Clique aqui para fazer o

Transcrição

Clique aqui para fazer o
O
RETRATO
DO BRASIL
| n 5 os pobres, afinal, serão beneficiados?
O
PAC EM
RECIFE:
CIDADES 1
RetratodoBRASIL
nO 5 - R$ 6,00
CIDADES:
O PACTO DO
SANEAMENTO
O governo Lula põe no papel, apressadamente, um plano de obras –
mais de 900, por enquanto – para os serviços de água e esgoto no País
2 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
A MARGEM DO
MANGUE
CIDADES 3
RETRATO DO BRASIL | nO 5
IBURA
CAMPO DO JIQUIÁ
RI
O
TE
JIP
C
M A U RA N A L
ICÉIA
IÓ
Aeroporto
Internacional
de Guararapes
Av. Mal
. Masca
renhas d
IMBIRIBEIRA
ILHA DO ZECA
LAGOA ARAÇÁ
e Moraes
RIO PIN
idade
Comun a
de Ilh
de Deus
PERNAMBUCO
ILHA DE DEUS
Recife
A
Shopping
Center Recife
PARQUE DOS
MANGUEZAIS
Aeroclube
do Encanta
Moça
BA
Região
Metropolitana
do Recife
CI
A
DO
ngos Ferreira
Brasília
Teimosa
NA
Av. Eng. Domi
PI
Praia de Boa Viagem
Visita a um dos grandes projetos de saneamento ambiental
do País, incluído no Programa de Aceleração do Crescimento
do governo Lula, em área invadida pelos pobres no Recife
R
ecife fica no estuário de vários rios: ao
norte, o Beberibe; ao centro, o Capibaribe;
ao sul, o Teijipió, o Pina, o Jordão. A cidade é baixa, plana. Todo dia, com as marés,
o oceano sobe continente a dentro, torna
verdes as águas sujas dos rios, cobre margens entulhadas de detritos cor de piche,
forma grandes alagados, os manguezais.
O maior dos mangues de Recife fica ao
sul da cidade. É formado pelos Teijipió,
Jordão, Pina e pelo mar. O turista não o vê,
embora ele fique perto do aeroporto de
Guararapes e da praia de Boa Viagem, a mais
famosa da capital pernambucana. As ruas
ao redor do mangue dão para a praia ou
para as grandes avenidas que levam ao centro, para o Recife Antigo, a cidade colonial.
Não chegam ao mangue: terminam geralmente em becos, formados por paredões
de casebres também de costas para a água e
para a vegetação.
Os manguezais são ecossistemas de
preservação permanente, por serem berçário, criadouro e abrigo de inúmeras espécies.
O mangue da zona sul de Recife, por exemplo, é protegido formalmente por lei e confiado à guarda da Marinha do Brasil. Nas
suas vizinhanças, no entanto, apenas uma
estreita faixa tem um sistema de coleta e
tratamento de esgotos. É o paredão de prédios à beira da praia, situado numa formação geológica levemente mais alta que se
prolonga até o Recife Antigo. Toda a área
restante, mais para o interior, despeja seus
esgotos em fossas, nas galerias reservadas
para as águas pluviais, quando não diretamente nos rios ou no mangue. Isso, de
certa forma, explica porque o belo e importante mangue é desprezado e escondido:
ele é, principalmente, um coletor de esgotos de vasta região.
Os planos para mudar
Atualmente, um projeto para mudar
radicalmente essa situação está sendo tocado, o qual participa do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo
do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Basicamente, são duas intervenções: a Via
Mangue, uma avenida marginal que serviria para conter o movimento de invasão e
aterramento do manguezal; e um sistema
sanitário para a área atualmente não atendida, uma espécie de triângulo formado
de um lado pelo Teijipió e a margem sul
da Bacia do Pina, de outro, pela linha de
frente do aeroporto de Guararapes e, por
último, pela faixa de prédios de Boa Viagem, já saneada.
A população dessa área é estimada em
mais de 250 mil pessoas. Em tese, o saneamento básico beneficiaria especialmente os
mais pobres – eles são forçados a conviver
com os esgotos. Para visitar a área, o repórter e Natanael Ramalho, gerente de projetos
da Compesa, a empresa de saneamento do
governo de Pernambuco, utilizam um carro da companhia. O veículo passa pelo canteiro de obras da Camargo Corrêa, a
empreiteira que está concluindo neste fim
de ano a primeira fase do Via Mangue –
um túnel na saída dos viadutos estendidos
sobre a bacia do Pina, uma das entradas de
Boa Viagem para quem vem do centro da
cidade. Passa também por uma espécie de
porta oficial do mangue, de onde sai a estrada que vai à Rádio da Marinha, no meio
do manguezal. “Propriedade da União,
Marinha do Brasil”, diz a placa ao lado da
porteira fechada. Um soldado informa que
a área é de acesso restrito e é necessária autorização para entrar.
Cerca de meio quilômetro adiante, o
carro entra numa rua que dá numa linha de
4 CIDADES casas pobres. Mateus, de oito anos, levanos por um beco estreito entre os casebres
até a margem do mangue.
Mateus tem seis irmãos. O pai é pedreiro; a mãe, agente de saúde. Ele mostra quais
são os canos de água e os do esgoto. Estes
dão diretamente para o Pina, margem de cá
do mangue. Do lado de lá, o mangue é
bonito: uma mata de árvores de pequena
altura, de verde forte e escuro. O Pina, aqui,
é uma cloaca: sobre um fundo de águas negras, os canos de esgoto se projetam dos
casebres e despejam sua carga sobre o rio.
RETRATO DO BRASIL | nO 5
“Aqui é o Pantanal 1”, diz Mateus. “Mais
para lá, é o Pantanal 2”, diz ele, apontando
para o norte. Na frente do beco, Adriano
toma conta de um pequeno negócio onde se
vende água e há uma máquina de
videogames. Ele diz que ali chega água da
Compesa: “Um dia sim, 10 dias não”, completa com ironia. Chega também a conta:
“Dezesseis reais”, ele diz. “Mas não pago”.
Dona Antônia tem um barraco ali há
12 anos. Ela está preocupada com a Via
Mangue. Uma amiga, mais jovem, que está
a seu lado, acha que os moradores podem
se unir e resistir à destruição das casas que a
via promoverá. Aponta para a construção
de dois pisos onde mora e de onde não
quer sair. Dona Antônia acha que pouco
vai adiantar. Já viu uma desapropriação. “A
certa altura, chegam os tratores e a polícia e
o povo é retirado à força”, ela diz. Numa
das casas ao lado do negócio de Adriano,
encontra-se um registro que parece mostrar
que, de fato, as casas estão cadastradas, provavelmente para o pior: “Prefeitura do Recife, número 01-A, Cadastro. Loc: Ilha do
Destino, Pantanal”. E a data: 25-04-07.
CIDADES 5
RETRATO DO BRASIL | nO 5
RECIFE ZONA SUL
Fotos: Roberto Pereira
A cidade vista de cima da Lagoa
do Araçá. No horizonte, o paredão
de prédios de Boa Viagem. Mais
para interior, o grande manguezal
que hoje serve praticamente como
destino final dos esgotos, sem
tratamento, de uma área com
mais de 250 mil habitantes. Nos
detalhes abaixo: a Marinha do
Brasil é a guardiã oficial da área; e
uma vista do rio Pina e do
mangue, a partir de um beco que
dá para os fundos da invasão
Pantanal 1
Ilha do Destino é outro pedaço da margem do mangue, logo adiante. Parece ter
sido a origem do conjunto de invasões próximas. José Coutinho tem casa e uma espécie de armazém ali. Diz que sua mãe ajudou
a construir o aterramento do mangue que
uniu a ilha a Boa Viagem e que isso ocorreu
em 1953, quando ela se mudou para a ilha
para ficar perto do emprego, como doméstica numa casa rica perto da praia.
Coutinho explica o sistema de saneamento das casas e casebres da ilha. Os próprios moradores compraram os canos ne-
cessários e ligaram suas latrinas à galeria de
águas pluviais construída pela prefeitura
sobre o aterro. Sabem que é proibido jogar
esgoto nas galerias de águas pluviais. Porém, funciona.
Aliás, nem sempre funciona. Um rapaz
leva o repórter até o Beco dos Sete Pecados,
uma das ruelas da ilha onde o esgotamento
pifou. “Deveria se chamar Beco da Merda”,
diz uma moça. Ivoneide, uma senhora de
50 anos, mostra seu casebre nos fundos de
uma das vielas. A moradia deve ter pouco
mais de dez metros quadrados de área. Num
dos cantos, parcialmente protegido por uma
meia parede, sem porta, está instalado um
vaso sanitário. Uma televisão está ligada. Há
duas camas estreitas. Numa, o marido dorme. Um rapaz em seus 30 anos está numa
cadeira . “É meu cunhado”. “É meio lesado”, ela completa em voz baixa.
Ivoneide tem cinco filhos e 11 netos.
Vende espetinhos de carne. Prepara-os em
casa, e o marido os leva para vender num
carrinho de churrasco que instala em pontos da cidade. Acha que só Jesus pode ter
compaixão da vida que leva. Às vezes, toda
6 CIDADES a família está na casa. E o banheiro não
funciona. É preciso levar as fezes até a viela
principal e tentar empurrá-las por uma entrada do cano central de coleta que fica geralmente aberta.
Maria de Fátima, 47 anos, vive sozinha,
tem quatro filhos. Não tem emprego fixo e
faz trabalhos avulsos para as outras mulheres que, como ela, moram no beco. Quando o repórter volta com o fotógrafo, uma
semana depois, ela tinha passado “das onze
da manhã às seis da tarde” do dia anterior
tentando desentupir o cano do esgoto central do beco. Sem sucesso.
Maria Betânia, igualmente moradora dali,
explica que também falta água com freqüência. Ela nos leva até a “fonte”. Na saída do
beco, ao lado da casa do pai, que está na ilha
há 38 anos, construiu uma caixa ladrilhada
subterrânea coberta em torno do cano de
água da Compesa, no qual instalou uma torneira. Como chega pouca água, sob baixa
pressão, só se pode empurrá-la para o beco
por meio de uma mangueira com ajuda de
uma bomba-d’água, que se toma emprestada. “No momento, não há bomba”, diz ela.
E mostra uma amiga com uma trouxa de
roupa. “Ela vai lavar na Xuxa”, Betânia diz.
“Xuxa” é a última das invasões nessa
margem do mangue. Fica na confluência
dos rios Pina, Jordão e do canal do Setúbal,
que outrora também deve ter sido um rio,
correndo por trás de Boa Viagem. Eronildes
Pereira, 45 anos, leva repórter e fotógrafo
para ver as invasões do alto do prédio de
dez andares, onde trabalha como faxineiro.
De lá se vê que a Ilha do Destino pode ser,
de fato, o centro antigo das invasões: é um
aglomerado de casas de alvenaria relativamente organizado.
Pereira morava com o pai e 18 irmãos
na ilha. Dois morreram. Três estão no Recife. Treze foram para São Paulo e ele não
sabe onde estão. Quinze anos atrás, quando quis casar, ajudou a carregar barro para
aterrar outro trecho do Pina, o da invasão
onde fez uma casa, a Deus nos Acuda, que
fica depois da Paraíso e antes da Xuxa. O
esgoto de sua casa funcionava bem até recentemente. Novos moradores em um
novo aterro, mais perto do rio, criaram um
problema: agora, freqüentemente, o esgoto empaca e volta, ele conta.
Da Ilha do Destino, o carro da Compesa
leva o repórter e Ramalho para o local onde
está prevista a construção da primeira ETE,
estação de tratamento de esgoto, para despoluir
RETRATO DO BRASIL | nO 5
a área. Ela fica entre a estação de trem Antônio
Falcão e a margem próxima do rio Jordão.
Nos mapas do projeto do esgotamento sanitário – que é de dez anos atrás, mas foi usado
pela Compesa e pela prefeitura de Recife para
garantir verbas do PAC agora – trata-se de
área despovoada. No Guia Quatro Rodas - Ruas
de Recife 2008, ali também não há ninguém.
Na imagem do local no Google Earth, que,
estima Ramalho, deve ser de três anos atrás, é
uma área verde.
