Revista de Ciências Sociais - Universidade Federal do Ceará

Transcrição

Revista de Ciências Sociais - Universidade Federal do Ceará
Universidade Federal do Ceará - UFC
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia
Revista de
Ciências Sociais
A cidade como campo de pesquisa
ISSN.BL 0041-8862. Fortaleza, v. 46, n. 1, p. 01 - 300, jan./jun., 2015
ISSN, v. eletrônica 2318-4620. Fortaleza, v. 46, n. 1, p. 01 - 300, jan./dez., 2015
Ficha Catalográfica
Revista de Ciências Sociais – periódico do Departamento
de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da Universidade Federal do Ceará – UFC
n. 1 (1970) – Fortaleza, UFC, 2015
Semestral
ISSN.BL. 0041- 8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
1. Cidade; 2. Pesquisa; 3. Intervenções urbanas.
I- Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades
Comissão Editorial
Edição
Eduardo Diatahy Bezerra de
Menezes, Antônio Cristian
Saraiva Paiva, Isabelle Braz
Peixoto da Silva, Irlys Alencar
Firmo Barreira e Jakson Alves
Aquino.
Projeto gráfico:
Vibri Design & Branding
Conselho Editorial
Revista de Ciências Sociais
Volume 46 – número 1 - 2015
Publicação do Departamento
de Ciências Sociais e do
Programa de Pós-Graduação
em Sociologia do Centro de
Humanidades da Universidade
Federal do Ceará
Membro da International
Sociological Association (ISA)
ISSN.BL 0041-8862
ISSN, v. eletrônica 2318-4620
Bela Feldman-Bianco
(UNICAMP), Boaventura de
Sousa Santos (Universidade
de Coimbra), Céli Regina
Jardim Pinto (UFRGS), César
Barreira (UFC), Fernanda Sobral
(UnB), François Laplantine
(Universidade de Lyon 2), Inaiá
Maria Moreira de Carvalho
(UFBA), Jawdat Abu-El-Haj
(UFC), João Pacheco de
Oliveira (UFRJ), José Machado
Pais (ICS, Universidade de
Lisboa), Linda Maria de Pontes
Gondim (UFC), Lucio Oliver
Costilla (UNAM), Luiz Felipe
Baeta Neves (UERJ), Manfredo
Oliveira (UFC), Maria Helena
Vilas Boas Concone (PUC-SP),
Moacir Palmeira (UFRJ), Ruben
George Oliven (UFRGS), Ralph
Della Cava (ILAS), Ronald H.
Chilcote (Universidade da
Califórnia), VéroniqueNahoumGrappe (CNRS).
Editoração eletrônica:
Organização:
Irlys Alencar Firmo Barreira
Revisão: Sulamita Vieira
Endereço para
correspondência
Revista de Ciências Sociais
Departamento de Ciências
Sociais
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Universidade Federal do Ceará
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Publicação semestral
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Sumário
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46
n. 1, 2015
// DOSSIÊ: A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA
11
A cidade como campo de pesquisa (apresentação)
Irlys Alencar Firmo Barreira
15
Cidade: produção de espaços, formas de controle e conflitos
Vera da Silva Telles
43
Entre cidades materiais e digitais: esboços de uma etnografia
dos fluxos da arte urbana em Lisboa
Glória Diógenes
69
Identificação e reutilização do patrimônio no processo de
reinvenção das cidades: uma reflexão a partir da cidade de
Almada
Roselane Gomes Bezerra
93
Tempo, usos e rituais: intervenções patrimoniais em um “centro
histórico”
Francisco Willams Ribeiro Lopes e Irlys Alencar Firmo Barreira
119
Etnografia de uma cidade redesenhada pela pichação/grafitti
Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé e Rodrigo Nathan
Romanus Dantas
// ARTIGOS
143
Trajetórias de vida do lixo: a interface entre meio ambiente,
pobreza e empoderamento no município de Santa Maria-RS, Brasil
João Vicente Costa Lima e Isabel Padoin
165
As relações entre jovens infratores e a Polícia sob a ótica das
lógicas penais, policiais e territoriais
Géraldine Bugnon e Dominique Duprez
199
Os “estabelecidos e os outsiders” da Sulanca no Agreste
pernambucano
Annahid Burnett
221
Empregos verdes e sustentabilidade: tendências e desafios no
Brasil
Valério Vitor Bonelli e Noêmia Lazzareschi
243
A organicidade da flexibilização: representações, discursos e
memórias no âmbito do trabalho
Roney Gusmão do Carmo e Ana Elizabeth Santos Alves
// ENTREVISTA
261
Entre Jóias de família, Trânsitos internacionais e a Praia de
Iracema: uma instigante trajetória de pesquisa
Adriana Piscitelli
// RESENHAS
289
Xavier, Uribam. O PT e a lenda do Boto cor de rosa
André Haguette
295
Vidal, Alexandre Porto. Sérgio Y. vai à América
Andréa Borges Leão e Alef de Oliveira Lima
Contents
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46
n. 1, 2015
// DOSSIER: THE CITY AS A RESEARCH FIELD
11
The city as a research field (presentation)
Irlys Alencar Firmo Barreira
15
City: spatial production, forms of control and conflicts
Vera da Silva Telles
43
Between material and digital cities: outlines of an ethnography of
the urban art flows in Lisbon
Glória Diógenes
69
Identification and reuse of patrimony in the process of
reinventing of cities: a reflection from the city of Almada
Roselane Gomes Bezerra
93
Time, uses and rituals: heritage interventions in an “historic area”
Francisco Willams Ribeiro Lopes and Irlys Alencar Firmo Barreira
119
Ethnography of a city redesigned by graffiti
Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé and Rodrigo Nathan
Romanus Dantas
// ARTICLES
143
Life path of garbage: the interface between environment,
poverty and empowerment in the city of Santa Maria – RS, Brazil
João Vicente Costa Lima and Isabel Padoin
165
Relations between young offenders and the police from the
perspective of criminal logical, police and territorial
Géraldine Bugnon and Dominique Duprez
199
The “established and outsiders” of Sulanca in Pernambuco
Agreste
Annahid Burnett
221
Green Jobs and sustainability: trends and challenges in
Brazil
Valério Vitor Bonelli and Noêmia Lazzareschi
243
The organicity of flexibilization: representations, discourses and
memories in the work
Roney Gusmão do Carmo and Ana Elizabeth Santos Alves
// INTERVIEW
261
Among Family jewels, International transits and Iracema Beach:
an exciting journey of research
Adriana Piscitelli
// REVIEWS
289
Xavier, Uribam. PT and the legend of the pink river dolphin
André Haguette
295
Vidal, Alexandre Porto. Sérgio Y. goesto America
Andréa Borges Leão and Alef de Oliveira Lima
Dossiê:
A CIDADE COMO CAMPO DE
PESQUISA
A cidade como campo de pesquisa
(apresentação)
Pensar a cidade como lugar de investigação do qual brotam muitas possibilidades analíticas de manifestação de relações
sociais constitui o objetivo principal deste dossiê que tomou como
referência empírica cidades brasileiras, estendendo-se também a
estudos feitos em espaços urbanos portugueses como de Lisboa
e Almada. As formas de investigação apresentadas nas diversas
contribuições são variadas, evidenciando as possibilidades
do exercício etnográfico fora de seus marcos convencionais,
assim como as lógicas espaciais de caráter mais estrutural que
acompanham os estudos que se efetivam na cidade.
Uma sociologia espacializada que caracteriza o conjunto dos artigos pensa a cidade tanto do ponto de vista de sua
totalidade, como referindo-se a partes específicas do contexto
urbano nas quais observam-se intervenções materializadas em
projetos ou indisciplinas que atestam o caráter dinâmico dos
usos citadinos. Noções como tensões ou conflitos tornam-se
presentes nos artigos, atestando o princípio da cidade como
projeção de diferentes processos temporais e espaciais.
Tendo por base pesquisas recentes, de abordagem sócio
antropológica, o artigo de Vera Telles, que dá início ao dossiê,
busca decifrar como duas linhas de força, provenientes das
lógicas de mercado e das formas de controle, são territorializadas, circunscrevendo campos de tensão e de conflito dotados
de formas e sentidos. A autora explora a mercantilização de
espaços e territórios urbanos com suas formas de controle e
gestão militarizada. O caráter estrutural e ao mesmo tempo
específico dos territórios analisados, circunscritos a São Paulo,
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A CIDADE COMO CAMPO DE PESQUISA (APRESENTAÇÃO)
aponta possibilidades interessantes para se pensar processos mais amplos
de conformação dos espaços que podem ser pesquisados em outras cidades.
Trata-se também de uma perspectiva que, sem eliminar a presença de atores
e suas possibilidades de atuação no contexto urbano, prioriza as negociações
e imposições que formam o tecido das cidades, os lugares de ilegalidade e
suas marcas de tensão entre o vivido e o permitido.
Supondo a ilegalidade menos pela lógica da indisciplina e mais no
âmbito das oportunidades de usos criativos do espaço, o artigo de Glória
Diógenes baseia-se em um estudo etnográfico sobre artes de rua em Lisboa.
Fruto de pesquisa baseada em observação presencial e análise de comunicação em redes sociais, o artigo reflete sobre os desafios e limites de estudos
etnográficos que têm múltiplas conexões com o ciberespaço. A autora tomou
como caso exemplar a trajetória do morador denominado Tinta Crua, e sua
prática de graffiti ilegal na zona histórica de Lisboa. Em suas conclusões,
considera que “o ciberespaço acaba atuando como um palco alargado, um
recipiente amplo, veloz e múltiplo das artes que inundam as paredes, muros
e telas das vitrinas urbanas”.
Uma outra percepção de territorialidade urbana do ponto de vista de
investimentos e projetos de intervenção encontra-se presente na pesquisa
de Roselane Bezerra voltada para entender processos de patrimonialização
na cidade de Almada, Portugal. Trata-se de uma cidade pós-industrial, com
edifícios em ruínas, espaços degradados e instalações da indústria naval
abandonadas na qual projetos de “requalificação” emergem. Partindo da
interpretação dos discursos de arquitetos e gestores nos fóruns de participação, o artigo apresenta sentidos de “qualificação” e usos da cidade presentes
nos projetos de intervenção urbana. Considerando a existência de modos
diferentes de pensar e agir na cidade, apresenta “urbanidades em disputa”,
subjacentes na concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a
vida das pessoas”. As diversas narrativas e planos de intervenção identificados
na pesquisa dão pistas para ampliar o debate sobre políticas urbanas, limites
e possibilidades de “reinvenção” das cidades contemporâneas.
A lógica discursiva de processos patrimoniais encontra-se também
presente no trabalho de Francisco Willams Lopes e Irlys Barreira, analisando
políticas de preservação do patrimônio designadas como “requalificação”, com
ênfase nas intervenções, estratégias e práticas sociais envolvidas nas formas
de intervenção. Tomando projetos realizados na Praça dos Mártires – situada
no centro histórico de Fortaleza, Ceará –, o artigo analisa intervenções feitas
em nome do patrimônio que buscavam a substituição de usuários por meio
de rituais de entretenimento, com objetivos de atrair turistas e moradores
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IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA
de classe média. Os conflitos de natureza social e simbólica decorrentes
do processo de “requalificação” exprimem as dificuldades de imprimir no
local novas formas de sociabilidade, pondo em pauta a questão do tempo,
dos usos e da transformação dos espaços urbanos.
Uma outra lógica de intervenção na cidade advinda não de projetos
emerge de práticas dissonantes exemplificadas na pichação/graffiti. O artigo
de Zulmira Newlands Borges, Laure Garrabé e Rodrigo Nathan Romanus
Dantas analisa tensões, conflitos, disputas e resistências que se efetivam na
construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros na
cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. Os dados, na visão dos autores, indicam “uma grande efervescência semântica em torno da pichação/
graffiti, sendo possível interpretar a cidade como um comum partilhado por
múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente, a
pichação/graffiti como um ponto de encontros discordantes”.
Uma espécie de “cidade pelo avesso” apresenta as múltiplas formas
de uso do espaço urbano, assim como as suas apropriações legais e ilegais.
O conjunto de textos possui em comum as possibilidades de associar
postulados empíricos e teóricos que transitam entre a sociologia e a antropologia. Uma abordagem etnográfica não convencional porque feita no
contexto denso de situações e episódios urbanos permite o entendimento da
cidade em sua diversidade. Diversidade que se encontra presente no trânsito
entre o legal e o ilegal, o planejado e o vivido, a criação e a repetição; enfim,
a cidade em sua feição plural que se apresenta em diferentes contextos e
tempos históricos.
Irlys Alencar Firmo Barreira
(organizadora do dossiê)
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 11-13
Cidade: produção de espaços, formas
de controle e conflitos
Vera da Silva Telles
Professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.
Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS-USP).
Publicações recentes:
- A cidade nas fronteiras do legal e ilegal. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2010.
- Em co-autoria com Christian Azïs e Gabriel Kessler. Ilegalismos, cidade e
política. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2012.
- Em co-autoria com Gabriel Kessler, Dossiê: Ilegalismos na América Latina. Tempo Social, revista de sociologia da USP, volume 22, número 2,
dezembro/2010.
[email protected]
www.veratelles.net
São Paulo, doze milhões e oitocentos mil habitantes (18
milhões na região metropolitana), espalhados em uma superfície
a perder de vista. No correr dos últimos anos, desenhou-se um
cenário muito contrastado, muito heterogêneo, em que, mesmo
os bairros populares, situados nas expansivas periferias urbanas, são muito diferenciados internamente. É um cenário que
torna inoperantes as grades de análise consagradas nos estudos
urbanos, em grande parte regidas pelas noções de segregação
urbana e exclusão social. Não se trata de dizer que os problemas
indicados por essas noções tenham deixado de existir; muito
pelo contrário. Mas, as oposições binárias que essas noções
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
carregam (exclusão-inclusão; dentro e fora, centro e periferia) não mais
dão conta dessas realidades multifacetadas. De uma maneira geral, seria
possível dizer que, nos últimos anos, vem se desenhando novas fronteiras
sociais e territoriais, legais e políticas, seguindo os traços das mudanças engendradas pelos circuitos globalizados da economia urbana, bem como pelas
redefinições dos modos de governo da cidade e seus espaços. É um cenário
desenhado por territorialidades urbanas de contornos incertos, atravessadas
por conflitos e campos de tensão espalhados por todos os lados, mas que
se configuram em torno dos pontos de fricção postos pelas tendências de
uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas e forma de vida,
no seu entrecruzamento com formas de controle e a lógica militarizada de
gestão de espaços e territórios urbanos. Esta é a questão – e hipótese de
trabalho – exposta nas linhas que se seguem.
I
Para bem situar as questões a serem discutidas neste texto, é importante pontuar as inquietações que se colocaram em nossas reflexões sobre
essas configurações urbanas em São Paulo. Quer dizer: os desafios teóricos
e empíricos que se colocaram, e se colocam, para nós no próprio andamento
de nossas pesquisas1.
Se hoje já é lugar comum dizer que nossas categorias de análise estão
sendo desafiadas – aliás, há um bom tempo – por realidades urbanas muito
alteradas em relação a décadas passadas, é justamente essa situação que
nos faz lançar a interrogação quanto ao plano de referência a partir do qual
descrever e colocar sob perspectiva crítica a nossa complicação atual. Como
ponto de partida, diria que esse é um desafio que nos alerta para as armadilhas
de um padrão recorrente, até muito recentemente – e ainda persistente –, de
certa topografia teórica pela qual as cidades do Norte são apresentadas como
modelo e referência, e as cidades do Sul, o lugar de todos os problemas e
incompletudes de uma modernidade (qual mesmo?) posta como referência
normativa. Para usar uma fórmula sintética, o modelo da Cidade Global ao
Norte e, ao Sul, o “Planeta Favela”, para evocar o livro famoso de Mike
Davis, a enormidade de uma distopia urbana em escala global, lócus de todas
as mazelas e desgraças sociais potencializadas ao extremo pelas circunstâncias perversas de uma economia globalizada (DAVIS, 2006). Por certo,
a crítica a esse jogo de espelhos invertidos entre o Norte e o Sul já foi feita
e não é de hoje, mas não basta dizer – ou se confortar a dizer – que agora
“eles” têm que lidar com as mazelas que “nós” conhecemos de longa data
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VERA DA SILVA TELLES
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(pobreza, trabalho precário, economia informal, violência urbana …), pois
aí o jogo de referência continua o mesmo, apesar do espelho trincado. O
problema, digamos, é um certo habitus intelectual-acadêmico pelo qual se
tende a transformar experiências e contextos urbanos em modelos e, no nosso
caso, no campo dos estudos urbanos, tomar a cidade como uma entidade
substantivada. Todavia, é justamente isso que, em pleno século XXI – mas,
desde meados do século passado – é impossível de ser sustentado. A situação
hoje é muito distinta daquela que moveu os fundadores da sociologia das
cidades, definindo a Cidade (sim, com C maiúsculo) a partir de seu oposto
(o rural, a tradição, a comunidade, o vilarejo) e, nesse passo, fazendo dela
um instrumento heurístico para decifrar e nomear um mundo urbano que
emergia em meio às transformações aceleradas daquele início de século, um
operador analítico e normativo para formular, problematizar e projetar o que
então se entendia, ou poderia se entender, por modernização e modernidade,
urbanidade e civilidade.
Outros tempos, outros contextos polêmicos, outros contextos semânticos. Hoje, no cenário de uma urbanização planetária, a cidade perdeu o seu
duplo ou, para falar em termos mais precisos, perdeu o seu Outro ontológico
a partir do qual ela poderia ser definida como cifra de uma modernidade que
então se colocava como questão, como problema, como projeto (BRENNER,
2013; FARIAS, 2010). Como diz Brenner (2013), o problema empírico e
teórico a ser hoje enfrentado é identificar os processos socioespaciais históricos que produzem o caráter urbano dos lugares e engendram as paisagens
heterogêneas do capitalismo contemporâneo. Ao invés de tomar a cidade
como objeto estável e definido, propõe Farias (2010), trata-se de investigar
os agenciamentos urbanos a partir dos quais os espaços, seus artefatos, suas
redes e trama de relações são produzidos em lugares concretos da prática
urbana e, por essa via, identificar e trabalhar teoricamente a emergência
das situações e circunstâncias que constroem o nosso próprio presente.
Conforme Ananya Roy (2009b), será preciso construir novas geografias
teóricas, que se alimentam das questões tais como estas se configuram nos
modos diferenciados de produção dos espaços urbanos, nas diversas “áreas
geográficas”, tomadas estas como “áreas epistêmicas” a partir das quais as
questões são formuladas e problematizadas. São essas questões que, apoiadas em contextos situados de problematizações – em diálogo umas com as
outras –, podem nos oferecer um jogo de referências que permita trabalhar
as transversalidades presentes nas várias cidades e contextos urbanos e, por
essa via, nesse jogo cruzado de referências, entregar pistas para deslindar os
problemas postos nos cenários urbanos, ao Norte e ao Sul.
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
Lidar com essas questões na prática da pesquisa urbana não é propriamente uma questão simples, em particular para aqueles que, como eu,
praticam o que se poderia chamar de socioantropologia urbana. O risco é cair
em algo como um caleidoscópio de situações e contextos urbanos. O fato é
que, nos últimos anos, vêm sendo desenvolvidas pesquisas sobre temas os
mais diversos: tráfico de drogas e seus modos de territorialização nos bairros
populares; formas de criminalidade e seus nexos com os vários ilegalismos
incrustados na vida urbana; comércio ambulante e suas territorialidades; habitação popular e os conflitos abertos nas várias e vastas regiões de ocupação
irregular; novas formas de ativismo social e suas ambivalentes relações com
o chamado empreendedorismo popular, hoje moeda corrente nos programas
sociais implementados em várias regiões da cidade. O inventário poderia
se prolongar. Algumas questões se impõem: qual o estatuto da informação
que produzimos em nossas pesquisas? Qual o campo de problemas – melhor
dizer: campo de problematizações – que se abre ou pode se abrir em torno ou
a partir de nossas questões de pesquisa? Ainda: qual o jogo de referências a
partir do qual construir os critérios de pertinência e relevância daquilo que
colocamos em forma e fazemos ver no trabalho da escrita etnográfica? Por
certo, não há respostas fechadas, tampouco fórmulas feitas para lidar com
essas perguntas, e longe de mim propor alguma solução prévia para uma
questão que, a rigor, clama e depende do trabalho reflexivo em torno de nossas próprias questões de pesquisa2. Devo dizer que essa é uma inquietação
que nos acompanha desde o início. Nós, eu quero dizer: eu mesma, meus
parceiros de pesquisa e o coletivo de pesquisadores que, desde o início dos
anos 2000, vem se lançando em uma prospecção das tramas da cidade, e
suas veredas. Na verdade, um desassossego com o modo como, muitas vezes
e muito frequentemente, nossas pesquisas e nossos escritos eram (e são)
recebidos por seus leitores (ou ouvintes, no caso de fóruns de debate) – tudo
muito “interessante”, o que é sempre sinal de que nem sempre conseguimos
explicitar as questões que gostaríamos de propor. Ou, talvez, as questões
não estavam (bem) trabalhadas.
Desdobrando o ponto anterior: uma outra ordem de inquietações
pertinente a uma espécie de ponto cego no campo dos estudos urbanos. Ou
seja, simultaneamente, temos: as pesquisas que tratam das várias dimensões
da chamada “cidade neoliberal” (alguns anos atrás, o tema recorrente, onipresente, seria o da “cidade global”), trabalhadas sobretudo por geógrafos e
urbanistas, e uma vasta pletora de problemas sociais e urbanos, situados em
seus contextos de referência, sob as lentes de sociólogos e antropólogos. Em
certo sentido, repõe-se aqui a mesma oposição binária comentada antes: de um
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
VERA DA SILVA TELLES
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lado, a produção da cidade-mercado no contexto de economias mundializadas
e, do outro, as consequências perversas da hegemonia dos mercados nos
modos de produção e gestão da cidade e seus espaços. É como se os estudos
de corte socioantropológico fossem destinados a fazer não mais do que a
justa denúncia das desigualdades e violências engendradas pelas mutações
urbanas recentes ou, em suas versões mais pragmáticas, propor programas
de combate à exclusão social e critérios de avaliação de seus resultados.
Se é possível dizer que existe um “ponto cego” no campo dos estudos urbanos, é porque nessa paisagem teórica perde-se de vista muito das
dinâmicas urbanas atuais, pertinentes justamente aos modos pelos quais
os espaços urbanos são produzidos; ou para colocar em outros termos, os
modos pelos quais processos socioespaciais da chamada cidade-mercado se
territorializam em contextos situados, que são também contextos contraditórios, dinâmicos e conflitivos (BRENNER, 2013).
Ainda mais: é um “ponto cego” que nos interdita de pensar e problematizar o estatuto do conflito na produção dos espaços e suas territorialidades.
No entanto, esses espaços são pontilhados por uma situação de conflito que
assume as mais diversas formas, que vem ganhando configurações renovadas nos últimos anos e se multiplicando no cenário urbano atual. Tomo por
referência a metrópole paulista, mas isto não significa que esses fenômenos
lhes sejam exclusivos. Várias são as expressões: queima de ônibus por razões
as mais diversas – um verdadeiro repertório de ações coletivas, que não é
recente, mas cada vez mais recorrente nas periferias urbanas; resistências
e enfrentamentos, por vezes, violentos, nas regiões de ocupação de terras
urbanas e também de edifícios no centro da cidade; lutas contra remoções
forçadas e as chamadas reintegrações de posse; protestos em torno de temas
diversos e muito frequentemente contra a violência policial nas regiões
periféricas da cidade, e também contra a intervenção policial militar nas
chamadas “regiões de risco” habitadas por moradores de rua, usuários de
crack e outros tantos tipos urbanos que circulam nesses lugares. Ao lado de
movimentos por moradia, um verdadeiro mosaico de coletivos e associações
atuantes em torno das mais diversas questões, com notável predominância
da questão da violência policial.
Salvo engano – e posso efetivamente estar enganada –, arriscaria dizer
que o conflito deixou de ser tematizado nos últimos anos pela literatura que
trata da pesquisa social. Seja porque foi colonizada – se me permitem uma
expressão talvez forte demais, ou injusta – pelas teorias dos movimentos
sociais e da ação coletiva, abordando seus tipos, modos e repertórios, mas
deixando de lado a natureza dos conflitos que impulsionam esses movimenRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
tos, além de deixar fora de mira outras tantas manifestações que escapam às
formas e formatos codificados e tipificados pela teoria social. Seja porque
foi deslocada pelo tema pervasivo do Crime Organizado (e da Violência
Urbana, tudo assim, em maiúscula), essas entidades fantasmáticas que se
tornaram clichês explicativos para as turbulências das periferias urbanas.
No entanto, a questão está hoje posta no cenário contemporâneo:
rebeliões e protestos urbanos explodindo no coração das grandes cidades,
desde 2008, ou antes, e que vem alimentando discussões e debates variados.
Não por acaso, o “direito à cidade” é slogan e bandeira dos mais diversos
movimentos e articulações políticas em inúmeras cidades do planeta, além
de ser pauta de inúmeras publicações recentes e fóruns de discussão voltados
ao deciframento dos protestos que vêm explodindo no coração das cidades
globalizadas em diversas regiões do mundo.3
No que diz respeito a São Paulo (e outras cidades brasileiras), se
os conflitos apareciam de forma difusa nos espaços urbanos ao longo dos
últimos anos, processou-se algo com um efeito de condensação em torno
das chamadas “jornadas de junho”, em 2013, e seus desdobramentos nas
manifestações e conflitos em enfrentamentos que acompanharam a preparação e a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014.
Na cartografia política dos protestos e dos pontos sensíveis dos embates e manifestações, podemos seguir os traços, ponto a ponto, de tudo o que
constitui o próprio metabolismo urbano em sua face política e contraditória,
com seus espaços e lugares, estruturas e funções, circuitos e distribuição
de riquezas e seus modos de apropriação. Pudemos ver, aqui, ao vivo e a
cores, uma tese cara a toda uma linhagem de estudos urbanos: a cidade não
é apenas um contexto, uma arena em que os conflitos acontecem; é algo que
está posto no próprio modo como seus espaços e estruturas são produzidos,
geridos e agenciados na dinâmica da acumulação urbana, de produção da
riqueza, modos de circulação e apropriação; as estruturas urbanas, suas
redes, funções, espaços e artefatos são instrumentos e recursos estratégicos
nos processos de acumulação urbana e expansão das fronteiras do mercado
(BRENNER et alli, 2012; HARVEY, 2012). É o que ficou estampado nas
chamadas intervenções urbanas para os preparativos e realização da Copa do
Mundo, os programas ditos de renovação urbana que redesenham os espaços
da cidade e seus lugares, redefinem a distribuição das populações afetadas,
seus circuitos de deslocamento, seus modos de assentamento e seus modos
de habitar, trabalhar e viver na cidade.
Como diz Stephen Graham (2013), o funcionamento das cidades
está inteiramente inscrito e depende de suas redes e aparatos sociotécnicos,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
VERA DA SILVA TELLES
21
entrelaçados com políticas de espaço e o governo da cidade. Daí o poder de
gravitação da questão da mobilidade urbana posta em cena nas “jornadas
de junho”, em 2013: não apenas uma questão de política pública, mas algo
que afeta a dinâmica da cidade, atinge o seu nervo sociopolítico, também
a economia política da cidade e os dramas sociais inscritos nas formas de
segregação acionadas pelo acesso desigual e precário aos recursos da cidade. Adalberto Cardoso (2013) tem razão ao dizer que se o estopim foi o
aumento das tarifas públicas, esse não foi um estopim qualquer. Entra em
ressonância com as fricções e conflitos que vieram se acumulando ao longo
dos anos, colocando em cena as tensões engendradas por uma cidade cada
vez mais privatizada, que obsta o direito à mobilidade, quer dizer: direito
à cidade, ao acesso a seus espaços, bens e recursos. Segundo o autor, não
se trata apenas da precariedade dos transportes públicos, mas, também, de
seus sentidos em uma cidade na qual seus espaços e estruturas são cada vez
mais capturados pela lógica expansiva dos mercados, fazendo do direito
à mobilidade “um resíduo do direito à acumulação capitalista do espaço
urbano (CARDOSO, 2013, p. 26).
Porém, o ponto sensível que fez desencadear a onda de manifestações
por todo o país foi a desmedida repressão que se abateu sobre o que poderia
ser apenas mais uma manifestação (em 13 de junho de 2013) na sequência
de muitas outras que precederam4. Mais do que excessos das forças policiais, são os seus modos operatórios que merecem atenção, na medida em
que deixavam estampado na cena urbana a lógica militarizada da gestão
(ou melhor: da não gestão) dos conflitos e problemas urbanos: junto com
um fortíssimo e pesado aparato de contenção e repressão, os procedimentos
do cerco e ocupação de lugares estratégicos, próprios do que vem sendo
chamado de “guerra urbana”, termo que já faz parte do jargão dos gestores
urbanos. Tal jargão é amplamente utilizado nas formas de intervenção nos
territórios ditos de risco sob o primado da “guerra ao tráfico de drogas” e a
“guerra ao crime” e que, agora, mais recentemente, transborda para as figuras
da “insurgência urbana” associadas aos protestos de rua e movimentos fora
de lugar ou fora dos espaços institucionalizados pelo governo e ordenados
pela racionalidade dos mercados.
Essas cenas se repetiram, nos meses que se seguiram, na repressão às
manifestações que se multiplicaram em protestos contra os descalabros dos
preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil. Lembrando:
miríades de associações e articulações políticas, coletivos e associações de
base, movimentos por moradia e outras formas de ativismo, em protesto
contra a cidade-mercado expressa nas intervenções urbanas que construíram o
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
grande negócio da Copa do Mundo, acompanhadas pelas remoções forçadas
e dispositivos excludentes de uso e acesso aos espaços e vias de circulação,
com a também explosiva exclusão do comércio de rua, dos ambulantes e
outros tantos que habitam, trabalham ou circulam nesses lugares.5
Sendo assim, os protestos não foram quaisquer protestos. Toda a
cidade, em suas dimensões contraditórias, estava cifrada em cada ato e em
cada ponto sensível daquelas manifestações. Para usar uma fórmula sintética – parafraseando Carlos Vainer que, há anos, vem se dedicando a esses
temas –, trata-se de conflitos que encenam a contradição entre a Polis e a
City (VEINER, 2011); ou, na precisa formulação de Laurindo Minhoto, a
contradição entre a cidade como valor de uso e a cidade como valor de troca,
a tensão entre espaços públicos cosmopolitas e os enclaves excludentes dos
lugares de comércio, consumo e negócios; entre o direito à cidade e o direito
funcionalizado por estratégias de governo das populações (MINHOTO, 2014).
Os conflitos e enfrentamentos que se desdobraram ao longo desses
meses nos alertam para a importância de se reter a cidade como plano de
referência, para bem situar os eventos e fricções, e os agenciamentos políticos
postos em ação em seus vários espaços e territórios. Em cada um desses
pontos, as formas de controle e contenção, em seu conjunto, lançam os contornos da cartografia política dos circuitos do mercado e da riqueza urbana.
É isso propriamente que nos coloca o desafio de deslindar os nexos entre a
produção e a expansão dos mercados, as formas de controle e dispositivos de
poder, e a situação de conflito renovada que se espalha por todos os espaços.
São esses cenários conflituosos que me permitem retomar as questões
lançadas no início deste texto e retomar também o “fio da meada”.
II
Nossas hipóteses de trabalho se orientam em torno de duas proposições chaves:
Primeira: ao invés de partir de definições pré-codificadas sobre os territórios nos quais transitamos em nossas pesquisas (“a” favela, “a” periferia,
“as” ocupações), trata-se de perscrutar as lógicas de produção dos espaços
urbanos e os jogos situados de escala, inscritos em cada um dos contextos,
como campos de agenciamentos sociourbanos, de práticas sociais e conflitos.
Definições pré-codificadas, quer dizer: definições jurídicas e normativas próprias das políticas urbanas; definições de senso comum (definições
nativas, como diriam os antropólogos; também as definições construídas
pelas pesquisas urbanas, formuladas em determinados contextos sociais,
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VERA DA SILVA TELLES
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históricos e polêmicos, mas que tendem a ser “essencializadas” no correr
dos tempos (BRENNER, 2013).
Jogos situados de escala, quer dizer: escalas são campos de ação e
intervenção e isso implica jogos de poder e jogos de atores (GROSSETI,
2007). Assim, por exemplo, em um programa dito de urbanização de uma
grande favela, podemos encontrar: representantes dos poderes públicos que
implementam esses programas, agências multilaterais de financiamento;
escritórios de arquitetura de circulação internacional interessados na experimentação urbanística; bancos privados interessados em capturar novos
clientes no hoje expansivo e lucrativo consumo popular; empresas privadas
também em disputa de novos mercados. Simultaneamente, encontramos
também: moradores locais e suas associações; igrejas evangélicas e seus
seguidores; políticos locais e suas clientelas; chefes locais do tráfico de
drogas e suas redes de negócios ilícitos... E ainda: agentes da ordem que
tratam de controlar e policiar condutas e atividades cotidianas, sem esquecer
seus “acertos” com os negócios ilícitos locais ou modos de acomodação e
composição com os jogos de interesses constelados em cada local.
Tudo isso se articula, compõe e se compõe em uma arena de disputas,
negociações, acomodações, acordos e conflitos em torno da distribuição dos
recursos, dos modos e lugares de implementação de serviços e melhorias
urbanas, etc. E é por isso também que, ao olharmos de perto certos programas – esse o trabalho etnográfico –, nos damos conta de que não se trata
propriamente de programas de inserção social, como se diz correntemente,
muitas vezes na linguagem (e gramática) de um discurso edificante. Esses
programas podem ser vistos como dispositivos de expansão das fronteiras
urbanas – e também fronteiras de mercado, como veremos mais à frente.
Quanto aos atores em cena, eles transitam entre essas várias escalas, sabem
mobilizar os recursos materiais e de poder associados a cada uma delas – é
o que se define como jumping scales, para usar um termo corrente entre os
geógrafos urbanos. Mas é isso também que nos dá pistas para qualificarmos
os sentidos dos conflitos que nesses – e em outros lugares – se processam
justamente no cerne dessas relações, tensas e contraditórias, por vezes disparatadas em suas práticas e em seus desdobramentos no tempo e espaço.
Trata-se, portanto, de conflitos inscritos nas formas de produção e gestão
dos espaços, dos ordenamentos urbanos nesses lugares.
Segunda: para escapar do caleidoscópio de situações “interessantes” –
imagem evocada no início – sem cair em generalizações da “cidade-mercado”
no contexto da mundialização, será preciso reter a cidade como plano de
referência, buscando trabalhar as transversalidades e ressonâncias presentes
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
nos diversos espaços e territórios urbanos. E são elas que nos entregam os
traços das linhas de força que atravessam as várias territorialidades urbanas
e em torno das quais os ordenamentos locais são produzidos, negociados e
agenciados em suas formas rotineiras ou conflituosas.
Poderíamos dizer que são duas as linhas de força: de um lado, as lógicas
e circuitos de mercado, e as tendências de uma expansiva mercantilização
dos espaços e territórios, mas também das formas de vida, modos de ser e
habitar a cidade, em seus contextos de referência; de outro, as formas de
controle inscritas na produção de gestão desses espaços.
Esta é a hipótese com a qual estamos trabalhando: se as lógicas de
mercado engendram clivagens, desigualdades, segregações e exclusões, as
formas de controle, nos contextos situados em que operam, terminam por se
constituir em polos de tensão e fricção, que não poucas vezes se desdobram
em modalidades de conflito e enfrentamentos abertos – verdadeiros campos
de gravitação da experiência urbana.
Mas essa é uma hipótese lançada no que se poderia dizer um outro
“ponto cego” dos debates recentes sobre o urbano e que diz respeito a uma
espécie de estranhamento mútuo entre a linhagem de estudos tributários
das sociologias do controle (e da punição) e a de tributários da sociologia
da cidade, por mais que os temas e questões debatidos por uns e outros se
apresentem, crescentemente, nas respectivas pesquisas, ao menos de forma
transversal (BROWN; HERBERT, 2006; GRAHAM, 2010a).
De um lado, os mecanismos de controle e seus modos operatórios se
apresentam, já há algum tempo, cada vez mais, sob formas territorializadas,
situadas, intricadas com a gestão dos espaços e gestão das populações – é o
caso dos chamados controles situacionais, para ficar em um exemplo talvez
o mais evidente –, e que nos faz ver os mecanismos pelos quais o governo
da segurança passa a se confundir com o governo dos espaços (BECKETT;
HERBERT, 2008; BROWN; HERBERT, 2006; COLEMAN, 2004). O fato
é que as dimensões espacializadas e territorializadas dos dispositivos de
controle ganham um lugar cada vez mais importante nos debates atuais.
No entanto, nem sempre essa discussão desdobra-se na direção de uma
problematização mais fina acerca do lugar desses dispositivos espaciais nas
dinâmicas socioeconômicas e políticas da cidade contemporânea (MINHOTO,
2015). De outro lado, no caso dos estudos urbanos, os pesquisadores muitas vezes tratam dos dispositivos de controle e seus aparatos como algo
que aparece como evidências do trabalho de campo, como circunstâncias
de conjunturas ou microconjunturas políticas, sem chegar a conferir um
estatuto a esses mecanismos no desenho da cartografia política da cidade.
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VERA DA SILVA TELLES
E, mais precisamente, o seu lugar na produção das territorialidades urbanas.
A questão, quando muito, aparece de forma alusiva e genérica, sem que se
examinem em profundidade os nexos internos entre formas espacializadas de
controle – inscritas nos espaços e redes urbanas – e as dinâmicas expansivas
do que vem sendo chamado de “cidade neoliberal”, tema onipresente nos
debates atuais no campo dos estudos urbanos: a cidade-mercado, a cidade-negócio, figuras que sinalizam a expansiva mercantilização dos espaços,
dos lugares e artefatos urbanos, também das formas de vida e agenciamentos
do cotidiano, cada vez mais mediados pelas formas mercantis e ativados por
modos de subjetivação regidos pelo ethos do chamado empreendedorismo.
Este é o desafio que se apresenta para nós: deslindar os nexos que
articulam gestão dos espaços, forma de controle e produção dos mercados.
Nossa aposta: a cidade passa a ser um lugar estratégico para entender os
nexos entre produção dos mercados, dispositivos de poder e gestão das
populações – o que também significa dizer, gestão das desigualdades e
segregações consteladas nos espaços da cidade (MINHOTO, 2014)6.
A hipótese a ser trabalhada: os conflitos nos e pelos espaços urbanos
parecem se confundir com ou se desdobrar, cada vez mais, em um conflito
em torno dos ordenamentos sociourbanos e seus dispositivos de poder
(GRAHAM, 2010a). Nesse registro, é toda uma discussão que se abre, pertinente às dimensões conflituosas, ambivalentes e multifacetadas inscritas
na própria produção – negociada, disputada, agenciada – da ordem social
e, mais precisamente, da ordem urbana.
É isso o que eu gostaria de expor na sequência deste texto, seguindo
as linhas de força que atravessam os espaços urbanos e se compõem sob
formas variadas, nos diversos contextos situados da cidade.
III
Sem a pretensão de dar conta de uma questão complexa e intricada,
vale destacar duas facetas pelas quais vem se processando a expansão das
fronteiras do mercado, redefinindo lugares e espaços da cidade.
De um lado, há alguns anos, vem se processando a redefinição dos
espaços urbanos sob o impacto dos chamados programas de renovação ou
revitalização urbana, em áreas ditas deterioradas ou áreas ditas “de risco”:
sejam regiões do centro da cidade, sejam favelas, sejam ainda os assentamentos de ocupação irregular e moradias precárias nas periferias urbanas.
Concretamente, trata-se da expansão ou criação de novas fronteiras urbanas
para os circuitos do mercado. Nos locais em que tais programas são impleRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
mentados, as consequências são conhecidas: deslocamento de populações,
remoções forçadas em áreas de ocupação, moradias precárias e favelas; e
também: reordenamentos locais redefinindo os usos desses espaços, excluindo todos os que parecem ser portadores de condutas indesejáveis ou
à margem dos padrões do que se entende por uma urbanidade regida pela
lógica dos negócios e do consumo. A literatura sobre essa temática é imensa
e são inúmeras as pesquisas que já flagraram e discutiram esses processos
nas várias cidades, ao Sul e ao Norte do planeta. Nos termos da discussão
que aqui nos interessa, bastaria lembrar: nos anos e meses que antecederam
a realização da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, a cartografia das remoções e expulsões corresponde ao circuito da especulação imobiliária e dos
pesados jogos de interesse envolvidos na construção não apenas dos estádios,
mas também dos equipamentos de consumo e serviços que acompanharam
esses projetos. Populações foram deslocadas, assim como foi intensamente
afetada a distribuição do comércio popular e dos trabalhadores ambulantes
nos espaços da cidade. Estamos aqui no coração do que David Harvey chama
de “acumulação por despossessão” (HARVEY, 2004; 2012).
De outro lado, fenômeno mais recente, e ainda a ser bem entendido:
nos ditos territórios da pobreza, vem se dando a promoção do chamado
empresariamento popular, mobilizando toda uma pletora de instrumentos,
mecanismos e mediações e, sobretudo, programas de microcrédito em boa
parte promovidos pelos principais bancos privados do país. Em linhas gerais,
são programas regidos pela agenda do chamado combate à pobreza pelas vias
do mercado. Na prática, trata-se de transformar os “pobres” em operadores
do mercado, empreendedores capazes de transformar as circunstâncias locais
em “oportunidades de mercado”.
Nos lugares em que são implantados, tais programas parecem construir os pontos de conexão desses espaços com os circuitos globalizados da
riqueza urbana. No Rio de Janeiro, como bem enfatizam Tommasi e Velazco
(2013), em seu estudo sobre a Cidade de Deus, ainda sob o impacto da ocupação recente de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP): “a chegada
do Bradesco foi o acontecimento mais significativo depois da ‘pacificação’”
(p. 32), seguida da entrada de operadoras de TV a cabo e de telefonia fixa
e móvel. Na sequência, cursos de empreendedorismo, patrocinados pelo
Sebrae ou agenciados por fundações privadas com recursos transnacionais (a
multinacional americana Chevron e a Fundação Kellogg); multiplicação de
projetos e programas de forte componente pedagógico voltados aos jovens
“promissores”, ancorada em suposto compromisso com a “comunidade” e
concomitante empenho em “vender a marca ‘favela pacificada’ e alavancar
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VERA DA SILVA TELLES
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o empreendedorismo de base comunitária” (p. 39). Sob o prisma de suas
formas de territorialização, os circuitos do mercado se enredam nos programas
sociais, seus operadores e agências financiadoras e tudo isso fica misturado
e embaralhado na trama das relações sociais. Basta fazer o mapa de bens,
valores, produtos e pessoas. É o que as autoras fazem nessa etnografia de
Cidade de Deus: mais do que uma superposição de circuitos (e suas escalas)
é um embaralhamento que, nas situações etnografadas, abre um cenário
marcado, segundo as autoras, por uma verdadeira “dança de papeis”. Nas
palavras de Tommasi e Velazco:
(...) policiais que realizam atividades de educadores ou animadores sociais, oferecendo atividades esportivas, recreativas e de reforço escolar
às crianças; gerentes de banco que funcionam como conselheiros de
negócios e empreendimentos; comerciantes que viram caixa de banco;
líderes comunitários que gerenciam programas de governo; gestores
públicos que transacionam empreendimentos privados (2013, p. 19).
Em tempo: a agência do Bradesco foi aberta em uma casa que é uma
sede da CUFA (Central Única das Favelas), onde também funciona a Associação dos Moradores. Oferecendo apenas serviços de abertura de contas
e financiamento, os caixas foram terceirizados e são operados no interior
das pequenas lojas locais, escolhidas justamente por serem comandadas por
empreendedores “bem sucedidos” e assim avaliados pelo arguto e muito
ativo gerente do banco.
Em São Paulo – na favela Paraisópolis, a segunda maior da cidade –,
Bruna Ramachiotti (2012) encontrou situações equivalentes. Aqui, os circuitos do mercado se enredam e reconfiguram uma densa trama associativa
que vem de longa data, construída por associações de moradores, coletivos
diversos, ONGs, programas sociais e filantrópicos de filiação variada. Nos
últimos anos, a paisagem local foi fortemente impactada pela chegada das
Casas Bahia, a primeira das redes de grandes lojas a chegar a Paraisópolis e
também a primeira experiência dessa empresa em uma favela paulistana. E
os bancos também chegaram, o Bradesco em primeiro lugar e, em seguida,
o Banco do Brasil que inaugura sua agência na sede da União de Moradores,
selando uma parceria voltada à formalização de “empreendedores” a ela
associados. Em meio aos programas de regularização do comércio local e
também dos assentamentos ilegais-informais, multiplicam-se os cursos de
empreendedorismo e “educação financeira”; fundações privadas, empresas e
operadoras de mercado se instalaram na região, seja promovendo seus serviRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
ços e produtos (exemplos: agências de turismo, a Porto Seguro Seguradora,
redes de comércio), seja na forma de parcerias em torno de projetos ditos
de desenvolvimento local, seja ainda na promoção de atividades sociais e
eventos esportivos. Quanto aos projetos de urbanização da favela, Paraisópolis
ganha o mundo e entra no circuito transnacional dos arquitetos e urbanistas
com seus programas e projetos premiados em prestigiosos concursos mundiais. Na prática, em torno dos programas de urbanização da favela e dos
chamados projetos de desenvolvimento local, há uma meada intrincada – e
também embaralhada – de ação de organismos estatais, circuitos de mercado,
programas sociais de base local, parcerias com fundações empresariais na
promoção de atividades e eventos culturais e esportivos, circuitos transnacionais por onde circulam projetos e empreendimentos, também fontes de
financiamento, tudo isso se conjugando para fazer de Paraisópolis um “caso
de sucesso”, celebrado pelos sinais de sua inclusão na “cidade legal”, tanto
quanto pelas competências empreendedoras de seus moradores.
Essa conversão dos “pobres” em empreendedores não é fenômeno
específico de São Paulo, Rio de Janeiro e de outra tantas cidades brasileiras.
É algo que atravessa – e é transversal, sob modulações variadas – diversas
cidades do chamado Sul Global. E esse é também um registro pelo qual se
pode apreender o modo como esses lugares vêm sendo mundializados pelas
vias de programas e organizações sociais conectadas em redes transnacionais, por onde circulam as fontes de financiamento, as ideias e projetos, os
modelos de best practices, consultores e suas pautas de avaliação, categorias,
indicadores, especialidades técnico-sociais, etc. Aparatos de uma governamentalidade transnacional, como sugerem Ferguson e Gupta (2002), que se
territorializam pelas vias de agenciamentos locais. E em cada lugar, o mundo
entrelaçado das parcerias, das organizações sociais, mobilizando, por sua vez,
um elenco de atores os mais diversos e no qual também se fazem presentes
as agências públicas e organismos estatais (FERGUSON; GUPTA, 2002).
É nesse campo ampliado de referências que se situa essa “conversão”
da pobreza em mercado. Como mostra Ananya Roy (2011, 2013), esses programas podem e devem ser vistos como mecanismos pelos quais os territórios
da pobreza – sejam áreas de moradia precária, sejam locais de concentração
do comércio informal – passam a se transfigurar em fronteiras de mercado
e frente de expansão do capital financeiro, contraface das transformações
recentes do capitalismo contemporâneo, acionando dispositivos voltados
ao que as expertises chamam de “base da pirâmide social”: os milhões de
homens e mulheres na mira dos serviços financeiros que articulam bancos
comerciais globalizados (que controlam o acesso ao capital) e as associações
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VERA DA SILVA TELLES
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ditas comunitárias (que têm acesso aos “pobres”). É questão que a autora
discute ao cunhar a expressão poverty capital (2011), mostrando os vários
dispositivos pelos quais o chamado “capital social” é convertido em capital
econômico e ativo financeiro, na própria medida em que a hoje celebrada
capacidade de iniciativa, improvisação e invenção popular é mobilizada
para a criação de situações de mercado. Apresentadas como programas de
erradicação da pobreza, a rigor são formas de intervenção que abrem as vias
para expansão dos mercados: das várias modulações do chamado microcrédito ancorado em associações populares locais, passando pela promoção
do que vem sendo chamado de “capitalismo criativo”, termo inefável que
diz tudo e nada ao mesmo tempo, evocando a dita capacidade de invenção
e criatividade popular (entenda-se como quiser) de aproveitar ou inventar
“oportunidades de mercado”, chegando aos serviços financeiros que se
apresentam sob a formulação altissonante (e tons edificantes) de democratização do crédito voltado à “base da pirâmide social”. Na prática, trata-se
de um esforço no sentido de colocar todas as dimensões da vida social (e
da existência) sob a égide do mercado, convertendo a troca mercantil em
código ético e princípio de conduta. Entre os eventuais e poucos “casos de
sucesso”, resta saber, pergunta-se Roy, se não estamos presenciando mais
um campo de exploração e predação (ROY, 2011, p. 31). E também: outros
tantos domínios de exercício de relações de poder e sujeição, na própria
medida em que essas “oportunidades de mercado” não se efetivam sem
os igualmente renovados dispositivos de disciplina e controle, também de
punição, tal como a autora pode verificar em alguns dos lugares nos quais
realizou sua pesquisa. (ROY, 2011; 2013)
Muito longe da retórica da inclusão social ou sob a retórica da inclusão
social, desenham-se, na verdade, outras dimensões do que David Harvey
(1996) chamou de empresariamento urbano, agora não apenas restrito
aos “circuitos superiores” da Cidade Global, e sim alcançando também
os circuitos do “mundo popular”, do trabalho e da moradia, bem como as
várias dimensões das vidas e dos modos de vida a serem regidos pelo ethos
mercantil (MCFARLANE, 2012). Em outros termos: outras dimensões pelas
quais a cidade se transforma em mercado e seus territórios são disputados
como fronteiras de expansão do capital.
Essas experiências, em curso em várias regiões da cidade, encontram
seu duplo em formas bastante agressivas de intervenção nas regiões de
concentração do chamado comércio de rua: os ambulantes, também eles,
estão na mira de programas e de outras formas de intervenção voltados a
transformá-los em micro empreendedores. Nesse caso, prevalece não tanto
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
a retórica da inclusão social pelas vias do mercado. Na prática, tais iniciativas são regidas pelos imperativos do combate à pirataria e é nessa chave
que, nesses espaços, o chamado combate à informalidade urbana desliza e
se confunde com a “guerra ao crime” associado ao comércio de rua (HIRATA, 2012). Sobretudo no Centro da cidade, os ambulantes praticamente
desapareceram das ruas. Alguns foram bem sucedidos nessa conversão,
saíram das ruas e se instalaram nas inúmeras galerias destinadas ao consumo
popular – em sua maioria, galerias sob controle de comerciantes chineses
(FREIRE, 2014). Os demais, sob a suspeita de práticas agora vistas como
criminosas, sujeitos à repressão pelas forças da ordem, se deslocaram para
outros lugares e outras cidades no entorno da capital.
Concretamente, está em curso uma redefinição dos mercados informais, de seus modos de funcionamento e de seus espaços. No campo de
conflito e disputas que se armam nesses territórios, estão em jogo, a rigor,
as fronteiras do formal-informal, do legal-ilegal. E no centro desse conflito
está o Estado com suas prerrogativas de poder; poder soberano de definir
ou suspender as regras que permitem ou interditam uns e outros de exercer
suas atividades, colocando uns (e não outros) no universo da ordem e da
lei, jogando outros tantos no limbo social e também jurídico, no terreno
incerto entre a ilegalidade e o crime, sob suspeita e sujeitos ao controle e
à repressão. Há toda uma cartografia política do comércio de rua que se
redefine, cujos contornos são cambiantes tanto quanto as regras – formais
e informais, legais e extra legais – que regem o acesso e o funcionamento
desses mercados, ao mesmo tempo em que há uma legião de ambulantes
que, desprovidos de recursos e condições para compor essa intrincada rede
de relações, são expulsos, sujeitos às formas mais agressivas de controle e
repressão, espalhando-se por outros cantos da cidade e, com isso, desenhando
outras territorialidades urbanas a serem ainda conhecidas (e prospectadas).7
Mas isso também significa reconhecer que a “acumulação por despossessão” não se processa apenas pelas vias de expulsão e remoção, na
medida em que a tão celebrada “inclusão pelo mercado” se processa por meio
de dispositivos de governamentalidade de espaço e populações – expressos
na conversão de moradores e trabalhadores em empreendedores –, introduzindo novas clivagens que redefinem o “dentro” e o “fora”, os que portam
credenciais da “inclusão” e todos os demais que escapam, não se adaptam
ou resistem a esses agenciamentos locais, colocados sob suspeita, na mira
de formas de controle e punição ou simplesmente sujeitos à exclusão – e
“despossessão” – de seus lugares de vida e de trabalho (ROY, 2009a; 2013).
Entre deslocamentos e remoções forçadas de populações e os dispositivos de “inclusão” pelas vias do mercado, desenha-se um cenário contrastado
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VERA DA SILVA TELLES
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da cidade, que será preciso prospectar. Daí a exigência de colocarmos a cidade
como plano de referência, para situarmos nossas questões, em particular no
que diz respeito a esses lugares governados pelas lógicas de mercado. Essa
constelação de práticas e dispositivos pelos quais os territórios da pobreza
se transformam em negócio e fronteiras de expansão dos mercados, não se
instala em quaisquer lugares. Se bem que disseminados um pouco por todos
os lados, pode ganhar especial densidade em algumas regiões da cidade.
Sejam os bairros alvo de programas de empresariamento popular; sejam
as regiões de concentração do comércio popular, são territórios urbanos
situados em pontos estratégicos de circulação da riqueza urbana. A favela
Paraisópolis, por exemplo, com seus 90 mil habitantes, está situada no coração do bairro mais rico da cidade (Morumbi) e na estreita proximidade da
região que concentra todos os equipamentos e serviços da “cidade global”
(sede de bancos, empresas de serviços de ponta, escritórios de empresas
multinacionais, equipamentos de consumo de luxo...). No Centro da cidade,
os lugares de concentração do comércio ambulante se situam, por sua vez,
em áreas alvo de amplos e ambiciosos projetos de renovação urbana. Este,
o primeiro ponto.
Segundo ponto: esses lugares sempre foram vistos como espaço-problema, parecendo concentrar todas as patologias associadas à pobreza:
tráfico de drogas, crimes, violência, episódios sucessivos de confrontos com
a Polícia. Não é ocioso dizer que Paraisópolis foi palco da chamada Operação
Saturação, versão paulista menos espetacular (ou menos espetacularizada)
das UPPs no Rio de Janeiro, também elas situadas no cinturão da riqueza
urbana da cidade e também elas transformadas, após a “pacificação”, em
verdadeiros laboratórios da inefável “economia criativa”, alvo de uma ruidosa
(e mediática) celebração das virtudes empreendedoras de seus moradores,
mas que se entrelaçam sob formas variadas com situações e contextos da
vida local nas quais a “guerra ao crime” parece se desdobrar em práticas
e dispositivos de policiamento de condutas e regulação de movimentos,
deslocamentos, pontos de encontros segundo critérios de uma ordem policiada (cf. SILVA, 2010) – ou da “paz armada”, para usar a expressão de
Vera Malagutti Batista (2012).
No centro da cidade, nas regiões de concentração do comércio
informal, em resposta a resistências e protestos dos ambulantes contra a
“despossessão” de seus lugares de trabalho, sucederam-se episódios de
cerco e ocupação. Estes podem ser traduzidos como verdadeiras operações
bélicas com pesadíssimo aparato policial militar, desdobrando-se, depois, na
gestão militarizada dos lugares e atividades: em nome da “guerra à pirataria”
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
e “guerra ao crime” agora associado ao comércio de rua, a fiscalização e o
controle das ruas passaram a ser capitaneados pela Polícia Militar. Isto em
função de um dispositivo administrativo, político, de legalidade duvidosa – a
chamada Operação Delegada – que suspende as circunscrições legais que
definem as atribuições da Polícia Militar, de modo a ampliar o seu espaço de
atuação nesse terreno em que as funções de fiscalização e controle eram de
responsabilidade de outras instâncias administrativas (fiscais da prefeitura)
e de outros órgãos de polícia (Polícia Civil, Guarda Civil Metropolitana)
(HIRATA, 2012).
Por esse prisma, é possível levantar a hipótese da produção e gestão
dos mercados também como dispositivos de gestão da ordem; ou seja, dispositivos pelos quais se tenta transformar as circunstâncias locais (de vida e de
trabalho) em recursos de governamentalização de espaços e suas populações
(ROY, 2009). Na formulação de Sally Merry (2001), trata-se de uma lógica
de produção da ordem não mais centrada na disciplinarização dos indivíduos
(e produção de “corpos dóceis”), mas na gestão das populações por meio
da produção de “espaços governáveis”, e também protegidos contra todos
os que podem ser vistos como ameaça ou portadores de comportamentos
indesejáveis. Em outros termos, o “governo das condutas” ganha formas
espacializadas, ao mesmo tempo em que a gestão desses espaços mobiliza
dispositivos de controle voltados aos “indesejáveis”, figuras inefáveis de
todos os que são vistos como portadores de risco e ameaça a um certo regime
de ordem e segurança.
Nesse plano, é possível apreender os sentidos dessas formas de produção e gestão dos espaços urbanos, nos seus pontos e contrapontos: gestão
dos fluxos urbanos, que são também e, sobretudo, fluxos de mercado; gestão
dos espaços e das circulações, pondo em cena “topologias de poder”, para
usar os termos de Collier (2011), que, sob composições variáveis conforme
lugares e circunstâncias, combinam dispositivos de governamentalidade
(instrumentos políticos e jurídicos – também financeiros – para a conversão
de moradores e ambulantes em microempreendedores) e o uso da coerção
(e violência) para impor as novas regras e o policiamento de condutas, entre
vigilâncias e punição.
Esses espaços e suas localizações nos circuitos de produção e circulação da riqueza urbana são também estratégicos para se entender a lógica
que prima na composição dessas topologias de poder. Para ir direito ao
ponto: nesses lugares, explicitam-se os mecanismos pelos quais a gestão
urbana e a gestão da ordem se fazem sob a égide de princípios securitários,
gestão dos riscos e das emergências, multiplicando as formas de controle e
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VERA DA SILVA TELLES
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os alvos sob suspeita. A gestão dos riscos é o elo que articula, internamente,
a gestão militarizada dos espaços e as tendências, igualmente expansivas,
de práticas policialescas de condutas.
Sabemos que, no Brasil, uma história e uma tradição plasmaram
uma concepção (e prática) militarizada de segurança pública. Uma história
e uma tradição que se atualizam e se redefinem em fina sintonia com o que
vem acontecendo em outras cidades, ao Sul e ao Norte do planeta, sob a
égide da lógica militarizada da gestão urbana. Como diz Stephen Graham
(2010), trata-se de uma crescente colonização do espaço urbano e da vida
cotidiana das cidades pela racionalidade militar – práticas, procedimentos,
agenciamentos regidos pela noção de guerra – guerra urbana – de tal forma
que, como bem nota Minhoto (2012), questões e eventos da ordem cotidiana
de nossas cidades são convertidos em assunto de guerra. Este o ponto de
inflexão e deslocamento importante de ser observado: cada vez mais o governo das cidades e o governo da segurança se entrelaçam e se confundem,
sob o primado de uma gramática bélica, que projeta a cidade como campo
de guerra – é nos seus espaços e artefatos, nas suas redes e em seus circuitos
de deslocamento que se supõem encontrar as evidências de ameaça e risco
à ordem e à segurança (dos mercados, dos negócios, de seus circuitos), fazendo esfumaçar, nesse passo, as diferenças entre crime, protestos de rua e
comportamentos “indesejáveis”; tudo posto sob as figurações da insurgência
e da ameaça real ou potencial à segurança urbana, quer dizer: segurança dos
mercados e dos cidadãos agora transfigurados como operadores de mercado
(consumidores e empreendedores).8
A gestão militarizada dos espaços e territórios urbanos é acompanhada por uma crescente e expansiva “vigilância policialesca” de condutas
e práticas “indesejáveis”, condenáveis não por indicarem alguma infração
legal, mas pelo potencial de risco e ameaça à ordem urbana e ao bem-estar de
suas populações, de que parecem ser portadoras. Como nota Lianos (2001),
essas novas formas de controle, sob a égide da gestão dos riscos, termina
por acarretar um notável deslocamento da lei e das instituições judiciais
como mecanismos de processamento de conflitos e gestão da ordem social.
O que é visto como “desvio” é cada vez mais desconectado de infração (o
crime supõe o sistema de direito) e associado a ameaça. Daí a busca de índices de “desvios” em relação a um padrão de regularidade próprio de um
lugar determinado. Nisso, esfumaça-se a distinção entre o comportamento
legal e o ilegal que, segundo Lianos, abria margens para comportamentos
“não-conformes”, porém, legais: essas margens perdem todo o sentido, na
medida em que, sob figurações do risco, esfumaça-se a diferença entre o
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
“indesejável” e o “ilegal”. Na prática, isso significa uma ampliação extensiva
das situações e tipos urbanos na mira de operações de controle; dos protestos de rua às pequenas violações legais, passando por: comércio informal,
populações de rua, usuários de drogas, jovens barulhentos e inconvenientes,
todos colocados sob o signo do risco e da ameaça à ordem urbana.
IV
Aqui, voltamos ao nosso ponto de partida: os processos e as práticas
pelos quais os espaços são produzidos, pois é disso que se trata nos modos
operatórios dessas formas de controle, entre a lógica militarizada de gestão
urbana e a prática policialesca das condutas.
Essas formas de controle operam em contextos situados e, nesse
sentido, compõem e se compõem com os agenciamentos urbanos pelos
quais os espaços são produzidos como lugares de práticas, de conflitos,
contracondutas, formas surdas ou abertas de resistência, ou acomodações.
As inúmeras etnografias hoje disponíveis sobre as favelas “pacificadas” no
Rio de Janeiro oferecem um arsenal fabuloso de informações (e discussões),
a propósito dos modos como os ordenamentos locais se fazem e refazem
sob o impacto cruzado da ocupação militar e o policiamento de condutas,
circunscrevendo todo um terreno ambivalente, também conflituoso, feito
de acomodações, negociações e resistências, ao mesmo tempo em que os
circuitos dos ilegalismos urbanos – e não só o tráfico de drogas – se deslocam
e se refazem sob novos agenciamentos locais.9
Por esse prisma, as dinâmicas de produção e gestão dos espaços
urbanos se abrem a uma série de questões a serem pontuadas.
Primeiro: nos contextos situados em que as forças da lei e da ordem operam, nada funciona exatamente como posto na racionalidade dos
controles, descrita e tematizada pela literatura: há inversões de sentido, há
“derivas”, há “escamoteamentos”, há linhas de fuga, há formas de resistência ou de contraconduta, para não falar de outras formas de enfrentamento
e protestos organizados. Ou seja, os dispositivos de controle operam em
um campo atravessado pela indeterminação, nas formas não previstas de
composição com outros modos de regulação das relações e conflitos locais,
acertos, negociações, um trânsito constante entre mecanismos formais e
informais, entre dispositivos legais e extralegais, nos modos de regulação
e gestão dos ordenamentos locais, dos microconflitos, disputas, atritos que
pontilham esses lugares. Nesse registro, toda uma discussão se abre não
propriamente para denunciar os excessos e derivas dos aparatos do Estado,
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VERA DA SILVA TELLES
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mas algo mais fundamental e que diz respeito às dimensões conflituosas,
ambivalentes, multifacetadas inscritas na própria produção – negociada,
disputada, agenciada – da ordem social e, no nosso caso, da ordem urbana
e ordenamentos espaciais.
Segundo: sob a lógica do risco, os dispositivos de controle e seus
alvos proliferam, na medida em que o que é posto como risco e ameaça
se expande e se multiplica, conforme o arbítrio das forças da ordem, com
modulações associadas a circunstâncias e microconjunturas políticas. Como
diz Hélène L’Heuillet (2004), em seus modos de agir (e decidir) a Polícia
compõe com as circunstâncias, acasos e tudo o mais que é visto como desordem a ser controlada. Ela age por “delegação de soberania” e é essa a
dimensão de arbitrariedade que lhe permite acionar a violência; também a
violência extralegal sob a cobertura da autoridade que essa soberania lhe
confere (L’HEUILLET, 2004). Na conjunção entre a lógica militarizada
de gestão dos espaços e a vigilância policialesca das condutas, os pontos
de atrito e conflito se multiplicam, na medida em que esses dispositivos de
poder tendem a se confundir com a gestão das vidas e das formas de vida,
com a vida cotidiana e suas circunstâncias.
