abandona (2013, p. 1). Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho sintetizam a finalidade da norma contida naquele artigo: “dar segurança jurídica ao status do coproprietário que possui o bem com exclusividade após a cessação da composse, retirando-o da partilha” (2011, p. 371). Contudo, a maior parte da doutrina não se mostra otimista com o destino conferido ao fim das relações conjugais e de companheirismo por infausta norma, tachando de desnecessária a usucapião familiar, em virtude de agregar mais prejuízos que benefícios às relações familiares e à própria segurança jurídica, vez que se intenta proteger o direito de moradia de um, em detrimento do outro, que dá adeus à sua parte do imóvel, porque se retirou à convivência conjugal. Vide o magistério de Priscila Fonseca: 141 Terminologia atribuída por Maria AglaéTedescoVilardo em VILARDO, Maria AglaéTedesco. Usucapião Especial e Abandono do Lar – Usucapião entre ex-casal. .In:Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões, ano XIV, n. 27, Belo Horizonte: IBDFAM, p. 46-60, abr/mai. 2012. Como dito alhures, à medida em que se penetra no exame dos aspectos do multicitado artigo 1.240-A do Código Civil, exsur- Capa Sumário A norma ora introduzida alinha-se entre muitas outras recente e desnecessariamente editadas (v.g., guarda compartilhada, alienação parental etc). Mas, desta feita, a novel disposição legal não se revela apenas despicienda: a sua edição afigura-se inescusavelmente nociva. Com efeito, a forma de aquisição de domínio contemplada pelo art. 1.240-A não apenas subverte regras e institutos tradicionalmente vigentes no Direito Civil, como, sem qualquer fundamento aparente, afigura-se geradora de danosa insegurança (2011, p. 118). Neste diapasão, de melhor forma não poderia manifestar-se Maria Berenice Dias, ao afirmar que “boas intenções nem sempre geram boas leis” (2011, p. 1), o que resume as primeiras impressões da doutrina acerca desta ousada empreitada do Poder Legislativo, diante dos problemas que dela inexoravelmente decorrem, e das gravosas consequências para as relações familiares, na contramão da evolução do Direito de Família, conforme submergimos na análise do tema. 3.VIGÊNCIA, APLICABILIDADE E EFICÁCIA DA LEI Nº 12.424/11 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ge o delineamento de seus contornos jurídicos, ainda difusos em virtude de sua recente instituição, sobretudo pela escassa coleção jurisprudencial efetivamente produzida, inópia esta verificada justamente em função da peculiar aplicabilidade da Lei nº 12.424/11, comungada, não raro, por outros instrumentos legislativos que incorporam espécies de usucapião. No que concerne ao início de vigência propriamente dita das normas compiladas na susomencionada lei, inexiste maiores questionamentos, porquanto cristalina a redação do seu artigo 12, ao consignar que a lei entra em vigor na data de publicação, qual seja, 16 de junho de 2011. Entrementes, a celeuma em torno de sua aplicabilidade e eficácia, por ocasião do escoamento do lapso temporal aquisitivo, ainda não encontra pacificação na doutrina. Inobstante, parecem convergir os autores em um ponto crucial: a aplicabilidade da usucapião por abandono do lar, isto é, o momento em que se torna exigível a pretensão em torno da obtenção da titularidade exclusiva do imóvel outrora pertencente a ambos os cônjuges ou companheiros, tendo em vista a natureza declaratória da sentença de usucapião, dar-se-á ao término da contagem do biênio eleito pelo legislador como lapso prescricional aquisitivo, considerando como marco o início da vigência da lei. Com isto, se quer dizer que conta-se o prazo de 2 (dois) anos para usucapir em face de ex-cônjuge ou ex-companheiro, sob chancela do art. 1.240-A do Código Civil, de forma integral, a partir de 16 de junho de 2011, razão pela qual a eficácia jurídica da Lei nº 12.424/11, neste particular, é postergada a 16 de junho de 2013, ou seja, a sua produção de efeitos no mundo jurídico inaugura-se nesta data. Isso implica dizer que, embora possa estar consolidada, na data de início de vigência da lei, a posse direta e ininterrupta exercida por um dos cônjuges ou companheiros em face do outro há 2 (dois) anos ou mais, não nasce a pretensão aquisitiva, senão após a fluência de dois anos após a entrada em vigor da lei, em nome da Capa Sumário 445 segurança jurídica (SILVA, 2012, p. 4). A conclusão acima é compartilhada pela doutrina majoritária do assunto, notadamente Farias e Rosenvald, que aplicaram raciocínio semelhante por ocasião da criação de outras espécies de usucapião (2012, p. 466), Maria AglaéTedescoVilardo (2012, p. 53), Flávio Tartuce (2011, p. 3), Douglas Philips Freitas (2011, p. 39), Everson Manjinski (2013, p. 5) e Marcos Ehrhardt Jr (2011a, p. 2). Urge destacar ainda a aprovação do Enunciado nº 498 da V Jornada de Direito Civil do Conselho Nacional de Justiça Federal, no mesmo sentido, com a seguinte redação: Enunciado nº 498 - A fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art. 1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011 (CSJ, 2012, p. 79). Conquanto eminentemente doutrinário este entendimento, recordando-se da parca disciplina conferida pelo legislador ao instituto em comento, desnubla-se adequado à ordem jurídica vigente, pois é comezinha a regra da irretroatividade da lei quanto aos seus efeitos no tempo, em resguardo ao direito adquirido (VILARDO, 2012, p. 54), consagrado pelo art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, sob pena de se autorizar temerária insegurança jurídica. Acolher posicionamento diverso significaria malferir o susomencionado direito, afrontando ainda as regras de disciplina dos efeitos da lei no tempo contida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, Lei nº 4.657/42, em especial o art. 6º. O escólio de Maria AglaéTedescoVilardo reforça: A lei só retroage em situações específicas de acordo com o interesse social. As leis que regulamentam os direitos das coisas são aplicadas aos fatos futuros para que não seja gerada insegurança jurídica. Dian- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização te disso, somente poderá ser iniciada a contagem do prazo da usucapião entre ex-cônjuges ou ex-companheiros a partir da vigência da lei (2012, p. 54). Arremata Stephanie Pena: O enunciado supracitado veio como forma de não surpreender o ex-cônjuge/ex-companheiro a quem se impute o abandono do lar. Logo, ainda que os laços afetivos foram extintos antes do advento da Lei n. 12.424, o usucapiente deverá esperar o lapso temporal que prevê o artigo 1.240-A, para só então invocar a nova modalidade de usucapir. E ainda, para não violar o princípio da segurança jurídica. Insta ressaltar que a nenhuma lei é dada a possibilidade de retroagir ferindo um direito adquirido, nesse diapasão a norma sobre o usucapião familiar passará a valer somente para os casos em que ficar caracterizado o abandono de no mínimo dois anos a contar de 16 de junho de 2011, ou seja, aqueles que completem o biênio a partir de 16 de junho de 2013 (2013). Dessarte, em epítome, a eficácia jurídica da usucapião pró-família condiciona-se ao escoamento do lapso temporal de dois anos a partir da vigência da Lei nº 12.424/11, somente após o qual poderá ser reconhecido em juízo o direito à usucapir a meação do outro cônjuge no que pertine ao imóvel usucapiendo. Neste diapasão, cumpre trazer à baila decisão pioneira em matéria de jurisprudência sobre a usucapião por abandono do lar: a Apelação Cível nº 1.0702.11.079218-2/001, julgada pelo Egrégio Tribunal de Justiça de Minas Gerais, de relatoria do Desembargador Moreira Diniz, que corroborou a tese de irretroatividade do art. 1.240-A, denegando recurso de apelante que não reunia o prazo de dois anos de posse ininterrupta a partir da vigência da Lei nº 12.424/11, cuja ementa segue abaixo: DIREITO DE FAMÍLIA - DIVÓRCIO LITIGIOSO - APELA- Capa Sumário 447 ÇÃO – USUCAPIÃO FAMILIAR - ARTIGO 1.240-A DO CÓDIGO CIVIL – APLICAÇÃO RETROATIVA - IMPOSSIBILIDADE - RECURSO DESPROVIDO. - O artigo 1.240-A do Código Civil não possui aplicação retroativa, porque comprometeria a estabilidade das relações jurídicas. (TJ/MG - Ap. Cível nº 1.0702.11.079218-2/001/AL, 4ª Câmara Cível, Rel. Des. Moreira Diniz, julgado em 11/07/2013, DJ: 16/07/2013). Em seu voto, o relator consigna: a aplicação retroativa do prazo comprometeria a estabilidade das relações jurídicas e, conseqüentemente, ofenderia o princípio da segurança jurídica, na medida em que surpreenderia os cônjuges e companheiros que estivessem fora da residência por mais de dois anos, porém cientes de que seus interesses patrimoniais estariam sendo preservados. Logo, somente a partir da entrada em vigor da lei 12.424, que ocorreu em 16 de junho de 2011, será possível iniciar a contagem do lapso temporal. No caso, como a ação foi proposta em 08 de março de 2012, resta claro que não restou demonstrado o lapso temporal exigido pela lei (MINAS GERAIS, Tribunal de Justiça, Ap. Cível nº 1.0702.11.079218-2/001/AL, Rel. Des. Moreira Diniz, 2013, p. 3). Por outro lado, notícia veiculada no sítio eletrônico do mesmo Tribunal de Justiça de Minas Gerais demonstra a diversidade de argumentação jurídica que o Poder Judiciário vem apresentando no assunto, ao divulgar a prolação de sentença do magistrado Geraldo Claret de Arantes, atuante na 3ª Vara de Família de Belo Horizonte, em setembro de 2011, declarando o direito de usucapião de cônjuge virago em face do varão sobre imóvel de propriedade de ambos, com base na dicção do art. 1.240-A (MINAS GERAIS, 2011). No caso em apreço, o juiz posicionou-se pela retroatividade da Lei nº 12.424/11, computando como tempo de prescrição aquisitiva, prazo reunido anteriormente à vigência daquela, o que, data ve- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nia, não é recomendável, por desestabilizar acintosamente o direito de propriedade, com base nos argumentos já expostos. Entretanto, campo pouco explorado em sede doutrinária é o questionamento acerca da necessidade de configuração do ato de abandonar o lar no período de vigência da lei. Em outros termos, é possível invocar o direito à usucapião familiar se o marco de saída do cônjuge ou companheiro do imóvel tenha ocorrido antes da entrada em vigor da lei, desde que tenha completado os dois anos de posse ininterrupta após a vigência da lei? A controvérsia instala-se, acentuada pelo próprio conceito do termo “abandono do lar” pelo legislador, que, conforme veremos adiante, não é uníssono entre os autores. A esse respeito, elucida Marcos Ehrhardt Jr: O novo prazo já pode ser utilizado por quem dissolveu seu casamento, digamos, há dois anos e alguns meses anos e aguardava o completar 5 anos de posse mansa, pacífica e sem oposição para ingressar com a ação? Para mim a resposta é negativa. O prazo para exercício desse novo direito deve ser contado por inteiro, a partir do início da vigência da alteração legislativa, afinal não se deve mudar as regras do jogo no meio de uma partida (2011, p. 2). Fernanda Martins, interpretando as lições do supracitado autor, bem como de Tartuce e Fernando Simão, compreende não ser “possível que o consorte, separado há mais de dois anos, que aguardava o prazo de cinco anos para utilizar-se da usucapião especial urbana regular, do artigo 1.240 do Código Civil, utilize-se agora, do novo instituto que imprime prazo bem inferior” (2012, p. 28). Deste modo, a autora afasta do reconhecimento da usucapião por abandono do lar as pretensões fundadas na saída do cônjuge ou companheiro do lar anteriores à publicação da Lei nº 12.424/11, tomando como premissa que o marco do abandono deve estar compreendido na vigência da lei para que a ela se submeta. Capa Sumário 449 Em sentido contrário, Everson Manjinski consigna que “o prazo para concessão da usucapião familiar somente terá início após a vigência da lei que o instituiu, mesmo nos casos em que a posse tenha iniciado anteriormente” (2013, p. 5) (grifos nossos), compreendendo a incidência do instituto também nos casos em que o marco inicial do abandono tenha sido praticado antes da vigência da nova lei, desde que sob esta se atinja o biênio. A nosso ver, a compreensão mais exata do instituto permite a declaração do direito à usucapião por abandono do lar, uma vez persistente abandono do lar pelo consorte por tempo de 2 (dois) anos ininterruptos, durante o qual é exercida a posse exclusiva do outro consorte, independentemente de ter ocorrido o ato de abandonar o lar durante ou previamente à vigência da lei. Isto porque a leitura, ainda que sucinta, do texto do art. 1.240-A não desnuda qualquer restrição neste sentido, exigindo apenas a posse mansa, pacífica e ininterrupta por dois anos após a vigência da lei – por óbvio – de imóvel cuja propriedade é dividida entre aquele que permanece no imóvel e o que o abandona. É o que também defende Stephanie Pena, ao afirmar que, “ainda que os laços afetivos foram (sic) extintos antes do advento da Lei n. 12.424, o usucapiente deverá esperar o lapso temporal que prevê o artigo 1.240-A, para só então invocar a nova modalidade de usucapir. E ainda, para não violar o princípio da segurança jurídica” (2013, p. 20). Por conseguinte, edificar uma espécie de interpretação restritiva para afastar os casais que, já separados de fato quando da promulgação da lei, alcancem o lapso temporal de dois anos na vigência desta e preencham os demais requisitos para usucapir nesta modalidade, consistiria numa redução equivocada do alcance da norma, não efetivada pelo legislador quando de sua elaboração. Neste viés, decorre do próprio magistério do Professor Marcos Ehrhardt Jr. a necessidade de existência da posse, e consequentemente, da manutenção do abandono, por dois anos após 16 de Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização junho de 2011; assim, aquele que nesta data exercia a posse exclusiva do bem nas demais condições do art. 1.240-A por mais de dois anos, na esperança de completar os cinco anos da usucapião especial urbana na forma ordinária, necessitaria aguardar mais dois anos no exercício possessório para que se configurasse a prescrição aquisitiva da usucapião por abandono do lar (EHRHARDT JR, 2011a, p. 2), pelo que, a partir de 16 de junho de 2013, poderia ter reconhecido em juízo o direito à mesma. Milita em favor do entendimento perfilhado a decisão da 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no julgamento da Apelação Cível nº 70046433967/RS, em 22 de março de 2012, ao indeferir o pedido de declaração do direito à usucapião por abandono do lar, em virtude da ausência de completude do prazo aquisitivo. O Desembargador Ricardo Moreira Lins Pastl, relator do processo, fundamentou seu voto conforme a seguir colaciona-se: Ainda, não merece acolhida a pretensão da insurgente de incidência à espécie da nova modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do CC (usucapião familiar), pois que, sem necessidade de maiores digressões sobre o tema, verifica-se não ter transcorrido o prazo legal de dois anos de posse direta, com exclusividade, desde a data em que o apelado se afastou do imóvel em que resida o casal, o que se deu em julho de 2010, com o término do relacionamento estável havido, como reconhecido judicialmente (RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça, Ap. Cível nº 70046433967, Rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, 2012). (grifos nossos) A decisão acima, em que pese considerar como baliza inicial a contagem do prazo a partir do abandono do lar ocorrido antes da vigência da lei, a nosso ver equivocadamente, assume a produção de um precedente que autoriza que, fluídos dois anos de posse exclusiva ininterrupta após a entrada em vigor da lei, Capa Sumário 451 em continuação de uma posse exclusiva que teve início por fato anterior à sua vigência, reconheça-se a pretensão fundada no art. 1.240-A do Código Civil, por não deixar de prolongar o estado de abandono do bem diante da desídia do cônjuge ou companheiro que se retira do imóvel e não mais contribui para sua manutenção ou exerce seus deveres de coproprietário. 4. OS REQUISITOS DA USUCAPIÃO POR ABANDONO DO LAR Segundo a divisão didática realizada por Benedito Silvério Ribeiro (2007a, 2007b), os requisitos da usucapião, de forma genérica, podem ser bifurcados sob as categorias material e processual, sendo que esta última consiste, basicamente, numa especificação dos requisitos gerais da petição inicial dos arts. 282 e 283 do Código de Processo Civil agregada a determinadas peculiaridades contidas no Capítulo VII do CPC. Neste momento, é interessante manter o foco nos requisitos materiais, que se ramificam em pessoais ou subjetivos, reais ou objetivos, formais e especiais (RIBEIRO, 2007a, p. 251). A assimilação do perfil da usucapião prevista no art. 1.240-A parte inexoravelmente da decomposição de seus elementos, a fim de enquadrar as hipóteses suscetíveis dessa nova forma de adquirir propriedade. Preliminarmente, é aconselhável a leitura cautelosa do texto do art. 1.240-A, in verbis: Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anosininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nº 12.424, de 2011) § 1o O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. (grifos nossos) Conformando o conteúdo do dispositivo acima à retromencionada ramificação dos requisitos materiais, o primeiro aspecto que emerge trata dos requisitos pessoais, isto é, quem pode usucapir o bem e contra quem pode ser usucapido o mesmo que, no caso da usucapião por abandono do lar, recai nas pessoas outrora formadoras do casal, seja este formado através de casamento (“ex-cônjuge”) ou de união estável (“ex-companheiro”). Deste modo, como o artigo menciona “cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro”, resta claro tratar-se de usucapião de uma das partes do antigo casal em face da outra, vez que só poderia recair sobre imóvel de propriedade de ambos, afastando, assim, qualquer tentativa de usucapir imóvel de propriedade de terceiros através desta modalidade. Em consonância com essa interpretação, o Professor Marcos Ehrhardt Jr. complementa: O art. 1.240-A apenas poderia ser utilizado entre cônjuges ou companheiros por ocasião do fim do relacionamento, não sendo possível sua utilização ante terceiros. Dentro desse raciocínio, o cônjuge ou companheiro que for abandonado irá usucapir a parte do abandonante na propriedade que têm em comum, servindo o dispositivo para acabar com o condomínio entre os membros da entidade familiar (2011b, p. 2). Deste modo, a legitimidade ad usucapionem é atribuída pela lei ao ex-consorte – cônjuge ou companheiro – que permanece no exercício da posse, para usucapir, e ao que se retira em condição de abandono, para sofrer a perda da sua parte da propriedade, restringido o âmbito de atuação do instituto ao seio familiar (TARTUCE, 2011, p. 2). Fernando Simão simplifica: Capa Sumário 453 Para a usucapião em face de terceiros prossegue o prazo de 5 anos, já para a usucapião entre cônjuges prevalece o prazo de 2 anos. Assim, se João casado com Maria adquirem o imóvel de José e deixam de pagar as prestações, José nada faz. Após 5 anos, sendo o imóvel urbano de no máximo 250m², e o único da família, haverá a possibilidade da usucapião pelos cônjuges em face de José. Por outro lado, para João ou Maria usucapir a metade do bem que pertence ao outro cônjuge, é necessário apenas período de 2 anos após a separação de fato ou de direto do casal (2011, p. 2). Lembrança relevante presente em Fernando Simão (2011, p. 2), Flávio Tartuce (2011, p. 2), e Maria AglaéTedescoVilardo (2012, p. 47), é a que inclui como titulares de legitimidade ad usucapionem para esta modalidade de usucapião também entre pessoas do mesmo sexo que preencham os demais requisitos para usucapir, tendo em foco a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI nº 4277 e na ADPF nº 132, que reconheceu a união estável homoafetiva, equiparando-a às demais entidades familiares constitucionalmente reconhecidas (STF, 2011). O Conselho Nacional de Justiça Federal, por meio do Enunciado nº 500 da V Jornada de Direito Civil, sedimentou a inclusão dos casais homoafetivos na legitimidade para usucapir na forma do art. 1.240-A do Código Civil. Segue a transcrição do retromencionado enunciado: Enunciado nº 500 - A modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas (CSJ, 2012, p. 79). Outrossim, para determinar o correto alcance do requisito pessoal, faz-se mister esclarecer o conteúdo dos termos “ex-côn- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização juge” e “ex-companheiro”, empregados pelo legislador. Ambas as expressões acima denotam o fim da conjugalidade, com a decretação do divórcio, e o fim da união estável, com a sua dissolução também decretada, respectivamente, o que indica o término formal, jurídico, das entidades do casamento e da união estável (FONSECA, 2011, p. 121). Todavia, se entendidas neste sentido, o dispositivo do art. 1.240-A perderia a coerência, senão seu propósito, por pretender permitir a usucapião de um bem que já teria sido submetido à partilha, após a qual poderia ter sido, inclusive, alienado a terceiros. Deste modo, a despeito da clara atecnia do legislador, a doutrina142 vem considerando que, no emprego daquelas expressões, este fez alusão ao consorte separado de fato, como fim fático da sociedade conjugal e da convivência, quando o bem objeto da usucapião encontra-se em situação de co-propriedade, sem estabilidade para aquele que continua no exercício da posse. A esse respeito, vide os ensinamentos de Fernando Simão: A partícula “ex” significa que a união estável ou o casamento acabaram de fato ou de direito. A extinção de direito significa que houve sentença ou escritura pública reconhecendo o fim da união estável (ação declaratória de extinção da união estável), ou sentença ou escritura pública de divórcio ou separação de direito, bem como liminar em medida cautelar de separação de corpos. A extinção de fato significa fim da comunhão de vidas entre cônjuges e companheiros que não se valeram de meios judiciais ou extrajudiciais para reconhecer que a conjugalidade. É a simples saída do lar conjugal. A separação de fato, portanto, permite o início da contagem do prazo da usucapião familiar, desde que caracterizado o abandono. A separação de fato tem sido admitida como motivo para que se reconheça o fim da sociedade conjugal e do regime de bens (2011, p. 2). 