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Doutrina Internacional
A Corte de Cassação Francesa e a Arbitragem *
JEAN-PIERRE ANCEL
Presidente da Primeira Câmara Civil da Corte de Cassação.
SUMÁRIO: I - A definição da arbitragem internacional; II - O regime jurídico da
cláusula de arbitragem internacional; III - O respeito às garantias do
processo equânime; IV - A instauração de um estatuto jurídico internacional
da sentença (controle e execução da sentença arbitral internacional); A)
Controle da sentença internacional; B) Estatuto jurídico da sentença
internacional; Apêndice.
Homenagem a Philippe Fouchard
Este congresso se reúne em homenagem a nosso querido amigo
Philippe Fouchard, falecido recentemente.
Sua inteligência, a fineza de suas análises jurídicas, o vigor de sua
convicção e seu sorriso incansável nos fazem terrível falta.
Homenageio aqui sua memória com respeito, com emoção, com
afeição.
Em direito francês, a Corte de Cassação contribuiu fortemente
para o desenvolvimento do direito da arbitragem, estabelecendo um
conjunto de regras que conduziu à grande reforma de 1980-1981 e
que ainda constitui o quadro jurídico da instituição.
As coisas haviam, entretanto, sido mal começadas, pois, em
famosa decisão de 10 de julho de 1843, a Câmara Civil da Corte de
Cassação consagrou a nulidade da cláusula de arbitragem. O motivo
de tal nulidade foi claramente explícito na motivação da decisão: "não
se encontram nos árbitros as qualidades que seguramente
encontram-se nos magistrados".
Assim, a cláusula de arbitragem (ou cláusula compromissória)
viu-se excluída durante quase oitenta anos. Era necessário recorrer ao
"compromisso", convenção celebrada uma vez iniciado o litígio.
Foi de fato em 1925 que uma lei interveio a fim de admitir a
validade da cláusula de arbitragem, mas somente em matéria
comercial.
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A evolução favorável continuou até a reforma de 1980-1981,
não sem alguma sinuosidade, já que uma lei de 1972 a inseriu no
Código Civil, art. 2.061: "A cláusula compromissória é nula, se a lei
não dispuser diversamente".
A validade dessa convenção continuou sendo reconhecida em
matéria comercial e, posteriormente, em todas as matérias na
arbitragem internacional.
Atualmente, o texto do art. 2.061 do Código Civil foi reformado
por uma lei de 15 de maio de 2001: "Sob reserva de disposições
legislativas particulares, a cláusula compromissória é válida nos
contratos celebrados em razão de uma atividade profissional".
Apesar de uma redação ainda restritiva, pode-se afirmar que
em direito francês a cláusula de arbitragem é válida para todas as
matérias arbitráveis, ou seja, aqueles direitos cujas partes têm livre
disposição. Foi obra da jurisprudência - em especial da Corte de
Cassação - a construção do direito da arbitragem num sentido
bastante liberal, a partir de textos restritivos, sobretudo em matéria de
arbitragem internacional. As regras estabelecidas para a arbitragem
internacional foram sendo regularmente adaptadas para a arbitragem
interna, de forma que atualmente não existem muitas diferenças entre
as duas.
Assim, trata-se aqui mais particularmente da arbitragem
internacional, cuja obra criadora de direito da Corte de Cassação foi
mais remarcável.
O direito da arbitragem internacional francês é fortemente
marcado pela influência da jurisprudência, tanto em suas origens
quanto em seu desenvolvimento. O decreto de 12 de maio de 1981,
que codificou as regras de arbitragem internacional (arts. 1.492 a
1.507 do novo Código de Processo Civil - NCPC), é na realidade
amplamente inspirado nas soluções anteriormente fornecidas pela
jurisprudência - essencialmente aquelas da Corte de Apelação de
Paris e da Corte de Cassação.
