Negócios e corrupção no futebol

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Negócios e corrupção no futebol
Negócios e corrupção no futebol
O futebol não é somente um esporte, mas um setor econômico que se revela um dos
principais aparelhos estratégicos capitalistas, pois prepara as pessoas para o “horror
econômico”, fazendo-as aceitar a competição, a flexibilidade e o mercenarismo
Patrick Vassort
A paixão pelo futebol só aumentou nestes últimos anos. Na França, depois da vitória de
1998, o fenômeno da Copa do Mundo foi reiterado pela vitória na Eurocopa, organizada em
2000 pela Bélgica e pela Holanda. E neste início de terceiro milênio, a França aparece como
um dos países mais imersos na ideologia do futebol.
Os quatro anos que separam a última Copa do Mundo, disputada na França, e a que se
disputa atualmente na Coréia do Sul e no Japão, foram marcados pela multiplicação de casos
de corrupção.
A busca do lucro máximo
Analisa-se com freqüência o futebol como fonte de prazer, de socialização, de aprendizagem
de regras e leis e de respeito ao outro. Muitos sociólogos e filósofos não hesitam em atribuir
ao futebol qualidades formidáveis – que indiscutivelmente ele possui e que justificam as
paixões desencadeadas por esse esporte de um canto ao outro do planeta – sem assinalar,
no entanto, o que constitui seu paradoxo central: trata-se também de uma indústria baseada
num sistema supranacional, capitalista, mas recoberta por um sentimento localista,
regionalista e nacionalista.
Na realidade, o futebol não é somente um esporte, mas também, e principalmente nas
nossas sociedades de mercado, um setor econômico há muito subestimado e que se revela,
por ocasião desta Copa do Mundo, um dos principais aparelhos estratégicos capitalistas, pois
prepara as pessoas para o “horror econômico” e para a globalização liberal, fazendo-as
aceitar a competição, a seleção, a flexibilidade, a precarização e o novo mercenarismo1.
Teria o futebol um papel na difusão da ideologia da globalização? Sim, indiscutivelmente,
admitindo-se que esse esporte-indústria desenvolve no mais alto ponto os dois parâmetros
mais odiosos do sistema capitalista. De um lado, uma engrenagem mafiosa que se baseia na
busca do lucro máximo (os dirigentes não hesitam em recorrer a empresas off-shore, em
paraísos fiscais que servem para lavar dinheiro, corromper, fazer trambiques nos clubes,
financiar o doping e controlar sistemas de apostas clandestinas).
Como funcionam os cartéis
De outro lado, uma ideologia baseada no princípio do super-homem, da força, da violência,
assim como num sentimento nacionalista fortemente localizado (não é de surpreender que,
de um extremo ao outro da Europa, as torcidas organizadas mais duras e violentas
defendam explicitamente idéias racistas e se digam de extrema-direita).
Assim como os cartéis do crime organizado, que constituem “o estágio supremo e a própria
essência do modo de produção capitalista2 ”, o futebol se beneficia “da deficiência
imunológica dos dirigentes da sociedade capitalista contemporânea”. A sociedade globalizada
oferece possibilidades sem fim para contornar as leis e considera “naturais” os mercados
unificados, mas torna seu controle muito complicado. Segundo Jean Ziegler, a eficácia dos
cartéis do crime baseia-se em três modos de organização. Em primeiro lugar, o cartel é
“uma organização econômica, financeira, de tipo capitalista, estruturada segundo os mesmos
parâmetros de maximização do lucro, de controle vertical e de produtividade de qualquer
outra empresa multinacional industrial, comercial ou bancária de direito comum. Ao mesmo
tempo, o cartel tem uma hierarquia militar [...]. O terceiro modo de organização que tipifica
o cartel criminoso é o parentesco em forma de clã, a estrutura étnica3”.
Fraudes e trambiques
Eis aqui, a título de exemplo, dois casos – o de uma firma, ISL Worldwide, e o de uma
federação, a do Brasil – que ilustram bem o caráter mafioso de certos setores ligados ao
mundo do futebol.
A empresa ISL Worlwide, criada por Horst Dassler, era encarregada de garantir o patrocínio
mundial esportivo. Suas contas não eram publicadas, o que permitia ocultar inúmeras
operações contábeis, em particular as que serviam para a lavagem de dinheiro4. Também os
contratos não obedeciam a qualquer tipo de licitação. Durante a Copa do Mundo de 1998,
aliás, a ISL-França fora envolvida num escândalo ligado à venda de bilhetes fantasmas...
Após essa trapaça, a ISL Worldwide, que possuía apenas 49% do capital da ISL-França,
decidiu adquirir a totalidade das ações dessa filial. Mas, desde 1999, os negócios se
deterioraram e a firma passou por graves dificuldades financeiras ligadas a investimentos de
risco no tênis, mas também no “futebol no Brasil e na China5”.
No dia 18 de abril de 2001, a Federação Internacional de Futebol, FIFA, criava uma empresa
de estudos, a FIFA Marketing SA. No mês de maio de 2001, os mundos do esporte e das
finanças descobriam que a ISL Worldwide teria possuído, como ocorre freqüentemente no
meio futebolístico, um caixa dois numa conta bancária secreta no Liechtenstein. No dia 21 de
maio, a ISL teve a falência decretada pelo tribunal de Zoug, na Suíça e, no dia 28, a FIFA
entrou com uma ação contra a ISL Worldwide por “suspeita de fraude e desvio de fundos”.
