Rebeldes da imprensa: Imprensa alternativa e contracultura

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Rebeldes da imprensa: Imprensa alternativa e contracultura
Revista ESFERA
Ano 1 Vol. 1 nº 2 Jul-Dez/2008
REBELDES NA IMPRENSA: IMPRENSA ALTERNATIVA E CONTRACULTURA
BRUNO AMORIM1
LEONEL AGUIAR2
PUC-Rio
Resumo
Este trabalho visa entender a divulgação da contracultura na imprensa alternativa. A
partir do mapa desenhado por Kucinski e do contato direto com publicações de época, além
de entrevistas e depoimentos, foi possível focar, dentro do universo que compõe a imprensa
alternativa brasileira, as publicações ligadas à contracultura. Assim, o valor deste trabalho é
preservar experiências e memórias de uma época importante para o jornalismo do Brasil,
principalmente pela ousadia e coragem dos jornalistas de então.
Palavras-chave: imprensa alternativa; contracultura; micropolítica.
Abstract
This work intends to understand the divulgation of the counterculture in the alternative
press. Starting from the map drawn by Kucinski and direct contact with publication of the
period, besides interviews and testimonys, it was to focus, within the universe that composes
the Brazilian alternative press, the publications connected to the counterculture. So, the
value of this work is that of preservation of experiences and memories of an important time
for journalism in Brazil, especially for the boldness and courage of the journalist of then.
Keywords: alternative press; counterculture; micropolitcs
1
Estudante de Pós-graduação em Jornalismo Cultural pela UERJ e jornalista formado pelo
Departamento de Comunicação Social/Jornalismo da PUC-Rio. Pesquisador voluntário do projeto de
pesquisa “Critérios de noticiabilidade no jornalismo investigativo” do PPG em Comunicação Social da
PUC-Rio.
2
Professor do Programa de Pós-graduação em Comunicação Social e Coordenador do curso de
Jornalismo do Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio. Doutor e Mestre em Comunicação
pela UFRJ. Jornalista formado pela UFF.
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Contexto histórico
O período dos anos 70 é marcado pela consolidação da indústria cultural no
Brasil e a lógica da maximização de lucro tornou-se vigente com esta estabilização.
A Rede Globo torna viável um projeto de integração nacional através da televisão.
Novas tecnologias transformam o jornalismo impresso, o mercado editorial e o
cinema. Os produtos finais dos diversos setores da indústria cultural ganharam
ótimos acabamentos, antes só encontrados nos exemplares importados. A classe
média regozijava-se com os vários produtos modernos e bens simbólicos tornados
acessíveis pela prosperidade econômica, embarcando na era global do
consumismo. Este é o período das conquistas do regime militar, que legitimou o
autoritarismo com progresso.
Se o regime militar trouxe progresso econômico para alguns setores da
sociedade brasileira, foi graças a repressão política em todos os níveis da vida
social. Pois, desde o Ato Institucional número 5, de 1968, foi instaurada a censura
em nosso país. A repressão política fechou partidos políticos e “empastelou” jornais
oposicionistas, além de prender, torturar e até matar vários militantes. Ser produtor
de cultura nesta época não era nada fácil e até mesmo arriscado. Muitos foram
exilados, mas outros tiveram destinos mais cruéis, como foi o caso do cantor
Geraldo Vandré, que ficou com graves seqüelas físicas depois de passar por
torturas. A nascente indústria cultural brasileira abriu suas portas para alguns novos
artistas, mas destes era exigida a submissão à censura, praticando assim, uma
autocensura.
Um sistema tão repressivo era fadado a encontrar alguma resistência. A luta
armada foi uma forma violenta de resistir que conseguiu atrair jovens para a vida na
clandestinidade. No campo da cultura, essa resistência se dava em recusar a nova
indústria cultural, símbolo do progresso conquistado pelo regime autoritário.
Inspirados nos movimentos contraculturais, ocorridos principalmente nos Estados
Unidos durante os anos 60, alguns produtores culturais encontraram a saída para
produzir sem atrelar-se à indústria cultural nos mercados alternativos. Escolheram
produzir de forma artesanal para segmentos específicos, mas limitados
numericamente, da população.