142 Notadamente, FONSECA, Priscila Maria Pereira Corrêa da. Op. cit. e SIMÃO, José Fernando. Op. cit. Capa Sumário 455 Cabe mencionar ainda a uniformização deste posicionamento perpetrada pelo Enunciado nº 501 da V Jornada de Direito Civil do Conselho Nacional de Justiça Federal, litteris: Enunciado nº 501 - As expressões “ex-cônjuge” e “ex-companheiro”, contidas no art. 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio (CSJ, 2012, p. 79). Na seara dos requisitos reais, trata-se, em suma, do objeto da usucapião, ou seja, dos bens que podem ser submetidos à aquisição de propriedade por meio da usucapião. No que toca à espécie do art. 1.240-A, o legislador foi sucinto ao erigir como alvo apenas o bem “imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar” (grifos nossos). Nota-se a semelhança patente com o objeto da usucapião especial urbana do art. 1.240 do Código Civil, razão pela qual a usucapião por abandono do lar enquadra-se como espécie daquela, sendo mantidos a condição de bem imóvel, a fim de privilegiar a moradia em detrimento de outros direitos, a localidade do imóvel em zona urbana, e a metragem limite de 250m². Embora inspirados em modalidade de usucapião há tempos consolidada no ordenamento jurídico, estes aspectos vão suscitar algumas críticas dos doutrinadores. Em primeiro lugar, a natureza urbana do imóvel usucapiendo da prescrição aquisitiva do art. 1.240-A levanta dúvidas a respeito da não contemplação dos imóveis rurais. Ainda que se considere o âmbito de surgimento da usucapião por abandono do lar – instrumento legal de implementação de política de habitação urbana – e sua aposição no Código Civil, umbilicalmente relacionada à usucapião especial urbana, não se justifica a exclusão dos imóveis rurais, haja vista que nestes também se exerce a finalidade Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização de moradia, não apenas a de produção; assim como porque a usucapião especial urbana possui um correspondente para os imóveis da zona rural, a usucapião especial rural, que premia ainda o labor, e a usucapião familiar não, afastando de sua incidência as famílias residentes na zona rural. Como bem frisa Priscila Fonseca, “se o objetivo do legislador era a tutela do ex-cônjuge ou ex-companheiro abandonado, olvidou-se daqueles que, em iguais condições, residem em área rural. Trata-se de omissão absolutamente injustificada” (2011, p. 120). Nos mesmos moldes, se questionam Farias e Rosenvald (2012, p. 467). Quanto à área máxima de 250m² do imóvel usucapiendo, Marcos Ehrhardt repisa a premente contradição da Lei nº 12.424/11, que tenciona o estímulo ao direito de moradia das populações de baixa renda, ao figurar em seu contexto, espécie de usucapião que autoriza a aquisição da titularidade de imóveis atualmente considerados luxuosos e bem valorizados no mercado, ipsis litteris: f) se a ideia era proteger o hipossuficiente, os menos favorecidos e cuidar da regularização fundiárias em áreas de grande adensamento populacional, mas com grandes dificuldades de formalização dos títulos de propriedades (loteamentos e condomínios irregulares, áreas de invasão, etc....) por que manter a área até 250 m²? g) fico pensando quantos apartamentos de alto padrão, em áreas nobres de qualquer capital possuem área privativa maior do que essa. Dentro do projeto Mina (sic) Casa, Minha Vida, os imóveis não costuma ultrapassar 80 m² em minha região, e acredito que isso reflita o cenário nacional da construção civil desse nicho de mercado (2011a, p. 2). A novidade no âmbito dos requisitos reais fica por conta da necessidade de co-propriedade do imóvel entre ambos os ex-cônjuges ou ex-companheiros. Isso significa que, cessada a com- Capa Sumário 457 posse pelo abandono do lar por um dos consortes, o outro, também proprietário, tem direito a usucapir a meação do primeiro no bem imóvel, após 2 anos de posse ininterrupta e sem oposição. A exigência de co-propriedade, a nosso ver adequada aos propósitos do art. 1.240-A, torna a usucapião familiar alvo de críticas por parte da doutrina, que considera que a mesma macula as normas aplicáveis ao regime de bens e à partilha, tornando sem efeito as disposições pré-nupciais (SILVA, 2012, p. 9). A princípio, importa para a letra da lei que o imóvel seja de propriedade de ambas as partes, ignorando-se o modo como o bem ingressou na propriedade comum, seja pelos regimes de comunhão parcial de bens e de comunhão universal, seja pela aquisição conjunta em condomínio nos demais regimes (ALBUQUERQUE JR; GOUVEIA FILHO, 2011, p. 371). Afasta-se, portanto, a possibilidade de usucapião por abandono do lar sobre bem imóvel particular de um dos consortes. A polêmica ficaria a cargo da exclusão do bem da partilha, gerando um desrespeito ao regime de bens adotado (BLAUTH; FARIA, 2012, p. 13). Contudo, em sentido diametralmente oposto, manifesta-se a douta Maria AglaéTedescoVilardo: Se o bem for adquirido, mas apenas por um deles, durante a união estável ou casamento, e utilizado como moradia do casal, deverá incidir o prazo da usucapião entre ex-casal. [...] O regime de bens não deve ser utilizado para fazer diferença entre famílias. Exigir o prazo maior de cinco anos na forma da usucapião especial por não haver copropriedade geraria discriminação injustificada entre os casais (2012, p. 54). Data maximavenia, não merece guarida o argumento acima esposado, vez que vai frontalmente colidir com o disposto no texto legal, que exige a co-propriedade como requisito indispensável ao imóvel usucapiendo. O raciocínio aplicado pela doutrinadora não Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nos parece justo, tendo em vista que quer ir além do escopo legal de contemplar aquele que já possui fração ideal da propriedade com um prazo menor para usucapir, pretendendo conferir o mesmo lapso temporal exíguo para quem não possui qualquer parcela de propriedade sobre o bem, em detrimento daquele que deixa seu próprio imóvel em benefício do consorte, a fim de não quedar este e a prole ao desamparo. No que concerne aos requisitos formais, quais sejam, a posse ad usucapionem e o prazo, a nova espécie de usucapião prevê algumas peculiaridades. A respeito da posse, é sabido que, em geral, esta necessita ser ininterrupta, pacífica e sem oposição por parte do detentor da propriedade, o que não se revela diferente na usucapião por abandono do lar. Todavia, o dispositivo legal agrega ainda a necessidade de posse direta e exclusiva. Por exclusiva, cabe frisar, deve-se entender aquela exercida apenas por um dos ex-cônjuges ou ex-companheiros, cessada a composse quando o outro deixa o lar. Atrelado ao elemento da exclusividade, vem a literalidade do art. 1.240-A exigir que a posse seja direta. Mas o que seria ela? Benedito Silvério Ribeiro leciona ser nada mais do que um desdobramento do elemento posse, implicando “a posse direta a apreensão efetiva da coisa” (2007, p. 689). Deste modo, vai ser exercida, no caso da usucapião por abandono do lar, por aquele cônjuge ou companheiro, que após a saída do outro, permanece residindo no imóvel, vez que o fundamento deste modo de aquisição da propriedade, ou em melhores termos, da “nova forma de extinção da compropriedade” (FARIAS; ROSENVALD, 2012, p. 465), é o direito à moradia. Deste modo, a residência daquele que pretende usucapir fixada no imóvel objeto da usucapião constitui requisito indispensável aos auspícios do art. 1.240-A, sendo que “que(sic) não utiliza o imóvel como residência não poderá se valer da usucapião famíliar” (SIMÃO, 2011, p. 4). Isso significa que vai restar descaracteri- Capa Sumário 459 zada a posse direta se ocorre cessão, comodato, locação, etc, do bem a terceiros, não podendo o consorte usucapiente aproveitar a posse exercida por aqueles (MANJINSKI, 2013, p. 4). Nesse diapasão, a contradição na disciplina da posse entre o dispositivo legal e a base doutrinária presente em Orlando Gomes, donde a posse ad usucapionem contém, de forma intrínseca, o animus domini, o que afastaria quem exerce apenas a posse direta, por direito ou obrigação (2008, p. 189), é meramente aparente, em virtude desse animus ser claramente dispensado pelo legislador no caso da usucapião por abandono do lar. É o que explica Maria AglaéTedescoVilardo, litteris: Não se pode ter essa intenção, esse animus, quando a posse se desdobra em direta e indireta, como no caso de se estar alugando um imóvel ou o ocupando por empréstimo. Com a saída do cônjuge ou companheiro do lar comum teríamos o possuidor direto (o cônjuge que ficar no imóvel) e o possuidor indireto (aquele que deixou o imóvel). Por força da lei, a inexistência neste caso de animus domini entre possuidor direto e indireto em nada altera a possibilidade legal desta nova forma de usucapião (2012, p. 48). Em arremate, nas palavras de Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho, “a aquisição decorre de ato-fato jurídico, em que a vontade é irrelevante, pois é abstraída pela norma jurídica” (2011, p. 370). A despeito da convergência doutrinária acerca do sentido da expressão “posse direta” apresentada acima, seu emprego pelo órgão legiferante não passa ileso aos olhos perscrutantes dos professores Farias e Rosenvald que, com razão, ponderam: Ao se valer da expressão “posse direta” para descrever a situação jurídica do cônjuge que permanece no lar comum o legislador não se importou com a boa técnica, pois inexiste relação de direito obrigacional ou real entre o ex-convivente que sai do lar comum e aquele que fica. O correto é entender que um dos Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização compossuidores se converte em possuidor exclusivo e, posteriormente, no concurso de todos os requisitos legais, único proprietário (2012, p. 466). Sem embargos, não pode passar despercebida a discussão em torno de um dos atributos da posse que levanta opiniões díspares no caso da usucapião familiar, qual seja, a ausência de oposição. É ponto pacífico entre os autores que, na usucapião em geral, a posse necessita ser inconteste, ou seja, que não seja impugnada pelo proprietário do bem. A cizânia se instala em torno da qualificação da manifestação do co-proprietário do imóvel sujeito à usucapião familiar, apta a desconstituir a posse ad usucapionem. De um lado, posicionam-se os autores que consideram quaisquer manifestações do outro cônjuge ou companheiro hábeis a descaracterizar a posse sem oposição, como irresignação verbal ou escrita comprovada por testemunhas, documentos ou outro lastro probante, para Priscilla Fonseca (2011, p. 121), ou mesmo notificações anuais de demonstração do impasse em relação ao imóvel, para Flávio Tartuce (2011, p. 2). Em direção oposta, encontra-se Maria AglaéTedescoVilardo, para quem, por mais que possa ser oposta a impugnação sob maneiras distintas, não basta a mera notificação ou registro de natureza policial, diante da necessária demonstração de exercício dos poderes e direitos atinentes à propriedade (2012, p. 48), pelo que o adequado seria utilização de instrumentos judiciais, ou mesmo extrajudiciais adequados à contestação da posse. Do mesmo modo, Douglas Philips Freitas complementa: para desnaturar a posse ininterrupta e sem oposição, não adianta ao cônjuge temeroso de perder sua meação promover notificações ou realizar boletins de ocorrência em delegacias de polícia; há, sim, que reivindicar seu direito sobre o bem em ação de divórcio ou de dissolução de união estável, mediante pedido de arbitramento de aluguel, concessão de Capa Sumário 461 usufruto, fixação de comodato, utilização do bem em pagamento de alimentos in natura ou como parte da pensão alimentícia, ou pelo menos sob o argumento de que contribuiu para o custeio das despesas necessárias à manutenção do bem (não necessariamente de seu uso) (2011, p. 3). Assiste razão, a nosso ver, ao segundo grupo de doutrinadores, vez que restaria prejudicado o direito a usucapir na modalidade tratada se a oposição pudesse se configurar no mero aviso do ex-convivente de que ainda mantém interesse no bem, permanecendo na inércia quanto aos seus deveres de co-proprietário, sobretudo no que diz respeito à manutenção do imóvel. Ainda no âmbito dos requisitos formais, impõe-se o requisito do prazo mínimo legal para usucapir, que apresenta-se reduzido para 2 (dois) anos na usucapião por abandono do lar, o que deixou perplexos os doutrinadores, em face da exiguidade do mesmo, levando a doutrina a enveredar-se nos porquês para a fixação de tão sucinto lapso temporal. A perplexidade se instala porque as espécies de usucapião de bem imóvel que apresentam os menores prazos são aquelas inclusas na categoria das usucapiões especiais, cuja finalidade, de moradia ou de labor, tem o condão de reduzir para 5 (cinco) anos o tempo para adquirir bem imóvel através da prescrição aquisitiva. Por outro lado, o prazo prescricional aquisitivo da usucapião do art. 1.240-A vem a ser inferior até mesmo ao prazo da usucapião de bens móveis que,segundo o art. 1.260 do Código Civil, é de3 (três) anos de posse ad usucapionem, desde que seja dotada de justo título e boa-fé. Na ausência destes requisitos especiais, o prazo eleva-se para cinco anos (art. 1.261). A esse respeito, sentencia com propriedade Marcos Ehrhardt Jr (2011b, p. 2): “se a constituição já consagrava um prazo diferenciado para as modalidades de usucapião especial urbano e rural, essa nova modalidade parece ser uma forma ‘sumaríssima’ de aquisição da propriedade” (2011a, p. 1). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização No que toca à motivação da redução do prazo legal para usucapir na novel usucapião, Flávio Tartuce atribui à iniciativa a uma “tendência pós-moderna” de redução de prazos legais em geral, como uma espécie de demanda da realidade hodierna, nos quais a presteza no processo decisivo dita a velocidade em que devem caminhar as relações jurídicas (2011, p. 2). Com a devida vênia, ainda que nisto consistisse o propósito do legislador neste caso, o que se mostra bastante plausível, olvida-se este que as relações de natureza familiar e afetivas em geral nem sempre obedecem à marcha frenética das demais relações de cunho patrimonial reguladas pelo Direito Civil, como o ramo dos contratos, por seu inevitável enredamento com questões psicológicas e emocionais. Embora patente a necessidade de aprofundamento da análise do prazo legal mencionado, foge ao objeto deste trabalho a consecução de tal estudo, resguardado para outro momento. Por derradeiro, no que concerne ao início de contagem do prazo de dois anos para usucapir nos moldes do art. 1.240-A, nada há que se acrescentar ao que já foi exposto no tópico anterior, atinente à vigência, aplicabilidade e eficácia da Lei nº 12.424/11, para o qual remetemos o leitor. Por fim, cumpre registrar a presença dos requisitos especiais, peculiares a cada espécie de usucapião, que, em geral, consistem no justo título, na boa-fé e na moradia ou no trabalho. Como tipo de usucapião especial urbana, já que “desmembrada” do art. 1.240 do Código Civil, a usucapião por abandono do lar mantém o requisito de moradia como finalidade do exercício da posse ad usucapionem. Da mesma forma, é dispensado o exame do justo título, presumindo-se este e a investigação da boa-fé, também presumida. Subsistem, pois, outros requisitos especiais da usucapião por abandono do lar, quais sejam: a exigência de que o usucapiente não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural, prevista no caput, e a limitação do reconhecimento do direito conferido no caput do artigo a uma única vez ao mesmo possuidor, pelo pará- Capa Sumário 463 grafo §1º do dispositivo, requisitos comuns à usucapião especial urbana; e o abandono do lar, que figura como marco do fim da composse e do início da contagem do prazo de dois anos para usucapir. No tocante a este último requisito, que não cabe aqui esmiuçar, sob pena de fuga do objeto proposto neste trabalho, é relevante salientar a dificuldade doutrinária em sua definição haja vista a pesada carga semântica que já lhe fora atribuída no âmbito do direito de família, como violação de dever conjugal (art. 1.573 do CC). Em decorrência disto, bem como da imprecisão com que o legislador tratou o tema, as conclusões doutrinárias em torno de uma adequada definição de abandono são plúrimas, indo desde a restrição a aspectos patrimoniais, situando-o na seara do Direito das Coisas, até seu completo envolvimento no Direito de Família, relacionando-o diretamente à assistência familiar. A nosso ver, sem ingressar num estudo detalhado dessas correntes, o que será feito em ocasião oportuna, a melhor definição reside na identificação do abandono do lar com o abandono patrimonial, isto é, através a cessação do exercício da posse direta, com a separação de fato e a retirada do consorte do lar, bem como dos demais direitos e deveres inerentes à condição de proprietário do imóvel, permanecendo em estado de inércia em relação à posse direta e ativa daquele que permanece residindo no bem. Esta linha de raciocínio se revela apropriada por conjugar adequadamente elementos do Direito de Família, pertinentes à nova espécie, com os elementos do Direito das Coisas naturais ao instituto da usucapião. 5 ASPECTOS PROCESSUAIS RELEVANTES: RITO, COMPETÊNCIA E LEGITIMIDADE AD CAUSAM As ações de usucapião, em regra, devem obediência, em matéria processual, às regras específicas previstas nos arts. 941 a 945 do Código de Processo Civil, o que faz com que o procedi- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização mento das ações de usucapião, que não foge ao ordinário, com certas peculiaridades, ganhe no meio doutrinário, a pecha de “rito especial”. A diferença em relação a uma ação ordinária comum reside, basicamente, na necessidade de requerer a citação, além do proprietário do bem usucapiendo, dos confinantes e de eventuais interessados (art. 942), bem como na exigência de intimação dos representantes da Fazenda Pública, a fim de que manifestem interesse na causa (art. 943). Com efeito, tendo em mente toda a longevidade comum ao feito na usucapião, com frequente necessidade de perícia, e também devido à previsão de citação por edital dos réus em locais incertos, fato recorrente em ações desta natureza, no anseio de conferir maior celeridade à ação de usucapião especial urbana, o art. 14 do Estatuto da Cidade, Lei nº 10.257/01, estabelece: Art. 14. Na ação judicial de usucapião especial de imóvel urbano, o rito processual a ser observado é o sumário. Ora, ao determinar a aplicação do rito sumário nas ações de usucapião especial urbana, o legislador tencionou afastar o chamado “rito especial” da usucapião, eliminando suas especificidades no afã de otimizar a aplicação do princípio da duração razoável do processo, o que é ojerizado por Benedito Silvério Ribeiro, que preleciona: Não foi feliz na escolha do rito o legislador, que se induziu pelo termo sumário, no pressuposto de celeridade. O procedimento sumário é inapropriado para causas como as referentes a usucapião de imóvel, dada uma série de providências que devem ser levadas em conta. Não se trata de chamar à lide a parte passiva tão-somente, sendo necessária a citação daquele em cujo nome esteja registrado o imóvel, dos confrontantes e dos réus em lugar incerto e dos eventuais interessados. Essas pessoas devem ser convocadas à audiência de tentativa de conciliação Capa Sumário 465 previamente marcada, à qual também devem ser cientificados os representantes das Fazendas Públicas da União, do Estado e do Município. A perícia, na maioria das vezes necessária, é outro ponto de estrangulamento do processo, sabido que o edital citatório de pessoas em lugar incerto e de eventuais interessados pode gerar até o adiamento da audiência [...] (2007b, p. 974). A solução para o impasse, já adotada na práxis forense (RIBEIRO, 2007b, p. 974), seria, segundo o escólio de Marcus Felipe Botelho Pereira, a conversão no procedimento comum ordinário, com fundamento no art. 277, §4º, do CPC, sendo mais produtivo do que tentar compatibilizar os ritos sumário e especial (2012, p. 127). Feitas essas considerações gerais, convenientes à análise do rito aplicável à usucapião por abandono do lar, uma vez que o legislador permaneceu silente acerca da matéria, é preciso verificar qual seria o procedimento adequado a tal instituto, que mescla a questão possessória com aspectos atinentes ao Direito de Família. Como bem pontua Marcos Ehrhardt Jr., “parece não haver nenhuma preocupação quanto à simplificação dos procedimentos processuais para reconhecimento da usucapião” (2011a, p. 1), o que deixa espaço a divagações a fim de lapidar asua aplicação. Everson Manjinski insiste na tramitação da ação de usucapião por abandono do lar através do rito especial da usucapião, previsto no art. 941 e ss. do Código de Processo Civil, pois não vê disparidade perante as características das demais ações de usucapião (2013, p. 5). Entretanto, não é nesta senda que se posiciona a melhor doutrina sobre o tema. Senão, vejamos. Fernanda Martins atesta a desnecessidade da utilização do rito especial, haja vista a própria natureza do pedido, restrita à meação do cônjuge no que toca ao imóvel, ao revés do pedido de natureza erga omnes das outras espécies, o que tornaria despicienda a citação de confinantes, de terceiros interessados, ou mesmo da Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Fazenda Pública, por não ferir quaisquer interesses destes (2012, p. 29). Logo, o rito adequado seria o ordinário, pois a “lei nova não explicita o rito a ser seguido e há permissivo legal para ser adotado o procedimento ordinário (art. 271 do CPC)” (VILARDO, 2012, p. 57). Parece correto o entendimento esposado, especialmente se recordarmos que a praxe jurídica recomenda, nos casos de usucapião especial urbana, a conversão do rito sumário em ordinário, apesar da disposição expressa do art. 14 do Estatuto da Cidade, enquanto que, para a usucapião familiar, o legislador sequer emitiu comando semelhante. Indispensáveis as lições de Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho, segundo as quais: O rito especial, com toda a sua complexidade, tem uma função particularmente clara, que é a de formalizar uma relação processual que se dá contra todos, para a declaração de que foi adquirido o direito real, cujo exercício se dá erga omnes. A especialidade de tal procedimento está no edital convocatório dos réus hipotéticos, fixado no art. 942 do CPC. Trata-se de uma técnica de sumariedade de cunho pré-processual. Como, de acordo com