Trapalhadas de Luxemburgo
A FIFA acusa a ISL de ter “desviado 60 milhões de dólares provenientes da emissora
brasileira Globo a título de pagamento de direitos de transmissão6” da Copa do Mundo de
2002. Não obstante, a FIFA, dirigida desde 1998 por Sepp Blatter, ligado a Horst Dassler7 e
suspeito de ter comprado votos que permitiram sua eleição para presidir a federação,
conseguiu, ao contrário dos bancos, salvar “os dois mais atraentes ativos da ISL (os direitos
de transmissão e marketing das duas próximas Copas do Mundo)” graças a “um estranho
passe de mágica jurídico8”.
As negociatas no meio futebolístico são conhecidas no Brasil. Ao contrário do que se pensa,
devido à admiração que os torcedores têm pelos formidáveis jogadores desse país, o futebol
brasileiro baseia-se em grande parte na corrupção e na fraude. Por exemplo, o ex-técnico da
seleção brasileira, Wanderley Luxemburgo, foi recentemente acusado, entre outras coisas,
de sonegação fiscal, falsificação de documentos oficiais, falso testemunho, evasão de divisas
e formação de quadrilha. Possuía trinta contas bancárias, das quais vinte e nove não
declaradas à Receita! Essas contas receberam, de 1995 a 1999, depósitos da ordem de 6,5
milhões de euros (cerca de 15 milhões de reais). Luxemburgo também é acusado de ter
escondido cocaína e de freqüentar uma “boate de garotas”, financiada pelo caixa dois dos
clubes brasileiros...
Negociatas na CBF
O presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), Ricardo Teixeira, ex-genro do expresidente da FIFA, João Havelange, foi acusado, por sua vez, de ter participado de 27
negociatas envolvendo lavagem de dinheiro, tráfico de divisas e fraude fiscal9. Finalmente,
na conta de uma empresa de fachada pertencente a Teixeira, os investigadores encontraram
vestígios de transferências de fundos num montante superior a um milhão de euros (cerca
de 2,3 milhões de reais) provenientes do Liechtenstein. A CBF também foi acusada de ter
financiado as campanhas eleitorais de alguns parlamentares. Presidentes de clubes e
federações regionais também são suspeitos de participarem nesses trambiques, conchavos e
embrulhadas.
Por outro lado, os investigadores suspeitam que o Brasil tem um papel-chave no negócio de
passaportes falsos. Vários jogadores brasileiros transferidos para a Europa, foram, de fato,
acusados de utilizar falsos passaportes portugueses, o que lhes permitia serem contratados
como europeus, e não como estrangeiros...
O cheiro fétido dos bastidores
Na França, por exemplo, dois jogadores do AS Saint-Étienne, Alex e Aloísio, foram acusados
de ter documentos falsos10. Os passaportes falsificados vêm do Brasil, onde podem ser
obtidos por cerca de vinte mil dólares11. O procurador encarregado do processo, no Palácio
de Justiça de Paris, afirma: “As mesmas redes que fornecem estes passaportes são as que
também os vendem aos imigrantes clandestinos e às prostitutas dos países do Leste
europeu.” Para alimentar este tráfico, vários milhares de passaportes falsos teriam sido
roubados por “especialistas” em consulados portugueses, antes de serem revendidos a
futebolistas profissionais.
Todos estes casos mostram que o futebol funciona segundo o modelo das empresas
capitalistas, com a maximização do lucro como preocupação principal. A hierarquia vertical e
a lei do silêncio, ligadas à filosofia de obediência aos chefes, são quase sempre respeitadas.
Ao mesmo tempo, o futebol, como qualquer organização mafiosa, baseia-se numa estrutura
etnocêntrica – um sistema de clãs que organiza a reprodução dos “padrinhos” dentro das
instituições. As diferentes “famílias” do futebol, e por assim dizer a própria instituição como
um todo, estão imersas em negociatas.
Os bastidores de um espetáculo tão fascinante, que entusiasma dezenas de milhões de
pessoas,
não
passam,
muitas
vezes,
de
uma
latrina
mafiosa.
(Trad.: Fábio de Castro)
1 - Ler, sobre o assunto, de Richard Sennet, Le Travail sans qualités, Paris, ed. Albin Michel,
2000; de Malek Chebel, La Formation de l’identité politique, Paris, ed. Payot, 1998; e de
Cornelius Castoriadis, La Montée de l’insignifiance, Paris, ed. Seuil, 1996.
2 - Ler, de Jean Ziegler, Les Seigneurs du crime. Les nouvelles mafias contre la démocratie,
Paris,
ed.
Seuil,
1998.
3
Ibid.
4 - Ler, de Denis Robert, La Boîte noire, livro em que o autor faz uma pesquisa sobre os
meios
financeiros
mais
influentes
da
Europa.
Paris,
ed.
Arènes,
2002.
5
La
Tribune,
23
de
abril
de
2001.
6
La
Tribune,
29
de
maio
de
2001.
7 - < Jeux des cachée Face La Jennings, Andrew de>, Paris, ed. L’Archipel, 2000.
8
La
Tribune,
3
de
julho
de
2001.
9
Le
Monde>/i<,
7
de
dezembro
de
2001.
10 - Três jogadores foram julgados por esse tipo de delito, Faryd Mondragon, Pablo
Contreras e Emiliano Romay. Os três foram proibidos de entrar em território francês por dois
anos. A sentença está disponível no Tribunal de Grandes Instâncias de Paris.
11 - Le Monde, 13 de janeiro de 2001.