A ocupação mais recente
No entanto, hoje no local está a Ocupação
Irmã Dorothy Stang, batizada com o nome
da missionária americana morta na Amazônia em 2005. Ali vivem atualmente entre 600
e 800 famílias, segundo estimativas da prefeitura e dos ocupantes. Severina Celestina, uma
das moradoras, não pensa em sair. Quer que
a prefeitura faça o serviço de coleta de lixo
passar em torno da ocupação e mande “lim-
par a beira da maré”, onde o mato campeia e
hoje está uma imensa sujeira, porque os moradores da Irmã Dorothy Stang não têm água
nem esgoto e usam a margem do mangue
para seus despejos.
Ramalho e o repórter continuam agora
em direção à área onde será construída a
segunda estação de tratamento de esgoto
do projeto. Ela fica em outra mata de mangue, no bairro de Imbiribeira, perto da entrada do canal de Mauriciéia no Teijipió. O
carro segue pela invasão do Dancing Days,
à margem da mata e do canal, a qual parece
antiga e consolidada, como a Ilha do Destino. Depois, embrenha-se por uma estrada
de terra precária, através da mata, com alguns descampados em volta.
Ramalho mostra o local da ETE. Está
livre, com apenas um campo de futebol.
Um carrinho despeja lixo na área. Mais adiante, surge uma nova invasão. “Aqui é Salina”, diz uma moça. “À frente é a rua da
CIDADES 7
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Fotos: Roberto Pereira
VIVENTES DO MANGUEZAL
Maria de Fátima, mais de meio dia para
desentupir o Beco dos Sete Pecados, sem
sucesso; Coutinho, cuja mãe ajudou a
fazer o aterro que ligou a Ilha do Destino à
faixa de Boa Viagem, em 1953 (na pág.
anterior); Severina, da ocupação Irmã
Dorothy, que não quer sair e pede
limpeza; e Eronildes, que carregou o barro
que construiu a Deus nos Acuda
profundas sem gastar muito dinheiro: o lençol de água é muito próximo da superfície.
A reportagem nos mangues termina
com a visita a um prédio à margem da
Lagoa do Araçá, que é alimentada por um
canal vindo do Teijipió. O sol está se pondo e pessoas correm pela calçada à margem da lagoa protegida por uma estreita
mata. O prédio tem dois blocos, 48 apartamentos, uma grande caixa-d’água no
alto. Ramalho pergunta pela fossa. O servente mostra a grande área no pátio entre
os blocos, onde a fossa está enterrada.
Descobre que há também um filtro de pedras, subterrâneo. Depois desse tratamento preliminar, a água do esgoto, um pouco mais limpa, é despejada na lagoa.
“Nesta área”, diz Ramalho, fazendo
uma espécie de resumo da visita, “vivem
os que estão praticamente dentro do esgoto e os que tem sua situação parcialmente
resolvida. A questão é fazer o saneamento
integrado e resolver o problema como um
todo. E a Compesa é uma empresa. Precisa
cobrar por seus serviços”.
Os velhos planos
Morte”, explica. Ramalho diz que a área serve para desova de cadáveres.
O carro se apressa. Chega à invasão de
Sítio Grande. Pára numa esquina de cruzamento de ruas de terra diante de um empório, cujo balcão de atendimento é protegido
por uma grade. É fim de dia e Roberto, 43
anos, está tomando uma cerveja no balcão.
Ele leva o repórter para ver sua casa e negócio,
bem perto. Não tem banheiro. Acumula as
fezes em embrulhos que põe em sacos de
lixo, levados pela coleta da prefeitura que pas-
sa no local. A vigilância sanitária fechou um
de seus últimos negócios. Mostra o balcão
em que vendia carne de boi e de bode. A dona
da venda, dona Irene, mostra também sua
casa, por trás do empório. É ampla, limpa.
Tem água, bomba, caixa-d’água de reserva.
Separa o esgotamento da latrina, o qual joga
numa fossa, da água de lavar louça e de banho, que joga em outra fossa. No quintal tem
acerola, pinha, um papagaio. Ela reclama: na
estação das chuvas e na maré alta, as fossas
transbordam. E não há como fazê-las mais
João Bosco Almeida, presidente da
Compesa e secretário de Recursos Hídricos
do governo de Pernambuco, é um veterano
do saneamento brasileiro. Participou da elaboração do plano de modernização do setor em 1996, quando José Serra, atual governador de São Paulo, era ministro do
Planejamento. Foi feito, então, um grande
diagnóstico, em dez volumes, e um plano
de amplos investimentos e privatização da
área. Na época, ele era secretário de Recursos
Hídricos do estado, pasta nova criada por
Miguel Arraes.
No novo governo, de Eduardo Campos,
neto do legendário governador, Bosco é o
responsável por um plano de 7,5 bilhões de
reais que pretende universalizar os serviços de
água no estado até 2014 e os de esgotamento
8 CIDADES Compesa receberia cerca de 65 milhões). “O
setor é praticamente o único do País que
escapou à ofensiva desestatizante dos anos
1990 e é peça essencial nos novos investimentos”, diz Bosco.
“A companhia fatura atualmente 650 milhões de reais por ano e pode chegar a um
bilhão brevemente”, diz ele. Mas ainda enfrenta grandes problemas. Da água que trata, a Compesa recebe menos de 40%; o resto
se perde ou não é pago. Outro exemplo das
dificuldades: somente 50% das estações de
tratamento de água da companhia estão completamente enquadradas dentro das normas
de qualidade obrigatórias.
De um modo geral, Bosco está animado
com o PAC, pois a Compesa tem, em princípio, 62 projetos aprovados. “Eram projetos
que a companhia os tinha estocado e que não
pôde tocar por conta da inadimplência e dos
critérios então existentes. O Ministério das
Cidades fez tudo para aceitar esses projetos,
mesmo desatualizados”. A companhia está
trabalhando em regime de mutirão para atualizar os custos desses projetos. “Temos o
prazo até 30 de novembro para a atualização.
E vamos conseguir”, ele diz. Para isso, reforçou o quadro permanente da companhia com
mais 40 engenheiros e 50 técnicos e contratou
um escritório de engenharia privado auxiliar,
com mais 20 engenheiros, além de escritórios
para projetos específicos.
Uma grande sacada
Bosco reconhece que o projeto para a
área de Boa Viagem e Imbiribeira, que o
repórter visitou, é antigo. Mas não acha que
isso seja um grande problema. Seu superintendente de planejamento e projeto, Sérgio Tavares, também pensa assim. O horizonte do projeto original, que se baseia em
dados do fim dos anos 1990, era de 30 anos,
diz ele. As duas estações de tratamento de
esgoto e as 18 elevatórias do projeto foram
calculadas para uma situação de saturação
na ocupação da área. Isso significa, por
exemplo, que o prédio que o repórter visitou em campo, à margem da Lagoa do
Araçá, e que não consta do mapa da área
que a Compesa tem, concluído em 2001,
está contemplado no que se refere à capacidade de atendimento prevista no projeto.
“A idéia básica do projeto original é de
1995, da época de Arraes no governo do
Estado e de Jarbas Vasconcelos na prefeitura”, diz Sérgio. “O plano partiu de uma grande sacada. Nos planos anteriores, da época
Fotos: Roberto Pereira
sanitário até 2018. Hoje, 90% das cidades têm
serviço de fornecimento de água, mas o precioso líquido só chega, a 75% delas, em sistema
de rodízio. A Região Metropolitana do Recife, por exemplo, é servida de água dia sim, dia
não. E somente 30% da população são servidos por rede de esgotos.
“O plano de 1996 deu em nada”, comenta Bosco. Os financiamentos públicos
para o saneamento são essenciais. O plano
de privatizações das estatais era um enorme equívoco. No caso da Compesa, em
1999, no governo seguinte ao de Arraes, de
Jarbas Vasconcelos, o estado fez um acordo com a Caixa Econômica Federal (CEF)
preparando a companhia para a privatização. Vendeu parte do controle acionário para
o banco e comprometeu-se a investir o dinheiro no saneamento. O acordo previa que
quando a Compesa fosse privatizada o governo estadual recompraria da CEF as ações
da empresa. A essa altura, no entanto, o
País tinha mergulhado na crise financeira
que o levara a internar-se no Fundo Monetário Internacional (FMI) com o acordo de
fins de 1998.
Nos termos do típico ajuste liberal comandado pelo FMI, as estatais brasileiras
do setor de saneamento foram proibidas
de fazer investimentos, considerados dívida pública pelo Fundo. A Compesa continuou nas mãos do estado. A expectativa de
atrair grandes investimentos, especialmente estrangeiros, para comprar as estatais,
desfez-se com a crise. Além disso, a
Compesa se tornou inadimplente na CEF,
o grande financiador do setor de saneamento: não pôde pagar a dívida, que seria quitada com o dinheiro da privatização. Só em
setembro deste ano a companhia assinou
acordo com o banco para equacionar o acerto de 1999. Agora, a companhia está novamente apta a contrair empréstimos do sistema financeiro nacional. Mas, por mais de
oito anos, praticamente não investiu.
Pelo acordo com a CEF, a Compesa vai
lançar ações na Bolsa de Valores de São Paulo
para vender cerca de 30% de seu capital de controle a investidores privados. Com esse dinheiro, pagará a dívida. Ao contrário do plano de
1999, no entanto, o controle da empresa permanecerá com o estado de Pernambuco.
A grande crítica de Bosco ao atual esforço do governo para acelerar os investimentos na área é o corte da parte do PAC em
que estavam previstos 600 milhões de reais
para fortalecer as estatais de saneamento (a
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Natanael: no mapa do Google, é
uma área quase verde; no campo, o local
da ETE 1 está ocupado por uma invasão.
Sérgio: mesmo com quase dez anos, o
projeto é bom; partiu da idéia de que o
pobre deve pegar os grandes problemas
e resolvê-lo por partes
dos governos militares, imaginava-se o saneamento da cidade por meio de grandes
obras, em grandes unidades centralizadoras.
O projeto atual tem outro enfoque; foi imaginado para uma região pobre, de obras
menores, para ser feito por partes.”
O plano de 1995 dividiu Recife em cerca
de 100 unidades de coleta de esgoto. O que
se espera fazer na área de Boa Viagem e Imbiribeira no projeto do PAC, explica ele, envolve oito dessas unidades de coleta. A prefeitura quer incluir também nesse mesmo
mutirão de saneamento tanto a Via Mangue
como mais algumas unidades de coleta de
esgoto que se situam no início dessa avenida. Por ocasião da visita de Retrato do Brasil, o
financiamento dessa parte – tanto da via
como das unidades de saneamento adicionais – ainda não estava incluído no programa do governo federal.
Para o conjunto do plano atual de saneamento da área, incluindo a verba para a
construção da avenida – a parte mais cara –,
o investimento total previsto pode ser estimado em cerca de 300 milhões de reais. >>
CIDADES 9
RETRATO DO BRASIL | nO 5
O LIVRO
A Editora Manifesto apresenta a atualização de uma obra
consagrada. Agora, em um só volume com mais de 800 páginas,
Retrato do BRASIL aborda os principais temas de nossa história,
com foco no período 1985-2006. São centenas de textos, imagens,
gráficos e tabelas que tratam desde a inserção do País no processo de
globalização à luta pela posse da terra,
passando pelas mudanças ocorridas na
política, na cultura, no comportamento,
na educação e na saúde.
E MAIS: 48 personalidades da vida
nacional, intelectuais, líderes
políticos e cientistas avaliam os
últimos 20 anos e projetam suas
perspectivas para o País.
Um sumário completo, dois índices,
um temático e outro por palavraschave, facilitam a consulta a essa
valiosa fonte de informações que
você tem à sua disposição.
RESERVE JÁ O SEU EXEMPLAR PELO SITE
www.oficinainforma.com.br
OU PELOS TELEFONES [11] 3814 9030 E [31] 3281 4431
10 CIDADES Divulgação
>> Não parece difícil que o governo federal,
o de Pernambuco e o de Recife consigam
achar o dinheiro para as obras. Encontrar
uma solução para os problemas sociais que
estão ligados a elas parece ser mais difícil.
Tome-se, por exemplo, o caso da ocupação
da área da ETE 1. A invasão tem três anos.
Começou, estima Fernando Porciúncula, diretor de empreendimentos do Sanear, o serviço da prefeitura de Recife que cuida do saneamento da cidade, quando a administração municipal expediu decreto de desapropriação da área. É um terreno muito valorizado, diz Porciúncula: a prefeitura está pagando por ele 12 milhões de reais.