Desse ponto de vista a situação não mudou, e a jurisprudência
continua sendo sua obra criadora, tendo como objetivo principal a
criação de um verdadeiro estatuto internacional de arbitragem, a fim
de garantir por vezes a eficácia da instituição (a solução de litígios
concernentes às trocas econômicas internacionais, segundo a vontade
dos contratantes) e a regularidade do processo arbitral (exigências do
processo equânime, de acordo com o art. 6.1 da Convenção Européia
de Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades
Fundamentais).
Ainda, a jurisprudência francesa define, a partir de textos, um
conjunto de regras claras de conteúdo normativo destinado a garantir
a eficácia da convenção de arbitragem (encontraremos tal finalidade
ao longo de toda esta conferência que relatará, em suas grandes
linhas, as contribuições da jurisprudência recente na matéria).
Esse conjunto de regras jurisprudenciais - verdadeiros
"princípios fundadores da arbitragem internacional" - articula-se em
torno de quatro proposições:
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- a definição de arbitragem internacional;
- a eficácia da convenção de arbitragem, como meio do
enunciado de um princípio da autonomia da cláusula de arbitragem
internacional;
- o respeito às garantias do processo equânime, com a
cooperação do juiz estatal;
- a instauração de um estatuto jurídico internacional da
sentença (controle e execução da sentença arbitral internacional).
I - A DEFINIÇÃO DA ARBITRAGEM INTERNACIONAL
Deve-se ressaltar de imediato a importância de uma definição
clara de internacionalidade da arbitragem, a fim de se determinar com
precisão quais arbitragens serão submetidas às regras específicas
aplicáveis em matéria internacional.
Em direito francês, o critério é definido pelo art. 1.492 do NCPC:
"É internacional a arbitragem que põe em causa os interesses do
comércio internacional".
O critério é, portanto, de caráter econômico: é a natureza da
atividade econômica em causa, seu caráter "transnacional", que
determina o caráter internacional da arbitragem. Critério este bastante
concreto, cuja prática consagrou sua pertinência. Basta que as trocas
econômicas litigiosas tenham um caráter internacional (transferência
de bens, capitais, savoir-faire, para um outro país…) para que a
arbitragem na qual ocorrem tais trocas seja internacional. Logo, em
direito francês, uma arbitragem cujas partes têm nacionalidade
francesa pode ser considerada como internacional se esta envolve,
por exemplo, um contrato de construção executado no exterior.
A jurisprudência da Corte de Cassação, quanto à definição de
arbitragem internacional, é particularmente sólida e estável.
Eis um último exemplo. Civ. 1, 28 de janeiro de 2003, B. nº 21:
"Uma cláusula de arbitragem celebrada entre uma empresa e um
não-comerciante é válida pelo simples fato do caráter internacional das
operações envolvidas".
Essa decisão é um exemplo do alcance da regra: somente a
internacionalidade da questão litigiosa é levada em consideração, e o
critério de comercialidade - outrora considerado como determinante não tem mais eficácia. Daí resultam duas conseqüências:
- supressão da reserva de comercialidade estabelecida pela
França para a aplicação da Convenção de Nova York, de 10 de junho
de 1958, sobre a execução de sentenças arbitrais;
- a inaplicabilidade, na ordem internacional, da regra proibitiva
da cláusula de arbitragem, anteriormente estabelecida pelo art. 2.061
do Código Civil (antes da reforma legislativa de 15 de maio de 2001,
que reconheceu a validade da cláusula arbitral celebrada em razão
de uma atividade profissional).
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Essa evicção do art. 2.061 do Código Civil foi afirmada com
veemência em direito internacional pela Corte de Cassação, Civ. 1, 5
de janeiro de 1999, B. nº 2 (Zanzi):
"Tendo em vista o princípio da validade da cláusula de
arbitragem internacional, sem condição de comercialidade (...)
(Donde) conclui-se que o art. 2.061 do Código Civil não tem aplicação
na ordem internacional."