Imprensa e contracultura no Brasil
A maior divulgação da contracultura feita no Brasil era na coluna de Luiz
Carlos Maciel chamada Underground e publicada no jornal Pasquim, principalmente
por que, no início da publicação, toda a juventude lia o tablóide. A partir de 79, o
público principal passou a ser de profissionais liberais com pelo menos 35 anos3. Foi
um dos mais lembrados da imprensa alternativa e também um o que mais durou.
Maciel, que, a contragosto, foi considerado o “guru” da contracultura brasileira, foi
um dos editores de mais uma publicação da imprensa alternativa, a Flor do Mal.
3
Estas informações fazem parte da pesquisa que foi realizada por uma equipe da qual participei, no
período em que trabalhei, como estagiário, no jornal O Pasquim 21.
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Este, ao contrário do Pasquim que resistiu até o número 10724, só teve cinco
edições e tinha como lema “a liberdade da loucura de cada um” (COELHO, 2005, p.
19) na definição de seu fundador. O título era inspirado pelo poeta Charles
Baudelaire e teria sido uma idéia do poeta Torquato Neto. O primeiro número do Flor
do Mal, que quase foi censurado, tinha uma sinistra frase de Baudelaire sobre a
imprensa e a foto de uma menina anônima.
O Flor do Mal foi muito bem considerado nos círculos da
contracultura, especialmente os mais radicais; e, admito,
muitíssimo mal considerado fora desses círculos. O elogio ao
Flor de que tive notícia e que mais me tocou foi do Hélio
Oiticica, para quem este era o único jornal não-machista da
imprensa brasileira. Em careta contrapartida, porém um
psiquiatra chegou pra mim e disse:
- Esse seu jornalzinho aí é igualzinho ao que os malucos da
minha clínica fazem como terapia.
Não me ofendi nem um pouco. Realmente, Flor do Mal era um
jornal bem louco. (MACIEL, 1996, p. 98)
Entre os cerca de 150 periódicos que circularam entre 1964 e 1980 e ficaram
conhecidos como imprensa alternativa, Flor do Mal, Presença, Rolling Stone e
Bondinho eram os principais divulgadores das alternativas de vida criadas pela
contracultura no exterior e aqui no Brasil. Presença só chegou ao segundo número e
seu tema principal eram as viagens a lugares exóticos, divulgando assim a
tendência pelo Orientalismo, tão presente na contracultura. Rolling Stone,
basicamente uma tradução da revista homônima norte-americana, era editada por
Maciel. O primeiro número saiu em 1972, saudando a volta de Caetano ao Rio de
Janeiro. O tema geral da revista, portanto, era rock and roll, essa expressão da
cultura de massa daquilo tudo que foi a rebeldia dos jovens dos Estados Unidos da
América. Além disso, foi “um dos primeiros espaços a tratar de assuntos como
ecologia, macrobiótica e libertação feminina” (COELHO, 2005, p.14). Bondinho, que
começou como um jornal de serviços do grupo Pão de Açúcar, aos poucos adotou
uma linha editorial alinhada à contracultura. Liberou-se tanto dessa relação
comercial que, após um contato com Caetano e Gil por ocasião do retorno deles do
exílio e de uma edição dedicada aos dois novos baianos, adotou, segundo Kucinski
(1991), a filosofia do transbunde: liberação geral. A semelhança entre transbunde e
desbunde vai além da sonora, é claro. Vamos nos deter um pouco mais no
Bondinho, pois é, sem dúvida, um dos melhores exemplos de jornal contracultural
que tivemos no Brasil. O projeto visual era muito ousado para a época, além de
colorido e muito bem acabado, mantendo-se avançado até para os padrões atuais.
As entrevistas, em geral com ícones da contracultura, eram publicadas na
íntegra, sem cortes. Passaram por suas páginas quase todos os tropicalistas,
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Diversos números do jornal podem ser consultados em JAGUAR; AUGUSTO, 2006.