José Luiz Fernandes, assessor da presidência da Empresa de Urbanização de Recife,
responsável na prefeitura pelas obras do PAC
na região, diz ao repórter de RB, no canteiro
de obras da Camargo Corrêa, que a construção da ETE pode ser resolvida por uma das
duas formas: ou pela remoção dos invasores
da área reservada ou pela mudança de local da
estação. Para mudar a estação, é preciso achar
terreno próximo e conseguir nova licença
ambiental, o que não é rápido e será caro, pelas contas de Porciúncula. Remover os invasores também não será fácil, porque não são
apenas os da ocupação Dorothy Stang. “Recife são 200 quilômetros quadrados de áreas
RETRATO DO BRASIL | nO 5
totalmente invadidas”, diz Porciúncula.
Bosco sabe que esse é um grande problema. Pelo seu faturamento do último mês
de setembro, a Compesa tem 1,8 milhão
de ligações de água e esgoto. Destas, cerca
de 1,7 milhão são de residências. Dessas
residências, 250 mil pagam apenas a tarifa
social, para os consumidores muito pobres.
Grande parte da população muito pobre, no entanto, não paga sequer a tarifa
social. Nos cálculos da empresa, quando se
fala em perdas, no fundo se está falando
em algumas outras centenas de milhares de
moradias de pessoas muito pobres que
usam água da Compesa sem pagar, além
das 250 mil que pagam a tarifa social.
Água custa caro
Bosco faz as contas: a tarifa social é R$ 7,90
para a água e mais R$ 7,90 para o esgoto. Ou
seja, os muito pobres teriam de pagar R$ 15,80
por água e esgoto. “É impraticável, essa população não tem renda para isso”, diz. “Esse
problema já se manifesta no litoral turístico do estado, na região de Porto de Galinhas, onde há cidades muito pobres formadas por cortadores de cana. Em quatro
delas, já há água e esgoto para todos, mas
muitos não querem que a Compesa os ligue na rede porque não podem pagar.
Quando se compara os R$ 3,00 reais, custo
da tarifa básica de eletricidade para a população de baixa renda, com os R$ 15,80 do
saneamento básico, vê-se a enorme diferença.”, conclui Bosco.
O que fazer? A Compesa já pratica uma
tarifa diferenciada, que permite o chamado
subsídio cruzado: quem consome muito
paga bem mais, com isso, os pobres pagam
menos. Quem consome por mês menos
de dez metros cúbicos de água – dez mil
litros – paga ou a tarifa social, se está cadastrado nos programas de ajuda do governo,
basicamente, ou R$ 20 por mês, se não está
cadastrado. À medida que o consumo sobe,
sobe o preço do metro cúbico. Por exemplo: para consumo entre 10 e 20 metros
cúbicos por mês, a conta é de R$ 2,30 por
metro cúbico. Para mais de 90 metros cúbicos por mês, paga-se R$ 8,56, quase quatro
vezes mais por metro cúbico.
Como se vê pelas contas de Bosco, isso
não é suficiente para reduzir os preços de
modo que os mais pobres possam pagar.
“Água custa caro”, ele diz. “Não basta o
governo federal fazer investimento como
os do PAC, para o saneamento de uma região pobre como a nossa, a fundo perdido.
Parte da população não tem como pagar
sequer os custos operacionais da companhia, suas despesas para manter os serviços funcionando, seus gastos com energia
elétrica, com materiais de tratamento da
água, com funcionários.”
A solução tradicional para as várias dezenas de milhares de pessoas que vivem
nas piores condições de saneamento
ambiental às margens do mangue é conhecida. Os serviços públicos ali passam a custar muito mais do que suas rendas e como,
além disso, elas não têm os títulos de posse das áreas onde moram, acabam expulsas
dali. Uma solução diferente exigiria a organização e a mobilização desses moradores
e não está à vista nos planos atuais, que
estão sendo tocados apressadamente.
O repórter espera que a Via Mangue e a
rede de saneamento básico da região sejam
construídos e sirvam para dar à área do sul de
Recife uma nova qualidade que, entre os moradores desse novo ambiente, esteja a gente
humilde e acolhedora que visitou. Quem sabe
até em casas com varandas voltadas para o
magnífico verde escuro de seus manguezais.
Ligações clandestinas de água em
adutora da Compesa, em Recife
O PACTO DO
SANEAMENTO
CIDADES 11
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Ricardo Stuckert / PR
Nas páginas seguintes
Os males e as metas As doenças da falta de saneamento
são conhecidas. Os objetivos a serem atingidos pelo
PAC no setor são até modestos p.12
Um programa de obras O PAC atropelou os esforços
da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. Ele
não é um plano nacional para o setor p.16
A escolha de Dilma A SNSA achava que o setor
estava anêmico e deveria se recuperar aos poucos.
Dilma lhe ofereceu uma feijoada p.18
Um plano para o lixo A SNSA fez dezenas de reuniões
com representantes de 246 municípios. O plano saiu,
mas, no máximo, será reciclado p.20
A Petrobras da água As estatais de saneamento não
precisam de ajuda, mas de um modelo como o da
Sabesp, nossa futura multinacional. É isso? p.21
A união dos pequenos Uma lei nova favorece os
municípios em oposição à idéia de multinacionais da
água todo-poderosas p.25
Ninguém segura mais este país? O presidente Lula
não é o primeiro a achar que, finalmente, não vai mais
faltar dinheiro para um plano de obras p.27
IMAGEM DA CAPA: Esgoto a céu aberto no Conjunto Habitacional Nova
Sepetiba, zona oeste, RJ (27/3/2001) Antônio Gaudério / Folha Imagem
O governo Lula põe no papel, apressadamente, um
plano de obras – mais de 900, por enquanto – para os
serviços de água e esgoto no País
Novembro de 2007
Expediente
Redação
Mino Carta [ supervisão editorial ] Raimundo Rodrigues
Pereira [ coordenador ] Armando Sartori [ editor ]
Lia Imanishi • Rafael Hernandes • Sônia Mesquita
• Tânia Caliari • Verônica Bercht [ redação ]
Ana Castro • Pedro Ivo Sartori [ edição de arte ]
OK Lingüística - Silvio Lourenço • Marco Bortolazzo
[ revisão ]
Vendas
Paulo Barbosa [ gerente ]
Joaquim Barroncas [ representante em Brasília ]
Administração
Neuza Gontijo • Maria Aparecida Carvalho •
Gabriel Carneiro
Retrato do BRASIL é uma publicação mensal da
Editora Manifesto S.A.
Editora Manifesto S.A.
Roberto Davis [ presidente ]
Marcos Montenegro [diretor administrativo e financeiro]
Escritório de administração
Rua do Ouro, 1.725 - 2o andar • Belo Horizonte
MG CEP 30210 590 • Telfax 31 32814431
[email protected]
Escritório comercial e redação
Rua Fidalga, 146 - conj. 42 • São Paulo SP
CEP 05432 000 • Telfax 11 38149030
[email protected]
Representação comercial em Brasília
SCN Quadra 01 - Bloco F • Edifício American Office
Tower - sala 1.408 • Brasília DF • CEP 70711 905
Tel 61 33288046 • [email protected]
Impressão e acabamento
Grecco & Mello - Rua Chave, 614 • Barueri SP
Telfax 11 4198 9860
N
o último dia de julho, o presidente
Luiz Inácio Lula da Silva foi a Cuiabá (MT)
para anunciar mais de meio bilhão de reais
em verbas do Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC) de seu governo para obras
de saneamento na capital matogrossense e
em outros municípios do estado. Somente
para Cuiabá, foram prometidos perto de 300
milhões. O prefeito da cidade, Wilson Santos, do PSDB, o qual presenteou Lula com
uma viola de cocho (imagem acima), instrumento típico do estado, ficou tão entusiasmado que se saiu com uma tirada ao estilo
presidencial. Disse que, ao investir pesadamente em saneamento, Lula rompeu com
um paradigma prevalecente “ao longo de 500
anos de história deste país”: o de que é “incorreto politicamente fazer investimentos em
saneamento”.
Dias depois, o Ministério Público Federal jogou um pouco de água no entusiasmo do prefeito. O procurador da República Thiago de Andrade enviou à Justiça
Federal ação em que pede a suspensão do
envio dos recursos anunciados para a prefeitura. Ele alega, com base nas queixas de
uma construtora, que os editais das duas
principais licitações envolvendo as obras têm
irregularidades graves e quer que eles sejam
refeitos. Até o fim de novembro, o pedido
de Andrade não havia sido examinado pela
Justiça. Se for aceita, a ação do procurador
pode atrasar as obras do PAC em Cuiabá.
O mesmo pode acontecer com mais
obras. Há muito dinheiro envolvido. No
PAC do saneamento, fala-se em 40 bilhões
de reais; no total do Programa, em 500 bilhões. É razoável supor que questões envolvendo disputas entre empresas nas licitações
ocorram em maior escala. Um indício que
aponta nessa direção: em setembro, o ministro Benjamin Zymler, do Tribunal de
Contas da União (TCU), após analisar 231
obras públicas realizadas no País, encontrou
sinais de irregularidades, consideradas graves em mais de um terço delas, das quais 29
constantes do PAC. Zymler recomendou a
paralisação dos projetos com problemas.
As dificuldades que o PAC pode enfrentar não são apenas as relacionadas com
eventuais problemas nos processos de contratação e com atrasos que isso pode acarretar nas obras. Há outras, de importância
tão grande ou maior, que serão vistas ao
longo deste texto. O primeiro aspecto a se
destacar, no entanto, é o de que não há
12 CIDADES Com o PAC, muito mais dinheiro
Uma forma de medir o PAC do saneamento é comparar os investimentos previstos agora com os de períodos anteriores. De modo geral, os investimentos vêm
de três fontes: do Fundo de Garantia por
Tempo de Serviço (FGTS), formado por
recursos recolhidos dos salários de trabalhadores e de contrapartidas das empresas,
e destinados particularmente ao saneamento; do Orçamento Geral da União (OGU);
e de contrapartidas dos estados, municípios e das empresas prestadoras de serviços
de saneamento, quer as sob controle estatal, quer as privadas.
A comparação melhor, porque os dados obedecem a um mesmo critério nas
diversas épocas, é com o dinheiro do FGTS.
Os recursos são repassados na forma de
financiamento, isto é, os tomadores assumem uma dívida com a Caixa Econômica
Federal (CEF) ou com outro agente financeiro do FGTS. É diferente quando o dinheiro sai do OGU. Nesse caso, não existe
dívida, e o beneficiado não precisa devolver
o que lhe foi repassado.
O PAC do saneamento deve financiar 12
bilhões de reais para o setor público com
dinheiro do FGTS e também do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), o equivalente a três bilhões por ano entre 2007 e 2010. Nos projetos pré-selecionados neste ano, foram com-
O GRANDE SALTO DO PAC
Os projetos pré-aprovados já chegam a mais de
R$ 10 bilhões, valor muito superior aos do passado
12
10
8
Evolução dos financiamentos para
os projetos de saneamento
contratados com recursos do FGTS
6
4
2007
2006
2005
2004
2003
2002
2001
2000
1999
1998
1997
0
1996
2
1995
como negar que, desde a década de 1970,
quando o País era governado pelos militares, não se vê afluxo de recursos para o saneamento da ordem prometida pelo governo Lula.
Já existe uma lista com mais de 900 projetos pré-selecionados em todo o País para
receber o dinheiro do PAC do saneamento.
Essa primeira seleção trata de obras a serem
executadas nas regiões metropolitanas e em
municípios com mais de 150 mil habitantes.
Não fazem parte dela as obras do chamado
PAC2, já em curso, que selecionará projetos
para as cidades de tamanho médio, nem as
de responsabilidade da Funasa (Fundação
Nacional de Saúde), que trata das obras de
saneamento nos municípios com menos de
50 mil habitantes. É importante mencionar:
o programa acolheu tanto os projetos que já
estavam em andamento quanto os que estavam na prateleira à espera de dinheiro para
serem tocados. Nem todas as obras, portanto, foram geradas pelo PAC.
