Glen Slater - Encontrando Deuses numa Era Titânica
Transcrição
Glen Slater - Encontrando Deuses numa Era Titânica
Encontrando Deuses numa Era Titânica Glen Slater Tradução: Letícia Capriotti Revisão: Camilo Ghorayeb Publicado online em 01 de outubro de 2015 www.arquetipica.com.br Encontrando Deuses numa Era Titânica Glen Slater Como psicólogo, me preocupo com o modo como conduzimos nossas vidas, e especialmente com as motivações e objetivos que moldam nossos pensamentos e ações. Também me preocupo com o modo como imaginamos, como percebemos e interpretamos os eventos, e como “fazemos histórias” de nossas vidas. Como psicólogo junguiano, entendo que esses fatores determinantes não são desenvolvidos somente durante a infância, nem são socialmente construídos ou biologicamente determinados. Ao invés disso, coloco minha ênfase nos padrões atemporais, universais que C.G. Jung chamou de arquétipos, e que os antigos chamavam de deuses. Esses arquétipos, metaforicamente expressados como deuses, formam a fundação sobre a qual eventos, imagens e ideias significativas se constroem. Para ver o mundo psicologicamente, devo abordar questões de uma realidade mais essencial que pertencem à teologia ou à metafísica. Apesar disso, devo prestar atenção àqueles aspectos da vida que adquirem um valor tão alto ou exercem tanta influência que determinam o modo como as pessoas e as culturas organizam sua existência. Se sou fenomenológico com relação a isso, isso é, se simplesmente presto atenção sem explicações reducionistas e apenas descrevo o que vejo de um modo poético em vez de técnico, devo concluir que os deuses ainda estão entre nós, dirigindo nossos pensamentos e ações todos os dias. Essa preferência pela poesia e pelo mito foi pensada por Jung como sendo a preferência da própria psique. É o modo como sempre imaginamos tais essências e valores. Se estamos preparados para dar nossas vidas pelo amor, pela guerra ou pela justiça, se nos dedicamos incansavelmente à beleza ou à invenção, ou se, ao final de um dia cansativo, temos que tocar uma música ou ler sobre nosso herói favorito, então os deuses certamente estão nos chamando. Eles expressam lugares de vitalidade que direcionam nosso comportamento e esculpem a imaginação; eles são fontes de significado. Se passamos a semana inteira em um cubículo de um escritório, olhando 2 G. Slater para um computador, estivemos servindo Apolo e logo teremos que fazer um tributo adequado a Dioniso, talvez encontrando um grupo num bar ou fazendo vigorosos exercícios aeróbicos. Muita civilização Ateniana cria um anseio por riachos e florestas Artemisenses, por lugares onde ainda podemos nos perder um pouco e ser surpreendidos por Pan. Não importa que palavras ou imagens usemos, não podemos discutir com essas necessidades psíquicas. Ainda assim, devemos perceber que a linguagem dos deuses expressa mais adequadamente o caráter impessoal e por vezes cruel de tais padrões. Ignorar os deuses sufoca a alma e leva à doença e ao conflito. Hoje quero falar com vocês sobre o que acontece com esses princípios arquetípicos, esses fatores organizadores, a esses deuses de nossa existência, em sociedades que estão cada vez mais dessensibilizadas com relação às profundezas da vida e à natureza das coisas no mundo. O que acontece quando nos afastamos do próprio tecido da existência e começamos a viver de modos abstratos e autômatos. Da mesma forma como os deuses devem ser entendidos como metáforas dos valores mais profundos, os Titãs, que são os velhos inimigos dos Deuses Olímpicos, representam forças que constantemente ameaçam deslocar tais valores e a orientação almada que oferecem. Essas forças titânicas são predominantes nas partes industrializadas do mundo. E acho que primeiro devemos dedicar algum tempo nomeando essas forças monstruosas para então saber onde e como encontrar os deuses. Carl Kerényi nos diz que os Titãs foram os primeiros deuses, conhecidos principalmente por seus excessos – particularmente orgulho e violência excessivos. Uma vez que Zeus escapou de Cronos e mais tarde libertou seus irmãos da barriga de seu pai, ele liderou uma