Terceiro: nos contextos situados em que operam, os modos de intervenção das forças da ordem terminam por embaralhar os sinais da lei e
do extralegal, da ordem e de seu avesso, do “certo” e do “errado”, mesmo
quando se trata de assuntos abertamente concernentes a práticas e condutas
“fora da ordem” (drogas, ocupações, etc.). E isso acontece seja no caso da
violência extralegal (achaques, extorsões, execuções, prisões arbitrárias)
que compõe a história das periferias urbanas (mas não só); seja no caso do
chamado “policiamento desproporcional” (técnicas de “gestão das multidões” próprias da lógica militarizada da gestão urbana) que acompanhou
as manifestações ao longo de 2013 e 2014, mas que é também recurso de
poder (dissuasão, como se diz) em outras circunstâncias; sejam ainda normativas administrativas ou judiciais de legalidade duvidosa, autorizando a
intervenção da PM no combate ao comércio ambulante nas ruas da cidade; o
fechamento de bares e pontos de encontro de jovens nas favelas e periferias
urbanas; o uso da força nas remoções nas regiões de ocupação; a repressão
a condutas insubordinadas em espaços e lugares de circulação da cidade.
Aqui, nesse registro, vemos as vias pelas quais uma história persistente de
arbítrio e violência policial se atualiza e se redefine na própria medida em
que espaços e dispositivos de exceção se multiplicam, já que ativados sob
a lógica da gestão dos riscos e suas urgências.
Não por acaso, vemos hoje o surgimento de modalidades de ativismo
jurídico (advogados ativistas e, sobretudo, defensores públicos), cada vez
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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CIDADE: PRODUÇÃO DE ESPAÇOS, FORMAS DE CONTROLE E CONFLITOS
mais presente nessas arenas conflituosas. Trata-se de formas de ativismo que
operam justamente nesses terrenos incertos entre o direito e a exceção, entre
a lei e o extralegal. As suas formas de atuação em vários destes pontos de
incidência dos dispositivos de “lei e ordem” podem nos dar algo como um
roteiro de um multifacetado campo de disputa que se estrutura na produção
na ordem urbana, entregando as pistas para deslindar as dimensões conflituosas da própria produção da ordem urbana, nos nexos entre dispositivos
legais-institucionais, produção da ordem urbana e conflito.
Finalmente, retomando as primeiras páginas deste texto, essa é questão que remete ao estatuto da informação etnográfica que produzimos em
nossas pesquisas. Aqui, uma hipótese teórico-metodológica a ser trabalhada,
e que diz respeito ao modo de tratar a presença (e o lugar) do Estado e dos
dispositivos legais nos contextos situados em que operam, e que remete ao
que alguns autores vêm propondo nos termos de uma antropologia do Estado
visto pelo ângulo de suas práticas em contextos situados ou, como propõem
Das e Poole (2004), a partir de suas “margens”. Se essa é uma perspectiva
fecunda de análise, será preciso levar a sério o que as autoras (e outros, em
outras chaves teóricas) propõem, quando dizem que é nessas “margens” que
o Estado está redefinindo seus modos de governar e legislar: isso requalifica
as “cenas etnográficas” trabalhadas em nossas pesquisas, postos de observação privilegiadíssimos para entender o modo como ordenamentos sociais
são fabricados no coração dos campos de tensão e disputa que se armam
justamente nos seus pontos de fricção com a lei e o poder.
Menos do que uma conclusão, uma aposta: é nesse registro, dos atritos, fricções e conflitos com a lei e o poder que talvez possamos identificar
as transversalidades e ressonâncias presentes nas diversas territorialidades
urbanas. Um campo de gravitação da experiência urbana, poderíamos
dizer. Nesses conflitos e pontos de atrito que se multiplicam pela cidade,
não se trata apenas de resistências e protesto contra os excessos das forças
da ordem. Trata-se, arriscaríamos dizer (é uma hipótese), de uma disputa
sobre os próprios modos como os ordenamentos urbanos são produzidos e
administrados, afetando os usos dos espaços e seus circuitos, modos de ser,
viver e habitar a cidade; de circular e se apropriar de seus recursos. Talvez,
nessa chave se possam identificar as mútuas ressonâncias entre as manifestações dos anos recentes, comentadas no início deste texto e a situação de
conflito, multifacetada que pontilha os espaços da cidade. Entre uns e outros,
é a vida urbana – e a cidade – que se perfila pelas linhas entrecruzadas de
uma cartografia política desenhada pelas linhas de força que perpassam esses
vários pontos de conflito, atritos e fricções.
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VERA DA SILVA TELLES
NOTAS
37
1 Conjunto de pesquisas que vem sendo desenvolvidas no âmbito
do grupo de pesquisa Cidade e Trabalho, associado ao LAPS,
Laboratório de Pesquisa Social - PPGS, USP.
2 Em outro contexto de discussão, trabalhei essas questões em
Telles, 2013
3 Entre muitos outros, cf. Brenner et alii, 2012. Em artigo recente,
David Harvey (2014) traça paralelos entre as manifestações ocorridas em diversas cidades do mundo, entre elas São Paulo, para
discutir “a crise da urbanização planetária”,.
4 Para uma discussão atenta à dinâmica dessas manifestações,
seguindo a cronologia de suas fases, e desdobramentos, ver
Singer, 2013. Eerdem Yörük (2013), por sua vez, ao traçar paralelos
entre as manifestações no Brasil e Turquia, no mesmo ano de 2013,
nos entrega pistas para discutir os nexos entre a dinâmica dessas
manifestações e os modos de (não) gestão politica dos conflitos
na cena urbana contemporânea.
5 A literatura sobre o lugar dos grandes eventos na economia
política das cidades é imensa e, no nosso caso, são inúmeros
os pesquisadores que trataram de acompanhar e discutir esses
acontecimentos. Vários artigos e coletâneas já estão em circulação,
discutindo os mais diversos aspectos desses eventos e dos conflitos
que os acompanharam - bibliografia já é considerável. Tratar disso
exigiria um outro artigo.
6 Esta questão está no centro de nosso Projeto Temático (Fapesp),
“Gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a
experiência paulista”, 2014-2018. O projeto está disponível no
site www.veratelles.net
7 Trabalhei essas questões em artigo recente. Ver Telles, 2015
8 Impossível discutir aqui as matrizes desse urbanismo militarizado e o modo como seus dispositivos e tecnologias circulam no
mundo contemporâneo. Além do livro já citado de Stephen Graham
(2010), referência obrigatória nessa discussão, ver Bonditti, 2013;
Nasser, 2014, 2015.
9 Vale a consulta do dossiê sobre as UPPs, publicado em dois
números pela revista Dilemas. Cf. Silva; Leite, 2014, 2015
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
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VERA DA SILVA TELLES
Palavras chave:
produção de espaços
urbanos, mercantilização de
espaços e territórios urbanos,
formas de controle e gestão
militarizada de espaços urbanos, conflitos urbanos.
Resumo
Keywords:
production of urban
spaces - commodification of
spaces and urban territories
- militarized forms of control
and management of urban
spaces - urban conflicts.
Abstract
Tomando como referência empírica a cidade de São Paulo,
trata-se de deslindar as lógicas de produção de territorialidade urbanas atravessadas por conflitos e campos de tensão
espalhados por todos os lados, mas que se configuram
em torno de pontos de fricção postos pelas tendências de
uma crescente mercantilização de espaços, lugares, vidas
e formas de vida, no seu entrecruzamento com formas de
controle e a lógica militarizada de gestão dos espaços urbanos. Esta é a hipótese explorada, buscando-se deslindar os
nexos entre a produção e expansão do mercado, as formas
de controle e dispositivos de poder, e uma conflitualidade
renovada, que se expressa sob as mais variadas formas.
Procura-se decifrar como essas duas linhas de força – as
lógicas de mercado e as formas de controle – se territorializam em contextos situados, circunscrevendo campos de
tensão e de conflito, cujas formas e sentidos são colocados
em discussão.
Taking as an empirical reference the city of São Paulo, this
article tries to unravel the various logics through which
the urban territoriality is produced, traversed by conflicts
and strain fields that are everywhere, but are also shaped
around friction points determined by processes of growing
commodification of spaces, places, lives and ways of
life, in its intersection with militarized forms of control
and the logical management of urban spaces. This is the
assumption that we intend to explore in order to unravel
the nexus between production and expansion of markets,
forms of control and power devices, and a renewed conflict,
which is expressed in the most varied forms. We seek to
understand how these two ‘lines of force’, the logic of the
market and forms of control, territorialize in located/situated/placed contexts, circumscribing areas of tension and
conflict, whose forms/shapes and meanings are precisely
what we want to discuss.
Recebido para publicação em abril/2015. Aceito em junho/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 15-41
Entre cidades materiais e digitais:
esboços de uma etnografia dos fluxos
da arte urbana em Lisboa
Glória Diógenes
Doutora em Sociologia. Professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará (UFC). Coordenadora do Laboratório
das Juventudes (Lajus) da UFC e membro-fundadora da Rede Luso-Brasileira
de Pesquisadores em Artes e Intervenções Urbanas (R.A.I.U. Brasil/Portugal).
Estamos nós a fazer nossas próprias caras. A dor na
imagem em si.
(Tinta Crua, o Eduardo)
Fig. 1: Sem identificação
(imagem cortesia do artista da obra, Tinta Crua, 2013)
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67
44
ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
TRAJETÓRIAS DO DESCONTÍNUO: NOTAS SOBRE MODOS DE
FAZER E PENSAR O CAMPO
Perambular por Lisboa prestando atenção a tudo. Deixar a cidade
apossar-se do corpo, como se um e outro conformassem dilatações de paisagens. A etnografia urbana, afora outras abordagens de pesquisa, não tem
hora para começar e quiçá para findar. O primeiro ato é o de tentar livrar-se,
pelo menos temporariamente, das indumentárias que adornam o corpo acerca
das percepções de lugares costumeiros.
Como afirma Agier, “o antropólogo tem necessidade de se emancipar
de qualquer definição normativa e ‘a priori’ da cidade para poder procurar
a sua possibilidade por toda parte, trabalhando para descrever o processo”
(2011, p. 37). O caminho etnográfico é resultante da quantidade de encontros significativos efetuados em campo. Tendo em vista a realização de uma
pesquisa sobre arte urbana, que tenta atravessar as dimensões material e
digital das cidades, criei um blog (diário de campo) (DIÓGENES, 2013g)
com a finalidade não apenas de compartilhar anotações em tempo real, mas
também de facilitar o contato, por meio das redes digitais, com atores da
pesquisa. Em um dos primeiros diários, fiz um registro acerca da natureza
dessa experiência:
Efetua-se uma etnografia atravessada por fluxos, como se ela mesma
fosse uma rede de olhares difusos sobre um mesmo ponto. Ao invés de
seguir uma via da lógica ininterrupta do tempo, da sequência linear de
lugares e etapas a serem cumpridas, o pesquisador desloca-se por meio
das próprias alterações que a investigação promove (DIÓGENES, 2013f).
Os encontros aleatórios com as imagens fincadas nas ruas foram
traduzindo recorrências de um campo que se inicia com a observação e a
contemplação silenciosas. Trata-se de outras formas de interação, que, como
diz Velho, “passam pelo tradicional contato face to face, às mais variadas
e algumas bem recentes, como a virtual, possibilitada pela informática,
computadores, e-mails, etc.” (2009, p. 14). Um campo que muda de lugar.
Esse tipo de interação desprende-se de qualquer pretensão de linearidade. A meu ver, o percurso acaba por explicitar sinuosidades, descontinuidades, interrupções que cadenciam os processos interativos. Como bem
afirma Machado Pais (2007, p. 6), “a reflexividade da modernidade não
actua em condições de certeza progressiva, mas de dúvida metódica”, um
tipo de sociedade que o pesquisador português denomina de “dilemática”.
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GLÓRIA DIÓGENES
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É sob esse prisma do olhar que tanto a arte urbana como a própria
fruição do ato de caminhar na cidade revestem-se de uma interatividade
multissituada, tal qual a dimensão da arte referida por Rancière (Colóquio
internacional, 2012) em uma conferência proferida no Brasil. Esse tipo
de interatividade ativa e descontínua atua sob o compasso de diferentes
dilemas. Por não dispor de um lugar fixo, de princípio, a arte urbana opera
tanto no transeunte como no antropólogo, um efeito da não passividade e da
improvisação.1 Prontamente, as imagens mobilizam olhares, pensamentos,
desejos e projeções.2
Fui, assim, percebendo que a arte urbana, em tese, dispensa mapas,
independe de curadores, galeristas e costuma não prescindir de folders de
visitação. O olhar do caminhante é o vetor de categorização dos traços que
se esquivam nos becos, nos vãos das placas, em molduras de portas e janelas
e do que se apregoa nos espaços de intensa visibilidade pública.
Viandando por Lisboa por oito meses, registrei graffiti, painéis,
pinturas e mais que isso. Estive atenta àquilo que tanto os artistas com os
quais tive contato como instituições governamentais, periódicos, perfis do
facebook, atores que transitam nesse campo constroem acerca do que em
geral consideram ou não arte urbana. Interessa-me, por meio do caso exemplar de Tinta Crua,3 fazer emergir um jogo de classificações que acabou por
interceder nas “minhas passagens” sobre alguns sítios nas ruas de Lisboa.
O que é considerado arte dentro de um contexto urbano e como esse gosto4
ressoa em pontos e linhas do ciberespaço?
Optei por um tipo de observação que, além de transitar entre ambientes, digital e presencial, se compôs por meio de um ato aparentemente
simples: caminhar à cata de imagens. Mais interessante foi perceber, nesses
trajetos, que a arte transita, ao ser apagada das paredes de Lisboa, para
aquilo que Appadurai (1996, p. 45) denomina de “contiguidade eletrônica”.
Observei que, em muitas ocasiões, o intento é fazer a pintura, a colagem,
fotografá-la – e, tendo em vista seu iminente apagamento, tentar eternizá-la
na paisagem digital.5
Curioso notar que, na medida em que me movia pelas ruas de Lisboa,
em que me familiarizava com paredes, muros, ruas e becos, experimentava
a sensação de engate, como se um conjunto de formas, cores e traçados se
revelassem, nítidos, a olhos nus. Certamente, as imagens, mais que meros
artefatos, condensam pensamentos, escritos, memórias que pulsam na direção
de quem as registra e de quem as escuta.
Samain, ao indagar “como pensam as imagens”, lembra que “somos
observadores condicionados tanto pelos nossos modos de ver como pela
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
peculiaridade com que as imagens olham para nós” (2012, p. 16). No âmbito
desse itinerário etnográfico, ao invés de tomar as imagens como simples
registros efetuados num tipo de suporte, de tentar classificá-las dentro de
uma estilística artística, preferi percebê-las na qualidade de “territórios
de memória” (SAMAIN, 2012, p. 22) e produção de sentido acerca das
confluências entre arte e não arte, comumente designada pelos “agentes da
ordem” em Lisboa de vandalismo.
Identifiquei dentro da categoria “arte urbana” todo traçado que, para
além da mera assinatura, tag, designada no Brasil de pichação, desenha um
propósito “pensante”, anunciando mais que um objeto: um processo vivo
(SAMAIN, 2012), um tipo de participação intempestiva na visualidade da
cidade. Falo assim inspirada nas considerações de Agamben (2009) acerca do
“que é o contemporâneo?”. Isso no que tange à participação visual de artistas
urbanos, traduzida num tipo de desconexão, de resistência e distância em relação à arte agenciada nas galerias e museus; embora assinem suas obras nas
ruas, na condição de artistas. Isso ocorre, possivelmente, próximo daquilo que
Rancière denomina de obras não passivas, analogicamente ativas, qual seja,
afora as que são exibidas em “lugar onde visitantes solitários vêm encontrar a
solidão e a passividade de obras despojadas de suas antigas funções de ícones
de fé, de emblemas de poder ou decoração da vida dos Grandes” (2005, p. 2).
A arte urbana inscreve-se no espaço vivo das ruas, no frenesi do tráfego,
no fluxo da energia vital das cidades, lugar de realização e, simultaneamente,
de visualização da obra. Vale ressaltar que não necessariamente por estar
nas ruas a arte está livre da passividade aludida por Rancière, a qual povoa
os museus. Caminhando atentamente por Lisboa, pude facilmente distinguir
murais e intervenções, as promovidas pela Câmara, de outras inscrições que
ocupam paredes devolutas, sítios abandonados, vitrinas de lojas, placas e
escadarias ativados, visivelmente, de forma ilegal.
Para a maior parte dos passantes, não é tarefa fácil discernir os
meandros de uma arte que tem sua vitalidade, no geral, para além das portas
das galerias. O arsenal de imagens disseminado na cidade, curiosamente,
como pude observar, torna-se um texto indecifrável, misturando-se às tantas
outras que riscam a paisagem urbana. Em muitas situações, cruzando as
ruas com a minha pequena câmara, se acompanhada de alguém, descobria
novos registros, e quem estava ao meu lado retorquia: eu nada havia visto.
Diferentemente do meio digital, no geral, as imagens combinadas no
tríplice ato – ver, registrar e compartilhar – ganham existência mais manifesta
e material nos meios digitais. A escritura urbana é, por natureza, polissêmica
e intertextual. Cada leitor acaba enxergando o espectro de imagens que, de
certo modo, povoa o seu mapa mental visual.
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Já no ciberespaço, as imagens circulam quase aos pulos, rizomaticamente (DELEUZE; GUATTARI, 1995); ou seja, não param de se multiplicar,
de se alongar em diferentes planos e de irromper qualquer centro unificado
e unificador. Sendo assim, diferentemente de uma arte situada na cidade,
a de conotação urbana, quando migra para o ciberespaço, por princípio, já
deixa de ser uma; desdobra-se espacialmente, des-localiza-se no tempo e se
apresenta “explícita” diante do olho do internauta. Daí a necessidade que
tem o etnógrafo de tentar dar conta de lógicas não lineares dentro de um
contexto flutuante (CANEVACCI, 2009).
Essa flutuação transpõe, também, o terreno das categorizações acerca
do que é ou não considerado arte no cenário urbano. A retórica da classificação
- se é arte ou não, se é uma tag, um risco, um graffti, um traço, um escrito,
um estêncil, um sticker, se é legal ou ilegal - está, também, interligada ao
espectro do observador. Para além do registro do que vê, o antropólogo que
se movimenta nessas fendas recria um móbile dos ângulos que compõem
o olhar dos atores da pesquisa, refletidos em seu próprio olhar. Cidade e
ciberespaço, mais que distintas conexões espaciais, se combinam em planos
de mútua reflexividade. Isso significa, como bem pontuou Hine em uma
entrevista concedida à Revista da Compós, que
[...] os fenômenos digitais são muito complexos. Existem em múltiplos
espaços, são fragmentados e costumam ser temporalmente complexos.
Não podemos esperar ter uma vivência de um fenômeno assim apenas
“estando presentes ali”, porque não sabemos automaticamente onde é ali,
nem como “estar presentes” [...] Penso que este aspecto da reflexividade
– refletir como sabemos o que sabemos sobre uma situação – provavelmente seja a parte mais significativa da etnografia em ambientes digitais
(BRAGA, 2012, s. p.).
Balizada por essa deriva contingente, antes mesmo de iniciar anotações,
acercar-me do foco de pesquisa, dediquei um tempo, em Lisboa, distinguindo
diferentes semânticas da arte no texto da cidade e correspondentes linhas de
conexão com o ciberespaço. Concordo com Hine: interessou-me bem mais
nesse percurso ir refletindo sobre o que fui sabendo, como fui sabendo, por
meio do diálogo com as imagens, digitais ou presenciais, do que mesmo dar
conta de uma pretensa existência autônoma das imagens.
Situei o perímetro da deambulação etnográfica observante na parte
considerada mais histórica de Lisboa, especificamente partindo do Largo do
Rato, passando pela Bica, Bairro Alto, até o Chiado e a Baixa. Obviamente,
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
acabei deixando fora dos limites da pesquisa sítios como Alfama, Mouraria,
Alcântara e tantos outros. Estabeleci-me por onde costumo caminhar cotidianamente; assim, pude identificar novos registros, apagamentos de traços,
desenhos deixados nas paredes, intervenções legais promovidas pela Câmara
de Lisboa e acrescentamentos às obras efetuados pelo próprio autor ou por
outro graffiter. Não apenas fotografava, observava cada arte destacada nos
percursos urbanos realizados, como buscava, no arquivo pessoal de imagens, saber se se tratava de um único registro, se havia outros com o mesmo
traço e estilo e se era, também, possível identificar os respectivos autores.
Concomitantemente, buscava, como se refere Appadurai (1996), na “tecnopaisagem”, a presença daquele artista e de outros de seus registros urbanos.
Pode-se dizer, depois de um considerável tempo do trajeto etnográfico, que basicamente, no escopo observado, o artista urbano ilegal – afora
as tags – que mais condensa obras nesse espaço histórico de Lisboa é Tinta
Crua. É por meio de seus rastos que seguiremos o emergente debate que
agita, recentemente, alguns atores de Lisboa acerca das fronteiras entre o
legal e o ilegal da arte urbana, o artístico e o vandal, a efemeridade e a conservação das obras. E, como veremos a seguir, essa polêmica tem ressoado
nas redes sociais, principalmente nos perfis dos artistas e no de alguns atores
governamentais que operam diretamente no panorama da arte urbana.
“COLANDO” COM TINTA CRUA
Em 2012, estive rapidamente em Lisboa. Já iniciava no Brasil a
pesquisa acerca das conexões entre arte urbana, graffiti e pichação. Caminhando pelo Chiado, sem ainda saber de quem se tratava, fotografei uma
colagem de Tinta Crua.
Fig. 2: Sem identificação
Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, jun. 2012)
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Consegui encontrar em vitrinas, paredes das principais vias, colagens
alusivas à mesma assinatura. Ao retornar a Lisboa em 2013, já iniciando
a pesquisa do pós-doutorado, deparei-me com outras imagens produzidas
por Tinta Crua.
Fig. 3: Sem identificação
Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, abr. 2013)
Fig. 4: Sem identificação
Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, abr. 2013)
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
Fig. 5: Sem identificação
Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, mar. 2013)
Havia, entre elas, expressões de apelo, pedidos de socorro, alusão
a dor, sangue e silêncio. As primeiras anotações de campo (DIÓGENES,
2013f), efetuadas no mês de março de 2013, sinalizam a minha percepção
acerca da intensidade de uma arte que ocupa, à revelia, o coração de Lisboa:
Tinta Crua, ao contrário de muitos graffiters de arte urbana, atua quase
na totalidade de suas intervenções com colagens. Pouco do que havia
visto antes me parecia semelhante. Sua atuação demanda um olhar mais
atento do observador. Propositalmente, ocupa interstícios, entre espaços
de afixação de avisos, de placas oficiais, de vitrinas de lojas, de letreiros
de publicidade, de postes de iluminação pública, dentre outros sítios.
Ao instalar sua colagem num lugar produtor de compactuado signo
de comunicação urbana, realiza uma transcriação da informação. No
geral, as colagens de Tinta Crua se instalam em espaços onde a vista,
comumente, passa sem se demorar. Nada de destaques extensivos em
muros ou paredes vastas. Tinta Crua provoca a desconstrução da visão
no lugar onde o olho, habitualmente, não vê, ou não se detém e com isso
produz outro exercício de percepção urbana (2013f, s. p.).
Acompanhei uma intervenção realizada pela Galeria de Arte Urbana (GAU6), “Rostos do Muro Azul”, e soube que, pela primeira vez, seria
revelada a identidade oficial de Tinta Crua, até então anônimo. Dirigi-me à
Rua das Murtas e lá, acompanhando a composição do mural (DIÓGENES,
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2013b), conheci Eduardo e, após a finalização do muro, combinamos um
encontro mais demorado. A anotação de campo, como se pode identificar,
em seguida, assinala a ansiedade que marca o encontro com o primeiro
narrador de pesquisa:
Havia marcado com Eduardo, o “Tinta Crua”, às 12:30 horas, dia 18 de
março, na saída do metro da Rua do Salitre, no Largo do Rato. Chovia
brando. Tomei meu chapéu-de-chuva, como aqui se denomina, e posicionei-me na escada de saída do metro. Como já passava um pouco das
12:30 horas, tentei ligar para seu telemóvel (celular) e ouvi apenas a
voz da gravação “o cliente Vodafone o qual ligou, tem nesse momento o
telefone desligado”. Conjecturei se o “Tinta Crua” iria continuar elegendo
o silêncio (DIÓGENES, 2013f, s. p.).
Após um tempo calado, numa prolongada tarde, curiosa acerca das
conexões entre a estética crua da arte de Eduardo e a atual crise de Portugal,
como de parte significativa da Europa, ele diz:
[...] Penso que Portugal vai ficar pior. E com minhas coisas tento falar
isso. Posso dispor as minhas figuras sem escrever aquelas frases, contra
o sistema. Eu tento com minhas figuras, com a expressão que as pessoas
interpretem à sua maneira. Todas essas crises, esse caos todo me sinto na
obrigação de escrever, ser mais óbvio nas coisas que faço (DIÓGENES,
2013e, s. p.).
As figuras de Tinta Crua gritam frases não escritas. Imagens que,
ao dizer o que pensam, põem em movimento outras cadeias de pensamento. Como reforça Saimain, no seu diálogo com Gregory Bateson,
“as imagens nos faz pensar” (2012, p. 22). Percebo que Eduardo, mais
que agradar os que trafegam na cidade, tenta instalar um impacto; aquilo
que Agamben (2012) assinala com o surgimento, na metade do século
XVII na sociedade europeia, do “homem de gosto”, do crítico de arte, do
perito. Ele aponta uma arte que parece ter se distanciado da experiência
do choc decantada pelo poeta francês Baudelaire. Nega-se o espectador
em detrimento do gosto.
Agamben considera que apenas uma destruição nos modos de transmissibilidade da cultura, de valores, poderia restaurar a experiência primordial do choc no coração da arte. Parece ser esse o intento de Tinta Crua
ao continuar, solitariamente, deixando suas marcas no circuito histórico de
Lisboa: apontar a lâmina para um coração que sangra em silêncio.
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
Voltei a encontrar Eduardo por mais três vezes, sendo que no último
encontro acompanhei-o em colagens efetuadas durante a madrugada (DIÓGENES, 2013a). Sobre a minha primeira experiência de observadora de
intervenções urbanas, num terreno minado, sob a espreita da polícia, refleti
acerca da mútua intervenção de Tinta Crua na condição de uma arte ilegal
e de uma antropologia que se esgueira entre brechas:
Eduardo, por mais desvelo estético e virtuosismo artístico que imprima
em suas obras, provavelmente, mais se aproxime do que José Gil [...]
no livro A arte como linguagem vai denominar de “estética das forças”
por oposição a “estética das formas”. O que existe, mesmo que as metáforas circundem as criações de Eduardo, é um lance de metonímia, em
que mais interessa ao artista o efeito do que a obra em si, o apreciador,
mesmo que invisível, do que a apropriação material da obra, o continente
de significados que ela possa fazer abrolhar, do que o invólucro material
daquilo que o artista produz (DIÓGENES, 2013a, s. p.).
Acompanhei os passos de Tinta Crua não apenas face a face: passei a
visitá-lo, quase que diariamente, em sua página do facebook.8 Como veremos
no próximo tópico, o cerco em Lisboa vai, cada vez mais, fechando-se para
a arte considerada ilegal, sem a licença da Câmara Municipal. No dia 9 de
setembro de 2013, Tinta Crua publica uma imagem na sua página e ela faz
eclodir um debate sobre o tema em voga:
Fig. 6: Sem identificação
(imagem cortesia do artista da obra, Tinta Crua, 2013)
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GLÓRIA DIÓGENES
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Eduardo Oaciecnoc Ha... nao vale roubar! Olha 5 minutos para eles e
deixa-os entrar no teu subconsciente e abre-lhes a porta dos teus sonhos
e elas irão dar-te sempre um bom feelling, se as arrancar é mau karma
e a cena já não funciona faço reproduções das coisas que ponho na rua
desde prints a originais pintados a mão é facil ter um Tinta Crua em casa.
Eu ja não colo tanto nem tão ha vista devido a nova lei antigraphitti que
ate colangem proibe, e as equipes de limpeza que apagam tudo. Faço isto
porque me da enorme prazer e é um acto de liberdade plena, onde todos
podem mostrar as suas ideias principalmente aqueles que sao excluidos
pelo sistema. Se quem faz “streeart ilegal” nao conseguir existir, vai-se
extinguir uma linguagem que a streetart legal nao tem devido a filtragem
de artistas e assuntos, so a favor da existencia e coesao das duas, acho
que so se tem a ganhar mas ha quem tenha medo da diversidade cultural.
espero que te tenha convencido “de todos para todos” (DIÓGENES,
2013h, s. p.).
“A cena já não funciona”. Por meio da internet, “é fácil ter um Tinta
Crua em casa”. A “nova lei” antigraphitti proíbe, segundo Eduardo, um
“acto de liberdade plena”.10 Floresce, à revelia, uma arte a favor apenas da
“existência e coesão”. O intento é fechar uma porta para a arte que teme a
diversidade e a sinuosidade da discórdia, do atrito, do desacordo. Qual então
a cena que, ora, funciona?
AGENCIAMENTOS DA CLASSIFICAÇÃO DA ARTE “NO” URBANO
Essa experiência etnográfica me fez concordar, efetivamente, com
Agier, ao dizer que “o campo é construído pelas relações que se pode ter”
(2011, p. 37). Durante esse tempo de andar-vendo paredes, muros, placas,
vitrinas, monumentos, viadutos, observei, fotografei e produzi um arquivo11
acerca da arte urbana em Lisboa.
Logo de início, tomei a decisão de excluir do foco da pesquisa as denominadas tags. Devido ao tempo limitado de inserção nas ruas de Lisboa e
à própria proliferação das tags, decidi voltar a atenção para a ação de alguns
artistas urbanos,12 tendo aqui destacado o caso de Tinta Crua.
Coincidentemente, minha estadia em Lisboa, durante o ano de 2013,
calhou com a promulgação de uma Lei, publicada no jornal Diário de Notícias, no dia primeiro de setembro desse ano, regulamentando a realização
de graffiti em alguns locais, como monumentos e transportes públicos,
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
“prevendo coimas para os infratores que pode chegar a 25 mil euros”,
de acordo com a referida notícia, “como indica o artigo 3 da lei n.º 61 de
23 de agosto [...] compete às câmaras municipais licenciar a inscrição de
grafitos, a picotagem ou a afixação, em locais previamente identificados
pelo requerente” (DNOTÍCIAS.PT, 2013, s. p.).
No encontro de 16 de julho, quando estive com Tinta Crua, antes
da atividade de colagem, conversamos na Avenida da Liberdade acerca
de matéria recém-publicada sobre graffiti na revista Time Out – Lisboa. A
seguir, trecho do registro daquele dia:
Havia lido todo o texto da referida revista e estranhei a não presença,
na matéria publicada, de alguns que são considerados ilegais, mesmo
fazendo arte urbana, como, por exemplo, o caso de Tinta Crua e Dalaima
street art […]. Inclusive, ao lado da página do Facebook da revista Time
Out encontra-se um comentário “impertinente” de Tinta Crua: / Eduardo
Oaciecnoc. Só falta saber se é arte institucional “autorizada” ou a não
autorizada que incomodou tanto o ministro da admin. interna que criou
uma lei para proibir e perseguir quem ousa ser livre na palavra e nos
actos (nem devem fazer referencia a isso), mas ou muito me engano
ou vão falar do básico pop e indolor!!!! se me enganei peço desculpa /
Exatamente o que disse Eduardo, o Tinta, falaram da arte “do básico pop
ou indolor”, não se toca nas querelas das proibições nem, muito menos,
nas multas impetradas aos graffiters ilegais. Conversamos sobre o fato
de sua arte inserir-se numa dimensão fora, qual seja, externa às galerias,
aos museus, às publicidades pops. Além dessa condição off do mercado
da arte, Tinta Crua faz emergir, nas paredes proibidas, imagens de um
país que sofre, cotidianamente, crises e as mais variadas vivências de
exclusão: desemprego, ampliação crescente do número de moradores de
rua, fechamento de estabelecimentos comércios, greves e tantos outros
impasses e conflitos / Na arte de Eduardo, as tintas são derramadas em
cores vivazes, em formas nuas e cruas. Como, por exemplo, o homeless que
ele deixou registrado na Rua do Carmo, já tendo sido dali arrancado
(DIÓGENES, 2013a, s. p.).
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Fig. 7: Sem identificação / Autoria de Tinta Crua (Fotografia da autora, jun. 2013)
Não há concessões nos feitos de Eduardo. Observa-se que, na sua imagem de um homeless man, ao lado do título, há um breve escrito: fuck
the system. Por isso, ao indagá-lo, ainda sentados no quiosque, sobre o
que pretende com a arte ele diz, de forma compassada: ‘que a vejam e
que eu possa causar qualquer coisa em quem passa e vê’ (DIÓGENES,
2013a, s. p.).
Provocar olhares, causar alguma coisa em quem passa e vê: parece ser
exatamente essa a tentativa da Câmara ao escolher temas e liberar paredes
para intervenções de arte; selecionar o que os moradores de Lisboa devem
ver e que tipo de impactos devem receber. No dia 23 de agosto, Tinta Crua
publica uma foto no facebook, surgida de um “rabisco” feito por ele durante
uma aula, e assim mobiliza um diálogo acerca da nova regulação:
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Fig. 8: Sem identificação
Autoria de Tinta Crua (Fotografia de Tinta Crua, 2013)
Como é que vais fazer a partir de agora? Passas a dirigir-te ao GAU-CML
para solicitares autorizações específicas para cada projecto que tenhas
e ficas a aguardar que as aprovem... ou manténs-te na mesma toada?13
Faço menos trabalhos e ponho-os em sítios menos visíveis, não arrisco
tanto, como quando colava nas montras da baixa, também não sei como
funciona isso das licenças.14
Bem, a realidade é que (apesar de ainda não ter lido a nova lei) não sei
até que ponto as colagens estão inseridas no conceito de graffiti. Supostamente, estás à vontade em todos os locais onde se possam afixar cartazes,
não terás necessariamente que te esconder. Mas convém checkar tudo
o que lá vem escrito.15
Atualmente, ao falar sobre arte urbana em Lisboa, necessariamente se
deve considerar não apenas a profusão de imagens e traços na paisagem da
cidade, como a natureza da intervenção local do poder público municipal.
Isso porque, conforme aludido, foi criada pela Câmara Municipal, em 2008,
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a Galeria de Arte Urbana (GAU). Ela surge, inicialmente, devido a um processo de reabilitação do Bairro Alto, que tem, dentre outros objetivos, o de
efetuar limpeza e registro dos graffiti nesse bairro. Segundo Sílvia Câmara,
coordenadora da GAU, a Galeria, mesmo sendo responsável por ações de
limpeza de tags e graffiti, propiciou a criação de um novo espaço onde os
street artists podem fazer suas obras legalmente.16
Em uma entrevista concedida por Sílvia, em outubro de 2012, a um
blog de Lisboa, a coordenadora do projeto tenta definir as distinções e limites
entre a arte urbana e o vandalismo:
Muitas pessoas ainda enxergam a street art com preconceito?
Sim, muita gente acha que é vandalismo e não enxerga arte. Existe
muito preconceito, resistência. Mas este “vandalismo” muitas vezes é
o que torna todo o resto vivo. Porque a street art é um movimento de
questionamento, mudança, uma necessidade de evolução. Então onde
havia um canto escuro e cinzento de repente nasce algo novo, colorido e
que reaviva aquele cenário e o torna muito melhor e atual, valorizando-o
(LUXGOOD, 2012).
Observa-se, nesta entrevista e também no contato presencial com
Sílvia efetuado no início de 2013, a projeção de um limite tênue entre arte
urbana e vandalismo.17 A perspectiva por ela assinalada pode ser assim
condensada: é a natureza “ilegal” da arte que “torna todo o resto vivo”. Nas
palavras de Sílvia, a não “oficialidade” do ato de “pintar a cidade” acaba
por “adrenalizar” ações de uma arte que, por natureza, atua deslocada do
métier artístico: galerias, museus, escolas. Aqui se define o centro de um
paradoxo: como promover “galerias de arte urbana” na cidade de Lisboa,
se a própria criação da GAU tem como propósito classificar as paredes
como ilegais e legais – e, desse modo, disciplinar e, muitas vezes, conter a
adrenalina dos vândalos?
Vários fatores levam a crer – inclusive, atualmente, com a mencionada
radicalização das leis de regulação do graffiti em Lisboa – que a iniciativa
pioneira da GAU de “limpeza” de algumas paredes do Bairro Alto, no início
da criação da Galeria, fez emergir impasses e a necessidade de indicativos
mais precisos de categorização entre arte urbana legal e ilegal.
A Câmara de Lisboa, ao conceder a prerrogativa à GAU de construir
um discurso, um conjunto de regulações e classificações – sobre o que é ou
não é arte, o que é legal ou ilegal, o que é ação de vândalo e o que é ação
autorizada –, acabou por criar uma espécie de curadoria privada da arte pública.
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
Trouxe para fora das instituições de estudo da arte, de cursos de designer de Lisboa, artistas de escola marcados pelo gosto e estética das belas
artes. Provocou uma refração de um tipo de intervenção “desigual”, fora
dos padrões homogeneizadores do que significa fazer arte. Rancière (2011)
refere-se ao risco da difusão de uma igualdade estética, que se interpõe ao
mundo como anteparo a confundir a distinção, a gradual incorporação dos
juízos de gosto.
É essa incorporação gradual dos “juízos de gosto” que acaba por
fomentar na paisagem de Lisboa um curioso fenômeno. O espectador do
urbano termina se vendo, a Si mesmo, como Outro; ele não encontra no
que vê um espelho de si e da sua própria existência. A arte estampada nos
murais espalhados pela cidade, conclamada pela GAU, via edital público,
com a presença seletiva das curadorias, traduz, nas intervenções realizadas
em muros oficiais, uma quase vitrina da arte dos “juízos de gosto”.
Ao viver esse gradual estranhamento (AGAMBEN, 2012), o artista
comum, ilegal, experimenta em seu interior uma dilaceração das vias que
fundem a arte, o criador e a tela da cidade. É nesse terreno cinético que se
“desferrolha” uma etnografia da presença-ausência, de uma arte – como diz
Tinta Crua – que só vale ser arriscada “nos sítios menos visíveis”.
Isso vale, também, para o antropólogo: cruzar – mesmo cidades povoadas de imagens, publicidades, signos de ordenação de trânsito – e catar
– numa fresta qualquer entre o que é apregoado e escondido – o registro
de uma arte que pouco a pouco é banida das telas urbanas. Experimenta-se
entre o presencial e o digital a mais genuína sensação de se observar em
deslocamento. Constituem-se, assim, outros tipos de interatividade, onde
nem a especificidade de um lugar e nem a ordenação de um tempo sucessivo
traduzem configurações de encontros que se efetuam algumas vezes aos
pulos, seguindo vias que contornam os espaços-tempos.
Essa experiência nos levou a refletir sobre o lugar que assume a interatividade nos marcos atuais da antropologia. Trata-se de um outro tipo de
viagem, como afirma Hine18 (2000, p. 45), ao se fazer uma etnografia que
também percorre a internet. Não necessariamente estivemos lá para que o
percurso etnográfico fosse realizado com o mesmo grau de detalhamento e
rigor que permeia as viagens presenciais. A interatividade pode ser plasmada
por ausências, por contatos assincrônicos,19 conectividades efetuadas por meios
técnicos, como links, perfis e dispositivos em redes. Tal qual certifica Zizek,
A interactividade é, obviamente, o grande tema do espaço cibernético.
Com os novos media eletrônicos, tornou-se um lugar comum sublinhar
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que acabou a contemplação passiva de um texto ou de uma obra de arte:
já não me limito a olhar fixamente para o ecrã, interajo progressivamente
com ele (da minha própria escolha dos programas ao facto de influenciar
o desfecho da intriga naquilo que se chamam de “histórias interactivas”,
passando pela minha participação em debates no seio da comunidade
virtual) (2006, p. 14-15).
É assim que visualizo, nas páginas de Tinta Crua, como na de outros
artistas urbanos, um tipo de interação no ciberespaço que denominaria de
“interação mobilizadora”. “Um tipo de mobilização dos coletivos que multiplica os atores, naturezas e sociedades” (LATOUR, 1994, p. 71), fora da
paisagem onde atuam. Tanto a obra transita entre a matéria e os meios digitais
como pode ser alvo de interações online, de compartilhamentos, de interferências de conteúdo, legenda, estabelecendo outra relação espaço-tempo.20
Como ressaltou Hazul Luzah, um dos artistas urbanos narradores
desse percurso etnográfico, “a cidade existe para ser apagada”. A relação
de interação transeunte versus arte, que se dispõe na paisagem, assume um
grau qualquer de fixidez. No ciberespaço, a obra muda de lugar assim como
o movimento que o próprio antropólogo perfaz no dilemático campo.
RASCUNHOS CONCLUSIVOS
No diálogo com Tinta Crua, identifiquei que a tentativa de “limpeza
e apagamento” de graffiti não diz respeito, também, à cidade como um todo.
Em uma de nossas conversas, ele ponderou: “Repare, as equipes de limpeza
antigraffiti andam a limpar, e é claro que não vão limpar os bairros mais
degradados, eles têm limpado ao centro de Lisboa, a parte histórica. Fica
tudo limpinho. Não tratam da mesma maneira o resto da cidade”.21
É na “parte histórica” dessa cidade a que palmilha os turistas, os
que a cruzam para o trabalho diário, os moradores inseridos na gama de
sociabilidade que existe esse “lado” no qual o artista insiste em deixar suas
imagens intensas. Observa-se assim que, como diz Agier (2011), apenas o
cartógrafo e o urbanista oferecem uma visão de conjunto da cidade, embora
ela nunca possa ser vista em sua totalidade. Em algumas situações, a cidade
consegue ser alcançada bem mais por registros da arte urbana que subsiste
no ciberespaço do que pela velocidade e rotatividade de suas marcas, anúncios e inscrições.
A escrita, assim como o trabalho etnográfico, segue seu próprio
devir. Seria, no mínimo, equivocado, quando nos reportamos à pesquisa
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na cidade de Lisboa, presumir que ela esteja envolta em qualquer tipo de
universalidade. A arte aqui emerge na condição de retratos de um percurso,
entre ambiências visitadas e por suas dobras no ciberespaço.
A tentativa de instaurar na cidade um tipo de arte disciplinada, regulada,
normatizada – contando a GAU, inclusive, com acervo do que “já não existe
mais” na cidade – provavelmente projeta para o espaço urbano a igualdade
do gosto que perfaz a estética da arte passiva dos museus. Instaura-se, assim,
em Lisboa e em tantas outras cidades, uma censura prévia em torno daquilo,
comumente marcado pela livre expressão e pela possibilidade incessante da
invenção de formas, cores, traços e dizeres.
Agamben (2012), em O homem sem conteúdo, descreve exatamente um
possível déficit de energia, ocasionado pela lógica de uma arte confinada ao
crivo de curadores e críticos – uma arte que opera distâncias entre o criador,
monitorado por temas de exposições murais, por demarcação e determinação
de espaço, por uso de técnicas e instrumentais e a criação de suas obras.
Paradoxalmente, como destaquei em nota de campo (DIÓGENES, 2013d),
Promove-se, assim, por meio do ciberespaço uma esfera de religação
subjetiva entre o artista e seu conteúdo. Entre o pesquisador e seus
achados. Fomenta-se, de imediato, uma curiosa subversão da longitude
entre o artista e seus espectadores, entre o antropólogo e seus narradores.
Cria-se assim um estado sucessivo entre criação, fruição e compartilhamento, uma media, lugar onde as coisas adquirem velocidade (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 37).
Certamente, se a arte urbana vier a depender do suporte da tela, do
papel, das molduras das galerias e das exposições, terá não apenas outra
estética, como também outra temporalidade.
O ciberespaço, algumas vezes, atua como um palco alargado, um recipiente amplo, veloz e múltiplo das experiências que compassam a vida na
esfera offline. Ele age descongestionando o fluxo da arte urbana nas grandes
cidades, multiplicando-a em “mobilizações infinitas” (SLOTERDJIK, 2002).
Isso imprime ao observador, como destaca Canevacci (2004), a
necessidade de um olhar oblíquo, inquieto e instável diante do movimento
ondulatório que ele opera entre os congestionamentos sígnicos das metrópoles e os espaços de fluxos mais frágeis, como as aldeias e, acrescentaria,
os sítios “invisíveis” em que se propagam os grandes fluxos das cidades.
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NOTAS
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1 Tim Ingold e Elizabeth Hallam referem-se a um tipo de improvisação
geradora, não condicionada pelo compasso da produção de “novidades”:
“Because improvisation is generative does not condicional upon judgments
of the novelty or otherwise of the forms it yields. Because it is relational,
it does not pit the individual against either nature or society” (2007, p. 3).
2 Ricardo Campos, no livro Por que pintamos a cidade?, afirma que
“a cidade é para ser lida. Os hieróglifos, emblemas, decorações, sinais,
orientam-nos nesse mundo. Procuram informar, iludir, entreter, suscitar
o desejo, o sonho, a acção” (2010, p. 23).
3 Estive em contato direto e indireto com vários outros artistas urbanos
de Lisboa e da cidade do Porto. Tinta Crua foi o primeiro narrador do
meu percurso etnográfico em Lisboa.
4 Refiro-me a uma discussão sobre “o homem do gosto e a dialética da
dilaceração”, efetuada por Giorgio Agamben, no livro O homem sem
conteúdo (2012).
5 José Simões também faz uma alusão a essa interligação entre presencial e digital: “As consequências da transposição do graffiti da rua para
a internet são variadas. Em primeiro lugar, o impacto mais imediato é
o que advém da própria preservação das marcas iconográficas deixadas
pelos writers nas ruas das cidades, em vários suportes, cujo destino seria
a destruição, mais ou menos imediata, ou a substituição por outras marcas
que se sobreporiam e obnubilariam a primeira” (2011, p. 235).
6 Mais detalhes sobre a criação da GAU nas próximas páginas.
7 Era a primeira vez que Eduardo falava sobre suas obras com uma pessoa
fora de sua convivialidade.
8 Tinta Crua, s.d.
9 Mantive a mesma fonte e diagramação das publicações originais do
facebook.
10 Entre aspas estão trechos da fala de Eduardo contidos na nota de
número 16, deste capítulo, onde segue meu comentário.
11 Reporto-me aqui a um tipo de arquivo composto não apenas por imagens, impressões e anotações de leituras. Passei a considerar uma significativa “matéria-prima” do trabalho de campo a dimensão da experiência.
Wright Mills, no “artesanato intelectual”, no que tange à importância dos
arquivos, assinala o que considera significativo no trabalho intelectual
original: “ser capaz de confiar na própria experiência, sendo ao mesmo
tempo cético em relação a ela, é, acredito, uma marca do trabalhador
maduro” (2009, p. 23).
12 Observação direta: Pantónio, Tamara Alves, Fidel Évora, Hazul Luzah,
Tinta Crua. Não presencial: Dalaima Street Art e Narcélio Grud.
13 Comentário de Miguel Louro, no dia 24 de agosto de 2013. Cf. Tinta
Crua, s. d.
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14 Comentário de Eduardo Oaciecnoc, no dia 25 de agosto de 2013. Cf.
Tinta Crua, loc. cit
15 Comentário de Miguel Louro, no dia 25 de agosto de 2013. Cf. Tinta
Crua, loc. cit.
16 Entrevista concedida por Sílvia Câmara [27 Fevereiro 2013]. Entrevistador: Diógenes, Glória. Lisboa/Portugal.
17 Cf. Diógenes, 2013c (diário que narra o encontro com Sílvia Câmara)
18. “The ethnography of the internet does not necessarily involve physical
travel. Visiting the internet focuses on experiential rather than physical
displacement”.
19 Ver no artigo de Glória Diógenes um tipo de interação online, mediada por conflitos e enfrentamentos: “Redes sociais e juventude: uma
etnografia virtual” (2011).
20 Lídia Borges (2011, p. 3), em artigo intitulado “Graffiti: das ruas para
o território virtual”, afirma: “(...) com a popularização da internet e das
redes sociais, muitos artistas começaram a disponibilizar um grande acervo
fotográfico – que até então era pessoal – dos seus graffites nesse universo
virtual. A partir desses compartilhamentos de imagens, o graffite ganha
uma nova dimensão. A sua visibilidade não precisa agora necessariamente
que seja in loco, basta ‘um clique’ nas páginas pessoais desses artistas ou
um passeio virtual pela internet”.
21 Entrevista concedida por Tinta Crua em 21 de março de 2013. Entrevistadora: Diógenes, Glória. Lisboa/Portugal
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ENTRE CIDADES MATERIAIS E DIGITAIS
Palavras-chave:
arte urbana, etnografia,
ciberespaço.
Resumo
Keywords:
Urban Art, Ethnography,
Cyberspace.
Abstract
Este artigo conduz a alguns pontos da trajetória de um estudo
etnográfico sobre artes de rua, em Lisboa, e de como tais artes
se dilatam entre paisagens digitais e materiais. Dispõe-se a
refletir acerca dos desafios, limites, necessidades e dribles
dos estudos etnográficos que cruzam as cidades presenciais
e estendem-se para múltiplas conexões com o ciberespaço.
Provavelmente, o desafio foi o de seguir fluxos, híbridos
em ziguezague, percursos pontilhados cujas fronteiras
nem sempre são discerníveis. Tomo como caso exemplar
a trajetória de Tinta Crua e sua prática de graffiti ilegal na
zona histórica de Lisboa. Enquanto as coimas e decretos e
as ações de apagamento da Câmara cerceiam as ações do
artista nos marcos da cidade material, por meio da internet é
fácil ter em casa um Tinta Crua. Ocorreu, assim, na paisagem
virtual, um tipo de interação mobilizadora, em que a obra tanto
transita online como pode ser alvo de compartilhamentos,
interferências de conteúdo, de legenda, estabelecendo, dessa
forma, uma curiosa relação espaço-tempo. Concluo que o
ciberespaço acaba atuando como um palco alargado, um
recipiente amplo, veloz e múltiplo das artes que inundam
as paredes, muros e telas das vitrinas urbanas.
This article leads to some points of the trajectory of an
ethnographic study of street art in Lisbon and how they,
the arts, stand out amongst digital and material landscapes. It intends to reflect upon the challenges, limitations
and needs and ‘dribbles’ of ethnographic studies that
cross the spacial cities and go beyond to establish multiple connections with the cyberspace. The challenge was
probably to follow the hybrid zigzag flows, dotted paths
whose limits and boundaries are not always discernible. I
take the trajectory of Tinta Crua and his practice of illegal
graffiti in the historic district of Lisbon as a model case.
While the fines and decrees, and the House’s erasing actions curtail the actions of the artist in the city’s material
landmarks, it is easy to “have” a Tinta Crua piece at home,
via the Internet. The virtual landscape has thus created a
kind of mobilizing interaction in which the work moves
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GLÓRIA DIÓGENES
online as much as it can be the target of ‘shares’, content
interference, captions, thus establishing a curious space/
time relationship. I so conclude that the cyberspace ends
up acting as an extended stage, a large, fast moving and
multiple container of the arts that flood walls, walls and
screens of urban displays.
Recebido para publicação em abril/2015. Aceito em junho/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 43-67
Identificação e reutilização do
patrimônio no processo de reinvenção
das cidades: uma reflexão a partir da
cidade de Almada
Roselane Gomes Bezerra
Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Fez
Pós-doutorado na Universidade de Coimbra. Atualmente é investigadora no
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com o desenvolvimento do projeto: “Narrativas urbanas: estratégias, discursos e representações
no processo de requalificação na cidade de Almada”, com bolsa da Fundação
para a Ciência e Tecnologia (FCT). Pertence ao Núcleo de Estudos sobre
Cidades, Culturas e Arquitectura (CCArq) do Centro de Estudos Sociais e é
membro da Rede Brasil-Portugal de estudos urbanos. É autora, dentre outras
publicações, do livro O bairro Praia de Iracema entre o adeus e a boemia: usos
e abusos num espaço urbano. Fortaleza: Laboratório de Estudos da Oralidade
(LEO) / UFC, 2009.
INTRODUÇÃO
O processo de reinvenção das cidades a partir da identificação e da reutilização do patrimônio justifica-se pelas
transformações urbanas, decorrentes da acelerada globalização
econômica, industrial e tecnológica que o mundo vivencia desde
finais do século XX. Marcado por profundas transformações
sociais, econômicas e geográficas, esse século deixou como
legado para a paisagem urbana um novo conceito de cidade,
que se define pela busca de novos usos para espaços “abandonados” ou desvalorizados. A paisagem urbana contemporânea
vem sendo configurada por meio da “requalificação” de áreas
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
portuárias desativadas, espaços desocupados que abrigavam grandes indústrias,
áreas deterioradas que margeiam a costa do mar ou de rios e antigos centros
históricos degradados. Esses espaços urbanos “abandonados” geralmente
estavam socialmente descontextualizados dos usos na cidade, mas estão
localizados em áreas com um alto valor simbólico para a história da urbe.
É importante ressaltar que a identificação desses espaços urbanos
como “abandonados”, “degradados”, “decadentes”, entre outros adjetivos
desabonadores, é utilizada para qualificá-los por gestores e/ou arquitetos
que defendem o processo de “requalificação” como um meio de dinamizar
economicamente a cidade. Esse fenômeno se dá no âmbito da ideia de intervenções urbanas, especialmente associadas ao turismo e ao lazer.
Nesse contexto, cidades ou espaços urbanos de diferentes países,
com histórias, economias e culturas diversas, estão a compartilhar a mesma
concepção de reconstrução de determinados espaços, sobretudo por meio da
difusão de modelos de “requalificação”, que orientam políticas de intervenção. Na dinâmica de metamorfose da cidade, que está a surgir como uma
necessidade da urbe contemporânea ou pós-industrial, são comuns narrativas
de gestores e arquitetos que anunciam a identificação e a reutilização do
patrimônio como uma exigência dos projetos de “requalificação”. Assim,
os requisitos dos planos de intervenção passaram a ser fundamentais na
definição dos critérios de patrimonialização.
Porém, uma questão peculiar desse processo é o caráter de dualidade
que envolve a definição do patrimônio urbano. Ou seja, há uma dimensão de
natureza técnica, que atende aos rigores legais e formais para a transformação
de um objeto material ou imaterial em um bem com estatuto patrimonial,1
e outra baseada em classificações de natureza estética, política, cultural ou
comercial (LEITE; PEIXOTO, 2009). É no âmbito estético, ou seja, com
base em critérios visuais, que em geral são formuladas, conforme gestores,
arquitetos e habitantes de Almada as concepções de “patrimônio” e “patrimonialização”. Assim sendo, independentemente de um reconhecimento oficial,
as classificações desses atores sociais, muitas vezes imputam a designação
de “patrimônio” ou de “valor patrimonial” para edificações relacionadas
com o consumo visual.
No contexto de transformação de espaços urbanos, grande parte dos
estudos sobre as cidades tem demonstrado que os projetos de intervenção,
ou seja, as práticas de “requalificação”, realçam um vínculo entre patrimônio
e embelezamento arquitetônico, tornando espaços da cidade em objetos de
consumo e “mercadoria” (ARANTES, 2009; BEZERRA, 2009; VAINER,
2002; LEITE, 2004; FORTUNA, 1999). Essa prática, utilizada como uma
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
ROSELANE GOMES BEZERRA
71
fórmula de reinvenção das cidades, está a desencadear uma disputa quanto
aos usos programados para os novos espaços da cidade.
A partir de uma pesquisa etnográfica em diversos fóruns de participação na cidade de Almada,2 percebi que está a existir uma “urbanidade em
disputa” no âmbito da identificação e da reutilização do patrimônio.3 Partindo
da observação dos discursos de arquitetos e decisores políticos nos Fóruns
de Participação,4 o objetivo deste artigo é apresentar uma análise de como
a ideia de “qualificação” dos usos na cidade está presente nos projetos de
“requalificação”. A minha pesquisa abordou os critérios da concepção de
“patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas”, comum a
diversas narrativas dos planos de intervenção.
Utilizando a cidade de Almada como um estudo de caso, percebo
que o processo de patrimonialização – comum a diversas cidades – conduz
a uma reflexão sobre a atribuição de valores para os novos espaços. A ideia
de “qualificação” de espaços urbanos presente nos discursos de arquitetos
e gestores é reveladora da “urbanidade em disputa” e dá pistas para ampliar
o debate sobre políticas urbanas e o processo de reinvenção das cidades
contemporâneas.
O PROCESSO DE REINVENÇÃO DE UMA CIDADE PÓS-INDUSTRIAL
Transformar a estrutura urbana e consequentemente implementar uma
mudança de imagem da cidade, a qual durante muitos anos foi associada a
atividades industriais, assim como devolver o rio Tejo aos cidadãos e reabilitar
uma zona de antigos estaleiros, desenvolvendo o conceito de cidade voltada
para a margem do rio, são os objetivos exigidos pela Câmara Municipal de
Almada aos diversos planos de “requalificação” da cidade.
Almada reúne, desde 1997,5 vários instrumentos de gestão territorial
com o propósito de contribuir para esse processo de reinvenção da cidade
(MOREIRA, 2004; RODRIGUES, 2001). Nesse sentido, é possível afirmar
que Almada é exemplar na concepção de transformação urbana e na busca
de uma “vocação” que continue a alicerçar o desenvolvimento econômico
e social da cidade.
Segundo narrativas dos gestores e arquitetos, o grande potencial de
Almada é a proximidade com Lisboa e o patrimônio arquitetônico construído
ao longo da sua história. Registros arqueológicos da cidade indicam que
essa área foi ocupada por fenícios, no século VIII a. C.; por romanos, entre
os séculos VI a.C. e II d.C., e por muçulmanos, entre os séculos VIII e X d.
C.6. Na Idade Média, a configuração urbana dessa cidade limitava-se a um
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
pequeno aglomerado de habitações nas imediações das muralhas do Castelo, rodeada por uma vasta zona agrícola. Dessa forma, a produção agrária
contribuiu para a implantação de uma mancha estruturada e complexa de
quintas na cidade.
Após o terremoto de 1755, Almada perdeu o traçado medieval e foi
sendo reconstruída com a implementação de indústrias transformadoras.
Em meados do século XIX, foi fundada a companhia “Parceria dos Vapores
Lisbonenses”, que estabeleceu carreiras regulares entre Lisboa e Almada,
impulsionando o aparecimento dos primeiros estaleiros navais que, gradualmente, substituíram a construção tradicional de embarcações em madeira.
O desenvolvimento da indústria naval, em Almada, influenciou o aumento dos fluxos imigratórios e consequentemente um declínio da atividade
agrícola. O crescimento da indústria naval contribuiu também para a criação
de uma imagem de “cidade operária”, incorporada à identidade local e ao
imaginário da população nacional. Decorrente das atividades industriais,
Almada abrigou um dinâmico desenvolvimento urbano, especialmente na
década de 1960, com a inauguração da ponte sobre o rio Tejo, em 1966, e a
instalação dos estaleiros navais da Lisnave, na Margueira, em 1967.
Segundo dados da Câmara Municipal, Almada passou de vila a
cidade em 21 de junho de 1973, graças ao desenvolvimento demográfico
e urbanístico, às vias de comunicação, à distribuição domiciliária de água
e energia eléctrica, à rede de saneamento, ao forte incremento industrial e
comercial, ao notável movimento de associativismo e aos diversos serviços
de natureza social, educacional e cultural.
Contudo, com a instauração do regime democrático na sequência do 25
de abril de 1974, Almada assistiu a um excessivo crescimento demográfico,
num curto espaço de tempo e sem um planejamento adequado. Vale ressaltar
que o estaleiro da Lisnave aumentou o número de trabalhadores de 4.000
para cerca de 9.000, incorporando os recursos humanos das ex-colônias.
Assim, após o apogeu econômico, proporcionado pelo crescimento industrial,
assiste-se em Almada ao encerramento das indústrias de cortiça, da moagem,
e também da construção e reparação naval, decorrente da crise petrolífera e
da instabilidade política e econômica dos anos 1970. Em meados dos anos
1980, a cidade vivencia o declínio industrial.
O envelhecimento e o abandono dos núcleos mais antigos de Almada
denunciam, na degradação, marcas de um desenvolvimento e apogeu recentes. Atualmente esse espaço urbano apresenta ruínas industriais, ocupações
ilegais em antigos armazéns à margem do rio Tejo, por famílias de ciganos,
e edificações em risco de desabamento. Esse cenário evidencia a necessidade
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ROSELANE GOMES BEZERRA
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de uma reestruturação urbana, por meio da implantação de planos de intervenção. Nesse sentido, a Câmara Municipal de Almada desenvolve planos
de “requalificação” que sejam “projetos motores” de maior presença do rio
na cidade e de uma nova dimensão da sua vida e imagem.
Almada chega ao século XXI como uma “cidade pós-industrial”, com
edifícios em ruínas, espaços degradados e antigas instalações da indústria
naval abandonadas. Porém, os sinais da degradação, assim como em outras
cidades que experimentaram projetos de intervenção urbana, tornaram-se
passíveis de reconversão para novos usos e indícios da emergência de uma
“nova cidade”. A paisagem “decadente” está sendo transposta para os projetos arquitetônicos, “renovada” e representada como a outra margem de
Lisboa. Essa representação da cidade é comum nos discursos de gestores
e arquitetos nos fóruns de participação, como demonstra esta decclaração
da presidente da Câmara Municipal: “A cidade precisa ser repensada e
devolvida à população. Se não fizermos porque é difícil não fazemos nada
e não qualificamos a vida das pessoas”; ou a fala do arquiteto responsável
pelo projeto de requalificação do Cais do Ginjal7: “Não podemos perder
a memória do Cais do Ginjal, a espetacularidade que ele ainda conserva.
Transformar, recuperar, inventar”.
Nesse contexto, os projetos de intervenção urbana investem na
identificação e reutilização do patrimônio como um caminho para restabelecer a economia e construir uma nova imagem para a cidade, associada ao
lazer e ao turismo. Em Almada, são comuns nas narrativas dos decisores
políticos argumentos justificando a implementação de novos espaços como
uma forma de dinamização e reabilitação urbanas. Predominam, também,
argumentos segundo os quais a cidade está sendo reconstruída para o futuro
e valorizando ícones do passado.
Convém afirmar que concordo com Arantes (2009), no tocante à ideia
de que o termo “patrimônio” designa construções ideológicas. Segundo o
autor, a concepção de “patrimônio” – envolvendo edificação e significados a
ela atribuídos – pode ser modificada ou abandonada “no constante fluxo da
vida coletiva, onde preservação e destruição são faces da mesma dinâmica
pela qual as estruturas sociais se reproduzem e se transformam”(2009: 11).
A estratégia da Câmara Municipal de Almada, para construir essa
nova imagem e reformar algumas áreas que tiveram seus usos modificados
e apresentam sinais de degradação ou “abandono”, centra-se na execução
de projetos de intervenção que se destacam por meio da reabilitação de
edifícios antigos, pedonalização de ruas, reconversão de antigos monumentos e construção de novos edifícios. É comum, no discurso oficial, o apelo
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
ao desenvolvimento do turismo, do lazer, da cultura e à atração de jovens
moradores. A ideia de “qualificação” da vida das pessoas e dos espaços, o
aproveitamento das potencialidades da cidade, o respeito pela memória e
pelo patrimônio edificado são também apresentados como fundamentais
para a reinvenção da cidade.
Pensar a cidade sob o ponto de vista dos projetos de “requalificação
urbana” e mecanismos de reinvenção do patrimônio, incluindo o industrial,
pressupõe compreender que espaços das cidades podem ser apropriados
como um meio de gerar riquezas – por esse motivo os “bons projetos” são
designados pela potencial capacidade de atração de visitantes ou novos
moradores. Encontrar novas formas de desenvolvimento econômico é, na
verdade, o ponto fulcral dessas políticas, e a transformação das cidades em
pontos turísticos (“turistificação”) é o caminho escolhido.
É exatamente esse processo de transformação das cidades, comum
à cidade de Almada, que tem impulsionado a “urbanidade em disputa”. A
associação entre a “qualificação” dos espaços e os projetos que desenvolvam usos lucrativos – fenômeno inerente a grande parte dos projetos de
“requalificação” urbana – tem reduzido a complexidade da dinâmica urbana,
especialmente ao promover a privatização do patrimônio, identificando-o ou
reinventando-o para o turismo. A concepção de “cidade democrática” – tão
cara ao projeto de urbanização construído ao longo dos anos – perde-se na
cidade fragmentada, higienizada e consequentemente segregada.