o exposto acima, não há réus hipotéticos em tal ação, o procedimento especial não tem o menor sentido (2011, p. 373). Por conseguinte, em sendo dispensável a tramitação da ação de usucapião por abandono do lar pelo rito especial da usucapião previsto no CPC, a própria competência para o processamento da ação também pode ser compreendida em vara diversa da cível, para integrar as lides familistas, em razão da proximidade com questões concernentes ao Direito de Família, sobretudo no modo como afeta a partilha dos bens. Estando restrita a legitimidade ad usucapionem aos ex-integrantes do casal de conviventes, sejam cônjuges ou companheiros, conforme já explicado anteriormente, por óbvio que a legitimidade ad causam para ação de usucapião por abandono do lar também vai cingir-se aos ex- Capa Sumário 467 -cônjuges ou ex-companheiros, mais especificamente, será parte autora aquele que permanece na posse direta do imóvel, após a separação fática do casal; por sua vez, será réu aquele que se retira do imóvel e protela o estado de abandono por prazo superior a 2 anos, contra quem se pretende adquirir a parte na propriedade. Outrossim, se foi trazido ao ordenamento instituto de direito real tão intrincado com a matéria objeto de disciplinamento do Direito de Família, qual seja, as relações familiares, nascendo exclusivamente desta o direito à usucapião por abandono do lar, e estando limitada subjetivamente aos seus integrantes, adequado que a atribuição para o processamento da ação esteja submersa no leque de competência das Varas de Família que, frise-se, decorre de especialização das Varas Cíveis, dada a necessidade de utilização de diferentes métodos de abordagem perante seus atores processuais. Sintetizando a adequação das Varas de Família ao julgamento das ações de usucapião familiar, Maria AglaéTedescoVilardo enfatiza, a seguir: A especialização existe para dar maior profundidade no conhecimento de casos peculiares, e as relações entre cônjuges ou companheiros têm suas peculiaridades bem conhecidas daqueles que atuam nestas Varas. Os negócios jurídicos entre familiares possuem repercussão emocional e permitem outro tipo de atuação não comum às Varas Cíveis, inclusive com a realização de acordos que levam em consideração a abordagem psicológica e social das quais são dotadas as Varas de Família de sua equipe técnica (2012, p. 56). Ademais, outros argumentos a favor da propositura das ações de usucapião por abandono do lar nas Varas especializadas em Direito de Família coligidos, a contento, pelos mestres Roberto Paulino e Roberto Gouveia Filho, podem ser resumidos no excerto doutrinário abaixo transcrito, in verbis: Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Embora se trate de dispositivo fadado à polêmica, não será possível aplica-lo sem reconhecer a relação familiar, que se no casamento é formal e pressuposta, na união estável exige prova específica. Por outro lado, é preciso igualmente fazer prova da separação de fato, em qualquer dos dois casos. Ademais, o reconhecimento da usucapião no prazo bienal afeta diretamente a partilha, por afastar dela o bem cuja meação foi usucapida. Logo, parece razoável concluir que a competência pertença ao juízo apontado, na lei de organização judiciária do estado-membro ou do Distrito Federal, como competente para conhecer da dissolução do casamento ou da união estável e da partilha de bens, evitando a remessa à vara cível de questões que lhe são estranhas (2011, p. 373). Destarte, verifica-se que a ação de usucapião por abandono do lar, se ajuizada, suscita diversos pontos prejudiciais inerentes ao Direito de Família, como a prova da separação de fato e da união estável, por exemplo, o que demanda um tratamento jurídico, e porque não assistencial, condizente com aquele ofertado nas lides de família, razão pela qual as Varas de Família são melhor preparadas para atender à demanda proveniente da usucapião por abandono do lar. Por fim, impende ressaltar a patente ligação entre os aspectos processuais colimados, pelo que a disciplina de um afeta, inexoravelmente, a do outro, sendo mais coerente, portanto, que, se a legitimidade processual da ação é titularizada apenas pelos integrantes da sociedade conjugal desfeita ou da união estável cuja convivência feneceu, a competência para o seu processamento seja das Varas de Família; e o rito, o ordinário, diante da dispensabilidade dos atos e comunicações processuais característicos do oneroso rito especial da usucapião de terras particulares. Capa Sumário 469 6. CONCLUSÃO À guisa de conclusão, faz-se mister tecer alguns comentários acerca do exame da estrutura da usucapião por abandono do lar e dos aspectos procedimentais que a rodeiam. Preliminarmente, à luz do contexto de surgimento do art. 1.240-A,verificou-se que a principal finalidade da introdução da usucapião familiar no ordenamento pátrio é a tentativa de garantia do direito de moradia, a priori, o que justificaria sua inserção no sistema por meio de um instrumento legislativo que visou realizar reformas no Programa Minha Casa Minha Vida do Governo Federal, caracterizado no âmbito de políticas públicas habitacionais. Ocorre que, do modo como prevista, esta espécie de usucapião não se restringiu ao público-alvo do programa, vez que não traz critérios econômicos outros que não a área máxima do imóvel usucapiendo, que é de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), à semelhança das outras espécies de usucapião especial urbana, demonstrando que não se destina apenas à população de baixa renda, pois a metragem eleita corresponde a propriedades altamente valorizadas atualmente no mercado imobiliário em diversos Municípios do país. Destituída de correlação direta com o teor dos demais dispositivos da Lei nº 12.424/11, percebe-se que a norma contida em seu art. 9º foi sorrateiramente incorporada ao sistema. Isto porque sua edição ocorreu por ocasião do processo legislativo de conversão da Medida Provisória nº 514/2010 em lei, visto que a redação original desta não contemplava a previsão de nova usucapião, o que explica inexistir, em sua exposição de motivos, quaisquer explanações que justifiquem a inserção do art. 1.240-A no Código Civil. Sem embargo, tampouco o Projeto de Lei de Conversão nº 10/2011 tece motivações neste sentido, relegando ao campo das especulações a “axiomática” necessidade que reclamou a inauguração de novo modelo de prescrição aquisitiva. Em seguida, detectou-se problemas na interpretação dos Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização aspectos de direito intertemporal. Quanto à vigência, não houve maiores dificuldades, visto que a própria lei contém disposição expressa nesse sentido. Por outro lado, no que tange à aplicabilidade, averiguou-se que a contagem do lapso prescricional para usucapir encontra conforto a partir da data de vigência da lei, devendo-se aguardar, após este marco, o biênio legal previsto no art. 1.240A, desprezando-se, para este fim, qualquer posse anterior à data de início dessa vigência, por força da regra da irretroatividade das normas jurídicas, em nome da garantia da segurança jurídica. Isto traz implicações relevantes para a disciplina da eficácia do instituto, vez que, a depender da concreção do prazo bienal, a produção de feitos somente se opera a partir de 16 de junho de 2013, razão pela qual é ainda prematura a jurisprudência que cerca o assunto. Esclarecidas aquelas questões preliminares, partiu-se para a decomposição dos requisitos da usucapião por abandono do lar com base em seu texto legal. Além de repisar o território comungado com as demais espécies de usucapião, pretendeu-se concentrar o foco naqueles elementos peculiares à nova espécie, que representaram inovações na disciplina da usucapião em geral. O primeiro deles situa-se na categoria dos requisitos pessoais, resumindo os sujeitos da usucapião aos ex-integrantes de um casamento ou de uma união estável, vez que a literalidade da norma a restringe expressamente aos “ex-cônjuges” e “ex-companheiros”, aqui inclusas as uniões homoafetivas, de acordo com novos precedentes do STJ e do STF. O correto alcance das expressões retro, inobstante a atecnia do órgão legiferante ao empregar a partícula “ex” que, em seu sentido normal, denota o término formal das entidades do casamento e da união estável, equivale ao consorte separado de fato, antes da partilha dos bens, quando o objeto da usucapião encontra-se em situação de co-propriedade, sem estabilidade para aquele que continua no exercício da posse, sob pena de se esvaziar o conteúdo do preceito normativo. Capa Sumário 471 Na seara dos requisitos reais, o art. 1.240-A, como desmembramento do art. 1.240 do Código Civil, que prevê a usucapião especial urbana, não afastou-se desta, elegendo como bem usucapiendo o imóvel urbano de até 250m². Todavia, olvidou-se o legislador que a usucapião especial urbana não se encontra isolada no sistema, possuindo correspondente previsão de aquisição de domínio para os imóveis rurais. Em que pese ser esta norteada essencialmente pela finalidade de labor e produtividade, o escopo de moradia é traço inconteste deste arcabouço estrutural. Em decorrência disto, a usucapião familiar recebe a pecha da inconstitucionalidade ao realizar discriminação injustificada entre as famílias residentes na zona rural e na zona urbana, privando aquelas do acesso ao direito de usucapir com o prazo mais célere. A inovação nos requisitos reais fica por conta da exigência legal de que o imóvel seja de propriedade de ambas as partes da ação de usucapião, sendo irrelevante a forma pela qual o bem ingressou na propriedade comum, se pelos regimes de comunhão parcial de bens e de comunhão universal, ou se pela aquisição conjunta em condomínio, o que automaticamente exclui qualquer possibilidade de usucapião por abandono do lar em face de terceiros estranhos à relação de conjugalidade ou de convivência. O requisito é polêmico, à proporção em que pode ser acusado de gerar insegurança jurídica, vez que interfere nas disposições nupciais adotadas pelo regime de bens, tornando-o sem efeitos. Dentre os requisitos formais, instalou-se a problemática da caracterização de uma manifestação do co-proprietário que não exerce a posse, hábil a desconstituir a posse legítima do outro, pelo que firmou-se a necessidade de comprovação do exercício dos poderes e direitos atinentes à propriedade do ausente, mormente através de instrumentos formais, judiciais ou extrajudiciais, tendo em vista o escopo precípuo da prescrição aquisitiva, qual seja, retirar a titularidade do indivíduo que não exerce os deveres e direitos de proprietário para conferi-la a outrem que exerce uma Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização de suas maiores expressões, a posse estável. Para além, o dispositivo legal adiciona à posse ad usucapionem mais dois atributos: que seja direta, isto é, que o usucapiente efetivamente resida no imóvel, estando nele presente fisicamente, de maneira habitual, já que a finalidade da posse deve ser a moradia, descaracterizando-a em caso de cessão, locação, entre outras formas representativas de alienação a terceiros; e que seja exclusiva, exercida apenas por um dos titulares da propriedade, o usucapiente, após a cessação da composse com o abandono do outro titular. É possível perceber o terreno movediço pelo qual devem transitar aqueles que enfrentam o tema, anuviado nos diversos ângulos em que é posto em perspectiva, o que sobremaneira evidencia o grande desafio lançado ao operador do direito, que necessita emitir respostas de forma ágil e diligente. Não é diferente o exame do lapso temporal da prescrição aquisitiva, que, a despeito de restar estabelecido de forma cristalina em dois anos no art. 1.240-A, suscitou, perplexidades a respeito da necessidade de prazo tão exíguo para usucapir, especialmente porque se realiza no âmbito do rompimento das relações de conjugalidade, que naturalmente requer tempo para acomodar-se, dado o alto teor de emoções envolvidas. Encerrando o rol de requisitos, dentre aqueles chamados especiais, desponta que trouxe a lei uma exigência sem precedentes no Direito das Coisas, qual seja, o requisito do abandono do lar, sem dúvida o mais controverso. O emprego da expressão pelo legislador dividiu os doutrinadores, especialmente pela carga axiológica negativa que a locução já carregou no direito brasileiro, pelo que optou-se por uma otimização do referido conceito para compreender o abandono patrimonial típico do Direito das Coisas, aliado à separação de fato dos cônjugues ou companheiros do Direito de Família. Diante da força imperativa da nova norma, resta superar as Capa Sumário 473 dificuldades advindas da precariedade com que foi concebido o instituto a fim de moldá-lo para a ele conferir aplicação condizente com a harmonia sistemática da ordem constitucional vigente. Em epítome, a usucapião por abandono do lar, embora exorbitante em imprecisões terminológicas e de equilibrar-se perigosamente em elementos obsoletos, enquanto sobreviver no ordenamento jurídico pátrio, necessita de lapidação profunda, a fim de proporcionar o melhor tratamento jurídico. REFERÊNCIAS ALBUQUERQUE JR, Roberto Paulino de; GOUVEIA FILHO, Roberto P. 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A IMPORTÂNCIA DA MEDIAÇÃO FAMILIAR NOS CASOS DE ALIENAÇÃO PARENTAL SOB A PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL Milena Ferreira BELTRÃO Maria Cristina Paiva SANTIAGO RESUMO: O presente artigo tem por objetivo refletir acerca do instituto da mediação familiar na resolução dos conflitos originados pela prática da alienação parental, sob a luz da Constituição Federal de 1988, analisando a evolução histórica da sociedade, da família e de seus conflitos que traz à baila a necessidade de aprimoramento dos profissionais para lidarem com as novas problemáticas familiares como a alienação parental exigindo um tratamento adequado. Nesse sentido, observa-se um maior crescimento dos denominados “meios alternativos” de resolução de conflitos decorrente de sua eficácia e menores custos. O método utilizado é o bibliográfico por meio de livros e artigos sobre mediação e alienação parental disponíveis. Assim, os profissionais das ciências jurídicas necessitam valorizar meios diversos dos litigiosos para solucionar questões oriundas do seio familiar que carregam consigo uma forte carga emocional fortalecendo a importância da interdisciplinaridade nesses conflitos e apresentando um resultado menos prejudicial aos envolvidos. Palavras-chave: Direito de família. Alienação parental. Mediação. Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 1 INTRODUÇÃO Este artigo tem como objetivo caracterizar a alienação parental e demonstrar que a mediação é o instrumento adequado para a solução dos problemas oriundos daquela prática explicitando os benefícios de sua utilização e a necessidade de uma interligação das áreas de conhecimento com vistas à concretização dos princípios constitucionais. Nessa perspectiva, o estudo focou-se nos menores impactos causados pela mediação na resolução dos conflitos originados pela alienação parental utilizando-o como forma de prevenir e remediar qualquer celeuma referente à causa.Por esse ângulo, faz-se necessário a expansão e divulgação da mediação como forma de resolver os conflitos decorrentes da alienação parental que traga menos danos aos envolvidos, mormente à prole, e mais benefícios afastando o eventual esvaziamento de um processo judicial. Assim, vislumbra-se na mediação familiar o mecanismo adequado para os casos de alienação parental, uma vez que trabalhará o conflito de forma positiva trazendo crescimento e responsabilidade aos conflitantes conscientizando-os dos prejuízos que estão causando aos seus filhos quando da existência da alienação parental e permitindo a efetivação dos direitos previstos na Constituição Federal. 481 protetor para que evite maiores danos aos seus componentes. Coadunando com tal posicionamento preleciona Giselle Câmara Groeninga: A família é sistema de relações que traduz em conceitos e preconceitos, idéias (sic) eideais, sonhos e realizações. Uma instituição que mexe com nossos mais carossentimentos. Paradigmática para outros relacionamentos, célula mater da sociedade143. Assim, é na família que o indivíduo tem suas primeiras experiências, descobertas,alegrias e decepções encabeçando a primeira rede de relações interpessoais que influenciará o desenvolvimento da criança em um adulto saudável, exigindo uma postura ativa do Estado em tutelar o núcleo familiar. 2.1.1 Delineamento histórico da família 2.1 CONCEITO O que se depreende das relações familiares da Antiguidade é que as mesmasnão se fundavam no afeto, como hodiernamente ocorre, visavam, basicamente, uma instintiva luta pela sobrevivência (independente de isso gerar, ou não, uma relação de afeto)144. Neste ensejo, o modelo da Antiguidade, em particular de Roma, persistiu, predominantemente, por muitas gerações recorrentes ao sistema familiar como uma “unidade econômica, política, militar e religiosa, que era comandada sempre por uma figura do sexo masculino, o pater famílias,”145autoridade máxima sobre todos os integrantes de sua família. Já o advento do século XX trouxe consigo modificações na A família é o núcleo social basilar que, constantemente, evolui e se molda àscaracterísticas do tempo vigente. Logo, o conceito de família é de cunho dinâmico e, por ser o centro das primeiras experiências de cada indivíduo, demanda do Estado um apanágio 143 GROENINGA, Giselle Câmara. Família: um caleidoscópio de relações In: GROENINGA, GiselleCâmara;PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Orgs.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003. p. 125 144 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Novo Curso de Direito Civil - Direito de Família. v. 6. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 48 145 Ibid. p. 49 2 A FAMÍLIA CIVIL-CONSTITUCIONAL PÓS CARTA MAGNA DE 1988 Capa Sumário Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização estrutura familiarrechaçando o modelo único e conservador da família até então vigente. Essas mudanças foram trazidas pela evolução dos centros urbanos, pela revolução sexual, pela possibilidade do divórcio e, principalmente, pela sobreposição dos valores que protegem o ser humano, como a dignidade do indivíduo, sobre todo e qualquer valor patrimonial146. Nessa seara, observa-se acrescente despatrimonialização e afastamento da definição fechada de família cristãpossibilitando a abertura para a formação e conjectura dos mais variados e possíveis modelosde família e sendo-lhes assegurado proteção de cunho constitucional. Hoje a família caracteriza-sepela “revalorização do aspecto afetivo, a busca de autenticidade nas relações familiares e apreservação do interesse de crianças e adolescentes”147 Dessa forma, confirma-se que o novo rumo a seguir da ordem jurídica positiva, é ir além dos valores individuais e patrimoniais buscando a realização pessoal e o crescimento, individual e coletivo, de todos osmembros familiares. 2.2 A ÉTICA NO DIREITO DE FAMÍLIA Para além de uma questão jurídica, todas as relações intersubjetivas, em particular astraçadas no âmbito familiar, exigem dos seres humanos sensibilidade, ética e moral no tratodas mesmas. Seguindo o escóliode Maria Berenice Dias observa-se que: Assim, o direito não pode afastar-se da ética, sob pena de perder a efetividade.Nenhuma norma, nenhuma decisão que chegue a resultado que se divorcie de umasolução de conteúdo ético pode subsistir. Essa preocupação não deve ser só dolegislador. 146 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro - direito de família. v. 6. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 32 147 PEREIRA, Sérgio Gischkow apud THOMÉ, Liane Maria Burnello. Dignidade da pessoa humana e mediação familiar. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 37 Capa Sumário 483 Também os aplicadores do direito precisam conduzir suas decisões deforma que a solução não se afaste de padrões éticos e morais148. Dessa forma, apesar de distintos, a ética, a moral e o Direito se correlacionam ao abordar as relações humanas servindo aqueles como guias na regulação jurídica devendo sernorte tanto para os legisladores quanto para os operadores do Direito. Esse entrelaçamento éexplicado por Lara Oleques de Almeida: O Direito é ciência essencialmente humana e, como tal, não pode se distanciar daÉtica, que dá suporte ao desenvolvimento de sua função promocional, em prol darealização da justiça (...) o Direitofomenta a promoção da proteção eficaz dos direitos fundamentais e colabora para aconstrução de uma cultura de paz no interior das famílias...149 Enfim, o que resta assentado, na leitura da doutrina e na jurisprudência, é anecessidade de sedimentação e fundamentação do Direito na ética, na busca contínua einterminável da realização dos valores previstos na Constituição Federal almejando oaproveitamento máximo dos princípios norteadores do ordenamento familiar: dignidade dapessoa humana, afetividade, solidariedade, pluralidade, entre outros. 2.3 DIREITO DE FAMÍLIA SOB UMAVERTENTE CONSTITUCIONAL Em contraposição a Codificação Substantiva de 1916, de caráter eminentemente 148 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: Revista dos tribunais, 2009. p. 72 et seq 149 ALMEIDA, Lara Oleques de. A função social da família e a ética do afeto: transformações jurídicas no direito de família. p. 90 et seq. Disponível em: <http://revista.univem.edu.br/index.php/REGRAD/article/viewFile/43/70>. Acesso em: 24/09/2011. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização liberal, o “Código Civil de 2002, finalmente, rendeu-se aos princípios, compatibilizando-se ao paradigma do Estado social”150 Nesse norte, a constitucionalização do direito civil, uma construção doutrinária, “tomou corpo principalmente a partir do século XX, entre os juristas preocupados com a revitalização do direito civil e sua adequação aos valores que tinham sido consagrados”151 na Carta Magna de 1988. Dessa maneira, verifica-se no âmbito do Direito de Família, como todos os outros ramos jurídicos, a preponderância da dignidade do indivíduo como barreira limitadora de direitos e deveres, constituindo um núcleo imutável sobre o qual as normas jurídicas se desenvolvem. Destarte, entende-se a “dignidade da pessoa humana como um valor supremo que atrai o conteúdo detodos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida.”152 Conforme vaticina Liane Maria Busnello Thomé: A constitucionalização do Direito Civil é um fenômeno que decorre da necessária interpretação dos princípios aprovados na Constituição Federal brasileira, emespecial, do princípio da dignidade da pessoa humana, acarretando uma releitura doCódigo Civil brasileiro, elevando o interesse da pessoa humana sobre qualquer outrovalor que seja o de reconhecer, proteger e promover seu desenvolvimento153. Ratificada está a importância e a magnitude da tutela do Estado e da aplicabilidade dasnormas jurídicas protetoras do núcleo familiar para que alcancemos uma máxima na evoluçãodos indivíduos tanto pessoalmente como conjuntamente. 