RETRATO DO BRASIL | nO 5
FONTE: 1995-2006: “Institucionalização e desafios da política nacional de
saneamento”(Abelardo de Oliveira Filho, 2006). 2007: elaborado a partir de
dados divulgados pelo Ministério das Cidades
1
prometidos mais de dez bilhões do FGTS,
quantia que supera largamente os valores
anuais dos financiamentos do fundo para o
setor desde pelo menos 1995. Para se ter uma
idéia, nesse período, o ano melhor
aquinhoado, o de 2004, ficou bem atrás, com
2,1 bilhões de recursos do fundo.
Além de serem muitos, é preciso destacar também que, entre os projetos pré-selecionados, há vários de grande relevância. Na
reportagem de abertura desta edição já mostramos um deles, que está sendo tocado
em Recife, na área próxima da conhecida
praia de Boa Viagem.
Ainda em Pernambuco, pode ser mencionado também o de Pirapama, de abastecimento de água. Trata-se de uma adutora e
uma estação de tratamento para fornecer
água à região metropolitana de Recife, onde
hoje o abastecimento somente dá conta de
metade da demanda. Com o Pirapama, isso
deve ser resolvido. É um projeto antigo,
do governo do presidente Fernando Collor
de Mello. Os contratos de financiamento
para a adutora e a estação já foram assinados e a obra está sendo licitada para começar a ser construída talvez ainda neste ano.
No Sudeste, há dois destaques importantes. Um é o projeto de esgotamento sanitário da região metropolitana da Baixada
Santista, em São Paulo, a ser realizado pela
Sabesp, a companhia estadual de saneamento. O outro é o de ampliação da estação de
tratamento de água do Guandu, no Rio de
Janeiro, considerada a maior do mundo. A
estação abastece a região metropolitana do
Rio e a melhoria a ser feita será realizada pela
Cedae, a empresa estatal local. As duas obras
têm os maiores valores individuais de investimento entre todas as pré-selecionadas. São
777 milhões de reais no caso do projeto
paulista e 460 milhões no do fluminense.
Entre esses dois exemplos, há uma diferença importante. O da Baixada Santista
vai receber do PAC apenas 17% do seu valor total, pois o restante é de responsabilidade da Sabesp. A empresa já está com as
obras em andamento, utilizando recursos
próprios e outros tomados de agências financeiras internacionais. O projeto do Rio,
porém, vai ser financiado com dinheiro do
PAC em 95% de seu valor.
Por que investir pesadamente em saneamento é tão importante para o Brasil? As
dramáticas situações descritas na reportagem
realizada em Recife dão uma idéia acerca disso. Mas é importante entender o problema
em seu conjunto e conhecer quais resultados
o governo Lula espera alcançar com o PAC.
OS MALES E AS METAS
As doenças da falta de saneamento são conhecidas. Os objetivos
a serem atingidos pelo PAC no setor são até modestos
A
área metropolitana do Recife, com
uma das mais baixas taxas de esgotamento sanitário do País, é considerada uma
das poucas em que a filariose não foi
erradicada. A filariose é uma doença do sistema linfático provocada pelo verme
wachereria bancrofti, transmitido pelo
pernilongo culex quinquefasciatus. Manifesta-se, por exemplo, por um inchaço descomunal do escroto, das pernas. Embora
mate pouco, relativamente, é uma demonstração dos horrores da falta de saneamento. Doenças do saneamento, mais corriqueiras, matam muito mais.
CIDADES 13
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Em 2000, uma reportagem especial da
Folha de S.Paulo sobre a falta de saneamento
se abria com a seguinte manchete: “Falta de
saneamento mata mais que crime”. O texto dizia: “Doenças associadas à falta de saneamento básico mataram no Brasil, em
1998, mais do que todos os homicídios
daquele ano na região metropolitana de São
Paulo, onde se concentra a maioria das
mortes violentas no País”. As doenças do
saneamento, com a diarréia à frente, mataram 10.844 pessoas.
Num balanço sobre a situação do saneamento no País, o livro Retrato do Brasil (Editora Manifesto, 2006) concluía que “como
conseqüência direta das más condições de
saneamento no País, persistia entre a população brasileira, sobretudo a de baixa renda, a ocorrência de doenças veiculadas pela
água, como dengue, malária, hepatite A, febre tifóide, febre amarela e leptospirose,
além de verminoses e moléstias da pele facilitadas pela falta de esgoto”.
Hoje, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD) 2006, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), a situação é a seguinte: 83% dos domicílios estão conectados à rede de água e 49% à de
coleta de esgoto. A meta preliminar do
governo federal com o PAC do saneamento é ampliar, até 2010, o número de domicílios com água para 86% e a coleta de
esgotos para 55% das habitações.
Pobres e sem saneamento
É uma melhoria nada espetacular. Os
números, no entanto, precisam ser vistos
de uma perspectiva mais ampla e os da
água separadamente dos de esgotos. Entre 1984 e 2006, o número de casas com
abastecimento de água aumentou 134%
(de 19,4 milhões para 45,4 milhões) e o
das com coleta de esgoto, 206% (de 8,7
milhões para 26,5 milhões). Em números
absolutos, as casas sem fornecimento de
água pela rede geral são hoje 9,1 milhões,
1,2 milhão a menos do que as que estavam nessa situação em 1984. Porém, a
quantidade das que não têm esgoto coletado pela rede aumentou e muito. De 21
milhões para 28,1 milhões.
No passado, as políticas de saneamento privilegiaram o fornecimento de água
em detrimento da coleta de esgoto. Também não evitaram que as desigualdades
regionais e sociais se refletissem no sanea-
mento. Na PNAD do ano passado, vê-se
que, entre os habitantes das áreas urbanas,
93% se servem de água tratada, enquanto
entre os que vivem no campo esse índice é
de apenas 27%. Na coleta de esgoto, a diferença é bem maior: 54% de coleta nas
cidades contra 4% de coleta nas áreas ru-
vivem em casas sem acesso à rede coletora de
esgoto, sete em cada dez estão nas áreas urbanas e 61% entre os mais pobres.
Saneamento básico é mais do que água
e esgoto. Na Lei do Saneamento, aprovada em janeiro deste ano, a qual estabelece
as diretrizes nacionais e uma política fe-
ÁGUA NO SERTÃO A adutora Luiz Gonzaga leva água
para a lendária Exu. E, com a transposição do São
Francisco, espera-se acabar com a seca do Semi-Árido
O GOVERNO DE PERNAMBUCO inaugurou na segunda quinzena de novembro a
adutora Luiz Gonzaga (na imagem, o governador Eduardo Campos durante a cerimônia). Ela leva água do rio São Francisco para os quatro municípios do pé da Serra
do Araripe, entre os quais a lendária Exu, onde nasceu o Rei do Baião. A Compesa, a
companhia estadual de saneamento,
diz que a obra garante o abastecimento regular de Exu e outras três cidades
da área pelos próximos 20 anos. Até
então, os municípios tinham água um
dia sim e 12 dias não.
No estado, há mais duas adutoras que
carregam água do São Francisco para
o sertão. E outras duas em planejamento, para abastecer os moradores do
Aluisio Moreira
Semi-Árido. No entanto, a grande esperança de acabar com a seca do sertão está nos canais de transposição do São
Francisco, o Ramal Norte e o Ramal Leste. Seu objetivo não é apenas alimentar
pessoas e animais. É revitalizar bacias hidrográficas fora da do São Francisco.
Pelos dois, devem passar, nos períodos secos do rio, 26 metros cúbicos de água por
segundo, praticamente o equivalente ao atual consumo do estado. Quando estiver
vertendo água por cima da barragem de Sobradinho, na divisa Bahia-Pernambuco,
ou seja, quando o rio estiver cheio, os canais poderão carregar até 126 metros
cúbicos de água por segundo.
O PAC acelerou a construção dos dois ramais. As obras de saída do São Francisco já
estão sendo tocadas pela engenharia do Exército. Com os canais, será possível
ampliar o sistema de adução no estado.
rais. O Norte tem apenas 69% da população atendida pela rede de água; as outras
regiões, perto de 90% ou mais. A região
Sudeste tem 81% de sua população urbana ligada à rede de esgoto; as demais não
chegam nem perto dos 50%, sendo que o
Norte tem apenas 5,9%.
Quanto à renda, os contrastes são tão ou
mais dramáticos. Dos 34 milhões que em
todo o País vivem em lares que não estão
ligados à rede geral de água, dois terços moram na zona rural e nada menos que 70%
têm renda mensal domiciliar de até três salários mínimos. Já dos mais de 100 milhões que
deral para o setor, foram incluídos no conceito, antes restrito à água e ao esgoto, o
lixo e a drenagem urbana. No caso dos
resíduos sólidos, como o lixo é chamado
tecnicamente, embora a Pesquisa Nacional de Saneamento, realizada em 2000
pelo IBGE, informe que a coleta era realizada em praticamente todos os municípios, mais de 16 milhões de pessoas não
contavam com esse serviço. Num levantamento por amostragem do Sistema
Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, realizado em 2005, com 192 municí- >>
14 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
AS METAS DO PAC
REFLEXOS DA DESIGUALDADE
O programa de Lula quer elevar um pouco o
acesso à rede de água e fazer a coleta de esgoto
chegar a 55% dos brasileiros
Os mais pobres formam a grande maioria dos
que não têm acesso às redes de abastecimento
de água e de coleta de esgoto
Total
Abastecimento de água
70
Coleta de esgoto
100
60
50
40
30
Domicilios atendidos pelas redes de água e
de
coleta de
em % [1984-2010]
Evolução
do esgoto,
no de domicilios
80
atendidos pelos serviços de
abastecimentode água e de coleta
de esgotos, em % [1984-2010]
60
De 1 a 3 SM (renda domiciliar)
População sem acesso às redes de água e
de coleta de esgoto, em milhões [2006]
40
20
20
10
0
0
1984
2006
FONTE: PNAD 2006 e estimativa do PAC saneamento
Sem abastecimento
de água
2010
2
>> pios, 60% disseram que realizam coleta
seletiva.
Nessa área, os maiores problemas parecem ser os da destinação do lixo. A pesquisa do IBGE informa que 60% dos detritos
são depositados em lixões, 17% em aterros
controlados, 16% em aterros sanitários e
7% são reciclados. A questão é especialmente
aguda nos grandes aglomerados urbanos,
como as regiões metropolitanas, onde o
espaço para dispor os resíduos sólidos é
cada vez mais raro. É o caso de Gramacho,
um aterro que serve a região metropolitana
do Rio de Janeiro e que causa graves preocupações ambientais, como se poderá ver
em capítulo posterior.
As informações sobre drenagem urbana são mais precárias. Segundo o IBGE,
quase 1,2 mil municípios não contam com
esse serviço, aproximadamente o mesmo
número de cidades que informaram terem
sido afetadas por enchentes entre 1999 e
FONTE: PNAD 2006, IBGE
Sem coleta
de esgoto
3
2000. Já um relatório do Ministério das
Cidades de 2003 informa que 104 municípios sofrem de forma recorrente acidentes
mórbidos e/ou declaram estado de calamidade pública após fortes chuvas. O mesmo estudo diz que entre 1993 e 2000 ocorreram 1,5 mil mortes por causa desse tipo
de incidente.
O PAC deu pouca importância à drenagem e praticamente nenhuma aos resíduos sólidos. Os números dos projetos
pré-selecionados demonstram que cerca de
dois terços dos investimentos foram destinados à coleta de esgoto e ao abastecimento de água. A participação da drenagem urbana é bem menor, de 7,5%. E a
dos resíduos sólidos, quase inexistente
(0,15%). A fraca presença desses componentes do saneamento nos recursos do
PAC está ligada, em grande parte, a como
se desenvolveu a história do programa,
tema do nosso próximo capítulo.
UM PROGRAMA DE OBRAS
O PAC atropelou os esforços da Secretaria Nacional de
Saneamento Ambiental. Ele não é um plano nacional para o setor
F
alando a uma audiência atenta em julho deste ano, na abertura da Assembléia
da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae), que congrega cerca de 1,5 mil municípios com serviços autônomos de saneamento, o então
presidente da entidade, Silvano da Costa,
disse para a platéia lotada que o saneamento vivia um momento “alvissareiro”. De
fato, Costa parece não exagerar na avaliação.