Permite-se pensar que esta decisão guarda todo seu valor sob
o império do novo texto, à medida que o novo art. 2.061 - provindo da
lei de 15 de maio de 2001 - restringe a validade da cláusula de
arbitragem aos profissionais. Essa nova disposição entra sempre em
conflito com o "princípio da validade" da cláusula de arbitragem
internacional - regra segundo a qual a arbitragem internacional é válida
à condição única de que a atividade econômica em jogo seja
internacional, sem levar em conta sua origem comercial ou civil,
profissional ou não.
Essa primeira regra fundamental é, portanto, essencial, pois
instaura a validade da arbitragem internacional sob o fundamento
único do caráter internacional da atividade econômica em litígio.
Existe aí, em evidência, uma regra protetora da instituição da
arbitragem internacional a fim de colocá-la ao abrigo de um
contencioso parasita importante, concernente à validade da cláusula.
Reencontraremos essa regra no regime jurídico da cláusula de
arbitragem.
II - O REGIME JURÍDICO DA CLÁUSULA DE ARBITRAGEM
INTERNACIONAL
Tendo a arbitragem internacional se tornado o modo normal - o
único modo - de solução de litígios econômicos internacionais, fez-se
necessário, a fim de garantir a segurança jurídica destas trocas,
instaurar um regime jurídico específico aplicável à cláusula de
arbitragem inserida nos contratos internacionais e destinada a
submeter à arbitragem internacional todo litígio susceptível de
produzir.
Importava - em primeiro lugar - proteger a cláusula de
arbitragem, colocando-a ao abrigo de contestações dilatórias,
principalmente nos casos de questionamento acerca da validade do
contrato que a estipulou. Foi assim que a jurisprudência estabeleceu a
regra chamada de autonomia da cláusula de arbitragem internacional,
que se transformou em verdadeira regra de validade da cláusula de
arbitragem, independentemente do contrato principal.
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A afirmação da autonomia da cláusula de arbitragem em
relação ao contrato principal resulta de uma famosa decisão da Corte
de Cassação, Civ. 1, 7 de maio de 1963, B. nº 246 (Gosset):
"Em matéria de arbitragem internacional, o acordo
compromissório (a cláusula de arbitragem) sempre apresenta
completa autonomia jurídica, evitando que ela possa ser afetada por
uma eventual invalidez do ato jurídico que a contém."
Assim estava estabelecido um dos princípios fundadores do
direito da arbitragem internacional, que encontrou sua última
expressão - 30 anos mais tarde - na decisão Dalico, Civ. 1, 20 de
dezembro de 1993, B. nº 372):
"Em virtude de uma regra material de direito da arbitragem
internacional, a cláusula compromissória (cláusula de arbitragem) é
juridicamente independente do contrato principal que a contém,
diretamente ou por referência, e sua existência e eficácia são
analisadas de acordo com a vontade comum das partes, sob reserva
de regras imperativas do direito francês e da ordem pública
internacional, sem que seja necessária a referência à lei de um
Estado."
Várias regras importantes são aqui enunciadas:
- a cláusula de arbitragem é válida, independentemente do
contrato principal; ela escapa dos casos de nulidade que possam
anular este contrato (é o efeito da imunidade do princípio de
autonomia da cláusula); pode-se afirmar que existe no direito francês
um princípio de validade da cláusula de arbitragem internacional;
- a cláusula de arbitragem pode ser estipulada no próprio
contrato ou por referência a um outro documento contratual que a
contenha (é a confirmação da validade da cláusula de arbitragem dita
"por referência");
- a apreciação da existência ou da validade da convenção de
arbitragem é analisada exclusivamente a partir da vontade das partes,
sem colocar em jogo a regra de conflito de leis a fim de buscar a lei
eventualmente aplicável a essa convenção: a referência a um direito
estatal não é necessária (efeito de emancipação da regra de
autonomia: a cláusula de arbitragem emancipa-se de qualquer direito
estatal; ela é verdadeiramente de essência internacional, expressão
perfeita do princípio de autonomia da vontade em matéria contratual:
é a vontade das partes que cria a relação de direito).