Outra característica dos planos de “requalificação”, perceptível na
cidade de Almada, é a propagação de uma “urbanidade utópica”. Esse fato
é decorrente de uma “fetichização da estética da arquitetura” presente na
apresentação de projetos, seja nos fóruns de participação, nos sites oficiais ou
nas propagandas da Câmara Municipal. A expressão “cidade do espetáculo”
(BOYER, 1996) é ilustrativa dessa “cidade projetada”, ou seja, a cidade é
fortalecida com apelo ao efeito visual.8
Nesse sentido, os projetos dos arquitetos são apropriados pelos gestores para apresentar a cidade “ideal”, limpa, bem planejada e com atributos
de beleza e harmonia. Porém, enquanto os gestores explanam uma política
urbana que “prediz” o futuro através da visualização de imagens que geram
cenários alternativos para a realidade atual, habitantes da cidade manifestam
nos fóruns de participação opiniões de que a política urbana desenvolvida em
Almada está a destruir a cidade, criando obstáculos à mobilidade e implementando requalificações utópicas. Ou seja, os discursos desses habitantes
manifestam uma discordância com as narrativas dos gestores e consideram
“ilegítima” a idealização de uma cidade requalificada, reabilitada, renovada,
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disciplinada e moderna. Na minha interpretação, esse fenômeno acirra a
“urbanidade em disputa”, ou seja, existe um desacordo entre habitantes da
cidade e gestores.
Dessa forma, percebo que a divulgação dos planos arquitetônicos,
além de apresentar aos potenciais usuários os espaços projetados, manifesta
uma ideia de cidade e de uma política urbana com características utópicas.
Como pode ser percebido nesta definição de usos no espaço “requalificado”,
proferida pela Presidente da Câmara Municipal, práticas sociais de um tempo pretérito são ressaltadas como legítimas para os novos espaços: “Com a
requalificação da Rua Cândido dos Reis as crianças vão poder saltar a corda
e brincar de roda na rua, andar de bicicleta e de triciclo”.9
A “QUALIFICAÇÃO” DOS USOS NA CIDADE REINVENTADA
Em meio a muitos projetos apresentados pela Câmara Municipal para
diferentes áreas da cidade, a freguesia de Cacilhas – uma das mais antigas,
situada nas margens do Tejo, de frente para a cidade de Lisboa – foi eleita
como o lugar ideal para a implementação de muitos desses projetos que
visam a modificar os usos e consequentemente a imagem da urbe.
A partir da leitura das narrativas referentes aos projetos de intervenção
em Almada, apresento, a seguir, como tem se dado a relação entre a identificação, a reutilização do patrimônio e a “qualificação” dos usos na cidade.
Abordo também outros conceitos e critérios que estão sendo aplicados para
o estudo desta questão em outras cidades.
Esta análise foi desenvolvida com base na observação da apresentação
dos seguintes projetos: o plano de intervenção Almada nascente – cidade da
água, que visa a construir uma “nova cidade” às margens do Tejo; o Plano
pormenor de reabilitação urbana e funcional de Cacilhas, que tem como
objetivo “qualificar” a área de Cacilhas, definida nos discursos oficiais como
“a porta de entrada da cidade”; o Projeto de requalificação da rua Cândido dos Reis, que defende a “qualificação” dessa rua criando condições de
desenvolvimento de recreio e de lazer; e o Plano de pormenor do Cais do
Ginjal, que tem como objetivo preservar a memória do cais e a espetacularidade que ele ainda conserva.
PLANO DE URBANIZAÇÃO ALMADA NASCENTE – CIDADE DA ÁGUA
Na apresentação do Plano de urbanização Almada Nascente – Cidade
da Água, os gestores de Almada ponderam que a “qualificação” da antiga
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
área industrial da cidade será realizada através da transformação desse
espaço, por meio da integração das seguintes componentes estratégicas:
“Um lugar para trabalhar”, “um lugar de relação com a água”, “um lugar
para habitar”, “um lugar de cultura” e “um lugar de conhecimento”. Para os
gestores, a efetivação dessa estratégia será alcançada por meio da escolha
de “marcos urbanos”, da valorização do “ambiente fabril” e da preservação
da “maquinaria de grande porte”, remanescente do antigo estaleiro naval
da Lisnave. Nesse processo de “requalificação”, os elementos identificados
como “patrimônio industrial” passam a ter um sentido exclusivamente estético, na maioria dos casos, e podem ser definidos como estratégias para
a construção de ícones da cidade, por meio do enaltecimento de elementos
emblemáticos.
A análise dos discursos oficiais revela que esse modelo de intervenção
urbana, que associa espaços da cidade a áreas de interesse patrimonial,
faz parte de um processo comum a diversas cidades e se destaca por “enobrecer” os espaços reinventados. No caso da cidade de Almada, o ambiente
industrial, fortemente presente na memória da urbe, será transformado em
um espaço com “boas práticas” de sociabilidade, relacionadas ao lazer, à
cultura e ao turismo.
A exposição de projetos de novos espaços acompanhados de uma
valorização estética da arquitetura está a ser questionada nos discursos dos
habitantes. Na verdade, a idealização de novos espaços vai de encontro à
ideia de cidade para os utilizadores da urbe. Como pode ser notado nas
exposições de participantes dos fóruns, as críticas assentam numa inconformidade com a idealização de futuro dos discursos oficiais. Baseando-se
numa descrição dos espaços urbanos “observados”, ou seja, em áreas que se
encontram degradadas, sujas ou vazias, esses habitantes da cidade demonstram a existência de um conflito simbólico entre uma narrativa prospectiva
e outra etnográfica, ou seja, baseada na observação cotidiana.
Informações sobre o processo de intervenção em antigas zonas industriais de cidades como Lisboa, Barcelona e Bilbao nos ajudam a perceber
como a busca de uma nova configuração da cidade, baseada no “embelezamento estratégico”, tornou-se a fórmula de regeneração urbana e econômica
para a “invenção” da “cidade pós-industrial” – especialmente de espaços
que, segundo diferentes narrativas, estavam em decadência ou degradação.
No caso emblemático de Barcelona, a transformação de espaços
industriais em zonas pós-industriais teve como base a indústria cultural
para fins de turismo. Mas essa mudança produziu-se principalmente no
espaço físico (BALIBREA, 2003). Nessa cidade, foram feitos grandes
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investimentos “privilegiando as zonas em que o património arquitectónico
podia ser rentabilizado como atração turística” (idem, p. 4). A essas obras
de reabilitação juntou-se a proliferação de novas intervenções assinadas
por arquitetos de renome como Norman Foster, Richard Meier, Santiago
Calatrava, entre outros.
Em relação à cidade de Bilbao, o antropólogo basco Zulaika (2001),
ao analisar o processo de edificação do Museu Guggenheim, descreve a
capital do país Basco como uma “cidade dura”, the tough city. Segundo
Zulaika, o escultor Richard Serra e o arquiteto Frank Gehry visualizaram
Bilbao como o espelho de um terreno baldio do capitalismo industrial de
ruínas e devastação ecológica. Esse autor ressalta também que, se não fosse
a força visual espetacular das suas ruínas, Bilbao seria uma típica cidade
provinciana europeia, exalando um estilo de vida burguês. Ou seja, as ruínas
de indústrias, que contribuíram para o desenvolvimento econômico da cidade
durante décadas, foram aproveitadas como um potencial para a construção
de uma nova imagem.
No caso de Lisboa, Claudino Ferreira (2005) constatou que o “programa urbano” da Expo’9810 garantia impactos sociais relevantes, como a
recuperação de uma “zona degradada” da cidade e a criação de uma nova
centralidade dinamizadora do desenvolvimento urbano. Para esse autor, o
projeto da Expo’98 incorporou o paradigma de articulação da cidade com
o rio, “um modelo marcado por uma concepção privilegiadamente lúdica
da utilização das zonas ribeirinhas e pela substituição das antigas funções
portuárias por funções comerciais ligadas ao lazer” (2005, p. 450).
Nesses três casos paradigmáticos, podemos constatar como os programas de “requalificação urbana” se apropriaram do patrimônio industrial
para construir uma nova imagem das cidades. Cultura, turismo e lazer podem
ser considerados a base dessa receita de reinvenção de espaços urbanos;
porém, outros aspectos importantes para a reinvenção desses espaços são
os novos sentidos atribuídos às ruínas industriais. Assim, é possível afirmar
que o papel do patrimônio industrial nas políticas de “requalificação urbana” consiste na reutilização das ruínas industriais, descontextualizando-as
de suas funções pretéritas, mas utilizadas como “marcos” simbólicos dos
novos espaços urbanos.11
Sendo os espaços urbanos inseparáveis dos eventos que neles ocorreram, a “reutilização do património industrial” ilustra uma interrupção
da temporalidade linear, fragiliza o tempo presente e torna “plástico o seu
sentido” (FORTUNA; BARREIRA; BEZERRA; GOMES, 2013). A ideia
da cidade “qualificada” presente nas narrativas sobre o Plano de UrbaniRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
zação Almada Nascente é vista como o caminho para proporcionar uma
nova imagem dessa cidade. Nesse processo, o passado industrial tem sido
fundamental na construção da “cidade do futuro”.
PLANO DE PORMENOR DE REABILITAÇÃO URBANA E FUNCIONAL DE
CACILHAS
Segundo os decisores políticos de Almada, o Plano de Pormenor de
Reabilitação Urbana e Funcional de Cacilhas tem como objetivo a “qualificação e patrimonialização” da área de Cacilhas, definida nos discursos
oficiais como a “porta de entrada” ou o lugar de “chegada de turistas que
vêm de Lisboa”. Para o arquiteto responsável pelo projeto, “Cacilhas terá que
ser o ponto de encontro de Almada unindo turismo, habitação e comércio”.12
Os critérios utilizados na identificação e reutilização do patrimônio
não são consensuais entre gestores, arquitetos e habitantes, e esse fato pode
influenciar a concepção de “qualificação” dos usos nos futuros espaços da
cidade. Nesse contexto, a produção do espaço, na cidade reinventada, está
a ser negociada em meio a conflitos de interesses. É comum, por parte de
habitantes, a acusação de que existem critérios arbitrários na identificação
do patrimônio, como, por exemplo, no caso do moinho que será destruído,
independentemente dos apelos de alguns antigos moradores, que justificam
a permanência desse equipamento devido à atribuição de um valor patrimonial; segundo eles, esse valor está associado à história do lugar, e ressaltam
o fato de o moinho existir na localidade há tempos imemoriais, pois não há
informações precisas sobre a data da sua construção. Apesar desses apelos,
o arquiteto responsável afirmou que só ele teria autoridade para definir o
que era patrimônio e, por esse motivo, o equipamento seria destruído e feito
outro igual em outro local. Ressalte-se que esse mesmo moinho é classificado
no site da freguesia de Cacilhas como patrimônio.
Por outro lado, equipamentos que existiram na localidade estão a ser
reconstruídos, como foi o caso de um chafariz que, segundo os gestores, foi
implementado atendendo a apelos da população – ou seja, foi construído
um pastiche, sem valor patrimonial para os arquitetos. Há também o caso de
retorno de ícones do passado, como um farol, que já existiu na localidade,
foi transferido e agora foi reimplantado e reinaugurado como um patrimônio
da cidade.
Estes exemplos de identificação e reutilização do patrimônio são
definidos nos estudos urbanos como uma estratégia de “enobrecimento dos
lugares” (RUBINO; FORTUNA; PEIXOTO, 2009) e revelam, segundo
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Fortuna (2009), a ambiguidade das estratégias que envolvem o processo:
“conservar para ser moderno e modernizar para ser antigo”. Esse processo
pressupõe uma sensibilidade muito própria com relação ao tempo presente
da cidade, o que se encontra irremediavelmente associado à atual falência da
linearidade do tempo passado-presente-futuro, além de assinalar a simultaneidade de tempos e de ritmos urbanos constitutivos da cidade palimpsesto
(FORTUNA, 2009).
PROJETO DE REQUALIFICAÇÃO DA RUA CÂNDIDO DOS REIS
O projeto de Requalificação da rua Cândido dos Reis foi apresentado
como uma estratégia de “qualificação” dessa área da cidade. Nesse sentido,
os discursos dos decisores públicos e arquitetos defendiam que a pedonalização13 da rua principal desse espaço da cidade seria a melhor forma para
o desenvolvimento do turismo, da cultura e do lazer. Segundo a Diretora
do projeto Parcerias e desenvolvimento local,14 a “requalificação” da rua
Cândido dos Reis seria pautada por reformas que tornariam mais visíveis
edifícios identificados como patrimônio histórico da cidade, como a Igreja
de Nossa Senhora do Bom Sucesso e o antigo posto dos bombeiros de Cacilhas, transformado no Centro Municipal de Turismo.
Outra característica apresentada no projeto foi a justificativa da pedonalização da rua como uma forma de dinamização daquele espaço. Esse
plano incluiu o incentivo fiscal à reabilitação das fachadas dos edifícios e ao
desenvolvimento de atividades culturais e gastronômicas. Nesse sentido, os
gestores passaram a ser responsáveis por organizar festivais gastronômicos,
concursos de: “melhor vitrine” das lojas, “melhor restaurante”, “melhor feira
de artesanatos”, além de outras atividades culturais, como forma de atrair
mais visitantes. Nesse projeto de “requalificação”, os discursos dos gestores
e arquitetos associam a “qualificação” dos usos à intervenção espacial, à
reinvenção patrimonial e ao desenvolvimento de atividades relacionadas a
arte, cultura e gastronomia.
Como definem Leite e Peixoto (2009), nesse processo de identificação
e reinvenção patrimonial, o “património funciona como alegoria”, dado que
o esplendor e a qualidade urbanística dos espaços em que ele se exibe ou
é projetado, as cores garridas das fachadas recuperadas, os equipamentos
que são reformados ou construídos, contrastam com o resto da cidade que
os envolve e torna-os bens investidos de um valor patrimonial.
Esse processo de “requalificação” ilustra a ideia de que vivemos
uma espécie de “museulogização da vida urbana”, através da invenção de
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
tradições: “A museulogização da vida urbana é um dos mais recorrentes
exemplos do privilégio concedido à ‘invenção’ de tradições locais baseada
numa aguerrida política de conservação patrimonialista do passado” (FORTUNA; BARREIRA; BEZERRA; GOMES, 2013, p. 265).
A noção de patrimônio na cidade de Almada, para gestores e arquitetos,
está sendo reinterpretada no sentido de uma nova apropriação do lugar e
com estratégias diferenciadas no uso desse patrimônio. Como foi definido
por Fortuna, Barreira, Bezerra e Gomes (2013), em relação à revalorização
patrimonial em Fortaleza e Coimbra, as cidades ora apostam numa estratégia
de valorização patrimonial soft, mais reformista, com objetivos de maior
adaptação entre passado e presente, ora apostam numa valorização hard, mais
conservadora e mais afinada com o que poderia ser considerado expressivo
da história e da memória da cidade.
Utilizando esse argumento, posso afirmar que em Almada os gestores
e arquitetos se apropriam de estratégias soft e hard. Ao “requalificarem”
espaços da cidade, pela incorporação de novos equipamentos em zonas
classificadas como históricas, as intervenções podem ser definidas como
soft, na medida em que ajustam o tradicional ao moderno com o objetivo
de imprimir alternativas de utilização em zonas “degradadas”, por meio de
atividades de lazer e cultura, que de forma flexível são associadas ao cenário
urbano. E utilizam também estratégias de natureza hard, definidas como
uma tentativa de “congelamento” do passado das cidades. São edificações
consideradas como ícones emblemáticos que se tornam intocáveis por lhes
ser atribuído o sentido de guardião da memória.
PLANO DE PORMENOR DO CAIS DO GINJAL
O Plano de pormenor do Cais do Ginjal tem como objetivo o desenvolvimento de “indústrias criativas” na área que abrange a encosta do rio
Tejo. Nesse sentido, o projeto prevê a recuperação dos edifícios patrimoniais
em ruínas e o aproveitamento dos “vazios”, na encosta do rio, para a instalação de ateliês de arquitetura, publicidade, design, zonas de restauração,
comércio, pequenos hotéis e habitações para jovens moradores. O conceito
de “cidade criativa” (LANDRY, 2000) pode ser ilustrativo desse modelo
de intervenção que conduz a uma “higienização” do espaço urbano. Assim
como no processo de gentrification ou “enobrecimento”, os “criativos” seriam os responsáveis por uma “qualificação” do espaço. Nesse contexto, a
implementação de “indústrias criativas” é apresentada como uma estratégia
para atrair uma população jovem e assim desenvolver a arte e a cultura na
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ROSELANE GOMES BEZERRA
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cidade. Como pode ser visto na fala da Presidente da Câmara Municipal,
é necessário intervir no espaço para atrair “pessoas mais qualificadas”:
“É preciso reabilitar, qualificar, diversificar, trazer pessoas jovens, ateliês,
refuncionalizar alguma área”.15
Malcolm Miles, ao desenvolver a ideia de “cidade pós-criativa”, enfatiza
que a política urbana que consiste em desobstruir as áreas desindustrializadas
para promover a urbe, como um centro criativo ou de inovação tecnológica,
transforma a cidade num foco de atração para a “classe” criativa; porém, essa
ênfase na cidade criativa, segundo ele, é colocada na “cultura consumista”,
construindo identidades através de um consumo de elite. Para o autor,
[...] as ante-estreias de museus e outros eventos artísticos proporcionam
um espaço para a exibição do estatuto de criativo, mas o aparecimento
de uma nova classe de colecionadores entre os profissionais dos setores
financeiros e dos meios de informação e comunicação, por exemplo, tem
mais influência no futuro da cidade pós-industrial (MILES 2012, p. 4).
Nesse contexto, a legitimação econômica se sobressai em detrimento
de maior coesão social.
Em Almada, assim como em diversas cidades que vivenciam processos de “requalificação”, incentivando os usos por parte de “criativos”, a
identificação e a reutilização do patrimônio exprimem um otimismo artificial,
maquiando áreas em que a degradação espacial abriga usos indesejados para
a cidade. Como afirma Sharon Zukin (1995), controlar as várias culturas das
cidades aponta para a possibilidade de controlar todo tipo de “mal urbano”.
Para Zukin, os criadores de imagens fixam uma identidade coletiva e, ao
aceitarmos estas identidades sem questionarmos as suas representações da
vida urbana, corremos o risco de sucumbir a uma cultura visual atraente e
privatizada.
Esses projetos de intervenção na cidade de Almada podem ser o indicativo de como as políticas de “requalificação” urbana abrigam em si uma
atribuição de “usos legítimos” para espaços com valor patrimonial. Nesse
sentido, é patente a existência de narrativas que enaltecem ou depreciam os
espaços a partir de práticas sociais. Assim, a ideia de patrimônio está tão
relacionada ao tipo de uso destinado aos espaços projetados que usos definidos como “não legítimos”, para determinados habitantes, podem “despatrimonializar”, mesmo que de forma efêmera, espaços urbanos. A concepção
de “qualificação” dos usos na cidade reinventada, presente nas narrativas
dos diversos projetos de intervenção em Almada, é representada por meio
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
da relação de práticas no âmbito da cultura, do consumo, do turismo e do
lazer. Esse fenômeno tem levado a atribuições de “usos legítimos” ou “não
legítimos” nos espaços “requalificados” e poderá tornar a segregação espacial
um elemento cada vez mais presente no futuro das cidades reinventadas.
Os projetos de requalificação que partilham a concepção de “patrimonializar para qualificar os espaços e a vida das pessoas” – presente na
política urbana da cidade de Almada – são responsáveis pelo que estou
definindo como “urbanidade em disputa”. O uso de expressões como:
propaganda artificial, imagem virtual, destruição da cidade, requalificação
parva e mentira, para se referir à política urbana da cidade, alinham-se na
ideia de que a “qualificação” dos espaços, a partir de projetos de intervenção,
não é consensual; ou seja, as classificações negativas enfatizam um caráter
virtual dos planos de intervenção e salientam a concepção segundo a qual
a requalificação urbana é geradora de uma disputa.
APRENDENDO COM ALMADA
No livro Learning from Las Vegas (VENTURI, 1972), a ideia suprema
da geração modernista, less is more, célebre frase de Mies van der Roh, é
contestada por meio da afirmação irônica: less is a bore. Segundo Rubino,
por causa dessa provocação de Robert Venturi,
[...] houve quem considerasse esse livro o manifesto de uma arquitetura
includente – mas não era a inclusão social preconizada por Jane Jacobs
poucos anos antes. A inclusão não era de atores sociais e suas subjetividades, e sim da subjetividade do arquiteto e seus ‘gostos’, ainda que
muito bem informados (2003, p. 2).
A partir da análise de projetos de intervenção em Almada, percebo
que a “lição de Las Vegas”, especialmente a ideia preconizada por Robert
Venturi de que “o menos é chato” – pode contribuir com o diálogo sobre
políticas urbanas e o processo de reinvenção daquela cidade. As narrativas
de arquitetos nos fóruns de participação – afirmando que tal processo passa
por “enaltecer símbolos emblemáticos”, “patrimonializar”, “enobrecer” ou
“qualificar”, construindo ou reformando edifícios e monumentos – revelam
que se vive em Almada um tempo em que “o mais é mais”. Ou seja, ali, a
reinvenção da cidade passa por um forte apelo ao simbólico com a apresentação de projetos que envolvem uma valorização da estética da arquitetura
e a construção de ícones emblemáticos.
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Porém, a pesquisa etnográfica nos fóruns de participação demonstrou que essa sobreposição da estética é, muitas vezes, contestada pelos
habitantes da cidade. A partir da apreciação desse fenômeno, apresento a
seguir algumas “lições” que Almada pode nos “ensinar” sobre o processo de
requalificação e como essas intervenções estão a gerar tensões em relação
aos usos programados para os novos espaços.
Os planos de requalificação em Almada desempenham papel irelevante na atribuição de valores aos espaços ou edificações passíveis de
tornarem-se patrimônios. Tais projetos definem o que deve ser preservado,
remodelado ou construído na cidade. Porém, um outro papel importante
das narrativas elaboradas pelos arquitetos é a capacidade de seduzir os
gestores. Estes, desejosos por um percurso que conduza à configuração
de uma cidade ideal, no sentido urbanístico, estético e especialmente com
soluções para as lacunas econômicas que surgiram com o fim da cidade
industrial, utilizam projetos arquitetônicos e planos urbanísticos como
propaganda de políticas urbanas.
Nesse contexto, os projetos arquitetônicos se convertem em elemento
central para a legitimação de políticas urbanas que têm como componente
principal a criação de novas centralidades e, por essa via, a mudança de imagem da cidade. Esses profissionais são uma espécie de porta-estandarte dos
decisores políticos, e o ofício deles é assegurar a construção das narrativas
adequadas para justificar o novo conceito de cidade. Como afirma La Cecla
(2011, p. 32), “o arquiteto pousa a sua capa sobre a cidade para garantir que
a cidade está na moda”.
Nos diversos projetos de requalificação de Almada, importam menos
as apropriações vernáculas e mais as intervenções com capacidade para
atrair novos utilizadores. Para essa ideia de cidade, a estética é a palavra de
ordem. Contudo, o paradoxo principal desse fenômeno são os critérios, ou a
falta deles, na identificação de patrimônios, o que gera uma “urbanidade em
disputa”, especialmente no âmbito de conflitos existentes nas representações
do patrimônio, por parte de gestores, arquitetos e habitantes, na cidade.
Para os gestores, a patrimonialização está relacionada à preservação ou
construção com o objetivo de “qualificar” os usos nos espaços urbanos, com
base no apelo ao visual. Segundo Malcolm Miles (2012, p. 14), “tal como a
arte pública, o espaço público parece estar a ser colonizado pelo enobrecimento
urbano”. Dentro desta lógica de intervenção no espaço urbano, os arquitetos
defendem que edificações que foram ícones da cidade no passado e já não
existem na localidade devem retornar como um elemento de interesse patrimonial e estético, como é o caso do farol que foi reimplantado em Cacilhas.
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
Nesse sentido, o patrimônio é cada vez mais apresentado como a expressão
material de uma ideia pacífica de espaço público; supõe-se, aí, a ideia de
passado comum e de tradições compartilhadas (LEITE; PEIXOTO, 2009).
Neil Leach refere que estamos na “era da estetização.” Para esse autor,
nessa era, o lado menos agradável da arquitetura, ganha capacidade de criar
respostas aparentemente paradoxais, ao ponto de se considerar esteticamente
apelativo algo que, à primeira vista, não parecia atrativo. Nesse processo, antigas instalações industriais de aspecto degradado podem tornar-se
enobrecidas; velhas fábricas podem ser transformadas em apartamentos;
centrais elétricas em museus nacionais; armazéns de zonas portuárias em
restaurantes gourmet, ou seja, “tudo o que é repugnante e áspero parece
prestar-se à estetização” (LEACH, 2005, p. 34).
Nesse conceito de cidade o importante é a construção de símbolos
que exaltem a urbe. Todavia, esses profissionais não são convidados pelos
gestores para se dedicarem também aos impactos sociais que podem decorrer das intervenções; daí a emergência da “urbanidade em disputa”. Nas
palavras de Neil Leach (2005, p. 28), “a tendência para privilegiar a imagem
serve para distanciar os arquitetos dos utilizadores dos respectivos edifícios,
pois incentiva os primeiros a adotar uma aparência estética desfasada das
preocupações dos utilizadores”.
Os “espaços cenários” apresentam-se aos olhos dos decisores políticos
como uma solução atrativa para os diversos problemas que a “cidade real”
manifesta no quotidiano. Essa concepção de espaço urbano, reproduzida nas
narrativas oficiais, é legitimada pela assinatura e genialidade de um arquiteto. Nesse sentido, a identificação e a reutilização do patrimônio articula
questões referentes à atribuição de valores e a conflitos que se estabelecem
a partir desse processo. Como afirma Arantes, “a produção do património
é, no fundamental, uma questão de atribuição de valores e construção de
sentidos. Portanto, diferença, diversidade e conflito lhes são absolutamente
inescapáveis” (2009, p. 16).
Em Almada, os fóruns de participação se constituem lugar de expressão desses conflitos ou da “urbanidade em disputa”. De um lado, estão
os gestores e os arquitetos que apresentam a cidade com ênfase nos léxicos
“requalificar”, “reabilitar”, “revitalizar”, “construir”, “renovar”, “modernizar”,
“disciplinar” e “futuro”; e, do outro, os habitantes que manifestam preocupações com o planejamento urbano e o quotidiano da cidade. Os discursos
desses atores sociais são permeados, dentre outras, por críticas quanto a:
“mobilidade urbana”, “acessibilidade”, “segurança”, “estacionamentos” e
“poluição sonora”; ou seja, existe em Almada uma disputa entre valores.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de reinvenção da cidade de Almada, aqui apresentado,
é recorrente em diversos espaços urbanos e é conduzido por diferentes
estratégias políticas de intervenção. Porém, seja por meio de investimentos
resultantes de grandes eventos – como foi o caso das Olimpíadas de 1994,
em Barcelona, e da Expo 98, em Lisboa; da instalação de grandes obras
arquitetônicas, como o Museu Guggenheim em Bilbao, inaugurado em 1997
–, da revitalização de centros históricos em diversas cidades do Brasil, nos
anos 1990, ou de “reconfiguração” das cidades, tornando áreas “degradadas”
alvos de projetos de “requalificação”, como é o caso de Almada, o modelo
de intervenção baseado no desenvolvimento de cultura, turismo e lazer se
constitui alicerce desse processo de transformação urbana. Como afirma
Malcolm Miles (2012, p. 2),
As estratégias urbanas de base cultural estribaram-se, em grande medida,
numa seleção de imagens das cidades e não no conjunto de experiências
e percepções sensoriais que refletem um urbanismo social e etnicamente diverso. A partir da Europa Ocidental, o modelo da cidade cultural
difundiu-se pela Europa de Leste depois da queda do muro de Berlim,
em 1989, e está também hoje em dia amplamente presente na Ásia, Austrália e América Latina. Promove-se a cidade cultural como uma cidade
vibrante, na qual os novos setores económicos, nomeadamente os da
informação, comunicação e serviços financeiros, substituem a produção
fabril, podendo também regenerar o espírito das cidades.
Nos diversos casos de intervenção urbana, esse modelo de “requalificação” tem em comum a conversão de espaços da cidade em áreas de
interesse patrimonial, especialmente pela adoção do caráter de “enobrecimento”, típico deste formato, que determina que os espaços públicos devem
ser ocupados por “boas práticas” de sociabilidade. Porém, o problema é que,
apesar de as diversas estratégias – baseadas em cultura, turismo, lazer, arte,
gastronomia, atração de jovens moradores, town houses ou estabelecimentos
ligados à indústria cultural – serem apresentadas como tendo a capacidade
de regenerar os centros degradados e as zonas desindustrializadas, na verdade estão a promover uma redução da complexidade da vida urbana e a
privatização do patrimônio. Ou seja, os benefícios públicos são mínimos
frente aos interesses econômicos e comerciais, como a valorização de emRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
preendimentos imobiliários, e esse fato fortalece os desejos das velhas e
novas elites econômicas urbanas. Segundo Malcolm Miles (2012, p. 2), “a
cidade cultural é uma cidade de empreendimentos imobiliários, que beneficia
com a desregulamentação e a redução da escala e do âmbito da intervenção
estatal na cidade”.
O exame das diferentes atribuições de valores e da consequente
“disputa” na identificação do patrimônio se constitui numa questão contemporânea relativa às transformações urbanas e ao modo como se apresentam e executam projetos de “requalificação” nas cidades. A discordância
entre espaço projetado e “espaço praticado” (CERTEAU, 1994) também
compõe o modelo atual de urbanidade. Fortuna (2009) fala em um afastamento gradual e de “não coincidência” entre o território urbanizado da
cidade e o modo como se estruturam as práticas, mentalidades e relações
sociais que ali se desenrolam. Para este autor, a “não coincidência” é uma
demonstração da contínua “re-invenção” do urbano e leva a um “palimpsesto teórico” da cidade.
A partir de pesquisa etnográfica, constato que a ideia de “qualificação”
dos usos na cidade, presente nos discursos de gestores e arquitetos, conduz
a uma inversão das conquistas que a noção de urbano oferece ao cidadão.
Percebo que a configuração da cidade contemporânea, ou pós-industrial,
atende aos interesses de uma lógica de valorização imobiliária, dependente,
cada vez mais, de iniciativas privadas ou de parcerias público-privadas.
Assim, enquanto as cidades vão competindo entre si por investimentos
ligados a turismo, cultura e lazer, os espaços urbanos estão numa dinâmica
de “re-requalificação”. Nessa lógica de urbanidade, investidores ocupam a
cidade, gerando trabalhos temporários para pessoas qualificadas, com “boa
aparência” e que falam vários idiomas, em detrimento do “habitante comum”,
que é “convidado” a migrar para outras áreas da urbe.
Como notas conclusivas, a partir desta experiência na cidade de
Almada, posso afirmar que a percepção de uma “urbanidade em disputa”,
existente entre gestores, arquitetos e habitantes, resulta da diferença entre uma
“descrição prospetiva ou uma descrição etnográfica” da cidade (BEZERRA,
2013). As narrativas sobre o que deve ser mantido, modificado e construído
na cidade são inseparáveis dos diversos interesses dos atores sociais. Percebi
também que a existência de muitos protestos, com denúncias de destruição
da cidade, e também manifestações individuais de descontentamento, por
parte de comerciantes e empresários, com a mudança no panejamento da
cidade, demonstram que a dinâmica própria da cidade, que envelhece junto
com os habitantes, não é respeitada nesse processo de reinvenção urbana.
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No contexto de cidades pós-industriais, é importante refletir também
sobre quem são e o que fazem os habitantes desses espaços urbanos. É
necessário situar o processo de “requalificação” numa perspectiva analítica
mais ampla, pois as narrativas sobre o êxito ou o fracasso da implementação
de planos de “requalificação” estão dependendo do papel social de seus
autores, e a “qualificação” de usos é consoante ao consumo. Assim, se de
um lado, assistimos à apresentação de projetos que oferecem uma cidade
com características utópicas, com harmonia nos usos e apropriações, por
outro lado, corremos o risco de viver em cidades em constante “disputa”.
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
NOTAS
1 Em Portugal, compete por lei ao Instituto de Gestão do Património
Arquitectónico e Arqueológico (Igespar) propor a classificação dos
bens culturais imóveis de âmbito nacional. Cabe-lhe, assim, a definição
dos critérios a serem utilizados no processo: critérios de caráter geral
– histórico-cultural, estético-social e técnico-científico; e de caráter
complementar – integridade, autenticidade e exemplaridade do bem.
Assim, possível encontrar-se, hoje, maior incidência de classificações
de objetos e conjuntos arquitectónicos de tipologias mais variadas, tais
como: a arquitetura modernista e do movimento moderno, a arquitetura
vernacular, os sítios arqueológicos, as cercas monásticas, os jardins históricos, a arquitetura do espetáculo, a arquitetura industrial etc. O ato de
classificação exige uma tramitação rigorosa (recentemente alterada com
a publicação do Decreto-Lei n.º 309/2009, de 23 de outubro, que entrou
em vigor em janeiro de 2010).
2 A pesquisa etnográfica nos fóruns de participação em Almada, entre os
anos 2010 e 2013, foi desenvolvida no âmbito do meu pós-doutorado no
Centro de Estudos Sociais, na Universidade de Coimbra.
3 A cidade de Almada tem cerca de 101.500 habitantes, pertence ao distrito de Setúbal e está dividida em 11 freguesias. Almada deixou de ser
uma cidade industrial nos anos 1990; tem muitos espaços degradados,
especialmente nas antigas instalações ligadas à indústria naval e a outras
indústrias nas margens do rio Tejo.
4 Os Fóruns de Participação realizam-se para a apresentação de projetos
estratégicos e planos de “requalificação”. Em Portugal, os fóruns são
uma exigência institucional; neles são convidados a intervir habitantes
das cidades e pessoas interessadas nos planos, podendo estas apresentar
dúvidas, sugestões, ideias e reclamações. Dos fóruns participam também
os membros da equipe técnica responsável pelos trabalhos, além de técnicos e gestores da cidade.
5 O Plano Diretor Municipal (PDM) é o principal instrumento de gestão
territorial da cidade de Almada; estabelece a estratégia de desenvolvimento
territorial, a política municipal de ordenamento do território e as demais
políticas urbanas. O PDM define o regime de uso do solo através da sua
classificação e qualificação, regulando o seu aproveitamento em função da
utilização dominante que nele pode ser instalada ou desenvolvida, fixando
os respectivos usos e, quando admissível, edificabilidade. Constitui-se em
Unidades Operativas de Panejamento e Gestão (Unop) e é também um
instrumento de referência para a elaboração dos demais planos municipais
e para o estabelecimento de programas de ação territorial.
6 A designação toponímica de Almada advém da palavra árabe Al-madaan,
a mina, e está associada à exploração e à lavagem de ouro das margens
do Tejo.
7 O Cais do Ginjal é uma área ocupada por antigos armazéns à margem
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ROSELANE GOMES BEZERRA
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do rio Tejo. Hoje, encontra-se com muitos prédios em ruína, em risco de
desabamento, ocupados ilegalmente. Nessa área encontra-se também dois
restaurantes que oferecem aos clientes uma vista panorâmica para o Tejo.
Além disso, é uma área muito utilizada por pescadores.
8 Como “cidade do espetáculo”, Boyer (1996), refere-se à cidade projetada
que emerge com o desenvolvimento da comunicação eletrônica e digital,
com suas paisagens construídas por computador e imagens que podem
agora se decompor em pedaços e partes que transformam a imagem da
cidade em forma efêmera, diretamente influenciada e imaginada por
uma visualidade diferente. Nesse caso, a cidade e sua arquitetura são (re)
trabalhadas em composições e recomposições de imagens.
9 Fórum de participação, Requalificação da Rua Cândido dos Reis, realizado no dia 25 de maio de 2010.
10 A EXPO’98 – ou, oficialmente, Exposição Internacional de Lisboa de
1998, uma edição da Exposição Mundial, sediada em Lisboa e cujo tema
foi “Os oceanos: um património para o futuro” – realizou-se de 22 de
maio a 30 de setembro de 1998. Teve o propósito de comemorar os 500
anos dos “descobrimentos portugueses.
11 Patrimônio industrial foi definido, na Conferência de 2003 do
Comité Internacional para a Conservação do Patrimônio Industrial (The
International Committee for the Conservation of the Industrial Heritage
– TICCIH), como os vestígios de cultura industrial com valor histórico,
tecnológico, social, arquitectónico ou científico. Estes vestígios podem
englobar edifícios, maquinaria, oficinas, fábricas, minas, armazéns e meios
de transporte, assim como os locais onde se desenvolveram atividades
sociais relacionadas com a indústria como habitação, religião ou educação.
12 Fórum de participação: Plano de Pormenor de Cacilhas, no dia 21 de
janeiro de 2010.
13 Transformação de uma rua em um espaço para pedestres e ciclistas,
proibindo o trânsito ou o estacionamento de carros.
14 Fórum de participação: Requalificação da Rua Cândido dos Reis, no
dia 25 de maio de 2010.
15 Fórum de participação Plano Pormenor do Cais do Ginjal, realizado
no dia 14 de junho de 2011.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
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IDENTIFICAÇÃO E REUTILIZAÇÃO DO PATRIMÔNIO NO PROCESSO DE REINVENÇÃO DAS CIDADES
Palavras-chave:
requalificação, qualificação, disputa, reinvenção,
narrativas.
Resumo
Keywords:
Rehabilitation, qualification, dispute, reinvention,
narratives.
Abstract
A cidade de Almada, em Portugal, chega ao século XXI
como uma cidade pós-industrial, com edifícios em ruínas,
espaços degradados e instalações da indústria naval abandonadas. Porém, os sinais da degradação tornaram-se passíveis
de reconversão por meio de projetos de “requalificação”.
Partindo da observação dos discursos de arquitetos e gestores nos Fóruns de Participação, o objetivo deste artigo é
apresentar uma análise da ideia de “qualificação” dos usos
na cidade, no âmbito dos projetos de intervenção urbana.
O artigo apresenta como a concepção de “patrimonializar
para qualificar os espaços e a vida das pessoas” – comum
a diversas narrativas dos planos de intervenção – é reveladora de uma “urbanidade em disputa” e dá pistas para
ampliar o debate sobre políticas urbanas e o processo de
reinvenção das cidades contemporâneas.
The city of Almada, in Portugal, reaches the XXI century
as a post-industrial city, with buildings in ruins, degraded
spaces and abandoned facilities for the shipbuilding industry. However, signs of degradation became amenable to
conversion through “rehabilitation” projects. Starting from
the observation of discourses of architects and managers
in Participation Forums, the purpose of this article is to
present an analysis of the idea of “qualification” of uses
in the city, under the projects of urban intervention. The
paper shows how the concept of “turning into patrimony
in order to qualify spaces and people’s lives,” common
to diverse narratives of intervention plans, is indicative
of a “disputing urbanity” and gives clues to broaden the
debate on urban policies and the process of reinvention
of contemporary cities.
Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em maio/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 69-92
Tempo, usos e rituais: intervenções
patrimoniais em um “centro histórico”
Francisco Willams Ribeiro Lopes
Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador do Laboratório de Estudos
de Política e Cultura (Lepec/UFC).
E-mail: [email protected]
Irlys Alencar Firmo Barreira
Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora Titular
da Universidade Federal do Ceará e pesquisadora do CNPq. É coordenadora
do Laboratório de Estudos de Política e Cultura (Lepec/UFC).
E-mail: [email protected]
INTRODUÇÃO
Intervenções urbanas com vistas à conservação ou manutenção de ambientes e monumentos fazem parte da lógica que
preside as políticas de patrimônio em cidades contemporâneas.
Implicam acionamento de práticas simbólicas de classificação
que segmentam áreas, afirmando a “história”, em oposição a
locais considerados “descaracterizados” ou “degradados”. As
noções de uso e patrimônio, segundo aportes conceituais de
alguns autores, foram utilizadas como chaves de leitura para
entender os processos urbanos de intervenção tomados, aqui,
como objeto de análise.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
O conceito de uso, tal como é tratado por Michel de Certeau, baseia-se, fundamentalmente, na crítica à passividade de consumidores típicos da
sociedade contemporânea. Os usuários do espaço são dotados de astúcia e
são também criadores do cotidiano, subvertendo disciplinas ou regras previstas. São, portanto, protagonistas de movimentos táticos que representam
apropriações peculiares do espaço. As regras disciplinares não anulam as
práticas cotidianas, na medida em que o “usuário sempre consegue criar
para si algum lugar de aconchego, itinerários para o seu uso ou seu prazer,
que são marcas que ele soube, por si mesmo, impor ao espaço urbano”
(CERTEAU, 2003, p. 42).
Nessa perspectiva, o conceito de uso torna-se relevante para se pensar
sobre o patrimônio como uma relação dinâmica e histórica entre práticas e
regras de preservação do espaço, supondo relações sociais e ações simbólicas
(ARANTES, 2006). A tensão entre sentidos – envolvendo coletividades mais
abrangentes e outros localmente atribuídos aos bens de natureza diversa,
mediados por instituições – torna-se constitutiva do bem patrimonial. As
políticas patrimoniais, em síntese, evidenciam instituições, valores e sujeitos
sociais. Assim, à sua análise se impõe a necessidade de pesquisas empíricas.
A cidade de Fortaleza vem sendo palco de discussões no que concerne
às formas de intervenção espacial, envolvendo usuários e instituições que
se organizam em torno da “defesa do patrimônio”. No circuito das indagações sobre “o quê” e como preservar o Centro de Fortaleza, encontram-se
diferentes espacialidades. Assim, praças e monumentos passam a fazer parte
de projetos específicos, aos quais são atribuídas diferentes designações. A
Praça do Ferreira, a Praça da Estação e a Praça dos Mártires, entre outras,
se constituem objeto de intervenções formuladas para o Centro, gerando
práticas e percepções não isentas de tensões entre velhos e novos usos do
espaço. Discussões sobre como disciplinar o comércio, impedir a presença de
moradores de rua e interditar apropriações ilegais do espaço são frequentes.
A reforma urbana realizada na Praça dos Mártires, mais conhecida
como Passeio Público, é, nesse sentido, emblemática e se incorporando a uma
proposta mais ampla de intervenção no centro histórico da cidade de Fortaleza. Integra um dos projetos construídos pelos poderes municipais, visando
promover a “requalificação” da referida área, incluindo praças, monumentos
e espaços considerados representativos da história da capital cearense.
O Passeio Público é uma das praças mais antigas da cidade, datada
de meados do século XIX. Foi construída em um areal próximo ao Forte de
Nossa Senhora da Assunção conhecido como Largo da Fortaleza ou Campo
da Pólvora, local onde foram executados os mártires de um movimento
revolucionário designado Confederação do Equador1.
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Após a sua construção como um espaço público, a Praça se tornou
o lugar de sociabilidade da elite cearense, em um período definido como
belle époque fortalezense (PONTE, 1993). O Passeio Público foi tombado
pelo Instituto do Patrimônio Histórico Artístico e Nacional (IPHAN), sendo
também reconhecido como lugar de preservação histórica no âmbito estadual. No final do século XX, passou a ser considerado “degradado”, tendo
em vista o desgaste de sua estrutura física e o seu uso, principalmente, por
prostitutas e moradores de rua.
Tombado em âmbitos federal e estadual, o Passeio Público passou
a ser reconhecido também pela Prefeitura Municipal “por sua importância
histórica e social para a cidade”, sendo reafirmado como patrimônio em
2006. Na ocasião, foi incorporado ao projeto “Ícones de Fortaleza” que
supunha a avaliação do local e encaminhamento de planos de reforma. A
Praça também foi incluída na pauta de discussão da Secretaria Extraordinária
do Centro (SECE) que visava criar projetos e elaborar propostas para (re)
funcionalizar sua utilização2.
Em 2007, a Praça tornou-se alvo de projeto de “requalificação”, executado por gestores da Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR)
e sob a Coordenação do Patrimônio Histórico Cultural (CPHC), compondo
as reformas pensadas para o Centro Histórico de Fortaleza. Eventos e atividades foram acionados no local com o objetivo de substituir usuários e
atrair turistas e moradores de classe média.
A retomada do Passeio Público como local de intervenção e arranjos
patrimoniais dá suporte empírico ao presente artigo, cujo objetivo é refletir
sobre as práticas e concepções que circundam o tema da “requalificação”,
associadas a conflitos simbólicos, valores e representações sobre a cidade.
Uma explanação inicial dos projetos formulados para o local é
importante para contextualizar as discussões que subsidiaram as diferentes
propostas.
A “REQUALIFICAÇÃO” DA PRAÇA DOS MÁRTIRES: “EM NOME
DO PATRIMÔNIO”3
As primeiras discussões em torno da “requalificação” do Passeio Público tiveram início na sede da Secretaria Extraordinária do Centro (SECE),
em agosto de 2006. Participaram também representantes das seguintes
instituições: Instituto de Pesquisas Américo Barreira (IPAB), Secretaria de
Cultura de Fortaleza (SECULTFOR), Associação Comercial do Ceará (ACC),
Colégio Militar de Fortaleza (CMF) e Movimento Amigos do Centro. O
quadro a seguir mostra as propostas de utilização do espaço.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
QUADRO 1 – Propostas para a “requalificação” do Passeio Público de Fortaleza
INSTITUIÇÃO
Instituto de
Pesquisas Américo
Barreira (IPAB)
Associação
Comercial
do Ceará (ACC)
Colégio Militar de
Fortaleza (CMF)
Movimento Amigos
do Centro
PROJETO
OBJETIVO
Projeto Passeio Novo
“Redinamizar a frequência e o
uso do espaço do Passeio Público
através de uma reconfiguração, no
que diz respeito à infraestrutura e a
promoção de ações de valorização
da importância histórica deste local
para a cidade de Fortaleza”.
Passeio Público:
resgate histórico e
cultural
“Tornar o Passeio Público uma área
de convivência social [...]. Para
tanto a Associação Comercial do
Ceará [...], responsabiliza-se pela
conjugação de esforços e atração
de parceiros para a realização deste
objetivo”.
“Divulgar a história da praça
através de eventos culturais que
transformem o local em constante
ponto de encontro agradável e
Projeto de
seguro, não só para os fortalezenses,
Revitalização da Praça
mas também para os turistas, o
do Passeio Público
que certamente contribuirá para o
enriquecimento da cultura cearense
e, ainda, ajudará revitalizar o centro
velho de nossa cidade.
Memorial
dos Mártires:
Confederação do
Equador no Ceará
e Memorial do
Patrimônio de
Fortaleza: Miguel
Ângelo de Azevedo
Nirez.
Não apresentou projeto
Fonte: Síntese dos projetos, elaborada por Willams Lopes.
Conforme a descrição dos projetos apresentados neste Quadro, observa-se que todas as propostas convergem para os seguintes pontos: 1) As
ações envolvem o poder público e outros parceiros, seja da iniciativa privada (da rede hoteleira) ou de instituições acadêmicas como a Universidade
Federal do Ceará; 2) As reformas pressupõem mudança da infraestrutura
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da praça, superação de problemas como ausência de segurança, iluminação
inadequada, desordenamento de estacionamento para ônibus turístico, abandono do quiosque etc.; 3) As ações são direcionadas para se “redinamizar
os usos da praça, torná-la um espaço de integração, sociabilidade e lazer a
partir do enfrentamento de questões como o abandono, inadequação do uso,
marginalidade e desconhecimento por parte da população”.
As projeções de mudança acionaram representações da praça como
um lugar “histórico”, acompanhadas de um diagnóstico da situação no momento. Segundo o IPAB – órgão ligado à Câmara Municipal de Fortaleza –,
a falta de investimento em infraestrutura e a ausência de políticas públicas
para a dinamização dos usos do espaço contribuíram “[...] nas duas últimas
décadas do século XX, para que este se tornasse ponto de personagens
‘marginais’, que utilizam o espaço para a prostituição, tráfico de drogas e
assaltos, a qualquer horário do dia ou da noite”.
Ressalte-se que o diagnóstico da praça assemelha-se a muitos outros
formulados para identificar cidades brasileiras (ARANTES, 2000), configurando as transformações que acontecem na totalidade dos centros, com
repercussões sobre as formas de ocupação de espaços adjacentes4.
De fato, é notório observar a transformação do Passeio Público, ao
longo dos anos, tendo em vista o fato de que o local abrigou, no início do
século passado, uma elite que o utilizava como espaço de visitação e lazer.
Assim, a mudança da frequência de usuários parece ser uma das questões
mais evidentes para o diagnóstico da “deterioração”, seguido da classificação
de “local inseguro”.
Observa-se nos projetos (exceto, o do IPAB) ausência de referência à presença da prostituição que, ao longo dos anos, foi marcante no
Passeio Público. A discussão sobre os usuários considerados indesejados,
tais como moradores de rua e prostitutas ficou subentendida. Novas ideias
de “requalificação do espaço” sugerem a necessidade de incorporação de
um público intelectualizado, de classe média que substituiria usuários – os
ditos indesejados – para os quais parece não haver outra solução, senão a
sua expulsão ou controle.
As reuniões ocorridas no âmbito da SECE e da SECULTFOR resultaram em uma proposta de “requalificação” do local, cujo investimento,
segundo informações difundidas no jornal Diário do Nordeste, foi fixado
no valor de R$ 800.000,00 (oitocentos mil reais), tendo como objetivo a
reconfiguração urbanística, arquitetônica e paisagística da Praça, envolvendo
uma rede de parceiros5. Tal proposta seguia tendências mundiais de políticas
de patrimônio, tornando-se também sugestiva de um consumo decorativo.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
Trata-se de intervenções que retomam o princípio higienizador de Haussmann, de assepsia e limpeza urbana, acrescido de sentidos de patrimônio
(LEITE, 2002, 2004).
As reformas de: piso, bancos, conjunto de esculturas, fontes, jarros e
uma nova iluminação fizeram parte das modificações ocorridas na estrutura
física do Passeio Público, visando recompor sua dimensão “histórica”. E
o processo de ativação do patrimônio cultural por meio de projetos de “requalificação” buscou dar funcionalidade ao espaço e atrair (novos) usuários,
a partir de uma programação semanal de atividades, tais como eventos,
atrações culturais e roteiros históricos6. As iniciativas procuravam reativar
antigos sentidos perdidos no tempo como os de espaço histórico, cultural e
de lazer destinado às famílias de classe média.
Enquanto no início do século XX, período da belle époque fortalezense, as políticas urbanas tinham em seus objetivos um viés de promoção da
saúde a partir do incentivo a caminhadas e práticas de exercícios no espaço
público (PONTE, 1993), as iniciativas atuais seguem outra direção, com a
promoção de atividades que realçam a Praça como local para um consumo
cultural, principalmente gastronômico, agregando a essa perspectiva a linguagem de visibilidade de bens culturais (JACQUES, 2008)7.
A perspectiva de recuperação de prestígio de espaços públicos não
é exclusiva de Fortaleza. Sennett (1998), com base em análise de cidades
europeias e americanas, considera que o desenvolvimento do capitalismo
moderno e a nova “vida pública” diminuíram a importância de centros e
antigas praças, como espaços de referência para o convívio social. É nesse
sentido que as propostas nomeadas de “revitalização” ganham legitimação,
criando tensões entre práticas diferenciadas de ocupação do espaço.
Sob a ótica da ideia de preservação, as políticas urbanas têm criado
“novas” funções para os espaços públicos, na medida em que os “vazios
urbanos” são vistos como uma
[...] doença a ser sanada, um erro a ser corrigido, um dano urbano. Todos criticam o sub-aproveitamento do espaço urbano, e propõe grandes
“gestos” que resimbolizem esses lugares. São áreas de oportunidade de
desenvolvimento econômico, de reestruturação urbana, de transformação
da cidade, de locais possíveis para investimentos (MENEGUELLO,
2009, p. 131).
Se os vazios urbanos incitam a necessidade de investimentos, os projetos de “requalificação” tanto do Passeio Público quanto de outros lugares
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movimentam uma série de elementos simbólicos. Narrativas provenientes de
gestores públicos, de operadores do espaço urbano e rituais para a definição
de uma nova funcionalidade associados a outros mecanismos estratégicos
são ativados “em nome do patrimônio”.
AS NARRATIVAS
Os textos informativos, relacionados aos projetos de intervenção,
apresentam comumente propostas que parecem pensar o espaço urbano como
algo que pode ser modificado segundo a lógica do planejamento. O objetivo
de atrair novos usuários é apresentado em substituição a atividades anteriores
associadas à ocupação da Praça. O próprio termo “revitalização”, utilizado
em algumas intervenções, soa como a inexistência de vida e desconsideração
de outras formas de usos. Contrapondo-se a essa concepção, uma moradora
do Centro, em reunião convocada pela Planefor8, pronunciou-se contra o
termo “revitalização” argumentando estar o local “mais vivo do que nunca”.
Ela, moradora antiga, afirmou que não sairia do Centro.
As novas atividades, eventos e atrações planejadas para o Centro
e, em especial, para o Passeio Público passaram a integrar o “circuito de
atividades culturais” da cidade. O “circuito cultural” – expressão nativa que
designa uma conjugação funcional de atividades artísticas, musicais e de lazer
– consiste na oferta de determinados serviços, visando possibilitar o exercício da sociabilidade, por meio de encontros entre indivíduos supostamente
partidários dos mesmos interesses, códigos e valores sociais (MAGNANI,
2002). Panfletos, livretos, notícias nos jornais de maior circulação na cidade
e propagandas televisivas da gestão municipal são os principais meios de
divulgação de atividades designadas como “culturais”.
As narrativas9 veiculadas pelos meios de comunicação, entendidas
no sentido de Benjamin (1985) como relatos orais, remetem a mudanças
na configuração socioespacial da Praça, relacionadas a uma nova forma de
utilização do local, associando-se a presença de usuários e de seguranças.
O panfleto divulgado na primeira gestão de permissionários do quiosque, durante pesquisa de campo10, além de divulgar os serviços oferecidos na
Praça continha uma informação emblemática: “No mais bonito e agradável
local do centro da cidade. E o mais importante: segurança total (Guarda
Municipal)”. Nas narrativas em circulação após a “requalificação” do local,
encontram-se mensagens recorrentes: “Aqui é seguro”, “Você pode passear
tranquilamente” e “Agora tem segurança”.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
Essas narrativas têm como objetivo criar uma nova imagem para a Praça,
em contraposição ao estigma de “lugar perigoso” e “área de prostituição”.
Além disso, o panfleto mostra uma busca de valorização do patrimônio por
meio do lazer, com apelos a eventos como “Feijoada, com música ao vivo”.
Outros apelos supõem tornar o local sede de possibilidades de acontecimentos
e rituais: aniversários, casamentos, lançamento de livros etc.
Outras alusões à Praça aparecem na gestão municipal da prefeita
Luizianne Lins (2005-2008), por exemplo, sob o slogan “Fortaleza Bela” que
inclui a “revitalização” do patrimônio. A propaganda difundida apresentava o
depoimento de um professor – guia de turismo e residente no Centro – sobre
a “nova etapa” do Passeio Público:
[...] Como professor, eu comecei a descobrir que o Centro era uma sala
de aula permanente. Eu sempre tive essa esperança de que as coisas
iriam melhorar pra cá, pra região central e, de um modo especial, para o
Passeio Público. Então, hoje as pessoas chegam e tem ali um chorinho,
uma feijoada, tem uma contação de história, tem jogo de xadrez. Todo
domingo a gente vem pra cá, estende uma manta, ela [a esposa] fica na
internet, eu dou uma olhada no jornal, a gente passeia com o nosso filho.
As pessoas elas... Elas saem daqui com um encantamento reforçado. Viver
isso, essa nova etapa é realmente a realização de um sonho pessoal11.
Segundo os gestores do patrimônio em Fortaleza, a propaganda sobre
a área e seu entorno impulsionou, ainda mais, as atividades realizadas na
Praça. O depoimento do professor é acompanhado de imagens de prédios
históricos como Paço Municipal, Sobrado Dr. José Lourenço e, também,
de eventos festivos. Além disso, visualizam-se crianças em movimento e
a presença de “seguranças”, imagens que evocam ideia de tranquilidade e
descontração. O próprio professor encenava participação de um piquenique
realizado com a esposa e o filho em manhã de domingo.
Uma das primeiras iniciativas a integrar as narrativas da história da
Praça no contexto das reformas para a “requalificação” refere-se à criação
de uma cartilha pelos alunos do Colégio Militar de Fortaleza (CMF), em
2007. A cartilha “Passeio Público: histórias e experiências” contém textos
de quatro estudantes do oitavo ano sobre a história, os ícones e o contexto
de surgimento da Praça. Os textos exaltam as iniciativas de “requalificação”
dos espaços, rememorando antigos usos responsáveis por uma credibilidade
perdida ao longo dos anos.
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Jornalistas constituem uma das categorias importantes de narradores
que influenciam a valorização do local, registrando notícias com base em
uma temporalidade, referindo-se ao antes, durante e depois da política de
“requalificação”. As narrativas expõem significados da praça e, às vezes,
jornalistas se apresentam como detentores de uma informação verídica,
porque baseada em “fatos”.
Nem de longe o reforçado telhado e o cheiro de tinta nova nas paredes
lembram fezes, urina, preservativos, pedaços de tecido embebidos de
sangue e pontas de cigarro que antes denunciavam as velhas finalidades de um espaço que, na verdade, sempre foi potencialmente cultural
(WANBERGNA, 2007, grifo nosso).
As gravações de imagens realizadas pelas equipes de produção
apresentam famílias se confraternizando em um “café da manhã”, outros
em um piquenique; indivíduos utilizando equipamentos como notebooks e
celulares, de acesso gratuito à internet, evocando, no conjunto, ideias de um
ambiente familiar, harmônico e seguro. A dimensão familiar de ocupação da
praça também se encontra registrada em cartão postal no passado, momento
em que a frequência era marcada pela presença de famílias de classe média
alta (BARREIRA, 2008).
Em suma, segurança e presença de um novo público fazem parte das
principais narrativas veiculadas sobre o Passeio Público em vários meios de
comunicação, incluindo periódicos, sites e propagandas. A imagem reciclada
da Praça supõe também um conjunto de instituições e profissionais especializados na manutenção da forma mais recente de utilização do espaço.
GESTORES DO PATRIMÔNIO
SECRETARIA DE CULTURA DE FORTALEZA (SECULTFOR)
A principal instituição responsável pelo processo de “requalificação”12
do Passeio Público é a Secretaria de Cultura de Fortaleza (SECULTFOR),
composta por uma equipe de historiadores, arquitetos e advogados. Ao
indagá-los sobre o porquê da escolha do Passeio Público como lugar de
intervenção, um gestor da Coordenação de Patrimônio Histórico Cultural
(CPHC) se referiu à imagem de “degradação”, por conta do “descaso do
poder público”, e da intensa atividade de prostituição.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
O Passeio Público foi escolhido porque estava num estado deplorável,
e era uma reclamação da sociedade de Fortaleza, [...] um dos fatos foi
esse, que o Passeio estava muito degradado, inclusive, os jardins que
estavam sem a irrigação suficiente. [A praça] é um ponto que embora
toda a Fortaleza não frequente, todos admiram (Trecho de entrevista
concedida a Willams Lopes, por um gestor do CPHC em maio de 2010).
Muitos termos adotados pelos projetos urbanísticos são acompanhados
do prefixo RE, indicando uma necessidade de adaptação de usos conformados
a diferentes temporalidades (VASCONCELLOS; MELLO, 2006). Implícita
em todos os “REs” está a importância dada à recuperação dos centros urbanos
e à preservação de áreas consideradas históricas. Trata-se de imprimir ao
local uma marca de intervenção que supõe novidade em consonância com
a sua historicidade.
Os gestores são elementos estratégicos na “requalificação” do patrimônio e, quando indagados sobre suas funções, declararam ser os responsáveis
por autorizar, selecionar e elaborar os projetos que visam (re)funcionalizar
áreas consideradas “degradadas”. Assim, quando concluíram a reforma em
2007, criaram o fórum Amigos do Passeio Público, reunindo “instituições e
pessoas interessadas em cuidar do patrimônio para trocar ideias e elaborar
propostas para o uso do espaço”13.
Os projetos de “requalificação” elaborados pela SECULTFOR trazem
à discussão concepções e sentidos atribuídos aos equipamentos classificados como parte do patrimônio urbano. De acordo com o texto informativo
em seu site, os gestores da Secretaria compreendem o patrimônio histórico
cultural conforme a proposta dos estudiosos dessa área. O trecho a seguir
é esclarecedor:
O Patrimônio Cultural do Município de Fortaleza é constituído pelos bens
de natureza material e imaterial, móveis e imóveis, públicos e privados
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência
à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da
sociedade fortalezense e que, por qualquer forma de proteção prevista
em lei, venham a ser reconhecidos como de valor cultural, histórico e
natural, visando sua preservação14.
Em suma, o próprio conceito de patrimônio cultural refere-se ao conjunto de bens materiais e imateriais que representam a cultura de um grupo
ou de uma sociedade (LEMOS, 2004). Em documento referente às regras de
uso do espaço, os gestores do patrimônio afirmam que o “Passeio Público é
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de todos”15. Embora esta suposição possa ter uma conotação democrática,
sua realização é mais complexa, remetendo aos temas da segregação e dificuldade de convívio entre pertencimentos diferenciados de classe.
O conjunto de ações e funções voltadas para assegurar uso múltiplo
da Praça revela a complexidade das intervenções e a existência de tensões
associadas.
OS PERMISSIONÁRIOS DO QUIOSQUE
Os permissionários ou locatários do quiosque estão entre os gestores
do patrimônio por serem responsáveis pelo desenvolvimento de atividades
pautadas em propostas de “requalificação” e regras de uso do Passeio Público. Obtiveram uma licença para trabalhar no local por meio de uma seleção
realizada pela SECULTFOR, com a qual possuem uma relação de parceria.
A (re)instalação do quiosque, atualmente denominado “Café Passeio”, visa
desenvolver atividades artístico-culturais e de comércio alimentício. Várias
gestões de permissionários já aconteceram, sendo a do período 2012-2013
considerada “equitativa” pela constância nas atividades de natureza comercial
e cultural realizadas. Trata-se de uma gestão que diversificou o cardápio,
dinamizou o horário de atendimento e excedeu suas funções, utilizando
recursos próprios para garantir a continuidade da programação cultural.
O ADMINISTRADOR DA PRAÇA
Soma-se às atividades dos permissionários e da SECULTFOR a função
de um administrador, responsável por segurança patrimonial, tratamento
paisagístico, limpeza etc. Ele coordena as várias atividades previstas para
o local, facilitando a integração entre elas, além de ser considerado fiscal
da “ordem”.
Embora a CPHC afirme ser comum a presença de administradores
nas praças de Fortaleza, há algumas décadas não é possível deixar de associar a presença de um profissional com essa especialidade à emergência da
concepção de um modelo típico da cidade moderna, dotada de organização
racional, mecanismos de controle de horário e outras regras (VAINER, 2002).
OS GUARDAS MUNICIPAIS
O anúncio de eventos geralmente se faz acompanhar de uma descrição
da presença de seguranças. A Guarda Municipal de Fortaleza (GMF) é tida
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
como um dos serviços estratégicos mais importantes na “requalificação” do
Passeio Público. Trata-se de uma categoria considerada de grande utilidade,
visto serem os guardas municipais responsáveis pela disciplina, garantindo
a presença de “usuários convenientes”, segundo a forma prevista no projeto.
Trechos de entrevistas que nos foram concedidas corroboram a importância
dessa associação presença da Guarda-segurança:
É primordial, é essencial, porque as pessoas quando vêm pro Passeio,
a primeira coisa que elas olham é a Guarda [Municipal] e já se sentem
seguras de haver dois, três guardas, às vezes até uma patrulha quando
tem um evento como esse do bloco [de pré-carnaval] que se apresentou
no domingo. Tinha uma patrulha com mais de seis guardas aqui, então
[...] não pode deixar de faltar (Entrevista com permissionário do “Café
Passeio”, em fevereiro de 2010).
As pessoas perguntam logo como é que está a segurança, é a primeira
coisa que eles perguntam: ‘tem segurança aqui?’. Tem. Eu mostro a
Guarda, mostro a PM [Polícia Militar], à noite tem segurança armada
[...]. O foco deles é a segurança; é muito louco. É a primeira coisa que
perguntam (Entrevista com o administrador da Praça, em janeiro de 2012).
A segurança é muito importante, porque antigamente não podia ficar
sozinho esta hora. Antes, você sentava, as prostitutas eram tudo em cima.
Incomodando... A Polícia inibiu, elas pediam um café, um cigarro, mas
queriam era marcar um programa (Raimundo Nonato, 47 anos, usuário
do Passeio Público).
Segundo dados da Prefeitura de Fortaleza, os guardas municipais
teriam como principais atribuições prevenir a violência, a criminalidade,
garantir o cumprimento das leis e proteger o patrimônio, os bens e serviços
do município. O papel de segurança patrimonial levou os guardas municipais
a atuarem principalmente em espaços públicos, pois deveriam promover a
segurança em praças, equipamentos de lazer, parques ambientais e outros16.
Os operadores da vigilância costumam estar sempre atentos aos
usuários e às atividades desenvolvidas dentro da Praça; circulam sempre
no interior do logradouro e dão informações aos frequentadores. A Praça é
mediada por instituições de controle social, verificando-se que os guardas
utilizam, no turno diário, os seguintes instrumentos de trabalho: apito para
avisos de atenção ou pedidos de ajuda; tonfa; espargido (spray de pimenta);
algemas e, em alguns casos, taiser e armas extras como canivetes.