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políticos e médicos alternativos, como Jerry Rubin, o fundador do Yippie (ou Partido
Internacional da Juventude), o terapeuta corporal José Ângelo Gaiarsa e médicos
alternativos da clínica livre de Ashbury Height (bairro hippie em São Francisco),
feministas, como Simone de Beavouir e Rose Marie Muraro, e artistas, como Gal
Costa, Caetano Veloso, Gilberto Gil, José Celso Martinez, Rogério Duprat, Jorge
Mautner e Luis Carlos Maciel5. Até Roszak, pensador fundamental para o
desenvolvimento dessa nossa pesquisa, era anunciado com autor de um dos
melhores livros teóricos sobre a contracultura. Na edição de 17 a 30 de março de
1972, por exemplo, os assuntos abordados iam do esoterismo  havia um curso
prático de quiromancia – vida comunal e uma seção de cartas com direito a pessoas
procurando parceiros para diferentes relacionamentos amorosos, especificando
apenas o signo zodiacal de preferência.
Censura, repressão e imprensa contracultural
A censura, principalmente a partir de 1968, impedia a grande imprensa de
tratar de muitos assuntos. Isto criou um espaço para a imprensa alternativa crescer
e dentro dela que ocorreu boa parte da divulgação da contracultura. Segundo
Maciel, a relação entre um poder totalitário e o desenvolvimento da contracultura vai
mais além do que impulsionar a produção contracultural para um mercado
alternativo:
A Guerra do Vietnã foi fundamental para a gestação da
contracultura americana. E no Brasil, a ditadura militar foi
fundamental para a gestação da contracultura brasileira. Ela
passou a ser uma opção para aqueles jovens que estavam
indignados, eram contra a ditadura e tudo mais, mas com
instintos mais pacifistas, sem disposição para pegar em armas.
Achavam que a solução de partir para guerra era violenta
demais para suas sensibilidades delicadas. Preferiam fumar
maconha a dar tiros6.
Jimi Hendrix e Janis Joplin eram figuras habituais da coluna Underground,
tanto que, na edição de número 67, de outubro de 1970, Maciel comparou ao
Apocalipse as mortes, num espaço de apenas quinze dias, das mortes daquelas
duas estrelas cadentes no firmamento do rock. Sua crítica é dirigida a grande
imprensa por acusar a causa mortis como sendo o abuso de drogas, mesmo antes
de se saber realmente as causas das mortes de Hendrix e Joplin. Maciel não chegou
a ponto de fazer uma apologia das drogas, apenas se indignava com o fato, muito
mal divulgado, de que Jimi Hendrix não morreu pelo abuso das variadas drogas
5
6
Consultar Bondinho – Coleção completa.
MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Bruno Dorigatti. Portal Literal. Entrevista. 2006.
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ilegais que costumava usar, mas por uso de barbitúricos, uma droga perfeitamente
legal e “burguesa”. Logo depois desta coluna ser publicada, Maciel foi preso, junto
com Ziraldo, Francis e outros membros da redação. “No dia 1º de novembro de
1970, com o número 72 já na gráfica, Cabral e Fortuna estavam (...) no interior do
Estado do Rio, quando foram avisados...” (JAGUAR; AUGUSTO, 2006, p. 45).
Ficaram dois meses presos e nunca souberam o motivo da prisão. Por fatos políticos
como esse, pode-se perceber o grau de dificuldade de se fazer um jornal alternativo
naquela época no Brasil, muito mais difícil do que, por exemplo, editar lá nos
Estados Unidos quadrinhos underground como Zap Comics ou Freak Brothers. Foi
só depois desta prisão que o “guru” da contracultura fundou, junto com Torquato
Neto, Tite de Lemos e Rogério Duarte, o jornal Flor do Mal. Ou seja, os dois meses
de prisão não quebraram a verve contracultural de Maciel. Ao contrário: depois de
Flor do Mal ter acabado, ele ainda editou a revista Rolling Stone e tentou, embora
sem sucesso, fundar o jornal Kaos, com a participação de outros dois ícones da
contracultura brasileira, o músico Caetano Veloso e poeta Jorge Mautner. Este
último “já era um veterano do desbunde, pois vinha do tempo da beat generation,
acho que foi o primeiro beatnik brasileiro, quando escreveu seu primeiro livro, Deus
da chuva e da morte” (MACIEL, 1996, p. 34).