- a liberdade contratual é total; interessa somente a vontade
de celebrar uma convenção de arbitragem. A única limitação é a
ordem pública internacional que pode intervir no sentido de invalidar
uma convenção que afronta os valores jurídicos fundamentais
(contrato de corrupção ou de atividades ilícitas).
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Esse princípio da autonomia foi estendido pela jurisprudência
francesa à clausula de arbitragem de direito interno, Civ. 2, 20 de
março de 2003, B. nº 68 (Parisot).
A aplicação da regra tem importantes conseqüências práticas,
que a jurisprudência deduziu desta nova eficácia da cláusula de
arbitragem.
O efeito obrigatório da cláusula é reforçado. A cláusula de
arbitragem força os contratantes a duas obrigações principais: recorrer
à arbitragem em caso de litígio, mas igualmente executar a sentença
(sendo estas duas obrigações consubstanciais à natureza contratual
da arbitragem). Uma decisão recente demonstrou uma conseqüência
radical: a obrigação de executar a sentença subscrita por um Estado
signatário de uma convenção de arbitragem tem por efeito a renúncia
à imunidade de execução dos Estados, Civ. 1, 6 de julho de 2000, B.
nº 207 (Estado do Quatar).
Sempre com relação à eficácia consolidada da cláusula de
arbitragem, foi decidido que a essa "se impõe à toda parte que venha
em direção aos direitos de um dos contratantes", Civ. 1, 8 de fevereiro
de 2000, B. nº 36 (Taurus Films).
Assim, a cláusula de arbitragem - independente juridicamente
do contrato principal por constituir uma convenção de procedimento
distinta das cláusulas substanciais do contrato - encontra-se
transmitida com este contrato. Ela é independente por seu estatuto
jurídico, distinta do estatuto do contrato principal, mas é inseparável
deste contrato do qual é acessório indispensável para o perfeito
cumprimento da vontade contratual.
É o que dispõe uma decisão recente, Civ. 1, 28 de maio de
2002, B. nº 146 (Cimentos do Abidjão):
"Em matéria internacional, a cláusula de arbitragem
juridicamente independente do contrato principal é transmitida com
ele, seja qual for a validade da transmissão de direitos substanciais."
Existe, assim, um verdadeiro mecanismo de transmissão
contratual da cláusula de arbitragem. O direito de ação (direito de
recorrer à arbitragem) é transmitido juntamente com os direitos
substanciais estipulados no contrato principal. É o que exprime a
decisão Civ. 1, 6 de fevereiro de 2001, B. nº 22 (Peavey): numa
seqüência de contratos translativos, a cláusula de arbitragem
internacional se transmite com a ação contratual.
Enfim, a exigência de eficácia da cláusula de arbitragem deve
aumentar sua aplicação a um conjunto de contratos celebrados entre
as partes, mesmo que apenas um dentre eles estipule a convenção de
arbitragem. Foi o que pudemos chamar de efeito mobilizador da regra
de autonomia-validade da cláusula de arbitragem internacional.
Uma decisão da Corte de Apelação de Paris havia afirmado tal
efeito por várias vezes nos anos 80, editando uma regra material de
direito internacional, que a Corte de Cassação não havia endossado
em sua responsabilidade, rejeitando, entretanto, os recursos
entrepostos contra tais decisões pelo motivo de que os mecanismos
contratuais justificavam a extensão da aplicação da cláusula aos
contratos que não a estipulavam.
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Em decisão bastante recente adotada pela 1ª Câmara Civil
(Ouralkali), a Corte de Cassação confirma a regra pelo aspecto da
interpretação da cláusula, soberanamente adotada pela Corte de
Apelação. Num grupo de dois contratos - no qual apenas um continha
cláusula de arbitragem -, a Corte de Apelação determinou que os dois
contratos "eram indissociáveis, a fim de garantir a viabilidade
econômica da operação, e que a submissão à arbitragem abrangia
todos os litígios que pudessem nascer da execução de um contrato ou
de outro".