Desde 2003, a passos lentos, o saneamento lutava para sair de duas décadas de
falta de dinheiro e de orientação legal. Com
o governo Lula, houve naquele ano o
reordenamento institucional do setor no
nível federal e a criação do Ministério das
Cidades. Também em 2003, recursos do
FGTS foram disponibilizados após quase
uma década de contenção. Em 2005, a aprovação da Lei dos Consórcios, de cuja importância se tratará no penúltimo capítulo
desta história, proporcionou novas possibilidades de relacionamento entre os serviços públicos. E em cinco de janeiro deste
ano, após mais de uma década de luta, o
País passou a contar com uma lei que estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento básico, a 11.445. O setor encontrase, portanto, numa situação muito propícia para retomar seu desenvolvimento: há
regras, interlocutores e dinheiro. O anúncio
do PAC coroou o momento.
Os avanços não ocorreram sem idas e
vindas. No início do primeiro mandato
do presidente Lula, os recursos do FGTS
emprestados às empresas de saneamento
continuaram sendo considerados dívida
pública pelos critérios do acordo com o
Fundo Monetário Internacional (FMI),
que o novo governo não apenas manteve,
como o fortaleceu. Sob a orientação da
política econômica do então ministro da
Fazenda, os empréstimos para o saneamento continuaram contingenciados. Nesse período, estabeleceu-se uma aliança entre os então ministros das Cidades, Olívio
Dutra, e da Casa Civil, José Dirceu, principalmente contra a formação do superávit
para pagar a dívida pública à custa da limitação dos investimentos no setor.
“A equipe que assumiu a direção da Secretaria Nacional de Saneamento [Ambiental, subordinada ao Ministério das Cidades] tinha legitimidade junto ao setor. Ela
era formada por técnicos experientes que
haviam presidido associações de profissionais e entidades prestadoras de serviços de
saneamento e que vinham militando junto
aos movimentos progressistas há mais de
20 anos”, diz Costa a Retrato do Brasil.
Esses técnicos haviam participado também da elaboração do programa do governo de Lula, para o qual levaram as principais bandeiras do movimento progressista
do saneamento: instituir uma política nacional para o saneamento ambiental, descontingenciar os recursos do FGTS para os serviços públicos de saneamento e impedir a
privatização do setor. Segundo Costa, es-
CIDADES 15
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Ricardo Stuckert / PR
Lula anuncia o PAC aos governadores
em janeiro: programa de obras, não plano
ses são os pilares básicos sobre os quais se
apóiam as metas de atingir a universalização e eqüidade dos serviços, com participação e controle social e melhoria da gestão.
No primeiro ano, a Secretaria Nacional
de Saneamento Ambiental (SNSA) instituiu o Programa Saneamento para Todos,
que financia projetos para saneamento com
recursos do FGTS e do Fundo de Amparo
ao Trabalhador (FAT). Os recursos do
FGTS são o principal alicerce financeiro do
saneamento e, normalmente, é por meio
deles que políticas públicas podem ser executadas em nível federal. Isso porque a maior
parte dos recursos provenientes do Orçamento Geral da União, a outra fonte de recursos federais, é alocada por emendas parlamentares no processo de preparação do
orçamento, restando pouca margem para o
Executivo destinar o dinheiro de acordo
com uma política coerente e integrada.
Em 2003, a equipe do Ministério das
Cidades conseguiu contratar 1,6 bilhão de
reais de recursos do FGTS para obras de saneamento a partir de brechas na legislação, as
chamadas “excepcionalidades” nas regras do
FMI e do Conselho Monetário Nacional
(CMN) para o contingenciamento do crédito ao setor público. Foi um investimento
expressivo: nos quatro anos anteriores tinham sido apenas 273 milhões de reais.
No fim de 2003, sob pressão do Ministério das Cidades, foi acertado com o FMI
que todo superávit excedente apurado entre janeiro e setembro daquele ano, o qual
atingiu 2,9 bilhões de reais, seria utilizado
em obras de saneamento no ano seguinte.
O resultado foi que as contratações com os
recursos do FGTS chegaram a 2,1 bilhões
de reais em 2004. Em 2005, no entanto, as
restrições retornaram. O CMN impediu o
uso dos recursos do FGTS durante quase
todo o ano, liberando-os somente no fim
do período, quando já não havia mais tempo para as contratações. Por isso, elas ficaram em pífios 53,8 milhões de reais.
O objetivo da SNSA era disponibilizar
recursos para o saneamento de forma contínua e planejada. “O pior para o setor não
é ter poucos recursos, é num ano ter e no
outro não ter nada”, explica Sérgio Gonçalves, diretor da Secretaria. “Isso mostra que
o governo federal, para ter uma política pública de saneamento, não pode ficar ao bel
prazer do Conselho Monetário Nacional”,
diz ele a RB.
O esforço da equipe do Ministério das
Cidades somente rendeu frutos no ano seguinte. “Com o limite aberto no fim de
2005, nós contratamos em 2006 quase três
bilhões de reais”, diz Gonçalves. O período que vai do fim de 2005 e avança por
2006 também é considerado bastante positivo. No fim de 2005, o governo federal
celebrou o pagamento da última parcela do
acordo com o FMI e finalizou o acordo,
livrando-se da tutela exercida pela instituição internacional. Em março de 2006,
Guido Mantega, tido como de formação
“desenvolvimentista”, assumiu o Ministério do Planejamento.
O atropelo do PAC
E, mesmo o escândalo do “mensalão”,
que teve repercussões profundas na formação do governo Lula, se resultou, por um
lado, na saída do “aliado” José Dirceu da
Casa Civil, acabou levando também à retirada do “inimigo”: Antônio Palocci, do Ministério da Fazenda. Com a perspectiva de
uma nova orientação econômica, a SNSA,
finalmente, obteve a promessa da liberação
de 12 bilhões de reais dos recursos do FGTS
para os quatro anos seguintes, em parcelas
anuais de três bilhões. Era a possibilidade
de executar uma política pública, com investimentos planejados e criteriosos.
De certo modo, no entanto, o plano
da SNSA é atropelado pelo PAC. A grande
falha no setor de saneamento era o fato de
que grandes divergências existentes no
Congresso quanto a uma política nacional
de saneamento tinham levado à indefinição do Plano Nacional de Saneamento, que
seria uma espécie de coroamento final dos
diversos movimentos de melhoria da legislação do setor e de definição de um plano de obras.
O PAC do saneamento também não
é esse plano. PAC não é plano, em geral, é
um Programa de Aceleração do Crescimento. O PAC do saneamento é, portanto, um programa de obras de saneamento em todo País sem um plano de saneamento nacional. Nas palavras do presidente Lula, ditas em agosto numa reunião no Palácio do Planalto com 12 governadores, prefeitos e representantes dos
movimentos populares: “O jogo está jogado, os protocolos foram assinados, o
dinheiro está disponível. Agora, depende dos prefeitos, da agilidade de vocês de
fazeram a licitação da forma mais transparente possível, contratarem as obras e,
pelo amor de Deus, comecem a me convidar no ano que vem para visitar as obras
em andamento”.
Como se verá no próximo capítulo,
além disso, o programa de obras foi tocado
apressadamente.
16 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
RETRATO DO BRASIL | nO 5
CIDADES 17
18 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
A ESCOLHA DE DILMA
A SNSA achava que o setor estava anêmico e deveria se
recuperar aos poucos. Dilma lhe ofereceu uma feijoada
sistema financeiro público, especialmente da
Caixa Econômica Federal, que opera o
FGTS, e do BNDES, que administra o
Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
E os oito bilhões restantes viriam de contrapartidas de estados, municípios e prestadores de serviços.
Dos 12 bilhões de reais do OGU, quatro bilhões iriam especialmente para saneamento de favelas e áreas degradadas das
áreas metropolitanas; outros quatro bilhões, para as cidades menores de 50 mil
habitantes, cujos serviços de saneamento
são auxiliados pelo Ministério da Saúde,
por meio da Funasa; e outros quatro biAgência Brasil
E
m dezembro de 2006, quando as obras
de saneamento e habitação de responsabilidade do Ministério das Cidades foram
incorporadas ao PAC, a Secretaria Nacional
de Saneamento Ambiental se viu diante da
seguinte questão: quais eram as prioridades? A questão tinha de ser resolvida rapidamente, pois o PAC seria anunciado oficialmente no mês seguinte. Em janeiro, o
presidente Lula anunciou o PAC.
Para o setor de saneamento eram 40
bilhões de reais em quatro anos. Nesse período, 12 bilhões seriam alocados a fundo
perdido por meio do Orçamento da União.
Vinte bilhões viriam de empréstimos do
lhões para cidades de tamanho maior.
Eram reservados também 600 milhões de
reais para drenagem, 600 milhões para
reestruturar e melhorar a gestão das companhias estaduais e também de alguns serviços municipais e outros 200 milhões para
resíduos sólidos.
Para os 20 bilhões de financiamentos,
as obras de esgoto nas grandes cidades e
regiões metropolitanas eram a prioridade
maior. A SNSA concentrou seus esforços
na análise dos projetos que deveriam receber esses empréstimos.
O prazo dificultava o planejamento.
Uma dificuldade adicional era o fato de a
União não ter a titularidade dos serviços de
saneamento e só poder planejar a execução
de obras a partir de informações dos estados e municípios, que definem as prioridades. Porém, a Secretaria agiu rapidamente e
definiu a linha de atuação e os valores a
serem investidos. Analisou projetos antigos, que esperavam aprovação, e fez uma
consulta aos estados e municípios para levantar suas propostas e prioridades. Em
março, já havia uma leva de projetos aguardando financiamento.
No plano da SNSA, assim definido, previa-se um desembolso paulatino dos recursos, à medida que as obras pudessem
ser bem definidas e o setor fosse fortalecido. O que estava por trás dessa prudência
era a busca de qualidade e consistência para
um programa viável. Para isso, a SNSA
priorizou também a preparação do plano
de fortalecimento das estatais, no qual seriam
aplicados 600 milhões de reais.
Em abril, no entanto, começaram os
desentendimentos entre a direção da SNSA
e a ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff.
Ela não aceitou o plano gradual e resolveu
acelerar o processo de definição das obras.
A Secretaria achava que o setor vinha de um
período de anemia e deveria ir acelerando
aos poucos. Dilma agiu como alguém que,
na tentativa de recuperar uma pessoa vítima de inanição, resolvesse alimentá-la, de
saída, com uma feijoada.
Para escolher os projetos, a solução da
ministra foi a realização de reuniões amplas, com a participação de prefeitos das capitais e de municípios das regiões metropolitanas e representantes dos estados.
Nessas reuniões, a equipe do governo fe-
Dilma Roussef: a ministra não aceitou
o plano gradual da SNSA e resolveu acelerar
CIDADES 19
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Montenegro, demitido da SNSA: a
Daniela Toviansky / Cia de Foto/ Valor / FolhaImagem
deral apresentava as previsões de investimento e solicitava às autoridades e representantes que expusessem as suas prioridades em saneamento.
Para serem elegíveis, os projetos deviam
ser de obras consideradas estruturantes e
atender a regiões metropolitanas, áreas
identificadas como as de maior déficit dos
serviços, e a áreas pobres.
Numa segunda rodada de reuniões, quando os técnicos dos municípios apresentavam
as propostas de obras, a equipe do governo
federal tentava qualificá-las e verificar se atendiam às determinações do PAC. O governo
estabeleceu como critério que os recursos do
OGU seriam aplicados nas cidades mais pobres e, prioritariamente, em obras de saneamento integrado em favelas. E também diminuiu a exigência de contrapartida para esse
tipo de financiamento.
Para os prefeitos, governadores e companhias estaduais, isso foi bem-vindo. A
mesa de negociações reuniu o Ministério
das Cidades, os ministérios do grupo executivo que coordena o PAC, técnicos do
Ministério da Fazenda, da Secretaria do Tesouro, da CEF e do BNDES, consultados
ali mesmo para ver se o município, o estado ou a companhia estadual pleiteante podiam receber os empréstimos. Definição
rápida, sem muita cerimônia. Os projetos
já saíam das reuniões pactuados com o valor, o agente financiador e o percentual de
contrapartida definidos. Depois, para que
o dinheiro fosse definitivamente repassado, restavam acertar detalhes importantes,
principalmente no caso de os recursos saírem do FGTS.