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No decurso da “requalificação” do Passeio Público, a ação dos guardas municipais revela-se como mecanismo de disciplinamento do espaço,
tendo como objetivo principal inibir a presença dos moradores de rua e de
prostitutas, retirando o estigma da Praça como ponto de circulação de droga
e prostituição.
Os guardas municipais exprimem sua função na vigilância com os usuários das praças e equipamentos públicos como parte de um poder disciplinar
(FOUCAULT, 1979). Os operadores da disciplina entrevistados17 declararam receber orientação para, no desempenho do seu papel, serem incisivos
em relação aos moradores de rua, sobretudo, o maltrapilho ou pedinte que
entra na Praça; este é visto como possível assaltante ou indivíduo que vai
“incomodar” os outros usuários. Comumente, por ocasião da realização de
eventos no local, por exemplo, aos finais de semana, constatando a presença
de pedintes, ali, os guardas ordenam que se retirem; e procedem do mesmo
modo com aqueles que tentam dormir sobre os bancos da Praça. Na prática,
bater nos bancos em que eles estão deitados, falar em tom de voz mais alto
e provocar a retirada são práticas que estão inclusas na abordagem policial.
Além de inibir a presença de moradores de rua, a Guarda volta sua
atenção para as prostitutas. Uma profissional da Guarda afirma identificar
uma prostituta “pela aparência, pelas roupas e porque são mulheres que passam encarando os homens”. Ela declara: “Nós observamos, se tiver algum
idoso [público-alvo] sentado sozinho, nós nos aproximamos se elas tentarem
chegar perto. É proibido abordar as pessoas, elas já sabem disso”. Todavia,
as tentativas de marcar um programa – burlando a ordem estabelecida – entre
as prostitutas e seus clientes dentro da Praça são realizadas em um curto
intervalo de tempo. Segundo informação dos entrevistados, quando alguma
das “meninas”18 entra na Praça, os guardas ficam observando o seu trajeto.
Em caso de abordagem de eventuais clientes, ocorre a ordem de retirada.
A maior parte das ações dos profissionais da disciplina visa afastar os
indivíduos considerados “indesejados”, pois as práticas de comércio sexual
e os constantes furtos realizados ao longo dos anos na Praça construíram,
historicamente, um “estigma”, cristalizando a imagem de espaço inseguro e
distante do padrão de moralidade dominante. Os encarregados da disciplina
associam “todos os problemas” do Passeio Público à presença de prostitutas,
moradores de rua e pedintes que utilizaram o espaço nas décadas passadas
e ainda transitam pelo mesmo.
Contudo, evitar a presença ou expulsar as “meninas” da Praça não pode
ser visto como uma prática excludente. Uma prostituta que ainda frequenta
aquele espaço para marcar seus encontros, afirma que os guardas municipais
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
sabem sobre sua profissão, mas “permitem” suas abordagens a possíveis clientes,
por ela ser uma pessoa comportada e discreta. Ela considera não chamar tanto
à atenção e enfatiza que seu vestuário é diferente das outras “meninas” e que
costuma ficar sentada de forma tranquila nos bancos da Praça. As entrevistas
com as prostitutas revelam a existência de um processo de negociação ou criação
de “brechas” na ordem, relativizando-se, assim, a eficácia plena da disciplina.
São arranjos baseados em práticas que burlam os mecanismos de controle,
incorporando transgressões típicas do espaço urbano (CERTEAU, 2012).
A expulsão dos usuários considerados “indesejados” impõe-se também pela tentativa de afirmação de usos que visam atrair outro público. Para
gestores, permissionários e encarregados da disciplina, as práticas antigas
não podem conviver com as atuais, as quais visam tornar o Passeio Público
um ambiente cultural, de lazer, destinado aos turistas e às famílias.
ÍCONES DO PATRIMÔNIO
Os ícones do patrimônio podem ser entendidos como os objetos situados
no interior da Praça aos quais é atribuído valor material e simbólico. Embora
cada um dos ícones não tenha sido tombado especificamente pelo IPHAN,
todos se tornam passíveis de proteção, na medida em que estão inseridos no
ambiente do Passeio Público. Há, assim, uma articulação entre o material
e o simbólico, proporcionando ao lugar um ar bucólico e semelhante ao de
um museu, no qual várias peças estão dispostas para contemplação. Através
da observação empírica, constatamos, ali, a presença de bustos, esculturas,
fontes, árvores, coreto, quiosque, lago artificial e caixa d’água.
Dentre os ícones da Praça, é atribuído maior destaque ao Baobá. Trata-se de uma árvore centenária, de origem africana, muito alta e de tronco
largo, plantada ali em 1910. “Essa árvore aqui é o cartão-postal do Passeio
Público” e “Todo mundo quer tirar foto no Baobá” são frases comumente
proferidas pelo administrador da praça. Junto ao Baobá, encontra-se também
um grande conjunto de outras árvores. Entre elas, são mencionadas pela
sua denominação popular: mungubeira, macaúba, oiticica, jucazeiro, pau
d’arco roxo e outras.
O Baobá não é tombado em particular; porém, uma vez que integra
o conjunto “Passeio Público”, sua proteção está como que assegurada pelo
tombamento deste último. É interessante destacar que os movimentos em
defesa do meio ambiente também foram importantes para a ampliação das
práticas de patrimônio acionadas no local, associando cultura e natureza
(FUNARI; PELEGRINI, 2006)19.
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RITUAIS DE PATRIMONIALIZAÇÃO
Tornar o local objeto de atração e valorização por meio de visitas,
frequências programadas e contemplação significa entender que os processos
de afirmação patrimonial se fazem acompanhar de rituais de reconhecimento.
Nesse sentido, o quiosque Café Passeio situado na Praça foi central
para pensar os rituais de patrimonialização. Estes são planejados pelos
permissionários em parceria com a SECULTFOR e ocorrem, em sua maioria, na área próxima ao quiosque. O Café Passeio é um estabelecimento de
comércio alimentício que oferece aos visitantes cafés, lanches e refeições
rápidas. Na praça, o quiosque também é diretamente envolvido em atividades
artístico-culturais procurando-se, assim, torná-lo um local de sociabilidade
baseado em frequência mais permanente.
Entre as atividades, os eventos e atrações planejados que mais se
destacaram, por terem sido constantes e agregarem grande quantidade
de pessoas, foram a Feijoada e o Piquenique no Passeio. Estes eventos
podem ser entendidos como rituais de ativação do patrimônio cultural,
na medida em que articulam um duplo processo social: um ato de legitimação que imprime valor histórico, artístico e cultural ou simbólico a
uma construção, objeto ou prática e a perspectiva de um “valor de uso”.
A exaltação de personagens e histórias consideradas significativas para
a nação, confere ao espaço um interesse local, nacional e internacional
(FRIAS, 2000; CRUZ, 2012).
Para além desta definição, esses rituais atribuem novos sentidos,
valores e usos às formas de sociabilidade vigentes em lugares considerados
patrimoniais, fazendo com que não somente a história oficial, mas também
os conflitos e as negociações sejam contemplados (BEZERRA, 2014).
Os eventos realizados no decorrer dos últimos anos, seja por iniciativa
da Secultfor ou de particulares, são como cerimônias pautadas por objetivos, regras e procedimentos que contribuem para uma ordenação social e
cultural de espaços urbanos, funcionando como ritual ou “processo ritual”
(TURNER, 1974). Trata-se de uma ritualidade que se afirma não tanto pela
recorrência, mas pela capacidade de afirmar ícones de valorização do local,
contribuindo para o reforço do que se considera como patrimônio.
FEIJOADA NO PASSEIO PÚBLICO
A Feijoada realizada no Passeio Público faz parte do projeto Sol Maior,
elaborado em 2008. Inicialmente, consistia na realização de apresentações
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
de acordeonistas, executando música instrumental às sextas-feiras, à tarde,
e, aos sábados, shows de saxofonista, baixistas, violonistas e guitarristas.
Fruto de uma parceria entre os permissionários do quiosque e a
SECULTFOR, o evento foi pensado, pelos seus produtores, como algo que
ultrapassasse o âmbito do comércio alimentício. Assim, agregava, também,
outros aspectos da “cultura local”. Desde o início, essa dimensão se expressa
no adjetivo “tradicional” presente em peças publicitárias de sua divulgação,
manchetes de jornais, panfletos e reportagens televisivas. A Feijoada ocorre
todos os sábados, das 12h às 15h, e é o evento que tem tido mais continuidade, ali, pois ano após ano consolidou uma frequência de usuários na Praça.
Segundo os gestores da SECULTFOR, todas as atividades realizadas
durante a Feijoada devem ser ligadas a “cultura, educação e família”, podendo, assim, contribuir para a requalificação do Passeio Público. A Feijoada
se inicia quando um funcionário da Prefeitura se dirige ao palco e lê um
texto cumprimentando os presentes, apresentando os músicos, divulgando
outros eventos e fazendo menção ao projeto de “requalificação”. A praça
é apresentada como um “espaço requalificado, sem riscos ou problemas
sociais”, e há um apelo para a participação das famílias em outras atrações.
Durante a Feijoada, os indivíduos se distribuem nas mesas espalhadas próximas ao quiosque. O evento é concebido como prática de “uso
patrimonial”, isto é, planejado pelos gestores de um patrimônio considerado
requalificado, de acordo com as normas estabelecidas pelos mesmos. Além
disso, a Feijoada pode também ser entendida como um evento-território,
semelhante aos descritos por Osmundo Pinho (1996) ao pesquisar territórios
e desigualdades raciais no Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador, na
Bahia. Segundo Pinho, o evento-território ocorre à medida que a identificação
entre os indivíduos se dá na prática de territorialização do espaço. Assim,
o fato de “estar ou poder estar presente” na Feijoada é indicador de que os
indivíduos partilham de interesses e objetivos semelhantes. O evento-território
descreve um tipo de apropriação da Praça de forma não substancializada,
mas transitória e situacional.
Como em um ritual de afirmação de valores, a cada sábado a Feijoada
se repete com suas regras, procedimentos e outras práticas culturais. Nesse
contexto, vale a pena invocar a cidade de Zirma, descrita por Calvino, considerada uma cidade “[...] redundante: repete-se para fixar alguma imagem
na mente [...], para que a cidade comece a existir” (1990, p. 23). A Feijoada
torna-se um ritual em que símbolos de pertencimento são evocados e “usos
patrimoniais” acontecem afirmando a importância do Passeio Público como
lugar digno de existir e ser preservado.
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PIQUENIQUE NO PASSEIO
O Piquenique no Passeio é outra atração planejada para a “requalificação” da Praça. Projetado em 2012, ocorre aos domingos pela manhã, de
9h às 12h, e consiste na produção de um momento de lazer e entretenimento.
Para o Piquenique no Passeio, a SECULTFOR oferece uma programação
infantil com apresentações de teatro de bonecos, espetáculo de palhaços,
narração de histórias, e, além disso, incentiva os usuários a trazerem esteiras e toalhas para piquenique na grama, configurando-se, ali, momento de
leitura ou descanso.
Desde cedo, pode-se encontrar muitas pessoas em família e/ou grupos de amigos se confraternizando em espaços específicos da Praça, com
objetos próprios: mesas, cadeiras, isopores, depósitos de lanches, garrafas
de café etc. Grupos de pessoas realizam piqueniques na grama; outras
utilizam a tranquilidade de alguns pontos da Praça para leitura ou prática
de orações. Já outros se divertem ao lado do quiosque: um fluxo intenso,
crianças circulam de skate, patins e bicicleta. Nessa área, ocorrem também
ocorrem atividades planejadas pela SECULTFOR, comumente, iniciando-se
às 10:00 horas, agregando um público de muitas crianças e adolescentes
acompanhados de seus pais.
Como ritual, o Piquenique no Passeio apresenta procedimentos semelhantes aos da Feijoada, mas como não é um evento tão concentrado ao
lado do quiosque e se espalha entre outros espaços da praça, leva seus participantes a terem uma atitude de reserva, se afastando de qualquer indivíduo
ou situação que demonstre suspeição. Observa-se que os participantes se
sentem incomodados com um eventual morador de rua sentado em um dos
bancos, ou com a presença de um casal que circula por ali “com abraços
e beijos calorosos”, cenas que remetem à imagem anterior da praça como
“lugar de prostituição”.
A realização do Piquenique mostra, também, como as regras estabelecidas são “negociadas” em algumas situações. Exemplo: existem regras
oficiais proibindo a entrada de animais ou a utilização de veículos não
motorizados (bicicletas) naquele espaço; mas, “em nome da requalificação” e, considerando-se tratar-se de um “ambiente familiar”, se permite a
realização dessas práticas pelos filhos de integrantes de segmentos sociais
supostamente mais abastados.
Desta forma, o Piquenique é mais uma proposta da política de “requalificação” que demarca as segregações existentes no espaço público, pois os
indivíduos considerados marginalizados não são bem-vindos, nem possuem
os códigos culturais necessários para consumir as atrações planejadas.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
OUTRAS ATIVIDADES CULTURAIS
Atividades menos frequentes, designadas como “culturais”, também
podem ser entendidas como rituais, resultando em valorização do patrimônio
simbólico, tais como apresentações teatrais, aulas de Tai chi chuan e rodas
de capoeira.
As ações de entretenimento ou atrações planejadas pela SECULTFOR,
em parceria com outras instituições, convergem para um único objetivo: atrair
público para a Praça. Elas também são pautadas por regras de legislação
patrimonial e de uso do espaço. E, em algum momento de sua realização
– seja inicial ou de agradecimento final –, seus executores costumam fazer
menção à “requalificação” do espaço.
Entre tais atividades, constatamos rodas de capoeiristas; ponto de encontro para prévias carnavalescas; apresentações teatrais do Centro Cultural
Banco do Nordeste (BNB), aulas de Tai chi chuan, duas vezes na semana;
guias de turismo para apresentar a Praça; happy hour, às sextas-feiras, e
os Ensaios Abertos nos quais grupos de música, teatro ou dança realizam
apresentações nas tardes de domingo.
Algumas das situações elencadas reforçam a lógica de “requalificação”
associada à busca de uma “[...] rede de relações que combinam laços de
parentesco, vizinhança, procedência, vínculos definidos por participação em
atividades comunitárias e desportivas” (MAGNANI, 2002, p. 21). Contudo,
a Praça não conseguiu por meio das designadas atividades culturais realizar
as funções (esperadas) de construção de um espaço público diferenciado
e baseado na presença de diversos segmentos sociais portadores de uma
sociabilidade desejada. A maioria dos eventos citados que funcionaram
durante um período não teve continuidade.
As atividades se caracterizam também como um “evento-território”
por serem pontuais e baseadas na utilização transitória e situacional do local,
estando marcadas por uma lógica de montagem e desmontagem (PINHO,
1996). Ao término das “atividades culturais”, prevaleceu um princípio de
retirada tal como no final de um espetáculo.
EVENTOS OU ATIVIDADES PARTICULARES
Os eventos particulares são aqueles de iniciativa privada que não
supõem envolvimento imediato com os poderes públicos. São, no entanto,
valorizados pelos gestores e considerados desejáveis para a conservação
do patrimônio, pois mesmo não tendo sido previstos de forma clara no
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projeto inicial de “requalificação”, contribuem para a dinamização e valorização do local.
Entre os acontecimentos ligados a públicos específicos, destacam-se
casamentos, festas de aniversário, lançamentos de livros, congressos e piqueniques. Esses eventos não fazem menção à “requalificação” do espaço
(exceto, os lançamentos de livros), e seus organizadores costumam ser livres
de sanções ao descumprirem regras oficiais estabelecidas para a utilização da
Praça20. A maioria dos eventos particulares envolve atividades relacionadas
a educação, como o lançamento de livros e realização de palestras, atraindo
grande número de intelectuais e estudantes, por exemplo, casamentos e comemorações de aniversários, congregando relações familiares. Os espaços
da Praça tornam-se também cenários para books de casamento.
PATRIMÔNIO, PRÁTICAS SOCIAIS E TEMPORALIDADE
Descrever o conjunto de práticas e atores envolvidos na tentativa de
dar sentido e fazer a “recuperação histórica” do patrimônio supõe desnaturalizar a preservação e mudança de usos como “problemas” em si mesmos
que caracterizam os diferentes espaços urbanos.
Percebe-se que a ideia de “cuidar de patrimônio” envolve não apenas
recuperar edificações e espaços danificados pelo tempo, mas também incutir
na população percepções de valorização, realizando a travessia entre passado
e presente. Assim, efetivam-se narrativas sobre o local, conferindo-lhe o
caráter emblemático de ícone da cidade, integrante do centro urbano. Tornar
“público” o espaço público supõe intervenções e programas governamentais
que, sob a égide da “requalificação”, se propõem a realizar uma série de
atividades, envolvendo instituições e práticas culturais capazes de atrair
visitantes de forma mais sistemática. Crianças e jovens tornam-se o alvo
das programações, sendo a culinária e as atividades de recreação acionadas
como possibilidade de ocupação do local.
Conflitos em torno de antigos e potenciais usuários reeditam a “guerra
de lugares” (ARANTES, 2000), que percorre as diferentes localidades da
Praça outrora ponto de atração da elite local. Isso significa que os processos
de intervenção gerenciam os conflitos, buscando conferir dignidade por meio
da expulsão de frequentadores considerados inconvenientes. Os usuários
da rua que passam a ter no Centro um espaço de permanência tornam-se
alvo da segurança, expressando a divisão espacial que vem caracterizando
a cidade nos últimos decênios.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
E é na perspectiva de um patrimônio que busca imprimir usos com
dificuldades de serem sedimentados no cotidiano que os conflitos simbólicos
entre sentidos e estratos sociais se atualizam. Os liames entre a cidade e o
local tornam-se difíceis de serem restabelecidos, antagonizando-se com o
cartão postal do passado. Distante da monumentalidade que empresta ao
patrimônio certa noção de naturalidade, a Praça dos Mártires põe a questão
de como inventar novas formas de ocupação do espaço, tendo em vista as
mudanças promovidas pela reforma, e “o como fazer” com que práticas
advindas de intervenções institucionais mais recentes passem a adquirir
formas de sociabilidade, no sentido atribuído por Simmel (1983), contra a
fluidez que caracteriza os usos do espaço no centro da cidade.
Em síntese, a busca de retorno aos espaços da cidade por segmentos
das classes médias e alta visa demarcar concepções e formas de uso do
patrimônio, exprimindo tanto as profundas desigualdades sociais existentes
na cidade, como sentidos que articulam memória e consumo na vida urbana
contemporânea.
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NOTAS
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1 A Confederação do Equador foi um movimento revolucionário que
pretendia criar um novo Estado no Nordeste, adotar a república como
forma de governo e lutar por igualdade social. Devido à proximidade com
o Forte, o espaço da Praça tornou-se um lugar destinado a execuções de
pena de morte dos confederados vencidos em 1824. O nome Praça dos
Mártires é uma homenagem aos principais participantes desse movimento:
Pessoa Anta, os tenentes coronéis Ibiapina e Carapinima, o tenente de
milícias Azevedo Bolão e o padre Mororó (ARAGÃO, 1999).
2 Para efeito da sua administração municipal, os bairros da cidade de
Fortaleza são agrupados em 6 áreas denominadas “regionais”, além do
Centro. Cada regional tem sua secretaria. A Secretaria Extraordinária do
Centro (SECE) é a responsável pelos serviços de execução, gerenciamento
e assessoria de políticas públicas, bem como pelo desenvolvimento de
estudos e elaboração de projetos para o bairro Centro.
3 “Em nome do patrimônio” é uma expressão que serve de referência
ao discurso dos gestores que justificam as propostas de intervenção,
considerando ser o Passeio Público um ícone da “história da cidade”.
4 O diagnóstico da praça é também corroborado pelo senso comum,
incluindo “pesquisa” feita por alunos do Colégio Militar de Fortaleza
cujo relatório final registra “ser a história da praça desconhecida para a
maioria dos habitantes da cidade por conta da insegurança”. E os alunos
acrescentam que muitos turistas e fortalezenses a viam apenas das janelas
dos ônibus, por ser considerado lugar que “serve de abrigo a todo tipo
de delinquência”.
5 Os investimentos foram em parte da Prefeitura (que conseguiu R$
150.000,00 (cento e cinquenta mil reais) com Programa de Desenvolvimento do Turismo no Nordeste (PRODETUR) e outra parte de empresas
privadas (VASCONCELOS, 2008). Do valor total, R$ 45.000,00 (quarenta e cinco mil reais) foram doados sob a forma de tinta e grama, pelo
Instituto Cor da Cultura. Após a reinauguração do Passeio Público, este
Instituto promoveu o evento Casa Cor, no Museu da Indústria, localizado
defronte ao Passeio Público, utilizando a praça como ante-sala para o
evento (PEIXOTO, 2007).
6 A Secretaria de Cultura de Fortaleza, responsável pelo processo de
ativação do patrimônio cultural, tornou-se, a partir de 2007, o principal
órgão responsável por atividades capazes de emprestar outra funcionalidade aos espaços públicos da cidade.
7 Segundo Jacques (2008), há um processo de espetacularização dos bens
culturais, reduzidos a mercadorias mais voltadas para comercialização.
8 Reunião do Planefor (Plano Estratégico da Região Metropolitana de
Fortaleza), realizada em 9 de abril de 2015, da qual participaram entidades do bairro, com o objetivo de propor projetos para a área, incluindo
“participação da população”.
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9 Para a utilização do conceito de narrativa, tendo em vista pensar sobre
representações das cidades contemporâneas, ver BARREIRA, Irlys. A
cidade como narrativa. Lisboa: ICS, 2013.
10 A pesquisa de campo que serviu de subsídio a este texto foi feita por
Willams Lopes, como parte de sua dissertação de mestrado (LOPES,
2013). Integra-se à pesquisa do Laboratório de Estudos de Política e
Cultura (Lepec) sobre Cidade e Patrimônio, que faz parte do objeto de
investigação de Irlys Barreira, no contexto da bolsa de produtividade
em pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPQ).
11Propaganda disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=rgd4Po6XqCo>. Acesso em: 10 jan. 2014.
12 Nas entrevistas realizadas com os gestores, o termo “requalificação”
é aplicado em contraposição à palavra “revitalização”. Trata-se de uma
revisão do conceito que vem sendo alvo de críticas, pois, segundo afirmam,
o Passeio Público sempre teve vida e precisava apenas de mudanças na
forma de utilização do espaço.
13 O fórum Amigos do Passeio Público sofreu descontinuidade por falta
de quórum e, alguns meses depois, a Organização Não-Governamental
(ONG) Mediação dos Saberes foi contratada pela Prefeitura Municipal para
realizar atividades culturais, tendo em vista dinamizar os usos da Praça.
As iniciativas desenvolvidas foram: instalação de mesinhas e tabuleiro de
xadrez, apresentação de grupos teatrais, aulas de ioga, shows musicais de
chorinho e piano. Contudo, o contrato foi suspenso no primeiro semestre
de 2008, por conta da insuficiência de participantes.
14 Prefeitura Municipal de Fortaleza. Disponível em:
<http://www.fortaleza.ce.gov.br/cultura/index.php?option=com_content&task=view&id=10482&Itemid=119>. Acesso em: 15 jan. 2014.
15 Documento intitulado “Procedimentos de proteção e guarda da Praça
dos Mártires (Passeio Público)”, arquivo da SECULTFOR.
16 A Guarda Municipal do Passeio Público é constituída, diariamente,
por uma dupla de guardas, comumente, um homem e uma mulher que
trabalham das 6h30 às 18h30. Durante a noite, são seguranças armados
que fazem a defesa patrimonial, sob gestão de uma empresa privada,
contratada pela Prefeitura.
17 No contexto da pesquisa de mestrado de Willams Lopes, foram realizadas
entrevistas com seis guardas municipais: três em 2010 (dois homens e uma
mulher), e outras três em janeiro de 2012 (dois homens e uma mulher).
Optamos por manter o anonimato dos informantes.
18 Categoria nativa utilizada para identificar as mulheres prostitutas.
19 Trata-se de associação já formulada há décadas, pois, no final de 1950,
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a legislação de proteção do patrimônio ampliava-se para o meio ambiente
e para os grupos sociais e locais (FUNARI; PELEGRINI, 2006).
20 Um exemplo significativo foi a realização, na Praça, do XIX Congresso Brasileiro de Perinatologia, em 2007. Dois guardas municipais
comentaram que os organizadores de tal evento fecharam os portões da
praça, fazendo do espaço público um ambiente privado. Mesmo assim,
nenhuma medida foi tomada em relação a tal episódio. Em outros eventos,
percebe-se a presença irregular de animais e de uma intensa movimentação
que contribui para a danificação da grama e das árvores.
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
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TEMPO, USOS E RITUAIS: INTERVENÇÕES PATRIMONIAIS EM UM “CENTRO HISTÓRICO”
Palavras-chave:
patrimônio; rituais;
usos; Praça dos Mártires.
Fortaleza.
Keywords:
Heritage; rituals; uses; Praça
dos Mártires; Fortaleza.
Resumo
O artigo analisa as políticas de preservação do patrimônio designadas como “requalificação”, com ênfase nas
intervenções, estratégias e práticas sociais consequentes.
As ações feitas em nome do patrimônio implicam um
processo de substituição de usuários por meio de rituais
de entretenimento, buscando atrair turistas e moradores de
classe média. Os conflitos de natureza social e simbólica
exprimem as dificuldades de incorporar ao local novas
formas de sociabilidade, pondo em pauta a questão do
tempo, dos usos e da transformação dos espaços urbanos.
A reflexão tem como referente empírico os projetos de
intervenção realizados na Praça dos Mártires, situada no
Centro de Fortaleza, Ceará.
Abstract
The article analyses historic and cultural heritage preservation policies named “requalification”, focusing on
interventions, strategies, and social practices resulting of
it. Actions taken on behalf of heritage happen by means
of a process that changes users by using entertainment
rituals, trying to attract tourists and middle class residents.
Conflicts of social and symbolic nature show the difficulties of incorporating in the place new ways of sociability,
requiring discussion of time, uses, and transformation of
urban areas. The article uses as empirical reference the
intervention projects made in Praça dos Mártires, located
at Fortaleza downtown, Ceará.
Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em maio/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 93-118
Etnografia de uma cidade redesenhada
pela pichação/graffiti
Zulmira Newlands Borges
Doutora em antropologia social pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS).
Fez pós doutorado em educação.
Professora Associada IV, do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Laure Garrabé
Doutora em Antropologia Social, Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord.
Professora visitante na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Rodrigo Nathan Romanus Dantas
Mestrando do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Este artigo apresenta alguns itinerários de campo da
pesquisa etnográfica em que analisamos as tensões, conflitos,
disputas, resistências e também conformidades e deformidades
na construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/
grafiteiros de Santa Maria, cidade do interior do Rio Grande do
Sul. Os dados indicam uma grande efervescência semântica em
torno da pichação/graffiti, sendo possível interpretar a cidade
como um todo que é partilhado por múltiplas e discordantes
percepções individuais, mais especificamente, a pichação/
graffiti como um ponto de encontros discordantes. Entretanto,
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buscamos neste texto menos a análise de tais tensões, do que refletir sobre
como estas (des)orientaram e desviaram nossas interpretações desse fenômeno globalizado em seu contexto local.
Na medida em que na coleta de dados através da pesquisa de campo
identificávamos esses percursos práticos na cidade, observávamos um jogo
de interpretações desenhar-se nas várias triangulações das linhas que nos
propusemos analisar, que não podiam deixar de chamar nossa atenção sobre
algum interpretativismo em questão. O objeto, o graffiti/pichação, já traz
per se várias camadas de potenciais imaginários, podendo falar sobre a cultura dos grafiteiros/pichadores em Santa Maria. Tal cultura porta signos ou
imagens nas quais a interpretação e a imaginação agem de várias maneiras,
sendo intermediária entre o concreto e o conceito (LÉVI-STRAUSS, 1974).
E nossas vadiagens de “marcheur” (LE BRETON, 2012), nas teias que
formavam os vários pontos de pichações/graffiti ligados entre si, captaram
diversas interpretações (dos pichadores/grafiteiros; dos poderes públicos,
dos donos de casas pichadas/grafitadas, de atores culturais e da mídia sobre
diversos eventos envolvendo a pichação/graffiti) dos atores e comentadores
dessas interpretações, sobre ou a partir de tais imagens ao mesmo tempo
interpretadas e interpretativas. Nessa profusão e efervescência semântica, as
interpretações do etnógrafo se tornam seus desafios metodológicos.
A partir da apresentação do objeto, da sua problematização e a da
descrição da nossa entrada como participante, delinearemos alguns pontos
fortes do interpretativismo de Clifford Geertz (1978), na medida em que
apontam, nesta etnografia, eixos fazendo coincidir o objeto sobre a qual o
antropólogo fala (o graffitti/pichação) e a maneira como fala dele (interpretações “essencialmente contestáveis”, GALLIE).
A cidade de Santa Maria, hoje com cerca de 270 mil habitantes,
situada na região central do Estado do Rio Grande do Sul-Brasil, e também
conhecida como o “coração do Rio Grande”, caracteriza-se como um pólo
militar nacional e referência regional em serviços na área da saúde. Mas,
Santa Maria define-se, principalmente, como cidade universitária, pois há
uma oferta relativamente grande de serviços e instituições na área da educação (dezenas de universidades; cursos preparatórios para concursos; escolas
técnicas, etc.), o que leva à predominância de um público jovem, oriundo
de diversas áreas do estado e de outras regiões do Brasil.
Ao andarmos pelas ruas das grandes cidades contemporâneas, variados
estímulos visuais disputam nosso olhar. Encontramos nessa disputa pelo
foco de nossas retinas o graffiti/pichação. Em Santa Maria, apesar de não
se tratar de uma metrópole, tais inscrições urbanas marcam sua presença
no mar de signos da cidade.
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Diante da prufusão sígnica do urbano, o ato de flanar – tema estudado
por Charles Baudelaire (1996) – adquire função metodológica. Trata-se de
o etnógrafo deixar levar-se pelo fluxo urbano. Para usar uma metáfora de
Guy Debord (2003), entregar-se à deriva urbana. Caminhar e olhar a cidade,
duas práticas que representam, literalmente, os primeiros passos de uma
pesquisa que tem os pichadores/grafiteiros como objeto e a cidade como
campo de estudo. Michel De Certeau chama a atenção para as formas como
os indivíduos andam pela cidade, pois o caminhar, segundo ele, é um ato de
enunciação, equivalente ao ato de linguagem tal como definido por Austin
(1971); “o caminhante transforma em outra coisa o significante espacial”
(DE CERTEAU, 2007, p. 178). Parece ser mais pertinente a noção de práticas urbanas (que designa vias, trajetórias, itinerários, atalhos, narrativas
diárias...), proposta pelo autor, do que qualquer conceito de cidade ligado a
uma lógica meramente urbanística ou econômica. Muito mais do que uma
configuração física espacial, a cidade é composta por várias camadas de
teia de significados.
Nesse sentido, se é caminhando e olhando a cidade que o etnógrafo
adentra o campo, é dessa forma também que os pichadores/grafiteiros deixam
suas marcas pelo urbano. No tocante a uma antropologia urbana, cabe, portanto,
nos perguntarmos: assim como o caminhante desenha e redesenha a cidade,
como e de que forma a cidade desenha e redesenha o fazer etnográfico? E,
no caso desta pesquisa: assim como os pichadores/grafiteiros desenham e
redesenham a cidade, como e de que forma eles desenham e redesenham o
olhar etnográfico, bem como as posturas do etnógrafo diante dele?
O ERRÁTICO METODOLÓGICO
O surgimento do graffiti/pichação em Santa Maria remete ao ano de
2001. Tecemos uma trama histórica sobre a primeira onda do movimento,
o recorte temporal compreendido entre 2001 e 2011, em pesquisa anterior
(DANTAS, 2011). Em 2012 e 2013 ocorreram, respectivamente, a Operação
Cidade Limpa e a Operação Rabisco, dois empreendimentos do poder público
(Polícia Civil e Prefeitura Municipal de Santa Maria), no sentido de tentar
coibir a prática. Dezenas de mandados de busca e apreensão foram feitos
nas casas de “suspeitos”. A partir desses eventos, começou também o que
alguns pixadores/grafiteiros chamam de “nova onda” ou “nova geração”,
fortemente marcada por influências estilísticas da Escola Paulista de Pichação.
Em O sujeito-pixador: tensões acerca da prática da pichação paulista, Daniel Mittmann (2013) afirma que, a partir dos anos 1990, a pichação
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paulista passou por uma transmutação: de um estágio poético experimental
para uma prática egóica e territorial, na qual o que importa é marcar a cidade
em seus lugares mais visíveis, em especial, no alto dos edifícios. Mittmann
(2013) chama essa nova configuração de pixação (com “x”) ou Escola
paulista de pichação, que tem entre suas principais características gráficas
a produção de letras alongadas, retas e pontiagudas, desenhadas com rolo
de pintura. Na maior parte dos casos, a pixação é composta por siglas e/
ou letras de um alfabeto próprio do pixador, um tipo de escrita fechada, ou
seja, de pixadores para pixadores.
Inicialmente, o objetivo da pesquisa era tentar compreender essa
“nova geração” e o contexto das operações “Cidade Limpa” e “Rabisco”,
em Santa Maria. O problema central era entender quais os impactos das tais
operações sobre a prática da pichação/graffiti em Santa Maria. Entretanto,
na medida em que nos deixamos ir à observação participante, nos demos
conta de que a cidade e os sujeitos observados, além de re-configurarem
espacial e socialmente a cidade, redesenhavam o nosso fazer etnográfico.
Para sermos mais precisos, surgiram outras questões interessantes no
campo, levantadas pelas interações específicas entre as várias práticas dos
pichadores/grafiteiros, como as inscrições nos muros, as bandas e os grupos de rap locais que abordam o tema da pichação/graffiti. Além disso, foi
possível multiplicar os pontos de vista e apreensões com diversos trabalhos/
debates acadêmicos sobre pichação/graffiti que estavam sendo produzidos
por pichadores/grafiteiros locais, bem como através das páginas e sites sobre pichação/graffiti em Santa Maria, com as oficinas de graffiti/pichação
organizadas pelos pichadores/grafiteiros em escolas. Para além do escopo
da problemática em torno das operações, elas permitiram a valorização de
novos enfoques.
Paralelamente aos redesenhos do campo, algumas proposições teóricas de Jacques Rancière foram fundamentais para a reformulação do
problema de pesquisa, particularmente seu conceito de partilha do sensível, o qual liga estética e política (RANCIÈRE, 2005), e, assim fazendo,
podíamos tecer uma perspectiva analítica entre nossas preocupações pela
reconfiguração arquitetônica (espacial, mapeamento, circuito…) da cidade
e a expressão estilística dos pichadores (a análise gráfica, a construção dos
imaginários, etc.). Resumindo a ideia de partilha do sensível, temos, por um
lado, a participação em um conjunto comum, e por outro, a separação em
percepções individuais e discordantes: a distribuição polêmica das maneiras de ser e das ocupações num espaço de possíveis. Estética e política se
tornam, assim, operatórias para nossa análise, por ambas dizerem respeito
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a “posições e movimentos de corpos; funções da palavra e repartições do
visível e do invisível” (RANCIÈRE, 2005, p. 26). No caso desta pesquisa,
a cidade pode ser pensada como esse todo que é partilhado de múltiplas e
discordantes maneiras, tomando mais especificamente a pichação/graffiti
como um ponto desse encontro discordante. Também é possível pensar
a partilha do sensível num recorte mais restrito, tendo como comum, por
exemplo, os grupos de pixadores/grafiteiros e as múltiplas percepções desses
indivíduos sobre o(s) grupo(s).
Nesse caminhar na cidade, tanto a prática do campo quanto as teorias apontavam para a importância daquilo que é dado a ver e daquilo que
é ocultado pelos agentes pesquisados. O conceito de visibilidade impôs-se
por tratar da construção da inteligibilidade dos acontecimentos, e das formas pelas quais são dados a ver e a entender. Não obstante, é importante
lembrar que o olhar do etnógrafo não é onisciente, não vê tudo, e que ele é
também orientado pela sua experiência historicamente constituida; ou seja,
a construção do nosso próprio olhar modelaria nossas formas de apreender,
selecionar, e entender tais visibilidades.
A visibilidade tem ligação direta com o conceito de partilha do
sensível, pois, para Rancière (2005), estética e política são maneiras de organizar o sensível: “A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer
sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidade para
dizer, das propriedades do espaço e dos possíveis do tempo” (RANCIÈRE,
p. 17). Nesse sentido, falar em visibilidade acarreta, necessariamente, falar
em invisibilidade, na medida em que tal organização do sensível descrever
também consensos e dissensos entre grupos sociais compartilhando um
mesmo contexto espacial e temporal.
Segundo Ricardo Campos (2009), é nesse jogo entre anonimato e dar-se
a ver que o writer (pichador/grafiteiro) vive sua prática. O writer busca um
anonimato em relação ao exterior, ou seja, perante a Polícia e os grupos de
poderes hegemônicos/estabelecidos, que para ele representam uma ameaça.
Ao mesmo tempo, não é um anonimato absoluto, pois o writer cria uma
nova identidade que ele expressa em uma tag, podendo interpretar-se como
sua assinatura, ou marca. O writer procura dar o máximo de visibilidade
à sua tag; é através dela que ele busca reconhecimento perante seus pares.
Assim, o pichador/grafiteiro é um tipo de autor-escritor urbano
que, ao transitar entre a linguagem-teatro (o desejo de fascinar através das
letras e cores) e a linguagem-meio (o desejo de transmitir fatos e ideias),
contribui para a heteroglossia característica das cidades globais. Em uma
antropologia da urbanidade, o andar errático do etnógrafo pela cidade em
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meio às pichações/graffiti desenha e redesenha caminhos pelos quais tal
heteroglossia urbana tende a invadir o texto. Esses caminhos apontam para
aquilo que James Clifford (2011) chama de desintegração ou redistribuição
da autoridade etnográfica.
Nesse sentido, a partir dessa ligação entre estética e política, abre-se
a possibilidade de se questionar acerca das formas pelas quais se dão os
processos de construção das visibilidades/invisibilidades dos indivíduos e
grupos em relação ao todo que é partilhado de maneiras dissonantes, a partir
de uma cultura comum: o graffiti/pichação na Santa Maria contemporânea.
Tomando por base a partilha do sensível, podemos indagar: como são construídas as visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros de Santa
Maria? Como os grupos de pixadores/grafiteiros se formam e se deformam
nos processos de construção de visibilidades/invisibilidades? Na tentativa
de dar conta de respostas a esse tipo de perguntas, lançamos um olhar sobre
os processos de construção dessas visibilidades/invisibilidades, tanto pelo
poder público e pelos jornais locais quanto, principalmente, pelos próprios
pichadores/grafiteiros, através de seus diversos enunciados (as inscrições
nos muros; as publicações na internet; suas músicas; seu vestuário; suas
gírias; os eventos locais sobre o tema...).
PODICRÊ! É NÓIS!
Os pichadores/grafiteiros de Santa Maria têm entre 16 e 35 anos de
idade, estando a maioria concentrada no intervalo de 16 a 20 anos. Os quinze
grafiteiros/pichadores com os quais mantivemos maior contato estão na faixa
dos 20 aos 35 anos. Apenas dois deles tinham menos de 18 anos. A maioria
é estudante e/ou trabalhador e mora com a família. Trata-se de rapazes (a
maioria, cerca de 70%) e moças oriundos de diversas áreas da cidade, de
diferentes estratos sociais, níveis de escolaridade e “etnias”.
Segundo Jean Baudrillard (1996), o graffiti novaiorquino produzido
no início da década de 1970 – que iniciaria historicamente o “movimento
artístico” – tinha as paredes e vagões dos metrôs como suporte primordial
para sua visibilidade, e era feito por jovens moradores dos guetos afro-latinos. Em Santa Maria, diferentemente, recortes étnicos ou de classe são
insuficientes para pensarmos os elementos que constituem o que é comum
entre os grafiteiros/pichadores de cidade. Assim, além da prática da pichação/
graffiti em si e do binômio visibilidade/invisibilidade, os pontos de encontro, o vestuário, as gírias e as músicas, e critérios estilísticos são melhores
indicadores das regularidades do que critérios de classe e etnia.
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A maioria dos pichadores/grafiteiros usa: boné de aba reta, alargadores
nas orelhas, piercings, tatuagens, moletom de capuz e jeans mas, preferencialmente, calças, bermudas e camisetas largas, aproximando-se de certa
moda global hip-hop. Dentre as principais gírias, pode-se ouvir rolê (saída
para pichar/grafitar ou ponto de encontro); quebrada (a periferia, sendo
subentendido um orgulho da familiaridade, em relação aos seus perigos e
precariedades, mesmo para aqueles que não são seus moradores e que empregam a gíria); atropelar (pichar/grafitar sobre a pichação/graffiti de outro
pichador/grafiteiro), e como saudações, salve, podicrê e é nóis. A maioria
ouve rap, mas não somente: o punk rock, o hardcore, o funk, o reggae e o
rock n’ roll também estão presentes nas referências e repertórios culturais de
muitos pichadores/grafiteiros. O uso de cannabis e/ou a presença constante
de referências imagéticas à planta entre os pichadores/grafiteiros também
são elementos comuns.
A partir do trabalho de campo, torna-se possível estabelecer genericamente, as motivações dos grafiteiros/pichadores em quatro tendências
que podem se combinar e recombinar de diferentes maneiras: 1) a busca por
reconhecimento social e marcação de território; 2) a busca por adrenalina,
lazer e amizades; 3) a vontade de expressar-se e/ou protestar 4) a aspiração
profissional e/ou de fonte de renda.
Outro aspecto importante são os transbordamentos promovidos por
eles em relação à dicotomia entre graffiti (legal, “arte”, “bonito”...) e pichação
(ilegal, crime, “feio”...), estabelecida pelo Estado e reproduzida pela maioria
dos meios de comunicação. Como veremos adiante, os sujeitos transitam
entre as duas práticas/definições e vão para além delas (colam adesivos,
produzem fanzines...). Nossos dados mostram que a grande maioria dos
indivíduos pequisados riscam, colam e pintam os muros sem autorização
dos proprietários (apenas eventualmente o faziam com autorização), ou seja,
infringiam a lei, ou ainda se prestam a tais atividades; e, portanto, também
passavam ou passam por frequentes processos de acusação e rotulação
públicas (“vândalos”; “criminosos”; “bandidos”...). Eis o nosso principal
argumento para a utilização dos termos “pichação/graffiti” e “pichadores/
grafiteiros”. O emprego dos dois termos – “unidos” e separados por barra –
se dá devido ao fato de que, em Santa Maria, as fronteiras que delimitam as
duas práticas são bastante porosas; além disso, até agora não encontramos,
em âmbito local, exclusividade no uso desses termos, em alusão a uma ou
a outra dessas artes. Poderiam ser usados aqui outros termos que superam a
dicotomia, como “grafismos urbanos” (FONSECA, 1981) ou “apropriações
visuais do espaço urbano” (KESSLER, 2008); entretanto, estes estão basRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
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tante distantes do vocabulário dos nativos com os quais interagimos; assim,
deixamos a voz deles soar com a formulação “pichação/graffiti”.
No decorrer de um ano e meio de trabalho de campo, percorrermos
diferentes cenários de interação entre pichadores/grafiteiros. Três deles serão
abordados aqui: um ponto de encontro na cidade; um grupo de pesquisa; e
um encontro ao acaso na cidade. Antes, porém, chamamos a atenção para
a inserção em campo, mais especificamente, para o lugar do etnógrafo e os
processos de abordagem dos sujeitos pesquisados.
ESTRANHAMENTOS E NEGOCIAÇÕES
Já faz algumas décadas que é de grande importância na antropologia
a reflexão do etnógrafo sobre seu próprio posicionamento diante de objeto
de estudo, bem como a análise crítica de suas escolhas práticas em campo.
Trata-se daquilo que Teresa Caldeira (1988) chama de “presença do autor”.
Redesenhamos, portanto, alguns dos caminhos e escolhas no nosso encontro
com o objeto de pesquisa.
A pichação/graffiti é familiar para todos nós há muitos anos; mesmo
nas cidades pequenas do Rio Grande do Sul, já víamos traços e rabiscos
com nomes de bandas de rock, times de futebol ou alguma manifestação de
contestação ou de revolta. Mas eram eventos raros, isolados, inconstantes
e de poucas cores. Eram expressões solitárias, quase perdidas no meio
das cidades. Nos últimos anos, contudo, temos assistido a uma crescente
apropriação do espaço urbano. Hoje há uma indiscutível profusão dessa
manifestação urbana, coletiva, cheia de sentidos, de disputas e de tensões.
Nossa memória do espaço urbano nos ajuda a refletir sobre as mudanças
semânticas da pichação/graffiti.
Partindo da ideia de Roberto Da Matta sobre o anthropological blues
(a necessidade de o etnógrafo transformar o exótico em familiar e vice
versa) aplicada a este caso, nos perguntamos: como se dá o “desligamento”
emocional para transformar a familiaridade da pichação/graffiti em algo
exótico? Segundo Da Matta, “o sentido do familiar e do exótico é complexo,
precisamente porque os termos não devem ter uma implicação semântica
automática” (DA MATTA, 1978, p. 160). Existem níveis de familiaridade;
nem tudo o que é familiar é necessariamente conhecido, e o inverso também
se aplica: nem tudo o que é exótico é necessariamente desconhecido.
Nosso interesse em pesquisar sobre grafiteiros/pichadores de Santa
Maria começou em 2007, em meio a algumas discussões promovidas pelo
Laboratório de Ensino e Metodologia do Ensino (LAMEN) da UFSM que
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encaravam a rua como um espaço de educação, um palco de trocas de saberes e experiências não escolares, algo que nos despertou outro olhar sobre a
pichação. Um olhar questionador que contribuiu para um estranhamento da
pichação/graffiti, antes vista somente como manifestação de adolescentes
em busca de adrenalina e/ou com propósitos de contestação. Da mesma
forma, elementos que permeiam a pichação/graffiti – como o rap, o skate, as
gírias, o vestuário, a produção e a colagem de stickers (adesivos artesanais)
e stencils (moldes vazados) pelas ruas – eram relativamente familiares, mas
desconhecidos para nós até então.
No retorno ao campo, em fevereiro de 2014, talvez tenha sido mais
difícil estranharmos a pichação/grafitti de Santa Maria do que no inicio da
pesquisa, em 2007. Entretanto, o contato cotidiano com pessoas leigas em
relação ao tema – principalmente alunos e colegas de trabalho, que fazem
comentários como: “não quero meu muro riscado”, “pichação é poluição
visual” ou “quem picha meu muro sem meu consentimento está passando
por cima da minha liberdade”, os quais refletem um pouco as tensões
existentes – nos ajuda a fazer o exercício do estranhamento em relação à
pichação/graffiti. Como ressalta Gilberto Velho, “sendo o pesquisador um
membro da sociedade, coloca-se, inevitavelmente, a questão de seu lugar
e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder ‘por- se
no lugar do outro’” (1978, p. 40). Neste caso, a aproximação em relação ao
lugar do outro não se refere apenas ao lugar dos pichadores/grafiteiros, mas,
também, ao lugar dos indivíduos leigos em relação a essa prática, tendo em
vista que seria difícil analisar a pichação/graffiti se fosse levada em conta
unicamente a visão de seus autores.
Em meio aos nativos, o estranhamento se deu, principalmente, em
relação aos grafiteiros/pichadores mais novos – que têm entre 16 e 20 anos
de idade – e também àqueles oriundos das regiões mais periféricas da cidade. Em certos momentos do trabalho de campo, ficou muito perceptível
esse distanciamento, tanto pelas vestes, gírias e trejeitos quanto pelo reconhecimento, por parte deles, de que não somos “da quebrada” (periferia).
Soma-se a isso a atmosfera de desconfiança desencadeada, segundo alguns
deles, pelas operações “Cidade Limpa” e “Rabisco”. Um dos grafiteiros/
pichadores mais próximos comentou que alguns desconfiavam da presença
dos pesquisadores e suspeitavam que fossem policiais infiltrados. Eis o evento
que revelou que não pertencíamos ao grupo deles, em outras palavras, que
não podíamos simplesmente adentrar a cultura ou falar sobre ela. Isso não
significa, entretanto, que a experiência e a interpretação etnográfica se dêem
em relação a uma “outra” realidade circunscrita, mas sim que elas são frutos
das negociações entre o etnográfo e os nativos.
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Por outro lado, os pichadores/grafiteiros mais velhos com os quais
já mantínhamos algum contato, antes mesmo da pesquisa, foram bastante
receptivos e procuraram fazer esclarecimentos aos que não nos conheciam,
para que estes não pensassem que se tratava de um “P2” (policial infiltrado). Ressalte-se aqui a posição ocupada pelos grafiteiros/pichadores mais
próximos, no contexto local diante dos demais. Trata-se dos “caras mais da
antiga”, aqueles que dominam os códigos da pichação/graffiti, servindo, na
maioria dos casos, como referência para os mais novos ou, pelo menos, sendo
respeitados por estes. O redesenhar da figura do pesquuisador promovido
pelos pichadores/grafiteiros mais próximos ajudou o redesenhar da postura
dos mais desconfiados diante da presença dos pesquisadores em campo. Ao
longo dos meses que se seguiram, a nossa presença nos encontros e festas
frequentadas e organizadas pelos pichadores/grafiteiros foi se tornando cada
vez mais aceita.
A estratégia utilizada foi de avançar progressivamente e com cuidados;
buscar primeiramente aproximações com os grafiteiros/pichadores com os
quais tínhamos maior afinidade, e dar preferência à observação e às conversas
informais, antes da realização de entrevistas formalizadas (com o uso de
gravador; câmera...). Da mesma forma, passamos a frequentar encontros e
festas para criar maior intimidade ao ponto de tecer uma rede mais ampla
de sociabilidades e trocas com os sujeitos pesquisados.
O ALARGAMENTO DA PICHAÇÃO/GRAFFITI ENTRE QUATRO
PAREDES
Observar a forma como os sujeitos se inserem e circulam na paisagem urbana, como assinala José G. Magnani (2005), é uma das principais
características da antropologia urbana. Nesse sentido, em caminhadas pela
cidade, procuramos mapear os pontos de encontro dos pichadores/grafiteiros
de Santa Maria e escolher um deles para dar início à aproximação. Escolhemos uma loja que, de acordo com sua página do Facebook, é especializada
em “cultura urbana, graffiti e street art”, localizada no Bairro de Fátima,
arredores do Centro.
O dono da loja é um grafiteiro/pichador bastante conhecido na cidade
e um dos nossos principais interlocutores na pesquisa. A loja funciona de
segunda a sábado, em horário comercial, sendo que, entre fevereiro e maio,
foram organizadas no local algumas exposições, debates e happy hour, nas
noites de sexta e sábado. Além dos sujeitos da pesquisa, observamos que a
ambiência do lugar também tinha algo importante a dizer sobre as visibilidaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
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des/invisibilidades. Este trecho de um diário de campo, de 07 de fevereiro de
2014, esclarece um pouco sobre a tensão entre visibilidade e invisibilidade:
Alguns avisos nas paredes da loja chamaram a minha atenção. Acima
da prateleira de sprays há um aviso: “Pichação é crime, art. 65 da lei
número 9.605/98. Proibida a venda a menores de 18 anos. Apenas para
pais, responsáveis legais e contratantes. Não insista, obrigado.” Ao lado,
um outro aviso: “Tenha em mãos: endereço completo com CEP; endereço
de email; CPF e RG”. Em outra parede há um anúncio das oficinas que
a loja pretende oferecer: “Inscreva-se nas seguintes oficinas: graffiti
(iniciante); graffiti (letras); graffiti (personagens); stencil (molde vasado);
ioiô (iniciante); DJ (iniciante); fotografia pro (iniciante)”. Nesses dois
casos, é possível perceber uma separação clara entre pichação e graffiti.
Lembrei da página da loja no facebook, onde na descrição diz: “cultura
urbana, graffiti e street art do Brasil e do mundo”. No entanto, há um
quadro na parede ao lado da geladeira com a frase: “Viva o grapixo art”.
E nas estampas de duas camisetas que estavam à venda é possível ver
essa espécie de mistura dos gêneros e também a afirmação do pixo, do
rabisco e dos bombs... numa delas diz: “Rabiskx Graffiti Bombardeio
Pixo” e noutra “Rabiskx I Love (a imagem de um coração com um spray
dentro) Writing In The City”.
O estabelecimento comercial tem necessidade de adequar-se à norma
e, assim, na construção da sua visibilidade, observa a distinção entre pichação
(ilegal, não autorizada, crime) e graffiti (arte); ou seja, mostra-se como um
lugar que trabalha com street art. No entanto, a iniciativa de tornar invisíveis
os trânsitos, a profusão e a mistura das práticas (que estão no limiar, entre
legal e ilegal) é endereçada principalmente aos leigos, pois, para aqueles mais
familiarizados com os termos e gírias próprios dos pichadores/grafiteiros,
basta olhar para o lado e ver os transbordamentos em relação à dicotomia.
E, nessas horas, é importante para o etnógrafo, como bem assinalou Geertz
(1978), saber distinguir uma “piscadela” de um “tique nervoso”. Essa distinção e, ao mesmo tempo, esse trânsito entre pichação (crime) e graffiti (street
art) – em um jogo de visibilidade/invisibilidade – assim como a variedade
e a mistura de gêneros (grapixo art, rabisco, bombardeio, pixo...) inscritos
em tais artefatos (avisos, anúncios, quadros, camisetas...), espalhados pelo
interior da loja, também se reproduzem nas falas dos nativos. Tal questão
aponta para a importância de o etnógrafo estar atento à visualidade ambiente, às pistas que os artefatos sugerem, pois, como neste caso, eles podem
antecipar e reforçar a percepção de certas regularidades encontradas em
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ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI
campo por outras vias, por exemplo, em conversas e entrevistas. Ademais,
em termos técnicos, é bom ter sempre em mãos, além do caderno de notas,
uma câmera para fotografar e, principalmente, registrar vídeos que captem os
pequenos detalhes da ambiência (a disposição e os movimentos dos corpos e
dos objetos pelo espaço, as inscrições, as conversas, as cores, os sons, tudo
o que possibilita a realização da “obra”).
Outro artefato digno de atenção são os cadernos dos pichadores/
grafiteiros. Em cima do balcão da loja havia alguns deles, recheados com
assinaturas/tags, colagens e desenhos de grafiteiros/pichadores e crews
(grupos de pichadores/grafiteiros) que frequentam a loja. Ao folheá-los:
muitas assinaturas, letras de diversos tipos, bomb; tag; pixo reto... Ao lado de
algumas tags havia a indicação da cidade de origem da crew ou do pichador/
grafiteiro visitante como, por exemplo, “Floripa” (Florianópolis) e “Rio”
(Rio de Janeiro). Boa parte das páginas tinha as assinaturas acompanhadas
de uma saudação para o dono da loja, “Salve!” e “É nóis!”, as mais comuns.
Alexandre Pereira (2005) e Lucenira Kessler (2008) já afirmaram em suas
etnografias sobre pichadores/grafiteiros, respectivamente de São Paulo e
Porto Alegre, que os cadernos são um dos principais modos de tecer a rede
de pertencimentos e sociabilidades entre esses sujeitos. Tal rede extrapola,
portanto, os limites físicos e a contiguidade do espaço urbano ao ligar cidades
de diferentes estados do país.
A frequência ao happy hour semanal e a participação em uma série
de oficinas de graffiti ofertadas pela loja serviram para potencializar o processo de imersão no campo. Assim, além de aprender as técnicas do graffiti/
pichação – o know how nativo – também foi possível estreitar os laços com
o dono da loja e ampliar a rede de interlocutores. Várias pessoas se inscreveram, mas poucas foram aos encontros; apenas três: um menino de 10
anos, outro de 17 e um rapaz de 29; e todos eram iniciantes. Foram quatro
encontros semanais na loja, nas noites de terça feira, que culminaram em um
“mutirão de graffiti”, reunindo em torno de 50 pichadores/grafiteiros, para
pintar os muros de uma escola estadual na zona norte da cidade. Ao longo
dos encontros, o dono da loja, assim como os participantes iam mostrando,
desenhando e redesenhando suas concepções sobre graffiti/pichação.
Nas oficinas, o dono da loja sempre procurou frisar que ele vem do
“movimento da pichação” e que ela está na “origem do graffiti”, afirmando,
no entanto, que hoje se identifica mais com este do que com aquela. Disse:
“A pichação dá muita adrenalina. Quando a pessoa tem entre 14 e 18 anos,
ela quer e precisa fazer parte de um grupo. Ver a assinatura espalhada pela
cidade dá uma sensação muito boa, tem muitos riscos; no início isso é legal,
mas depois isso vai passando e o cara vai entrando em outras”. O dono da
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loja comentou já haver tido problemas com a Polícia por causa da prática
não autorizada e que, atualmente, só faz intervenções com autorização. Assinalou, várias vezes, que não quer incentivar as pessoas à pichação, prática
que adjetivou como “não autorizada, ofensiva”. Ele também lamentou: “as
coisas mudaram; hoje existem algumas rixas entre grupos por causa da
pichação em Santa Maria, coisa que não existia antes”.
Percebemos que, diante da presença do pesquisador, o dono da loja,
em suas falas, procurava dar visibilidade à “origem ilegal” de sua trajetória
pessoal. Ao mesmo tempo, todas as vezes que ele se referia aos perigos da
pichação, o fazia com o olhar direcionado para os dois participantes menores
de 18 anos, como quem alerta: “não façam isso, crianças”. Ainda nesse sentido,
tentava relacionar os assuntos e técnicas do graffiti/pichação trabalhados nas
oficinas com os conteúdos escolares, principalmente, de história (a pichação
nos movimentos de maio de 68), de matemática (as formas geométricas como
base para a produção das letras) e de física (os efeitos de luz e sombra nos
desenhos). Os participantes se mostravam bastante interessados. Em certa
ocasião, perguntamos ao menino de 17 anos se ele saía na rua para pintar e
ele disse: “nunca pichei na rua; não quero fazer na casa dos outros aquilo que
eu não quero que façam na minha”. Mas, em seguida, confessou ter saído
uma única vez com a intenção de pichar juntamente com uns colegas de
escola. Disse que foi uma experiência “traumática”, mal sucedida, visto que,
antes de consumarem o ato, tiveram que correr de um grupo de pichadores
armados com facões e que gritavam “o que vocês querem na nossa área?!”.
Para além das oficinas, ao longo dos dias em que frequentamos a
loja, percebemos a existência de ambiguidades nos discursos de alguns
pichadores/grafiteiros em relação à repressão policial. Embora vários deles
se afirmassem apreensivos com a possibilidade de novas Operações, relatos que enalteciam o envolvimento em atraques (abordagens feitas pelos
policiais) eram muito frequentes nas rodas de conversa. Isso reforça a ideia
de Campos (2009) concernente à visibilidade/invisibilidade, pois há uma
atitude de desconfiança do pichador/grafiteiro em relação ao exterior, mas,
ao mesmo tempo, estar na mira “dos tiras” é motivo de orgulho, e funciona
como um elemento de reconhecimento pelos pares.
A INTENSIFICAÇÃO DA DENSIDADE DAS TEIAS DE
SIGNIFICAÇÕES
Sendo o pesquisador um morador da cidade e, no caso de uma antropologia da urbanidade, um caminhante (DE CERTEAU, 2007) que se
entrega à deriva (DEBORD, 2003), ele não deve antecipar nada. Em outras
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ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI
palavras, ele deve se deixar levar pelo fluxo urbano; deixar o vazio nele ser
pintado pelas exterioridades. Assim acontecem os encontros mais férteis com
os nativos, ao acaso, nas situações em que o pesquisador poderia esquecer
que está em campo. Em geral, esse tipo de interação se mostrou bastante
fecundo para a pesquisa, pois os nativos ficavam mais à vontade do que em
muitas situações nas quais a nossa presença era explicitamente a presença
de um pesquisador. Seguem trechos de um diário de campo, registrando um
encontro, ao acaso, no dia 23 de abril de 2014:
Encontrei, ao acaso, uma grafiteira/pichadora no Restaurante Popular.
A garota estava almoçando sozinha, resolvi sentar na mesma mesa
para conversarmos. Frequentamos lugares em comum há cinco anos
(universidade, boates, bares...), mas nos conhecemos pouco. Começou
a grafitar/pichar no ano passado. Atualmente, integra uma crew “feminista”. Ela perguntou como estava indo a minha pesquisa, respondi que
estava indo bem, que estava tentando me aproximar dos grafiteiros/
pichadores aos poucos. Comentei o fato de que alguns deles desconfiavam que eu fosse um policial infiltrado. Ela disse que o pessoal anda
realmente “atucanado com tudo” e que as Operações contribuíram para
o surgimento dessa desconfiança e de “tretas” entre crews e grafiteitros/
pichadores. A garota disse que a maioria dos acusados na Operação não
leu o registro dos depoimentos dados à polícia. Segundo ela, apenas
um entre os acusados tinha advogado; este leu os registros e encontrou
neles algumas delações. A pichadora/grafiteira disse que isso (as delações) provavelmente foi uma manipulação da polícia para criar intrigas
entre os grafiteiros/pichadores. Comentou sobre um grafiteiro/pichador
que tem sido alvo de acusações de ser “cagueta” (delator) por parte de
seus pares. E acrescentou que há rumores de que aconteça uma nova
Operação em junho. [...] Ela também falou sobre as conexões de alguns
grafiteiros/pichadores locais com crews de São Paulo. “Tem surgido
bastante pixo reto no altos dos prédios em Santa Maria pela influência
dessas conexões”. Alguns grafiteiros/pichadores locais estão pensando em
ir a uma grande festa de pixadores em São Paulo, segundo ela, o maior
encontro de pichadores do país. A pichadora/grafiteira também disse
que atualmente alguns grafiteiros/pichadores que só assinavam tags se
tornaram “mais politizados”; alguns deles, por exemplo, começaram a
fazer pichações e stencil contra a Copa do Mundo ou contra o aumento
da tarifa de ônibus. [...] Após o almoço, ela ia tirar umas fotos de uns
“trampos” dela e de outras grafiteiras/pichadoras, feitos recentemente no
Parque Itaimbé (no centro). Na saída do restaurante, antes de nos despeRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
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dirmos, sugeriu que eu curtisse uma página do Facebook, gerenciada por
uma de suas companheiras. Na página são postadas diariamente fotos de
graffiti/pichações, principalmente, de Santa Maria, mas também de outras
cidades e países. Em suas falas, a garota transitava entre e transbordava
as definiões “pichação/pichadores” e “graffiti/grafiteiros” para se referir
à sua prática e de seus pares.
Esta interlocutora demonstrou interesse pela pesquisa: pergunta sobre
seu andamento e sonda a presença do etnógrafo em campo. Em parte, isso
se deve ao fato de ser universitária, estudante da área das ciências humanas.
Durante as conversas, se empenha em selecionar pontos que julga importantes serem abordados; ou seja, a pichadora/grafiteira desenha caminhos
para o etnógrafo percorrer. A própria ordem das informações dadas por ela
segue uma sistematização: primeiro as intrigas (as “tretas” entre os pichadores/grafiteiros), aquilo que deforma os grupos; depois, aquilo que forma
e fortalece as alianças (as conexões com São Paulo; a “politização” que a
prática da pichação pode proporcionar; a produção e divulgação de registros
das pichações/graffiti pelos próprios pichadores/grafiteiros).
Nós já havíamos visto a inscrição “ant-kagueta” em alguns muros,
bem como uma onda de atropelos. Esse encontro ao acaso nos propiciou
ouvirmos a versão da pichadora/grafiteira sobre as ‘tretas’ em torno das
acusações de “caguetagem”, dando sentido aos indícios de rixas inscritos
nos muros, os quais estávamos procurando compreender. Em síntese, ela
constrói a inteligibilidade dos acontecimentos, dando a entender que a Polícia
fomenta boa parte dos conflitos entre os pichadores/grafiteiros. Entretanto,
ela ressalta que, paralelo à repressão policial, há na cidade a efervescência de
um estilo de escrita urbana influenciada pela pixação paulista. A página do
facebook que a pichadora/grafiteira indicou, além da rede de pertencimento,
também aponta para aquilo que Mittmann (2013) chama de “arquivamento
da existência”. A pichação/graffiti é um arquivamento; primeiro, é fixada
e memorizada na parede, mesmo que por um período curto. Em seguida,
abre-se um círculo mais amplo de arquivamentos, como por exemplo, as
fotos e os vídeos sobre as pichações/graffiti produzidos e divulgados pelos
próprios pichadores/grafiteiros. Segundo Mittmann (2013), a prática da pichação e seus arquivamentos têm um caráter micropolítico, pois permeiam
a disputa decalcada na lógica das subjetivações e acabam por produzir um
sujeito-pixador, uma espécie de fenda existencial. Dessa maneira, temos a
ideia de um sujeito que produz a si e causa abalos nas malhas do poder, pois
“a pichação, além de afrontar a propriedade por escrever, deixar o seu nome
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ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI
(tag) donde nada pertence ao pichador, ela também demonstra as ‘falhas’
nos sistemas de segurança” (MITTMANN, 2013, p. 152).