Um fim e novos começos
Desde o A.I. 5, em 1968, a censura se abatia duramente sobre a grande
imprensa. Era proibido noticiar muitas matérias e em muitos jornais havia censores
na redação. Até listas com relações das notícias proibidas eram entregues
costumeiramente nas redações. Se isto não bastasse, o Jornal Nacional em rede
cumpria o papel de informar a população sobre os fatos mais importantes. Com
todos estes fatores não é de se estranhar uma necessidade por veículos de
imprensa alternativa, capazes de publicar o que não podia sair na grande imprensa.
Existiram muitos periódicos entre o final dos anos 60 e o início dos 80.
Segundo Andréa Coelho (2005), foram cerca de cento e cinqüenta diferentes
publicações que abordavam diferentes assuntos, mas tinham em comum um
discurso impossível para a grande imprensa de então. Estas publicações eram
quase sempre no formato tablóide, um pouco menor em relação aos jornais da
grande imprensa, e tinham grande público. O sucesso editorial era responsável por
manter o funcionamento e era a maior fonte de renda. Os anunciantes eram
reprimidos pela repressão, algumas vezes diretamente, e estes fugiam da imprensa
alternativa.
As tentativas da ditadura de acabar com a imprensa alternativa num primeiro
momento não deram certo e esta se firmou num mercado alternativo. Apesar das
dificuldades de produzir sem saber se vai haver recolhimento dos exemplares nas
bancas, muitas publicações floresceram e, com coragem, conseguiram publicar
muitas notícias que a ditadura preferia manter sem espaço. A morte do jornalista
Vladimir Herzog foi um destes casos, noticiada apenas pelo semanário ex-16.
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Outros veículos capazes de burlar a censura e informar, além de poder
mostrar opiniões, foram Opinião e Movimento. O primeiro começou em 1972, teve
230 edições e venderam 40 mil exemplares de apenas uma edição. O segundo
começou três anos depois e durou até 23 de novembro de 1981. O fim deste jornal e
de grande parte da imprensa alternativa está no início dos anos 80. Coelho (2005)
atribui o começo desta ruína a uma série de explosões de bombas em bancas de
jornal, pois, sem jornaleiros dispostos a vender veículos da imprensa alternativa por
temer contra a própria vida, esta então não pôde, mas resistir e, finalmente, acabou.
Dentre todas publicações feitas neste período uma se destacou por sua
singularidade. O Pasquim começou, sem muito alarde, em 26 de junho de 1969,
como se fosse só mais uma brincadeira da turma de Ipanema. Foi um sucesso
tremendo e alguns de seus números superaram a marca de 200 mil exemplares,
isso era mais do que vendiam os jornais da grande imprensa. Além de ter sido o
tablóide alternativo com maior duração. Os militares odiavam e só liberavam a venda
depois de rigorosa censura. Segundo Jaguar e Augusto (2006), era necessário para
conseguir passar 80% de um jornal pela censura, enviar 230%. A maior parte nunca
veria as gráficas. Alguns números foram recolhidos e a maior parte da redação ficou
dois meses presa, sem nunca receber uma explicação. Como muitos outros
periódicos da imprensa alternativa, O Pasquim também não resistiu e sucumbiu. Um
de seus membros, Ziraldo, tentou ressuscitá-lo em 2001 com o nome de O Pasquim
21; porém, não foi bem sucedido e o jornal acabou em 2003 por problemas
financeiros, deixando, além de fãs, dividas. A contracultura brasileira foi uma forma
de resistência ao regime militar, mas, principalmente, resistia à lógica cruel da
indústria cultural. Exatamente no momento de consolidação desta indústria de bens
simbólicos no Brasil, grupos de pessoas se juntavam para tentar uma alternativa
para a cultura, fora da lógica mercadológica imposta por uma indústria também
responsável por aprofundar a integração nacional. Isto mostra uma capacidade
crítica de nossa nação, nós não simplesmente engolimos novos modelos culturais,
mas conseguimos construir alternativas viáveis, ao menos por algum tempo.