Encontra-se aqui, ainda, o pragmatismo que domina toda a
teoria da arbitragem internacional: o que importa é a realidade
econômica e a eficácia da convenção de arbitragem.
A justificativa dessa decisão deve ser buscada na preocupação
em evitar uma dispersão do contencioso arbitral. Todas as partes
envolvidas no litígio arbitral devem estar submetidas à cláusula de
arbitragem, parte integrante - assim como independente - do contrato
de cuja execução elas participaram.
Enfim, duas outras regras de grande efeito prático estão ligadas
aos efeitos do princípio da autonomia:
- A chamada regra da compétence-compétence, segundo a
qual cabe ao árbitro decidir sobre sua própria competência, ou seja,
sobre a existência e validade da convenção de arbitragem que o
investe de seu poder julgador.
Essa regra tem um efeito positivo - o árbitro deve decidir sobre
este ponto prioritariamente - e um efeito negativo corolário - a
jurisdição estatal não tem o poder de decidir sobre este ponto antes
que o árbitro tenha se pronunciado.
O princípio se aplica tanto em matéria de arbitragem interna
quanto internacional.
A jurisprudência aplica a regra de maneira bastante restrita: não
existe em direito francês arbitral uma ação a fim de fazer julgar a
validade de uma convenção de arbitragem. A única exceção prevista é
a "nulidade manifesta" de tal convenção - caso muito excepcional, por
exemplo, de uma convenção concluída a partir de direitos
indisponíveis, tais como a filiação ou o divórcio.
Eis dois exemplos recentes de aplicação da regra da
competência-competência: Civ. 1, 1º de dezembro de 1999, B. nº 325
(Metu System), em matéria internacional, "cabe ao árbitro, em primeiro
lugar, se pronunciar sobre a existência e a validade da convenção de
arbitragem" (a jurisdição estatal não tem, portanto, o poder de se
pronunciar); na mesma solução, Com., 4 de março de 2003
(Numonics), 1 Civ. 2, 27 de junho de 2002, B. nº 146 (Verreries de
Masnières), em matéria interna.
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a
segunda
regra,
corolária
do
princípio
da
autonomia-validade da cláusula de arbitragem internacional, é a da
arbitrabilidade dos litígios concernentes às pessoas jurídicas de
direito público (Estado e empresa estatizada) quando se trata de um
contrato internacional em questão.
A regra resulta, em direito francês, da decisão Galakis, Civ. 1, 2
de maio de 1966, B. nº 256.
A Corte de Cassação afirma que a proibição de se submeter à
arbitragem visando aos estabelecimentos públicos não é aplicável "a
um contrato internacional assinado de acordo com as necessidades e
costumes do comércio" (internacional marítimo, no caso concreto).
Existe ainda um exemplo de pragmatismo evocado mais alto: o
Estado que assina uma cláusula de arbitragem, pois age enquanto
negociador internacional, deve, de um lado, honrar sua assinatura e,
de outro lado, submeter-se às regras do negócio internacional,
executando de boa-fé a convenção que celebrou.
III - O RESPEITO ÀS GARANTIAS DO PROCESSO EQUÂNIME
A cooperação do juiz
Ainda que se possa discutir acerca da aplicabilidade, em geral,
da Convenção Européia de Salvaguarda aos Direitos do Homem e das
Liberdades Fundamentais em matéria de arbitragem, não parece
duvidoso que as regras do processo equânime (art. 6.1 da Convenção)
se apliquem à justiça arbitral assim como à justiça estatal.
Assim, são consagrados, para a instância arbitral, os princípios
fundamentais, respeito ao contraditório, dos direitos de defesa.