150 LÔBO, Paulo. A constitucionalização do direito civil brasileiro In: TEPEDINO, Gustavo. (Org.) Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. São Paulo: Atlas, 2008. p. 24 151 Id. p. 18 152 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 31. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 105 153 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 32 Capa Sumário 485 2.4 EFICÁCIA HORIZONTAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS E A FAMÍLIA Nosso ordenamento pátrio adotou a aplicabilidade imediata para osdireitos e garantias fundamentais e essafoi uma das maiores conquistas da Constituição Federal de 1988, qual seja, o“reconhecimento da força normativa de seus princípios, que interagem nas relaçõesfamiliares, incidindo diretamente”154 Nesse sentido, leciona Ingo Wolfgang Sarlet acerca da tendência seguida pelos direitosfundamentais: Independentemente da possibilidade de sustentar-se, relativamente aos direitosfundamentais da Constituição de 1988 (...) o fato é que a coerênciainterna do sistema dos direitos fundamentais encontra justificativa (...) em referenciais fornecidos pelo próprio direito constitucional positivo. Neste sentido, assume papelrelevante a norma contida no art. 5º, §1º, da CF de 1988, de acordo com a qual todosos direitos e garantias fundamentais foram elevados à condição de normas jurídicasdiretamente aplicáveis e, portanto, capazes de gerar efeitos jurídicos155. Já no que diz respeito à eficácia horizontal a mesma abrange a obrigação do respeitoaos direitos fundamentais, em especial na esfera familiar, por todos os indivíduos em suasrelações entre particulares. Logo, é de suma importância o acesso a “um ambiente harmônicoentre os interesses da própria família, enquanto núcleo social, e os interesses pessoais dos seusmembros, com o propósito de garantir a efetividade desses direitos fundamentais”156. 154 LÔBO, Paulo apud TARTUCE, Flávio. Princípios constitucionais e direito de família. In: CHINELATTO, Silmara Juny de Abreu; SIMÃO, José Fernando; FUJITA, Jorge Shiguemitsu; ZUCCHI, Maria Cristina. (Org.) Direito de família no novo milênio. São Paulo: Atlas, 2010. p. 39 et seq. 155 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010. p. 72 et seq 156 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op.cit., p. 58 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Portanto, resta demonstrada a importância da eficácia irradiante dos princípiosconstitucionais que abrangem todo ordenamento jurídico brasileiro servindo como condiçãosine qua non para sua interpretação em conformidade com a Constituição Federal. 2.4.1 A função social da família A função social da família cresceu combinado com a constitucionalização do direitocivil acompanhando as transformações familiares, conforme relatado por Lara Oleques deAlmeida: A função social da família é importante mecanismo a permitir a incorporação devalores sociais para o interior do ordenamento quando da interpretação do Direito, apartir da dicção do art. 226, caput, da Constituição Federal c/c art. 1º, III, daConstituição Federal. Ressalta-se, ainda, que a função social da família implica oreconhecimento do conceito contemporâneo de família, inferido na ConstituiçãoFederal, em interpretação extensiva157. Nesse espeque, atua a função social como meio “para que o jurista interprete e apliqueo direito segundo valores éticos e sociais, dada a função social que o próprio Direito(representado pelo juiz, advogado, etc.) deve desempenhar”158. Assim, valoriza o homemcomo “centro epistemológico da ciência jurídica, [que] configura importante mecanismo apermitir a incorporação de valores éticos e sociais para o interior do ordenamento quando dainterpretação e aplicação do Direito”159 coadunando com a legislação de tutela e preocupaçãodo indivíduo. 157 158 159 Capa ALMEIDA, Lara Oleques de. Op. cit., p. 60 Ibid. p. 84 Ibid. p. 89 Sumário 487 2.5 PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DAS FAMÍLIAS É importante a extensão dos princípios em qualquer ordenamento legal, uma vez queesses são o norte servindo como norma balizadora de toda produção legal. Logo, os princípios tornaram-se “o norte axiológico de todo o ordenamento jurídico,eis que funcionam como comandos éticos permeados de valores socialmente relevantes”160 queserão utilizados pelos aplicadores do Direito na interpretação e aplicação das normas. 2.5.1 Princípio da dignidade da pessoa humana Elevada à categoria de fundamento do Estado de Direito, o princípio da dignidade dapessoa humana tornou-se, na Carta Magna de 1988, um princípio constitucional expresso,com previsão no art. 1º, inciso III161, sendo o sustentáculo do desenvolvimento do Estado e detodas as relações sociais nele inseridas. Apesar de uma árdua dificuldade em sua conceituação, por ser uma definição em aberto e assaz ampla, tentar definir a dignidade do indivíduo significa assegurar uma “íntimarelação com o seu querer, com seu desejo de reconhecimento individual, com seu devido valor pessoal”162. Nessa linha, Liane Thomé preceitua: Dignidade é ser visto e reconhecido por suas próprias qualidades e diferenças. É serolhado por inteiro e merecedor de respeito e proteção. É poder ser respeitado emsuas diferenças e poder expressá-las sem receio de não ser reconhecido ou comreceio de 160 Ibid. p. 66 161 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] III - a dignidade da pessoa humana; 162 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 45 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ser agredido, ofendido ou ignorado e está condicionada por valorespróprios e influenciados pela educação, meio social e imagem que as pessoas fazem de si próprias163. Outrossim, o princípio da dignidade humana limita a atuação do Estado que deverespeitar e fomentar uma estrutura para o indivíduo viver, dignamente, no seio da família e em sociedade. Assim, compreende-se que a dignidade personifica a ideia de que o ser humano é livrepara desenvolver seus potenciais e sonhos na vida social, sendo obrigação do Estado fornecere proteger esse espaço para dita evolução. 2.5.2 Princípio da igualdade O princípio da igualdade, decorrência direta do princípio da dignidade humana,exprime-se no sentido de que todos devem ser tratados de forma isonômica no cumprimentode deveres e direitos “e é na família o lugar primeiro em que deve ser reconhecida e aplicadaessa isonomia, que por força da legislação e da cultura, tratava os seres humanos de forma distinta”164. Garantia constitucional, prevista no art. 226, §5º165 e no art. 227, §6º166 da Carta Magna,a isonomia abordada engloba tanto a igualdade entre homens e mulheres no âmbito familiar,quanto o tratamento igualitário direcionado aos filhos, independente de sua origem. 163 Ibid. p. 55 et seq. 164 Ibid. p. 68 165 Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado[...] § 5º - Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. 166 Art. 227 [...] § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. Capa Sumário 489 Todavia, imperioso salientar que a previsão constitucional não equipara o homem e amulher em termos físicos ou psicológicos “proíbe, na verdade, o tratamento jurídicodiferenciado entre pessoas que estão na mesma situação”167. No que concerne à igualdade entre os filhos, todos os filhos independentemente de sua origem, se adotados,decorrentes do laço socioafetivo ou de inseminação heterogênea, merecem a mesma tutelatanto de cunho material quanto pessoal, uma vez que agora gozam da posição de sujeitos dedireito. 2.5.3 Princípio da afetividade O direito ao afeto é “imprescindível à saúde física e psíquica, à estabilidade econômicae social e ao desenvolvimento material e cultural da família e do seu lar”168 e possui comogrande vantagem “a possibilidade da realização da ternura na vida de cada um, nos momentosde paz e nas ameaças de conflito,”169 sendo hoje o principal elemento unificador das famílias. Por fim, a interpretação do Direito de Família sob o aspecto da afetividade significa orespeito às diferenças e à valorização do afeto que liga os indivíduos de uma família. 2.5.4 Princípio do pluralismo familiar No que tange ao princípio do pluralismo familiar a Consti167 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen juris, 2010. p.43 168 BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: dos fundamentais aos operacionais. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Org.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 149 169 CUNHA, João Paulo. A ética do afeto. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Org.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 86 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tuição Federal de 1988 “alargou o conceito de família, permitindo o reconhecimento de entidades familiares nãocasamentárias”170 tutelando toda e qualquer forma de família fundada no afeto. Dessa feita, coadunando com os novos parâmetros adotados pela família, tendo em suabase o afeto como traço distintivo, os seres humanos podem se aglomerar sob as mais variadas formas “quantas sejam as possibilidades de se relacionar, ou melhor, de expressar oamor”171 o que autoriza a tutela legal sobre todos os núcleos familiares. Esse é basicamente oconteúdo do princípio em comento que leva “ao reconhecimento e à efetiva proteção, peloEstado, das múltiplas possibilidades de arranjos familiares”172. 2.5.5 Princípio da solidariedade social O princípio da solidariedadesocial é previsto na Carta Política de 1988173 gerando efeitos na esfera familiar incorrendo no“respeito e consideração mútuos nos relacionamentos entre os membros da família”174. Seguindo a tendência evolutiva da família brasileira, o princípio da solidariedade seapresenta como corolário de tais mudanças, haja vista que os princípios atinentes “se voltarammuito mais para os aspectos pessoais de cada membro da família do que para ospatrimoniais”175. No escólio de Liane Thomé: A solidariedade tem incidência permanente sobre a família, expressando-se nasuperação do individua170 FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 41 171 Ibid. p. 29 172 DIAS, Maria Berenice apud FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Op. cit., p. 42 173 Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] I - construir uma sociedade livre, justa e solidária 174 TARTUCE, Flávio. Op. cit., p. 45 175 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 56 Capa Sumário 491 lismo sobre o interesse do bem comum, no respeito recíproco, nos deveres de cooperação financeira e emocional entre os membros dogrupo familiar e destes com a comunidade e o meio ambiente em que vivem176. Enfim, pode-se afirmar, no que concerne à concretização do princípio em análise, queo mesmo materializa-se por meio da ação de cada parte da família ao manter o afeto,cooperando, respeitando, amparando e ajudando uns aos outros. 2.5.6 Princípio da proteção integral da criança e do adolescente No Brasil, com fundamento na Carta Magna de1988 e previsto no Estatuto das Crianças e do Adolescente177, o princípio da proteção plena dacriança e do adolescente surge em oposição ao sistema outrora vigente do modelo da situaçãoirregular “que tinha como fonte formal o Código de Menores de 1979”178. O que decorre, basicamente, desse princípio, além de um leque de outros princípiosderivados como o da responsabilidade parental e o da prevalência da família, é o tratamentodestinado às crianças e adolescentes como sujeitos de direito e não como meros objetos deproteção. O fato de serem considerados como sujeitos de direito implica que lhes é garantidoum rol de direitos fundamentais destinados aos adultos podendo, inclusive, “manifestaroposição e exercer seus direitos em face de qualquer pessoa, inclusive seus pais”179. Contudo, há um óbice na aplicação no caso concreto desse princípio, pois o mesmocarrega consigo uma alta carga de subjetividade, haja vista inexistir um critério objetivo a serseguido para 176 Ibid. p. 59 177 Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 178 ROSSANTO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo. Comentários à lei nacional da adoção – lei 12.010. de 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 20 179 Id. p. 21 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização definir o “melhor interesse” exigindo assaz sensibilidade e cautela do magistradopara que não resulte em prejuízo aos menores. Além disso, a importância desse princípioreside no fato do menor ainda estar em processo de formação de sua personalidade, sedefinindo como ser humano por meio de suas escolhas e valores que carregará ao longo desua vida formando “sua identidade no grupo familiar e social,”180 e compondo sua individualização como ser humano. 3 ALIENAÇÃO PARENTAL 3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Antes de tudo, deve-se priorizar o caráter constitucional e os valores que estãoarraigados ao Direito de Família que determinam o novo tratamento ofertado aos arranjos familiares fundados na ética, no afeto e na concretização da dignidade humana. Porisso, deve ser condenada toda e qualquer manifestação contrária ao desenvolvimento saudáveldos entes participantes da família autorizando a atuação imediata do Poder Público quando doindício de existência da alienação parental. Nesse ensejo, sintetiza Guilherme Calmon: A dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento,daí a ordem constitucional dirigida ao Estado no sentido de dar especial e efetivaproteção à família, independentemente de sua espécie181. 180 PEREIRA, Tânia da Silva. O princípio do “melhor interesse da criança” no âmbito das relações familiares. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha. (Org.) Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 210 181 GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A emocionalidade em áreas jurídicas específicas. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. (Org.) Aspectos psicológicos na prática jurídica. 3. ed. Campinas: Millenium, 2010. p. 195 Capa Sumário 493 Forçoso reforçar a necessidade de tutela da família contra todo e qualquer tipo deviolência que, por ser o indivíduo eminentemente emoção, demanda um tratamento baseadono respeito, na consideração e na paciência. 3.2 A RUPTURA DE UM RELACIONAMENTO: O ESTOPIM PARA A ALIENAÇÃOPARENTAL Cumpre salientar que “a unidade da família não seconfunde com a convivência do casal, [que] é um elo que se perpetua independentemente darelação dos genitores,”182 pois que “a separação implica em fim da conjugalidade e não daparentalidade”183. Apesar de cada indivíduo reagir diferente diante de cada situação na vida, há três formas que merecem destaque por serem as mais recorrentes.A primeira delas éo instinto vingativo que se imbui o indivíduo incorrendo em um surto de ira que desembocaem “um denegrimento público daquele(a) que a(o) rejeitou, expondo mazelas íntimas e manchando a reputação”184 A segunda forma mais habitual, a que interessa a esse estudo, é ofato dos conviventes “utilizar os filhos como munição de guerra entre eles, e isso tanto podeser feito de forma ostensiva quanto de maneira velada e sutil”185. A última maneira,igualmente comum, de vingança “recai na contabilidade, na divisão dos bens, no confrontoentre direitos alegados como legais, mas que nem sempre são morais e éticos”186. A celeuma reside no fato de certos pais não saberem lidar com antigos sentimentos e novos ressentimentos provocados pelo 182 ALBUQUERQUE, Fabíola Santos apud DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Op. cit., p. 386 183 FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Psicologia jurídica. São Paulo: Atlas, 2009. p. 302 184 ZIMERMAN, David. O processo judicial pode estar sendo uma forma de manutenção do vínculo do casal? In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 173 185 Loc cit. 186 Loc cit. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização fim do relacionamento, conforme explica Maria Berenice: A criança é induzida a afastar-se de quem ama e que também a ama. Isso gera contradição de sentimentos e destruição do vínculo entre ambos. Restando órfão dogenitor alienado, acaba identificando-se com o genitor patológico, passando a aceitarcomo verdadeiro tudo que lhe é informado187. Tais episódios demandam muita cautela e preparo dos envolvidos na identificação dossintomas da alienação parental sendo salutar a presença de uma equipe multidisciplinar e deum juiz preparado e capacitado para lidar com as situações expostas. Cumpre ressaltar,também, a grande valia de se verificar a ocorrência da alienação o quanto antes possível, vistoque a alienação parental é um abuso contra a criança ou adolescente que põe em perigo opsicológico e o emocional destes arriscando o desenvolvimento saudável da criança. Assim, quando da comunicação da notícia do fim do relacionamento aos filhos, essecomunicado deve ser feito, preferencialmente, pelos dois oportunizando a ambos explicar a sua prole a situação vigente. Além disso, tranqüiliza-se a criança acerca dacontinuidade do relacionamento, com ambos os pais, e exime-a de qualquer culpareferente ao fim da união. A comunicação em conjunto serve, igualmente, para evitar “queaquele que noticia seja o único responsável ou que aproveite o momento para desqualificar ooutro, facilitando o aparecimento da alienação parental”188. Ante o exposto, quando um conflito abarca nas varas de família, todos os profissionaisenvolvidos devem estar conscientes da forte carga emocional que o mesmo carrega, ainda que negados 187 DIAS, Maria Berenice. Alienação parental – um abuso invisível. Disponível em: <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/4_-aliena%E7%E3o_parental_um_abuso_invis%EDvel.pdf>. Acesso em: 25/01/2012. p. 1 188 FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 304 Capa Sumário 495 ou não mencionados pelos litigantes, devendo ser abordado com muito respeito,preparo e sensibilidade, independente de qual seja a questão suscitada. 3.3 CONCEITO DE ALIENAÇÃO PARENTAL Cunhada por Richard Gardner, professor do departamento de psiquiatria infantil dafaculdade de Columbia em Nova York, a nomenclatura “síndrome da alienação parental” foicaracterizada em 1985 como um “distúrbio da infância que aparece quase exclusivamente nocontexto de disputas de custódia de crianças”189. Consiste a mesma em uma campanhanegativa feita por um dos genitores contra o outro denegrindo a imagem alheia e imbuindo namente dos filhos fatos falsos ou maquiados consistindo em uma “interferência psicológicaindevida realizada por um dos pais com o propósito de fazer com que repudie o outrogenitor,”190 realizando uma lavagem cerebral na criança, a qual culminará por contribuirtambém na “trajetória de campanha de desmoralização”191. Nesse jogo de falsidades e manipulações não há limites para o alienador que faz usode todos os mecanismos possíveis para denegrir, equivocadamente, a imagem do outro. Apósconstantes investidas do alienador nas falsas e maquiadas histórias, o filho começa a acreditare a repetir tudo que lhe é contado como se verdade fosse e, com o passar do tempo, nem ogenitor consegue mais diferenciar “entre [a] verdade e [a] mentira. A sua verdade passa a serverdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência, implantando-se,assim, falsas 189 GARDNER, Richard A. apud GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., 603 190 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., 603 191 TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do Direito. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009. p. 309 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização memórias”192.E essa é também, claramente, um abuso que arrisca a saúde e odesenvolvimento psíquico-emocional da criança que “acaba passando por uma crise delealdade, o que gera um sentimento de culpa quando, na fase adulta, constatar que foicúmplice de uma grande injustiça”193. Há algumas atitudes que devem ser sopesadas quando daanálise acerca da presença ou não da alienação. Nessa esfera, é considerado um equívocoanalisar exclusivamente a opinião dos filhos, pois essa provavelmente encontra-se fundida dasfalsas memórias interpeladas pelo alienador, também reputa-se um erro o tratamento daalienação por um terapia tradicional, pois é inequívoco lembrar que o agente alienador é assazmanipulador podendo enganar até os profissionais mais preparados194. Outrossim, é um engano deixar que apenas um dos pais decida sobre a vida dos filhos,independente se o genitor é o agente alienador ou alienado, requerendo a presença de umolhar imparcial e distante da situação para auxiliar todos os envolvidos na celeuma, “sem aintervenção externa e sem ajuda psicológica, é provável que o filho nunca se aperceba do quese passou”195. No concernente ao alienador, esse age como se ele e o filho fossem um único ser e queo outro cônjuge fosse um estranho, um agressor que deve ser rechaçado a “qualquer preço,sendo que esse conjunto de manobras constitui o jogo e o cenário que conferem prazer aoalienador em sua trajetória de promoção da exclusão, da separação, da divisão e da destruição do outro”196. Ademais, por, a princípio, ter consciência de todas as mentiras que conta aofilho, o alienador é bastante resistente ao cumprimento das decisões judiciais, bem como aoaceitar intervenção 192 seq. 193 194 195 196 Capa DIAS, Maria Berenice. Alienação parental – um abuso invisível. Op. cit. p. 1 et Loc cit. TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 312 et seq Ibid. p. 312 Ibid. p. 313 Sumário 497 de terceiros podendo, inclusive, durante uma avaliação incorrer em erros econtradições oferecendo indícios da alienação197. 