guerra contra os Titãs, resultando no banimento dessas forças primordiais – banidos ao Tártaro uma prisão profunda no mundo subterrâneo, abaixo do mar. A partir daí o termo “Titânico” designava aqueles que se opunham aos ideais e princípios da tradição homérica. Os construtores de barcos deviam ter consciência disso; a partir da perspectiva dos deuses, qualquer coisa Titânica precisa ser afundada. Falando psicologicamente, o Titanismo é aquela propensão dentro de cada um de nós a regredir a um nível mais baixo de impulsos crus, indiferenciados que, ao mesmo tempo, nos inflam com um senso ilimitado ou sem delineamento. Na sociedade, o Ti3 G. Slater tanismo está presente sempre que motivações exploratórias e o pensamento mecanicista se apoderam de valores culturais e humanos. Rafael López-Pedraza escreve que “a civilização ocidental está se tornando cada vez mais Titânica”1. Ele relaciona o titanismo ao intelectualismo e ao jargão – ou ao “abismo entre o conhecimento e aquilo que sabe dentro de nós: a alma”2. Em nossa Era da Computação, isso se relaciona ao excesso de informação e à ausência de reflexão e entendimento. López-Pedraza enfatiza que este excesso sem limites nasce ao lado do vazio, como se compulsivamente tentássemos preencher o espaço onde um senso mais forte dos deuses estaria. Consumismo e materialismo, que indicam um excesso Titânico, são governados por esse vazio – por nossas almas famintas. Esse vazio e fome não é consciente na maior parte do tempo porque o entorpecimento e a distração são parte de um estado Titânico. López-Pedraza sugere que o tédio é outro traço titânico, que ele descreve como a parte de nós que “escolhe dormir perpetuamente de olhos abertos”3. Dissociação e sensacionalismo cercam o vazio Titânico, que então é compensado pelo excesso Titânico. O filósofo Vilém Flusser, que lecionou na Universidade de São Paulo, em sua coleção de ensaios Pós-História, fala da ascensão do “vazio” e de uma perda de fé em nós mesmos4. Ele diz que esse estado transforma “todos os fenômenos, incluindo o fenômeno humano, em... objeto de conhecimento e manipulação”5. Ele descreve um mundo em que “o conhecimento científico bloqueia o conhecimento de qualquer outro tipo”6, onde “o conhecimento devora a sabedoria”7. Esse tipo de conhecimento expulsa os valores. Apesar não ter usado este termo, eu acho que Flusser está descrevendo o Titanismo, especialmente quando argumenta que na cultura pós-industrial tendemos 1 López-Pedraza, R. (1990). Cultural Anxiety. Daimon Verlag: Einsiedeln, Switzerland. p. 13. 2 Ibid. p. 55. 3 Ibid. p. 26. 4 Flusser, V. (2013). Post-History. Minneapolis: Univocal, pp. 3-4. 5 Ibid. p. 9. 6 Ibid. p. 39 7 Ibid. p. 41. 4 G. Slater a nos tornar funcionários operando de acordo com programas – o que ele chama de “robotização da humanidade”8. Ele escreve sobre o modo como nossos dispositivos nos programam, degenerando nossos níveis intelectuais, estéticos e políticos9. Podemos resumir muitas dessas descrições com a palavra “abstrato”. O Titanismo nos retira de nossa natureza profunda, levando a realidades fabricadas e virtuais. Hoje falamos em hiper-realidade, virtualidade e a “precessão dos simulacros” de Baudrillard. Nosso sentido do mundo real e da vida real está tão completamente impregnado pela onipresença dos computadores e da conectividade que estamos sempre em outro lugar, nunca com nós mesmos. Estamos abstraídos de nós mesmos. Certa vez olhei por uma janela de um hotel em Osaka no Japão e não consegui ver onde o chão estava. É assim que a psique de muitas pessoas parece estar. O chão da existência desapareceu por trás de todos os tipos de fabricação. Nessa realidade abstrata, fabricada, esquecemos as raízes dos pensamentos e ideias nos sonhos, fantasias e inspirações. Esquecemos que a mente tem suas raízes nos instintos. Apesar do Titanismo não ser idêntico à tecnologia em si, ele está presente no mundo de hoje como o absolutismo tecnológico, ou o que Morozov chama de “solucionismo tecnológico”. Flusser teria chamado de “tecnocracia”. Sob essa perspectiva, a computação e o racionalismo resolverão todos os problemas