Revista de Ciências Sociais - Universidade Federal do Ceará
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Revista de Ciências Sociais - Universidade Federal do Ceará
Universidade Federal do Ceará - UFC Departamento de Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia Revista de Ciências Sociais A cidade como campo de pesquisa ISSN.BL 0041-8862. Fortaleza, v. 46, n. 1, p. 01 - 300, jan./jun., 2015 ISSN, v. eletrônica 2318-4620. Fortaleza, v. 46, n. 1, p. 01 - 300, jan./dez., 2015 Ficha Catalográfica Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará – UFC n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2015 Semestral ISSN.BL. 0041- 8862 ISSN, v. eletrônica 2318-4620 1. Cidade; 2. Pesquisa; 3. Intervenções urbanas. I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades Comissão Editorial Edição Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes, Antônio Cristian Saraiva Paiva, Isabelle Braz Peixoto da Silva, Irlys Alencar Firmo Barreira e Jakson Alves Aquino. Projeto gráfico: Vibri Design & Branding Conselho Editorial Revista de Ciências Sociais Volume 46 – número 1 - 2015 Publicação do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Centro de Humanidades da Universidade Federal do Ceará Membro da International Sociological Association (ISA) ISSN.BL 0041-8862 ISSN, v. eletrônica 2318-4620 Bela Feldman-Bianco (UNICAMP), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), Céli Regina Jardim Pinto (UFRGS), César Barreira (UFC), Fernanda Sobral (UnB), François Laplantine (Universidade de Lyon 2), Inaiá Maria Moreira de Carvalho (UFBA), Jawdat Abu-El-Haj (UFC), João Pacheco de Oliveira (UFRJ), José Machado Pais (ICS, Universidade de Lisboa), Linda Maria de Pontes Gondim (UFC), Lucio Oliver Costilla (UNAM), Luiz Felipe Baeta Neves (UERJ), Manfredo Oliveira (UFC), Maria Helena Vilas Boas Concone (PUC-SP), Moacir Palmeira (UFRJ), Ruben George Oliven (UFRGS), Ralph Della Cava (ILAS), Ronald H. Chilcote (Universidade da Califórnia), VéroniqueNahoumGrappe (CNRS). Editoração eletrônica: Organização: Irlys Alencar Firmo Barreira Revisão: Sulamita Vieira Endereço para correspondência Revista de Ciências Sociais Departamento de Ciências Sociais Centro de Humanidades – Universidade Federal do Ceará Endereço postal: Av. da Universidade, 2995, 1º andar (Benfica) 60.020-181 Fortaleza, Ceará / BRASIL Tel./Fax: (85) 3366-7546 / 3366-7416 E-mail: [email protected] www.rcs.ufc.br Publicação semestral Solicita-se permuta / Exchange desired Sumário Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46 n. 1, 2015 // DOSSIÊ: A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA 11 A cidade como campo de pesquisa (apresentação) Irlys Alencar Firmo Barreira 15 Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos Vera da Silva Telles 43 Entre cidades materiais e digitais: esboços de uma etnografia dos fluxos da arte urbana em Lisboa Glória Diógenes 69 Identificação e reutilização do patrimônio no processo de reinvenção das cidades: uma reflexão a partir da cidade de Almada Roselane Gomes Bezerra 93 Tempo, usos e rituais: intervenções patrimoniais em um “centro histórico” Francisco Willams Ribeiro Lopes e Irlys Alencar Firmo Barreira 119 Etnografia de uma cidade redesenhada pela pichação/grafitti Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé e Rodrigo Nathan Romanus Dantas // ARTIGOS 143 Trajetórias de vida do lixo: a interface entre meio ambiente, pobreza e empoderamento no município de Santa Maria-RS, Brasil João Vicente Costa Lima e Isabel Padoin 165 As relações entre jovens infratores e a Polícia sob a ótica das lógicas penais, policiais e territoriais Géraldine Bugnon e Dominique Duprez 199 Os “estabelecidos e os outsiders” da Sulanca no Agreste pernambucano Annahid Burnett 221 Empregos verdes e sustentabilidade: tendências e desafios no Brasil Valério Vitor Bonelli e Noêmia Lazzareschi 243 A organicidade da flexibilização: representações, discursos e memórias no âmbito do trabalho Roney Gusmão do Carmo e Ana Elizabeth Santos Alves // ENTREVISTA 261 Entre Jóias de família, Trânsitos internacionais e a Praia de Iracema: uma instigante trajetória de pesquisa Adriana Piscitelli // RESENHAS 289 Xavier, Uribam. O PT e a lenda do Boto cor de rosa André Haguette 295 Vidal, Alexandre Porto. Sérgio Y. vai à América Andréa Borges Leão e Alef de Oliveira Lima Contents Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46 n. 1, 2015 // DOSSIER: THE CITY AS A RESEARCH FIELD 11 The city as a research field (presentation) Irlys Alencar Firmo Barreira 15 City: spatial production, forms of control and conflicts Vera da Silva Telles 43 Between material and digital cities: outlines of an ethnography of the urban art flows in Lisbon Glória Diógenes 69 Identification and reuse of patrimony in the process of reinventing of cities: a reflection from the city of Almada Roselane Gomes Bezerra 93 Time, uses and rituals: heritage interventions in an “historic area” Francisco Willams Ribeiro Lopes and Irlys Alencar Firmo Barreira 119 Ethnography of a city redesigned by graffiti Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé and Rodrigo Nathan Romanus Dantas // ARTICLES 143 Life path of garbage: the interface between environment, poverty and empowerment in the city of Santa Maria – RS, Brazil João Vicente Costa Lima and Isabel Padoin 165 Relations between young offenders and the police from the perspective of criminal logical, police and territorial Géraldine Bugnon and Dominique Duprez 199 The “established and outsiders” of Sulanca in Pernambuco Agreste Annahid Burnett 221 Green Jobs and sustainability: trends and challenges in Brazil Valério Vitor Bonelli and Noêmia Lazzareschi 243 The organicity of flexibilization: representations, discourses and memories in the work Roney Gusmão do Carmo and Ana Elizabeth Santos Alves // INTERVIEW 261 Among Family jewels, International transits and Iracema Beach: an exciting journey of research Adriana Piscitelli // REVIEWS 289 Xavier, Uribam. PT and the legend of the pink river dolphin André Haguette 295 Vidal, Alexandre Porto. Sérgio Y. goesto America Andréa Borges Leão and Alef de Oliveira Lima Dossiê: A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA A cidade como campo de pesquisa (apresentação) Pensar a cidade como lugar de investigação do qual brotam muitas possibilidades analíticas de manifestação de relações sociais constitui o objetivo principal deste dossiê que tomou como referência empírica cidades brasileiras, estendendo-se também a estudos feitos em espaços urbanos portugueses como de Lisboa e Almada. As formas de investigação apresentadas nas diversas contribuições são variadas, evidenciando as possibilidades do exercício etnográfico fora de seus marcos convencionais, assim como as lógicas espaciais de caráter mais estrutural que acompanham os estudos que se efetivam na cidade. Uma sociologia espacializada que caracteriza o conjunto dos artigos pensa a cidade tanto do ponto de vista de sua totalidade, como referindo-se a partes específicas do contexto urbano nas quais observam-se intervenções materializadas em projetos ou indisciplinas que atestam o caráter dinâmico dos usos citadinos. Noções como tensões ou conflitos tornam-se presentes nos artigos, atestando o princípio da cidade como projeção de diferentes processos temporais e espaciais. Tendo por base pesquisas recentes, de abordagem sócio antropológica, o artigo de Vera Telles, que dá início ao dossiê, busca decifrar como duas linhas de força, provenientes das lógicas de mercado e das formas de controle, são territorializadas, circunscrevendo campos de tensão e de conflito dotados de formas e sentidos. A autora explora a mercantilização de espaços e territórios urbanos com suas formas de controle e gestão militarizada. O caráter estrutural e ao mesmo tempo específico dos territórios analisados, circunscritos a São Paulo, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 11-13 12 A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA (APRESENTAÇÃO) aponta possibilidades interessantes para se pensar processos mais amplos de conformação dos espaços que podem ser pesquisados em outras cidades. Trata-se também de uma perspectiva que, sem eliminar a presença de atores e suas possibilidades de atuação no contexto urbano, prioriza as negociações e imposições que formam o tecido das cidades, os lugares de ilegalidade e suas marcas de tensão entre o vivido e o permitido. Supondo a ilegalidade menos pela lógica da indisciplina e mais no âmbito das oportunidades de usos criativos do espaço, o artigo de Glória Diógenes baseia-se em um estudo etnográfico sobre artes de rua em Lisboa. Fruto de pesquisa baseada em observação presencial e análise de comunicação em redes sociais, o artigo reflete sobre os desafios e limites de estudos etnográficos que têm múltiplas conexões com o ciberespaço. A autora tomou como caso exemplar a trajetória do morador denominado Tinta Crua, e sua prática de graffiti ilegal na zona histórica de Lisboa. Em suas conclusões, considera que “o ciberespaço acaba atuando como um palco alargado, um recipiente amplo, veloz e múltiplo das artes que inundam as paredes, muros e telas das vitrinas urbanas”. Uma outra percepção de territorialidade urbana do ponto de vista de investimentos e projetos de intervenção encontra-se presente na pesquisa de Roselane Bezerra voltada para entender processos de patrimonialização na cidade de Almada, Portugal. Trata-se de uma cidade pós-industrial, com edifícios em ruínas, espaços degradados e instalações da indústria naval abandonadas na qual projetos de “requalificação” emergem. Partindo da interpretação dos discursos de arquitetos e gestores nos fóruns de participação, o artigo apresenta sentidos de “qualificação” e usos da cidade presentes nos projetos de intervenção urbana. Considerando a existência de modos diferentes de pensar e agir na cidade, apresenta “urbanidades em disputa”, subjacentes na concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas”. As diversas narrativas e planos de intervenção identificados na pesquisa dão pistas para ampliar o debate sobre políticas urbanas, limites e possibilidades de “reinvenção” das cidades contemporâneas. A lógica discursiva de processos patrimoniais encontra-se também presente no trabalho de Francisco Willams Lopes e Irlys Barreira, analisando políticas de preservação do patrimônio designadas como “requalificação”, com ênfase nas intervenções, estratégias e práticas sociais envolvidas nas formas de intervenção. Tomando projetos realizados na Praça dos Mártires – situada no centro histórico de Fortaleza, Ceará –, o artigo analisa intervenções feitas em nome do patrimônio que buscavam a substituição de usuários por meio de rituais de entretenimento, com objetivos de atrair turistas e moradores Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 11-13 13 IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA de classe média. Os conflitos de natureza social e simbólica decorrentes do processo de “requalificação” exprimem as dificuldades de imprimir no local novas formas de sociabilidade, pondo em pauta a questão do tempo, dos usos e da transformação dos espaços urbanos. Uma outra lógica de intervenção na cidade advinda não de projetos emerge de práticas dissonantes exemplificadas na pichação/graffiti. O artigo de Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé e Rodrigo Nathan Romanus Dantas analisa tensões, conflitos, disputas e resistências que se efetivam na construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Os dados, na visão dos autores, indicam “uma grande efervescência semântica em torno da pichação/ graffiti, sendo possível interpretar a cidade como um comum partilhado por múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente, a pichação/graffiti como um ponto de encontros discordantes”. Uma espécie de “cidade pelo avesso” apresenta as múltiplas formas de uso do espaço urbano, assim como as suas apropriações legais e ilegais. O conjunto de textos possui em comum as possibilidades de associar postulados empíricos e teóricos que transitam entre a sociologia e a antropologia. Uma abordagem etnográfica não convencional porque feita no contexto denso de situações e episódios urbanos permite o entendimento da cidade em sua diversidade. Diversidade que se encontra presente no trânsito entre o legal e o ilegal, o planejado e o vivido, a criação e a repetição; enfim, a cidade em sua feição plural que se apresenta em diferentes contextos e tempos históricos. Irlys Alencar Firmo Barreira (organizadora do dossiê) Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 11-13 Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos Vera da Silva Telles Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo. Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS-USP). Publicações recentes: - A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010. - Em co-autoria com Christian Azïs e Gabriel Kessler. Ilegalismos, cidade e política. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012. - Em co-autoria com Gabriel Kessler, Dossiê: Ilegalismos na América Latina. Tempo Social, revista de sociologia da USP, volume 22, número 2, dezembro/2010. [email protected] www.veratelles.net São Paulo, doze milhões e oitocentos mil habitantes (18 milhões na região metropolitana), espalhados em uma superfície a perder de vista. No correr dos últimos anos, desenhou-se um cenário muito contrastado, muito heterogêneo, em que, mesmo os bairros populares, situados nas expansivas periferias urbanas, são muito diferenciados internamente. É um cenário que torna inoperantes as grades de análise consagradas nos estudos urbanos, em grande parte regidas pelas noções de segregação urbana e exclusão social. Não se trata de dizer que os problemas indicados por essas noções tenham deixado de existir; muito pelo contrário. Mas, as oposições binárias que essas noções Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 16 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS carregam (exclusão-inclusão; dentro e fora, centro e periferia) não mais dão conta dessas realidades multifacetadas. De uma maneira geral, seria possível dizer que, nos últimos anos, vem se desenhando novas fronteiras sociais e territoriais, legais e políticas, seguindo os traços das mudanças engendradas pelos circuitos globalizados da economia urbana, bem como pelas redefinições dos modos de governo da cidade e seus espaços. É um cenário desenhado por territorialidades urbanas de contornos incertos, atravessadas por conflitos e campos de tensão espalhados por todos os lados, mas que se configuram em torno dos pontos de fricção postos pelas tendências de uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas e forma de vida, no seu entrecruzamento com formas de controle e a lógica militarizada de gestão de espaços e territórios urbanos. Esta é a questão – e hipótese de trabalho – exposta nas linhas que se seguem. I Para bem situar as questões a serem discutidas neste texto, é importante pontuar as inquietações que se colocaram em nossas reflexões sobre essas configurações urbanas em São Paulo. Quer dizer: os desafios teóricos e empíricos que se colocaram, e se colocam, para nós no próprio andamento de nossas pesquisas1. Se hoje já é lugar comum dizer que nossas categorias de análise estão sendo desafiadas – aliás, há um bom tempo – por realidades urbanas muito alteradas em relação a décadas passadas, é justamente essa situação que nos faz lançar a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual descrever e colocar sob perspectiva crítica a nossa complicação atual. Como ponto de partida, diria que esse é um desafio que nos alerta para as armadilhas de um padrão recorrente, até muito recentemente – e ainda persistente –, de certa topografia teórica pela qual as cidades do Norte são apresentadas como modelo e referência, e as cidades do Sul, o lugar de todos os problemas e incompletudes de uma modernidade (qual mesmo?) posta como referência normativa. Para usar uma fórmula sintética, o modelo da Cidade Global ao Norte e, ao Sul, o “Planeta Favela”, para evocar o livro famoso de Mike Davis, a enormidade de uma distopia urbana em escala global, lócus de todas as mazelas e desgraças sociais potencializadas ao extremo pelas circunstâncias perversas de uma economia globalizada (DAVIS, 2006). Por certo, a crítica a esse jogo de espelhos invertidos entre o Norte e o Sul já foi feita e não é de hoje, mas não basta dizer – ou se confortar a dizer – que agora “eles” têm que lidar com as mazelas que “nós” conhecemos de longa data Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 17 (pobreza, trabalho precário, economia informal, violência urbana …), pois aí o jogo de referência continua o mesmo, apesar do espelho trincado. O problema, digamos, é um certo habitus intelectual-acadêmico pelo qual se tende a transformar experiências e contextos urbanos em modelos e, no nosso caso, no campo dos estudos urbanos, tomar a cidade como uma entidade substantivada. Todavia, é justamente isso que, em pleno século XXI – mas, desde meados do século passado – é impossível de ser sustentado. A situação hoje é muito distinta daquela que moveu os fundadores da sociologia das cidades, definindo a Cidade (sim, com C maiúsculo) a partir de seu oposto (o rural, a tradição, a comunidade, o vilarejo) e, nesse passo, fazendo dela um instrumento heurístico para decifrar e nomear um mundo urbano que emergia em meio às transformações aceleradas daquele início de século, um operador analítico e normativo para formular, problematizar e projetar o que então se entendia, ou poderia se entender, por modernização e modernidade, urbanidade e civilidade. Outros tempos, outros contextos polêmicos, outros contextos semânticos. Hoje, no cenário de uma urbanização planetária, a cidade perdeu o seu duplo ou, para falar em termos mais precisos, perdeu o seu Outro ontológico a partir do qual ela poderia ser definida como cifra de uma modernidade que então se colocava como questão, como problema, como projeto (BRENNER, 2013; FARIAS, 2010). Como diz Brenner (2013), o problema empírico e teórico a ser hoje enfrentado é identificar os processos socioespaciais históricos que produzem o caráter urbano dos lugares e engendram as paisagens heterogêneas do capitalismo contemporâneo. Ao invés de tomar a cidade como objeto estável e definido, propõe Farias (2010), trata-se de investigar os agenciamentos urbanos a partir dos quais os espaços, seus artefatos, suas redes e trama de relações são produzidos em lugares concretos da prática urbana e, por essa via, identificar e trabalhar teoricamente a emergência das situações e circunstâncias que constroem o nosso próprio presente. Conforme Ananya Roy (2009b), será preciso construir novas geografias teóricas, que se alimentam das questões tais como estas se configuram nos modos diferenciados de produção dos espaços urbanos, nas diversas “áreas geográficas”, tomadas estas como “áreas epistêmicas” a partir das quais as questões são formuladas e problematizadas. São essas questões que, apoiadas em contextos situados de problematizações – em diálogo umas com as outras –, podem nos oferecer um jogo de referências que permita trabalhar as transversalidades presentes nas várias cidades e contextos urbanos e, por essa via, nesse jogo cruzado de referências, entregar pistas para deslindar os problemas postos nos cenários urbanos, ao Norte e ao Sul. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 18 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS Lidar com essas questões na prática da pesquisa urbana não é propriamente uma questão simples, em particular para aqueles que, como eu, praticam o que se poderia chamar de socioantropologia urbana. O risco é cair em algo como um caleidoscópio de situações e contextos urbanos. O fato é que, nos últimos anos, vêm sendo desenvolvidas pesquisas sobre temas os mais diversos: tráfico de drogas e seus modos de territorialização nos bairros populares; formas de criminalidade e seus nexos com os vários ilegalismos incrustados na vida urbana; comércio ambulante e suas territorialidades; habitação popular e os conflitos abertos nas várias e vastas regiões de ocupação irregular; novas formas de ativismo social e suas ambivalentes relações com o chamado empreendedorismo popular, hoje moeda corrente nos programas sociais implementados em várias regiões da cidade. O inventário poderia se prolongar. Algumas questões se impõem: qual o estatuto da informação que produzimos em nossas pesquisas? Qual o campo de problemas – melhor dizer: campo de problematizações – que se abre ou pode se abrir em torno ou a partir de nossas questões de pesquisa? Ainda: qual o jogo de referências a partir do qual construir os critérios de pertinência e relevância daquilo que colocamos em forma e fazemos ver no trabalho da escrita etnográfica? Por certo, não há respostas fechadas, tampouco fórmulas feitas para lidar com essas perguntas, e longe de mim propor alguma solução prévia para uma questão que, a rigor, clama e depende do trabalho reflexivo em torno de nossas próprias questões de pesquisa2. Devo dizer que essa é uma inquietação que nos acompanha desde o início. Nós, eu quero dizer: eu mesma, meus parceiros de pesquisa e o coletivo de pesquisadores que, desde o início dos anos 2000, vem se lançando em uma prospecção das tramas da cidade, e suas veredas. Na verdade, um desassossego com o modo como, muitas vezes e muito frequentemente, nossas pesquisas e nossos escritos eram (e são) recebidos por seus leitores (ou ouvintes, no caso de fóruns de debate) – tudo muito “interessante”, o que é sempre sinal de que nem sempre conseguimos explicitar as questões que gostaríamos de propor. Ou, talvez, as questões não estavam (bem) trabalhadas. Desdobrando o ponto anterior: uma outra ordem de inquietações pertinente a uma espécie de ponto cego no campo dos estudos urbanos. Ou seja, simultaneamente, temos: as pesquisas que tratam das várias dimensões da chamada “cidade neoliberal” (alguns anos atrás, o tema recorrente, onipresente, seria o da “cidade global”), trabalhadas sobretudo por geógrafos e urbanistas, e uma vasta pletora de problemas sociais e urbanos, situados em seus contextos de referência, sob as lentes de sociólogos e antropólogos. Em certo sentido, repõe-se aqui a mesma oposição binária comentada antes: de um Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 19 lado, a produção da cidade-mercado no contexto de economias mundializadas e, do outro, as consequências perversas da hegemonia dos mercados nos modos de produção e gestão da cidade e seus espaços. É como se os estudos de corte socioantropológico fossem destinados a fazer não mais do que a justa denúncia das desigualdades e violências engendradas pelas mutações urbanas recentes ou, em suas versões mais pragmáticas, propor programas de combate à exclusão social e critérios de avaliação de seus resultados. Se é possível dizer que existe um “ponto cego” no campo dos estudos urbanos, é porque nessa paisagem teórica perde-se de vista muito das dinâmicas urbanas atuais, pertinentes justamente aos modos pelos quais os espaços urbanos são produzidos; ou para colocar em outros termos, os modos pelos quais processos socioespaciais da chamada cidade-mercado se territorializam em contextos situados, que são também contextos contraditórios, dinâmicos e conflitivos (BRENNER, 2013). Ainda mais: é um “ponto cego” que nos interdita de pensar e problematizar o estatuto do conflito na produção dos espaços e suas territorialidades. No entanto, esses espaços são pontilhados por uma situação de conflito que assume as mais diversas formas, que vem ganhando configurações renovadas nos últimos anos e se multiplicando no cenário urbano atual. Tomo por referência a metrópole paulista, mas isto não significa que esses fenômenos lhes sejam exclusivos. Várias são as expressões: queima de ônibus por razões as mais diversas – um verdadeiro repertório de ações coletivas, que não é recente, mas cada vez mais recorrente nas periferias urbanas; resistências e enfrentamentos, por vezes, violentos, nas regiões de ocupação de terras urbanas e também de edifícios no centro da cidade; lutas contra remoções forçadas e as chamadas reintegrações de posse; protestos em torno de temas diversos e muito frequentemente contra a violência policial nas regiões periféricas da cidade, e também contra a intervenção policial militar nas chamadas “regiões de risco” habitadas por moradores de rua, usuários de crack e outros tantos tipos urbanos que circulam nesses lugares. Ao lado de movimentos por moradia, um verdadeiro mosaico de coletivos e associações atuantes em torno das mais diversas questões, com notável predominância da questão da violência policial. Salvo engano – e posso efetivamente estar enganada –, arriscaria dizer que o conflito deixou de ser tematizado nos últimos anos pela literatura que trata da pesquisa social. Seja porque foi colonizada – se me permitem uma expressão talvez forte demais, ou injusta – pelas teorias dos movimentos sociais e da ação coletiva, abordando seus tipos, modos e repertórios, mas deixando de lado a natureza dos conflitos que impulsionam esses movimenRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 20 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS tos, além de deixar fora de mira outras tantas manifestações que escapam às formas e formatos codificados e tipificados pela teoria social. Seja porque foi deslocada pelo tema pervasivo do Crime Organizado (e da Violência Urbana, tudo assim, em maiúscula), essas entidades fantasmáticas que se tornaram clichês explicativos para as turbulências das periferias urbanas. No entanto, a questão está hoje posta no cenário contemporâneo: rebeliões e protestos urbanos explodindo no coração das grandes cidades, desde 2008, ou antes, e que vem alimentando discussões e debates variados. Não por acaso, o “direito à cidade” é slogan e bandeira dos mais diversos movimentos e articulações políticas em inúmeras cidades do planeta, além de ser pauta de inúmeras publicações recentes e fóruns de discussão voltados ao deciframento dos protestos que vêm explodindo no coração das cidades globalizadas em diversas regiões do mundo.3 No que diz respeito a São Paulo (e outras cidades brasileiras), se os conflitos apareciam de forma difusa nos espaços urbanos ao longo dos últimos anos, processou-se algo com um efeito de condensação em torno das chamadas “jornadas de junho”, em 2013, e seus desdobramentos nas manifestações e conflitos em enfrentamentos que acompanharam a preparação e a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014. Na cartografia política dos protestos e dos pontos sensíveis dos embates e manifestações, podemos seguir os traços, ponto a ponto, de tudo o que constitui o próprio metabolismo urbano em sua face política e contraditória, com seus espaços e lugares, estruturas e funções, circuitos e distribuição de riquezas e seus modos de apropriação. Pudemos ver, aqui, ao vivo e a cores, uma tese cara a toda uma linhagem de estudos urbanos: a cidade não é apenas um contexto, uma arena em que os conflitos acontecem; é algo que está posto no próprio modo como seus espaços e estruturas são produzidos, geridos e agenciados na dinâmica da acumulação urbana, de produção da riqueza, modos de circulação e apropriação; as estruturas urbanas, suas redes, funções, espaços e artefatos são instrumentos e recursos estratégicos nos processos de acumulação urbana e expansão das fronteiras do mercado (BRENNER et alli, 2012; HARVEY, 2012). É o que ficou estampado nas chamadas intervenções urbanas para os preparativos e realização da Copa do Mundo, os programas ditos de renovação urbana que redesenham os espaços da cidade e seus lugares, redefinem a distribuição das populações afetadas, seus circuitos de deslocamento, seus modos de assentamento e seus modos de habitar, trabalhar e viver na cidade. Como diz Stephen Graham (2013), o funcionamento das cidades está inteiramente inscrito e depende de suas redes e aparatos sociotécnicos, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 21 entrelaçados com políticas de espaço e o governo da cidade. Daí o poder de gravitação da questão da mobilidade urbana posta em cena nas “jornadas de junho”, em 2013: não apenas uma questão de política pública, mas algo que afeta a dinâmica da cidade, atinge o seu nervo sociopolítico, também a economia política da cidade e os dramas sociais inscritos nas formas de segregação acionadas pelo acesso desigual e precário aos recursos da cidade. Adalberto Cardoso (2013) tem razão ao dizer que se o estopim foi o aumento das tarifas públicas, esse não foi um estopim qualquer. Entra em ressonância com as fricções e conflitos que vieram se acumulando ao longo dos anos, colocando em cena as tensões engendradas por uma cidade cada vez mais privatizada, que obsta o direito à mobilidade, quer dizer: direito à cidade, ao acesso a seus espaços, bens e recursos. Segundo o autor, não se trata apenas da precariedade dos transportes públicos, mas, também, de seus sentidos em uma cidade na qual seus espaços e estruturas são cada vez mais capturados pela lógica expansiva dos mercados, fazendo do direito à mobilidade “um resíduo do direito à acumulação capitalista do espaço urbano (CARDOSO, 2013, p. 26). Porém, o ponto sensível que fez desencadear a onda de manifestações por todo o país foi a desmedida repressão que se abateu sobre o que poderia ser apenas mais uma manifestação (em 13 de junho de 2013) na sequência de muitas outras que precederam4. Mais do que excessos das forças policiais, são os seus modos operatórios que merecem atenção, na medida em que deixavam estampado na cena urbana a lógica militarizada da gestão (ou melhor: da não gestão) dos conflitos e problemas urbanos: junto com um fortíssimo e pesado aparato de contenção e repressão, os procedimentos do cerco e ocupação de lugares estratégicos, próprios do que vem sendo chamado de “guerra urbana”, termo que já faz parte do jargão dos gestores urbanos. Tal jargão é amplamente utilizado nas formas de intervenção nos territórios ditos de risco sob o primado da “guerra ao tráfico de drogas” e a “guerra ao crime” e que, agora, mais recentemente, transborda para as figuras da “insurgência urbana” associadas aos protestos de rua e movimentos fora de lugar ou fora dos espaços institucionalizados pelo governo e ordenados pela racionalidade dos mercados. Essas cenas se repetiram, nos meses que se seguiram, na repressão às manifestações que se multiplicaram em protestos contra os descalabros dos preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil. Lembrando: miríades de associações e articulações políticas, coletivos e associações de base, movimentos por moradia e outras formas de ativismo, em protesto contra a cidade-mercado expressa nas intervenções urbanas que construíram o Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 22 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS grande negócio da Copa do Mundo, acompanhadas pelas remoções forçadas e dispositivos excludentes de uso e acesso aos espaços e vias de circulação, com a também explosiva exclusão do comércio de rua, dos ambulantes e outros tantos que habitam, trabalham ou circulam nesses lugares.5 Sendo assim, os protestos não foram quaisquer protestos. Toda a cidade, em suas dimensões contraditórias, estava cifrada em cada ato e em cada ponto sensível daquelas manifestações. Para usar uma fórmula sintética – parafraseando Carlos Vainer que, há anos, vem se dedicando a esses temas –, trata-se de conflitos que encenam a contradição entre a Polis e a City (VEINER, 2011); ou, na precisa formulação de Laurindo Minhoto, a contradição entre a cidade como valor de uso e a cidade como valor de troca, a tensão entre espaços públicos cosmopolitas e os enclaves excludentes dos lugares de comércio, consumo e negócios; entre o direito à cidade e o direito funcionalizado por estratégias de governo das populações (MINHOTO, 2014). Os conflitos e enfrentamentos que se desdobraram ao longo desses meses nos alertam para a importância de se reter a cidade como plano de referência, para bem situar os eventos e fricções, e os agenciamentos políticos postos em ação em seus vários espaços e territórios. Em cada um desses pontos, as formas de controle e contenção, em seu conjunto, lançam os contornos da cartografia política dos circuitos do mercado e da riqueza urbana. É isso propriamente que nos coloca o desafio de deslindar os nexos entre a produção e a expansão dos mercados, as formas de controle e dispositivos de poder, e a situação de conflito renovada que se espalha por todos os espaços. São esses cenários conflituosos que me permitem retomar as questões lançadas no início deste texto e retomar também o “fio da meada”. II Nossas hipóteses de trabalho se orientam em torno de duas proposições chaves: Primeira: ao invés de partir de definições pré-codificadas sobre os territórios nos quais transitamos em nossas pesquisas (“a” favela, “a” periferia, “as” ocupações), trata-se de perscrutar as lógicas de produção dos espaços urbanos e os jogos situados de escala, inscritos em cada um dos contextos, como campos de agenciamentos sociourbanos, de práticas sociais e conflitos. Definições pré-codificadas, quer dizer: definições jurídicas e normativas próprias das políticas urbanas; definições de senso comum (definições nativas, como diriam os antropólogos; também as definições construídas pelas pesquisas urbanas, formuladas em determinados contextos sociais, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 23 históricos e polêmicos, mas que tendem a ser “essencializadas” no correr dos tempos (BRENNER, 2013). Jogos situados de escala, quer dizer: escalas são campos de ação e intervenção e isso implica jogos de poder e jogos de atores (GROSSETI, 2007). Assim, por exemplo, em um programa dito de urbanização de uma grande favela, podemos encontrar: representantes dos poderes públicos que implementam esses programas, agências multilaterais de financiamento; escritórios de arquitetura de circulação internacional interessados na experimentação urbanística; bancos privados interessados em capturar novos clientes no hoje expansivo e lucrativo consumo popular; empresas privadas também em disputa de novos mercados. Simultaneamente, encontramos também: moradores locais e suas associações; igrejas evangélicas e seus seguidores; políticos locais e suas clientelas; chefes locais do tráfico de drogas e suas redes de negócios ilícitos... E ainda: agentes da ordem que tratam de controlar e policiar condutas e atividades cotidianas, sem esquecer seus “acertos” com os negócios ilícitos locais ou modos de acomodação e composição com os jogos de interesses constelados em cada local. Tudo isso se articula, compõe e se compõe em uma arena de disputas, negociações, acomodações, acordos e conflitos em torno da distribuição dos recursos, dos modos e lugares de implementação de serviços e melhorias urbanas, etc. E é por isso também que, ao olharmos de perto certos programas – esse o trabalho etnográfico –, nos damos conta de que não se trata propriamente de programas de inserção social, como se diz correntemente, muitas vezes na linguagem (e gramática) de um discurso edificante. Esses programas podem ser vistos como dispositivos de expansão das fronteiras urbanas – e também fronteiras de mercado, como veremos mais à frente. Quanto aos atores em cena, eles transitam entre essas várias escalas, sabem mobilizar os recursos materiais e de poder associados a cada uma delas – é o que se define como jumping scales, para usar um termo corrente entre os geógrafos urbanos. Mas é isso também que nos dá pistas para qualificarmos os sentidos dos conflitos que nesses – e em outros lugares – se processam justamente no cerne dessas relações, tensas e contraditórias, por vezes disparatadas em suas práticas e em seus desdobramentos no tempo e espaço. Trata-se, portanto, de conflitos inscritos nas formas de produção e gestão dos espaços, dos ordenamentos urbanos nesses lugares. Segunda: para escapar do caleidoscópio de situações “interessantes” – imagem evocada no início – sem cair em generalizações da “cidade-mercado” no contexto da mundialização, será preciso reter a cidade como plano de referência, buscando trabalhar as transversalidades e ressonâncias presentes Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 24 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS nos diversos espaços e territórios urbanos. E são elas que nos entregam os traços das linhas de força que atravessam as várias territorialidades urbanas e em torno das quais os ordenamentos locais são produzidos, negociados e agenciados em suas formas rotineiras ou conflituosas. Poderíamos dizer que são duas as linhas de força: de um lado, as lógicas e circuitos de mercado, e as tendências de uma expansiva mercantilização dos espaços e territórios, mas também das formas de vida, modos de ser e habitar a cidade, em seus contextos de referência; de outro, as formas de controle inscritas na produção de gestão desses espaços. Esta é a hipótese com a qual estamos trabalhando: se as lógicas de mercado engendram clivagens, desigualdades, segregações e exclusões, as formas de controle, nos contextos situados em que operam, terminam por se constituir em polos de tensão e fricção, que não poucas vezes se desdobram em modalidades de conflito e enfrentamentos abertos – verdadeiros campos de gravitação da experiência urbana. Mas essa é uma hipótese lançada no que se poderia dizer um outro “ponto cego” dos debates recentes sobre o urbano e que diz respeito a uma espécie de estranhamento mútuo entre a linhagem de estudos tributários das sociologias do controle (e da punição) e a de tributários da sociologia da cidade, por mais que os temas e questões debatidos por uns e outros se apresentem, crescentemente, nas respectivas pesquisas, ao menos de forma transversal (BROWN; HERBERT, 2006; GRAHAM, 2010a). De um lado, os mecanismos de controle e seus modos operatórios se apresentam, já há algum tempo, cada vez mais, sob formas territorializadas, situadas, intricadas com a gestão dos espaços e gestão das populações – é o caso dos chamados controles situacionais, para ficar em um exemplo talvez o mais evidente –, e que nos faz ver os mecanismos pelos quais o governo da segurança passa a se confundir com o governo dos espaços (BECKETT; HERBERT, 2008; BROWN; HERBERT, 2006; COLEMAN, 2004). O fato é que as dimensões espacializadas e territorializadas dos dispositivos de controle ganham um lugar cada vez mais importante nos debates atuais. No entanto, nem sempre essa discussão desdobra-se na direção de uma problematização mais fina acerca do lugar desses dispositivos espaciais nas dinâmicas socioeconômicas e políticas da cidade contemporânea (MINHOTO, 2015). De outro lado, no caso dos estudos urbanos, os pesquisadores muitas vezes tratam dos dispositivos de controle e seus aparatos como algo que aparece como evidências do trabalho de campo, como circunstâncias de conjunturas ou microconjunturas políticas, sem chegar a conferir um estatuto a esses mecanismos no desenho da cartografia política da cidade. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 25 VERA DA SILVA TELLES E, mais precisamente, o seu lugar na produção das territorialidades urbanas. A questão, quando muito, aparece de forma alusiva e genérica, sem que se examinem em profundidade os nexos internos entre formas espacializadas de controle – inscritas nos espaços e redes urbanas – e as dinâmicas expansivas do que vem sendo chamado de “cidade neoliberal”, tema onipresente nos debates atuais no campo dos estudos urbanos: a cidade-mercado, a cidade-negócio, figuras que sinalizam a expansiva mercantilização dos espaços, dos lugares e artefatos urbanos, também das formas de vida e agenciamentos do cotidiano, cada vez mais mediados pelas formas mercantis e ativados por modos de subjetivação regidos pelo ethos do chamado empreendedorismo. Este é o desafio que se apresenta para nós: deslindar os nexos que articulam gestão dos espaços, forma de controle e produção dos mercados. Nossa aposta: a cidade passa a ser um lugar estratégico para entender os nexos entre produção dos mercados, dispositivos de poder e gestão das populações – o que também significa dizer, gestão das desigualdades e segregações consteladas nos espaços da cidade (MINHOTO, 2014)6. A hipótese a ser trabalhada: os conflitos nos e pelos espaços urbanos parecem se confundir com ou se desdobrar, cada vez mais, em um conflito em torno dos ordenamentos sociourbanos e seus dispositivos de poder (GRAHAM, 2010a). Nesse registro, é toda uma discussão que se abre, pertinente às dimensões conflituosas, ambivalentes e multifacetadas inscritas na própria produção – negociada, disputada, agenciada – da ordem social e, mais precisamente, da ordem urbana. É isso o que eu gostaria de expor na sequência deste texto, seguindo as linhas de força que atravessam os espaços urbanos e se compõem sob formas variadas, nos diversos contextos situados da cidade. III Sem a pretensão de dar conta de uma questão complexa e intricada, vale destacar duas facetas pelas quais vem se processando a expansão das fronteiras do mercado, redefinindo lugares e espaços da cidade. De um lado, há alguns anos, vem se processando a redefinição dos espaços urbanos sob o impacto dos chamados programas de renovação ou revitalização urbana, em áreas ditas deterioradas ou áreas ditas “de risco”: sejam regiões do centro da cidade, sejam favelas, sejam ainda os assentamentos de ocupação irregular e moradias precárias nas periferias urbanas. Concretamente, trata-se da expansão ou criação de novas fronteiras urbanas para os circuitos do mercado. Nos locais em que tais programas são impleRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 26 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS mentados, as consequências são conhecidas: deslocamento de populações, remoções forçadas em áreas de ocupação, moradias precárias e favelas; e também: reordenamentos locais redefinindo os usos desses espaços, excluindo todos os que parecem ser portadores de condutas indesejáveis ou à margem dos padrões do que se entende por uma urbanidade regida pela lógica dos negócios e do consumo. A literatura sobre essa temática é imensa e são inúmeras as pesquisas que já flagraram e discutiram esses processos nas várias cidades, ao Sul e ao Norte do planeta. Nos termos da discussão que aqui nos interessa, bastaria lembrar: nos anos e meses que antecederam a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a cartografia das remoções e expulsões corresponde ao circuito da especulação imobiliária e dos pesados jogos de interesse envolvidos na construção não apenas dos estádios, mas também dos equipamentos de consumo e serviços que acompanharam esses projetos. Populações foram deslocadas, assim como foi intensamente afetada a distribuição do comércio popular e dos trabalhadores ambulantes nos espaços da cidade. Estamos aqui no coração do que David Harvey chama de “acumulação por despossessão” (HARVEY, 2004; 2012). De outro lado, fenômeno mais recente, e ainda a ser bem entendido: nos ditos territórios da pobreza, vem se dando a promoção do chamado empresariamento popular, mobilizando toda uma pletora de instrumentos, mecanismos e mediações e, sobretudo, programas de microcrédito em boa parte promovidos pelos principais bancos privados do país. Em linhas gerais, são programas regidos pela agenda do chamado combate à pobreza pelas vias do mercado. Na prática, trata-se de transformar os “pobres” em operadores do mercado, empreendedores capazes de transformar as circunstâncias locais em “oportunidades de mercado”. Nos lugares em que são implantados, tais programas parecem construir os pontos de conexão desses espaços com os circuitos globalizados da riqueza urbana. No Rio de Janeiro, como bem enfatizam Tommasi e Velazco (2013), em seu estudo sobre a Cidade de Deus, ainda sob o impacto da ocupação recente de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP): “a chegada do Bradesco foi o acontecimento mais significativo depois da ‘pacificação’” (p. 32), seguida da entrada de operadoras de TV a cabo e de telefonia fixa e móvel. Na sequência, cursos de empreendedorismo, patrocinados pelo Sebrae ou agenciados por fundações privadas com recursos transnacionais (a multinacional americana Chevron e a Fundação Kellogg); multiplicação de projetos e programas de forte componente pedagógico voltados aos jovens “promissores”, ancorada em suposto compromisso com a “comunidade” e concomitante empenho em “vender a marca ‘favela pacificada’ e alavancar Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 27 o empreendedorismo de base comunitária” (p. 39). Sob o prisma de suas formas de territorialização, os circuitos do mercado se enredam nos programas sociais, seus operadores e agências financiadoras e tudo isso fica misturado e embaralhado na trama das relações sociais. Basta fazer o mapa de bens, valores, produtos e pessoas. É o que as autoras fazem nessa etnografia de Cidade de Deus: mais do que uma superposição de circuitos (e suas escalas) é um embaralhamento que, nas situações etnografadas, abre um cenário marcado, segundo as autoras, por uma verdadeira “dança de papeis”. Nas palavras de Tommasi e Velazco: (...) policiais que realizam atividades de educadores ou animadores sociais, oferecendo atividades esportivas, recreativas e de reforço escolar às crianças; gerentes de banco que funcionam como conselheiros de negócios e empreendimentos; comerciantes que viram caixa de banco; líderes comunitários que gerenciam programas de governo; gestores públicos que transacionam empreendimentos privados (2013, p. 19). Em tempo: a agência do Bradesco foi aberta em uma casa que é uma sede da CUFA (Central Única das Favelas), onde também funciona a Associação dos Moradores. Oferecendo apenas serviços de abertura de contas e financiamento, os caixas foram terceirizados e são operados no interior das pequenas lojas locais, escolhidas justamente por serem comandadas por empreendedores “bem sucedidos” e assim avaliados pelo arguto e muito ativo gerente do banco. Em São Paulo – na favela Paraisópolis, a segunda maior da cidade –, Bruna Ramachiotti (2012) encontrou situações equivalentes. Aqui, os circuitos do mercado se enredam e reconfiguram uma densa trama associativa que vem de longa data, construída por associações de moradores, coletivos diversos, ONGs, programas sociais e filantrópicos de filiação variada. Nos últimos anos, a paisagem local foi fortemente impactada pela chegada das Casas Bahia, a primeira das redes de grandes lojas a chegar a Paraisópolis e também a primeira experiência dessa empresa em uma favela paulistana. E os bancos também chegaram, o Bradesco em primeiro lugar e, em seguida, o Banco do Brasil que inaugura sua agência na sede da União de Moradores, selando uma parceria voltada à formalização de “empreendedores” a ela associados. Em meio aos programas de regularização do comércio local e também dos assentamentos ilegais-informais, multiplicam-se os cursos de empreendedorismo e “educação financeira”; fundações privadas, empresas e operadoras de mercado se instalaram na região, seja promovendo seus serviRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 28 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS ços e produtos (exemplos: agências de turismo, a Porto Seguro Seguradora, redes de comércio), seja na forma de parcerias em torno de projetos ditos de desenvolvimento local, seja ainda na promoção de atividades sociais e eventos esportivos. Quanto aos projetos de urbanização da favela, Paraisópolis ganha o mundo e entra no circuito transnacional dos arquitetos e urbanistas com seus programas e projetos premiados em prestigiosos concursos mundiais. Na prática, em torno dos programas de urbanização da favela e dos chamados projetos de desenvolvimento local, há uma meada intrincada – e também embaralhada – de ação de organismos estatais, circuitos de mercado, programas sociais de base local, parcerias com fundações empresariais na promoção de atividades e eventos culturais e esportivos, circuitos transnacionais por onde circulam projetos e empreendimentos, também fontes de financiamento, tudo isso se conjugando para fazer de Paraisópolis um “caso de sucesso”, celebrado pelos sinais de sua inclusão na “cidade legal”, tanto quanto pelas competências empreendedoras de seus moradores. Essa conversão dos “pobres” em empreendedores não é fenômeno específico de São Paulo, Rio de Janeiro e de outra tantas cidades brasileiras. É algo que atravessa – e é transversal, sob modulações variadas – diversas cidades do chamado Sul Global. E esse é também um registro pelo qual se pode apreender o modo como esses lugares vêm sendo mundializados pelas vias de programas e organizações sociais conectadas em redes transnacionais, por onde circulam as fontes de financiamento, as ideias e projetos, os modelos de best practices, consultores e suas pautas de avaliação, categorias, indicadores, especialidades técnico-sociais, etc. Aparatos de uma governamentalidade transnacional, como sugerem Ferguson e Gupta (2002), que se territorializam pelas vias de agenciamentos locais. E em cada lugar, o mundo entrelaçado das parcerias, das organizações sociais, mobilizando, por sua vez, um elenco de atores os mais diversos e no qual também se fazem presentes as agências públicas e organismos estatais (FERGUSON; GUPTA, 2002). É nesse campo ampliado de referências que se situa essa “conversão” da pobreza em mercado. Como mostra Ananya Roy (2011, 2013), esses programas podem e devem ser vistos como mecanismos pelos quais os territórios da pobreza – sejam áreas de moradia precária, sejam locais de concentração do comércio informal – passam a se transfigurar em fronteiras de mercado e frente de expansão do capital financeiro, contraface das transformações recentes do capitalismo contemporâneo, acionando dispositivos voltados ao que as expertises chamam de “base da pirâmide social”: os milhões de homens e mulheres na mira dos serviços financeiros que articulam bancos comerciais globalizados (que controlam o acesso ao capital) e as associações Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 29 ditas comunitárias (que têm acesso aos “pobres”). É questão que a autora discute ao cunhar a expressão poverty capital (2011), mostrando os vários dispositivos pelos quais o chamado “capital social” é convertido em capital econômico e ativo financeiro, na própria medida em que a hoje celebrada capacidade de iniciativa, improvisação e invenção popular é mobilizada para a criação de situações de mercado. Apresentadas como programas de erradicação da pobreza, a rigor são formas de intervenção que abrem as vias para expansão dos mercados: das várias modulações do chamado microcrédito ancorado em associações populares locais, passando pela promoção do que vem sendo chamado de “capitalismo criativo”, termo inefável que diz tudo e nada ao mesmo tempo, evocando a dita capacidade de invenção e criatividade popular (entenda-se como quiser) de aproveitar ou inventar “oportunidades de mercado”, chegando aos serviços financeiros que se apresentam sob a formulação altissonante (e tons edificantes) de democratização do crédito voltado à “base da pirâmide social”. Na prática, trata-se de um esforço no sentido de colocar todas as dimensões da vida social (e da existência) sob a égide do mercado, convertendo a troca mercantil em código ético e princípio de conduta. Entre os eventuais e poucos “casos de sucesso”, resta saber, pergunta-se Roy, se não estamos presenciando mais um campo de exploração e predação (ROY, 2011, p. 31). E também: outros tantos domínios de exercício de relações de poder e sujeição, na própria medida em que essas “oportunidades de mercado” não se efetivam sem os igualmente renovados dispositivos de disciplina e controle, também de punição, tal como a autora pode verificar em alguns dos lugares nos quais realizou sua pesquisa. (ROY, 2011; 2013) Muito longe da retórica da inclusão social ou sob a retórica da inclusão social, desenham-se, na verdade, outras dimensões do que David Harvey (1996) chamou de empresariamento urbano, agora não apenas restrito aos “circuitos superiores” da Cidade Global, e sim alcançando também os circuitos do “mundo popular”, do trabalho e da moradia, bem como as várias dimensões das vidas e dos modos de vida a serem regidos pelo ethos mercantil (MCFARLANE, 2012). Em outros termos: outras dimensões pelas quais a cidade se transforma em mercado e seus territórios são disputados como fronteiras de expansão do capital. Essas experiências, em curso em várias regiões da cidade, encontram seu duplo em formas bastante agressivas de intervenção nas regiões de concentração do chamado comércio de rua: os ambulantes, também eles, estão na mira de programas e de outras formas de intervenção voltados a transformá-los em micro empreendedores. Nesse caso, prevalece não tanto Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 30 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS a retórica da inclusão social pelas vias do mercado. Na prática, tais iniciativas são regidas pelos imperativos do combate à pirataria e é nessa chave que, nesses espaços, o chamado combate à informalidade urbana desliza e se confunde com a “guerra ao crime” associado ao comércio de rua (HIRATA, 2012). Sobretudo no Centro da cidade, os ambulantes praticamente desapareceram das ruas. Alguns foram bem sucedidos nessa conversão, saíram das ruas e se instalaram nas inúmeras galerias destinadas ao consumo popular – em sua maioria, galerias sob controle de comerciantes chineses (FREIRE, 2014). Os demais, sob a suspeita de práticas agora vistas como criminosas, sujeitos à repressão pelas forças da ordem, se deslocaram para outros lugares e outras cidades no entorno da capital. Concretamente, está em curso uma redefinição dos mercados informais, de seus modos de funcionamento e de seus espaços. No campo de conflito e disputas que se armam nesses territórios, estão em jogo, a rigor, as fronteiras do formal-informal, do legal-ilegal. E no centro desse conflito está o Estado com suas prerrogativas de poder; poder soberano de definir ou suspender as regras que permitem ou interditam uns e outros de exercer suas atividades, colocando uns (e não outros) no universo da ordem e da lei, jogando outros tantos no limbo social e também jurídico, no terreno incerto entre a ilegalidade e o crime, sob suspeita e sujeitos ao controle e à repressão. Há toda uma cartografia política do comércio de rua que se redefine, cujos contornos são cambiantes tanto quanto as regras – formais e informais, legais e extra legais – que regem o acesso e o funcionamento desses mercados, ao mesmo tempo em que há uma legião de ambulantes que, desprovidos de recursos e condições para compor essa intrincada rede de relações, são expulsos, sujeitos às formas mais agressivas de controle e repressão, espalhando-se por outros cantos da cidade e, com isso, desenhando outras territorialidades urbanas a serem ainda conhecidas (e prospectadas).7 Mas isso também significa reconhecer que a “acumulação por despossessão” não se processa apenas pelas vias de expulsão e remoção, na medida em que a tão celebrada “inclusão pelo mercado” se processa por meio de dispositivos de governamentalidade de espaço e populações – expressos na conversão de moradores e trabalhadores em empreendedores –, introduzindo novas clivagens que redefinem o “dentro” e o “fora”, os que portam credenciais da “inclusão” e todos os demais que escapam, não se adaptam ou resistem a esses agenciamentos locais, colocados sob suspeita, na mira de formas de controle e punição ou simplesmente sujeitos à exclusão – e “despossessão” – de seus lugares de vida e de trabalho (ROY, 2009a; 2013). Entre deslocamentos e remoções forçadas de populações e os dispositivos de “inclusão” pelas vias do mercado, desenha-se um cenário contrastado Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 31 da cidade, que será preciso prospectar. Daí a exigência de colocarmos a cidade como plano de referência, para situarmos nossas questões, em particular no que diz respeito a esses lugares governados pelas lógicas de mercado. Essa constelação de práticas e dispositivos pelos quais os territórios da pobreza se transformam em negócio e fronteiras de expansão dos mercados, não se instala em quaisquer lugares. Se bem que disseminados um pouco por todos os lados, pode ganhar especial densidade em algumas regiões da cidade. Sejam os bairros alvo de programas de empresariamento popular; sejam as regiões de concentração do comércio popular, são territórios urbanos situados em pontos estratégicos de circulação da riqueza urbana. A favela Paraisópolis, por exemplo, com seus 90 mil habitantes, está situada no coração do bairro mais rico da cidade (Morumbi) e na estreita proximidade da região que concentra todos os equipamentos e serviços da “cidade global” (sede de bancos, empresas de serviços de ponta, escritórios de empresas multinacionais, equipamentos de consumo de luxo...). No Centro da cidade, os lugares de concentração do comércio ambulante se situam, por sua vez, em áreas alvo de amplos e ambiciosos projetos de renovação urbana. Este, o primeiro ponto. Segundo ponto: esses lugares sempre foram vistos como espaço-problema, parecendo concentrar todas as patologias associadas à pobreza: tráfico de drogas, crimes, violência, episódios sucessivos de confrontos com a Polícia. Não é ocioso dizer que Paraisópolis foi palco da chamada Operação Saturação, versão paulista menos espetacular (ou menos espetacularizada) das UPPs no Rio de Janeiro, também elas situadas no cinturão da riqueza urbana da cidade e também elas transformadas, após a “pacificação”, em verdadeiros laboratórios da inefável “economia criativa”, alvo de uma ruidosa (e mediática) celebração das virtudes empreendedoras de seus moradores, mas que se entrelaçam sob formas variadas com situações e contextos da vida local nas quais a “guerra ao crime” parece se desdobrar em práticas e dispositivos de policiamento de condutas e regulação de movimentos, deslocamentos, pontos de encontros segundo critérios de uma ordem policiada (cf. SILVA, 2010) – ou da “paz armada”, para usar a expressão de Vera Malagutti Batista (2012). No centro da cidade, nas regiões de concentração do comércio informal, em resposta a resistências e protestos dos ambulantes contra a “despossessão” de seus lugares de trabalho, sucederam-se episódios de cerco e ocupação. Estes podem ser traduzidos como verdadeiras operações bélicas com pesadíssimo aparato policial militar, desdobrando-se, depois, na gestão militarizada dos lugares e atividades: em nome da “guerra à pirataria” Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 32 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS e “guerra ao crime” agora associado ao comércio de rua, a fiscalização e o controle das ruas passaram a ser capitaneados pela Polícia Militar. Isto em função de um dispositivo administrativo, político, de legalidade duvidosa – a chamada Operação Delegada – que suspende as circunscrições legais que definem as atribuições da Polícia Militar, de modo a ampliar o seu espaço de atuação nesse terreno em que as funções de fiscalização e controle eram de responsabilidade de outras instâncias administrativas (fiscais da prefeitura) e de outros órgãos de polícia (Polícia Civil, Guarda Civil Metropolitana) (HIRATA, 2012). Por esse prisma, é possível levantar a hipótese da produção e gestão dos mercados também como dispositivos de gestão da ordem; ou seja, dispositivos pelos quais se tenta transformar as circunstâncias locais (de vida e de trabalho) em recursos de governamentalização de espaços e suas populações (ROY, 2009). Na formulação de Sally Merry (2001), trata-se de uma lógica de produção da ordem não mais centrada na disciplinarização dos indivíduos (e produção de “corpos dóceis”), mas na gestão das populações por meio da produção de “espaços governáveis”, e também protegidos contra todos os que podem ser vistos como ameaça ou portadores de comportamentos indesejáveis. Em outros termos, o “governo das condutas” ganha formas espacializadas, ao mesmo tempo em que a gestão desses espaços mobiliza dispositivos de controle voltados aos “indesejáveis”, figuras inefáveis de todos os que são vistos como portadores de risco e ameaça a um certo regime de ordem e segurança. Nesse plano, é possível apreender os sentidos dessas formas de produção e gestão dos espaços urbanos, nos seus pontos e contrapontos: gestão dos fluxos urbanos, que são também e, sobretudo, fluxos de mercado; gestão dos espaços e das circulações, pondo em cena “topologias de poder”, para usar os termos de Collier (2011), que, sob composições variáveis conforme lugares e circunstâncias, combinam dispositivos de governamentalidade (instrumentos políticos e jurídicos – também financeiros – para a conversão de moradores e ambulantes em microempreendedores) e o uso da coerção (e violência) para impor as novas regras e o policiamento de condutas, entre vigilâncias e punição. Esses espaços e suas localizações nos circuitos de produção e circulação da riqueza urbana são também estratégicos para se entender a lógica que prima na composição dessas topologias de poder. Para ir direito ao ponto: nesses lugares, explicitam-se os mecanismos pelos quais a gestão urbana e a gestão da ordem se fazem sob a égide de princípios securitários, gestão dos riscos e das emergências, multiplicando as formas de controle e Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 33 os alvos sob suspeita. A gestão dos riscos é o elo que articula, internamente, a gestão militarizada dos espaços e as tendências, igualmente expansivas, de práticas policialescas de condutas. Sabemos que, no Brasil, uma história e uma tradição plasmaram uma concepção (e prática) militarizada de segurança pública. Uma história e uma tradição que se atualizam e se redefinem em fina sintonia com o que vem acontecendo em outras cidades, ao Sul e ao Norte do planeta, sob a égide da lógica militarizada da gestão urbana. Como diz Stephen Graham (2010), trata-se de uma crescente colonização do espaço urbano e da vida cotidiana das cidades pela racionalidade militar – práticas, procedimentos, agenciamentos regidos pela noção de guerra – guerra urbana – de tal forma que, como bem nota Minhoto (2012), questões e eventos da ordem cotidiana de nossas cidades são convertidos em assunto de guerra. Este o ponto de inflexão e deslocamento importante de ser observado: cada vez mais o governo das cidades e o governo da segurança se entrelaçam e se confundem, sob o primado de uma gramática bélica, que projeta a cidade como campo de guerra – é nos seus espaços e artefatos, nas suas redes e em seus circuitos de deslocamento que se supõem encontrar as evidências de ameaça e risco à ordem e à segurança (dos mercados, dos negócios, de seus circuitos), fazendo esfumaçar, nesse passo, as diferenças entre crime, protestos de rua e comportamentos “indesejáveis”; tudo posto sob as figurações da insurgência e da ameaça real ou potencial à segurança urbana, quer dizer: segurança dos mercados e dos cidadãos agora transfigurados como operadores de mercado (consumidores e empreendedores).8 A gestão militarizada dos espaços e territórios urbanos é acompanhada por uma crescente e expansiva “vigilância policialesca” de condutas e práticas “indesejáveis”, condenáveis não por indicarem alguma infração legal, mas pelo potencial de risco e ameaça à ordem urbana e ao bem-estar de suas populações, de que parecem ser portadoras. Como nota Lianos (2001), essas novas formas de controle, sob a égide da gestão dos riscos, termina por acarretar um notável deslocamento da lei e das instituições judiciais como mecanismos de processamento de conflitos e gestão da ordem social. O que é visto como “desvio” é cada vez mais desconectado de infração (o crime supõe o sistema de direito) e associado a ameaça. Daí a busca de índices de “desvios” em relação a um padrão de regularidade próprio de um lugar determinado. Nisso, esfumaça-se a distinção entre o comportamento legal e o ilegal que, segundo Lianos, abria margens para comportamentos “não-conformes”, porém, legais: essas margens perdem todo o sentido, na medida em que, sob figurações do risco, esfumaça-se a diferença entre o Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 34 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS “indesejável” e o “ilegal”. Na prática, isso significa uma ampliação extensiva das situações e tipos urbanos na mira de operações de controle; dos protestos de rua às pequenas violações legais, passando por: comércio informal, populações de rua, usuários de drogas, jovens barulhentos e inconvenientes, todos colocados sob o signo do risco e da ameaça à ordem urbana. IV Aqui, voltamos ao nosso ponto de partida: os processos e as práticas pelos quais os espaços são produzidos, pois é disso que se trata nos modos operatórios dessas formas de controle, entre a lógica militarizada de gestão urbana e a prática policialesca das condutas. Essas formas de controle operam em contextos situados e, nesse sentido, compõem e se compõem com os agenciamentos urbanos pelos quais os espaços são produzidos como lugares de práticas, de conflitos, contracondutas, formas surdas ou abertas de resistência, ou acomodações. As inúmeras etnografias hoje disponíveis sobre as favelas “pacificadas” no Rio de Janeiro oferecem um arsenal fabuloso de informações (e discussões), a propósito dos modos como os ordenamentos locais se fazem e refazem sob o impacto cruzado da ocupação militar e o policiamento de condutas, circunscrevendo todo um terreno ambivalente, também conflituoso, feito de acomodações, negociações e resistências, ao mesmo tempo em que os circuitos dos ilegalismos urbanos – e não só o tráfico de drogas – se deslocam e se refazem sob novos agenciamentos locais.9 Por esse prisma, as dinâmicas de produção e gestão dos espaços urbanos se abrem a uma série de questões a serem pontuadas. Primeiro: nos contextos situados em que as forças da lei e da ordem operam, nada funciona exatamente como posto na racionalidade dos controles, descrita e tematizada pela literatura: há inversões de sentido, há “derivas”, há “escamoteamentos”, há linhas de fuga, há formas de resistência ou de contraconduta, para não falar de outras formas de enfrentamento e protestos organizados. Ou seja, os dispositivos de controle operam em um campo atravessado pela indeterminação, nas formas não previstas de composição com outros modos de regulação das relações e conflitos locais, acertos, negociações, um trânsito constante entre mecanismos formais e informais, entre dispositivos legais e extralegais, nos modos de regulação e gestão dos ordenamentos locais, dos microconflitos, disputas, atritos que pontilham esses lugares. Nesse registro, toda uma discussão se abre não propriamente para denunciar os excessos e derivas dos aparatos do Estado, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES 35 mas algo mais fundamental e que diz respeito às dimensões conflituosas, ambivalentes, multifacetadas inscritas na própria produção – negociada, disputada, agenciada – da ordem social e, no nosso caso, da ordem urbana e ordenamentos espaciais. Segundo: sob a lógica do risco, os dispositivos de controle e seus alvos proliferam, na medida em que o que é posto como risco e ameaça se expande e se multiplica, conforme o arbítrio das forças da ordem, com modulações associadas a circunstâncias e microconjunturas políticas. Como diz Hélène L’Heuillet (2004), em seus modos de agir (e decidir) a Polícia compõe com as circunstâncias, acasos e tudo o mais que é visto como desordem a ser controlada. Ela age por “delegação de soberania” e é essa a dimensão de arbitrariedade que lhe permite acionar a violência; também a violência extralegal sob a cobertura da autoridade que essa soberania lhe confere (L’HEUILLET, 2004). Na conjunção entre a lógica militarizada de gestão dos espaços e a vigilância policialesca das condutas, os pontos de atrito e conflito se multiplicam, na medida em que esses dispositivos de poder tendem a se confundir com a gestão das vidas e das formas de vida, com a vida cotidiana e suas circunstâncias. Terceiro: nos contextos situados em que operam, os modos de intervenção das forças da ordem terminam por embaralhar os sinais da lei e do extralegal, da ordem e de seu avesso, do “certo” e do “errado”, mesmo quando se trata de assuntos abertamente concernentes a práticas e condutas “fora da ordem” (drogas, ocupações, etc.). E isso acontece seja no caso da violência extralegal (achaques, extorsões, execuções, prisões arbitrárias) que compõe a história das periferias urbanas (mas não só); seja no caso do chamado “policiamento desproporcional” (técnicas de “gestão das multidões” próprias da lógica militarizada da gestão urbana) que acompanhou as manifestações ao longo de 2013 e 2014, mas que é também recurso de poder (dissuasão, como se diz) em outras circunstâncias; sejam ainda normativas administrativas ou judiciais de legalidade duvidosa, autorizando a intervenção da PM no combate ao comércio ambulante nas ruas da cidade; o fechamento de bares e pontos de encontro de jovens nas favelas e periferias urbanas; o uso da força nas remoções nas regiões de ocupação; a repressão a condutas insubordinadas em espaços e lugares de circulação da cidade. Aqui, nesse registro, vemos as vias pelas quais uma história persistente de arbítrio e violência policial se atualiza e se redefine na própria medida em que espaços e dispositivos de exceção se multiplicam, já que ativados sob a lógica da gestão dos riscos e suas urgências. Não por acaso, vemos hoje o surgimento de modalidades de ativismo jurídico (advogados ativistas e, sobretudo, defensores públicos), cada vez Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 36 CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS mais presente nessas arenas conflituosas. Trata-se de formas de ativismo que operam justamente nesses terrenos incertos entre o direito e a exceção, entre a lei e o extralegal. As suas formas de atuação em vários destes pontos de incidência dos dispositivos de “lei e ordem” podem nos dar algo como um roteiro de um multifacetado campo de disputa que se estrutura na produção na ordem urbana, entregando as pistas para deslindar as dimensões conflituosas da própria produção da ordem urbana, nos nexos entre dispositivos legais-institucionais, produção da ordem urbana e conflito. Finalmente, retomando as primeiras páginas deste texto, essa é questão que remete ao estatuto da informação etnográfica que produzimos em nossas pesquisas. Aqui, uma hipótese teórico-metodológica a ser trabalhada, e que diz respeito ao modo de tratar a presença (e o lugar) do Estado e dos dispositivos legais nos contextos situados em que operam, e que remete ao que alguns autores vêm propondo nos termos de uma antropologia do Estado visto pelo ângulo de suas práticas em contextos situados ou, como propõem Das e Poole (2004), a partir de suas “margens”. Se essa é uma perspectiva fecunda de análise, será preciso levar a sério o que as autoras (e outros, em outras chaves teóricas) propõem, quando dizem que é nessas “margens” que o Estado está redefinindo seus modos de governar e legislar: isso requalifica as “cenas etnográficas” trabalhadas em nossas pesquisas, postos de observação privilegiadíssimos para entender o modo como ordenamentos sociais são fabricados no coração dos campos de tensão e disputa que se armam justamente nos seus pontos de fricção com a lei e o poder. Menos do que uma conclusão, uma aposta: é nesse registro, dos atritos, fricções e conflitos com a lei e o poder que talvez possamos identificar as transversalidades e ressonâncias presentes nas diversas territorialidades urbanas. Um campo de gravitação da experiência urbana, poderíamos dizer. Nesses conflitos e pontos de atrito que se multiplicam pela cidade, não se trata apenas de resistências e protesto contra os excessos das forças da ordem. Trata-se, arriscaríamos dizer (é uma hipótese), de uma disputa sobre os próprios modos como os ordenamentos urbanos são produzidos e administrados, afetando os usos dos espaços e seus circuitos, modos de ser, viver e habitar a cidade; de circular e se apropriar de seus recursos. Talvez, nessa chave se possam identificar as mútuas ressonâncias entre as manifestações dos anos recentes, comentadas no início deste texto e a situação de conflito, multifacetada que pontilha os espaços da cidade. Entre uns e outros, é a vida urbana – e a cidade – que se perfila pelas linhas entrecruzadas de uma cartografia política desenhada pelas linhas de força que perpassam esses vários pontos de conflito, atritos e fricções. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 VERA DA SILVA TELLES NOTAS 37 1 Conjunto de pesquisas que vem sendo desenvolvidas no âmbito do grupo de pesquisa Cidade e Trabalho, associado ao LAPS, Laboratório de Pesquisa Social - PPGS, USP. 2 Em outro contexto de discussão, trabalhei essas questões em Telles, 2013 3 Entre muitos outros, cf. Brenner et alii, 2012. Em artigo recente, David Harvey (2014) traça paralelos entre as manifestações ocorridas em diversas cidades do mundo, entre elas São Paulo, para discutir “a crise da urbanização planetária”,. 4 Para uma discussão atenta à dinâmica dessas manifestações, seguindo a cronologia de suas fases, e desdobramentos, ver Singer, 2013. Eerdem Yörük (2013), por sua vez, ao traçar paralelos entre as manifestações no Brasil e Turquia, no mesmo ano de 2013, nos entrega pistas para discutir os nexos entre a dinâmica dessas manifestações e os modos de (não) gestão politica dos conflitos na cena urbana contemporânea. 5 A literatura sobre o lugar dos grandes eventos na economia política das cidades é imensa e, no nosso caso, são inúmeros os pesquisadores que trataram de acompanhar e discutir esses acontecimentos. Vários artigos e coletâneas já estão em circulação, discutindo os mais diversos aspectos desses eventos e dos conflitos que os acompanharam - bibliografia já é considerável. Tratar disso exigiria um outro artigo. 6 Esta questão está no centro de nosso Projeto Temático (Fapesp), “Gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista”, 2014-2018. O projeto está disponível no site www.veratelles.net 7 Trabalhei essas questões em artigo recente. Ver Telles, 2015 8 Impossível discutir aqui as matrizes desse urbanismo militarizado e o modo como seus dispositivos e tecnologias circulam no mundo contemporâneo. Além do livro já citado de Stephen Graham (2010), referência obrigatória nessa discussão, ver Bonditti, 2013; Nasser, 2014, 2015. 9 Vale a consulta do dossiê sobre as UPPs, publicado em dois números pela revista Dilemas. Cf. Silva; Leite, 2014, 2015 Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 38 BIBLIOGRAFIA CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS BATISTA, Vera Malagutti. O Alemão é mais complexo. In: BATISTA, Vera Malagutti (org.). Paz Armada. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de Criminologia/Editora Revan, Versão digital E-book, 2012. BECKETT, Katherine; HERBERT, Steve. Dealing with desorder: social control post industrial city. Theoretical Criminology, v. 12, n. 5, p. 5–30, 2008. BONDITTI, Philippe. (Anti) terrorisme. 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Resumo Keywords: production of urban spaces - commodification of spaces and urban territories - militarized forms of control and management of urban spaces - urban conflicts. Abstract Tomando como referência empírica a cidade de São Paulo, trata-se de deslindar as lógicas de produção de territorialidade urbanas atravessadas por conflitos e campos de tensão espalhados por todos os lados, mas que se configuram em torno de pontos de fricção postos pelas tendências de uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas e formas de vida, no seu entrecruzamento com formas de controle e a lógica militarizada de gestão dos espaços urbanos. Esta é a hipótese explorada, buscando-se deslindar os nexos entre a produção e expansão do mercado, as formas de controle e dispositivos de poder, e uma conflitualidade renovada, que se expressa sob as mais variadas formas. Procura-se decifrar como essas duas linhas de força – as lógicas de mercado e as formas de controle – se territorializam em contextos situados, circunscrevendo campos de tensão e de conflito, cujas formas e sentidos são colocados em discussão. Taking as an empirical reference the city of São Paulo, this article tries to unravel the various logics through which the urban territoriality is produced, traversed by conflicts and strain fields that are everywhere, but are also shaped around friction points determined by processes of growing commodification of spaces, places, lives and ways of life, in its intersection with militarized forms of control and the logical management of urban spaces. This is the assumption that we intend to explore in order to unravel the nexus between production and expansion of markets, forms of control and power devices, and a renewed conflict, which is expressed in the most varied forms. We seek to understand how these two ‘lines of force’, the logic of the market and forms of control, territorialize in located/situated/placed contexts, circumscribing areas of tension and conflict, whose forms/shapes and meanings are precisely what we want to discuss. Recebido para publicação em abril/2015. Aceito em junho/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41 Entre cidades materiais e digitais: esboços de uma etnografia dos fluxos da arte urbana em Lisboa Glória Diógenes Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do Laboratório das Juventudes (Lajus) da UFC e membro-fundadora da Rede Luso-Brasileira de Pesquisadores em Artes e Intervenções Urbanas (R.A.I.U. Brasil/Portugal). Estamos nós a fazer nossas próprias caras. A dor na imagem em si. (Tinta Crua, o Eduardo) Fig. 1: Sem identificação (imagem cortesia do artista da obra, Tinta Crua, 2013) Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 44 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS TRAJETÓRIAS DO DESCONTÍNUO: NOTAS SOBRE MODOS DE FAZER E PENSAR O CAMPO Perambular por Lisboa prestando atenção a tudo. Deixar a cidade apossar-se do corpo, como se um e outro conformassem dilatações de paisagens. A etnografia urbana, afora outras abordagens de pesquisa, não tem hora para começar e quiçá para findar. O primeiro ato é o de tentar livrar-se, pelo menos temporariamente, das indumentárias que adornam o corpo acerca das percepções de lugares costumeiros. Como afirma Agier, “o antropólogo tem necessidade de se emancipar de qualquer definição normativa e ‘a priori’ da cidade para poder procurar a sua possibilidade por toda parte, trabalhando para descrever o processo” (2011, p. 37). O caminho etnográfico é resultante da quantidade de encontros significativos efetuados em campo. Tendo em vista a realização de uma pesquisa sobre arte urbana, que tenta atravessar as dimensões material e digital das cidades, criei um blog (diário de campo) (DIÓGENES, 2013g) com a finalidade não apenas de compartilhar anotações em tempo real, mas também de facilitar o contato, por meio das redes digitais, com atores da pesquisa. Em um dos primeiros diários, fiz um registro acerca da natureza dessa experiência: Efetua-se uma etnografia atravessada por fluxos, como se ela mesma fosse uma rede de olhares difusos sobre um mesmo ponto. Ao invés de seguir uma via da lógica ininterrupta do tempo, da sequência linear de lugares e etapas a serem cumpridas, o pesquisador desloca-se por meio das próprias alterações que a investigação promove (DIÓGENES, 2013f). Os encontros aleatórios com as imagens fincadas nas ruas foram traduzindo recorrências de um campo que se inicia com a observação e a contemplação silenciosas. Trata-se de outras formas de interação, que, como diz Velho, “passam pelo tradicional contato face to face, às mais variadas e algumas bem recentes, como a virtual, possibilitada pela informática, computadores, e-mails, etc.” (2009, p. 14). Um campo que muda de lugar. Esse tipo de interação desprende-se de qualquer pretensão de linearidade. A meu ver, o percurso acaba por explicitar sinuosidades, descontinuidades, interrupções que cadenciam os processos interativos. Como bem afirma Machado Pais (2007, p. 6), “a reflexividade da modernidade não actua em condições de certeza progressiva, mas de dúvida metódica”, um tipo de sociedade que o pesquisador português denomina de “dilemática”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 45 É sob esse prisma do olhar que tanto a arte urbana como a própria fruição do ato de caminhar na cidade revestem-se de uma interatividade multissituada, tal qual a dimensão da arte referida por Rancière (Colóquio internacional, 2012) em uma conferência proferida no Brasil. Esse tipo de interatividade ativa e descontínua atua sob o compasso de diferentes dilemas. Por não dispor de um lugar fixo, de princípio, a arte urbana opera tanto no transeunte como no antropólogo, um efeito da não passividade e da improvisação.1 Prontamente, as imagens mobilizam olhares, pensamentos, desejos e projeções.2 Fui, assim, percebendo que a arte urbana, em tese, dispensa mapas, independe de curadores, galeristas e costuma não prescindir de folders de visitação. O olhar do caminhante é o vetor de categorização dos traços que se esquivam nos becos, nos vãos das placas, em molduras de portas e janelas e do que se apregoa nos espaços de intensa visibilidade pública. Viandando por Lisboa por oito meses, registrei graffiti, painéis, pinturas e mais que isso. Estive atenta àquilo que tanto os artistas com os quais tive contato como instituições governamentais, periódicos, perfis do facebook, atores que transitam nesse campo constroem acerca do que em geral consideram ou não arte urbana. Interessa-me, por meio do caso exemplar de Tinta Crua,3 fazer emergir um jogo de classificações que acabou por interceder nas “minhas passagens” sobre alguns sítios nas ruas de Lisboa. O que é considerado arte dentro de um contexto urbano e como esse gosto4 ressoa em pontos e linhas do ciberespaço? Optei por um tipo de observação que, além de transitar entre ambientes, digital e presencial, se compôs por meio de um ato aparentemente simples: caminhar à cata de imagens. Mais interessante foi perceber, nesses trajetos, que a arte transita, ao ser apagada das paredes de Lisboa, para aquilo que Appadurai (1996, p. 45) denomina de “contiguidade eletrônica”. Observei que, em muitas ocasiões, o intento é fazer a pintura, a colagem, fotografá-la – e, tendo em vista seu iminente apagamento, tentar eternizá-la na paisagem digital.5 Curioso notar que, na medida em que me movia pelas ruas de Lisboa, em que me familiarizava com paredes, muros, ruas e becos, experimentava a sensação de engate, como se um conjunto de formas, cores e traçados se revelassem, nítidos, a olhos nus. Certamente, as imagens, mais que meros artefatos, condensam pensamentos, escritos, memórias que pulsam na direção de quem as registra e de quem as escuta. Samain, ao indagar “como pensam as imagens”, lembra que “somos observadores condicionados tanto pelos nossos modos de ver como pela Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 46 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS peculiaridade com que as imagens olham para nós” (2012, p. 16). No âmbito desse itinerário etnográfico, ao invés de tomar as imagens como simples registros efetuados num tipo de suporte, de tentar classificá-las dentro de uma estilística artística, preferi percebê-las na qualidade de “territórios de memória” (SAMAIN, 2012, p. 22) e produção de sentido acerca das confluências entre arte e não arte, comumente designada pelos “agentes da ordem” em Lisboa de vandalismo. Identifiquei dentro da categoria “arte urbana” todo traçado que, para além da mera assinatura, tag, designada no Brasil de pichação, desenha um propósito “pensante”, anunciando mais que um objeto: um processo vivo (SAMAIN, 2012), um tipo de participação intempestiva na visualidade da cidade. Falo assim inspirada nas considerações de Agamben (2009) acerca do “que é o contemporâneo?”