A jurisprudência francesa foi chamada a evocar um princípio de
procedimento a propósito de uma arbitragem multipartes, na qual a
constituição do tribunal arbitral fora prejudicada por serem numerosas
as partes que compunham o litígio. A Corte de Cassação lembrou do
"princípio da igualdade das partes na designação dos árbitros",
princípio de ordem pública que só pode ser renunciado após o
surgimento do litígio, Civ. 1, 7 de janeiro de 1992, B. nº 2 (Dutco).
Assim sendo, o processo equânime exige também que sejam
combatidas as manobras dilatórias destinadas a retardar uma solução
do litígio que uma das partes suponha lhe ser desfavorável.
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Por isso foi colocada em prática uma regra de procedimento
segundo a qual a parte que participa sem reservas da arbitragem deve
renunciar de evocar as irregularidades que ela omitiu, sem justificativa,
de submeter aos árbitros desde que teve conhecimento.
Civ. 2, 21 de novembro de 2002, B. nº 264:
"A participação sem reserva de uma parte na arbitragem
requer de sua parte renúncia ao direito de invocar a nulidade da
cláusula compromissória."
Civ. 2, 11 de julho de 2002, B. nº 161:
"Uma parte que, tendo participado ativamente da arbitragem,
se absteve, com conhecimento de causa, de invocar perante o árbitro
qualquer irregularidade é reputada como tendo renunciado a
utilizar-se destas posteriormente."
Essa regra - na qual se reconhece uma influência da nação
anglo-americana de estoppel e que se funda sob o princípio
fundamental da lealdade do contraditório (perante o árbitro, bem como
perante o juiz) - está disposta na lei-modelo da UNCITRAL (art. 4,
subintitulado Renúncia ao Direito de Fazer Objeção). Possui grande
interesse prático e poderia figurar em uma legislação moderna sobre
arbitragem.
Quanto à cooperação do juiz, ela é essencial ao bom
funcionamento de todo o sistema da arbitragem. Essa cooperação
acontece em dois momentos:
- para a constituição do tribunal arbitral, quando uma
dificuldade se apresenta (uma das partes nega-se a designar um
árbitro, falecimento ou dispensa de um árbitro). Recorrer ao juiz é,
então, indispensável para que a situação que impede o andamento
da arbitragem seja desfeita. Mesmo em caso de recusa de um árbitro.
- no decorrer do processo e em caso de urgência, deve-se
admitir a possibilidade de se dirigir a um juiz que possa pronunciar-se
rapidamente (em direito francês, o juge des référés).
A jurisprudência francesa a admite de longa data,
primeiramente para que sejam tomadas medidas provisórias ou
conservatórias (seqüestro, perícias, venda de alimentos perecíveis,
salvaguarda de provas), mas igualmente para conceder ao credor uma
provisão a compensar sobre seu crédito, desde que ela não apareça
seriamente contestável.
Civ. 1, 6 de março de 1990, B. nº 64 (Horeva):
"Na ausência de vontade contrária das partes recorrentes à
arbitragem internacional, a existência de uma convenção de
arbitragem (…) não exclui, em caso de urgência, a competência
excepcional do juge des référés para consentir uma provisão, uma
vez que o crédito não é seriamente contestável."
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Ainda, nesse caso, o juiz é chamado apenas a intervir para
garantir a eficácia da convenção de arbitragem, jamais para substituir
o árbitro, que é o único investido no poder de julgar o mérito do litígio.
IV - A INSTAURAÇÃO DE UM ESTATUTO JURÍDICO
INTERNACIONAL DA SENTENÇA (CONTROLE E EXECUÇÃO DA
SENTENÇA ARBITRAL INTERNACIONAL)
A) Controle da sentença internacional
A sentença arbitral internacional é suscetível de execução em
todos os lugares do mundo: é o objeto da Convenção de Nova York,
anteriormente citada, e do direito arbitral internacional, com a única
reserva do controle a posteriori do juiz do lugar de execução. Tal
controle não deve tratar da regularidade internacional da sentença e,
jamais, sobre o mérito do litígio. Essa proibição de qualquer revisão
sobre o fundo da sentença arbitral está seguramente estabelecida,
Civ. 1, 23 de fevereiro de 1994, B. nº 75 (Multitrade).