Mesmo depois da série de explosão de bancas de jornal, a imprensa
alternativa continuou. A prova disso é o jornal mensal Luta & Prazer. Este jornal não
é mencionado por Kucinski (1991) ou Coelho (2005), mas tem sua trajetória
desenhada por Aguiar (2006). Assim como tantas outras publicações voltadas para
temas alternativos, a duração desta não foi longa. Foram publicadas 18 edições de
Luta & Prazer, sendo a primeira de agosto de 1981 e a última de maio de 1983. A
estrutura, porém, impressiona: distribuição nacional, três redações  Rio de Janeiro,
São Paulo e Belo Horizonte  e correspondentes em várias cidades do Brasil.
Portanto, apesar dos temas alternativos, a produção era profissional. Com 35 mil
exemplares, o primeiro número trazia a epígrafe “este jornal traz o novo, a vida.
Experimente” e a manchete “Como a esquerda vai para a cama?”.
Ao aprofundar-se, não só neste, mas em todas as edições, é possível
perceber uma linha editorial voltada para a micropolítica, ou “política do cotidiano”.
Além de variadas práticas alternativas, ao longo de suas 18 edições, o jornal
apresenta uma série de temas malditos, tais como drogas e bissexualismo. Ao
escolher a contramão dos valores dominantes, opta-se por “uma recusa que visa
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construir novos modos de sensibilidade e criatividade, produtores de uma
subjetividade singular” (AGUIAR, 2006).
Análise das primeiras páginas
Para melhor compreendermos a divulgação da contracultura feita na imprensa
alternativa pode ser preciso uma análise aprofundada das primeiras páginas de
publicações. Neste estudo analisaremos dois periódicos: O Bondinho e Luta &
Prazer. Sendo o primeiro publicado no ano de 1972 e o segundo de 1981 a 1983.
Apesar da diferença de dez anos entre uma publicação e outra, há também
algumas semelhanças. Ao analisarmos em conjunto as primeiras páginas dos dois
periódicos, podemos notar facilmente uma semelhança na trajetória evolutiva da
questão visual nelas: nas primeiras edições há um predomínio de manchetes e
chamadas para as matérias, porém, com o passar do tempo, os títulos são
substituídos por imagens maiores e mais sofisticadas; sobrando espaço para apenas
o nome da publicação, uma manchete e uma epígrafe.
O Bondinho: uma explosão visual
Ao observarmos a capa da edição do Bondinho de 17/2 a 1/3 de 1972,
notamos o título da publicação centralizado no alto da página; uma manchete em
letras grandes e três chamadas em letra menores , em relação à manchete; e uma
fotografia de Walmor Chagas, ator, com a cara pintada como palhaço. As quatro
cores e o papel de qualidade muito superior ao papel jornal contrastavam com o
baixo preço da revista: apenas dois cruzeiros.
A primeira página da próxima edição do periódico (2 a 13 de março de 1972)
apresenta uma composição semelhante. Uma diferença, porém, é claramente
notável: há mais chamadas de matérias, em relação à edição anterior. A foto
utilizada, do poeta Jorge Mautner, aparece junto com as bordas do filme e a imagem
borrada dá a impressão que o filme está queimado. Remete, assim, à gíria “filme
queimado”, significando uma imagem negativa.
A edição do Bondinho, de 17 a 30 de março de 1972, tenta romper com o
padrão criado nas duas edições anteriores. A misteriosa manchete, 2+2=5, assim
como as chamadas, estão dentro de um cubo que, segundo sugestão impressa ali
mesmo, pode ser cortado e transformado numa caixa para 45 palitos de fósforo.
Bem ao jeito de um dos lemas da contracultura: “faça você mesmo”. A imagem é um
desenho de Maria Bethânia, cantora. Apesar da radical estranheza visual desta
capa, são mantidos dois signos: o título centralizado no alto da página e a tipologia
de manchete e chamadas. Estas últimas só poderiam ser lidas rodando o jornal.
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O Bondinho, de 31 de março a 13de abril do mesmo ano, apresenta, em uma
foto grande que ocupa quase toda a página, Caetano Veloso, músico, então recém
retornado do exílio, envergando estranha careta. Não há chamadas, apenas uma
manchete: “Caretano”, apelido do músico. Para completar a ousadia gráfica
marcante da primeira página desta edição, o título da publicação está invertido.