As pistas sobre as conexões entre pichadores/grafiteiros de diferentes
cidades, presentes nos cadernos encontrados na loja, reapareceram no diálogo com a pichadora/grafiteira, quando ela se refere às ligações entre Santa
Maria e São Paulo. A indicação da página do Facebook é outro caminho que
aponta no mesmo sentido, dando sequência à série de cenários de interação:
muros, loja, cadernos, encontros ao acaso pela cidade e internet. Essas
questões sugerem ser nesse andar errático do etnógrafo em meio às teias de
significados (GEERTZ, 1978), tecidas entre a objetalidade das inscrições
urbanas, que se dão os encontros/desencontros e negociações delineadoras
da interpretação etnográfica.
LUTAS SEMÂNTICAS
Na pesquisa, durante uma roda de conversa sobre pichação e saúde
mental, realizada na loja de street art, recebemos o convite do psicólogo
organizador do encontro para formar um grupo de estudos sobre a pichação/graffiti com vistas a organizar futuramente a publicação de um livro,
contendo artigos resultantes de pesquisas locais sobre o tema. Segundo ele,
um grupo para fomentar “um olhar interdisciplinar e contra-hegemônico”
acerca do tema, na cidade.
A ideia nos parece interessante, pois os sentidos do urbano se formam
e se deformam “[...] quando o imaginam os livros, as revistas e o cinema; pela
informação que dão a cada dia os jornais, o rádio e a televisão sobre o que
acontece nas ruas” (CANCLINI, 2008, p. 15). Diante da inerente fragmentação
das experiências no cotidiano da cidade, essas produções culturais podem
fornecer conjecturas, “simulacros de totalizações” (idem, p. 21) sobre aquilo
que os moradores da cidade não vêem na esfera do imediato ou desconhecem. Os pichadores/grafiteiros estão justamente nessa dimensão invisível e/
ou desconhecida para a grande parte dos moradores. Assim, o urbano é uma
arena de disputas e de trocas, onde são travadas inúmeras “lutas semânticas
para neutralizar, perturbar a mensagem dos outros ou mudar seu significado
e subordinar os demais à própria lógica [...] encenações dos conflitos entre
as forças sociais: entre o mercado, a história, o Estado, a publicidade e a
luta popular para sobreviver” (CANCLINI, 1997, p. 301). O convite feito
pelo psicólogo para formar um grupo de pesquisa representou um convite
para participar ativamente dessas lutas semânticas em torno da cidade, mais
especificamente, da pichação/graffiti.
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Um mês depois do convite, o psicólogo nos chamou para uma conversa
coletiva no Facebook para marcarmos uma reunião. O grupo convidado era
composto por: uma estudante de psicologia; um publicitário; um jornalista;
um estudante de produção editorial; um bacharel em direito e quatro pichadores/grafiteiros (destes, duas estudantes de publicidade, uma estudante de
ciências sociais e um estudante de design). Começamos a nos reunir uma
vez por semana, em algum dos bares da Rua Alberto Pasqualini, no centro,
ou na Praça dos Bombeiros, no bairro Bom Fim, um dos principais pontos
de encontro dos pichadores/grafiteiros.
Nos primeiros encontros, cada um apresentou o seu trabalho/pesquisa
para os demais. Durante a apresentação, um de nós usou a expressão “grafismos urbanos”, o que chamou a atenção de uma das grafiteiras/pichadoras:
“grafismos urbanos? Nunca tinha ouvido essa expressão, mas achei interessante
porque abarca a diversidade das intervenções”, disse ela. Meses depois, a
utilizou na chamada de um debate que organizara sobre o tema, no diretório
acadêmico do seu curso: “Roda de conversa sobre grafismos urbanos”. Tal
apropriação evidencia a possibilidade de influência do etnógrafo no processo
de construção de visibilidades/invisibilidades. Dito de outra maneira, a interpretação do etnógrafo ajuda a redesenhar a interpretação do nativo sobre
sua cultura; (re)intrepretação esta que deve ser intrepretada pelo etnógrafo.
Encaramos a participação nesse grupo como uma oportunidade
de aproximação com os pixadores/grafiteiros e também com os demais
integrantes. Desde o primeiro encontro, procuramos sempre deixar claro
para todos que as reuniões também eram objeto de observação na nossa
pesquisa. No entanto, ao mesmo tempo em que o grupo propiciou maior
proximidade com o campo, nossa participação nele também suscitou alguns
dilemas éticos para a pesquisa. Em todas as reuniões, o tom das discussões
tendeu a ser mais militante do que científico. Isso nos fazia lembrar Pierre
Bourdieu, quando ele diz que a “maldição” das ciências sociais é ter um
objeto que fala, condição que, dentre outras, exige uma constante vigilância
epistemológica por parte do cientista social. Não basta estar à escuta dos
agentes estudados para justificar a conduta deles e as razões por eles fornecidas, pois agindo dessa maneira o pesquisador “corre o risco de substituir
pura e simplesmente suas próprias prenoções pelas prenoções dos indivíduos
que ele estuda, ou por um misto falsamente erudito e falsamente objetivo
da sociologia espontânea do ‘cientista’ e da sociologia espontânea de seu
objeto” (BOURDIEU, 2004, p. 50).
Em agosto, o grupo participou de um programa em uma emissora de
rádio web independente. Trata-se de um programa com viés contra-hegemôniRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
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ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI
co, que tem entre seus apresentadores um dos membros do grupo de estudos
sobre pixação/graffiti. A proposta do programa daquele dia era questionar a
criminalização da pichação e a morte de dois pixadores paulistas pela Polícia em São Paulo. No dia do convite, percebemos que o tom das falas seria
marcado pelo engajamento; nesse sentido, como pesquisadores, achamos
mais prudente não participarmos do programa e sim ouvi-lo pelo rádio, em
casa, e tomarmos notas sobre a maneira como o grupo construiria a visibilidade dos acontecimentos e como se colocaria publicamente. Entretanto, não
soubemos como comunicar o motivo da nossa não participação aos demais
integrantes, pois aquela seria a primeira aparição pública do grupo e todos
estavam contando com a nossa presença. Alguns se mostraram compreensivos, outros pareceram um pouco desapontados com a nossa ausência. Tal
episódio fez com que colocássemos em xeque os limites da nossa inserção
no campo, visto que provavelmente haveria convite para outras aparições
públicas das quais não poderíamos nos esquivar novamente, sob a pena de
acabar corroendo nossa relação com o grupo.
Depois de nos debatermos com esse dilema, decidimos participar
das próximas aparições públicas do grupo. O texto “Pesquisas em versus
pesquisas com seres humanos”, de Luís Roberto Cardoso de Oliveira, nos
ajudou a esclarecer a questão. Segundo o autor, “se a neutralidade é inviável porque o antropólogo não pode abrir mão de sua condição de ator, a
imparcialidade pode ser vislumbrada desde que o pesquisador se preocupe
em se expor às diversas versões dos fatos a serem interpretados, e não tome
posições que não possa defender argumentativamente” (OLIVEIRA, 2004,
p. 42). A partir daí, procuramos não apenas ouvir e sermos coniventes com
o grupo nas reuniões, mas introduzir questões provocadoras do tipo: “podemos não concordar, mas é difícil de rebater o argumento liberal de que a
pichação passa por cima da liberdade individual, né?”; “faz sentido discutir
a criminalização da pichação?”; “não seria a criminalização uma das suas
principais razões de ser?”.
Tal estratégia de introduzir momentos de dissenso nas reuniões e nas
aparições públicas do grupo se mostrou fecunda; foi bem recebida pelos
integrantes, lhes dando um retorno ao instigá-los a questionarem suas próprias prenoções e enriquecerem os argumentos para suas posições. Soma-se
a isso o fato de que, para a nossa pesquisa, essa estratégia permitiu que
viessem à tona informações e questões do campo que talvez não viessem
se nos restringíssemos a observar ou a ser plenamente coniventes com tudo
o que o grupo diz e pensa. Em uma das reuniões, por exemplo, lançamos
a seguinte provocação diante de pichadoras/grafiteiras que se colocavam
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como feministas: “não gosto do feminismo ortodoxo que anda por aí”. Esse
artíficio abriu caminho para que uma das pichadoras/grafiteiras começasse
a falar sobre alguns conflitos entre pichadores/grafiteiros permeados pelo
feminismo e sobre amizades e crews que se desfizeram em virtude de relacionamentos amorosos. Os motivos das rixas entre eles, portanto, não dizem
respeito apenas à demarcação de territórios na cidade ou às acusações de
“caguetagem”.
PARA UM INTERPRETATIVISMO
Um dos desafios da antropologia é achar o ponto em que coincidem o
objeto sobre o qual o antropólogo fala e a maneira como fala do objeto. No
caso em estudo, tata-se de buscar compreender como se dão os processos de
construção das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros, e como
esses processos redesenham a postura do etnógrafo. Dito de outra maneira:
como a pichação/graffiti pode servir para interpretarmos o interpretativismo?
Os dados indicam uma grande efervescência semântica em torno da
pichação/graffiti. Podemos afirmar que há várias forças sociais nessa luta
em meio às teias de significação: a pichação/graffiti em relação com outros
signos da cidade (monumentos, publicidade...); as iniciativas do poder
público e dos jornais locais no sentido de potencializar a criminalização da
pichação; pichadores/grafiteiros que trazem o tema da pichação/graffiti para
o debate acadêmico; as dissonantes maneiras de construir a visibilidade da
prática entre os próprios pichadores/grafiteiros...
Em nossa imersão inicial na loja de street art, vimos que a construção
de sua visibilidade oficial é ancorada em um aviso fixado na parede que
repoduz a distinção oficial (estatal) entre graffiti (legal, arte) e pichação
(ilegal, crime). Trata-se de uma espécie de protótipo da “piscadela” referida por Geertz (1978). Uma piscadela entre os pichadores/grafiteiros, pois
estes sabem que as fronteiras entre as duas práticas/definições são porosas
e isso aparece de diferentes maneiras em outros artefatos espalhados pela
loja, em suas falas e inscrições pelas ruas. Tais transbordamentos apontados
pelo campo, em relação à dicotomia, definem a escolha teórica do termo
“pichação/graffiti” (os dois termos unidos e separados por uma barra) para
falar sobre o objeto.
No encontro ao acaso com a pichadora/grafiteira, ela se empenha em
selecionar pontos que julga importantes de serem abordados na pesquisa,
ou seja, a pichadora/grafiteira desenha caminhos para o etnógrafo percorrer.
Esse encontro ao acaso propiciou o contato com a interpretação da pichaRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
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ETNOGRAFIA DE UMA CIDADE REDESENHADA PELA PICHAÇÃO/GRAFFITI
dora/grafiteira sobre as “tretas” em torno das acusações de “caguetagem”,
dando sentido aos indícios de rixas entre pichadores/grafiteiros inscritos
nos muros, os quais estávamos procurando compreender. Interpretações de
interpretações que vão intensificando a densidade das teias de significações.
Nas reuniões do grupo “contra-hegemônico” de pesquisa do qual participamos, falamos em “grafismos urbanos”, termo apropriado por uma das
pichadoras/grafiteiras que até então o desconhecia. Tal apropriação evidencia
que o etnógrafo pode influenciar o processo de construção de visibilidades/
invisibilidades. Dito de outra maneira, a intrepretação do etnógrafo redesenha
a interpretação do nativo sobre sua cultura, (re)intrepretação esta que deve
ser intrepretada pelo etnógrafo. As pichações/graffiti são, portanto, imagens
interpretadas e interpretativas.
É possível, portanto, interpretar a cidade como um conjunto partilhado
por múltiplas e discordantes percepções individuais, mais especificamente,
a pichação/graffiti como um ponto de encontros discordantes. Ao intervirem no espaço urbano, os pichadores/grafiteiros acabam por problematizar
(conscientemente ou não) a pretensão de contribuírem para o estabelecimento
vertical de relações entre público e privado, além de trazerem à tona o caráter
dinâmico, interativo e conflitivo das esferas, a privatização do público e a
publicização do privado. A prática da pichação/graffiti sugere uma urbe que
não é dada de antemão e cujos espaços são concebidos no jogo de relações
de forças e de interferências múltiplas que se dá a cada instante.
De fato, a experiência etnográfica parece progredir “menos por uma
perfeição de consenso do que por um refinamento de debate “ (GEERTZ,
1978 p. 20). Como se de certa forma, a pichação/graffiti pudesse exemplificar
o interpretativismo ou encarnar a descrição densa.
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Palavras chave:
pichação/graffiti;
visibilidades/invisibilidades;
cidade; interpretativismo.
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Resumo
A proposta deste artigo é apresentar alguns itinerários
de campo da pesquisa etnográfica em que analisamos as
tensões, conflitos, disputas, resistências e também conformidades e deformidades na construção das visibilidades/
invisibilidades dos pichadores/grafiteiros de Santa Maria,
interior do Rio Grande do Sul. Os dados indicam uma grande
efervescência semântica em torno da pichação/graffiti, sendo
possível interpretar a cidade como um comum que é partilhado por múltiplas e discordantes percepções individuais,
mais especificamente, a pichação/graffiti como um ponto
de encontros discordantes. Os processos de construção
das visibilidades/invisibilidades dos pichadores/grafiteiros
desenham e redesenham a postura do etnógrafo, como se,
de certa forma, a pichação/graffiti pudesse exemplificar o
interpretativismo ou encarnar a descrição densa.
Abstract
Keywords:
graffiti; visibility/
invisibility; city;
interpretativism.
The purpose of this paper is to present some of ethnographic
research field routes in which we analyze the tensions,
conflicts, disputes, resistance and also compliance and
deformities in the construction of visibility/invisibility
of graffiti artist Santa Maria, countryside of Rio Grande
do Sul. The data indicate a large semantic effervescence
around the graffiti artist, and you can interpret the city
as a common that is shared by multiple and conflicting
individual perceptions, more specifically, the graffiti as a
point of disagreement meetings. Construction processes of
visibility/invisibility of graffiti artist design and redesign
the ethnographer’s atittude, as if, somehow, the graffiti
could exemplify the interpretativism or embody the thick
description.
Recebido para publicação em dezembro/2014. Aceito em abril/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 119-141
Artigos
Trajetórias de vida do lixo: a interface
entre meio ambiente, pobreza e
empoderamento no município de
Santa Maria-RS, Brasil
João Vicente Costa Lima
Professor Associado do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Sociologia pela Universidade
Federal do Ceará.
Endereço postal: Av. Álvaro Otacílio, 3781; Apto. 613, Ponta Verde. 57.036850 Maceió/Alagoas.
Isabel Padoin
Professora de Sociologia do Centro Universitário Franciscano, Rio Grande do
Sul (UNIFRA/RS). Mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de
Santa Maria, Rio Grande do Sul.
INTRODUÇÃO
O presente texto objetiva compreender o tipo humano
cuja vida, no sentido amplo, é perpassada por eventos econômicos e sociopolíticos diversos que giram ao redor do antigo
depósito de lixo da sede municipal de Santa Maria, no Rio
Grande do Sul, Brasil.1
Conhecido por Lixão da Caturrita, em um passado recente, centenas de pessoas tinham naquele espaço o horizonte
possível para sua sobrevivência, tirando, pois, dali o seu sustento
e construindo, simultaneamente, redes de sociabilidade ricas e
complexas, à margem de determinações econômicas redutoras.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
A realidade complexa do lixo na cidade de Santa Maria foi administrada pelos órgãos públicos sempre a partir de visões da realidade e de
políticas públicas estanques, compartimentalizadas. De um lado, a Fundação
Estadual do Meio Ambiente (FEPAM) enxergava apenas a realidade da área
degradada, dos resíduos sólidos e líquidos que afetavam o ecossistema de
referência. De outro, a Secretaria de Assistência Social do município tentava
lidar com o problema de uma multidão de pobres com pouquíssimos recursos
(material e de capital social) para se inserirem no mercado de trabalho formal.
O órgão ambiental fiscalizador não enxergava o indivíduo miserável que
transitava pelo Lixão como parte da equação ambiental; via, sobretudo, a
dimensão biofísica. As políticas implementadas pela Prefeitura focalizavam
estritamente o indivíduo e a família na sua condição de pobreza, excluindo
a dimensão ambiental.2
O antigo Lixão da Caturrita, como lugar degradado em rotinas que
interseccionavam miséria, humilhação e situação de risco – saúde pública,
degradação ambiental – deixou de existir. Em seu lugar, o poder público
viabilizou a alternativa do tratamento do lixo por uma empresa focada em
novas tecnologias tidas como ecologicamente corretas.
O início do funcionamento da empresa trouxe a formalização do
trabalho para 55% dos antigos catadores do lixo. Os outros 45% não foram
absorvidos pela empresa e, tampouco, puderam voltar à condição de catadores do antigo lixão, nas condições de degradação de outrora e seguiram os
caminhos incertos do trabalho informal na coleta de lixo pela cidade afora.
O presente artigo se volta para estes dois grupos humanos – derivados da sociabilidade e economia do antigo lixão –, analisando como se
articulavam, ali, os elementos significativos, formadores de um padrão de
racionalidade cotidiano, a saber: a valoração do agir econômico nos termos
de uma “cultura do lixo” e de suas conexões com a vida política comunitária.
Perscrutam-se as conexões existentes entre a economia e a “cultura do lixo”
e a formação de uma ordem política comunitária.
Este objeto real – dos indivíduos com seu capital social comunitário,
ligados pelas injunções econômicas e simbólicas do lixo – se constitui em
rica oportunidade para testar as possibilidades das categorias explicativas de
capital social, pobreza e meio ambiente; e também as formas sociológicas
correspondentes aos elementos constitutivos da ação no contexto da pobreza
e do lixo podem enriquecer uma teoria social do meio ambiente.
Nesta análise, são identificados os atores, os espaços e as práticas
que estabelecem novos arranjos entre sustentabilidade e ativismo cívico,
tendo como ponto de convergência a economia do lixo e as formas de soRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164
JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN
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ciabilidade correlatas. Para além do tema convencional da preservação do
meio ambiente em si, pondera-se a ideia de preservação da vida humana e
do meio ambiente em contextos degradados, e dos níveis de articulação e
composição entre uma realidade (humana) e outra (meio ambiente).
No cotidiano das cidades brasileiras, as realidades humana e ambiental
são tratadas, reiteradamente, por soluções institucionais compartimentalizadas
cujos resultados são quase sempre marcados por unilateralismos.3 Se, no
plano macro, os governos não foram capazes de prover políticas públicas,
em geral, e políticas econômicas, em particular, sustentáveis, no plano das
relações interpessoais, no caso em estudo – da cidade de Santa Maria –, o
ponto de intersecção desses níveis de realidade está nas ações cotidianas
dos catadores de lixo, que apreendem em um plano único as realidades da
pobreza e do meio ambiente.4
CONEXÕES ENTRE POBREZA, DEGRADAÇÃO AMBIENTAL E
MODERNIDADE BRASILEIRA
A realidade brasileira em sua singularidade acomoda diversos cenários
sociais, políticos e econômicos marcados por ambiguidades e contrastes.
Apesar do quadro recente de diminuição das desigualdades no Brasil, ainda são encontrados grupos humanos que carregam consigo as marcas da
exclusão social, política e econômica, como é o caso dos ex-catadores do
Lixão da Caturrita.
De acordo com dados, de 2012, do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA), levantados para a elaboração do relatório do Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, fornecido para a Organização das Nações Unidas (ONU), no Brasil, a população que sobrevive com
menos de US$ 1,25 per capita/dia caiu de 36,2 milhões, em 1990, para 8,9
milhões, em 2008. Tais dados demonstram que a pobreza extrema na sociedade brasileira, hoje, representa menos de um quinto da registrada em 1990.5
E mostram também que nesta mesma sociedade a democracia coexiste com
desigualdades sociais intoleráveis que comprometem o destino de milhões
de pessoas compelidas a viver indignamente.
O universo dos catadores informais se constitui de pessoas cujas
vidas são perpassadas por restrições de toda ordem: poucas oportunidades para o desenvolvimento de capacidades e habilidades e realização de
potencialidades.6 Os objetivos da conservação do meio ambiente não se
coadunam instantaneamente com os objetivos racionalizados pelos indivíduos pobres e sua lógica de ocupação do espaço – em lugares precários,
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146
TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
sem saneamento básico e energia elétrica, sem atendimento à saúde, com
escolas e abastecimento de água deficitários – a despeito da profunda empatia
pelos valores ambientais evocados ali e aqui. Estes atores, premidos pelas
necessidades da sobrevivência, não retinham a temática da “preservação
do meio ambiente” senão como uma preocupação marginal em meio a
outras prioridades.
As condições econômicas precárias – fome, desemprego e exclusão
social – conformam uma realidade múltipla que amplifica os indicadores da
degradação dos recursos naturais. Dada a interdependência entre as realidades
ambientais e socioeconômicas, torna-se imperioso interpretar o fenômeno
ambiental do lixo (degradação) como socialmente constituído pela realidade
da pobreza, ainda que, do ponto de vista da renda, tanto os catadores informais
como os recicladores (ex-catadores) não se enquadrem mais na categoria
“pobre”.7 No caso brasileiro, a pobreza tem conexão direta com os processos
que levam à destruição maciça dos bens naturais. Tais processos contribuem
para a configuração de uma realidade que cria obstáculos ao surgimento
de condições favoráveis ao próprio desenvolvimento humano. A pobreza
intensifica-se nas periferias e aprofunda a depreciação do capital humano e
social, que retroalimenta a conduta de degradação do meio ambiente pelo
indivíduo pobre.8 Para se compreender tal fenômeno, é preciso que se faça
uma articulação entre a realidade vivida por esse indivíduo e aspectos mais
amplos da chamada modernidade na qual se insere.
Segundo Giddens (1997), no período de radicalização da modernidade
ocorre uma perda da segurança proporcionada pelas instituições modernas
da política e da sociedade, pelas injunções de uma ordem global que não
representa uma sociedade mundial, mas uma sociedade de espaço indefinido, onde a autoridade e outros mecanismos encontram-se descentralizados.
Há uma correspondência entre o mundo social e as pessoas afastadas dos
laços comunitários, capazes de construir suas próprias narrativas biográficas, de adotarem seus estilos de vida, ou seja, escolherem suas identidades
e seus projetos de mundo. Com os baixos níveis de confiança, a rede de
compromissos humanos se desfaz, fazendo com que o mundo pareça um
lugar mais assustador e perigoso para se viver. É nesse contexto reflexivo e
societário que os problemas da pobreza humana e da degradação ambiental
são representados de forma articulada ou separadamente.9
Bauman (2005) postula o surgimento dos problemas do refugo (humano) e da remoção do lixo (humano): milhares de pessoas, antes inseridas
no processo de progresso da humanidade, tornaram-se descartáveis. Esses
problemas saturam todos os setores importantes da vida social e tendem a
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JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN
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dominar as estratégias de vida. As regras que ordenam essa realidade são
imprevisíveis, pela volatilidade da posição social, e a redução significativa
das perspectivas, que não podem se orientar por diretrizes universais. Isso
acaba por assombrar os indivíduos que, no decorrer do tempo, perdem a
autoconfiança e a autoestima e são obrigados a responder à condição de
modernizarem-se ou perecerem.
Estes indivíduos, vistos como parasitas, vivem circunscritos à
marginalidade, são tidos como trapaceiros que ameaçam o tecido social
da pujante sociedade de consumo. Despossuídos, estão fora do sistema
funcional, e se encontram emudecidos e sufocados pela estrutura política
enviesada do mundo globalizado. Indivíduos de outros segmentos sociais
menos vulneráveis se encontram também inseguros quanto ao seu futuro.
A intensificação dos riscos sociais afeta a sua capacidade racional de
compreenderem as condições reais de sua vida e de previsão dos resultados de suas ações, criando as bases sobre as quais se firmam os processos
de individualização e globalização da sociedade. Outras dinâmicas macroeconômicas (como a desregulamentação, flexibilização) são filtradas
pelo cidadão como problemas privados, como resultados de suas falhas
individuais. As soluções para estas questões sistêmicas pesam sobre os
ombros do indivíduo. Dessa forma, um quadro incongruente combina o
microcosmo da conduta individual com o macrocosmo dos problemas
globais territorialmente insolúveis.
Na situação em estudo, tanto os catadores informais como os trabalhadores agora formalizados na empresa de reciclagem guardam certa
ambiguidade em relação ao quadro pintado por Giddens e Bauman. Certamente a realidade brasileira na qual originariamente estavam mergulhados
os ex-catadores do Lixão da Caturrita apresenta toda a sintomatologia da
insegurança institucional típica da esfera política precária de que falam os
autores. Tem-se, ali, a tipificação perfeita do lixo humano removido porque espelha uma cidadania em frangalhos. Os catadores e ex-catadores se
constituem, para as elites, um estorvo. Em cenários de profunda competição
econômica e desarticulação política, a componente da imprevisibilidade e
a redução das perspectivas criam as bases piores de projeção da vida individual e coletiva. Mas, esta marginalidade tomada como “coisa natural”
na vida brasileira começa a sofrer objeção. Aqueles indivíduos mantêm-se
próximos da marginalidade, ainda que não completamente excluídos da
sociedade de consumo e da arena política. Há um senso de individualidade
e perdas e ganhos dos laços comunitários, com níveis instáveis de confiança
e comprometimento. Eis aqui a conexão com a dimensão política.
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
REPRESENTAÇÃO POLÍTICA E CAPITAL SOCIAL
Sorj (2004) identifica no Brasil a fragilidade de determinados atores
sociais para a mobilização e pressão em relação a diversas questões públicas,
o que, segundo ele, revelaria uma crise de representação. Vigoraria uma
nova dinâmica de individualização presente nas mais variadas esferas da
sociedade, afetando negativamente a formação das identidades coletivas mais
cooperativas, reduzindo a participação dos sujeitos nas discussões sobre o seu
próprio bem-estar. Essa crise de representação política seria proveniente do
distanciamento dos partidos políticos em relação às demandas apresentadas
pela sociedade civil. A crise no mundo da política reverberaria em uma sociedade fragmentada, com a ampliação do quadro de desigualdade social e
de relações sociais fragilizadas a interferir na auto percepção dos indivíduos
como sujeitos de direitos. A cidadania seria uma propriedade distribuída
de forma desigual entre os sujeitos sociais, que estratificaria as chances de
bem-estar, em descompasso com os preceitos e os objetivos do bem-comum.
O dado incongruente, assinala Baquero (1998), é que não há uma cultura política enraizada no Brasil. As pessoas têm baixa adesão aos princípios
democráticos, pouco hábito de participar de assuntos políticos, delegando esta
função às instituições.10 Ainda sobre uma racionalidade não democrática em
contextos democráticos, as ações participativas ligadas à autopromoção dos
indivíduos supõem graus de comprometimento e envolvimento em contextos
de risco (DEMO, 1993). São requeridos recursos cognitivos e de composição/
interação e organização dos cidadãos para agir em um contexto de disputas
pelo poder, e de pressão sobre o Estado. Na contramão está a “cultura” da
dependência da ação estatal e da atitude segundo a qual o indivíduo espera a
solidariedade dos outros e culpa a si próprio pelos fracassos que contabiliza.
Em meio a esse desarranjo, os indivíduos buscam formas de identificação imediata com base em afinidades que conformam problemas comuns e
específicos.11 Essas novas identidades não preceituam a igualdade; ao invés
disso, reivindicam e propõem políticas de discriminação positiva capazes de
fortalecer subculturas particulares, afirmando valores diversos e incomensuráveis entre si. Não encontramos, aí, uma preocupação direta com a noção
republicana de espaço público e do bem comum. São sedimentados os sentimentos de desconfiança e incerteza, sobretudo, no tocante à vida política.12
As relações sociais se estabelecem por meio de identidades que
corroem os sentimentos de comunidade, os ideais de pertencimento a um
mesmo “mundo”, a partir do compartilhamento de valores, de sentimentos
e problemas. Bauman (2003) toma o sentido de comunidade como uma
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idealização de uma ordem de mundo cooperativo e emocionalmente intenso
capaz de contrapor-se às soluções calculistas de indivíduos indiferentes às
necessidades dos outros. “Comunidade” ganha expressividade mais como
uma categoria emocional do que descritiva de um contato humano de
confiança e comprometimento mútuos. No mundo real, as pessoas já não
dividem suas histórias de vida, as comunidades tornam-se dispensáveis e os
laços de lealdade entre a vizinhança e a família se desfazem. A decadência
da comunidade esfacela o sentido de “sociedade”, que deixa de ser pensada
e vivida como um conjunto de sujeitos “iguais” na distribuição de recursos
para ser precedida pela noção de pertencimento ao “meu grupo”.
Nesse ambiente de desconfiança, os indivíduos perdem a crença
na política partidária, nas eleições e nos políticos, como mecanismo de
transformação da sociedade. Por isso, Baquero (1994) enfatiza a falência
do Estado para regulamentar as relações sociais, ao testar sua hipótese de
que nos países da América Latina vigoram democracias delegativas e não
representativas. Assim, os grupos marginalizados não possuem poder político
para, com base em seus interesses, pressionar os atores políticos relevantes
na busca de soluções ou no enfrentamento de problemas diversos. O antídoto
a um Estado desconectado dos interesses públicos são as redes (verticais
e horizontais), que mobilizam indivíduos e grupos em torno de objetivos.
O empoderamento dos indivíduos incrementa as disputas no interior
das estruturas excludentes. Empoderamento no sentido de Freire (1992), isto
é, de ações que trazem mudanças e promovem o fortalecimento dos atores
sociais; que levam à superação de dificuldades e à conquista de direitos. Para
Baquero (2005), o empoderamento implica um indivíduo com maiores capacidades de cuidar de si e de interagir (cooperação voluntária), de compreender
sua condição, em termos instrumentais, de tomada de decisões e mudança.
A construção das redes sociais – que exige um conjunto de recursos
enraizados, disponibilizados e utilizados pelos indivíduos – pode gerar
efeitos econômicos e sociais significativos, que dependem da produção de
externalidades, como o aumento da reserva de conhecimento e a redução de
comportamentos individuais oportunistas. O capital social reduz os custos das
transações sociais, colaborando para soluções pacíficas de conflitos. A literatura
demonstra que a inter-relação entre capital social e empoderamento possibilita
a superação da pobreza que atinge pessoas e comunidades, modificando as
relações de poder em favor daqueles em situação desfavorável, implicando
maior controle sobre os recursos disponíveis e sobre sua própria vida (PASE,
2007). Nesse contexto, emerge uma ação racional cooperativa que fortalece
a solidariedade, denotando, assim, um comprometimento com o outro.
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
Putnam (2002) sublinha: laços fortes como os de parentesco possuem
papel significativo na resolução dos dilemas da ação coletiva; porém, os
sistemas de participação cívica têm maiores possibilidades de abarcar amplos segmentos da sociedade. O capital social reporta-se à estrutura social
e se assenta em uma lógica de interação e regras de decisão coletiva, em
normas e sanções formais, obrigações e expectativas informais, ancoradas
na confiança, informação, relações de autoridade e organizações sociais.
As pessoas que se reúnem em associações possuem maior consciência e
participação na política, e confiança social. Logo, quanto maior o capital
social da região mais eficaz será seu governo.13
Segundo Putnam, em uma comunidade cívica, as associações proliferam, as afiliações se sobrepõem e a participação se alastra, contribuindo para
o desenvolvimento da coesão social, da harmonia política e do bom governo,
na medida em que prevalece a confiança interpessoal e a cooperação solidária
e coletiva. Para isto, é mister que haja o estabelecimento de acordos entre os
atores minimamente informados e confiáveis, sob pena da emergência dos
vícios típicos da falta de virtude cívica que se baseia na preponderância de
comportamentos oportunistas, orientados para maximizar o ganho privado.
O resultado geral é uma situação em que as pessoas só interagem na esfera
privada, abandonando a esfera pública.
Assim, os laços de cooperação relacionam-se diretamente com o nível
de confiança interpessoal existente na comunidade. A confiança interpessoal
é uma garantia de que os indivíduos se comportarão de modo previsível e,
em consequência, os contratos e as leis serão respeitados e a cooperação
será incentivada.14
São utilizados como indicadores de capital social a participação em
organizações sociais, atitudes cívicas, cooperação e sentido de confiança
entre os membros da comunidade. A elevação dos índices de capital social
pode ter efeitos positivos pelo impacto na democracia e no desenvolvimento
socioeconômico. De acordo com Baquero, “o capital social sustenta que a
participação em associações voluntárias gera normas de cooperação e confiança entre os seus membros e que essas normas são aquelas exigidas para
a participação política” (2006, p. 204).
Nesse sentido, a ênfase no desenvolvimento local é importante, dado ser
no local que se enraízam as experiências, os métodos e as práticas que formam
um conjunto de estratégias e táticas para a solução dos problemas cotidianos.
É nesse âmbito que os projetos são negociados, criticados e/ou acolhidos.
Nesta pesquisa, encontramos o fenômeno do empoderamento comunitário, na medida em que se reportava a catadores e recicladores que, apesar
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JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN
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de terem trajetórias diversificadas em suas vidas, continuavam todos morando
nos mesmos bairros e com os mesmos vínculos sociais (comunitários), ora
tênues, ora mais fortes. Dessa maneira, tentamos verificar de que forma
estes vínculos se estabeleciam e de que modo podiam (ou não) mitigar os
problemas enfrentados no dia a dia. O lixo, contudo, precisava ser abordado
ainda mais pontualmente pelos subsídios que fornecia para a interpretação
dos descaminhos da vida socioambiental brasileira.
O LIXO NA VIDA DA CIDADE DE SANTA MARIA
No Brasil, verifica-se estreita ligação entre o destino do lixo urbano e
o fenômeno da concentração urbana, que é da ordem de 80%, caracterizado
pela ocupação pouco planejada, conflituosa e caótica – com a ocorrência
da contaminação dos mananciais nas superfícies, nos subterrâneos, principalmente nas periferias, em razão do inadequado saneamento (GUERRA e
CUNHA, 2005).15
Na legislação brasileira é de responsabilidade das prefeituras o tratamento e o destino do lixo urbano. A forma mais utilizada para o destino
final do lixo no Brasil é o depósito a céu aberto designado de “lixão”.16 Em
2000, havia 5.993 lixões no Brasil, sendo que a maior parte encontrava-se
localizada nas regiões com menos de 15 mil habitantes (ABREU, 2001).
Homens, mulheres e crianças vivem as jornadas diárias de trabalho nos
lixões, expostos a doenças e riscos: movimentação de caminhões, poeira,
fogo, objetos cortantes e contaminados, sem falar no (gravíssimo) consumo de alimentos podres. O mundo do trabalho do lixo é degradante e de
baixíssimo reconhecimento social, além do sofrimento gerado por meio
da discriminação e preconceito.17 A pesquisa confirmou a hipótese de que
os problemas, riscos e eventos de degradação ambientais são distribuídos
espacialmente, segundo uma estrutura de grupos e classes, concentrando-se
nas áreas habitadas pelos excluídos.
O Lixão da Caturrita permaneceu operante por mais de 20 anos; foi
desativado, em 2008,18 com o esgotamento de sua capacidade de receber
resíduos e pelos problemas ambientais detectados. Já havia ocorrido no ano
de 2005 a interdição do Lixão e a expulsão de 180 famílias. A força policial monitorava a área e a Prefeitura forneceu cestas básicas, por 90 dias,
às famílias que se sustentavam do lixo, além de escola para os filhos dos
catadores. Essas ações falharam e os catadores voltaram ao Lixão, mesmo
com a proibição da Justiça.19
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
Em março de 2008, através de concessão pública emitida pela FEPAM,
os resíduos urbanos deixaram de ser depositados no Lixão da Caturrita e
passaram a ser destinados a uma empresa privada que passou a tratar os
resíduos de 20 municípios da região central, região serrana e da fronteira
do Estado. Desde então, o lixo passa por três etapas: a triagem (separação
dos materiais recicláveis20 e orgânicos), a compostagem (transformação do
material orgânico em adubo), e a destinação final (os resíduos não aproveitáveis comercialmente são colocados no aterro sanitário, em uma vala, forrada
com lona, para evitar vazamentos no solo).21 Eram tratadas diariamente
280 toneladas de lixo, o que empregava 80 funcionários, em sua maioria
ex-catadores do antigo Lixão da Caturrita.
De uma história da cidade segregada para indivíduos pobres vivendo
do lixo, desde a década de 1980, os anos de 2010 sinalizaram uma fase de
transição. Não são mais atormentados pelas rotinas da luta contra a fome, mas
os ganhos sociais, por mais significativos que tenham sido para o conjunto
da sociedade brasileira, ainda os colocam às margens das dinâmicas econômicas e políticas ótimas.22 Isto pode ser melhor percebido considerando-se o
grau de inserção e cooperação dos indivíduos nos assuntos comunitários.23
ASSOCIATIVISMO E CAPITAL SOCIAL
A realidade do capital social no contexto das relações sociais não é
um dado tangível diretamente, porque relacionado a aspectos subjetivos referidos na cultura. Assim, tentou-se dimensionar o capital social presente nas
relações sociais estabelecidas pelos funcionários da empresa de reciclagem
e dos catadores na informalidade, aferindo níveis de participação em redes e
associações, e da vigência ou não de reciprocidade, confiança e cooperação.
ENTRE OS RECICLADORES
Dentre os funcionários da empresa entrevistados nesta pesquisa, 48,4%
afirmaram não freqüentar associações de nenhum tipo. As justificativas
para essa atitude variaram: “falta de tempo” (53,3%), preferindo estar com
a família; “não tem interesse nenhum em participar” (20%) e crença de que
“não resolve, não adianta nada” (13,3%). Ainda, 10% alternam entre: “tomar
providências com as próprias mãos”, quando, por exemplo, improvisam diante
de um alagamento; ou “fingem não tomar conhecimento do problema”, se
não os afeta diretamente. 51,6% disseram participar de entidades associativas, sendo as mais citadas as associações de cunho religioso, vinculadas a
orientações: (35,5%), católica, evangélica, espírita e umbanda. Na mesma
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JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN
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proporção, aparecem os que informam vincular-se a associações de moradores (35%); estas vistas como mais diretamente envolvidas na resolução
dos “problemas dos bairros”, promovendo mobilizações, reuniões e levando
as reivindicações à Prefeitura da cidade.
Os motivos mencionados pelos funcionários da empresa para participar das entidades associativas variam entre: “defender as ideias nas quais
acredita ou acha justas” (43,8%); “vontade de ajudar os outros” (25%);
“lazer” (12,5%) e “outras razões” (18,7%). Efetivamente, apenas 13,3%
participavam das reuniões e levavam as reivindicações à Prefeitura.
Quando indagados sobre relações interpessoais, 83,9% assinalaram
que possuíam uma boa relação com a vizinhança, não obstante se referirem
a vizinhos como “um bando de fofoqueiros24 que vivem cuidando da vida
dos outros” (sic). Outras atitudes foram indicadas: “conversam às vezes com
o vizinho” (41,9%); “conversam sempre” (16,1%); “raramente” (25,8%) e
“nunca” (16,1%).
ENTRE OS CATADORES
Apenas 35,7% dos catadores informais não participavam de entidades
associativas, por falta de interesse e de tempo. Dos entrevistados, 64,2%
garantiram que participavam de associações religiosas, como Igrejas e
Centros de Umbanda, por acreditarem na importância para a melhoria do
bem-estar, da saúde e das relações familiares. Outros 21,4% dos indivíduos que frequentavam as organizações religiosas participavam também da
associação de bairro e de seus respectivos eventos.
Para 78,5% dos entrevistados, as relações sociais com a vizinhança
eram valorizadas; afirmam haver, ao longo do tempo, estabelecido relações
de amizade e respeito. Somente 21,4% informaram não valorizar os vizinhos,
atribuindo isso a desentendimentos e fofocas.
Depreende-se que as redes sociais desenvolvidas pelos recicladores
e catadores são mais duradouras e confiáveis entre parentes e amigos, pois
envolvem obrigações mútuas e modalidades diversas de reciprocidade.
Para além da esfera familiar, não ocorreu mudança nas atitudes e no comportamento dos cidadãos. Se, genericamente, as associações comunitárias
e religiosas constituem-se em pontos de engajamento cívico – porque são
o depósito primário de capital social gerador de “empoderamento” pelo
altruísmo, voluntarismo e filantropia inerentes –, no contexto dos recicladores não foram criadas as disposições mais efetivas de inserção na esfera
pública. Verificou-se que os catadores tinham uma atitude mais voltada às
preocupações da comunidade comparativamente aos trabalhadores formais.
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
RETOMANDO AS HIPÓTESES
Como primeira hipótese a nortear esta pesquisa, considerávamos que,
excluídos do mercado formal de trabalho, os catadores apresentariam uma
piora acentuada na qualidade de vida, comparativamente aos recicladores
incorporados pela empresa, no tocante a indicadores socioeconômicos e de
capital social. Em verdade, relativamente aos ganhos financeiros, os catadores
informais apresentam média um pouco superior aos recicladores,25 ainda que
estes últimos destacassem a maior segurança que o emprego formal lhes
trazia e uma redução de estigma, comparativamente aos primeiros, lançados
à sorte nas ruas da cidade.
Conforme se constatou nesta pesquisa, a oferta de serviços públicos
de saúde, educação, segurança e infraestrutura sanitária para a população de
baixa renda, na qual se inserem catadores e recicladores, é quase inexistente.26
Há um ponto de tensão perene, que é o rótulo do lixo a marcar os
indivíduos. Os catadores explicitam, mais diretamente, sentimentos de vergonha e humilhação que carregam consigo. Por sua vez, os recicladores ainda
sinalizam o desconforto da condição de trabalharem com o lixo, a despeito
de ganhos outros, em termos de reconhecimento e segurança legal. A ideia
difusa e positivada de que contribuem para equacionar o grave problema
ambiental, na disposição de coletarem o lixo, nem de longe rivaliza com a
imagem mais efetiva e velada de que, porque lidam com o lixo, fazem parte
de uma classe marginalizada.
Apesar de não estarem situados no intervalo de renda da pobreza e
da exclusão extremas, e a despeito dos avanços nas políticas públicas para
diminuição da pobreza e da exclusão social, o fantasma desses fenômenos
ainda está à espreita. Os péssimos serviços públicos projetam um futuro
mais como redemoinho e enclausuramento em um mundo (da cultura, da
economia e da sociabilidade do lixo) do qual esses “trabalhadores do lixo”
não conseguem sair. As políticas e ações governamentais ainda são deficitárias, no tocante à instrumentalização dos indivíduos para o alcance de
patamares mais efetivos que lhes possibilitassem sair do encapsulamento
em que se encontram. Já não são considerados extremamente pobres, mas
têm muito pouco além do mundo estigmatizado da pobreza do lixo para
sonhar e projetar um futuro.27
O grande recurso à mão dos catadores e recicladores pesquisados é
o capital social comunitário, fruto de investimentos em instituições como
igrejas e, principalmente, a família. Estas instituições produzem elementos
de significado decisivo para os indivíduos se situarem no contexto. A família
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é vista como entidade mais efetiva no enfrentamento de dificuldades econômicas, problemas de saúde e de outras adversidades. Contudo, as redes
sociais que se formam não produzem um comprometimento com a causa
comum, pública, restringindo, assim, o desenvolvimento do empoderamento comunitário. Toda ligação (sociabilidade) intensa vivida em âmbito
micro da vida social não reverbera em formas e forças organizacionais
mais abrangentes que promovam boa governança e possam ter uma escala
econômica e política que favoreça o desenvolvimento dos indivíduos e de
suas comunidades. Esperava-se, inicialmente, que os recicladores (com o
ingresso no mercado formal de trabalho) provassem uma participação cívica
mais ativa e inserção em redes sociais mais fortalecidas, o que, no entanto,
não foi comprovado.
A presente pesquisa corrobora o que já foi constatado em outros
estudos (MARQUES, 2009) sobre a importância das redes sociais urbanas
como suporte para os indivíduos em situação de pobreza e submetidos a
diferentes graus de segregação. Essa dimensão coloca-se como indicação
fática e crítica às teorias que reduzem as possibilidades da ação do indivíduo pobre às determinações estritamente econômicas, nos limites de seus
rendimentos monetários ou, no acesso ao seu capital humano (boa educação
e boas condições de saúde), tomado como um imperativo para aumentar as
oportunidades de ascensão social. Embora as variáveis “rendimento monetário” e “capital humano” sejam importantíssimas – porque se reportam a
estruturas objetivas que restringem as ações dos indivíduos pobres –, a realidade das redes de sociabilidade mostra margens de manobra e mobilização
de recursos que atenuam e remediam os efeitos das estruturas precárias que
incidem sobre esses indivíduos e suas redes. As redes sociais são afetadas
pelas estruturas, e produzem coesão social, uma vez que são formas societárias cotidianas, relevantes na construção de identidades, na produção de
um senso de pertencimento e de controle social nas comunidades.
Os catadores e recicladores veem a atividade da política, nos contornos da política institucionalizada, circunscrita a uma esfera em que se
movimentam os políticos profissionais, eleitos, geradores dos descaminhos
que afetam a todos. Os catadores e os recicladores não se identificam com
os agentes políticos e criticam o “mundo da política”. O senso de comunidade que exercitam vem pelas vivências primárias da família que, em um
cotidiano de dificuldades, opera mais em bases reativas que dialógicas e
propositivas. Assim, funciona bem o socorro recebido quando de um alagamento no período das chuvas, mas o processo político mais abrangente é
interrompido ao final da resposta a este estímulo climático pontual. De todo
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
modo, nesta pesquisa, constatou-se que os laços parentais são mais fortes
entre os trabalhadores informais (100%) do que entre os formais (60%),
no que se refere à preocupação em receber e retribuir auxílios prestados e
valorização da família.
Outro ponto de saturação nas entrevistas tinha a ver com o entendimento dos catadores e recicladores segundo o qual suas histórias de vida
– marcadas pela economia e sociabilidade do lixo – não eram tão valorizadas pelos empresários, acadêmicos, político e, também, ambientalistas.
Por isso, a conexão do lixo com o propósito de preservação ambiental é
uma representação fraca, sem tradução nas fórmulas cotidianas da racionalização, mais dirigidas à sobrevivência econômica básica. Sobreviventes
de um tempo recente de grandes privações, catadores e recicladores agem
ainda, fundamentalmente, sob os signos da exclusão social. E outros muros
os aprisionam nos espaços sociais de esquecimento, pois um novo ponto
de saturação aflora facilmente nas falas: tendo perdido a infância no lixo,
esses indivíduos sentem a falta de qualificação profissional e percebem que
isto lhes diminui o leque de oportunidades de ascensão e mobilidade social.
Não há correspondência entre as habilidades (pífias) desenvolvidas e as
necessidades e demandas do mercado de trabalho crescente.
CONCLUSÃO
Sob a ótica da concepção e gestão de políticas públicas, restou
demonstrados os muros sólidos que separam as dimensões sociais (dos
movimentos sociais da luta por moradia, a pobreza e as condições habilitadoras da cidadania, como saúde e educação) das ambientais (os lixões e
suas dinâmicas de degradação intrínsecas), percebidas, muitas vezes, como
compartimentos separados de realidade, conflitando-se entre operadores das
políticas públicas de plantão. O tema da integração dos organismos públicos
que agem nesses campos de realidade delimitada, disciplinarmente, vem
ganhando mais visibilidade e importância. Atores políticos, econômicos e
governamentais vocalizam a crítica a uma cultura institucional marcada por
unilateralismos, adensados por grupos ávidos por poder.
A pesquisa mostrou que o Lixão e os processos de degradação ambiental correspondentes não são tematizados nos discursos dos recicladores
e catadores, porque não guardam correspondência com uma ordem de prioridades engendradas por suas trajetórias de vida no lixo. Este aspecto, de
fato, só pode ser apreendido e tratado em uma dimensão mais sistêmica. Não
cabe aqui bestializar esses sujeitos. Uma estrutura de oportunidades lhes deu
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como opção um curso de ação com claras direções e limitações. No contexto
em que se discutem as bases de uma economia criativa e de suas conexões
com a viabilização das condições habilitadoras para constituir o ator social
competente para cuidar de si e participar da vida de sua comunidade em
termos mais sofisticados, os recicladores e catadores são uma espécie de
tipos humanos em um zoológico que não despertam maiores curiosidades
dos visitantes. E são, no seu pequeno lugar circunstanciado, prova de anos
de desgovernos e desencontros dos grupos e classes (movidos pelo auto-interesse) míopes para o conjunto da realidade brasileira socioambiental.
A ausência de políticas públicas ou a vigência de políticas públicas
míopes gerou realidades míopes a delimitar, em períodos de tempo e ciclos
econômicos, as ações dos indivíduos em um nexo causal direto, ainda que
os resultados finais (da história dos indivíduos e das instituições) dependam
de outros fatores cognitivamente divergentes de quaisquer modelos deterministas, porque a vida cotidiana é mais rica que nossos modelos. E, em
uma fração de tempo, das histórias de vida no lixo erguem-se as dinâmicas
societárias – nos bairros e redes de parentesco – que, ainda que instáveis e
limitadas, reúnem significados e projetos de ação que podem prover novos
enquadramentos e possibilidades de rompimento desta realidade enclausurada
pelos ditames institucionais enviesados.
A vida nos bairros situados próximos ao Lixão continua. Há resquícios da degradação ambiental do lugar. Sob essa imagem dissonante vivem
os indivíduos em suas rotinas e percepções ambíguas sobre o presente e o
futuro. Seguindo suas vidas com os recursos disponíveis à mão, enxergam
um mundo no qual querem se inserir, mas esse mundo lhes escapa. Quando
olham ao redor, percebem-se mais próximos de um outro, o mesmo mundo
da segregação de outrora. Contudo, é claro, não estão mais famintos.
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NOTAS
TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
1 Com uma população estimada em 268.969 habitantes, segundo o Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011a).
2 Ocorreu que, dadas as diferenciações institucionais (a FEPAM é um
órgão estadual e a Secretaria de Assistência Social é ligada ao município), a falha na comunicação/articulação impediu a efetivação de ações
complementares e integradas.
3 Segundo Neder (1996), a regulação do Estado no campo ambiental
instituiu, no Brasil, mecanismos de centralização (federalização) e
descentralização (órgãos locais, conselhos e instâncias de consultas e
referendos) que deram efetividade à ação pública no tocante à preservação, à conservação e à gestão ambientais. Contudo, os institutos legais e
instrumentos de gestão de políticas públicas criados não têm resolvido
os problemas de gestão ambiental no país, pela ausência de tratamento
integrado dos fenômenos ambientais e suas interfaces socioeconômicas
(emprego, renda, política industrial e urbana, pobreza e exclusão social).
4 A pesquisa cujos resultados alimentam o presente artigo se utilizou do
recurso metodológico “estudo de caso”, fazendo a descrição e análise em
profundidade de um conjunto de características do fenômeno particular
das histórias de vida dos catadores de lixo da cidade de Santa Maria-RS
(Brasil). Assim, não operamos, aqui, com uma amostra estatística representativa de uma população; tomando alguns conceitos como instrumentos
analíticos, procuramos compreender e explicar, globalmente, o fenômeno
socioambiental em questão.
5 “Os dados indicam que os 20% mais pobres detêm apenas 3,1% da
renda nacional, contra quase 60% de renda na mão dos 20% mais ricos”
(IPEA, 2010). A baixa renda da sociedade brasileira, conforme o IBGE
(2011b) concentra-se nos municípios de porte médio (10.000 a 50.000
habitantes), com “50% da população desses municípios vivendo com até
½ salário mínimo per capita. Nos municípios de 100.001 até 500.000
habitantes, entre os quais se situa Santa Maria (RS), 67,5% da população
vive com até ½ salário mínimo de R$ 255,00 reais ou U$ 125,61 (Censo
Demográfico, 2010). Neste artigo, considera-se a cotação de U$ 1,00
dólar para cada R$ 2,03 reais, segundo informação do Banco Central do
Brasil para o dia 15/10/2012. Vide http://www4.bcb.gov.br/pec/taxas/
port/PtaxRPesq.asp?idpai=TXCOTACAO.
6 Para Costa (2010), o problema da informalidade no Brasil se agrava
com o advento da empresa enxuta, a flexibilização e a desregulamentação
dos mercados de trabalho – em um histórico de formalização precária do
trabalho –, além de um contingente substantivo de trabalhadores que não
vão se incorporar na economia formal, se não beneficiados por políticas
educacionais efetivas. Do ponto de vista político-ideológico, e ainda sobre
as temáticas sensíveis da inclusão e coesão da sociedade, o país debate-se
em torno da “garantia e universalização de direitos versus flexibilização
para a maior competitividade da economia”.
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JOÃO VICENTE COSTA LIMA e ISABEL PADOIN
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7 Leonard (1992) compõe um modelo com os fenômenos da modernização da agricultura, crescimento populacional, desmatamento, migração e
criação de favelas no Brasil, com suas implicações ecológicas.
8 Segundo Preve e Corrêa (2007), a ocupação dos centros urbanos se deu
de modo desigual (social, econômica, política e culturalmente), gerando os
efeitos da marginalidade, violência e destruição das relações comunitárias.
9 Quando os indivíduos encontram-se na situação de não ter o que comer é
porque tudo na sociedade lhe foi negado: “É uma espécie de cerceamento
moderno ou de exílio” (PLASENCIA, 2001: 25).
10 Por sua vez, no Brasil não se instalou uma burocracia baseada em procedimentos de racionalidade e impessoalidade. A vida política e burocrática
é permeada por relações pessoais de poder, de mando e obediência. Há
pouca distinção entre as esferas pública e privada, e o Estado contemporâneo é visto com tons de arcaico e de ineficiência. Vide a seminal obra
Os donos do poder, de Faoro, 2008.
11 Para Sorj (2004), novos valores ligados a gênero, opção sexual, grupos
étnicos, religiões, regionalismos e meio ambiente balizam a formação de
atores coletivos.
12 Baquero (1994) discorre sobre o ceticismo dos cidadãos na América
Latina, em relação à democracia e sua capacidade de corrigir os problemas
econômicos e sociais.
13 Nos seus escritos relativos aos Estados Unidos da América, a superioridade econômica desta nação está associada à sua tradição horizontal, em
contraposição às redes de sociabilidade da América Latina, estruturadas
de forma verticalizadas.
14 Diversos autores têm aferido a baixa confiança interpessoal nas frágeis
democracias latino-americanas, enfatizando, principalmente, a desconfiança alusiva às instituições (partidos e governos): Rennó, 2001; Power
& González, 2003; Baquero, 2006.
15 O termo “lixo”, do latim “lix”, significa cinzas ou lixívia. O verbo
“lixare” representa lixar, desbastar. Em Português, remete a sobra, resto
ou sujeira. O lixo, de maneira geral, é concebido como inútil, sem valor,
tendo se tornado um problema na sociedade industrial, com o crescimento
urbano desordenado, e consumo de matérias-primas, energia, e produção
de resíduos em grande escala. A velocidade da produção e do consumo
nas cidades brasileiras gera um volume de resíduos sólidos e gasosos em
descompasso com a capacidade dos ecossistemas para fazer a reciclagem
(CARVALHO e OLIVEIRA, 2003).
16 Em detrimento de outras formas de tratamento do lixo, como o aterro
sanitário, a incineração, processos de compostagem e/ou reciclagem.
17 Cerca de 4 milhões de crianças menores de cinco anos morrem todo
ano devido a enfermidades associadas ao lixo. Como seus pais, essas
crianças também são nascidas nos lixões (PIRES, apud STECKEL, 2008).
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TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
18 Data de dezembro de 1992 a ocupação ilegal, por cerca de 70 famílias
sem-teto e sem condições financeiras para pagar aluguel, oriundas de áreas
próximas ao antigo lixão. Nesses tempos difíceis, não havia nenhuma
infraestrutura, o que não impediu que mais famílias “sem-teto” viessem
nos anos subsequentes. Atualmente, esses bairros comportam cerca de
6.000 famílias, contabilizando um total de 21.000 mil pessoas.
19 Outras iniciativas foram testadas, como a criação de uma cooperativa,
de um horto municipal, para a geração de renda aos catadores retirados
do local, sem sucesso.
20 Após a reciclagem, são vendidas para empresas do ramo de plásticos
e de metais.
21 Neste sistema, também existem drenos para o gás metano (que é
reaproveitado em forma de energia) e para o chorume.
22 A pesquisa originalmente obteve dados orientados pela teoria do
desenvolvimento humano de Amartya Sen, para correlacioná-los com os
indicadores sobre capital social. Optou-se por excluir esses dados para
o presente artigo. De todo modo, vale a pena fazer referência a algumas
avaliações sobre a estrutura dos serviços públicos porque sinalizam traços
de uma realidade marginal. Sobre as condições de “transporte coletivo no
bairro”, entre os recicladores a avaliação preponderante é a “mediana”
(61,3%) e entre os catadores, a “muito ruim” (71,42%). Sobre as condições de saúde do bairro, todos dependem do precário sistema público de
saúde e, entre os recicladores e catadores, predominou o “muito ruim”:
90% e 78,5%, respectivamente. Foram relatados problemas como a demora no atendimento na realização de exames, e a grosseria da equipe
médica. O principal problema social do bairro, segundo os entrevistados,
é a “violência” (48,4%), seguido do “desemprego” (33,3%), seja para
recicladores ou para catadores.
23 Os indivíduos pesquisados – recicladores e catadores informais – são
naturais da cidade de Santa Maria e cidades vizinhas, e moram em bairros
próximos à empresa recicladora (Alto da Boa Vista, Nova Santa Marta e
Pôr-do-Sol) e ao antigo Lixão da Caturrita. Foram entrevistados 36 recicladores e 14 pessoas que ainda atuam como catadores na informalidade,
de um total de 18 contatadas. Entre os recicladores e catadores informais,
a faixa etária predominante (57%) foi a de 18 a 25 anos. A renda média
familiar varia de R$ 735,00 ou U$ 362,06 (recicladores) para R$ 845,00
ou U$ 416,25 (catadores), estando um pouco acima dos R$ 622,00 ou U$
306,40 equivalentes ao salário mínimo no Brasil. A renda dos recicladores
(U$ 374,42/mês ou U$ 12,48/dia) e a dos catadores (U$ 430,46/mês ou
U$ 14,34/dia) estão acima do teto de U$ 2,00/dia que delimita a condição
de pobreza. Entre recicladores e catadores, 74% têm apenas o Ensino
Fundamental. Também sublinhe-se que 96% das casas não estão regularizadas, isto é, as pessoas não têm o título definitivo registrado em cartório.
24 De acordo com Fonseca (2000), a fofoca envolve o relato de fatos reais
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ou imaginários sobre o comportamento alheio, orientado para fazer mal
ao “outro”; é vista como um “desvio” de conduta do “outro”, uma vez
que ninguém se considera fofoqueiro. A fofoca opera como uma força
niveladora, usada por pessoas que se sentem inferiores e que só podem
ressaltar seus status rebaixando o dos outros.
25 A despeito de todos os funcionários da empresa trabalharem com
carteira assinada e cumprirem uma jornada de trabalho de 8 horas diárias.
26 Outros estudos (ALMEIDA et al (2008) também demonstraram que, não
obstante as melhorias materiais da população pobre das cidades brasileiras,
uma reprodução das distâncias sociais ainda ocorre, evidenciando-se, aí,
a simbiose entre atenuação da pobreza e reprodução da desigualdade, e,
mesmo, de aumento da desigualdade. Os autores exploram o processo
“centro-periferia”, no que tange a produção, circulação e acesso a bens
materiais e simbólicos de maior valor social e que denotam uma hierarquização do espaço social sem estritamente representar os descaminhos
da exclusão social.
27 Empiricamente, a educação (ou a falta dela) é o principal correlato para a
desigualdade de renda e inserção nas piores posições do mercado de trabalho
no Brasil (SCHWARTZMAN, 2007).
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164
TRAJETÓRIAS DE VIDA DO LIXO
Palavras-chave:
meio ambiente, pobreza, capital social,
degradação ambiental.
Key words:
Environment, poverty, social
capital, environmental degradation.
Resumo
O presente artigo analisa as trajetórias de vida dos indivíduos cuja subsistência dependia do antigo depósito de
lixo da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brasil,
formado por redes de sociabilidade que articulavam elementos de significado formadores de uma racionalidade
cotidiana, que valorava o agir econômico nos termos de
uma “cultura do lixo” e de suas conexões com a vida
político-comunitária. Perscruta-se sobre a preservação da
vida humana e do meio ambiente em espaços degradados,
dos níveis de composição entre uma realidade (humana) e
outra (meio ambiente), abordados no contexto institucional
como realidades estanques. Apesar da recente diminuição
das desigualdades no Brasil, os ex-catadores do Lixão da
Caturrita ainda carregam consigo os traços do estigma e
da exclusão sociais, e pouco racionalizam a temática da
conservação do meio ambiente.
Abstract
The present work analyzes the life course of the people
whose subsistence depended on the former garbage dump
of the city of Santa Maria, Rio Grande do Sul, Brazil, formed by sociability networks that articulated elements of
significance, formers of a daily rationality, which valued
the economical action in terms of a culture of garbage
and its connections with the community-political life.
The preservation of human life and of the environment
in degraded contexts is investigated along with the levels
of composition between a reality (human) and another
(environment), approached in the institutional context
as closed realities. In spite of the recent decrease in the
inequalities in Brazil, the former waste pickers of the
Lixão da Caturrita still carry the traces of the stigma and
of the social exclusion and few rationalize the thematic of
conservation of the environment.
Recebido para publicação em setembro/2013. Aceito em junho/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 143-164
As relações entre jovens infratores e a
Polícia sob a ótica das lógicas penais,
policiais e territoriais
Géraldine Bugnon
Doutora em sociologia pela Universidade de Genebra e pela Universidade de
Lille 1. Realiza um pós-doutorado no CRRC (Centre Romand de Recherche
en Criminologie), Universidade de Neuchâtel Bâtiment A.-L. Breguet 1,
2000 Neuchâtel.
[email protected]
Dominique Duprez
Doutor em sociologia e diretor de pesquisa CNRS no CESDIP (Centre de
Recherches Sociologiques sur le Droit et les Institutions Pénales), Universidade
de Versailles e Saint-Quentin-en-Yvelines 43, Boulevard Vauban
78280 Guyancourt – France.
[email protected]
INTRODUÇÃO
As representações da Polícia brasileira de que dispomos
estão intimamente conectadas a reportagens e obras cinematográficas sobre favelas, e mostram, com frequência, cenas das
tropas de elite da Polícia militar em favelas do Rio de Janeiro.
Duas delas, que obtiveram grande êxito tanto no Brasil como
no estrangeiro, constituem exemplos típicos: o filme Tropa de
Elite1, que exibe cruamente a atuação extremamente violenta
do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) contra
o tráfico de drogas nas favelas do Rio de Janeiro; e o filme
Cidade de Deus2, uma adaptação exitosa de um livro que coRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198
166
AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
loca crianças e adolescentes no centro das operações do tráfico de drogas.
Podemos também invocar o livro e documentário realizado por MV Bill et
Celso Athayde, Falcão: meninos do tráfico, projeto realizado entre 1998 e
2006. Os autores do livro3 afirmam que, dos 17 jovens entrevistados, 16 morreram durante a realização do documentário. Longe de pensarmos que essas
representações não condizem em absoluto com a realidade; pelo contrário,
o sucesso alcançado por elas se deve também ao realismo obtido graças ao
apelo antropológico que permeia essas obras. No entanto, elas distorcem a
percepção do trabalho policial comum e também das experiências cotidianas
vivenciadas pelos jovens envolvidos na vida criminal, muitas vezes involuntariamente. Nosso objetivo manifesto é apreender as interações entre jovens e
policiais, a partir do relato desses jovens no contexto de uma entrevista frente
a um/a sociólogo/a europeu/éia. Os jovens foram todos submetidos a uma
medida judiciária devido a atos infracionais cometidos antes dos 18 anos de
idade e, portanto, foram julgados pelo sistema brasileiro de justiça juvenil.
Além disso, é primordial salientar a diversidade dos perfis dos jovens
em questão. Uma parte deles foi entrevistada durante o cumprimento de uma
medida de internação e possui, em sua grande maioria, vivência no tráfico,
com acusações por homicídio4; outros foram submetidos a uma medida de
semiliberdade ou liberdade assistida, tiveram envolvimentos muitas vezes
recentes e estão longe de serem identificados como profissionais na delinquência. Ademais, esses jovens foram entrevistados em duas metrópoles
brasileiras (Rio de Janeiro e Belo Horizonte) que apresentam realidades
distintas quanto à organização local do tráfico de drogas e das instituições
judiciais. Tais variantes nos permitiram aprimorar nossa compreensão sobre
os determinantes sociais e interações entre jovens e policiais. Entretanto, do
ponto de vista socioeconômico, a homogeneidade é grande: a maior parte
dos jovens moram em favelas, possuem baixa escolaridade e são oriundos
de famílias de baixa renda, até mesmo em condição de extrema pobreza.5
METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS
Inspiram-se no método utilizado por D. Duprez e M. Kokoreff, na
pesquisa sobre o consumo e tráfico de drogas, levada a cabo na França
(DUPREZ e KOKOREF, 2000). Foram realizadas entrevistas biográficas,
dentro da tradição da escola de Chicago e da metodologia das narrativas de
vida (BERTAUX, 1997), com 92 jovens submetidos a medidas socioeducativas. G. Bugnon, no âmbito de sua investigação doutoral sobre a medida
de liberdade assistida, entrevistou 38 jovens (dentre eles, 3 garotas), entre
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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março de 2010 e abril de 2012. Os jovens foram entrevistados diretamente
em português, dentro do centro social encarregado de executar a medida,
em instituições que oferecem programas profissionalizantes, ou em diversos
lugares públicos. A pesquisa conduzida por D. Duprez concentrou-se em
jovens estabelecidos em três centros de internação da região metropolitana
de Belo Horizonte. Da amostra total de 54 jovens acompanhados entre
junho de 2009 a fevereiro de 2013, a metade era do sexo feminino6 (27).