. Isso no que tange à participação visual de artistas urbanos, traduzida num tipo de desconexão, de resistência e distância em relação à arte agenciada nas galerias e museus; embora assinem suas obras nas ruas, na condição de artistas. Isso ocorre, possivelmente, próximo daquilo que Rancière denomina de obras não passivas, analogicamente ativas, qual seja, afora as que são exibidas em “lugar onde visitantes solitários vêm encontrar a solidão e a passividade de obras despojadas de suas antigas funções de ícones de fé, de emblemas de poder ou decoração da vida dos Grandes” (2005, p. 2). A arte urbana inscreve-se no espaço vivo das ruas, no frenesi do tráfego, no fluxo da energia vital das cidades, lugar de realização e, simultaneamente, de visualização da obra. Vale ressaltar que não necessariamente por estar nas ruas a arte está livre da passividade aludida por Rancière, a qual povoa os museus. Caminhando atentamente por Lisboa, pude facilmente distinguir murais e intervenções, as promovidas pela Câmara, de outras inscrições que ocupam paredes devolutas, sítios abandonados, vitrinas de lojas, placas e escadarias ativados, visivelmente, de forma ilegal. Para a maior parte dos passantes, não é tarefa fácil discernir os meandros de uma arte que tem sua vitalidade, no geral, para além das portas das galerias. O arsenal de imagens disseminado na cidade, curiosamente, como pude observar, torna-se um texto indecifrável, misturando-se às tantas outras que riscam a paisagem urbana. Em muitas situações, cruzando as ruas com a minha pequena câmara, se acompanhada de alguém, descobria novos registros, e quem estava ao meu lado retorquia: eu nada havia visto. Diferentemente do meio digital, no geral, as imagens combinadas no tríplice ato – ver, registrar e compartilhar – ganham existência mais manifesta e material nos meios digitais. A escritura urbana é, por natureza, polissêmica e intertextual. Cada leitor acaba enxergando o espectro de imagens que, de certo modo, povoa o seu mapa mental visual. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 47 Já no ciberespaço, as imagens circulam quase aos pulos, rizomaticamente (DELEUZE; GUATTARI, 1995); ou seja, não param de se multiplicar, de se alongar em diferentes planos e de irromper qualquer centro unificado e unificador. Sendo assim, diferentemente de uma arte situada na cidade, a de conotação urbana, quando migra para o ciberespaço, por princípio, já deixa de ser uma; desdobra-se espacialmente, des-localiza-se no tempo e se apresenta “explícita” diante do olho do internauta. Daí a necessidade que tem o etnógrafo de tentar dar conta de lógicas não lineares dentro de um contexto flutuante (CANEVACCI, 2009). Essa flutuação transpõe, também, o terreno das categorizações acerca do que é ou não considerado arte no cenário urbano. A retórica da classificação - se é arte ou não, se é uma tag, um risco, um graffti, um traço, um escrito, um estêncil, um sticker, se é legal ou ilegal - está, também, interligada ao espectro do observador. Para além do registro do que vê, o antropólogo que se movimenta nessas fendas recria um móbile dos ângulos que compõem o olhar dos atores da pesquisa, refletidos em seu próprio olhar. Cidade e ciberespaço, mais que distintas conexões espaciais, se combinam em planos de mútua reflexividade. Isso significa, como bem pontuou Hine em uma entrevista concedida à Revista da Compós, que [...] os fenômenos digitais são muito complexos. Existem em múltiplos espaços, são fragmentados e costumam ser temporalmente complexos. Não podemos esperar ter uma vivência de um fenômeno assim apenas “estando presentes ali”, porque não sabemos automaticamente onde é ali, nem como “estar presentes” [...] Penso que este aspecto da reflexividade – refletir como sabemos o que sabemos sobre uma situação – provavelmente seja a parte mais significativa da etnografia em ambientes digitais (BRAGA, 2012, s. p.). Balizada por essa deriva contingente, antes mesmo de iniciar anotações, acercar-me do foco de pesquisa, dediquei um tempo, em Lisboa, distinguindo diferentes semânticas da arte no texto da cidade e correspondentes linhas de conexão com o ciberespaço. Concordo com Hine: interessou-me bem mais nesse percurso ir refletindo sobre o que fui sabendo, como fui sabendo, por meio do diálogo com as imagens, digitais ou presenciais, do que mesmo dar conta de uma pretensa existência autônoma das imagens. Situei o perímetro da deambulação etnográfica observante na parte considerada mais histórica de Lisboa, especificamente partindo do Largo do Rato, passando pela Bica, Bairro Alto, até o Chiado e a Baixa. Obviamente, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 48 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS acabei deixando fora dos limites da pesquisa sítios como Alfama, Mouraria, Alcântara e tantos outros. Estabeleci-me por onde costumo caminhar cotidianamente; assim, pude identificar novos registros, apagamentos de traços, desenhos deixados nas paredes, intervenções legais promovidas pela Câmara de Lisboa e acrescentamentos às obras efetuados pelo próprio autor ou por outro graffiter. Não apenas fotografava, observava cada arte destacada nos percursos urbanos realizados, como buscava, no arquivo pessoal de imagens, saber se se tratava de um único registro, se havia outros com o mesmo traço e estilo e se era, também, possível identificar os respectivos autores. Concomitantemente, buscava, como se refere Appadurai (1996), na “tecnopaisagem”, a presença daquele artista e de outros de seus registros urbanos. Pode-se dizer, depois de um considerável tempo do trajeto etnográfico, que basicamente, no escopo observado, o artista urbano ilegal – afora as tags – que mais condensa obras nesse espaço histórico de Lisboa é Tinta Crua. É por meio de seus rastos que seguiremos o emergente debate que agita, recentemente, alguns atores de Lisboa acerca das fronteiras entre o legal e o ilegal da arte urbana, o artístico e o vandal, a efemeridade e a conservação das obras. E, como veremos a seguir, essa polêmica tem ressoado nas redes sociais, principalmente nos perfis dos artistas e no de alguns atores governamentais que operam diretamente no panorama da arte urbana. “COLANDO” COM TINTA CRUA Em 2012, estive rapidamente em Lisboa. Já iniciava no Brasil a pesquisa acerca das conexões entre arte urbana, graffiti e pichação. Caminhando pelo Chiado, sem ainda saber de quem se tratava, fotografei uma colagem de Tinta Crua. Fig. 2: Sem identificação Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, jun. 2012) Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 49 Consegui encontrar em vitrinas, paredes das principais vias, colagens alusivas à mesma assinatura. Ao retornar a Lisboa em 2013, já iniciando a pesquisa do pós-doutorado, deparei-me com outras imagens produzidas por Tinta Crua. Fig. 3: Sem identificação Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, abr. 2013) Fig. 4: Sem identificação Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, abr. 2013) Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 50 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS Fig. 5: Sem identificação Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, mar. 2013) Havia, entre elas, expressões de apelo, pedidos de socorro, alusão a dor, sangue e silêncio. As primeiras anotações de campo (DIÓGENES, 2013f), efetuadas no mês de março de 2013, sinalizam a minha percepção acerca da intensidade de uma arte que ocupa, à revelia, o coração de Lisboa: Tinta Crua, ao contrário de muitos graffiters de arte urbana, atua quase na totalidade de suas intervenções com colagens. Pouco do que havia visto antes me parecia semelhante. Sua atuação demanda um olhar mais atento do observador. Propositalmente, ocupa interstícios, entre espaços de afixação de avisos, de placas oficiais, de vitrinas de lojas, de letreiros de publicidade, de postes de iluminação pública, dentre outros sítios. Ao instalar sua colagem num lugar produtor de compactuado signo de comunicação urbana, realiza uma transcriação da informação. No geral, as colagens de Tinta Crua se instalam em espaços onde a vista, comumente, passa sem se demorar. Nada de destaques extensivos em muros ou paredes vastas. Tinta Crua provoca a desconstrução da visão no lugar onde o olho, habitualmente, não vê, ou não se detém e com isso produz outro exercício de percepção urbana (2013f, s. p.). Acompanhei uma intervenção realizada pela Galeria de Arte Urbana (GAU6), “Rostos do Muro Azul”, e soube que, pela primeira vez, seria revelada a identidade oficial de Tinta Crua, até então anônimo. Dirigi-me à Rua das Murtas e lá, acompanhando a composição do mural (DIÓGENES, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 51 2013b), conheci Eduardo e, após a finalização do muro, combinamos um encontro mais demorado. A anotação de campo, como se pode identificar, em seguida, assinala a ansiedade que marca o encontro com o primeiro narrador de pesquisa: Havia marcado com Eduardo, o “Tinta Crua”, às 12:30 horas, dia 18 de março, na saída do metro da Rua do Salitre, no Largo do Rato. Chovia brando. Tomei meu chapéu-de-chuva, como aqui se denomina, e posicionei-me na escada de saída do metro. Como já passava um pouco das 12:30 horas, tentei ligar para seu telemóvel (celular) e ouvi apenas a voz da gravação “o cliente Vodafone o qual ligou, tem nesse momento o telefone desligado”. Conjecturei se o “Tinta Crua” iria continuar elegendo o silêncio (DIÓGENES, 2013f, s. p.). Após um tempo calado, numa prolongada tarde, curiosa acerca das conexões entre a estética crua da arte de Eduardo e a atual crise de Portugal, como de parte significativa da Europa, ele diz: [...] Penso que Portugal vai ficar pior. E com minhas coisas tento falar isso. Posso dispor as minhas figuras sem escrever aquelas frases, contra o sistema. Eu tento com minhas figuras, com a expressão que as pessoas interpretem à sua maneira. Todas essas crises, esse caos todo me sinto na obrigação de escrever, ser mais óbvio nas coisas que faço (DIÓGENES, 2013e, s. p.). As figuras de Tinta Crua gritam frases não escritas. Imagens que, ao dizer o que pensam, põem em movimento outras cadeias de pensamento. Como reforça Saimain, no seu diálogo com Gregory Bateson, “as imagens nos faz pensar” (2012, p. 22). Percebo que Eduardo, mais que agradar os que trafegam na cidade, tenta instalar um impacto; aquilo que Agamben (2012) assinala com o surgimento, na metade do século XVII na sociedade europeia, do “homem de gosto”, do crítico de arte, do perito. Ele aponta uma arte que parece ter se distanciado da experiência do choc decantada pelo poeta francês Baudelaire. Nega-se o espectador em detrimento do gosto. Agamben considera que apenas uma destruição nos modos de transmissibilidade da cultura, de valores, poderia restaurar a experiência primordial do choc no coração da arte. Parece ser esse o intento de Tinta Crua ao continuar, solitariamente, deixando suas marcas no circuito histórico de Lisboa: apontar a lâmina para um coração que sangra em silêncio. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 52 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS Voltei a encontrar Eduardo por mais três vezes, sendo que no último encontro acompanhei-o em colagens efetuadas durante a madrugada (DIÓGENES, 2013a). Sobre a minha primeira experiência de observadora de intervenções urbanas, num terreno minado, sob a espreita da polícia, refleti acerca da mútua intervenção de Tinta Crua na condição de uma arte ilegal e de uma antropologia que se esgueira entre brechas: Eduardo, por mais desvelo estético e virtuosismo artístico que imprima em suas obras, provavelmente, mais se aproxime do que José Gil [...] no livro A arte como linguagem vai denominar de “estética das forças” por oposição a “estética das formas”. O que existe, mesmo que as metáforas circundem as criações de Eduardo, é um lance de metonímia, em que mais interessa ao artista o efeito do que a obra em si, o apreciador, mesmo que invisível, do que a apropriação material da obra, o continente de significados que ela possa fazer abrolhar, do que o invólucro material daquilo que o artista produz (DIÓGENES, 2013a, s. p.). Acompanhei os passos de Tinta Crua não apenas face a face: passei a visitá-lo, quase que diariamente, em sua página do facebook.8 Como veremos no próximo tópico, o cerco em Lisboa vai, cada vez mais, fechando-se para a arte considerada ilegal, sem a licença da Câmara Municipal. No dia 9 de setembro de 2013, Tinta Crua publica uma imagem na sua página e ela faz eclodir um debate sobre o tema em voga: Fig. 6: Sem identificação (imagem cortesia do artista da obra, Tinta Crua, 2013) Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 53 Eduardo Oaciecnoc Ha... nao vale roubar! Olha 5 minutos para eles e deixa-os entrar no teu subconsciente e abre-lhes a porta dos teus sonhos e elas irão dar-te sempre um bom feelling, se as arrancar é mau karma e a cena já não funciona faço reproduções das coisas que ponho na rua desde prints a originais pintados a mão é facil ter um Tinta Crua em casa. Eu ja não colo tanto nem tão ha vista devido a nova lei antigraphitti que ate colangem proibe, e as equipes de limpeza que apagam tudo. Faço isto porque me da enorme prazer e é um acto de liberdade plena, onde todos podem mostrar as suas ideias principalmente aqueles que sao excluidos pelo sistema. Se quem faz “streeart ilegal” nao conseguir existir, vai-se extinguir uma linguagem que a streetart legal nao tem devido a filtragem de artistas e assuntos, so a favor da existencia e coesao das duas, acho que so se tem a ganhar mas ha quem tenha medo da diversidade cultural. espero que te tenha convencido “de todos para todos” (DIÓGENES, 2013h, s. p.). “A cena já não funciona”. Por meio da internet, “é fácil ter um Tinta Crua em casa”. A “nova lei” antigraphitti proíbe, segundo Eduardo, um “acto de liberdade plena”.10 Floresce, à revelia, uma arte a favor apenas da “existência e coesão”. O intento é fechar uma porta para a arte que teme a diversidade e a sinuosidade da discórdia, do atrito, do desacordo. Qual então a cena que, ora, funciona? AGENCIAMENTOS DA CLASSIFICAÇÃO DA ARTE “NO” URBANO Essa experiência etnográfica me fez concordar, efetivamente, com Agier, ao dizer que “o campo é construído pelas relações que se pode ter” (2011, p. 37). Durante esse tempo de andar-vendo paredes, muros, placas, vitrinas, monumentos, viadutos, observei, fotografei e produzi um arquivo11 acerca da arte urbana em Lisboa. Logo de início, tomei a decisão de excluir do foco da pesquisa as denominadas tags. Devido ao tempo limitado de inserção nas ruas de Lisboa e à própria proliferação das tags, decidi voltar a atenção para a ação de alguns artistas urbanos,12 tendo aqui destacado o caso de Tinta Crua. Coincidentemente, minha estadia em Lisboa, durante o ano de 2013, calhou com a promulgação de uma Lei, publicada no jornal Diário de Notícias, no dia primeiro de setembro desse ano, regulamentando a realização de graffiti em alguns locais, como monumentos e transportes públicos, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 54 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS “prevendo coimas para os infratores que pode chegar a 25 mil euros”, de acordo com a referida notícia, “como indica o artigo 3 da lei n.º 61 de 23 de agosto [...] compete às câmaras municipais licenciar a inscrição de grafitos, a picotagem ou a afixação, em locais previamente identificados pelo requerente” (DNOTÍCIAS.PT, 2013, s. p.). No encontro de 16 de julho, quando estive com Tinta Crua, antes da atividade de colagem, conversamos na Avenida da Liberdade acerca de matéria recém-publicada sobre graffiti na revista Time Out – Lisboa. A seguir, trecho do registro daquele dia: Havia lido todo o texto da referida revista e estranhei a não presença, na matéria publicada, de alguns que são considerados ilegais, mesmo fazendo arte urbana, como, por exemplo, o caso de Tinta Crua e Dalaima street art […]. Inclusive, ao lado da página do Facebook da revista Time Out encontra-se um comentário “impertinente” de Tinta Crua: / Eduardo Oaciecnoc. Só falta saber se é arte institucional “autorizada” ou a não autorizada que incomodou tanto o ministro da admin. interna que criou uma lei para proibir e perseguir quem ousa ser livre na palavra e nos actos (nem devem fazer referencia a isso), mas ou muito me engano ou vão falar do básico pop e indolor!!!! se me enganei peço desculpa / Exatamente o que disse Eduardo, o Tinta, falaram da arte “do básico pop ou indolor”, não se toca nas querelas das proibições nem, muito menos, nas multas impetradas aos graffiters ilegais. Conversamos sobre o fato de sua arte inserir-se numa dimensão fora, qual seja, externa às galerias, aos museus, às publicidades pops. Além dessa condição off do mercado da arte, Tinta Crua faz emergir, nas paredes proibidas, imagens de um país que sofre, cotidianamente, crises e as mais variadas vivências de exclusão: desemprego, ampliação crescente do número de moradores de rua, fechamento de estabelecimentos comércios, greves e tantos outros impasses e conflitos / Na arte de Eduardo, as tintas são derramadas em cores vivazes, em formas nuas e cruas. Como, por exemplo, o homeless que ele deixou registrado na Rua do Carmo, já tendo sido dali arrancado (DIÓGENES, 2013a, s. p.). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 55 Fig. 7: Sem identificação / Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, jun. 2013) Não há concessões nos feitos de Eduardo. Observa-se que, na sua imagem de um homeless man, ao lado do título, há um breve escrito: fuck the system. Por isso, ao indagá-lo, ainda sentados no quiosque, sobre o que pretende com a arte ele diz, de forma compassada: ‘que a vejam e que eu possa causar qualquer coisa em quem passa e vê’ (DIÓGENES, 2013a, s. p.). Provocar olhares, causar alguma coisa em quem passa e vê: parece ser exatamente essa a tentativa da Câmara ao escolher temas e liberar paredes para intervenções de arte; selecionar o que os moradores de Lisboa devem ver e que tipo de impactos devem receber. No dia 23 de agosto, Tinta Crua publica uma foto no facebook, surgida de um “rabisco” feito por ele durante uma aula, e assim mobiliza um diálogo acerca da nova regulação: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 56 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS Fig. 8: Sem identificação Autoria de Tinta Crua (Fotografia de Tinta Crua, 2013) Como é que vais fazer a partir de agora? Passas a dirigir-te ao GAU-CML para solicitares autorizações específicas para cada projecto que tenhas e ficas a aguardar que as aprovem... ou manténs-te na mesma toada?13 Faço menos trabalhos e ponho-os em sítios menos visíveis, não arrisco tanto, como quando colava nas montras da baixa, também não sei como funciona isso das licenças.14 Bem, a realidade é que (apesar de ainda não ter lido a nova lei) não sei até que ponto as colagens estão inseridas no conceito de graffiti. Supostamente, estás à vontade em todos os locais onde se possam afixar cartazes, não terás necessariamente que te esconder. Mas convém checkar tudo o que lá vem escrito.15 Atualmente, ao falar sobre arte urbana em Lisboa, necessariamente se deve considerar não apenas a profusão de imagens e traços na paisagem da cidade, como a natureza da intervenção local do poder público municipal. Isso porque, conforme aludido, foi criada pela Câmara Municipal, em 2008, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 57 a Galeria de Arte Urbana (GAU). Ela surge, inicialmente, devido a um processo de reabilitação do Bairro Alto, que tem, dentre outros objetivos, o de efetuar limpeza e registro dos graffiti nesse bairro. Segundo Sílvia Câmara, coordenadora da GAU, a Galeria, mesmo sendo responsável por ações de limpeza de tags e graffiti, propiciou a criação de um novo espaço onde os street artists podem fazer suas obras legalmente.16 Em uma entrevista concedida por Sílvia, em outubro de 2012, a um blog de Lisboa, a coordenadora do projeto tenta definir as distinções e limites entre a arte urbana e o vandalismo: Muitas pessoas ainda enxergam a street art com preconceito? Sim, muita gente acha que é vandalismo e não enxerga arte. Existe muito preconceito, resistência. Mas este “vandalismo” muitas vezes é o que torna todo o resto vivo. Porque a street art é um movimento de questionamento, mudança, uma necessidade de evolução. Então onde havia um canto escuro e cinzento de repente nasce algo novo, colorido e que reaviva aquele cenário e o torna muito melhor e atual, valorizando-o (LUXGOOD, 2012). Observa-se, nesta entrevista e também no contato presencial com Sílvia efetuado no início de 2013, a projeção de um limite tênue entre arte urbana e vandalismo.17 A perspectiva por ela assinalada pode ser assim condensada: é a natureza “ilegal” da arte que “torna todo o resto vivo”. Nas palavras de Sílvia, a não “oficialidade” do ato de “pintar a cidade” acaba por “adrenalizar” ações de uma arte que, por natureza, atua deslocada do métier artístico: galerias, museus, escolas. Aqui se define o centro de um paradoxo: como promover “galerias de arte urbana” na cidade de Lisboa, se a própria criação da GAU tem como propósito classificar as paredes como ilegais e legais – e, desse modo, disciplinar e, muitas vezes, conter a adrenalina dos vândalos? Vários fatores levam a crer – inclusive, atualmente, com a mencionada radicalização das leis de regulação do graffiti em Lisboa – que a iniciativa pioneira da GAU de “limpeza” de algumas paredes do Bairro Alto, no início da criação da Galeria, fez emergir impasses e a necessidade de indicativos mais precisos de categorização entre arte urbana legal e ilegal. A Câmara de Lisboa, ao conceder a prerrogativa à GAU de construir um discurso, um conjunto de regulações e classificações – sobre o que é ou não é arte, o que é legal ou ilegal, o que é ação de vândalo e o que é ação autorizada –, acabou por criar uma espécie de curadoria privada da arte pública. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 58 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS Trouxe para fora das instituições de estudo da arte, de cursos de designer de Lisboa, artistas de escola marcados pelo gosto e estética das belas artes. Provocou uma refração de um tipo de intervenção “desigual”, fora dos padrões homogeneizadores do que significa fazer arte. Rancière (2011) refere-se ao risco da difusão de uma igualdade estética, que se interpõe ao mundo como anteparo a confundir a distinção, a gradual incorporação dos juízos de gosto. É essa incorporação gradual dos “juízos de gosto” que acaba por fomentar na paisagem de Lisboa um curioso fenômeno. O espectador do urbano termina se vendo, a Si mesmo, como Outro; ele não encontra no que vê um espelho de si e da sua própria existência. A arte estampada nos murais espalhados pela cidade, conclamada pela GAU, via edital público, com a presença seletiva das curadorias, traduz, nas intervenções realizadas em muros oficiais, uma quase vitrina da arte dos “juízos de gosto”. Ao viver esse gradual estranhamento (AGAMBEN, 2012), o artista comum, ilegal, experimenta em seu interior uma dilaceração das vias que fundem a arte, o criador e a tela da cidade. É nesse terreno cinético que se “desferrolha” uma etnografia da presença-ausência, de uma arte – como diz Tinta Crua – que só vale ser arriscada “nos sítios menos visíveis”. Isso vale, também, para o antropólogo: cruzar – mesmo cidades povoadas de imagens, publicidades, signos de ordenação de trânsito – e catar – numa fresta qualquer entre o que é apregoado e escondido – o registro de uma arte que pouco a pouco é banida das telas urbanas. Experimenta-se entre o presencial e o digital a mais genuína sensação de se observar em deslocamento. Constituem-se, assim, outros tipos de interatividade, onde nem a especificidade de um lugar e nem a ordenação de um tempo sucessivo traduzem configurações de encontros que se efetuam algumas vezes aos pulos, seguindo vias que contornam os espaços-tempos. Essa experiência nos levou a refletir sobre o lugar que assume a interatividade nos marcos atuais da antropologia. Trata-se de um outro tipo de viagem, como afirma Hine18 (2000, p. 45), ao se fazer uma etnografia que também percorre a internet. Não necessariamente estivemos lá para que o percurso etnográfico fosse realizado com o mesmo grau de detalhamento e rigor que permeia as viagens presenciais. A interatividade pode ser plasmada por ausências, por contatos assincrônicos,19 conectividades efetuadas por meios técnicos, como links, perfis e dispositivos em redes. Tal qual certifica Zizek, A interactividade é, obviamente, o grande tema do espaço cibernético. Com os novos media eletrônicos, tornou-se um lugar comum sublinhar Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES 59 que acabou a contemplação passiva de um texto ou de uma obra de arte: já não me limito a olhar fixamente para o ecrã, interajo progressivamente com ele (da minha própria escolha dos programas ao facto de influenciar o desfecho da intriga naquilo que se chamam de “histórias interactivas”, passando pela minha participação em debates no seio da comunidade virtual) (2006, p. 14-15). É assim que visualizo, nas páginas de Tinta Crua, como na de outros artistas urbanos, um tipo de interação no ciberespaço que denominaria de “interação mobilizadora”. “Um tipo de mobilização dos coletivos que multiplica os atores, naturezas e sociedades” (LATOUR, 1994, p. 71), fora da paisagem onde atuam. Tanto a obra transita entre a matéria e os meios digitais como pode ser alvo de interações online, de compartilhamentos, de interferências de conteúdo, legenda, estabelecendo outra relação espaço-tempo.20 Como ressaltou Hazul Luzah, um dos artistas urbanos narradores desse percurso etnográfico, “a cidade existe para ser apagada”. A relação de interação transeunte versus arte, que se dispõe na paisagem, assume um grau qualquer de fixidez. No ciberespaço, a obra muda de lugar assim como o movimento que o próprio antropólogo perfaz no dilemático campo. RASCUNHOS CONCLUSIVOS No diálogo com Tinta Crua, identifiquei que a tentativa de “limpeza e apagamento” de graffiti não diz respeito, também, à cidade como um todo. Em uma de nossas conversas, ele ponderou: “Repare, as equipes de limpeza antigraffiti andam a limpar, e é claro que não vão limpar os bairros mais degradados, eles têm limpado ao centro de Lisboa, a parte histórica. Fica tudo limpinho. Não tratam da mesma maneira o resto da cidade”.21 É na “parte histórica” dessa cidade a que palmilha os turistas, os que a cruzam para o trabalho diário, os moradores inseridos na gama de sociabilidade que existe esse “lado” no qual o artista insiste em deixar suas imagens intensas. Observa-se assim que, como diz Agier (2011), apenas o cartógrafo e o urbanista oferecem uma visão de conjunto da cidade, embora ela nunca possa ser vista em sua totalidade. Em algumas situações, a cidade consegue ser alcançada bem mais por registros da arte urbana que subsiste no ciberespaço do que pela velocidade e rotatividade de suas marcas, anúncios e inscrições. A escrita, assim como o trabalho etnográfico, segue seu próprio devir. Seria, no mínimo, equivocado, quando nos reportamos à pesquisa Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 60 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS na cidade de Lisboa, presumir que ela esteja envolta em qualquer tipo de universalidade. A arte aqui emerge na condição de retratos de um percurso, entre ambiências visitadas e por suas dobras no ciberespaço. A tentativa de instaurar na cidade um tipo de arte disciplinada, regulada, normatizada – contando a GAU, inclusive, com acervo do que “já não existe mais” na cidade – provavelmente projeta para o espaço urbano a igualdade do gosto que perfaz a estética da arte passiva dos museus. Instaura-se, assim, em Lisboa e em tantas outras cidades, uma censura prévia em torno daquilo, comumente marcado pela livre expressão e pela possibilidade incessante da invenção de formas, cores, traços e dizeres. Agamben (2012), em O homem sem conteúdo, descreve exatamente um possível déficit de energia, ocasionado pela lógica de uma arte confinada ao crivo de curadores e críticos – uma arte que opera distâncias entre o criador, monitorado por temas de exposições murais, por demarcação e determinação de espaço, por uso de técnicas e instrumentais e a criação de suas obras. Paradoxalmente, como destaquei em nota de campo (DIÓGENES, 2013d), Promove-se, assim, por meio do ciberespaço uma esfera de religação subjetiva entre o artista e seu conteúdo. Entre o pesquisador e seus achados. Fomenta-se, de imediato, uma curiosa subversão da longitude entre o artista e seus espectadores, entre o antropólogo e seus narradores. Cria-se assim um estado sucessivo entre criação, fruição e compartilhamento, uma media, lugar onde as coisas adquirem velocidade (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 37). Certamente, se a arte urbana vier a depender do suporte da tela, do papel, das molduras das galerias e das exposições, terá não apenas outra estética, como também outra temporalidade. O ciberespaço, algumas vezes, atua como um palco alargado, um recipiente amplo, veloz e múltiplo das experiências que compassam a vida na esfera offline. Ele age descongestionando o fluxo da arte urbana nas grandes cidades, multiplicando-a em “mobilizações infinitas” (SLOTERDJIK, 2002). Isso imprime ao observador, como destaca Canevacci (2004), a necessidade de um olhar oblíquo, inquieto e instável diante do movimento ondulatório que ele opera entre os congestionamentos sígnicos das metrópoles e os espaços de fluxos mais frágeis, como as aldeias e, acrescentaria, os sítios “invisíveis” em que se propagam os grandes fluxos das cidades. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES NOTAS 61 1 Tim Ingold e Elizabeth Hallam referem-se a um tipo de improvisação geradora, não condicionada pelo compasso da produção de “novidades”: “Because improvisation is generative does not condicional upon judgments of the novelty or otherwise of the forms it yields. Because it is relational, it does not pit the individual against either nature or society” (2007, p. 3). 2 Ricardo Campos, no livro Por que pintamos a cidade?, afirma que “a cidade é para ser lida. Os hieróglifos, emblemas, decorações, sinais, orientam-nos nesse mundo. Procuram informar, iludir, entreter, suscitar o desejo, o sonho, a acção” (2010, p. 23). 3 Estive em contato direto e indireto com vários outros artistas urbanos de Lisboa e da cidade do Porto. Tinta Crua foi o primeiro narrador do meu percurso etnográfico em Lisboa. 4 Refiro-me a uma discussão sobre “o homem do gosto e a dialética da dilaceração”, efetuada por Giorgio Agamben, no livro O homem sem conteúdo (2012). 5 José Simões também faz uma alusão a essa interligação entre presencial e digital: “As consequências da transposição do graffiti da rua para a internet são variadas. Em primeiro lugar, o impacto mais imediato é o que advém da própria preservação das marcas iconográficas deixadas pelos writers nas ruas das cidades, em vários suportes, cujo destino seria a destruição, mais ou menos imediata, ou a substituição por outras marcas que se sobreporiam e obnubilariam a primeira” (2011, p. 235). 6 Mais detalhes sobre a criação da GAU nas próximas páginas. 7 Era a primeira vez que Eduardo falava sobre suas obras com uma pessoa fora de sua convivialidade. 8 Tinta Crua, s.d. 9 Mantive a mesma fonte e diagramação das publicações originais do facebook. 10 Entre aspas estão trechos da fala de Eduardo contidos na nota de número 16, deste capítulo, onde segue meu comentário. 11 Reporto-me aqui a um tipo de arquivo composto não apenas por imagens, impressões e anotações de leituras. Passei a considerar uma significativa “matéria-prima” do trabalho de campo a dimensão da experiência. Wright Mills, no “artesanato intelectual”, no que tange à importância dos arquivos, assinala o que considera significativo no trabalho intelectual original: “ser capaz de confiar na própria experiência, sendo ao mesmo tempo cético em relação a ela, é, acredito, uma marca do trabalhador maduro” (2009, p. 23). 12 Observação direta: Pantónio, Tamara Alves, Fidel Évora, Hazul Luzah, Tinta Crua. Não presencial: Dalaima Street Art e Narcélio Grud. 13 Comentário de Miguel Louro, no dia 24 de agosto de 2013. Cf. Tinta Crua, s. d. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 62 ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS 14 Comentário de Eduardo Oaciecnoc, no dia 25 de agosto de 2013. Cf. Tinta Crua, loc. cit 15 Comentário de Miguel Louro, no dia 25 de agosto de 2013. Cf. Tinta Crua, loc. cit. 16 Entrevista concedida por Sílvia Câmara [27 Fevereiro 2013]. Entrevistador: Diógenes, Glória. Lisboa/Portugal. 17 Cf. Diógenes, 2013c (diário que narra o encontro com Sílvia Câmara) 18. “The ethnography of the internet does not necessarily involve physical travel. Visiting the internet focuses on experiential rather than physical displacement”. 19 Ver no artigo de Glória Diógenes um tipo de interação online, mediada por conflitos e enfrentamentos: “Redes sociais e juventude: uma etnografia virtual” (2011). 20 Lídia Borges (2011, p. 3), em artigo intitulado “Graffiti: das ruas para o território virtual”, afirma: “(...) com a popularização da internet e das redes sociais, muitos artistas começaram a disponibilizar um grande acervo fotográfico – que até então era pessoal – dos seus graffites nesse universo virtual. A partir desses compartilhamentos de imagens, o graffite ganha uma nova dimensão. A sua visibilidade não precisa agora necessariamente que seja in loco, basta ‘um clique’ nas páginas pessoais desses artistas ou um passeio virtual pela internet”. 21 Entrevista concedida por Tinta Crua em 21 de março de 2013. Entrevistadora: Diógenes, Glória. Lisboa/Portugal Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 GLÓRIA DIÓGENES BIBLIOGRAFIA 63 AGAMBEN, G. Nudez. Lisboa: Relógio D’Água, 2009. AGAMBEN, G. O homem sem conteúdo. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. AGIER, M. Antropologia da cidade. São Paulo: Terceiro Nome, 2011. APPADURAI, A. Dimensões culturais da globalização. Lisboa: Teorema, 1996. BORGES, L. Grafffiti: das ruas para o território virtual. In: Universidade federal de Goiânia (org.). II seminário de pesquisa da Faculdade de Ciências Sociais: diálogos entre graduação e pós-graduação, Goiânia, 3-4 nov. 2011. Disponível em: http://anais.cienciassociais.ufg.br/uploads/253/original_Lidia_Borges. pdf. Acesso em: 14 set. 2013. BRAGA, A. 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Resumo Keywords: Urban Art, Ethnography, Cyberspace. Abstract Este artigo conduz a alguns pontos da trajetória de um estudo etnográfico sobre artes de rua, em Lisboa, e de como tais artes se dilatam entre paisagens digitais e materiais. Dispõe-se a refletir acerca dos desafios, limites, necessidades e dribles dos estudos etnográficos que cruzam as cidades presenciais e estendem-se para múltiplas conexões com o ciberespaço. Provavelmente, o desafio foi o de seguir fluxos, híbridos em ziguezague, percursos pontilhados cujas fronteiras nem sempre são discerníveis. Tomo como caso exemplar a trajetória de Tinta Crua e sua prática de graffiti ilegal na zona histórica de Lisboa. Enquanto as coimas e decretos e as ações de apagamento da Câmara cerceiam as ações do artista nos marcos da cidade material, por meio da internet é fácil ter em casa um Tinta Crua. Ocorreu, assim, na paisagem virtual, um tipo de interação mobilizadora, em que a obra tanto transita online como pode ser alvo de compartilhamentos, interferências de conteúdo, de legenda, estabelecendo, dessa forma, uma curiosa relação espaço-tempo. Concluo que o ciberespaço acaba atuando como um palco alargado, um recipiente amplo, veloz e múltiplo das artes que inundam as paredes, muros e telas das vitrinas urbanas. This article leads to some points of the trajectory of an ethnographic study of street art in Lisbon and how they, the arts, stand out amongst digital and material landscapes. It intends to reflect upon the challenges, limitations and needs and ‘dribbles’ of ethnographic studies that cross the spacial cities and go beyond to establish multiple connections with the cyberspace. The challenge was probably to follow the hybrid zigzag flows, dotted paths whose limits and boundaries are not always discernible. I take the trajectory of Tinta Crua and his practice of illegal graffiti in the historic district of Lisbon as a model case. While the fines and decrees, and the House’s erasing actions curtail the actions of the artist in the city’s material landmarks, it is easy to “have” a Tinta Crua piece at home, via the Internet. The virtual landscape has thus created a kind of mobilizing interaction in which the work moves Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 67 GLÓRIA DIÓGENES online as much as it can be the target of ‘shares’, content interference, captions, thus establishing a curious space/ time relationship. I so conclude that the cyberspace ends up acting as an extended stage, a large, fast moving and multiple container of the arts that flood walls, walls and screens of urban displays. Recebido para publicação em abril/2015. Aceito em junho/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67 Identificação e reutilização do patrimônio no processo de reinvenção das cidades: uma reflexão a partir da cidade de Almada Roselane Gomes Bezerra Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Fez Pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Atualmente é investigadora no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com o desenvolvimento do projeto: “Narrativas urbanas: estratégias, discursos e representações no processo de requalificação na cidade de Almada”, com bolsa da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Pertence ao Núcleo de Estudos sobre Cidades, Culturas e Arquitectura (CCArq) do Centro de Estudos Sociais e é membro da Rede Brasil-Portugal de estudos urbanos. É autora, dentre outras publicações, do livro O bairro Praia de Iracema entre o adeus e a boemia: usos e abusos num espaço urbano. Fortaleza: Laboratório de Estudos da Oralidade (LEO) / UFC, 2009. INTRODUÇÃO O processo de reinvenção das cidades a partir da identificação e da reutilização do patrimônio justifica-se pelas transformações urbanas, decorrentes da acelerada globalização econômica, industrial e tecnológica que o mundo vivencia desde finais do século XX. Marcado por profundas transformações sociais, econômicas e geográficas, esse século deixou como legado para a paisagem urbana um novo conceito de cidade, que se define pela busca de novos usos para espaços “abandonados” ou desvalorizados. A paisagem urbana contemporânea vem sendo configurada por meio da “requalificação” de áreas Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 70 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES portuárias desativadas, espaços desocupados que abrigavam grandes indústrias, áreas deterioradas que margeiam a costa do mar ou de rios e antigos centros históricos degradados. Esses espaços urbanos “abandonados” geralmente estavam socialmente descontextualizados dos usos na cidade, mas estão localizados em áreas com um alto valor simbólico para a história da urbe. É importante ressaltar que a identificação desses espaços urbanos como “abandonados”, “degradados”, “decadentes”, entre outros adjetivos desabonadores, é utilizada para qualificá-los por gestores e/ou arquitetos que defendem o processo de “requalificação” como um meio de dinamizar economicamente a cidade. Esse fenômeno se dá no âmbito da ideia de intervenções urbanas, especialmente associadas ao turismo e ao lazer. Nesse contexto, cidades ou espaços urbanos de diferentes países, com histórias, economias e culturas diversas, estão a compartilhar a mesma concepção de reconstrução de determinados espaços, sobretudo por meio da difusão de modelos de “requalificação”, que orientam políticas de intervenção. Na dinâmica de metamorfose da cidade, que está a surgir como uma necessidade da urbe contemporânea ou pós-industrial, são comuns narrativas de gestores e arquitetos que anunciam a identificação e a reutilização do patrimônio como uma exigência dos projetos de “requalificação”. Assim, os requisitos dos planos de intervenção passaram a ser fundamentais na definição dos critérios de patrimonialização. Porém, uma questão peculiar desse processo é o caráter de dualidade que envolve a definição do patrimônio urbano. Ou seja, há uma dimensão de natureza técnica, que atende aos rigores legais e formais para a transformação de um objeto material ou imaterial em um bem com estatuto patrimonial,1 e outra baseada em classificações de natureza estética, política, cultural ou comercial (LEITE; PEIXOTO, 2009). É no âmbito estético, ou seja, com base em critérios visuais, que em geral são formuladas, conforme gestores, arquitetos e habitantes de Almada as concepções de “patrimônio” e “patrimonialização”. Assim sendo, independentemente de um reconhecimento oficial, as classificações desses atores sociais, muitas vezes imputam a designação de “patrimônio” ou de “valor patrimonial” para edificações relacionadas com o consumo visual. No contexto de transformação de espaços urbanos, grande parte dos estudos sobre as cidades tem demonstrado que os projetos de intervenção, ou seja, as práticas de “requalificação”, realçam um vínculo entre patrimônio e embelezamento arquitetônico, tornando espaços da cidade em objetos de consumo e “mercadoria” (ARANTES, 2009; BEZERRA, 2009; VAINER, 2002; LEITE, 2004; FORTUNA, 1999). Essa prática, utilizada como uma Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 71 fórmula de reinvenção das cidades, está a desencadear uma disputa quanto aos usos programados para os novos espaços da cidade. A partir de uma pesquisa etnográfica em diversos fóruns de participação na cidade de Almada,2 percebi que está a existir uma “urbanidade em disputa” no âmbito da identificação e da reutilização do patrimônio.3 Partindo da observação dos discursos de arquitetos e decisores políticos nos Fóruns de Participação,4 o objetivo deste artigo é apresentar uma análise de como a ideia de “qualificação” dos usos na cidade está presente nos projetos de “requalificação”. A minha pesquisa abordou os critérios da concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas”, comum a diversas narrativas dos planos de intervenção. Utilizando a cidade de Almada como um estudo de caso, percebo que o processo de patrimonialização – comum a diversas cidades – conduz a uma reflexão sobre a atribuição de valores para os novos espaços. A ideia de “qualificação” de espaços urbanos presente nos discursos de arquitetos e gestores é reveladora da “urbanidade em disputa” e dá pistas para ampliar o debate sobre políticas urbanas e o processo de reinvenção das cidades contemporâneas. O PROCESSO DE REINVENÇÃO DE UMA CIDADE PÓS-INDUSTRIAL Transformar a estrutura urbana e consequentemente implementar uma mudança de imagem da cidade, a qual durante muitos anos foi associada a atividades industriais, assim como devolver o rio Tejo aos cidadãos e reabilitar uma zona de antigos estaleiros, desenvolvendo o conceito de cidade voltada para a margem do rio, são os objetivos exigidos pela Câmara Municipal de Almada aos diversos planos de “requalificação” da cidade. Almada reúne, desde 1997,5 vários instrumentos de gestão territorial com o propósito de contribuir para esse processo de reinvenção da cidade (MOREIRA, 2004; RODRIGUES, 2001). Nesse sentido, é possível afirmar que Almada é exemplar na concepção de transformação urbana e na busca de uma “vocação” que continue a alicerçar o desenvolvimento econômico e social da cidade. Segundo narrativas dos gestores e arquitetos, o grande potencial de Almada é a proximidade com Lisboa e o patrimônio arquitetônico construído ao longo da sua história. Registros arqueológicos da cidade indicam que essa área foi ocupada por fenícios, no século VIII a. C.; por romanos, entre os séculos VI a.C. e II d.C., e por muçulmanos, entre os séculos VIII e X d. C.6. Na Idade Média, a configuração urbana dessa cidade limitava-se a um Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 72 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES pequeno aglomerado de habitações nas imediações das muralhas do Castelo, rodeada por uma vasta zona agrícola. Dessa forma, a produção agrária contribuiu para a implantação de uma mancha estruturada e complexa de quintas na cidade. Após o terremoto de 1755, Almada perdeu o traçado medieval e foi sendo reconstruída com a implementação de indústrias transformadoras. Em meados do século XIX, foi fundada a companhia “Parceria dos Vapores Lisbonenses”, que estabeleceu carreiras regulares entre Lisboa e Almada, impulsionando o aparecimento dos primeiros estaleiros navais que, gradualmente, substituíram a construção tradicional de embarcações em madeira. O desenvolvimento da indústria naval, em Almada, influenciou o aumento dos fluxos imigratórios e consequentemente um declínio da atividade agrícola. O crescimento da indústria naval contribuiu também para a criação de uma imagem de “cidade operária”, incorporada à identidade local e ao imaginário da população nacional. Decorrente das atividades industriais, Almada abrigou um dinâmico desenvolvimento urbano, especialmente na década de 1960, com a inauguração da ponte sobre o rio Tejo, em 1966, e a instalação dos estaleiros navais da Lisnave, na Margueira, em 1967. Segundo dados da Câmara Municipal, Almada passou de vila a cidade em 21 de junho de 1973, graças ao desenvolvimento demográfico e urbanístico, às vias de comunicação, à distribuição domiciliária de água e energia eléctrica, à rede de saneamento, ao forte incremento industrial e comercial, ao notável movimento de associativismo e aos diversos serviços de natureza social, educacional e cultural. Contudo, com a instauração do regime democrático na sequência do 25 de abril de 1974, Almada assistiu a um excessivo crescimento demográfico, num curto espaço de tempo e sem um planejamento adequado. Vale ressaltar que o estaleiro da Lisnave aumentou o número de trabalhadores de 4.000 para cerca de 9.000, incorporando os recursos humanos das ex-colônias. Assim, após o apogeu econômico, proporcionado pelo crescimento industrial, assiste-se em Almada ao encerramento das indústrias de cortiça, da moagem, e também da construção e reparação naval, decorrente da crise petrolífera e da instabilidade política e econômica dos anos 1970. Em meados dos anos 1980, a cidade vivencia o declínio industrial. O envelhecimento e o abandono dos núcleos mais antigos de Almada denunciam, na degradação, marcas de um desenvolvimento e apogeu recentes. Atualmente esse espaço urbano apresenta ruínas industriais, ocupações ilegais em antigos armazéns à margem do rio Tejo, por famílias de ciganos, e edificações em risco de desabamento. Esse cenário evidencia a necessidade Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 73 de uma reestruturação urbana, por meio da implantação de planos de intervenção. Nesse sentido, a Câmara Municipal de Almada desenvolve planos de “requalificação” que sejam “projetos motores” de maior presença do rio na cidade e de uma nova dimensão da sua vida e imagem. Almada chega ao século XXI como uma “cidade pós-industrial”, com edifícios em ruínas, espaços degradados e antigas instalações da indústria naval abandonadas. Porém, os sinais da degradação, assim como em outras cidades que experimentaram projetos de intervenção urbana, tornaram-se passíveis de reconversão para novos usos e indícios da emergência de uma “nova cidade”. A paisagem “decadente” está sendo transposta para os projetos arquitetônicos, “renovada” e representada como a outra margem de Lisboa. Essa representação da cidade é comum nos discursos de gestores e arquitetos nos fóruns de participação, como demonstra esta decclaração da presidente da Câmara Municipal: “A cidade precisa ser repensada e devolvida à população. Se não fizermos porque é difícil não fazemos nada e não qualificamos a vida das pessoas”; ou a fala do arquiteto responsável pelo projeto de requalificação do Cais do Ginjal7: “Não podemos perder a memória do Cais do Ginjal, a espetacularidade que ele ainda conserva. Transformar, recuperar, inventar”. Nesse contexto, os projetos de intervenção urbana investem na identificação e reutilização do patrimônio como um caminho para restabelecer a economia e construir uma nova imagem para a cidade, associada ao lazer e ao turismo. Em Almada, são comuns nas narrativas dos decisores políticos argumentos justificando a implementação de novos espaços como uma forma de dinamização e reabilitação urbanas. Predominam, também, argumentos segundo os quais a cidade está sendo reconstruída para o futuro e valorizando ícones do passado. Convém afirmar que concordo com Arantes (2009), no tocante à ideia de que o termo “patrimônio” designa construções ideológicas. Segundo o autor, a concepção de “patrimônio” – envolvendo edificação e significados a ela atribuídos – pode ser modificada ou abandonada “no constante fluxo da vida coletiva, onde preservação e destruição são faces da mesma dinâmica pela qual as estruturas sociais se reproduzem e se transformam”(2009: 11). A estratégia da Câmara Municipal de Almada, para construir essa nova imagem e reformar algumas áreas que tiveram seus usos modificados e apresentam sinais de degradação ou “abandono”, centra-se na execução de projetos de intervenção que se destacam por meio da reabilitação de edifícios antigos, pedonalização de ruas, reconversão de antigos monumentos e construção de novos edifícios. É comum, no discurso oficial, o apelo Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 74 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES ao desenvolvimento do turismo, do lazer, da cultura e à atração de jovens moradores. A ideia de “qualificação” da vida das pessoas e dos espaços, o aproveitamento das potencialidades da cidade, o respeito pela memória e pelo patrimônio edificado são também apresentados como fundamentais para a reinvenção da cidade. Pensar a cidade sob o ponto de vista dos projetos de “requalificação urbana” e mecanismos de reinvenção do patrimônio, incluindo o industrial, pressupõe compreender que espaços das cidades podem ser apropriados como um meio de gerar riquezas – por esse motivo os “bons projetos” são designados pela potencial capacidade de atração de visitantes ou novos moradores. Encontrar novas formas de desenvolvimento econômico é, na verdade, o ponto fulcral dessas políticas, e a transformação das cidades em pontos turísticos (“turistificação”) é o caminho escolhido. É exatamente esse processo de transformação das cidades, comum à cidade de Almada, que tem impulsionado a “urbanidade em disputa”. A associação entre a “qualificação” dos espaços e os projetos que desenvolvam usos lucrativos – fenômeno inerente a grande parte dos projetos de “requalificação” urbana – tem reduzido a complexidade da dinâmica urbana, especialmente ao promover a privatização do patrimônio, identificando-o ou reinventando-o para o turismo. A concepção de “cidade democrática” – tão cara ao projeto de urbanização construído ao longo dos anos – perde-se na cidade fragmentada, higienizada e consequentemente segregada. Outra característica dos planos de “requalificação”, perceptível na cidade de Almada, é a propagação de uma “urbanidade utópica”. Esse fato é decorrente de uma “fetichização da estética da arquitetura” presente na apresentação de projetos, seja nos fóruns de participação, nos sites oficiais ou nas propagandas da Câmara Municipal. A expressão “cidade do espetáculo” (BOYER, 1996) é ilustrativa dessa “cidade projetada”, ou seja, a cidade é fortalecida com apelo ao efeito visual.8 Nesse sentido, os projetos dos arquitetos são apropriados pelos gestores para apresentar a cidade “ideal”, limpa, bem planejada e com atributos de beleza e harmonia. Porém, enquanto os gestores explanam uma política urbana que “prediz” o futuro através da visualização de imagens que geram cenários alternativos para a realidade atual, habitantes da cidade manifestam nos fóruns de participação opiniões de que a política urbana desenvolvida em Almada está a destruir a cidade, criando obstáculos à mobilidade e implementando requalificações utópicas. Ou seja, os discursos desses habitantes manifestam uma discordância com as narrativas dos gestores e consideram “ilegítima” a idealização de uma cidade requalificada, reabilitada, renovada, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 75 disciplinada e moderna. Na minha interpretação, esse fenômeno acirra a “urbanidade em disputa”, ou seja, existe um desacordo entre habitantes da cidade e gestores. Dessa forma, percebo que a divulgação dos planos arquitetônicos, além de apresentar aos potenciais usuários os espaços projetados, manifesta uma ideia de cidade e de uma política urbana com características utópicas. Como pode ser percebido nesta definição de usos no espaço “requalificado”, proferida pela Presidente da Câmara Municipal, práticas sociais de um tempo pretérito são ressaltadas como legítimas para os novos espaços: “Com a requalificação da Rua Cândido dos Reis as crianças vão poder saltar a corda e brincar de roda na rua, andar de bicicleta e de triciclo”.9 A “QUALIFICAÇÃO” DOS USOS NA CIDADE REINVENTADA Em meio a muitos projetos apresentados pela Câmara Municipal para diferentes áreas da cidade, a freguesia de Cacilhas – uma das mais antigas, situada nas margens do Tejo, de frente para a cidade de Lisboa – foi eleita como o lugar ideal para a implementação de muitos desses projetos que visam a modificar os usos e consequentemente a imagem da urbe. A partir da leitura das narrativas referentes aos projetos de intervenção em Almada, apresento, a seguir, como tem se dado a relação entre a identificação, a reutilização do patrimônio e a “qualificação” dos usos na cidade. Abordo também outros conceitos e critérios que estão sendo aplicados para o estudo desta questão em outras cidades. Esta análise foi desenvolvida com base na observação da apresentação dos seguintes projetos: o plano de intervenção Almada nascente – cidade da água, que visa a construir uma “nova cidade” às margens do Tejo; o Plano pormenor de reabilitação urbana e funcional de Cacilhas, que tem como objetivo “qualificar” a área de Cacilhas, definida nos discursos oficiais como “a porta de entrada da cidade”; o Projeto de requalificação da rua Cândido dos Reis, que defende a “qualificação” dessa rua criando condições de desenvolvimento de recreio e de lazer; e o Plano de pormenor do Cais do Ginjal, que tem como objetivo preservar a memória do cais e a espetacularidade que ele ainda conserva. PLANO DE URBANIZAÇÃO ALMADA NASCENTE – CIDADE DA ÁGUA Na apresentação do Plano de urbanização Almada Nascente – Cidade da Água, os gestores de Almada ponderam que a “qualificação” da antiga Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 76 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES área industrial da cidade será realizada através da transformação desse espaço, por meio da integração das seguintes componentes estratégicas: “Um lugar para trabalhar”, “um lugar de relação com a água”, “um lugar para habitar”, “um lugar de cultura” e “um lugar de conhecimento”. Para os gestores, a efetivação dessa estratégia será alcançada por meio da escolha de “marcos urbanos”, da valorização do “ambiente fabril” e da preservação da “maquinaria de grande porte”, remanescente do antigo estaleiro naval da Lisnave. Nesse processo de “requalificação”, os elementos identificados como “patrimônio industrial” passam a ter um sentido exclusivamente estético, na maioria dos casos, e podem ser definidos como estratégias para a construção de ícones da cidade, por meio do enaltecimento de elementos emblemáticos. A análise dos discursos oficiais revela que esse modelo de intervenção urbana, que associa espaços da cidade a áreas de interesse patrimonial, faz parte de um processo comum a diversas cidades e se destaca por “enobrecer” os espaços reinventados. No caso da cidade de Almada, o ambiente industrial, fortemente presente na memória da urbe, será transformado em um espaço com “boas práticas” de sociabilidade, relacionadas ao lazer, à cultura e ao turismo. A exposição de projetos de novos espaços acompanhados de uma valorização estética da arquitetura está a ser questionada nos discursos dos habitantes. Na verdade, a idealização de novos espaços vai de encontro à ideia de cidade para os utilizadores da urbe. Como pode ser notado nas exposições de participantes dos fóruns, as críticas assentam numa inconformidade com a idealização de futuro dos discursos oficiais. Baseando-se numa descrição dos espaços urbanos “observados”, ou seja, em áreas que se encontram degradadas, sujas ou vazias, esses habitantes da cidade demonstram a existência de um conflito simbólico entre uma narrativa prospectiva e outra etnográfica, ou seja, baseada na observação cotidiana. Informações sobre o processo de intervenção em antigas zonas industriais de cidades como Lisboa, Barcelona e Bilbao nos ajudam a perceber como a busca de uma nova configuração da cidade, baseada no “embelezamento estratégico”, tornou-se a fórmula de regeneração urbana e econômica para a “invenção” da “cidade pós-industrial” – especialmente de espaços que, segundo diferentes narrativas, estavam em decadência ou degradação. No caso emblemático de Barcelona, a transformação de espaços industriais em zonas pós-industriais teve como base a indústria cultural para fins de turismo. Mas essa mudança produziu-se principalmente no espaço físico (BALIBREA, 2003). Nessa cidade, foram feitos grandes Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 77 investimentos “privilegiando as zonas em que o património arquitectónico podia ser rentabilizado como atração turística” (idem, p. 4). A essas obras de reabilitação juntou-se a proliferação de novas intervenções assinadas por arquitetos de renome como Norman Foster, Richard Meier, Santiago Calatrava, entre outros. Em relação à cidade de Bilbao, o antropólogo basco Zulaika (2001), ao analisar o processo de edificação do Museu Guggenheim, descreve a capital do país Basco como uma “cidade dura”, the tough city. Segundo Zulaika, o escultor Richard Serra e o arquiteto Frank Gehry visualizaram Bilbao como o espelho de um terreno baldio do capitalismo industrial de ruínas e devastação ecológica. Esse autor ressalta também que, se não fosse a força visual espetacular das suas ruínas, Bilbao seria uma típica cidade provinciana europeia, exalando um estilo de vida burguês. Ou seja, as ruínas de indústrias, que contribuíram para o desenvolvimento econômico da cidade durante décadas, foram aproveitadas como um potencial para a construção de uma nova imagem. No caso de Lisboa, Claudino Ferreira (2005) constatou que o “programa urbano” da Expo’9810 garantia impactos sociais relevantes, como a recuperação de uma “zona degradada” da cidade e a criação de uma nova centralidade dinamizadora do desenvolvimento urbano. Para esse autor, o projeto da Expo’98 incorporou o paradigma de articulação da cidade com o rio, “um modelo marcado por uma concepção privilegiadamente lúdica da utilização das zonas ribeirinhas e pela substituição das antigas funções portuárias por funções comerciais ligadas ao lazer” (2005, p. 450). Nesses três casos paradigmáticos, podemos constatar como os programas de “requalificação urbana” se apropriaram do patrimônio industrial para construir uma nova imagem das cidades. Cultura, turismo e lazer podem ser considerados a base dessa receita de reinvenção de espaços urbanos; porém, outros aspectos importantes para a reinvenção desses espaços são os novos sentidos atribuídos às ruínas industriais. Assim, é possível afirmar que o papel do patrimônio industrial nas políticas de “requalificação urbana” consiste na reutilização das ruínas industriais, descontextualizando-as de suas funções pretéritas, mas utilizadas como “marcos” simbólicos dos novos espaços urbanos.11 Sendo os espaços urbanos inseparáveis dos eventos que neles ocorreram, a “reutilização do património industrial” ilustra uma interrupção da temporalidade linear, fragiliza o tempo presente e torna “plástico o seu sentido” (FORTUNA; BARREIRA; BEZERRA; GOMES, 2013). A ideia da cidade “qualificada” presente nas narrativas sobre o Plano de UrbaniRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 78 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES zação Almada Nascente é vista como o caminho para proporcionar uma nova imagem dessa cidade. Nesse processo, o passado industrial tem sido fundamental na construção da “cidade do futuro”. PLANO DE PORMENOR DE REABILITAÇÃO URBANA E FUNCIONAL DE CACILHAS Segundo os decisores políticos de Almada, o Plano de Pormenor de Reabilitação Urbana e Funcional de Cacilhas tem como objetivo a “qualificação e patrimonialização” da área de Cacilhas, definida nos discursos oficiais como a “porta de entrada” ou o lugar de “chegada de turistas que vêm de Lisboa”. Para o arquiteto responsável pelo projeto, “Cacilhas terá que ser o ponto de encontro de Almada unindo turismo, habitação e comércio”.12 Os critérios utilizados na identificação e reutilização do patrimônio não são consensuais entre gestores, arquitetos e habitantes, e esse fato pode influenciar a concepção de “qualificação” dos usos nos futuros espaços da cidade. Nesse contexto, a produção do espaço, na cidade reinventada, está a ser negociada em meio a conflitos de interesses. É comum, por parte de habitantes, a acusação de que existem critérios arbitrários na identificação do patrimônio, como, por exemplo, no caso do moinho que será destruído, independentemente dos apelos de alguns antigos moradores, que justificam a permanência desse equipamento devido à atribuição de um valor patrimonial; segundo eles, esse valor está associado à história do lugar, e ressaltam o fato de o moinho existir na localidade há tempos imemoriais, pois não há informações precisas sobre a data da sua construção. Apesar desses apelos, o arquiteto responsável afirmou que só ele teria autoridade para definir o que era patrimônio e, por esse motivo, o equipamento seria destruído e feito outro igual em outro local. Ressalte-se que esse mesmo moinho é classificado no site da freguesia de Cacilhas como patrimônio. Por outro lado, equipamentos que existiram na localidade estão a ser reconstruídos, como foi o caso de um chafariz que, segundo os gestores, foi implementado atendendo a apelos da população – ou seja, foi construído um pastiche, sem valor patrimonial para os arquitetos. Há também o caso de retorno de ícones do passado, como um farol, que já existiu na localidade, foi transferido e agora foi reimplantado e reinaugurado como um patrimônio da cidade. Estes exemplos de identificação e reutilização do patrimônio são definidos nos estudos urbanos como uma estratégia de “enobrecimento dos lugares” (RUBINO; FORTUNA; PEIXOTO, 2009) e revelam, segundo Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 79 Fortuna (2009), a ambiguidade das estratégias que envolvem o processo: “conservar para ser moderno e modernizar para ser antigo”. Esse processo pressupõe uma sensibilidade muito própria com relação ao tempo presente da cidade, o que se encontra irremediavelmente associado à atual falência da linearidade do tempo passado-presente-futuro, além de assinalar a simultaneidade de tempos e de ritmos urbanos constitutivos da cidade palimpsesto (FORTUNA, 2009). PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DA RUA CÂNDIDO DOS REIS O projeto de Requalificação da rua Cândido dos Reis foi apresentado como uma estratégia de “qualificação” dessa área da cidade. Nesse sentido, os discursos dos decisores públicos e arquitetos defendiam que a pedonalização13 da rua principal desse espaço da cidade seria a melhor forma para o desenvolvimento do turismo, da cultura e do lazer. Segundo a Diretora do projeto Parcerias e desenvolvimento local,14 a “requalificação” da rua Cândido dos Reis seria pautada por reformas que tornariam mais visíveis edifícios identificados como patrimônio histórico da cidade, como a Igreja de Nossa Senhora do Bom Sucesso e o antigo posto dos bombeiros de Cacilhas, transformado no Centro Municipal de Turismo. Outra característica apresentada no projeto foi a justificativa da pedonalização da rua como uma forma de dinamização daquele espaço. Esse plano incluiu o incentivo fiscal à reabilitação das fachadas dos edifícios e ao desenvolvimento de atividades culturais e gastronômicas. Nesse sentido, os gestores passaram a ser responsáveis por organizar festivais gastronômicos, concursos de: “melhor vitrine” das lojas, “melhor restaurante”, “melhor feira de artesanatos”, além de outras atividades culturais, como forma de atrair mais visitantes. Nesse projeto de “requalificação”, os discursos dos gestores e arquitetos associam a “qualificação” dos usos à intervenção espacial, à reinvenção patrimonial e ao desenvolvimento de atividades relacionadas a arte, cultura e gastronomia. Como definem Leite e Peixoto (2009), nesse processo de identificação e reinvenção patrimonial, o “património funciona como alegoria”, dado que o esplendor e a qualidade urbanística dos espaços em que ele se exibe ou é projetado, as cores garridas das fachadas recuperadas, os equipamentos que são reformados ou construídos, contrastam com o resto da cidade que os envolve e torna-os bens investidos de um valor patrimonial. Esse processo de “requalificação” ilustra a ideia de que vivemos uma espécie de “museulogização da vida urbana”, através da invenção de Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 80 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES tradições: “A museulogização da vida urbana é um dos mais recorrentes exemplos do privilégio concedido à ‘invenção’ de tradições locais baseada numa aguerrida política de conservação patrimonialista do passado” (FORTUNA; BARREIRA; BEZERRA; GOMES, 2013, p. 265). A noção de patrimônio na cidade de Almada, para gestores e arquitetos, está sendo reinterpretada no sentido de uma nova apropriação do lugar e com estratégias diferenciadas no uso desse patrimônio. Como foi definido por Fortuna, Barreira, Bezerra e Gomes (2013), em relação à revalorização patrimonial em Fortaleza e Coimbra, as cidades ora apostam numa estratégia de valorização patrimonial soft, mais reformista, com objetivos de maior adaptação entre passado e presente, ora apostam numa valorização hard, mais conservadora e mais afinada com o que poderia ser considerado expressivo da história e da memória da cidade. Utilizando esse argumento, posso afirmar que em Almada os gestores e arquitetos se apropriam de estratégias soft e hard. Ao “requalificarem” espaços da cidade, pela incorporação de novos equipamentos em zonas classificadas como históricas, as intervenções podem ser definidas como soft, na medida em que ajustam o tradicional ao moderno com o objetivo de imprimir alternativas de utilização em zonas “degradadas”, por meio de atividades de lazer e cultura, que de forma flexível são associadas ao cenário urbano. E utilizam também estratégias de natureza hard, definidas como uma tentativa de “congelamento” do passado das cidades. São edificações consideradas como ícones emblemáticos que se tornam intocáveis por lhes ser atribuído o sentido de guardião da memória. PLANO DE PORMENOR DO CAIS DO GINJAL O Plano de pormenor do Cais do Ginjal tem como objetivo o desenvolvimento de “indústrias criativas” na área que abrange a encosta do rio Tejo. Nesse sentido, o projeto prevê a recuperação dos edifícios patrimoniais em ruínas e o aproveitamento dos “vazios”, na encosta do rio, para a instalação de ateliês de arquitetura, publicidade, design, zonas de restauração, comércio, pequenos hotéis e habitações para jovens moradores. O conceito de “cidade criativa” (LANDRY, 2000) pode ser ilustrativo desse modelo de intervenção que conduz a uma “higienização” do espaço urbano. Assim como no processo de gentrification ou “enobrecimento”, os “criativos” seriam os responsáveis por uma “qualificação” do espaço. Nesse contexto, a implementação de “indústrias criativas” é apresentada como uma estratégia para atrair uma população jovem e assim desenvolver a arte e a cultura na Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 81 cidade. Como pode ser visto na fala da Presidente da Câmara Municipal, é necessário intervir no espaço para atrair “pessoas mais qualificadas”: “É preciso reabilitar, qualificar, diversificar, trazer pessoas jovens, ateliês, refuncionalizar alguma área”.15 Malcolm Miles, ao desenvolver a ideia de “cidade pós-criativa”, enfatiza que a política urbana que consiste em desobstruir as áreas desindustrializadas para promover a urbe, como um centro criativo ou de inovação tecnológica, transforma a cidade num foco de atração para a “classe” criativa; porém, essa ênfase na cidade criativa, segundo ele, é colocada na “cultura consumista”, construindo identidades através de um consumo de elite. Para o autor, [...] as ante-estreias de museus e outros eventos artísticos proporcionam um espaço para a exibição do estatuto de criativo, mas o aparecimento de uma nova classe de colecionadores entre os profissionais dos setores financeiros e dos meios de informação e comunicação, por exemplo, tem mais influência no futuro da cidade pós-industrial (MILES 2012, p. 4). Nesse contexto, a legitimação econômica se sobressai em detrimento de maior coesão social. Em Almada, assim como em diversas cidades que vivenciam processos de “requalificação”, incentivando os usos por parte de “criativos”, a identificação e a reutilização do patrimônio exprimem um otimismo artificial, maquiando áreas em que a degradação espacial abriga usos indesejados para a cidade. Como afirma Sharon Zukin (1995), controlar as várias culturas das cidades aponta para a possibilidade de controlar todo tipo de “mal urbano”. Para Zukin, os criadores de imagens fixam uma identidade coletiva e, ao aceitarmos estas identidades sem questionarmos as suas representações da vida urbana, corremos o risco de sucumbir a uma cultura visual atraente e privatizada. Esses projetos de intervenção na cidade de Almada podem ser o indicativo de como as políticas de “requalificação” urbana abrigam em si uma atribuição de “usos legítimos” para espaços com valor patrimonial. Nesse sentido, é patente a existência de narrativas que enaltecem ou depreciam os espaços a partir de práticas sociais. Assim, a ideia de patrimônio está tão relacionada ao tipo de uso destinado aos espaços projetados que usos definidos como “não legítimos”, para determinados habitantes, podem “despatrimonializar”, mesmo que de forma efêmera, espaços urbanos. A concepção de “qualificação” dos usos na cidade reinventada, presente nas narrativas dos diversos projetos de intervenção em Almada, é representada por meio Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 82 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES da relação de práticas no âmbito da cultura, do consumo, do turismo e do lazer. Esse fenômeno tem levado a atribuições de “usos legítimos” ou “não legítimos” nos espaços “requalificados” e poderá tornar a segregação espacial um elemento cada vez mais presente no futuro das cidades reinventadas. Os projetos de requalificação que partilham a concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas” – presente na política urbana da cidade de Almada – são responsáveis pelo que estou definindo como “urbanidade em disputa”. O uso de expressões como: propaganda artificial, imagem virtual, destruição da cidade, requalificação parva e mentira, para se referir à política urbana da cidade, alinham-se na ideia de que a “qualificação” dos espaços, a partir de projetos de intervenção, não é consensual; ou seja, as classificações negativas enfatizam um caráter virtual dos planos de intervenção e salientam a concepção segundo a qual a requalificação urbana é geradora de uma disputa. APRENDENDO COM ALMADA No livro Learning from Las Vegas (VENTURI, 1972), a ideia suprema da geração modernista, less is more, célebre frase de Mies van der Roh, é contestada por meio da afirmação irônica: less is a bore. Segundo Rubino, por causa dessa provocação de Robert Venturi, [...] houve quem considerasse esse livro o manifesto de uma arquitetura includente – mas não era a inclusão social preconizada por Jane Jacobs poucos anos antes. A inclusão não era de atores sociais e suas subjetividades, e sim da subjetividade do arquiteto e seus ‘gostos’, ainda que muito bem informados (2003, p. 2). A partir da análise de projetos de intervenção em Almada, percebo que a “lição de Las Vegas”, especialmente a ideia preconizada por Robert Venturi de que “o menos é chato” – pode contribuir com o diálogo sobre políticas urbanas e o processo de reinvenção daquela cidade. As narrativas de arquitetos nos fóruns de participação – afirmando que tal processo passa por “enaltecer símbolos emblemáticos”, “patrimonializar”, “enobrecer” ou “qualificar”, construindo ou reformando edifícios e monumentos – revelam que se vive em Almada um tempo em que “o mais é mais”. Ou seja, ali, a reinvenção da cidade passa por um forte apelo ao simbólico com a apresentação de projetos que envolvem uma valorização da estética da arquitetura e a construção de ícones emblemáticos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 83 Porém, a pesquisa etnográfica nos fóruns de participação demonstrou que essa sobreposição da estética é, muitas vezes, contestada pelos habitantes da cidade. A partir da apreciação desse fenômeno, apresento a seguir algumas “lições” que Almada pode nos “ensinar” sobre o processo de requalificação e como essas intervenções estão a gerar tensões em relação aos usos programados para os novos espaços. Os planos de requalificação em Almada desempenham papel irelevante na atribuição de valores aos espaços ou edificações passíveis de tornarem-se patrimônios. Tais projetos definem o que deve ser preservado, remodelado ou construído na cidade. Porém, um outro papel importante das narrativas elaboradas pelos arquitetos é a capacidade de seduzir os gestores. Estes, desejosos por um percurso que conduza à configuração de uma cidade ideal, no sentido urbanístico, estético e especialmente com soluções para as lacunas econômicas que surgiram com o fim da cidade industrial, utilizam projetos arquitetônicos e planos urbanísticos como propaganda de políticas urbanas. Nesse contexto, os projetos arquitetônicos se convertem em elemento central para a legitimação de políticas urbanas que têm como componente principal a criação de novas centralidades e, por essa via, a mudança de imagem da cidade. Esses profissionais são uma espécie de porta-estandarte dos decisores políticos, e o ofício deles é assegurar a construção das narrativas adequadas para justificar o novo conceito de cidade. Como afirma La Cecla (2011, p. 32), “o arquiteto pousa a sua capa sobre a cidade para garantir que a cidade está na moda”. Nos diversos projetos de requalificação de Almada, importam menos as apropriações vernáculas e mais as intervenções com capacidade para atrair novos utilizadores. Para essa ideia de cidade, a estética é a palavra de ordem. Contudo, o paradoxo principal desse fenômeno são os critérios, ou a falta deles, na identificação de patrimônios, o que gera uma “urbanidade em disputa”, especialmente no âmbito de conflitos existentes nas representações do patrimônio, por parte de gestores, arquitetos e habitantes, na cidade. Para os gestores, a patrimonialização está relacionada à preservação ou construção com o objetivo de “qualificar” os usos nos espaços urbanos, com base no apelo ao visual. Segundo Malcolm Miles (2012, p. 14), “tal como a arte pública, o espaço público parece estar a ser colonizado pelo enobrecimento urbano”. Dentro desta lógica de intervenção no espaço urbano, os arquitetos defendem que edificações que foram ícones da cidade no passado e já não existem na localidade devem retornar como um elemento de interesse patrimonial e estético, como é o caso do farol que foi reimplantado em Cacilhas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 84 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES Nesse sentido, o patrimônio é cada vez mais apresentado como a expressão material de uma ideia pacífica de espaço público; supõe-se, aí, a ideia de passado comum e de tradições compartilhadas (LEITE; PEIXOTO, 2009). Neil Leach refere que estamos na “era da estetização.” Para esse autor, nessa era, o lado menos agradável da arquitetura, ganha capacidade de criar respostas aparentemente paradoxais, ao ponto de se considerar esteticamente apelativo algo que, à primeira vista, não parecia atrativo. Nesse processo, antigas instalações industriais de aspecto degradado podem tornar-se enobrecidas; velhas fábricas podem ser transformadas em apartamentos; centrais elétricas em museus nacionais; armazéns de zonas portuárias em restaurantes gourmet, ou seja, “tudo o que é repugnante e áspero parece prestar-se à estetização” (LEACH, 2005, p. 34). Nesse conceito de cidade o importante é a construção de símbolos que exaltem a urbe. Todavia, esses profissionais não são convidados pelos gestores para se dedicarem também aos impactos sociais que podem decorrer das intervenções; daí a emergência da “urbanidade em disputa”. Nas palavras de Neil Leach (2005, p. 28), “a tendência para privilegiar a imagem serve para distanciar os arquitetos dos utilizadores dos respectivos edifícios, pois incentiva os primeiros a adotar uma aparência estética desfasada das preocupações dos utilizadores”. Os “espaços cenários” apresentam-se aos olhos dos decisores políticos como uma solução atrativa para os diversos problemas que a “cidade real” manifesta no quotidiano. Essa concepção de espaço urbano, reproduzida nas narrativas oficiais, é legitimada pela assinatura e genialidade de um arquiteto. Nesse sentido, a identificação e a reutilização do patrimônio articula questões referentes à atribuição de valores e a conflitos que se estabelecem a partir desse processo. Como afirma Arantes, “a produção do património é, no fundamental, uma questão de atribuição de valores e construção de sentidos. Portanto, diferença, diversidade e conflito lhes são absolutamente inescapáveis” (2009, p. 16). Em Almada, os fóruns de participação se constituem lugar de expressão desses conflitos ou da “urbanidade em disputa”. De um lado, estão os gestores e os arquitetos que apresentam a cidade com ênfase nos léxicos “requalificar”, “reabilitar”, “revitalizar”, “construir”, “renovar”, “modernizar”, “disciplinar” e “futuro”; e, do outro, os habitantes que manifestam preocupações com o planejamento urbano e o quotidiano da cidade. Os discursos desses atores sociais são permeados, dentre outras, por críticas quanto a: “mobilidade urbana”, “acessibilidade”, “segurança”, “estacionamentos” e “poluição sonora”; ou seja, existe em Almada uma disputa entre valores. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 85 CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de reinvenção da cidade de Almada, aqui apresentado, é recorrente em diversos espaços urbanos e é conduzido por diferentes estratégias políticas de intervenção. Porém, seja por meio de investimentos resultantes de grandes eventos – como foi o caso das Olimpíadas de 1994, em Barcelona, e da Expo 98, em Lisboa; da instalação de grandes obras arquitetônicas, como o Museu Guggenheim em Bilbao, inaugurado em 1997 –, da revitalização de centros históricos em diversas cidades do Brasil, nos anos 1990, ou de “reconfiguração” das cidades, tornando áreas “degradadas” alvos de projetos de “requalificação”, como é o caso de Almada, o modelo de intervenção baseado no desenvolvimento de cultura, turismo e lazer se constitui alicerce desse processo de transformação urbana. Como afirma Malcolm Miles (2012, p. 2), As estratégias urbanas de base cultural estribaram-se, em grande medida, numa seleção de imagens das cidades e não no conjunto de experiências e percepções sensoriais que refletem um urbanismo social e etnicamente diverso. A partir da Europa Ocidental, o modelo da cidade cultural difundiu-se pela Europa de Leste depois da queda do muro de Berlim, em 1989, e está também hoje em dia amplamente presente na Ásia, Austrália e América Latina. Promove-se a cidade cultural como uma cidade vibrante, na qual os novos setores económicos, nomeadamente os da informação, comunicação e serviços financeiros, substituem a produção fabril, podendo também regenerar o espírito das cidades. Nos diversos casos de intervenção urbana, esse modelo de “requalificação” tem em comum a conversão de espaços da cidade em áreas de interesse patrimonial, especialmente pela adoção do caráter de “enobrecimento”, típico deste formato, que determina que os espaços públicos devem ser ocupados por “boas práticas” de sociabilidade. Porém, o problema é que, apesar de as diversas estratégias – baseadas em cultura, turismo, lazer, arte, gastronomia, atração de jovens moradores, town houses ou estabelecimentos ligados à indústria cultural – serem apresentadas como tendo a capacidade de regenerar os centros degradados e as zonas desindustrializadas, na verdade estão a promover uma redução da complexidade da vida urbana e a privatização do patrimônio. Ou seja, os benefícios públicos são mínimos frente aos interesses econômicos e comerciais, como a valorização de emRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 86 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES preendimentos imobiliários, e esse fato fortalece os desejos das velhas e novas elites econômicas urbanas. Segundo Malcolm Miles (2012, p. 2), “a cidade cultural é uma cidade de empreendimentos imobiliários, que beneficia com a desregulamentação e a redução da escala e do âmbito da intervenção estatal na cidade”. O exame das diferentes atribuições de valores e da consequente “disputa” na identificação do patrimônio se constitui numa questão contemporânea relativa às transformações urbanas e ao modo como se apresentam e executam projetos de “requalificação” nas cidades. A discordância entre espaço projetado e “espaço praticado” (CERTEAU, 1994) também compõe o modelo atual de urbanidade. Fortuna (2009) fala em um afastamento gradual e de “não coincidência” entre o território urbanizado da cidade e o modo como se estruturam as práticas, mentalidades e relações sociais que ali se desenrolam. Para este autor, a “não coincidência” é uma demonstração da contínua “re-invenção” do urbano e leva a um “palimpsesto teórico” da cidade. A partir de pesquisa etnográfica, constato que a ideia de “qualificação” dos usos na cidade, presente nos discursos de gestores e arquitetos, conduz a uma inversão das conquistas que a noção de urbano oferece ao cidadão. Percebo que a configuração da cidade contemporânea, ou pós-industrial, atende aos interesses de uma lógica de valorização imobiliária, dependente, cada vez mais, de iniciativas privadas ou de parcerias público-privadas. Assim, enquanto as cidades vão competindo entre si por investimentos ligados a turismo, cultura e lazer, os espaços urbanos estão numa dinâmica de “re-requalificação”. Nessa lógica de urbanidade, investidores ocupam a cidade, gerando trabalhos temporários para pessoas qualificadas, com “boa aparência” e que falam vários idiomas, em detrimento do “habitante comum”, que é “convidado” a migrar para outras áreas da urbe. Como notas conclusivas, a partir desta experiência na cidade de Almada, posso afirmar que a percepção de uma “urbanidade em disputa”, existente entre gestores, arquitetos e habitantes, resulta da diferença entre uma “descrição prospetiva ou uma descrição etnográfica” da cidade (BEZERRA, 2013). As narrativas sobre o que deve ser mantido, modificado e construído na cidade são inseparáveis dos diversos interesses dos atores sociais. Percebi também que a existência de muitos protestos, com denúncias de destruição da cidade, e também manifestações individuais de descontentamento, por parte de comerciantes e empresários, com a mudança no panejamento da cidade, demonstram que a dinâmica própria da cidade, que envelhece junto com os habitantes, não é respeitada nesse processo de reinvenção urbana. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 87 No contexto de cidades pós-industriais, é importante refletir também sobre quem são e o que fazem os habitantes desses espaços urbanos. É necessário situar o processo de “requalificação” numa perspectiva analítica mais ampla, pois as narrativas sobre o êxito ou o fracasso da implementação de planos de “requalificação” estão dependendo do papel social de seus autores, e a “qualificação” de usos é consoante ao consumo. Assim, se de um lado, assistimos à apresentação de projetos que oferecem uma cidade com características utópicas, com harmonia nos usos e apropriações, por outro lado, corremos o risco de viver em cidades em constante “disputa”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 88 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES NOTAS 1 Em Portugal, compete por lei ao Instituto de Gestão do Património Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) propor a classificação dos bens culturais imóveis de âmbito nacional. Cabe-lhe, assim, a definição dos critérios a serem utilizados no processo: critérios de caráter geral – histórico-cultural, estético-social e técnico-científico; e de caráter complementar – integridade, autenticidade e exemplaridade do bem. Assim, possível encontrar-se, hoje, maior incidência de classificações de objetos e conjuntos arquitectónicos de tipologias mais variadas, tais como: a arquitetura modernista e do movimento moderno, a arquitetura vernacular, os sítios arqueológicos, as cercas monásticas, os jardins históricos, a arquitetura do espetáculo, a arquitetura industrial etc. O ato de classificação exige uma tramitação rigorosa (recentemente alterada com a publicação do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, que entrou em vigor em janeiro de 2010). 2 A pesquisa etnográfica nos fóruns de participação em Almada, entre os anos 2010 e 2013, foi desenvolvida no âmbito do meu pós-doutorado no Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra. 3 A cidade de Almada tem cerca de 101.500 habitantes, pertence ao distrito de Setúbal e está dividida em 11 freguesias. Almada deixou de ser uma cidade industrial nos anos 1990; tem muitos espaços degradados, especialmente nas antigas instalações ligadas à indústria naval e a outras indústrias nas margens do rio Tejo. 4 Os Fóruns de Participação realizam-se para a apresentação de projetos estratégicos e planos de “requalificação”. Em Portugal, os fóruns são uma exigência institucional; neles são convidados a intervir habitantes das cidades e pessoas interessadas nos planos, podendo estas apresentar dúvidas, sugestões, ideias e reclamações. Dos fóruns participam também os membros da equipe técnica responsável pelos trabalhos, além de técnicos e gestores da cidade. 5 O Plano Diretor Municipal (PDM) é o principal instrumento de gestão territorial da cidade de Almada; estabelece a estratégia de desenvolvimento territorial, a política municipal de ordenamento do território e as demais políticas urbanas. O PDM define o regime de uso do solo através da sua classificação e qualificação, regulando o seu aproveitamento em função da utilização dominante que nele pode ser instalada ou desenvolvida, fixando os respectivos usos e, quando admissível, edificabilidade. Constitui-se em Unidades Operativas de Panejamento e Gestão (Unop) e é também um instrumento de referência para a elaboração dos demais planos municipais e para o estabelecimento de programas de ação territorial. 6 A designação toponímica de Almada advém da palavra árabe Al-madaan, a mina, e está associada à exploração e à lavagem de ouro das margens do Tejo. 7 O Cais do Ginjal é uma área ocupada por antigos armazéns à margem Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 ROSELANE GOMES BEZERRA 89 do rio Tejo. Hoje, encontra-se com muitos prédios em ruína, em risco de desabamento, ocupados ilegalmente. Nessa área encontra-se também dois restaurantes que oferecem aos clientes uma vista panorâmica para o Tejo. Além disso, é uma área muito utilizada por pescadores. 8 Como “cidade do espetáculo”, Boyer (1996), refere-se à cidade projetada que emerge com o desenvolvimento da comunicação eletrônica e digital, com suas paisagens construídas por computador e imagens que podem agora se decompor em pedaços e partes que transformam a imagem da cidade em forma efêmera, diretamente influenciada e imaginada por uma visualidade diferente. Nesse caso, a cidade e sua arquitetura são (re) trabalhadas em composições e recomposições de imagens. 9 Fórum de participação, Requalificação da Rua Cândido dos Reis, realizado no dia 25 de maio de 2010. 10 A EXPO’98 – ou, oficialmente, Exposição Internacional de Lisboa de 1998, uma edição da Exposição Mundial, sediada em Lisboa e cujo tema foi “Os oceanos: um património para o futuro” – realizou-se de 22 de maio a 30 de setembro de 1998. Teve o propósito de comemorar os 500 anos dos “descobrimentos portugueses. 11 Patrimônio industrial foi definido, na Conferência de 2003 do Comité Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (The International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage – TICCIH), como os vestígios de cultura industrial com valor histórico, tecnológico, social, arquitectónico ou científico. Estes vestígios podem englobar edifícios, maquinaria, oficinas, fábricas, minas, armazéns e meios de transporte, assim como os locais onde se desenvolveram atividades sociais relacionadas com a indústria como habitação, religião ou educação. 12 Fórum de participação: Plano de Pormenor de Cacilhas, no dia 21 de janeiro de 2010. 13 Transformação de uma rua em um espaço para pedestres e ciclistas, proibindo o trânsito ou o estacionamento de carros. 14 Fórum de participação: Requalificação da Rua Cândido dos Reis, no dia 25 de maio de 2010. 15 Fórum de participação Plano Pormenor do Cais do Ginjal, realizado no dia 14 de junho de 2011. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 90 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES BIBLIOGRAFIA ARANTES, António. Património cultural e cidade. In: FORTUNA, Carlos; LEITE, Rogério Proença (orgs.). Plural de cidade: novos léxicos urbanos. Coimbra: Almedina, 2009. p. 11-24. 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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 92 IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES Palavras-chave: requalificação, qualificação, disputa, reinvenção, narrativas. Resumo Keywords: Rehabilitation, qualification, dispute, reinvention, narratives. Abstract A cidade de Almada, em Portugal, chega ao século XXI como uma cidade pós-industrial, com edifícios em ruínas, espaços degradados e instalações da indústria naval abandonadas. Porém, os sinais da degradação tornaram-se passíveis de reconversão por meio de projetos de “requalificação”. Partindo da observação dos discursos de arquitetos e gestores nos Fóruns de Participação, o objetivo deste artigo é apresentar uma análise da ideia de “qualificação” dos usos na cidade, no âmbito dos projetos de intervenção urbana. O artigo apresenta como a concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas” – comum a diversas narrativas dos planos de intervenção – é reveladora de uma “urbanidade em disputa” e dá pistas para ampliar o debate sobre políticas urbanas e o processo de reinvenção das cidades contemporâneas. The city of Almada, in Portugal, reaches the XXI century as a post-industrial city, with buildings in ruins, degraded spaces and abandoned facilities for the shipbuilding industry. However, signs of degradation became amenable to conversion through “rehabilitation” projects. Starting from the observation of discourses of architects and managers in Participation Forums, the purpose of this article is to present an analysis of the idea of “qualification” of uses in the city, under the projects of urban intervention. The paper shows how the concept of “turning into patrimony in order to qualify spaces and people’s lives,” common to diverse narratives of intervention plans, is indicative of a “disputing urbanity” and gives clues to broaden the debate on urban policies and the process of reinvention of contemporary cities. Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em maio/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92 Tempo, usos e rituais: intervenções patrimoniais em um “centro histórico” Francisco Willams Ribeiro Lopes Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos de Política e Cultura (Lepec/UFC). E-mail: [email protected] Irlys Alencar Firmo Barreira Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do CNPq. É coordenadora do Laboratório de Estudos de Política e Cultura (Lepec/UFC). E-mail: [email protected] INTRODUÇÃO Intervenções urbanas com vistas à conservação ou manutenção de ambientes e monumentos fazem parte da lógica que preside as políticas de patrimônio em cidades contemporâneas. Implicam acionamento de práticas simbólicas de classificação que segmentam áreas, afirmando a “história”, em oposição a locais considerados “descaracterizados” ou “degradados”. As noções de uso e patrimônio, segundo aportes conceituais de alguns autores, foram utilizadas como chaves de leitura para entender os processos urbanos de intervenção tomados, aqui, como objeto de análise. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 94 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” O conceito de uso, tal como é tratado por Michel de Certeau, baseia-se, fundamentalmente, na crítica à passividade de consumidores típicos da sociedade contemporânea. Os usuários do espaço são dotados de astúcia e são também criadores do cotidiano, subvertendo disciplinas ou regras previstas. São, portanto, protagonistas de movimentos táticos que representam apropriações peculiares do espaço. As regras disciplinares não anulam as práticas cotidianas, na medida em que o “usuário sempre consegue criar para si algum lugar de aconchego, itinerários para o seu uso ou seu prazer, que são marcas que ele soube, por si mesmo, impor ao espaço urbano” (CERTEAU, 2003, p. 42). Nessa perspectiva, o conceito de uso torna-se relevante para se pensar sobre o patrimônio como uma relação dinâmica e histórica entre práticas e regras de preservação do espaço, supondo relações sociais e ações simbólicas (ARANTES, 2006). A tensão entre sentidos – envolvendo coletividades mais abrangentes e outros localmente atribuídos aos bens de natureza diversa, mediados por instituições – torna-se constitutiva do bem patrimonial. As políticas patrimoniais, em síntese, evidenciam instituições, valores e sujeitos sociais. Assim, à sua análise se impõe a necessidade de pesquisas empíricas. A cidade de Fortaleza vem sendo palco de discussões no que concerne às formas de intervenção espacial, envolvendo usuários e instituições que se organizam em torno da “defesa do patrimônio”. No circuito das indagações sobre “o quê” e como preservar o Centro de Fortaleza, encontram-se diferentes espacialidades. Assim, praças e monumentos passam a fazer parte de projetos específicos, aos quais são atribuídas diferentes designações. A Praça do Ferreira, a Praça da Estação e a Praça dos Mártires, entre outras, se constituem objeto de intervenções formuladas para o Centro, gerando práticas e percepções não isentas de tensões entre velhos e novos usos do espaço. Discussões sobre como disciplinar o comércio, impedir a presença de moradores de rua e interditar apropriações ilegais do espaço são frequentes. A reforma urbana realizada na Praça dos Mártires, mais conhecida como Passeio Público, é, nesse sentido, emblemática e se incorporando a uma proposta mais ampla de intervenção no centro histórico da cidade de Fortaleza. Integra um dos projetos construídos pelos poderes municipais, visando promover a “requalificação” da referida área, incluindo praças, monumentos e espaços considerados representativos da história da capital cearense. O Passeio Público é uma das praças mais antigas da cidade, datada de meados do século XIX. Foi construída em um areal próximo ao Forte de Nossa Senhora da Assunção conhecido como Largo da Fortaleza ou Campo da Pólvora, local onde foram executados os mártires de um movimento revolucionário designado Confederação do Equador1. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 95 Após a sua construção como um espaço público, a Praça se tornou o lugar de sociabilidade da elite cearense, em um período definido como belle époque fortalezense (PONTE, 1993). O Passeio Público foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN), sendo também reconhecido como lugar de preservação histórica no âmbito estadual. No final do século XX, passou a ser considerado “degradado”, tendo em vista o desgaste de sua estrutura física e o seu uso, principalmente, por prostitutas e moradores de rua. Tombado em âmbitos federal e estadual, o Passeio Público passou a ser reconhecido também pela Prefeitura Municipal “por sua importância histórica e social para a cidade”, sendo reafirmado como patrimônio em 2006. Na ocasião, foi incorporado ao projeto “Ícones de Fortaleza” que supunha a avaliação do local e encaminhamento de planos de reforma. A Praça também foi incluída na pauta de discussão da Secretaria Extraordinária do Centro (SECE) que visava criar projetos e elaborar propostas para (re) funcionalizar sua utilização2. Em 2007, a Praça tornou-se alvo de projeto de “requalificação”, executado por gestores da Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR) e sob a Coordenação do Patrimônio Histórico Cultural (CPHC), compondo as reformas pensadas para o Centro Histórico de Fortaleza. Eventos e atividades foram acionados no local com o objetivo de substituir usuários e atrair turistas e moradores de classe média. A retomada do Passeio Público como local de intervenção e arranjos patrimoniais dá suporte empírico ao presente artigo, cujo objetivo é refletir sobre as práticas e concepções que circundam o tema da “requalificação”, associadas a conflitos simbólicos, valores e representações sobre a cidade. Uma explanação inicial dos projetos formulados para o local é importante para contextualizar as discussões que subsidiaram as diferentes propostas. A “REQUALIFICAÇÃO” DA PRAÇA DOS MÁRTIRES: “EM NOME DO PATRIMÔNIO”3 As primeiras discussões em torno da “requalificação” do Passeio Público tiveram início na sede da Secretaria Extraordinária do Centro (SECE), em agosto de 2006. Participaram também representantes das seguintes instituições: Instituto de Pesquisas Américo Barreira (IPAB), Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR), Associação Comercial do Ceará (ACC), Colégio Militar de Fortaleza (CMF) e Movimento Amigos do Centro. O quadro a seguir mostra as propostas de utilização do espaço. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 96 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” QUADRO 1 – Propostas para a “requalificação” do Passeio Público de Fortaleza INSTITUIÇÃO Instituto de Pesquisas Américo Barreira (IPAB) Associação Comercial do Ceará (ACC) Colégio Militar de Fortaleza (CMF) Movimento Amigos do Centro PROJETO OBJETIVO Projeto Passeio Novo “Redinamizar a frequência e o uso do espaço do Passeio Público através de uma reconfiguração, no que diz respeito à infraestrutura e a promoção de ações de valorização da importância histórica deste local para a cidade de Fortaleza”. Passeio Público: resgate histórico e cultural “Tornar o Passeio Público uma área de convivência social [...]. Para tanto a Associação Comercial do Ceará [...], responsabiliza-se pela conjugação de esforços e atração de parceiros para a realização deste objetivo”. “Divulgar a história da praça através de eventos culturais que transformem o local em constante ponto de encontro agradável e Projeto de seguro, não só para os fortalezenses, Revitalização da Praça mas também para os turistas, o do Passeio Público que certamente contribuirá para o enriquecimento da cultura cearense e, ainda, ajudará revitalizar o centro velho de nossa cidade. Memorial dos Mártires: Confederação do Equador no Ceará e Memorial do Patrimônio de Fortaleza: Miguel Ângelo de Azevedo Nirez. Não apresentou projeto Fonte: Síntese dos projetos, elaborada por Willams Lopes. Conforme a descrição dos projetos apresentados neste Quadro, observa-se que todas as propostas convergem para os seguintes pontos: 1) As ações envolvem o poder público e outros parceiros, seja da iniciativa privada (da rede hoteleira) ou de instituições acadêmicas como a Universidade Federal do Ceará; 2) As reformas pressupõem mudança da infraestrutura Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 97 da praça, superação de problemas como ausência de segurança, iluminação inadequada, desordenamento de estacionamento para ônibus turístico, abandono do quiosque etc.; 3) As ações são direcionadas para se “redinamizar os usos da praça, torná-la um espaço de integração, sociabilidade e lazer a partir do enfrentamento de questões como o abandono, inadequação do uso, marginalidade e desconhecimento por parte da população”. As projeções de mudança acionaram representações da praça como um lugar “histórico”, acompanhadas de um diagnóstico da situação no momento. Segundo o IPAB – órgão ligado à Câmara Municipal de Fortaleza –, a falta de investimento em infraestrutura e a ausência de políticas públicas para a dinamização dos usos do espaço contribuíram “[...] nas duas últimas décadas do século XX, para que este se tornasse ponto de personagens ‘marginais’, que utilizam o espaço para a prostituição, tráfico de drogas e assaltos, a qualquer horário do dia ou da noite”. Ressalte-se que o diagnóstico da praça assemelha-se a muitos outros formulados para identificar cidades brasileiras (ARANTES, 2000), configurando as transformações que acontecem na totalidade dos centros, com repercussões sobre as formas de ocupação de espaços adjacentes4. De fato, é notório observar a transformação do Passeio Público, ao longo dos anos, tendo em vista o fato de que o local abrigou, no início do século passado, uma elite que o utilizava como espaço de visitação e lazer. Assim, a mudança da frequência de usuários parece ser uma das questões mais evidentes para o diagnóstico da “deterioração”, seguido da classificação de “local inseguro”. Observa-se nos projetos (exceto, o do IPAB) ausência de referência à presença da prostituição que, ao longo dos anos, foi marcante no Passeio Público. A discussão sobre os usuários considerados indesejados, tais como moradores de rua e prostitutas ficou subentendida. Novas ideias de “requalificação do espaço” sugerem a necessidade de incorporação de um público intelectualizado, de classe média que substituiria usuários – os ditos indesejados – para os quais parece não haver outra solução, senão a sua expulsão ou controle. As reuniões ocorridas no âmbito da SECE e da SECULTFOR resultaram em uma proposta de “requalificação” do local, cujo investimento, segundo informações difundidas no jornal Diário do Nordeste, foi fixado no valor de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), tendo como objetivo a reconfiguração urbanística, arquitetônica e paisagística da Praça, envolvendo uma rede de parceiros5. Tal proposta seguia tendências mundiais de políticas de patrimônio, tornando-se também sugestiva de um consumo decorativo. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 98 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” Trata-se de intervenções que retomam o princípio higienizador de Haussmann, de assepsia e limpeza urbana, acrescido de sentidos de patrimônio (LEITE, 2002, 2004). As reformas de: piso, bancos, conjunto de esculturas, fontes, jarros e uma nova iluminação fizeram parte das modificações ocorridas na estrutura física do Passeio Público, visando recompor sua dimensão “histórica”. E o processo de ativação do patrimônio cultural por meio de projetos de “requalificação” buscou dar funcionalidade ao espaço e atrair (novos) usuários, a partir de uma programação semanal de atividades, tais como eventos, atrações culturais e roteiros históricos6. As iniciativas procuravam reativar antigos sentidos perdidos no tempo como os de espaço histórico, cultural e de lazer destinado às famílias de classe média. Enquanto no início do século XX, período da belle époque fortalezense, as políticas urbanas tinham em seus objetivos um viés de promoção da saúde a partir do incentivo a caminhadas e práticas de exercícios no espaço público (PONTE, 1993), as iniciativas atuais seguem outra direção, com a promoção de atividades que realçam a Praça como local para um consumo cultural, principalmente gastronômico, agregando a essa perspectiva a linguagem de visibilidade de bens culturais (JACQUES, 2008)7. A perspectiva de recuperação de prestígio de espaços públicos não é exclusiva de Fortaleza. Sennett (1998), com base em análise de cidades europeias e americanas, considera que o desenvolvimento do capitalismo moderno e a nova “vida pública” diminuíram a importância de centros e antigas praças, como espaços de referência para o convívio social. É nesse sentido que as propostas nomeadas de “revitalização” ganham legitimação, criando tensões entre práticas diferenciadas de ocupação do espaço. Sob a ótica da ideia de preservação, as políticas urbanas têm criado “novas” funções para os espaços públicos, na medida em que os “vazios urbanos” são vistos como uma [...] doença a ser sanada, um erro a ser corrigido, um dano urbano. Todos criticam o sub-aproveitamento do espaço urbano, e propõe grandes “gestos” que resimbolizem esses lugares. São áreas de oportunidade de desenvolvimento econômico, de reestruturação urbana, de transformação da cidade, de locais possíveis para investimentos (MENEGUELLO, 2009, p. 131). Se os vazios urbanos incitam a necessidade de investimentos, os projetos de “requalificação” tanto do Passeio Público quanto de outros lugares Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 99 movimentam uma série de elementos simbólicos. Narrativas provenientes de gestores públicos, de operadores do espaço urbano e rituais para a definição de uma nova funcionalidade associados a outros mecanismos estratégicos são ativados “em nome do patrimônio”. AS NARRATIVAS Os textos informativos, relacionados aos projetos de intervenção, apresentam comumente propostas que parecem pensar o espaço urbano como algo que pode ser modificado segundo a lógica do planejamento. O objetivo de atrair novos usuários é apresentado em substituição a atividades anteriores associadas à ocupação da Praça. O próprio termo “revitalização”, utilizado em algumas intervenções, soa como a inexistência de vida e desconsideração de outras formas de usos. Contrapondo-se a essa concepção, uma moradora do Centro, em reunião convocada pela Planefor8, pronunciou-se contra o termo “revitalização” argumentando estar o local “mais vivo do que nunca”. Ela, moradora antiga, afirmou que não sairia do Centro. As novas atividades, eventos e atrações planejadas para o Centro e, em especial, para o Passeio Público passaram a integrar o “circuito de atividades culturais” da cidade. O “circuito cultural” – expressão nativa que designa uma conjugação funcional de atividades artísticas, musicais e de lazer – consiste na oferta de determinados serviços, visando possibilitar o exercício da sociabilidade, por meio de encontros entre indivíduos supostamente partidários dos mesmos interesses, códigos e valores sociais (MAGNANI, 2002). Panfletos, livretos, notícias nos jornais de maior circulação na cidade e propagandas televisivas da gestão municipal são os principais meios de divulgação de atividades designadas como “culturais”. As narrativas9 veiculadas pelos meios de comunicação, entendidas no sentido de Benjamin (1985) como relatos orais, remetem a mudanças na configuração socioespacial da Praça, relacionadas a uma nova forma de utilização do local, associando-se a presença de usuários e de seguranças. O panfleto divulgado na primeira gestão de permissionários do quiosque, durante pesquisa de campo10, além de divulgar os serviços oferecidos na Praça continha uma informação emblemática: “No mais bonito e agradável local do centro da cidade. E o mais importante: segurança total (Guarda Municipal)”. Nas narrativas em circulação após a “requalificação” do local, encontram-se mensagens recorrentes: “Aqui é seguro”, “Você pode passear tranquilamente” e “Agora tem segurança”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 100 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” Essas narrativas têm como objetivo criar uma nova imagem para a Praça, em contraposição ao estigma de “lugar perigoso” e “área de prostituição”. Além disso, o panfleto mostra uma busca de valorização do patrimônio por meio do lazer, com apelos a eventos como “Feijoada, com música ao vivo”. Outros apelos supõem tornar o local sede de possibilidades de acontecimentos e rituais: aniversários, casamentos, lançamento de livros etc. Outras alusões à Praça aparecem na gestão municipal da prefeita Luizianne Lins (2005-2008), por exemplo, sob o slogan “Fortaleza Bela” que inclui a “revitalização” do patrimônio. A propaganda difundida apresentava o depoimento de um professor – guia de turismo e residente no Centro – sobre a “nova etapa” do Passeio Público: [...] Como professor, eu comecei a descobrir que o Centro era uma sala de aula permanente. Eu sempre tive essa esperança de que as coisas iriam melhorar pra cá, pra região central e, de um modo especial, para o Passeio Público. Então, hoje as pessoas chegam e tem ali um chorinho, uma feijoada, tem uma contação de história, tem jogo de xadrez. Todo domingo a gente vem pra cá, estende uma manta, ela [a esposa] fica na internet, eu dou uma olhada no jornal, a gente passeia com o nosso filho. As pessoas elas... Elas saem daqui com um encantamento reforçado. Viver isso, essa nova etapa é realmente a realização de um sonho pessoal11. Segundo os gestores do patrimônio em Fortaleza, a propaganda sobre a área e seu entorno impulsionou, ainda mais, as atividades realizadas na Praça. O depoimento do professor é acompanhado de imagens de prédios históricos como Paço Municipal, Sobrado Dr. José Lourenço e, também, de eventos festivos. Além disso, visualizam-se crianças em movimento e a presença de “seguranças”, imagens que evocam ideia de tranquilidade e descontração. O próprio professor encenava participação de um piquenique realizado com a esposa e o filho em manhã de domingo. Uma das primeiras iniciativas a integrar as narrativas da história da Praça no contexto das reformas para a “requalificação” refere-se à criação de uma cartilha pelos alunos do Colégio Militar de Fortaleza (CMF), em 2007. A cartilha “Passeio Público: histórias e experiências” contém textos de quatro estudantes do oitavo ano sobre a história, os ícones e o contexto de surgimento da Praça. Os textos exaltam as iniciativas de “requalificação” dos espaços, rememorando antigos usos responsáveis por uma credibilidade perdida ao longo dos anos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 101 Jornalistas constituem uma das categorias importantes de narradores que influenciam a valorização do local, registrando notícias com base em uma temporalidade, referindo-se ao antes, durante e depois da política de “requalificação”. As narrativas expõem significados da praça e, às vezes, jornalistas se apresentam como detentores de uma informação verídica, porque baseada em “fatos”. Nem de longe o reforçado telhado e o cheiro de tinta nova nas paredes lembram fezes, urina, preservativos, pedaços de tecido embebidos de sangue e pontas de cigarro que antes denunciavam as velhas finalidades de um espaço que, na verdade, sempre foi potencialmente cultural (WANBERGNA, 2007, grifo nosso). As gravações de imagens realizadas pelas equipes de produção apresentam famílias se confraternizando em um “café da manhã”, outros em um piquenique; indivíduos utilizando equipamentos como notebooks e celulares, de acesso gratuito à internet, evocando, no conjunto, ideias de um ambiente familiar, harmônico e seguro. A dimensão familiar de ocupação da praça também se encontra registrada em cartão postal no passado, momento em que a frequência era marcada pela presença de famílias de classe média alta (BARREIRA, 2008). Em suma, segurança e presença de um novo público fazem parte das principais narrativas veiculadas sobre o Passeio Público em vários meios de comunicação, incluindo periódicos, sites e propagandas. A imagem reciclada da Praça supõe também um conjunto de instituições e profissionais especializados na manutenção da forma mais recente de utilização do espaço. GESTORES DO PATRIMÔNIO SECRETARIA DE CULTURA DE FORTALEZA (SECULTFOR) A principal instituição responsável pelo processo de “requalificação”12 do Passeio Público é a Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR), composta por uma equipe de historiadores, arquitetos e advogados. Ao indagá-los sobre o porquê da escolha do Passeio Público como lugar de intervenção, um gestor da Coordenação de Patrimônio Histórico Cultural (CPHC) se referiu à imagem de “degradação”, por conta do “descaso do poder público”, e da intensa atividade de prostituição. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 102 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” O Passeio Público foi escolhido porque estava num estado deplorável, e era uma reclamação da sociedade de Fortaleza, [...] um dos fatos foi esse, que o Passeio estava muito degradado, inclusive, os jardins que estavam sem a irrigação suficiente. [A praça] é um ponto que embora toda a Fortaleza não frequente, todos admiram (Trecho de entrevista concedida a Willams Lopes, por um gestor do CPHC em maio de 2010). Muitos termos adotados pelos projetos urbanísticos são acompanhados do prefixo RE, indicando uma necessidade de adaptação de usos conformados a diferentes temporalidades (VASCONCELLOS; MELLO, 2006). Implícita em todos os “REs” está a importância dada à recuperação dos centros urbanos e à preservação de áreas consideradas históricas. Trata-se de imprimir ao local uma marca de intervenção que supõe novidade em consonância com a sua historicidade. Os gestores são elementos estratégicos na “requalificação” do patrimônio e, quando indagados sobre suas funções, declararam ser os responsáveis por autorizar, selecionar e elaborar os projetos que visam (re)funcionalizar áreas consideradas “degradadas”. Assim, quando concluíram a reforma em 2007, criaram o fórum Amigos do Passeio Público, reunindo “instituições e pessoas interessadas em cuidar do patrimônio para trocar ideias e elaborar propostas para o uso do espaço”13. Os projetos de “requalificação” elaborados pela SECULTFOR trazem à discussão concepções e sentidos atribuídos aos equipamentos classificados como parte do patrimônio urbano. De acordo com o texto informativo em seu site, os gestores da Secretaria compreendem o patrimônio histórico cultural conforme a proposta dos estudiosos dessa área. O trecho a seguir é esclarecedor: O Patrimônio Cultural do Município de Fortaleza é constituído pelos bens de natureza material e imaterial, móveis e imóveis, públicos e privados tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade fortalezense e que, por qualquer forma de proteção prevista em lei, venham a ser reconhecidos como de valor cultural, histórico e natural, visando sua preservação14. Em suma, o próprio conceito de patrimônio cultural refere-se ao conjunto de bens materiais e imateriais que representam a cultura de um grupo ou de uma sociedade (LEMOS, 2004). Em documento referente às regras de uso do espaço, os gestores do patrimônio afirmam que o “Passeio Público é Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 103 de todos”15. Embora esta suposição possa ter uma conotação democrática, sua realização é mais complexa, remetendo aos temas da segregação e dificuldade de convívio entre pertencimentos diferenciados de classe. O conjunto de ações e funções voltadas para assegurar uso múltiplo da Praça revela a complexidade das intervenções e a existência de tensões associadas. OS PERMISSIONÁRIOS DO QUIOSQUE Os permissionários ou locatários do quiosque estão entre os gestores do patrimônio por serem responsáveis pelo desenvolvimento de atividades pautadas em propostas de “requalificação” e regras de uso do Passeio Público. Obtiveram uma licença para trabalhar no local por meio de uma seleção realizada pela SECULTFOR, com a qual possuem uma relação de parceria. A (re)instalação do quiosque, atualmente denominado “Café Passeio”, visa desenvolver atividades artístico-culturais e de comércio alimentício. Várias gestões de permissionários já aconteceram, sendo a do período 2012-2013 considerada “equitativa” pela constância nas atividades de natureza comercial e cultural realizadas. Trata-se de uma gestão que diversificou o cardápio, dinamizou o horário de atendimento e excedeu suas funções, utilizando recursos próprios para garantir a continuidade da programação cultural. O ADMINISTRADOR DA PRAÇA Soma-se às atividades dos permissionários e da SECULTFOR a função de um administrador, responsável por segurança patrimonial, tratamento paisagístico, limpeza etc. Ele coordena as várias atividades previstas para o local, facilitando a integração entre elas, além de ser considerado fiscal da “ordem”. Embora a CPHC afirme ser comum a presença de administradores nas praças de Fortaleza, há algumas décadas não é possível deixar de associar a presença de um profissional com essa especialidade à emergência da concepção de um modelo típico da cidade moderna, dotada de organização racional, mecanismos de controle de horário e outras regras (VAINER, 2002). OS GUARDAS MUNICIPAIS O anúncio de eventos geralmente se faz acompanhar de uma descrição da presença de seguranças. A Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) é tida Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 104 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” como um dos serviços estratégicos mais importantes na “requalificação” do Passeio Público. Trata-se de uma categoria considerada de grande utilidade, visto serem os guardas municipais responsáveis pela disciplina, garantindo a presença de “usuários convenientes”, segundo a forma prevista no projeto. Trechos de entrevistas que nos foram concedidas corroboram a importância dessa associação presença da Guarda-segurança: É primordial, é essencial, porque as pessoas quando vêm pro Passeio, a primeira coisa que elas olham é a Guarda [Municipal] e já se sentem seguras de haver dois, três guardas, às vezes até uma patrulha quando tem um evento como esse do bloco [de pré-carnaval] que se apresentou no domingo. Tinha uma patrulha com mais de seis guardas aqui, então [...] não pode deixar de faltar (Entrevista com permissionário do “Café Passeio”, em fevereiro de 2010). As pessoas perguntam logo como é que está a segurança, é a primeira coisa que eles perguntam: ‘tem segurança aqui?’. Tem. Eu mostro a Guarda, mostro a PM [Polícia Militar], à noite tem segurança armada [...]. O foco deles é a segurança; é muito louco. É a primeira coisa que perguntam (Entrevista com o administrador da Praça, em janeiro de 2012). A segurança é muito importante, porque antigamente não podia ficar sozinho esta hora. Antes, você sentava, as prostitutas eram tudo em cima. Incomodando... A Polícia inibiu, elas pediam um café, um cigarro, mas queriam era marcar um programa (Raimundo Nonato, 47 anos, usuário do Passeio Público). Segundo dados da Prefeitura de Fortaleza, os guardas municipais teriam como principais atribuições prevenir a violência, a criminalidade, garantir o cumprimento das leis e proteger o patrimônio, os bens e serviços do município. O papel de segurança patrimonial levou os guardas municipais a atuarem principalmente em espaços públicos, pois deveriam promover a segurança em praças, equipamentos de lazer, parques ambientais e outros16. Os operadores da vigilância costumam estar sempre atentos aos usuários e às atividades desenvolvidas dentro da Praça; circulam sempre no interior do logradouro e dão informações aos frequentadores. A Praça é mediada por instituições de controle social, verificando-se que os guardas utilizam, no turno diário, os seguintes instrumentos de trabalho: apito para avisos de atenção ou pedidos de ajuda; tonfa; espargido (spray de pimenta); algemas e, em alguns casos, taiser e armas extras como canivetes. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 105 No decurso da “requalificação” do Passeio Público, a ação dos guardas municipais revela-se como mecanismo de disciplinamento do espaço, tendo como objetivo principal inibir a presença dos moradores de rua e de prostitutas, retirando o estigma da Praça como ponto de circulação de droga e prostituição. Os guardas municipais exprimem sua função na vigilância com os usuários das praças e equipamentos públicos como parte de um poder disciplinar (FOUCAULT, 1979). Os operadores da disciplina entrevistados17 declararam receber orientação para, no desempenho do seu papel, serem incisivos em relação aos moradores de rua, sobretudo, o maltrapilho ou pedinte que entra na Praça; este é visto como possível assaltante ou indivíduo que vai “incomodar” os outros usuários. Comumente, por ocasião da realização de eventos no local, por exemplo, aos finais de semana, constatando a presença de pedintes, ali, os guardas ordenam que se retirem; e procedem do mesmo modo com aqueles que tentam dormir sobre os bancos da Praça. Na prática, bater nos bancos em que eles estão deitados, falar em tom de voz mais alto e provocar a retirada são práticas que estão inclusas na abordagem policial. Além de inibir a presença de moradores de rua, a Guarda volta sua atenção para as prostitutas. Uma profissional da Guarda afirma identificar uma prostituta “pela aparência, pelas roupas e porque são mulheres que passam encarando os homens”. Ela declara: “Nós observamos, se tiver algum idoso [público-alvo] sentado sozinho, nós nos aproximamos se elas tentarem chegar perto. É proibido abordar as pessoas, elas já sabem disso”. Todavia, as tentativas de marcar um programa – burlando a ordem estabelecida – entre as prostitutas e seus clientes dentro da Praça são realizadas em um curto intervalo de tempo. Segundo informação dos entrevistados, quando alguma das “meninas”18 entra na Praça, os guardas ficam observando o seu trajeto. Em caso de abordagem de eventuais clientes, ocorre a ordem de retirada. A maior parte das ações dos profissionais da disciplina visa afastar os indivíduos considerados “indesejados”, pois as práticas de comércio sexual e os constantes furtos realizados ao longo dos anos na Praça construíram, historicamente, um “estigma”, cristalizando a imagem de espaço inseguro e distante do padrão de moralidade dominante. Os encarregados da disciplina associam “todos os problemas” do Passeio Público à presença de prostitutas, moradores de rua e pedintes que utilizaram o espaço nas décadas passadas e ainda transitam pelo mesmo. Contudo, evitar a presença ou expulsar as “meninas” da Praça não pode ser visto como uma prática excludente. Uma prostituta que ainda frequenta aquele espaço para marcar seus encontros, afirma que os guardas municipais Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 106 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” sabem sobre sua profissão, mas “permitem” suas abordagens a possíveis clientes, por ela ser uma pessoa comportada e discreta. Ela considera não chamar tanto à atenção e enfatiza que seu vestuário é diferente das outras “meninas” e que costuma ficar sentada de forma tranquila nos bancos da Praça. As entrevistas com as prostitutas revelam a existência de um processo de negociação ou criação de “brechas” na ordem, relativizando-se, assim, a eficácia plena da disciplina. São arranjos baseados em práticas que burlam os mecanismos de controle, incorporando transgressões típicas do espaço urbano (CERTEAU, 2012). A expulsão dos usuários considerados “indesejados” impõe-se também pela tentativa de afirmação de usos que visam atrair outro público. Para gestores, permissionários e encarregados da disciplina, as práticas antigas não podem conviver com as atuais, as quais visam tornar o Passeio Público um ambiente cultural, de lazer, destinado aos turistas e às famílias. ÍCONES DO PATRIMÔNIO Os ícones do patrimônio podem ser entendidos como os objetos situados no interior da Praça aos quais é atribuído valor material e simbólico. Embora cada um dos ícones não tenha sido tombado especificamente pelo IPHAN, todos se tornam passíveis de proteção, na medida em que estão inseridos no ambiente do Passeio Público. Há, assim, uma articulação entre o material e o simbólico, proporcionando ao lugar um ar bucólico e semelhante ao de um museu, no qual várias peças estão dispostas para contemplação. Através da observação empírica, constatamos, ali, a presença de bustos, esculturas, fontes, árvores, coreto, quiosque, lago artificial e caixa d’água. Dentre os ícones da Praça, é atribuído maior destaque ao Baobá. Trata-se de uma árvore centenária, de origem africana, muito alta e de tronco largo, plantada ali em 1910. “Essa árvore aqui é o cartão-postal do Passeio Público” e “Todo mundo quer tirar foto no Baobá” são frases comumente proferidas pelo administrador da praça. Junto ao Baobá, encontra-se também um grande conjunto de outras árvores. Entre elas, são mencionadas pela sua denominação popular: mungubeira, macaúba, oiticica, jucazeiro, pau d’arco roxo e outras. O Baobá não é tombado em particular; porém, uma vez que integra o conjunto “Passeio Público”, sua proteção está como que assegurada pelo tombamento deste último. É interessante destacar que os movimentos em defesa do meio ambiente também foram importantes para a ampliação das práticas de patrimônio acionadas no local, associando cultura e natureza (FUNARI; PELEGRINI, 2006)19. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 107 RITUAIS DE PATRIMONIALIZAÇÃO Tornar o local objeto de atração e valorização por meio de visitas, frequências programadas e contemplação significa entender que os processos de afirmação patrimonial se fazem acompanhar de rituais de reconhecimento. Nesse sentido, o quiosque Café Passeio situado na Praça foi central para pensar os rituais de patrimonialização. Estes são planejados pelos permissionários em parceria com a SECULTFOR e ocorrem, em sua maioria, na área próxima ao quiosque. O Café Passeio é um estabelecimento de comércio alimentício que oferece aos visitantes cafés, lanches e refeições rápidas. Na praça, o quiosque também é diretamente envolvido em atividades artístico-culturais procurando-se, assim, torná-lo um local de sociabilidade baseado em frequência mais permanente. Entre as atividades, os eventos e atrações planejados que mais se destacaram, por terem sido constantes e agregarem grande quantidade de pessoas, foram a Feijoada e o Piquenique no Passeio. Estes eventos podem ser entendidos como rituais de ativação do patrimônio cultural, na medida em que articulam um duplo processo social: um ato de legitimação que imprime valor histórico, artístico e cultural ou simbólico a uma construção, objeto ou prática e a perspectiva de um “valor de uso”. A exaltação de personagens e histórias consideradas significativas para a nação, confere ao espaço um interesse local, nacional e internacional (FRIAS, 2000; CRUZ, 2012). Para além desta definição, esses rituais atribuem novos sentidos, valores e usos às formas de sociabilidade vigentes em lugares considerados patrimoniais, fazendo com que não somente a história oficial, mas também os conflitos e as negociações sejam contemplados (BEZERRA, 2014). Os eventos realizados no decorrer dos últimos anos, seja por iniciativa da Secultfor ou de particulares, são como cerimônias pautadas por objetivos, regras e procedimentos que contribuem para uma ordenação social e cultural de espaços urbanos, funcionando como ritual ou “processo ritual” (TURNER, 1974). Trata-se de uma ritualidade que se afirma não tanto pela recorrência, mas pela capacidade de afirmar ícones de valorização do local, contribuindo para o reforço do que se considera como patrimônio. FEIJOADA NO PASSEIO PÚBLICO A Feijoada realizada no Passeio Público faz parte do projeto Sol Maior, elaborado em 2008. Inicialmente, consistia na realização de apresentações Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 108 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” de acordeonistas, executando música instrumental às sextas-feiras, à tarde, e, aos sábados, shows de saxofonista, baixistas, violonistas e guitarristas. Fruto de uma parceria entre os permissionários do quiosque e a SECULTFOR, o evento foi pensado, pelos seus produtores, como algo que ultrapassasse o âmbito do comércio alimentício. Assim, agregava, também, outros aspectos da “cultura local”. Desde o início, essa dimensão se expressa no adjetivo “tradicional” presente em peças publicitárias de sua divulgação, manchetes de jornais, panfletos e reportagens televisivas. A Feijoada ocorre todos os sábados, das 12h às 15h, e é o evento que tem tido mais continuidade, ali, pois ano após ano consolidou uma frequência de usuários na Praça. Segundo os gestores da SECULTFOR, todas as atividades realizadas durante a Feijoada devem ser ligadas a “cultura, educação e família”, podendo, assim, contribuir para a requalificação do Passeio Público. A Feijoada se inicia quando um funcionário da Prefeitura se dirige ao palco e lê um texto cumprimentando os presentes, apresentando os músicos, divulgando outros eventos e fazendo menção ao projeto de “requalificação”. A praça é apresentada como um “espaço requalificado, sem riscos ou problemas sociais”, e há um apelo para a participação das famílias em outras atrações. Durante a Feijoada, os indivíduos se distribuem nas mesas espalhadas próximas ao quiosque. O evento é concebido como prática de “uso patrimonial”, isto é, planejado pelos gestores de um patrimônio considerado requalificado, de acordo com as normas estabelecidas pelos mesmos. Além disso, a Feijoada pode também ser entendida como um evento-território, semelhante aos descritos por Osmundo Pinho (1996) ao pesquisar territórios e desigualdades raciais no Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador, na Bahia. Segundo Pinho, o evento-território ocorre à medida que a identificação entre os indivíduos se dá na prática de territorialização do espaço. Assim, o fato de “estar ou poder estar presente” na Feijoada é indicador de que os indivíduos partilham de interesses e objetivos semelhantes. O evento-território descreve um tipo de apropriação da Praça de forma não substancializada, mas transitória e situacional. Como em um ritual de afirmação de valores, a cada sábado a Feijoada se repete com suas regras, procedimentos e outras práticas culturais. Nesse contexto, vale a pena invocar a cidade de Zirma, descrita por Calvino, considerada uma cidade “[...] redundante: repete-se para fixar alguma imagem na mente [...], para que a cidade comece a existir” (1990, p. 23). A Feijoada torna-se um ritual em que símbolos de pertencimento são evocados e “usos patrimoniais” acontecem afirmando a importância do Passeio Público como lugar digno de existir e ser preservado. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 109 PIQUENIQUE NO PASSEIO O Piquenique no Passeio é outra atração planejada para a “requalificação” da Praça. Projetado em 2012, ocorre aos domingos pela manhã, de 9h às 12h, e consiste na produção de um momento de lazer e entretenimento. Para o Piquenique no Passeio, a SECULTFOR oferece uma programação infantil com apresentações de teatro de bonecos, espetáculo de palhaços, narração de histórias, e, além disso, incentiva os usuários a trazerem esteiras e toalhas para piquenique na grama, configurando-se, ali, momento de leitura ou descanso. Desde cedo, pode-se encontrar muitas pessoas em família e/ou grupos de amigos se confraternizando em espaços específicos da Praça, com objetos próprios: mesas, cadeiras, isopores, depósitos de lanches, garrafas de café etc. Grupos de pessoas realizam piqueniques na grama; outras utilizam a tranquilidade de alguns pontos da Praça para leitura ou prática de orações. Já outros se divertem ao lado do quiosque: um fluxo intenso, crianças circulam de skate, patins e bicicleta. Nessa área, ocorrem também ocorrem atividades planejadas pela SECULTFOR, comumente, iniciando-se às 10:00 horas, agregando um público de muitas crianças e adolescentes acompanhados de seus pais. Como ritual, o Piquenique no Passeio apresenta procedimentos semelhantes aos da Feijoada, mas como não é um evento tão concentrado ao lado do quiosque e se espalha entre outros espaços da praça, leva seus participantes a terem uma atitude de reserva, se afastando de qualquer indivíduo ou situação que demonstre suspeição. Observa-se que os participantes se sentem incomodados com um eventual morador de rua sentado em um dos bancos, ou com a presença de um casal que circula por ali “com abraços e beijos calorosos”, cenas que remetem à imagem anterior da praça como “lugar de prostituição”. A realização do Piquenique mostra, também, como as regras estabelecidas são “negociadas” em algumas situações. Exemplo: existem regras oficiais proibindo a entrada de animais ou a utilização de veículos não motorizados (bicicletas) naquele espaço; mas, “em nome da requalificação” e, considerando-se tratar-se de um “ambiente familiar”, se permite a realização dessas práticas pelos filhos de integrantes de segmentos sociais supostamente mais abastados. Desta forma, o Piquenique é mais uma proposta da política de “requalificação” que demarca as segregações existentes no espaço público, pois os indivíduos considerados marginalizados não são bem-vindos, nem possuem os códigos culturais necessários para consumir as atrações planejadas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 110 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” OUTRAS ATIVIDADES CULTURAIS Atividades menos frequentes, designadas como “culturais”, também podem ser entendidas como rituais, resultando em valorização do patrimônio simbólico, tais como apresentações teatrais, aulas de Tai chi chuan e rodas de capoeira. As ações de entretenimento ou atrações planejadas pela SECULTFOR, em parceria com outras instituições, convergem para um único objetivo: atrair público para a Praça. Elas também são pautadas por regras de legislação patrimonial e de uso do espaço. E, em algum momento de sua realização – seja inicial ou de agradecimento final –, seus executores costumam fazer menção à “requalificação” do espaço. Entre tais atividades, constatamos rodas de capoeiristas; ponto de encontro para prévias carnavalescas; apresentações teatrais do Centro Cultural Banco do Nordeste (BNB), aulas de Tai chi chuan, duas vezes na semana; guias de turismo para apresentar a Praça; happy hour, às sextas-feiras, e os Ensaios Abertos nos quais grupos de música, teatro ou dança realizam apresentações nas tardes de domingo. Algumas das situações elencadas reforçam a lógica de “requalificação” associada à busca de uma “[...] rede de relações que combinam laços de parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participação em atividades comunitárias e desportivas” (MAGNANI, 2002, p. 21). Contudo, a Praça não conseguiu por meio das designadas atividades culturais realizar as funções (esperadas) de construção de um espaço público diferenciado e baseado na presença de diversos segmentos sociais portadores de uma sociabilidade desejada. A maioria dos eventos citados que funcionaram durante um período não teve continuidade. As atividades se caracterizam também como um “evento-território” por serem pontuais e baseadas na utilização transitória e situacional do local, estando marcadas por uma lógica de montagem e desmontagem (PINHO, 1996). Ao término das “atividades culturais”, prevaleceu um princípio de retirada tal como no final de um espetáculo. EVENTOS OU ATIVIDADES PARTICULARES Os eventos particulares são aqueles de iniciativa privada que não supõem envolvimento imediato com os poderes públicos. São, no entanto, valorizados pelos gestores e considerados desejáveis para a conservação do patrimônio, pois mesmo não tendo sido previstos de forma clara no Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 111 projeto inicial de “requalificação”, contribuem para a dinamização e valorização do local. Entre os acontecimentos ligados a públicos específicos, destacam-se casamentos, festas de aniversário, lançamentos de livros, congressos e piqueniques. Esses eventos não fazem menção à “requalificação” do espaço (exceto, os lançamentos de livros), e seus organizadores costumam ser livres de sanções ao descumprirem regras oficiais estabelecidas para a utilização da Praça20. A maioria dos eventos particulares envolve atividades relacionadas a educação, como o lançamento de livros e realização de palestras, atraindo grande número de intelectuais e estudantes, por exemplo, casamentos e comemorações de aniversários, congregando relações familiares. Os espaços da Praça tornam-se também cenários para books de casamento. PATRIMÔNIO, PRÁTICAS SOCIAIS E TEMPORALIDADE Descrever o conjunto de práticas e atores envolvidos na tentativa de dar sentido e fazer a “recuperação histórica” do patrimônio supõe desnaturalizar a preservação e mudança de usos como “problemas” em si mesmos que caracterizam os diferentes espaços urbanos. Percebe-se que a ideia de “cuidar de patrimônio” envolve não apenas recuperar edificações e espaços danificados pelo tempo, mas também incutir na população percepções de valorização, realizando a travessia entre passado e presente. Assim, efetivam-se narrativas sobre o local, conferindo-lhe o caráter emblemático de ícone da cidade, integrante do centro urbano. Tornar “público” o espaço público supõe intervenções e programas governamentais que, sob a égide da “requalificação”, se propõem a realizar uma série de atividades, envolvendo instituições e práticas culturais capazes de atrair visitantes de forma mais sistemática. Crianças e jovens tornam-se o alvo das programações, sendo a culinária e as atividades de recreação acionadas como possibilidade de ocupação do local. Conflitos em torno de antigos e potenciais usuários reeditam a “guerra de lugares” (ARANTES, 2000), que percorre as diferentes localidades da Praça outrora ponto de atração da elite local. Isso significa que os processos de intervenção gerenciam os conflitos, buscando conferir dignidade por meio da expulsão de frequentadores considerados inconvenientes. Os usuários da rua que passam a ter no Centro um espaço de permanência tornam-se alvo da segurança, expressando a divisão espacial que vem caracterizando a cidade nos últimos decênios. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 112 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” E é na perspectiva de um patrimônio que busca imprimir usos com dificuldades de serem sedimentados no cotidiano que os conflitos simbólicos entre sentidos e estratos sociais se atualizam. Os liames entre a cidade e o local tornam-se difíceis de serem restabelecidos, antagonizando-se com o cartão postal do passado. Distante da monumentalidade que empresta ao patrimônio certa noção de naturalidade, a Praça dos Mártires põe a questão de como inventar novas formas de ocupação do espaço, tendo em vista as mudanças promovidas pela reforma, e “o como fazer” com que práticas advindas de intervenções institucionais mais recentes passem a adquirir formas de sociabilidade, no sentido atribuído por Simmel (1983), contra a fluidez que caracteriza os usos do espaço no centro da cidade. Em síntese, a busca de retorno aos espaços da cidade por segmentos das classes médias e alta visa demarcar concepções e formas de uso do patrimônio, exprimindo tanto as profundas desigualdades sociais existentes na cidade, como sentidos que articulam memória e consumo na vida urbana contemporânea. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA NOTAS 113 1 A Confederação do Equador foi um movimento revolucionário que pretendia criar um novo Estado no Nordeste, adotar a república como forma de governo e lutar por igualdade social. Devido à proximidade com o Forte, o espaço da Praça tornou-se um lugar destinado a execuções de pena de morte dos confederados vencidos em 1824. O nome Praça dos Mártires é uma homenagem aos principais participantes desse movimento: Pessoa Anta, os tenentes coronéis Ibiapina e Carapinima, o tenente de milícias Azevedo Bolão e o padre Mororó (ARAGÃO, 1999). 2 Para efeito da sua administração municipal, os bairros da cidade de Fortaleza são agrupados em 6 áreas denominadas “regionais”, além do Centro. Cada regional tem sua secretaria. A Secretaria Extraordinária do Centro (SECE) é a responsável pelos serviços de execução, gerenciamento e assessoria de políticas públicas, bem como pelo desenvolvimento de estudos e elaboração de projetos para o bairro Centro. 3 “Em nome do patrimônio” é uma expressão que serve de referência ao discurso dos gestores que justificam as propostas de intervenção, considerando ser o Passeio Público um ícone da “história da cidade”. 4 O diagnóstico da praça é também corroborado pelo senso comum, incluindo “pesquisa” feita por alunos do Colégio Militar de Fortaleza cujo relatório final registra “ser a história da praça desconhecida para a maioria dos habitantes da cidade por conta da insegurança”. E os alunos acrescentam que muitos turistas e fortalezenses a viam apenas das janelas dos ônibus, por ser considerado lugar que “serve de abrigo a todo tipo de delinquência”. 5 Os investimentos foram em parte da Prefeitura (que conseguiu R$ 150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) com Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR) e outra parte de empresas privadas (VASCONCELOS, 2008). Do valor total, R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais) foram doados sob a forma de tinta e grama, pelo Instituto Cor da Cultura. Após a reinauguração do Passeio Público, este Instituto promoveu o evento Casa Cor, no Museu da Indústria, localizado defronte ao Passeio Público, utilizando a praça como ante-sala para o evento (PEIXOTO, 2007). 6 A Secretaria de Cultura de Fortaleza, responsável pelo processo de ativação do patrimônio cultural, tornou-se, a partir de 2007, o principal órgão responsável por atividades capazes de emprestar outra funcionalidade aos espaços públicos da cidade. 7 Segundo Jacques (2008), há um processo de espetacularização dos bens culturais, reduzidos a mercadorias mais voltadas para comercialização. 8 Reunião do Planefor (Plano Estratégico da Região Metropolitana de Fortaleza), realizada em 9 de abril de 2015, da qual participaram entidades do bairro, com o objetivo de propor projetos para a área, incluindo “participação da população”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 114 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” 9 Para a utilização do conceito de narrativa, tendo em vista pensar sobre representações das cidades contemporâneas, ver BARREIRA, Irlys. A cidade como narrativa. Lisboa: ICS, 2013. 10 A pesquisa de campo que serviu de subsídio a este texto foi feita por Willams Lopes, como parte de sua dissertação de mestrado (LOPES, 2013). Integra-se à pesquisa do Laboratório de Estudos de Política e Cultura (Lepec) sobre Cidade e Patrimônio, que faz parte do objeto de investigação de Irlys Barreira, no contexto da bolsa de produtividade em pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). 11Propaganda disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=rgd4Po6XqCo>. Acesso em: 10 jan. 2014. 12 Nas entrevistas realizadas com os gestores, o termo “requalificação” é aplicado em contraposição à palavra “revitalização”. Trata-se de uma revisão do conceito que vem sendo alvo de críticas, pois, segundo afirmam, o Passeio Público sempre teve vida e precisava apenas de mudanças na forma de utilização do espaço. 13 O fórum Amigos do Passeio Público sofreu descontinuidade por falta de quórum e, alguns meses depois, a Organização Não-Governamental (ONG) Mediação dos Saberes foi contratada pela Prefeitura Municipal para realizar atividades culturais, tendo em vista dinamizar os usos da Praça. As iniciativas desenvolvidas foram: instalação de mesinhas e tabuleiro de xadrez, apresentação de grupos teatrais, aulas de ioga, shows musicais de chorinho e piano. Contudo, o contrato foi suspenso no primeiro semestre de 2008, por conta da insuficiência de participantes. 14 Prefeitura Municipal de Fortaleza. Disponível em: <http://www.fortaleza.ce.gov.br/cultura/index.php?option=com_content&task=view&id=10482&Itemid=119>. Acesso em: 15 jan. 2014. 15 Documento intitulado “Procedimentos de proteção e guarda da Praça dos Mártires (Passeio Público)”, arquivo da SECULTFOR. 16 A Guarda Municipal do Passeio Público é constituída, diariamente, por uma dupla de guardas, comumente, um homem e uma mulher que trabalham das 6h30 às 18h30. Durante a noite, são seguranças armados que fazem a defesa patrimonial, sob gestão de uma empresa privada, contratada pela Prefeitura. 17 No contexto da pesquisa de mestrado de Willams Lopes, foram realizadas entrevistas com seis guardas municipais: três em 2010 (dois homens e uma mulher), e outras três em janeiro de 2012 (dois homens e uma mulher). Optamos por manter o anonimato dos informantes. 18 Categoria nativa utilizada para identificar as mulheres prostitutas. 19 Trata-se de associação já formulada há décadas, pois, no final de 1950, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 FRANCISCO WILLAMS RIBEIRO LOPES e IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA 115 a legislação de proteção do patrimônio ampliava-se para o meio ambiente e para os grupos sociais e locais (FUNARI; PELEGRINI, 2006). 20 Um exemplo significativo foi a realização, na Praça, do XIX Congresso Brasileiro de Perinatologia, em 2007. Dois guardas municipais comentaram que os organizadores de tal evento fecharam os portões da praça, fazendo do espaço público um ambiente privado. Mesmo assim, nenhuma medida foi tomada em relação a tal episódio. Em outros eventos, percebe-se a presença irregular de animais e de uma intensa movimentação que contribui para a danificação da grama e das árvores. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 116 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” BIBLIOGRAFIA ARANTES, Antonio. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas-SP: Editora da Universidade Estadual Paulista (UNICAMP), 2000. ARANTES, Antonio. Patrimônio cultural e seus usos, a dimensão urbana. Revista Habitus, Goiânia, v. 4, p. 425-435, 2006. BARREIRA, Irlys. A cidade como narrativa. Lisboa: Editora do Instituto de Ciências Sociais (ICS), 2013. BARREIRA, Irlys. Narrativas do olhar: Fortaleza em cartões postais. In: LEITE, R. (org.). Cultura e vida urbana: ensaios sobre a cidade. São Cristóvão: Editora da Universidade Federal de Sergipe (UFS), 2008. BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaio sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. BEZERRA, Roselane. Políticas urbanas e processos de patrimonialização nas cidades de Fortaleza e de Almada. 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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 118 TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO” Palavras-chave: patrimônio; rituais; usos; Praça dos Mártires. Fortaleza. Keywords: Heritage; rituals; uses; Praça dos Mártires; Fortaleza. Resumo O artigo analisa as políticas de preservação do patrimônio designadas como “requalificação”, com ênfase nas intervenções, estratégias e práticas sociais consequentes. As ações feitas em nome do patrimônio implicam um processo de substituição de usuários por meio de rituais de entretenimento, buscando atrair turistas e moradores de classe média. Os conflitos de natureza social e simbólica exprimem as dificuldades de incorporar ao local novas formas de sociabilidade, pondo em pauta a questão do tempo, dos usos e da transformação dos espaços urbanos. A reflexão tem como referente empírico os projetos de intervenção realizados na Praça dos Mártires, situada no Centro de Fortaleza, Ceará. Abstract The article analyses historic and cultural heritage preservation policies named “requalification”, focusing on interventions, strategies, and social practices resulting of it. Actions taken on behalf of heritage happen by means of a process that changes users by using entertainment rituals, trying to attract tourists and middle class residents. Conflicts of social and symbolic nature show the difficulties of incorporating in the place new ways of sociability, requiring discussion of time, uses, and transformation of urban areas. The article uses as empirical reference the intervention projects made in Praça dos Mártires, located at Fortaleza downtown, Ceará. Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em maio/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118 Etnografia de uma cidade redesenhada pela pichação/graffiti Zulmira Newlands Borges Doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Fez pós doutorado em educação. Professora Associada IV, do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Laure Garrabé Doutora em Antropologia Social, Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord. Professora visitante na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Rodrigo Nathan Romanus Dantas Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Este artigo apresenta alguns itinerários de campo da pesquisa etnográfica em que analisamos as tensões, conflitos, disputas, resistências e também conformidades e deformidades na construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/ grafiteiros de Santa Maria, cidade do interior do Rio Grande do Sul. Os dados indicam uma grande efervescência semântica em torno da pichação/graffiti, sendo possível interpretar a cidade como um todo que é partilhado por múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente, a pichação/ graffiti como um ponto de encontros discordantes. Entretanto, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 120 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI buscamos neste texto menos a análise de tais tensões, do que refletir sobre como estas (des)orientaram e desviaram nossas interpretações desse fenômeno globalizado em seu contexto local. Na medida em que na coleta de dados através da pesquisa de campo identificávamos esses percursos práticos na cidade, observávamos um jogo de interpretações desenhar-se nas várias triangulações das linhas que nos propusemos analisar, que não podiam deixar de chamar nossa atenção sobre algum interpretativismo em questão. O objeto, o graffiti/pichação, já traz per se várias camadas de potenciais imaginários, podendo falar sobre a cultura dos grafiteiros/pichadores em Santa Maria. Tal cultura porta signos ou imagens nas quais a interpretação e a imaginação agem de várias maneiras, sendo intermediária entre o concreto e o conceito (LÉVI-STRAUSS, 1974). E nossas vadiagens de “marcheur” (LE BRETON, 2012), nas teias que formavam os vários pontos de pichações/graffiti ligados entre si, captaram diversas interpretações (dos pichadores/grafiteiros; dos poderes públicos, dos donos de casas pichadas/grafitadas, de atores culturais e da mídia sobre diversos eventos envolvendo a pichação/graffiti) dos atores e comentadores dessas interpretações, sobre ou a partir de tais imagens ao mesmo tempo interpretadas e interpretativas. Nessa profusão e efervescência semântica, as interpretações do etnógrafo se tornam seus desafios metodológicos. A partir da apresentação do objeto, da sua problematização e a da descrição da nossa entrada como participante, delinearemos alguns pontos fortes do interpretativismo de Clifford Geertz (1978), na medida em que apontam, nesta etnografia, eixos fazendo coincidir o objeto sobre a qual o antropólogo fala (o graffitti/pichação) e a maneira como fala dele (interpretações “essencialmente contestáveis”, GALLIE). A cidade de Santa Maria, hoje com cerca de 270 mil habitantes, situada na região central do Estado do Rio Grande do Sul-Brasil, e também conhecida como o “coração do Rio Grande”, caracteriza-se como um pólo militar nacional e referência regional em serviços na área da saúde. Mas, Santa Maria define-se, principalmente, como cidade universitária, pois há uma oferta relativamente grande de serviços e instituições na área da educação (dezenas de universidades; cursos preparatórios para concursos; escolas técnicas, etc.), o que leva à predominância de um público jovem, oriundo de diversas áreas do estado e de outras regiões do Brasil. Ao andarmos pelas ruas das grandes cidades contemporâneas, variados estímulos visuais disputam nosso olhar. Encontramos nessa disputa pelo foco de nossas retinas o graffiti/pichação. Em Santa Maria, apesar de não se tratar de uma metrópole, tais inscrições urbanas marcam sua presença no mar de signos da cidade. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 121 Diante da prufusão sígnica do urbano, o ato de flanar – tema estudado por Charles Baudelaire (1996) – adquire função metodológica. Trata-se de o etnógrafo deixar levar-se pelo fluxo urbano. Para usar uma metáfora de Guy Debord (2003), entregar-se à deriva urbana. Caminhar e olhar a cidade, duas práticas que representam, literalmente, os primeiros passos de uma pesquisa que tem os pichadores/grafiteiros como objeto e a cidade como campo de estudo. Michel De Certeau chama a atenção para as formas como os indivíduos andam pela cidade, pois o caminhar, segundo ele, é um ato de enunciação, equivalente ao ato de linguagem tal como definido por Austin (1971); “o caminhante transforma em outra coisa o significante espacial” (DE CERTEAU, 2007, p. 178). Parece ser mais pertinente a noção de práticas urbanas (que designa vias, trajetórias, itinerários, atalhos, narrativas diárias...), proposta pelo autor, do que qualquer conceito de cidade ligado a uma lógica meramente urbanística ou econômica. Muito mais do que uma configuração física espacial, a cidade é composta por várias camadas de teia de significados. Nesse sentido, se é caminhando e olhando a cidade que o etnógrafo adentra o campo, é dessa forma também que os pichadores/grafiteiros deixam suas marcas pelo urbano. No tocante a uma antropologia urbana, cabe, portanto, nos perguntarmos: assim como o caminhante desenha e redesenha a cidade, como e de que forma a cidade desenha e redesenha o fazer etnográfico? E, no caso desta pesquisa: assim como os pichadores/grafiteiros desenham e redesenham a cidade, como e de que forma eles desenham e redesenham o olhar etnográfico, bem como as posturas do etnógrafo diante dele? O ERRÁTICO METODOLÓGICO O surgimento do graffiti/pichação em Santa Maria remete ao ano de 2001. Tecemos uma trama histórica sobre a primeira onda do movimento, o recorte temporal compreendido entre 2001 e 2011, em pesquisa anterior (DANTAS, 2011). Em 2012 e 2013 ocorreram, respectivamente, a Operação Cidade Limpa e a Operação Rabisco, dois empreendimentos do poder público (Polícia Civil e Prefeitura Municipal de Santa Maria), no sentido de tentar coibir a prática. Dezenas de mandados de busca e apreensão foram feitos nas casas de “suspeitos”. A partir desses eventos, começou também o que alguns pixadores/grafiteiros chamam de “nova onda” ou “nova geração”, fortemente marcada por influências estilísticas da Escola Paulista de Pichação. Em O sujeito-pixador: tensões acerca da prática da pichação paulista, Daniel Mittmann (2013) afirma que, a partir dos anos 1990, a pichação Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 122 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI paulista passou por uma transmutação: de um estágio poético experimental para uma prática egóica e territorial, na qual o que importa é marcar a cidade em seus lugares mais visíveis, em especial, no alto dos edifícios. Mittmann (2013) chama essa nova configuração de pixação (com “x”) ou Escola paulista de pichação, que tem entre suas principais características gráficas a produção de letras alongadas, retas e pontiagudas, desenhadas com rolo de pintura. Na maior parte dos casos, a pixação é composta por siglas e/ ou letras de um alfabeto próprio do pixador, um tipo de escrita fechada, ou seja, de pixadores para pixadores. Inicialmente, o objetivo da pesquisa era tentar compreender essa “nova geração” e o contexto das operações “Cidade Limpa” e “Rabisco”, em Santa Maria. O problema central era entender quais os impactos das tais operações sobre a prática da pichação/graffiti em Santa Maria. Entretanto, na medida em que nos deixamos ir à observação participante, nos demos conta de que a cidade e os sujeitos observados, além de re-configurarem espacial e socialmente a cidade, redesenhavam o nosso fazer etnográfico. Para sermos mais precisos, surgiram outras questões interessantes no campo, levantadas pelas interações específicas entre as várias práticas dos pichadores/grafiteiros, como as inscrições nos muros, as bandas e os grupos de rap locais que abordam o tema da pichação/graffiti. Além disso, foi possível multiplicar os pontos de vista e apreensões com diversos trabalhos/ debates acadêmicos sobre pichação/graffiti que estavam sendo produzidos por pichadores/grafiteiros locais, bem como através das páginas e sites sobre pichação/graffiti em Santa Maria, com as oficinas de graffiti/pichação organizadas pelos pichadores/grafiteiros em escolas. Para além do escopo da problemática em torno das operações, elas permitiram a valorização de novos enfoques. Paralelamente aos redesenhos do campo, algumas proposições teóricas de Jacques Rancière foram fundamentais para a reformulação do problema de pesquisa, particularmente seu conceito de partilha do sensível, o qual liga estética e política (RANCIÈRE, 2005), e, assim fazendo, podíamos tecer uma perspectiva analítica entre nossas preocupações pela reconfiguração arquitetônica (espacial, mapeamento, circuito…) da cidade e a expressão estilística dos pichadores (a análise gráfica, a construção dos imaginários, etc.). Resumindo a ideia de partilha do sensível, temos, por um lado, a participação em um conjunto comum, e por outro, a separação em percepções individuais e discordantes: a distribuição polêmica das maneiras de ser e das ocupações num espaço de possíveis. Estética e política se tornam, assim, operatórias para nossa análise, por ambas dizerem respeito Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 123 a “posições e movimentos de corpos; funções da palavra e repartições do visível e do invisível” (RANCIÈRE, 2005, p. 26). No caso desta pesquisa, a cidade pode ser pensada como esse todo que é partilhado de múltiplas e discordantes maneiras, tomando mais especificamente a pichação/graffiti como um ponto desse encontro discordante. Também é possível pensar a partilha do sensível num recorte mais restrito, tendo como comum, por exemplo, os grupos de pixadores/grafiteiros e as múltiplas percepções desses indivíduos sobre o(s) grupo(s). Nesse caminhar na cidade, tanto a prática do campo quanto as teorias apontavam para a importância daquilo que é dado a ver e daquilo que é ocultado pelos agentes pesquisados. O conceito de visibilidade impôs-se por tratar da construção da inteligibilidade dos acontecimentos, e das formas pelas quais são dados a ver e a entender. Não obstante, é importante lembrar que o olhar do etnógrafo não é onisciente, não vê tudo, e que ele é também orientado pela sua experiência historicamente constituida; ou seja, a construção do nosso próprio olhar modelaria nossas formas de apreender, selecionar, e entender tais visibilidades. A visibilidade tem ligação direta com o conceito de partilha do sensível, pois, para Rancière (2005), estética e política são maneiras de organizar o sensível: “A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE, p. 17). Nesse sentido, falar em visibilidade acarreta, necessariamente, falar em invisibilidade, na medida em que tal organização do sensível descrever também consensos e dissensos entre grupos sociais compartilhando um mesmo contexto espacial e temporal. Segundo Ricardo Campos (2009), é nesse jogo entre anonimato e dar-se a ver que o writer (pichador/grafiteiro) vive sua prática. O writer busca um anonimato em relação ao exterior, ou seja, perante a Polícia e os grupos de poderes hegemônicos/estabelecidos, que para ele representam uma ameaça. Ao mesmo tempo, não é um anonimato absoluto, pois o writer cria uma nova identidade que ele expressa em uma tag, podendo interpretar-se como sua assinatura, ou marca. O writer procura dar o máximo de visibilidade à sua tag; é através dela que ele busca reconhecimento perante seus pares. Assim, o pichador/grafiteiro é um tipo de autor-escritor urbano que, ao transitar entre a linguagem-teatro (o desejo de fascinar através das letras e cores) e a linguagem-meio (o desejo de transmitir fatos e ideias), contribui para a heteroglossia característica das cidades globais. Em uma antropologia da urbanidade, o andar errático do etnógrafo pela cidade em Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 124 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI meio às pichações/graffiti desenha e redesenha caminhos pelos quais tal heteroglossia urbana tende a invadir o texto. Esses caminhos apontam para aquilo que James Clifford (2011) chama de desintegração ou redistribuição da autoridade etnográfica. Nesse sentido, a partir dessa ligação entre estética e política, abre-se a possibilidade de se questionar acerca das formas pelas quais se dão os processos de construção das visibilidades/invisibilidades dos indivíduos e grupos em relação ao todo que é partilhado de maneiras dissonantes, a partir de uma cultura comum: o graffiti/pichação na Santa Maria contemporânea. Tomando por base a partilha do sensível, podemos indagar: como são construídas as visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros de Santa Maria? Como os grupos de pixadores/grafiteiros se formam e se deformam nos processos de construção de visibilidades/invisibilidades? Na tentativa de dar conta de respostas a esse tipo de perguntas, lançamos um olhar sobre os processos de construção dessas visibilidades/invisibilidades, tanto pelo poder público e pelos jornais locais quanto, principalmente, pelos próprios pichadores/grafiteiros, através de seus diversos enunciados (as inscrições nos muros; as publicações na internet; suas músicas; seu vestuário; suas gírias; os eventos locais sobre o tema...). PODICRÊ! É NÓIS! Os pichadores/grafiteiros de Santa Maria têm entre 16 e 35 anos de idade, estando a maioria concentrada no intervalo de 16 a 20 anos. Os quinze grafiteiros/pichadores com os quais mantivemos maior contato estão na faixa dos 20 aos 35 anos. Apenas dois deles tinham menos de 18 anos. A maioria é estudante e/ou trabalhador e mora com a família. Trata-se de rapazes (a maioria, cerca de 70%) e moças oriundos de diversas áreas da cidade, de diferentes estratos sociais, níveis de escolaridade e “etnias”. Segundo Jean Baudrillard (1996), o graffiti novaiorquino produzido no início da década de 1970 – que iniciaria historicamente o “movimento artístico” – tinha as paredes e vagões dos metrôs como suporte primordial para sua visibilidade, e era feito por jovens moradores dos guetos afro-latinos. Em Santa Maria, diferentemente, recortes étnicos ou de classe são insuficientes para pensarmos os elementos que constituem o que é comum entre os grafiteiros/pichadores de cidade. Assim, além da prática da pichação/ graffiti em si e do binômio visibilidade/invisibilidade, os pontos de encontro, o vestuário, as gírias e as músicas, e critérios estilísticos são melhores indicadores das regularidades do que critérios de classe e etnia. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 125 A maioria dos pichadores/grafiteiros usa: boné de aba reta, alargadores nas orelhas, piercings, tatuagens, moletom de capuz e jeans mas, preferencialmente, calças, bermudas e camisetas largas, aproximando-se de certa moda global hip-hop. Dentre as principais gírias, pode-se ouvir rolê (saída para pichar/grafitar ou ponto de encontro); quebrada (a periferia, sendo subentendido um orgulho da familiaridade, em relação aos seus perigos e precariedades, mesmo para aqueles que não são seus moradores e que empregam a gíria); atropelar (pichar/grafitar sobre a pichação/graffiti de outro pichador/grafiteiro), e como saudações, salve, podicrê e é nóis. A maioria ouve rap, mas não somente: o punk rock, o hardcore, o funk, o reggae e o rock n’ roll também estão presentes nas referências e repertórios culturais de muitos pichadores/grafiteiros. O uso de cannabis e/ou a presença constante de referências imagéticas à planta entre os pichadores/grafiteiros também são elementos comuns. A partir do trabalho de campo, torna-se possível estabelecer genericamente, as motivações dos grafiteiros/pichadores em quatro tendências que podem se combinar e recombinar de diferentes maneiras: 1) a busca por reconhecimento social e marcação de território; 2) a busca por adrenalina, lazer e amizades; 3) a vontade de expressar-se e/ou protestar 4) a aspiração profissional e/ou de fonte de renda. Outro aspecto importante são os transbordamentos promovidos por eles em relação à dicotomia entre graffiti (legal, “arte”, “bonito”...) e pichação (ilegal, crime, “feio”...), estabelecida pelo Estado e reproduzida pela maioria dos meios de comunicação. Como veremos adiante, os sujeitos transitam entre as duas práticas/definições e vão para além delas (colam adesivos, produzem fanzines...). Nossos dados mostram que a grande maioria dos indivíduos pequisados riscam, colam e pintam os muros sem autorização dos proprietários (apenas eventualmente o faziam com autorização), ou seja, infringiam a lei, ou ainda se prestam a tais atividades; e, portanto, também passavam ou passam por frequentes processos de acusação e rotulação públicas (“vândalos”; “criminosos”; “bandidos”...). Eis o nosso principal argumento para a utilização dos termos “pichação/graffiti” e “pichadores/ grafiteiros”. O emprego dos dois termos – “unidos” e separados por barra – se dá devido ao fato de que, em Santa Maria, as fronteiras que delimitam as duas práticas são bastante porosas; além disso, até agora não encontramos, em âmbito local, exclusividade no uso desses termos, em alusão a uma ou a outra dessas artes. Poderiam ser usados aqui outros termos que superam a dicotomia, como “grafismos urbanos” (FONSECA, 1981) ou “apropriações visuais do espaço urbano” (KESSLER, 2008); entretanto, estes estão basRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 126 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI tante distantes do vocabulário dos nativos com os quais interagimos; assim, deixamos a voz deles soar com a formulação “pichação/graffiti”. No decorrer de um ano e meio de trabalho de campo, percorrermos diferentes cenários de interação entre pichadores/grafiteiros. Três deles serão abordados aqui: um ponto de encontro na cidade; um grupo de pesquisa; e um encontro ao acaso na cidade. Antes, porém, chamamos a atenção para a inserção em campo, mais especificamente, para o lugar do etnógrafo e os processos de abordagem dos sujeitos pesquisados. ESTRANHAMENTOS E NEGOCIAÇÕES Já faz algumas décadas que é de grande importância na antropologia a reflexão do etnógrafo sobre seu próprio posicionamento diante de objeto de estudo, bem como a análise crítica de suas escolhas práticas em campo. Trata-se daquilo que Teresa Caldeira (1988) chama de “presença do autor”. Redesenhamos, portanto, alguns dos caminhos e escolhas no nosso encontro com o objeto de pesquisa. A pichação/graffiti é familiar para todos nós há muitos anos; mesmo nas cidades pequenas do Rio Grande do Sul, já víamos traços e rabiscos com nomes de bandas de rock, times de futebol ou alguma manifestação de contestação ou de revolta. Mas eram eventos raros, isolados, inconstantes e de poucas cores. Eram expressões solitárias, quase perdidas no meio das cidades. Nos últimos anos, contudo, temos assistido a uma crescente apropriação do espaço urbano. Hoje há uma indiscutível profusão dessa manifestação urbana, coletiva, cheia de sentidos, de disputas e de tensões. Nossa memória do espaço urbano nos ajuda a refletir sobre as mudanças semânticas da pichação/graffiti. Partindo da ideia de Roberto Da Matta sobre o anthropological blues (a necessidade de o etnógrafo transformar o exótico em familiar e vice versa) aplicada a este caso, nos perguntamos: como se dá o “desligamento” emocional para transformar a familiaridade da pichação/graffiti em algo exótico? Segundo Da Matta, “o sentido do familiar e do exótico é complexo, precisamente porque os termos não devem ter uma implicação semântica automática” (DA MATTA, 1978, p. 160). Existem níveis de familiaridade; nem tudo o que é familiar é necessariamente conhecido, e o inverso também se aplica: nem tudo o que é exótico é necessariamente desconhecido. Nosso interesse em pesquisar sobre grafiteiros/pichadores de Santa Maria começou em 2007, em meio a algumas discussões promovidas pelo Laboratório de Ensino e Metodologia do Ensino (LAMEN) da UFSM que Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 127 encaravam a rua como um espaço de educação, um palco de trocas de saberes e experiências não escolares, algo que nos despertou outro olhar sobre a pichação. Um olhar questionador que contribuiu para um estranhamento da pichação/graffiti, antes vista somente como manifestação de adolescentes em busca de adrenalina e/ou com propósitos de contestação. Da mesma forma, elementos que permeiam a pichação/graffiti – como o rap, o skate, as gírias, o vestuário, a produção e a colagem de stickers (adesivos artesanais) e stencils (moldes vazados) pelas ruas – eram relativamente familiares, mas desconhecidos para nós até então. No retorno ao campo, em fevereiro de 2014, talvez tenha sido mais difícil estranharmos a pichação/grafitti de Santa Maria do que no inicio da pesquisa, em 2007. Entretanto, o contato cotidiano com pessoas leigas em relação ao tema – principalmente alunos e colegas de trabalho, que fazem comentários como: “não quero meu muro riscado”, “pichação é poluição visual” ou “quem picha meu muro sem meu consentimento está passando por cima da minha liberdade”, os quais refletem um pouco as tensões existentes – nos ajuda a fazer o exercício do estranhamento em relação à pichação/graffiti. Como ressalta Gilberto Velho, “sendo o pesquisador um membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questão de seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder ‘por- se no lugar do outro’” (1978, p. 40). Neste caso, a aproximação em relação ao lugar do outro não se refere apenas ao lugar dos pichadores/grafiteiros, mas, também, ao lugar dos indivíduos leigos em relação a essa prática, tendo em vista que seria difícil analisar a pichação/graffiti se fosse levada em conta unicamente a visão de seus autores. Em meio aos nativos, o estranhamento se deu, principalmente, em relação aos grafiteiros/pichadores mais novos – que têm entre 16 e 20 anos de idade – e também àqueles oriundos das regiões mais periféricas da cidade. Em certos momentos do trabalho de campo, ficou muito perceptível esse distanciamento, tanto pelas vestes, gírias e trejeitos quanto pelo reconhecimento, por parte deles, de que não somos “da quebrada” (periferia). Soma-se a isso a atmosfera de desconfiança desencadeada, segundo alguns deles, pelas operações “Cidade Limpa” e “Rabisco”. Um dos grafiteiros/ pichadores mais próximos comentou que alguns desconfiavam da presença dos pesquisadores e suspeitavam que fossem policiais infiltrados. Eis o evento que revelou que não pertencíamos ao grupo deles, em outras palavras, que não podíamos simplesmente adentrar a cultura ou falar sobre ela. Isso não significa, entretanto, que a experiência e a interpretação etnográfica se dêem em relação a uma “outra” realidade circunscrita, mas sim que elas são frutos das negociações entre o etnográfo e os nativos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 128 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI Por outro lado, os pichadores/grafiteiros mais velhos com os quais já mantínhamos algum contato, antes mesmo da pesquisa, foram bastante receptivos e procuraram fazer esclarecimentos aos que não nos conheciam, para que estes não pensassem que se tratava de um “P2” (policial infiltrado). Ressalte-se aqui a posição ocupada pelos grafiteiros/pichadores mais próximos, no contexto local diante dos demais. Trata-se dos “caras mais da antiga”, aqueles que dominam os códigos da pichação/graffiti, servindo, na maioria dos casos, como referência para os mais novos ou, pelo menos, sendo respeitados por estes. O redesenhar da figura do pesquuisador promovido pelos pichadores/grafiteiros mais próximos ajudou o redesenhar da postura dos mais desconfiados diante da presença dos pesquisadores em campo. Ao longo dos meses que se seguiram, a nossa presença nos encontros e festas frequentadas e organizadas pelos pichadores/grafiteiros foi se tornando cada vez mais aceita. A estratégia utilizada foi de avançar progressivamente e com cuidados; buscar primeiramente aproximações com os grafiteiros/pichadores com os quais tínhamos maior afinidade, e dar preferência à observação e às conversas informais, antes da realização de entrevistas formalizadas (com o uso de gravador; câmera...). Da mesma forma, passamos a frequentar encontros e festas para criar maior intimidade ao ponto de tecer uma rede mais ampla de sociabilidades e trocas com os sujeitos pesquisados. O ALARGAMENTO DA PICHAÇÃO/GRAFFITI ENTRE QUATRO PAREDES Observar a forma como os sujeitos se inserem e circulam na paisagem urbana, como assinala José G. Magnani (2005), é uma das principais características da antropologia urbana. Nesse sentido, em caminhadas pela cidade, procuramos mapear os pontos de encontro dos pichadores/grafiteiros de Santa Maria e escolher um deles para dar início à aproximação. Escolhemos uma loja que, de acordo com sua página do Facebook, é especializada em “cultura urbana, graffiti e street art”, localizada no Bairro de Fátima, arredores do Centro. O dono da loja é um grafiteiro/pichador bastante conhecido na cidade e um dos nossos principais interlocutores na pesquisa. A loja funciona de segunda a sábado, em horário comercial, sendo que, entre fevereiro e maio, foram organizadas no local algumas exposições, debates e happy hour, nas noites de sexta e sábado. Além dos sujeitos da pesquisa, observamos que a ambiência do lugar também tinha algo importante a dizer sobre as visibilidaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 129 des/invisibilidades. Este trecho de um diário de campo, de 07 de fevereiro de 2014, esclarece um pouco sobre a tensão entre visibilidade e invisibilidade: Alguns avisos nas paredes da loja chamaram a minha atenção. Acima da prateleira de sprays há um aviso: “Pichação é crime, art. 65 da lei número 9.605/98. Proibida a venda a menores de 18 anos. Apenas para pais, responsáveis legais e contratantes. Não insista, obrigado.” Ao lado, um outro aviso: “Tenha em mãos: endereço completo com CEP; endereço de email; CPF e RG”. Em outra parede há um anúncio das oficinas que a loja pretende oferecer: “Inscreva-se nas seguintes oficinas: graffiti (iniciante); graffiti (letras); graffiti (personagens); stencil (molde vasado); ioiô (iniciante); DJ (iniciante); fotografia pro (iniciante)”. Nesses dois casos, é possível perceber uma separação clara entre pichação e graffiti. Lembrei da página da loja no facebook, onde na descrição diz: “cultura urbana, graffiti e street art do Brasil e do mundo”. No entanto, há um quadro na parede ao lado da geladeira com a frase: “Viva o grapixo art”. E nas estampas de duas camisetas que estavam à venda é possível ver essa espécie de mistura dos gêneros e também a afirmação do pixo, do rabisco e dos bombs... numa delas diz: “Rabiskx Graffiti Bombardeio Pixo” e noutra “Rabiskx I Love (a imagem de um coração com um spray dentro) Writing In The City”. O estabelecimento comercial tem necessidade de adequar-se à norma e, assim, na construção da sua visibilidade, observa a distinção entre pichação (ilegal, não autorizada, crime) e graffiti (arte); ou seja, mostra-se como um lugar que trabalha com street art. No entanto, a iniciativa de tornar invisíveis os trânsitos, a profusão e a mistura das práticas (que estão no limiar, entre legal e ilegal) é endereçada principalmente aos leigos, pois, para aqueles mais familiarizados com os termos e gírias próprios dos pichadores/grafiteiros, basta olhar para o lado e ver os transbordamentos em relação à dicotomia. E, nessas horas, é importante para o etnógrafo, como bem assinalou Geertz (1978), saber distinguir uma “piscadela” de um “tique nervoso”. Essa distinção e, ao mesmo tempo, esse trânsito entre pichação (crime) e graffiti (street art) – em um jogo de visibilidade/invisibilidade – assim como a variedade e a mistura de gêneros (grapixo art, rabisco, bombardeio, pixo...) inscritos em tais artefatos (avisos, anúncios, quadros, camisetas...), espalhados pelo interior da loja, também se reproduzem nas falas dos nativos. Tal questão aponta para a importância de o etnógrafo estar atento à visualidade ambiente, às pistas que os artefatos sugerem, pois, como neste caso, eles podem antecipar e reforçar a percepção de certas regularidades encontradas em Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 130 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI campo por outras vias, por exemplo, em conversas e entrevistas. Ademais, em termos técnicos, é bom ter sempre em mãos, além do caderno de notas, uma câmera para fotografar e, principalmente, registrar vídeos que captem os pequenos detalhes da ambiência (a disposição e os movimentos dos corpos e dos objetos pelo espaço, as inscrições, as conversas, as cores, os sons, tudo o que possibilita a realização da “obra”). Outro artefato digno de atenção são os cadernos dos pichadores/ grafiteiros. Em cima do balcão da loja havia alguns deles, recheados com assinaturas/tags, colagens e desenhos de grafiteiros/pichadores e crews (grupos de pichadores/grafiteiros) que frequentam a loja. Ao folheá-los: muitas assinaturas, letras de diversos tipos, bomb; tag; pixo reto... Ao lado de algumas tags havia a indicação da cidade de origem da crew ou do pichador/ grafiteiro visitante como, por exemplo, “Floripa” (Florianópolis) e “Rio” (Rio de Janeiro). Boa parte das páginas tinha as assinaturas acompanhadas de uma saudação para o dono da loja, “Salve!” e “É nóis!”, as mais comuns. Alexandre Pereira (2005) e Lucenira Kessler (2008) já afirmaram em suas etnografias sobre pichadores/grafiteiros, respectivamente de São Paulo e Porto Alegre, que os cadernos são um dos principais modos de tecer a rede de pertencimentos e sociabilidades entre esses sujeitos. Tal rede extrapola, portanto, os limites físicos e a contiguidade do espaço urbano ao ligar cidades de diferentes estados do país. A frequência ao happy hour semanal e a participação em uma série de oficinas de graffiti ofertadas pela loja serviram para potencializar o processo de imersão no campo. Assim, além de aprender as técnicas do graffiti/ pichação – o know how nativo – também foi possível estreitar os laços com o dono da loja e ampliar a rede de interlocutores. Várias pessoas se inscreveram, mas poucas foram aos encontros; apenas três: um menino de 10 anos, outro de 17 e um rapaz de 29; e todos eram iniciantes. Foram quatro encontros semanais na loja, nas noites de terça feira, que culminaram em um “mutirão de graffiti”, reunindo em torno de 50 pichadores/grafiteiros, para pintar os muros de uma escola estadual na zona norte da cidade. Ao longo dos encontros, o dono da loja, assim como os participantes iam mostrando, desenhando e redesenhando suas concepções sobre graffiti/pichação. Nas oficinas, o dono da loja sempre procurou frisar que ele vem do “movimento da pichação” e que ela está na “origem do graffiti”, afirmando, no entanto, que hoje se identifica mais com este do que com aquela. Disse: “A pichação dá muita adrenalina. Quando a pessoa tem entre 14 e 18 anos, ela quer e precisa fazer parte de um grupo. Ver a assinatura espalhada pela cidade dá uma sensação muito boa, tem muitos riscos; no início isso é legal, mas depois isso vai passando e o cara vai entrando em outras”. O dono da Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 131 loja comentou já haver tido problemas com a Polícia por causa da prática não autorizada e que, atualmente, só faz intervenções com autorização. Assinalou, várias vezes, que não quer incentivar as pessoas à pichação, prática que adjetivou como “não autorizada, ofensiva”. Ele também lamentou: “as coisas mudaram; hoje existem algumas rixas entre grupos por causa da pichação em Santa Maria, coisa que não existia antes”. Percebemos que, diante da presença do pesquisador, o dono da loja, em suas falas, procurava dar visibilidade à “origem ilegal” de sua trajetória pessoal. Ao mesmo tempo, todas as vezes que ele se referia aos perigos da pichação, o fazia com o olhar direcionado para os dois participantes menores de 18 anos, como quem alerta: “não façam isso, crianças”. Ainda nesse sentido, tentava relacionar os assuntos e técnicas do graffiti/pichação trabalhados nas oficinas com os conteúdos escolares, principalmente, de história (a pichação nos movimentos de maio de 68), de matemática (as formas geométricas como base para a produção das letras) e de física (os efeitos de luz e sombra nos desenhos). Os participantes se mostravam bastante interessados. Em certa ocasião, perguntamos ao menino de 17 anos se ele saía na rua para pintar e ele disse: “nunca pichei na rua; não quero fazer na casa dos outros aquilo que eu não quero que façam na minha”. Mas, em seguida, confessou ter saído uma única vez com a intenção de pichar juntamente com uns colegas de escola. Disse que foi uma experiência “traumática”, mal sucedida, visto que, antes de consumarem o ato, tiveram que correr de um grupo de pichadores armados com facões e que gritavam “o que vocês querem na nossa área?!”. Para além das oficinas, ao longo dos dias em que frequentamos a loja, percebemos a existência de ambiguidades nos discursos de alguns pichadores/grafiteiros em relação à repressão policial. Embora vários deles se afirmassem apreensivos com a possibilidade de novas Operações, relatos que enalteciam o envolvimento em atraques (abordagens feitas pelos policiais) eram muito frequentes nas rodas de conversa. Isso reforça a ideia de Campos (2009) concernente à visibilidade/invisibilidade, pois há uma atitude de desconfiança do pichador/grafiteiro em relação ao exterior, mas, ao mesmo tempo, estar na mira “dos tiras” é motivo de orgulho, e funciona como um elemento de reconhecimento pelos pares. A INTENSIFICAÇÃO DA DENSIDADE DAS TEIAS DE SIGNIFICAÇÕES Sendo o pesquisador um morador da cidade e, no caso de uma antropologia da urbanidade, um caminhante (DE CERTEAU, 2007) que se entrega à deriva (DEBORD, 2003), ele não deve antecipar nada. Em outras Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 132 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI palavras, ele deve se deixar levar pelo fluxo urbano; deixar o vazio nele ser pintado pelas exterioridades. Assim acontecem os encontros mais férteis com os nativos, ao acaso, nas situações em que o pesquisador poderia esquecer que está em campo. Em geral, esse tipo de interação se mostrou bastante fecundo para a pesquisa, pois os nativos ficavam mais à vontade do que em muitas situações nas quais a nossa presença era explicitamente a presença de um pesquisador. Seguem trechos de um diário de campo, registrando um encontro, ao acaso, no dia 23 de abril de 2014: Encontrei, ao acaso, uma grafiteira/pichadora no Restaurante Popular. A garota estava almoçando sozinha, resolvi sentar na mesma mesa para conversarmos. Frequentamos lugares em comum há cinco anos (universidade, boates, bares...), mas nos conhecemos pouco. Começou a grafitar/pichar no ano passado. Atualmente, integra uma crew “feminista”. Ela perguntou como estava indo a minha pesquisa, respondi que estava indo bem, que estava tentando me aproximar dos grafiteiros/ pichadores aos poucos. Comentei o fato de que alguns deles desconfiavam que eu fosse um policial infiltrado. Ela disse que o pessoal anda realmente “atucanado com tudo” e que as Operações contribuíram para o surgimento dessa desconfiança e de “tretas” entre crews e grafiteitros/ pichadores. A garota disse que a maioria dos acusados na Operação não leu o registro dos depoimentos dados à polícia. Segundo ela, apenas um entre os acusados tinha advogado; este leu os registros e encontrou neles algumas delações. A pichadora/grafiteira disse que isso (as delações) provavelmente foi uma manipulação da polícia para criar intrigas entre os grafiteiros/pichadores. Comentou sobre um grafiteiro/pichador que tem sido alvo de acusações de ser “cagueta” (delator) por parte de seus pares. E acrescentou que há rumores de que aconteça uma nova Operação em junho. [...] Ela também falou sobre as conexões de alguns grafiteiros/pichadores locais com crews de São Paulo. “Tem surgido bastante pixo reto no altos dos prédios em Santa Maria pela influência dessas conexões”. Alguns grafiteiros/pichadores locais estão pensando em ir a uma grande festa de pixadores em São Paulo, segundo ela, o maior encontro de pichadores do país. A pichadora/grafiteira também disse que atualmente alguns grafiteiros/pichadores que só assinavam tags se tornaram “mais politizados”; alguns deles, por exemplo, começaram a fazer pichações e stencil contra a Copa do Mundo ou contra o aumento da tarifa de ônibus. [...] Após o almoço, ela ia tirar umas fotos de uns “trampos” dela e de outras grafiteiras/pichadoras, feitos recentemente no Parque Itaimbé (no centro). Na saída do restaurante, antes de nos despeRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 133 dirmos, sugeriu que eu curtisse uma página do Facebook, gerenciada por uma de suas companheiras. Na página são postadas diariamente fotos de graffiti/pichações, principalmente, de Santa Maria, mas também de outras cidades e países. Em suas falas, a garota transitava entre e transbordava as definiões “pichação/pichadores” e “graffiti/grafiteiros” para se referir à sua prática e de seus pares. Esta interlocutora demonstrou interesse pela pesquisa: pergunta sobre seu andamento e sonda a presença do etnógrafo em campo. Em parte, isso se deve ao fato de ser universitária, estudante da área das ciências humanas. Durante as conversas, se empenha em selecionar pontos que julga importantes serem abordados; ou seja, a pichadora/grafiteira desenha caminhos para o etnógrafo percorrer. A própria ordem das informações dadas por ela segue uma sistematização: primeiro as intrigas (as “tretas” entre os pichadores/grafiteiros), aquilo que deforma os grupos; depois, aquilo que forma e fortalece as alianças (as conexões com São Paulo; a “politização” que a prática da pichação pode proporcionar; a produção e divulgação de registros das pichações/graffiti pelos próprios pichadores/grafiteiros). Nós já havíamos visto a inscrição “ant-kagueta” em alguns muros, bem como uma onda de atropelos. Esse encontro ao acaso nos propiciou ouvirmos a versão da pichadora/grafiteira sobre as ‘tretas’ em torno das acusações de “caguetagem”, dando sentido aos indícios de rixas inscritos nos muros, os quais estávamos procurando compreender. Em síntese, ela constrói a inteligibilidade dos acontecimentos, dando a entender que a Polícia fomenta boa parte dos conflitos entre os pichadores/grafiteiros. Entretanto, ela ressalta que, paralelo à repressão policial, há na cidade a efervescência de um estilo de escrita urbana influenciada pela pixação paulista. A página do facebook que a pichadora/grafiteira indicou, além da rede de pertencimento, também aponta para aquilo que Mittmann (2013) chama de “arquivamento da existência”. A pichação/graffiti é um arquivamento; primeiro, é fixada e memorizada na parede, mesmo que por um período curto. Em seguida, abre-se um círculo mais amplo de arquivamentos, como por exemplo, as fotos e os vídeos sobre as pichações/graffiti produzidos e divulgados pelos próprios pichadores/grafiteiros. Segundo Mittmann (2013), a prática da pichação e seus arquivamentos têm um caráter micropolítico, pois permeiam a disputa decalcada na lógica das subjetivações e acabam por produzir um sujeito-pixador, uma espécie de fenda existencial. Dessa maneira, temos a ideia de um sujeito que produz a si e causa abalos nas malhas do poder, pois “a pichação, além de afrontar a propriedade por escrever, deixar o seu nome Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 134 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI (tag) donde nada pertence ao pichador, ela também demonstra as ‘falhas’ nos sistemas de segurança” (MITTMANN, 2013, p. 152). As pistas sobre as conexões entre pichadores/grafiteiros de diferentes cidades, presentes nos cadernos encontrados na loja, reapareceram no diálogo com a pichadora/grafiteira, quando ela se refere às ligações entre Santa Maria e São Paulo. A indicação da página do Facebook é outro caminho que aponta no mesmo sentido, dando sequência à série de cenários de interação: muros, loja, cadernos, encontros ao acaso pela cidade e internet. Essas questões sugerem ser nesse andar errático do etnógrafo em meio às teias de significados (GEERTZ, 1978), tecidas entre a objetalidade das inscrições urbanas, que se dão os encontros/desencontros e negociações delineadoras da interpretação etnográfica. LUTAS SEMÂNTICAS Na pesquisa, durante uma roda de conversa sobre pichação e saúde mental, realizada na loja de street art, recebemos o convite do psicólogo organizador do encontro para formar um grupo de estudos sobre a pichação/graffiti com vistas a organizar futuramente a publicação de um livro, contendo artigos resultantes de pesquisas locais sobre o tema. Segundo ele, um grupo para fomentar “um olhar interdisciplinar e contra-hegemônico” acerca do tema, na cidade. A ideia nos parece interessante, pois os sentidos do urbano se formam e se deformam “[...] quando o imaginam os livros, as revistas e o cinema; pela informação que dão a cada dia os jornais, o rádio e a televisão sobre o que acontece nas ruas” (CANCLINI, 2008, p. 15). Diante da inerente fragmentação das experiências no cotidiano da cidade, essas produções culturais podem fornecer conjecturas, “simulacros de totalizações” (idem, p. 21) sobre aquilo que os moradores da cidade não vêem na esfera do imediato ou desconhecem. Os pichadores/grafiteiros estão justamente nessa dimensão invisível e/ ou desconhecida para a grande parte dos moradores. Assim, o urbano é uma arena de disputas e de trocas, onde são travadas inúmeras “lutas semânticas para neutralizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar seu significado e subordinar os demais à própria lógica [...] encenações dos conflitos entre as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado, a publicidade e a luta popular para sobreviver” (CANCLINI, 1997, p. 301). O convite feito pelo psicólogo para formar um grupo de pesquisa representou um convite para participar ativamente dessas lutas semânticas em torno da cidade, mais especificamente, da pichação/graffiti. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 135 Um mês depois do convite, o psicólogo nos chamou para uma conversa coletiva no Facebook para marcarmos uma reunião. O grupo convidado era composto por: uma estudante de psicologia; um publicitário; um jornalista; um estudante de produção editorial; um bacharel em direito e quatro pichadores/grafiteiros (destes, duas estudantes de publicidade, uma estudante de ciências sociais e um estudante de design). Começamos a nos reunir uma vez por semana, em algum dos bares da Rua Alberto Pasqualini, no centro, ou na Praça dos Bombeiros, no bairro Bom Fim, um dos principais pontos de encontro dos pichadores/grafiteiros. Nos primeiros encontros, cada um apresentou o seu trabalho/pesquisa para os demais. Durante a apresentação, um de nós usou a expressão “grafismos urbanos”, o que chamou a atenção de uma das grafiteiras/pichadoras: “grafismos urbanos? Nunca tinha ouvido essa expressão, mas achei interessante porque abarca a diversidade das intervenções”, disse ela. Meses depois, a utilizou na chamada de um debate que organizara sobre o tema, no diretório acadêmico do seu curso: “Roda de conversa sobre grafismos urbanos”. Tal apropriação evidencia a possibilidade de influência do etnógrafo no processo de construção de visibilidades/invisibilidades. Dito de outra maneira, a interpretação do etnógrafo ajuda a redesenhar a interpretação do nativo sobre sua cultura; (re)intrepretação esta que deve ser intrepretada pelo etnógrafo. Encaramos a participação nesse grupo como uma oportunidade de aproximação com os pixadores/grafiteiros e também com os demais integrantes. Desde o primeiro encontro, procuramos sempre deixar claro para todos que as reuniões também eram objeto de observação na nossa pesquisa. No entanto, ao mesmo tempo em que o grupo propiciou maior proximidade com o campo, nossa participação nele também suscitou alguns dilemas éticos para a pesquisa. Em todas as reuniões, o tom das discussões tendeu a ser mais militante do que científico. Isso nos fazia lembrar Pierre Bourdieu, quando ele diz que a “maldição” das ciências sociais é ter um objeto que fala, condição que, dentre outras, exige uma constante vigilância epistemológica por parte do cientista social. Não basta estar à escuta dos agentes estudados para justificar a conduta deles e as razões por eles fornecidas, pois agindo dessa maneira o pesquisador “corre o risco de substituir pura e simplesmente suas próprias prenoções pelas prenoções dos indivíduos que ele estuda, ou por um misto falsamente erudito e falsamente objetivo da sociologia espontânea do ‘cientista’ e da sociologia espontânea de seu objeto” (BOURDIEU, 2004, p. 50). Em agosto, o grupo participou de um programa em uma emissora de rádio web independente. Trata-se de um programa com viés contra-hegemôniRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 136 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI co, que tem entre seus apresentadores um dos membros do grupo de estudos sobre pixação/graffiti. A proposta do programa daquele dia era questionar a criminalização da pichação e a morte de dois pixadores paulistas pela Polícia em São Paulo. No dia do convite, percebemos que o tom das falas seria marcado pelo engajamento; nesse sentido, como pesquisadores, achamos mais prudente não participarmos do programa e sim ouvi-lo pelo rádio, em casa, e tomarmos notas sobre a maneira como o grupo construiria a visibilidade dos acontecimentos e como se colocaria publicamente. Entretanto, não soubemos como comunicar o motivo da nossa não participação aos demais integrantes, pois aquela seria a primeira aparição pública do grupo e todos estavam contando com a nossa presença. Alguns se mostraram compreensivos, outros pareceram um pouco desapontados com a nossa ausência. Tal episódio fez com que colocássemos em xeque os limites da nossa inserção no campo, visto que provavelmente haveria convite para outras aparições públicas das quais não poderíamos nos esquivar novamente, sob a pena de acabar corroendo nossa relação com o grupo. Depois de nos debatermos com esse dilema, decidimos participar das próximas aparições públicas do grupo. O texto “Pesquisas em versus pesquisas com seres humanos”, de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, nos ajudou a esclarecer a questão. Segundo o autor, “se a neutralidade é inviável porque o antropólogo não pode abrir mão de sua condição de ator, a imparcialidade pode ser vislumbrada desde que o pesquisador se preocupe em se expor às diversas versões dos fatos a serem interpretados, e não tome posições que não possa defender argumentativamente” (OLIVEIRA, 2004, p. 42). A partir daí, procuramos não apenas ouvir e sermos coniventes com o grupo nas reuniões, mas introduzir questões provocadoras do tipo: “podemos não concordar, mas é difícil de rebater o argumento liberal de que a pichação passa por cima da liberdade individual, né?”; “faz sentido discutir a criminalização da pichação?”; “não seria a criminalização uma das suas principais razões de ser?”. Tal estratégia de introduzir momentos de dissenso nas reuniões e nas aparições públicas do grupo se mostrou fecunda; foi bem recebida pelos integrantes, lhes dando um retorno ao instigá-los a questionarem suas próprias prenoções e enriquecerem os argumentos para suas posições. Soma-se a isso o fato de que, para a nossa pesquisa, essa estratégia permitiu que viessem à tona informações e questões do campo que talvez não viessem se nos restringíssemos a observar ou a ser plenamente coniventes com tudo o que o grupo diz e pensa. Em uma das reuniões, por exemplo, lançamos a seguinte provocação diante de pichadoras/grafiteiras que se colocavam Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS 137 como feministas: “não gosto do feminismo ortodoxo que anda por aí”. Esse artíficio abriu caminho para que uma das pichadoras/grafiteiras começasse a falar sobre alguns conflitos entre pichadores/grafiteiros permeados pelo feminismo e sobre amizades e crews que se desfizeram em virtude de relacionamentos amorosos. Os motivos das rixas entre eles, portanto, não dizem respeito apenas à demarcação de territórios na cidade ou às acusações de “caguetagem”. PARA UM INTERPRETATIVISMO Um dos desafios da antropologia é achar o ponto em que coincidem o objeto sobre o qual o antropólogo fala e a maneira como fala do objeto. No caso em estudo, tata-se de buscar compreender como se dão os processos de construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros, e como esses processos redesenham a postura do etnógrafo. Dito de outra maneira: como a pichação/graffiti pode servir para interpretarmos o interpretativismo? Os dados indicam uma grande efervescência semântica em torno da pichação/graffiti. Podemos afirmar que há várias forças sociais nessa luta em meio às teias de significação: a pichação/graffiti em relação com outros signos da cidade (monumentos, publicidade...); as iniciativas do poder público e dos jornais locais no sentido de potencializar a criminalização da pichação; pichadores/grafiteiros que trazem o tema da pichação/graffiti para o debate acadêmico; as dissonantes maneiras de construir a visibilidade da prática entre os próprios pichadores/grafiteiros... Em nossa imersão inicial na loja de street art, vimos que a construção de sua visibilidade oficial é ancorada em um aviso fixado na parede que repoduz a distinção oficial (estatal) entre graffiti (legal, arte) e pichação (ilegal, crime). Trata-se de uma espécie de protótipo da “piscadela” referida por Geertz (1978). Uma piscadela entre os pichadores/grafiteiros, pois estes sabem que as fronteiras entre as duas práticas/definições são porosas e isso aparece de diferentes maneiras em outros artefatos espalhados pela loja, em suas falas e inscrições pelas ruas. Tais transbordamentos apontados pelo campo, em relação à dicotomia, definem a escolha teórica do termo “pichação/graffiti” (os dois termos unidos e separados por uma barra) para falar sobre o objeto. No encontro ao acaso com a pichadora/grafiteira, ela se empenha em selecionar pontos que julga importantes de serem abordados na pesquisa, ou seja, a pichadora/grafiteira desenha caminhos para o etnógrafo percorrer. Esse encontro ao acaso propiciou o contato com a interpretação da pichaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 138 ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI dora/grafiteira sobre as “tretas” em torno das acusações de “caguetagem”, dando sentido aos indícios de rixas entre pichadores/grafiteiros inscritos nos muros, os quais estávamos procurando compreender. Interpretações de interpretações que vão intensificando a densidade das teias de significações. Nas reuniões do grupo “contra-hegemônico” de pesquisa do qual participamos, falamos em “grafismos urbanos”, termo apropriado por uma das pichadoras/grafiteiras que até então o desconhecia. Tal apropriação evidencia que o etnógrafo pode influenciar o processo de construção de visibilidades/ invisibilidades. Dito de outra maneira, a intrepretação do etnógrafo redesenha a interpretação do nativo sobre sua cultura, (re)intrepretação esta que deve ser intrepretada pelo etnógrafo. As pichações/graffiti são, portanto, imagens interpretadas e interpretativas. É possível, portanto, interpretar a cidade como um conjunto partilhado por múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente, a pichação/graffiti como um ponto de encontros discordantes. Ao intervirem no espaço urbano, os pichadores/grafiteiros acabam por problematizar (conscientemente ou não) a pretensão de contribuírem para o estabelecimento vertical de relações entre público e privado, além de trazerem à tona o caráter dinâmico, interativo e conflitivo das esferas, a privatização do público e a publicização do privado. A prática da pichação/graffiti sugere uma urbe que não é dada de antemão e cujos espaços são concebidos no jogo de relações de forças e de interferências múltiplas que se dá a cada instante. De fato, a experiência etnográfica parece progredir “menos por uma perfeição de consenso do que por um refinamento de debate “ (GEERTZ, 1978 p. 20). Como se de certa forma, a pichação/graffiti pudesse exemplificar o interpretativismo ou encarnar a descrição densa. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS BIBLIOGRAFIA 139 AUSTIN, John L., How to do Things with Words: The William James Lectures delivered at Harvard University. Oxford : Clarendon, 1962 [1955]. BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1996. BAUDRILLARD, Jean. Kool Killer ou a Insurreição pelos signos. In: A troca simbólica e a morte. São Paulo: Loyola, 1996. BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude & PASSERON, Jean-Claude. Ofício de sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Petrópolis-RJ: Vozes, 2004. CALDEIRA, Teresa. A presença do autor e a pós modernidade em Antropologia. Novos Estudos Cebrap, n. 21, julho de 1988, p. 116-132. CAMPOS, Ricardo. 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Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 ZULMIRA NEWLANDS, LAURE GARRABÉ e RODRIGO NATHAN DANTAS Palavras chave: pichação/graffiti; visibilidades/invisibilidades; cidade; interpretativismo. 141 Resumo A proposta deste artigo é apresentar alguns itinerários de campo da pesquisa etnográfica em que analisamos as tensões, conflitos, disputas, resistências e também conformidades e deformidades na construção das visibilidades/ invisibilidades dos pichadores/grafiteiros de Santa Maria, interior do Rio Grande do Sul. Os dados indicam uma grande efervescência semântica em torno da pichação/graffiti, sendo possível interpretar a cidade como um comum que é partilhado por múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente, a pichação/graffiti como um ponto de encontros discordantes. Os processos de construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros desenham e redesenham a postura do etnógrafo, como se, de certa forma, a pichação/graffiti pudesse exemplificar o interpretativismo ou encarnar a descrição densa. Abstract Keywords: graffiti; visibility/ invisibility; city; interpretativism. The purpose of this paper is to present some of ethnographic research field routes in which we analyze the tensions, conflicts, disputes, resistance and also compliance and deformities in the construction of visibility/invisibility of graffiti artist Santa Maria, countryside of Rio Grande do Sul. The data indicate a large semantic effervescence around the graffiti artist, and you can interpret the city as a common that is shared by multiple and conflicting individual perceptions, more specifically, the graffiti as a point of disagreement meetings. Construction processes of visibility/invisibility of graffiti artist design and redesign the ethnographer’s atittude, as if, somehow, the graffiti could exemplify the interpretativism or embody the thick description. Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em abril/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141 Artigos Trajetórias de vida do lixo: a interface entre meio ambiente, pobreza e empoderamento no município de Santa Maria-RS, Brasil João Vicente Costa Lima Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Endereço postal: Av. Álvaro Otacílio, 3781; Apto. 613, Ponta Verde. 57.036850 Maceió/Alagoas. Isabel Padoin Professora de Sociologia do Centro Universitário Franciscano, Rio Grande do Sul (UNIFRA/RS). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria, Rio Grande do Sul. INTRODUÇÃO O presente texto objetiva compreender o tipo humano cuja vida, no sentido amplo, é perpassada por eventos econômicos e sociopolíticos diversos que giram ao redor do antigo depósito de lixo da sede municipal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Brasil.1 Conhecido por Lixão da Caturrita, em um passado recente, centenas de pessoas tinham naquele espaço o horizonte possível para sua sobrevivência, tirando, pois, dali o seu sustento e construindo, simultaneamente, redes de sociabilidade ricas e complexas, à margem de determinações econômicas redutoras. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 144 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO A realidade complexa do lixo na cidade de Santa Maria foi administrada pelos órgãos públicos sempre a partir de visões da realidade e de políticas públicas estanques, compartimentalizadas. De um lado, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEPAM) enxergava apenas a realidade da área degradada, dos resíduos sólidos e líquidos que afetavam o ecossistema de referência. De outro, a Secretaria de Assistência Social do município tentava lidar com o problema de uma multidão de pobres com pouquíssimos recursos (material e de capital social) para se inserirem no mercado de trabalho formal. O órgão ambiental fiscalizador não enxergava o indivíduo miserável que transitava pelo Lixão como parte da equação ambiental; via, sobretudo, a dimensão biofísica. As políticas implementadas pela Prefeitura focalizavam estritamente o indivíduo e a família na sua condição de pobreza, excluindo a dimensão ambiental.2 O antigo Lixão da Caturrita, como lugar degradado em rotinas que interseccionavam miséria, humilhação e situação de risco – saúde pública, degradação ambiental – deixou de existir. Em seu lugar, o poder público viabilizou a alternativa do tratamento do lixo por uma empresa focada em novas tecnologias tidas como ecologicamente corretas. O início do funcionamento da empresa trouxe a formalização do trabalho para 55% dos antigos catadores do lixo. Os outros 45% não foram absorvidos pela empresa e, tampouco, puderam voltar à condição de catadores do antigo lixão, nas condições de degradação de outrora e seguiram os caminhos incertos do trabalho informal na coleta de lixo pela cidade afora. O presente artigo se volta para estes dois grupos humanos – derivados da sociabilidade e economia do antigo lixão –, analisando como se articulavam, ali, os elementos significativos, formadores de um padrão de racionalidade cotidiano, a saber: a valoração do agir econômico nos termos de uma “cultura do lixo” e de suas conexões com a vida política comunitária. Perscrutam-se as conexões existentes entre a economia e a “cultura do lixo” e a formação de uma ordem política comunitária. Este objeto real – dos indivíduos com seu capital social comunitário, ligados pelas injunções econômicas e simbólicas do lixo – se constitui em rica oportunidade para testar as possibilidades das categorias explicativas de capital social, pobreza e meio ambiente; e também as formas sociológicas correspondentes aos elementos constitutivos da ação no contexto da pobreza e do lixo podem enriquecer uma teoria social do meio ambiente. Nesta análise, são identificados os atores, os espaços e as práticas que estabelecem novos arranjos entre sustentabilidade e ativismo cívico, tendo como ponto de convergência a economia do lixo e as formas de soRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 145 ciabilidade correlatas. Para além do tema convencional da preservação do meio ambiente em si, pondera-se a ideia de preservação da vida humana e do meio ambiente em contextos degradados, e dos níveis de articulação e composição entre uma realidade (humana) e outra (meio ambiente). No cotidiano das cidades brasileiras, as realidades humana e ambiental são tratadas, reiteradamente, por soluções institucionais compartimentalizadas cujos resultados são quase sempre marcados por unilateralismos.3 Se, no plano macro, os governos não foram capazes de prover políticas públicas, em geral, e políticas econômicas, em particular, sustentáveis, no plano das relações interpessoais, no caso em estudo – da cidade de Santa Maria –, o ponto de intersecção desses níveis de realidade está nas ações cotidianas dos catadores de lixo, que apreendem em um plano único as realidades da pobreza e do meio ambiente.4 CONEXÕES ENTRE POBREZA, DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E MODERNIDADE BRASILEIRA A realidade brasileira em sua singularidade acomoda diversos cenários sociais, políticos e econômicos marcados por ambiguidades e contrastes. Apesar do quadro recente de diminuição das desigualdades no Brasil, ainda são encontrados grupos humanos que carregam consigo as marcas da exclusão social, política e econômica, como é o caso dos ex-catadores do Lixão da Caturrita. De acordo com dados, de 2012, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), levantados para a elaboração do relatório do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, fornecido para a Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, a população que sobrevive com menos de US$ 1,25 per capita/dia caiu de 36,2 milhões, em 1990, para 8,9 milhões, em 2008. Tais dados demonstram que a pobreza extrema na sociedade brasileira, hoje, representa menos de um quinto da registrada em 1990.5 E mostram também que nesta mesma sociedade a democracia coexiste com desigualdades sociais intoleráveis que comprometem o destino de milhões de pessoas compelidas a viver indignamente. O universo dos catadores informais se constitui de pessoas cujas vidas são perpassadas por restrições de toda ordem: poucas oportunidades para o desenvolvimento de capacidades e habilidades e realização de potencialidades.6 Os objetivos da conservação do meio ambiente não se coadunam instantaneamente com os objetivos racionalizados pelos indivíduos pobres e sua lógica de ocupação do espaço – em lugares precários, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 146 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO sem saneamento básico e energia elétrica, sem atendimento à saúde, com escolas e abastecimento de água deficitários – a despeito da profunda empatia pelos valores ambientais evocados ali e aqui. Estes atores, premidos pelas necessidades da sobrevivência, não retinham a temática da “preservação do meio ambiente” senão como uma preocupação marginal em meio a outras prioridades. As condições econômicas precárias – fome, desemprego e exclusão social – conformam uma realidade múltipla que amplifica os indicadores da degradação dos recursos naturais. Dada a interdependência entre as realidades ambientais e socioeconômicas, torna-se imperioso interpretar o fenômeno ambiental do lixo (degradação) como socialmente constituído pela realidade da pobreza, ainda que, do ponto de vista da renda, tanto os catadores informais como os recicladores (ex-catadores) não se enquadrem mais na categoria “pobre”.7 No caso brasileiro, a pobreza tem conexão direta com os processos que levam à destruição maciça dos bens naturais. Tais processos contribuem para a configuração de uma realidade que cria obstáculos ao surgimento de condições favoráveis ao próprio desenvolvimento humano. A pobreza intensifica-se nas periferias e aprofunda a depreciação do capital humano e social, que retroalimenta a conduta de degradação do meio ambiente pelo indivíduo pobre.8 Para se compreender tal fenômeno, é preciso que se faça uma articulação entre a realidade vivida por esse indivíduo e aspectos mais amplos da chamada modernidade na qual se insere. Segundo Giddens (1997), no período de radicalização da modernidade ocorre uma perda da segurança proporcionada pelas instituições modernas da política e da sociedade, pelas injunções de uma ordem global que não representa uma sociedade mundial, mas uma sociedade de espaço indefinido, onde a autoridade e outros mecanismos encontram-se descentralizados. Há uma correspondência entre o mundo social e as pessoas afastadas dos laços comunitários, capazes de construir suas próprias narrativas biográficas, de adotarem seus estilos de vida, ou seja, escolherem suas identidades e seus projetos de mundo. Com os baixos níveis de confiança, a rede de compromissos humanos se desfaz, fazendo com que o mundo pareça um lugar mais assustador e perigoso para se viver. É nesse contexto reflexivo e societário que os problemas da pobreza humana e da degradação ambiental são representados de forma articulada ou separadamente.9 Bauman (2005) postula o surgimento dos problemas do refugo (humano) e da remoção do lixo (humano): milhares de pessoas, antes inseridas no processo de progresso da humanidade, tornaram-se descartáveis. Esses problemas saturam todos os setores importantes da vida social e tendem a Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 147 dominar as estratégias de vida. As regras que ordenam essa realidade são imprevisíveis, pela volatilidade da posição social, e a redução significativa das perspectivas, que não podem se orientar por diretrizes universais. Isso acaba por assombrar os indivíduos que, no decorrer do tempo, perdem a autoconfiança e a autoestima e são obrigados a responder à condição de modernizarem-se ou perecerem. Estes indivíduos, vistos como parasitas, vivem circunscritos à marginalidade, são tidos como trapaceiros que ameaçam o tecido social da pujante sociedade de consumo. Despossuídos, estão fora do sistema funcional, e se encontram emudecidos e sufocados pela estrutura política enviesada do mundo globalizado. Indivíduos de outros segmentos sociais menos vulneráveis se encontram também inseguros quanto ao seu futuro. A intensificação dos riscos sociais afeta a sua capacidade racional de compreenderem as condições reais de sua vida e de previsão dos resultados de suas ações, criando as bases sobre as quais se firmam os processos de individualização e globalização da sociedade. Outras dinâmicas macroeconômicas (como a desregulamentação, flexibilização) são filtradas pelo cidadão como problemas privados, como resultados de suas falhas individuais. As soluções para estas questões sistêmicas pesam sobre os ombros do indivíduo. Dessa forma, um quadro incongruente combina o microcosmo da conduta individual com o macrocosmo dos problemas globais territorialmente insolúveis. Na situação em estudo, tanto os catadores informais como os trabalhadores agora formalizados na empresa de reciclagem guardam certa ambiguidade em relação ao quadro pintado por Giddens e Bauman. Certamente a realidade brasileira na qual originariamente estavam mergulhados os ex-catadores do Lixão da Caturrita apresenta toda a sintomatologia da insegurança institucional típica da esfera política precária de que falam os autores. Tem-se, ali, a tipificação perfeita do lixo humano removido porque espelha uma cidadania em frangalhos. Os catadores e ex-catadores se constituem, para as elites, um estorvo. Em cenários de profunda competição econômica e desarticulação política, a componente da imprevisibilidade e a redução das perspectivas criam as bases piores de projeção da vida individual e coletiva. Mas, esta marginalidade tomada como “coisa natural” na vida brasileira começa a sofrer objeção. Aqueles indivíduos mantêm-se próximos da marginalidade, ainda que não completamente excluídos da sociedade de consumo e da arena política. Há um senso de individualidade e perdas e ganhos dos laços comunitários, com níveis instáveis de confiança e comprometimento. Eis aqui a conexão com a dimensão política. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 148 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E CAPITAL SOCIAL Sorj (2004) identifica no Brasil a fragilidade de determinados atores sociais para a mobilização e pressão em relação a diversas questões públicas, o que, segundo ele, revelaria uma crise de representação. Vigoraria uma nova dinâmica de individualização presente nas mais variadas esferas da sociedade, afetando negativamente a formação das identidades coletivas mais cooperativas, reduzindo a participação dos sujeitos nas discussões sobre o seu próprio bem-estar. Essa crise de representação política seria proveniente do distanciamento dos partidos políticos em relação às demandas apresentadas pela sociedade civil. A crise no mundo da política reverberaria em uma sociedade fragmentada, com a ampliação do quadro de desigualdade social e de relações sociais fragilizadas a interferir na auto percepção dos indivíduos como sujeitos de direitos. A cidadania seria uma propriedade distribuída de forma desigual entre os sujeitos sociais, que estratificaria as chances de bem-estar, em descompasso com os preceitos e os objetivos do bem-comum. O dado incongruente, assinala Baquero (1998), é que não há uma cultura política enraizada no Brasil. As pessoas têm baixa adesão aos princípios democráticos, pouco hábito de participar de assuntos políticos, delegando esta função às instituições.10 Ainda sobre uma racionalidade não democrática em contextos democráticos, as ações participativas ligadas à autopromoção dos indivíduos supõem graus de comprometimento e envolvimento em contextos de risco (DEMO, 1993). São requeridos recursos cognitivos e de composição/ interação e organização dos cidadãos para agir em um contexto de disputas pelo poder, e de pressão sobre o Estado. Na contramão está a “cultura” da dependência da ação estatal e da atitude segundo a qual o indivíduo espera a solidariedade dos outros e culpa a si próprio pelos fracassos que contabiliza. Em meio a esse desarranjo, os indivíduos buscam formas de identificação imediata com base em afinidades que conformam problemas comuns e específicos.11 Essas novas identidades não preceituam a igualdade; ao invés disso, reivindicam e propõem políticas de discriminação positiva capazes de fortalecer subculturas particulares, afirmando valores diversos e incomensuráveis entre si. Não encontramos, aí, uma preocupação direta com a noção republicana de espaço público e do bem comum. São sedimentados os sentimentos de desconfiança e incerteza, sobretudo, no tocante à vida política.12 As relações sociais se estabelecem por meio de identidades que corroem os sentimentos de comunidade, os ideais de pertencimento a um mesmo “mundo”, a partir do compartilhamento de valores, de sentimentos e problemas. Bauman (2003) toma o sentido de comunidade como uma Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 149 idealização de uma ordem de mundo cooperativo e emocionalmente intenso capaz de contrapor-se às soluções calculistas de indivíduos indiferentes às necessidades dos outros. “Comunidade” ganha expressividade mais como uma categoria emocional do que descritiva de um contato humano de confiança e comprometimento mútuos. No mundo real, as pessoas já não dividem suas histórias de vida, as comunidades tornam-se dispensáveis e os laços de lealdade entre a vizinhança e a família se desfazem. A decadência da comunidade esfacela o sentido de “sociedade”, que deixa de ser pensada e vivida como um conjunto de sujeitos “iguais” na distribuição de recursos para ser precedida pela noção de pertencimento ao “meu grupo”. Nesse ambiente de desconfiança, os indivíduos perdem a crença na política partidária, nas eleições e nos políticos, como mecanismo de transformação da sociedade. Por isso, Baquero (1994) enfatiza a falência do Estado para regulamentar as relações sociais, ao testar sua hipótese de que nos países da América Latina vigoram democracias delegativas e não representativas. Assim, os grupos marginalizados não possuem poder político para, com base em seus interesses, pressionar os atores políticos relevantes na busca de soluções ou no enfrentamento de problemas diversos. O antídoto a um Estado desconectado dos interesses públicos são as redes (verticais e horizontais), que mobilizam indivíduos e grupos em torno de objetivos. O empoderamento dos indivíduos incrementa as disputas no interior das estruturas excludentes. Empoderamento no sentido de Freire (1992), isto é, de ações que trazem mudanças e promovem o fortalecimento dos atores sociais; que levam à superação de dificuldades e à conquista de direitos. Para Baquero (2005), o empoderamento implica um indivíduo com maiores capacidades de cuidar de si e de interagir (cooperação voluntária), de compreender sua condição, em termos instrumentais, de tomada de decisões e mudança. A construção das redes sociais – que exige um conjunto de recursos enraizados, disponibilizados e utilizados pelos indivíduos – pode gerar efeitos econômicos e sociais significativos, que dependem da produção de externalidades, como o aumento da reserva de conhecimento e a redução de comportamentos individuais oportunistas. O capital social reduz os custos das transações sociais, colaborando para soluções pacíficas de conflitos. A literatura demonstra que a inter-relação entre capital social e empoderamento possibilita a superação da pobreza que atinge pessoas e comunidades, modificando as relações de poder em favor daqueles em situação desfavorável, implicando maior controle sobre os recursos disponíveis e sobre sua própria vida (PASE, 2007). Nesse contexto, emerge uma ação racional cooperativa que fortalece a solidariedade, denotando, assim, um comprometimento com o outro. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 150 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO Putnam (2002) sublinha: laços fortes como os de parentesco possuem papel significativo na resolução dos dilemas da ação coletiva; porém, os sistemas de participação cívica têm maiores possibilidades de abarcar amplos segmentos da sociedade. O capital social reporta-se à estrutura social e se assenta em uma lógica de interação e regras de decisão coletiva, em normas e sanções formais, obrigações e expectativas informais, ancoradas na confiança, informação, relações de autoridade e organizações sociais. As pessoas que se reúnem em associações possuem maior consciência e participação na política, e confiança social. Logo, quanto maior o capital social da região mais eficaz será seu governo.13 Segundo Putnam, em uma comunidade cívica, as associações proliferam, as afiliações se sobrepõem e a participação se alastra, contribuindo para o desenvolvimento da coesão social, da harmonia política e do bom governo, na medida em que prevalece a confiança interpessoal e a cooperação solidária e coletiva. Para isto, é mister que haja o estabelecimento de acordos entre os atores minimamente informados e confiáveis, sob pena da emergência dos vícios típicos da falta de virtude cívica que se baseia na preponderância de comportamentos oportunistas, orientados para maximizar o ganho privado. O resultado geral é uma situação em que as pessoas só interagem na esfera privada, abandonando a esfera pública. Assim, os laços de cooperação relacionam-se diretamente com o nível de confiança interpessoal existente na comunidade. A confiança interpessoal é uma garantia de que os indivíduos se comportarão de modo previsível e, em consequência, os contratos e as leis serão respeitados e a cooperação será incentivada.14 São utilizados como indicadores de capital social a participação em organizações sociais, atitudes cívicas, cooperação e sentido de confiança entre os membros da comunidade. A elevação dos índices de capital social pode ter efeitos positivos pelo impacto na democracia e no desenvolvimento socioeconômico. De acordo com Baquero, “o capital social sustenta que a participação em associações voluntárias gera normas de cooperação e confiança entre os seus membros e que essas normas são aquelas exigidas para a participação política” (2006, p. 204). Nesse sentido, a ênfase no desenvolvimento local é importante, dado ser no local que se enraízam as experiências, os métodos e as práticas que formam um conjunto de estratégias e táticas para a solução dos problemas cotidianos. É nesse âmbito que os projetos são negociados, criticados e/ou acolhidos. Nesta pesquisa, encontramos o fenômeno do empoderamento comunitário, na medida em que se reportava a catadores e recicladores que, apesar Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 151 de terem trajetórias diversificadas em suas vidas, continuavam todos morando nos mesmos bairros e com os mesmos vínculos sociais (comunitários), ora tênues, ora mais fortes. Dessa maneira, tentamos verificar de que forma estes vínculos se estabeleciam e de que modo podiam (ou não) mitigar os problemas enfrentados no dia a dia. O lixo, contudo, precisava ser abordado ainda mais pontualmente pelos subsídios que fornecia para a interpretação dos descaminhos da vida socioambiental brasileira. O LIXO NA VIDA DA CIDADE DE SANTA MARIA No Brasil, verifica-se estreita ligação entre o destino do lixo urbano e o fenômeno da concentração urbana, que é da ordem de 80%, caracterizado pela ocupação pouco planejada, conflituosa e caótica – com a ocorrência da contaminação dos mananciais nas superfícies, nos subterrâneos, principalmente nas periferias, em razão do inadequado saneamento (GUERRA e CUNHA, 2005).15 Na legislação brasileira é de responsabilidade das prefeituras o tratamento e o destino do lixo urbano. A forma mais utilizada para o destino final do lixo no Brasil é o depósito a céu aberto designado de “lixão”.16 Em 2000, havia 5.993 lixões no Brasil, sendo que a maior parte encontrava-se localizada nas regiões com menos de 15 mil habitantes (ABREU, 2001). Homens, mulheres e crianças vivem as jornadas diárias de trabalho nos lixões, expostos a doenças e riscos: movimentação de caminhões, poeira, fogo, objetos cortantes e contaminados, sem falar no (gravíssimo) consumo de alimentos podres. O mundo do trabalho do lixo é degradante e de baixíssimo reconhecimento social, além do sofrimento gerado por meio da discriminação e preconceito.17 A pesquisa confirmou a hipótese de que os problemas, riscos e eventos de degradação ambientais são distribuídos espacialmente, segundo uma estrutura de grupos e classes, concentrando-se nas áreas habitadas pelos excluídos. O Lixão da Caturrita permaneceu operante por mais de 20 anos; foi desativado, em 2008,18 com o esgotamento de sua capacidade de receber resíduos e pelos problemas ambientais detectados. Já havia ocorrido no ano de 2005 a interdição do Lixão e a expulsão de 180 famílias. A força policial monitorava a área e a Prefeitura forneceu cestas básicas, por 90 dias, às famílias que se sustentavam do lixo, além de escola para os filhos dos catadores. Essas ações falharam e os catadores voltaram ao Lixão, mesmo com a proibição da Justiça.19 Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 152 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO Em março de 2008, através de concessão pública emitida pela FEPAM, os resíduos urbanos deixaram de ser depositados no Lixão da Caturrita e passaram a ser destinados a uma empresa privada que passou a tratar os resíduos de 20 municípios da região central, região serrana e da fronteira do Estado. Desde então, o lixo passa por três etapas: a triagem (separação dos materiais recicláveis20 e orgânicos), a compostagem (transformação do material orgânico em adubo), e a destinação final (os resíduos não aproveitáveis comercialmente são colocados no aterro sanitário, em uma vala, forrada com lona, para evitar vazamentos no solo).21 Eram tratadas diariamente 280 toneladas de lixo, o que empregava 80 funcionários, em sua maioria ex-catadores do antigo Lixão da Caturrita. De uma história da cidade segregada para indivíduos pobres vivendo do lixo, desde a década de 1980, os anos de 2010 sinalizaram uma fase de transição. Não são mais atormentados pelas rotinas da luta contra a fome, mas os ganhos sociais, por mais significativos que tenham sido para o conjunto da sociedade brasileira, ainda os colocam às margens das dinâmicas econômicas e políticas ótimas.22 Isto pode ser melhor percebido considerando-se o grau de inserção e cooperação dos indivíduos nos assuntos comunitários.23 ASSOCIATIVISMO E CAPITAL SOCIAL A realidade do capital social no contexto das relações sociais não é um dado tangível diretamente, porque relacionado a aspectos subjetivos referidos na cultura. Assim, tentou-se dimensionar o capital social presente nas relações sociais estabelecidas pelos funcionários da empresa de reciclagem e dos catadores na informalidade, aferindo níveis de participação em redes e associações, e da vigência ou não de reciprocidade, confiança e cooperação. ENTRE OS RECICLADORES Dentre os funcionários da empresa entrevistados nesta pesquisa, 48,4% afirmaram não freqüentar associações de nenhum tipo. As justificativas para essa atitude variaram: “falta de tempo” (53,3%), preferindo estar com a família; “não tem interesse nenhum em participar” (20%) e crença de que “não resolve, não adianta nada” (13,3%). Ainda, 10% alternam entre: “tomar providências com as próprias mãos”, quando, por exemplo, improvisam diante de um alagamento; ou “fingem não tomar conhecimento do problema”, se não os afeta diretamente. 51,6% disseram participar de entidades associativas, sendo as mais citadas as associações de cunho religioso, vinculadas a orientações: (35,5%), católica, evangélica, espírita e umbanda. Na mesma Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 153 proporção, aparecem os que informam vincular-se a associações de moradores (35%); estas vistas como mais diretamente envolvidas na resolução dos “problemas dos bairros”, promovendo mobilizações, reuniões e levando as reivindicações à Prefeitura da cidade. Os motivos mencionados pelos funcionários da empresa para participar das entidades associativas variam entre: “defender as ideias nas quais acredita ou acha justas” (43,8%); “vontade de ajudar os outros” (25%); “lazer” (12,5%) e “outras razões” (18,7%). Efetivamente, apenas 13,3% participavam das reuniões e levavam as reivindicações à Prefeitura. Quando indagados sobre relações interpessoais, 83,9% assinalaram que possuíam uma boa relação com a vizinhança, não obstante se referirem a vizinhos como “um bando de fofoqueiros24 que vivem cuidando da vida dos outros” (sic). Outras atitudes foram indicadas: “conversam às vezes com o vizinho” (41,9%); “conversam sempre” (16,1%); “raramente” (25,8%) e “nunca” (16,1%). ENTRE OS CATADORES Apenas 35,7% dos catadores informais não participavam de entidades associativas, por falta de interesse e de tempo. Dos entrevistados, 64,2% garantiram que participavam de associações religiosas, como Igrejas e Centros de Umbanda, por acreditarem na importância para a melhoria do bem-estar, da saúde e das relações familiares. Outros 21,4% dos indivíduos que frequentavam as organizações religiosas participavam também da associação de bairro e de seus respectivos eventos. Para 78,5% dos entrevistados, as relações sociais com a vizinhança eram valorizadas; afirmam haver, ao longo do tempo, estabelecido relações de amizade e respeito. Somente 21,4% informaram não valorizar os vizinhos, atribuindo isso a desentendimentos e fofocas. Depreende-se que as redes sociais desenvolvidas pelos recicladores e catadores são mais duradouras e confiáveis entre parentes e amigos, pois envolvem obrigações mútuas e modalidades diversas de reciprocidade. Para além da esfera familiar, não ocorreu mudança nas atitudes e no comportamento dos cidadãos. Se, genericamente, as associações comunitárias e religiosas constituem-se em pontos de engajamento cívico – porque são o depósito primário de capital social gerador de “empoderamento” pelo altruísmo, voluntarismo e filantropia inerentes –, no contexto dos recicladores não foram criadas as disposições mais efetivas de inserção na esfera pública. Verificou-se que os catadores tinham uma atitude mais voltada às preocupações da comunidade comparativamente aos trabalhadores formais. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 154 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO RETOMANDO AS HIPÓTESES Como primeira hipótese a nortear esta pesquisa, considerávamos que, excluídos do mercado formal de trabalho, os catadores apresentariam uma piora acentuada na qualidade de vida, comparativamente aos recicladores incorporados pela empresa, no tocante a indicadores socioeconômicos e de capital social. Em verdade, relativamente aos ganhos financeiros, os catadores informais apresentam média um pouco superior aos recicladores,25 ainda que estes últimos destacassem a maior segurança que o emprego formal lhes trazia e uma redução de estigma, comparativamente aos primeiros, lançados à sorte nas ruas da cidade. Conforme se constatou nesta pesquisa, a oferta de serviços públicos de saúde, educação, segurança e infraestrutura sanitária para a população de baixa renda, na qual se inserem catadores e recicladores, é quase inexistente.26 Há um ponto de tensão perene, que é o rótulo do lixo a marcar os indivíduos. Os catadores explicitam, mais diretamente, sentimentos de vergonha e humilhação que carregam consigo. Por sua vez, os recicladores ainda sinalizam o desconforto da condição de trabalharem com o lixo, a despeito de ganhos outros, em termos de reconhecimento e segurança legal. A ideia difusa e positivada de que contribuem para equacionar o grave problema ambiental, na disposição de coletarem o lixo, nem de longe rivaliza com a imagem mais efetiva e velada de que, porque lidam com o lixo, fazem parte de uma classe marginalizada. Apesar de não estarem situados no intervalo de renda da pobreza e da exclusão extremas, e a despeito dos avanços nas políticas públicas para diminuição da pobreza e da exclusão social, o fantasma desses fenômenos ainda está à espreita. Os péssimos serviços públicos projetam um futuro mais como redemoinho e enclausuramento em um mundo (da cultura, da economia e da sociabilidade do lixo) do qual esses “trabalhadores do lixo” não conseguem sair. As políticas e ações governamentais ainda são deficitárias, no tocante à instrumentalização dos indivíduos para o alcance de patamares mais efetivos que lhes possibilitassem sair do encapsulamento em que se encontram. Já não são considerados extremamente pobres, mas têm muito pouco além do mundo estigmatizado da pobreza do lixo para sonhar e projetar um futuro.27 O grande recurso à mão dos catadores e recicladores pesquisados é o capital social comunitário, fruto de investimentos em instituições como igrejas e, principalmente, a família. Estas instituições produzem elementos de significado decisivo para os indivíduos se situarem no contexto. A família Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 155 é vista como entidade mais efetiva no enfrentamento de dificuldades econômicas, problemas de saúde e de outras adversidades. Contudo, as redes sociais que se formam não produzem um comprometimento com a causa comum, pública, restringindo, assim, o desenvolvimento do empoderamento comunitário. Toda ligação (sociabilidade) intensa vivida em âmbito micro da vida social não reverbera em formas e forças organizacionais mais abrangentes que promovam boa governança e possam ter uma escala econômica e política que favoreça o desenvolvimento dos indivíduos e de suas comunidades. Esperava-se, inicialmente, que os recicladores (com o ingresso no mercado formal de trabalho) provassem uma participação cívica mais ativa e inserção em redes sociais mais fortalecidas, o que, no entanto, não foi comprovado. A presente pesquisa corrobora o que já foi constatado em outros estudos (MARQUES, 2009) sobre a importância das redes sociais urbanas como suporte para os indivíduos em situação de pobreza e submetidos a diferentes graus de segregação. Essa dimensão coloca-se como indicação fática e crítica às teorias que reduzem as possibilidades da ação do indivíduo pobre às determinações estritamente econômicas, nos limites de seus rendimentos monetários ou, no acesso ao seu capital humano (boa educação e boas condições de saúde), tomado como um imperativo para aumentar as oportunidades de ascensão social. Embora as variáveis “rendimento monetário” e “capital humano” sejam importantíssimas – porque se reportam a estruturas objetivas que restringem as ações dos indivíduos pobres –, a realidade das redes de sociabilidade mostra margens de manobra e mobilização de recursos que atenuam e remediam os efeitos das estruturas precárias que incidem sobre esses indivíduos e suas redes. As redes sociais são afetadas pelas estruturas, e produzem coesão social, uma vez que são formas societárias cotidianas, relevantes na construção de identidades, na produção de um senso de pertencimento e de controle social nas comunidades. Os catadores e recicladores veem a atividade da política, nos contornos da política institucionalizada, circunscrita a uma esfera em que se movimentam os políticos profissionais, eleitos, geradores dos descaminhos que afetam a todos. Os catadores e os recicladores não se identificam com os agentes políticos e criticam o “mundo da política”. O senso de comunidade que exercitam vem pelas vivências primárias da família que, em um cotidiano de dificuldades, opera mais em bases reativas que dialógicas e propositivas. Assim, funciona bem o socorro recebido quando de um alagamento no período das chuvas, mas o processo político mais abrangente é interrompido ao final da resposta a este estímulo climático pontual. De todo Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 156 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO modo, nesta pesquisa, constatou-se que os laços parentais são mais fortes entre os trabalhadores informais (100%) do que entre os formais (60%), no que se refere à preocupação em receber e retribuir auxílios prestados e valorização da família. Outro ponto de saturação nas entrevistas tinha a ver com o entendimento dos catadores e recicladores segundo o qual suas histórias de vida – marcadas pela economia e sociabilidade do lixo – não eram tão valorizadas pelos empresários, acadêmicos, político e, também, ambientalistas. Por isso, a conexão do lixo com o propósito de preservação ambiental é uma representação fraca, sem tradução nas fórmulas cotidianas da racionalização, mais dirigidas à sobrevivência econômica básica. Sobreviventes de um tempo recente de grandes privações, catadores e recicladores agem ainda, fundamentalmente, sob os signos da exclusão social. E outros muros os aprisionam nos espaços sociais de esquecimento, pois um novo ponto de saturação aflora facilmente nas falas: tendo perdido a infância no lixo, esses indivíduos sentem a falta de qualificação profissional e percebem que isto lhes diminui o leque de oportunidades de ascensão e mobilidade social. Não há correspondência entre as habilidades (pífias) desenvolvidas e as necessidades e demandas do mercado de trabalho crescente. CONCLUSÃO Sob a ótica da concepção e gestão de políticas públicas, restou demonstrados os muros sólidos que separam as dimensões sociais (dos movimentos sociais da luta por moradia, a pobreza e as condições habilitadoras da cidadania, como saúde e educação) das ambientais (os lixões e suas dinâmicas de degradação intrínsecas), percebidas, muitas vezes, como compartimentos separados de realidade, conflitando-se entre operadores das políticas públicas de plantão. O tema da integração dos organismos públicos que agem nesses campos de realidade delimitada, disciplinarmente, vem ganhando mais visibilidade e importância. Atores políticos, econômicos e governamentais vocalizam a crítica a uma cultura institucional marcada por unilateralismos, adensados por grupos ávidos por poder. A pesquisa mostrou que o Lixão e os processos de degradação ambiental correspondentes não são tematizados nos discursos dos recicladores e catadores, porque não guardam correspondência com uma ordem de prioridades engendradas por suas trajetórias de vida no lixo. Este aspecto, de fato, só pode ser apreendido e tratado em uma dimensão mais sistêmica. Não cabe aqui bestializar esses sujeitos. Uma estrutura de oportunidades lhes deu Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 157 como opção um curso de ação com claras direções e limitações. No contexto em que se discutem as bases de uma economia criativa e de suas conexões com a viabilização das condições habilitadoras para constituir o ator social competente para cuidar de si e participar da vida de sua comunidade em termos mais sofisticados, os recicladores e catadores são uma espécie de tipos humanos em um zoológico que não despertam maiores curiosidades dos visitantes. E são, no seu pequeno lugar circunstanciado, prova de anos de desgovernos e desencontros dos grupos e classes (movidos pelo auto-interesse) míopes para o conjunto da realidade brasileira socioambiental. A ausência de políticas públicas ou a vigência de políticas públicas míopes gerou realidades míopes a delimitar, em períodos de tempo e ciclos econômicos, as ações dos indivíduos em um nexo causal direto, ainda que os resultados finais (da história dos indivíduos e das instituições) dependam de outros fatores cognitivamente divergentes de quaisquer modelos deterministas, porque a vida cotidiana é mais rica que nossos modelos. E, em uma fração de tempo, das histórias de vida no lixo erguem-se as dinâmicas societárias – nos bairros e redes de parentesco – que, ainda que instáveis e limitadas, reúnem significados e projetos de ação que podem prover novos enquadramentos e possibilidades de rompimento desta realidade enclausurada pelos ditames institucionais enviesados. A vida nos bairros situados próximos ao Lixão continua. Há resquícios da degradação ambiental do lugar. Sob essa imagem dissonante vivem os indivíduos em suas rotinas e percepções ambíguas sobre o presente e o futuro. Seguindo suas vidas com os recursos disponíveis à mão, enxergam um mundo no qual querem se inserir, mas esse mundo lhes escapa. Quando olham ao redor, percebem-se mais próximos de um outro, o mesmo mundo da segregação de outrora. Contudo, é claro, não estão mais famintos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 158 NOTAS TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO 1 Com uma população estimada em 268.969 habitantes, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011a). 2 Ocorreu que, dadas as diferenciações institucionais (a FEPAM é um órgão estadual e a Secretaria de Assistência Social é ligada ao município), a falha na comunicação/articulação impediu a efetivação de ações complementares e integradas. 3 Segundo Neder (1996), a regulação do Estado no campo ambiental instituiu, no Brasil, mecanismos de centralização (federalização) e descentralização (órgãos locais, conselhos e instâncias de consultas e referendos) que deram efetividade à ação pública no tocante à preservação, à conservação e à gestão ambientais. Contudo, os institutos legais e instrumentos de gestão de políticas públicas criados não têm resolvido os problemas de gestão ambiental no país, pela ausência de tratamento integrado dos fenômenos ambientais e suas interfaces socioeconômicas (emprego, renda, política industrial e urbana, pobreza e exclusão social). 4 A pesquisa cujos resultados alimentam o presente artigo se utilizou do recurso metodológico “estudo de caso”, fazendo a descrição e análise em profundidade de um conjunto de características do fenômeno particular das histórias de vida dos catadores de lixo da cidade de Santa Maria-RS (Brasil). Assim, não operamos, aqui, com uma amostra estatística representativa de uma população; tomando alguns conceitos como instrumentos analíticos, procuramos compreender e explicar, globalmente, o fenômeno socioambiental em questão. 5 “Os dados indicam que os 20% mais pobres detêm apenas 3,1% da renda nacional, contra quase 60% de renda na mão dos 20% mais ricos” (IPEA, 2010). A baixa renda da sociedade brasileira, conforme o IBGE (2011b) concentra-se nos municípios de porte médio (10.000 a 50.000 habitantes), com “50% da população desses municípios vivendo com até ½ salário mínimo per capita. Nos municípios de 100.001 até 500.000 habitantes, entre os quais se situa Santa Maria (RS), 67,5% da população vive com até ½ salário mínimo de R$ 255,00 reais ou U$ 125,61 (Censo Demográfico, 2010). Neste artigo, considera-se a cotação de U$ 1,00 dólar para cada R$ 2,03 reais, segundo informação do Banco Central do Brasil para o dia 15/10/2012. Vide http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/ port/PtaxRPesq.asp?idpai=TXCOTACAO. 6 Para Costa (2010), o problema da informalidade no Brasil se agrava com o advento da empresa enxuta, a flexibilização e a desregulamentação dos mercados de trabalho – em um histórico de formalização precária do trabalho –, além de um contingente substantivo de trabalhadores que não vão se incorporar na economia formal, se não beneficiados por políticas educacionais efetivas. Do ponto de vista político-ideológico, e ainda sobre as temáticas sensíveis da inclusão e coesão da sociedade, o país debate-se em torno da “garantia e universalização de direitos versus flexibilização para a maior competitividade da economia”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 159 7 Leonard (1992) compõe um modelo com os fenômenos da modernização da agricultura, crescimento populacional, desmatamento, migração e criação de favelas no Brasil, com suas implicações ecológicas. 8 Segundo Preve e Corrêa (2007), a ocupação dos centros urbanos se deu de modo desigual (social, econômica, política e culturalmente), gerando os efeitos da marginalidade, violência e destruição das relações comunitárias. 9 Quando os indivíduos encontram-se na situação de não ter o que comer é porque tudo na sociedade lhe foi negado: “É uma espécie de cerceamento moderno ou de exílio” (PLASENCIA, 2001: 25). 10 Por sua vez, no Brasil não se instalou uma burocracia baseada em procedimentos de racionalidade e impessoalidade. A vida política e burocrática é permeada por relações pessoais de poder, de mando e obediência. Há pouca distinção entre as esferas pública e privada, e o Estado contemporâneo é visto com tons de arcaico e de ineficiência. Vide a seminal obra Os donos do poder, de Faoro, 2008. 11 Para Sorj (2004), novos valores ligados a gênero, opção sexual, grupos étnicos, religiões, regionalismos e meio ambiente balizam a formação de atores coletivos. 12 Baquero (1994) discorre sobre o ceticismo dos cidadãos na América Latina, em relação à democracia e sua capacidade de corrigir os problemas econômicos e sociais. 13 Nos seus escritos relativos aos Estados Unidos da América, a superioridade econômica desta nação está associada à sua tradição horizontal, em contraposição às redes de sociabilidade da América Latina, estruturadas de forma verticalizadas. 14 Diversos autores têm aferido a baixa confiança interpessoal nas frágeis democracias latino-americanas, enfatizando, principalmente, a desconfiança alusiva às instituições (partidos e governos): Rennó, 2001; Power & González, 2003; Baquero, 2006. 15 O termo “lixo”, do latim “lix”, significa cinzas ou lixívia. O verbo “lixare” representa lixar, desbastar. Em Português, remete a sobra, resto ou sujeira. O lixo, de maneira geral, é concebido como inútil, sem valor, tendo se tornado um problema na sociedade industrial, com o crescimento urbano desordenado, e consumo de matérias-primas, energia, e produção de resíduos em grande escala. A velocidade da produção e do consumo nas cidades brasileiras gera um volume de resíduos sólidos e gasosos em descompasso com a capacidade dos ecossistemas para fazer a reciclagem (CARVALHO e OLIVEIRA, 2003). 16 Em detrimento de outras formas de tratamento do lixo, como o aterro sanitário, a incineração, processos de compostagem e/ou reciclagem. 17 Cerca de 4 milhões de crianças menores de cinco anos morrem todo ano devido a enfermidades associadas ao lixo. Como seus pais, essas crianças também são nascidas nos lixões (PIRES, apud STECKEL, 2008). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 160 TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO 18 Data de dezembro de 1992 a ocupação ilegal, por cerca de 70 famílias sem-teto e sem condições financeiras para pagar aluguel, oriundas de áreas próximas ao antigo lixão. Nesses tempos difíceis, não havia nenhuma infraestrutura, o que não impediu que mais famílias “sem-teto” viessem nos anos subsequentes. Atualmente, esses bairros comportam cerca de 6.000 famílias, contabilizando um total de 21.000 mil pessoas. 19 Outras iniciativas foram testadas, como a criação de uma cooperativa, de um horto municipal, para a geração de renda aos catadores retirados do local, sem sucesso. 20 Após a reciclagem, são vendidas para empresas do ramo de plásticos e de metais. 21 Neste sistema, também existem drenos para o gás metano (que é reaproveitado em forma de energia) e para o chorume. 22 A pesquisa originalmente obteve dados orientados pela teoria do desenvolvimento humano de Amartya Sen, para correlacioná-los com os indicadores sobre capital social. Optou-se por excluir esses dados para o presente artigo. De todo modo, vale a pena fazer referência a algumas avaliações sobre a estrutura dos serviços públicos porque sinalizam traços de uma realidade marginal. Sobre as condições de “transporte coletivo no bairro”, entre os recicladores a avaliação preponderante é a “mediana” (61,3%) e entre os catadores, a “muito ruim” (71,42%). Sobre as condições de saúde do bairro, todos dependem do precário sistema público de saúde e, entre os recicladores e catadores, predominou o “muito ruim”: 90% e 78,5%, respectivamente. Foram relatados problemas como a demora no atendimento na realização de exames, e a grosseria da equipe médica. O principal problema social do bairro, segundo os entrevistados, é a “violência” (48,4%), seguido do “desemprego” (33,3%), seja para recicladores ou para catadores. 23 Os indivíduos pesquisados – recicladores e catadores informais – são naturais da cidade de Santa Maria e cidades vizinhas, e moram em bairros próximos à empresa recicladora (Alto da Boa Vista, Nova Santa Marta e Pôr-do-Sol) e ao antigo Lixão da Caturrita. Foram entrevistados 36 recicladores e 14 pessoas que ainda atuam como catadores na informalidade, de um total de 18 contatadas. Entre os recicladores e catadores informais, a faixa etária predominante (57%) foi a de 18 a 25 anos. A renda média familiar varia de R$ 735,00 ou U$ 362,06 (recicladores) para R$ 845,00 ou U$ 416,25 (catadores), estando um pouco acima dos R$ 622,00 ou U$ 306,40 equivalentes ao salário mínimo no Brasil. A renda dos recicladores (U$ 374,42/mês ou U$ 12,48/dia) e a dos catadores (U$ 430,46/mês ou U$ 14,34/dia) estão acima do teto de U$ 2,00/dia que delimita a condição de pobreza. Entre recicladores e catadores, 74% têm apenas o Ensino Fundamental. Também sublinhe-se que 96% das casas não estão regularizadas, isto é, as pessoas não têm o título definitivo registrado em cartório. 24 De acordo com Fonseca (2000), a fofoca envolve o relato de fatos reais Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN 161 ou imaginários sobre o comportamento alheio, orientado para fazer mal ao “outro”; é vista como um “desvio” de conduta do “outro”, uma vez que ninguém se considera fofoqueiro. A fofoca opera como uma força niveladora, usada por pessoas que se sentem inferiores e que só podem ressaltar seus status rebaixando o dos outros. 25 A despeito de todos os funcionários da empresa trabalharem com carteira assinada e cumprirem uma jornada de trabalho de 8 horas diárias. 26 Outros estudos (ALMEIDA et al (2008) também demonstraram que, não obstante as melhorias materiais da população pobre das cidades brasileiras, uma reprodução das distâncias sociais ainda ocorre, evidenciando-se, aí, a simbiose entre atenuação da pobreza e reprodução da desigualdade, e, mesmo, de aumento da desigualdade. Os autores exploram o processo “centro-periferia”, no que tange a produção, circulação e acesso a bens materiais e simbólicos de maior valor social e que denotam uma hierarquização do espaço social sem estritamente representar os descaminhos da exclusão social. 27 Empiricamente, a educação (ou a falta dela) é o principal correlato para a desigualdade de renda e inserção nas piores posições do mercado de trabalho no Brasil (SCHWARTZMAN, 2007). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 162 BIBLIOGRAFIA TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO ALMEIDA, Ronaldo et al (2008), Situações periféricas. Etnografia comparada de pobrezas urbanas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 82, 2008, p.109-130. BAQUERO, Marcello. Cultura política e democracia: os desafios das sociedades contemporâneas. Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), 1994. BAQUERO, Marcello et al (org.). 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Resumo O presente artigo analisa as trajetórias de vida dos indivíduos cuja subsistência dependia do antigo depósito de lixo da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil, formado por redes de sociabilidade que articulavam elementos de significado formadores de uma racionalidade cotidiana, que valorava o agir econômico nos termos de uma “cultura do lixo” e de suas conexões com a vida político-comunitária. Perscruta-se sobre a preservação da vida humana e do meio ambiente em espaços degradados, dos níveis de composição entre uma realidade (humana) e outra (meio ambiente), abordados no contexto institucional como realidades estanques. Apesar da recente diminuição das desigualdades no Brasil, os ex-catadores do Lixão da Caturrita ainda carregam consigo os traços do estigma e da exclusão sociais, e pouco racionalizam a temática da conservação do meio ambiente. Abstract The present work analyzes the life course of the people whose subsistence depended on the former garbage dump of the city of Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil, formed by sociability networks that articulated elements of significance, formers of a daily rationality, which valued the economical action in terms of a culture of garbage and its connections with the community-political life. The preservation of human life and of the environment in degraded contexts is investigated along with the levels of composition between a reality (human) and another (environment), approached in the institutional context as closed realities. In spite of the recent decrease in the inequalities in Brazil, the former waste pickers of the Lixão da Caturrita still carry the traces of the stigma and of the social exclusion and few rationalize the thematic of conservation of the environment. Recebido para publicação em setembro/2013. Aceito em junho/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164 As relações entre jovens infratores e a Polícia sob a ótica das lógicas penais, policiais e territoriais Géraldine Bugnon Doutora em sociologia pela Universidade de Genebra e pela Universidade de Lille 1. Realiza um pós-doutorado no CRRC (Centre Romand de Recherche en Criminologie), Universidade de Neuchâtel Bâtiment A.-L. Breguet 1, 2000 Neuchâtel. [email protected] Dominique Duprez Doutor em sociologia e diretor de pesquisa CNRS no CESDIP (Centre de Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales), Universidade de Versailles e Saint-Quentin-en-Yvelines 43, Boulevard Vauban 78280 Guyancourt – France. [email protected] INTRODUÇÃO As representações da Polícia brasileira de que dispomos estão intimamente conectadas a reportagens e obras cinematográficas sobre favelas, e mostram, com frequência, cenas das tropas de elite da Polícia militar em favelas do Rio de Janeiro. Duas delas, que obtiveram grande êxito tanto no Brasil como no estrangeiro, constituem exemplos típicos: o filme Tropa de Elite1, que exibe cruamente a atuação extremamente violenta do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) contra o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro; e o filme Cidade de Deus2, uma adaptação exitosa de um livro que coRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 166 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... loca crianças e adolescentes no centro das operações do tráfico de drogas. Podemos também invocar o livro e documentário realizado por MV Bill et Celso Athayde, Falcão: meninos do tráfico, projeto realizado entre 1998 e 2006. Os autores do livro3 afirmam que, dos 17 jovens entrevistados, 16 morreram durante a realização do documentário. Longe de pensarmos que essas representações não condizem em absoluto com a realidade; pelo contrário, o sucesso alcançado por elas se deve também ao realismo obtido graças ao apelo antropológico que permeia essas obras. No entanto, elas distorcem a percepção do trabalho policial comum e também das experiências cotidianas vivenciadas pelos jovens envolvidos na vida criminal, muitas vezes involuntariamente. Nosso objetivo manifesto é apreender as interações entre jovens e policiais, a partir do relato desses jovens no contexto de uma entrevista frente a um/a sociólogo/a europeu/éia. Os jovens foram todos submetidos a uma medida judiciária devido a atos infracionais cometidos antes dos 18 anos de idade e, portanto, foram julgados pelo sistema brasileiro de justiça juvenil. Além disso, é primordial salientar a diversidade dos perfis dos jovens em questão. Uma parte deles foi entrevistada durante o cumprimento de uma medida de internação e possui, em sua grande maioria, vivência no tráfico, com acusações por homicídio4; outros foram submetidos a uma medida de semiliberdade ou liberdade assistida, tiveram envolvimentos muitas vezes recentes e estão longe de serem identificados como profissionais na delinquência. Ademais, esses jovens foram entrevistados em duas metrópoles brasileiras (Rio de Janeiro e Belo Horizonte) que apresentam realidades distintas quanto à organização local do tráfico de drogas e das instituições judiciais. Tais variantes nos permitiram aprimorar nossa compreensão sobre os determinantes sociais e interações entre jovens e policiais. Entretanto, do ponto de vista socioeconômico, a homogeneidade é grande: a maior parte dos jovens moram em favelas, possuem baixa escolaridade e são oriundos de famílias de baixa renda, até mesmo em condição de extrema pobreza.5 METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS Inspiram-se no método utilizado por D. Duprez e M. Kokoreff, na pesquisa sobre o consumo e tráfico de drogas, levada a cabo na França (DUPREZ e KOKOREF, 2000). Foram realizadas entrevistas biográficas, dentro da tradição da escola de Chicago e da metodologia das narrativas de vida (BERTAUX, 1997), com 92 jovens submetidos a medidas socioeducativas. G. Bugnon, no âmbito de sua investigação doutoral sobre a medida de liberdade assistida, entrevistou 38 jovens (dentre eles, 3 garotas), entre Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 167 março de 2010 e abril de 2012. Os jovens foram entrevistados diretamente em português, dentro do centro social encarregado de executar a medida, em instituições que oferecem programas profissionalizantes, ou em diversos lugares públicos. A pesquisa conduzida por D. Duprez concentrou-se em jovens estabelecidos em três centros de internação da região metropolitana de Belo Horizonte. Da amostra total de 54 jovens acompanhados entre junho de 2009 a fevereiro de 2013, a metade era do sexo feminino6 (27). Os jovens foram visitados ao menos uma vez por ano; dentre eles, alguns duas vezes, no interior ou fora do centro; neste último caso, realizada uma vez quando já terminada a medida. As entrevistas contaram com a ajuda de um tradutor. Em alguns casos, o mesmo jovem foi visitado durante a internação; depois, no centro de liberdade assistida e, finalmente, na cidade. A taxa de recusa foi praticamente inexistente e isso se deve principalmente ao status de pesquisadores universitários estrangeiros7. Em todos os casos, os pesquisadores se encontraram com os jovens sem a presença dos funcionários das instituições, embora estes tenham sido os intermediários na seleção e contato com os jovens. A entrevista não se centrou exclusivamente na experiência do controle policial; preocupou-se mais amplamente com as diferentes implicações decorrentes das atividades delinquentes, a relação com a favela, a experiência no sistema judiciário, as perspectivas para o futuro, etc. A originalidade do protocolo da pesquisa residiu no fato de se haver procurado rever os jovens a cada ano, com o objetivo de acompanhar sua trajetória dentro e fora do sistema judiciário. Esta estratégia metodológica se mostrou mais profícua em relação aos jovens submetidos a medidas em regime fechado do que àqueles em regime aberto, visto que muitas vezes estes, uma vez liberados de qualquer obrigação judiciária, não mais puderam ser contatados. Adotou-se o procedimento de cruzar a informação obtida por meio dos depoimentos dos jovens com a análise de seus respectivos dossiês judiciários que incluem os depoimentos dos policiais e os informes socioeducativos elaborados coletivamente por uma equipe pluridisciplinar de técnicos (psicólogos e assistentes sociais encarregados de executar as medidas), posteriormente transmitidos ao juiz. Além disso, foram realizadas entrevistas com os juízes responsáveis pelos jovens, seus colaboradores (técnicos do Tribunal) e também com os técnicos que colocaram em prática as medidas socioeducativas em regime fechado e aberto8. Nossa reflexão está fundamentada em uma perspectiva interacionista que busca transcender a lógica maniqueísta pela qual os jovens infratores são vistos unicamente como vítimas da repressão policial. A relação de força atua claramente a favor dos aparelhos de violência legítima do Estado (demonsRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 168 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... traremos, mais adiante, que a “guerra” entre policiais e traficantes provoca mais mortes dentre estes). Assim, as relações entre policiais e jovens são complexas e co-construídas ao longo das interações. Mostraremos que se, por um lado, esses jovens conseguem antecipar, contornar e mesmo evitar o controle policial, por outro, são submetidos às normas de funcionamento do “mundo do crime” que, muitas vezes, os deixam mais expostos a sanções penais que os maiores de idade. Nosso objeto de estudo tornou particularmente difícil (para não dizer impossível) uma análise interacionista clássica, baseada na observação das relações cotidianas entre jovens e policiais. Sendo assim, decidimos acessar essas relações por meio dos depoimentos feitos pelos jovens. Isto implica evidentemente certos limites. Os discursos produzidos em entrevistas são frutos de uma seleção de fatos, de uma reconstrução de sentido a posteriori, além de um vínculo particular estabelecido entre o pesquisador e o entrevistado. O grande número de jovens entrevistados (92) em contextos de pesquisa bastante diferentes – além do cruzamento sistemático dos depoimentos entre si e com a literatura existente – permite-nos garantir a validade dos resultados obtidos e o alcance geral de nossas reflexões. Entretanto, o ponto de vista dos policiais não está totalmente ausente no nosso material de pesquisa, pois tivemos acesso aos dossiês judiciários dos jovens que estavam em internação. Os relatórios das audiências judiciárias retomam as descrições policiais dos atos pelos quais os jovens foram acusados (a maior parte das vezes contestados por estes), além de disponibilizarem informações sobre os contextos de intervenção. Coube-nos fazer, posteriormente, a análise compreensiva dos dossiês e dos depoimentos. Ademais, a literatura científica consultada sobre a Polícia no Brasil nos permitiu confrontar os depoimentos dos jovens com o funcionamento da instituição policial. Nosso método de investigação não pretende, no entanto, equiparar de maneira simétrica jovens e policiais, e sim explicar as relações entre estes dois grupos, a partir da perspectiva dos jovens em questão. Portanto, nosso estudo se inscreve no âmbito de uma “sociologia da experiência”, que entende cada indivíduo como agente de sua própria realidade em que este, dentro de certas margens de manobra, pode “dominar conscientemente, de certa maneira, sua relação com o mundo” (DUBET, 1994: 105). Se o conceito de experiência abrange as ações que os indivíduos exercem para organizar seu cotidiano, e este depende das condições sociais que os cerceiam, torna-se necessária uma articulação das lógicas de ação que permitem apreender a capacidade que esses jovens possuem de serem eles próprios os agentes da mudança, a exemplo do que fez F. Dubet (1987) ao descrever a experiência Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 169 da “galère”9 (“vida dura”). Portanto, ao priorizar o ponto de vista dos atores, esta sociologia da experiência visa compreender a maneira como eles constroem sua realidade social a partir de diferentes lógicas de ação. Após uma introdução dedicada à apresentação de alguns elementos do contexto da violência urbana e policial no Brasil, desenvolvemos nossa discussão em três partes. A primeira apreende as interações entre jovens e policiais, partindo da condição do jovem, com o objetivo de responder ao seguinte questionamento: de que maneira o fato de ser menor de idade, homem (mais que mulher), conhecido (ou não) pelos serviços policiais, influencia as modalidades e as consequências do controle policial? Em uma segunda parte, as relações entre jovens e policiais são analisadas sob o viés das lógicas de funcionamento inerentes à Polícia brasileira e, principalmente, no que se refere às práticas extralegais recorrentes (violência, corrupção, etc.). Como os jovens relatam e enfrentam essas lógicas? Estão submetidos exclusivamente a elas ou são capazes de desenvolver estratégias para diminuir seu impacto, ou mesmo tirar vantagem destas disfunções da Polícia? Finalmente, em uma terceira e última parte, examinamos as correlações espaciais que permeiam as interações entre jovens e policiais, tendo como norte a seguinte interrogação: em que medida a intensidade e as modalidades da intervenção policial variam em função dos territórios urbanos (favela ou centro da cidade)? POLÍCIA, VIOLÊNCIA E CONTROLE SOCIAL NO BRASIL O controle social exercido pelas instituições produtoras da ordem no Brasil se constitui numa variável central nos debates das ciências sociais: como explicar o fato de a violência ter aumentado a partir da transição democrática, em meados da década de 1980 (CALDEIRA, 2000)? Alguns autores salientam que a criminalização da pobreza (MALAGUTI BASTISTA, 2007), a exemplo do modelo americano, constitui a contrapartida indispensável para manutenção da ordem dentro de uma economia flexível neoliberal (WACQUANT, 2003). Para outros, a explicação reside na inércia das lógicas de funcionamento da sociedade brasileira, que ainda se respaldam na época escravocrata, ou mesmo ditatorial (PINHEIRO, 1997). Para estes autores, democracia e cidadania são conceitos vazios que residem unicamente na esfera do discurso, embora tal hipótese, baseada na ideia de uma “modernidade incompleta”, possa suscitar críticas: as sociedades modernas democráticas são todas produtos de arranjos complexos e frequentemente contraditórios, como também é o caso da França (CALDEIRA, 2000). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 170 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... De qualquer forma, em matéria de violência, observa-se o Estado brasileiro diante de um duplo desafio: conservar o monopólio da violência física e manter a legitimidade da violência de Estado (ADORNO, 2005). Por um lado, as esferas estatais de controle não são capazes de limitar as manifestações de violência. As cidades brasileiras são palco de tantos confrontos que os meios de comunicação não hesitam em compará-los a verdadeiras guerras; o homicídio é, assim, a primeira causa de mortalidade de jovens entre 15 e 24 anos (39,9 % das mortes), e este índice está em constante ascensão (WAISELFISZ, 2004). Além disso, o Brasil ocupa atualmente o 11° posto mundial, com a incidência de 28,5 homicídios por 100.000 habitantes, enquanto, a título de comparação, nos Estados Unidos esta taxa é de 5,8 (UNDOC, 2009). Segundo alguns autores, as formas específicas sob as quais se desdobra o crime organizado nas cidades brasileiras representam obstáculos para os mecanismos clássicos de regulação e controle do crime posto em prática pela justiça moderna. Por outro lado, o Estado por si não consegue exercer a violência de maneira legítima, e as numerosas disfunções das instituições policiais e judiciais (tortura, abuso de poder, corrupção, etc.), frequentemente noticiadas pela mídia brasileira, instauraram uma desconfiança da população em relação a essas instituições que apenas colaboram para reforçar o círculo vicioso da violência (ADORNO, 2005). A falta de legitimidade na qual estão imersas as instituições policiais e judiciais (que não conseguem provar sua eficácia dentro de um contexto legal) conduziria justamente a Polícia a utilizar-se de meios extralegais e violentos para compensar sua ineficácia. Por sua parte, a população oferece um apoio indireto a estas práticas violentas, visto que a defesa dos direitos individuais no Brasil segue bastante deficiente, principalmente no que se refere aos direitos dos indivíduos delinquentes (CALDEIRA, 1991). Segundo alguns autores, a violência e as ilegalidades, em todas suas configurações, não devem ser consideradas como indício de disfunções institucionais relegadas à esfera do excepcional, e sim, como práticas enraizadas no cotidiano das instituições produtoras da ordem no Brasil (CALDEIRA, 2000). Além disso, é importante salientar que o papel central da Polícia no controle social da delinquência e regulação dos conflitos é muito mais acentuado em sociedades caracterizadas por uma distância social profunda entre os mais pobres e os mais ricos, como é o caso do Brasil; igualmente, tal centralidade confere à Polícia brasileira importante autonomia de ação, o que dá margem ao exercício de arbitrariedades e corrupção nas relações cotidianas entre civis e policiais (MISSE, 1999). Um estudo, buscando avaliar o ponto de vista dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro, demonstrou Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 171 que essas pessoas se sentiam afetadas em suas vidas cotidianas tanto pela violência de policiais como de traficantes, sendo que a violência exercida por aqueles era considerada ainda mais imprevisível e arbitrária, visto a distância social e geográfica que os separava. Por outro lado, a proximidade dos traficantes e o caráter mais constante do controle que eles exercem no interior da favela permitem calcular melhor os riscos e mesmo negociá-los. Misse (2010) é um dos autores a ressaltar o status ambíguo da Polícia civil que, embora execute um trabalho essencialmente administrativo, é a responsável pela investigação dos atos considerados criminais. Não apenas se observa um baixo grau de entendimento entre a Polícia militar e a Polícia civil, como também o Ministério Público e o Sistema Judiciário utilizam os processos policiais sem, no entanto, exercerem controle efetivo de todo o processo. Isso gera dificuldades na coordenação de um procedimento e de uma política penal que mobilize o conjunto dos atores do Sistema Judiciário (PAES, 2013). Por exemplo, no contexto de uma pesquisa sobre os casos de homicídios, Zilli e Vargas (2013) mostram que a ausência de meios técnicos e a recorrida ao depoimento como prova judiciária prioritária conduzem a taxas de elucidação bastante baixas (em torno a 15%, tanto no Rio de Janeiro como em Belo Horizonte). Estas diferentes limitações das investigações policiais são ressaltadas por um Juiz da Infância e da Juventude de Belo Horizonte: Nós não trabalhamos com a técnica de investigação, é lamentável, mas o Brasil nunca investiu na formação e qualificação de policiais. Não existe cooperação entre a Polícia Civil, que é a polícia judiciária, e a Polícia Militar, que é a polícia ostensiva. Mas a maneira deles trabalharem: eles não têm nenhuma preparação, nenhuma técnica. Então para as drogas, eles devem parar os traficantes, então são aqueles que eles encontram na rua, é isso. Barros (2009), em um estudo etnográfico sobre a Polícia de Belo Horizonte, analisa obstáculos enfrentados na implementação de uma polícia comunitária. Segundo o autor, a importação de uma lógica militar para o interior da Polícia acentuou a distância entre esta e a sociedade civil, provocando entre os policiais uma desconfiança, em relação à população, que beira a paranoia. Ademais, o fato de os policiais militares integrarem uma corporação subordinada a cada governo estadual e não ao Governo Federal acarreta diferenças bastante significativas no que se refere às práticas e à administração; isto influencia, por sua vez, o recurso à violência, o emprego de armas, etc. As diferenças existem, inclusive, dentro de um mesmo estado. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 172 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... Por exemplo, a distância entre as cidades de Belo Horizonte e Contagem é de apenas 20 quilômetros; entretanto, as descrições em depoimentos dos jovens sobre as práticas policiais são bastante diversas. O campo da pesquisa abrangeu duas metrópoles brasileiras, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Estas duas cidades se diferenciam quanto ao grau de organização do tráfico de drogas: enquanto três facções principais ocupam e dominam a maior parte do território das favelas do Rio de Janeiro, uma infinidade de pequenos grupos disputa o território das favelas de Belo Horizonte. Tal diferença na estruturação do tráfico repercute, diretamente, nas possibilidades de mobilidade espacial dos jovens nele envolvidos (em Belo Horizonte, às vezes, os jovens não podem sequer cruzar a esquina de casa sem o risco de cair em mãos do grupo rival), como também sobre o poder de controle da Polícia no interior das favelas (no Rio de Janeiro, o alto grau de organização das facções criminosas dificulta o acesso de policiais a algumas favelas ou a certas regiões destas).10 Além disso, o processo penal para os jovens se diferencia nas duas cidades: em Belo Horizonte, ele se realiza por meio de um sistema integrado, denominado CIA (Centro Integrado de Atendimento ao adolescente autor de ato infracional), que concentra em um mesmo edifício a Polícia, o Ministério Público, os defensores públicos e os juízes. O jovem apreendido pela Polícia é diretamente conduzido ao CIA para responder ao interrogatório policial, como também comparecer às audiências preliminares, até a decisão de liberação para aguardar julgamento ou de uma internação provisória. Isso não impede a corrupção; mas, o fato de o jovem ser conduzido diretamente a um órgão jurisdicional reduz as transações e a incidência de violência, consistindo, inclusive, num dos argumentos (juntamente com a aceleração do processo judiciário) citados pelos juízes que colocaram em prática tal projeto. No Rio de Janeiro, em contrapartida, as diferentes instâncias se localizam em lugares distintos, o que além de atrasar consideravelmente o processo judiciário, favorece as práticas de corrupção. SER JOVEM, TRAFICANTE E “FAVELADO” FRENTE À POLÍCIA As modalidades e as consequências do controle policial dependem, em grande parte, do status dos jovens interrogados durante a pesquisa: ser menor de idade, morar em uma favela, estar envolvido no tráfico de drogas ou ainda “ser conhecido pela Polícia” representam variáveis que estruturam a relação mantida com a instituição policial. Tais considerações serão detalhadas nesta seção. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 173 Em primeiro lugar, é importante salientar que os jovens se reportam à polícia com grande familiaridade, comumente foram presos por policiais do próprio bairro que, ao observarem suas ações por algum tempo, passaram a desconfiar de vinculação com o tráfico de drogas. Constatou-se, ainda, que o jovem, ao retornar após o término da medida socioeducativa, passa a conviver com os mesmos policiais que o prenderam e continuam trabalhando no bairro: “A Polícia tá sempre pulando na favela; sempre o mesmo policial; no momento que menos espera está do seu lado. O policial até zoa com eles, já conhece todo mundo...” (Thiago). E Rodrigo enfatiza: “Já sabe que nós trafica. Já conhece nós. [...] Um passo que você dá e a polícia sabe que você deu [...] Ela tá ali e você nem viu” (Rodrigo). Mesmo admitindo que a prática de vigilância exercida pela Polícia beira um modelo panóptico, Rodrigo deixa claramente antever que essa vigilância não acarreta tantas detenções como se poderia esperar; mais adiante observaremos que outras lógicas, particularmente da corrupção, estruturam sobremaneira a intervenção policial exercida sobre esses jovens. A relação familiar com a Polícia, tida como onipresente, diminui a excepcionalidade da primeira detenção. Assim, ao ser questionado sobre “seu primeiro contato” com a Polícia, Márcio relata uma longa experiência de interações entre ambos: Ah, já até tinha acostumado com os abordo, quando eles aborda, né? Que eles aborda, Nossa Senhora, igual um cavalo! Aí chegaram e tal, me dá um tapa na cara tal... [...] acontecia quando a gente tava assim sentado, assim na esquina ou então em algum lugar... Eles sempre aborda a gente com maldade, sabe? (Márcio). Os jovens envolvidos no tráfico de drogas frequentemente conhecem com precisão as lógicas do controle policial e conseguem, dessa forma, evitar um grande número de detenções. Ezequiel conta, por exemplo, que “era só acabar a atividade no beco, que dava pra ver os homem... Nois ficava lá em cima, aí não tinha como os homem pegar nois não...”. As estratégias que têm por objetivo escapar do controle policial não são individuais, mas organizadas e articuladas coletivamente no interior dos bandos de tráfico de drogas, como explica Laura: No caso, é porque é muito bem estruturado; nós trabalhamos nas ruazinhas sem saída da favela, nos becos, e tem aquele que a gente chama de «olheiro », aqueles que prestam atenção, que fazem o trabalho mais baixo no tráfico. Então, quando os policiais chegam, esses ‘olheiros’ nos avisam e a gente se esconde (Laura). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 174 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... Os “olheiros” são munidos de rádios walkies-talkies e submetidos ao controle dos gerentes da “boca de fumo”. De certa forma, pode-se afirmar de antemão que os traficantes de drogas invertem aqui as lógicas de controle, colocando os policiais sob vigilância. Rafael explica, em minúcia, como os traficantes de Vila Nova, uma região periférica de Belo Horizonte, conseguem antecipar e evitar o controle policial. Rafael prefere trabalhar à noite pois “de noite é melhor, porque de dia tem muita polícia, e menos de noite”. Segundo ele, o “gerente” (braço direito do chefe) distribuía 14 rádios walkies-talkies aos vendedores e aos “olheiros”: Tem uma pessoa que você paga para fazer a vigilância. Quando a Polícia chega, a gente diz ‘lombrou’; é um código. De vez em quando, a gente consegue correr, mais quando o lugar fica cercado, é difícil de conseguir fugir. De vez em quando, a Polícia sobe nos telhados e acampam na favela por dez dias pra vigiar. Os policiais sabem que quem está bem vestido é traficante e ganham bastante dinheiro. Então, eles param as pessoas que estão bem vestidas (Rafael). Ele explica que no dia a dia usa anéis, bijuterias, colares, relógios, celulares, etc.; contudo, quando a Polícia se encontra por perto, veste-se com roupas modestas e baratas. Se os traficantes parecem conhecer em pormenores as lógicas da intervenção policial, o contrário não parece demonstrado. Zilli e Vargas (2013) descrevem justamente a Polícia civil de Belo Horizonte como relativamente desconectada das lógicas do crime organizado, pois o fato de não estar devidamente infiltrada nos territórios do tráfico acaba acarretando um trabalho de investigação pouco frutífero. O alto grau de organização alcançado pelo tráfico de drogas justifica, em parte, a razão pela qual alguns jovens podem escapar por vários anos, sem serem detidos pela Polícia. Laura, por exemplo, passou pela primeira detenção apenas aos 17 anos, embora tenha começado a vender crack e maconha com a idade de 9 anos. Em algumas favelas, a forte hegemonia dos traficantes impede a presença cotidiana da Polícia, fazendo com que as incursões policiais continuem episódicas e acabem tomando a forma de intervenções ostensivas, apenas após denúncias que, importante lembrar, permanecem relativamente escassas. Na prática, a falta de confiança inspirada pela Polícia, por um lado, aliada à lei do silêncio imposta pelos traficantes aos moradores das favelas (MACHADO DA SILVA, 2004), por outro, silenciam de maneira implacável as denúncias11. Por conseguinte, a Polícia parece intervir, sobretudo, nos casos graves como, por exemplo, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 175 homicídios; não é raro que a Polícia, impelida a “encontrar um culpado”, acabe acusando uma pessoa designada pelos chefes do tráfico. Contudo, os jovens “bem conhecidos” pela Polícia dificilmente escapam da detenção, pois, com o tempo, o controle policial se intensifica: Mas, eu sempre fui muito requisitado pela Polícia, muito visado; meu grau de ‘periculosidade’ na rua já era muito alto e aí eles começaram a me procurar, pra me prender; e é por isso que eu vim parar aqui [no centro de internação ndla]. - Você foi objeto de uma abordagem policial? - Sim, eu já era muito conhecido. Tavam pedindo identidade, era realmente pra ver se eu tava carregando droga (Danilo). No caso de Rodrigo, que sabia estar sendo investigado pela Polícia, sua prisão se concretizou com um mandado de detenção emitido pelo juiz: Eles pediram um lance pro juiz; eu sei que eles estavam investigando eu, por tráfico de drogas e tal... E quando estourou, quando o juiz deu... Como é que é? O juiz dá um negócio no papel, mandado, né? - Mandado de busca? - O juiz dá a ele o mandado de busca, aí o dia que o juiz deu esse mandado de busca, foi e invadiu a casa, lá. Bateu na minha mãe ainda, isso que é foda. Aí eu fui e pulei neles também (Rodrigo). O tipo de interação estabelecida com a Polícia e, principalmente, a probabilidade de serem submetidos a uma abordagem varia bastante, dependendo do sexo: o controle policial imposto às meninas é menor por despertarem menos suspeita; além disso, quando são apreendidas, a revista pode ser evitada na ausência de uma agente do sexo feminino12: Eu pegava em geral 15 a 20 gramas de cada produto e escondia tudo no… Tinha bastante lixo e material de construção que ficava ali, então eu escondia, por exemplo, atrás de um tijolo; e como mulher, era mais fácil, porque geralmente a polícia nos batia menos, ou a gente tinha menos problema com a polícia quando a gente é mulher (Natasha). Por esta razão, as meninas envolvidas no tráfico de drogas assumem comumente o posto de “mula”, isto é, pessoa encarregada de realizar o transporte de drogas de uma favela a outra ponta da cidade13. Natália, por Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 176 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... exemplo, portava 10 kg de cocaína e foi denunciada, provavelmente por um traficante para quem trabalhou antes e que morava perto de sua casa. Trocar de patrão quando se está inserido no mundo do tráfico é sempre arriscado! Joana, que também trabalhava como “mula” e foi detida utilizando transporte público no Rio de Janeiro, explicou que sempre se vestia com uniforme escolar e carregava uma pasta para passar despercebida. Esta função exercida no tráfico, menos visível que a de vendedor, lhe permitia não apenas evitar os controles policiais dentro da favela, comumente violentos, como também os olhares de censura dos moradores e principalmente de sua família que condena seu vínculo com o tráfico de drogas. O fato de ser menor de idade também estrutura de maneira significativa as relações entre os jovens e a Polícia, pois há uma regra inerente ao tráfico de drogas segundo a qual cabe aos jovens menores de idade assumir a responsabilidade dos delitos sempre que ocorrer uma detenção coletiva. Esta norma imposta pelos mais velhos decorre das evidentes diferenças de atribuição de penalidade a um delito no âmbito da lei penal e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Independentemente do delito em questão, a pena máxima para um jovem menor de idade corresponde a três anos de recolhimento em um centro de internação. Entretanto, frequentemente, quando o delito não resulta em violência contra um terceiro, o jovem é submetido a uma medida em meio aberto (Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços à Comunidade). Por outro lado, além dessa regra, os jovens compartilham a certeza de que, em caso de detenção, nada de muito sério lhes acontecerá. Por exemplo, questionado sobre suas impressões e temores em relação à primeira detenção, Márcio replicou: “Ah, eu falei... imaginei nada; eu tava, eu era de menor, o menor não acontece nada, como sempre...”. Alguns juízes são conscientes das lógicas que conduzem os jovens a assumir a culpa no lugar dos mais velhos (ou que são acusados falsamente por policiais pagos por estes) e dos efeitos perversos sobre o processo penal envolvendo menores de idade: [...] Então, em geral, o adulto paga pra Polícia pra ela dizer que é o menor: “você, você é menor, então nada vai acontecer contigo”. E o menor não é condenado. Mas depois, quando o menor chega aqui e vê que, na verdade, não é nem um pouco assim, que ele vai pra prisão, que ele vai ser privado de liberdade, ele se dá conta de como as coisas realmente são. Alguns jovens entrevistados ressaltam sua adesão voluntária a esta regra; mais que uma obrigação – à semelhança da lei do silêncio, por exemplo –, ela é percebida como um gesto de solidariedade. Assim, quando Tiago foi Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 177 abordado, acompanhado do primo cuja mochila continha grande quantidade de drogas, ele declara à Polícia ser o dono da droga e, ainda, que o primo não tinha qualquer ligação com o tráfico. Ele explica ter feito isso “porque meu primo pediu chorando pra mim segurar, senão ele ia pegar muitos anos (de prisão)”. Celso, que durante o interrogatório policial assumiu ter cometido um homicídio, enfatiza igualmente ter agido voluntariamente: Não, eu mesmo, eu achava a mesma coisa que eles, porque a pena pros maiores é mais longa... Eu, eu pensava assim: ‘os maiores ficam mais tempo emprisionados que nós, então eu vou ajudar e assim eu não seria culpado [pelos maiores]. Então, quando os polícias vieram falar comigo eu disse: ‘eu meti uns tiros na cara dele’. E assim eu assumi junto com os outros menores. Ninguém nos fez nenhuma chantagem (Celso). Quando um jovem se mostra desobediente, os mais velhos tentam persuadi-lo valendo-se de dinheiro para obter sua colaboração. Alguns jovens, entretanto, declararam (pelo menos durante as entrevistas) ser totalmente contrários a esta regra, a seus olhos, completamente injusta: Se a droga é sua, é sua. Se é do de maior é do de maior. Eu não seguro onda dos outros não! [...] Aí eu vou e seguro, por exemplo... Seguro a droga com maior e o de maior tá na rua, lá com mulher, curtindo, e eu preso lá... Você é burro! Cada um o seu BO [Boletim de ocorrência] (Ezequiel). Embora a regra de “assumir no lugar dos mais velhos” tenha um peso considerável em caso de detenção, alguns jovens a transgridem e acabam sendo alvos de sanções por parte do grupo. “É, tinha quatro menor e um maior; aí um dos menor não queria assinar não [se declarar culpado]. Aí o patrão nosso já mandou papo reto: se não fosse assinar era pra ele andar da favela, sair fora” (Rodrigo). No que pese os discursos dos jovens enfatizarem a autonomia de ação, podemos conjecturar que o medo de represálias justifica também a difusão dessa prática. Entendemos que tal norma não provém exclusivamente das diferenças observadas entre a lei penal aplicada aos adultos e aquela a que estão submetidos os jovens, mas ao próprio funcionamento das gangues. Nessa hierarquia, os menores ocupam comumente posições subalternas; representam, portanto, mão de obra facilmente substituível, enquanto a ida de um “patrão” à prisão desestabiliza e debilita a totalidade do grupo. Fabiano – que Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 178 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... acabava de ser promovido a gerente de uma “boca de fumo”, ainda menor de idade – relata ter pedido (e não obrigado) a seus vendedores (menores de idade) que se entregassem à Polícia em seu lugar. Fabiano explica por que considera esta regra totalmente lógica e funcional: [...] Ah mais, é por causa que, é dinâmica: se eu vou preso e eles sai, que que eles vão poder fazer por mim? Nada, por que quem tem o contato é eu. E, se eu tô lá fora e tá lá dentro, aí eu já posso ajudá, porque tô lá fora, eu posso fazer contato... Entendeu? Posso fazer a droga girar (Fabiano). Na prática, um “bom” chefe de gangue deve sustentar os membros de sua organização quando estes são presos, o que significa, por exemplo, custear despesas com advogados14, comprar mantimentos ou ajudar sua família, suprindo-lhe as necessidades durante o período da prisão. Além disso, a manutenção do ponto de venda de drogas assegura o emprego aos jovens para o momento de saída da internação. A obrigação, para os jovens, de confessar os delitos em lugar dos mais velhos, produz situações paradoxais nos organismos encarregados da delinquência juvenil. Quando Celso nos explica ter assumido a culpa por um homicídio que não cometera, o relatório da equipe multidisciplinar solicita ao juiz a prorrogação da medida de internação por mais três meses, alegando que o jovem ainda não refletira adequadamente sobre seu ato. Enquanto isso, os maiores de idade foram libertados da prisão. Na realidade, quando existe um caso que implica maiores e menores de idade, os acusados são julgados por instâncias completamente diferentes, não havendo qualquer tipo de concordância entre elas. Se, no papel, as penas são mais severas para os adultos, a superpopulação das prisões convencionais e os sistemas de redução de pena explicam por que, em vários casos estudados, os adultos saem de uma medida de privação de liberdade antes dos jovens. Além do mais, o aspecto temporal assume perspectivas diferentes em cada caso do processo judicial: enquanto um maior de idade pode esperar vários anos preso antes de ir a julgamento, no caso dos jovens, o julgamento acontece geralmente dentro de um prazo bastante curto, e os atos acabam sendo julgados “no calor dos acontecimentos”. Um juiz de Belo Horizonte comenta a dificuldade de aplicar uma medida a um ato não cometido pelo adolescente: Isso criava para ele um vazio, é como imaginar a figura de responsabilização sem culpabilidade. A gente espera, através da medida, uma subjetivação do adolescente para que ele possa se transformar, mas não tem um ato que dê suporte a essa intervenção. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 179 O modelo de atendimento psicanalítico que predomina no sistema socioeducativo em Belo Horizonte pode converter-se em uma armadilha, pois os profissionais, técnicos e magistrados esperam do jovem uma análise crítica de um ato não cometido por ele. CONHECENDO UMA POLÍCIA VIOLENTA E CORRUPTA A violência e a corrupção constituem práticas tão recorrentes na Polícia brasileira que já não causam surpresa na população. Numerosos estudos ressaltam também o alto índice de homicídios nas favelas brasileiras (BEATO FILHO e REIS, 2001; SILVEIRA, 2007; DE SOUSA e MILLER, 2012). Muitos crimes são provocados, principalmente, por “guerras” entre traficantes pelo domínio das “bocas de fumo” no interior das favelas, como também pelos confrontos entre supostos traficantes e policiais. Em 2006, os policiais dos Estados Unidos foram responsáveis por um total de 375 mortes; em 2007, somente as forças de segurança do Estado do Rio de Janeiro foram responsáveis pela morte de 1.330 pessoas, enquanto nesse mesmo ano 51 policiais foram mortos. Em relação apenas à cidade do Rio de Janeiro, o número de vítimas de homicídios diminuiu em 24,4% entre 2000 e 2008, embora o número de “autos de resistência” ou “resistência seguida de morte” tenha aumentado em 147,5% durante o mesmo período (PAES, 2011). Esta categoria administrativa contabiliza as pessoas mortas em casos de resistência à ação da Polícia. Os dados revelam a diminuição do número de conflitos entre cidadãos e, de maneira inversa, o aumento do número de mortes oriundas do confronto entre cidadãos e agentes do Estado. Reivindicadas pela instituição como legítimas, apenas no ano de 2008, foram registradas no Rio de Janeiro 688 mortes causadas pela intervenção policial. O título de um livro recentemente publicado é particularmente sugestivo: Quando a polícia mata (MISSE e al., 2013). Baseia-se em uma estimativa de 10.000 mortes causadas pela Polícia em 10 anos (2001-2011), apenas no Estado do Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, os homicídios cometidos pela Polícia parecem ser menos frequentes; dados comparáveis aos do Rio de Janeiro não existem, pois a categoria “autos de resistência” não parece ser utilizada pela administração policial. No entanto, mesmo que a violência seja menor na cidade, esta metrópole assistiu a um significativo aumento da taxa de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos. No conjunto das capitais brasileiras, Belo Horizonte passou do 24° lugar, com 7,7 homicídios por 100.000 jovens em 1997, para o 4° lugar com 41,2 em 2007, enquanto a média esteve entre 22,3 e 21,3. Tanto em termos de tendência como de núRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 180 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... meros absolutos, observamos um caminho inverso, se comparado a outras capitais da região sudeste: enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro o número de homicídios está em queda15, respectivamente (- 73,9%) e (- 38,9%), em Belo Horizonte ele sobe vertiginosamente (+310%).16 Os depoimentos dos jovens confirmam estes contextos estruturais: a violência é onipresente nos relatos dos jovens no Rio de Janeiro, e é menos frequente nas experiências dos jovens em Belo Horizonte, que apontam mais para o risco que representam os traficantes dos bandos rivais. No Rio de Janeiro, por exemplo, a violência policial se expressa no emprego de golpes diversos: técnicas de asfixia, em alguns casos choques elétricos e tiros na mão ou no pé.17 Estas ações violentas são geralmente admitidas como fatos normais e esperados; alguns jovens contam, inclusive, que tiveram sorte, pois apenas receberam golpes, quando o policial poderia tê-los matado. A impunidade dos policiais parece absoluta; por medo de represálias, os jovens quase nunca denunciam as violências sofridas, e mesmo os casos mais graves não levam a qualquer investigação. Por exemplo: Jonas foi submetido a choques elétricos e tortura psicológica; com tal prática, a Polícia tinha o intuito de forçá-lo a indicar o esconderijo da droga. Tendo em vista os inúmeros ferimentos aparentes no jovem, o juiz determinou o exame de corpo e delito. Contudo, na sequência, o documento “se extraviou” e nenhuma ação foi movida contra os policiais vinculados ao caso. A utilização da tortura com vistas a obter confissões continua sendo uma prática policial corriqueira, como já apontavam etnografias da Polícia brasileira nos anos 1980 (WAISELFISZ, 2010). Além disso, as violências policiais ocorrem comumente após a recusa dos jovens de delatar seus cúmplices. De fato, a denúncia representa uma das formas de traição mais condenadas pelas regras do tráfico; e os jovens entrevistados afirmam que preferem ser mortos pelo Polícia a serem mortos por parceiros do tráfico. Em Belo Horizonte, um jovem disse que nada é pior que morte por “X-9” (culpado por delação). Diante do nosso espanto, o jovem explica que a pessoa é amarrada por uma corda e arrastada por um carro até a morte, pelas ruas da favela. Percebemos que a impunidade que caracteriza as violências policiais cometidas no Brasil não pode ser explicada unicamente por falhas no Estado de direito no país; na Europa, igualmente, alguns estudos (JOBARD, 2002; BUGNON, 2011) ressaltam inúmeros obstáculos à denúncia e condenação da violência cometida por policiais: usualmente, elas ocorrem em espaços ermos, na ausência de testemunhas, e são perpetradas contra populações estigmatizadas que dispõem de escassos recursos legais. Ademais, a Polícia detém o monopólio estatal Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 181 da força e, questionar esse emprego, colocaria em risco os fundamentos da instituição policial, razão pela qual as violências policiais perpetradas são sistematicamente menos punidas que outras práticas policiais ilegais (MOREAU DE BELLAING, 2009). As violências policiais estiveram menos presentes ou, ainda, foram mais pontuais e menos extremas no conjunto dos discursos dos jovens que moram em Belo Horizonte. Assim, Rodrigo, após relatar uma atitude violenta por parte da Polícia, esclarece ao longo da entrevista: “Eles não batem muito assim não. Só bateu em mim, da última vez, porque eu pulei neles [...] A Polícia não chega batendo assim não. Chega só pedindo pra você encostar na parede” (Rodrigo). Entretanto, esta realidade parece estar circunscrita à cidade de Belo Horizonte, pois em outras cidades vizinhas do Estado de Minas Gerais, as práticas policiais são claramente descritas em inúmeras entrevistas de maneira mais ostensiva. Alexandre, que mora em Contagem, relata: [...] Quando os policias voltaram pra viatura, eles nos disseram: ‘se vocês não admitirem, a gente vai levar vocês num lugar a 40 minutos daqui e a gente vai acabar com vocês. Vocês têm cinco minutos’, eles disseram. Então, a gente discutiu cinco minutos dentro da viatura. Quando eles voltam, a gente decidiu admitir e foi o parceiro que disse: ‘fui eu que matei’; e eles levaram ele pra delegacia… Eles ameaçaram de nos torturar, começando com uma agulha pras unhas, porque isso não deixaria nenhum vestígio. Depois iriam colocar plástico no nosso rosto para nos sufocar. Eu acho que eles iam fazer mesmo, sim. (Alexandre). Além disso, ele já havia sido torturado por outro policial militar, durante uma prisão em flagrante por venda de droga: “eles colocaram uma máquina elétrica [teaser], eu tava molhado e eles me deram choque” (Alexandre). Se as formas e o grau da violência policial variam segundo os lugares e as delegacias, as práticas de corrupção, ao contrário, parecem ser onipresentes nos discursos dos jovens entrevistados, tanto no Rio de Janeiro como em Belo Horizonte. Esta corrupção pode traduzir-se, por exemplo, na apreensão do dinheiro em posse do jovem no momento da detenção, cuja soma pode chegar a vários milhares de reais. Quando a pessoa detida não porta dinheiro, ela pode pedir a um “colega” traficante (comumente, uma menina) para providenciar a quantia requerida; vale frisar que às vezes a transação se realiza nos recintos da própria delegacia. Danilo, que vendia drogas na zona metropolitana de Belo Horizonte, explica: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 182 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... [...] Quando eu tinha dinheiro, eles roubavam meu dinheiro e não me levavam pra delegacia. Eles pegavam meu dinheiro e me deixavam ir […] Sim, é muito comum já que se eles nos pegam com droga, eles não podem fazer nada, mas se eles nos pegam com dinheiro, bom, todo mundo tem coisa pra fazer com dinheiro. E pra polícia é a maneira deles receberem, é tipo pagamento pra nos deixarem na nossa. A gente paga e eles nos deixam na tranquilidade, mas quando a gente para de pagar, a gente começa a ter problemas. (Danilo). Outros relatos de jovens envolvidos no tráfico de drogas no Rio de Janeiro confirmam que, na maioria dos casos, o objetivo da Polícia não é realizar uma detenção e sim extorquir dinheiro (RODRIGUEZ, 2011; HUGUET, 2005). Um adolescente entrevistado por Huguet e recolhido em internação, por roubo de carro, explica que, se fosse possível ter dado dinheiro à Polícia, provavelmente não estaria preso (2005, p. 294). É importante ter em vista também que os baixos salários dos policiais militares constituem um fator que explicaria, em parte, tais práticas de corrupção. Em Belo Horizonte, em alguns lugares, os policiais têm o hábito de consumir gratuitamente café, bebidas e almoços nos estabelecimentos comerciais; em alusão a esta prática, junto aos vendedores de drogas, eles utilizam a expressão “eu quero meu café” para receberem seu dinheiro. Frente a tal arbitrariedade policial, os jovens precisam contar com a proteção dos chefes do tráfico: A gente cresceu e, na nossa cabeça, são tipo heróis. Eles nos protegem dos órgãos do Estado, porque a Polícia chega assim, fazendo merda nas casas, e eles não querem nem saber de nada, porque tu é de uma classe mais baixa […] e depois eles simplesmente vão embora, sem nenhuma consequência (Danilo). A corrupção também assume a forma de um pagamento regular, pactuado com os chefes do tráfico, em troca de um controle policial menor. Micael – que vendia drogas, no centro da cidade do Rio de Janeiro, para um traficante que atuava numa favela – declara: “Não, a gente dava o dinheiro, uma vez na semana. Uma vez na semana dava o dinheiro dele. Aí deixava, eles que não iam lá, entendeu?” (Micael). Se o dinheiro requerido não era entregue, Micael corria o risco de ser detido no contexto de um flagrante forjado (prática policial que consiste Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 183 em acusar uma pessoa inocente de possuir armas ou drogas apreendidas em outra ocasião). Esse acordo com o batalhão da Polícia militar manteve, por um tempo, Micael longe das detenções; finalmente, acabou sendo preso pela Polícia civil. Alguns jovens, acostumados aos acordos com a Polícia, manifestaram sua surpresa no dia em que um controle policial resultou em prisão. Embora a corrupção seja bastante presente, ela continua sendo estruturada, sobretudo, pelas lógicas locais (por exemplo, acordos entre uma gangue e policiais locais); e quando tais acordos não se concretizam, a repressão policial é retomada. Assim, Rodrigo afirma que, no dia em que foi preso, chegaram seis viaturas (após um mandado de prisão decretado contra ele) e ele não havia entendido muito bem como faria para “responder”, financeiramente, a número tão expressivo de policiais. Os relatos dos moradores das favelas no Rio de Janeiro confirmam o caráter localizado dos acordos financeiros entre traficantes e policiais. Segundo eles, a coabitação permanece pacífica enquanto as brigadas policiais aceitam tais acordos; no entanto, a partir do momento em que uma patrulha não corrompida entra na favela, a violência é desencadeada (MACHADO DA SILVA e LEITE, 2007, 564). A corrupção, na forma de propina, não consiste na única prática extralegal exercida por integrantes da instituição: os policiais forjam completamente algumas prisões (conforme referido anteriormente), atribuindo a posse de armas ou drogas a uma pessoa inocente. Isso lhes permite encontrar um culpado após uma denúncia e também prender uma pessoa suspeita há muito tempo, mas de difícil captura em flagrante. Edson, por exemplo, conta que já foi preso sete vezes, acrescentando que, nas cinco primeiras detenções, de fato, estava de posse da droga que vendia. Decidira, então, parar de comercializá-las; mas, já estava “rotulado” como traficante pelos moradores do bairro e continuou sendo alvo de denúncias. Suas duas últimas prisões foram forjadas: O policial falou assim: ‘aqui, nós tá com outra denúncia que você tá vendendo droga e a droga nós sabe onde que tá’. Aí eu falei: ‘que droga que eu tô vendendo? Que droga que eu tô vendendo?’. Aí ele falou assim: ‘não, mas tá com denúncia demais de você aqui, falando que você tá vendendo droga mesmo’. Aí eu falei: ‘não tô vendendo droga não’. Aí vi outra pessoa falar: ‘ele não tá vendendo droga mesmo não; tem muito tempo que ele parou’. [...]. Aí já chegou outra viatura, ficou conversando com os policial, aí já falou assim: ‘não, vamo levar ele lá pro CIA’. Aí eu peguei e comecei a endoidar, falei com a vizinha, pra ligar pra minha mãe, porque não tá certo não porque eles tava levando eu com nada. Aí o policial veio com uma sacolinha branca assim de droga... (Edson). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 184 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... Esta última detenção foi a que levou Edson a cumprir semiliberdade, enquanto nas prisões anteriores ele foi liberado em seguida, ou passou por medidas em meio aberto. Se alguns jovens, como Edson, se sentem vítimas de perseguição policial, outros utilizam esse recurso de “flagrante delito forjado”, recorrente na Polícia, na tentativa de inocentar-se frente ao juiz. Dessa maneira, aproveitando-se do fato de os policiais não o terem encontrado com drogas no momento da prisão, Micael declara ao juiz que foi vítima de um flagrante forjado. Apesar de alguns juízes afirmarem estar atentos a essa realidade, raramente levam a sério as queixas dos jovens referentes à Polícia, como atesta o testemunho de um magistrado18: A gente tenta saber se os fatos são aqueles descritos ou se aconteceu, como a gente chama aqui, um “flagrante forjado”. Mas, na maioria dos casos, tem implicação de adolescente. O que nós, juízes, não aceitamos é que um adolescente seja proprietário de uma grande quantidade de drogas. Nesse caso, nós não somos ingênuos. Existe alguém por trás dele, então a gente faz o necessário com a Polícia para achar essa pessoa. Em resumo, as pessoas vítimas dos “flagrantes forjados” comumente possuem um vínculo com o tráfico de drogas (ex-traficante ou traficante que ainda não chegou a ser preso em flagrante delito). Evidentemente, isso não anula o caráter ilegal da prática policial. O TERRITÓRIO COMO PONTO DE PARTIDA PARA A ESTRUTURAÇÃO DAS INTERAÇÕES ENTRE JOVENS E POLICIAIS A frequência e a natureza dos controles policiais, assim como o tipo de atividade ilegal exercida variam bastante em função dos respectivos territórios. Dessa forma, vender droga na favela não implica os mesmos riscos que comercializá-la no centro da cidade; igualmente, a probabilidade de detenção não é idêntica, quando se refere ao trabalho no tráfico ou à realização de assalto a mão armada; ou seja, em virtude das lógicas territoriais, o tráfico de drogas e os roubos não se distribuem de maneira simétrica pela cidade. Em geral, os jovens relatam um controle policial bastante rigoroso e efetivo no Centro da cidade, e mais brando nas favelas; a onipresença da Polícia, percebida pelos jovens em certas favelas, usualmente não se traduz em detenções, pois as negociações monetárias são possíveis. Assim, os jovens Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 185 que vendem a droga em uma “boca de fumo” da favela podem, às vezes, exercer tal atividade por vários anos, antes de serem presos e levados perante um juiz. Vimos a experiência de Laura que atuou livremente, no tráfico, dos 9 aos 17 anos; este tipo de caso permanece, contudo, excepcional e está ligado a um ambiente fortemente controlado pelos traficantes na favela. Por outro lado, os jovens que trabalham no Centro da cidade são frequentemente apreendidos nos seis primeiros meses de atividade no tráfico. Rodrigo, que no momento da entrevista ocupava um posto de responsabilidade dentro do tráfico de drogas em uma favela de Belo Horizonte, explica que seu “bando” não enviava vendedores ao Centro, pois “muita gente vende no Centro, muito nego vai preso. Ninguém vende pra nós não, nós vende droga só lá na favela, mesmo” (Rodrigo). Essa probabilidade diferenciada de abordagem policial incide diretamente sobre os jovens residentes na favela com passagem pela Polícia e também sobre aqueles com mandado de prisão decretado, que por medo de serem presos não saem mais da favela. Portanto, a mobilidade destes jovens na cidade se reduz ao perímetro do bairro. Essa presença policial diferenciada entre o Centro e a favela é ainda fortalecida, no caso de Belo Horizonte, pela instalação de inúmeras câmeras de vigilância no Centro da cidade. Muitos jovens entrevistados declararam ter sido acusados, por tráfico de drogas, após serem filmados em plena transação com um cliente. Parece que as novas tecnologias, principalmente as de vídeo vigilância presentes nos espaços públicos, não são tão ineficazes como se poderia supor. Beatriz, por exemplo, foi surpreendida por uma câmera de vigilância enquanto recuperava a droga escondida embaixo de uma ponte; ao ver a aproximação da Polícia, tenta fugir: Eu tive que fugir, tinha uma passagenzinha cheia de sucata onde eu fiquei pendurada e depois caí. Eu caí de uma altura de dois postes; eu não caí dentro do rio, mas bem na beira, numa parte onde tinha cimento. Na hora, eu quebrei o maxilar. Quando eu caí a Polícia viu e eles me deixaram lá e começaram a fugir. Foram umas crianças que cheiram loló que me acharam e que ligaram pra ambulância. A emergência chegou e me levou. Eles me deram uns remédios para que eu dormisse (Beatriz). Após o ocorrido, Beatriz conta que foi submetida a uma cirurgia e que esteve imobilizada durante três meses. Quando o pesquisador lhe perguntou por que a Polícia se retirou, ela respondeu: “Porque eu acho que se eles me pegassem, eles iam ser acusados de ter me atirado de lá” (Beatriz). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 186 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... É notório que as câmeras fortalecem a ação policial, principalmente no que se refere aos espaços centrais da cidade. Assim, em Belo Horizonte, os pontos mais lucrativos de venda de cocaína às classes médias se localizam nas favelas onde os sistemas de controle do Estado estão notadamente assegurados por meio de arranjos previamente acordados. A venda, nesse caso, é executada por aqueles que ocupam posições elevadas dentro do tráfico, enquanto os jovens que, em sua trajetória tiveram passagem pela rua, são condenados à venda de crack nos espaços centrais, onde vivem populações desfavorecidas, e permanecem sob intenso controle e mais expostos à prisão. Por conseguinte, dentro do mundo do crime as novas tecnologias consolidam as disparidades sociais, ao mesmo tempo em que podem ser utilizadas pelos traficantes para driblar o controle policial. Desse modo, por exemplo, segundo Rafael, em Belo Horizonte, na favela onde ele mora: A Polícia faz as rondas normalmente entre às 10 horas da manhã e às 14 horas. Depois, de noite, entre às 19 horas e às 21 horas. A gente tem um rádio que a gente consegue captar a frequência da Polícia; então, todo mundo sabe como são as rondas e, quando a Polícia chega, todo mundo desaparece [Rafael aponta que o material foi comprado de um policial]. (Rafael). Observe-se, aqui, uma diferença em comparação com o Rio de Janeiro, onde os jovens que trabalham no Centro da cidade, longe de se sentirem relegados, preferem esse lugar de venda que lhes proporciona maior independência, em relação ao chefe, estabelecido na favela19. Além disso, no Centro, mesmo que os controles policiais sejam mais frequentes, a probabilidade de serem submetidos a violências extremas durante um controle policial é menor. Micael relata que, principalmente em caso de controle, não se vê obrigado a proteger o ponto de venda, colocando sua vida em perigo enquanto o chefe foge; o que ocorreria na favela, por ser esta atitude a regra. Ademais, a Polícia tende a se mostrar menos violenta e respeitar mais os procedimentos institucionais no Centro da cidade que nos territórios afastados, nas favelas, onde a impunidade é maior. Este trecho de entrevista é significativo: - E você nunca foi chamado pra trabalhar no morro? - Não, eu não gostava não. No morro, tu está armado; na pista, não. Na pista, você não precisa trocar tiro. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 187 - Ah não? Você não andava armado? - Sim, eu tinha minha arma; mas, tipo assim, é menos um risco que eu vou correr; no morro, tenho que dar tiro, pra salvar o patrão e os amigo, e dar tiro pra me salvar. Né não? [...] - Então, é menos arriscado trabalhar no Centro? - É menos arriscado. No morro, se os polícia te pegar armado, eles te matam. Na rua não; na pista não; se eles te pegar, eles te levam preso. Te bate e te leva preso... (Micael). É importante salientar, ainda, que Micael, como vendedor “ambulante” no Centro da cidade, a serviço do chefe na favela, ocupa um lugar híbrido entre o tráfico praticado no interior das favelas – territorializado, hierarquizado e fonte de violências múltiplas – e o comércio de drogas nas classes médias do Rio de Janeiro, descrito por Grillo (2008), que funciona em rede, de maneira mais horizontal e, principalmente, não violenta. Finalmente, podemos encontrar uma terceira categoria em Belo Horizonte: jovens que moram em bairros populares (e não em favelas) e vendem drogas por sua conta, dentro do próprio bairro. É exatamente o caso de Wanderson que assumiu o lugar do irmão mais velho, depois que este foi preso. Ele vendia cocaína (obtida de diferentes revendedores nas favelas), em uma praça e em diferentes bares do bairro. Não entrava em conflito com os chefes dos “bandos” vizinhos, pois não vendia crack, que era exclusividade de venda destes (o crack é mais lucrativo que a cocaína). Segundo Wanderson, não precisava trabalhar armado, pois, embora a Polícia estivesse presente no bairro, utilizava menos violência, se comparada àquela praticada na favela. Ele afirma: “na favela, a polícia entra lá toda hora, armada, assim, eu nunca, lá no meu bairro não é assim, que é bairro, mas a realidade é outra coisa, né?” (Wanderson). Se, por um lado, como disse, Wanderson gozava de grande independência em suas transações e sofria menos violência, por outro, estava menos protegido frente aos controles institucionais: em questão de pouco tempo, os taxistas que trabalhavam na praça do bairro o denunciaram à Polícia e ele foi preso, apenas um ano após ter começado a comercializar drogas. Portanto, quando as interações entre jovens e policiais são estruturadas, sobretudo pelo território, as lógicas observadas são complexas e não dicotômicas. Em alguns casos, a favela exerce um papel protetor para os jovens procurados pela polícia, em razão das dificuldades dos policiais em realizar intervenções eficazes nos territórios dominados pelas facções Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 188 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... criminosas. Em outros casos, são as lógicas de “rotulação” que predominam e certos jovens se veem obrigados a deixar a favela onde vivem para escapar da perseguição policial; é justamente o caso de Edson, que deixou completamente sua atividade no tráfico de drogas: Eu vou ter que mudar de lá. Agora já tô de maior, aí vou ser desligado dessa semi [semiliberdade], vou pra lá; fico lá de maior e eles forjam alguma coisa pra mim. Aí eu de maior, complicando... Então vou sair de lá, né? Ir lá pra onde minha mãe tá e ficar lá trabalhando (Edson). Se, como acabamos de ver, a probabilidade de ser preso pode ser diminuída ou reforçada dentro da favela, a exposição a toda sorte de violências parece, de acordo com a maior parte dos relatos recolhidos, aumentar nos territórios relegados pelas esferas públicas, onde a intervenção policial, quase sempre, é mais militarizada e a impunidade das práticas policiais, generalizada. A probabilidade de ser conhecido pela Polícia e pela Justiça depende também do tipo de atividade ilícita exercida (dependente, por sua vez, das lógicas territoriais). A venda de drogas implica menor risco de detenção, por um lado, porque se realiza em territórios ermos e, por outro, porque a ausência de vítimas torna improvável a denúncia. A prática do roubo, ao contrário, é mais arriscada: dentro das regras do tráfico, o roubo é proibido em todo o perímetro da favela e é necessariamente cometido nos bairros mais vigiados. A natureza própria dos bens desejados (celulares de última geração, bolsas repletas de dinheiro) além dos potenciais lugares de assalto (bancos, correios, lojas diversas) levam também os jovens a cometê-los nos bairros ricos e, portanto, sob intensa vigilância. Assim, Tiago explica que sua entrada no tráfico de drogas foi consequência de um forte cerco policial que sofria no período em que praticava roubos em um bairro nobre próximo à sua casa. Diogo “subiu de posto” rapidamente dentro do tráfico devido ao seu status privilegiado de “cria do morro”; paralelamente, ele sempre realizou roubos, o que o levou a ser preso pela primeira vez: É, já com doze anos, já comecei a trabalhar; aí depois fui subindo, aí eu virei soldado do morro; e mesmo sendo soldado do morro, roubava. Então, roubava carro, roubava banco também, essa coisas... E foi justamente quando eu rodei, quando eu fui preso; no caso, eu rodei com roubo, entendeu? Fui pego roubando um banco, na Caixa Econômica; fui pego eu e mais cinco, entendeu? Fui preso justamente por causa disso... Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 189 [...]. Porque, no tráfico, ele tá dentro de uma comunidade fechada; então 90% dos policiais não conseguem subir lá dentro, entendeu? (Diogo). Além disso, o elevado risco de prisão vinculado à prática do roubo se reflete nas estatísticas oficiais sobre delinquência juvenil: os delitos contra o patrimônio estão em primeiro lugar em relação ao tráfico. Contudo, as entrevistas mostram que um número expressivo de jovens exerce paralelamente as duas atividades; principalmente durante o período em que ocupam postos subalternos e são, consequentemente, mal remunerados. O assalto – principalmente a mão armada, pois a inserção no tráfico facilita o acesso a armas – constitui um complemento aos ganhos obtidos com o tráfico de drogas, fenômeno confirmado igualmente por um estudo realizado pelo Observatório de Favelas no Rio de Janeiro que constatou, além disso, uma tendência à migração de jovens do tráfico para a prática de assalto à mão armada (DE SOUZA e SILVA, 2006). Portanto, é plausível conjecturar que a profissionalização do tráfico, por um lado, e a organização altamente hierarquizada das facções, por outro, acarretam uma queda nos lucros, ou mesmo dificuldade para obtê-los rapidamente. Ao contrário, o roubo oferece uma oportunidade de ganhos maiores e imediatos, além de maior independência: O dinheiro que tu rouba é todo teu. Agora, o dinheiro do tráfico não. O dinheiro do tráfico assim, por exemplo, você trabalha pra uma pessoa, determinada pessoa, entendeu? Aí, assim o que você lucra naquele dia você vai dividir. Tal parte vai ser da ‘boca’, tal parte vai ser sua (Diogo). O dinheiro obtido com o tráfico de drogas (ou por roubos) é geralmente esbanjado em gastos ostentatórios (festas, joias, roupas de marca, presentes para mulheres...)20. Entretanto, alguns jovens manifestam o desejo de investir o dinheiro em um projeto a longo prazo: assim, Rafael, que entrou no tráfico com 12 anos de idade e pouco a pouco subiu de posição, planeja comprar um restaurante com suas economias: “Sou um pão-duro”, afirma. Importante observar que o tráfico de drogas e o roubo nem sempre estão associados; a título de exemplo, alguns jovens realizam apenas assaltos a mão armada e desdenham um posto no tráfico, uma vez que lhes representaria uma perda de autonomia: “A maioria dos adolescentes que estão no tráfico também roubam. Mas tem também aqueles que não roubam, você entende? Porque eles não querem trabalhar pra qualquer um, eles querem trabalhar por conta própria” (Diogo). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 190 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... Ademais, a maior parte dos jovens que apresentam trajetória de rua e dependência de drogas cometem pequenos furtos (sem uso de arma), e não ingressam no tráfico de drogas devido à sua péssima reputação junto aos traficantes. Já outros se recusam a cometer roubos por razões éticas de “direito de propriedade”, enquanto o tráfico, para eles, constitui um “negócio como outro qualquer”: tanto o comprador como o cliente não estão obrigados a participar da transação. CONCLUSÃO Procuramos descrever, compreender e explicar a maneira como jovens, em duas metrópoles brasileiras, envolvidos em atividades delinquentes – principalmente o tráfico de drogas – vivenciam o controle policial. Três dimensões foram pertinentes para compreender as interações entre jovens e policiais: o status do jovem, o funcionamento da Polícia brasileira e as lógicas territoriais. Nossos resultados confirmam algumas lógicas reiteradas em diversos estudos de sociologia referentes ao comportamento divergente e ao sistema penal: familiaridade das relações entre jovens oriundos de bairros desfavorecidos (neste caso, as favelas) e Polícia; lógicas de rotulagem presentes; impunidade policial nos casos de uso ilegal da violência; importância das lógicas locais no exercício do poder discricionário da Polícia; e o tratamento diferenciado dos suspeitos em função do sexo. A título de autocrítica, pode-se conjecturar que o fato de a pesquisa se fundamentar principalmente nas experiências dos jovens e, por consequência, privilegiar seus discursos poderia ter o efeito de superestimar as margens de manobra, estratégias e recursos dos jovens frente às intervenções da Polícia (ou frente ao “mundo do crime”). Ainda assim, os resultados permitem-nos matizar e complexificar algumas análises da literatura e atender ao objetivo inicial do artigo, ou seja, produzir uma sociologia da experiência sobre jovens indiciados pela Justiça, no contexto de suas relações com o Polícia no Brasil. Assim, embora numerosos estudos – na maior parte embasados na realidade da Polícia do Rio de Janeiro – ressaltem a onipresença da violência nas práticas policiais, os dados coletados mostram sua variação em função das lógicas locais. Além disso, o contexto particular no qual a pesquisa se realizou (alto grau de organização do tráfico de drogas, recorrência de práticas policiais extralegais) e também a abordagem adotada (qualitativa, compreensiva e interacionista) nos permitiram redefinir a maneira pela qual as lógicas estruturantes se combinam e produzem efeitos complexos nas Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ 191 interações entre jovens e policiais. Mesmo que a legislação atual da Justiça para jovens no Brasil preveja (ou pelo menos aparentemente) penas mais brandas, o fato de os jovens ocuparem posições subalternas no tráfico de drogas, facilmente substituíveis, torna-os alvos mais frequentes de processos policiais e penais que os adultos envolvidos na venda de drogas. Esta lógica é ainda fortalecida pela propensão da Polícia brasileira em realizar “acordos” com os traficantes, que podem designar um culpado à sua escolha. Um outro exemplo reside no modo pelo qual o território influi (de maneira complexa e não linear) na intensidade da ação policial: em função do grau de organização do tráfico de drogas em determinada favela, a Polícia dispõe de uma capacidade de intervenção mais ou menos eficaz, fato que pode proteger (ou expor) os jovens ao controle institucional; quanto mais organizados estão os traficantes (e, portanto, armados), mais a violência irrompe durante as operações policiais; fato que aumenta os riscos dos jovens que trabalham dentro das favelas serem vítimas de violências (às vezes fatais); enfim, em função dos dispositivos de vigilância do Estado (vídeo vigilância) e também dos recursos do jovem e de sua implicação no tráfico, o fato de vender a droga fora da favela ao mesmo tempo que os expõe enormemente às prisões, confere-lhes igualmente uma autonomia considerável na gestão do próprio comércio. Para concluir, e com o objetivo de abrir novas perspectivas de pesquisa, é importante recapitular que as lógicas salientadas neste artigo estão ligadas a configurações particulares; cada uma das dimensões aplicadas na análise está sujeita a transformações ao longo do tempo (mudança das políticas penais, reorganização das facções criminais, etc.). Por exemplo: em Belo Horizonte, toda semana um pelotão da Polícia militar visita um centro de internação para oferecer uma oficina de percussão aos jovens que, posteriormente, têm lugar em exibições públicas. Sem querer sucumbir a um otimismo ingênuo, podemos conjecturar que este tipo de projeto produz efeitos concretos, dignos de análise, nas relações entre jovens e policiais. Outro exemplo: no Rio de Janeiro, a política de ocupação das favelas pelas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) está modificando, profundamente, as lógicas de vigilância policial nesses territórios. Embora seja demasiado cedo para se tirar conclusões definitivas sobre esse impacto, mudanças podem ser notadas a partir da entrada de uma UPP na favela: comumente os chefes do tráfico fogem, ou se refugiam em lugares seguros na própria favela; mesmo que a venda de drogas não cesse, os pontos de venda são transferidos para locais remotos e os traficantes deixam de exibir suas armas em plena rua. As primeiras avaliações dessa política Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 192 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... de seguridade ressaltam ainda uma diminuição global de delitos violentos (com uso de arma de fogo), principalmente redução de mortes resultantes da intervenção policial (CANO, 2012). Em contrapartida, todos os outros tipos de delitos apresentaram um crescimento significativo, o que poderia ser explicado tanto pelo aumento real da delinquência, em virtude de um controle menor exercido pelos traficantes, como também pela elevação do número de queixas resultantes da atual presença continuada da polícia nas favelas (CANO, 2012). Nossos dados indicam, ademais, que os jovens que representam o “pequeno comércio” de drogas, comumente não têm a possibilidade de fugir ou de se reciclar em outra atividade; são, portanto, alvos de uma repressão policial intensa, ainda mais se forem conhecidos das forças policiais. Além disso, como sublinha Paes (2011), a colaboração com o Exército no âmbito dessa política (em razão da falta de efetivos policiais) levanta algumas questões novas: qual divisão de trabalho se estabelecerá entre o Exército e a Polícia Militar? As práticas ilegais da Polícia militar irão se difundir entre os recrutas do Exército? Tais considerações ressaltam o aspecto dinâmico da relação existente entre a instituição policial, as atividades criminais e os territórios urbanos e, consequentemente, a importância de se analisar estes fenômenos em termos relacionais e processuais. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ NOTAS 193 1 Tropa de elite, José Padiha e James d’Arcy, 2007. 2 Romance de Paulo Lins, Cidade de Deus, que posteriormente foi adaptado a um filme de grande sucesso, sob a direção de Fernando Meirelles (2002). 3 MV Bill e Celso Athayde, Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010. 4 Acusados não significam autores. Uma parte deles assumiu a responsabilidade de atos que não cometeram para protegerem os maiores de idade. 5 Não podemos associar, evidentemente, o conjunto dos jovens moradores das favelas a jovens infratores. Licia Valladares (2006), com razão, advertiu os pesquisadores quanto ao risco de se reproduzir, no âmbito das ciências sociais, as representações negativas dos moradores das favelas. Por outro lado, tampouco devemos assumir uma representação idealizada das “comunidades”, retomando o eufemismo utilizado tanto pelas autoridades brasileiras como, com frequência, pelos habitantes desses bairros pobres. Para uma retrospectiva histórica e jurídica das favelas, pode-se consultar Rafael Soares Gonçalves (2010). 6 A questão da violência cometida por mulheres e o lugar que estas ocupam dentro do tráfico de drogas foi tema de uma publicação de Duprez (2012) a partir desta pesquisa. 7 Uma anedota pode ser significativa. Durante nossa última visita a um dos centros, um grupo de jovens improvisou uma apresentação. Um deles quis dizer algumas palavras e seu depoimento nos surpreendeu. Ele agradeceu o nosso interesse por eles e afirmou “Aqui no Brasil, as classes médias nos desprezam e, se aceitamos contar nossa vida e nossas batalhas, é porque fomos honrados com o fato de pessoas importantes como vocês se interessarem pela gente”. 8 As medidas não dependem da Justiça comum, mas de um secretário de Estado para as medidas em regime fechado e, da municipalidade, para as medidas em regime aberto. Para uma análise do sistema de justiça para menores de idade no Brasil, consultar G. Bugnon e D. Duprez (2010). 9 “Galère” se refere à pesquisa, levada a cabo pelo autor, na análise de relações, experiências e estratégias de jovens em contexto de marginalização para viverem com poucos recursos. 10 Outra diferença entre as duas cidades é a presença de milícias privadas no interior das favelas do Rio de Janeiro. Formadas por ex-policiais, bombeiros e carcereiros de prisão, estas milícias impõem um sistema de segurança aos moradores em troca de retribuições diversas. Estudos sobre este tema (ZALUAR, CONCEIÇÃO, 2007) indicam que a Polícia tende a se mostrar menos truculenta e menos corrupta nestas favelas que naquelas dominadas pelos traficantes de drogas (em função do evidente “corporativismo” que impera entre Polícia e milícia). Não nos aprofundaremos nesta questão no presente artigo, pois os depoimentos dos jovens entrevistados nunca mencionam tais milícias privadas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 194 AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ... 11 Dentre outros autores, Misse (1999) supõem ainda que a “lei do silêncio” deriva também da substituição, no Brasil, do sentido da denúncia pelo da delação: os baixos índices de denúncia registrados pela polícia não se originariam apenas do temor inspirado pelos traficantes, mas também seriam frutos de uma barreira moral ligada à proibição de delatar. 12 Apesar do número crescente de mulheres presas por tráfico de drogas ao longo dos últimos anos no Rio de Janeiro, as mulheres, quase sempre, continuam sendo consideradas como vítimas pelas instituições penais. (SOUZA, 2009). Além disso, quando são abordadas pela Polícia, passam por menos revistas que os homens; mesmo que um grande número de regras referentes a procedimentos penais seja cotidianamente violado pela Polícia brasileira, a proibição de revista por um agente masculino sobre um suspeito do sexo feminino continua sendo surpreendentemente respeitada (RAMOS e al., 2005). 13 A menor atuação da Polícia brasileira frente ao envolvimento de meninas no tráfico de drogas foi objeto de outro texto de um dos autores do presente artigo (DUPREZ, 2012). 14 Entretanto, esta regra não se aplica aos jovens pois, provavelmente, os traficantes são cientes do limitado poder de atuação dos advogados nos processos nas varas da Infância e da Juventude. Em geral, eles recebem algum dinheiro e roupas por meio das visitas de familiares. 15 Como dito anteriormente, no que se refere ao Rio de Janeiro, as cifras de homicídios estão subestimadas devido ao peso dos “autos de resistência”. 16 Fonte: SIM/DATASUS. 17 Um estudo estatístico realizado pelo Observatório das Favelas, no Rio de Janeiro, confirma estas narrativas: dos 230 jovens envolvidos com o tráfico consultados; apenas 26,5% afirmaram nunca ter sido vítimas de violências policiais, enquanto 21,7% relataram haver sofrido cinco ou mais vezes violências por parte da Polícia (DE SOUZA e SILVA, 2006). 18 Durante nossa pesquisa, pudemos presenciar, uma vez, a rejeição, por parte do juiz, da versão dos fatos contada pelos policiais, em favor do relato do jovem (que denunciava justamente um delito totalmente forjado). 19 O estudo de Dowdney (2003) sobre os jovens do tráfico no Rio de Janeiro salientou que o “asfalto” ou a cidade, em oposição à favela, não é controlado; nem é de interesse das facções de traficantes, que se instalam no território das favelas. Nossa pesquisa matiza esta afirmação, ao apresentar o fato de que certos jovens trabalham no Centro da cidade a serviço do chefe estabelecido na favela. 20 Chegamos a constatações similares no norte da França, no final dos anos noventa, quando a lavagem de dinheiro procedente das drogas permanecia excepcional, no caso do tráfico nas cidades. Ver Duprez, Kokoreff (2000). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ BIBLIOGRAFIA 195 ADORNO S., 2005. Le monopole étatique de la violence: le Brésil face à l´héritage occidental, Cultures & Conflits, 59, 149-174. BARROS L., 2009. O paisano, a política e a “comunidade”: a polícia na encruzilhada, Revista brasileira de segurança pública, 5, 160-185. BEATO FILHO C., REIS, I., 2001. Inequality, socioeconomic development and crime, in Inequality and Poverty in Brazi. Rio de Janeiro, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 385-403. BERTAUX, D., 1997. Les récits de vie. 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Palavras-chave: Polícia, delinquência juvenil, Brasil, corrupção, violência, territórios. Keywords: Police, juvenile delinquency, Brazil, corruption, violence, territories. Resumo O objetivo deste artigo é analisar interações entre policiais e jovens menores de idade envolvidos em atividades delinquentes em duas grandes metrópoles brasileiras (Belo Horizonte e Rio de Janeiro), a partir das narrativas produzidas por estes durante entrevistas biográficas. Três dimensões se revelaram pertinentes para compreender as experiências narradas pelos jovens entrevistados: o status do jovem (idade, sexo, grau de envolvimento na delinquência), o funcionamento da polícia brasileira (principalmente relativo a práticas extralegais) e as lógicas territoriais (favela versus centro da cidade). Nossos resultados permitem redefinir a maneira como essas lógicas estruturantes (normas legais referentes à justiça juvenil, organização do tráfico de drogas, prioridades da intervenção policial) se combinam e produzem efeitos complexos nas relações entre jovens e policiais. Abstract The purpose of this paper is to analyze the interactions between police and underage youth involved in delinquent activities in two major Brazilian cities (Belo Horizonte and Rio de Janeiro), from the narratives produced by these during biographical interviews. Three dimensions were relevant to understand the experiences narrated by the young people interviewed: the status of the young (age, sex, degree of involvement in the crime), the operation of the Brazilian police (mainly relating to extralegal practices) and territorial logics (favela versus center of the city). Our results allow us to redefine the way in which these structural logic (legal norms relating to juvenile justice, organization of drug trafficking, priorities of police intervention) combine and produce complex effects in relations between youth and police. Recebido para publicação em outubro/2014. Aceito em maio/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198 Os “estabelecidos e os outsiders” da Sulanca no agreste Pernambucano Annahid Burnett Doutorado em Ciências Sociais e Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), estado da Paraíba. Pesquisadora do grupo de pesquisa Trabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas, UFCG/ CNPq. Tradutora do livro Sociologia Ambiental, do professor John Hannigan, da Universidade de Toronto, publicado pela Editora Vozes. Endereço eletrônico: [email protected] Endereço postal: Rua Silvino Macedo, 134, 1º andar, Maurício de Nassau. CEP 55012-380 Caruaru-Pernambuco. INTRODUÇÃO Norbert Elias & John L. Scotson abordaram de maneira bem ilustrativa a compreensão de processos que necessariamente começam dentro dos indivíduos – a constituição de alteridades, o “nós” e o “eles” –, através de uma reflexão sobre nossa própria posição e comportamento. Os autores descrevem como isso funciona na obra Estabelecidos e outsiders (1965). Os pesquisadores estudaram, no início dos anos 1960, uma área na periferia de uma rica cidade industrial no centro da Inglaterra, o subúrbio de Wiston Parva, onde vivia uma população de 5000 habitantes. Tinha suas próprias indústrias, escolas, igrejas, lojas e clubes. A Zona 1 era de classe média. A Zona 2 – na qual se estabelecia a maior parte das indústrias – abrigava a classe operária. A Zona 3 também era habitada por integrantes do proletariado. Essa zona industrial foi construída em 1880. A primeira foi a Zona 2. Durante as décadas Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 200 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO de 1930 e 1940, a Zona 1 foi edificada como um distrito residencial, com casas ajardinadas, esparsas, distantes umas das outras, desenhadas para a classe média. A Zona 3 foi construída depois, numa terra desqualificada anteriormente, e afirmava-se ser alagada e cheia de ratos. Os apartamentos ficaram vazios por um longo período, apesar do baixo valor dos aluguéis. Logo a relação “nós” e “eles” foi desenvolvida entre os estabelecidos nas zonas 1 e 2, e os novatos na Zona 3. Elias e Scotson procuraram respostas para a razão e função da segregação. Inicialmente estudaram os fatores demográficos, atentos às variáveis classe social, renda, trabalho e origem da população. Entretanto, encontraram diferenças mínimas entre as zonas 2 e 3, e grandes diferenças entre a 1 e a 2. A análise da pesquisa quantitativa não foi satisfatória, principalmente para as zonas 2 e 3 que tinham uma estrutura social similar, vista através de fatores de classe e socioeconômicos. De acordo com Elias e Scotson, a resposta seria encontrada em outro lugar. A sua nova hipótese focou na necessidade de estudar os contatos e confrontações dos grupos, assim como as barreiras e conflitos que surgiram quando dois grupos anteriormente independentes se tornaram dependentes um do outro, ou seja, essas configurações surgiram quando culturas e valores se encontraram. O estudo qualitativo – baseado em entrevistas com os agentes sociais das organizações voluntárias, do clube da juventude e da lista dos eleitores – não produziu uma base aceitável para uma explicação do antagonismo entre as zonas. Os autores concluíram ser possível analisar e comparar áreas como essas três, usando variáveis históricas, econômicas, culturais, políticas, religiosas e administrativas. No entanto, tal análise não teria uma explicação completa sobre inclusão e exclusão, nem do processo de marginalização existente. Segundo os pesquisadores, não havia diferenças significantes entre as zonas 2 e 3. A explicação tinha que ser buscada nas relações entre os habitantes das áreas; como as pessoas estabeleceram relações através da vida, quando jogavam juntas, iam para a escola, trabalhavam, negociavam, iam para a igreja ou se divertiam juntas. Os pesquisadores argumentaram que as formas mais elementares da vida social, desenvolvem dependência mútua e constituem a base da existência e formação da sociedade – um contrato social. O tema central descrito por Elias e Scotson volta-se para diversos valores atribuídos às famílias e aos seus membros nas redes. No topo da hierarquia se encontram aqueles com um longo histórico na comunidade. O conflito era principalmente entre os velhos e os novos grupos. Por velho não queremos nos referir à idade biológica, mas, a uma posição social distinta e Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 201 superior. Os autores observam que o poder da estrutura só pode sobreviver se for transferido de geração para geração e se a sua fonte for monopolizada, ficando fora do alcance de outros grupos, ou seja, a monopolização da transferência de habilidades específicas, conectadas com tabus e normas de conduta em comum que separam os grupos. Na sua análise, Elias e Scotson estabeleceram três padrões que fortaleceram a segregação e a manutenção da estrutura social. O primeiro foi baseado na centralidade da família matriarcal, no qual a elite foi reproduzida. O segundo, nos clubes locais e redes familiares. O terceiro foi centrado em torno do “boato” e da sua função em estabelecer e apoiar a ordem social – clichês baseados em julgamentos, condenações e discriminação do “eles” – enquanto promoção do “nós”, sempre alimentando a ordem existente. Processos de exclusão e inclusão são relacionais. Exclusão, inclusão e discursos de marginalização têm relação com o espaço e limites de normalidade. Esses limites são social, espacial ou simbólico, ou uma mistura de todos eles. A fixação desses limites se constitui num processo de discussões e rearranjos contínuos. Os autores observam, na transição para a sociedade pós-moderna, global, tendência de um desenho “embaçado”, configurações que ainda não estão nítidas. Os valores da sociedade pós-moderna se tornaram também mais relativos e mais difíceis de serem capturados. As definições de normalidade estão perdendo o caráter específico. As discussões sobre marginalização podem, nesta perspectiva, ser vistas como uma crise de integração e estrutura. A inclusão e exclusão sociais devem ser entendidas como processos dinâmicos, evoluindo no tempo. Esses processos são relacionais; só podem acontecer como consequência do encontro de indivíduos e grupos. Os outsiders não são excluídos no sentido absoluto; estão sempre relacionados a outros indivíduos ou sociedades. Para esses autores, os estabelecidos e os outsiders vivem numa simbiose, baseada numa configuração de poder e dependência regida pela interação social e pelas estruturas da sociedade. A FEIRA DA SULANCA NO AGRESTE DE PERNAMBUCO A Feira da Sulanca1 teve origem em Santa Cruz do Capibaribe, situada na Mesorregião do Agreste pernambucano – área intermediária entre o Litoral/Mata de clima úmido e o Sertão semiárido e, mais especificamente na Microrregião do Alto Capibaribe –, onde fica a nascente do rio Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 202 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO Capibaribe. Sendo uma região intermediária, a Mesorregião do Agreste é naturalmente bem diversificada, permeada de brejos de altitude, verdadeiros oásis, os quais permitem a agricultura permanente, em meio a áreas de caatinga onde tradicionalmente se desenvolveu a pecuária extensiva para abastecer a região metropolitana, como observa Manuel Correia de Andrade (2005). Geologicamente, a Mesorregião do Agreste está situada no Planalto da Borborema, com altitude média entre 400 e 800 metros, também conhecido como Serra das Ruças2, região montanhosa no interior do Nordeste brasileiro e se estende pelos estados da Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas (IBGE, 2011). O município de Santa Cruz do Capibaribe dista 180 km da capital do estado, Recife, e faz parte de um território tradicionalmente denominado Cariris Velhos, com baixa densidade pluviométrica e solos rasos. O fenômeno produtivo/comercial denominado Feira da Sulanca emergiu durante as décadas de 1950 e 1960, a partir do aproveitamento dos retalhos provenientes da indústria têxtil do Recife num primeiro movimento; e, num segundo movimento, de retalhos dos rejeitos da indústria têxtil de São Paulo, adicionados aos primeiros. Esses retalhos serviam de matéria-prima para as costureiras dos sítios que, emendando-os, produziam peças de roupas e cobertas para serem vendidas nas feiras livres; assim, essas mulheres obtinham uma renda complementar da renda do sítio. A mão de obra era familiar; a unidade produtiva o domicílio; e a produção, doméstica e artesanal. Essa unidade produtiva passou para a zona urbana, seguindo as exigências tecnológicas da linha de produção, uma vez que os retalhos procedentes do Sudeste demandavam tecnologia mais complexa dos meios de produção e, assim, se tornou semi-industrial. Esse fenômeno se expandiu – formando uma rede nacional de parentesco e amizade, em meio à qual se processam arranjos produtivos e comerciais diferenciados – e hoje é denominado Polo de Confecções do Agreste de Pernambuco. De acordo com a pesquisa de Rabossi (2008), existem várias versões sobre as origens da Sulanca. Segundo o pesquisador, a produção de Sulanca começou em Santa Cruz do Capibaribe na década de 1950 com a confecção de colchas de retalhos. Esses retalhos e telas, no início, vinham do Recife, trazidos por comerciantes que vendiam seus produtos em Santa Cruz. Depois, com a expansão do sistema nacional de estradas e rodagens, os retalhos começaram a chegar de São Paulo, provenientes dos descartes da indústria têxtil e de confecções paulistanas. O autor observa que o primeiro nordestino que trabalhou com retalhos foi Seu Otávio, que se estabeleceu em São Paulo, em 1960, com um restaurante. Então, lá ele conheceu alguns Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 203 espanhóis que o iniciaram nesse comércio. Conta-se que, na realidade, foram alguns imigrantes espanhóis, durante a década de 1940, que começaram a aproveitar os resíduos da indústria têxtil paulistana na confecção de estopa para limpeza de barcos e para estofados da indústria de móveis; e que Seu Otávio passou a coletar e revender os rejeitos para os espanhóis. Depois, incluiu seus familiares no negócio, além de alguns empregados. Seu cunhado entrou como sócio e mais tarde se desmembrou, constituindo seu próprio negócio. Posteriormente, passaram a enviar os retalhos para Santa Cruz do Capibaribe para serem utilizados na confecção. De acordo com esta versão, os retalhos eram levados por caminhoneiros que retornavam após despachar sua carga. Depois, os comerciantes de retalhos – denominados sacoleiros – passaram a viajar em ônibus fretados. Observamos aqui que o resíduo virou mercadoria, deixou de ser descartado e doado e passou a ser comerciado. A respeito da mercadoria, Marx (1950) afirma que a riqueza das sociedades capitalistas representa uma “imensa acumulação de mercadorias”. A mercadoria significa um objeto exterior, algo que por suas propriedades satisfaz algumas necessidades humanas de alguma forma, quer sejam de origem fisiológica ou do desejo; sua natureza não muda a essência, seja o apetite do corpo ou do espírito. A utilidade de um objeto faz dele um valor de uso. O que faz o valor natural de um objeto é a propriedade que ele tem de satisfazer as necessidades ou as conveniências da vida humana. Mas, esta utilidade determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, tal como o ferro, o diamante, é consequentemente um valor de uso e é o trabalho concreto do homem que determina as qualidades da sua utilidade. Quando é uma questão de valor de uso, subentendemos sempre uma quantidade determinada, como uma tonelada de ferro ou uma dúzia de relógios. Os valores de uso só se realizam no uso da consumação. Dentro da sociedade capitalista, eles são ao mesmo tempo o sustento material do valor de troca. O valor de troca aparece primeiramente como uma relação quantitativa, como a proporção da qual os valores de uso de espécies diferentes se trocam um pelo outro. O valor consiste na relação de troca que se encontra nas coisas, entre uma medida de uma proporção e tal medida de outras, relação que muda constantemente com o tempo ou lugar. O valor de troca parece algo arbitrário e puramente relativo, intrínseco, que imana da mercadoria; parece mais um contra senso. Uma vez que tiramos o valor de uso das mercadorias, só lhes resta uma qualidade, aquela do produto do trabalho. O tempo socialmente necessário à produção das mercadorias é o exigido em todo trabalho, executado com o grau médio de habilidade e de intensidade e dentro das condições que, em relação ao meio social são normais. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 204 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO É, portanto, a quantidade de trabalho ou o tempo de trabalho socialmente necessário, numa dada sociedade, à produção de um artigo, que determina sua quantidade de valor. A quantidade de valor de uma mercadoria varia, então, em razão direta da quantidade e em razão inversa da força produtiva do trabalho que se realiza nele. Ou seja, quanto maior é a força produtiva do trabalho, menor é o tempo necessário à produção de um artigo e menor é a massa de trabalho cristalizada nele, menor é o seu valor. Inversamente, quanto menos força produtiva de trabalho, mais tempo socialmente é necessário à produção de um artigo, maior é o seu valor. Portanto, a substância do valor é o trabalho e a medida da sua quantidade de valor é a duração do trabalho, estabelecida socialmente. Para produzir mercadorias, deve-se produzir valor de uso, mas, valor de uso para os outros, valores de uso sociais. Nenhum objeto pode ter um valor se ele não for útil. Se ele é inútil, o trabalho nele contido é investido inutilmente e consequentemente não cria valor. Logo, os “retalheiros” (GOMES, 2006) e sulanqueiros encontraram um valor de uso social para o que era considerado descarte, resíduo, lixo, consequentemente, sem valor. Esse produto se transformou em mercadoria, adquirindo, assim, valor de uso e valor de troca, para satisfazer as necessidades de uma “massa marginal” (NUN, 2000) resultado da “superexcludência” peculiar ao nosso “capitalismo dependente” (CARDOSO e FALETTO, 1970), latino-americano, na fase considerada como “fordismo periférico” (LIPIETZ, 1989) dentro da dinâmica mais ampla de acumulação do capitalismo central e periférico. O CIRCUITO DAS FEIRAS A feira livre em Pernambuco se dá num circuito itinerante, em cada micro região. Por exemplo: a feira tradicional de Santa Cruz acontece às segundas-feiras; a de Jataúba na sexta-feira; já a de Caruaru, a pioneira e que é a maior, tem lugar no sábado. Dessa forma, o feirante tem diversas oportunidades de oferecer seu produto na mesma semana com pequeno deslocamento, ou seja, percorrendo distância curta, dentro da mesma região. Caruaru, como é uma cidade maior, além da feira central aos sábados, tem também as dos bairros: no domingo no bairro de São Francisco, na segunda-feira no bairro do Salgado e assim por diante. Alguns feirantes ficam somente nesse circuito municipal. Estas são as características de base da feira nordestina: improvisada, temporária e itinerante. Os sulanqueiros extrapolaram esse circuito micro regional e ampliaram sua área de atuação. Por exemplo: numa semana, o sulanqueiro se deslocava para a região de Feira de Santana, na Bahia, e fazia o circuito Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 205 daquela região. Na outra semana, ele se deslocava até a região de Barreiras, também na Bahia, e fazia as feiras da semana naquela área. Em seguida, eles voltavam para Santa Cruz, pagavam as costureiras, se reabasteciam e saíam em busca de outro circuito de feiras. Dessa forma, o produto sulanca ficou conhecido pelo Nordeste afora. Encontramos também esta categoria de feirantes itinerantes denominada de sulanqueiros, por viajarem vendendo o produto sulanca, nos depoimentos das pesquisas de Sandra Alves Silva (2009); Alana Moraes (2012) e Glauce Campelo (1983). Ressalte-se que atualmente o termo sulanqueiro se refere a pessoas que tenham uma atividade qualquer ligada à fabricação e ao comércio de sulanca, ou seja, feirantes que atuam no universo múltiplo e diversificado da sulanca. Observe-se, igualmente, que a categoria “retalheiro” não é usada e nem reconhecida no meio da sulanca. Trata-se de uma categoria criada por pesquisadores, estudiosos de migrações nordestinas em São Paulo, os quais detectaram-na no contexto de industrialização e urbanização daquela cidade, nas décadas de 1950 e 1960. A “GRANDE TRANSFORMAÇÃO” DA FEIRA DA SULANCA Como fato que comprova a evolução econômica de Santa Cruz do Capibaribe a partir da instituição da produção de sulanca, Campello (1983) aponta a implantação de agências bancárias importantes na época dessa expansão. Em 1970, foi instalada a agência do Banco do Brasil, a qual adotou três linhas de crédito – custeio, investimento e capital de giro –, propiciando, assim, o financiamento de máquinas e de outros equipamentos. A atividade têxtil detinha, em julho de 1983, 85% das aplicações da agência local do Banco do Brasil da parte destinada à indústria e ao comércio, representando 40% das aplicações totais deste banco. Em 1977, foi a vez de o Banco Itaú instalar sua agência com o estilo próprio de banco comercial – operando sem limites rígidos de crédito, ajustando às necessidades daqueles que buscavam no Sudeste as suas mercadorias, efetuando pagamentos à distância mediante cheques visados e financiando passagens aéreas pelo prazo de trinta dias. A Caixa Econômica Federal se instalou em 1981, e suas exigências de crédito apoiavam-se no valor do faturamento do cliente para linha de capital de giro, assim como o Banco do Brasil. Em fevereiro de 1983, foi inaugurada a agência do Banco do Estado de Pernambuco (BANDEPE) que adotou um programa especial de crédito para o pequeno produtor, com limites de 600 mil cruzeiros e com amortização e custo financeiros ajustados ao funcionamento das pequenas empresas. Como norma geral, o aval era a garantia determinada, comprometendo os empresários mais sólidos e prósperos com a Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 206 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO regularidade das operações. Dessa maneira, os líderes do ramo selecionavam a concorrência e controlavam a expansão do crédito. Segundo Campello (1983), as “fábricas” eram as maiores empresas de confecções e pertenciam aos descendentes dos pioneiros da atividade, os quais eram vendedores ambulantes de confecções populares. Essas empresas produziam um padrão de melhor qualidade, dirigido a um mercado fora do município e atendendo a encomendas feitas previamente. A atração exercida pela cidade, como ponto de convergência para o comércio de confecções, justifica também a instalação de pequenas novas unidades do ramo, sem vínculos com o início da atividade da sulanca. Essas microempresas são responsáveis pela produção de artigos populares de vestuário, de produção domiciliar e familiar, transformando a cidade numa grande “oficina” de confecções populares. É justamente nessas pequenas unidades que se encontra a maior parte da força de trabalho da região; elas geram emprego e distribuição de renda com reflexos nos demais setores urbanos. Porém, a Feira da Sulanca como instituição independente da tradicional feira livre da segunda-feira no pátio da igreja de Santa Cruz do Capibaribe só começou em 1979, às quintas-feiras. Os depoimentos da pesquisa de Campello (1983) confirmam que esta feira começou de uma iniciativa individual. Conta-se que uma costureira, ao saber da presença de uns viajantes baianos na cidade, foi exibir suas confecções na calçada da rua onde morava, pois estava em dificuldades financeiras e, assim, outras costureiras seguiram o exemplo e começaram a expor suas mercadorias também nesse dia. De início, os comerciantes estabelecidos protestaram, afirmando ser uma concorrência desleal para seus produtos, mas as mulheres insistiram e terminaram se instalando em bancos de feiras neste dia e com o apoio da Prefeitura municipal. Naquele mesmo ano, aconteceu a pavimentação da estrada que liga Santa Cruz à BR 104, facilitando mais ainda a sua expansão. Segundo a análise de Polanyi (2000), essa metamorfose da economia anterior para o sistema auto regulável de mercados foi mais completa do que qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento contínuo e desenvolvimento. De acordo com o autor, “a produção das máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da substância natural e humana da sociedade em mercadorias”(s/nº). A desarticulação causada por essa transformação desorganiza as relações humanas e aniquila o seu habitat. As rendas passam a derivar da venda de alguma coisa e devem ser vistas como tais. O trabalho de Maria Gilca Xavier et al. (2009, p. 2) mostra a transformação da paisagem urbana em Santa Cruz do Capibaribe, cuja feira, que Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 207 começou na Rua Siqueira Campos, já ocupava 28 ruas do centro da cidade. A mudança ocorreu a partir do novo empreendimento comercial denominado Santa Cruz moda center. De acordo com a autora, esta mudança foi feita através de planejamento urbano, “frente às necessidades da sociedade e do capital”. Na sua tese de doutorado – O processo de produção do espaço urbano em economia retardatária: a aglomeração produtiva de Santa Cruz do Capibaribe (1960 – 2000) (2006) –, a pesquisadora salienta que a expansão da atividade econômica e urbana, ocorrida nas décadas de 1980 e 1990, deveu-se à “reestruturação no processo de desenvolvimento do país, à diminuição do parque industrial no centro-sul, à redução de oferta de emprego formal e ao declínio das migrações internas” (s/nº). No entanto, no nosso entender, o que ocorreu foi a privatização de uma feira que nasceu livre. A partir da difusão das ideias ultraliberais3 desde os anos 1980, foram instaladas na região, instituições como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)4; na década de 1990, encarregadas de disseminarem essa “tendência” através da cultura do empreendedorismo. Assim, o sulanqueiro virou empreendedor; por sua vez, o produto sulanca, virou confecção e, dentro desta “visão” modernizante, influenciada pelos “ventos centrais” anglo-americanos, segundo a qual tudo o que não é Shopping center deve ser considerado precário e degradante, iniciou-se uma campanha de modernização da feira. Consideramos, também, esse movimento como uma forma estratégica usada pela “pequena burguesia” sulanqueira emergente, para manter o controle e o oligopólio da Sulanca, dentro da realidade de expansão da feira e, por consequência, da “infiltração” de elementos exógenos às origens e raízes da Sulanca, ou dos outsiders (ELIAS e SCOTSON, 1965). Norman Long (1990) argumenta que a Teoria da modernização visualiza o desenvolvimento em termos de um movimento progressivo em direção a formas mais complexas e integradas – tecnológica e institucionalmente – da sociedade moderna. Esse processo é mantido em movimento através do crescente envolvimento nos mercados de commodity e através de uma série de intervenções envolvendo a transferência de tecnologia, conhecimento, recursos e formas organizacionais do mundo “mais desenvolvido” ou setor de um país para partes “menos desenvolvidas”. Dessa forma, a sociedade tradicional é dragada pelo mundo moderno, mesmo passando por alguns obstáculos, e sua economia e padrões sociais adquirem apetrechos da modernidade. Verificamos que o produto sulanca, de início, se nutriu dos resíduos nos “bastidores” da indústria têxtil do Recife e de São Paulo, nas décadas de Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 208 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO 1950 a 1970, no cenário da “revolução industrial” brasileira do pós-guerra. As relações comerciais na origem eram feitas na base da confiança e do escambo. O mercado para o produto sulanca foi expandido a partir dos sulanqueiros que viajavam para “fazer as feiras” em outros estados do Norte e Nordeste. Esse movimento dos sulanqueiros fez com que o produto sulanca se tornasse conhecido pelos rincões mais remotos do Norte e Nordeste brasileiros, atraindo clientes e pessoas de fora, interessadas em participar da economia da sulanca. Houve, assim, a expansão das atividades ligadas à Feira da Sulanca, e emergência e afirmação de uma “pequena burguesia” sulanqueira de origem rural, formada pelos pioneiros, os estabelecidos (ELIAS e SCOTSON, 1965), os quais mantiveram o controle econômico e o poder político da região e, consequentemente, promoveram a “modernização” e privatização da feira. METODOLOGIA Como metodologia, recorremos a estratégias de pesquisa baseadas centralmente na história oral de vida dos agentes sociais que compõem esse complexo comercial/produtivo. A partir do relato oral (depoimentos e entrevistas individuais livres), foi possível chegar aos valores inerentes aos sistemas sociais em que vivem esses atores sociais. Aspectos importantes da comunidade, comportamentos, valores e costumes, podem ser detectados através da história de cada protagonista. De acordo com Bom Meihy (2005), a história oral é um recurso moderno usado na elaboração de documentos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. A história oral de vida corresponde à narrativa do conjunto da experiência de vida de uma pessoa. A técnica da história de vida tem sido usada para se entender a sociedade nos seus aspectos íntimos e pessoais. A história oral como metodologia de trabalho científico é adotada na academia brasileira como herança da tradição anglo saxã que, dentre outros, inclui o sociólogo e historiador social britânico Paul Thompson (2000). Seguindo-se esse caminho metodológico, o sujeito social, o colaborador, tem mais liberdade para narrar sua experiência pessoal. As perguntas servem simplesmente como indicativo, colocadas de forma ampla, dando maior liberdade ao sujeito para dissertar. Para conduzir os relatos das histórias de vida dos protagonistas da Sulanca, utilizamos uma espécie de “linha do tempo”, possibilitando aos entrevistados “mergulhar” nas suas histórias de vida. Recorremos também a procedimentos metodológicos da antropologia. De acordo com Roberto da Mata (1974, p. 27), na pesquisa em antropologia Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 209 social, “se estabelece uma ponte entre dois universos de significação, e tal ponte é realizada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediação.” O autor continua a desenvolver sua reflexão, afirmando que essa mediação é feita “de modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos os ingredientes das pessoas e do contato humano.” Segundo o autor, a etnografia é “transformar o exótico no familiar” e/ou “transformar o familiar em exótico” – os dois universos de significação. A etnografia segue o movimento original da Antropologia “na busca deliberada dos enigmas sociais situados em universos de significação”. Clifford Geertz (1999, p. 15) reitera esse argumento quando observa que, em antropologia social, seus praticantes fazem a etnografia. Assim, devemos compreender o que é etnografia para podermos começar a entender o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Para este autor, “praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes, transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário e assim por diante”. Desse modo, diz ele, o método nos ajuda a decifrar códigos sociais na elaboração de uma descrição densa. Segundo Geertz, a descrição etnográfica tem três características: ela é interpretativa, o objeto que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação consiste em “salvar” o que foi dito no discurso e documentá-lo, classificá-lo. “As sociedades, como as vidas, contêm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir o acesso a elas.” (s/nº) Por sua vez, Leach (2006, p. 15) argumenta que o cerne da antropologia social é o trabalho de campo – “a compreensão do modo de vida de um determinado povo”. O antropólogo social deve pensar nas ideias organizacionais presentes em qualquer sociedade como constituintes de um padrão matemático. Tratando também dessa temática, Boas (2006) afirma existirem leis que governam o desenvolvimento da sociedade e que essas leis são aplicáveis às sociedades de todos os tempos em todos os lugares. Guiados por esse conhecimento, podemos ter a esperança de orientar nossas ações de modo a beneficiar a humanidade. Tentamos, aqui, através da observação direta e participante, dos recursos etnológicos, interpretar os códigos das relações sociais entre os estabelecidos e os outsiders da Feira da Sulanca. DAS NARRATIVAS Transcrevemos, a seguir, trechos de narrativas dos seus protagonistas, na tentativa de compreendermos melhor o processo de constituição da relação “nós”–“eles” no discurso dos pioneiros – os estabelecidos – da Sulanca. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 210 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO Narrativa de Carlos Ribeiro – registrada em 10 de julho de 2013, pela pesquisadora Annahid Burnett: Eu não quero meus filhos na Sulanca Meu pai nasceu no Sítio Espírito Santo, pertencente ao Brejo da Madre Deus. Minha mãe nasceu no distrito do Pará, município de Santa Cruz. Meus avós vieram muito cedo pra cá. Meu avô materno é aposentado como vereador. Meu avô paterno foi vice-prefeito por dois mandatos. Meus pais já eram nascidos e vieram pra cá pra estudar. Minha vó paterna foi uma das pioneiras da Sulanca. Meu avô levava queijo, carvão, algodão e farinha pra Recife e trazia mantimentos e pedaços de tecidos. Minha vó costurava os retalhos que ele trazia do Recife e fazia roupas e vendia por aqui mesmo, no meio da rua, no chão. A mãe da minha esposa era professora. O pai começou a viajar pra São Paulo e trazer tecidos, na maioria retalhos, pontas de peças, lote com defeito, restos mesmo; até do tamanho 15 por 10 tinha; se aproveitava tudo e chegava aqui e fazia coberta. Minha esposa nasceu dentro dos retalhos. A mãe colocou quatro filhos no ramo de tecidos. Hoje cada um tem sua loja. Temos quatro filhos. Eu não quero meus filhos na Sulanca porque é muito pervertida. O que a gente tinha que sugar deste ramo já sugou; pra entrar hoje tá muito difícil. Muita gente de fora, da Paraíba. Um filho faz Design gráfico e já atua, desenvolve logomarca. O outro pretende fazer Educação Física. A filha mais velha vai pra o Recife o ano que vem. A mais nova tem 10 anos e quer ser missionária da Igreja. A gente tem apartamento em Boa Viagem [bairro de Recife]. No condomínio tem uns 60 apartamentos pertencentes às pessoas de Santa Cruz. Eu fui funcionário do Banco do Brasil durante vinte anos. Entrei com 14 anos, como estagiário, e saí com 34, como gerente de contas, há sete anos atrás. Esta loja tem 22 anos. Quando casamos, colocamos uma lojinha no Beco do Padre, em 91. Eu no Banco e minha esposa na loja. Quando abriu o Moda Center, nós fizemos uns investimentos lá e aí minha esposa já não estava mais dando conta. Aí eu pedi pra sair do Banco. Aí fiquei aqui ajudando minha esposa. Minha parte é a financeira, contábil e fiscal. Ela faz a parte comercial. Ela é muito antenada, vai duas, três vezes por ano em São Paulo, ver as tendências. Eu fiz a coisa certa na hora certa. Eu sou formado em Administração de empresas. Estou me preparando Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 211 pra importar da China. Meus filhos falam inglês, já passaram uns dias no Canadá. A gente compra do importador de São Paulo e Minas. Se a gente comprar direto, tem mais vantagem. Fiz um curso de importação passo a passo, organizado pela FIEP. O canal junto ao SEBRAE é o CDL, principalmente no atendimento. O nosso lema é atender bem. O Moda center foi excelente pra nós. Peguei minha indenização do Banco e comprei sete lojas, aluguei e hoje ganho mais de duas vezes o que ganhava no Banco, com os aluguéis. Aquilo foi uma bênção, apesar das turbulências no início. Juntamos os três irmãos e compramos um sítio de 32 hectares, graças a Deus; fizemos uma casa para toda a família. Com três donos, tem sempre um pra cuidar. Quando a feira era aqui no centro eu vendia um terço do que vendia hoje. Hoje eu ganhei visibilidade, espaço, estacionamento, as ruas estão limpas. Não tinha banheiro, as pessoas faziam na rua. No sítio tem um pouco de tudo, poço artesiano com água doce com cata-vento. Este relato é bastante esclarecedor sobre os detalhes da evolução da Sulanca. Vemos claramente que o narrador não só faz parte da “pequena burguesia” sulanqueira da cidade como também pertence ao grupo que articulou a privatização da feira. Convém salientar que o irmão do entrevistado é hoje o síndico do Moda center. Observamos que pessoas que à época não possuíam capital para investir no novo centro comercial atualmente se encontram sujeitas aos aluguéis impostos pelos proprietários dos espaços para comércio naquele lugar. Portanto, a feira que era um espaço livre e público, na atualidade está sob o controle de uma elite pertencente à “pequena burguesia” sulanqueira no poder daquela instituição. Nota-se no depoimento que o entrevistado incorporou o “discurso empreendedorista” implementado pelo SEBRAE na região. Observamos as metamorfoses nas redes comerciais da Sulanca, as quais estão se tornando globalizadas, com o nosso narrador representando uma das pontas de lança desse novo momento. Conforme explicitado pelo próprio, nos seus planos está a idéia de desenvolver uma relação comercial direta com o fornecedor majoritário, a China, e eliminar o intermediário do Sudeste brasileiro. Sobre a “cultura do empreendedorismo”, convém abrir um apêndice para essa discussão tão em voga neste momento do capitalismo de acumulação flexível, nos termos de Harvey (1992). Essa “cultura” surgiu a partir do desenvolvimento do ultraliberalismo nos países centrais nos anos 1980, notadamente influenciados pelas políticas dos governos de Margareth Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 212 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO Thatcher e Ronald Reagan, na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente. E por que ultraliberalismo? O termo foi concebido por analistas políticos europeus, como divisor de águas de uma nova era; segundo eles, anteriormente ao thatcherismo, os neoliberais afirmavam que o “Estado era um problema”; porém, ao assumir o poder Margareth Thatcher retificou essa máxima, alegando que o “Estado era o problema”, justificando, assim, o ultraliberalismo, o desmantelamento do Estado. Tal postura foi logo seguida pelo seu parceiro, Ronald Reagan que implementou a política do reaganomics nos Estados Unidos. Pesquisas como a de Rosângela Pereira (2011), sobre o trabalho a domicílio, encontram dificuldade em identificar esse “espírito empreendedorista” nas trabalhadoras a domicílio no setor de confecção. E por que fica difícil detectar esse “espírito” na realidade brasileira? Temos como hipótese que os estudos sobre empreendedorismo que fazem referência direta à obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber (2012), negligenciam o cerne da questão de Weber: a religião. O trabalho é o eixo central da religião protestante, mais especificamente puritana, da qual a cultura norte-americana é herdeira direta, pois os pioneiros, colonos assentados na América, foram os puritanos deportados da Inglaterra para onde não poderiam mais voltar. Weber nos chama a atenção para o fato de que o capitalismo encontrou justamente na cultura austera de trabalho, puritana, um campo fértil para se proliferar; e mostra também que, ao contrário, o mesmo não aconteceu no meio católico. E o que aconteceu nos anos 1980 e 1990 com a difusão do ultraliberalismo? O trabalho, tão central na cultura puritana anglo-saxônica, sofreu um golpe: começou a produzir desempregados. E como justificar essa taxa de desemprego galopante, considerando que o termo desempregado é uma humilhação numa cultura de perdedores e ganhadores? A cultura WHASP (WHite Anglo-Saxon Protestant) não permite a proliferação do não trabalho. Portanto, a expressão empreendedorismo surgiu dentro desse contexto, com o intuito de substituir o termo “desempregado” – inadimissível para os WHASPs – pelo termo “empreendedor”. Certamente, essa cultura protestante, importada, não poderia conferir os mesmos resultados quando implantada numa sociedade de colonização católica; ou seja, esse “espírito empreendedor” não encontraria eco numa cultura com valores tão opostos. Podemos, assim, afirmar que os sulanqueiros não são empreendedores? Supomos que não, pois foram esses agentes sociais que empreenderam esse fenômeno produtivo-comercial; essa é uma história essencialmente centralizada na agência. A Sulanca é um produto dos agentes sociais agrestinos, sem a participação das instituições formais de políticas públicas e aquelas Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 213 representadas pelos grandes movimentos do capital. Contudo, não tem como referência o empreendedorismo formal, cartesiano, baseado no racionalismo weberiano. Consideramos ser esse um “empreendedorismo agrestino”, se podemos assim dizer, do Nordeste agropastoril e com características próprias dessa cultura, com outros tipos de racionalidade. NARRATIVA DE ARNALDO VITORINO Outra narrativa muito relevante para o entendimento do processo “nós” e “eles” se expressa na entrevista concedida à autora pelo professor e pesquisador Arnaldo Vitorino, em 29 de março de 2013. E a cidade hoje tá faltando água. A feira daqui, de secos e molhados, era bem movimentada, vinha gente até da Paraíba. Aqui se trabalhava muito com o extrativismo: era o caroá, o carvão... Depois, começou-se a trabalhar com alpercatas, com calçados. O foco principal de Toritama era calçado. Algumas pessoas contam que um ônibus que vinha da Bahia com destino a Campina Grande errou a estrada e veio parar aqui. Quando passou, viu roupa na feira, algumas pessoas vendendo roupa na feira. Aí começaram a entrar, compraram roupa na feira e foram embora. Com poucos dias, chegou outro ônibus novamente. Aí o pessoal – quem tinha aquelas roupinhas – começou a botar na entrada da cidade. Aí pegava o pessoal entrando, pra não perder muito tempo. Tem essa história, desse ônibus que tava indo pra Campina Grande e errara o caminho. Chegaram aqui viram roupa barata e levaram. Foi aí que o pessoal começou a botar roupa na feira em dia que não era de feira, na quarta, na quinta... E aí começaram a vender essa mercadoria. Mas, aí a estrada ainda era de barro e às vezes não dava tempo de chegar aqui. Aí os mais espertos começaram a migrar pra Caruaru e vender em Caruaru. Aí, depois, Caruaru começou a aumentar a feira. Como a estrada era de barro, Toritama começou a botar banco na beira da pista pra aproveitar uma beirinha da história, e cresceu também. Primeiro fizeram o asfalto pra Campina Grande e depois foi que fizeram o asfalto de Pão de Açúcar pra cá. Mas, Santa Cruz é a fonte, a origem de tudo. O jeans de Toritama, eu acho que 80% dele é fabricado aqui. Vai pra Toritama somente pra ser pré-lavado, amaciado nas lavanderias. A fabricação e o ponto de jeans é Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 214 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO aqui. A Santista tem uma cota de jeans pra o mercado nacional. A cota de jeans pra Pernambuco, os compradores de jeans são daqui de Santa Cruz. Aí Toritama vem buscar o jeans aqui. O pessoal começou a ir pra fora, região do Amazonas; depois começaram a se fixar por lá, montaram loja pra lá. Eles mesmos compram a mercadoria aqui e já tem caminhão pra levar pra lá. Se chegar no Parque da feira em dia de feira, tem cinco, seis carretas, carregando para o Pará. A intranquilidade daqui começou quando os próprios prefeitos começaram a divulgar na televisão, na rádio, nos anos oitenta, que aqui o pessoal ganhava dinheiro e ninguém era desempregado. Aí começou a chegar muita gente de fora. Aí esse pessoal de fora vinha de toda cor e qualidade; vinha de tudo. Tinha aquele que vinha pra trabalhar e tinha aquele que vinha pra roubar mesmo. Ainda hoje tem bastante. Mas aqui sempre teve essa propaganda que não tinha desemprego. Santa Cruz não tava nem aí pra seca. Era uma seca danada pelo Nordeste todo. A cidade deu um salto a partir dos anos oitenta. O açude não comportou, o consumo triplicou. Aí construíram Machado; daí a pouco não deu mais. Muita fábrica mudou pra Caruaru, Recife, porque tinha água. Aí se construiu a barragem de Carpina. Carpina servia mais de contenção de cheia no período das chuvas; hoje é pra abastecimento. Aí se construiu Jucazinho; depois se construiu a barragem de Poço Fundo e a cidade hoje tá faltando água. Tabocas tá quase seco. Houve um êxodo rural pra cidade. Quando ganharam dinheiro, voltaram para o sítio de novo. Hoje tá todo mundo lá na zona rural com máquina industrial. Esta análise nos mostra que o modelo de desenvolvimento, de progresso econômico, reproduzido para a região provocou não só uma transformação nos valores e costumes do povo da região, como também um impacto nos recursos naturais. A pressão da produção intensiva que causou o crescimento da população está impactando os recursos ambientais do semiárido e é desproporcional à capacidade de suporte. Outro ponto a salientar é o retorno ao sítio; porém, hoje, com tecnologia e conforto. CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa nos permitiu vislumbrar que as famílias do sítio agrestino nas décadas de 1950 e 1960 viviam sob condições adversas – as estradas eram péssimas, não existia luz elétrica e a família era a força produtiva que se encarregava da subsistência do núcleo familiar. A ligação local entre as Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT 215 famílias do sítio era estabelecida pelas feiras livres, espaços para o encontro das pessoas integrantes de núcleos familiares isolados, onde podiam escoar seus excedentes, através das práticas de escambo, da “venda na base da confiança”, ou ainda trocar ou vender objetos pessoais, para completar a renda da família no sítio – cenário de suas práticas sócioeconômicas. A Sulanca foi produto dessas estratégias de reprodução social, de subsistência do núcleo familiar, resultado dos costumes agrestinos dentro de um contexto socioeconômico particular. As condições físicas e tecnológicas fizeram com que esse núcleo familiar fosse transferido para a “zona urbana”, sede do município de Santa Cruz do Capibaribe, e com ele seguiram os costumes do sítio. E esse modo de produção do sítio continuou sendo reproduzido, na mesma medida em que foram se transformando, nessa nova atividade que se apresentou como a estratégia mais viável para assegurar a subsistência no núcleo familiar: os retalhos que representavam matéria-prima barata ou até gratuita, a experiência da costureira doméstica, a família como mão de obra no processo de produção da Sulanca, o domicílio da família como unidade produtiva e os homens como vendedores itinerantes e divulgadores desse produto nas feiras livres, os sulanqueiros, à margem do mercado formal. Ressalte-se que tais estratégias de reprodução social foram instituídas à margem do mercado formal e refletiram os costumes, os hábitos socioeconômicos e a divisão social do trabalho, particulares de agentes sociais agrestinos. Concluímos que esses elementos – mas, principalmente, o mercado de feiras livres como lócus dessas práticas costumeiras – possibilitaram a instituição desse fenômeno produtivo/comercial. O desenvolvimento da Sulanca, por outro lado, sofreu uma “Grande Transformação” e essa realidade continua se metamorfoseando nos tempos atuais. A “reestruturação produtiva” que atingiu a região a partir da década de 1990 encontrou um “terreno fértil” em um mercado improvisado e em plena expansão, caracterizado pelas relações de trabalho informais. A região começou, assim, a receber trabalhadores e empresários de outras regiões atraídos por esse mercado sem regulação formal. A feira que era “livre” começou a ser transformada e regulada mais fortemente pelo poder local. As relações de trabalho mudaram e com elas: a matéria-prima, os modos de produção, os fornecedores, os clientes e, o que era “feira livre”, virou shopping center, área privatizada e dominada pela “pequena burguesia” sulanqueira, emergente, de origem rural e que detém o controle econômico e o poder político na região. Através das narrativas dos protagonistas pioneiros da Sulanca – os estabelecidos – percebemos claramente a configuração do processo “nós” e “eles” em relação aos demais agentes sociais, os quais se inseriram na economia sulanqueira, a posteriori – os outsiders. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 216 OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO NOTAS 1 O vocábulo Sulanca supostamente originou-se das palavras helanca e sul, referindo-se aos retalhos de tecido sintético - este usado nos anos 1960 -, os quais vinham do Sul. Portanto, sul+helanca=sulanca. 2 O IBGE adota a grafia tradicional, Ruças, que, segundo Aurélio Buarque de Holanda, quer dizer neblina, névoa. Com o passar do tempo, as pessoas, desavisadamente, foram escrevendo Russas, supondo que este nome tinha alguma relação com a nacionalidade russa. Como a língua se produz e existe dentro de um processo vivo e dinâmico, essa prática passou a ser incorporada e, obrigatoriamente, reconhecida a posteriori, resultando na adoção das duas grafias atuais. 3 Ultraliberalismo é o termo utilizado pelos analistas políticos europeus para designar a exacerbação do liberalismo a partir da era Thatcher/ Reagan. Ver a respeito Tzvetan Todorov (2010). 4 Ver a respeito Lima (2011). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 ANNAHID BURNETT BIBLIOGRAFIA 217 ALVES DA SILVA, Sandra Roberta. A juventude na Sulanca: os desafios da inserção no mundo do trabalho em Taquaritinga do Norte, PE. 2009. Dissertação de mestrado em Ciências Sociais. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais, Universidade Federal de Campina Grande, Paraíba. ANDRADE, Manuel Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. São Paulo: Cortez, 2005. BOAS, Franz. Antropologia cultural. 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Como metodologia, utilizamos, principalmente, recursos da antropologia social e da história oral de vida desses protagonistas da sulanca. Abstract This paper proposes an analysis about the process of “we” and “they” having as locus the “Sulanca” free market in the Northeast of Brazil in the post-modern approach Established and Outsiders by Norbert Elias and John L. Scotson (1965). The development of the productive/commercial phenomenon called “Sulanca” produced an elite formed by the native pioneers from Santa Cruz do Capibaribe, the Established, who reproduce a speech of “we” and “they” regarding the foreigners who came to town to participate on the sulanca economy, the Outsiders. Such elite formed a petite bourgeoisie from the countryside that modernized and privatized the free market to maintain the economics and political control in the region. We used oral history of life and resources from social anthropology as methodology. Recebido para publicação em abril/2014. Aceito em abril/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220 Empregos verdes e sustentabilidade: tendências e desafios no Brasil Valério Vitor Bonelli Doutor em Ciências sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Controladoria e contabilidade estratégica, pela Fundação Álvares Penteado / Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (FECAP / FACESP). Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Noêmia Lazzareschi Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Mestre em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut Supérieur du Travail da Université Catholique de Louvain (Bélgica). INTRODUÇÃO Se o século XX deve ser considerado o século do forte assalariamento da classe proletária graças aos milhões de empregos gerados pelo taylorismo/fordismo – empregos com alguma proteção do Estado devido à predominância das políticas de intervenção na economia, em quase todos os países industrializados do Ocidente –, o século XXI parece ser o século da forte redução do número de empregos e do surgimento de novas e precárias relações de trabalho, em virtude da difusão da nova lógica empresarial cujo fundamento é a diminuição dos custos de produção, com a utilização de sofisticadas tecnologias e uma verdadeira revolução nas técnicas de gerenciamento do Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 222 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE processo de trabalho que intensificam o trabalho dos trabalhadores ainda necessários, e reduzem, drasticamente, novas contratações. Além disso, tal lógica organizacional desestrutura os mercados de trabalho, com a formação de redes empresariais nacionais e internacionais de produção, de distribuição, de clientes e de cooperação tecnológica, graças às tecnologias de informação e de comunicação. Estas transformam os processos de produção, com a introdução de computadores que permitem a flexibilidade dos processos de trabalho e dos padrões de consumo e, ao mesmo tempo, impõem a flexibilidade das relações de trabalho, expressa nos contratos temporários, na jornada parcial, no banco de horas, na terceirização, etc. Assim, o século XXI defronta-se com o agravamento da situação dos trabalhadores no mercado de trabalho que, reestruturado, tem destruído muito mais do que gerado e mantido empregos para a grande parte da força de trabalho disponível, além de ter flexibilizado e, consequentemente, precarizado as relações de trabalho; depara-se, também, com o agravamento de questões relativas à preservação da natureza, diante da dispersão da produção industrial pelo mundo, num processo de exploração, quase sempre irresponsável, dos recursos naturais que poderá significar a impossibilidade de satisfação das necessidades das futuras gerações. São duas questões intimamente relacionadas: a geração e a manutenção de empregos dependem do crescimento econômico, e este depende da capacidade de investimentos produtivos e da conquista de mercados sempre maiores, isto é, do aumento do consumo, que, por sua vez, costuma degradar o meio ambiente. Nesse contexto, nos perguntamos: como preservar a natureza e, ao mesmo tempo, gerar e manter empregos? Eis a questão que desafia a humanidade na contemporaneidade. As respostas a essa questão nos remetem aos conceitos de sustentabilidade e de responsabilidade social e se referem à elaboração de métodos e técnicas de gestão ambiental para reduzir e controlar os impactos das ações empresariais sobre o meio ambiente, desde a fase de concepção dos projetos até a eliminação efetiva dos resíduos por elas gerados, como também à criação dos chamados empregos verdes, duas iniciativas de resultados economicamente viáveis e socialmente necessários. O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu dos estudos da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as mudanças climáticas, no início da década de 1970, como resposta à preocupação da humanidade com a crise ambiental e social que, lamentavelmente, se prolongou nas décadas Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 223 seguintes. Tornou-se popular em consequência da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada no Rio de Janeiro em 1992, e significa atender às necessidades de desenvolvimento da geração atual sem comprometer o direito das futuras gerações de atenderem às suas próprias necessidades. A preocupação com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, presente nas últimas décadas, deve estender-se à questão da inclusão social e levar à coordenação de esforços para a geração de empregos verdes ou sustentáveis, ou seja, que impeçam e, ao mesmo tempo, protejam o meio ambiente, num processo de melhoria contínua. Sustentabilidade também nos remete a uma dimensão temporal, pela comparação de características de um dado contexto ecológico e sociocultural em três tempos: passado, presente e futuro. O primeiro serve como parâmetro de sustentabilidade, enquanto o último requer a definição do estado desejável da sociedade no futuro. Experiências políticas passadas, que tentaram impor às gerações presentes sacrifícios necessários para construir o futuro, revelam o relacionamento conflituoso e complexo subjacente a um aspecto aparentemente simples, conceitual ou taxonômico. Enquanto as práticas dominantes na sociedade (econômicas, políticas, culturais) são determinadas pelas elites de poder, essas mesmas elites são também as principais referências para a produção e disseminação de idéias, valores e representações coletivas. Assim, a força e a legitimidade das alternativas de desenvolvimento sustentável dependerão da racionalidade dos argumentos e opções apresentadas pelos atores sociais que competem nas áreas política e ideológica. Cada teoria, doutrina ou paradigma sobre sustentabilidade terá diferentes implicações para a implementação e o planejamento da ação social. Instituições e políticas relacionadas à sustentabilidade são construções sociais, o que não significa serem menos reais. Entretanto, sua efetividade dependerá, em alto grau, da preferência dada às proposições concorrentes, avançadas, e defendidas por diferentes atores sociais. Portanto, é útil começar com uma breve revisão dos principais argumentos que as várias correntes e atores têm elaborado a fim de proporcionar substância às suas diversas reivindicações de sustentabilidade. Laszlo e Zhenxembayeva (2011) defendem um novo modelo de negócios em que levam em consideração três tendências que se tornaram importantes para as instituições: a primeira refere-se aos recursos declinantes e, em alguns casos, sua exaustão; a segunda seria a transparência radical que é a capacidade de acesso instantâneo às informações sobre Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 224 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE empresas e produtos; a terceira tendência trata das expectativas crescentes, stakeholders, introduzindo outros parâmetros de desempenho, como saúde, igualdade e respeito ao meio ambiente. Nesse contexto, a adoção do desenvolvimento sustentável pelas organizações tornou-se de grande relevância, principalmente quando inserida na estratégia, na missão e nos processos de gestão. A busca do desenvolvimento e da melhoria das condições de vida exigiu alinhamento do interesse da sociedade com os interesses da própria organização, trazendo para a dinâmica empresarial a perspectiva do desenvolvimento sustentável (ALIGLERI, 2011). Aliado a isso, e à medida que as instituições sentem a necessidade de inovar sua estrutura e o padrão de seus processos para se adequarem às expectativas geradas atualmente, as organizações têm buscado um comportamento social, ecológica e economicamente correto, adotando estratégias coerentes com o contexto em que estão inseridas. Apesar da incorporação de ideais mais sustentáveis e condizentes, os objetivos são difíceis de serem monitorados pelos gestores das instituições. O argumento central desenvolvido pelos economistas em favor da sustentabilidade gira em torno da noção de eficiência no uso dos recursos do planeta. A alocação eficiente de recursos naturais, respeitando ao mesmo tempo as preferências dos indivíduos, seria melhor executada em um cenário institucional de mercado competitivo. As possíveis distorções desse mercado poderiam ser corrigidas pela internalização de custos ambientais e/ou eventuais reformas fiscais, coletando-se mais taxas e tributos dos responsáveis pelos processos poluentes. A sustentabilidade seria alcançada pela adoção da racionalidade econômica em escalas local, nacional e planetária. A premissa dos sociólogos segundo a qual os pobres são as principais vítimas da degradação ambiental é subjacente à ligação entre equidade e sustentabilidade. Presumindo que as raízes da degradação ambiental são também responsáveis pela iniquidade social, esse discurso postula a inseparabilidade analítica entre ecologia e justiça, em um mundo caracterizado por fragmentação social, apesar de problemas ambientais comuns. A pressão sobre os recursos naturais tem que ser relacionada a práticas de distribuição injustas, dependência financeira e falta de controle sobre tecnologia, comércio e fluxos de investimentos. Uma análise sistêmica desse processo de retroalimentação circular revela o relacionamento político e social conflituoso que destrói a base de Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 225 reprodução da Natureza e dos grupos sociais que dela dependem. Seguindo esse raciocínio, diversas considerações éticas são desenvolvidas, especialmente em relação às consequências danosas associadas a tecnologias de alto risco. Economistas e tecnocratas gostariam que acreditássemos nas virtudes das políticas de ajuste estrutural econômico, louvadas como solução para os problemas de desenvolvimento pelas agências de financiamento multilaterais. Políticos e executivos corporativos insistem nas vantagens da concorrência em um mercado global. Todos esses discursos ou modelos não explicam os paradoxos que caracterizam a atual situação mundial: o PMB (Produto Mundial Bruto) passou da marca de US$ 25 trilhões. Existem comida e bens materiais em abundância para os quase 7 bilhões de habitantes da terra; entretanto, pessoas e animais perecem devido à fome e à desnutrição, principalmente em países da África. Com todo o nosso conhecimento baseado nas ciências naturais, exatas e sociais, somos incapazes de atender ao crescente número de seres humanos que estão se tornando desempregados e sem-teto. Esse sistema poderá ficar insustentável do ponto de vista econômico, cultural, ambiental, social, político e, certamente, ético. Para exemplificar, apontamos a insustentabilidade, ou o círculo vicioso, produzido pelas políticas econômicas do sistema. As práticas de crescimento econômico convencionais resultam em enormes custos socioambientais ocultos. Estes costumavam ser transferidos para toda a sociedade, com os ganhos e benefícios do crescimento apropriados por uma minoria. Pressões para remediar ou aliviar essa situação levam à diminuição da capacidade do Estado em aumentar sua arrecadação por impostos e taxas de valores mais altos. Déficits orçamentários e fiscais contínuos resultam em altos níveis de dívidas interna, externa e social. Emitir mais moeda – um método frequentemente adotado pelos governos de países em desenvolvimento – estimula a inflação, a especulação financeira e, finalmente, a desvalorização das moedas nacionais. Esta situação leva os capitalistas a procurarem refúgio em ativos mais sólidos, ou a transferirem seu dinheiro para os chamados paraísos fiscais. A conseqüente escassez de capital e a falta de incentivos para a inovação tecnológica resultam em crescente desemprego e recessão e, assim, em menos recursos para o orçamento do governo. Ao mesmo tempo, o crescimento populacional induz maior demanda pelo atendimento de necessidades básicas e qualidade de vida decente para todos. Essas contradições Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 226 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE funcionam em um tipo de sistema retroalimentado, um círculo vicioso de crescimento e recessão, com efeitos cumulativos de polarização e exclusão de contingentes crescentes da população; e esse processo não se restringe aos países “em desenvolvimento”. Diante das críticas alusivas à insustentabilidade da racionalidade econômica e seus graves efeitos sobre a sociedade e a Natureza, o modelo do “desenvolvimento sustentável” tem sido lançado, principalmente pelo meio mercadológico, como “inovador” e capaz de “resolver” os problemas ambientais gerados pelos humanos, ao longo da sua história e por suas criações. Mas, até que ponto esse modelo rompe com as velhas formas de relação ser humano–Natureza? Até a década de 1970, se polarizavam duas posições no movimento ambientalista: uma, defendia a estagnação imediata do crescimento populacional e econômico; a outra se posicionava a favor do estabelecimento de mecanismos de proteção ambiental, agindo, corretivamente, sobre os problemas causados pelo desenvolvimento econômico. A Conferência de Estocolmo, em 1972, tornou-se o marco da abertura da discussão desse tema, em âmbito institucional; porém, a expressão “desenvolvimento sustentável” só veio a ocupar posição central dentro do discurso ambientalista e político em 1987, com a publicação do relatório Nosso Futuro Comum (BRUNDTLAND, 1987). Assim, o “desenvolvimento sustentável”, tal como concebido, refere-se ao desenvolvimento capaz de atender as necessidades do presente, sem comprometer a possibilidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades sociais, econômicas e políticas. Este é o conceito oficial das Nações Unidas que ficou mais conhecido e tomado como referência nas discussões. O novo debate, “otimista”, deu ao termo um caráter polissêmico e ambíguo; diversas conotações foram dadas por economistas, planejadores de desenvolvimento, agentes internacionais, acadêmicos, ambientalistas, ONGs, políticos e empresários. Teóricos mais críticos, por sua vez, alertam para a inexistência de um consenso quanto ao significado da expressão “desenvolvimento sustentável”; nem mesmo uma formulação quanto à questão crucial: se tal conceito tem algum sentido dentro do quadro institucional e econômico atual do capitalismo. Para Stahel (1998), ao se buscar um desenvolvimento sustentável hoje, está-se, ao menos implicitamente, pensando em um desenvolvimento capitalista sustentável; ou seja, uma sustentabilidade dentro do quadro institucional de um capitalismo de mercado. No entanto, não se colocando a Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 227 questão básica quanto à possibilidade de tal sustentabilidade, o conceito corre o risco de tornar-se vazio, servindo apenas para dar uma nova legitimidade à expansão insustentável do capitalismo. Segundo Friedman (1984, apud BONELLI, 2014, p. 34), qualquer ação que desvirtue os objetivos econômicos é maléfica à sociedade, haja vista que seriam causadas ineficiências econômicas. A responsabilidade social das empresas é, na verdade, gerar lucros. Do tripé no qual deveria assentar-se o “desenvolvimento sustentável” – fatores econômicos; fatores sociais e fatores ambientais –, desde então, só se vem privilegiando os fatores econômicos. Observamos, com o passar do tempo, o crescimento da tecnologia industrial, do lucro, da privatização da natureza e a continuidade de uma desigual distribuição de renda, tendo esta se agravado nos últimos anos. Dessa forma, podemos afirmar que o modelo de preservação ambiental não contestou a ideologia da sociedade industrial, baseada na dominação e dependência, tendo o consumo e o desperdício como ápices do desenvolvimento econômico. Como explicita Arendt, essa ambiguidade é, ao mesmo tempo, sua força e fraqueza. Força porque reúne, sobre a mesma mesa, setores antes inconciliáveis; e fraqueza, justamente porque cada um desses setores, na verdade, está apenas se apropriando desse discurso para colocá-lo e interpretá-lo a favor de seus interesses particulares. Então, há aqui um movimento duplo que, por um lado, divulga e populariza a crise ambiental e, por outro, volta a se apropriar de uma visão de mercado, uma visão superficial, banalizada, que reduz a questão ambiental a uma questão técnica ou meramente econômica. Na interpretação de Arendt, “A era moderna, fascinada pela produtividade com base na força humana assiste ao aumento considerável do consumo, já que todas as coisas se tornam objetos a serem consumidos. (1997, p. 147). Assim, podemos afirmar que a modernidade tem como uma das principais características a “sociedade de consumo”, e que, na atual fase do capitalismo, a economia se caracteriza pelo desperdício, “onde todas as coisas devem ser devoradas e abandonadas tão rapidamente como surgem”, ou seja, em que as coisas surgem e desaparecem sem jamais durarem o tempo suficiente para conter em seu meio o processo vital (ibid.). Cabem-nos, aqui, os seguintes questionamentos: até que ponto são conciliáveis capitalismo e sustentabilidade? Em que medida o consumo “verde” poderia contribuir para a superação da crise ambiental, sem que a lógica do consumo, do descartável e da racionalidade produtiva capitalista seja contestada? Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 228 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE EMPREGOS VERDES: CLASSIFICAÇÃO, CRESCIMENTO E DESENVOLVIMENTO O estudo de Bakker e Young (2011) analisa três classificações distintas de empregos verdes: 1. A classificação do NAICS (North American Industry Classification System), elaborada pelo Escritório Estatístico do Trabalho (Bureau Labor Statistic, BLS), para a seleção de atividades verdes; 2. A classificação da OIT (Organização Internacional do Trabalho) do potencial de empregos verdes no Brasil; 3. A classificação das Atividades de Proteção e Despesas Ambientais (CEPA) elaborada pela Eurostat (Escritório de Estatística da União Européia). A NAICS e a OIT são baseadas numa análise setorial, apresentando as atividades com potencial para geração de empregos verdes. Por outro lado, a CEPA baseia-se exclusivamente em atividades recorrentes de gastos com proteção ambiental, destacando, desta forma, as atividades e os setores diretamente relacionados à preservação ambiental. Após a apresentação das três classificações, elas foram comparadas, assinalando-se suas falhas e os pontos adequados. Neste trabalho, optamos por empregar a classificação da OIT, segundo a qual a expressão “empregos verdes” se refere às profissões que, ao mesmo tempo em que promovem o crescimento e o desenvolvimento econômicos, contribuem para a restauração da qualidade do meio ambiente. Abrange também as ocupações que ajudam a proteger a flora, a fauna e reduzem o consumo de energia, de recursos naturais e de água, minimizando os impactos sobre a Natureza provocados pela indústria nos dois últimos séculos. Conforme a definição oficial do PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2008, p. 17), Empregos verdes são empregos nos setores agrícola, industrial, de pesquisa e desenvolvimento (P&D), administrativo e de serviços que contribuem substancialmente para a preservação ou restauração da qualidade do meio ambiente. Específica, mas não exclusivamente, eles incluem empregos que ajudam a proteger ecossistemas e a biodiversidade; reduzem o consumo de energia, materiais e água mediante a utilização de estratégias de alta eficiência; descarbonizam a economia; e minimizam ou evitam por completo a geração de todas as formas de lixo e poluição. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 229 Empregos verdes, conforme a OIT, pressupõem trabalho decente, pois “devem também satisfazer antigas demandas e metas do movimento trabalhista, ou seja, salários adequados, condições seguras de trabalho e direitos trabalhistas” (ibid., p. 43). O trabalho decente é definido pela OIT (2009) como a promoção de oportunidades para que mulheres e homens possam ter uma atividade decente e produtiva em condições de liberdade, equidade, segurança e dignidade humana. O trabalho decente é o que satisfaz as aspirações das pessoas em suas vidas profissionais, por oportunidades e renda; direitos; participação e reconhecimento; estabilidade familiar e desenvolvimento pessoal; justiça e igualdade de gênero. É essencial nos esforços voltados à redução da pobreza, e é um meio de alinhar um desenvolvimento sustentável equitativo e incluso. Segundo Kon e Sugahara (2012), ainda não há parâmetros sólidos, reconhecidos internacionalmente, para comprovar que fazer negócios sustentáveis é mais rentável, porém há vários estudos e indícios concretos de que a “economia verde” vem sendo a responsável pelo crescimento dos empregos verdes (greenjobs). A definição de empregos verdes, para a OIT, resume a transformação das economias, das empresas, dos ambientes de trabalho e dos mercados laborais em direção a uma economia sustentável que proporcione trabalho decente com baixo consumo de carbono. Esse tipo de trabalho tende a reduzir o impacto das empresas dos diferentes setores da economia sobre o meio ambiente. Pode contribuir também para diminuir a necessidade de energia e matérias-primas e para evitar as emissões de gases de efeito estufa. Reduz, ainda, os resíduos e a contaminação, bem como restabelece os serviços do ecossistema, como a água pura e a proteção da biodiversidade. Os empregos verdes podem ser criados em todos os setores e empresas, bem como em áreas urbanas e em zonas rurais (e incluem ocupações desde o trabalho manual até o altamente qualificado) (SUGAHARA, 2010). Empregos verdes e decentes resultam da intersecção do conjunto de atividades ambientalmente sustentáveis e do conjunto formado por postos de trabalhos decentes. Se incluirmos também nesse rol de empregos verdes, empregados e funcionários públicos envolvidos no controle e fiscalização das atividades ambientais, nas três instâncias (União, estados e municípios), tais como Ibama (federal), Cetesb (estadual, São Paulo), secretarias estaduais e municipais de meio ambiente, teremos como exemplo o seguinte quadro: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 230 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE Quadro 1 – Exemplos de empregos públicos de controle e fiscalização das atividades ambientais Órgão Público Instância / Nº de Empregados Federal Municipal 2.484 Cetesb (estado de SP) Ministério do Meio Ambiente 9.973 Ibama 5.535 Secretaria do Verde (cidade de São Paulo) Estadual 1.066 Fontes: Ibama (s/d), Portal Transparência (s/d), Cetesb (s/d), Portal do Servidor (s/d), 2013. O fenômeno da globalização da produção tem repercutido intensamente sobre o mundo do trabalho, verificando-se mudança qualitativa no perfil da classe operária, em função da emergência de novos ramos industriais com a necessidade de trabalhadores com alto grau de competência, formação técnica e conhecimento. Costa (2008, p. 131) afirma que a mudança do perfil da classe operária terá realmente repercussões profundas no interior das plantas fabris, tratando-se de uma nova classe com iniciativa nos laboratórios ou no chão da fábrica, realizando um trabalho mais criativo, mesmo dentro da alienação global do sistema. Adotar uma postura sustentável para se adequar, cada vez mais, às exigências do “mercado verde” tornou-se um dos pontos principais da gestão industrial, pois a gestão sustentável já é um fator considerado na competição por maiores fatias de mercado, o que requer mão de obra qualificada e que domine os conceitos e ideais de responsabilidade socioambiental. Segundo o coordenador da área de meio ambiente do Instituto de Educação Tecnológica (IETEC), Luiz Ignácio Fernandez, em entrevista ao jornal Diário do Comércio (2012), a atual preocupação com o meio ambiente não se baseia somente no controle da poluição, como ocorria nos anos 1990. “As empresas estão criando projetos ambientalmente corretos cada vez mais eficazes e complexos. Por conta disso, é cada vez maior a necessidade de ter profissionais com reais conhecimentos sustentáveis”. De acordo com um relatório de pesquisa feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a economia verde deve criar 20 milhões de empregos, até 2030, em todo o mundo; todos com alto grau de qualificação profissional. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 231 A GERAÇÃO DE EMPREGOS VERDES Kon e Sugahara (2012) afirmam que as mudanças climáticas, associadas ao desperdício e degradação de recursos naturais, provocam consequências negativas de grande alcance para o desenvolvimento socioeconômico, para a manutenção dos padrões de produção e consumo, e, em decorrência, para a geração de emprego e renda, bem como para a redução da pobreza, apesar dos esforços de renovação ambiental que vem sendo empreendidos. A redução na geração de empregos e de oportunidades de obtenção de renda em todos os países, particularmente naqueles em desenvolvimento, resulta em insegurança alimentar com impactos negativos sobre a saúde da força de trabalho; na ausência de sistemas de seguridade social, ampliam-se os fluxos migratórios, que requerem reformulações estruturais e regionais para a acomodação do mercado de trabalho, aumentando as tensões políticas e a incerteza existentes (SANCHEZ e POSCHEN, 2009). Investimentos mais expressivos na preservação da natureza podem oferecer novas oportunidades de trabalho e renda em áreas específicas, como na defesa ambiental e costeira, reforçando a infraestrutura e a construção civil, o gerenciamento da água disponível e de técnicas agrícolas, além de incentivar a criação de novas tecnologias que inibam a degradação ambiental. Pesquisas mais atualizadas mostram que a transição para uma economia de baixa emissão de carbono não necessariamente deve ser destruidora de empregos, e sim pode levar ao acréscimo líquido de oportunidades de trabalho, embora à custa de perdas de postos de trabalho em alguns setores, compensadas por aumentos em outros. Essas transições são mais prováveis de acontecerem em setores econômicos de geração de energia ou transportes e os resultados serão melhores se tais mudanças forem antecipadas e gerenciadas com a participação ativa de empregados e trabalhadores (KON e SUGAHARA, 2012). Práticas bem-sucedidas de criação de empregos verdes são também evidenciadas nas novas formas de produção de energia solar e eólica da China e da Espanha, e nos programas de geração mais eficiente de energia da Alemanha e da França. Potencial semelhante é apontado nos programas de bioenergia e reciclagem do Brasil (SANCHEZ e PORSCHEN, 2009, p. 15). Um estudo publicado pelo CIP-CI (Centro Internacional de Políticas para o Crescimento Inclusivo), um órgão do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 2010, em parceria com o governo brasileiro, sinaliza que em um país em desenvolvimento, como o Brasil, investir na geração de empregos da chamada “economia verde” pode ser uma boa solução para reduzir a pobreza. Esse estudo – elaborado pelo pesquisador Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 232 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE Maikel Lieuw-Song, ex-diretor da unidade de Programas Expandidos de Obras Públicas no Departamento de Obras Públicas da África do Sul, intitulado Empregos “verdes” aos pobres: por que uma abordagem pública de geração de empregos é necessária agora? – apresenta os benefícios dos investimentos “verdes”, em especial os destinados a acelerar a transição em direção a economias de baixo carbono. Ainda de acordo com Lieuw-Song, “Inovações políticas aplicadas em países em desenvolvimento, como África do Sul ou Índia, apontam para o valor das atividades ambientais geradoras de emprego relevantes para recuperar ou melhorar o acesso a bens e serviços ambientais públicos, assim como melhorar a subsistência produtiva dos pobres” (ibid). Entre essas atividades ambientais, diz o estudo, estão o plantio de vegetação nativa; remoção de espécies invasoras; construção de infraestrutura para diminuir a erosão do solo; proteção de reservas e gerenciamento de bacias hidrográficas, que exigem um esforço físico maior, e, por isso, “têm o potencial de criar emprego aos pobres”. Os benefícios da aplicação dessas políticas podem ser sentidos pelos pobres e pelas comunidades locais. Além disso, o lucro decorrente dessas atividades ambientais pode diminuir a pressão para explorar o meio ambiente, na opinião do pesquisador. Para Lieuw-Song, em muitos casos, os governos deveriam tomar a liderança e fazer esses investimentos, usando programas públicos para criar trabalhos, envolvendo atividades ambientais e tornando a geração de emprego para os pobres parte integrante das estratégias de redução da pobreza. De uma forma geral, o estudo considera ser necessário fazer mais investimentos em gerenciamento de recursos naturais e no meio ambiente. Programas públicos, de geração de emprego, centrados no meio ambiente representam uma sinergia dessas duas mudanças, garantindo atenção e consideração, agora não somente como medidas de combate à crise, mas também como intervenções políticas. PERFIL DOS EMPREGOS VERDES NO BRASIL Os impactos causados na natureza pela atividade humana se tornaram uma responsabilidade de todos, razão pela qual, é de interesse, senão de todos, de uma parte significativa da população alterar os rumos do planeta. As questões referentes ao inadequado descarte dos resíduos sólidos, por exemplo, e implementação de medidas que incorporem programas de gerenciamento desses resíduos, no campo ou na cidade, serão de difícil resolução, se não forem diretamente relacionadas com propostas de deRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 233 senvolvimento sustentável, isto é, com a obtenção de ganhos ambientais e econômicos graças à reciclagem. A educação ambiental tem enfatizado a adoção de procedimentos para se promover a reciclagem, demonstrando a sua importância ante a limitação dos recursos naturais e a necessidade de diminuição do volume de lixo nos aterros controlados; aterros sanitários dos centros urbanos, favorecendo não só os indivíduos, mas também a qualidade de vida para a atual e para as futuras gerações. A transição para uma economia que reduza consideravelmente as emissões de gases de efeito estufa pode aumentar a criação de postos de trabalho, segundo o relatório Empregos verdes no Brasil: quantos são, onde estão e como evoluirão nos próximos anos, lançado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2009). A OIT (2009) defende que a transição para uma economia ambientalmente sustentável depende, sobretudo, da adoção de novos padrões de consumo e de produção. Em síntese, lista seis grandes eixos de transformação, levando em conta as particularidades da economia brasileira: 1. Maximização da eficiência energética e substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis; 2. Valorização, racionalização do uso e preservação dos recursos naturais e dos ativos ambientais; 3. Aumento da durabilidade e reparação dos produtos e instrumentos de produção; 4. Redução da geração, recuperação e reciclagem de resíduos e materiais de todos os tipos; 5. Prevenção e controle de riscos ambientais e da poluição visual, sonora, do ar, da água e do solo; 6. Diminuição dos deslocamentos de pessoas e cargas. A forma de organização do processo de trabalho dos empregos verdes pode reduzir o impacto ambiental das atividades econômicas em níveis sustentáveis, e o relatório citado também se concentra em “empregos verdes” – na agricultura, indústria, serviços e administração – que ajudam a preservar ou restabelecer a qualidade do ambiente. Além disso, faz um apelo para que sejam adotadas medidas capazes de garantir trabalho decente com o objetivo de reduzir a pobreza e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente. Ainda no relatório, foi analisada cada uma das 675 classes de atividades econômicas Cnae 2.0 – Classificação Nacional de Atividades Econômicas – que consiste no nível mais aprofundado das informações da Relação Anual das Informações Sociais (RAIS), 2008. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 234 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE Essa análise, segundo o relatório, visava identificar as atividades cujos produtos finais contribuem objetivamente, direta ou indiretamente, para a mudança dos padrões dominantes de produção e consumo na direção de pelo menos um dos atributos dos padrões alternativos. Resultou, assim, na seleção de 76 classes de atividades econômicas, que foram posteriormente reagrupadas em torno de seis grandes categorias (OIT, 2009). Tabela 1 – Empregos verdes formais em 31/12/2006 a 2008 CLASSES DE ATIVIDADES AGRUPADAS 2006 2007 Var. % 2008 Var. % Produção e manejo florestal 133.313 145.955 9,48 139.768 -4,24 Geração e distribuição de Energias Renováveis 480.497 505.675 5,24 547.569 8,28 Saneamento, gestão de resíduos e de riscos ambientais 276.736 292.164 5,57 303.210 3,78 Manutenção, reparação e recuperação de produtos e materiais 361.819 407.029 12,5 435.737 7,05 Transportes coletivos e alternativos ao rodoviário e aeroviário 735.641 760.384 3,36 797.249 4,85 Telecomunicações e teleatendimento 305.499 373.592 22,29 429.526 14,97 Totais anuais de empregos verdes (E.V.) 2.293.505 2.484.799 8,34 2.653.059 6,77 Estoques anuais de empregos formais (E. F.) 35.155.249 37.607.430 6,98 39.441.566 4,88 Diferenças entre as taxas de crescimento dos E. V. e dos E. F. Participação dos E. V. nos estoques anuais de E. F. (%) 1,37 6,52 6,61 1,28 1,89 6,73 1,81 Fonte: OIT (2009). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 235 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI Em 2008, considerando que o número de empregos formais no Brasil era de 39.411.566, segundo o IBGE, constata-se que a soma dos postos de trabalho oferecidos por esses grupos de atividades representava apenas 6,73% do montante. Nota-se que esse número vinha crescendo lentamente a cada ano, destacando-se o fato de que as taxas de crescimento do número de postos de trabalho nessas atividades têm se mantido acima das taxas de crescimento do emprego formal em toda a economia, conforme se observa na tabela 1. Na tabela 2, a seguir, com base nos dados da tabela 1 e nas médias das taxas de crescimento por classes de atividades de 2006 a 2008, obtidas na Rais de cada ano, realizamos a projeção de crescimento de empregos verdes para 2014 a 2016. Tabela 2 – Projeção – empregos verdes formais – 2014 a 2016 CLASSES DE ATIVIDADES AGRUPADAS 2013 2014 Var. % 2015 Var. % 2016 Produção e manejo florestal 158.077 162.218 2,62 166.468 2,62 170.829 Geração e distribuição de Energias Renováveis 732.647 782.173 6,76 834.813 6,76 891.246 Saneamento, gestão de resíduos e de riscos ambientais 374.161 391.671 4,68 410.000 4,68 429.188 Manutenção, reparação e recuperação de produtos e materiais 648.813 712.266 9,78 781.926 9,78 858.400 Transportes coletivos e alternativos ao rodoviário e aeroviário 961.083 1.000.058 4,11 1.041.707 4,11 1.084.521 Telecomunicações e teleatendimento 829.629 984.188 18,63 1.167.543 18,63 1.385.056 Totais anuais de Empregos Verdes (E. V.) 3.704.410 4.032.574* 9,17 4.402.457* 9,47 4.819.240* Estoques anuais de empregos formais (E. F.) 48.928.169 51.496.527* 5,26 54.205.244 5,26 57.056.439* 7,57 7,83 Participação dos E. V. nos estoques anuais de E. F. (%) 8,12 8,45 Fonte: Adaptado pelo autor, de OIT (2009). *Dados projetados com base nas taxas médias de crescimento por classes de atividades. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 236 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE Essa projeção permite vislumbrar um aumento na totalidade de empregos verdes formais no Brasil, graças sobretudo aos aumentos significativos em algumas classes de atividades, como reparação e recuperação de produtos e materiais, telecomunicações e teleatendimento. Analisando-se as Tabelas 1 e 2, percebe-se um aumento significativo nos grupos de atividades compostas por Manutenção, reparação e recuperação de produtos e materiais e, principalmente, Telecomunicações e teleatendimento, tal como classificados pela OIT. ECONOMIA VERDE A definição de Economia Verde, proposta pelo Pnuma, foi adotada, em 2009, pela Assembléia Geral das Nações Unidas como um dos temas da conferência Rio+20: um sistema econômico cujas atividades em todos os setores – investimento, produção, comercialização, distribuição e consumo – respeitam os limites dos ecossistemas preservando, assim, o meio ambiente. Dessa forma, o meio ambiente não é mais visto como fator restritivo de uma economia; ao contrário, é considerado uma força geradora de novas oportunidades econômicas. Segundo essa lógica, o crescimento da renda e do emprego é impulsionado por investimentos que reduzem as emissões de carbono e a poluição, melhoram a eficiência energética e de recursos e evitam a perda de biodiversidade. Para exemplificar as novas oportunidades econômicas, a tabela 3 apresenta quatro grandes grupos de atividades econômicas baseadas na exploração de recursos naturais e/ou que dependam da qualidade ambiental, segundo o relatório da OIT (2009). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 237 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI Tabela 3 – Atividades econômicas dependentes da qualidade ambiental AGRUPAMENTOS DE ATIVIDADES ECONÔMICAS 2006 2007 Var. % 2008 Var. % Extração mineral e indústrias de base 414.851 432.537 4,26 457.335 5,73 Construção, comercialização, manutenção e uso de edifícios 2.224.376 2.500.829 12,43 2.861.913 14,44 Agricultura, pecuária, caça e pesca 1.280.118 1.036.927 -19,00 1.328.376 28,11 998.662 1.075.573 7,70 1.162.645 8,10 Totais anuais de empregos oferecidos nessas atividades 4.918.007 5.045.866 2,60 5.810.269 15,15 Estoques anuais de empregos formais (E. F.) 35.155.249 37.607.430 6,98 39.441.566 4,88 Turismo e hotelaria Diferenças entre as taxas de crescimento do emprego Participação dessas atividades nos estoques de E.F. -4,38 13,99 13,42 -4,09 10,27 14,73 9,79 Fonte: OIT (2009). Embora esses quatro tipos de atividades econômicas não sejam considerados totalmente verdes, são grandes geradores de empregos verdes por modificarem os padrões de processo produtivo e de produtos. De acordo com Cechi e Paccini (2012), o grande desafio é conciliar as concorrentes aspirações de desenvolvimento econômico dos países ricos e pobres em uma economia mundial que está enfrentando mudanças climáticas crescentes, insegurança energética e degradação dos ecossistemas. A iniciativa da economia verde pretende enfrentar esse desafio, reduzindo a perversa correlação entre o crescimento econômico e a liquidação dos ativos ambientais, permitindo, dessa forma, que ambos, países ricos e pobres, possam continuar crescendo e se desenvolvendo. A extensão das exigências relativas à preservação do meio ambiente é essencialmente uma questão de escala, tecnologia e composição (VICTOR, 2010). Assim, uma grande economia exigirá espaço ambiental maior do que uma economia pequena, se ambas produzem e consomem bens e serviços semelhantes e empregam tecnologias comparáveis. Mudanças na composição Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 238 EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE de bens e serviços e mudanças nas tecnologias de produção, distribuição, utilização e descarte dos materiais e energia a eles associados oferecem a possibilidade, em princípio, de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto), mesmo num ambiente finito. Para definir o que seria “crescimento verde” e distingui-lo de várias outras cores de crescimento, Victor (2010) usa dois parâmetros: escala e intensidade. A escala se refere ao tamanho da economia, medida pelo PIB; e a intensidade do impacto ambiental por unidade do PIB é uma função da composição e da tecnologia. A ideia de crescimento verde implica, simultaneamente, impacto ambiental reduzido e crescimento econômico. Em termos de escala e intensidade, o crescimento verde exige que a taxa de redução do impacto por unidade do PIB exceda a taxa de aumento do PIB, de modo que o impacto ambiental, determinado pela multiplicação das duas variáveis, diminua ao longo do tempo. Se a taxa de redução da intensidade for menor que a taxa de aumento do PIB, o impacto ambiental aumenta. A iniciativa da economia verde carrega consigo o otimismo da vontade de que a economia possa e deva ser impulsionada por investimentos em setores e atividades e tecnologias limpas, em contraposição à extração de recursos naturais e à indústria poluente. No entanto, não há garantia de que aumentos de eficiência no uso de recursos resultem em sua conservação; e há sérios limites para a substituição entre setores de uma economia em termos reais. Daí a necessidade – que também defendemos – do uso de tecnologias verdes para a diminuição do impacto ambiental. Entre os principais objetivos das políticas ambientalistas, derivados desse conceito de desenvolvimento sustentável, encontramos, na afirmação de Barbieri e Delazaro (1994, p. 76), os seguintes: [...] retomar o crescimento; alterar a qualidade do desenvolvimento; atender às necessidades essenciais de emprego, alimentação, energia, água e saneamento; manter um nível populacional sustentável; conservar e melhorar a base de recursos; reorientar a tecnologia e administrar o risco; incluir o meio ambiente e a economia no processo de tomada de decisões. O grande desafio será, portanto, criar novos paradigmas de desenvolvimento, segundo os quais a preservação do ambiente e a promoção de emprego se fertilizem, reciprocamente, formando um círculo virtuoso, o que supõe investimentos em pesquisas científicas e tecnológicas para o aperfeiçoamento contínuo das técnicas de preservação do meio ambiente, tal como propostas pela OIT e mencionadas neste artigo. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI 239 CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo de reaproveitamento de resíduos, reciclagem, co-processamento de materiais já utilizados, reprocessamento de sub-produtos, aproveitamento de biomassas, construção e conservação da infraestrutura produtiva, e proteção às áreas de reserva ambiental são algumas formas de, simultaneamente, proteger o meio ambiente e alavancar postos de trabalho, por criarem condições mais eficientes de produção e de competitividade das empresas em suas áreas de atuação. Esse cuidado com o meio ambiente e com o nível de empregos impõe um novo modelo de organização do processo de trabalho: o modelo de organização inovadora sustentável como resposta às pressões institucionais por uma organização que seja capaz de inovar com eficiência em termos econômicos e com responsabilidade social e ambiental. Esse tipo de organização busca vantagem competitiva ao desenvolver produtos, serviços, processos e negócios, novos ou modificados, com base nas dimensões social, ambiental e econômica. Reúne duas características essenciais: é inovador e orientado para a sustentabilidade, institucionalizando-se, assim, uma nova lógica de produção na qual a sustentabilidade e a inovação caminham juntas e o meio ambiente é uma condição de avanço para o futuro. Portanto, devemos considerar que a busca de efetiva sustentabilidade pode se estabelecer por meio da concretização da geração de empregos verdes que, em consonância com o desenvolvimento sustentável, constitui uma forma efetiva de se construir uma nova sociedade global, baseada na harmonia entre os meios econômicos, o meio ambiente, a promoção dos direitos sociais fundamentais, o uso de tecnologia inovadora e a melhoria contínua das condições sociais dos trabalhadores e da sociedade. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 240 BIBLIOGRAFIA EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE ALIGLERI, L. M. Adoção de ferramentas de gestão para a sustentabilidade e sua relação com os princípios ecológicos nas empresas. Tese (Doutorado em Administração), Universidade de São Paulo. São Paulo, 2011. ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. BAKKER, L.B. YOUNG, C.E.F. Caracterização do emprego verde no Brasil. Revista Economia & Ecologia, UFRJ, Rio de Janeiro, 2012. BARBIERI, J. C. e DELAZARO, W. Geração de emprego e preservação do meio ambiente: o grande desafio. RAE – Revista de Administração de Empresas. São Paulo, v. 4, n. 36, p. 73-79, nov-dez/ 1994. BARRETO, C. E. F. Responsabilidade social das empresas: um estudo de caso. 2003. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2003. BONELLI, V. V. e LAZZARESCHI, N. 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Governos, universidades, agências multilaterais e empresas de consultoria técnica introduziram, em escala e extensão crescentes, considerações e propostas que refletem a preocupação com a preservação ambiental – “preocupação verde” – nos projetos de desenvolvimento e a democratização dos processos de tomada de decisão. Este artigo procura demonstrar que o compartilhamento de tecnologias e a adoção de métodos e técnicas de gestão ambiental permitem preservar a natureza e, ao mesmo tempo, gerar e manter milhões de empregos, os chamados empregos verdes, desmistificando a crença de que a sustentabilidade inibe o crescimento econômico e, em conseqüência, as oportunidades de alocação da força de trabalho nos mercados de trabalho. Abstract In recent decades, international conferences have incorporated the issue of sustainability in discussions on socioeconomic development. Governments, universities, multilateral agencies and technical consulting companies introduced in scale and increasing extent, considerations and proposals that reflect the concern for environmental preservation - “green concern” - development projects and the democratization of decision-making processes. This article seeks to demonstrate that it is possible to share technologies and the adoption of methods and techniques of environmental management, help to preserve nature and at the same time generate and sustain millions of jobs, green jobs, demystifying the belief that sustainability inhibits economic growth and, consequently, opportunities for allocation of the labor force in labor markets. Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em abril/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242 A organicidade da flexibilização: representações, discursos e memórias no âmbito do trabalho Roney Gusmão do Carmo Doutor em “Memória: linguagem e sociedade” pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Adjunto do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT) da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Endereço postal: Rua dos Radialistas, 181, apt. 805, Edifício André Guimarães. Bairro: Pituba. CEP: 41810650 Salvador–BA. Endereço eletrônico: [email protected] Ana Elizabeth Santos Alves Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) e do Programa de Pós-graduação strictu sensu em “Memória: linguagem e sociedade” da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB). INTRODUÇÃO Este texto é um produto decorrente de pesquisas que desenvolvemos no curso de doutorado acerca da dinâmica socioeconômica perceptível nas últimas décadas no município de Vitória da Conquista, Bahia. Embora as transformações tenham sido impressas no espaço geográfico local, entender sua lógica requereu transcender a obviedade material do fenômeno, inscrevendo-o dialeticamente nos meandros do contexto histórico que o contornou. Nesse sentido, o trabalho foi construído a partir do entendimento de que cada fenômeno visível no recorte empírico da Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 244 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO pesquisa aqui relatada está, sobretudo, ancorado num movimento dialético amplo, sem prescindir, é claro, das conexões estabelecidas entre o mais elementar cotidiano das pessoas dentro do espaço estudado e o tempo histórico que percorre a existência social. Assim sendo, o percurso metodológico aqui tratado se apoiou na dialética como pressuposto para entendimento da relação complexa entre as partes e o todo, bem como para entendimento da história em seu movimento orgânico, cujas ramificações aportam na vida comum dos sujeitos e permite entender a imbricação que liga cada homem e cada mulher ao seu tempo. Para estruturar tal estudo, o presente trabalho se apoiou em fontes documentais, como recortes de jornais, fotografias antigas da cidade, e entrevistas com autoridades locais, além de entrevistas e questionários aplicados junto a pessoas capazes de contribuir para melhor interpretar o objeto que aqui se pretendeu compor. Os sujeitos de pesquisa foram abordados através das seguintes técnicas: aplicamos questionários a 50 comerciários de diversos ramos de atuação na cidade; entrevistas semiestruturadas a 12 comerciários atuantes em lojas do varejo, com maior variedade possível de sexo e idade; entrevistas semiestruturadas a 4 comerciantes e 4 ex-comerciantes locais. Através desses sujeitos da pesquisa, objetivamos compreender a forma como as transformações econômicas que aportaram a realidade local no início do século XXI afetaram as representações e percepções dessas pessoas. Ao mesmo tempo em que objetivamos entender as mudanças, intentamos também interpretar elementos da memória que possibilitaram conectar o presente à trajetória de vida desses sujeitos e ao contexto sociohistórico ao qual pertencem. Ademais, o conjunto de caminhos metodológicos aqui adotado possibilitou traçar um recorte temporal e espacial, capaz de fornecer pistas ao entendimento das (re)configurações na economia local, em consonância com a dinâmica capitalista global. Além disso, tais transformações se materializaram no espaço de vivência dessas pessoas, escancarado na remontagem do cenário urbano, também se convertendo em subjetivação, interpenetrando representações, simbologias, sensos de filiação e identidades desses sujeitos. Desta feita, falamos de mudanças concretas, e também salientamos que essa dinâmica adentrou o mundo de significados, interpenetrando nas trajetórias de pessoas comuns, que inevitavelmente foram impactadas em seu cotidiano com mudanças tão profundas. Desse modo, apoiados em um determinado marco teórico, nos ocupamos do fenômeno da acumulação flexível, entendido como reincremento na esfera produtiva capitalista dentro de um contexto de instabilidade Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 245 econômica e raquítico crescimento. Assim sendo, a flexibilidade se traduz como estratégia de perpetuação do capital em contextos históricos que requeriam uma produção mais leve e adaptável às turbulências oscilantes do sistema. Esta realidade não ficou retida em um único setor da economia, muito menos se restringiu a países de economia central; ao contrário, em distintas temporalidades e com certas peculiaridades, a flexibilidade atingiu proporção epidêmica, introduzindo “novos” critérios de sobrevivência no cenário econômico, alterando vínculos de trabalho e “remoldando” aspectos múltiplos da economia (CHESNAIS, 1996). Tão logo, os Estados passam a ser acionados, consentindo com uma política neoliberal e anuindo mecanismos de exploração extrema da mão-de-obra. Tal realidade foi anunciada em meados do século XX, mas foi nos anos 1990 que a ação predatória do capital em países de economia periférica, como o Brasil, reestruturou a produção, agora regida por instrumentos sofisticados de tecnologias e formas de controle social “mais adequadas” ao projeto burguês de sociedade para o início do século XXI. A flexibilização, portanto, foi estratégia de sustentação hegemônica do capital, com uso de instrumentos subjetivos para disseminação de condutas ideológicas atreladas à necessidade eminente de fazer circular mercadorias e subsunção da prática social ao nexo da acumulação (ALVES, 2011). A DIALÉTICA DO RECORTE EMPÍRICO A partir do ano 2000, Vitória da Conquista, hoje com 310 mil habitantes, teve sua configuração econômica profundamente alterada pela propagação de empreendimentos varejistas franquiados a redes nacionais e internacionais. Quase simultaneamente, lojas populares aqui chegaram, modificando radicalmente o cenário municipal, tanto porque imprimiu uma silhueta mais metropolitana ao espaço geográfico, como porque provocou o acirramento da concorrência, acentuando a exclusão de empreendedores locais. Com base nas informações obtidas nesta pesquisa, podemos afirmar que a dinâmica capitalista, insinuada pelo contexto de reestruturação produtiva, afetou, intimamente, aquele cenário econômico, redundando num processo acelerado de reconversões sociais, econômicas e políticas, nítidas tanto no desenho espacial urbano como no cotidiano dos sujeitos. Embora o discurso posto na estrutura política do capitalismo flexível aponte para maior democratização do consumo e consequente melhoria da qualidade de vida geral, na prática tem escamoteado os efeitos mais perversos dos novos paradigmas de acumulação. A permissividade dos governos Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 246 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO tem gerado um processo desenfreado de expansão das transnacionais, obrigando microempreendedores a recuarem em seus espaços de atuação, cuja identidade parece estar sendo golpeada por uma transnacionalização que massifica signos de consumo muito mais equalizados a tendências fugazes do mercado global. O posicionamento saudosista dos comerciantes entrevistados demonstrou uma sensação de não reconhecimento daquele comércio de outrora, cuja dinâmica parecia tão previsível. Hoje, para aqueles que insistem no comércio, o cenário se demonstra hostil, dilacerado por um estrangeirismo cosmopolita violento por seu poder de persuasão e exclusão. A realidade antagônica de expansão e exclusão, crescimento e degradação, sofisticação e abandono parece coexistir num cenário onde o “novo” e o “velho”, o arrojado e o defasado se hostilizam na tentativa de prevalência num contexto de disputa acirrada. A acumulação flexível, como se supunha, acentuou a contradição local, impondo uma “permissividade” econômica – base do Estado neoliberal – capaz de favorecer os grandes conglomerados transnacionais, cujo crescimento se dá pela polarização do consumo e bancarrota dos microempreendimentos, hoje higienizados. Os comerciantes locais, em grande parte, ainda insistem no negócio que possuem, mas demonstram-se paralisados pelo pessimismo. Estão cientes de que o novo cenário econômico requer investimentos amplos na fachada do estabelecimento, no marketing da empresa, na redução da margem de lucros para dar conta da concorrência; porém, são impelidos pela prudência decorrente de suas limitações econômicas. As taxas de juros embutidas nos empréstimos, além da elevação exorbitante do aluguel, e das incertezas com um mercado consumidor cada vez mais fugidio impedem que os comerciantes almejem ter muito além do que hoje possuem. Nesse contexto, a memória dos lojistas é perpassada por um saudosismo de outro cenário, desenhado por condições concretas muito distintas das que hoje percebemos e muito mais propícias à sobrevivência e criação de perspectivas. Por essa razão, os anos 1970 e 19801 são apontados, em outros termos, como épocas em que os sonhos ainda subsistiam. Por meio dessa análise, foi possível detectar que as representações dos entrevistados se equalizam às condições materiais de existência que, por efeito, se remodelaram no transcurso do tempo. Falar sobre ter um “negócio próprio”, hoje, é falar num tom de descrédito, ao passo que, remeter para os “tempos áureos do comércio conquistense”, implica uma nostalgia muito atrelada às possibilidades de ascensões significativas do que, até então, não necessitava da nomenclatura “local”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 247 De todo modo, tem-se observado uma invasão de “estrangeirismos” nas placas, fachadas e outdoors que se erigem, autoritariamente, no espaço urbano local. Tal fato decorre de um processo expansionista do capital que aportou em Vitória da Conquista nesse início de século. Ao esgotar determinados nichos do consumo, o expansionismo se torna condição para perpetuação da circulação de mercadorias, sendo, então, necessário arrebatar representações e fetiches aos signos “sofisticados” do consumo de massa. Assim, a chegada quase simultânea de Mac Donald’s, C & A e Subway, por exemplo, é acompanhada por um meticuloso trabalho ideológico que invade representações e gera uma sensação consensual de “evolução” mercadológica. Não queremos adensar discussões acerca da pertinência ou não de franquias como essas para a vida social dos sujeitos, mas cabe compreender que toda edificação de macro estruturas econômicas é acompanhada por subjetivações e, consequentemente, por ideologias que insinuam condutas, exalando convenções éticas e estéticas. IDENTIDADES CORROÍDAS Havia um sutil desconforto implícito nas narrativas dos “mais velhos”. Sejam os comerciantes ou comerciários; apenas aqueles que passaram dos 35 anos pareciam expectadores assombrados com o que presenciavam. Esses sujeitos de mais idade não se sentiam protagonizando a cena, assistindo ao desmonte de uma cidade que outrora lhes “pertenceu”, pela amputação do “atraso” e erguimento do “arrojado”. Essa sensação agonizante se manteve nítida no diálogo com os entrevistados “mais velhos”. O desconforto foi motivado por uma perda de controle e autoridade sobre o tempo presente, num recolhimento à própria obsolescência. Para eles, a novidade conferida aos novos modelos de gestão e às tendências estrangeiras que orientam o perfil do consumo local chega a ser sufocante para emitir opiniões. Vez ou outra surgiam observações do tipo: - Hoje, tudo mudou, não sei se posso ajudar”; - “Não se pensa atualmente como na minha época”; - “Dentro do possível, eu te respondo, mas não sei se na minha idade ainda posso falar sobre isso”; ou “Se quiser, eu te apresento meu filho, ele está mais por dentro disso que você quer saber. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 248 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO Esse desconforto em versar sobre as transformações vivenciadas pela economia local se justifica porque as rupturas foram bruscas e invasivas, à medida que impuseram a novidade de modo muito mais rápido do que se pôde acompanhar. De repente, aquela antiga loja do Centro foi demolida, cedendo espaço ao gigantismo de uma rede recém-chegada; em seguida, a fachada de uma lojinha foi sendo alterada e ganhou um novo nome e uma nova roupagem e, finalmente, a mídia anunciava a novidade e a população, uníssona, acatava. Como externar saudosismo quando há consenso de que agora tudo mudou, e mudou pra melhor? Para avigorar esta análise, é útil insistir na ideia de que as mudanças impostas pela acumulação flexível são, também, impressas no espaço geográfico, tornando-se imponentes pela megaestrutura montada na malha urbana. A altivez da economia capitalista hostiliza a simplicidade, principalmente porque tem sido polarizada por megaempreendimentos capazes de estabelecer padrões de gestão que penetram os mais remotos espaços do globo. Nesse sentido, a imponência do capital transnacional se sobressai de tal forma no espaço, que constrange qualquer forma de espontaneidade, tanto pela impiedosa concorrência, como também pela ideologia que “recolhe” o simplório à marginalidade da economia. Na magnitude desse fenômeno, os “mais velhos” se notam ultrapassados, veem-se presos a um passado “insignificante” e descolados da complexidade do mundo “moderno”. A imposição espacial do “novo” capitalismo ocorre mediante a espetacularização do consumo, em sintonia com tendências globais que se metamorfoseiam numa velocidade perturbadora, tornando-se indigesta para aqueles que são fruto de outra época. Os comerciantes e ex-comerciantes entrevistados confirmaram tal fato: - (...) sou de uma época em que o freguês era chamado pelo nome (Marli Miranda, comerciante); - (...) eu apostava no comércio porque, tanto o governo, como a população, valorizava o que era da terra (Novais, ex-comerciante); - (...) se eu não tivesse investido na loja, teria ficado de fora... Observe a fachada dessas lojas novas: são grandes, tomam quarteirões inteiros e dão impressão de credibilidade (Amorim, comerciante). Essa espetacularização do capitalismo, imposta hostilmente no espaço, afetou todos os ramos comerciais: lojas de material de construção hoje contrastam com franquias de gigantismo avassalador; lanchonetes se comprimem em meio a fast-foods; lojas de confecções se acomodam, modesRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 249 tamente, entre famosas redes do varejo como Renner ou Riachuelo. Assim sendo, a espacialidade do referido fenômeno monta uma “nova” cidade, cuja sofisticação é antítese de toda a carga afetiva inerente à “velha” Vitória da Conquista. Destarte, ser “velho” nesse contexto de transformações é “estar por fora desse ‘mundão’ moderno que chegou aqui” (palavras de Mauro, empregado de 38 anos). O “mundão” a que Mauro se refere é, certamente, aquele, fruto de um processo acentuado de globalização expresso, por exemplo, na mundialização das contradições capitalistas e numa estandardização cada vez maior das “manias” de consumo, com implacável agravamento da desigualdade. O “mundão” que finalmente “chegou aqui” é o ápice da interconexão entre local e global, com eclosão de desarmonias que “desfiliam” sentimentos e ruem identidades; é, também, o projeto da globalização para Vitória da Conquista, agora sim, “mundializada”, esvaziada. Além disso, os “velhos” não conseguem reconhecer suas histórias pessoais naquele espaço e não se percebem como extensão da engenharia local; ao contrário, recolhem-se e não se atrevem a falar de uma Vitória da Conquista desconfigurada, pois, se assim o fazem, tornam-se petulantes: “agora é o tempo dessa turma mais nova pegar no batente; minha época já foi” (Novais, ex-comerciante). É útil acrescentar que todos os comerciários entrevistados sentiam a necessidade de informar como era o espaço urbano nos seus tempos; assim, sempre estavam desenhando com gestos ou apontando para explicar como se organizava a cidade. Em suas palavras, havia uma nostalgia latente, principalmente porque as transformações espaciais foram acompanhadas por um processo severo de exclusão e desfiliação através dos novos traçados urbanos. Paulatinamente, a cidade foi se transformando e, para os entrevistados, é impossível falar dessas mudanças sem a carga emocional que elas explicitam. Assim, a imposição do “novo” capitalismo flexível se caracteriza como onda de transformação para os “mais novos”; mas, aos “mais velhos”, ela assusta, principalmente pela corrosão das identidades que, substituídas por adesões artificiais e arbitrárias aos novos valores de consumo, são comprimidas pela avalanche de apelos à “modernidade2”. O capital encontrou, portanto, na mundialização a oportunidade de dilaceramento das filiações locais, pois, sempre que elas se opõem aos ditames da acumulação, há que equalizá-las aos imperativos do consumo e da subsunção à ideologia da flexibilidade. Tal fato constata o afirmado por Lukács (1992, p. 125) que percebe a sociedade capitalista sob “um místico e obscuro poder, cuja objetividade fatalista e desumanizada se contrapõe ao indivíduo”. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 250 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO Dessa forma, o poder penetrante do trabalho ideológico advindo da flexibilidade gera fissuras no senso de identidade, tanto porque reestrutura o espaço onde a filiação se apoiaria, como também porque afeta a subjetividade com apelos à “novidade” que arbitrariamente aportou nos mais longínquos espaços. Nesta análise, recorremos a Stuart Hall para entendermos melhor o conceito de identidade nesse contexto de transitoriedade em que vivemos. O autor compreende identidade como um mecanismo que costura o sujeito à estrutura, preenchendo o espaço entre o mundo interno ao sujeito e o mundo público, o que estabelece um movimento entre o que “projetamos a ‘nós próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (HALL, 2006, p. 11-12). Mas, e quando a estrutura material, os valores, bem como os sentimentos foram alterados por uma parafernália apelidada de “modernidade”? Em que se apoiaria a identidade? As memórias não seriam suficientes para exercer essa função de apego ao espaço local? Estudando o campo interdisciplinar da memória social, Sá observa que existem vários subtipos de memória. E, para ele, essa tipologia não é estanque; ao contrário, memórias fundem-se aleatoriamente no cotidiano das sociedades, podendo ser acionadas reciprocamente por usos informais do passado. Entre os tipos indicados pelo autor, estão as memórias públicas que, segundo o ele, é “onde proliferam os chamados ‘usos públicos da história’, onde são esgrimidos os argumentos opostos do ‘dever de memória’ e da ‘necessidade de esquecimento’, onde as memórias se encontram cada vez mais submetidas à mediação dos meios de comunicação de massa.” (SÁ, 2007, p. 294). Entrecruzando-se os conceitos de identidade e memórias públicas, ressalta-se que a relação entre trajetórias pessoais de vida e usos públicos da memória é marcada por conflitos. Isso porque no ato de externar memórias e inscrevê-las no coletivo intercalam-se relações de identificação e estranhamento. É na articulação das dimensões individual e pública, que afinidades e dessemelhanças coexistem; que esgrimam interesses conflitivos e se estabelecem disputas por significados, e, também, ocorre a subjugação de partes mais vulneráveis às forças que se interpõem. Assim, as identidades arrastadas pelas memórias dos “mais velhos” encontram embates de forças poderosas, quando externadas, o que intimida o resgate de um passado hoje aviltado por sua obsolescência. Por esta razão, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 251 entrevistados de mais idade depreciavam muito sutilmente seu próprio discurso, tentavam suavizar o estranhamento provocado pela “modernidade”, e, no fim, assumiam sua inaptidão para a fruição do futuro: “(...) esse novo comércio aí é para os jovens, porque eles, sim, têm espírito corajoso; eu, como sou de outra época...” (Júlio, comerciário, 35 anos). O TRABALHO NO ÂMBITO DA FLEXIBILIDADE Numa clássica comparação, Marx afirma: “o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera” (MARX, 1996, p. 298). Essa elaboração mental do trabalho, antes de executá-lo, segundo Hall (2006), nada mais é do que uma “construção conceitual” do objeto que, em seguida, será construído no mundo material. O autor, então, conclui que “o ‘econômico’ não poderia funcionar nem teria efeitos reais sem a ‘cultura’ ou fora dos significados e dos discursos” (HALL, 2006, p. 25). Insistimos na ideia de que a “arquitetura do capital” perpassa também subjetivações sincronizadas à materialidade da estrutura econômica que, inevitavelmente, redunda em representações que compõem o mundo de significados. O trabalho, portanto, é também construção de valores e sistematização de sentidos, dialeticamente vinculados ao sistema capitalista. Assim, a afirmação de que a flexibilidade do regime é também subjetivação fica comprovada no discurso dos trabalhadores entrevistados que, na sua maioria, demonstram ter incorporado a cartilha do modelo japonês3, que reverberou nas formas de gestão pelo Brasil, principalmente depois dos anos 1990. Nesta pesquisa, constatamos que os trabalhadores entrevistados não esboçam uma consciência sistematizada dos efeitos da flexibilidade sobre suas formas de pensar; porém, ao compararem seu cotidiano com o narrado pelos “mais velhos”, põem-se diante da constatação de que algo dinamizou o mundo do trabalho. Antônio – empregado do comércio, hoje com 31 anos de idade – acompanhou um processo severo de mudanças na loja de eletrodomésticos onde trabalha desde os anos 1990. Segundo ele, “ou mudávamos, ou falíamos”. Na sua fala, não é raro Antônio inserir-se no processo, tomando-o como desafio próprio, fato que inspira o uso de expressões como: “éramos felizes”, “participamos da construção dessa cidade”, “somos importantes para o povo conquistense”, “queremos atender bem o cliente”. O emprego do verbo na primeira pessoa do plural é fruto de um trabalho ideológico extremamente articulado que gerou um engajamento dos empregados numa espécie de defesa do ideal da empresa. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 252 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO O mesmo se observa entre os demais trabalhadores investigados, principalmente aqueles de faixa etária abaixo dos 35 anos, que raramente falam da empresa sem assumirem os desafios como pessoalmente seus. Felipe, 19 anos, diz que “precisamos fazer nosso melhor para combater nossos concorrentes”; André, 22 anos, entende que “se não tratarmos bem nosso cliente, perdemos para a concorrência”; Márcia, 29 anos, enfatiza: “ou melhoramos sempre ou perdemos espaço no comércio”. “Nossos concorrentes”, “nosso cliente”, “nosso espaço no comércio”, eis o que chamamos de engajamento. Simultaneamente, os trabalhadores se inserem no ideário da empresa e tratam da sua vinculação sindical como obrigatoriedade; assim, para eles, esta nada mais é do que uma precaução inerente à formalidade do emprego. Ou seja, o sindicato, no discurso dos trabalhadores, é visto como um elemento distante, dissociado do “nós” que acompanha a retórica sobre a empresa. Observe-se que, ao se capturar a subjetividade do trabalhador pelas táticas de persuasão dos treinamentos articulados ao modelo japonês, criou-se uma afinidade dissimulada dos trabalhadores com a empresa, ao passo que a vinculação sindical se tornou mera formalidade. Evidentemente, o modelo japonês está longe de definir o que é a acumulação flexível; todavia, o seu ideário repercutiu em formas de treinamento ao redor do mundo, propondo um engajamento do coletivo de trabalhadores na causa da empresa, o que ilustra o projeto da flexibilidade para o capitalismo globalizado. Através do uso de contos, provérbios, ditos populares e comparações com competições esportivas e com relações familiares harmônicas, procurava-se adentrar a subjetividade dos empregados e instaurar o ideário da “família Toyota” (ALVES, 2011). Nesse ideário, ser trabalhador passou a ser uma questão de honra e subjugação consentida com a exploração, aqui concebida como parte natural das relações de trabalho; nesse universo relacional, qualquer forma de rebeldia é constrangedora (BARBOSA, 2011). É nesse contexto que se torna possível mencionar o agravamento da cisão entre o trabalhador e sua filiação sindical como fruto de uma longa persuasão exercida pela acumulação flexível, que abocanhou o mundo de significados desses sujeitos, agora enrijecidos segundo o nexo discursivo da empresa. Isto não quer dizer, no entanto, que a situação gerada, nesse processo, seja harmoniosa; afinal, a significação do emprego para essas pessoas é marcada por conflitos constantes. Ao mesmo tempo em que os empregados assumem os desafios da empresa como seus, eles também exaurem suas forças pelo trabalho. Essa Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 253 subsunção, portanto, é vista de modo paradoxal, entre identidade e fadiga, pois, mesmo pondo-se dentro do ideário da empresa, a sensação de exploração é lançada à face dos sujeitos, à medida que sentem a fragilidade dos vínculos trabalhistas. Sandra, 27 anos, reconhece: “se eu não cumprir metas de comissões, não fico mais aqui”; André, 22 anos, assume: “tem de trabalhar demais, senão fica mal falado e acaba tendo de sair”; segundo Maria, 25 anos, “a parte negativa do meu trabalho é essa: concorrência demais entre os colegas, porque todos querem continuar na empresa, ninguém quer ser demitido”. Assim, torna-se difícil interpretar o sentimento ambivalente que transparece na fala dos trabalhadores; isso porque o seu engajamento no ideário da empresa não sufocou o sentimento de exclusão; e, no sentido contrário, a sensação de subordinação não neutralizou a sensação de pertencimento coletivo à empresa. Por mais ambíguo que possa parecer, repulsa e identidade coexistem na relação do trabalhador com seu espaço de trabalho. Esses sentimentos não se alternam; eles coexistem, tornando o estudo que propomos muito mais complexo e menos tangível do que se imaginava. Além disso, a memória desses sujeitos não faz sobrepor os sentimentos dicotômicos que mencionamos no parágrafo anterior; ao contrário, ela pereniza ambos: de um lado, os sujeitos reconhecem pertencer à classe trabalhadora, sujeita à exploração e, de outro, negam tal pertencimento, à medida que incorporam o ideal empreendedor do sistema e se dispõem a “vestir a camisa da empresa4”. A memória autentica ambos os sentimentos, pois traz à tona vivências do passado que evocam tanto a sensação de unidade e luta coletiva da classe trabalhadora, como também movem o engajamento aos ideais da empresa, fortemente implantados pelo modelo japonês, no decorrer dos anos 1990. CONSUMO: A SUBLIMAÇÃO DO DESEJO NO PERÍODO DE ÓCIO Não por acaso, os antigos espaços da vida social existentes em Vitória da Conquista nas décadas de 1980 e 1990 foram cuidadosamente substituídos pela sofisticação dos shopping-centers, praças de alimentação ou restaurantes franqueados a redes internacionais. Os antigos bares, casas de shows e praças foram sendo abolidos pela população que hoje prioriza os ambientes climatizados, com oferta de internet wi-fi e os conceitos impregnados no ambiente da loja, agora articulados a tendências globais5. Também não é coincidência que o cinema de Vitória da Conquista, seguindo uma convergência internacional, se localize num shopping-center, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 254 A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO espaço onde se criam fetiches e consomem-se “objetos de desejo”. Agora, a cidade se equalizou ao conceito global de conduta capitalista e o consumo se evidencia como sublimação da frustração que abate o trabalhador no seu cotidiano de trabalho. O ócio, portanto, é a oportunidade para sublimar os desejos recalcados no decorrer da semana através da efetivação do consumo. Pelas palavras dos entrevistados, essas ideias foram constatadas, pois, elencando os hábitos de entretenimento nas horas vagas, o único costume que não toca consumo é a prática de esportes de rua. No mais, toda rotina dos sujeitos no período de ócio envolve: compras, internet, cinema, shopping ou TV. É necessário compreender que todos esses hábitos de entretenimento são carregados de apelos ao consumo, com tamanha precisão que atingem diretamente os desejos dos expectadores e preenchem facilmente a totalidade do tempo livre. Nas falas, o consumo aparece como o ápice da existência do homem moderno; é a mola propulsora do trabalho e a causa do “aburguesamento” das concepções de muitos trabalhadores: - Hoje, posso financiar meu carro; no passado, meus pais nunca puderam ter um (André, 22 anos); - Tem exploração, é verdade, mas tem muita gente preguiçosa que não quer é trabalhar (Maria, 25 anos); - Sim, a vida está difícil, mas só reclama quem não gosta de trabalhar. Eu mesmo, já tenho minha independência, tenho minha moto, pago faculdade e já sou alguém nessa vida (Mateus, 23 anos). Não são raros os comentários nesse tom, em que o individualismo impera e a “coisa” se sobrepõe ao humano. Nesse sentido, o tempo livre se tornou o meio de absorção do ideário capitalista, que insiste em criar referências em uma classe externa ao sujeito, situada, inclusive, num patamar inatingível, mas capaz de seduzir. Desse modo, o raciocínio do indivíduo é: “Posso ser membro da classe trabalhadora e não me identificar com ela; posso também ser subalternizado, mas demonstrar uma consciência absorta diante desta situação”. Trata-se do que Löwy (2006) entende por “consciência empírica”; ou seja, não aquela imputada ao sujeito apenas por seu suposto pertencimento ao grupo, mas aquela que ele deliberou introjetar. Os fragmentos transcritos em parágrafo anterior são extraídos dos relatos de trabalhadores; entretanto, poderiam facilmente ser confundidos com palavras do pequeno burguês local. Os meandros dessas narrativas implicam uma sutil adesão à ótica burguesa, que responsabiliza os trabalhadores pela condição de exclusão e insinua o consumo como a causa da Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES 255 dissolução dos problemas vivenciados pela classe trabalhadora “de outrora”. Logo, nessa ideia não haveria lugar para se pensar em mobilização sindical, e a filiação à entidade de classe não passaria de mera “precaução” formal, mediante eventual não cumprimento de direitos trabalhistas. Como já dissemos, nessa ótica, a adesão sindical expressaria mais uma formalidade do que uma autêntica filiação. CONCLUSÃO O fenômeno da acumulação flexível possui hoje dimensões planetárias, aportando no cotidiano de pessoas comuns, nos mais variados âmbitos sociais. Assim, se percebe que a forma como as pessoas representam esse fenômeno perpassa experiências pessoais de vida, sendo impossível dissociar representações da biografia peculiar a cada sujeito. Por isso, os comerciantes – tragados pela concorrência predatória das franquias internacionais – lamentam as mudanças econômicas; ao passo que os comerciários mais jovens, diante dos desafios postos, conformam-se com a superfície do fenômeno, manifestando certo otimismo com as mudanças espaciais da cidade. O século XXI parece ter erigido uma “nova” Vitória da Conquista, agora muito mais austera para quem pretende adentrar a arena concorrencial do comércio, mas também inspirando o eufórico deslumbre do crescimento econômico calcado na exclusão social. A pujança econômica se imprimiu imponentemente no espaço, conferindo um ar metropolitano à cidade e, ao mesmo tempo, corroendo identidades locais e sabotando oportunidades de permanência na cena comercial. Desse modo, a análise de expressões do “novo” capitalismo flexível carece de investigações que transcendam a fetichismo da pujança econômica. A sensação de cosmopolitismo, erigida na configuração espacial urbana, pode omitir a truculência desse sistema que escamoteia os resultados mais nefastos do capitalismo, que vão desde a exclusão social, até a bancarrota de microempresários expulsos das novas prerrogativas do consumo. Embora saibamos que os discursos emitidos pelas pessoas muito se relacionam ao lugar que elas ocupam, entendemos que existe um “trabalho ideológico”, na dinâmica da estrutura da economia neoliberal, para capturar a subjetividade dos sujeitos em seus distintos lócus, equalizando opiniões ao projeto burguês de sociedade. Isto se processa mediante a introdução de signos e valores arbitrários no cotidiano das pessoas, implantados através de um consentimento generalizado, realidade esta que permite compreender a sutileza e o cinismo como rótulos das “novas” formas de exploração. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 256 NOTAS A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO 1 Não raro, os anos 1980 são interpretados como período de estagnação econômica para o Brasil; todavia é interessante lembrar que a história apresenta nuances e as experiências pessoais frequentemente distam de generalizações. Na ótica dos ex-comerciantes entrevistados, por exemplo, apesar da inflação galopante e de toda a crise, o comércio local ainda era promissor para pequenos investidores. 2 Não queremos adentrar as discussões epistemológicas que envolvem o termo “modernidade”, tratado por Harvey (1993). Utilizamos o vocábulo, grafado entre aspas, para expressar o momento atual e toda a fetichização que envolve os discursos em torno das transformações na estrutura econômica global. 3 O modelo japonês, também conhecido como Toyotismo, foi um sistema de organização que surgiu como contraponto do fordismo. Tal modelo não sintetiza todo o processo de acumulação flexível; porém, apenas o ilustra pela sua arquitetura produtiva e ideológica totalmente sincronizada à ideia de flexibilidade da economia. 4 Expressão utilizada por trabalhadores quando se reportam à conduta esperada por um empregado no trabalho. 5 Como parte do trabalho de campo, também realizamos observações, através de visitas a diversos ramos do comércio e muitos nichos de consumo no município. Assim, constatamos nítida preocupação de lojistas em seguir tendências globais, o que aparecia, por exemplo, no tipo de mercadoria enfatizada na vitrine, na arrumação de prateleiras, no fardamento ou na conduta dos trabalhadores. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES BIBLIOGRAFIA 257 ALVES, G. Trabalho e subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011. BARBOSA, A. M. S. O empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho. Revista de Sociologia e Política. Vol. 19, número 38. Curitiba, mar. 2011, p. 30-49. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ rsocp/v19n38/v19n38a08.pdf . Acesso em 10 de maio de 2013. CHESNAIS, F. A mundialização do capital. Tradução: Silvana Finzi Foá. São Paulo: Xamã, 1996. HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução: Tomaz Tadeu da Silva. 11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A, 2006. LÖWY, M. Ideologias e Ciência Social: fundamentos para uma análise marxista. 17ª edição. São Paulo: Cortez, 2006. LUCÁKS, G. Sociologia. In: NETTO, J. P. Sociologia: Lukács. São Paulo: Ática, 1992. MARX, K. O Capital. 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Assim, para falar de novas formas de resistências às correntes estratégias de dominação, há que se reconhecer os novos artifícios de perpetuação do capital. This text strives to understand how the “new” flexible capitalism entered the daily life of people, inspiring distinct interpretations of this phenomenon. Although this illustrates a historical moment of the capitalist system marked by conversions in the economic structure, its spread has occurred also through ideological artifices, whose architecture has stepped into the subjectivity of the subjects and caused a collective engagement. Thus, to talk about new forms of resistance to current strategies of domination, we must recognize the new devices perpetuation of capital. Recebido para publicação em agosto/2014. Aceito em março/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258 Entrevista Entre Jóias de Família, Trânsitos internacionais e a Praia de Iracema: uma instigante trajetória de pesquisa Entrevistada: Adriana Piscitelli Antropóloga, nascida em Buenos Aires, é professora do Departamento de Antropologia Social e do Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Campinas-SP (UNICAMP). É pesquisadora – e uma das fundadoras – do Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU), no qual tem desenvolvido as funções de coordenadora e coordenadora associada. É autora dos livros: Jóias de família – gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais brasileiros (Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, 2006) e Trânsitos – brasileiras nos mercados transnacionais do sexo (Editora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, UERJ/ CLAM, 2013). Referência nos estudos de gênero e sexualidade, tem atuado como professora visitante ou convidada em universidades da Europa, dos Estados Unidos e de outros centros da América Latina. Integra o comitê editorial de importantes revistas brasileiras e estrangeiras da área de Ciências Sociais. Desde a segunda metade dos anos 1990, Adriana pesquisa prostituição e turismo sexual em Fortaleza. Esta entrevista foi realizada por ocasião da vinda de Piscitelli a Fortaleza, em março de 2013, como convidada, para proferir conferência intitulada “Emoções, vítimas e direitos: tráfico internacional de pessoas envolvendo brasileiras”, no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Entrevistadores: Antônio Cristian Saraiva Paiva Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade. Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS). Jania Perla Diógenes de Aquino Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 262 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA Jania – Adriana, eu gostaria de começar abordando sua formação acadêmica, a graduação em ciências antropológicas, na Universidade de Buenos Aires. Lá, o bacharelado dura seis anos não é? Você teve que fazer uma etnografia para concluir o curso? ADRIANA – Eu fiz a graduação em Antropologia, em um momento muito particular. O tempo de graduação estabelecido na Universidade de Buenos Aires são cinco anos. Só que, quando estava fazendo a graduação, teve o golpe militar. A Universidade foi fechada durante um ano, então fiz o curso em seis anos. E quando ela foi reaberta, o currículo tinha sido modificado completamente. Tinham sido eliminadas várias disciplinas de Antropologia Social – cursos envolvendo etnografias – para evitar que os pesquisadores tivessem contato com o campo. Entre os antropólogos, havia uma tendência muito forte de trabalhar com os setores populares e era isso o que a ditadura estava querendo evitar, de maneira que essas matérias foram substituídas por disciplinas da História: História Antiga e História da América e da Argentina coloniais. Quando ingressei, esperava-se que o curso fosse concluído com um trabalho de campo e uma monografia; mas, com a ditadura, isso também foi eliminado. Minha monografia de graduação foi sobre um tema muito distante: sobre socialização entre os esquimós. Já que havia uma série de dificuldades para ir a campo com qualquer tema, eu escolhi um que pelo menos tinha uma boa bibliografia. Em Buenos Aires, havia uma biblioteca extraordinária, centenária, e que ainda existe, no Museu Etnográfico, e tinha trabalhos históricos sobre esquimós. O que salvava a antropologia naquele momento eram os grupos de pesquisa em instituições particulares, fora da Universidade; professores que não tinham se exilado se concentravam nesses lugares. Tive uma oportunidade extraordinária. Quando concluí a graduação, retornou ao país uma antropóloga argentina que tinha se formado em Chicago: Esther Hermitte. Ela havia feito seu trabalho de campo no México e era empiricista. Ela abriu um curso num centro de pesquisa privado que ainda existe, o IDES (Instituto de Desenvolvimento Econômico e Social). O IDES selecionava entre os jovens recém graduados, doze, para ela formar em pesquisa etnográfica, com forte ênfase no trabalho de campo e eu tive a sorte de ser uma das selecionadas. Ali, aprendi a fazer trabalho de campo, já naquele momento. A Esther era dura; ela fez com que cada um de nós escolhesse um recorte de campo, elaborasse um projeto que era discutido coletivamente e naquele estilo bem argentino, os projetos eram destruídos, para serem reconstruídos. Para preparar a Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 263 primeira entrevista, você formulava os questionários, levava para o grupo e o grupo avaliava. Depois, você tinha que gravar a entrevista e levava a entrevista gravada para o grupo e eles iam analisando: “Erro!”. “Aí você deveria ter ficado calado; aqui você deveria ter parado a pessoa e aprofundado”. Foi uma escola absolutamente extraordinária. Voltando ao seminário de Esther Hermitte, eu queria trabalhar com algo que tivesse a ver com mulheres e o seminário era sobre Antropologia Médica; então, resolvi trabalhar com processos de reprodução, incluindo gravidez e parto, que era uma maneira de articular a Antropologia Médica com problemáticas vinculadas a mulheres. E foi ali que comecei a me deparar com a dificuldade de encontrar bibliografia que tratasse de mulheres, em 1979. Procurando bibliografia, comecei a descobrir as antropólogas feministas, que naquele momento trabalhavam com a antropologia da mulher. Foi a partir dessas inquietações de pesquisa que descobri os grupos feministas que estavam se reorganizando na Argentina, depois de todos os anos de ditadura, porque nem isso podia funcionar; organizar um chá feminista naqueles anos era extremamente perigoso. Mas aí já estávamos no início dos anos 80, o movimento feminista estava se reorganizando e eu comecei a participar de um grupo fantástico que era trotskista; a organização ainda existe e se chama ATEM. Cristian – ATEM? ADRIANA – ATEM, Asociación de Trabajo y Estudio de la Mujer. Foi fabuloso por que elas tinham uma visão crítica sobre a sexualidade; leituras em vários campos de saberes; e, como elas eram de uma tradição de diálogo que atravessava classes sociais, montavam grupos de discussão, aqueles grupos de autoconsciência feminista, que juntavam mulheres de classes populares com acadêmicas de classe média. Foi uma época riquíssima. Os dois últimos anos que eu passei na Argentina, já no final da ditadura, foram uma época de grande efervescência cultural, de formação e atuação de grupos. Naqueles últimos dois anos também me juntei com um grupo de colegas para fazer uma revista de antropologia. Alugamos uma sala com nosso próprio dinheiro... Todos trabalhávamos em qualquer coisa; não existiam bolsas; equipamos a sala, chamamos as pessoas que poderiam ter interesse em publicar para darem palestras e organizarem os textos. O nosso sonho era ver a revista se materializando. Não saiu um número sequer. Olhando para trás, hoje, acho que não era para sair. Soube que há dois Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 264 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA anos houve uma comemoração de aniversário da Sociedade Argentina de Antropologia (SAA) e que, na ocasião, projetaram fotografias do nosso grupo, aquela organização pela qual passou muita gente, considerando-o como um dos aspectos da resistência à ditadura, de aglutinação em torno da antropologia. Enfim, o que não dava para fazer na Universidade, tentávamos fazer fora. Naquele período, na Argentina, os poucos espaços de trabalho estavam tomados por pessoas extremamente complicadas ideológica e politicamente. Nós acabávamos trabalhando fora da universidade, em lugares diversos: trabalhei um ano no Centro de Reeducação para Alcoólatras; trabalhei com mulheres usuárias de drogas; sempre procurava trabalhar com mulheres; e também trabalhei em um Centro Multidisciplinar de Pesquisa, em um programa do município, na periferia, voltado para ampliar a percepção da diversidade cultural entre professoras da escola primária, dando-lhes elementos para interagir com crianças imigrantes e indígenas. Depois disso, quis sair para fazer uma pós-graduação em Antropologia, que nesse momento não existia na Universidade de Buenos Aires. Na época, eu compartilhava o desconforto de muitas pessoas com os saberes do “primeiro mundo”, procurava uma antropologia latino-americana e imaginava que os lugares para encontrá-la eram o Brasil e o México. Aí vim primeiro para o Brasil. Jania – Foi nesta viagem que você fez o primeiro contato com a pós-graduação da UNICAMP? ADRIANA – Sim. Adorei essa viagem. Vim visitar os programas que me indicaram como os melhores naquele momento: USP, UNICAMP e Museu Nacional da UFRJ. Visitei os três. Na época, gostei mais da UNICAMP porque era um momento em que lá havia grande número de pessoas de fora, o que tornava a instituição muito acolhedora. Na minha turma do mestrado, acho que tinha uma ou duas pessoas de Campinas; os demais vinham de diferentes partes do país e do exterior. Era uma universidade extremamente aberta; então, prestei seleção ali mesmo. Cristian – Isso em que ano, Adriana? ADRIANA – Em finais de 1983. Naquela época, o correio na Argentina funcionava muito mal. Enviei as “cartas de recomendação” exigidas no Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 265 processo seletivo, mas o resto do material se perdeu. Tive sorte porque na visita que fiz à UNICAMP tinha conhecido a então chefe do Departamento, professora Bela Bianco. E, naquele momento, havia na UNICAMP um aluno de mestrado argentino, Néstor Perlongher. Ele estava viajando a Buenos Aires e Bela recomendou que ele me procurasse urgentemente para que eu enviasse o material que não tinha chegado. Em Buenos Aires, Néstor se hospedava na casa de uma feminista histórica chamada Sara Torres. Chegando lá, ele disse à Sara que tinha que procurar a Adriana Piscitelli. Havia um imenso comício de protesto naquele dia. Então, a Sara disse: “Ah, vamos ao comício hoje que ela vai estar lá”. Eu estava lá, carregando um cartaz da ATEM e chega o Néstor e avisa que meus papeis se perderam. Fiquei muito preocupada. Ele me deu o telefone da Bela e saí correndo da Praça de Maio. Deixei meu cartaz com o Néstor, que ficou carregando-o durante todo o comício. Foi naquele momento inusitado que o conheci. Da Praça de Maio, telefonei para a Bela. Fiz cópia de tudo e enviei a Campinas. E foi assim que cheguei à UNICAMP. Jania – Na condição de estrangeira, recém-chegada, a pós-graduação da UNICAMP correspondeu às suas expectativas? ADRIANA – Sim. Cheguei à UNICAMP em um momento muito feliz, porque tinha uma série de professores de primeiríssima linha e eles tinham contato muito próximo com os alunos. Além disso, minha turma de mestrado foi espetacular; ainda sou amiga de boa parte deles. Viajava com eles para as suas cidades. Em um desses passeios, fui parar em Monte Santo, no Sul de Minas, na casa de uma amiga cujos pais eram fazendeiros que cultivavam café. Eu sentava no alpendre da casa e conversava muito com eles e com as visitas, no final da tarde. Às vezes, não acreditava nas histórias que contavam. Eram histórias de amores, casamentos, paixões, heranças, terras... Aí resolvi fazer a minha dissertação de mestrado naquele lugar. E juntou tudo isso com outra coisa maravilhosa: de entrada na UNICAMP, fui “adotada” por Mariza Corrêa. Ela olhou para mim passando no corredor e disse: “você é a argentina; li seu trabalho e vou orientar você”. Ela se encantava com o tema das famílias. Então, levei adiante minha pesquisa lá em Minas, orientada por Mariza, que acompanhou toda a minha trajetória acadêmica. Jania – Os grupos de pesquisas já existiam? Como funcionavam? Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 266 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA ADRIANA – Na época, estavam se formando grupos de estudo sobre sexualidade, sobre família, sobre mulher, retomando inquietações presentes na UNICAMP desde finais da década de 1970, quando houve um par de famosas “Semanas da Mulher”. Falávamos em criar um centro de pesquisa, que era uma ideia muito cara à Mariza. Em 1988, ficamos sabendo que tinha um curso com Kate Young, uma reconhecida antropóloga feminista na Inglaterra. Ela estava abrindo esse curso para pessoas de diferentes partes do mundo, Women, Men, Gender and Development. Suspendi meu mestrado e fui para a Inglaterra estudar na University of Sussex, e foi uma experiência extraordinária porque convivi com mulheres africanas, asiáticas e latino-americanas. Até esse momento, nunca tinha me deparado com a ideia de não ser branca ou de não ser branca de classe média, e, nesse sentido, essa experiência foi muito rica. Nunca mais enxerguei o mundo e as coisas da mesma maneira. Quando voltei, já foi possível articular mais professores para montar o PAGU e Mariza organizou várias reuniões com esse fim. Delas participaram vários professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), incluindo Elisabeth Lobo – que era professora da USP, mas que passava temporadas como professora convidada na UNICAMP – e Néstor. Elisabeth foi uma professora importante na história do trabalho; era vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e foi uma das precursoras nas reflexões sobre teoria de gênero mais contemporânea no Brasil. Através dela, conhecemos o trabalho de Joan Scott, no final dos anos 80. Ela era extraordinária, mas morreu muito jovem, num acidente. Era casada com Marco Aurélio Garcia, também professor da UNICAMP, e meu amigo. Marco Aurélio e Néstor moravam em São Paulo e se hospedavam na minha casa, em Campinas, no período de aulas. Beth tinha ido para os Estados Unidos e comprou uma bibliografia extraordinária, super recente; naquela época, não havia internet e a gente pedia para que ela achasse e trouxesse tudo o que fosse possível para xerocarmos para o curso, que seria ministrado por ela. Quando ela morreu, Marco Aurélio nos emprestou o material que Beth tinha reunido. E aí fizemos, em formato de grupo de estudo, em 1991, o curso que ela tinha montado. Essa é a base, em termos acadêmicos, da organização do PAGU. Um par de anos depois, em 1993, o PAGU ganhou existência oficial, como Núcleo de Pesquisa da UNICAMP. Jania – Desde que foi fundado, o PAGU funciona no espaço físico da UNICAMP? Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 267 ADRIANA – Sim, no início funcionava numa sala que, hoje, é a biblioteca do PAGU. O Néstor participou das várias discussões iniciais; mas, a essa altura, quando a Beth morreu, ele já estava seriamente afetado pela doença e já não viajava. Então, o Néstor se perdeu nesse caminho por causa da doença e a gente começou com a biblioteca da Beth. Cristian – Naquele momento inicial, ele integrava o PAGU? ADRIANA – Sim, mas o PAGU não existia oficialmente, nem tinha esse nome. Era como se fosse um grupo de reflexão. Participavam alguns professores: Stella Bresciani, Suely Kofes, Mariza Corrêa, Ana Maria Goldani, Leila Algranti, Margareth Rago... Nesse momento, eu estava na transição para o doutorado e também era uma das participantes. Havia outras alunas: Karla Bessa, que hoje é pesquisadora do PAGU, e Carla Bassanessi, que saiu após terminar o doutorado, e hoje participa de uma editora em São Paulo. Montamos o primeiro projeto de pesquisa, um projeto super bonito, que se chamava Histórias e memórias femininas que articulava todo mundo. Tinha pouco dinheiro, mas isso não era o mais relevante; o importante era ter algo que nos articulasse. Nesse percurso, foi possível institucionalizar o PAGU, em 1993; àquela altura, já tínhamos uma trajetória: alguns anos de trabalho de pesquisa e de reflexão e também tínhamos os Cadernos PAGU. O primeiro número foi feito na gráfica do IFCH. Cada uma das participantes entregou um texto. Já entre o segundo e o terceiro números, Mariza, com experiência de participação em publicações, organizou um comitê editorial. Uns quatro anos depois, obtivemos o primeiro financiamento do CNPq; e o trabalho, aos poucos, foi se tornando mais profissional e a revista foi crescendo. Lentamente obtivemos vagas de pesquisador para o Núcleo. Fui contratada na primeira vaga que foi disponibilizada. A constituição do PAGU está associada a um “momento teórico” nos estudos feministas, quando várias autoras começam a trabalhar, numa linha pós-estruturalista, com a categoria gênero. Isso tornou possível que o Néstor se articulasse conosco. Ele pesquisava prostituição homossexual e, embora o referencial feminista “clássico” fosse importante para ele, não era suficiente, porque ele estava colocando questões que na ocasião não conseguíamos nomear, mas que se relacionavam com as novas concepções de gênero. As temáticas do PAGU foram muito diversificadas; até hoje são. No entanto, parece que o que ficou mais visível foi a problemática da sexuRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 268 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA alidade. Mas no Núcleo há pessoas que vêm do Instituto de Geociências que trabalham com gênero e política científica, gênero e a história da ciência, com relações de trabalho, com produção cultural... Talvez a questão da sexualidade tenha se tornado mais visível porque, durante cinco anos, vários de nós, integrantes do PAGU, estivemos articulados em um projeto temático1 no qual o trabalho com sexualidade era muito forte. No eixo de sexualidade, tínhamos: Bibia (Maria Filomena Gregori), Júlio Assis Simões e eu; e foram se juntando vários orientandos nossos que hoje têm uma reconhecida trajetória na área: Larissa Pelúcio, como pós-doutoranda; Regina Facchini, que hoje é pesquisadora no PAGU; Camilo Albuquerque Brás, Isadora Lins França... O tema aglutinou muita produção; ao redor dele organizamos vários seminários e, assim, a questão da sexualidade ficou com maior destaque. Mas, até hoje, tem uma diversificação grande nos trabalhos. Ainda sobre a questão da sexualidade, embora não fosse o foco, ela apareceu de maneira significativa no mestrado, naquela pesquisa que comentei, que foi uma das pesquisas que mais curti na vida. Foi muito bonita e inovadora na época. Jania – Você poderia falar um pouco mais sobre essa pesquisa, o tema, as questões que você levantou sobre os casamentos? ADRIANA – Essa pesquisa tratou das articulações entre estratégias matrimoniais e noções de amor, em várias gerações de fazendeiros de café. Articulava o trabalho com fontes históricas, abarcando um período de cem anos, com material qualitativo colhido com três gerações das duas principais famílias do lugar. Eram as duas principais famílias em termos políticos e econômicos. A questão do casamento era relevante porque a principal forma de manter o patrimônio, até certo momento, era basicamente através do casamento entre primos. Não se cogitava a possibilidade de aliança, casando com o grupo oposto. Essa pesquisa era inovadora em termos metodológicos, porque articulava o trabalho com fontes, com documentos, como registros de casamento, nascimentos, cartas de amor, etc; e entrevistas em profundidade, procurando perceber como nas narrativas se produziam articulações entre gênero e memória. E em termos teóricos, porque num momento em que se estava difundindo o marco teórico de Bourdieu, na segunda metade dos anos 80, minha questão era se o amor era capaz de operar, desestabilizando o habitus. E fui me deparando com questões de sexualidade – porque havia um corte quase dramático, entre a geração mais jovem que, naquele momento, era próxima da minha e as Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 269 anteriores –, em termos de noções de amor e de sexualidade. Foi muito gostoso trabalhar com tudo aquilo. As fazendas de café ainda estavam em funcionamento nas mãos das famílias. Era possível visitar os locais onde tinham funcionado as senzalas, onde os escravos trabalhavam com o café. Havia uma fazenda projetada por arquitetos italianos que tinha ainda o teto original pintado com anjinhos. Essa pesquisa acabou não sendo publicada como tese, mas alguns capítulos foram publicados no exterior e viraram referência nos estudos de gênero, história oral e memória. Isso foi reconfortante, porque foi o trabalho mais bonito que fiz. Jania – E as herdeiras dos grupos empresariais – tema de sua tese de doutorado, Joias de família –, como é que estas personagens entram no seu universo de pesquisa? ADRIANA – Entraram por uma questão, sobretudo teórica; porque havia várias discussões importantes sobre parentesco e herança que eu não tinha contemplado no mestrado, e também em função da perspectiva de gênero da qual eu estava me aproximando. Decidi, no doutorado, enfrentar essas questões apoiando-me nas novas leituras, particularmente as feministas, sobre gênero e parentesco. Fui às grandes famílias que tinham sido relevantes em termos de constituição de grupos empresariais brasileiros, em diferentes partes do país, mas com abrangência nacional. Trabalhei com os Matarazzo, os Lundgren das [lojas] Pernambucanas, as famílias vinculadas à Sadia e os Diniz, do grupo Pão de Açúcar. Eu os escolhi porque cada um desses grupos tinha aberto ou fechado, de maneiras radicalmente diferentes, as possibilidades de as herdeiras assumirem os negócios. Mas, tive que trabalhar muito com fontes escritas porque o acesso às famílias naquele momento foi muito difícil. Algumas pessoas às quais tive acesso me deram entrevistas, mas não consentiram que as utilizasse em publicações. Utilizo-as na tese, mas não no livro, respeitando o compromisso assumido. O meu doutorado foi longo, porque nos anos que passei nele, gastei a maior parte do tempo me ocupando da montagem do PAGU. Só fui defender a tese quando estava acabando o prazo que me concedia o contrato de pesquisadora – ainda estava no estágio probatório. Nesse momento, já tinha interesse no turismo sexual em Fortaleza. Assim, antes da concluir a versão final da tese, interrompi a escrita para escrever um projeto que apresentei ao Edital da Fundação Carlos Chagas/McArthur sobre masculinidades. E já obtive um financiamento para vir trabalhar essa problemática em Fortaleza, em 1999. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 270 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA Jania – Adriana, por que você se interessou por esta temática? Você já tinha vindo aqui a Fortaleza antes? Cristian – Isso; como é que esta temática se mostrou relevante para você? ADRIANA – Frequento Fortaleza desde 1985; Fortaleza e o Ceará. Vinha todos os anos, às vezes, mais de uma vez por ano. Fui acompanhando muitas coisas: a violência do crescimento do processo turístico e a destruição que o acompanhou. Sou daquela leva que foi para Jericoacoara quando nesse lugar ainda não havia hotel, nem restaurante. E havia um lugar em Fortaleza onde eu adorava ficar, que destruíram, arrancando um pedaço de mim, que foi o Hotel Colonial. Ficava na rua Barão de Aracati; acho que foi o segundo hotel de praia construído em Fortaleza, no início da década de 1960. Tinha um jardim maravilhoso, planejado por Burle Marx, era um hotel térreo, com apenas um andar de cima, quartos muito simples, e a melhor piscina de Fortaleza: imensa, sem vento, sem sombra. Esse era um momento de boom das adoções internacionais. Uma das exigências para adotar era que os pais adotivos estrangeiros passassem um período com a criança aqui. Muitos pais adotivos iam para o Hotel Colonial por causa da piscina e do jardim. Eu ficava lá olhando aqueles casais brancos com aquelas crianças morenas; aquilo me chamava muito a atenção e me preocupava. Nesse momento, propus um projeto sobre adoção internacional que não foi aprovado. Nesse período, finais dos anos 80, eu ia para a Beira-mar e começava a ver a problemática do turismo sexual. Via estrangeiros com meninas muito novas, que entravam e saiam dos hotéis, tranquilos. Fui acompanhando todos esses processos e, a partir das leituras que vínhamos realizando no PAGU, estava alucinada com a questão das interseccionalidades e também com as leituras feministas pós-coloniais que analisavam a exploração e o “aproveitamento” do “terceiro mundo” pelo “primeiro”. Assim, quando fiz meu parêntese na escrita da tese para elaborar o projeto sobre turismo sexual, essa problemática para mim era um recorte, como poderia ter sido, antes, adoção internacional. Não era a questão da sexualidade que me chamava a atenção; era o fato de ser um problema relevante sobre as relações entre “primeiro mundo” e “terceiro mundo”, ou países do Norte e países do Sul, e que estava permeado pela intersecção entre gênero e outras categorias de diferenciação. Este projeto foi aprovado. Então, escrevi a conclusão de “Jóias de família” no Hotel Colonial, já fazendo campo sobre turismo sexual. Lembro que, entre o momento em que depositei a tese e a data da defesa, fiz uma viagem a Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 271 Portugal, por um convênio de pesquisa, e já fiz trabalho de campo em Portugal com homens interessados em vir ao Brasil em busca de sexo. Depois, no verão, em 2000, vim e fiz a primeira fase de campo pesada, que foi muito pesada. Acho que nesses primeiros três meses de 2000 saíram os insights que permearam o resto do trabalho que foi, sobretudo, comprovação deles. Em 2000, era uma dinâmica muito gritante... Ali, decidi, propositalmente, não me concentrar em crianças. Cristian – E como foi o trabalho de campo? ADRIANA – O trabalho de campo foi fascinante. Em primeiro lugar, tive ótimos financiamentos, o que era importante porque era uma pesquisa cara. Embora eu tivesse muito conhecimento sobre Fortaleza, amigos e família na cidade, eu tinha que estar no meio daquelas dinâmicas para fazer um bom trabalho de campo. Precisava alugar um flat ou pagar um hotel em alta temporada, um assistente de pesquisa para poder me deslocar com segurança nos lugares certos. Isso foi possível, graças à generosidade da bolsa da Fundação Carlos Chagas/MacArthur e aos financiamentos posteriores da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). A irmã de uma amiga dirigiu a FEBEM-CE (Fundação do Bem Estar do Menor, Ceará) aqui de Fortaleza, na Beira-mar. Através dela e dos contatos que ela realizou, consegui entrar na “zona do Farol”, no Serviluz, e em vários lugares cujo acesso teria sido muito difícil para mim, sozinha, e sendo uma pessoa “de fora”. Dependendo do lugar, fui escolhendo os acompanhantes, homens ou mulheres. Uma vez entrosada nos circuitos, tive acompanhantes “gringos” para ir às boates. E isto era fantástico, porque dependendo de com quem eu fosse, a aproximação das pessoas era diferente. Se eu ia com um cearense, todo mundo nos ignorava. Se ia com um holandês, algumas meninas vinham se oferecer porque achavam que era um casal estrangeiro procurando serviços sexuais. Assim, as redes que montei me ajudaram no sentido de me oferecer pessoas que pudessem me facilitar o trânsito por todos esses lugares. Cristian – Isso era na Praia de Iracema? ADRIANA – Isso foi na Praia de Iracema, na Praia do Futuro e um pouquinho no Farol; mas, depois, também nos bairros das meninas, mais espalhados. Barra do Ceará, Messejana, e também praia de Iracema e Beira-Mar. A Praia de Iracema era outro mundo na época desse trabalho Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 272 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA de campo; era um mundo no qual as interações que descrevo nos artigos eram possíveis porque era um espaço inteiramente misturado. Tinha muitas pessoas de classe média. Aquelas mulheres que vimos há dois dias, com Jania, quando fomos ao Forró Mambo pareciam profissionais mais velhas; muitas pareciam de fora daqui, pela “corporalidade”. Na época em que pesquisei, as garotas procuravam não se diferenciar da classe média local e criar distância dos estereótipos da prostituição, favorecendo a ambiguidade das relações com estrangeiros. Nesses espaços, era raro que aparecessem vestidas de maneira hipersexualizada, aquilo que correntemente se associa com a ideia de estar vestida para “fazer programa”. Nos bares, locais abertos, estava cheio de estrangeiros, estava cheio de garotas que tentavam ser chiques “como as moças da Aldeota”. Teve um espaço pequeno que abriu em frente ao Pirata. Júlio (proprietário do Pirata, tradicional casa de Forró da Praia de Iracema) ficou enlouquecido. As moças atendiam com umas peças de roupa como umas mini saias e sentavam no colo dos homens. Mas esse local durou pouco porque, naquele momento, este tipo de espaço não fazia sucesso. O que os turistas procuravam era “normalidade”. E boa parte das meninas que se ofereciam eram “discretas”. Cristian – Adriana, por que a decisão de não estudar as adolescentes e suas relações com os turistas? ADRIANA – O que me trouxe para Fortaleza foi, sobretudo, uma inquietação teórica: compreender a relação entre categorias de diferenciação e a agência/agency que essas intersecções possibilitavam no marco de relações desiguais. Se me centrasse em crianças e adolescentes, estaria trabalhando com um crime, de exploração sexual e, provavelmente, com situações de miséria. O turismo sexual envolvendo oferta de serviços sexuais por mulheres maiores de 18 anos não é crime. E boa parte das mulheres com as quais trabalhei não eram miseráveis, em termos locais. Esse conjunto de aspectos facilitava perceber as margens de agência, mesmo em situações de desigualdade. Algumas das meninas com as quais trabalhei, de fato, eram adolescentes; mas elas só me disseram isso depois de terem feito 18 anos. Eu as conheci com 16, 17, elas tinham documentos falsos. Jania – É interessante que esse seu trabalho de campo com as jovens de Fortaleza e as relações destas jovens com os turistas estrangeiros caminhou, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 273 de modo bastante espontâneo, para a temática da migração internacional. Você teve várias interlocutoras de campo que migraram para a Europa, não foi? Qual a relação deste fenômeno com aqueles casos classificados como “tráfico de pessoas”, por militantes dos direitos humanos e textos jurídicos? ADRIANA – A etnografia em Fortaleza me levou à Europa, acompanhando a dinâmica do campo. Naquele período, entre 2000 e 2002, eu fazia pesquisa no Desigual, que era um bar da Praia de Iracema. Nele, havia uma disputa interna entre as “garçonetes” (elas não se consideravam prostitutas, porque não faziam programa) e as mulheres que as garçonetes chamavam de “garotas de programa”. Entre estas, algumas se consideravam garotas de programa e outras não. E todas elas disputavam os mesmos homens. Aquelas mulheres jovens, praticamente todas, foram embora para a Europa; a maior parte para Itália, porque os turistas as convidavam e as levavam. Várias das minhas entrevistadas, as que ficaram mais próximas, amigas, foram para a Itália. Pensei: “Bom, então vou atrás delas na Itália”. Eu não pensava em tráfico de pessoas, na época. Segui-as na Itália e foi interessante porque na mesma turma de amigos italianos, uma parte tinha casado com “garçonetes” e outra com as meninas que as garçonetes consideravam “meninas de programa”. A interação era tensa, elas se detestavam. Porque as “garçonetes” não deixavam de fazer distinções entre elas; enquanto eles, os homens, não faziam diferença. Encontrei com elas na Itália e demorei muito para pensar de modo positivo as mudanças que tinham acontecido na vida delas. Vendo-as na Itália, me decepcionei: aqui, eram autônomas, com projetos, sempre alegres... E na Itália, eram donas de casa preocupadas com a limpeza da casa; algo que aqui era irrelevante. Foram para a Itália e viraram algo assim como “rainhas da domesticidade”. Demorei para entender o que aquilo queria dizer. Mas elas estavam bem; estavam felizes com o upgrade que tinham dado na vida. E nesse percurso, mulheres que, segundo elas, no primeiro momento não estavam apaixonadas – mas sempre tiveram respeito e consideração pelos companheiros – foram transformando as narrativas sobre os seus sentimentos. A maioria delas casou porque queria permanecer na Itália, na Europa. Só que, com o tempo, conforme seus relatos, foram se apaixonando. Nesse percurso, era chamada para participar de seminários sobre “tráfico de pessoas” e eu dizia: “mas eu não trabalho com tráfico de pessoas, eu trabalhei com turismo sexual e migração”; e os organizadores diziam: Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 274 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA “Ah, tudo bem, serve igual”. Eu ia, falava das pesquisas e as perguntas das plateias eram chocantes: “E essas mulheres traficadas?”. Eu respondia: “Não, eu não usei a palavra tráfico nenhuma vez; falei de migração e falei de turismo sexual”. E a plateia continuava repetindo os mesmos termos como se não tivesse ouvido o que falei. Mas no meu universo de pesquisa, tirando os poucos casos em que as meninas eram adolescentes – o que configurava exploração sexual de crianças e adolescentes – no resto não havia crime nenhum; nem entre aquelas que faziam programa, nem entre as que não faziam programa. Por que? Era uma atividade autônoma. Aqui na Praia de Iracema, naquele momento, havia muito espaço para a realização de programas sem esquema de agenciador; as minhas entrevistadas meninas iam para os hotéis deles, brigavam entre elas, mas não havia mediadores regulando as relações entre elas e os estrangeiros. Além disso, o fato de os homens as convidarem para ir para o exterior e enviarem as passagens, não configurava, em si, um crime; e só provocava escândalo quando se tratava de jovens pobres. Quando eu entrevistava meninas de classe média, universitárias, era o mesmo mecanismo. Conheciam um “gringo” na Beira-mar, ele enviava a passagem, ela ia para o país dele. Aquilo não era compreendido como turismo sexual. Mas, quando acontecia com as meninas da periferia que circulavam pela Praia de Iracema, sim, era turismo sexual. Analisando situações as mais diversas, envolvendo mulheres locais e homens estrangeiros, havia situações de violência, sim. Cada categoria de mulheres com as quais trabalhei, inclusive as mulheres de classe média, tinha uma história de violência para contar: uma tentativa de assassinato, uma situação de cárcere privado... Acontecimentos que não tinham relação direta com tráfico de pessoas. Mas, percebendo a insistência em vincular essas dinâmicas de contato e de migração com tráfico de pessoas, resolvi considerar essa problemática. Em 2004 e nos anos seguintes, o país tido como o que recebia a maior quantidade de mulheres brasileiras em situação de tráfico de pessoas era a Espanha. Iniciei uma pesquisa naquele país. No entanto, era difícil considerar as viagens das minhas entrevistadas como “tráfico de pessoas”, tendo como base a definição do Protocolo de Palermo2 a esse respeito. Já, considerando o Código Penal brasileiro, a situação era outra. Aqui precisamos nos deter para pensar na diferença entre as duas disposições legais. No Protocolo de Palermo, a noção de tráfico de pessoas está centrada no uso de violência, fraude ou abuso de uma situação de vulnerabilidade, em algum momento do processo de deslocamento, para submeter uma pessoa Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 275 a uma situação de exploração em trabalho forçado em qualquer atividade, ou de exploração sexual. Essa ideia de violação do consentimento, presente no Protocolo de Palermo, como elemento que define o crime, não está presente no Código Penal que, até hoje, tipifica o crime de tráfico internacional de pessoas como facilitação para exercer a prostituição no exterior ou para chegar do exterior a exercê-la no país. E a ideia de facilitação pode ser ampla, incluindo diversos tipos de ajuda. Só que as pessoas que se deslocam para exercer alguma atividade, dificilmente o fazem sem ajuda, algum contato, relação ou vínculo. Nesse sentido, todas as minhas entrevistadas poderiam ser consideradas traficadas, segundo o Código Penal, pois todas tinham tido ajuda para se deslocar e se instalar no exterior, para exercer trabalho sexual. Observe-se que na formulação anterior do Código Penal, de 1940, o crime era exclusivamente de tráfico internacional de mulheres. Na alteração de 2005, o crime passou a ser tráfico de pessoas, não exclusivamente de mulheres, e pode ser nacional ou internacional. Quando o crime passou a ser pensado não em função de mulheres, mas de pessoas, e para o território nacional, começou a atingir as travestis; estas, em um primeiro momento, ficaram atordoadas porque essas práticas (isso a Flávia Teixeira3 mostra muito bem) de deslocamento para oferecer programas faziam parte até dos circuitos de sociabilidade. Porém, de repente, elas se tornavam vítimas e, muitas vezes, criminosas, quando pensadas como “facilitadoras”. Maia Sprandel, José Miguel Olivar e eu organizamos um workshop sobre tráfico de pessoas – integrando a programação do 35º Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais), em 2011 – que foi, nesse sentido, muito interessante. Participou dessa atividade uma travesti de Uberlândia-MG. Havíamos pedido que cada participante pensasse sobre as disposições legais relativas ao tráfico de pessoas, refletindo sobre como tais disposições tinham contribuído, ou ao contrário, interferido negativamente no trabalho de defesa dos direitos das pessoas que elas apoiavam. Havia participantes vinculados à defesa dos direitos de migrantes; outras a organizações de apoio às trabalhadoras do sexo. E Pâmela, uma das participantes, representava as travestis. Começou narrando uma história. Ela tinha uma “casa de travestis” na beira de um rio. As casas de travestis abrigam várias travestis, pois com frequência elas têm dificuldades para alugar moradias, assim como para se hospedar em hotéis. Pâmela criou essa casa onde elas dormiam, comiam, por uma diária, acho que era de R$ 30,00 (trinta reais), com pensão completa. Isto não tem relação Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 276 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA com o exercício da prostituição. Um dia ela acordou com um barulho e encontrou a Polícia na porta, em helicóptero, em barco, uma verdadeira força-tarefa. Ela se deu conta de que a sua casa tinha sido denunciada e ela estava sendo procurada como traficante. E dizia à Polícia: “Olha, as meninas me pagam a diária porque elas moram aqui, não é que eu alugo ponto para elas ou me beneficio daquilo. Às vezes, elas viajam e me telefonam e dizem: ‘Ô, Pâmela, eu estou no Maranhão, sem dinheiro para viajar!’. Aí eu mando dinheiro para ela voltar”. Pronto. Foi tudo o que eles queriam ouvir; isso pode ser classificado como aliciamento ou facilitação. Foi aberto um processo contra ela. Mas, na verdade, a vida na casa da Pâmela, pelo que conheço, é uma vida comunitária como em muitas outras casas de travestis. É onde elas vivem, têm sua “família”, festejam os seus aniversários... Em 2009, novas alterações no Código Penal4 tornaram a tipificação mais complicada: a prostituição passou a ser pensada como uma forma de exploração sexual. No Protocolo de Palermo, a exploração não é definida; mas, como nele, são parâmetros para a exploração em outras atividades as noções de “trabalho forçado”, “escravidão” e “servidão”, é possível supor que a exploração da prostituição remeta também à ideia de prostituição forçada. Considerando que o Brasil ratificou o Protocolo de Palermo, estamos diante de um problema, ou de uma confusão conceitual: um crime conceituado de maneiras diferentes. De acordo com o Código Penal, praticamente todas as minhas entrevistadas teriam sido traficadas. Embora viajassem por sua vontade e como parte de um projeto próprio, todas tiveram ajudas que poderiam ser lidas como facilitação. Lendo suas trajetórias a partir do Protocolo de Palermo, as viagens de algumas entrevistadas estavam claramente fora da noção de tráfico de pessoas; e, em outros casos, havia situações “cinza” ou nebulosas, na medida em que, em algum momento, elas pagaram dívidas. Embora não tenham tido seus passaportes retidos, nem estado em situação de cárcere privado ou deixado algum percentual do que ganhavam nos estabelecimentos nos quais trabalharam. Essa nebulosidade está presente em trajetórias de muitas pessoas que migram para trabalhar na “indústria do sexo”. O problema é que se costuma fazer um caminho fácil para chegar à conclusão de que essas situações, necessariamente, remetem a casos de tráfico de pessoas e violações de direitos humanos. Se levássemos esses casos a sério, mergulhando fundo neles, surgiria uma série de perguntas importantes; algumas delas iriam além dos problemas e ambiguidades nas tipificações do crime. Como reforçar os direitos das pessoas em siRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 277 tuações de deslocamento? E das pessoas envolvidas no trabalho sexual? Como as disposições legais se relacionam com condenações morais? Se conseguíssemos reforçar direitos, provavelmente teríamos menos violações de direitos, não apenas por parte de traficantes, mas também em relação às ações dos estados nacionais, particularmente com pessoas estrangeiras em situação migratória irregular. Cristian – Adriana, na sua conferência aqui no Programa de Pós-Graduação em Sociologia você procurou tensionar a categoria de vítima, analisando eventuais usos políticos feitos atualmente desta categoria; e, pelo que entendi, você a mobilizou, para problematizar a ideia de vitimização, pensando um pouco a categoria agência. Poderia falar um pouco, agora, sobre como você retoma a “agência”? Porque esse conceito vem, principalmente, de uma sociologia inglesa... Giddens, por exemplo, trabalha muito com essa noção de agência, não é? ADRIANA – Na verdade, trabalho a ideia de agência numa perspectiva antropológica. Há linhas sociológicas que pensam nas dinâmicas entre agentes e estruturas, às vezes polarizando-as. Essas linhas trabalham com noções de autonomia, racionalidade e escolha. Entre as leituras antropológicas, gosto particularmente das formulações de Marilyn Strathern. Ela pensa em agência como capacidade de agir. De acordo com ela, alguém age tendo o outro em mente; mas, a capacidade de agir não é associada ao livre arbítrio, nem à escolha. Os agentes operam no âmbito de um repertório cultural que oferece certas possibilidades, no marco das quais tem lugar a ação. Não se trata necessariamente de resistência. Na palestra, tentei explicar que muitas vezes eu, assim como outros pesquisadores, tinha me oposto ao discurso englobante do tráfico que afirma que as mulheres em situações de deslocamento para o trabalho sexual são vítimas, destacando a agência delas. No entanto, esse caminho analítico, contrapondo as vozes das pessoas e mostrando suas margens de agência, não tinha sido útil para interferir nos discursos sobre tráfico de pessoas. E acho que não foi útil porque muito desse debate está ancorado numa moral humanitária que requer a existência dessa noção de vítima. Recorro aqui aos argumentos do Didier Fassin, para quem no marco dessa moral se produz uma ideia de vítima para poder sustentar certos discursos e ações. Essa moral humanitária, que é complexa, é utilizada tanto pelas ONGs que defendem direitos humanos como para justificar ações militares que violam direitos humanos com a justificativa Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 278 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA de resgatar, salvar, vítimas. A questão é que essa moral cria uma noção de vítima que não tem ancoragem empírica. É uma vítima ideal que não corresponde a pessoas concretas. Fassin mostra como, em uma série de intervenções diversificadas, a vítima não aparece, a vítima não tem voz. O que importa é a testemunha para dizer que aquela pessoa é vítima; porque se a vítima falar, ela se afastará da noção de vítima ideal; ela terá uma trajetória, uma biografia, que anulará o seu estatuto de vítima [ideal]. Nas discussões sobre tráfico de pessoas, um problema apontado recorrentemente é que há pouquíssimas pessoas que se apresentam como vítimas desse crime. E se pensa que isso ocorre porque as pessoas sentem medo dos traficantes, ou vergonha de se reconhecerem como tais. Tentei realizar outro percurso, explorando os efeitos que o reconhecer-se como “vítima de tráfico de pessoas” oferece às supostas vítimas. E, tomando como referência minha pesquisa na Espanha, cheguei à conclusão de que oferece muito pouco; mesmo que as pessoas se reconheçam como vítimas, esse estatuto dificilmente era reconhecido pelo Estado espanhol. Jania – É muito complexo porque a centralidade assumida pelo termo “vítima” configura um tipo de captura desta categoria pelos sistemas classificatórios e discursos do estadismo. Isso, em alguma medida, envolve agenciamentos. Por outro lado, a dificuldade em encontrar sustentação empírica para a abstração “vítima” – mobilizada em ações que se apresentam como “protetoras” e “salvadoras” de pessoas – serviria para elucidar os limites deste constructo legal-normativo ante as especificidades e contradições tão características dos trânsitos internacionais dos trabalhadores do sexo. ADRIANA – A categoria e sua mobilização remetem a instâncias de agência; concordo. Agora, unir a noção de vítima [ideal] com a trajetória da pessoa concreta, é difícil. A história de qualquer migrante que for trabalhar na indústria do sexo, particularmente migrantes irregulares, e sobretudo em países nos quais essa atividade não é despenalizada, mostrará diversos espaços de agência e também de transgressões. Diante de histórias concretas com seus detalhes, com sua complexidade, os agentes do Estado – e me refiro aqui particularmente ao Estado Espanhol e às minhas entrevistadas brasileiras – desqualificam a pessoa como “vítima do tráfico”, tornando-a migrante irregular que deve ser deportada. Eu já tinha clareza de que as análises das discrepâncias entre a noção de vítima e as trajetórias das pessoas concretas, que problematizam as noções de tráfico e as políticas para enfrentá-las, não têm efeito para rebater os Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 279 discursos sobre “tráfico de pessoas”. E, ao explorar também as [escassas] possibilidades que o uso da noção de vítima de tráfico de pessoas oferece, ficou mais claro, para mim, que esses discursos são criados em planos narrativos diferentes; esse é o problema. A noção de vítima produzida no âmbito desses discursos está eivada de normatividades e se torna uma questão de fé, que não é abalada por evidências empíricas. Cristian – Adriana, você trabalha com uma categoria analítica muito interessante, a de interseccionalidade. ADRIANA – Sim; trabalho com interseccionalidades. Para mim, foi uma categoria fundamental para poder pensar os meus campos tanto aqui, como na Europa; mas, é uma categoria que também está aberta à disputa. Fiz um levantamento, há alguns anos, para ver como estava sendo usada aqui no Brasil. E me deparei com a utilização dessa categoria em vários programas de governo. Ela foi sendo absorvida no âmbito das políticas públicas. Está presente, por exemplo, nos planos da Secretaria de política para as mulheres, seguindo, sobretudo, a linha de Kimberley Crenshaw. Essa autora é uma advogada, ativista. Ela é muito interessante, mas também problemática. Fez uma formulação que ofereceu ferramentas para os movimentos sociais: a imagem de uma mulher no cruzamento entre avenidas, atravessado por diversos fluxos de trânsito. E cada um desses fluxos representaria um eixo da subordinação a que a mulher está submetida. Por exemplo: para pensar em uma mulher negra, não bastaria pensar em uma sobreposição de determinações, e sim em entrecruzamentos entre raça, nacionalidade, casta, gênero, sexualidade. Numa leitura antropológica, essa ideia de diferenças como necessariamente eixos de subordinação é problemática. Uma diferenciação pode se tornar uma desigualdade, mas ela pode também abrir caminhos para afirmações positivas e a história nos mostra isso; inclusive, com os movimentos de reafirmação das identidades. Há uma série de autoras que também são feministas e pós-coloniais, e que fazem uso diferente, positivo e criativo, da categoria interseccionalidade. Avtar Brah e Anne Macklintock são autoras que, em diferentes momentos, nós publicamos nos cadernos PAGU. Elas realizam uma distinção entre diferença e desigualdade. Além disso, elas pensam nas formas de operação do poder de uma maneira um pouco diferente, considerando que as diferenciações podem limitar, sujeitar, mas também possibilitar margens de ação e de recriação de categorias. Um processo de “racialização” nem sempre será negativo, há “racializações” que podem Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 280 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA ser positivas. Avtar Brah mostra como categorias identitárias negativizadas podem ser apropriadas pelos movimentos sociais, transformando-se em algo positivo, mais igualitário. Anne Macklintock vai mostrando que na articulação entre categorias, estas se constroem mutuamente em relações altamente contraditórias. E nessas contradições se criam margens para a ação. Tais formulações contribuíram muito para pensar no que vi aqui no universo do “turismo sexual” em Fortaleza. De um lado, porque me ajudavam a pensar como nesse contexto era impossível separar as noções de gênero, raça e nacionalidade. De outro lado, contribuíram para que compreendesse como as mulheres de Fortaleza que se envolviam no turismo sexual tentavam – e, às vezes, conseguiam – dotar de um caráter positivo as intersecções entre diferenças que as afetavam. Não teria sido possível explicar as dinâmicas entre essas mulheres e os visitantes estrangeiros pensando puramente em termos de articulação entre eixos de subordinação, à maneira de Creenshaw. A questão agora é perguntar-se como a noção de interseccionalidades pode contribuir para pensar as dinâmicas sociais e culturais no momento atual do Brasil, em termos migratórios. Digo isto porque essas formulações foram pensadas, em termos geopolíticos, tomando como referência um “terceiro mundo” subalternizado de maneira estável. Agora o Brasil “é BRICS” e países do Sul da Europa, como a Espanha estão sofrendo uma severa crise econômica. Os espanhóis jovens estão migrando para diferentes lugares, inclusive para o Brasil, que é um dos principais destinos para os jovens portugueses. Nesse contexto global, a “ideia sexualizada” do Brasil não desapareceu, mas se integra num leque mais diversificado de noções sobre o país. Por exemplo: a TV espanhola veiculou, em 2013, uma reportagem sobre os cursos de inglês oferecidos por uma Associação de trabalhadoras do sexo, para que as prostitutas de Belo Horizonte apreendessem inglês, para receber os clientes estrangeiros que viriam durante a Copa do Mundo. Isso provocou um forte impacto, reiterando a relação já existente entre mulheres brasileiras e prostituição. Paralelamente, as matérias que tratam do Brasil em jornais e TVs se alteraram: tratam de investimentos no Brasil, falam da redução das desigualdades ou sobre o crescimento econômico. Este é o marco no qual se situa algo novo, em termos de casamentos entre espanhóis e brasileiros(as). No passado, eram brasileiras e brasileiros que compravam casamentos com espanhóis para obterem visto para permanecer na Europa. Agora, são espanhóis e espanholas que compram casamentos pela internet com brasileiras e Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 281 brasileiros para terem residência no Brasil. E o mais interessante é que há também intercâmbios de casamentos, sem serem mediados por dinheiro, entre espanholas – das elites da Catalunha que procuram vistos para terem acesso a financiamentos do governo brasileiro – e músicos brasileiros que desejam permanecer na Espanha. E esta ideia de troca remete a uma certa equivalência. Então, a meu ver, uma questão em aberto é o alcance da noção de interseccionalidades, para se pensar no deslocamento das categorias de diferenciação que se articulam no âmbito da alteração dos posicionamentos geopolíticos das nacionalidades em jogo. Cristian – Adriana, você mencionou, por exemplo, Brah, Anne Macklintock e Strathern como estudiosas/pesquisadoras que publicaram ou que passaram pelo PAGU. Queria que você falasse um pouco dessa rede de pesquisa internacional, articulada em torno do PAGU; ou seja, se é uma política do Núcleo convidar essas teóricas. Como é que você localiza a participação do PAGU dentro dessa rede de debate? E mais uma perguntinha: O PAGU é a revista sonhada pela juventude? ADRIANA – [risos] na minha interpretação, o PAGU virou algo que é bem mais do que a revista dos sonhos da juventude. Isso tem a ver com o próprio PAGU, mas também com um movimento maravilhoso que o Brasil viveu. O PAGU está fazendo vinte anos de institucionalização; o PAGU e a revista. E estamos planejando um seminário de celebração. Não consigo me lembrar quantos anos tem o CLAM5... Em torno de dez anos, aproximadamente. Talvez um pouquinho mais. O PAGU vinha crescendo. Agora esse momento do nascimento do CLAM, quando recebe muito dinheiro para ativar os estudos sobre sexualidade no Brasil, considero um marco extraordinário. Porque de repente uma série de centros e núcleos de pesquisa no Brasil inteiro passam a intensificar suas conexões, e as redes se ampliam. Fui me dando conta disso, indo para seminários... Não só os pesquisadores, mas os alunos de pós foram se articulando em redes e se conhecendo. Tal processo aconteceu fora do eixo Rio-São Paulo, abrangendo praticamente o país inteiro. Isto tem relação com a inclusão das temáticas vinculadas a gênero e sexualidade nos grandes encontros (ABA, RAM, Fazendo Gênero, ANPOCS, etc.), e também com os encontros menores e direcionados para os estudos sobre sexualidade. Sobretudo, nesta primeira década do século XXI, se abrem caminhos para muitas articulações que também afetaram o PAGU, viabilizando uma intensa circulação de pessoas e de ideias. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 282 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA Nesse contexto, os interesses de pesquisa das integrantes do PAGU e a própria dinâmica de disseminação de conhecimento que se materializa nos Cadernos estimularam as articulações com pesquisadores brasileiros e internacionais. Para mim, a qualidade dos Cadernos PAGU tem relação com nossa própria atividade de pesquisa e nossos esforços de criação de redes de pesquisa; mas ela não pode ser separada do momento florescente para os estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil. Quando esse momento chegou, os Cadernos já eram uma publicação muito bem avaliada em termos do sistema Qualis, mas a extensão do impacto da produção do PAGU deve ser contextualizada. Em relação aos autores estrangeiros, os temos convidado a publicar ou a nos visitar, em função dos interesses e inquietações teóricas dos diferentes pesquisadores. Quando achamos que algo é fundamental para nós e para nossos alunos, e relevante para o campo de estudos, traduzimos e publicamos. Essas traduções têm valor, sobretudo, em termos didáticos. Muito do que traduzimos é material que já trabalhamos em sala de aula. Mariza traduziu muito para trabalhar com os alunos. The Gender of the Gift, por exemplo, foi traduzido para publicação por um tradutor extraordinário que é o André Villalobos, com revisão técnica de Mariza, mas vários capítulos já haviam sido traduzidos, por ela, para trabalhar em sala de aula porque se The Gender of the Gift é difícil em português, em inglês era muito mais difícil. Jania – Talvez seja interessante abrirmos um parêntese para você comentar sobre como chegou a The Gender of the Gift. De certa forma, você apresenta o livro ao público brasileiro com aquela resenha em uma edição dos Cadernos Pagu, de 1994. Você já se interessava pelos trabalhos anteriores da Strathern ou pelas etnografias melanésias? ADRIANA – Ouvi falar do The Gender of the Gift pela primeira vez, por uma excelente professora da Universidade de Brasília (UnB), já aposentada, antropóloga e feminista, Mireya Suárez. Ela fez comentários muito elogiosos sobre esse livro no final dos anos oitenta: “dá uma olhada porque quem estuda gênero hoje vai ter que conhecer esse trabalho”. Encomendei o livro e fui lendo, fui me maravilhando. Levei-o para o PAGU e o lemos durante várias sessões do grupo de estudos. Era difícil de ler; primeiro porque o pensamento e a escrita de Strathern são peculiares. Segundo, porque ela dialoga com uma tradição de pensamento feminista que não é tão difícil de apreender, mas a articula com uma tradição de estudos da melanésia que não conhecíamos. Isso tornava a leitura mais difícil. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 283 Mas, naquele momento, participava do grupo Suely Kofes, uma antropóloga brilhante, com um grande conhecimento teórico, e ajudou muito a “destrinchar” o livro. A resenha saiu das discussões desse grupo, que continuaram depois com Mariza. Ela a convidou para vir à Unicamp e fez algo maravilhoso: organizou um curso exclusivamente sobre o livro. Mariza foi traduzindo cada capítulo, que trabalhou com um excelente grupo de alunos, entre eles, Daniel Simião, hoje professor na UnB e Heloísa Buarque, hoje professora na USP. Há uma bela fotografia da Mariza com essa turma de alunos. Nesse contexto, depois da visita, foi acertada a tradução do livro. Isto que contei é importante para exemplificar algo que considero importante, que é articular nosso debate com discussões que estão sendo levantadas em âmbito internacional. Há aí um contexto que não pode ser ignorado se queremos que nosso trabalho tenha impacto. Cristian – Você está falando da internacionalização, tanto do ponto de vista da avaliação da ciência e tecnologia no País, como da produção intelectual, não é? ADRIANA – Sim. Tudo isso; mas estou falando da importância de difundir o que fazemos aqui. Às vezes, fico chocada com a dificuldade de muitos pesquisadores em articular seus trabalhos com o debate de seu tema de pesquisa em um contexto mais amplo. Tenho falado muito sobre antropologia, porque sou antropóloga e é a disciplina que mais acompanho. A última reunião da ABA, que fizemos em São Paulo sob a gestão de Bela Bianco, foi um dos eventos mais extraordinários que vi na minha vida. Era assim: a PUC lotada, mesa redonda atrás de mesa redonda, uma melhor do que a outra, pessoas de primeiríssimo nível. Era impossível acompanhar tudo. E é uma produção que dificilmente será lida no exterior, principalmente porque ela não é publicada também em inglês. E se isso não é feito, não há reconhecimento no exterior. Assim, a meu ver, há dois aspectos importantes a considerar. Um, é disseminar a excelente produção brasileira fora. E isso é facilitado na articulação em redes de pesquisa. O outro ponto é fazer com que a produção aqui seja menos voltada para dentro e procurar discutir mais em uma perspectiva internacional. No âmbito da produção brasileira – talvez por ser tão grande, tão rica, tão peculiar –, às vezes, as pessoas tendem a priorizar a produção nacional. Valorizar essa produção é importante; mas, muitas vezes, não há um esforço equivalente de considerar o que está sendo discutido no âmbito internacional. Já me deparei com alunos que fizeram trabalhos Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 284 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA extraordinários e que enviam seus resumos para congresso no exterior e não são aceitos porque as questões colocadas estão dialogando apenas com o debate interno, e pouco ou nada com o debate internacional. Então é necessário fazer uma espécie de duplo esforço. Jania – Essa demanda por internacionalização está sendo colocada, inclusive, com certa coercitividade, pelas nossas instituições de avaliação das pós-graduações e de fomento das pesquisas. ADRIANA – Embora tenha falado em favor da internacionalização das questões colocadas em nossos trabalhos, não posso dizer que estou de acordo com os métodos de avaliação da produção entre nós. Às vezes, a avaliação é baseada em indicadores quantitativos, que nem sempre são muito significativos. A meu ver, o importante não é quantos textos você tenha publicado no ano, mas quanta novidade há ali. Seria muito melhor uma avaliação qualitativa, de acordo com a qual se valorizasse, por exemplo, o fato de uma pessoa produzir um único texto no ano, desde que fosse significativo para o conhecimento no campo de estudos. As avaliações atuais não possibilitam isso. A internacionalização a que me refiro diz respeito ao impacto na produção do conhecimento, à articulação de trabalhos fantásticos que são feitos no Brasil com questões que estão sendo debatidas no exterior. Isso requer diálogo e esforço. Nosso empenho em trazer convidados internacionais ao PAGU e em publicá-los nos Cadernos tem relação com isso. Não considero que tenhamos tido muito sucesso na difusão de nossa produção no exterior. Essa disseminação é um movimento mais vagaroso que tem relações, talvez, nem tanto com uma subalternização de nossa produção, mas com a combinação entre dificuldades para escrever em inglês e essa tendência a não considerar de maneira suficiente as discussões internacionais. Acredito tratar-se de algo que possa ser revertido a longo prazo. Tenho esperança de que os nossos trabalhos venham a marcar presença no mapa global da maneira que merecem. Cristian – O que o PAGU projeta para os próximos vinte anos? Será possível falar de uma transição ou mudança geracional no Núcleo? Como você pensa isso? ADRIANA – Se pensamos não apenas nos pesquisadores contratados e associados, mas na rede fantástica que temos de pós-doutorandos e Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI 285 doutorandos, o PAGU tem muito fôlego. Temos pessoas extraordinárias, criativas; vejo os trabalhos dos alunos e dos “pós-docs”, os encontros que eles organizam, os debates são muito ricos. Mas, o futuro do PAGU vai depender muito – tal como ocorre em outros centros de outras universidades brasileiras – da possibilidade de efetivação de novas contratações, possibilitando a fixação de alguns desses jovens talentos, de maneira que possamos ampliar, com eles, as articulações com redes nacionais e internacionais de pesquisa. Cristian – Em relação às novas gerações, que temas você acha que ganharão mais destaque nas pesquisas do PAGU? ADRIANA – Entre os jovens, há muita pesquisa sobre sexualidade, sobre diversidade sexual e também há muito interesse nas articulações entre raça, gênero, geração, classe social e sexualidade, nos mais diversos recortes de pesquisa, como em migrações trasnacionais e em áreas de fronteira. Agora começam a despontar outros interesses como a análise dos novos feminismos, por exemplo. Este é um tema significativo, se pensamos nas novas formas de articulação presentes nos últimos dois ou três anos, tanto no Brasil como no exterior, nas dinâmicas de mobilização política, na “marcha das vadias” e em outras ações que são mobilizadas via internet. As dinâmicas do cuidado, em escala transnacional, também têm chamado muito a atenção. A meu ver, essas são as linhas que se delineiam para o futuro. Há também interesse em outros temas, relacionados à questão dos sentimentos, dos afetos, em diferentes contextos e envolvendo diversas classes sociais e a articulação das emoções com as economias sexuais. São abordagens muito interessantes; considerando, sobretudo que, se olhamos para a produção sobre sexualidade no Brasil, nesses dez ou quinze anos, vemos que ela teve um foco intenso em práticas sexuais, e as dinâmicas do amor articuladas com sexualidade e classe social quase não foram analisadas. Temos alguns alunos se voltando para essas temáticas. Enfim, esse é o panorama que vislumbro e espero que haja mais concursos, e mais vagas para que o PAGU possa continuar expandindo seus trabalhos. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 286 ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA Constitui uma modalidade de projeto de pesquisa financiada NOTAS 1pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), envolvendo o projeto coletivo de um grupo de pesquisa e também pesquisas individuais dos seus integrantes, articuladas entre si e ao projeto geral. 2 Conjunto de leis elaboradas em 2004, em Palermo, adicionais às regulamentações decorrentes da Convenção das Nações Unidas contra a criminalidade transnacional. Fonte: http://www.compromissoeatitude.org.br/protocolo-de-palermo/ 3 Flávia Teixeira do Bonsucesso é autora da tese “Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro no gênero e na sexualidade”, defendida em 2009, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP, orientada por Adriana Piscitelli. 4 Alterações pela L-01215-2009, Parte Especial, Título VI, Dos Crimes contra a Liberdade Sexual. 5 Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos. “Criado em 2002, o Centro é um projeto do Programa de estudos e pesquisas em gênero, sexualidade e saúde, do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição que há muitos anos desenvolve pesquisas em sexualidade, gênero e saúde. A iniciativa integra um projeto internacional que vincula centros congêneres implantados na Ásia, África e EUA”. Fonte: http://www.clam.org.br. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286 Resenhas O PT e a lenda do Boto cor de rosa De: Francisco Uribam Xavier de Holanda O PT e a lenda do Boto cor de rosa. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013. Por: André Haguette Ph.D. Professor Titular em sociologia Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal do Ceará Este livro, O PT e a lenda do Boto cor de rosa, de Francisco Uribam Xavier de Holanda, se junta a vários outros escritos por acadêmicos nos últimos anos sobre o Partido dos Trabalhadores (PT), o governo Lula e o que veio a ser conceituado como lulismo. Citemos quatro, a título de exemplos: Os sentidos do Lulismo. Reforma gradual e pacto conservador, de André Singer, Companhia das Letras, 2012; Lulismo, carisma Pop e cultura anticrítica, de Tales Ab´Saber, Hedra, 2011; Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova classe média brasileira, de Rudá Ricci, Contraponto, 2010; A modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era Lula, de Luiz Werneck Vianna, Contraponto, 2011. Ao explicar o título um tanto esotérico do livro, o autor apresenta o objetivo do ensaio: Ao se construir numa alternativa neodesenvolvimentista ou social-democrata mitigada, o PT tornou-se um partido à oposição. Essa metamorfose me fez resgatar uma crença do povo ribeirinho do Rio Amazonas, a lenda do boto cor de rosa. Conta a lenda... que quando uma moça aparece grávida sem ter contraído matrimônio e sem querer revelar quem é o pai, ela conta para a família que estava à Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293 290 RESENHA beira do rio e que fora seduzida pelo boto cor de rosa, que lhe apareceu na forma de um belo rapaz. O PT, em sua trajetória, é uma moça que nasceu carregando uma estrela vermelha, símbolo do compromisso socialista com os explorados pelo capitalismo, mas que ao decidir entrar a qualquer custo no rio do poder – Palácio do Planalto – ficou grávida de trigêmeos: uma aliança conservadora com os setores mais atrasados da política brasileira, o mensalão e uma gestão social-democrata. Bem, mas se o PT não assume que mudou, fica se escondendo no “me engana que eu gosto”, de quem pode ser a culpa pela sua metamorfose? Só pode ser do boto cor de rosa, ou seja, da sedução do poder capitalista que aparece na forma de dinheiro, cargo, distinção e poder (p. 15). Assim, o autor quer discutir a metamorfose do PT e do Lula, uma vez no poder; Lula, aliás, que aceitou se autocaracterizar de “metamorfose ambulante”. Francisco Uribam confessa: “há tempos venho me propondo a escrever os sentimentos e percepções que tenho sobre o significado moral e político da trajetória do Partido dos Trabalhadores”. Como tantos outros companheiros, Francisco Uribam se desfiliou do PT em 1998, passando de militante convicto e ativo a simpatizante e, finalmente, “a ser um crítico”. Na qualidade de pesquisador, o autor não nega feitos importantes do PT no poder, para os trabalhadores, como o programa Bolsa Família, mas pretende “avaliar se todos esses feitos se portam dentro de uma lógica de construção do Socialismo. Trata-se de avaliar que tipo de projeto de sociedade o PT está construindo”. (p.10). Para executar essa avaliação, o livro se divide em uma Introdução, quatro capítulos e Conclusões. Em quarenta e uma páginas do primeiro capítulo, “Da nascente ao poder”, o autor sobrevoa os embates marcantes da vida política brasileira após a fundação do PT e seu Manifesto de Fundação (candidatura derrotada, ao governo de São Paulo; campanha ‘Diretas já’; Assembleia Nacional Constituinte; eleições para prefeitos e a saga pelo poder, as eleições para a Presidência da República, de 1989, 1994, 1998. 2002). O autor conclui o capítulo recorrendo a Emir Sader: “... A apologia do ‘carisma’ de Lula (...) favoreceu a postura ‘bonapartista’ de Lula, individualizando a campanha, a vitória e o governo. Seus discursos cada vez mais acentuaram o tom individual da empreitada, dispensando o sujeito coletivo do PT e dos trabalhadores” (p. 57). No segundo capítulo, “Do Lula paz e amor à perplexidade”, Francisco Uribam – partindo do documento do Diretório Nacional do PT, de 1999, de três “resoluções sobre o PT e a crise” – mostra que instalado no governo, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293 ANDRÉ HAGUETTE 291 Lula, contrariando as orientações do documento, dá continuidade a políticas de FHC, as quais, na oposição, criticava. Já o “mensalão” põe em xeque o capital ético do PT que tanto ostentou para chegar ao poder. O autor ainda desmonta quatro falácias criadas pelo PT para se proteger contra as críticas dos oposicionistas, afirmando que elas “não suportam um ligeiro confronto com os fatos produzidos por suas práticas no comando administrativo da coisa pública” (p. 91). São elas: “o governo não rouba e não deixa roubar”; “tem gente incomodada com o sucesso do governo Lula”; “existe uma onda de conspiração contra o governo com o intuito de antecipar o debate eleitoral de 2006”; “o governo Lula é um governo republicano”. No terceiro capítulo, “Deixa o homem trabalhar”, o autor argumenta que o governo Lula abandonou o histórico caminho petista dos princípios socialistas e do compromisso com a formação de uma nova cultura política, mesmo reconhecendo o sucesso que o governo Lula obteve com o programa Bolsa Família, complementado por um conjunto de políticas sociais compensatórias. O autor afirma que “a política econômica e social do PT não faz é colocar em risco a dinâmica na qual os ricos (banqueiros, construtores, ruralistas, mineradores e operadores de empresas de serviço) ficam cada vez mais ricos”. No poder, dando prova de cordialidade, “petistas ganharam a confiança dos capitalistas e querem ser como eles: ricos, corruptos e poderosos” (p. 113). Na realidade o que o autor reprocha em Lula é o fato de aproveitar-se da enorme popularidade atingida, e de não ter adotado ações factíveis, tais como: uma reforma agrária profunda; a taxação de impostos para as grandes fortunas; a moralização e a eficiência da coisa pública; uma radicalização da democracia com a criação de esferas públicas que deliberassem sobre parte das políticas públicas; a implementação do orçamento participativo no âmbito da federação; uma ampla política que valorizasse a diversidade cultural e regional; uma ação que limitasse os lucros dos bancos para investir o excedente em políticas públicas de saúde e educação; uma política que limitasse a transferência de lucros das empresas internacionais para o exterior. Ao deixar de aplicar tais políticas socialistas, o governo Lula tomou o rumo de uma socialdemocracia. Pior, neoliberal. Escreve: “Minha tese sobre o PT é a de que alguns setores, que juntamente com Lula, controlam o partido, assumiram não fazer rupturas com o neoliberalismo para se credenciar junto ao sistema financeiro internacional como os melhores condutores da expansão do capital...” (p. 116). Uma vez no poder, diante de uma conjuntura internacional favorável, “o PT passou a incorporar de forma mitigada ou possível o projeto social-democrata abandonado pelos tucanos” (idem). Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293 292 RESENHA Vale destacar que pela primeira vez o autor usa, nesse capítulo, o conceito “lulismo” (p. 106) sem, todavia, dar-lhe a mesma importância que outros comentadores do mesmo fenômeno – a metamorfose do PT sob a liderança de Lula – lhe atribuíram. Os dois governos de Lula teriam abandonado suas teses históricas e características para submeter-se a um novo modo de fazer política e governar, que seria o lulismo. O quarto capítulo, “A crise no Senado: o PT assume a cultura patrimonial”, descreve e discute mais uma desistência dos petistas no poder. Segundo o autor, em vez de romper categoricamente, como anunciavam os sucessivos documentos e programas do partido dos trabalhadores e pregavam seus militantes, os petistas no poder vão dar continuidade ao velho patrimonialismo, promovendo ações vergonhosas como o “mensalão”, a “balcanização” dos cargos públicos e a espetacularização das campanhas políticas. Lula se tornara cúmplice de Sarney e de muitos outros políticos da velha guarda patrimonialista, habitués da política do “toma lá, dá cá” e da “privatização de privilégios” (p. 144). Melancolicamente, em apoio à sua tese, o autor cita Max Weber duas vezes, sem explicitar as devidas referências: “A política sem cultura e sensibilidade moral seria pouco mais do que cobiça privada realizando-se graças aos meios políticos”; e ainda: “o domínio de um grande homem nem sempre é um meio de educação política” (145). Em suma, diante da camisa-de-força que o presidencialismo de coalizão representa, o governo Lula não deu “indicação de nenhuma ação ou esforço deliberado de inibição das práticas patrimoniais, pelo contrário encontramos todo um esforço para sua expansão, esforço que ficou patente nas disputas internas do PT por cargos todas as vezes que o partido ganhava uma fatia do poder” (p. 147). Como dito no início desta resenha, neste livro Francisco Uribam se junta a outros autores que querem entender o PT e Lula no governo, no poder. Muitos, como este, descrevem o afastamento do PT-poder em relação às teses históricas e definidoras do PT-oposição. Daí ter surgido o conceito de lulismo alusivo a uma atuação política diferenciada do PT sob a liderança de Lula, criando uma maneira própria de fazer política e de desfrutar do poder. Creio que a categoria lulismo se manterá por um bom tempo na ciência política brasileira, ao lado de outras como populismo, caudilhismo, etc. Se, como mencionei anteriormente, Francisco Uribam não faz um grande uso do conceito, ele, no entanto, descreve com acuidade as opções, os comportamentos e as políticas de Lula e do PT no poder que os afastaram da opção socialista e os levaram a enveredar por uma “socialdemocracia mitigada”. As análises são baseadas em fatos e ajudam a ter uma atitude Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293 ANDRÉ HAGUETTE 293 crítica – mas não em todo negativa – do período Lula no governo. O autor poderia ter explicitado melhor as diferenças conceituais e políticas que julga existir entre socialismo e socialdemocracia, já que se sabe que esta última foi, historicamente, obra de uma conjunção de partidos, governos e sindicatos socialistas. É evidentemente possível entender e justificar o pouco caso que o autor manifesta pela social democracia brasileira, se é que ela existe de fato. Mas a social democracia europeia e, especificamente, a dos países escandinavos alcançaram para os trabalhadores e as classes médias bem-feitos econômicos, políticos, sociais, culturais, ecológicos e de direitos humanos que podem ser chamados de socialistas. O livro de Francisco Uribam, como mencionado no início desta resenha, se harmoniza muito bem com livros conduzidos academicamente, avaliando e discutindo a trajetória do PT e de seus governos federais sob a liderança de Lula. A leitura é estimulante e provocativa, apresentada em uma linguagem descomplicada, argumentativa e baseada em dados e fatos, como deve ser um trabalho de pesquisador. O livro, todavia, contém muitos erros ortográficos que uma revisão competente teria facilmente eliminado. Recebido para publicação em outubro/2014. Aceita em março/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293 Qual viagem? Enlaces do gozo no subjetivo e no social De: Alexandre Porto Vidal Sérgio Y vai à América São Paulo: Companhia das Letras, 2014. Por: Andréa Borges Leão Doutora. Professora do Departamento de Ciências Sociais Universidade Federal do Ceará. e Alef de Oliveira Lima Estudante do curso de graduação em Ciências Sociais. Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID/Sociologia). Universidade Federal do Ceará. A análise sociológica da obra literária se apresenta permeada por uma série de demandas. Algumas delas se referem aos métodos e possibilidades que se destinam a tratar a literatura como espaço de formalização da experiência social. Com efeito, esta perspectiva circunscreve a cena literária acontextualidades históricas e/ou aos percursos de cada autor. Tudo fica mais complexo quando a obra literária vai além daquilo a que ela mesma se propõe. Ou seja, além de suas dimensões contextualizadas. A obra literária consegue estabelecer outras conexões com as realidades sociais ou psíquicas – quer por meio da inscrição significativa da narrativa dentro da contemporaneidade, quer pela renovação de sua tematização frente ao seu contexto de produção/circulação. A respeito desse conjunto de considerações, trazemos a discussão sobre o livro de Alexandre Vidal Porto, Sérgio Y vai à América (2014). Nele, o autor nos leva a indagar o valor da escuta psicanalítica e as ressonâncias intersubjetivas que Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299 296 RESENHA se apresentam na relação analista-analisado. As novidades das colocações literárias de Vidal Porto consistem em trazer ao texto um deslocamento de posições entre aquele que “classicamente” definiríamos como protagonista e o seu Outro, que tratamos como “protagonizado” ou o sujeito que é descrito. A leitura nos revela que histórias são contadas dentro de histórias. Quando desenhamos trajetórias sobre os percursos do Outro, suas jornadas são, em certa medida, também nossas jornadas. E ainda mais, o conjunto dessa tematização nos mostra em que medida a psicanálise resulta em um intrincado processo de impactos e identificações. Alexandre Vidal Porto é diplomata, nasceu em São Paulo, no ano de 1965. É mestre em Direito pela Universidade de Harvard, e atualmente possui uma coluna no jornal Folha de São Paulo. Em resumo, o livro trata da narrativa de Armando, um renomado psicanalista brasileiro, de meia-idade, que tem o hábito de investigar seus pacientes. Ele crê que: “[...] a velhice precoce é comum entre os psiquiatras. Absorvemos os problemas dos pacientes. Envelhecemos por eles”. O fruto da acumulação de problemas do Outro traduzido como envelhecimento faz todo o sentido ao compreendermos que Armando é o centro do caleidoscópio traçado por Vidal Porto. O psicanalista, à moda de Freud, narra a história de Sérgio Y, um adolescente – de uma família tradicional e bem posicionada socialmente, da cidade de São Paulo – que possui “tudo” materialmente falando, mas que convive psiquicamente com um contragosto, um “mal-estar” estrutural, um incômodo na alma. Sérgio pareceu ao psiquiatra1 um jovem interessante, esclarecido sobre questões de sua existência, mas que sentia uma infelicidade sistemática e constante. A inconformidade com sua condição o levou a procurar ajuda especializada. Armando confessa que se sentiu atraído pela integridade de Sérgio. O garoto havia despertado sua curiosidade. A partir daí, sobressai o enredo condutor da trama, no qual o narrador escuta a narrativa do sujeito do inconsciente, que o leva às origens (genealógicas) do “paciente”. E elas diziam sobre o seu bisavô imigrante, um homem que realizou a fundação de um império comercial. Posterior a isso, Sérgio interrompe as sessões e vai para Nova York. Neste interregno entre a escuta e a viagem, há um deslocamento, uma mudança de posição subjetiva, antes alheia ao desejo e construída pelo gozo2. O desejo vê-se, finalmente, desencaixado do gozo; ele reage ao nível do corpo. E então Y finaliza o tratamento, com esta afirmação: “Dr. Armando, acho que descobri uma maneira de ser feliz”. Não se sabe se foi unicamente o tráfego equívoco construído pela viagem que desalinhou o gozo do desejo. Mas o fato é que, neste aspecto, o narrador-analista tornar-se - ele parece, Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299 ANDRÉA BORGES LEÃO e ALEF DE OLIVEIRA LIMA 297 sentir-se assim - responsável pela guinada do desejo de Sérgio Y, a ponto de se culpar do fato trágico que se avizinhava. O “paciente”, outrora masculino (Sérgio), inicia sua transformação. Desenrolada do gozo surge Sandra. É a operação subjetiva desencadeada no trânsito São Paulo-Nova York. Armando só tem notícias de Sérgio por um encontro ocasional com a mãe de seu outrora analisado, e fica sabendo da sua morte pela internet. O psiquiatra é enredado a seguir os passos de Sandra (Sérgio), operando por ouvir diversas vezes suas falas nas sessões, tentando criar no imaginário seus percursos na mudança subjetiva. Afinal, pergunta-se: em que lugar enlaçado na carne estava Sandra, a ponto de não ser percebida? Sua indagação acessada pelo ego não vislumbrava que é no conjunto de laços sociais reeditados que se fundavam novas inscrições do desejo. Sandra torna-se chef; é uma das alunas mais brilhantes de um curso de culinária em Nova York. Divide apartamento com Laurie Clay, uma estudante filha de pais conservadores. Laurie vive em meio a delírios causados em parte pelo uso de alucinógenos e por algumas crenças religiosas contadas e ditas como “vozes do além”, que seriam, também, “a voz do pai”. O mesmo que dizia ser a “transexualidade, um artifício do demônio”. Laurie Clay joga Sandra da janela para a morte. Assim, Armando é levado a uma jornada de busca pelos rastros de Sérgio Y, tentando desvencilhar-se da culpa. Ele conversa com a psiquiatra americana de Sandra, que o informa sobre a cirurgia de “adequação”. Procura por pistas nos arredores do apartamento de Sandra, faz uma espécie de entrevista com a assassina de Sérgio, seu paciente. Um tanto obsessivo, é assim que resta nosso narrador-psicanalista. Ao fim de sua busca, descansado da obsessão da culpa, percebe que ao invés de “ouvir as respostas é preciso, antes, senti-las”. Desfaz-se a obsessão que caracteriza, até então, a narrativa. O que se percebe ou o que se retira de uma história bem urdida é que ela está em toda parte. Os sujeitos desencaixados do “gozo cotidiano” que lhes comprime o desejo estão para além das regras sociais e por isso passam despercebidos; mas, basta deslocarem-se (mover simbolicamente os corpos) que eles reeditam seus desejos. A narrativa de Alexandre Vidal Porto se presta a esse lugar de “desassossego” simbólico; ele nos leva a dizer do nosso gozo. Quem está preso em cada um de nós? Qual viagem é necessária para fazê-lo vir-a-ser? É tanto pela escrita, como por toda linguagem, sempre desviada e arbitraria, que se conformam e desenformam as subjetividades; não importando se este aspecto é sociológico ou inconsciente, ou mesmo os dois; contanto que nos ofereçam um belo livro para ler ao fim de uma tarde chuvosa e melancólica. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299 298 NOTAS RESENHA 1 Para os fins desta resenha, usam-se como sinônimos os termos psiquiatra e psicanalista, pelo fato de o autor do livro basear-se na tradição psicanalítica dos Estados Unidos. 2 A noção de “gozo”, aqui,se alinha à veiculada na experiência analítica, segundo a qual o gozo não necessariamente tem a ver com prazer e satisfação; e sim com um “excesso insuportável de prazer“ que desencadeia sofrimento. Mais informações, consultar: Uma abordagem sobre o conceito de gozo em psicanálise. Disponível em: http://www2.dbd. puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1012178_2012_cap_3.pdf. Acesso em: 12 de dezembro de 2014. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299 ANDRÉA BORGES LEÃO e ALEF DE OLIVEIRA LIMA BIBLIOGRAFIA 299 ARÁN, Márcia. A transexualidade e a gramática normativa do sistema sexo-gênero. Ágora, Rio de Janeiro, volume IX, número 1, p. 49-63, jan/jul. 2006. CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965. FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930-1936). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. FREUD, Sigmund. Observações sobre um caso de neurose obsessiva[“O homem dos ratos”], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e outros textos. (1909-1910). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. NIETZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou o helenismo e o pessimismo. Tradução de Facó Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. Recebido para publicação em agosto/2014. Aceita em março/2015. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299 Instruções aos autores A REVISTA DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UFC ESTÁ ABERTA A CONTRIBUIÇÕES NA FORMA DE: Artigos de demanda livre – ao receber os trabalhos, a Comissão Editorial verifica se estão de acordo com as normas exigidas para publicação (o não- cumprimento das orientações implicará a interrupção desse processo); analisa a natureza da matéria e sua adequação à política editorial da Revista, e delibera sobre encaminhamentos. Posteriormente, os textos são remetidos para avaliação de pareceristas, garantido o anonimato de autores e consultores. Dossiê temático – a Comissão Editorial solicita aos autores que encaminhem artigos originais, relativos à temática previamente definida, conforme o planejamento da Revista e delibera sobre a sua publicação com base em pareceres. A mesma comissão faz a leitura final, podendo sugerir eventuais ajustes de estrutura e forma para adequá-lo à política editorial da Revista. Eventualmente, a organização do Dossiê temático pode ficar sob a responsabilidade de um editor convidado. Todos os artigos (dossiê e demanda livre) podem sofrer eventuais modificações de forma ou conteúdo pela editora, mas essas serão previamente acordadas com os autores. Uma vez iniciado o processo de composição final da edição, a Revista não aceita acréscimos ou modificações dos autores. Resenhas – podem ser encaminhadas à Revista como demanda livre ou por convite. Considerando a temática, a qualidade da redação e a atualidade do texto, a Comissão Editorial decide quanto à sua publicação. Os artigos são de inteira responsabilidade de seus autores e a sua publicação não exprime endosso do Conselho Editorial ou da Comissão às suas afirmações. Os textos não serão devolvidos aos autores e, somente após sua revisão (quando for o caso) e aceitação final, será indicado em que número cada um será publicado. Cada autor receberá dois exemplares da respectiva edição. Situações que possam estabelecer conflito de interesses de autores e revisores devem ser esclarecidas. Por conflito de interesses se entende toda situação em que um indivíduo é levado a fazer julgamento ou tomar uma decisão da qual ele próprio possa tirar proveito direto ou indireto. No caso de haver restrições de financiadores e patrocínio de pesquisas, ou de co-autorias e de participações nas pesquisas que deram origem ao texto, o primeiro autor deve trazer autorizações explicitas que garantam a publicação. No caso dos avaliadores, estes devem indicar explicita mente situações que possam resultar em benefício a ele ou a colaborador próximo; ou situações de potenciais conflitos de interesses relativos ao texto em análise. Todos os direitos autorais dos artigos publicados são reservados à Revista, sendo permitida, no entanto, sua reprodução com a devida citação da fonte. 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O autor deve compatibilizar as citações com as referências bibliográficas. Palavras em outros idiomas, nomes de partidos, empresas etc deverão ser escritos em itálico. FORMAS DE CITAÇÃO As citações que não ultrapassarem 3 linhas devem permanecer no corpo do texto. As citações de mais de 3 linhas devem apresentar recuo da margem esquerda de 4cm, espaçamento simples, sem a utilização de aspas, justificado e com fonte menor que a do corpo do texto. As referências bibliográficas no interior do texto deverão seguir a forma (Autor, ano) ou (Autor, ano, página) quando a citação for literal (neste caso, usam-se aspas): (BARBOSA, 1964) ou (BARBOSA, 1963, p. 35-36). Quando a citação imediatamente posterior se referir ao mesmo autor e/ou obra, devem-se utilizar entre parênteses as fórmulas (Idem, p. tal) ou (Idem, ibidem quando a página for a mesma). Se houver mais de um título do mesmo autor no mesmo ano, deve- se diferenciar por uma letra após a data: (CORREIA, 1993a), (CORREIA, 1993b). Caso o autor citado faça parte da oração, a referência bibliográfica deve ser feita da seguinte maneira: Wolf (1959, p. 33-37) afirma que... Citações que venham acompanhadas de comentários e informações complementares devem ser colocadas como nota. INSTRUÇÕES AOS AUTORES FORMATO DAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas (ou bibliografia) seguem a ordem alfabética pelo sobrenome do autor. Devem conter todas as obras citadas, obedecer às normas da ABNT (NBR 6023/ 2002), orientando-se pelos seguintes critérios: Livro: sobrenome em maiúsculas, nome. Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano. Exemplo: HABERMAS, Jüngen. Dialética e hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987. Livro de vários autores (acima de 3): sobrenome em maiúsculas, nome et al. Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano. Exemplo: QUINTANEIRO, Tania et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1990. Obs: até três autores deve-se fazer a referência com os nomes dos três. Artigo em coletânea organizada por outro autor: sobrenome do autor do artigo em maiúsculas, nome. Título do artigo, seguido da expressão In: e da referência completa da coletânea, após o nome do organizador, ao final da mesma deve-se informar o número das páginas do artigo. Exemplo: MATOS, Olgária. Desejos de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin, in: NOVAES, A. (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 157-287. Artigo em periódico: sobrenome do autor em maiúsculas, nome. Título do artigo sem destaque. Nome do periódico em negrito, local de publicação, número da edição (volume da edição e /ou ano), 1a e última numeração das páginas, mês abreviado, seguido de ponto final e do ano em que o exemplar foi publicado. Exemplo: VILHENA, Luís Rodolfo. Os intelectuais regionais. Os estudos de folclore e o campo das Ciências Sociais nos anos 50. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, n. 32, ano 2, p.125-149, jun.1996. Obras online: sobrenome do autor (se houver) em maiúsculas, seguido de Nome. Título da obra (reportagem, artigo) destacado. Logo após virá o endereço eletrônico entre os sinais < >, precedido pela expressão “Disponível em”. Após o endereço eletrônico (site) deverá vir a expressão “Acesso em”: dia do acesso, mês abreviado. Ano. EXEMPLOS: LIVRO BALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Disponível em: <http:// www. terra. com.br.htm>. Acesso em: 20 ago. 2009. Periódico em meio eletrônico GUIMARÃES, Nadeja. Por uma sociologia do desemprego. Rev. Bras. Ci. Soc*., São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010. Disponível em: <http://www. Scielo.br/scielo. php?script>. Acesso em: 11 mar. 2011. Jornal em meio eletrônico * Sem o nome do autor. Quando a matéria não informa o autor, iniciamos pelo título. TSUNAMI no Japão. O Povo online, Fortaleza, 11mar. 2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011. * Com o autor BRÁS, Janaína. Fraternidade: campanha discute proteção à natureza. O povo online, 11mar.2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011. Departamento de Ciências Sociais Programa de Pós-Graduação em Sociologia