Seria, portanto, necessário um espelho para lê-lo. Além disso, há um arco-íris
emoldurando-o. São signos cuidadosamente escolhidos, compondo uma das mais
belas e expressivas capas de toda imprensa contracultural brasileira.
Na edição de 14 a 27 de março de 1972 não há absolutamente nenhuma
manchete ou chamada. A única informação escrita é o próprio título da publicação.
Basta olhar para perceber a total preocupação dos realizadores desta capa com o
visual, em detrimento das informações sobre o conteúdo, a começar pelo título, em
cores fortes e com um efeito tridimensional, apesar de manter a mesma tipologia das
edições anteriores. A página apresenta uma foto em preto-e-branco de uma mulher
com uma enorme barba e fantasiada de coelhinha, sobre um fundo azul-escuro. É
mais uma bela capa do Bondinho.
Dentre todas as edições do Bondinho, a de 29 de abril a 13de maio é, sem
duvida, a mais criativa. Isto porque esta edição além de ter duas capas, uma na
frente e outra no verso, exigia que leitor virasse o jornal de cabeça para baixo. Para
completar, havia um elaborado pôster com o número 69 no meio e que podia ser lido
em ambas as posições. É um trabalho de difícil realização, feito assim apenas para
deleite do leitor, e também dos seus realizadores.
A capa principal apresentava uma foto, um pouco escura, da cantora Gal
Costa, além do título da publicação e da manchete em letras grandes: GAU. Esta
era o nome antigo de Gal Costa, antes dela mudá-lo. Na foto, Gal aparece com o
rosto levemente pintado e vestindo um macacão jeans. O resultado é uma imagem
andrógina que, sem a manchete, poderia nem ser reconhecida como a cantora. Para
completar, uma borda em laranja emoldura a edição. A capa secundária, feita em
duas cores, causa imediatamente um estranhamento, pois não é escrita em
português, mas sim em espanhol. Com o fundo vermelho, traz mãos em preto
fazendo um símbolo misterioso e a seguinte manchete: “El Bondino presenta José
Celso Martinez”. No canto inferior direito está o título da publicação, como uma
marca, em português.
A primeira página da edição de 11 a 25 de maio de 1972 também esbanja
beleza gráfica. Numa foto em preto-e-branco, o psiquiatra José Angelo Gaiarsa está
ajoelhado no chão. Algumas partes da foto foram coloridas, num efeito artístico. A
marca do jornal vem no canto esquerdo e a manchete, estranhamente, na cabeça de
Gaiarsa. A última página desse jornal apresenta um belo trabalho gráfico, um
desenho com qualidade de pôster.
A qualidade gráfica do Bondinho como um todo e, principalmente, de suas
primeiras páginas mostra uma preocupação com o visual capaz de alçar a
publicação ao nível de arte. São edições detalhadas e muitas bem acabadas, em
contraste com o baixo preço de venda. Os produtores queriam levar suas idéias às
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pessoas, em detrimento do lucro. A alta qualidade gráfica, entretanto, foi também o
calcanhar de Aquiles da publicação, pois o alto preço de quatro cores em papel
couchê, aliado a falta de anunciantes, levou a edição de junho de 1972 a ser a
última.
Luta & Prazer: alternativo sem censura
A primeira edição do jornal Luta & Prazer, lançada em agosto de 1981, traz,
no alto, título, editora e a epígrafe “Este jornal traz o novo, a vida. Experimente”.
Estilizado, o caractere “&” do título tem a forma de uma cobra. Estaria ele se
remetendo à tentação e ao pecado que acompanham a cobra na sociedade judaicocristã? A manchete não se preocupa com tabus, ou melhor, empenha-se em rompêlos. “Foi uma matéria um tanto controversa no seio da própria esquerda”, relata o
editor geral do periódico, Dau Bastos. Aprovada e respaldada principalmente por
uma “esquerda de tanga de crochê”. Ocupando quase toda a primeira página, uma
foto em preto e branco, com uma clara representação de uma prática sempre
polêmica mesmo no campo da contracultura: o sexo grupal.
A primeira página do segundo número apresenta, além da manchete “tribos
urbanas”, uma grande quantidade de chamadas. O resultado é um pouco confuso.