Os jovens foram visitados ao menos uma vez por ano; dentre eles, alguns
duas vezes, no interior ou fora do centro; neste último caso, realizada uma
vez quando já terminada a medida. As entrevistas contaram com a ajuda
de um tradutor. Em alguns casos, o mesmo jovem foi visitado durante a
internação; depois, no centro de liberdade assistida e, finalmente, na cidade.
A taxa de recusa foi praticamente inexistente e isso se deve principalmente
ao status de pesquisadores universitários estrangeiros7. Em todos os casos,
os pesquisadores se encontraram com os jovens sem a presença dos funcionários das instituições, embora estes tenham sido os intermediários na
seleção e contato com os jovens. A entrevista não se centrou exclusivamente
na experiência do controle policial; preocupou-se mais amplamente com as
diferentes implicações decorrentes das atividades delinquentes, a relação com
a favela, a experiência no sistema judiciário, as perspectivas para o futuro,
etc. A originalidade do protocolo da pesquisa residiu no fato de se haver
procurado rever os jovens a cada ano, com o objetivo de acompanhar sua
trajetória dentro e fora do sistema judiciário. Esta estratégia metodológica
se mostrou mais profícua em relação aos jovens submetidos a medidas em
regime fechado do que àqueles em regime aberto, visto que muitas vezes
estes, uma vez liberados de qualquer obrigação judiciária, não mais puderam
ser contatados. Adotou-se o procedimento de cruzar a informação obtida
por meio dos depoimentos dos jovens com a análise de seus respectivos
dossiês judiciários que incluem os depoimentos dos policiais e os informes
socioeducativos elaborados coletivamente por uma equipe pluridisciplinar
de técnicos (psicólogos e assistentes sociais encarregados de executar as
medidas), posteriormente transmitidos ao juiz. Além disso, foram realizadas
entrevistas com os juízes responsáveis pelos jovens, seus colaboradores
(técnicos do Tribunal) e também com os técnicos que colocaram em prática
as medidas socioeducativas em regime fechado e aberto8.
Nossa reflexão está fundamentada em uma perspectiva interacionista
que busca transcender a lógica maniqueísta pela qual os jovens infratores são
vistos unicamente como vítimas da repressão policial. A relação de força atua
claramente a favor dos aparelhos de violência legítima do Estado (demonsRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198
168
AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
traremos, mais adiante, que a “guerra” entre policiais e traficantes provoca
mais mortes dentre estes). Assim, as relações entre policiais e jovens são
complexas e co-construídas ao longo das interações. Mostraremos que se,
por um lado, esses jovens conseguem antecipar, contornar e mesmo evitar
o controle policial, por outro, são submetidos às normas de funcionamento
do “mundo do crime” que, muitas vezes, os deixam mais expostos a sanções
penais que os maiores de idade.
Nosso objeto de estudo tornou particularmente difícil (para não dizer
impossível) uma análise interacionista clássica, baseada na observação das
relações cotidianas entre jovens e policiais. Sendo assim, decidimos acessar
essas relações por meio dos depoimentos feitos pelos jovens. Isto implica
evidentemente certos limites. Os discursos produzidos em entrevistas são frutos
de uma seleção de fatos, de uma reconstrução de sentido a posteriori, além
de um vínculo particular estabelecido entre o pesquisador e o entrevistado.
O grande número de jovens entrevistados (92) em contextos de pesquisa bastante diferentes – além do cruzamento sistemático dos depoimentos
entre si e com a literatura existente – permite-nos garantir a validade dos
resultados obtidos e o alcance geral de nossas reflexões. Entretanto, o ponto
de vista dos policiais não está totalmente ausente no nosso material de pesquisa, pois tivemos acesso aos dossiês judiciários dos jovens que estavam em
internação. Os relatórios das audiências judiciárias retomam as descrições
policiais dos atos pelos quais os jovens foram acusados (a maior parte das
vezes contestados por estes), além de disponibilizarem informações sobre
os contextos de intervenção. Coube-nos fazer, posteriormente, a análise
compreensiva dos dossiês e dos depoimentos. Ademais, a literatura científica
consultada sobre a Polícia no Brasil nos permitiu confrontar os depoimentos
dos jovens com o funcionamento da instituição policial.
Nosso método de investigação não pretende, no entanto, equiparar de
maneira simétrica jovens e policiais, e sim explicar as relações entre estes
dois grupos, a partir da perspectiva dos jovens em questão. Portanto, nosso
estudo se inscreve no âmbito de uma “sociologia da experiência”, que entende
cada indivíduo como agente de sua própria realidade em que este, dentro
de certas margens de manobra, pode “dominar conscientemente, de certa
maneira, sua relação com o mundo” (DUBET, 1994: 105). Se o conceito de
experiência abrange as ações que os indivíduos exercem para organizar seu
cotidiano, e este depende das condições sociais que os cerceiam, torna-se
necessária uma articulação das lógicas de ação que permitem apreender a
capacidade que esses jovens possuem de serem eles próprios os agentes da
mudança, a exemplo do que fez F. Dubet (1987) ao descrever a experiência
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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da “galère”9 (“vida dura”). Portanto, ao priorizar o ponto de vista dos atores, esta sociologia da experiência visa compreender a maneira como eles
constroem sua realidade social a partir de diferentes lógicas de ação.
Após uma introdução dedicada à apresentação de alguns elementos
do contexto da violência urbana e policial no Brasil, desenvolvemos nossa
discussão em três partes. A primeira apreende as interações entre jovens
e policiais, partindo da condição do jovem, com o objetivo de responder
ao seguinte questionamento: de que maneira o fato de ser menor de idade,
homem (mais que mulher), conhecido (ou não) pelos serviços policiais,
influencia as modalidades e as consequências do controle policial? Em uma
segunda parte, as relações entre jovens e policiais são analisadas sob o viés
das lógicas de funcionamento inerentes à Polícia brasileira e, principalmente,
no que se refere às práticas extralegais recorrentes (violência, corrupção,
etc.). Como os jovens relatam e enfrentam essas lógicas? Estão submetidos
exclusivamente a elas ou são capazes de desenvolver estratégias para diminuir seu impacto, ou mesmo tirar vantagem destas disfunções da Polícia?
Finalmente, em uma terceira e última parte, examinamos as correlações
espaciais que permeiam as interações entre jovens e policiais, tendo como
norte a seguinte interrogação: em que medida a intensidade e as modalidades
da intervenção policial variam em função dos territórios urbanos (favela ou
centro da cidade)?
POLÍCIA, VIOLÊNCIA E CONTROLE SOCIAL NO BRASIL
O controle social exercido pelas instituições produtoras da ordem no
Brasil se constitui numa variável central nos debates das ciências sociais:
como explicar o fato de a violência ter aumentado a partir da transição democrática, em meados da década de 1980 (CALDEIRA, 2000)?
Alguns autores salientam que a criminalização da pobreza (MALAGUTI BASTISTA, 2007), a exemplo do modelo americano, constitui a contrapartida indispensável para manutenção da ordem dentro de uma economia
flexível neoliberal (WACQUANT, 2003). Para outros, a explicação reside na
inércia das lógicas de funcionamento da sociedade brasileira, que ainda se
respaldam na época escravocrata, ou mesmo ditatorial (PINHEIRO, 1997).
Para estes autores, democracia e cidadania são conceitos vazios que residem
unicamente na esfera do discurso, embora tal hipótese, baseada na ideia de uma
“modernidade incompleta”, possa suscitar críticas: as sociedades modernas
democráticas são todas produtos de arranjos complexos e frequentemente
contraditórios, como também é o caso da França (CALDEIRA, 2000).
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170
AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
De qualquer forma, em matéria de violência, observa-se o Estado
brasileiro diante de um duplo desafio: conservar o monopólio da violência
física e manter a legitimidade da violência de Estado (ADORNO, 2005). Por
um lado, as esferas estatais de controle não são capazes de limitar as manifestações de violência. As cidades brasileiras são palco de tantos confrontos
que os meios de comunicação não hesitam em compará-los a verdadeiras
guerras; o homicídio é, assim, a primeira causa de mortalidade de jovens
entre 15 e 24 anos (39,9 % das mortes), e este índice está em constante
ascensão (WAISELFISZ, 2004). Além disso, o Brasil ocupa atualmente o
11° posto mundial, com a incidência de 28,5 homicídios por 100.000 habitantes, enquanto, a título de comparação, nos Estados Unidos esta taxa é de
5,8 (UNDOC, 2009). Segundo alguns autores, as formas específicas sob as
quais se desdobra o crime organizado nas cidades brasileiras representam
obstáculos para os mecanismos clássicos de regulação e controle do crime
posto em prática pela justiça moderna. Por outro lado, o Estado por si não
consegue exercer a violência de maneira legítima, e as numerosas disfunções
das instituições policiais e judiciais (tortura, abuso de poder, corrupção, etc.),
frequentemente noticiadas pela mídia brasileira, instauraram uma desconfiança da população em relação a essas instituições que apenas colaboram
para reforçar o círculo vicioso da violência (ADORNO, 2005). A falta de
legitimidade na qual estão imersas as instituições policiais e judiciais (que
não conseguem provar sua eficácia dentro de um contexto legal) conduziria
justamente a Polícia a utilizar-se de meios extralegais e violentos para compensar sua ineficácia. Por sua parte, a população oferece um apoio indireto a
estas práticas violentas, visto que a defesa dos direitos individuais no Brasil
segue bastante deficiente, principalmente no que se refere aos direitos dos
indivíduos delinquentes (CALDEIRA, 1991). Segundo alguns autores, a
violência e as ilegalidades, em todas suas configurações, não devem ser
consideradas como indício de disfunções institucionais relegadas à esfera do
excepcional, e sim, como práticas enraizadas no cotidiano das instituições
produtoras da ordem no Brasil (CALDEIRA, 2000).
Além disso, é importante salientar que o papel central da Polícia
no controle social da delinquência e regulação dos conflitos é muito mais
acentuado em sociedades caracterizadas por uma distância social profunda
entre os mais pobres e os mais ricos, como é o caso do Brasil; igualmente,
tal centralidade confere à Polícia brasileira importante autonomia de ação,
o que dá margem ao exercício de arbitrariedades e corrupção nas relações
cotidianas entre civis e policiais (MISSE, 1999). Um estudo, buscando avaliar
o ponto de vista dos habitantes das favelas do Rio de Janeiro, demonstrou
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
171
que essas pessoas se sentiam afetadas em suas vidas cotidianas tanto pela
violência de policiais como de traficantes, sendo que a violência exercida
por aqueles era considerada ainda mais imprevisível e arbitrária, visto a
distância social e geográfica que os separava. Por outro lado, a proximidade
dos traficantes e o caráter mais constante do controle que eles exercem no
interior da favela permitem calcular melhor os riscos e mesmo negociá-los.
Misse (2010) é um dos autores a ressaltar o status ambíguo da Polícia
civil que, embora execute um trabalho essencialmente administrativo, é a
responsável pela investigação dos atos considerados criminais. Não apenas
se observa um baixo grau de entendimento entre a Polícia militar e a Polícia
civil, como também o Ministério Público e o Sistema Judiciário utilizam os
processos policiais sem, no entanto, exercerem controle efetivo de todo o
processo. Isso gera dificuldades na coordenação de um procedimento e de
uma política penal que mobilize o conjunto dos atores do Sistema Judiciário
(PAES, 2013). Por exemplo, no contexto de uma pesquisa sobre os casos de
homicídios, Zilli e Vargas (2013) mostram que a ausência de meios técnicos e
a recorrida ao depoimento como prova judiciária prioritária conduzem a taxas
de elucidação bastante baixas (em torno a 15%, tanto no Rio de Janeiro como
em Belo Horizonte). Estas diferentes limitações das investigações policiais
são ressaltadas por um Juiz da Infância e da Juventude de Belo Horizonte:
Nós não trabalhamos com a técnica de investigação, é lamentável, mas o
Brasil nunca investiu na formação e qualificação de policiais. Não existe
cooperação entre a Polícia Civil, que é a polícia judiciária, e a Polícia
Militar, que é a polícia ostensiva. Mas a maneira deles trabalharem: eles
não têm nenhuma preparação, nenhuma técnica. Então para as drogas,
eles devem parar os traficantes, então são aqueles que eles encontram
na rua, é isso.
Barros (2009), em um estudo etnográfico sobre a Polícia de Belo
Horizonte, analisa obstáculos enfrentados na implementação de uma polícia
comunitária. Segundo o autor, a importação de uma lógica militar para o
interior da Polícia acentuou a distância entre esta e a sociedade civil, provocando entre os policiais uma desconfiança, em relação à população, que
beira a paranoia. Ademais, o fato de os policiais militares integrarem uma
corporação subordinada a cada governo estadual e não ao Governo Federal
acarreta diferenças bastante significativas no que se refere às práticas e à
administração; isto influencia, por sua vez, o recurso à violência, o emprego
de armas, etc. As diferenças existem, inclusive, dentro de um mesmo estado.
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
Por exemplo, a distância entre as cidades de Belo Horizonte e Contagem
é de apenas 20 quilômetros; entretanto, as descrições em depoimentos dos
jovens sobre as práticas policiais são bastante diversas.
O campo da pesquisa abrangeu duas metrópoles brasileiras, Rio de
Janeiro e Belo Horizonte. Estas duas cidades se diferenciam quanto ao grau
de organização do tráfico de drogas: enquanto três facções principais ocupam e dominam a maior parte do território das favelas do Rio de Janeiro,
uma infinidade de pequenos grupos disputa o território das favelas de Belo
Horizonte. Tal diferença na estruturação do tráfico repercute, diretamente,
nas possibilidades de mobilidade espacial dos jovens nele envolvidos (em
Belo Horizonte, às vezes, os jovens não podem sequer cruzar a esquina de
casa sem o risco de cair em mãos do grupo rival), como também sobre o
poder de controle da Polícia no interior das favelas (no Rio de Janeiro, o alto
grau de organização das facções criminosas dificulta o acesso de policiais a
algumas favelas ou a certas regiões destas).10
Além disso, o processo penal para os jovens se diferencia nas duas
cidades: em Belo Horizonte, ele se realiza por meio de um sistema integrado,
denominado CIA (Centro Integrado de Atendimento ao adolescente autor de
ato infracional), que concentra em um mesmo edifício a Polícia, o Ministério Público, os defensores públicos e os juízes. O jovem apreendido pela
Polícia é diretamente conduzido ao CIA para responder ao interrogatório
policial, como também comparecer às audiências preliminares, até a decisão
de liberação para aguardar julgamento ou de uma internação provisória. Isso
não impede a corrupção; mas, o fato de o jovem ser conduzido diretamente
a um órgão jurisdicional reduz as transações e a incidência de violência,
consistindo, inclusive, num dos argumentos (juntamente com a aceleração
do processo judiciário) citados pelos juízes que colocaram em prática tal
projeto. No Rio de Janeiro, em contrapartida, as diferentes instâncias se
localizam em lugares distintos, o que além de atrasar consideravelmente o
processo judiciário, favorece as práticas de corrupção.
SER JOVEM, TRAFICANTE E “FAVELADO” FRENTE À POLÍCIA
As modalidades e as consequências do controle policial dependem,
em grande parte, do status dos jovens interrogados durante a pesquisa: ser
menor de idade, morar em uma favela, estar envolvido no tráfico de drogas
ou ainda “ser conhecido pela Polícia” representam variáveis que estruturam a relação mantida com a instituição policial. Tais considerações serão
detalhadas nesta seção.
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
173
Em primeiro lugar, é importante salientar que os jovens se reportam
à polícia com grande familiaridade, comumente foram presos por policiais
do próprio bairro que, ao observarem suas ações por algum tempo, passaram
a desconfiar de vinculação com o tráfico de drogas. Constatou-se, ainda,
que o jovem, ao retornar após o término da medida socioeducativa, passa
a conviver com os mesmos policiais que o prenderam e continuam trabalhando no bairro: “A Polícia tá sempre pulando na favela; sempre o mesmo
policial; no momento que menos espera está do seu lado. O policial até zoa
com eles, já conhece todo mundo...” (Thiago). E Rodrigo enfatiza: “Já sabe
que nós trafica. Já conhece nós. [...] Um passo que você dá e a polícia sabe
que você deu [...] Ela tá ali e você nem viu” (Rodrigo).
Mesmo admitindo que a prática de vigilância exercida pela Polícia
beira um modelo panóptico, Rodrigo deixa claramente antever que essa vigilância não acarreta tantas detenções como se poderia esperar; mais adiante
observaremos que outras lógicas, particularmente da corrupção, estruturam
sobremaneira a intervenção policial exercida sobre esses jovens. A relação
familiar com a Polícia, tida como onipresente, diminui a excepcionalidade da
primeira detenção. Assim, ao ser questionado sobre “seu primeiro contato”
com a Polícia, Márcio relata uma longa experiência de interações entre ambos:
Ah, já até tinha acostumado com os abordo, quando eles aborda, né? Que
eles aborda, Nossa Senhora, igual um cavalo! Aí chegaram e tal, me dá
um tapa na cara tal... [...] acontecia quando a gente tava assim sentado,
assim na esquina ou então em algum lugar... Eles sempre aborda a gente
com maldade, sabe? (Márcio).
Os jovens envolvidos no tráfico de drogas frequentemente conhecem
com precisão as lógicas do controle policial e conseguem, dessa forma, evitar
um grande número de detenções. Ezequiel conta, por exemplo, que “era só
acabar a atividade no beco, que dava pra ver os homem... Nois ficava lá em
cima, aí não tinha como os homem pegar nois não...”.
As estratégias que têm por objetivo escapar do controle policial não
são individuais, mas organizadas e articuladas coletivamente no interior dos
bandos de tráfico de drogas, como explica Laura:
No caso, é porque é muito bem estruturado; nós trabalhamos nas ruazinhas sem saída da favela, nos becos, e tem aquele que a gente chama
de «olheiro », aqueles que prestam atenção, que fazem o trabalho mais
baixo no tráfico. Então, quando os policiais chegam, esses ‘olheiros’ nos
avisam e a gente se esconde (Laura).
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
Os “olheiros” são munidos de rádios walkies-talkies e submetidos
ao controle dos gerentes da “boca de fumo”. De certa forma, pode-se afirmar de antemão que os traficantes de drogas invertem aqui as lógicas de
controle, colocando os policiais sob vigilância. Rafael explica, em minúcia,
como os traficantes de Vila Nova, uma região periférica de Belo Horizonte,
conseguem antecipar e evitar o controle policial. Rafael prefere trabalhar
à noite pois “de noite é melhor, porque de dia tem muita polícia, e menos
de noite”. Segundo ele, o “gerente” (braço direito do chefe) distribuía 14
rádios walkies-talkies aos vendedores e aos “olheiros”:
Tem uma pessoa que você paga para fazer a vigilância. Quando a Polícia
chega, a gente diz ‘lombrou’; é um código. De vez em quando, a gente
consegue correr, mais quando o lugar fica cercado, é difícil de conseguir
fugir. De vez em quando, a Polícia sobe nos telhados e acampam na favela
por dez dias pra vigiar. Os policiais sabem que quem está bem vestido é
traficante e ganham bastante dinheiro. Então, eles param as pessoas que
estão bem vestidas (Rafael).
Ele explica que no dia a dia usa anéis, bijuterias, colares, relógios,
celulares, etc.; contudo, quando a Polícia se encontra por perto, veste-se com
roupas modestas e baratas. Se os traficantes parecem conhecer em pormenores
as lógicas da intervenção policial, o contrário não parece demonstrado. Zilli e
Vargas (2013) descrevem justamente a Polícia civil de Belo Horizonte como
relativamente desconectada das lógicas do crime organizado, pois o fato de
não estar devidamente infiltrada nos territórios do tráfico acaba acarretando
um trabalho de investigação pouco frutífero.
O alto grau de organização alcançado pelo tráfico de drogas justifica,
em parte, a razão pela qual alguns jovens podem escapar por vários anos,
sem serem detidos pela Polícia. Laura, por exemplo, passou pela primeira
detenção apenas aos 17 anos, embora tenha começado a vender crack e
maconha com a idade de 9 anos. Em algumas favelas, a forte hegemonia
dos traficantes impede a presença cotidiana da Polícia, fazendo com que
as incursões policiais continuem episódicas e acabem tomando a forma
de intervenções ostensivas, apenas após denúncias que, importante lembrar, permanecem relativamente escassas. Na prática, a falta de confiança
inspirada pela Polícia, por um lado, aliada à lei do silêncio imposta pelos
traficantes aos moradores das favelas (MACHADO DA SILVA, 2004), por
outro, silenciam de maneira implacável as denúncias11. Por conseguinte,
a Polícia parece intervir, sobretudo, nos casos graves como, por exemplo,
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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homicídios; não é raro que a Polícia, impelida a “encontrar um culpado”,
acabe acusando uma pessoa designada pelos chefes do tráfico.
Contudo, os jovens “bem conhecidos” pela Polícia dificilmente
escapam da detenção, pois, com o tempo, o controle policial se intensifica:
Mas, eu sempre fui muito requisitado pela Polícia, muito visado; meu
grau de ‘periculosidade’ na rua já era muito alto e aí eles começaram
a me procurar, pra me prender; e é por isso que eu vim parar aqui [no
centro de internação ndla].
- Você foi objeto de uma abordagem policial?
- Sim, eu já era muito conhecido. Tavam pedindo identidade, era realmente
pra ver se eu tava carregando droga (Danilo).
No caso de Rodrigo, que sabia estar sendo investigado pela Polícia,
sua prisão se concretizou com um mandado de detenção emitido pelo juiz:
Eles pediram um lance pro juiz; eu sei que eles estavam investigando
eu, por tráfico de drogas e tal... E quando estourou, quando o juiz deu...
Como é que é? O juiz dá um negócio no papel, mandado, né?
- Mandado de busca?
- O juiz dá a ele o mandado de busca, aí o dia que o juiz deu esse mandado
de busca, foi e invadiu a casa, lá. Bateu na minha mãe ainda, isso que é
foda. Aí eu fui e pulei neles também (Rodrigo).
O tipo de interação estabelecida com a Polícia e, principalmente,
a probabilidade de serem submetidos a uma abordagem varia bastante,
dependendo do sexo: o controle policial imposto às meninas é menor por
despertarem menos suspeita; além disso, quando são apreendidas, a revista
pode ser evitada na ausência de uma agente do sexo feminino12:
Eu pegava em geral 15 a 20 gramas de cada produto e escondia tudo
no… Tinha bastante lixo e material de construção que ficava ali, então eu
escondia, por exemplo, atrás de um tijolo; e como mulher, era mais fácil,
porque geralmente a polícia nos batia menos, ou a gente tinha menos
problema com a polícia quando a gente é mulher (Natasha).
Por esta razão, as meninas envolvidas no tráfico de drogas assumem
comumente o posto de “mula”, isto é, pessoa encarregada de realizar o
transporte de drogas de uma favela a outra ponta da cidade13. Natália, por
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
exemplo, portava 10 kg de cocaína e foi denunciada, provavelmente por um
traficante para quem trabalhou antes e que morava perto de sua casa. Trocar
de patrão quando se está inserido no mundo do tráfico é sempre arriscado!
Joana, que também trabalhava como “mula” e foi detida utilizando transporte
público no Rio de Janeiro, explicou que sempre se vestia com uniforme escolar e carregava uma pasta para passar despercebida. Esta função exercida
no tráfico, menos visível que a de vendedor, lhe permitia não apenas evitar
os controles policiais dentro da favela, comumente violentos, como também
os olhares de censura dos moradores e principalmente de sua família que
condena seu vínculo com o tráfico de drogas.
O fato de ser menor de idade também estrutura de maneira significativa as relações entre os jovens e a Polícia, pois há uma regra inerente ao
tráfico de drogas segundo a qual cabe aos jovens menores de idade assumir
a responsabilidade dos delitos sempre que ocorrer uma detenção coletiva.
Esta norma imposta pelos mais velhos decorre das evidentes diferenças de
atribuição de penalidade a um delito no âmbito da lei penal e do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente). Independentemente do delito em questão,
a pena máxima para um jovem menor de idade corresponde a três anos de
recolhimento em um centro de internação. Entretanto, frequentemente, quando
o delito não resulta em violência contra um terceiro, o jovem é submetido a
uma medida em meio aberto (Liberdade Assistida ou Prestação de Serviços
à Comunidade). Por outro lado, além dessa regra, os jovens compartilham
a certeza de que, em caso de detenção, nada de muito sério lhes acontecerá.
Por exemplo, questionado sobre suas impressões e temores em relação à
primeira detenção, Márcio replicou: “Ah, eu falei... imaginei nada; eu tava,
eu era de menor, o menor não acontece nada, como sempre...”.
Alguns juízes são conscientes das lógicas que conduzem os jovens a
assumir a culpa no lugar dos mais velhos (ou que são acusados falsamente
por policiais pagos por estes) e dos efeitos perversos sobre o processo penal
envolvendo menores de idade:
[...] Então, em geral, o adulto paga pra Polícia pra ela dizer que é o menor: “você, você é menor, então nada vai acontecer contigo”. E o menor
não é condenado. Mas depois, quando o menor chega aqui e vê que, na
verdade, não é nem um pouco assim, que ele vai pra prisão, que ele vai
ser privado de liberdade, ele se dá conta de como as coisas realmente são.
Alguns jovens entrevistados ressaltam sua adesão voluntária a esta
regra; mais que uma obrigação – à semelhança da lei do silêncio, por exemplo
–, ela é percebida como um gesto de solidariedade. Assim, quando Tiago foi
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abordado, acompanhado do primo cuja mochila continha grande quantidade
de drogas, ele declara à Polícia ser o dono da droga e, ainda, que o primo não
tinha qualquer ligação com o tráfico. Ele explica ter feito isso “porque meu
primo pediu chorando pra mim segurar, senão ele ia pegar muitos anos (de
prisão)”. Celso, que durante o interrogatório policial assumiu ter cometido
um homicídio, enfatiza igualmente ter agido voluntariamente:
Não, eu mesmo, eu achava a mesma coisa que eles, porque a pena pros
maiores é mais longa... Eu, eu pensava assim: ‘os maiores ficam mais
tempo emprisionados que nós, então eu vou ajudar e assim eu não seria
culpado [pelos maiores]. Então, quando os polícias vieram falar comigo
eu disse: ‘eu meti uns tiros na cara dele’. E assim eu assumi junto com os
outros menores. Ninguém nos fez nenhuma chantagem (Celso).
Quando um jovem se mostra desobediente, os mais velhos tentam
persuadi-lo valendo-se de dinheiro para obter sua colaboração. Alguns jovens,
entretanto, declararam (pelo menos durante as entrevistas) ser totalmente
contrários a esta regra, a seus olhos, completamente injusta:
Se a droga é sua, é sua. Se é do de maior é do de maior. Eu não seguro onda
dos outros não! [...] Aí eu vou e seguro, por exemplo... Seguro a droga
com maior e o de maior tá na rua, lá com mulher, curtindo, e eu preso
lá... Você é burro! Cada um o seu BO [Boletim de ocorrência] (Ezequiel).
Embora a regra de “assumir no lugar dos mais velhos” tenha um peso
considerável em caso de detenção, alguns jovens a transgridem e acabam
sendo alvos de sanções por parte do grupo. “É, tinha quatro menor e um
maior; aí um dos menor não queria assinar não [se declarar culpado]. Aí o
patrão nosso já mandou papo reto: se não fosse assinar era pra ele andar da
favela, sair fora” (Rodrigo).
No que pese os discursos dos jovens enfatizarem a autonomia de
ação, podemos conjecturar que o medo de represálias justifica também a
difusão dessa prática.
Entendemos que tal norma não provém exclusivamente das diferenças observadas entre a lei penal aplicada aos adultos e aquela a que estão
submetidos os jovens, mas ao próprio funcionamento das gangues. Nessa
hierarquia, os menores ocupam comumente posições subalternas; representam, portanto, mão de obra facilmente substituível, enquanto a ida de um
“patrão” à prisão desestabiliza e debilita a totalidade do grupo. Fabiano – que
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
acabava de ser promovido a gerente de uma “boca de fumo”, ainda menor
de idade – relata ter pedido (e não obrigado) a seus vendedores (menores
de idade) que se entregassem à Polícia em seu lugar. Fabiano explica por
que considera esta regra totalmente lógica e funcional:
[...] Ah mais, é por causa que, é dinâmica: se eu vou preso e eles sai, que
que eles vão poder fazer por mim? Nada, por que quem tem o contato é
eu. E, se eu tô lá fora e tá lá dentro, aí eu já posso ajudá, porque tô lá fora,
eu posso fazer contato... Entendeu? Posso fazer a droga girar (Fabiano).
Na prática, um “bom” chefe de gangue deve sustentar os membros
de sua organização quando estes são presos, o que significa, por exemplo,
custear despesas com advogados14, comprar mantimentos ou ajudar sua
família, suprindo-lhe as necessidades durante o período da prisão. Além
disso, a manutenção do ponto de venda de drogas assegura o emprego aos
jovens para o momento de saída da internação.
A obrigação, para os jovens, de confessar os delitos em lugar dos
mais velhos, produz situações paradoxais nos organismos encarregados da
delinquência juvenil. Quando Celso nos explica ter assumido a culpa por um
homicídio que não cometera, o relatório da equipe multidisciplinar solicita
ao juiz a prorrogação da medida de internação por mais três meses, alegando
que o jovem ainda não refletira adequadamente sobre seu ato. Enquanto
isso, os maiores de idade foram libertados da prisão. Na realidade, quando
existe um caso que implica maiores e menores de idade, os acusados são
julgados por instâncias completamente diferentes, não havendo qualquer tipo
de concordância entre elas. Se, no papel, as penas são mais severas para os
adultos, a superpopulação das prisões convencionais e os sistemas de redução de pena explicam por que, em vários casos estudados, os adultos saem
de uma medida de privação de liberdade antes dos jovens. Além do mais, o
aspecto temporal assume perspectivas diferentes em cada caso do processo
judicial: enquanto um maior de idade pode esperar vários anos preso antes
de ir a julgamento, no caso dos jovens, o julgamento acontece geralmente
dentro de um prazo bastante curto, e os atos acabam sendo julgados “no calor
dos acontecimentos”. Um juiz de Belo Horizonte comenta a dificuldade de
aplicar uma medida a um ato não cometido pelo adolescente:
Isso criava para ele um vazio, é como imaginar a figura de responsabilização sem culpabilidade. A gente espera, através da medida, uma
subjetivação do adolescente para que ele possa se transformar, mas não
tem um ato que dê suporte a essa intervenção.
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O modelo de atendimento psicanalítico que predomina no sistema
socioeducativo em Belo Horizonte pode converter-se em uma armadilha,
pois os profissionais, técnicos e magistrados esperam do jovem uma análise
crítica de um ato não cometido por ele.
CONHECENDO UMA POLÍCIA VIOLENTA E CORRUPTA
A violência e a corrupção constituem práticas tão recorrentes na
Polícia brasileira que já não causam surpresa na população. Numerosos
estudos ressaltam também o alto índice de homicídios nas favelas brasileiras
(BEATO FILHO e REIS, 2001; SILVEIRA, 2007; DE SOUSA e MILLER,
2012). Muitos crimes são provocados, principalmente, por “guerras” entre
traficantes pelo domínio das “bocas de fumo” no interior das favelas, como
também pelos confrontos entre supostos traficantes e policiais. Em 2006,
os policiais dos Estados Unidos foram responsáveis por um total de 375
mortes; em 2007, somente as forças de segurança do Estado do Rio de
Janeiro foram responsáveis pela morte de 1.330 pessoas, enquanto nesse
mesmo ano 51 policiais foram mortos. Em relação apenas à cidade do Rio
de Janeiro, o número de vítimas de homicídios diminuiu em 24,4% entre
2000 e 2008, embora o número de “autos de resistência” ou “resistência
seguida de morte” tenha aumentado em 147,5% durante o mesmo período
(PAES, 2011). Esta categoria administrativa contabiliza as pessoas mortas
em casos de resistência à ação da Polícia. Os dados revelam a diminuição
do número de conflitos entre cidadãos e, de maneira inversa, o aumento do
número de mortes oriundas do confronto entre cidadãos e agentes do Estado.
Reivindicadas pela instituição como legítimas, apenas no ano de 2008, foram
registradas no Rio de Janeiro 688 mortes causadas pela intervenção policial.
O título de um livro recentemente publicado é particularmente sugestivo:
Quando a polícia mata (MISSE e al., 2013). Baseia-se em uma estimativa
de 10.000 mortes causadas pela Polícia em 10 anos (2001-2011), apenas
no Estado do Rio de Janeiro. Em Belo Horizonte, os homicídios cometidos
pela Polícia parecem ser menos frequentes; dados comparáveis aos do Rio
de Janeiro não existem, pois a categoria “autos de resistência” não parece
ser utilizada pela administração policial. No entanto, mesmo que a violência
seja menor na cidade, esta metrópole assistiu a um significativo aumento da
taxa de homicídios entre jovens de 15 a 24 anos. No conjunto das capitais
brasileiras, Belo Horizonte passou do 24° lugar, com 7,7 homicídios por
100.000 jovens em 1997, para o 4° lugar com 41,2 em 2007, enquanto a
média esteve entre 22,3 e 21,3. Tanto em termos de tendência como de núRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
meros absolutos, observamos um caminho inverso, se comparado a outras
capitais da região sudeste: enquanto em São Paulo e Rio de Janeiro o número
de homicídios está em queda15, respectivamente (- 73,9%) e (- 38,9%), em
Belo Horizonte ele sobe vertiginosamente (+310%).16
Os depoimentos dos jovens confirmam estes contextos estruturais: a
violência é onipresente nos relatos dos jovens no Rio de Janeiro, e é menos
frequente nas experiências dos jovens em Belo Horizonte, que apontam mais
para o risco que representam os traficantes dos bandos rivais. No Rio de
Janeiro, por exemplo, a violência policial se expressa no emprego de golpes
diversos: técnicas de asfixia, em alguns casos choques elétricos e tiros na
mão ou no pé.17 Estas ações violentas são geralmente admitidas como fatos
normais e esperados; alguns jovens contam, inclusive, que tiveram sorte,
pois apenas receberam golpes, quando o policial poderia tê-los matado.
A impunidade dos policiais parece absoluta; por medo de represálias, os jovens quase nunca denunciam as violências sofridas, e mesmo os
casos mais graves não levam a qualquer investigação. Por exemplo: Jonas
foi submetido a choques elétricos e tortura psicológica; com tal prática, a
Polícia tinha o intuito de forçá-lo a indicar o esconderijo da droga. Tendo
em vista os inúmeros ferimentos aparentes no jovem, o juiz determinou o
exame de corpo e delito. Contudo, na sequência, o documento “se extraviou”
e nenhuma ação foi movida contra os policiais vinculados ao caso.
A utilização da tortura com vistas a obter confissões continua
sendo uma prática policial corriqueira, como já apontavam etnografias
da Polícia brasileira nos anos 1980 (WAISELFISZ, 2010). Além disso,
as violências policiais ocorrem comumente após a recusa dos jovens de
delatar seus cúmplices. De fato, a denúncia representa uma das formas
de traição mais condenadas pelas regras do tráfico; e os jovens entrevistados afirmam que preferem ser mortos pelo Polícia a serem mortos por
parceiros do tráfico. Em Belo Horizonte, um jovem disse que nada é pior
que morte por “X-9” (culpado por delação). Diante do nosso espanto, o
jovem explica que a pessoa é amarrada por uma corda e arrastada por um
carro até a morte, pelas ruas da favela. Percebemos que a impunidade
que caracteriza as violências policiais cometidas no Brasil não pode ser
explicada unicamente por falhas no Estado de direito no país; na Europa,
igualmente, alguns estudos (JOBARD, 2002; BUGNON, 2011) ressaltam
inúmeros obstáculos à denúncia e condenação da violência cometida por
policiais: usualmente, elas ocorrem em espaços ermos, na ausência de testemunhas, e são perpetradas contra populações estigmatizadas que dispõem
de escassos recursos legais. Ademais, a Polícia detém o monopólio estatal
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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da força e, questionar esse emprego, colocaria em risco os fundamentos
da instituição policial, razão pela qual as violências policiais perpetradas
são sistematicamente menos punidas que outras práticas policiais ilegais
(MOREAU DE BELLAING, 2009).
As violências policiais estiveram menos presentes ou, ainda, foram
mais pontuais e menos extremas no conjunto dos discursos dos jovens que
moram em Belo Horizonte. Assim, Rodrigo, após relatar uma atitude violenta
por parte da Polícia, esclarece ao longo da entrevista: “Eles não batem muito
assim não. Só bateu em mim, da última vez, porque eu pulei neles [...] A
Polícia não chega batendo assim não. Chega só pedindo pra você encostar
na parede” (Rodrigo).
Entretanto, esta realidade parece estar circunscrita à cidade de Belo
Horizonte, pois em outras cidades vizinhas do Estado de Minas Gerais, as
práticas policiais são claramente descritas em inúmeras entrevistas de maneira
mais ostensiva. Alexandre, que mora em Contagem, relata:
[...] Quando os policias voltaram pra viatura, eles nos disseram: ‘se vocês
não admitirem, a gente vai levar vocês num lugar a 40 minutos daqui e
a gente vai acabar com vocês. Vocês têm cinco minutos’, eles disseram.
Então, a gente discutiu cinco minutos dentro da viatura. Quando eles
voltam, a gente decidiu admitir e foi o parceiro que disse: ‘fui eu que
matei’; e eles levaram ele pra delegacia… Eles ameaçaram de nos torturar, começando com uma agulha pras unhas, porque isso não deixaria
nenhum vestígio. Depois iriam colocar plástico no nosso rosto para nos
sufocar. Eu acho que eles iam fazer mesmo, sim. (Alexandre).
Além disso, ele já havia sido torturado por outro policial militar, durante
uma prisão em flagrante por venda de droga: “eles colocaram uma máquina
elétrica [teaser], eu tava molhado e eles me deram choque” (Alexandre).
Se as formas e o grau da violência policial variam segundo os lugares e as delegacias, as práticas de corrupção, ao contrário, parecem ser
onipresentes nos discursos dos jovens entrevistados, tanto no Rio de Janeiro
como em Belo Horizonte. Esta corrupção pode traduzir-se, por exemplo, na
apreensão do dinheiro em posse do jovem no momento da detenção, cuja
soma pode chegar a vários milhares de reais. Quando a pessoa detida não
porta dinheiro, ela pode pedir a um “colega” traficante (comumente, uma
menina) para providenciar a quantia requerida; vale frisar que às vezes a
transação se realiza nos recintos da própria delegacia. Danilo, que vendia
drogas na zona metropolitana de Belo Horizonte, explica:
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
[...] Quando eu tinha dinheiro, eles roubavam meu dinheiro e não me
levavam pra delegacia. Eles pegavam meu dinheiro e me deixavam ir
[…] Sim, é muito comum já que se eles nos pegam com droga, eles
não podem fazer nada, mas se eles nos pegam com dinheiro, bom, todo
mundo tem coisa pra fazer com dinheiro. E pra polícia é a maneira deles
receberem, é tipo pagamento pra nos deixarem na nossa. A gente paga
e eles nos deixam na tranquilidade, mas quando a gente para de pagar,
a gente começa a ter problemas. (Danilo).
Outros relatos de jovens envolvidos no tráfico de drogas no Rio de
Janeiro confirmam que, na maioria dos casos, o objetivo da Polícia não
é realizar uma detenção e sim extorquir dinheiro (RODRIGUEZ, 2011;
HUGUET, 2005). Um adolescente entrevistado por Huguet e recolhido
em internação, por roubo de carro, explica que, se fosse possível ter dado
dinheiro à Polícia, provavelmente não estaria preso (2005, p. 294).
É importante ter em vista também que os baixos salários dos policiais militares constituem um fator que explicaria, em parte, tais práticas de
corrupção. Em Belo Horizonte, em alguns lugares, os policiais têm o hábito
de consumir gratuitamente café, bebidas e almoços nos estabelecimentos
comerciais; em alusão a esta prática, junto aos vendedores de drogas, eles
utilizam a expressão “eu quero meu café” para receberem seu dinheiro.
Frente a tal arbitrariedade policial, os jovens precisam contar com a proteção
dos chefes do tráfico:
A gente cresceu e, na nossa cabeça, são tipo heróis. Eles nos protegem
dos órgãos do Estado, porque a Polícia chega assim, fazendo merda nas
casas, e eles não querem nem saber de nada, porque tu é de uma classe
mais baixa […] e depois eles simplesmente vão embora, sem nenhuma
consequência (Danilo).
A corrupção também assume a forma de um pagamento regular,
pactuado com os chefes do tráfico, em troca de um controle policial menor.
Micael – que vendia drogas, no centro da cidade do Rio de Janeiro, para um
traficante que atuava numa favela – declara: “Não, a gente dava o dinheiro,
uma vez na semana. Uma vez na semana dava o dinheiro dele. Aí deixava,
eles que não iam lá, entendeu?” (Micael).
Se o dinheiro requerido não era entregue, Micael corria o risco de
ser detido no contexto de um flagrante forjado (prática policial que consiste
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em acusar uma pessoa inocente de possuir armas ou drogas apreendidas em
outra ocasião). Esse acordo com o batalhão da Polícia militar manteve, por
um tempo, Micael longe das detenções; finalmente, acabou sendo preso pela
Polícia civil. Alguns jovens, acostumados aos acordos com a Polícia, manifestaram sua surpresa no dia em que um controle policial resultou em prisão.
Embora a corrupção seja bastante presente, ela continua sendo estruturada,
sobretudo, pelas lógicas locais (por exemplo, acordos entre uma gangue e
policiais locais); e quando tais acordos não se concretizam, a repressão policial
é retomada. Assim, Rodrigo afirma que, no dia em que foi preso, chegaram
seis viaturas (após um mandado de prisão decretado contra ele) e ele não
havia entendido muito bem como faria para “responder”, financeiramente,
a número tão expressivo de policiais. Os relatos dos moradores das favelas
no Rio de Janeiro confirmam o caráter localizado dos acordos financeiros
entre traficantes e policiais. Segundo eles, a coabitação permanece pacífica
enquanto as brigadas policiais aceitam tais acordos; no entanto, a partir do
momento em que uma patrulha não corrompida entra na favela, a violência
é desencadeada (MACHADO DA SILVA e LEITE, 2007, 564).
A corrupção, na forma de propina, não consiste na única prática
extralegal exercida por integrantes da instituição: os policiais forjam completamente algumas prisões (conforme referido anteriormente), atribuindo a
posse de armas ou drogas a uma pessoa inocente. Isso lhes permite encontrar
um culpado após uma denúncia e também prender uma pessoa suspeita
há muito tempo, mas de difícil captura em flagrante. Edson, por exemplo,
conta que já foi preso sete vezes, acrescentando que, nas cinco primeiras
detenções, de fato, estava de posse da droga que vendia. Decidira, então,
parar de comercializá-las; mas, já estava “rotulado” como traficante pelos
moradores do bairro e continuou sendo alvo de denúncias. Suas duas últimas
prisões foram forjadas:
O policial falou assim: ‘aqui, nós tá com outra denúncia que você tá
vendendo droga e a droga nós sabe onde que tá’. Aí eu falei: ‘que droga
que eu tô vendendo? Que droga que eu tô vendendo?’. Aí ele falou assim:
‘não, mas tá com denúncia demais de você aqui, falando que você tá
vendendo droga mesmo’. Aí eu falei: ‘não tô vendendo droga não’. Aí
vi outra pessoa falar: ‘ele não tá vendendo droga mesmo não; tem muito
tempo que ele parou’. [...]. Aí já chegou outra viatura, ficou conversando
com os policial, aí já falou assim: ‘não, vamo levar ele lá pro CIA’. Aí
eu peguei e comecei a endoidar, falei com a vizinha, pra ligar pra minha
mãe, porque não tá certo não porque eles tava levando eu com nada. Aí
o policial veio com uma sacolinha branca assim de droga... (Edson).
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
Esta última detenção foi a que levou Edson a cumprir semiliberdade, enquanto nas prisões anteriores ele foi liberado em seguida, ou passou
por medidas em meio aberto. Se alguns jovens, como Edson, se sentem
vítimas de perseguição policial, outros utilizam esse recurso de “flagrante
delito forjado”, recorrente na Polícia, na tentativa de inocentar-se frente ao
juiz. Dessa maneira, aproveitando-se do fato de os policiais não o terem
encontrado com drogas no momento da prisão, Micael declara ao juiz que
foi vítima de um flagrante forjado.
Apesar de alguns juízes afirmarem estar atentos a essa realidade,
raramente levam a sério as queixas dos jovens referentes à Polícia, como
atesta o testemunho de um magistrado18:
A gente tenta saber se os fatos são aqueles descritos ou se aconteceu,
como a gente chama aqui, um “flagrante forjado”. Mas, na maioria dos
casos, tem implicação de adolescente. O que nós, juízes, não aceitamos
é que um adolescente seja proprietário de uma grande quantidade de
drogas. Nesse caso, nós não somos ingênuos. Existe alguém por trás
dele, então a gente faz o necessário com a Polícia para achar essa pessoa.
Em resumo, as pessoas vítimas dos “flagrantes forjados” comumente
possuem um vínculo com o tráfico de drogas (ex-traficante ou traficante que
ainda não chegou a ser preso em flagrante delito). Evidentemente, isso não
anula o caráter ilegal da prática policial.
O TERRITÓRIO COMO PONTO DE PARTIDA PARA A
ESTRUTURAÇÃO DAS INTERAÇÕES ENTRE JOVENS E
POLICIAIS
A frequência e a natureza dos controles policiais, assim como o tipo de
atividade ilegal exercida variam bastante em função dos respectivos territórios. Dessa forma, vender droga na favela não implica os mesmos riscos que
comercializá-la no centro da cidade; igualmente, a probabilidade de detenção
não é idêntica, quando se refere ao trabalho no tráfico ou à realização de
assalto a mão armada; ou seja, em virtude das lógicas territoriais, o tráfico
de drogas e os roubos não se distribuem de maneira simétrica pela cidade.
Em geral, os jovens relatam um controle policial bastante rigoroso
e efetivo no Centro da cidade, e mais brando nas favelas; a onipresença da
Polícia, percebida pelos jovens em certas favelas, usualmente não se traduz
em detenções, pois as negociações monetárias são possíveis. Assim, os jovens
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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que vendem a droga em uma “boca de fumo” da favela podem, às vezes,
exercer tal atividade por vários anos, antes de serem presos e levados perante
um juiz. Vimos a experiência de Laura que atuou livremente, no tráfico, dos
9 aos 17 anos; este tipo de caso permanece, contudo, excepcional e está
ligado a um ambiente fortemente controlado pelos traficantes na favela. Por
outro lado, os jovens que trabalham no Centro da cidade são frequentemente
apreendidos nos seis primeiros meses de atividade no tráfico. Rodrigo, que
no momento da entrevista ocupava um posto de responsabilidade dentro do
tráfico de drogas em uma favela de Belo Horizonte, explica que seu “bando”
não enviava vendedores ao Centro, pois “muita gente vende no Centro,
muito nego vai preso. Ninguém vende pra nós não, nós vende droga só lá
na favela, mesmo” (Rodrigo).
Essa probabilidade diferenciada de abordagem policial incide diretamente sobre os jovens residentes na favela com passagem pela Polícia e
também sobre aqueles com mandado de prisão decretado, que por medo de
serem presos não saem mais da favela. Portanto, a mobilidade destes jovens
na cidade se reduz ao perímetro do bairro.
Essa presença policial diferenciada entre o Centro e a favela é ainda
fortalecida, no caso de Belo Horizonte, pela instalação de inúmeras câmeras
de vigilância no Centro da cidade. Muitos jovens entrevistados declararam ter
sido acusados, por tráfico de drogas, após serem filmados em plena transação
com um cliente. Parece que as novas tecnologias, principalmente as de vídeo
vigilância presentes nos espaços públicos, não são tão ineficazes como se
poderia supor. Beatriz, por exemplo, foi surpreendida por uma câmera de
vigilância enquanto recuperava a droga escondida embaixo de uma ponte;
ao ver a aproximação da Polícia, tenta fugir:
Eu tive que fugir, tinha uma passagenzinha cheia de sucata onde eu
fiquei pendurada e depois caí. Eu caí de uma altura de dois postes; eu
não caí dentro do rio, mas bem na beira, numa parte onde tinha cimento.
Na hora, eu quebrei o maxilar. Quando eu caí a Polícia viu e eles me
deixaram lá e começaram a fugir. Foram umas crianças que cheiram loló
que me acharam e que ligaram pra ambulância. A emergência chegou e
me levou. Eles me deram uns remédios para que eu dormisse (Beatriz).
Após o ocorrido, Beatriz conta que foi submetida a uma cirurgia e que
esteve imobilizada durante três meses. Quando o pesquisador lhe perguntou
por que a Polícia se retirou, ela respondeu: “Porque eu acho que se eles me
pegassem, eles iam ser acusados de ter me atirado de lá” (Beatriz).
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
É notório que as câmeras fortalecem a ação policial, principalmente
no que se refere aos espaços centrais da cidade. Assim, em Belo Horizonte,
os pontos mais lucrativos de venda de cocaína às classes médias se localizam
nas favelas onde os sistemas de controle do Estado estão notadamente assegurados por meio de arranjos previamente acordados. A venda, nesse caso,
é executada por aqueles que ocupam posições elevadas dentro do tráfico,
enquanto os jovens que, em sua trajetória tiveram passagem pela rua, são
condenados à venda de crack nos espaços centrais, onde vivem populações
desfavorecidas, e permanecem sob intenso controle e mais expostos à prisão.
Por conseguinte, dentro do mundo do crime as novas tecnologias consolidam as disparidades sociais, ao mesmo tempo em que podem ser utilizadas
pelos traficantes para driblar o controle policial. Desse modo, por exemplo,
segundo Rafael, em Belo Horizonte, na favela onde ele mora:
A Polícia faz as rondas normalmente entre às 10 horas da manhã e às
14 horas. Depois, de noite, entre às 19 horas e às 21 horas. A gente tem
um rádio que a gente consegue captar a frequência da Polícia; então,
todo mundo sabe como são as rondas e, quando a Polícia chega, todo
mundo desaparece [Rafael aponta que o material foi comprado de um
policial]. (Rafael).
Observe-se, aqui, uma diferença em comparação com o Rio de
Janeiro, onde os jovens que trabalham no Centro da cidade, longe de se
sentirem relegados, preferem esse lugar de venda que lhes proporciona
maior independência, em relação ao chefe, estabelecido na favela19. Além
disso, no Centro, mesmo que os controles policiais sejam mais frequentes,
a probabilidade de serem submetidos a violências extremas durante um
controle policial é menor. Micael relata que, principalmente em caso de
controle, não se vê obrigado a proteger o ponto de venda, colocando sua
vida em perigo enquanto o chefe foge; o que ocorreria na favela, por ser
esta atitude a regra. Ademais, a Polícia tende a se mostrar menos violenta e
respeitar mais os procedimentos institucionais no Centro da cidade que nos
territórios afastados, nas favelas, onde a impunidade é maior. Este trecho
de entrevista é significativo:
- E você nunca foi chamado pra trabalhar no morro?
- Não, eu não gostava não. No morro, tu está armado; na pista, não. Na
pista, você não precisa trocar tiro.
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- Ah não? Você não andava armado?
- Sim, eu tinha minha arma; mas, tipo assim, é menos um risco que eu
vou correr; no morro, tenho que dar tiro, pra salvar o patrão e os amigo,
e dar tiro pra me salvar. Né não?
[...]
- Então, é menos arriscado trabalhar no Centro?
- É menos arriscado. No morro, se os polícia te pegar armado, eles te
matam. Na rua não; na pista não; se eles te pegar, eles te levam preso.
Te bate e te leva preso... (Micael).
É importante salientar, ainda, que Micael, como vendedor “ambulante” no Centro da cidade, a serviço do chefe na favela, ocupa um lugar
híbrido entre o tráfico praticado no interior das favelas – territorializado,
hierarquizado e fonte de violências múltiplas – e o comércio de drogas nas
classes médias do Rio de Janeiro, descrito por Grillo (2008), que funciona
em rede, de maneira mais horizontal e, principalmente, não violenta.
Finalmente, podemos encontrar uma terceira categoria em Belo
Horizonte: jovens que moram em bairros populares (e não em favelas) e
vendem drogas por sua conta, dentro do próprio bairro. É exatamente o
caso de Wanderson que assumiu o lugar do irmão mais velho, depois que
este foi preso. Ele vendia cocaína (obtida de diferentes revendedores nas
favelas), em uma praça e em diferentes bares do bairro. Não entrava em
conflito com os chefes dos “bandos” vizinhos, pois não vendia crack, que
era exclusividade de venda destes (o crack é mais lucrativo que a cocaína).
Segundo Wanderson, não precisava trabalhar armado, pois, embora a Polícia estivesse presente no bairro, utilizava menos violência, se comparada
àquela praticada na favela. Ele afirma: “na favela, a polícia entra lá toda
hora, armada, assim, eu nunca, lá no meu bairro não é assim, que é bairro,
mas a realidade é outra coisa, né?” (Wanderson).
Se, por um lado, como disse, Wanderson gozava de grande independência em suas transações e sofria menos violência, por outro, estava menos
protegido frente aos controles institucionais: em questão de pouco tempo,
os taxistas que trabalhavam na praça do bairro o denunciaram à Polícia e
ele foi preso, apenas um ano após ter começado a comercializar drogas.
Portanto, quando as interações entre jovens e policiais são estruturadas, sobretudo pelo território, as lógicas observadas são complexas e
não dicotômicas. Em alguns casos, a favela exerce um papel protetor para
os jovens procurados pela polícia, em razão das dificuldades dos policiais
em realizar intervenções eficazes nos territórios dominados pelas facções
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
criminosas. Em outros casos, são as lógicas de “rotulação” que predominam e certos jovens se veem obrigados a deixar a favela onde vivem para
escapar da perseguição policial; é justamente o caso de Edson, que deixou
completamente sua atividade no tráfico de drogas:
Eu vou ter que mudar de lá. Agora já tô de maior, aí vou ser desligado
dessa semi [semiliberdade], vou pra lá; fico lá de maior e eles forjam
alguma coisa pra mim. Aí eu de maior, complicando... Então vou sair
de lá, né? Ir lá pra onde minha mãe tá e ficar lá trabalhando (Edson).
Se, como acabamos de ver, a probabilidade de ser preso pode ser
diminuída ou reforçada dentro da favela, a exposição a toda sorte de violências parece, de acordo com a maior parte dos relatos recolhidos, aumentar
nos territórios relegados pelas esferas públicas, onde a intervenção policial,
quase sempre, é mais militarizada e a impunidade das práticas policiais,
generalizada.
A probabilidade de ser conhecido pela Polícia e pela Justiça depende
também do tipo de atividade ilícita exercida (dependente, por sua vez, das
lógicas territoriais). A venda de drogas implica menor risco de detenção,
por um lado, porque se realiza em territórios ermos e, por outro, porque a
ausência de vítimas torna improvável a denúncia. A prática do roubo, ao
contrário, é mais arriscada: dentro das regras do tráfico, o roubo é proibido
em todo o perímetro da favela e é necessariamente cometido nos bairros
mais vigiados. A natureza própria dos bens desejados (celulares de última
geração, bolsas repletas de dinheiro) além dos potenciais lugares de assalto
(bancos, correios, lojas diversas) levam também os jovens a cometê-los nos
bairros ricos e, portanto, sob intensa vigilância. Assim, Tiago explica que
sua entrada no tráfico de drogas foi consequência de um forte cerco policial
que sofria no período em que praticava roubos em um bairro nobre próximo
à sua casa. Diogo “subiu de posto” rapidamente dentro do tráfico devido
ao seu status privilegiado de “cria do morro”; paralelamente, ele sempre
realizou roubos, o que o levou a ser preso pela primeira vez:
É, já com doze anos, já comecei a trabalhar; aí depois fui subindo, aí
eu virei soldado do morro; e mesmo sendo soldado do morro, roubava.
Então, roubava carro, roubava banco também, essa coisas... E foi justamente quando eu rodei, quando eu fui preso; no caso, eu rodei com
roubo, entendeu? Fui pego roubando um banco, na Caixa Econômica; fui
pego eu e mais cinco, entendeu? Fui preso justamente por causa disso...
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189
[...]. Porque, no tráfico, ele tá dentro de uma comunidade fechada; então
90% dos policiais não conseguem subir lá dentro, entendeu? (Diogo).
Além disso, o elevado risco de prisão vinculado à prática do roubo
se reflete nas estatísticas oficiais sobre delinquência juvenil: os delitos
contra o patrimônio estão em primeiro lugar em relação ao tráfico. Contudo, as entrevistas mostram que um número expressivo de jovens exerce
paralelamente as duas atividades; principalmente durante o período em
que ocupam postos subalternos e são, consequentemente, mal remunerados. O assalto – principalmente a mão armada, pois a inserção no tráfico
facilita o acesso a armas – constitui um complemento aos ganhos obtidos
com o tráfico de drogas, fenômeno confirmado igualmente por um estudo
realizado pelo Observatório de Favelas no Rio de Janeiro que constatou,
além disso, uma tendência à migração de jovens do tráfico para a prática de
assalto à mão armada (DE SOUZA e SILVA, 2006). Portanto, é plausível
conjecturar que a profissionalização do tráfico, por um lado, e a organização
altamente hierarquizada das facções, por outro, acarretam uma queda nos
lucros, ou mesmo dificuldade para obtê-los rapidamente. Ao contrário, o
roubo oferece uma oportunidade de ganhos maiores e imediatos, além de
maior independência:
O dinheiro que tu rouba é todo teu. Agora, o dinheiro do tráfico não. O
dinheiro do tráfico assim, por exemplo, você trabalha pra uma pessoa,
determinada pessoa, entendeu? Aí, assim o que você lucra naquele dia
você vai dividir. Tal parte vai ser da ‘boca’, tal parte vai ser sua (Diogo).
O dinheiro obtido com o tráfico de drogas (ou por roubos) é geralmente
esbanjado em gastos ostentatórios (festas, joias, roupas de marca, presentes
para mulheres...)20. Entretanto, alguns jovens manifestam o desejo de investir
o dinheiro em um projeto a longo prazo: assim, Rafael, que entrou no tráfico
com 12 anos de idade e pouco a pouco subiu de posição, planeja comprar
um restaurante com suas economias: “Sou um pão-duro”, afirma.
Importante observar que o tráfico de drogas e o roubo nem sempre
estão associados; a título de exemplo, alguns jovens realizam apenas assaltos
a mão armada e desdenham um posto no tráfico, uma vez que lhes representaria uma perda de autonomia: “A maioria dos adolescentes que estão
no tráfico também roubam. Mas tem também aqueles que não roubam, você
entende? Porque eles não querem trabalhar pra qualquer um, eles querem
trabalhar por conta própria” (Diogo).
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190
AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
Ademais, a maior parte dos jovens que apresentam trajetória de rua
e dependência de drogas cometem pequenos furtos (sem uso de arma), e
não ingressam no tráfico de drogas devido à sua péssima reputação junto
aos traficantes. Já outros se recusam a cometer roubos por razões éticas de
“direito de propriedade”, enquanto o tráfico, para eles, constitui um “negócio
como outro qualquer”: tanto o comprador como o cliente não estão obrigados
a participar da transação.
CONCLUSÃO
Procuramos descrever, compreender e explicar a maneira como jovens, em duas metrópoles brasileiras, envolvidos em atividades delinquentes
– principalmente o tráfico de drogas – vivenciam o controle policial. Três
dimensões foram pertinentes para compreender as interações entre jovens
e policiais: o status do jovem, o funcionamento da Polícia brasileira e as
lógicas territoriais.
Nossos resultados confirmam algumas lógicas reiteradas em diversos
estudos de sociologia referentes ao comportamento divergente e ao sistema
penal: familiaridade das relações entre jovens oriundos de bairros desfavorecidos (neste caso, as favelas) e Polícia; lógicas de rotulagem presentes;
impunidade policial nos casos de uso ilegal da violência; importância das
lógicas locais no exercício do poder discricionário da Polícia; e o tratamento
diferenciado dos suspeitos em função do sexo. A título de autocrítica, pode-se conjecturar que o fato de a pesquisa se fundamentar principalmente
nas experiências dos jovens e, por consequência, privilegiar seus discursos
poderia ter o efeito de superestimar as margens de manobra, estratégias e
recursos dos jovens frente às intervenções da Polícia (ou frente ao “mundo
do crime”). Ainda assim, os resultados permitem-nos matizar e complexificar algumas análises da literatura e atender ao objetivo inicial do artigo, ou
seja, produzir uma sociologia da experiência sobre jovens indiciados pela
Justiça, no contexto de suas relações com o Polícia no Brasil.
Assim, embora numerosos estudos – na maior parte embasados na
realidade da Polícia do Rio de Janeiro – ressaltem a onipresença da violência
nas práticas policiais, os dados coletados mostram sua variação em função
das lógicas locais. Além disso, o contexto particular no qual a pesquisa
se realizou (alto grau de organização do tráfico de drogas, recorrência de
práticas policiais extralegais) e também a abordagem adotada (qualitativa,
compreensiva e interacionista) nos permitiram redefinir a maneira pela qual
as lógicas estruturantes se combinam e produzem efeitos complexos nas
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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interações entre jovens e policiais. Mesmo que a legislação atual da Justiça
para jovens no Brasil preveja (ou pelo menos aparentemente) penas mais
brandas, o fato de os jovens ocuparem posições subalternas no tráfico de
drogas, facilmente substituíveis, torna-os alvos mais frequentes de processos policiais e penais que os adultos envolvidos na venda de drogas. Esta
lógica é ainda fortalecida pela propensão da Polícia brasileira em realizar
“acordos” com os traficantes, que podem designar um culpado à sua escolha.
Um outro exemplo reside no modo pelo qual o território influi (de maneira
complexa e não linear) na intensidade da ação policial: em função do grau
de organização do tráfico de drogas em determinada favela, a Polícia dispõe
de uma capacidade de intervenção mais ou menos eficaz, fato que pode
proteger (ou expor) os jovens ao controle institucional; quanto mais organizados estão os traficantes (e, portanto, armados), mais a violência irrompe
durante as operações policiais; fato que aumenta os riscos dos jovens que
trabalham dentro das favelas serem vítimas de violências (às vezes fatais);
enfim, em função dos dispositivos de vigilância do Estado (vídeo vigilância)
e também dos recursos do jovem e de sua implicação no tráfico, o fato de
vender a droga fora da favela ao mesmo tempo que os expõe enormemente
às prisões, confere-lhes igualmente uma autonomia considerável na gestão
do próprio comércio.
Para concluir, e com o objetivo de abrir novas perspectivas de pesquisa, é importante recapitular que as lógicas salientadas neste artigo estão
ligadas a configurações particulares; cada uma das dimensões aplicadas
na análise está sujeita a transformações ao longo do tempo (mudança das
políticas penais, reorganização das facções criminais, etc.). Por exemplo:
em Belo Horizonte, toda semana um pelotão da Polícia militar visita um
centro de internação para oferecer uma oficina de percussão aos jovens que,
posteriormente, têm lugar em exibições públicas. Sem querer sucumbir a
um otimismo ingênuo, podemos conjecturar que este tipo de projeto produz
efeitos concretos, dignos de análise, nas relações entre jovens e policiais.
Outro exemplo: no Rio de Janeiro, a política de ocupação das favelas pelas
Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) está modificando, profundamente,
as lógicas de vigilância policial nesses territórios.