As escolhas comandadas por Dilma
chegaram a 21,6 bilhões, mais da metade
dos 40 bilhões previstos até 2010. Entre os
problemas enfrentados nesse processo,
além daqueles característicos das negociações
envolvendo recursos públicos, surgiram
outros. Muitos dos candidatos aos recursos do PAC não tinham uma carteira de
projetos. Essa situação era considerada normal pelos técnicos do setor. Não se faz projetos se não há dinheiro, explica Afrânio de
Paula, diretor do Serviço Autônomo de
Água e Esgoto de Guarulhos, na região
metropolitana de São Paulo.
Apesar da pressa, grande parte das obras
pactuadas ainda não foi contratada pelo
governo federal por falta dos documentos
necessários e, principalmente, por falta dos
projetos básicos. Além disso, a demanda
metodologia de Dilma desnorteou o setor
gerada pelo próprio PAC, que concentrou
grande parte dos recursos previstos até
2010, superaqueceu um mercado
despreparado para atendê-la.
Os estados e municípios estão com dificuldades para contratar profissionais
especializados e até mesmo empresas de
consultoria para elaborar seus projetos,
como reconhece Afrânio. “Estamos vivendo um processo de criação de uma nova
rotina de trabalho. Nestes vários anos sem
investimentos, nos habituamos a trabalhar
com recursos muito limitados, pequenos
projetos, a resolver as demandas de rotina.
Com a disponibilidade de recursos, esse
quadro mudou”. Outro problema, diz ele,
é a falta de profissionais. “O mercado paralisado não gerou profissionais de engenharia, administração de projetos e outros na
área de saneamento”.
A resistência a Dilma
Em meio a esse processo atribulado, o
governo federal cortou programas que os
técnicos consideram importantes. Um deles era o de apoio à gestão e revitalização de
companhias estaduais e serviços municipais.
Ele atendia os anseios da Associação das
Empresas de Saneamento Básico Estaduais
(Aesbe) e da Associação Nacional dos Serviços Municipais de Saneamento (Assemae)
para fortalecer os prestadores dos serviços
de forma a ajustá-los ao novo ritmo de inA MUDANÇA DE MÉTODO
Os investimentos dos projetos pré-aprovados
alcançam mais da metade dos 40 bilhões de reais
previstos para 4 anos
VALORES ENVOLVIDOS NO PAC DO SANEAMENTO,
POR MODALIDADE, EM R$ BILHÕES
INVESTIMENTO
TOTAL
FINANCIAMENTO
ORÇAMENTO GERAL
DA UNIÃO
CONTRAPARTIDA
OUTRAS
FONTES
Esgotamento
sanitário
8,978
4,775
2,429
1,775
0,000
Abastecimento
de água
5,400
3,296
1,261
0,713
0,013
Manejo de
águas pluviais
1,666
1,149
0,266
0,252
0,000
Saneamento
integrado
4,879
0,869
3,108
0,902
0,000
Desenvolvimento
institucional
0,647
0,552
0,000
0,094
0,000
Manejo de
resíduos sólidos
0,032
0,025
0,000
0,007
0,000
Estudos e
projetos
0,001
0,001
0,000
0,000
0,000
21,604
10,667
7,064
3,744
0,013
Total
FONTE: elaborado a partir de dados do Ministério das Cidades
4
vestimentos proporcionado pelo PAC e
auxiliá-los a garantir o cumprimento da Lei
do Saneamento. Na distribuição final de
recursos, dos 600 milhões de reais inicialmente previstos, coube apenas 20 milhões
do OGU para esse fim. Dilma também cortou o projeto da área de resíduos sólidos.
Dos 200 milhões de reais previstos para
serem investidos num programa para o setor, só sobraram 50 milhões em recursos
do OGU.
Houve alteração também nos planos
para os municípios com população entre
50 mil e 150 mil habitantes, que serão contemplados na segunda etapa do PAC. O
valor destinado a eles foi reduzido a 1,55
bilhão de reais. Inicialmente, a previsão era
investir em 300 municípios, mas a ameaça
de pulverizar os recursos levou a uma
reavaliação e, agora, apenas 106 municípios
serão beneficiados.
A orientação imprimida ao processo pela
ministra da Casa Civil enfrentou resistência.
Um dos principais críticos de aspectos dessa
orientação foi o então diretor de Desenvolvimento e Cooperação Técnica, Marcos
Montenegro, uma das mais destacadas figuras da Frente Nacional de Saneamento. Ele foi
demitido. “O resultado disso [a metodologia imposta por Dilma] é que o setor está desorientado”, diz Montenegro, diretor da Editora Manifesto, que edita RB. “Não dá para dar
um pulo tão grande. O problema não é falta
de dinheiro, mas pressa demais. Isso acaba
atropelando um projeto, e uma política pública acaba virando um programa de obras.”
20 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
há cerca de três anos recolhendo plásticos
finos no meio das montanhas de lixo. É
empregado de um dos donos de galpão.
Marcelo explica como é o dia-a-dia dele e de
seus colegas. O trabalho é simples, diz.
“Qualquer um pode trabalhar, é só chegar e
trabalhar”. Os catadores entram na área do
aterro, vasculham as montanhas de restos e
separam o que consideram ser importante.
Depois, colocam esse material em caminhões. A seguir, já nos galpões, fazem a
separação mais fina.
Marcelo não tem dúvida sobre os efeitos da interdição de Gramacho. “Se fechar,
vai acabar com o trabalho de muita gente.
Tem gente que vem de todo lado trabalhar
aqui. O pessoal até aluga barraco. Trabalha a
semana inteira e só volta para casa no fim
de semana.”
UM PLANO PARA O LIXO
A SNSA fez dezenas de reuniões com representantes de 246
municípios. O plano saiu, mas, no máximo, será reciclado
e mulheres, jovens, idosos e adolescentes,
muitos dos quais organizados em associações ou cooperativas, como a ACAMJG
(Associação dos Catadores do Aterro de
Jardim Gramacho) e a Coopergramacho
(Cooperativa de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho), e que
dependem do aterro.
Eles trabalham nas dezenas de galpões erguidos nas cercanias do lugar. Ali,
selecionam o material a ser reciclado. Alguns moram nos pequenos barracos que
pululam ao redor.
A paraibana Maria da Silva, de 40 anos,
e o marido, um confeiteiro, são donos de
três dos vários estabelecimentos comerciais,
botecos e mercearias que se instalaram nas
cercanias. “É de onde tiramos nosso sustento, meu, do meu marido e das minhas
filhas”, diz, referindo-se às adolescentes
Lydia e Lidiane. Maria vive no Rio há mais
de 13 anos, a maior parte desse tempo nas
redondezas do aterro. Ela é contra a
desativação. “Não pode fechar. Muita gente
vai ficar sem trabalhar”, diz.
O catador Marcelo da Conceição, 22
anos, pensa da mesma forma. Ele trabalha
Ameaça à Baía de Guanabara
Alessandro Costa / Ag. O Dia
A
falta de recursos do PAC do saneamento para um plano de tratamento dos
resíduos sólidos nas grandes regiões metropolitanas não é um problema pequeno. Um exemplo é Gramacho, o maior
aterro de lixo da América Latina e um dos
locais apontados como problemáticos em
estudo da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. O diagnóstico diz que
o aterro, localizado em Duque de Caxias,
município ao norte da cidade do Rio de
Janeiro, é uma ameaça ao ambiente. E, por
isso, deve ser fechado.
Gramacho tem 1,3 milhão de metros
quadrados e recebe diariamente 8,5 mil toneladas de resíduos. Os detritos vêm, além
de Duque de Caxias, de Mesquita, Nilópolis,
Niterói, São João do Meriti e da capital
fluminense. A área faz limite com o Jardim
Gramacho, bairro da periferia da cidade, com
as instalações da Refinaria Duque de Caxias e
com o mangue formado pelo encontro das
águas do rio Sarapuí e do mar.
O aterro vive um dilema. Se for fechado, os catadores, que selecionam material
reciclável em meio às montanhas de lixo,
serão prejudicados. São centenas de homens
O aterro, no entanto, está passando a
ser uma ameaça. Gramacho é um aterro controlado, um local para a disposição dos resíduos que segue alguns itens de segurança
ambiental. Geralmente, os aterros controlados nascem como lixões, áreas abertas e
sem qualquer controle do material depositado, consideradas extremamente perigosas.
Depois, eles recebem melhorias, como o
isolamento da área e estruturas que permitam algum tipo de tratamento para evitar
que o material depositado ofereça danos ou
riscos à saúde pública.
Em Gramacho, por exemplo, o lixo é
acomodado em camadas e coberto com
material inerte. E o chorume, líquido produzido durante a decomposição dos detritos, é em parte tratado, cerca de um terço. O
restante é aspergido sobre o próprio lixo
para acelerar a decomposição dos detritos.
Além disso, o entorno do aterro foi impermeabilizado com argila orgânica para evitar
que o chorume vaze e contamine o mangue. Essas características o aproximam dos
aterros sanitários, instalações planejadas
para receber lixo com um nível de segurança ambiental superior.
O diagnóstico sobre resíduos sólidos
da SNSA, no entanto, afirma que Gramacho “contamina as águas da Baía de
Guanabara e apresenta sérios riscos de estabilidade”. Um dos temores é o de que as
montanhas de lixo do aterro cedam sobre
Gramacho: o maior aterro da América
Latina é uma ameaça ambiental e deve fechar
CIDADES 21
Catadores
separam material para
reciclar: trabalho simples para muita gente
o leito do rio Sarapuí, contaminando-o e
impedindo a passagem de suas águas em
direção ao mar.
Quem também defende o fechamento
imediato do local é o deputado estadual
André Lazaroni, o André do PV. Segundo
ele, o aterro foi instalado sobre o mangue e
a camada de turfa, o material esponjoso,
típico de terrenos pantanosos, pode não
resistir em razão do grande volume de lixo
colocado sobre ela. “Já pedi a finalização de
Gramacho e não sou só eu que peço isso.
Gramacho não tem condição nenhuma de
continuar”, diz ele a RB.
Quem também pensa da mesma forma é o coordenador de Resíduos Sólidos
da Secretaria de Ambiente do estado do Rio
de Janeiro, Osmar Dias. “O aterro metropolitano de Gramacho se encontra saturado, já há bastante tempo necessita ser fechado”, diz. O fechamento só não ocorreu,
segundo ele, por problemas burocráticos.
Dias estima que o encerramento de Gramacho somente acontecerá em um prazo de
dois a três anos.
O diagnóstico do Ministério das Cidades sobre o lixo é o resultado de dezenas de
reuniões entre representantes do ministério
e de 256 municípios que seriam favorecidos
pelas verbas do PAC para essa área. E contou com o apoio técnico de especialistas de
diversos órgãos e universidades federais e
estaduais sediadas nas regiões envolvidas.
Dentre as ações que considera necessárias para melhorar as condições da disposi-
Paulo Araújo / Ag. O Dia
RETRATO DO BRASIL | nO 5
as companhias estaduais, que são as principais prestadoras de serviços de fornecimento de água e de coleta e tratamento de esgoto no País. As empresas consideradas as
mais eficientes, a Sabesp, de São Paulo, a
Copasa, de Minas Gerais, e a Sanepar, do
Paraná, não eram contempladas com a ajuda, mas grandes empresas como a Cedae,
do Rio de Janeiro, com 90 milhões de reais,
e a Compesa, de Pernambuco, com 65 milhões, estavam incluídas.
O corte radical do programa, pela ministra Dilma Rousseff, mais do que uma
medida de economia de recursos, pode ter
partido de uma avaliação de que os prestadores públicos de serviço de saneamento já
estão recebendo investimentos a fundo
perdido do Orçamento da União e que especialmente as suas companhias estaduais
já têm um caminho a seguir para superar
suas deficiências internas: o das empresas
mais eficientes, como Sabesp e a Copasa.
No Paraná, controle do estado
ção do lixo nas áreas prioritárias, o estudo
indica o fechamento de 89 lixões, a implementação de 64 novos aterros sanitários e
de 294 galpões para triagem de material
reciclável feita por catadores.
Não se pode dizer que o plano foi jogado no lixo pela ministra. Pode ser que ele
seja reaproveitado no futuro. Ou reciclado,
pode-se dizer, a propósito.
A PETROBRAS DA ÁGUA
As estatais de saneamento não precisam de ajuda, mas de um
modelo como o da Sabesp, nossa futura multinacional. É isso?