humanos e as corporações gigantescas vão inovar criando vidas melhores para todos nós. A World Wide Web facilitará isso, especialmente a globalização, que nos faz sentir conectados a algo grande, mas muito abstrato. A autora de livros sobre tecnologia Sherry Turkle diz que nossas vidas no ciberespaço fazem com que nos sintamos “sozinhos juntos”10. Podemos ter centenas de “amigos” no Facebook – o excesso – e ainda assim nos sentirmos isolados – o vazio. Uma expressão extrema dessa tendência pode ser encontrada no movimento conhecido como “Pós-humanismo” ou “Trans-humanismo”, que apoia a ideia futurista de pessoas se fundindo com computadores. Esse movimento vislumbra o momento 8 Ibid. p. 127. 9 Ibid. p. 124. 10 Turkle, S. (2011). Alone Together. New York: Basic Books. 5 G. Slater em que a inteligência artificial, por fim, nos supera e domina a civilização. O Pós-humanismo está se tornando extremamente influente em empresas de tecnologia gigantes como o Google. É uma fantasia Titânica, construída sobre uma falta de sentido de limites – além do corpo, além da mortalidade, além da natureza em si. Essa visão do amanhã reflete um sentido crescente do abstrato, da imagem da vida no espaço cibernético, na tecno-realidade, com toda a realidade sensual tornando-se algo do passado. James Hillman começa sua obra-prima, Re-Vendo a Psicologia, dizendo que o Titanismo é “uma ameaça muito maior que o Narcisismo”11, e necessita “da maior das contenções”12. Em outro lugar, ele brinca com a raiz da palavra Titã, que significa “esticar, estender, espalhar e estirar ou precipitar”. Ele escreve: “o stress é um sintoma titânico. Ele se refere aos limites do corpo e da alma tentando conter a falta de limite Titânica”13. Ele nos diz que “na ausência dos deuses, as coisas inflam a uma enormidade; um sinal da ausência dos deuses é o colossal... Em outras palavras, sem os deuses, os Titãs retornam”14. Deuses, símbolos e imaginação dão forma à energia instintiva dentro de nós, mas em sua ausência essa energia instintiva é liberada e retorna de modo sem limites. Poder, ambição e prazer egoísta substituem valores mais refinados e diferenciados. O Titanismo é avassalador, sufocante e eu provavelmente sufoquei vocês ao falar dele. Mas é muito importante sentirmos e nomearmos isso, pois ele forma o pano de fundo vívido para encontrarmos os deuses em nossa era atual. Identificar os aspectos Titânicos de nossas vidas e das sociedades em que vivemos imediatamente desperta aqueles lugares em nós mesmos e nas culturas à nossa volta onde os padrões divinos estão tentando vir para a superfície. O monstro encolhe quando o encaramos de frente, quando o vemos do jeito que é e sentimos seu peso opressivo. Os deuses 11 Hillman, J. (1992). Revisioning Psychology. San Francisco: Harper Collins, p. xii. 12 Ibid. p. xi Hillman, J. (2007). “ . . . And Huge is Ugly.” In Mythic Figures. Uniform Edition Vol. 6.1. Woodstock, CT: Spring Publications, p. 147. 13 14 Ibid. p. 146. 6 G. Slater podem reaparecer se estivermos preparados para olhar para aquilo que obscurece nossa visão deles. Maneiras de aliviar a coerção do Titanismo foram oferecidas pelos autores que já mencionei. López-Pedraza contrasta o Titanismo ao Dionisíaco, e sugere que “estarmos enraizados nas emoções” e “vivendo a vida como destino” destruiriam as tendências Titânicas. Ele escreve que “a noção tão conhecida de que os gregos eram os mais arcaicos dos civilizados e os mais civilizados dos arcaicos tem seu maior significado em Dioniso”15. Isso quer dizer que Dioniso é convidado quando nos lembramos do passado, dos ancestrais e recontamos velhas histórias. Dioniso é o deus do teatro e do vinho, ligado a festivais comunitários, rituais e expressões artísticas catárticas. Acredito que no Brasil vocês tenham um sentido saudável de Dioniso. Um sentido profundo, enraizado no corpo e que nos guia nas profundezas da imaginação. Mas vocês podem precisar de mais do que samba e carnaval. Dioniso também é o deus da loucura, uma característica que se torna mais importante quanto mais Dioniso é reprimido. Nos inclinarmos à loucura de hoje em dia, ouvirmos