3.4 CARACTERIZAÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL Apesar da Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010 prever e definir a alienação parental,impreterível observar alguns vestígios que podem antever a existência da alienação parental que, quanto mais cedo detectada será seu combate mais eficiente e menos danoso. Dentreesses elementos estão a tentativa de obstar o contato do filho com o alienado sob diversosargumentos, desde não se sentir bem na casa do outro cônjuge a um simples atraso ser motivode xingamento e acusações. Outra forma de se observar previamente a existência da alienaçãoé baseada nas falsas acusações de abusos físico, emocional e sexual, todavia qualquerdenúncia deve sim ser averiguada detidamente, especialmente, a de abuso sexual que, severdadeira, é causadora de um dano sem precedente na criança198. Já o abuso físico é mais fácil de ser detectado autorizando uma avaliação maisobjetiva, porém uma forma de acusação de abuso bastante utilizada pelo alienador é oemocional por ser extremamente difícil de ser verificado até porque, frequentemente, nãopassa de “meras diferenças de juízo moral e de opinião entre os genitores,”199. Uma terceira maneira é observar o relacionamento do filho antes da rupturaconjugal e fazer uma comparação com a atual situação, obviamente não deixando deconsiderar os desgastes que ocorrem normalmente e as mudanças inerentes à separação. Por último, é analisar o medo dos filhos quanto à desobediência ao alienador, vez que este faz chantagens emocio197 198 199 Loc cit. TRINDADE, Jorge.,passim Ibid. p. 315 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nais ao dizer que o filho o traiu e foi desleal se tomar partido do alienado. Isso posto, denota-se a dificuldadeimposta aos filhos que ficam condicionados a uma mentira e a uma dualidade de sentimentos,dúvidas e culpas, além de perder a “noção do certo e do errado [que] fica flutuante,favorecendo prejuízos na formação do caráter”200. Esses são os indícios que devem ser observados para já antever a probabilidade deocorrência da alienação e maiores danos aos filhos, porém a própria Lei que instituiu aalienação parental no Brasil (Lei nº 12.318, de 26 de agosto de 2010) previu, em rolexemplificativo, as formas de alienação em seu art. 2º, parágrafo único201. Imperioso salientar que para a caracterização da alienação, a nível processual, basta o mero indício da prática damesma não exigindo a prova cabal do ilícito. Ademais, segundo os estudos de Richard Gardner,202os comportamentos observados nos filhos dividem-se emestágio 200 Ibid. p. 316 201 Art. 2o Considera-se ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este. Parágrafo único. São formas exemplificativas de alienação parental, além dos atos assim declarados pelo juiz ou constatados por perícia, praticados diretamente ou com auxílio de terceiros: I - realizar campanha de desqualificação da conduta do genitor no exercício da paternidade ou maternidade; II - dificultar o exercício da autoridade parental; III - dificultar contato de criança ou adolescente com genitor; IV - dificultar o exercício do direito regulamentado de convivência familiar; V - omitir deliberadamente a genitor informações pessoais relevantes sobre a criança ou adolescente, inclusive escolares, médicas e alterações de endereço; VI - apresentar falsa denúncia contra genitor, contra familiares deste ou contra avós, para obstar ou dificultar a convivência deles com a criança ou adolescente; VII - mudar o domicílio para local distante, sem justificativa, visando a dificultar a convivência da criança ou adolescente com o outro genitor, com familiares deste ou com avós. 202 TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 317 et seq Capa Sumário 499 leve, médio e grave. De tal sorte, no estágio leve a campanha dedesmoralização e o sentimento de culpa são pequenos e as situações fingidas são pouco freqüentes.No nível médio essas características se acentuam e começam a ter problemas narelação, bem como surgem as situações fingidas e o comportamento da criança começa a semodificar tornando-se agressivo ou inoportuno. Já no estágio grave se apresenta um sériodano ao vínculo filho-alienado, surgindo um forte traço de ódio contra o alienado, “os quaispodem ser estendidos à sua família e àqueles que o rodeiam,”203 além de aumentar ascampanhas de desmoralização contra o mesmo. Necessário salientar que “os estágios da síndrome não dependem tão-somente dasartimanhas feitas pelo genitor alienador, mas do grau de êxito que ele obtém com o filho,”204além de que só será considerado alienação parental, obviamente, quando afastada aconcretude das denúncias e acusações de abuso ou descuido, pois havendo abuso real afastadaestá a alienação parental205. Gardner vereda pela linhade pensamento de que a alienação parental constitui um distúrbio psiquiátrico nomeando-o desíndrome. O que levaria, inclusive, o genitor a apresentar um “déficit na capacidadeparental,”206 desconsiderando as nuances subjetivos dos atores envolvidos em cada caso concreto. Em contraposição à postura adotada por Gardner de uma “espécie de ‘sindromização’do sofrimento humano e de patologização de toda sorte de comportamento,”207a alienaçãoparental não consta no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais rechaçando oreconhecimento científico de distúrbio psiquiátrico. Igualmente, a previsão legal queregulamentou a alienação 203 Id. p. 318 204 Loc cit. 205 Loc cit. 206 SOUSA, Analicia Martins de. Síndrome da alienação parental: um novo tema nos juízos defamília. São Paulo. Cortez, 2010. p. 108 207 Ibid. p. 111 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização parental no ordenamento jurídico brasileiro208 afastou a abordagemda prática como uma síndrome, pois que essa é um “conjunto de sintomas e manifestações”209e a considerou como “ato de alienação parental,”210 haja vista que o legislador entendeu quetanto “a constatação e o enfrentamento da alienação parental se dêem (sic) muito antes deinstaurada uma síndrome”211. 3.5 DISTINÇÃO DA ALIENAÇÃO PARENTAL DE OUTROS INSTITUTOS Enquanto a vítima daalienação quando questionada sobre os fatos referentes à alienação demonstra insegurança ecerta dúvida ao relatar o caso, haja vista que a mesma não vivenciou aquilo sendo meraimagem implantada pelo alienador.Avítima de abuso lembradetalhadamente o ocorrido com ela. Ademais, o principal ponto distintivo é que a campanhacontra o alienado só tem início após a separação, enquanto que o abuso já apresenta queixasdesde a constância da união212. Há ainda outra diferenciação feita pela doutrina entre a alienação parental e o ambientefamiliar hostil, denominado pela doutrina estrangeira de hostile aggressive parenting. Enquanto que a alienação ocorre após a ruptura conjugal e se refere mais a guarda dos filhos,casos análogos ou de divórcio o ambiente familiar hostil apresenta um amplo espectroocorrendo, até durante a união conjugal, quando “duas ou mais pessoas ligadas à criança ouao adolescente estejam divergindo sobre educação, valores, religião, sobre como a mesma deva ser criada etc”213. 208 Lei 12.318/2010 209 COSTA, Sirlei Martins da. Violência sexual e falsas memórias na alienação parental. In: Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. v. 26. fev/mar 2012. p. 74 210 Loc cit. 211 Loc cit. 212 TRINDADE, Jorge.,passim 213 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., 605 Capa Sumário 501 3.6 CONSEQUÊNCIAS DA ALIENAÇÃO PARENTAL Cada vez mais se observa a existência da prática da alienação parental no seio dasfamílias que devem, ao identificar a existência da mesma, de imediato combater com osmecanismos e os profissionais adequados com vistas à redução dos efeitos colaterais daalienação que podem se perpetuar na vida adulta. Contudo, o crescimento linear é corrompido e ameaçado pela alienação parentalrequisitando a imperiosa necessidade de intervenção estatal na tutela dos menores, pois que odesenvolvimento da criança e sua incolumidade física-mental encontra-se em perigo ao serexposta às denúncias e mentiras perpetradas pelo alienador214. É preciso muita atenção na observação da incidência da alienação, haja vista que amesma é de difícil constatação precoce uma vez que, apesar de apresentar indícios é árduodistinguir entre uma mera chateação ou comentário infeliz de uma série de atos prejudiciaisaos filhos e ao alienado. Como efeito decorrente do abuso oriundo da alienação, obviamente ocorre prejuízos edanos aos filhos fluindo entre a depressão, ao sentimento de culpa e de isolamento. Ante o exposto, conclui-se que a influência e a amplitude das consequências e doimpacto da alienação parental nos filhos vão depender segundo Analicia Martins, ao citarRamires, do “nível de desenvolvimento cognitivo, afetivo e social”215 que ajudam duranteessa mudança familiar, “favorecendo as crianças mais velhas e os adolescentes”216resguardada, obviamente, as particularidades do amadurecimento de cada criança eadolescente que varia de um para outro. 214 215 216 TRINDADE, Jorge. Op. cit., p. 310 et seq RAMIRES apud SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 39 Loc cit. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 4 MEDIAÇÃO 4.1 CONCEITO Apesar de o Direito ser uma ciência normativa, essencialmente de cunho objetivo e racional,tem crescido em seu âmago a tendência de abordar os assuntos a ele inerentes comuma maior humanização para solucionar os conflitos e, mormente, com os atores envolvidosna celeuma.217 Os conflitos, inerentes à natureza humana, são observados mais detidamente no seiofamiliar que trazem consigo uma dualidade no sentimento de amor e ódio sedimentando econstruindo o ser humano e a maneira como o mesmo se desenvolverá dentro da família e emsociedade218. Em decorrência das novasconjecturas da sociedade e de seus novos anseios e desejos, a prestação jurisdicional ofertadapelo Estado, através da construção de uma lide, já se mostra insuficiente para suprir asnecessidades das partes em conflito. Segundo aborda Liane Thomé: No Judiciário não há espaço para oferecer atenção às carências emocionais daspartes envolvidas em conflitos, especialmente familiares, como frustrações,abandono, honra e respeito, que são aspectos subjetivos das pessoas, mas quequando afetados pelos conflitos, acarretam na disputa judicial, compensaçãofinanceira, como se constata nos longos processos litigiosos de separação e divórcio,com disputas acerca de guarda, visitas e alimentos para os cônjuges, para os filhosmenores ou incapazes e na partilha de bens219. 217 PERLINGIERI, Pietro. A doutrina do direito civil na legalidade constitucional. In: TEPEDINO, Gustavo (Org.) Direito civil contemporâneo: novos problemas à luz da legalidade constitucional. Op. cit., p. 3 218 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Op. cit., p. 80 219 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 112 Capa Sumário 503 Assim, visualizada as dificuldades do Estado julgador, em particular na esfera familiar, abre-seo âmbito de atuação de resolução de conflitos, para além do Judiciário cogente, permitindoa entrada de outros mecanismos de busca da paz social, objetivo desejado por todos nosconflitos Destarte, necessário se faz viabilizar e estimular mecanismos que reduzam os impactosdo fim do relacionamento e da prática da alienação parental sobre a prole estimulando aconvivência e a solidariedade familiar. Dessa feita, a mediação se apresenta comoinstrumento adequado para a espécie de conflito familiar que carrega consigo uma forte cargaemocional exigindo dos envolvidos um maior preparo psicológico, além do conhecimentojurídico atinente ao caso220. Logo, considera-se mediação a participação de um terceiro imparcial ao conflito quefacilitará o diálogo, por vezes inexistente entre os conflitantes, e auxiliará as partes estimulando a conversação e o fechamento de uma decisão que será conclusiva para os envolvidos. Decisão essa tomada pelos conflitantes que chegarão a um consenso, inexistindouma decisão prolatada e imposta pelo mediador, que funciona como uma ponte de comunicação entre os mediandos221. Apresentando-se a mediaçãocomo meio ideal de resolução familiar, haja vista que os próprios envolvidos tomamconhecimento e ciência de suas atitudes, sopesando as consequências, seus atos eresponsabilidades afastando, dessa forma, a típica atitude de “transferência deresponsabilidade para a figura do juiz, buscando nele solução mágica e instantânea para todos os conflitos”222. A mediação, método que modifica o conflito pelo diálogo, fortifica os laços parentaise se apresenta como uma boa forma 220 FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 299 221 BARBOSA, Águida Arruda. A linguagem da inclusão. In: Boletim IBDFAM, nº 67, Ano 11, março/abril 2011. p. 4 222 FIORELLI, José Osmir; MANGINI, Rosana Cathya Ragazzoni. Op. cit., p. 299 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 505 de liderar o conflito e a comunicação entre os entes, alémde atuar como um centro de convergência entre a família, o Direito e a sociedade facilitando aconcretização dos princípios constitucionais, norte do ordenamento jurídico, “devolvendo aosenvolvidos no processo de mediação a capacidade de responsabilidade por seus atos, pois é nafamília que os modelos de relacionamento são apreendidos e utilizados nas relações sociais”223. Segundo Águida Arruda Barbosa,224 a mediação é um artifício social com fulcro noconhecimento teórico e que faz uso da linguagem ternária,225 de inclusão em contraposição alinguagem binária (“ou”), que é excludente, abarcando vários caminhos a serem seguidos adepender dos envolvidos na mediação e do alcance do mediador encarregado do caso.Logo“trata-se da dinâmica da intersubjetividade, visando ao exercício da humanização do acesso àjustiça, afastando qualquer forma de julgamento”226. Nessa seara, a mediação aborda a comunicação entre as partes conduzidas pelomediador que, nada julga ou decide, apenas busca a conscientização dos mediandos para queeles se comuniquem e busquem uma solução por si “com inclusão de ideias, de respeitomútuo e de reconhecimento das diferenças”227 almejando a comunicação dos envolvidos, umavez que o acordo em si não é objeto direto da mediação, mas simples consequência. Essaforma de resolução de pacificação deve ser estimulada por políticas públicas, uma vez que éarraigado em nossa cultura o cunho litigioso e conflituoso das relações estimulando o binômiovencedor versus vencido nas lides processuais. Para tanto, todavia, é primordial aperfeiçoar osistema da mediação no País além de, concomitantemente, educar as pessoas para uma culturade paz por meio do diálogo e não do embate, o qual por vezes perdura o conflito e apenas trazdesgaste aos envolvidos. 223 224 225 228 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 121 BARBOSA, Águida Arruda. Op.cit.,p. 3 Nos dizeres de Águida Arruda Barbosa “a linguagem ternária representa a concretude da filosofia da discussão”, o que condiz perfeitamente com o ideal proposto pela mediação. 226 BARBOSA, Águida Arruda. Op. cit., p. 3 227 Id. p. 4 Capa Sumário 4.1.1 O princípio da intervenção mínima A dicção legal do art. 226, §6º da Carta Magna228 ratificou a tendência estatal deredução da intervenção na vida privada valorizando a intimidade e a autonomia dasfamílias229. Assim, a priori, o papel do Estado restringe-se à tutela e ao apoio assistencialgarantindo aos integrantes da família que vivam em um ambiente saudável e digno quefomente o melhor desenvolvimento dos indivíduos envolvidos230. Dessa forma, observa-se oredimensionamento da atuação do Estado afastando-o das decisões tomadas pela famíliapreservando sua autonomia e privacidade. Todavia, a família não está desassistida, haja vista que o Estado está autorizado a intervir na mesma sempre que “houver ameaça ou lesão a interesse jurídico de qualquer dos integrantes da estrutura familiar,”231 seja em desfavor de terceiros ou dos próprios familiaresresguardando, assim, a incolumidade física e psíquica de cada um e permitindo odesenvolvimento pleno e saudável de seus membros. 4.2 DISTINÇÃO ENTRE NEGOCIAÇÃO, CONCILIAÇÃO E ARBITRAGEM Enquanto a mediação “promove uma reflexão sobre o valor positivo do conflito, o quefaz com que seus partícipes, sob a [...] Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. 229 LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 49 230 PEREIRA, Rodrigo da Cunha apud GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., p. 104 231 GAGLIANO, Pablo Stolze; FILHO, Rodolfo Pamplona. Op. cit., p. 104 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização atitude eqüidistante (sic) do mediador, libertem-se de suacarga destrutiva”232 a negociação consiste, basicamente, na inexistência de um terceiroinfluente sendo uma conversa entre os participantes do conflito que visam uma resoluçãoamigável caracterizando-se pela “conversa direta entre os envolvidos sem qualquerintervenção de terceiro como auxiliar ou facilitador”233. Assim, a conciliação pode ocorrer antes ou durante o processo e, com a participaçãodo conciliador que liderará a conciliação, incorrerá na formação de um título executivo,objetivando “formalizar um acordo e pôr fim à controvérsia ou ao processo judicial”234. A diferença crucial da conciliação para a mediação reside na pessoa que conduz osprocedimentos, enquanto o conciliador emite sua opinião e auxilia as partes no que eleacredita ser o melhor acordo para os envolvidos, o mediador conduz o procedimento damediação “abstendo-se de assessorar, aconselhar, emitir opinião e de propor fórmulas deacordo,”235 haja vista que o cerne da mediação é imbuir aos participantes a ideia deautorresponsabilidade. No que tange à arbitragem, regulamentada no ordenamento brasileiro pela Lei 9.307/1996, ela consiste na faculdade das partes de escolherem essa forma de resolução deconflito, por meio de compromisso arbitral236 ou cláusula compromissória,237 e no qual ANDRADE, Gustavo. Mediação familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JUNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de. (Coord.). Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: Juspodivm, 2010. p. 506 232 233 CALMON, Petrônio. Fundamentos da mediação e da conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 113 234 MILANEZ, Márcia; MAIA NETO, Francisco; VELOSO, Beatriz Bovendorp. Conciliação e mediação. Disponível em: <http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=663>. Acesso em: 14/04/2012 235 236 CALMON, Petrônio. Op. cit., p. 144 Art. 9º, Lei 9.307/96 O compromisso arbitral é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial. 237 Art. 4º, Lei 9.307/96 A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os Capa Sumário 507 oárbitro proferirá uma decisão vinculativa às partes podendo “somente ser realizada porvontade expressa dos envolvidos no conflito ou prevista em contrato antecedente”238. 4.3 A INTERDISCIPLINARIDADE E O INCENTIVO À MEDIAÇÃO É notório que “as disposições legislativas, bem como a forma como os processosjudiciais, por vezes, são encaminhados nas Varas de Família podem contribuir para acirrar acontenda entre os ex-parceiros”239 causando prejuízo à função parental. O fim de um relacionamento e a ocorrência daalienação parental ocorre sob as mais diversas variantes devendo-se “favorecer o diálogo nogrupamento familiar, ao mesmo tempo que promovem o respeito aos direitos de pais, mães e filhos na família pós-divórcio”240. Nesse esteio, observa-se a tendência contemporânea de preocupação com aincolumidade psíquica dos indivíduos que deve ser priorizada por meio de mecanismos quevisem “mais à convivência familiar do que à punição de seus membros”241 como a mediaçãofamiliar, a qual ainda auxilia na concretização dos princípios constitucionais vigentesrechaçando o binômio diagnóstico versus punição. Assim, tem-se que repensar o “enfoquesobre o indivíduo; [as] patologias como explicação para os atos humanos, e apunição/tratamento como solução de problemas sociais”242. Ademais, apesar da necessidade do auxílio de outras áreas do saber para a atuação damediação e no combate a alienação parental, é forçoso atentar para a “questão do litígioconjugal [que] deve ser analisada não por um viés psiquiátrico, que prioriza o exame doindivíduo, mas por uma perspectiva sócio-histórica, que litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato. 238 239 240 241 242 CALMON, Petrônio. Op. cit., p. 97 SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 41 Ibid. p. 48 Ibid. p. 187 Loc cit. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização não opõe indivíduo e sociedade”243. Posição essa adotada por Wânia Lima que defende que a celeuma extrapola a esfera jurídicaabrangendo “uma questão psicojurídica, que envolve conflitos da dinâmica profissional dodireito, mas acima de tudo, abrange a subjetividade humana, objeto atual de estudo da própriapsicologia”244. Assim, a “mediação interdisciplinar contém (sic) a contribuição simultânea de muitosoutros saberes. Trata-se de um universo de reflexões do conhecimento”245. A necessidade de uma equipemultidisciplinar (com psicólogos, assistentes sociais e psiquiatras) para auxiliar na mediaçãodecorre da existência de vários aspectos subjetivos246 subjacentes aos conflitos de alienaçãoparental que demandam a combinação de conhecimentos de diversas áreas. A mediação deve ser divulgada e criada uma estrutura para ser realizada para que aspessoas se sintam seguras na escolha desse procedimento para resolver os conflitos oriundosda alienação parental. A mediação proporciona uma série de vantagens, dentre elas, a facilitação nacomunicação familiar, mormente após o fim do relacionamento quando os envolvidos estãomais fragilizados, o auxílio no processo psicológico de perda valorizando odiálogo e o respeito entre os mediandos.E, acima de tudo, a incorporação de uma maiorresponsabilidade e consciência às partes facilitando o cumprimento de eventuais acordos edecisões tomadas, haja vista 243 Ibid. p. 198 244 LIMA, Wânia Claúdia Gomes Di Lorenzo. A produção de provas pessoais por crianças e adolescentes: uma questão interdisciplinar. In: PAULO, Beatrice Marinho. (Coord.). Psicologia na prática jurídica: a criança em foco. Niterói: Impetus, 2009. p. 276 245 BARBOSA, Águida Arruda. Mediação familiar: uma vivência interdisciplinar. In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Org.). Direito de Família e Psicanálise: rumo a uma nova epistemologia. Op. cit., p. 344 246 GUIMARÃES, Ana Cristina Silveira; GUIMARÃES, Marilene Silveira. Guarda – um olhar interdisciplinar sobre casos judiciais complexos. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias. (Org.) Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 480 Capa Sumário 509 que “a cultura da mediação muda a perspectiva e o olhar sobre o conflito”247. Rodrigo da Cunha ao relatar a importância da mediação prescreve que a mesmavisa: Desestimular a briga ao instalar a lógica conflitante que constrói histórias de degradação do outro para instalar a lógica consensual em que se pode vislumbrar aresponsabilidade de cada um por suas escolhas e atitudes de modo a não buscar nooutro as causas de sua infelicidade, do insucesso conjugal e do seu desamparo estrutural248. Pode-se afirmar a existência de uma cultura de litigiosidade do brasileiro que enxergao Judiciário como primeira opção para resolver as celeumas, “em decorrência desse aspectocultural, o número de mediadores e de interessados em praticar essa atividade é inexpressivoem face das dimensões e da população do país”249.Demanda-se tempo e investimento para setransmudar de uma cultura conflituosa para uma de diálogo e complementaridade. Nessesentido preleciona Petrônio Calmon que “qualquer empreendimento complexo somente ébem-sucedido quando qualificado por essas duas atividades: planejamento e coordenação”250. É crescente, porém, ainda incipiente a quantidade de pessoas que optam pela mediaçãopara resolver seus conflitos, seja por falta de conhecimento desse instituto, seja pela cultura doenfrentamento arraigada em nossa história ou mesmo pela falta de estrutura disponibilizada. 247 248 249 250 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Op. cit., p. 225 Loc cit. CALMON, Petrônio. Op. cit.,p. 139 Ibid. p. 318 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 4.4 A MEDIAÇÃO E O MEDIADOR Um dos maiores pontos distintivos da mediação para o processo consiste na amplitudede atuação da mediação que transborda os limites objetivos delimitados pela lide propiciandoaos envolvidos uma compreensão melhor de seus interesses, compatibilizando-os. Como esclareceMarilene Marodin e Stella Breitman a mediação facilita a resolução da disputa, “o que nãosignifica resolver o conflito ou mesmo chegar a um acordo. Ele alcança as ferramentas para aspessoas refletirem sobre o que está acontecendo”251. Apesar de ser imparcial o mediador “se vale de técnicas especiais ecom habilidade escuta as partes, as interroga apaga o problema, cria opções e tem como alvoque as partes cheguem à sua própria solução para o conflito (autocomposição)”252.Esseterceiro imparcial estimulará as partes para que elas desenvolvam seus próprios recursos paraque transformem o conflito, estimulando o diálogo entre elas tornando-o mais claro e direto eidentificando os principais pontos que dão origem ao conflito intervindo “quando as partesinterrompem o diálogo, auxiliando-as a retomarem as negociações e estimulando a procura desoluções adequadas às suas expectativas e realidades”253. Nesse esteio, pode ser mediador qualquer profissional, seja da área do Direito, daPsicologia, da Assistência Social, desde que se apresente capacitado e qualificado para afunção “por entidades reconhecidas e que ofereçam, além da teoria, a possibilidade doexercício da mediação, pois a mediação se aperfeiçoa com a prática do procedimento”254. 251 MARODIN, Marilene; BREITMAN, Stella. A prática da moderna mediação: integração entre a psicologia e o direito. In: ZIMERMAN, David; COLTRO, Antônio Carlos Mathias (Org.). Aspectos psicológicos na prática jurídica. Op. cit., p. 502 252 CALMON, Petrônio.Op. cit. p. 121 253 THOMÉ, Liane Maria Burnello. Op. cit., p. 125 254 Loc cit. Capa Sumário 511 Diante dessa exposição depreende-se a magnitude da importância do mediador que,ainda que imparcial e neutro, lidera a mediação modificando as vidas dos envolvidos. 4.5 MEDIAÇÃO NO COMBATE À ALIENAÇÃO PARENTAL O incentivo à mediação deve ser feito por meio da disseminação dessa forma deresolução de conflito e de suas benesses, bem como de uma melhor estrutura e preparação dosprofissionais envolvidos para que se torne uma opção confiável às partes demonstrando que amediação é a forma mais eficaz e vantajosa, especialmente na esfera emocional. Nessa seara, valoriza-se o caráter globalizante que se reveste a alienação parental quenão deve ser determinada por uma única causa e que, tampouco, apresenta apenas umaconseqüência demandando dos profissionais um estudo complexo e em conjunto dosindivíduos e da dinâmica familiar para, só assim, extrair um laudo mais acurado e com menosequívocos sobre a intensidade e extensão da alienação na família255. O rol de punições previstas ao alienador pela legislação brasileira (Lei 12.318/2010,art. 6º274) que variam desde a multa até a perda do poder familiar segue um ultrapassadométodo e hábito de punir para educar, método esse cada vez mais condenado, haja vista mostrar-se inócuo. Destarte, preza-se pela não punição e sim pela conscientização por meio da mediação,a qual se apresenta como instrumento para imbuir a responsabilidade dos atos aos envolvidos. Por exemplo,o afastamento do alienador nem sempre deve ser a medida mais adequada e vantajosa aomenor podendo “em realidade, ocultar uma outra forma de violência contra a própria criança,causando a ela ainda mais sofrimento”256incorrendo, por 255 256 SOUSA, Analicia Martins de. Op. cit., p. 47 Ibid. p. 177 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização vezes, em punição ao filho quando oque ele mais necessita é proteção. Nesse sentido, a mediação agirá sobre a essência do problema causador da alienaçãoparental em contraposição ao processo judicial, conformeexpõe Maria Berenice: A sentença raramente produz o efeito apaziguador desejado pela justiça.Principalmente nos processos que envolvem vínculos afetivos (...) A resposta judicial jamais responde aos anseios de quem busca muitomais resgatar prejuízos emocionais pelo sofrimento de sonhos acabados do quereparações patrimoniais ou compensações de ordem econômica257. O meio mais efetivo é o que busca a conscientização e mudança de atitude do alienador. Ademais, é imperioso utilizar “tempo e habilidadepara se buscar motivações e comunicações latentes da criança e sensibilidade para interpretarcomportamentos”258o que transcende a interpretação puramente legal. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A sociedade se transformou, a família mudou e a forma como as relações são regidastambém se modificou. A família brasileira se transformou substancialmente ao longo dos anospassando de um núcleo patriarcal, patrimonial para uma esfera baseada na afetividade, napluralidade e na igualdade dos indivíduos valorizando as máximas constitucionais. Nessa seara, a transformação ocorrida na família, bem como, na realidade brasileirademanda uma nova postura e atitude em face da resolução dos conflitos devendo-se superar aarraigada cultura de litigiosidade presente nos brasileiros para conscientizá257 258 Capa DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Op. cit., p. 83 LIMA, Wânia Claúdia Gomes Di Lorenzo. Op. cit., p. 276 Sumário 513 -los e educá-loscom vistas à autocomposição. Para tanto, oPoder Público deve investir em políticas públicas que almejem difundir os benefícios da suautilização ampliando, assim, a esfera de atuação dos meios de autocomposição. Há muitas questões não ditas, subjacentes ao conflito judicial, que o processo não irásolucionar. Apenas uma análise aprofundada da origem do problema, feita por meio damediação, poderá desvendar. Contudo, o primeiro passo da mediação dentro de um caso dealienação parental é conscientizar o alienador acerca dos males causados aos filhos. Isto é,chamar sua atenção acerca da responsabilidade de seus atos para que, ciente da importância desua figura na família, se torne mais fácil a reversão de sua atitude, partindo do próprio aconscientização e o desejo de mudar para evitar danos aos filhos. Ademais, com a caracterização da alienação parental no ordenamento jurídicobrasileiro, por meio da Lei nº 12.318/2010, os afetados com essa prática passaram a serassistidos pelo Direito que passou a tutelá-los especificamente. Todavia, as previsõespunitivas ao alienador elencadas na Lei, que demandam um processo judicial, comumente serevelam ineficazes não coibindo os agentes de perpetuarem o ato de alienação. Ante o exposto, vislumbra-se a necessidade de mudança de pensamentoconscientizando de que o litígio judicial pode ser mais prejudicial e danoso aos envolvidos doque próprio conflito sendo fundamental ofertar aos indivíduos um meio de solucionar osconflitos, oriundos da alienação parental, pela via da mediação. Almeja-se, assim, a manutenção dosvínculos parentais saudáveis e da parentalidade responsável visando sempre a aplicabilidade eo não esvaziamento dos princípios constitucionais. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização REFERÊNCIAS ALMEIDA, Lara Oleques de. A função social da família e a ética do afeto: transformações jurídicas no direito de família. Disponível em: <http://revista.univem.edu.br/index.php/REGRAD/article/ viewFile/43/70>. Acesso em: 24/09/2011. ANDRADE, Gustavo. Mediação familiar. In: ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JUNIOR, Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (Coord.). 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Capa Sumário PONDERAÇÕES SOBRE OS IMPACTOS PROCESSUAIS DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS Daniela de Fátima Ramos Santiago MELO Maria Cristina Paiva SANTIAGO RESUMO: O presente trabalho de conclusão de curso, cujo título é “ Ponderações sobre os impactos processuais dos alimentos gravídicos” tem como objetivo analisar o recebimento de alimentos por um nascituro, possível em nosso ordenamento jurídico desde a publicação da Lei 11.804/08. Foi analisado o direito à sobrevivência do nascituro, com um período de gravidez estável para a gestante e para o nascituro. Também foram analisadas as críticas à lei dos alimentos gravídicos, pela falta de comprovação taxativa de quem é o pai para concessão dos alimentos. Se comentou sobre o direito que a mulher grávida possui, mediante propositura da ação antes do nascimento da prole, de buscar o ressarcimento e o auxílio financeiro do suposto pai, na parte que lhe cabe. Palavras-chaves: Alimentos Gravídicos. Nascituro. Gestante. Ressarcimento. 1 INTRODUÇÃO Esta pesquisa analisa os estudos jurídicos sobre o tema alimentos gravídicos, em que o nascituro, através da sua genitora, vai poder adquirir direitos aos alimentos, ou seja, tutelar o direito à sobrevivência. Os alimentos gravídicos se baseiam na Lei 11.804/2008 e perante as Teorias da personalidade. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização Asa abordagens deste trabalho foram estabelecidas acerca dos alimentos que estão relacionados ao direito à vida e um dever de amparo entre parentes, cônjuges e companheiros, conforme dispõe o art. 1.694 do CC. O início da personalidade acontece com o nascimento com vida do ser humano, mas é salvaguardado pelo Código Civil, desde a concepção, os direitos do nascituro. É preciso dar importância ao bem estar e a saúde da mãe durante esses nove meses de gestação, pois não seria justo que as despesas necessárias no período pré-natal ficassem todas por conta da gestante. Vale ressaltar que, a mulher pode estar desempregada no momento, e não podendo arcar com os gastos, sem falar que, pode acontecer de ser uma gravidez de risco, com problemas, colocando a vida dela e do bebê em perigo. É indispensável a responsabilidade do pai de contribuir para o desenvolvimento saudável da criança, pois a lei visa proteger a gestação, e não há como separarmos a gestante do nascituro, sendo assim, é por meio dela que irá se efetivar o direito do filho, e esta é quem será a representante dele. Negar tal direito ao nascituro é negar o próprio direito fundamental à vida. Não há como esperar provas contudentes, salvo as presunções de paternidade que basicamente dispensam qualquer outra prova, deve a parte autora ter alguma prova de seu relacionamento, mas também deve o magistrado levar em consideração a presunção da boa-fé da parte autora, pois entende-se que a prova de relacionamentos afetivos, principalmente aqueles poucos duradouros são de difícil produção. Infelizmente, é observado que esta ação será a forma que algumas mulheres terão para obter vantagens ilícitas de ex-parceiros ou mesmo de homens que nunca tiveram qualquer relacionamento. Porém, concordar com essa posição, é contrariar toda a construção jurídica de presunção de boa-fé. Não há dúvidas de que muitas gestantes irão abusar desse direito concedido, mas Capa Sumário 519 nestes casos, responderão severamente pelo seu ato, pois há de ser lembrado que o abuso de direito é ato ilícito e consequente fonte para indenização por danos materiais ou morais. Não se pode prejudicar as gestantes que têm na Ação de Alimentos Gravídicos a única forma de obter um auxílio para gestação e atendimento aos interesses da criança de forma digna, por conta da má utilização do instituto por algumas mulheres de má índole. 2 REFLEXÕES SOBRE A PERSONALIDADE JURÍDICA DO NASCITURO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O nosso Código Civil prevê em seu art. 2º: “a personalidade civil da pessoa começa com o nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.” O texto legal afirma que a personalidade jurídica não inicia com a concepção, como ocorre em outro países.259 Mas apesar de ainda não possuir personalidade jurídica, o nascituro deve ter seus direitos preservados. Três teorias principais discutem o tema da personalidade jurídica dos nascituros: Teoria Natalista, Concepcionista e da Personalidade condicional. Para a teoria natalista,260 o nascituro só adquire personalidade jurídica com o nascimento com vida. Esta teoria foi adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, segundo a doutrina majoritária conforme Maria Helena Diniz, Pablo Stolze Gagliano e Silvio de Salvo Venosa, por exemplo. A teoria da personalidade condicional subordina os direitos do nascituro a uma condição suspensiva que consiste no nascimento com vida. Ape259 Países onde vigora a Teoria Concepcionista: França, Holanda e Argentina, por exemplo, dentre outros. DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.21.ed.rev.,atual. São Paulo: Saraiva, 2003. v.1.p. 179-180. 260 Países onde vigora a Teoria natalista: Itália, Alemanha e Brasil. FREITAS, Douglas Philipps. Alimentos gravídicos: comentários à Lei 11.804/2008 – 3. ed. -Rio de Janeiro: Forense,2011.p. 42 Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização nas nascendo com vida o nascituro passa a ser reconhecido como pessoa, de acordo com Yussef Said Cahali. Já a teoria concepcionista defende que todos os direitos e obrigações do nascituro começam da concepção, de acordo com Silmara Chinelato. Mesmo antes da lei dos alimentos gravídicos, a doutrina já tinha preocupações com a dignidade da pessoa, da grávida e do nascituro. Autores como Pontes de Miranda261 já afirmavam que durante a gestação pode ser preciso à vida do feto e do ente humano após o nascimento, outra alimentação ou medicação. Dizia ele que os cuidados não pertencem à mãe, mas ao concebido. Com os alimentos gravídicos se tornou possível proteger o nascituro, concedendo alimentos em favor destes seres humanos. A lei dos alimentos gravídicos262 preservou o nascituro por meio de sua mãe, a gestante. Esta previsão legal se deu por conta da discussão doutrinária envolvendo as teorias natalistas e concepcionistas, ainda não definida no direito civil brasileiro. Portanto, não era possível destinar os alimentos diretamente ao nascituro, mas sim em favor da mãe, para que os beneficie por consequência, já que estão em desenvolvimento no ventre materno. Antes da lei 11.804/2008 a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul263 já concedia os alimentos para os nascituros, mas apenas nos casos de presunção legal de paternidade, conforme dispõe o art. 1.597 do CC264. A partir do nascimento 261 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito de Família. Campinas: Bookseller, 2001.p.292. 262 Lei 11.804/2008, publicado em 5 de novembro de 2008. 263 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Ação de Alimentos, n 596067629. Rel. Des. Tupinambá Miguel do Nascimento. Jugado em 17/07/96. Disponível em :< http:// www. tjrs.jus.br/site> Acesso em 22 out.2014. 264 Art. 1.597 CC.Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes Capa Sumário 521 com vida, a titularidade dos alimentos até então gravídicos passa a ser do recém-nascido, sendo convertidos em pensão alimentícia, podendo estes alimentos serem revistos posteriormente para se adequarem à necessidade da criança. A mãe nos alimentos gravídicos atua em nome próprio no período de gestante, como representante legal do nascituro, sendo substituta processual após o nascimento da criança, pois o titular da ação será o filho que defenderá em nome próprio seus direitos. Os alimentos gravídicos representam uma verdadeira evolução no direito de família, pois concedeu proteção real ao nascituro. Por outro lado, é importante que existam políticas públicas265 inibitórias da maternidade irresponsável, dando preferência a uma gravidez planejada. 2.1 O DIREITO À VIDA E OS ALIMENTOS GRAVÍDICOS Nascituro é uma palavra que deriva do latim e significa criança que está para nascer, segundo Cristiano Chaves de Farias. O direito à vida no nascituro tem uma maior proteção com os alimentos gravídicos. A lei salvaguarda os interesses do nascituro, que são a vida, honra, imagem, nome, principalmente, e também, os alimentos. O fato do nascituro possuir proteção legal provoca um dissenso doutrinário, uma parte acredita que os nascituros possuem personalidade jurídica, sendo estes adeptos da teoria concepcionista. Já outros doutrinadores rejeitam a personalidade jurídica dos nascituros, estes defensores da teoria natalista, como já comentado anteriormente no tópico anterior. de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 265 Políticas públicas são conjuntos de programas, ações e atividades desenvolvidas pelo Estado diretamente ou indiretamente, com a participação de entes públicos ou privados, que visam assegurar determinado direito de cidadania, de forma difusa ou para determinado seguimento social, cultural, étnico ou econômico. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização O Código Civil brasileiro traz em seu art. 2º: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida: mas a lei põe a salvo, desde à concepção, os direitos do nascituro.” Mesmo para os doutrinadores que não aceitam a personalidade jurídica do nascituro, não há discussão de que para os nascituros devem ser assegurados o direito à vida, observando o princípio da dignidade humana. No Brasil o aborto é crime, contra a vida humana pelo Código Penal Brasileiro, apenas com exceções quando há risco de vida da mãe causado pela gravidez, quando essa é resultante de um estupro e se o feto não tiver cérebro. Quando essa decide abortar, deve realizar o procedimento gratuito pelo Sistema Único de Saúde.Como os alimentos são uma consequência direta do direto à vida, aos nascituros não pode ser negado o direito aos alimentos. Os alimentos gravídicos dificilmente eram concedidos sem a comprovação da paternidade antes da Lei 11.804/08, de acordo com a maioria da jurisprudência. A gestante tinha que aguardar o nascimento do bebê para que pudesse ajuizar uma ação investigatória de paternidade. Nesse período a mulher precisa de cuidados maiores e acaba existindo mais despesas, como alimentação especial, assistência médica e etc. O Código Civil de 1916 já fazia a previsão de por a salvo os direitos do nascituro desde a concepção. Leis esparsas anteriores ao novo código civil também protegiam o nascituro, como a lei 9434/97. O Estatuto da Criança e do Adolescente também protege o nascituro em alguns artigos, como no art. 8º, que determina o atendimento pré-natal à gestante pelo Sistema Único de Saúde. Até mesmo o Código Penal preserva o nascituro quando prevê crime o aborto provocado. Os alimentos gravídicos, pela sua natureza, precisam ser deferidos rapidamente pelo Judiciário, de acordo a proteção à maternidade e à infância, descrito do art. 6º, caput da CF que trata dos direitos sociais266. Não é aceitável que perdure por todo o perí266 Capa Art. 6º CF. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, Sumário 523 odo gestacional, pois pode comprometer o bom desenvolvimento do nascituro e por consequência, da criança, caso a gestante não tenha condições de arcar com as despesas. A Lei dos alimentos gravídicos ingressou no mundo jurídico com o objetivo de proteger os nascituros gestados principalmente por mães solteiras sem condições financeiras de bem alimentar a futura criança. Se a mulher for casada, se aplica o art. 1.597 do Código Civil, o qual considera presumida a paternidade do marido, se for alegada pela gestante casada. O direto à vida é uma dos direitos das personalidade mais importantes. A proteção do direito à vida é garantida com os alimentos gravídicos, pois sem os cuidados necessários, a criança no ventre da sua mãe pode ter o desenvolvimento comprometido e até perder a vida, sendo não observado o princípio da solidariedade que é a base do direito alimentar. A gestante tem o dever de cuidar bem do nascituro, mas deve ter o auxílio do pai, nem que seja apenas financeiro, já que a responsabilidade pela integridade da criança deve pertencer ao pai e a mãe em igualdade de condições. Sobre os alimentos ao nascituro, já sustentava Pontes de Miranda (2001,p. 292): “[…] no caso de mulher, que engravidou e que tem, por este fato, direito a maior prestação de alimentos, não se leva em conta o ter nascido ou não com vida, o filho. O que importa é o alimento da mãe durante o tempo de gravidez e o alimento indireto do feto. O que deve alimentos ao filho deve-os à mãe, durante a gestação e a amamentação.” A lei de alimentos gravídicos sedimentou o posicionamento concepcionista do ordenamento jurídico pátrio, acerca da personalidade do nascituro. O direito à vida inicia-se desde a concepa moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização ção no útero da mãe, e também nasce na concepção o direito à percepção dos alimentos pelo nascituro. Sobre a personalidade jurídica do nascituro, observa Maria Helena Diniz (1999.p. 09): “Na vida intrauterina, tem o nascituro personalidade jurídica formal, no que atina aos direitos personalíssimos e aos da personalidade, passando a ter personalidade jurídica material, alcançando os direitos patrimoniais que permaneciam em estado potencial, somente com o nascimento com vida. Se nascer com vida, adquire personalidade jurídica material, mas se tal não ocorrer, nenhum direito patrimonial terá” A gestante pleiteia os alimentos em nome do nascituro que carrega em seu ventre como verdadeira representante267, para obter os cuidados necessários para o sustento durante a gestação, bem como medicamentos ou atendimentos médicos e hospitalares. Os alimentos gravídicos pertencem ao nascituro, não à gestante, muito embora a legitimidade ativa para ajuizar a ação seja da gestante. Assim, a concepção pode ser considerada a partir da nidação do ovo nas paredes do útero, sendo a partir deste momento o nascituro merecedor do direito à vida e alimentos, para a teoria concepcionista, segundo Fernanda Martins Simões. O conceito jurídico dos alimentos desde as ordenações filipinas era ampliado em relação ao estrito limite de mantimentos e cura, incluindo vestuário e habitação. No atual conceito de alimentos, entram as necessidades intelectuais, morais, recreativas e sociais, reconhecidas como necessidades da pessoa. O conceito 267 Art. 3o CC. São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade. Capa Sumário 525 jurídico dos alimentos pode ser definido como valor destinado a satisfazer as necessidades naturais e sociais do ser humano em sentido pleno, fixados com base nesta necessidade. A teoria moderna acerca da fixação dos alimentos é liderada por Rui Portanova, desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Ele fala em três itens fundamentais para a fixação dos alimentos: necessidade, disponibilidade e proporcionalidade, segundo Fernanda Martins Simões. O ordenamento jurídico vigente no Brasil ampliou o dever de alimentos, conforme previstos nos artigos 227, caput268 e 230269 da Constituição Federal e o novo Código Civil de 2002, dos artigos 1694 a 1710 CC. Neste cenário de ampliação da importância dos alimentos em nosso ordenamento jurídico, os alimentos gravídicos vieram proteger o nascituro, responsabilizando o pai desde a concepção na concorrência de todas as despesas decorrentes da gravidez, forçando-o a cumprir uma paternidade responsável. Os alimentos gravídicos podem ser conceituados como “alimentos prestados durante o período gestacional, em que a grávida imprescinde para ter um pleno desenvolvimento saudável do bebê que está em seu ventre” (Simões, 2013, p.208). Para se chegar aos alimentos gravídicos, foram considerados alguns princípios constitucionais, principalmente o da dignidade da pessoa humana, pois se considera um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente 268 Art. 227 CF. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. 269 Art. 230. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida. § 1º - Os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares. § 2º - Aos maiores de sessenta e cinco anos é garantida a gratuidade dos transportes coletivos urbanos. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas. Tal princípio teve seu conceito expresso na Declaração Universal dos Direitos Humanos no seu artigo 1º270 e foi efetivado internacionalmente com o Pacto de São José da Costa Rica. Como o período da gestação requer muitos cuidados, pois a mulher fica mais vulnerável, os alimentos gravídicos devem cobrir todas as necessidades da mulher e do nascituro, como ingestão de suplementos vitamínicos, alimentação especial, assistência médica e psicológica, internações, o parto, dentre outras. As despesas a que se refere a lei dos alimentos gravídicos são direcionadas apenas ao período gestacional e em benefício do nascituro, não abarcando gastos pessoais da gestante, que devem suportados pela mãe ou por parentes. A finalidade dos alimentos gravídicos é garantir um nascimento digno para a criança, com um comprometimento dos pais na saúde e segurança do nascituro que se tornará uma criança. Alimentos estes devidos deste a concepção. 2.2 A LEI 11.804/08 : UMA ANÁLISE À LUZ DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO ALIMENTAR A lei 11.804/2008 foi publicada no Diário Oficial da União em 6 de novembro de 2008. Ela foi vetada parcialmente pelo Presidente da República Luís Inácio “Lula” da Silva, dos seus doze artigos originais restaram seis, mas estes foram suficientes para garantir os alimentos gravídicos no país. Esta lei também trouxe bastante polêmica, pois abria a possibilidade de uma mãe solicitar alimentos de um homem sem comprovação de paternidade. 270 Artigo 1: Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Capa Sumário 527 A lei dos alimentos gravídicos veio do projeto de lei 7.376/2006, proposto pelo senador Rodolpho Tourinho no dia 28 de julho de 2006. (FREITAS, 2011, p.19). Após dois anos e alguns meses de tramitação no Congresso Nacional, a lei foi aprovada, em um procedimento relativamente rápido para os padrões do congresso nacional. O projeto de lei enfrentou críticas do IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família. Dentre as críticas, estava a determinação do foro competente como o do réu, o que poderia prejudicar muito as mulheres grávidas, ainda observando que o foro deve ser privilegiado ao credor de alimentos. Tal artigo não permaneceu na lei aprovada. Outro artigo exigia exame pericial caso houvesse oposição à paternidade, exame este que poderia pôr em risco a vida da criança. Este dispositivo também não permaneceu na lei 11.804/08. Na época do projeto de Lei 7.376/2006 alguns operadores do direito imaginaram que a lei dos alimentos gravídicos traria uma avalanche de ações no judiciário com o objetivo único de retirar dinheiro de pessoas inocentes, acusadas de paternidade indevidamente, já que não haveria exigência de prova pericial. Entretanto, não foi o que ocorreu após a promulgação da lei, com um volume de ações bem inferior ao que se esperava e em sua grande maioria ajuizadas contra o verdadeiro pai. A lei 11.804/08 traz em seu art. 2º que os alimentos gravídicos deverão cobrir as despesas decorrentes do período de gravidez e as despesas adicionais, como alimentação especial, assistência médica e psicológica e outras despesas. Os alimentos devem ser custeados pelo futuro pai, considerando-se a contribuição da mãe na proporção de suas possibilidades econômicas, devendo ser avaliado pelo juiz o caso concreto. O art. 6º da lei determina que o juiz fixará alimentos gravídicos até o nascimento da criança, considerando sempre as possibilidades do futuro pai e as necessidades da futura mãe. Deve se ressaltar que os alimentos gravídicos se tornarão automaticamen- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização te em pensão alimentícia em favor da criança até que seja ajuizada uma ação revisional de alimentos. O artigo 7º prevê que o réu será citado para apresentar resposta em até cinco dias. A Lei 11.804/08 trouxe grandes avanços no direito de família, mesmo com poucos artigos conseguiu firmar os alimentos gravídicos no ordenamento jurídico nacional. 2.3 ASPECTOS POLÊMICOS DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS A Lei dos alimentos gravídicos tem alguns aspectos que podem ser considerados polêmicos. A titularidade da ação é um destes aspectos. A legitimidade ativa pertence à mãe e não ao nascituro, de acordo com a Lei 11.804/08. Os alimentos são dedicados na realidade ao nascituro e não para satisfazer as necessidades pessoais da mãe. As despesas da mãe devem ser decorrentes da necessidades da gestação. Deve ser observado que a pensão devida à criança após o nascimento se rege pela Lei de Alimentos 5.478/68. Esta lei exige uma prova pré-constituída, ou seja, junto a peticão inicial deve constar a prova, de que há um parentesco ou então pelo menos uma relação conjugal. Já na lei que protege o nascituro não há esta exigência, apenas devem existir indícios de paternidade. Estas comparações podem parecer que as leis são incongruentes, pois a exigência é bem maior para concessão de alimentos à criança após o nascimento. Pode se supor que a lei deveria exigir um teste de comprovação de paternidade para fins de concessão dos alimentos gravídicos. Mas este teste pericial deveria ser feito retirando líquido amniótico da gestante, o que poderia colocar em risco a gravidez, pois há intervenção cirúrgica. Por esta razão, não é prudente se realizar um teste pericial de comprovação da paternidade antes no nascimento do bebê. De acordo com a lei 11.804/08, a concessão dos alimentos Capa Sumário 529 gravídicos depende apenas de indícios de paternidade juntados aos autos da ação de alimentos. Todas as provas admitidas em Direito são aceitas para que se comprovem os indícios de paternidade. A fumaça do bom direito deve estar presente para que o juiz conceda os alimentos em favor do nascituro, condenando um suposto pai apenas pelos indícios. Decisões judiciais divergem quanto à avaliação das provas e da concessão dos alimentos gravídicos, por conta do subjetivismo na avaliação destes indícios de paternidade.Enquanto já houve concessão de alimentos gravídicos em razão de troca de e-mails entre a mãe e o suposto pai, outro Tribunal de Justiça negou os alimentos gravídicos mesmo com fotografias de relação entre a mãe e o suposto pai. Existe uma questão polêmica envolvendo os alimentos gravídicos no que diz respeito à possibilidade da mãe escolher qualquer pessoa para ser o réu da ação, já que não há exigência de prova robusta para concessão dos alimentos. Uma mulher pode chantagear um homem casado com quem ela mantenha relações extraconjugais, ameaçando entrar com ação de alimentos gravídicos mesmo sem saber se está grávida mesmo daquela pessoa. Ou até em uma situação extrema, uma mãe ajuizar uma ação de alimentos gravídicos citando como réu um homem com quem ela não tem qualquer relação afetiva, motivada por dificilmente existir possibilidade de restituição futura quando comprovada a não paternidade do acusado. Nestes casos, há evidente má-fé da autoria da ação, que deve ser condenada de acordo com os princípios gerais da responsabilidade civil discriminadas no Código Civil. Outra questão importante em uma ação de alimentos gravídicos é que o réu pode alegar que a gestante não mantinha relações sexuais exclusivamente com ele. Pode ser cogitado um litisconsórcio passivo necessário271 com os outros parceiros da fu271 Litisconsórcio é uma pluralidade de pessoas atuando como parte no mesmo polo da relação processual. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização tura mãe. Entretanto, quando existe apenas uma incerteza sobre o verdadeiro pai é difícil para o judiciário considerar o litisconsórcio passivo, pois há pequenas possibilidades de prova. Também existe o prejuízo de o processo poder se alongar por mais tempo, o que seria prejudicial ao nascituro, que necessita dos alimentos com urgência. Já em casos de violência sexual contra a mulher por mais de um homem o litisconsórcio passivo é viável, pois pode ser anexado aos autos a prova da violência sofrida pela gestante, como laudo médico e boletim de ocorrência, por exemplo. A defesa do réu calcada na pluralidade de parceiros sexuais da gestante configura uma dúvida que pode até favorecer a futura mãe e não o réu, como ocorre nas ações de investigação de paternidade, pois nos alimentos gravídicos a produção probatória deve ser superficial, apenas indícios já permitem ao juiz conceder os alimentos gravídicos em favor do nascituro(Simões, 2013 p. 220). Um outro aspecto polêmico, também bastante discutido em sede de análise da lei dos alimentos gravídicos é a má-fé que algumas gestantes poderiam se utilizar para responsabilizar homens sabidamente inocentes, se aproveitando do fato de que esta lei não exige a prova da paternidade para concessão dos alimentos gravídicos. Nestes casos, quando a gestante ajuíza uma ação sabendo que o réu não é o verdadeiro pai, se comprovado o ato de má-fé, o prejudicado poderá ser ressarcido futuramente, com base no art. 187272 do Código Civil, que reprime o abuso no direito de ação. O réu prejudicado poderá ingressar com ação de indenização pelos danos materiais e morais sofridos. Outro ponto polêmico é quando ocorre a omissão do verdadeiro pai, quando ele sabe que o filho é dele, permite que a mãe intente ação contra outro réu. Neste caso também cabe indeniza272 Art. 187 CC. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Capa Sumário 531 ção em favor do prejudicado réu, caso provada a má-fé do verdadeiro pai em se omitir ao tomar conhecimento do ajuizamento da ação de alimentos gravídicos contra outra pessoa. A dificuldade nestes casos reside na prova, pois não é fácil provar a má-fé do pai omisso, assim como não é fácil provar a malícia da mãe ao entrar com uma ação contra um réu sabidamente inocente. Como não é possível fazer o exame de DNA sem prejudicar a saúde do nascituro, é praticamente impossível obter prova conclusiva a respeito da paternidade do futuro bebê. O exame pericial de DNA pode ser feito logo após o nascimento da criança sem qualquer risco ao bebê, mas apenas após o nascimento. Atualmente na ação de investigação de paternidade, caso o suposto pai se recuse a fazer o exame de DNA, se presume273 a paternidade, esta uma presunção relativa expressa na lei 8.560/92, alterada em 2009. Ao nascer a criança, os alimentos gravídicos passarão a ser dirigidos a ela como titular, substituindo a gestante. Se o suposto pai, réu na ação de alimentos gravídicos, se recusar a fazer o exame de DNA, não se livrará da pensão alimentícia devido à presunção de paternidade legal. Entretanto, se a mãe se recusa ao exame de DNA após o nascimento da criança, a pedido do suposto pai que pagou os alimentos gravídicos durante a gestação, o juiz pode considerar a presunção de inocência do réu, pois não há motivos plausíveis para a mãe se esquivar do exame pericial de DNA após o nascimento do bebê. Outro ponto que deve ser abordado na seara alimentícia é sobre os alimentos avoengos, de responsabilidade dos avós da criança. Esta responsabilidade dos avós é subsidiária e complementar à dos pais, que devem compartilhar igualmente a responsabilidade pelos alimentos dos filhos. Os avós só respondem caso 273 Presunção é um processo racional do intelecto, pelo qual do conhecimento de um fato infere-se com razoável probabilidade a existência de outro ou o estado de uma pessoa ou coisa”. Cândido Rangel Dinamarco.p.213. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização o pai e a mãe não possuam qualquer condição de arcar com os alimentos da criança. O código civil traz esta previsão em seu art. 1.698274. O Conselho da Justiça Federal sumulou o entendimento de que os avós serão obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não-solidário, quando os pais estiverem impossibilitados de fazê-lo. Esta súmula é a 342275 do CJF (Conselho de Justiça Federal). Esta súmula na realidade visa a proteger os avós, que só devem ser chamados a pagar os alimentos em caso de completa impossibilidade dos pais e não de qualquer forma, assumindo muitas vezes a irresponsabilidade dos seus filhos, tendo que dividir as despesas próprias com os alimentos contando geralmente apenas com os poucos recursos auferidos dos proventos de aposentadoria. Se os avós da criança possuírem um boa condição financeira, ainda assim os pais não devem se esquivar de sua obrigação, os alimentos avoengos permanecem com um caráter subsidiário e complementar. A mãe da criança não pode ignorar o pai e solicitar os alimentos diretamente aos avós, por medida de justiça, pois quem detêm a responsabilidade de criar e educar os filhos são os pais. A doutrina considera que estes alimentos gravídicos em favor do nascituro devem ser ajuizados primeiramente em face do pai. Caso se verifique sua impossibilidade financeira nos autos do processo, os avós poderiam teoricamente fazer parte do proces274 Art. 1.698.CC Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide. 275 342 do CJF — Observadas as suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não-solidário, quando os pais destes estiverem impossibilitados de faze-lo, caso em que as necessidades básicas dos alimentandos serão aferidas, prioritariamente, segundo o nível econômico-financeiro dos seus genitores. Capa Sumário 533 so como réus. Mas neste caso não seriam exatamente alimentos gravídicos, mas alimentos em favor do nascituro, devidamente representado pela gestante nos autos do processo. A doutrina ainda diverge quanto a esta possibilidade dos alimentos avoengos ao nascituro, pois não há ligação parental da gestante com os avós paternos do bebê e por outro lado o nascituro sempre deve ser protegido conforme a lei de alimentos gravídicos. Por causa da possibilidade de responsabilização subsidiária dos avós, vários pais na prática deixaram de temer a prisão civil por inadimplemento da pensão alimentícia, já que na prática em muitas ações a justiça obriga os pais do devedor principal a arcar com o débito alimentício e livrar o pai da criança da prisão. Uma alternativa interessante, que se discute no meio jurídico, segundo Simões e Ferreira, para forçar o pai a pagar sem atrasos as parcelas da pensão alimentícia seria a inserção do nome do pai devedor nos serviços de proteção ao crédito, como o SPC e SERASA, por exemplo. Com o nome inscrito nestes órgãos de proteção ao crédito, a pessoa tem muito prejuízo, pois não pode fazer nenhum empréstimo, comprar produtos financiados nas lojas, terá dificuldades para firmar contratos de aluguéis, tomar posse em concursos públicos, dentre outros problemas financeiros. A inserção do nome do devedor de pensão alimentícia nos órgãos de proteção ao crédito pode ser perfeitamente aplicável aos alimentos gravídicos. Não há qualquer impedimento legal, mas a jurisprudência e doutrina em regra opõe resistência a esta sanção (Simões, 2013,p. 232) por não existir previsão expressa na legislação, não existe nenhuma norma que preveja a inclusão do nome do devedor de alimentos nos serviços de proteção ao crédito, como forma de efetivar a percepção da verba alimentícia pelo nascituro ou criança. Esta inserção pode ser também uma alternativa à prisão civil por inadimplemento da pensão alimentícia. Para sanar a falta de previsão legal no que diz respeito à inclusão do nome do pai devedor de pensão alimentícia, tramita Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização no Congresso Nacional o projeto de lei 7.862/2010, que pretende alterar o art. 733276 do CPC para possibilitar a inserção do nome do devedor de alimentos nos cadastros de restrição ao crédito. Em outros países, como na Argentina, já existe norma semelhante277 a esta do projeto de lei 7862/2010. Apesar de parecer uma boa proposta, tal projeto de lei foi arquivado em janeiro de 2011. Existe também o projeto de lei 7.841/2010, que visa alterar o mesmo art. 733 do Código de Processo Civil, regulamentando o protesto extrajudicial de dívidas alimentares, incluindo a possibilidade de criar um rol de maus pagadores de pensão, que deixem de pagar 3 parcelas seguidas de pensão ou 5 alternadas, evitando a prisão civil por dívida. Vozes contrárias a estas medidas de inserção dos devedores de pensão alimentícia no rol de maus pagadores alegam que o registro nestas listas viola os direitos individuais do devedor, como privacidade e intimidade. Por outro lado, os inadimplentes de pensão alimentícia causam um grave problema social, no caso dos alimentos gravídicos podem comprometer até a viabilidade do nascimento de uma vida, caso a gestante não possua condições mínimas para ter uma gravidez tranquila e segura. A inserção do nome do pai inadimplente no rol do maus pagadores ou nos serviços de proteção ao crédito seria mais uma segurança para a mãe e para o nascituro no caso de alimentos gravídicos de que o devedor deverá honrar a sua obrigação de prestação desses alimentos. 276 Art. 733.CPC Na execução de sentença ou de decisão, que fixa os alimentos provisionais, o juiz mandará citar o devedor para, em 3 (três) dias, efetuar o pagamento, provar que o fez ou justificar a impossibilidade de efetuá-lo. § 1oSe o devedor não pagar, nem se escusar, o juiz decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses. § 2oO cumprimento da pena não exime o devedor do pagamento das prestações vencidas e vincendas § 3oPaga a prestação alimentícia, o juiz suspenderá o cumprimento da ordem de prisão. 277 Lei 13.074 da Província de Buenos Aires que criou o registro de devedores alimentários morosos. Capa Sumário 535 2.4 QUESTÕES PROCESSUAIS DOS ALIMENTOS GRAVÍDICOS Neste item discorreremos sobre os aspectos processuais da ação de alimentos gravídicos, e acordo com a lei 11.804/08 e legislação aplicável. De acordo com a lei dos alimentos gravídicos, a mulher pode propor ação antes do nascimento do filho, de buscar o ressarcimento e o auxílio financeiro do suposto pai, na proporção dos recursos de cada um deles, desde a concepção até o parto, sendo convertidos os alimentos gravídicos em pensão de alimentos após o nascimento da criança. Assim como na pensão alimentícia, os alimentos gravídicos são exequíveis e irrepetíveis, não se pode pedir restituição do que se pagou, mesmo que depois se descubra que o pai na realidade não era o acionado pelos alimentos gravídicos. Ao nascer, o bebê será o novo alimentando, a lei aplicável deixa de ser a 11.804/08 e passa a ser a pensão alimentícia, de acordo com o o art. 6º da própria Lei de alimentos gravídicos. A pensão alimentícia será paga em favor do menor até que seja solicitada sua revisão. O domicílio para propor a ação de alimentos gravídicos é o da gestante, em razão de ela ser a alimentada beneficiada por lei e por deter a posse em nome do nascituro. Este é o entendimento predominante da doutrina e da jurisprudência, pois a competência não está expressa na lei. A súmula 383278 do STJ traz a previsão de que a competência para processar e julgar ações conexas de interesse do menor cabe ao foro do domicílio do detentor da guarda. No caso dos alimentos gravídicos, a competência é sempre do foro da gestante, que carrega o nascituro em seu ventre. Entretanto, o projeto de lei dos alimentos gravídicos previa em seu art. 3º que o for seria o domicílio do réu, mas este artigo foi vetado na publicação da lei. De toda 278 STJ Súmula 383 : A competência para processar e julgar as ações conexas de interesse de menor é, em princípio, do foro do domicílio do detentor de sua guarda. Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização forma, não há impedimento legal para que a ação de alimentos gravídicos seja interposta no domicílio do réu, se por acaso a autora entender que facilitará o andamento da ação. A propositura da ação de alimentos gravídicos deve ocorrer após a concepção e antes do parto, pois só faz sentido no período da gravidez. Se a mãe buscar os seus direitos após o nascimento no que diz respeito aos gastos com despesas de gravidez, deve ajuizar ação indenizatória. Para solicitar alimentos ao menor, deve entrar com a ação de alimentos, que pode ser cumulada à ação de investigação de paternidade. Na ação de alimentos gravídicos, a gestante pode pleitear todas as despesas já realizadas desde a concepção até o parto, mesmo que tenha entrado com a ação alguns meses após a confirmação da gravidez. Ao receber a citação, o réu estará obrigado ao pagamento das despesas da gravidez e da pensão para os filhos quando nascerem, segundo Douglas Freitas. Sobre o polo ativo da ação de alimentos gravídicos, a mulher gestante é a legitimada pra o ingresso da ação de alimentos gravídicos de acordo com o caput do art. 1º da Lei 11.804/08. Se a gestante for menor ou incapaz, pode ser assistida ou representada por quem possuir a tutela, esta para maiores de 16 e menores de 18 anos ou a curatela. O polo passivo da ação de alimentos gravídicos é o pretenso pai, sugerido por indícios279 de paternidade apresentadas no processo. Também pode ocorrer a indicação de paternidade presumida, de acordo com o art. 1.597280 do Código Civil. Nos casos de 279 Indícios são sinais aparentes ,Vestígios que um fato existe. 280 Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: I - nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal; II - nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento; III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; Capa Sumário 537 indício de paternidade não há prova pericial a ser realizada, pois o art. 8º da lei original foi vetado. O projeto de lei previa a realização de exame intrauterino, o que era condenado por especialistas médicos, já que tal exame de DNA antes do nascimento poderia pôr em risco a vida do nascituro. Como não é possível fazer o teste de DNA, não há prova conclusiva de paternidade até que o bebê nasça, logo as demais provas são cercadas de dúvidas e são em várias situações bem frágeis, são na realidade meros indícios de paternidade, bastando a verossimilhança das alegações e de documentos que porventura possam ser apresentados. A presunção de boa-fé281 da autora deve ser considerada pelo magistrado para conceder os alimentos gravídicos, mesmo sem qualquer prova documental ou pericial, se for constatado que existem ao menos indícios de paternidade. Parte da doutrina entende que algumas mulheres poderiam se utilizar da ação de alimentos gravídicos para maliciosamente prejudicar ex-parceiros ou até terceiros que não conhecem quando sabidamente não são os pais da criança que elas esperam. Nestes casos a má-fé poderia ser comprovada posteriormente, e os prejudicados devem entrar com uma ação de reparação por danos morais e materiais causados pela gestante de má-fé. Na época da promulgação da lei 11.804/08 se imaginava que poderiam existir muitos casos de má-fé, mas na prática houve pouquíssimas situações desta natureza. Os casos de paternidade presumida estão dispostos no art. 1.597 do Código Civil. De acordo com este diploma legal presumem-se concebidos durante o casamento os filhos que nascerem V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. 281 A boa-fé é uma diretriz principiológica de fundo ético e expectro eficacial jurídico, se traduz em um princípio de substrato moral que ganhou contornos e matiz de natureza jurídica cogente.( Gagliano, 2010.v.4 p.100.). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização após 180 dias da data do casamento ou até 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal, seja por separação, morte ou anulação do casamento. Esta presunção de paternidade se aplica perfeitamente à concessão dos alimentos gravídicos, que precisam apenas de uma simples comprovação da situação de paternidade presumida nos autos do processo. Portanto, quando há presunção de paternidade não há necessidade de outras provas, esta presunção por si só autoriza a fixação dos alimentos gravídicos contra o suposto pai e também contra outros parentes, como os avós. Há possibilidade de responsabilização dos avós, na dificuldade de efetivação do crédito alimentar do suposto pai. Os avós, quando réus, não poderão argumentar que o filho desconhece a autora, se o casal manteve relações sexuais ou se as circunstâncias alegadas pela gestante na petição inicial são verdadeiras. O STJ decidiu recentemente que a pensão alimentícia pode ser ampliada para os avós mas não para os tios e sobrinhos. Processualmente existe uma finalidade dúplice na ação de alimentos gravídicos, há uma conversão automática do pagamento dos alimentos gravídicos em pensão de alimentos com o nascimento da criança. Neste sistema dual deverão ser fixados valores diferenciados para alimentos gravídicos e pensão de alimentos, por questão de justiça, já que o cálculo de ambos é diferente. O cálculo de pensão por alimentos se dá na proporção entre necessidade, disponibilidade e proporcionalidade. Já os alimentos gravídicos se calculam apenas pelas despesas realizadas em razão da gravidez. A dualidade na relação entre alimentos gravídicos e pensão de alimentos pode justificar que na sentença seja necessário fixar um valor para os alimentos gravídicos baseado nas despesas da gestante e outro valor para o momento da conversão em pensão de alimentos, desta feita baseada na renda do réu e outros parâmetros não analisados para os alimentos gravídicos. Capa Sumário 539 Os alimentos gravídicos têm uma natureza indenizatória elevada ao padrão de alimentos, pois não é uma mera indenização e sim protege a vida de um nascituro. O termo inicial dos alimentos gravídicos é a concepção, semelhante à regra das indenizações, em que o termo inicial é o do fato ou ilícito praticado. Nos alimentos gravídicos é possível buscar valores retroativos, da mesma forma que ocorre nas ações indenizatórias. Já na pensão de alimentos, não é possível exigir valores retroativos, já que a natureza da pensão é diferente de indenizatória. A ação dos alimentos gravídicos é um procedimento especial que adota o mesmo rito das cautelares. Entretanto, não se considera esta ação uma cautelar propriamente dita, já que ela é satisfativa282 e não depende de qualquer ação posterior à concessão da tutela antecipada. O término da ação de alimentos gravídicos sinaliza ao réu a possibilidade de revisão dos alimentos ou extinção da obrigação na propositura da ação declaratória de paternidade. Caso não seja solicitado, os alimentos gravídicos serão convertidos automaticamente em pensão alimentícia, como já comentado neste trabalho. O art. 5º do projeto original da Lei 11.804/08 afirmava que o rito da ação de alimentos gravídicos seria sumário, mas havia necessidade de uma audiência de justificação. Como esta audiência de justificação poderia causar uma grande morosidade ao Judiciário nestas causas, este artigo foi vetado. Portanto, esta audiência não é mais obrigatória. Porém facultativamente poderá ser realizada pelo juiz para o seu convencimento a audiência de justificação. De acordo com Douglas Freitas (2011, p.92), o procedimento da ação de alimentos gravídicos segue os seguintes passos, resumidamente: despacho inicial, concessão ou não da tutela ante282 Tutela satisfativa: satisfazer o direito é realizá-lo no plano das relações humanas. É fazer com que o núcleo do seu conceito passe a ter existência efetiva no plano da realidade social. ( CÂMARA,2009. p. 83). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização cipada; Citação do réu; Contestação do réu, concessão, revogação ou modificação da tutela antecipada; Vistas ao Ministério Público; Sentença. Sobre as provas na ação de alimentos gravídicos, se destaca primeiramente o atestado de gravidez pela autora, já que não pode haver dúvidas do estado gravídico. Esta prova é importante, mesmo com o veto do art. 4º da redação original da lei, que exigia o atestado médico de gravidez e a sua viabilidade. Por causa desta exigência de comprovação de viabilidade da gravidez, o artigo 4º foi vetado, pois dificultaria bastante o pedido de alimentos gravídicos, já que não é simples para o médico avaliar a viabilidade de uma gravidez. Como outras provas que podem ser importantes na avaliação e deferimento pelo juiz, podem constar provas de relacionamento entre o suposto pai e a gestante, tais como mensagens, e-mails, fotos e até impressão de tela de sites de relacionamentos pela internet podem ser juntados ao processo, que possam comprovar a ligação entre a autora e o suposto pai. No que se refere às provas, pode ser alegada a presunção de paternidade do art. 1.597 do Código Civil, já visto neste trabalho, no qual se presume a paternidade quando os filhos são nascidos com pelo menos 180 dias depois do convivência conjugal ou até 300 após a dissolução da sociedade conjugal. Nestes casos, basta juntar aos autos a certidão de casamento ou contrato de união estável, em que conste claramente a data para verificação se incide o art. 1.597 do Código Civil. Neste casos o juiz deve deferir a tutela antecipada sem ouvir a outra parte. Se em uma união estável não existir um contrato comprobatório deverá ser provada por outros meios a união estável, como a oitiva de testemunhas, por exemplo. A tutela antecipada deve ser pedida na ação de alimentos gravídicos, amparada no art. 273 do Código de Processo Civil. A lei 11.804/08 em seu art. 6º determina que o juiz fixará os alimen- Capa Sumário 541 tos gravídicos somente quando estiver convencido da existência de indícios de paternidade. O magistrado deverá avaliar se deve deferir a tutela inaudita altera parte, se convencendo dos meros indícios de paternidade apresentados. O pedido da autora da ação de alimentos gravídicos deve ser misto, requerendo a fixação de valores para cobrir o valor das despesas decorrentes da gravidez ou para reembolsá-la destas despesas. Ainda deve requerer a título de alimentos um percentual sobre a remuneração do suposto pai após o nascimento do bebê. Este pedido de alimentos pós-nascimento não é obrigatório. É importante ressaltar que nesta ação de alimentos gravídicos não é possível pedir a declaração de paternidade, já que existe outra ação específica para tal fim. Nos alimentos gravídicos as despesas da gravidez deverão ser custeadas pelo suposto pai independentemente da sua condição financeira. O Ministério Público também deve participar dos processos de alimentos gravídicos, conforme prevê o art. 82, inc. I do Código de Processo Civil, que estabelece que o Ministério Público deverá intervir nas causas em que há interesses de incapazes, como devem ser considerados os nascituros. O réu possui cinco dias para contestação após a citação, no qual pode alegar e tentar provar cabalmente que não é o pai, mostrando que não teve relacionamento com a autora na época da concepção ou até que é estéril, mediante exame comprobatório. Também pode alegar que os valores solicitados pela gestante não correspondem à realidade dos custos para uma gravidez. Em regra não sobram muitas alternativas de defesa para o suposto pai, que conta comum prazo exíguo para defesa em razão da natureza urgente da ação de alimentos gravídicos, que visa a proteger o nascituro em desenvolvimento embrionário. O processo de execução relativo aos alimentos gravídicos está previsto no art. 11 da Lei 11.804/08. Este artigo dispõe que aplicam-se supletivamente nos processos a lei dos alimentos (Lei Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização 5.478/68) e o Código de Processo Civil (Lei 5.869/73). Se houver o inadimplemento do pagamento de alguma parcela, a gestante poderá promover o cumprimento da sentença por meio de execução específica prevista nos art. 732283 e 733 do CPC, a mesma execução para a pensão alimentícia. Também pode haver pedido de prisão do devedor, da mesma forma que na pensão de alimentos, sendo o débito alimentar que autorize a prisão de três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo. Quando se tratar de alimentos gravídicos de natureza indenizatória, a execução se dará pelo rito da expropriação, conforme art. 732 do Código de Processo Civil. Outras questões processuais devem ser citadas. Uma delas é a impossibilidade de repetição dos valores pagos a título de alimentos gravídicos, com restituição. Nestes casos o réu prejudicado pode entrar posteriormente com uma ação de indenização contra a autora, provando que ela usou de má-fé e abuso de direito. Também pode entrar contra o verdadeiro pai quando ele sabidamente deixou outra pessoa se encarregar dos valores de alimentos gravídicos. Uma situação que tem provocado decisões divergentes nos tribunais é o nascimento do bebê antes da sentença de alimentos gravídicos. Alguns juízes tem extinguido a ação de alimentos gravídicos alegando perda do objeto da ação284. Outra corrente da jurisprudência não extingue a ação em tais situações, pois ela deve 283 Art. 732. A execução de sentença, que condena ao pagamento de prestação alimentícia, far-se-á conforme o disposto no Capítulo IV deste Título. Parágrafo único. Recaindo a penhora em dinheiro, o oferecimento de embargos não obsta a que o exeqüente levante mensalmente a importância da prestação. 284 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Ação de alimentos gravídicos, Nascimento da criança durante o decurso do processo. Sentença extintiva sem resolução do mérito […] Diante do exposto, julgo extinto o processo sem exame de mérito, na forma do art. 267, VI do CPC, ante a ausência de uma das condições da ação ( falta de interesse processual- perda do objeto), AC 2011.032988-7, DJ 25.08.2011. Capa Sumário 543 ser convertida em pensão alimentícia logo após o nascimento da criança e além do mais a ação de alimentos gravídicos também se presta a reembolsar as despesas da gravidez. Este segunda corrente tem prevalecido na jurisprudência285. A ação de alimentos gravídicos pode ser encerrada nas seguintes situações: proposta de pagamento de alimentos à criança pelo pai após o nascimento da criança, quando haverá extinção sem julgamento do mérito; quando provados os indícios de paternidade, sendo procedente o pleito com julgamento do mérito; quando não houver produção de provas, sendo julgado improcedente. Mesmo quando houver sentença de improcedência a mãe poderá entrar com uma ação indenizatória solicitando o reembolso das despesas do período de gravidez não arcadas pelo pai. 2.5 ALIMENTOS GRAVÍDICOS E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A dignidade da pessoa humana foi respeitada na Lei de alimentos gravídicos, considerando a dignidade por extensão de um ser humano em potencial, o nascituro. O ideal de dignidade humana foi fortalecido com a Lei 11.804/2008, tendo confirmada a ideia de solidarismo social que abarca o tema dos alimentos. A principal finalidade da Lei dos alimentos gravídicos é estimular a paternidade responsável, desde o período que o filho está no ventre da sua mãe. O nascituro, como ser ainda frágil e vulnerável, por estar em desenvolvimento, precisa de alimentos, 285 BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Nascimento da criança. Ausência de registro pelo indigitado pai. Extinção do feito sem resolução do mérito por perda superveniente do interesse de agir da gestante inocorrência. Conversão em pensão alimentícia para o menor. Incidência do parágrafo único do artigo 6º da Lei nº 11.804/08. “Após o nascimento com vida, os alimentos gravídicos ficam convertidos em pensão alimentícia em favor do menor até que uma das partes solicite a sua revisão”. Provimento do recurso ( AC 0002591-42.2010.8.19.207, Rel. Des. Maria Henriqueta Lobo, DJ 23.03.2011). Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização não importando se existem desavenças e desentendimentos entre a mãe e o pai. O nascituro deve ter assegurado o direito alimentar, considerando que este já possui personalidade jurídica desde a concepção. O direito à vida é um direito da personalidade da mais alta importância, é tido por essencial, inato ao indivíduo, incluindo os nascituros nesta concepção. A proteção do direito à vida se acentua cada vez mais nos tempos atuais, seja em favor dos já concebidos mas ainda não nascidos ou em favor dos já nascidos. Todos os segmentos da sociedade devem ter como objetivo promover uma vida sadia e digna do ser humano. O nascituro deve ter, além dos alimentos, todo o cuidado e afeto dos pais. O dever de cuidados dos pais em sua forma abrangente é mais importante do que o alimento em si. No desenvolvimento de uma criança é muito importante o carinho e o afeto dos pais, que influi diretamente na vida de uma criança e provavelmente interferirá na sua vida adulta. Esta ligação afetiva é estudada na psicologia como teoria do apego, defendida por John Bowlby, citada por Simões ( 2013, p. 240),como forma de explicar a importância do carinho e afeto na vida de uma criança. A ligação afetiva resulta em comportamentos que garantem a proximidade de indivíduos queridos. Esta ligação afetiva é mais sentida nos primeiros anos de vida. Estudos científicos mostram que o bebê ainda no ventre pode sentir a voz da mãe e das pessoas que a cercam, como o pai, por exemplo. Elas podem sentir até se estão em um ambiente harmonioso ou não (Bowlby,1990, p.283-316 apud Simões, 2013, p.241). A necessidade de dar afeto e carinho aos nascituros não há dúvida, só que é algo difícil de avaliar e de se comprovar, sendo avaliado subjetivamente. Para a lei e os operadores jurídicos, a forma mais fácil de proteger o nascituro se dá por meio de alimentos. A proteção quantificada de forma objetiva são os alimentos, no caso dos nascituros os alimentos gravídicos prevista na lei e facil- Capa Sumário 545 mente exigível no Poder judiciário. Já o carinho e afeto dificilmente poderiam ser exigidos no Judiciário. A importância dos alimentos gravídicos corretamente destinados aos nascituros é enorme, pois ajuda no bom desenvolvimento no ventre materno e garante a aplicação do princípio da dignidade humana. É fundamental que se compreenda no meio jurídico de que os alimentos gravídicos se destinam ao nascituro e não à mãe, pois se está protegendo o direto à vida do nascituro. No caso concreto o juiz de direito deverá avaliar os indícios de paternidade, como fumaça do bom direito e o perigo na demora em atender o pedido jurisdicional, já que o estado de gravidez só dura no máximo nove meses. Deve considerar sempre o princípio da dignidade humana do nascituro, para garantir um desenvolvimento mais tranquilo no ventre materno. O direito à vida deve ser considerada a mais importante dentre todos os direitos da personalidade, logo a vida deve sempre ser protegida, a dignidade desta vida deve estar presente de forma ininterrupta em toda a duração da vida de uma pessoa, desde a concepção, por isto é bastante importante proteger os nascituros com os alimentos gravídicos, trazidos para o nosso ordenamento jurídico pela Lei 11.804/08. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os alimentos gravídicos são uma importante ferramenta para efetivação do direito à vida desde a concepção, como preconiza o Código Civil em seu art. 2º. A incerteza da paternidade em algumas situações não deve afetar o bom desenvolvimento do nascituro dentro do ventre materno. A negação de paternidade também não pode prejudicar e pôr em risco a vida do nascituro. A Lei 11.804/08 trouxe para o ordenamento jurídico pátrio a proteção ao nascituro, prevendo a concessão de alimentos para estes seres humanos ainda em formação, mesmo sem a compro- Temas de Direito Civil: da constitucionalização à humanização vação taxativa de paternidade, o que gerou muita polêmica acerca da lei dos alimentos gravídicos. As relações familiares, especialmente a dos pais com os filhos, se solidificam na solidariedade familiar não apenas no sentido de que os pais têm obrigação de sustentar os filhos, mas também auxiliá-los para que os filhos consigam seguir seu próprio caminho. Os alimentos gravídicos trouxeram à tona e para o ordenamento jurídico os princípios da paternidade responsável, estimulando ou mesmo forçando os pais a terem uma conduta mais responsável no que se refere à concepção de um filho. Além dos alimentos gravídicos em si, também deve ser dado ao nascituro o carinho e a atenção necessários para que haja um desenvolvimento sadio no ventre materno, tornando viável a vida de um ser humano. Todo ser humano precisa de condições mínimas para a sua sobrevivência digna e isto não é diferente para os nascituros, que também devem ter um mínimo de condições para se desenvolver dignamente, protegendo essencialmente o direito à vida, mesmo dos nascituros. A Lei 11.804/08 encontrou muitas resistências no meio jurídico e na sociedade, com o temor de alguns homens de serem responsabilizados indevidamente por uma gestante de má-fé, já que os alimentos gravídicos podem ser concedidos sem uma prova cabal de paternidade, como o exame de DNA, pois podem ser perigosos e prejudicarem o nascituro no ventre. Mas a experiência dos tribunais nestes seis anos de vigência da lei confirma que não houve muitos casos de mães mal intencionadas e quisessem cobrar alimentos gravídicos de quem sabidamente não era o pai do bebê, mas em quase totalidade era realmente o pai da criança em desenvolvimento no útero materno. A Lei dos alimentos gravídicos trouxe assim, muitos benefícios e efetivou direitos antes não alcançados. Esta lei preserva o Capa Sumário 547 direito à vida e a dignidade da pessoa humana, com os alimentos sendo concedidos desde a concepção, que devem ser partilhados pelo pai e pela mãe, para garantir um desenvolvimento sadio do nascituro no ventre materno e tendo como consequência uma vida saudável de uma ser humano após o nascimento. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Silmara J.A. Chinelato e. Tutela Civil do nascituro. São Paulo: Saraiva, 2000. CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 5. ed.São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. CÂMARA, Alexandre Freitas. 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