A
idéia de um programa de apoio “à
estruturação e à revitalização” dos “prestadores públicos de serviços de saneamento
básico” partiu, como diz o documento básico desse plano preparado pelo Ministério
das Cidades, de duas constatações. A primeira é que é o setor público que presta a
grande maioria dos serviços dessa área e a
segunda, que muitos desses prestadores
têm custos e perdas muito altos, além de
baixa produtividade e baixa capacidade de
acumular capital para investir.
O programa previa gastar no total 600
milhões de reais, dos quais 473 milhões com
Mesmo sendo considerada mais eficiente, a Sanepar não é mencionada porque
o governo do estado do Paraná, na administração Roberto Requião, move grande
campanha contra o grupo Dominó, formado por capitais brasileiros e internacionais. O Dominó foi considerado sócio estratégico da Sanepar em 1998, durante o
governo de Jaime Lerner, quando comprou perto de 40% do capital da companhia. Pelo acordo de acionistas feito por
ocasião da venda das ações, o grupo tinha
a gestão da empresa. Logo que assumiu o
governo, Requião baixou decreto por meio
do qual o estado reassumiu o comando
da companhia. Pouco depois, o governador conseguiu da Assembléia Legislativa a
aprovação de lei que tornou obrigatório
ao estado o controle do serviço de saneamento do Paraná.
Um diretor do BNDES, Élvio Gaspar,
falando a O Estado de S.Paulo, disse que não
se prevê novas privatizações no setor, com
a entrega do controle das companhias ao
capital privado. O que se prevê, disse ele, é a
abertura do capital das empresas, como foi
feito pela Sabesp e pela Copasa, que seguem
decididamente o modelo de mercado e buscam se tornar mais competitivas e atrair
novos investimentos.
Como se sabe, em 1996, o governo
Fernando Henrique Cardoso, em plena euforia liberalizante, fez amplo plano de mo-
22 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
RETRATO DO BRASIL | nO 5
CIDADES 23
24 CIDADES RETRATO DO BRASIL | nO 5
UM DOCUMENTO RECENTE do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID),
intitulado “Saída de operadores privados de água na América Latina”, reconhece
esse fracasso, embora parcialmente. O documento, que analisa a situação de cinco
países – Argentina, Chile, Uruguai, Bolívia e Venezuela – e contém observações
gerais sobre o Brasil, a Colômbia e o México, reconhece que “a maioria dos operadores privados se retirou da região, que um grande número de serviços foi reestatizado
e que os serviços reguladores deixaram de exercer suas funções”.
No Brasil, o grupo francês Suez foi o primeiro investidor em saneamento. Em 1995,
associado à construtora brasileira Odebrecht, obteve a concessão do serviço da
cidade de Limeira (SP). Em 2006, vendeu seus 50% de participação para o sócio.
Vendeu também a parte que tinha na empresa de coleta de lixo Vega e na Águas do
Amazonas.
A estatal Águas de Portugal, que, em 1998, comprou a Prolagos, operadora de água
e esgotos na área de Búzios, Cabo Frio, Arraial do Cabo e outros municípios turísticos
do litoral fluminense, está vendendo parte de sua participação e não pensa em
realizar novos investimentos.
Só a Veolia Environnement, o terceiro grande investidor estrangeiro no setor, fala
em aumentar sua participação. Isso talvez se deva ao fato de que a companhia
apenas não abre mão do que imagina serem seus direitos na sua disputa pelo controle ou por um acordo na Sanepar, a estatal paranaense. A Veolia atua no setor por
meio da Proactiva, que faz parte da Dominó Holding S/A. E a Dominó, com a construtora Andrade Gutierrez e o Banco Opportunity, detém 37,71% das ações da Sanepar.
dernização do setor de saneamento, tendo
como premissa a privatização das companhias estaduais e a entrada de grandes investimentos privados, especialmente estrangeiros. Esse plano supunha a continuidade do movimento de entrada de capitais
no País, o que levou a moeda brasileira a se
valorizar no início do Plano Real, quando
chegou a valer até 1,25 dólar. Mas essa condição se alterou dramaticamente a partir do
final de 1998, quando o real desmoronou e
o Brasil teve de se enquadrar nas regras do
FMI para receber ajuda e parou de receber
novos investimentos.
Na época, a Caixa Econômica Federal
passou a desempenhar o papel de um FMI
interno do setor: oferecia empréstimos aos
estados em condições diferentes do arrocho monetário geral, mas para forçar a assinatura de cartas de compromisso em que
eles se comprometiam a vender as estatais
de saneamento. Fez isso com os governos
de Pernambuco e da Bahia no final de 1999.
Em alguns casos, como o de Pernambuco, o esforço de privatização acabou ten-
do como resultado a paralisação dos investimentos no setor de saneamento por quase uma década. Só em 2 de setembro passado, conta João Bosco de Almeida, presidente da Compesa, a empresa se livrou da
proibição de obter financiamentos na Caixa Econômica Federal, decorrente da sua
inadimplência com relação ao crédito de 128
milhões de reais obtidos para levar adiante
a privatização.
O capital privado não é a saída
Afastada a idéia de abrir mão do controle da estatal, Pernambuco vai lançar na
Bovespa no próximo ano ações da Compesa
para atrair capital suficiente para pagar a dívida com a CEF – compromisso que assinou agora para conseguir se habilitar a ter
investimentos do PAC. A Cedae, do Rio
de Janeiro, diz seu presidente Wagner Vícter,
também se propõe a abrir o capital da empresa na Bolsa, em 2009.
Bosco, da Compesa: em Pernambuco,
esforço de privatização paralisou investimentos
Divulgação / COMPESA
FRACASSO ASSUMIDO A privatização das estatais de
saneamento fazia parte de movimento mais amplo,
feito em vários países. E também fracassou amplamente
Para alguns, o capital privado poderia
resolver o problema da universalização dos
serviços de saneamento no País. O engenheiro civil Yves Besse, presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), por exemplo, disse recentemente que o apoio às estatais de saneamento com recursos a fundo perdido do governo federal “é jogar dinheiro fora”. Para ele,
o mercado é a melhor solução para o saneamento. E os investimentos viriam com a
cobrança de tarifas não políticas e demagógicas, mas realistas. Besse também cita a
Sabesp e a Copasa como empresas que estão seguindo o bom caminho.
O problema, porém, está expresso nas
contas feitas por Almeida com a tarifa social
da Compesa, que é de R$ 15,80 para água e
esgoto e que, segundo ele, obviamente não
pode ser paga por centenas de milhares de
famílias das camadas pobres do estado. Pernambuco tem 870 mil famílias na categoria
de “miseráveis”. Elas ganham menos de 60
reais per capita mensais, mesmo computando a ajuda federal do Bolsa Família, que responde por mais de metade do que ganham.
De que forma os serviços de saneamento podem cobrir seus custos, realizar investimentos, universalizar os serviços e, ainda, distribuir dividendos aos seus acionistas num País onde os miseráveis e os pobres formam perto de 60% da população?
A Compesa está tentando fazer uma
Parceria Público-Privada para investimento em saneamento em alguma área do
Recife. “O problema” diz Sérgio Tavares,
auxiliar de Bosco, mostrando o mapa das
CIDADES 25
Divulgação
RETRATO DO BRASIL | nO 5
unidades de coleta de esgotos em que a
cidade está dividida, “é que o empresário
quer saber em que área dá dinheiro. E Recife não é uma cidade onde os pobres estejam muito separados dos ricos”.
Costa e Silva: o deputado quer fazer da
Sabesp uma “espécie de Petrobras da água”
A idéia de que se devem fortalecer as
companhias estatais do setor estimulando seu aspecto empresarial e elevando seu
grau de integração com o mundo das finanças está mais desenvolvido em São
Paulo. E esse caminho foi reforçado com
a aprovação de uma nova legislação que
pretende dar ares multinacionais à empresa paulista, a Sabesp.
O deputado estadual Rodolfo Costa e
Silva (PSDB) defende a controversa lei aprovada pelo legislativo paulista em meados de
novembro, que criou a Agência Reguladora
de Saneamento e Energia do Estado de São
Paulo (Arsesp). A nova lei traz, entre outros
pontos polêmicos, a permissão para que a
Sabesp atue fora do estado de São Paulo,
inclusive no exterior. O objetivo é “transformar a Sabesp numa espécie de Petrobras da
água”, diz o parlamentar, funcionário de carreira da companhia, a RB.
A UNIÃO DOS PEQUENOS
Uma lei nova favorece os municípios em oposição à
idéia de multinacionais da água todo-poderosas
A
criação da agência paulista para o saneamento pode ser vista como um exemplo da
visão empresarial e, até certo ponto, privatista
do setor de saneamento. Pode-se dizer que
o plano de fortalecimento do setor público
previsto pela Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental, afinal derrotada nas discussões do PAC, contrapõe-se a essa visão,
defende o modelo de um serviço público,
estatal, não voltado para o lucro, mas para o
atendimento das necessidades do saneamento ambiental num país pobre como o Brasil.
Em São Paulo, o projeto da agência foi
feito para atender às exigências da Lei do
Saneamento, que permite aos titulares dos
serviços públicos de saneamento básico criar
suas agências reguladoras ou, simplesmente, delegar a regulação para uma agência de
outra instância. Nesse sentido, a Arsesp foi
instituída para atuar tanto nos municípios
das regiões metropolitanas, onde a Sabesp
predomina largamente, quanto nas demais
cidades do estado. O projeto de lei foi alvo
de um debate intenso. Teve 180 emendas e
um projeto substitutivo da bancada do PT,
de oposição. E, mesmo aprovado por 61
votos favoráveis contra 19, o debate ainda
não está resolvido.
A oposição acusa o governo de José
Serra de não debater o projeto com a sociedade e enviar a proposta para a Assembléia
em regime de urgência, dificultando a discussão inclusive no legislativo. Além disso,
alega que a agência foi criada antes do estabelecimento, pelo governo do estado, dos
parâmetros para a formulação da política
estadual de saneamento.
A bancada do PT na assembléia paulista
também enxerga outro problema grave na
nova lei. E promete ingressar no Superior
Tribunal Federal (STF) com uma ação direta de inconstitucionalidade, questionando
o conceito de titularidade estadual dos serviços de saneamento assumido na lei. Essa
decisão se baseia na distinção que ela faz
entre dois tipos de serviços públicos de saneamento: os de “titularidade municipal”
e os de “titularidade estadual”.
A bancada petista entende que o governo estadual pretende cassar a autonomia
dos municípios nos serviços de saneamento básico nas regiões metropolitanas, que
respondem por mais de 80% das receitas
da Sabesp – o filé mignon do serviço.
Essa é uma questão que já gerou pelo
menos três ações diretas de inconstitucionalidade, de autoria dos governos do Rio
de Janeiro, da Bahia e de São Paulo. Todas
aguardam julgamento no STF. À diferença
da iniciativa da bancada do PT, procuram
reafirmar o ponto de vista de que as companhias estaduais têm o controle dos serviços municipais nas regiões metropolitanas.
Pressão estadual no STF
A aprovação da nova lei em São Paulo
tem o sentido de tentar antecipar a decisão
do STF, diz Salvador Khuriyeh, assessor de
desenvolvimento econômico da bancada do
PT na Assembléia Legislativa, e garantir o
controle da Sabesp sobre os serviços, escreveu ele em artigo publicado antes da aprovação do projeto de lei. “Dos 645 municípios
paulistas, a Sabesp opera diretamente em 367
deles e, da receita liquida de 5,5 bilhões de
reais obtida pela Companhia em 2006, 72%
vêm dos 39 Municípios que compõem a região metropolitana da capital.”
Essa questão pode ser um falso problema, diz Marcos Montenegro. “Os estados, particularmente São Paulo, estão fazendo pressão para o julgamento não ser
retomado, mas o STF é favorável à concepção de que a titularidade é municipal”, avalia. De acordo com o voto do ministro Eros
Grau no caso da Bahia, a titularidade dos
serviços de interesse predominantemente
local, como é o caso do saneamento, é dos
municípios. Mesmo quando o estado age
dentro de suas atribuições e define uma região metropolitana, a titularidade permanece do município e, à sua responsabilidade pelo atendimento do interesse local, é
acrescido o atendimento do interesse
interlocal, ou seja, regional.