nossas ansiedades e depressões para escutar o que estão dizendo sobre o modo como vivemos é abrir mais espaço para Dioniso. Como Jung disse tão sucintamente, “os deuses se tornaram doenças”16. Quando acrescentamos a esse insight outro entendimento de Jung – o de que os sintomas da psique têm um propósito escondido – podemos abordar a doença como se houvesse um deus dentro dela, isto é, algum valor ou alguma dinâmica necessária que vem para corrigir uma unilateralidade individual ou cultural. Essa noção de um valor escondido em uma ferida é conhecida por muitas culturas indígenas. Muitas vezes hoje em dia tentamos superar sintomas sem dar ouvidos a seus comentários sobre nossas atitudes e modos de vida, e dessa forma trocamos um presente divino pelo torpor e automatismo Titânicos. A loucura é mais incapacitante e destrutiva quando tentamos fugir dela. Mas a loucura pode ser os deuses tentando atravessar o titanismo opressivo. 15 López-Pedraza, R. (2000). Dionysus in Exile. Wilmette, IL: Chiron Publications, p. 14. 16 Jung, C. G. CW 13, par. 54. 7 G. Slater A loucura às vezes nos está dizendo que a alma não está sendo alimentada e que a imaginação está constringida. Um dos meios mais diretos de desbancar o Titanismo é apoiar as artes e as humanidades, pois neles encontramos imagens e idéias que transformam impulsos e motivações crus em expressões culturais. Aqui encontramos a vida emocional de uma comunidade e, na arte visionária, a vida emocional das culturas e épocas. Em uma peça, museu, concerto ou em um bom filme ou você encontrará os deuses ou se pegará ansiando por eles. A arte e a literatura modernas e pós-modernas muitas vezes invocam os deuses espelhando sua ausência cultural. Há uma educação do coração que acontece quando se está envolvido com essas experiências, um refinamento da imaginação, especialmente se pudermos refletir sobre essas experiências e compartilhá-las em um nível do sentimento. Lembramos junto com López-Pedraza, no hino Órfico que fala do duplo nascimento de Dioniso, que depois que os Titãs o desmembraram foi o coração que permaneceu e foi levado por Atena a Zeus, que o comeu e pariu um novo Dioniso17. Essa ligação com o coração nos ajuda a compreender a recomendação de James Hillman para combater o Titanismo, que é “re-despertar o sentido de alma no mundo”, cultivar uma “resposta estética” que combata a feiura e encoraja a beleza e confia em emoções como “desejo, indignação, medo e vergonha”. Ele descreve essas emoções como “a urgência dos deuses sentida em nossas vidas corpóreas”18. Podemos dizer que essa “urgência sentida” nos alerta para o que é sagrado e o que vale a pena ser protegido – percebendo as coisas pequenas e o impacto das coisas grandes. Às vezes olhamos para o mundo ou as ações dos outros e nos pegamos dizendo ou sentindo, “Não há nada sagrado?” Essa é uma resposta espontânea ao Titanismo, nos alertando para o sentimento de que algum significado ou valor está fora de lugar por conta da pressa ou da falta de cuidado ou da veneração de tudo o que é novo. Essa questão do coração que sobrevive ao ataque Titânico e permite o renascimento de Dioniso, sugere que o papel central de Eros, ou amor, especialmente 17 P. 3. 18 Hillman, (2007), p. 154. 8 G. Slater na forma pela qual o erotismo se vincula com outros e com o mundo abre um acesso ao entorpecimento e à robotização. Uma máquina nunca amará e um programa nunca ensinará amor. Flusser escreve, “eu acredito que esta arte do amor, numa situação que sabemos ser absurda, é a única resposta de qual dispomos para enfrentar o abismo que se abriu debaixo de nossos pés”19. Este não é um amor simplesmente pessoal ou relacional, mas o amor por princípios e ideias, pela natureza e pelas coisas. É ouvir o coração, seja quando está lamentando ou apaixonado. É a capacidade para a empatia, que pode começar simplesmente por estar presente. Nós ficamos perto do amor, pois onde há amor a imaginação vem à vida, e os deuses retornam a nós primeiramente por meio dos caminhos da imaginação. Preparar um belo jantar ou criar um jardim é, primeiro de tudo, um trabalho da imaginação, assim