Assim como vimos em O Bondinho, os primeiros números priorizam a informação,
enquanto os últimos, o visual. Em se tratando de Luta & Prazer, quem explica é o
próprio editor de arte do jornal, Juliano Serra: “A partir do número 5, eu e Marcelo
(Lippiani), que somos fotógrafos, assumimos a direção de arte, e naturalmente
passamos a valorizar muito mais a informação visual”.
A primeira página da quarta edição, de dezembro de 1981, consegue ordenar
as chamadas, resultando numa página limpa. A manchete aborda novamente a
sexualidade: “Bissexualismo, o que é isso minha gente?”. Com cores fortes, esta
edição captura a atenção do leitor para mostrar-lhe temas polêmicos. A epígrafe
presente nas primeiras edições foi substituída nesta por “Esta edição está ótima.
Arrepios”.
A edição 5 traz o desenho de uma grande boca com um enorme cigarro
artesanal. A manchete “o que tá nas bocas”, apresenta um irônico duplo sentido: nas
bocas dos usuários e nas “bocas-de-fumo”. A epígrafe leva a ironia adiante
afirmando “este jornal está fumegante. Compre unzinho”. Na edição 8, um grande
machado desenhado descansa sobre um tronco. A manchete “diálogos de geração”
tem a mesma tipologia das duas chamadas: “eleição e papo de cartomante” e
“temas malditos nos partidos políticos”. A cor de fundo, delimita e dá significado aos
temas, pois se trata de diálogos entre gerações da esquerda e vermelho é cor da
antiga União Soviética e a cor dos partidos socialistas e comunistas.
Pai e filho beijam-se com afeto dentro de um intrincado trabalho fotográfico,
na primeira página da edição 11 de Luta & Prazer. Não há chamadas, apenas a
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manchete “filhos de aquarius” em tipologia estilizada e caixa alta. Mais um tema caro
à contracultura, a era de astrológica regida pelo signo de aquário.
Na primeira página da edição 12, há um desenho estilizado, em duas cores,
de uma árvore cortada. Sobre o tronco morto nasce vida nova: cogumelos roxos
brotam. A manchete “Sobre viver”, em caixa alta e dá a impressão de também
expressar o sentido de outra palavra: sobreviver. Sem dúvida, uma bela capa.
Seguindo a linha irônica presente em outras edições, a primeira página do n°
13, traz vários bichos, quase um zoológico, indexados por números e uma legenda:
“Nossas eleições”. Em baixo, a descrença bem-humorada do grupo se evidencia no
título discreto: “Para colorir”. Como nos livros infantis onde, para trabalhar a
habilidade artística das crianças, incentiva-se colorir desenhos já semiprontos.
A primeira página do Luta & Prazer n° 15 é um belo trabalho fotográfico,
composto com várias fotos, sobre o qual há um desenho de sol sorridente. A
manchete saúda o verão com tipologia estilizada e uma ambigüidade muito poética:
“Vocês, verão”.
Diferenças temporais
Inúmeras conclusões de valor para este trabalho desprendem-se do
cruzamento entre as análises das primeiras páginas e manchetes de dois
importantes periódicos da imprensa alternativa brasileira, O Bondinho e Luta &
Prazer; ambos veículos paradigmáticos de suas épocas, as décadas de 70 e 80.
A forte presença de personalidades famosas da contracultura brasileira nas
capas do primeiro contrasta fortemente com a completa ausência de qualquer
celebridade em todas edições do segundo. Tal contraste acompanha a própria
evolução do movimento contracultura, alterando seu foco de grandes ícones e temas
utópicos para minorias esquecidas e temas mais específicos como, por exemplo,
ecologia, sexualidade e drogas.
Outra importante diferença é a presença de temas tabu e política em Luta &
Prazer contrastando com a presença majoritária de pautas culturais em O Bondinho.
Durante os anos 70, um jornal voltado para temas culturais era deixado de lado pela
censura e continuava existindo sem ter edições apreendidas ou proibidas. Já
durante a década de 80, como revelou o próprio editor de Luta & Prazer, Dau
Bastos7:
Já havia mais liberdade de expressão que possibilitava que
aquilo que só se veiculava por esses jornais mais engajados
passasse a ser veiculado pelos grandes periódicos, os grandes
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BASTOS, Dau. Entrevista concedida ao autor. Rio de Janeiro, 8 jun. 2007.