O controle está, portanto, limitado a alguns casos de abertura
de recurso (art. 1.502, NCPC, em direito francês). Porém, por vezes, a
partir de um dos casos de abertura, as partes procuram recolocar em
causa o julgamento do fundo, atacando, por exemplo, a motivação da
sentença.
A Corte de Cassação recentemente condenou essa prática,
precisando invocar que um dos motivos de anulação (o desrespeito ao
princípio do contraditório) não deveria "sobrepor uma crítica da
pertinência da motivação" mantida pelo tribunal arbitral, Civ. 1, 14 de
junho de 2000, B. nº 181 (Inter Arab):
"(...) com exceção dos casos (…) de violação do contraditório
ou da ordem pública internacional, o conteúdo da motivação da
sentença escapa ao controle do juiz da regularidade da sentença; (…)
o argumento fundamentado em uma contradição de motivos é,
portanto, inaceitável."
B) Estatuto jurídico da sentença internacional
A sentença arbitral internacional possui um estatuto jurídico
específico de decisão jurisdicional internacional. Ele não se incorpora
a nenhum sistema jurídico estatal, uma vez que emana de uma
jurisdição que, por sua vez, não está integrada a nenhum sistema
judiciário ou jurídico estatal. Entretanto, a sentença tem vocação a ser
reconhecida, acolhida e executada em todos os países, seja em razão
da Convenção de Nova York, seja em razão das disposições mais
favoráveis dessa Convenção.
Foi assim que, em direito francês da arbitragem internacional,
mais tolerante que a Convenção de Nova York, uma sentença
internacional anulada em seu país de origem pôde ser reconhecida e
executada na França.
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É o famoso caso Hilmarton, Civ. 1, 23 de março de 1994, B. nº
104.
Esse acórdão aplica o art. 7 da Convenção de Nova York. Ele
prevê que a pessoa que requer a execução de uma sentença
internacional pode invocar o direito do lugar de execução, caso esse
seja mais favorável do que as regras da convenção. No caso concreto,
a convenção previa a possibilidade de negar o reconhecimento e a
execução de uma sentença anulada em seu país de origem (a
sentença havia sido anulada na Suíça). No entanto, o direito francês
ignora esse caso de recusa de reconhecimento. Assim, o juiz francês
tinha a possibilidade de reconhecer a validade da sentença se
estivesse em conformidade com o direito francês arbitral internacional.
A sentença foi declarada executável, e o fundamento de anulação no
exterior (revisão do fundo do julgamento dos árbitros) não era aceito
no direito internacional francês.
A situação parece chocante: como uma sentença "nula" pode
ser executada? Isso significa, na realidade, que a sentença anulada no
exterior não o será na França, ao menos que o motivo de anulação
"local" tenha um caráter "internacional" (por exemplo, violação da
ordem pública internacional ou dos direitos de defesa). Um motivo
puramente contingente de direito local (por exemplo, a não-indicação
do endereço dos árbitros) não será admitido na França.
O que se deve conservar nesta decisão é o esboço de um
estatuto jurídico da sentença arbitral internacional, independente de
todo sistema jurídico estatal, de maneira a poder ser acolhido e
executado em todos os países cujo direito internacional arbitral o
permite.
Deve-se citar aqui nosso saudoso amigo, o professor PHILIPPE
FOUCHARD, que, fazendo a síntese dos trabalhos do congresso do
Conselho Internacional para Arbitragem Comercial (ICCA International Council for Commercial Arbitration), ocorrido em Paris,
em 1998, evocava a memória dos estudantes de maio de 1968, que
em Paris proclamavam: "Sejamos realistas! Exijamos o impossível!".
PHILIPPE FOUCHARD exigia o "impossível": que a sentença arbitral
internacional tenha um verdadeiro status internacional que o permita
circular livremente pelo mundo.