Embora seja demasiado cedo para se tirar conclusões definitivas sobre
esse impacto, mudanças podem ser notadas a partir da entrada de uma UPP
na favela: comumente os chefes do tráfico fogem, ou se refugiam em lugares seguros na própria favela; mesmo que a venda de drogas não cesse, os
pontos de venda são transferidos para locais remotos e os traficantes deixam
de exibir suas armas em plena rua. As primeiras avaliações dessa política
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192
AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
de seguridade ressaltam ainda uma diminuição global de delitos violentos
(com uso de arma de fogo), principalmente redução de mortes resultantes
da intervenção policial (CANO, 2012). Em contrapartida, todos os outros
tipos de delitos apresentaram um crescimento significativo, o que poderia
ser explicado tanto pelo aumento real da delinquência, em virtude de um
controle menor exercido pelos traficantes, como também pela elevação do
número de queixas resultantes da atual presença continuada da polícia nas
favelas (CANO, 2012). Nossos dados indicam, ademais, que os jovens
que representam o “pequeno comércio” de drogas, comumente não têm a
possibilidade de fugir ou de se reciclar em outra atividade; são, portanto,
alvos de uma repressão policial intensa, ainda mais se forem conhecidos
das forças policiais.
Além disso, como sublinha Paes (2011), a colaboração com o Exército
no âmbito dessa política (em razão da falta de efetivos policiais) levanta
algumas questões novas: qual divisão de trabalho se estabelecerá entre o
Exército e a Polícia Militar? As práticas ilegais da Polícia militar irão se
difundir entre os recrutas do Exército? Tais considerações ressaltam o aspecto dinâmico da relação existente entre a instituição policial, as atividades
criminais e os territórios urbanos e, consequentemente, a importância de se
analisar estes fenômenos em termos relacionais e processuais.
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
NOTAS
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1 Tropa de elite, José Padiha e James d’Arcy, 2007.
2 Romance de Paulo Lins, Cidade de Deus, que posteriormente foi adaptado
a um filme de grande sucesso, sob a direção de Fernando Meirelles (2002).
3 MV Bill e Celso Athayde, Falcão: meninos do tráfico. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2010.
4 Acusados não significam autores. Uma parte deles assumiu a responsabilidade de atos que não cometeram para protegerem os maiores de idade.
5 Não podemos associar, evidentemente, o conjunto dos jovens moradores das favelas a jovens infratores. Licia Valladares (2006), com razão,
advertiu os pesquisadores quanto ao risco de se reproduzir, no âmbito das
ciências sociais, as representações negativas dos moradores das favelas.
Por outro lado, tampouco devemos assumir uma representação idealizada
das “comunidades”, retomando o eufemismo utilizado tanto pelas autoridades brasileiras como, com frequência, pelos habitantes desses bairros
pobres. Para uma retrospectiva histórica e jurídica das favelas, pode-se
consultar Rafael Soares Gonçalves (2010).
6 A questão da violência cometida por mulheres e o lugar que estas ocupam dentro do tráfico de drogas foi tema de uma publicação de Duprez
(2012) a partir desta pesquisa.
7 Uma anedota pode ser significativa. Durante nossa última visita a um
dos centros, um grupo de jovens improvisou uma apresentação. Um
deles quis dizer algumas palavras e seu depoimento nos surpreendeu.
Ele agradeceu o nosso interesse por eles e afirmou “Aqui no Brasil, as
classes médias nos desprezam e, se aceitamos contar nossa vida e nossas
batalhas, é porque fomos honrados com o fato de pessoas importantes
como vocês se interessarem pela gente”.
8 As medidas não dependem da Justiça comum, mas de um secretário de
Estado para as medidas em regime fechado e, da municipalidade, para as
medidas em regime aberto. Para uma análise do sistema de justiça para
menores de idade no Brasil, consultar G. Bugnon e D. Duprez (2010).
9 “Galère” se refere à pesquisa, levada a cabo pelo autor, na análise de
relações, experiências e estratégias de jovens em contexto de marginalização para viverem com poucos recursos.
10 Outra diferença entre as duas cidades é a presença de milícias privadas no interior das favelas do Rio de Janeiro. Formadas por ex-policiais,
bombeiros e carcereiros de prisão, estas milícias impõem um sistema
de segurança aos moradores em troca de retribuições diversas. Estudos
sobre este tema (ZALUAR, CONCEIÇÃO, 2007) indicam que a Polícia
tende a se mostrar menos truculenta e menos corrupta nestas favelas que
naquelas dominadas pelos traficantes de drogas (em função do evidente
“corporativismo” que impera entre Polícia e milícia). Não nos aprofundaremos nesta questão no presente artigo, pois os depoimentos dos jovens
entrevistados nunca mencionam tais milícias privadas.
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11 Dentre outros autores, Misse (1999) supõem ainda que a “lei do silêncio”
deriva também da substituição, no Brasil, do sentido da denúncia pelo
da delação: os baixos índices de denúncia registrados pela polícia não
se originariam apenas do temor inspirado pelos traficantes, mas também
seriam frutos de uma barreira moral ligada à proibição de delatar.
12 Apesar do número crescente de mulheres presas por tráfico de drogas
ao longo dos últimos anos no Rio de Janeiro, as mulheres, quase sempre,
continuam sendo consideradas como vítimas pelas instituições penais.
(SOUZA, 2009). Além disso, quando são abordadas pela Polícia, passam
por menos revistas que os homens; mesmo que um grande número de
regras referentes a procedimentos penais seja cotidianamente violado
pela Polícia brasileira, a proibição de revista por um agente masculino
sobre um suspeito do sexo feminino continua sendo surpreendentemente
respeitada (RAMOS e al., 2005).
13 A menor atuação da Polícia brasileira frente ao envolvimento de meninas no tráfico de drogas foi objeto de outro texto de um dos autores do
presente artigo (DUPREZ, 2012).
14 Entretanto, esta regra não se aplica aos jovens pois, provavelmente, os
traficantes são cientes do limitado poder de atuação dos advogados nos
processos nas varas da Infância e da Juventude. Em geral, eles recebem
algum dinheiro e roupas por meio das visitas de familiares.
15 Como dito anteriormente, no que se refere ao Rio de Janeiro, as cifras de
homicídios estão subestimadas devido ao peso dos “autos de resistência”.
16 Fonte: SIM/DATASUS.
17 Um estudo estatístico realizado pelo Observatório das Favelas, no Rio
de Janeiro, confirma estas narrativas: dos 230 jovens envolvidos com o
tráfico consultados; apenas 26,5% afirmaram nunca ter sido vítimas de
violências policiais, enquanto 21,7% relataram haver sofrido cinco ou
mais vezes violências por parte da Polícia (DE SOUZA e SILVA, 2006).
18 Durante nossa pesquisa, pudemos presenciar, uma vez, a rejeição, por
parte do juiz, da versão dos fatos contada pelos policiais, em favor do
relato do jovem (que denunciava justamente um delito totalmente forjado).
19 O estudo de Dowdney (2003) sobre os jovens do tráfico no Rio de
Janeiro salientou que o “asfalto” ou a cidade, em oposição à favela, não
é controlado; nem é de interesse das facções de traficantes, que se instalam no território das favelas. Nossa pesquisa matiza esta afirmação, ao
apresentar o fato de que certos jovens trabalham no Centro da cidade a
serviço do chefe estabelecido na favela.
20 Chegamos a constatações similares no norte da França, no final dos anos
noventa, quando a lavagem de dinheiro procedente das drogas permanecia
excepcional, no caso do tráfico nas cidades. Ver Duprez, Kokoreff (2000).
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GÉRALDINE BUGNON e DOMINIQUE DUPREZ
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AS RELAÇÕES ENTRE JOVENS INFRATORES E A POLÍCIA ...
Palavras-chave:
Polícia, delinquência
juvenil, Brasil, corrupção,
violência, territórios.
Keywords:
Police, juvenile
delinquency, Brazil,
corruption, violence,
territories.
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar interações entre policiais
e jovens menores de idade envolvidos em atividades
delinquentes em duas grandes metrópoles brasileiras
(Belo Horizonte e Rio de Janeiro), a partir das narrativas
produzidas por estes durante entrevistas biográficas. Três
dimensões se revelaram pertinentes para compreender as
experiências narradas pelos jovens entrevistados: o status
do jovem (idade, sexo, grau de envolvimento na delinquência), o funcionamento da polícia brasileira (principalmente
relativo a práticas extralegais) e as lógicas territoriais
(favela versus centro da cidade). Nossos resultados permitem redefinir a maneira como essas lógicas estruturantes
(normas legais referentes à justiça juvenil, organização
do tráfico de drogas, prioridades da intervenção policial)
se combinam e produzem efeitos complexos nas relações
entre jovens e policiais.
Abstract
The purpose of this paper is to analyze the interactions
between police and underage youth involved in delinquent
activities in two major Brazilian cities (Belo Horizonte
and Rio de Janeiro), from the narratives produced by these
during biographical interviews. Three dimensions were
relevant to understand the experiences narrated by the
young people interviewed: the status of the young (age,
sex, degree of involvement in the crime), the operation of
the Brazilian police (mainly relating to extralegal practices)
and territorial logics (favela versus center of the city).
Our results allow us to redefine the way in which these
structural logic (legal norms relating to juvenile justice,
organization of drug trafficking, priorities of police intervention) combine and produce complex effects in relations
between youth and police.
Recebido para publicação em outubro/2014. Aceito em maio/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 165-198
Os “estabelecidos e os outsiders” da
Sulanca no agreste Pernambucano
Annahid Burnett
Doutorado em Ciências Sociais e Mestrado em Sociologia pela Universidade
Federal de Campina Grande (UFCG), estado da Paraíba. Pesquisadora do
grupo de pesquisa Trabalho, Desenvolvimento e Políticas Públicas, UFCG/
CNPq. Tradutora do livro Sociologia Ambiental, do professor John Hannigan,
da Universidade de Toronto, publicado pela Editora Vozes.
Endereço eletrônico: [email protected]
Endereço postal: Rua Silvino Macedo, 134, 1º andar, Maurício de Nassau.
CEP 55012-380 Caruaru-Pernambuco.
INTRODUÇÃO
Norbert Elias & John L. Scotson abordaram de maneira
bem ilustrativa a compreensão de processos que necessariamente
começam dentro dos indivíduos – a constituição de alteridades,
o “nós” e o “eles” –, através de uma reflexão sobre nossa própria
posição e comportamento. Os autores descrevem como isso
funciona na obra Estabelecidos e outsiders (1965).
Os pesquisadores estudaram, no início dos anos 1960,
uma área na periferia de uma rica cidade industrial no centro
da Inglaterra, o subúrbio de Wiston Parva, onde vivia uma
população de 5000 habitantes. Tinha suas próprias indústrias,
escolas, igrejas, lojas e clubes. A Zona 1 era de classe média.
A Zona 2 – na qual se estabelecia a maior parte das indústrias
– abrigava a classe operária. A Zona 3 também era habitada
por integrantes do proletariado. Essa zona industrial foi construída em 1880. A primeira foi a Zona 2. Durante as décadas
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 199-220
200
OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
de 1930 e 1940, a Zona 1 foi edificada como um distrito residencial, com
casas ajardinadas, esparsas, distantes umas das outras, desenhadas para a
classe média. A Zona 3 foi construída depois, numa terra desqualificada
anteriormente, e afirmava-se ser alagada e cheia de ratos. Os apartamentos
ficaram vazios por um longo período, apesar do baixo valor dos aluguéis.
Logo a relação “nós” e “eles” foi desenvolvida entre os estabelecidos nas
zonas 1 e 2, e os novatos na Zona 3.
Elias e Scotson procuraram respostas para a razão e função da segregação. Inicialmente estudaram os fatores demográficos, atentos às variáveis
classe social, renda, trabalho e origem da população. Entretanto, encontraram
diferenças mínimas entre as zonas 2 e 3, e grandes diferenças entre a 1 e
a 2. A análise da pesquisa quantitativa não foi satisfatória, principalmente
para as zonas 2 e 3 que tinham uma estrutura social similar, vista através de
fatores de classe e socioeconômicos.
De acordo com Elias e Scotson, a resposta seria encontrada em outro
lugar. A sua nova hipótese focou na necessidade de estudar os contatos e
confrontações dos grupos, assim como as barreiras e conflitos que surgiram
quando dois grupos anteriormente independentes se tornaram dependentes
um do outro, ou seja, essas configurações surgiram quando culturas e valores
se encontraram.
O estudo qualitativo – baseado em entrevistas com os agentes sociais
das organizações voluntárias, do clube da juventude e da lista dos eleitores
– não produziu uma base aceitável para uma explicação do antagonismo
entre as zonas. Os autores concluíram ser possível analisar e comparar áreas
como essas três, usando variáveis históricas, econômicas, culturais, políticas,
religiosas e administrativas. No entanto, tal análise não teria uma explicação
completa sobre inclusão e exclusão, nem do processo de marginalização
existente. Segundo os pesquisadores, não havia diferenças significantes
entre as zonas 2 e 3. A explicação tinha que ser buscada nas relações entre
os habitantes das áreas; como as pessoas estabeleceram relações através da
vida, quando jogavam juntas, iam para a escola, trabalhavam, negociavam,
iam para a igreja ou se divertiam juntas. Os pesquisadores argumentaram
que as formas mais elementares da vida social, desenvolvem dependência
mútua e constituem a base da existência e formação da sociedade – um
contrato social.
O tema central descrito por Elias e Scotson volta-se para diversos
valores atribuídos às famílias e aos seus membros nas redes. No topo da
hierarquia se encontram aqueles com um longo histórico na comunidade. O
conflito era principalmente entre os velhos e os novos grupos. Por velho não
queremos nos referir à idade biológica, mas, a uma posição social distinta e
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superior. Os autores observam que o poder da estrutura só pode sobreviver
se for transferido de geração para geração e se a sua fonte for monopolizada, ficando fora do alcance de outros grupos, ou seja, a monopolização da
transferência de habilidades específicas, conectadas com tabus e normas de
conduta em comum que separam os grupos.
Na sua análise, Elias e Scotson estabeleceram três padrões que fortaleceram a segregação e a manutenção da estrutura social. O primeiro foi
baseado na centralidade da família matriarcal, no qual a elite foi reproduzida.
O segundo, nos clubes locais e redes familiares. O terceiro foi centrado em
torno do “boato” e da sua função em estabelecer e apoiar a ordem social –
clichês baseados em julgamentos, condenações e discriminação do “eles”
– enquanto promoção do “nós”, sempre alimentando a ordem existente.
Processos de exclusão e inclusão são relacionais. Exclusão, inclusão e
discursos de marginalização têm relação com o espaço e limites de normalidade. Esses limites são social, espacial ou simbólico, ou uma mistura de
todos eles. A fixação desses limites se constitui num processo de discussões
e rearranjos contínuos.
Os autores observam, na transição para a sociedade pós-moderna,
global, tendência de um desenho “embaçado”, configurações que ainda não
estão nítidas. Os valores da sociedade pós-moderna se tornaram também mais
relativos e mais difíceis de serem capturados. As definições de normalidade
estão perdendo o caráter específico. As discussões sobre marginalização
podem, nesta perspectiva, ser vistas como uma crise de integração e estrutura. A inclusão e exclusão sociais devem ser entendidas como processos
dinâmicos, evoluindo no tempo. Esses processos são relacionais; só podem
acontecer como consequência do encontro de indivíduos e grupos. Os outsiders não são excluídos no sentido absoluto; estão sempre relacionados
a outros indivíduos ou sociedades. Para esses autores, os estabelecidos e
os outsiders vivem numa simbiose, baseada numa configuração de poder
e dependência regida pela interação social e pelas estruturas da sociedade.
A FEIRA DA SULANCA NO AGRESTE DE PERNAMBUCO
A Feira da Sulanca1 teve origem em Santa Cruz do Capibaribe,
situada na Mesorregião do Agreste pernambucano – área intermediária
entre o Litoral/Mata de clima úmido e o Sertão semiárido e, mais especificamente na Microrregião do Alto Capibaribe –, onde fica a nascente do rio
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Capibaribe. Sendo uma região intermediária, a Mesorregião do Agreste é
naturalmente bem diversificada, permeada de brejos de altitude, verdadeiros oásis, os quais permitem a agricultura permanente, em meio a áreas
de caatinga onde tradicionalmente se desenvolveu a pecuária extensiva
para abastecer a região metropolitana, como observa Manuel Correia de
Andrade (2005). Geologicamente, a Mesorregião do Agreste está situada
no Planalto da Borborema, com altitude média entre 400 e 800 metros,
também conhecido como Serra das Ruças2, região montanhosa no interior
do Nordeste brasileiro e se estende pelos estados da Paraíba, Pernambuco,
Rio Grande do Norte e Alagoas (IBGE, 2011). O município de Santa Cruz
do Capibaribe dista 180 km da capital do estado, Recife, e faz parte de um
território tradicionalmente denominado Cariris Velhos, com baixa densidade
pluviométrica e solos rasos.
O fenômeno produtivo/comercial denominado Feira da Sulanca
emergiu durante as décadas de 1950 e 1960, a partir do aproveitamento dos
retalhos provenientes da indústria têxtil do Recife num primeiro movimento;
e, num segundo movimento, de retalhos dos rejeitos da indústria têxtil de São
Paulo, adicionados aos primeiros. Esses retalhos serviam de matéria-prima
para as costureiras dos sítios que, emendando-os, produziam peças de roupas e cobertas para serem vendidas nas feiras livres; assim, essas mulheres
obtinham uma renda complementar da renda do sítio. A mão de obra era
familiar; a unidade produtiva o domicílio; e a produção, doméstica e artesanal.
Essa unidade produtiva passou para a zona urbana, seguindo as exigências
tecnológicas da linha de produção, uma vez que os retalhos procedentes do
Sudeste demandavam tecnologia mais complexa dos meios de produção e,
assim, se tornou semi-industrial. Esse fenômeno se expandiu – formando
uma rede nacional de parentesco e amizade, em meio à qual se processam
arranjos produtivos e comerciais diferenciados – e hoje é denominado Polo
de Confecções do Agreste de Pernambuco.
De acordo com a pesquisa de Rabossi (2008), existem várias versões sobre as origens da Sulanca. Segundo o pesquisador, a produção de
Sulanca começou em Santa Cruz do Capibaribe na década de 1950 com a
confecção de colchas de retalhos. Esses retalhos e telas, no início, vinham
do Recife, trazidos por comerciantes que vendiam seus produtos em Santa
Cruz. Depois, com a expansão do sistema nacional de estradas e rodagens,
os retalhos começaram a chegar de São Paulo, provenientes dos descartes da
indústria têxtil e de confecções paulistanas. O autor observa que o primeiro
nordestino que trabalhou com retalhos foi Seu Otávio, que se estabeleceu
em São Paulo, em 1960, com um restaurante. Então, lá ele conheceu alguns
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espanhóis que o iniciaram nesse comércio. Conta-se que, na realidade, foram
alguns imigrantes espanhóis, durante a década de 1940, que começaram a
aproveitar os resíduos da indústria têxtil paulistana na confecção de estopa
para limpeza de barcos e para estofados da indústria de móveis; e que Seu
Otávio passou a coletar e revender os rejeitos para os espanhóis. Depois,
incluiu seus familiares no negócio, além de alguns empregados. Seu cunhado
entrou como sócio e mais tarde se desmembrou, constituindo seu próprio
negócio. Posteriormente, passaram a enviar os retalhos para Santa Cruz do
Capibaribe para serem utilizados na confecção. De acordo com esta versão,
os retalhos eram levados por caminhoneiros que retornavam após despachar
sua carga. Depois, os comerciantes de retalhos – denominados sacoleiros –
passaram a viajar em ônibus fretados. Observamos aqui que o resíduo virou
mercadoria, deixou de ser descartado e doado e passou a ser comerciado.
A respeito da mercadoria, Marx (1950) afirma que a riqueza das sociedades capitalistas representa uma “imensa acumulação de mercadorias”.
A mercadoria significa um objeto exterior, algo que por suas propriedades
satisfaz algumas necessidades humanas de alguma forma, quer sejam de
origem fisiológica ou do desejo; sua natureza não muda a essência, seja o
apetite do corpo ou do espírito. A utilidade de um objeto faz dele um valor
de uso. O que faz o valor natural de um objeto é a propriedade que ele tem
de satisfazer as necessidades ou as conveniências da vida humana. Mas, esta
utilidade determinada pelas propriedades do corpo da mercadoria, tal como
o ferro, o diamante, é consequentemente um valor de uso e é o trabalho
concreto do homem que determina as qualidades da sua utilidade. Quando
é uma questão de valor de uso, subentendemos sempre uma quantidade
determinada, como uma tonelada de ferro ou uma dúzia de relógios. Os
valores de uso só se realizam no uso da consumação. Dentro da sociedade
capitalista, eles são ao mesmo tempo o sustento material do valor de troca.
O valor de troca aparece primeiramente como uma relação quantitativa,
como a proporção da qual os valores de uso de espécies diferentes se trocam
um pelo outro. O valor consiste na relação de troca que se encontra nas
coisas, entre uma medida de uma proporção e tal medida de outras, relação
que muda constantemente com o tempo ou lugar. O valor de troca parece
algo arbitrário e puramente relativo, intrínseco, que imana da mercadoria;
parece mais um contra senso. Uma vez que tiramos o valor de uso das
mercadorias, só lhes resta uma qualidade, aquela do produto do trabalho.
O tempo socialmente necessário à produção das mercadorias é o exigido
em todo trabalho, executado com o grau médio de habilidade e de intensidade e dentro das condições que, em relação ao meio social são normais.
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
É, portanto, a quantidade de trabalho ou o tempo de trabalho socialmente
necessário, numa dada sociedade, à produção de um artigo, que determina
sua quantidade de valor. A quantidade de valor de uma mercadoria varia,
então, em razão direta da quantidade e em razão inversa da força produtiva
do trabalho que se realiza nele. Ou seja, quanto maior é a força produtiva do
trabalho, menor é o tempo necessário à produção de um artigo e menor é a
massa de trabalho cristalizada nele, menor é o seu valor. Inversamente, quanto
menos força produtiva de trabalho, mais tempo socialmente é necessário à
produção de um artigo, maior é o seu valor. Portanto, a substância do valor
é o trabalho e a medida da sua quantidade de valor é a duração do trabalho,
estabelecida socialmente. Para produzir mercadorias, deve-se produzir valor
de uso, mas, valor de uso para os outros, valores de uso sociais. Nenhum
objeto pode ter um valor se ele não for útil. Se ele é inútil, o trabalho nele
contido é investido inutilmente e consequentemente não cria valor. Logo, os
“retalheiros” (GOMES, 2006) e sulanqueiros encontraram um valor de uso
social para o que era considerado descarte, resíduo, lixo, consequentemente,
sem valor. Esse produto se transformou em mercadoria, adquirindo, assim,
valor de uso e valor de troca, para satisfazer as necessidades de uma “massa
marginal” (NUN, 2000) resultado da “superexcludência” peculiar ao nosso
“capitalismo dependente” (CARDOSO e FALETTO, 1970), latino-americano,
na fase considerada como “fordismo periférico” (LIPIETZ, 1989) dentro
da dinâmica mais ampla de acumulação do capitalismo central e periférico.
O CIRCUITO DAS FEIRAS
A feira livre em Pernambuco se dá num circuito itinerante, em cada
micro região. Por exemplo: a feira tradicional de Santa Cruz acontece às
segundas-feiras; a de Jataúba na sexta-feira; já a de Caruaru, a pioneira e
que é a maior, tem lugar no sábado. Dessa forma, o feirante tem diversas
oportunidades de oferecer seu produto na mesma semana com pequeno
deslocamento, ou seja, percorrendo distância curta, dentro da mesma região.
Caruaru, como é uma cidade maior, além da feira central aos sábados, tem
também as dos bairros: no domingo no bairro de São Francisco, na segunda-feira no bairro do Salgado e assim por diante. Alguns feirantes ficam
somente nesse circuito municipal. Estas são as características de base da
feira nordestina: improvisada, temporária e itinerante.
Os sulanqueiros extrapolaram esse circuito micro regional e ampliaram sua área de atuação. Por exemplo: numa semana, o sulanqueiro se
deslocava para a região de Feira de Santana, na Bahia, e fazia o circuito
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daquela região. Na outra semana, ele se deslocava até a região de Barreiras,
também na Bahia, e fazia as feiras da semana naquela área. Em seguida,
eles voltavam para Santa Cruz, pagavam as costureiras, se reabasteciam e
saíam em busca de outro circuito de feiras. Dessa forma, o produto sulanca
ficou conhecido pelo Nordeste afora. Encontramos também esta categoria de
feirantes itinerantes denominada de sulanqueiros, por viajarem vendendo o
produto sulanca, nos depoimentos das pesquisas de Sandra Alves Silva (2009);
Alana Moraes (2012) e Glauce Campelo (1983). Ressalte-se que atualmente
o termo sulanqueiro se refere a pessoas que tenham uma atividade qualquer
ligada à fabricação e ao comércio de sulanca, ou seja, feirantes que atuam
no universo múltiplo e diversificado da sulanca. Observe-se, igualmente,
que a categoria “retalheiro” não é usada e nem reconhecida no meio da
sulanca. Trata-se de uma categoria criada por pesquisadores, estudiosos de
migrações nordestinas em São Paulo, os quais detectaram-na no contexto de
industrialização e urbanização daquela cidade, nas décadas de 1950 e 1960.
A “GRANDE TRANSFORMAÇÃO” DA FEIRA DA SULANCA
Como fato que comprova a evolução econômica de Santa Cruz do
Capibaribe a partir da instituição da produção de sulanca, Campello (1983)
aponta a implantação de agências bancárias importantes na época dessa expansão. Em 1970, foi instalada a agência do Banco do Brasil, a qual adotou
três linhas de crédito – custeio, investimento e capital de giro –, propiciando,
assim, o financiamento de máquinas e de outros equipamentos. A atividade
têxtil detinha, em julho de 1983, 85% das aplicações da agência local do
Banco do Brasil da parte destinada à indústria e ao comércio, representando
40% das aplicações totais deste banco. Em 1977, foi a vez de o Banco Itaú
instalar sua agência com o estilo próprio de banco comercial – operando sem
limites rígidos de crédito, ajustando às necessidades daqueles que buscavam
no Sudeste as suas mercadorias, efetuando pagamentos à distância mediante
cheques visados e financiando passagens aéreas pelo prazo de trinta dias. A
Caixa Econômica Federal se instalou em 1981, e suas exigências de crédito
apoiavam-se no valor do faturamento do cliente para linha de capital de
giro, assim como o Banco do Brasil. Em fevereiro de 1983, foi inaugurada
a agência do Banco do Estado de Pernambuco (BANDEPE) que adotou um
programa especial de crédito para o pequeno produtor, com limites de 600
mil cruzeiros e com amortização e custo financeiros ajustados ao funcionamento das pequenas empresas. Como norma geral, o aval era a garantia
determinada, comprometendo os empresários mais sólidos e prósperos com a
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
regularidade das operações. Dessa maneira, os líderes do ramo selecionavam
a concorrência e controlavam a expansão do crédito.
Segundo Campello (1983), as “fábricas” eram as maiores empresas
de confecções e pertenciam aos descendentes dos pioneiros da atividade, os
quais eram vendedores ambulantes de confecções populares. Essas empresas
produziam um padrão de melhor qualidade, dirigido a um mercado fora do
município e atendendo a encomendas feitas previamente. A atração exercida
pela cidade, como ponto de convergência para o comércio de confecções,
justifica também a instalação de pequenas novas unidades do ramo, sem
vínculos com o início da atividade da sulanca. Essas microempresas são
responsáveis pela produção de artigos populares de vestuário, de produção
domiciliar e familiar, transformando a cidade numa grande “oficina” de
confecções populares. É justamente nessas pequenas unidades que se encontra a maior parte da força de trabalho da região; elas geram emprego e
distribuição de renda com reflexos nos demais setores urbanos.
Porém, a Feira da Sulanca como instituição independente da tradicional feira livre da segunda-feira no pátio da igreja de Santa Cruz do Capibaribe só começou em 1979, às quintas-feiras. Os depoimentos da pesquisa
de Campello (1983) confirmam que esta feira começou de uma iniciativa
individual. Conta-se que uma costureira, ao saber da presença de uns viajantes baianos na cidade, foi exibir suas confecções na calçada da rua onde
morava, pois estava em dificuldades financeiras e, assim, outras costureiras
seguiram o exemplo e começaram a expor suas mercadorias também nesse
dia. De início, os comerciantes estabelecidos protestaram, afirmando ser
uma concorrência desleal para seus produtos, mas as mulheres insistiram
e terminaram se instalando em bancos de feiras neste dia e com o apoio da
Prefeitura municipal. Naquele mesmo ano, aconteceu a pavimentação da
estrada que liga Santa Cruz à BR 104, facilitando mais ainda a sua expansão.
Segundo a análise de Polanyi (2000), essa metamorfose da economia
anterior para o sistema auto regulável de mercados foi mais completa do
que qualquer alteração que possa ser expressa em termos de crescimento
contínuo e desenvolvimento. De acordo com o autor, “a produção das máquinas numa sociedade comercial envolve uma transformação que é a da
substância natural e humana da sociedade em mercadorias”(s/nº). A desarticulação causada por essa transformação desorganiza as relações humanas
e aniquila o seu habitat. As rendas passam a derivar da venda de alguma
coisa e devem ser vistas como tais.
O trabalho de Maria Gilca Xavier et al. (2009, p. 2) mostra a transformação da paisagem urbana em Santa Cruz do Capibaribe, cuja feira, que
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começou na Rua Siqueira Campos, já ocupava 28 ruas do centro da cidade.
A mudança ocorreu a partir do novo empreendimento comercial denominado Santa Cruz moda center. De acordo com a autora, esta mudança foi
feita através de planejamento urbano, “frente às necessidades da sociedade
e do capital”. Na sua tese de doutorado – O processo de produção do espaço urbano em economia retardatária: a aglomeração produtiva de Santa
Cruz do Capibaribe (1960 – 2000) (2006) –, a pesquisadora salienta que a
expansão da atividade econômica e urbana, ocorrida nas décadas de 1980 e
1990, deveu-se à “reestruturação no processo de desenvolvimento do país,
à diminuição do parque industrial no centro-sul, à redução de oferta de
emprego formal e ao declínio das migrações internas” (s/nº).
No entanto, no nosso entender, o que ocorreu foi a privatização de
uma feira que nasceu livre. A partir da difusão das ideias ultraliberais3 desde
os anos 1980, foram instaladas na região, instituições como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE)4; na década de
1990, encarregadas de disseminarem essa “tendência” através da cultura do
empreendedorismo. Assim, o sulanqueiro virou empreendedor; por sua vez,
o produto sulanca, virou confecção e, dentro desta “visão” modernizante,
influenciada pelos “ventos centrais” anglo-americanos, segundo a qual tudo
o que não é Shopping center deve ser considerado precário e degradante,
iniciou-se uma campanha de modernização da feira. Consideramos, também, esse movimento como uma forma estratégica usada pela “pequena
burguesia” sulanqueira emergente, para manter o controle e o oligopólio
da Sulanca, dentro da realidade de expansão da feira e, por consequência,
da “infiltração” de elementos exógenos às origens e raízes da Sulanca, ou
dos outsiders (ELIAS e SCOTSON, 1965).
Norman Long (1990) argumenta que a Teoria da modernização visualiza
o desenvolvimento em termos de um movimento progressivo em direção a
formas mais complexas e integradas – tecnológica e institucionalmente –
da sociedade moderna. Esse processo é mantido em movimento através do
crescente envolvimento nos mercados de commodity e através de uma série
de intervenções envolvendo a transferência de tecnologia, conhecimento,
recursos e formas organizacionais do mundo “mais desenvolvido” ou setor
de um país para partes “menos desenvolvidas”. Dessa forma, a sociedade
tradicional é dragada pelo mundo moderno, mesmo passando por alguns
obstáculos, e sua economia e padrões sociais adquirem apetrechos da modernidade.
Verificamos que o produto sulanca, de início, se nutriu dos resíduos
nos “bastidores” da indústria têxtil do Recife e de São Paulo, nas décadas de
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
1950 a 1970, no cenário da “revolução industrial” brasileira do pós-guerra.
As relações comerciais na origem eram feitas na base da confiança e do
escambo. O mercado para o produto sulanca foi expandido a partir dos sulanqueiros que viajavam para “fazer as feiras” em outros estados do Norte e
Nordeste. Esse movimento dos sulanqueiros fez com que o produto sulanca
se tornasse conhecido pelos rincões mais remotos do Norte e Nordeste
brasileiros, atraindo clientes e pessoas de fora, interessadas em participar
da economia da sulanca. Houve, assim, a expansão das atividades ligadas
à Feira da Sulanca, e emergência e afirmação de uma “pequena burguesia”
sulanqueira de origem rural, formada pelos pioneiros, os estabelecidos
(ELIAS e SCOTSON, 1965), os quais mantiveram o controle econômico e
o poder político da região e, consequentemente, promoveram a “modernização” e privatização da feira.
METODOLOGIA
Como metodologia, recorremos a estratégias de pesquisa baseadas
centralmente na história oral de vida dos agentes sociais que compõem
esse complexo comercial/produtivo. A partir do relato oral (depoimentos e
entrevistas individuais livres), foi possível chegar aos valores inerentes aos
sistemas sociais em que vivem esses atores sociais. Aspectos importantes
da comunidade, comportamentos, valores e costumes, podem ser detectados
através da história de cada protagonista.
De acordo com Bom Meihy (2005), a história oral é um recurso moderno usado na elaboração de documentos referentes à experiência social
de pessoas e de grupos. A história oral de vida corresponde à narrativa do
conjunto da experiência de vida de uma pessoa. A técnica da história de
vida tem sido usada para se entender a sociedade nos seus aspectos íntimos
e pessoais. A história oral como metodologia de trabalho científico é adotada
na academia brasileira como herança da tradição anglo saxã que, dentre outros, inclui o sociólogo e historiador social britânico Paul Thompson (2000).
Seguindo-se esse caminho metodológico, o sujeito social, o colaborador,
tem mais liberdade para narrar sua experiência pessoal. As perguntas servem
simplesmente como indicativo, colocadas de forma ampla, dando maior
liberdade ao sujeito para dissertar. Para conduzir os relatos das histórias de
vida dos protagonistas da Sulanca, utilizamos uma espécie de “linha do tempo”, possibilitando aos entrevistados “mergulhar” nas suas histórias de vida.
Recorremos também a procedimentos metodológicos da antropologia.
De acordo com Roberto da Mata (1974, p. 27), na pesquisa em antropologia
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social, “se estabelece uma ponte entre dois universos de significação, e tal
ponte é realizada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumentos
de mediação.” O autor continua a desenvolver sua reflexão, afirmando que essa
mediação é feita “de modo artesanal e paciente, dependendo essencialmente
de humores, temperamentos, fobias e todos os ingredientes das pessoas e do
contato humano.” Segundo o autor, a etnografia é “transformar o exótico no
familiar” e/ou “transformar o familiar em exótico” – os dois universos de
significação. A etnografia segue o movimento original da Antropologia “na
busca deliberada dos enigmas sociais situados em universos de significação”.
Clifford Geertz (1999, p. 15) reitera esse argumento quando observa
que, em antropologia social, seus praticantes fazem a etnografia. Assim,
devemos compreender o que é etnografia para podermos começar a entender
o que representa a análise antropológica como forma de conhecimento. Para
este autor, “praticar a etnografia é estabelecer relações, selecionar informantes,
transcrever textos, levantar genealogias, mapear campos, manter um diário
e assim por diante”. Desse modo, diz ele, o método nos ajuda a decifrar
códigos sociais na elaboração de uma descrição densa. Segundo Geertz, a
descrição etnográfica tem três características: ela é interpretativa, o objeto
que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação consiste
em “salvar” o que foi dito no discurso e documentá-lo, classificá-lo. “As
sociedades, como as vidas, contêm suas próprias interpretações. É preciso
apenas descobrir o acesso a elas.” (s/nº)
Por sua vez, Leach (2006, p. 15) argumenta que o cerne da antropologia social é o trabalho de campo – “a compreensão do modo de vida de um
determinado povo”. O antropólogo social deve pensar nas ideias organizacionais presentes em qualquer sociedade como constituintes de um padrão
matemático. Tratando também dessa temática, Boas (2006) afirma existirem
leis que governam o desenvolvimento da sociedade e que essas leis são
aplicáveis às sociedades de todos os tempos em todos os lugares. Guiados
por esse conhecimento, podemos ter a esperança de orientar nossas ações
de modo a beneficiar a humanidade. Tentamos, aqui, através da observação
direta e participante, dos recursos etnológicos, interpretar os códigos das
relações sociais entre os estabelecidos e os outsiders da Feira da Sulanca.
DAS NARRATIVAS
Transcrevemos, a seguir, trechos de narrativas dos seus protagonistas,
na tentativa de compreendermos melhor o processo de constituição da relação
“nós”–“eles” no discurso dos pioneiros – os estabelecidos – da Sulanca.
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Narrativa de Carlos Ribeiro – registrada em 10 de julho de 2013,
pela pesquisadora Annahid Burnett:
Eu não quero meus filhos na Sulanca
Meu pai nasceu no Sítio Espírito Santo, pertencente ao Brejo da Madre
Deus. Minha mãe nasceu no distrito do Pará, município de Santa Cruz.
Meus avós vieram muito cedo pra cá. Meu avô materno é aposentado
como vereador. Meu avô paterno foi vice-prefeito por dois mandatos.
Meus pais já eram nascidos e vieram pra cá pra estudar. Minha vó paterna
foi uma das pioneiras da Sulanca. Meu avô levava queijo, carvão, algodão
e farinha pra Recife e trazia mantimentos e pedaços de tecidos. Minha
vó costurava os retalhos que ele trazia do Recife e fazia roupas e vendia
por aqui mesmo, no meio da rua, no chão. A mãe da minha esposa era
professora. O pai começou a viajar pra São Paulo e trazer tecidos, na
maioria retalhos, pontas de peças, lote com defeito, restos mesmo; até
do tamanho 15 por 10 tinha; se aproveitava tudo e chegava aqui e fazia
coberta. Minha esposa nasceu dentro dos retalhos. A mãe colocou quatro
filhos no ramo de tecidos. Hoje cada um tem sua loja.
Temos quatro filhos. Eu não quero meus filhos na Sulanca porque é
muito pervertida. O que a gente tinha que sugar deste ramo já sugou; pra
entrar hoje tá muito difícil. Muita gente de fora, da Paraíba. Um filho faz
Design gráfico e já atua, desenvolve logomarca. O outro pretende fazer
Educação Física. A filha mais velha vai pra o Recife o ano que vem. A
mais nova tem 10 anos e quer ser missionária da Igreja. A gente tem
apartamento em Boa Viagem [bairro de Recife]. No condomínio tem uns
60 apartamentos pertencentes às pessoas de Santa Cruz.
Eu fui funcionário do Banco do Brasil durante vinte anos. Entrei com 14
anos, como estagiário, e saí com 34, como gerente de contas, há sete anos
atrás. Esta loja tem 22 anos. Quando casamos, colocamos uma lojinha
no Beco do Padre, em 91. Eu no Banco e minha esposa na loja. Quando
abriu o Moda Center, nós fizemos uns investimentos lá e aí minha esposa
já não estava mais dando conta. Aí eu pedi pra sair do Banco. Aí fiquei
aqui ajudando minha esposa. Minha parte é a financeira, contábil e fiscal.
Ela faz a parte comercial. Ela é muito antenada, vai duas, três vezes por
ano em São Paulo, ver as tendências. Eu fiz a coisa certa na hora certa.
Eu sou formado em Administração de empresas. Estou me preparando
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pra importar da China. Meus filhos falam inglês, já passaram uns dias
no Canadá. A gente compra do importador de São Paulo e Minas. Se a
gente comprar direto, tem mais vantagem. Fiz um curso de importação
passo a passo, organizado pela FIEP. O canal junto ao SEBRAE é o
CDL, principalmente no atendimento. O nosso lema é atender bem. O
Moda center foi excelente pra nós. Peguei minha indenização do Banco
e comprei sete lojas, aluguei e hoje ganho mais de duas vezes o que
ganhava no Banco, com os aluguéis. Aquilo foi uma bênção, apesar das
turbulências no início.
Juntamos os três irmãos e compramos um sítio de 32 hectares, graças a
Deus; fizemos uma casa para toda a família. Com três donos, tem sempre
um pra cuidar. Quando a feira era aqui no centro eu vendia um terço do
que vendia hoje. Hoje eu ganhei visibilidade, espaço, estacionamento, as
ruas estão limpas. Não tinha banheiro, as pessoas faziam na rua. No sítio
tem um pouco de tudo, poço artesiano com água doce com cata-vento.
Este relato é bastante esclarecedor sobre os detalhes da evolução da
Sulanca. Vemos claramente que o narrador não só faz parte da “pequena
burguesia” sulanqueira da cidade como também pertence ao grupo que
articulou a privatização da feira. Convém salientar que o irmão do entrevistado é hoje o síndico do Moda center. Observamos que pessoas que à época
não possuíam capital para investir no novo centro comercial atualmente se
encontram sujeitas aos aluguéis impostos pelos proprietários dos espaços
para comércio naquele lugar. Portanto, a feira que era um espaço livre e público, na atualidade está sob o controle de uma elite pertencente à “pequena
burguesia” sulanqueira no poder daquela instituição.
Nota-se no depoimento que o entrevistado incorporou o “discurso
empreendedorista” implementado pelo SEBRAE na região. Observamos as
metamorfoses nas redes comerciais da Sulanca, as quais estão se tornando
globalizadas, com o nosso narrador representando uma das pontas de lança
desse novo momento. Conforme explicitado pelo próprio, nos seus planos
está a idéia de desenvolver uma relação comercial direta com o fornecedor
majoritário, a China, e eliminar o intermediário do Sudeste brasileiro.
Sobre a “cultura do empreendedorismo”, convém abrir um apêndice para essa discussão tão em voga neste momento do capitalismo de
acumulação flexível, nos termos de Harvey (1992). Essa “cultura” surgiu a
partir do desenvolvimento do ultraliberalismo nos países centrais nos anos
1980, notadamente influenciados pelas políticas dos governos de Margareth
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Thatcher e Ronald Reagan, na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente. E por que ultraliberalismo? O termo foi concebido por analistas
políticos europeus, como divisor de águas de uma nova era; segundo eles,
anteriormente ao thatcherismo, os neoliberais afirmavam que o “Estado era
um problema”; porém, ao assumir o poder Margareth Thatcher retificou
essa máxima, alegando que o “Estado era o problema”, justificando, assim,
o ultraliberalismo, o desmantelamento do Estado. Tal postura foi logo
seguida pelo seu parceiro, Ronald Reagan que implementou a política do
reaganomics nos Estados Unidos.
Pesquisas como a de Rosângela Pereira (2011), sobre o trabalho a domicílio, encontram dificuldade em identificar esse “espírito empreendedorista”
nas trabalhadoras a domicílio no setor de confecção. E por que fica difícil
detectar esse “espírito” na realidade brasileira? Temos como hipótese que os
estudos sobre empreendedorismo que fazem referência direta à obra A ética
protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber (2012), negligenciam o
cerne da questão de Weber: a religião. O trabalho é o eixo central da religião
protestante, mais especificamente puritana, da qual a cultura norte-americana
é herdeira direta, pois os pioneiros, colonos assentados na América, foram
os puritanos deportados da Inglaterra para onde não poderiam mais voltar.
Weber nos chama a atenção para o fato de que o capitalismo encontrou
justamente na cultura austera de trabalho, puritana, um campo fértil para se
proliferar; e mostra também que, ao contrário, o mesmo não aconteceu no
meio católico. E o que aconteceu nos anos 1980 e 1990 com a difusão do
ultraliberalismo? O trabalho, tão central na cultura puritana anglo-saxônica,
sofreu um golpe: começou a produzir desempregados. E como justificar essa
taxa de desemprego galopante, considerando que o termo desempregado
é uma humilhação numa cultura de perdedores e ganhadores? A cultura
WHASP (WHite Anglo-Saxon Protestant) não permite a proliferação do
não trabalho. Portanto, a expressão empreendedorismo surgiu dentro desse
contexto, com o intuito de substituir o termo “desempregado” – inadimissível
para os WHASPs – pelo termo “empreendedor”. Certamente, essa cultura
protestante, importada, não poderia conferir os mesmos resultados quando
implantada numa sociedade de colonização católica; ou seja, esse “espírito
empreendedor” não encontraria eco numa cultura com valores tão opostos.
Podemos, assim, afirmar que os sulanqueiros não são empreendedores?
Supomos que não, pois foram esses agentes sociais que empreenderam esse
fenômeno produtivo-comercial; essa é uma história essencialmente centralizada na agência. A Sulanca é um produto dos agentes sociais agrestinos,
sem a participação das instituições formais de políticas públicas e aquelas
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ANNAHID BURNETT
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representadas pelos grandes movimentos do capital. Contudo, não tem como
referência o empreendedorismo formal, cartesiano, baseado no racionalismo
weberiano. Consideramos ser esse um “empreendedorismo agrestino”, se
podemos assim dizer, do Nordeste agropastoril e com características próprias
dessa cultura, com outros tipos de racionalidade.
NARRATIVA DE ARNALDO VITORINO
Outra narrativa muito relevante para o entendimento do processo
“nós” e “eles” se expressa na entrevista concedida à autora pelo professor
e pesquisador Arnaldo Vitorino, em 29 de março de 2013.
E a cidade hoje tá faltando água.
A feira daqui, de secos e molhados, era bem movimentada, vinha gente
até da Paraíba. Aqui se trabalhava muito com o extrativismo: era o caroá,
o carvão... Depois, começou-se a trabalhar com alpercatas, com calçados.
O foco principal de Toritama era calçado. Algumas pessoas contam que
um ônibus que vinha da Bahia com destino a Campina Grande errou a
estrada e veio parar aqui. Quando passou, viu roupa na feira, algumas
pessoas vendendo roupa na feira. Aí começaram a entrar, compraram
roupa na feira e foram embora. Com poucos dias, chegou outro ônibus
novamente. Aí o pessoal – quem tinha aquelas roupinhas – começou a
botar na entrada da cidade. Aí pegava o pessoal entrando, pra não perder
muito tempo. Tem essa história, desse ônibus que tava indo pra Campina
Grande e errara o caminho. Chegaram aqui viram roupa barata e levaram.
Foi aí que o pessoal começou a botar roupa na feira em dia que não era
de feira, na quarta, na quinta... E aí começaram a vender essa mercadoria.
Mas, aí a estrada ainda era de barro e às vezes não dava tempo de chegar
aqui. Aí os mais espertos começaram a migrar pra Caruaru e vender
em Caruaru. Aí, depois, Caruaru começou a aumentar a feira. Como a
estrada era de barro, Toritama começou a botar banco na beira da pista
pra aproveitar uma beirinha da história, e cresceu também. Primeiro
fizeram o asfalto pra Campina Grande e depois foi que fizeram o asfalto
de Pão de Açúcar pra cá.
Mas, Santa Cruz é a fonte, a origem de tudo. O jeans de Toritama, eu
acho que 80% dele é fabricado aqui. Vai pra Toritama somente pra ser
pré-lavado, amaciado nas lavanderias. A fabricação e o ponto de jeans é
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
aqui. A Santista tem uma cota de jeans pra o mercado nacional. A cota
de jeans pra Pernambuco, os compradores de jeans são daqui de Santa
Cruz. Aí Toritama vem buscar o jeans aqui. O pessoal começou a ir pra
fora, região do Amazonas; depois começaram a se fixar por lá, montaram
loja pra lá. Eles mesmos compram a mercadoria aqui e já tem caminhão
pra levar pra lá. Se chegar no Parque da feira em dia de feira, tem cinco,
seis carretas, carregando para o Pará.
A intranquilidade daqui começou quando os próprios prefeitos começaram
a divulgar na televisão, na rádio, nos anos oitenta, que aqui o pessoal
ganhava dinheiro e ninguém era desempregado. Aí começou a chegar
muita gente de fora. Aí esse pessoal de fora vinha de toda cor e qualidade;
vinha de tudo. Tinha aquele que vinha pra trabalhar e tinha aquele que
vinha pra roubar mesmo. Ainda hoje tem bastante. Mas aqui sempre
teve essa propaganda que não tinha desemprego. Santa Cruz não tava
nem aí pra seca. Era uma seca danada pelo Nordeste todo. A cidade deu
um salto a partir dos anos oitenta. O açude não comportou, o consumo
triplicou. Aí construíram Machado; daí a pouco não deu mais. Muita
fábrica mudou pra Caruaru, Recife, porque tinha água. Aí se construiu
a barragem de Carpina. Carpina servia mais de contenção de cheia no
período das chuvas; hoje é pra abastecimento. Aí se construiu Jucazinho;
depois se construiu a barragem de Poço Fundo e a cidade hoje tá faltando
água. Tabocas tá quase seco. Houve um êxodo rural pra cidade. Quando
ganharam dinheiro, voltaram para o sítio de novo. Hoje tá todo mundo
lá na zona rural com máquina industrial.
Esta análise nos mostra que o modelo de desenvolvimento, de progresso
econômico, reproduzido para a região provocou não só uma transformação
nos valores e costumes do povo da região, como também um impacto nos
recursos naturais. A pressão da produção intensiva que causou o crescimento da população está impactando os recursos ambientais do semiárido e é
desproporcional à capacidade de suporte. Outro ponto a salientar é o retorno
ao sítio; porém, hoje, com tecnologia e conforto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa nos permitiu vislumbrar que as famílias do sítio agrestino
nas décadas de 1950 e 1960 viviam sob condições adversas – as estradas
eram péssimas, não existia luz elétrica e a família era a força produtiva que
se encarregava da subsistência do núcleo familiar. A ligação local entre as
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famílias do sítio era estabelecida pelas feiras livres, espaços para o encontro
das pessoas integrantes de núcleos familiares isolados, onde podiam escoar
seus excedentes, através das práticas de escambo, da “venda na base da confiança”, ou ainda trocar ou vender objetos pessoais, para completar a renda
da família no sítio – cenário de suas práticas sócioeconômicas.
A Sulanca foi produto dessas estratégias de reprodução social, de
subsistência do núcleo familiar, resultado dos costumes agrestinos dentro de
um contexto socioeconômico particular. As condições físicas e tecnológicas
fizeram com que esse núcleo familiar fosse transferido para a “zona urbana”, sede do município de Santa Cruz do Capibaribe, e com ele seguiram
os costumes do sítio. E esse modo de produção do sítio continuou sendo
reproduzido, na mesma medida em que foram se transformando, nessa nova
atividade que se apresentou como a estratégia mais viável para assegurar a
subsistência no núcleo familiar: os retalhos que representavam matéria-prima barata ou até gratuita, a experiência da costureira doméstica, a família
como mão de obra no processo de produção da Sulanca, o domicílio da
família como unidade produtiva e os homens como vendedores itinerantes
e divulgadores desse produto nas feiras livres, os sulanqueiros, à margem
do mercado formal. Ressalte-se que tais estratégias de reprodução social
foram instituídas à margem do mercado formal e refletiram os costumes,
os hábitos socioeconômicos e a divisão social do trabalho, particulares de
agentes sociais agrestinos. Concluímos que esses elementos – mas, principalmente, o mercado de feiras livres como lócus dessas práticas costumeiras
– possibilitaram a instituição desse fenômeno produtivo/comercial.
O desenvolvimento da Sulanca, por outro lado, sofreu uma “Grande
Transformação” e essa realidade continua se metamorfoseando nos tempos
atuais. A “reestruturação produtiva” que atingiu a região a partir da década
de 1990 encontrou um “terreno fértil” em um mercado improvisado e em
plena expansão, caracterizado pelas relações de trabalho informais. A região
começou, assim, a receber trabalhadores e empresários de outras regiões
atraídos por esse mercado sem regulação formal. A feira que era “livre”
começou a ser transformada e regulada mais fortemente pelo poder local.
As relações de trabalho mudaram e com elas: a matéria-prima, os modos
de produção, os fornecedores, os clientes e, o que era “feira livre”, virou
shopping center, área privatizada e dominada pela “pequena burguesia” sulanqueira, emergente, de origem rural e que detém o controle econômico e o
poder político na região. Através das narrativas dos protagonistas pioneiros
da Sulanca – os estabelecidos – percebemos claramente a configuração do
processo “nós” e “eles” em relação aos demais agentes sociais, os quais se
inseriram na economia sulanqueira, a posteriori – os outsiders.
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
NOTAS
1 O vocábulo Sulanca supostamente originou-se das palavras helanca e sul,
referindo-se aos retalhos de tecido sintético - este usado nos anos 1960 -,
os quais vinham do Sul. Portanto, sul+helanca=sulanca.
2 O IBGE adota a grafia tradicional, Ruças, que, segundo Aurélio Buarque de Holanda, quer dizer neblina, névoa. Com o passar do tempo, as
pessoas, desavisadamente, foram escrevendo Russas, supondo que este
nome tinha alguma relação com a nacionalidade russa. Como a língua
se produz e existe dentro de um processo vivo e dinâmico, essa prática
passou a ser incorporada e, obrigatoriamente, reconhecida a posteriori,
resultando na adoção das duas grafias atuais.
3 Ultraliberalismo é o termo utilizado pelos analistas políticos europeus
para designar a exacerbação do liberalismo a partir da era Thatcher/
Reagan. Ver a respeito Tzvetan Todorov (2010).
4 Ver a respeito Lima (2011).
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OS “ESTABELECIDOS E OS OUTSIDERS” DA SULANCA NO AGRESTE PERNAMBUCANO
Palavras-chave:
Sulanca, agreste, Santa
Cruz do Capibaribe, estabelecidos, outsiders.
Key words:
Sulanca, Agreste, Santa
Cruz do Capibaribe, established,
outsiders.
Resumo
Este artigo propõe um estudo sobre o processo “nós” e
“eles”, tendo como lócus a Feira da Sulanca, dentro do
enfoque pós-moderno de Norbert Elias e John L. Scotson,
Estabelecidos e outsiders (1965). O desenvolvimento do
fenômeno produtivo/comercial Sulanca fez surgir uma
elite formada pelos pioneiros nativos de Santa Cruz do
Capibaribe, os estabelecidos, a qual reproduz esse discurso
do “nós” e “eles” em relação aos forasteiros que vieram
se inserir na economia da sulanca, os outsiders. Essa elite
formou uma “pequena burguesia” sulanqueira de origem
rural, que “modernizou” e privatizou a feira, mantendo,
dessa forma, o controle econômico e político da região.
Como metodologia, utilizamos, principalmente, recursos
da antropologia social e da história oral de vida desses
protagonistas da sulanca.
Abstract
This paper proposes an analysis about the process of “we”
and “they” having as locus the “Sulanca” free market in
the Northeast of Brazil in the post-modern approach Established and Outsiders by Norbert Elias and John L. Scotson
(1965). The development of the productive/commercial
phenomenon called “Sulanca” produced an elite formed
by the native pioneers from Santa Cruz do Capibaribe, the
Established, who reproduce a speech of “we” and “they”
regarding the foreigners who came to town to participate
on the sulanca economy, the Outsiders. Such elite formed
a petite bourgeoisie from the countryside that modernized
and privatized the free market to maintain the economics
and political control in the region. We used oral history of
life and resources from social anthropology as methodology.
Recebido para publicação em abril/2014. Aceito em abril/2015.
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Empregos verdes e sustentabilidade:
tendências e desafios no Brasil
Valério Vitor Bonelli
Doutor em Ciências sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (PUC/SP). Mestre em Controladoria e contabilidade estratégica, pela
Fundação Álvares Penteado / Federação das Associações Comerciais do Estado de São Paulo (FECAP / FACESP). Professor da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
Noêmia Lazzareschi
Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp); Mestre em Ciências Sociais do Trabalho pelo Institut Supérieur du
Travail da Université Catholique de Louvain (Bélgica).
INTRODUÇÃO
Se o século XX deve ser considerado o século do forte
assalariamento da classe proletária graças aos milhões de
empregos gerados pelo taylorismo/fordismo – empregos com
alguma proteção do Estado devido à predominância das políticas de intervenção na economia, em quase todos os países
industrializados do Ocidente –, o século XXI parece ser o século
da forte redução do número de empregos e do surgimento de
novas e precárias relações de trabalho, em virtude da difusão
da nova lógica empresarial cujo fundamento é a diminuição dos
custos de produção, com a utilização de sofisticadas tecnologias
e uma verdadeira revolução nas técnicas de gerenciamento do
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EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
processo de trabalho que intensificam o trabalho dos trabalhadores ainda
necessários, e reduzem, drasticamente, novas contratações. Além disso, tal
lógica organizacional desestrutura os mercados de trabalho, com a formação
de redes empresariais nacionais e internacionais de produção, de distribuição,
de clientes e de cooperação tecnológica, graças às tecnologias de informação e de comunicação. Estas transformam os processos de produção, com
a introdução de computadores que permitem a flexibilidade dos processos
de trabalho e dos padrões de consumo e, ao mesmo tempo, impõem a flexibilidade das relações de trabalho, expressa nos contratos temporários, na
jornada parcial, no banco de horas, na terceirização, etc.
Assim, o século XXI defronta-se com o agravamento da situação
dos trabalhadores no mercado de trabalho que, reestruturado, tem destruído
muito mais do que gerado e mantido empregos para a grande parte da força
de trabalho disponível, além de ter flexibilizado e, consequentemente, precarizado as relações de trabalho; depara-se, também, com o agravamento
de questões relativas à preservação da natureza, diante da dispersão da
produção industrial pelo mundo, num processo de exploração, quase sempre
irresponsável, dos recursos naturais que poderá significar a impossibilidade
de satisfação das necessidades das futuras gerações.
São duas questões intimamente relacionadas: a geração e a manutenção de empregos dependem do crescimento econômico, e este depende
da capacidade de investimentos produtivos e da conquista de mercados
sempre maiores, isto é, do aumento do consumo, que, por sua vez, costuma
degradar o meio ambiente.
Nesse contexto, nos perguntamos: como preservar a natureza e, ao
mesmo tempo, gerar e manter empregos? Eis a questão que desafia a humanidade na contemporaneidade.
As respostas a essa questão nos remetem aos conceitos de sustentabilidade e de responsabilidade social e se referem à elaboração de métodos e
técnicas de gestão ambiental para reduzir e controlar os impactos das ações
empresariais sobre o meio ambiente, desde a fase de concepção dos projetos até a eliminação efetiva dos resíduos por elas gerados, como também
à criação dos chamados empregos verdes, duas iniciativas de resultados
economicamente viáveis e socialmente necessários.
O conceito de desenvolvimento sustentável surgiu dos estudos da
Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as mudanças climáticas, no
início da década de 1970, como resposta à preocupação da humanidade com
a crise ambiental e social que, lamentavelmente, se prolongou nas décadas
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VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
223
seguintes. Tornou-se popular em consequência da Conferência das Nações
Unidas para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD), realizada
no Rio de Janeiro em 1992, e significa atender às necessidades de desenvolvimento da geração atual sem comprometer o direito das futuras gerações
de atenderem às suas próprias necessidades.
A preocupação com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável,
presente nas últimas décadas, deve estender-se à questão da inclusão social
e levar à coordenação de esforços para a geração de empregos verdes ou
sustentáveis, ou seja, que impeçam e, ao mesmo tempo, protejam o meio
ambiente, num processo de melhoria contínua.
Sustentabilidade também nos remete a uma dimensão temporal, pela
comparação de características de um dado contexto ecológico e sociocultural
em três tempos: passado, presente e futuro. O primeiro serve como parâmetro
de sustentabilidade, enquanto o último requer a definição do estado desejável
da sociedade no futuro. Experiências políticas passadas, que tentaram impor
às gerações presentes sacrifícios necessários para construir o futuro, revelam
o relacionamento conflituoso e complexo subjacente a um aspecto aparentemente simples, conceitual ou taxonômico. Enquanto as práticas dominantes
na sociedade (econômicas, políticas, culturais) são determinadas pelas elites
de poder, essas mesmas elites são também as principais referências para a
produção e disseminação de idéias, valores e representações coletivas.
Assim, a força e a legitimidade das alternativas de desenvolvimento
sustentável dependerão da racionalidade dos argumentos e opções apresentadas pelos atores sociais que competem nas áreas política e ideológica.
Cada teoria, doutrina ou paradigma sobre sustentabilidade terá diferentes
implicações para a implementação e o planejamento da ação social.
Instituições e políticas relacionadas à sustentabilidade são construções
sociais, o que não significa serem menos reais. Entretanto, sua efetividade
dependerá, em alto grau, da preferência dada às proposições concorrentes,
avançadas, e defendidas por diferentes atores sociais. Portanto, é útil começar
com uma breve revisão dos principais argumentos que as várias correntes
e atores têm elaborado a fim de proporcionar substância às suas diversas
reivindicações de sustentabilidade.
Laszlo e Zhenxembayeva (2011) defendem um novo modelo de
negócios em que levam em consideração três tendências que se tornaram
importantes para as instituições: a primeira refere-se aos recursos declinantes e, em alguns casos, sua exaustão; a segunda seria a transparência
radical que é a capacidade de acesso instantâneo às informações sobre
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EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
empresas e produtos; a terceira tendência trata das expectativas crescentes, stakeholders, introduzindo outros parâmetros de desempenho, como
saúde, igualdade e respeito ao meio ambiente. Nesse contexto, a adoção
do desenvolvimento sustentável pelas organizações tornou-se de grande
relevância, principalmente quando inserida na estratégia, na missão e nos
processos de gestão.
A busca do desenvolvimento e da melhoria das condições de vida
exigiu alinhamento do interesse da sociedade com os interesses da própria
organização, trazendo para a dinâmica empresarial a perspectiva do desenvolvimento sustentável (ALIGLERI, 2011). Aliado a isso, e à medida
que as instituições sentem a necessidade de inovar sua estrutura e o padrão
de seus processos para se adequarem às expectativas geradas atualmente,
as organizações têm buscado um comportamento social, ecológica e economicamente correto, adotando estratégias coerentes com o contexto em
que estão inseridas. Apesar da incorporação de ideais mais sustentáveis e
condizentes, os objetivos são difíceis de serem monitorados pelos gestores
das instituições.
O argumento central desenvolvido pelos economistas em favor da
sustentabilidade gira em torno da noção de eficiência no uso dos recursos do planeta. A alocação eficiente de recursos naturais, respeitando ao
mesmo tempo as preferências dos indivíduos, seria melhor executada em
um cenário institucional de mercado competitivo. As possíveis distorções
desse mercado poderiam ser corrigidas pela internalização de custos
ambientais e/ou eventuais reformas fiscais, coletando-se mais taxas e
tributos dos responsáveis pelos processos poluentes. A sustentabilidade
seria alcançada pela adoção da racionalidade econômica em escalas local,
nacional e planetária.
A premissa dos sociólogos segundo a qual os pobres são as principais
vítimas da degradação ambiental é subjacente à ligação entre equidade e
sustentabilidade. Presumindo que as raízes da degradação ambiental são
também responsáveis pela iniquidade social, esse discurso postula a inseparabilidade analítica entre ecologia e justiça, em um mundo caracterizado
por fragmentação social, apesar de problemas ambientais comuns. A pressão
sobre os recursos naturais tem que ser relacionada a práticas de distribuição
injustas, dependência financeira e falta de controle sobre tecnologia, comércio
e fluxos de investimentos.
Uma análise sistêmica desse processo de retroalimentação circular
revela o relacionamento político e social conflituoso que destrói a base de
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225
reprodução da Natureza e dos grupos sociais que dela dependem. Seguindo
esse raciocínio, diversas considerações éticas são desenvolvidas, especialmente em relação às consequências danosas associadas a tecnologias de
alto risco.
Economistas e tecnocratas gostariam que acreditássemos nas virtudes das políticas de ajuste estrutural econômico, louvadas como solução
para os problemas de desenvolvimento pelas agências de financiamento
multilaterais. Políticos e executivos corporativos insistem nas vantagens
da concorrência em um mercado global. Todos esses discursos ou modelos
não explicam os paradoxos que caracterizam a atual situação mundial: o
PMB (Produto Mundial Bruto) passou da marca de US$ 25 trilhões. Existem comida e bens materiais em abundância para os quase 7 bilhões de
habitantes da terra; entretanto, pessoas e animais perecem devido à fome e
à desnutrição, principalmente em países da África. Com todo o nosso conhecimento baseado nas ciências naturais, exatas e sociais, somos incapazes
de atender ao crescente número de seres humanos que estão se tornando
desempregados e sem-teto.
Esse sistema poderá ficar insustentável do ponto de vista econômico,
cultural, ambiental, social, político e, certamente, ético. Para exemplificar,
apontamos a insustentabilidade, ou o círculo vicioso, produzido pelas políticas econômicas do sistema.
As práticas de crescimento econômico convencionais resultam em
enormes custos socioambientais ocultos. Estes costumavam ser transferidos
para toda a sociedade, com os ganhos e benefícios do crescimento apropriados por uma minoria. Pressões para remediar ou aliviar essa situação
levam à diminuição da capacidade do Estado em aumentar sua arrecadação
por impostos e taxas de valores mais altos. Déficits orçamentários e fiscais
contínuos resultam em altos níveis de dívidas interna, externa e social.
Emitir mais moeda – um método frequentemente adotado pelos governos de
países em desenvolvimento – estimula a inflação, a especulação financeira
e, finalmente, a desvalorização das moedas nacionais. Esta situação leva os
capitalistas a procurarem refúgio em ativos mais sólidos, ou a transferirem
seu dinheiro para os chamados paraísos fiscais.