como criar calor e conforto ao arrumar um cômodo, compor um poema em resposta a um momento que não sai de nós, ou escrever uma carta a um jornal para expressar nosso descontentamento. Estes são engajamentos imaginativos nos quais algum deus exige ser reconhecido. Com imagens vem possibilidade e movimento, o que derruba a repetição, a monotonia e as fórmulas Titânicas. Se nos mantivermos presentes e receptivos, um gesto pouco usual ou um som encantador ou um olhar de um estranho podem se tornar uma imagem que alimenta a alma, nos dando um pequeno vislumbre da divindade no meio de um dia Titânico. Amor e imagens, e o amor pelas imagens acontece em eventos específicos e padrões na vida, e isto deve ser adicionado à nossa percepção dos deuses como formas personificadas. Jung entendeu que os princípios divinos são evidentes em processos e momentos especiais também. Iniciações, epifanias, descidas, sacrifícios e passagens por limiares também são “deuses” de nossa existência, sem os quais a alma não pode ser sustentada. O senso de destino ou chamado, o sentimento de Duende (ter alma, uma resposta física ou emocional à arte. Duende é o espírito da evocação), o espanto e a dor são todos ocorrências arquetípicas – janelas para o divino. Estas ocorrências precisam que estejamos presentes para elas para que aden19 Flusser, p. 158. 9 G. Slater tremos completamente a vida e façamos alma. López-Pedraza escreve sobre o Duende como um avivador da alma, ou um senso de renascimento que vem com as imagens engajadoras de perda ou morte. Encontramos este sentimento cultivado nas canções de amor mais comoventes e quando abraçamos inteiramente a divagação e a solidão. Estudos recentes sugerem que o sentimento de reverência é uma das mais poderosas experiências que curam. É um sentimento que não podemos fabricar, então ele vem como um presente dos deuses, um momento no qual somos tocados por algo maior que nós mesmos. O traço comum em todas essas reflexões é a redescoberta de uma forma imanente de divindade – um senso do sagrado nessa vida imediata, corporificada. A visão pagã nos ajuda a ver que esses deuses não residem em textos ou igrejas, e que eles não precisam de profetas ou sacerdotes; esses deuses são percebidos por meio de reflexão e de sua permanência consciente em nossas vidas. Eles não precisam que se acredite neles pois eles são auto-evidentes na forma de eventos e no colorido das respostas emocionais. Obviamente não estamos falando aqui de um retorno à consciência pré-moderna ou a um mundo mitologizado; estamos falando de uma recuperação dos deuses através de uma consciência do que nos move, nos chama, e gera significado e propósito. Qualquer momento da vida que nos arrebata como sendo poético contém algum pedacinho dos deuses. E, da mesma maneira, toda vez que um momento poético é colocado de lado por uma explicação racional negligenciamos essas pequenas visitas. Aqui podemos estimar a noção de Vico de que a metáfora é um mito resumido. As metáforas nos tiram do logos e nos colocam no mythos, lembrando-nos de que enxergar os deuses muitas vezes é só uma questão de ajustar nossa perspectiva. James Hillman construiu seu entendimento psicológico a partir deste princípio, argumentando que encontramos alma na vida ao elaborar o modo como vemos as coisas. O titanismo pode assim estar relacionado a pontos de vista formulados e ideológicos que nos impedem de ver ou imaginar de modo almado. Frequentemente, isto é um contraste entre uma intelectualização seca, controladora e um cosmos vívido, personificado no qual os eventos e experiências se recusam a ser reduzidos a teorias e sistemas. Em tal 10 G. Slater cosmologia, a existência humana se encontra significativamente engajada com o pano de fundo arquetípico misterioso da vida – uma conversa com os deuses. Aqui a visão da vida que prioriza a utilidade e a eficiência, fazendo-nos meros funcionários de um vasto sistema ou máquina, torna-se insustentável. A retomada da consciência sensual o despertar da possibilidade imaginativa que permeiam essas noções que compartilho com vocês, correspondem a dois campos que