Esforçamo-nos a dar uma "leitura" da jurisprudência francesa
em matéria de arbitragem, especialmente internacional. Percebe-se
que, nesse domínio, o sistema clássico de conflitos de lei foi
praticamente descartado em proveito das regras materiais de direito
internacional, fixadas pelo juiz a partir de grandes princípios que
governam a matéria.
Se tentássemos resumir em poucas palavras o sistema francês,
fazendo-nos a seguinte questão: o que é necessário, segundo o direito
francês arbitral internacional, para que a arbitragem funcione?
Pode-se responder que é necessário:
- uma convenção de arbitragem de validade reforçada graças
a um regime jurídico autônomo, permitindo-a escapar da nulidade que
possa, eventualmente, afetar o contrato principal, emancipando-a de
qualquer direito estatal. Essa validade estaria baseada unicamente na
vontade dos contratantes, controlada unicamente pelas exigências da
ordem pública internacional;
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- uma convenção de efeitos estendidos ao conjunto contratual
em questão e a todos os participantes diretos à sua execução;
- uma instância arbitral defensora das garantias do processo
equânime;
- uma sentença com status jurídico, verdadeiramente
internacional, autorizando sua circulação transfronteiriça;
- o controle total e prioritário por parte do árbitro, e do juiz
posteriormente, em relação, seja à ordem pública internacional, seja
às causas de anulação ou recusa de reconhecimento estritamente
limitados em sua definição e sua aplicabilidade.
APÊNDICE
Intervenção, na ocasião do congresso, em resposta às críticas
realizadas pelo Sr. JAN VAN DEN BERG, com relação à decisão
francesa Hilmarton, pela qual o juiz francês admitiu a execução, na
França, de uma sentença internacional anulada em seu país de origem
(Suíça).
Duas observações:
1. O juiz francês aplicou, na ocasião, a Convenção de Nova
York (seu art. 7 abre a possibilidade ao demandante da execução da
sentença arbitral de requerer a aplicação do direito local mais
favorável que a convenção, o que era o caso, uma vez que o direito
francês não considerava como causa de recusa de execução de uma
sentença internacional o fato de essa ter sido anulada em seu país de
origem).
A decisão do juiz baseava-se, assim, num fundamento do
direito internacional pouco contestável.
2. A decisão do juiz francês não significa que qualquer
sentença arbitral anulada em seu país de origem será executada na
França. Se a sentença Hilmarton tivesse sido declarada nula na
Suíça por um motivo relevante aos critérios de regularidade
internacional da sentença internacional, e não por um motivo "local",
contingente (por exemplo, caso tivesse sido anulada por violação ao
direito de defesa), é evidente que não teria sido reconhecida na
França.
Tomando um exemplo um tanto caricatural: observamos que,
em nosso mundo, os direitos do homem não são respeitados em todos
os lugares, sobretudo se "o homem" é uma mulher… Imaginemos que
uma sentença seja anulada em seu país por ser o árbitro uma mulher.
Tal anulação não deveria ter qualquer efeito internacional.
RBAr Nº 7 - Jul-Set/2005 - DOUTRINA INTERNACIONAL
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Mas o efeito da decisão Hilmarton é ainda mais importante.
Com essa decisão, a Cour de Cassation francesa reconheceu a
existência de um verdadeiro estatuto autônomo da sentença arbitral
internacional, independente, por vezes, da ordem jurídica de seu país
de origem e da ordem jurídica do país que o acolhe - em uma palavra,
um estatuto jurídico verdadeiramente internacional.
No caso concreto, a Cour de Cassation fez, verdadeiramente, o
direito internacional. É o caminho a ser seguido.
Podemos, é claro, pensar diversamente acolhendo todas as
anulações de sentenças proferidas no mundo. Nesse caso, seria
necessário organizar uma grande reunião mundial, para que
celebrássemos juntos o sepultamento da arbitragem internacional.