A concepção da Arsesp reflete, segundo
Montenegro, a continuidade de uma visão
e de uma prática herdadas da época da ditadura. A legislação em vigor dá aos estados a
26 CIDADES Divulgação / CORESA
RETRATO DO BRASIL | nO 5
titularidade para definir agrupamentos de
municípios, como regiões metropolitanas,
aglomerações urbanas e microrregiões. Um
estado pode, dessa forma, dividir todo seu
território, inclusive as regiões metropolitanas, em microrregiões de interesse específico, como resíduos sólidos, água e esgoto
etc. E só. Mas a prática tem sido outra. “Os
estados querem, na verdade, fazer pelos
municípios”, diz. “Esse não é o arranjo da
Constituição de 1988.”
O poder local foi reforçado em 2005
com a aprovação da Lei dos Consórcios,
segundo a qual os municípios podem se
agrupar para realizar atividades de interesse comum. É algo que na área de saneamento pode provocar um rearranjo de poder entre os estados e seus municípios. É
diferente um processo de negociação no
caso de uma poderosa companhia estadual como a Sabesp ter como interlocutores municípios isolados ou ter, do outro lado da mesa, um consórcio que reúna várias cidades.
Uma atuação oposta à do governo
paulista ocorre no Paraná, no caso da
destinação do lixo na região metropolitana
de Curitiba. Os municípios da região constituíram um consórcio em 2001, antes mesmo da aprovação da lei sobre o assunto. Participam dele, além da própria capital, outras
14 cidades que utilizam o aterro da Cachimba,
localizado em Curitiba e operado pela empresa Cavo, do grupo Camargo Corrêa.
O secretário municipal de Meio Ambiente curitibano, José Antônio Andreguetto,
explica a RB que em 2006 o consórcio foi
reformulado com base na nova lei federal.
Além disso, como o aterro da Cachimba está
com seus dias contados e deve ser desativado
até o fim de 2008, a ocasião permitiu que
todo o regimento do consórcio fosse refeito. A nova configuração abriu a possibilidade de os outros 11 municípios da região
metropolitana se integrarem à iniciativa, algo
que está em andamento. O município de
Tijucas do Sul, que não utiliza Cachimba,
comprometeu-se a ingressar no novo consórcio para depositar o lixo no futuro aterro
que atenderá à região metropolitana.
No Piauí, um consórcio para água
O governo do estado tem participação
garantida nos consórcios, de acordo com uma
lei recém-aprovada pela Assembléia Legislativa. A lei também estipula a presença do governo na formação de consórcios intermunicipais para gestão de resíduos sólidos em dez
regiões do estado. Segundo o líder do governo na Assembléia Legislativa, deputado Luiz
Claudio Romanelli, a nova lei “resguarda a
titularidade dos municípios”, com outras
vantagens: racionaliza os custos de operação,
facilita a obtenção de recursos e a universalização dos serviços e reduz a quantidade de áreas
afetadas pelos aterros.
O Piauí mostra outro caminho, completamente diferente. O médico Alcindo
Rosal (seta): o Coresa é uma resposta à
precariedade da companhia estadual
Rosal, prefeito de Bom Jesus do Gurguéia,
foi eleito, em junho de 2005, presidente do
Consórcio Regional de Saneamento do
Piauí (Coresa) numa assembléia com 36
prefeitos das regiões da Chapada das
Mangabeiras e Tabuleiros do Alto Parnaíba,
no sul do estado.
Foi uma resposta à precariedade do
serviço de abastecimento de água prestado pela Agespisa, a companhia estadual
piauiense. Para explicar as atribulações vividas por sua cidade e outras, Rosal compara o formato do Piauí a um pé de meia.
“Nós somos a pontinha de baixo da meia.
A ponta de cima é onde fica a capital, o
centro das decisões políticas, onde fica a
empresa estadual”. Uma meia com 900 km
de comprimento, diz. “Quando queimava uma bomba de abastecimento de água
lá em Cristalândia, o técnico precisava percorrer essa distância. E, até que ele viesse,
até que a burocracia desemperrasse, a população sofria”, diz ele.
O consórcio, pioneiro no País, é uma
autarquia com autonomia financeira e diretiva.
Foi proposto pela SNSA, com apoio da Agespisa. Na época, a companhia operava em 162
municípios, sobretudo na área urbana, e em
cerca de 40 não mantinha fornecimento de
água com qualidade e quantidade necessárias.
Essas cidades estavam sob intervenção da
Fundação Nacional de Saúde (Funasa).
A justificativa, dada em fevereiro de
2005, pelo então presidente da Agespisa,
Assis Carvalho, era a de praxe: falta de
dinheiro. A empresa estava atolada em
dívidas, disse. Tinha um déficit mensal
de 3,5 milhões de reais e uma dívida grande. Não tinha “condições de investir na
ampliação dos seus sistemas com recursos próprios”.
O Coresa prevê que os municípios, por
meio do Serviço Local de Saneamento (Selos), serão responsáveis pela operação local
chamada de manutenção leve, como pequenos reparos, leitura de hidrômetros e entrega de contas. O consórcio ficará com o serviço de alta complexidade, que requer mãode-obra especializada. Em seu quadro de
funcionários, estão incluídos, por exemplo,
engenheiros, químicos, assistentes sociais,
biólogos etc.
Mesmo faltando ainda a adesão de dois
dos 36 municípios convidados, a instalação
CIDADES 27
RETRATO DO BRASIL | nO 5
do consórcio avança. A entidade conta com
36 milhões de reais, investimento que vai
beneficiar cerca de 150 mil pessoas da área
urbana dos municípios. “Em Bom Jesus,
aproximadamente 15% das casas não possuem água encanada. Em outras cidades, esse
número chega facilmente a 50%”, diz Rosal.
Ele explica que a região da Chapada das
Mangabeiras “possui um lençol freático
imenso, um mar de água”. “Em todos os
locais aqui existem poços artesianos, não
existe sede, não existem secas fortes, não
existe o flagelo da falta de água. Existia o
anacronismo de uma riqueza hídrica subterrânea e uma pobreza de abastecimento na
superfície”, diz o prefeito.
Os consórcios, sem dúvida, enriquecem
o arsenal de possibilidades de soluções para
os grandes problemas enfrentados pelo
saneamento brasileiro. Porém, está longe
deles resolver talvez o maior de todos os
problemas: a falta de continuidade dos investimentos, um dos dramas da história
recente do País.
NINGUÉM SEGURA MAIS ESTE PAÍS?
O presidente Lula não é o primeiro a achar que, finalmente,
não vai mais faltar dinheiro para um plano de obras
O
tica pública definida e determinante neste
País”, disse ele durante uma cerimônia no
Palácio do Planalto, no início de agosto, diante de 12 governadores.
Se isso acontecer mesmo, será uma novidade, pelo menos em relação às últimas
Lula, em agosto, com governadores:
“não vai parar mais de ter dinheiro”
Ricardo Stuckert / PR
presidente Lula acredita que, com o
PAC, tenha se constituído “uma carteira de
investimento em saneamento básico” que
“não vai parar mais de ter dinheiro”. “Isso
significa que o saneamento básico não terá
mais uma política eventual, será uma polí-
décadas. O saneamento não via tanto dinheiro quanto o do PAC desde os anos
1970 quando a ditadura militar criou o Plano Nacional de Saneamento (Planasa) e
centralizou os serviços de abastecimento
de água e coleta e tratamento de esgoto
nas companhias estaduais de saneamento,
criadas então.
O órgão central do financiamento era
o Banco Nacional de Habitação (BNH),
que coordenava o sistema de saneamento
e habitação, com base principalmente nos
recursos do FGTS. As políticas de então,
executadas pelas companhias estaduais, favoreciam o abastecimento de água em detrimento do esgotamento sanitário, as áreas
urbanas e mais rentáveis, e projetos monumentais, como o do Sanegran, programa de saneamento da região metropolitana de São Paulo que chegou a anunciar
“uma Itaipu de esgotos” para São Paulo,
entre outros.
O Planasa durou até o início da década
de 1980, quando começou a ruir. A crise
da dívida externa brasileira, de 1982, fechou as torneiras do financiamento externo. O dinheiro começou a faltar e o aperto
Movimento Custo de Vida: a periferia
tinha outras bandeiras
28 CIDADES Reprodução
Fernando
Henrique: privatização
fracassada deixou saneamento à míngua
mento dos juros das dívidas interna e externa. Entre 1995 e 1998, dos cerca de 7,8
bilhões de reais que foram depositados nos
cofres do FGTS, só 2,7 bilhões foram aplicados no setor público. Nesse período, a
média anual de aplicação dos recursos do
FGTS no setor foi de escassos 680 milhões
de reais. Do fim de 1999 até o término governo FHC, a média anual caiu para 68 milhões de reais!
Constituinte fortaleceu municípios
A situação estimulou a formação da
Frente Nacional de Saneamento. Esse movimento vem dos anos 1980, quando começou a contestação à atuação das companhias estaduais de saneamento. Desde a
origem, esse movimento, que reúne técnicos e especialistas, defendeu a autonomia
dos municípios contra as investidas centralizadoras do Planasa. Muitos municípios
em todo o País mantiveram seus serviços
autônomos de água e saneamento, além de
formaram a base para a ação contestatória
de grupos técnicos vinculados às universidades, principalmente na Bahia e em Minas
Gerais. Na Assembléia Constituinte de
1987, o debate cresceu e o texto constitucional que dela resultou criou instrumentos
legais que favoreceram a descentralização.
Porém, seriam ainda necessários dez anos
para que surgisse, formalmente, a Frente
Abril
financeiro acabou inclusive com o BNH,
fechado em 1986.
Com o fim da ditadura, as pressões por
mudanças políticas e institucionais se elevaram. Uma das conseqüências, expressa na
Carta de 1988, foi o fortalecimento do poder dos municípios. Outra foi a maior atenção dispensada aos serviços públicos de caráter social, como saúde e saneamento.
No caso específico do saneamento, no
entanto, essas mudanças não significaram
um avanço concreto. Já não havia o Planasa,
mas em seu lugar nada foi colocado. O saneamento viveu um período de crise,
marcada pela dispersão e desagregação das
instituições que integravam o sistema.
Houve um vazio, provocado pela falta de um plano nacional para cumprir as
normas da Constituição de 1988 e orientar a elaboração de uma política pública
de caráter permanente. E os recursos destinados aos urgentes investimentos do
setor oscilaram ao sabor de políticas
conjunturais e efêmeras.
Com a renegociação da dívida externa
em 1994 e com o Plano Real, o governo
Fernando Henrique fez novo plano nacional de saneamento, apostando na privatização e na entrada de capitais privados, especialmente estrangeiros, no setor. Esse
plano fracassou com a quebra do real em
1998 e a nova submissão do País ao FMI
no final desse ano. FHC contingenciou os
recursos do FGTS para cumprir acordos
com o FMI e garantir as metas de paga-
RETRATO DO BRASIL | nO 5
Nacional para o Saneamento, mais tarde
denominada Frente Nacional para o Saneamento Ambiental.
O tema que se impunha então era o das
privatizações. Em 1995, o governo FHC aprovou a Lei de Licitações e a Lei de Concessões.
Também criou o Programa de Modernização
do Setor de Saneamento (PMSS) com a perspectiva de privatizar os setores de energia, telecomunicação e saneamento, entre outros.
Com o governo Lula e a chegada de dirigentes da Frente Nacional de Saneamento
ao Ministério das Cidades houve uma retomada do esforço pela autonomia dos municípios e pela implantação de uma política
de investimentos efetiva para o saneamento. A crise gerada pela intervenção da ministra Dilma Roussef no PAC afastou a
maior parte dos últimos dirigentes da Frente
da Secretaria Nacional de Saneamento.
Esse não parece ser, na visão de Lula,
um episódio relevante. O presidente demonstra otimismo e acredita que as mais
de duas décadas de penúria do saneamento
terminaram com o PAC. Sua crença parece
se basear na idéia de que, finalmente, a economia do País entrou nos eixos e teremos
pela frente um amplo período de crescimento sustentado.
Não é uma visão muito diferente da que
outros dirigentes tiveram no passado recente.
No geral, em matéria de previsões, todos eles
fracassaram. Com Lula será diferente?
Delfim Netto com o FMI em 1982: o país
quebrou e acabou o dinheiro para investir
RETRATO DO BRASIL | nO 5
CIDADES 29

Documentos relacionados