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diários e as revistas semanais também. Abria-se um espaço
então para se pensar de maneira mais segmentada as grandes
transformações.
Conclusão
Construir um futuro começa com a experiência adquirida com o passado e,
portanto, mesmo a história de um movimento restrito, como foi a contracultura
brasileira, pode nos ser muito útil. As variadas expressões contraculturais no Brasil e
principalmente, as jornalísticas mostram a capacidade de uma pluralidade de
discursos se fazerem viáveis, apesar de todas as adversidades. Afirmação esta que
se dá concomitantemente com a afirmação da indústria cultural em nosso país. As
soluções da contracultura esbanjavam criatividade e só se tornaram viáveis graças à
grande dedicação e coragem de seus realizadores. Esta é a maior lição que
podemos recolher daqueles momentos.
As inovações do jornalismo contracultural, principalmente as visuais e
gráficas, foram incorporadas pelos cadernos de cultura da grande imprensa. Sem a
censura, os grandes jornais passaram a ocupar os espaços antes ocupados pela
imprensa alternativa, que não ressurgiu. A contracultura brasileira deixou marcas na
cultura nacional e alguns dos bens simbólicos produzidos por seus membros
continuam a sendo consumidos.
Hoje, apenas a revista Caros Amigos mantêm a chama do jornalismo
alternativo acesa. Mas para muitos, como Luiz Carlos Maciel, uma imprensa
alternativa hoje ainda é possível, principalmente, com a ajuda das tecnologias da
Internet. “Ela divulga, comunica, transmite. Para você desenvolver alguma coisa,
não é lá dentro. Você usa para espalhar, uma vantagem que existe hoje e não
existia na época8”.
Realmente existe muito material referente à contracultura na Internet. O sítio
de relacionamentos Orkut, muito popular no Brasil, apresenta inúmeras
comunidades virtuais dedicadas a divulgar e discutir a contracultura e seus variados
ícones. Algumas destas comunidades possuem mais de 70.000 membros. Blogs e
Fotologs pessoais, em menor escala, também fazem essa divulgação. O próspero
casamento entre a rede mundial dos computadores e a contracultura é facilmente
explicada pela tendência de ambas em “fazer você mesmo”. Isto é, a máxima hippie
do “faça você mesmo” não difere tanto do que é apontado como o futuro da Internet:
a Web 2.0, a mídia produzida pelo próprio consumidor e capaz de render nada
menos do que US$ 1,2 bilhões para os criadores do sítio You Tube, comprado pela
a empresa Google.
Talvez uma absorção pela indústria cultural possa desvirtuar a essência de
um movimento. Muitos autores estudados que o movimento alternativo encerrou seu
ciclo histórico, por conta da comercialização dos valores contraculturais tão comum
8
MACIEL, Luiz Carlos. Entrevista concedida a Bruno Dorigatti. Portal Literal. Entrevista.
Revista ESFERA
Ano 1 Vol. 1 nº 2 Jul-Dez/2008
na atualidade. Entretanto, a absorção é, além de inevitável, perfeitamente esperável
e muito normal. Foi exatamente esta a afirmação de Jorge Mautner, poeta da
contracultura. Já em 1972, ele disse, em uma entrevista para o jornal Bondinho9, ser
uma reforma cultural a inserção da contracultura na cultura dominante, trazendo,
assim, a atenção não para as derrotas, mas para as vitórias deste movimento. Quem
explica é o próprio Mautner: “Se é inevitável essa absorção, vamos então fazer com
que essa absorção seja feita de modo a talvez preservar o que seja, o que mereça
ser preservado, o que é a essência da coisa”10.
9
MAUTNER, Jorge. O Bondinho, 31 mar. a 14 abr. 1972. Entrevista.
Idem.
10
Revista ESFERA
Ano 1 Vol. 1 nº 2 Jul-Dez/2008
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___. Entrevista concedida a Bruno Dorigatti. Portal Literal.
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