acredito responderem melhor ao crescimento do Titanismo: a fenomenologia e a psicologia profunda. A fenomenologia nos ajuda a ver que fundamentalmente não conseguimos abstrair pensamentos e ideias a partir de contextos incorporados no mundo. A fenomenologia nos lembra que a biologia molecular requer um olhar através do microscópio, que a anatomia requer abrir um cadáver e que a engenharia começa com planos e plantas. O conhecimento em todos esses campos está incorporado em contextos específicos, em instâncias e suposições específicas que não consideram a amplitude e profundidade da experiência vivida. Da mesma forma, a psicologia profunda nos ajuda a entender que existem pensamentos e emoções inconscientes que moldam as ideias conscientes. Complexos parentais moldam nossos relacionamentos adultos; eventos traumáticos sustentam medos e ansiedades; impulsos religiosos e sexuais retornam em formas disfarçadas. A mente que domina a matéria é o lema Titânico, dividindo o mundo em dualismos cartesianos que não podem ser mantidos no entendimento da fenomenologia e da psicologia profunda. Ambos os campos instigam uma atenção plena que não está separada da carne. Quando, no fim do século dezenove, Friedrich Nietzsche declarou a morte de Deus, e quando o grande filósofo do século vinte Martin Heidegger disse que vivemos em uma “época dos deuses que fugiram e do deus que está vindo”20, ambos entenderam que não era o impulso religioso ou espiritual em si que havia sido banido, mas o modo pelo qual as pessoas imaginavam de forma religiosa, ou buscavam a espiritualidade. Para Nietzsche, a metafísica cristã tinha que ser desmantelada; para Heidegger, tinha que haver a retomada de significado nesse mundo das coisas e do ser. Para 20 Quoted in Avens, R. (1984), The New Gnosis. Woodstock, CT: Spring Publications, p. 2 11 G. Slater Jung, o divino tinha que ser descoberto como uma realidade interior, isto é, na experiência psicológica individual imediata ao invés de no campo da crença coletiva. Os Titãs, parece, se aproveitaram dessa época intermediária, em que a orientação espiritual não nos sustenta mais e ainda ansiamos por algo que vá além de nossas visões de mundo personalistas e redutivas. Em outras palavras, na falta de imagens e símbolos que nos mantêm ancorados a valores e princípios, lutamos para conectar significativamente a mente racional com as profundezas primordiais da existência do ser. O caráter maníaco, ideológico e programado do titanismo que nos cerca cresce a partir dessa situação inerente. A tarefa, como podemos definir a partir de tais entendimentos, é manter um olho na ausência de significado e no sentimento de desorientação, e o outro naqueles lugares onde vitalidade e orientação almada são evidentes. A tarefa é perceber onde aparece a luz de dentro da escuridão. Temos que evitar tentativas de cobrir essa escuridão com luz superficial, e temos que tomar cuidado com programas amplos e sistemas idealizados para o destino e a salvação humana. Estar desperto e ao mesmo tempo incerto é o chamado religioso da nossa era. Agora deixem-me levar esses pensamentos a um fechamento: Quando imaginamos a existência contemporânea na forma de deuses precisando superar forças Titânicas, isto imediatamente re-enquadra o que está acontecendo hoje na perspectiva de um teatro divino dentro do qual insight e visão podem fazer toda a diferença. Os deuses precisam de nossa consciência para entrar de forma significativa na vida. Os Titãs nos prendem com suas garras por meio da inconsciência, através de nossa recusa a ouvir nossos corpos e corações. Eles prosperam na dissociação, na pressa, e na distração cega. Quanto mais entorpecidos estamos, mais vivemos no automático, mais permitimos que a mente coletiva eclipse os eventos singulares e únicos de nossas vidas, e mais espaço abrimos para os gigantes se apoderarem. É com isso que as grandes corporações, os políticos e a indústria do entretenimento contam – consumo impensado, paranoia, abuso do poder e ideais enlatados. 12 G. Slater Os deuses retornam e os Titãs recuam quando começamos a prestar atenção às pequenas coisas – àqueles lugares onde o sentimento é estimulado. Os deuses retornam quando diminuímos a velocidade e refletimos, relembramos, revisamos. Podemos nos lembrar de algumas das raízes de significado do termo religião, que são “considerar atentamente” ou “re-conectar”. Jung mudou estes dois significados para definir a religião como “uma consideração cuidadosa e observação de certos fatores dinâmicos” (1938, p.5). De forma importante, essa consideração cuidadosa do que nos move também impede que fiquemos inconscientemente possuídos por um fator dinâmico ou padrão arquetípico, mantendo-nos conectados ao panteão das complexidades humanas e culturais. Os deuses também nos dão um senso de fronteiras e limites e nossa consciência deles regula a unilateralidade e o comportamento extremo. Apolo pode ser o deus da razão, mas ele também é o deus dos sonhos e profecias, então o desonramos com nosso racionalismo unilateral. O frenesi hermético, que às vezes caracteriza nossa era da informação, sugere que um relacionamento próximo a Hermes e Hestia, deusa do lar e da lareira, foi negligenciado. Este par está por trás de todas as nossas discussões sobre smartphones à mesa do jantar e refeições à frente do computador na vida doméstica. Os deuses nos ajudam a saber quando parar, mas os Titãs sabem apenas continuar, crescer, comer, acumular, aumentando o tamanho de tudo. A tendência a identificar-se com um deus ou um aspecto de um deus, que pode se tornar fanatismo ou megalomania, pode ser um dos perigos psicológicos de se viver em culturas monoteístas, onde há uma falta da imaginação politeísta. Uma consciência dos muitos deuses, dos muitos valores e das relações regulatórias entre eles impede tal arrogância . Essa consciência nos impede de desvalorizar e reprimir partes de nossa herança psicológica e cultural. Assim, sempre que adotamos alguma verdade absoluta ou solução sistemática para a existência humana, podemos ter certeza que estamos ofendendo algum deus ou princípio arquetípico, ou negando alguma parte de nossa história ou caráter. Os deuses nos lembram das complexidades e nuances, enquanto os Titãs querem homogeneizar e padronizar. 13 G. Slater É nossa consciência, nossa percepção que mantém os deuses vivos – um refinamento da sensibilidade. Essa consciência toma forma dentro do caldeirão de algumas percepções chaves: Que o novo nunca está longe do velho, que a arrogância e o excesso levam inevitavelmente ao sacrifício e à limitação, que não podemos em última instância separar o intelecto das emoções ou a mente do corpo, que o pensamento racional só vai nos levar até um certo ponto e que o mundo material é cheio de possibilidades metafóricas e essências espirituais. Tais perspectivas nutrem o senso de viver em um cosmos que está aqui para resposta e diálogo, não para manipulação e controle. É por isso que López-Pedraza se refere à mitologia grega como uma oferta “da possibilidade constante da Renascença na psique”21. Nossa trabalho está no modo como imaginamos e em nossa sensibilidade aos valores essenciais. Essas capacidades tornam-se a base de como vivemos. Esta é o difícil mas o crucial trabalho de encontrar os deuses em uma era Titânica. Tradução: Letícia Capriotti Revisão: Camilo Ghorayeb A Arquetípica faz todos os esforços para garantir a exatidão das informações contidas nas publicações de nossa plataforma. No entanto, nós não damos nenhuma declaração nem garantia quanto à precisão, integridade ou adequação para quaisquer fins deste conteúdo. Todas as opiniões e pontos de vista expressos nesta publicação são de responsabilidade dos autores, não sendo os pontos de vista endossados pela Arquetípica, e portanto não somos responsáveis por quaisquer perdas, ações, reclamações, processos, demandas, custos, despesas, danos e outros passivos em relação a ou resultantes da utilização deste conteúdo. Este artigo pode ser utilizado para fins de pesquisa, ensino e uso privado. Qualquer reprodução substancial ou sistemática, redistribuição, revenda, sub-licenciamento ou a publicação em outro website é expressamente proibida. 21 López-Pedraza, Cultural Anxiety, p. 11. 14