A conseqüente escassez de capital e a falta de incentivos para a inovação tecnológica resultam em crescente desemprego e recessão e, assim,
em menos recursos para o orçamento do governo. Ao mesmo tempo, o
crescimento populacional induz maior demanda pelo atendimento de necessidades básicas e qualidade de vida decente para todos. Essas contradições
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226
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
funcionam em um tipo de sistema retroalimentado, um círculo vicioso de
crescimento e recessão, com efeitos cumulativos de polarização e exclusão
de contingentes crescentes da população; e esse processo não se restringe
aos países “em desenvolvimento”.
Diante das críticas alusivas à insustentabilidade da racionalidade
econômica e seus graves efeitos sobre a sociedade e a Natureza, o modelo
do “desenvolvimento sustentável” tem sido lançado, principalmente pelo
meio mercadológico, como “inovador” e capaz de “resolver” os problemas
ambientais gerados pelos humanos, ao longo da sua história e por suas
criações. Mas, até que ponto esse modelo rompe com as velhas formas de
relação ser humano–Natureza?
Até a década de 1970, se polarizavam duas posições no movimento
ambientalista: uma, defendia a estagnação imediata do crescimento populacional e econômico; a outra se posicionava a favor do estabelecimento
de mecanismos de proteção ambiental, agindo, corretivamente, sobre os
problemas causados pelo desenvolvimento econômico. A Conferência de
Estocolmo, em 1972, tornou-se o marco da abertura da discussão desse
tema, em âmbito institucional; porém, a expressão “desenvolvimento sustentável” só veio a ocupar posição central dentro do discurso ambientalista
e político em 1987, com a publicação do relatório Nosso Futuro Comum
(BRUNDTLAND, 1987).
Assim, o “desenvolvimento sustentável”, tal como concebido, refere-se ao desenvolvimento capaz de atender as necessidades do presente, sem
comprometer a possibilidade de as futuras gerações satisfazerem as suas
próprias necessidades sociais, econômicas e políticas. Este é o conceito oficial
das Nações Unidas que ficou mais conhecido e tomado como referência nas
discussões. O novo debate, “otimista”, deu ao termo um caráter polissêmico
e ambíguo; diversas conotações foram dadas por economistas, planejadores
de desenvolvimento, agentes internacionais, acadêmicos, ambientalistas,
ONGs, políticos e empresários.
Teóricos mais críticos, por sua vez, alertam para a inexistência de um
consenso quanto ao significado da expressão “desenvolvimento sustentável”;
nem mesmo uma formulação quanto à questão crucial: se tal conceito tem
algum sentido dentro do quadro institucional e econômico atual do capitalismo. Para Stahel (1998), ao se buscar um desenvolvimento sustentável
hoje, está-se, ao menos implicitamente, pensando em um desenvolvimento
capitalista sustentável; ou seja, uma sustentabilidade dentro do quadro institucional de um capitalismo de mercado. No entanto, não se colocando a
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227
questão básica quanto à possibilidade de tal sustentabilidade, o conceito corre
o risco de tornar-se vazio, servindo apenas para dar uma nova legitimidade
à expansão insustentável do capitalismo.
Segundo Friedman (1984, apud BONELLI, 2014, p. 34), qualquer
ação que desvirtue os objetivos econômicos é maléfica à sociedade, haja
vista que seriam causadas ineficiências econômicas. A responsabilidade
social das empresas é, na verdade, gerar lucros.
Do tripé no qual deveria assentar-se o “desenvolvimento sustentável”
– fatores econômicos; fatores sociais e fatores ambientais –, desde então, só
se vem privilegiando os fatores econômicos. Observamos, com o passar do
tempo, o crescimento da tecnologia industrial, do lucro, da privatização da
natureza e a continuidade de uma desigual distribuição de renda, tendo esta
se agravado nos últimos anos. Dessa forma, podemos afirmar que o modelo
de preservação ambiental não contestou a ideologia da sociedade industrial,
baseada na dominação e dependência, tendo o consumo e o desperdício como
ápices do desenvolvimento econômico.
Como explicita Arendt, essa ambiguidade é, ao mesmo tempo, sua
força e fraqueza. Força porque reúne, sobre a mesma mesa, setores antes
inconciliáveis; e fraqueza, justamente porque cada um desses setores,
na verdade, está apenas se apropriando desse discurso para colocá-lo e
interpretá-lo a favor de seus interesses particulares. Então, há aqui um
movimento duplo que, por um lado, divulga e populariza a crise ambiental
e, por outro, volta a se apropriar de uma visão de mercado, uma visão superficial, banalizada, que reduz a questão ambiental a uma questão técnica
ou meramente econômica. Na interpretação de Arendt, “A era moderna,
fascinada pela produtividade com base na força humana assiste ao aumento
considerável do consumo, já que todas as coisas se tornam objetos a serem
consumidos. (1997, p. 147).
Assim, podemos afirmar que a modernidade tem como uma das
principais características a “sociedade de consumo”, e que, na atual fase
do capitalismo, a economia se caracteriza pelo desperdício, “onde todas as
coisas devem ser devoradas e abandonadas tão rapidamente como surgem”,
ou seja, em que as coisas surgem e desaparecem sem jamais durarem o tempo
suficiente para conter em seu meio o processo vital (ibid.).
Cabem-nos, aqui, os seguintes questionamentos: até que ponto são
conciliáveis capitalismo e sustentabilidade? Em que medida o consumo
“verde” poderia contribuir para a superação da crise ambiental, sem que a
lógica do consumo, do descartável e da racionalidade produtiva capitalista
seja contestada?
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228
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
EMPREGOS VERDES: CLASSIFICAÇÃO, CRESCIMENTO E
DESENVOLVIMENTO
O estudo de Bakker e Young (2011) analisa três classificações distintas
de empregos verdes:
1. A classificação do NAICS (North American Industry Classification
System), elaborada pelo Escritório Estatístico do Trabalho (Bureau Labor Statistic, BLS), para a seleção de atividades verdes;
2. A classificação da OIT (Organização Internacional do Trabalho)
do potencial de empregos verdes no Brasil;
3. A classificação das Atividades de Proteção e Despesas Ambientais (CEPA) elaborada pela Eurostat (Escritório de Estatística da
União Européia).
A NAICS e a OIT são baseadas numa análise setorial, apresentando
as atividades com potencial para geração de empregos verdes. Por outro
lado, a CEPA baseia-se exclusivamente em atividades recorrentes de gastos
com proteção ambiental, destacando, desta forma, as atividades e os setores
diretamente relacionados à preservação ambiental. Após a apresentação das
três classificações, elas foram comparadas, assinalando-se suas falhas e os
pontos adequados.
Neste trabalho, optamos por empregar a classificação da OIT, segundo
a qual a expressão “empregos verdes” se refere às profissões que, ao mesmo
tempo em que promovem o crescimento e o desenvolvimento econômicos,
contribuem para a restauração da qualidade do meio ambiente. Abrange
também as ocupações que ajudam a proteger a flora, a fauna e reduzem o
consumo de energia, de recursos naturais e de água, minimizando os impactos sobre a Natureza provocados pela indústria nos dois últimos séculos.
Conforme a definição oficial do PNUMA (Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento, 2008, p. 17),
Empregos verdes são empregos nos setores agrícola, industrial, de pesquisa
e desenvolvimento (P&D), administrativo e de serviços que contribuem
substancialmente para a preservação ou restauração da qualidade do meio
ambiente. Específica, mas não exclusivamente, eles incluem empregos
que ajudam a proteger ecossistemas e a biodiversidade; reduzem o consumo de energia, materiais e água mediante a utilização de estratégias
de alta eficiência; descarbonizam a economia; e minimizam ou evitam
por completo a geração de todas as formas de lixo e poluição.
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VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
229
Empregos verdes, conforme a OIT, pressupõem trabalho decente,
pois “devem também satisfazer antigas demandas e metas do movimento
trabalhista, ou seja, salários adequados, condições seguras de trabalho e
direitos trabalhistas” (ibid., p. 43).
O trabalho decente é definido pela OIT (2009) como a promoção
de oportunidades para que mulheres e homens possam ter uma atividade
decente e produtiva em condições de liberdade, equidade, segurança e
dignidade humana. O trabalho decente é o que satisfaz as aspirações das
pessoas em suas vidas profissionais, por oportunidades e renda; direitos;
participação e reconhecimento; estabilidade familiar e desenvolvimento
pessoal; justiça e igualdade de gênero. É essencial nos esforços voltados à
redução da pobreza, e é um meio de alinhar um desenvolvimento sustentável equitativo e incluso.
Segundo Kon e Sugahara (2012), ainda não há parâmetros sólidos,
reconhecidos internacionalmente, para comprovar que fazer negócios sustentáveis é mais rentável, porém há vários estudos e indícios concretos de
que a “economia verde” vem sendo a responsável pelo crescimento dos
empregos verdes (greenjobs).
A definição de empregos verdes, para a OIT, resume a transformação
das economias, das empresas, dos ambientes de trabalho e dos mercados
laborais em direção a uma economia sustentável que proporcione trabalho decente com baixo consumo de carbono. Esse tipo de trabalho tende
a reduzir o impacto das empresas dos diferentes setores da economia
sobre o meio ambiente. Pode contribuir também para diminuir a necessidade de energia e matérias-primas e para evitar as emissões de gases
de efeito estufa. Reduz, ainda, os resíduos e a contaminação, bem como
restabelece os serviços do ecossistema, como a água pura e a proteção
da biodiversidade. Os empregos verdes podem ser criados em todos os
setores e empresas, bem como em áreas urbanas e em zonas rurais (e
incluem ocupações desde o trabalho manual até o altamente qualificado)
(SUGAHARA, 2010).
Empregos verdes e decentes resultam da intersecção do conjunto de
atividades ambientalmente sustentáveis e do conjunto formado por postos
de trabalhos decentes.
Se incluirmos também nesse rol de empregos verdes, empregados e
funcionários públicos envolvidos no controle e fiscalização das atividades
ambientais, nas três instâncias (União, estados e municípios), tais como Ibama
(federal), Cetesb (estadual, São Paulo), secretarias estaduais e municipais
de meio ambiente, teremos como exemplo o seguinte quadro:
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230
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
Quadro 1 – Exemplos de empregos públicos de controle e fiscalização das atividades ambientais
Órgão Público
Instância / Nº de Empregados
Federal
Municipal
2.484
Cetesb (estado de SP)
Ministério do Meio Ambiente
9.973
Ibama
5.535
Secretaria do Verde (cidade de São Paulo)
Estadual
1.066
Fontes: Ibama (s/d), Portal Transparência (s/d), Cetesb (s/d), Portal do Servidor (s/d), 2013.
O fenômeno da globalização da produção tem repercutido intensamente
sobre o mundo do trabalho, verificando-se mudança qualitativa no perfil da
classe operária, em função da emergência de novos ramos industriais com a
necessidade de trabalhadores com alto grau de competência, formação técnica
e conhecimento. Costa (2008, p. 131) afirma que a mudança do perfil da
classe operária terá realmente repercussões profundas no interior das plantas
fabris, tratando-se de uma nova classe com iniciativa nos laboratórios ou
no chão da fábrica, realizando um trabalho mais criativo, mesmo dentro da
alienação global do sistema.
Adotar uma postura sustentável para se adequar, cada vez mais, às
exigências do “mercado verde” tornou-se um dos pontos principais da gestão
industrial, pois a gestão sustentável já é um fator considerado na competição
por maiores fatias de mercado, o que requer mão de obra qualificada e que
domine os conceitos e ideais de responsabilidade socioambiental.
Segundo o coordenador da área de meio ambiente do Instituto de
Educação Tecnológica (IETEC), Luiz Ignácio Fernandez, em entrevista ao
jornal Diário do Comércio (2012), a atual preocupação com o meio ambiente
não se baseia somente no controle da poluição, como ocorria nos anos 1990.
“As empresas estão criando projetos ambientalmente corretos cada vez mais
eficazes e complexos. Por conta disso, é cada vez maior a necessidade de
ter profissionais com reais conhecimentos sustentáveis”.
De acordo com um relatório de pesquisa feito pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), a economia verde deve criar 20 milhões de
empregos, até 2030, em todo o mundo; todos com alto grau de qualificação
profissional.
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231
A GERAÇÃO DE EMPREGOS VERDES
Kon e Sugahara (2012) afirmam que as mudanças climáticas, associadas
ao desperdício e degradação de recursos naturais, provocam consequências
negativas de grande alcance para o desenvolvimento socioeconômico, para
a manutenção dos padrões de produção e consumo, e, em decorrência, para
a geração de emprego e renda, bem como para a redução da pobreza, apesar
dos esforços de renovação ambiental que vem sendo empreendidos.
A redução na geração de empregos e de oportunidades de obtenção
de renda em todos os países, particularmente naqueles em desenvolvimento,
resulta em insegurança alimentar com impactos negativos sobre a saúde da
força de trabalho; na ausência de sistemas de seguridade social, ampliam-se
os fluxos migratórios, que requerem reformulações estruturais e regionais
para a acomodação do mercado de trabalho, aumentando as tensões políticas
e a incerteza existentes (SANCHEZ e POSCHEN, 2009).
Investimentos mais expressivos na preservação da natureza podem
oferecer novas oportunidades de trabalho e renda em áreas específicas, como
na defesa ambiental e costeira, reforçando a infraestrutura e a construção
civil, o gerenciamento da água disponível e de técnicas agrícolas, além de
incentivar a criação de novas tecnologias que inibam a degradação ambiental.
Pesquisas mais atualizadas mostram que a transição para uma economia de baixa emissão de carbono não necessariamente deve ser destruidora
de empregos, e sim pode levar ao acréscimo líquido de oportunidades de
trabalho, embora à custa de perdas de postos de trabalho em alguns setores,
compensadas por aumentos em outros. Essas transições são mais prováveis
de acontecerem em setores econômicos de geração de energia ou transportes
e os resultados serão melhores se tais mudanças forem antecipadas e gerenciadas com a participação ativa de empregados e trabalhadores (KON e
SUGAHARA, 2012).
Práticas bem-sucedidas de criação de empregos verdes são também
evidenciadas nas novas formas de produção de energia solar e eólica da
China e da Espanha, e nos programas de geração mais eficiente de energia
da Alemanha e da França. Potencial semelhante é apontado nos programas de
bioenergia e reciclagem do Brasil (SANCHEZ e PORSCHEN, 2009, p. 15).
Um estudo publicado pelo CIP-CI (Centro Internacional de Políticas
para o Crescimento Inclusivo), um órgão do Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento (PNUD), 2010, em parceria com o governo brasileiro, sinaliza que em um país em desenvolvimento, como o Brasil, investir
na geração de empregos da chamada “economia verde” pode ser uma boa
solução para reduzir a pobreza. Esse estudo – elaborado pelo pesquisador
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232
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
Maikel Lieuw-Song, ex-diretor da unidade de Programas Expandidos de
Obras Públicas no Departamento de Obras Públicas da África do Sul, intitulado Empregos “verdes” aos pobres: por que uma abordagem pública
de geração de empregos é necessária agora? – apresenta os benefícios dos
investimentos “verdes”, em especial os destinados a acelerar a transição em
direção a economias de baixo carbono.
Ainda de acordo com Lieuw-Song, “Inovações políticas aplicadas em
países em desenvolvimento, como África do Sul ou Índia, apontam para o
valor das atividades ambientais geradoras de emprego relevantes para recuperar ou melhorar o acesso a bens e serviços ambientais públicos, assim
como melhorar a subsistência produtiva dos pobres” (ibid).
Entre essas atividades ambientais, diz o estudo, estão o plantio de
vegetação nativa; remoção de espécies invasoras; construção de infraestrutura
para diminuir a erosão do solo; proteção de reservas e gerenciamento de
bacias hidrográficas, que exigem um esforço físico maior, e, por isso, “têm
o potencial de criar emprego aos pobres”.
Os benefícios da aplicação dessas políticas podem ser sentidos pelos
pobres e pelas comunidades locais. Além disso, o lucro decorrente dessas
atividades ambientais pode diminuir a pressão para explorar o meio ambiente,
na opinião do pesquisador.
Para Lieuw-Song, em muitos casos, os governos deveriam tomar a
liderança e fazer esses investimentos, usando programas públicos para criar
trabalhos, envolvendo atividades ambientais e tornando a geração de emprego
para os pobres parte integrante das estratégias de redução da pobreza.
De uma forma geral, o estudo considera ser necessário fazer mais
investimentos em gerenciamento de recursos naturais e no meio ambiente.
Programas públicos, de geração de emprego, centrados no meio ambiente
representam uma sinergia dessas duas mudanças, garantindo atenção e
consideração, agora não somente como medidas de combate à crise, mas
também como intervenções políticas.
PERFIL DOS EMPREGOS VERDES NO BRASIL
Os impactos causados na natureza pela atividade humana se tornaram
uma responsabilidade de todos, razão pela qual, é de interesse, senão de
todos, de uma parte significativa da população alterar os rumos do planeta.
As questões referentes ao inadequado descarte dos resíduos sólidos,
por exemplo, e implementação de medidas que incorporem programas de
gerenciamento desses resíduos, no campo ou na cidade, serão de difícil
resolução, se não forem diretamente relacionadas com propostas de deRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242
VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
233
senvolvimento sustentável, isto é, com a obtenção de ganhos ambientais e
econômicos graças à reciclagem.
A educação ambiental tem enfatizado a adoção de procedimentos para
se promover a reciclagem, demonstrando a sua importância ante a limitação
dos recursos naturais e a necessidade de diminuição do volume de lixo nos
aterros controlados; aterros sanitários dos centros urbanos, favorecendo
não só os indivíduos, mas também a qualidade de vida para a atual e para
as futuras gerações.
A transição para uma economia que reduza consideravelmente as
emissões de gases de efeito estufa pode aumentar a criação de postos de
trabalho, segundo o relatório Empregos verdes no Brasil: quantos são,
onde estão e como evoluirão nos próximos anos, lançado pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT, 2009).
A OIT (2009) defende que a transição para uma economia ambientalmente sustentável depende, sobretudo, da adoção de novos padrões de
consumo e de produção. Em síntese, lista seis grandes eixos de transformação,
levando em conta as particularidades da economia brasileira:
1. Maximização da eficiência energética e substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis;
2. Valorização, racionalização do uso e preservação dos recursos
naturais e dos ativos ambientais;
3. Aumento da durabilidade e reparação dos produtos e instrumentos
de produção;
4. Redução da geração, recuperação e reciclagem de resíduos e
materiais de todos os tipos;
5. Prevenção e controle de riscos ambientais e da poluição visual,
sonora, do ar, da água e do solo;
6. Diminuição dos deslocamentos de pessoas e cargas.
A forma de organização do processo de trabalho dos empregos
verdes pode reduzir o impacto ambiental das atividades econômicas em
níveis sustentáveis, e o relatório citado também se concentra em “empregos
verdes” – na agricultura, indústria, serviços e administração – que ajudam a
preservar ou restabelecer a qualidade do ambiente. Além disso, faz um apelo
para que sejam adotadas medidas capazes de garantir trabalho decente com o
objetivo de reduzir a pobreza e, ao mesmo tempo, proteger o meio ambiente.
Ainda no relatório, foi analisada cada uma das 675 classes de atividades
econômicas Cnae 2.0 – Classificação Nacional de Atividades Econômicas –
que consiste no nível mais aprofundado das informações da Relação Anual
das Informações Sociais (RAIS), 2008.
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EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
Essa análise, segundo o relatório, visava identificar as atividades cujos
produtos finais contribuem objetivamente, direta ou indiretamente, para a
mudança dos padrões dominantes de produção e consumo na direção de
pelo menos um dos atributos dos padrões alternativos. Resultou, assim, na
seleção de 76 classes de atividades econômicas, que foram posteriormente
reagrupadas em torno de seis grandes categorias (OIT, 2009).
Tabela 1 – Empregos verdes formais em 31/12/2006 a 2008
CLASSES DE
ATIVIDADES
AGRUPADAS
2006
2007
Var.
%
2008
Var. %
Produção e manejo
florestal
133.313
145.955
9,48
139.768
-4,24
Geração e distribuição de
Energias Renováveis
480.497
505.675
5,24
547.569
8,28
Saneamento, gestão
de resíduos e de riscos
ambientais
276.736
292.164
5,57
303.210
3,78
Manutenção, reparação e
recuperação de produtos e
materiais
361.819
407.029
12,5
435.737
7,05
Transportes coletivos e
alternativos ao rodoviário
e aeroviário
735.641
760.384
3,36
797.249
4,85
Telecomunicações e
teleatendimento
305.499
373.592
22,29
429.526
14,97
Totais anuais de empregos
verdes (E.V.)
2.293.505
2.484.799
8,34
2.653.059
6,77
Estoques anuais de
empregos formais (E. F.)
35.155.249 37.607.430
6,98
39.441.566
4,88
Diferenças entre as taxas
de crescimento dos E. V. e
dos E. F.
Participação dos E. V. nos
estoques anuais de E. F. (%)
1,37
6,52
6,61
1,28
1,89
6,73
1,81
Fonte: OIT (2009).
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VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
Em 2008, considerando que o número de empregos formais no Brasil era de 39.411.566, segundo o IBGE, constata-se que a soma dos postos
de trabalho oferecidos por esses grupos de atividades representava apenas
6,73% do montante. Nota-se que esse número vinha crescendo lentamente
a cada ano, destacando-se o fato de que as taxas de crescimento do número
de postos de trabalho nessas atividades têm se mantido acima das taxas de
crescimento do emprego formal em toda a economia, conforme se observa
na tabela 1.
Na tabela 2, a seguir, com base nos dados da tabela 1 e nas médias
das taxas de crescimento por classes de atividades de 2006 a 2008, obtidas
na Rais de cada ano, realizamos a projeção de crescimento de empregos
verdes para 2014 a 2016.
Tabela 2 – Projeção – empregos verdes formais – 2014 a 2016
CLASSES DE ATIVIDADES
AGRUPADAS
2013
2014
Var. %
2015
Var.
%
2016
Produção e manejo florestal
158.077
162.218
2,62
166.468
2,62
170.829
Geração e distribuição de
Energias Renováveis
732.647
782.173
6,76
834.813
6,76
891.246
Saneamento, gestão
de resíduos e de riscos
ambientais
374.161
391.671
4,68
410.000
4,68
429.188
Manutenção, reparação e
recuperação de produtos e
materiais
648.813
712.266
9,78
781.926
9,78
858.400
Transportes coletivos e
alternativos ao rodoviário e
aeroviário
961.083
1.000.058
4,11
1.041.707
4,11
1.084.521
Telecomunicações e
teleatendimento
829.629
984.188
18,63
1.167.543
18,63
1.385.056
Totais anuais de Empregos
Verdes (E. V.)
3.704.410
4.032.574*
9,17
4.402.457*
9,47
4.819.240*
Estoques anuais de
empregos formais (E. F.)
48.928.169
51.496.527*
5,26
54.205.244
5,26
57.056.439*
7,57
7,83
Participação dos E. V. nos
estoques anuais de E. F. (%)
8,12
8,45
Fonte: Adaptado pelo autor, de OIT (2009).
*Dados projetados com base nas taxas médias de crescimento por classes de atividades.
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EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
Essa projeção permite vislumbrar um aumento na totalidade de empregos verdes formais no Brasil, graças sobretudo aos aumentos significativos
em algumas classes de atividades, como reparação e recuperação de produtos
e materiais, telecomunicações e teleatendimento.
Analisando-se as Tabelas 1 e 2, percebe-se um aumento significativo
nos grupos de atividades compostas por Manutenção, reparação e recuperação
de produtos e materiais e, principalmente, Telecomunicações e teleatendimento, tal como classificados pela OIT.
ECONOMIA VERDE
A definição de Economia Verde, proposta pelo Pnuma, foi adotada,
em 2009, pela Assembléia Geral das Nações Unidas como um dos temas da
conferência Rio+20: um sistema econômico cujas atividades em todos os
setores – investimento, produção, comercialização, distribuição e consumo –
respeitam os limites dos ecossistemas preservando, assim, o meio ambiente.
Dessa forma, o meio ambiente não é mais visto como fator restritivo
de uma economia; ao contrário, é considerado uma força geradora de novas
oportunidades econômicas. Segundo essa lógica, o crescimento da renda e
do emprego é impulsionado por investimentos que reduzem as emissões
de carbono e a poluição, melhoram a eficiência energética e de recursos e
evitam a perda de biodiversidade.
Para exemplificar as novas oportunidades econômicas, a tabela 3
apresenta quatro grandes grupos de atividades econômicas baseadas na
exploração de recursos naturais e/ou que dependam da qualidade ambiental,
segundo o relatório da OIT (2009).
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VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
Tabela 3 – Atividades econômicas dependentes da qualidade ambiental
AGRUPAMENTOS DE
ATIVIDADES ECONÔMICAS
2006
2007
Var. %
2008
Var. %
Extração mineral e indústrias
de base
414.851
432.537
4,26
457.335
5,73
Construção, comercialização,
manutenção e uso de edifícios
2.224.376
2.500.829
12,43
2.861.913
14,44
Agricultura, pecuária, caça e
pesca
1.280.118
1.036.927
-19,00
1.328.376
28,11
998.662
1.075.573
7,70
1.162.645
8,10
Totais anuais de empregos
oferecidos nessas atividades
4.918.007
5.045.866
2,60
5.810.269
15,15
Estoques anuais de empregos
formais (E. F.)
35.155.249
37.607.430
6,98
39.441.566
4,88
Turismo e hotelaria
Diferenças entre as taxas de
crescimento do emprego
Participação dessas atividades
nos estoques de E.F.
-4,38
13,99
13,42
-4,09
10,27
14,73
9,79
Fonte: OIT (2009).
Embora esses quatro tipos de atividades econômicas não sejam considerados totalmente verdes, são grandes geradores de empregos verdes por
modificarem os padrões de processo produtivo e de produtos.
De acordo com Cechi e Paccini (2012), o grande desafio é conciliar
as concorrentes aspirações de desenvolvimento econômico dos países ricos
e pobres em uma economia mundial que está enfrentando mudanças climáticas crescentes, insegurança energética e degradação dos ecossistemas. A
iniciativa da economia verde pretende enfrentar esse desafio, reduzindo a
perversa correlação entre o crescimento econômico e a liquidação dos ativos ambientais, permitindo, dessa forma, que ambos, países ricos e pobres,
possam continuar crescendo e se desenvolvendo.
A extensão das exigências relativas à preservação do meio ambiente é
essencialmente uma questão de escala, tecnologia e composição (VICTOR,
2010). Assim, uma grande economia exigirá espaço ambiental maior do que
uma economia pequena, se ambas produzem e consomem bens e serviços
semelhantes e empregam tecnologias comparáveis. Mudanças na composição
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238
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
de bens e serviços e mudanças nas tecnologias de produção, distribuição,
utilização e descarte dos materiais e energia a eles associados oferecem a
possibilidade, em princípio, de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto),
mesmo num ambiente finito.
Para definir o que seria “crescimento verde” e distingui-lo de várias
outras cores de crescimento, Victor (2010) usa dois parâmetros: escala e
intensidade.
A escala se refere ao tamanho da economia, medida pelo PIB; e a
intensidade do impacto ambiental por unidade do PIB é uma função da
composição e da tecnologia. A ideia de crescimento verde implica, simultaneamente, impacto ambiental reduzido e crescimento econômico.
Em termos de escala e intensidade, o crescimento verde exige que a
taxa de redução do impacto por unidade do PIB exceda a taxa de aumento do
PIB, de modo que o impacto ambiental, determinado pela multiplicação das
duas variáveis, diminua ao longo do tempo. Se a taxa de redução da intensidade for menor que a taxa de aumento do PIB, o impacto ambiental aumenta.
A iniciativa da economia verde carrega consigo o otimismo da vontade de que a economia possa e deva ser impulsionada por investimentos em
setores e atividades e tecnologias limpas, em contraposição à extração de
recursos naturais e à indústria poluente. No entanto, não há garantia de que
aumentos de eficiência no uso de recursos resultem em sua conservação; e há
sérios limites para a substituição entre setores de uma economia em termos
reais. Daí a necessidade – que também defendemos – do uso de tecnologias
verdes para a diminuição do impacto ambiental.
Entre os principais objetivos das políticas ambientalistas, derivados
desse conceito de desenvolvimento sustentável, encontramos, na afirmação
de Barbieri e Delazaro (1994, p. 76), os seguintes:
[...] retomar o crescimento; alterar a qualidade do desenvolvimento;
atender às necessidades essenciais de emprego, alimentação, energia, água
e saneamento; manter um nível populacional sustentável; conservar e
melhorar a base de recursos; reorientar a tecnologia e administrar o risco;
incluir o meio ambiente e a economia no processo de tomada de decisões.
O grande desafio será, portanto, criar novos paradigmas de desenvolvimento, segundo os quais a preservação do ambiente e a promoção
de emprego se fertilizem, reciprocamente, formando um círculo virtuoso,
o que supõe investimentos em pesquisas científicas e tecnológicas para o
aperfeiçoamento contínuo das técnicas de preservação do meio ambiente,
tal como propostas pela OIT e mencionadas neste artigo.
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VALÉRIO VITOR BONELLI e NOÊMIA LAZZARESCHI
239
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O processo de reaproveitamento de resíduos, reciclagem, co-processamento de materiais já utilizados, reprocessamento de sub-produtos,
aproveitamento de biomassas, construção e conservação da infraestrutura
produtiva, e proteção às áreas de reserva ambiental são algumas formas de,
simultaneamente, proteger o meio ambiente e alavancar postos de trabalho,
por criarem condições mais eficientes de produção e de competitividade das
empresas em suas áreas de atuação. Esse cuidado com o meio ambiente e com
o nível de empregos impõe um novo modelo de organização do processo de
trabalho: o modelo de organização inovadora sustentável como resposta às
pressões institucionais por uma organização que seja capaz de inovar com
eficiência em termos econômicos e com responsabilidade social e ambiental. Esse tipo de organização busca vantagem competitiva ao desenvolver
produtos, serviços, processos e negócios, novos ou modificados, com base
nas dimensões social, ambiental e econômica. Reúne duas características
essenciais: é inovador e orientado para a sustentabilidade, institucionalizando-se, assim, uma nova lógica de produção na qual a sustentabilidade e
a inovação caminham juntas e o meio ambiente é uma condição de avanço
para o futuro.
Portanto, devemos considerar que a busca de efetiva sustentabilidade pode se estabelecer por meio da concretização da geração de empregos
verdes que, em consonância com o desenvolvimento sustentável, constitui
uma forma efetiva de se construir uma nova sociedade global, baseada na
harmonia entre os meios econômicos, o meio ambiente, a promoção dos
direitos sociais fundamentais, o uso de tecnologia inovadora e a melhoria
contínua das condições sociais dos trabalhadores e da sociedade.
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242
EMPREGOS VERDES E SUSTENTABILIDADE
Palavras-chave:
desenvolvimento,
sustentabilidade, empregos
verdes, projeções de
crescimento.
Keywords:
Development, sustainability,
green jobs, projections growth.
Resumo
Nas últimas décadas, as conferências internacionais incorporaram a questão da sustentabilidade nos debates sobre
desenvolvimento socioeconômico. Governos, universidades,
agências multilaterais e empresas de consultoria técnica
introduziram, em escala e extensão crescentes, considerações e propostas que refletem a preocupação com a preservação ambiental – “preocupação verde” – nos projetos
de desenvolvimento e a democratização dos processos de
tomada de decisão. Este artigo procura demonstrar que o
compartilhamento de tecnologias e a adoção de métodos e
técnicas de gestão ambiental permitem preservar a natureza
e, ao mesmo tempo, gerar e manter milhões de empregos,
os chamados empregos verdes, desmistificando a crença
de que a sustentabilidade inibe o crescimento econômico
e, em conseqüência, as oportunidades de alocação da força
de trabalho nos mercados de trabalho.
Abstract
In recent decades, international conferences have incorporated the issue of sustainability in discussions on
socioeconomic development. Governments, universities,
multilateral agencies and technical consulting companies
introduced in scale and increasing extent, considerations
and proposals that reflect the concern for environmental
preservation - “green concern” - development projects
and the democratization of decision-making processes.
This article seeks to demonstrate that it is possible to share
technologies and the adoption of methods and techniques of
environmental management, help to preserve nature and at
the same time generate and sustain millions of jobs, green
jobs, demystifying the belief that sustainability inhibits
economic growth and, consequently, opportunities for
allocation of the labor force in labor markets.
Recebido para publicação em junho/2014. Aceito em abril/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 221-242
A organicidade da flexibilização:
representações, discursos e memórias
no âmbito do trabalho
Roney Gusmão do Carmo
Doutor em “Memória: linguagem e sociedade” pela Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (UESB). Professor Adjunto do Centro de Cultura,
Linguagens e Tecnologias Aplicadas (CECULT) da Universidade Federal do
Recôncavo da Bahia (UFRB).
Endereço postal: Rua dos Radialistas, 181, apt. 805, Edifício André Guimarães.
Bairro: Pituba. CEP: 41810650 Salvador–BA.
Endereço eletrônico: [email protected]
Ana Elizabeth Santos Alves
Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora
do Departamento de Filosofia e Ciências Humanas (DFCH) e do Programa
de Pós-graduação strictu sensu em “Memória: linguagem e sociedade” da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).
INTRODUÇÃO
Este texto é um produto decorrente de pesquisas que
desenvolvemos no curso de doutorado acerca da dinâmica socioeconômica perceptível nas últimas décadas no município de
Vitória da Conquista, Bahia. Embora as transformações tenham
sido impressas no espaço geográfico local, entender sua lógica
requereu transcender a obviedade material do fenômeno, inscrevendo-o dialeticamente nos meandros do contexto histórico
que o contornou.
Nesse sentido, o trabalho foi construído a partir do entendimento de que cada fenômeno visível no recorte empírico da
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258
244
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
pesquisa aqui relatada está, sobretudo, ancorado num movimento dialético
amplo, sem prescindir, é claro, das conexões estabelecidas entre o mais elementar cotidiano das pessoas dentro do espaço estudado e o tempo histórico
que percorre a existência social. Assim sendo, o percurso metodológico
aqui tratado se apoiou na dialética como pressuposto para entendimento da
relação complexa entre as partes e o todo, bem como para entendimento da
história em seu movimento orgânico, cujas ramificações aportam na vida
comum dos sujeitos e permite entender a imbricação que liga cada homem
e cada mulher ao seu tempo.
Para estruturar tal estudo, o presente trabalho se apoiou em fontes
documentais, como recortes de jornais, fotografias antigas da cidade, e entrevistas com autoridades locais, além de entrevistas e questionários aplicados
junto a pessoas capazes de contribuir para melhor interpretar o objeto que
aqui se pretendeu compor. Os sujeitos de pesquisa foram abordados através
das seguintes técnicas: aplicamos questionários a 50 comerciários de diversos
ramos de atuação na cidade; entrevistas semiestruturadas a 12 comerciários
atuantes em lojas do varejo, com maior variedade possível de sexo e idade;
entrevistas semiestruturadas a 4 comerciantes e 4 ex-comerciantes locais.
Através desses sujeitos da pesquisa, objetivamos compreender a forma como
as transformações econômicas que aportaram a realidade local no início
do século XXI afetaram as representações e percepções dessas pessoas.
Ao mesmo tempo em que objetivamos entender as mudanças, intentamos
também interpretar elementos da memória que possibilitaram conectar o
presente à trajetória de vida desses sujeitos e ao contexto sociohistórico ao
qual pertencem.
Ademais, o conjunto de caminhos metodológicos aqui adotado possibilitou traçar um recorte temporal e espacial, capaz de fornecer pistas ao
entendimento das (re)configurações na economia local, em consonância com
a dinâmica capitalista global. Além disso, tais transformações se materializaram no espaço de vivência dessas pessoas, escancarado na remontagem do
cenário urbano, também se convertendo em subjetivação, interpenetrando
representações, simbologias, sensos de filiação e identidades desses sujeitos.
Desta feita, falamos de mudanças concretas, e também salientamos que essa
dinâmica adentrou o mundo de significados, interpenetrando nas trajetórias
de pessoas comuns, que inevitavelmente foram impactadas em seu cotidiano
com mudanças tão profundas.
Desse modo, apoiados em um determinado marco teórico, nos ocupamos do fenômeno da acumulação flexível, entendido como reincremento
na esfera produtiva capitalista dentro de um contexto de instabilidade
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RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES
245
econômica e raquítico crescimento. Assim sendo, a flexibilidade se traduz
como estratégia de perpetuação do capital em contextos históricos que
requeriam uma produção mais leve e adaptável às turbulências oscilantes
do sistema. Esta realidade não ficou retida em um único setor da economia,
muito menos se restringiu a países de economia central; ao contrário, em
distintas temporalidades e com certas peculiaridades, a flexibilidade atingiu
proporção epidêmica, introduzindo “novos” critérios de sobrevivência no
cenário econômico, alterando vínculos de trabalho e “remoldando” aspectos
múltiplos da economia (CHESNAIS, 1996).
Tão logo, os Estados passam a ser acionados, consentindo com uma
política neoliberal e anuindo mecanismos de exploração extrema da mão-de-obra. Tal realidade foi anunciada em meados do século XX, mas foi nos
anos 1990 que a ação predatória do capital em países de economia periférica,
como o Brasil, reestruturou a produção, agora regida por instrumentos sofisticados de tecnologias e formas de controle social “mais adequadas” ao
projeto burguês de sociedade para o início do século XXI. A flexibilização,
portanto, foi estratégia de sustentação hegemônica do capital, com uso de
instrumentos subjetivos para disseminação de condutas ideológicas atreladas
à necessidade eminente de fazer circular mercadorias e subsunção da prática
social ao nexo da acumulação (ALVES, 2011).
A DIALÉTICA DO RECORTE EMPÍRICO
A partir do ano 2000, Vitória da Conquista, hoje com 310 mil habitantes,
teve sua configuração econômica profundamente alterada pela propagação
de empreendimentos varejistas franquiados a redes nacionais e internacionais. Quase simultaneamente, lojas populares aqui chegaram, modificando
radicalmente o cenário municipal, tanto porque imprimiu uma silhueta mais
metropolitana ao espaço geográfico, como porque provocou o acirramento
da concorrência, acentuando a exclusão de empreendedores locais.
Com base nas informações obtidas nesta pesquisa, podemos afirmar
que a dinâmica capitalista, insinuada pelo contexto de reestruturação produtiva, afetou, intimamente, aquele cenário econômico, redundando num
processo acelerado de reconversões sociais, econômicas e políticas, nítidas
tanto no desenho espacial urbano como no cotidiano dos sujeitos.
Embora o discurso posto na estrutura política do capitalismo flexível
aponte para maior democratização do consumo e consequente melhoria da
qualidade de vida geral, na prática tem escamoteado os efeitos mais perversos dos novos paradigmas de acumulação. A permissividade dos governos
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246
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
tem gerado um processo desenfreado de expansão das transnacionais,
obrigando microempreendedores a recuarem em seus espaços de atuação,
cuja identidade parece estar sendo golpeada por uma transnacionalização
que massifica signos de consumo muito mais equalizados a tendências fugazes do mercado global. O posicionamento saudosista dos comerciantes
entrevistados demonstrou uma sensação de não reconhecimento daquele
comércio de outrora, cuja dinâmica parecia tão previsível. Hoje, para aqueles
que insistem no comércio, o cenário se demonstra hostil, dilacerado por um
estrangeirismo cosmopolita violento por seu poder de persuasão e exclusão.
A realidade antagônica de expansão e exclusão, crescimento e degradação, sofisticação e abandono parece coexistir num cenário onde o “novo”
e o “velho”, o arrojado e o defasado se hostilizam na tentativa de prevalência
num contexto de disputa acirrada. A acumulação flexível, como se supunha,
acentuou a contradição local, impondo uma “permissividade” econômica
– base do Estado neoliberal – capaz de favorecer os grandes conglomerados transnacionais, cujo crescimento se dá pela polarização do consumo e
bancarrota dos microempreendimentos, hoje higienizados.
Os comerciantes locais, em grande parte, ainda insistem no negócio
que possuem, mas demonstram-se paralisados pelo pessimismo. Estão cientes
de que o novo cenário econômico requer investimentos amplos na fachada
do estabelecimento, no marketing da empresa, na redução da margem de
lucros para dar conta da concorrência; porém, são impelidos pela prudência
decorrente de suas limitações econômicas. As taxas de juros embutidas nos
empréstimos, além da elevação exorbitante do aluguel, e das incertezas com
um mercado consumidor cada vez mais fugidio impedem que os comerciantes
almejem ter muito além do que hoje possuem.
Nesse contexto, a memória dos lojistas é perpassada por um saudosismo de outro cenário, desenhado por condições concretas muito distintas
das que hoje percebemos e muito mais propícias à sobrevivência e criação
de perspectivas. Por essa razão, os anos 1970 e 19801 são apontados, em
outros termos, como épocas em que os sonhos ainda subsistiam.
Por meio dessa análise, foi possível detectar que as representações
dos entrevistados se equalizam às condições materiais de existência que, por
efeito, se remodelaram no transcurso do tempo. Falar sobre ter um “negócio
próprio”, hoje, é falar num tom de descrédito, ao passo que, remeter para os
“tempos áureos do comércio conquistense”, implica uma nostalgia muito
atrelada às possibilidades de ascensões significativas do que, até então, não
necessitava da nomenclatura “local”.
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RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES
247
De todo modo, tem-se observado uma invasão de “estrangeirismos”
nas placas, fachadas e outdoors que se erigem, autoritariamente, no espaço
urbano local. Tal fato decorre de um processo expansionista do capital
que aportou em Vitória da Conquista nesse início de século. Ao esgotar
determinados nichos do consumo, o expansionismo se torna condição para
perpetuação da circulação de mercadorias, sendo, então, necessário arrebatar
representações e fetiches aos signos “sofisticados” do consumo de massa.
Assim, a chegada quase simultânea de Mac Donald’s, C & A e Subway,
por exemplo, é acompanhada por um meticuloso trabalho ideológico que
invade representações e gera uma sensação consensual de “evolução”
mercadológica.
Não queremos adensar discussões acerca da pertinência ou não de
franquias como essas para a vida social dos sujeitos, mas cabe compreender
que toda edificação de macro estruturas econômicas é acompanhada por
subjetivações e, consequentemente, por ideologias que insinuam condutas,
exalando convenções éticas e estéticas.
IDENTIDADES CORROÍDAS
Havia um sutil desconforto implícito nas narrativas dos “mais velhos”.
Sejam os comerciantes ou comerciários; apenas aqueles que passaram dos
35 anos pareciam expectadores assombrados com o que presenciavam. Esses
sujeitos de mais idade não se sentiam protagonizando a cena, assistindo ao
desmonte de uma cidade que outrora lhes “pertenceu”, pela amputação do
“atraso” e erguimento do “arrojado”.
Essa sensação agonizante se manteve nítida no diálogo com os entrevistados “mais velhos”. O desconforto foi motivado por uma perda de
controle e autoridade sobre o tempo presente, num recolhimento à própria
obsolescência. Para eles, a novidade conferida aos novos modelos de gestão
e às tendências estrangeiras que orientam o perfil do consumo local chega a
ser sufocante para emitir opiniões. Vez ou outra surgiam observações do tipo:
- Hoje, tudo mudou, não sei se posso ajudar”;
- “Não se pensa atualmente como na minha época”;
- “Dentro do possível, eu te respondo, mas não sei se na minha idade
ainda posso falar sobre isso”; ou
“Se quiser, eu te apresento meu filho, ele está mais por dentro disso que
você quer saber.
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248
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
Esse desconforto em versar sobre as transformações vivenciadas pela
economia local se justifica porque as rupturas foram bruscas e invasivas, à
medida que impuseram a novidade de modo muito mais rápido do que se
pôde acompanhar. De repente, aquela antiga loja do Centro foi demolida,
cedendo espaço ao gigantismo de uma rede recém-chegada; em seguida, a
fachada de uma lojinha foi sendo alterada e ganhou um novo nome e uma
nova roupagem e, finalmente, a mídia anunciava a novidade e a população,
uníssona, acatava. Como externar saudosismo quando há consenso de que
agora tudo mudou, e mudou pra melhor?
Para avigorar esta análise, é útil insistir na ideia de que as mudanças impostas pela acumulação flexível são, também, impressas no espaço
geográfico, tornando-se imponentes pela megaestrutura montada na malha
urbana. A altivez da economia capitalista hostiliza a simplicidade, principalmente porque tem sido polarizada por megaempreendimentos capazes
de estabelecer padrões de gestão que penetram os mais remotos espaços do
globo. Nesse sentido, a imponência do capital transnacional se sobressai de
tal forma no espaço, que constrange qualquer forma de espontaneidade, tanto
pela impiedosa concorrência, como também pela ideologia que “recolhe”
o simplório à marginalidade da economia. Na magnitude desse fenômeno,
os “mais velhos” se notam ultrapassados, veem-se presos a um passado
“insignificante” e descolados da complexidade do mundo “moderno”.
A imposição espacial do “novo” capitalismo ocorre mediante a
espetacularização do consumo, em sintonia com tendências globais que se
metamorfoseiam numa velocidade perturbadora, tornando-se indigesta para
aqueles que são fruto de outra época. Os comerciantes e ex-comerciantes
entrevistados confirmaram tal fato:
- (...) sou de uma época em que o freguês era chamado pelo nome (Marli
Miranda, comerciante);
- (...) eu apostava no comércio porque, tanto o governo, como a população,
valorizava o que era da terra (Novais, ex-comerciante);
- (...) se eu não tivesse investido na loja, teria ficado de fora... Observe
a fachada dessas lojas novas: são grandes, tomam quarteirões inteiros e
dão impressão de credibilidade (Amorim, comerciante).
Essa espetacularização do capitalismo, imposta hostilmente no
espaço, afetou todos os ramos comerciais: lojas de material de construção
hoje contrastam com franquias de gigantismo avassalador; lanchonetes se
comprimem em meio a fast-foods; lojas de confecções se acomodam, modesRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258
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tamente, entre famosas redes do varejo como Renner ou Riachuelo. Assim
sendo, a espacialidade do referido fenômeno monta uma “nova” cidade, cuja
sofisticação é antítese de toda a carga afetiva inerente à “velha” Vitória da
Conquista. Destarte, ser “velho” nesse contexto de transformações é “estar
por fora desse ‘mundão’ moderno que chegou aqui” (palavras de Mauro,
empregado de 38 anos). O “mundão” a que Mauro se refere é, certamente,
aquele, fruto de um processo acentuado de globalização expresso, por exemplo, na mundialização das contradições capitalistas e numa estandardização
cada vez maior das “manias” de consumo, com implacável agravamento da
desigualdade. O “mundão” que finalmente “chegou aqui” é o ápice da interconexão entre local e global, com eclosão de desarmonias que “desfiliam”
sentimentos e ruem identidades; é, também, o projeto da globalização para
Vitória da Conquista, agora sim, “mundializada”, esvaziada.
Além disso, os “velhos” não conseguem reconhecer suas histórias
pessoais naquele espaço e não se percebem como extensão da engenharia
local; ao contrário, recolhem-se e não se atrevem a falar de uma Vitória da
Conquista desconfigurada, pois, se assim o fazem, tornam-se petulantes:
“agora é o tempo dessa turma mais nova pegar no batente; minha época já
foi” (Novais, ex-comerciante).
É útil acrescentar que todos os comerciários entrevistados sentiam a
necessidade de informar como era o espaço urbano nos seus tempos; assim,
sempre estavam desenhando com gestos ou apontando para explicar como se
organizava a cidade. Em suas palavras, havia uma nostalgia latente, principalmente porque as transformações espaciais foram acompanhadas por um
processo severo de exclusão e desfiliação através dos novos traçados urbanos.
Paulatinamente, a cidade foi se transformando e, para os entrevistados, é
impossível falar dessas mudanças sem a carga emocional que elas explicitam.
Assim, a imposição do “novo” capitalismo flexível se caracteriza como onda
de transformação para os “mais novos”; mas, aos “mais velhos”, ela assusta,
principalmente pela corrosão das identidades que, substituídas por adesões
artificiais e arbitrárias aos novos valores de consumo, são comprimidas pela
avalanche de apelos à “modernidade2”.
O capital encontrou, portanto, na mundialização a oportunidade
de dilaceramento das filiações locais, pois, sempre que elas se opõem aos
ditames da acumulação, há que equalizá-las aos imperativos do consumo e
da subsunção à ideologia da flexibilidade. Tal fato constata o afirmado por
Lukács (1992, p. 125) que percebe a sociedade capitalista sob “um místico
e obscuro poder, cuja objetividade fatalista e desumanizada se contrapõe
ao indivíduo”.
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250
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
Dessa forma, o poder penetrante do trabalho ideológico advindo da
flexibilidade gera fissuras no senso de identidade, tanto porque reestrutura
o espaço onde a filiação se apoiaria, como também porque afeta a subjetividade com apelos à “novidade” que arbitrariamente aportou nos mais
longínquos espaços.
Nesta análise, recorremos a Stuart Hall para entendermos melhor o
conceito de identidade nesse contexto de transitoriedade em que vivemos.
O autor compreende identidade como um mecanismo que costura o sujeito à
estrutura, preenchendo o espaço entre o mundo interno ao sujeito e o mundo
público, o que estabelece um movimento entre o que “projetamos a ‘nós
próprios’ nessas identidades culturais, ao mesmo tempo em que internalizamos seus significados e valores, tornando-os ‘parte de nós’, contribui para
alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural” (HALL, 2006, p. 11-12). Mas, e quando
a estrutura material, os valores, bem como os sentimentos foram alterados
por uma parafernália apelidada de “modernidade”? Em que se apoiaria a
identidade? As memórias não seriam suficientes para exercer essa função
de apego ao espaço local?
Estudando o campo interdisciplinar da memória social, Sá observa
que existem vários subtipos de memória. E, para ele, essa tipologia não é
estanque; ao contrário, memórias fundem-se aleatoriamente no cotidiano
das sociedades, podendo ser acionadas reciprocamente por usos informais
do passado. Entre os tipos indicados pelo autor, estão as memórias públicas
que, segundo o ele, é “onde proliferam os chamados ‘usos públicos da história’, onde são esgrimidos os argumentos opostos do ‘dever de memória’
e da ‘necessidade de esquecimento’, onde as memórias se encontram cada
vez mais submetidas à mediação dos meios de comunicação de massa.”
(SÁ, 2007, p. 294).
Entrecruzando-se os conceitos de identidade e memórias públicas,
ressalta-se que a relação entre trajetórias pessoais de vida e usos públicos
da memória é marcada por conflitos. Isso porque no ato de externar memórias e inscrevê-las no coletivo intercalam-se relações de identificação e
estranhamento. É na articulação das dimensões individual e pública, que
afinidades e dessemelhanças coexistem; que esgrimam interesses conflitivos
e se estabelecem disputas por significados, e, também, ocorre a subjugação
de partes mais vulneráveis às forças que se interpõem.
Assim, as identidades arrastadas pelas memórias dos “mais velhos”
encontram embates de forças poderosas, quando externadas, o que intimida
o resgate de um passado hoje aviltado por sua obsolescência. Por esta razão,
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251
entrevistados de mais idade depreciavam muito sutilmente seu próprio discurso, tentavam suavizar o estranhamento provocado pela “modernidade”,
e, no fim, assumiam sua inaptidão para a fruição do futuro: “(...) esse novo
comércio aí é para os jovens, porque eles, sim, têm espírito corajoso; eu,
como sou de outra época...” (Júlio, comerciário, 35 anos).
O TRABALHO NO ÂMBITO DA FLEXIBILIDADE
Numa clássica comparação, Marx afirma: “o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua
cabeça, antes de construí-lo em cera” (MARX, 1996, p. 298). Essa elaboração mental do trabalho, antes de executá-lo, segundo Hall (2006), nada
mais é do que uma “construção conceitual” do objeto que, em seguida, será
construído no mundo material. O autor, então, conclui que “o ‘econômico’
não poderia funcionar nem teria efeitos reais sem a ‘cultura’ ou fora dos
significados e dos discursos” (HALL, 2006, p. 25). Insistimos na ideia de
que a “arquitetura do capital” perpassa também subjetivações sincronizadas
à materialidade da estrutura econômica que, inevitavelmente, redunda em
representações que compõem o mundo de significados.
O trabalho, portanto, é também construção de valores e sistematização de sentidos, dialeticamente vinculados ao sistema capitalista. Assim,
a afirmação de que a flexibilidade do regime é também subjetivação fica
comprovada no discurso dos trabalhadores entrevistados que, na sua maioria,
demonstram ter incorporado a cartilha do modelo japonês3, que reverberou
nas formas de gestão pelo Brasil, principalmente depois dos anos 1990.
Nesta pesquisa, constatamos que os trabalhadores entrevistados não
esboçam uma consciência sistematizada dos efeitos da flexibilidade sobre
suas formas de pensar; porém, ao compararem seu cotidiano com o narrado
pelos “mais velhos”, põem-se diante da constatação de que algo dinamizou o
mundo do trabalho. Antônio – empregado do comércio, hoje com 31 anos de
idade – acompanhou um processo severo de mudanças na loja de eletrodomésticos onde trabalha desde os anos 1990. Segundo ele, “ou mudávamos, ou
falíamos”. Na sua fala, não é raro Antônio inserir-se no processo, tomando-o
como desafio próprio, fato que inspira o uso de expressões como: “éramos
felizes”, “participamos da construção dessa cidade”, “somos importantes
para o povo conquistense”, “queremos atender bem o cliente”. O emprego
do verbo na primeira pessoa do plural é fruto de um trabalho ideológico
extremamente articulado que gerou um engajamento dos empregados numa
espécie de defesa do ideal da empresa.
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252
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
O mesmo se observa entre os demais trabalhadores investigados,
principalmente aqueles de faixa etária abaixo dos 35 anos, que raramente
falam da empresa sem assumirem os desafios como pessoalmente seus.
Felipe, 19 anos, diz que “precisamos fazer nosso melhor para combater
nossos concorrentes”; André, 22 anos, entende que “se não tratarmos bem
nosso cliente, perdemos para a concorrência”; Márcia, 29 anos, enfatiza:
“ou melhoramos sempre ou perdemos espaço no comércio”.
“Nossos concorrentes”, “nosso cliente”, “nosso espaço no comércio”,
eis o que chamamos de engajamento. Simultaneamente, os trabalhadores
se inserem no ideário da empresa e tratam da sua vinculação sindical como
obrigatoriedade; assim, para eles, esta nada mais é do que uma precaução
inerente à formalidade do emprego. Ou seja, o sindicato, no discurso dos
trabalhadores, é visto como um elemento distante, dissociado do “nós” que
acompanha a retórica sobre a empresa. Observe-se que, ao se capturar a
subjetividade do trabalhador pelas táticas de persuasão dos treinamentos
articulados ao modelo japonês, criou-se uma afinidade dissimulada dos
trabalhadores com a empresa, ao passo que a vinculação sindical se tornou
mera formalidade.
Evidentemente, o modelo japonês está longe de definir o que é a
acumulação flexível; todavia, o seu ideário repercutiu em formas de treinamento ao redor do mundo, propondo um engajamento do coletivo de
trabalhadores na causa da empresa, o que ilustra o projeto da flexibilidade
para o capitalismo globalizado. Através do uso de contos, provérbios, ditos
populares e comparações com competições esportivas e com relações familiares harmônicas, procurava-se adentrar a subjetividade dos empregados e
instaurar o ideário da “família Toyota” (ALVES, 2011). Nesse ideário, ser
trabalhador passou a ser uma questão de honra e subjugação consentida com
a exploração, aqui concebida como parte natural das relações de trabalho;
nesse universo relacional, qualquer forma de rebeldia é constrangedora
(BARBOSA, 2011).
É nesse contexto que se torna possível mencionar o agravamento da
cisão entre o trabalhador e sua filiação sindical como fruto de uma longa
persuasão exercida pela acumulação flexível, que abocanhou o mundo de
significados desses sujeitos, agora enrijecidos segundo o nexo discursivo
da empresa. Isto não quer dizer, no entanto, que a situação gerada, nesse
processo, seja harmoniosa; afinal, a significação do emprego para essas
pessoas é marcada por conflitos constantes.
Ao mesmo tempo em que os empregados assumem os desafios da
empresa como seus, eles também exaurem suas forças pelo trabalho. Essa
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subsunção, portanto, é vista de modo paradoxal, entre identidade e fadiga,
pois, mesmo pondo-se dentro do ideário da empresa, a sensação de exploração é lançada à face dos sujeitos, à medida que sentem a fragilidade dos
vínculos trabalhistas. Sandra, 27 anos, reconhece: “se eu não cumprir metas
de comissões, não fico mais aqui”; André, 22 anos, assume: “tem de trabalhar
demais, senão fica mal falado e acaba tendo de sair”; segundo Maria, 25
anos, “a parte negativa do meu trabalho é essa: concorrência demais entre
os colegas, porque todos querem continuar na empresa, ninguém quer ser
demitido”.
Assim, torna-se difícil interpretar o sentimento ambivalente que
transparece na fala dos trabalhadores; isso porque o seu engajamento no
ideário da empresa não sufocou o sentimento de exclusão; e, no sentido
contrário, a sensação de subordinação não neutralizou a sensação de pertencimento coletivo à empresa. Por mais ambíguo que possa parecer, repulsa e
identidade coexistem na relação do trabalhador com seu espaço de trabalho.
Esses sentimentos não se alternam; eles coexistem, tornando o estudo que
propomos muito mais complexo e menos tangível do que se imaginava.
Além disso, a memória desses sujeitos não faz sobrepor os sentimentos dicotômicos que mencionamos no parágrafo anterior; ao contrário,
ela pereniza ambos: de um lado, os sujeitos reconhecem pertencer à classe
trabalhadora, sujeita à exploração e, de outro, negam tal pertencimento, à
medida que incorporam o ideal empreendedor do sistema e se dispõem a
“vestir a camisa da empresa4”. A memória autentica ambos os sentimentos,
pois traz à tona vivências do passado que evocam tanto a sensação de unidade
e luta coletiva da classe trabalhadora, como também movem o engajamento
aos ideais da empresa, fortemente implantados pelo modelo japonês, no
decorrer dos anos 1990.
CONSUMO: A SUBLIMAÇÃO DO DESEJO NO PERÍODO DE ÓCIO
Não por acaso, os antigos espaços da vida social existentes em Vitória
da Conquista nas décadas de 1980 e 1990 foram cuidadosamente substituídos
pela sofisticação dos shopping-centers, praças de alimentação ou restaurantes franqueados a redes internacionais. Os antigos bares, casas de shows e
praças foram sendo abolidos pela população que hoje prioriza os ambientes
climatizados, com oferta de internet wi-fi e os conceitos impregnados no
ambiente da loja, agora articulados a tendências globais5.
Também não é coincidência que o cinema de Vitória da Conquista,
seguindo uma convergência internacional, se localize num shopping-center,
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A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
espaço onde se criam fetiches e consomem-se “objetos de desejo”. Agora, a
cidade se equalizou ao conceito global de conduta capitalista e o consumo
se evidencia como sublimação da frustração que abate o trabalhador no seu
cotidiano de trabalho.
O ócio, portanto, é a oportunidade para sublimar os desejos recalcados
no decorrer da semana através da efetivação do consumo. Pelas palavras dos
entrevistados, essas ideias foram constatadas, pois, elencando os hábitos de
entretenimento nas horas vagas, o único costume que não toca consumo é
a prática de esportes de rua. No mais, toda rotina dos sujeitos no período
de ócio envolve: compras, internet, cinema, shopping ou TV. É necessário
compreender que todos esses hábitos de entretenimento são carregados de
apelos ao consumo, com tamanha precisão que atingem diretamente os desejos dos expectadores e preenchem facilmente a totalidade do tempo livre.
Nas falas, o consumo aparece como o ápice da existência do homem
moderno; é a mola propulsora do trabalho e a causa do “aburguesamento”
das concepções de muitos trabalhadores:
- Hoje, posso financiar meu carro; no passado, meus pais nunca puderam
ter um (André, 22 anos);
- Tem exploração, é verdade, mas tem muita gente preguiçosa que não
quer é trabalhar (Maria, 25 anos);
- Sim, a vida está difícil, mas só reclama quem não gosta de trabalhar.
Eu mesmo, já tenho minha independência, tenho minha moto, pago
faculdade e já sou alguém nessa vida (Mateus, 23 anos).
Não são raros os comentários nesse tom, em que o individualismo
impera e a “coisa” se sobrepõe ao humano. Nesse sentido, o tempo livre se
tornou o meio de absorção do ideário capitalista, que insiste em criar referências em uma classe externa ao sujeito, situada, inclusive, num patamar
inatingível, mas capaz de seduzir. Desse modo, o raciocínio do indivíduo
é: “Posso ser membro da classe trabalhadora e não me identificar com ela;
posso também ser subalternizado, mas demonstrar uma consciência absorta
diante desta situação”. Trata-se do que Löwy (2006) entende por “consciência
empírica”; ou seja, não aquela imputada ao sujeito apenas por seu suposto
pertencimento ao grupo, mas aquela que ele deliberou introjetar.
Os fragmentos transcritos em parágrafo anterior são extraídos dos
relatos de trabalhadores; entretanto, poderiam facilmente ser confundidos
com palavras do pequeno burguês local. Os meandros dessas narrativas
implicam uma sutil adesão à ótica burguesa, que responsabiliza os trabalhadores pela condição de exclusão e insinua o consumo como a causa da
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dissolução dos problemas vivenciados pela classe trabalhadora “de outrora”.
Logo, nessa ideia não haveria lugar para se pensar em mobilização sindical,
e a filiação à entidade de classe não passaria de mera “precaução” formal,
mediante eventual não cumprimento de direitos trabalhistas. Como já dissemos, nessa ótica, a adesão sindical expressaria mais uma formalidade do
que uma autêntica filiação.
CONCLUSÃO
O fenômeno da acumulação flexível possui hoje dimensões planetárias, aportando no cotidiano de pessoas comuns, nos mais variados âmbitos
sociais. Assim, se percebe que a forma como as pessoas representam esse
fenômeno perpassa experiências pessoais de vida, sendo impossível dissociar
representações da biografia peculiar a cada sujeito. Por isso, os comerciantes
– tragados pela concorrência predatória das franquias internacionais – lamentam as mudanças econômicas; ao passo que os comerciários mais jovens,
diante dos desafios postos, conformam-se com a superfície do fenômeno,
manifestando certo otimismo com as mudanças espaciais da cidade.
O século XXI parece ter erigido uma “nova” Vitória da Conquista,
agora muito mais austera para quem pretende adentrar a arena concorrencial
do comércio, mas também inspirando o eufórico deslumbre do crescimento
econômico calcado na exclusão social. A pujança econômica se imprimiu
imponentemente no espaço, conferindo um ar metropolitano à cidade e, ao
mesmo tempo, corroendo identidades locais e sabotando oportunidades de
permanência na cena comercial.
Desse modo, a análise de expressões do “novo” capitalismo flexível
carece de investigações que transcendam a fetichismo da pujança econômica.
A sensação de cosmopolitismo, erigida na configuração espacial urbana,
pode omitir a truculência desse sistema que escamoteia os resultados mais
nefastos do capitalismo, que vão desde a exclusão social, até a bancarrota
de microempresários expulsos das novas prerrogativas do consumo. Embora
saibamos que os discursos emitidos pelas pessoas muito se relacionam ao
lugar que elas ocupam, entendemos que existe um “trabalho ideológico”, na
dinâmica da estrutura da economia neoliberal, para capturar a subjetividade
dos sujeitos em seus distintos lócus, equalizando opiniões ao projeto burguês
de sociedade. Isto se processa mediante a introdução de signos e valores
arbitrários no cotidiano das pessoas, implantados através de um consentimento generalizado, realidade esta que permite compreender a sutileza e o
cinismo como rótulos das “novas” formas de exploração.
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NOTAS
A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
1 Não raro, os anos 1980 são interpretados como período de estagnação
econômica para o Brasil; todavia é interessante lembrar que a história
apresenta nuances e as experiências pessoais frequentemente distam de
generalizações. Na ótica dos ex-comerciantes entrevistados, por exemplo,
apesar da inflação galopante e de toda a crise, o comércio local ainda era
promissor para pequenos investidores.
2 Não queremos adentrar as discussões epistemológicas que envolvem o
termo “modernidade”, tratado por Harvey (1993). Utilizamos o vocábulo,
grafado entre aspas, para expressar o momento atual e toda a fetichização que envolve os discursos em torno das transformações na estrutura
econômica global.
3 O modelo japonês, também conhecido como Toyotismo, foi um sistema
de organização que surgiu como contraponto do fordismo. Tal modelo
não sintetiza todo o processo de acumulação flexível; porém, apenas o
ilustra pela sua arquitetura produtiva e ideológica totalmente sincronizada
à ideia de flexibilidade da economia.
4 Expressão utilizada por trabalhadores quando se reportam à conduta
esperada por um empregado no trabalho.
5 Como parte do trabalho de campo, também realizamos observações,
através de visitas a diversos ramos do comércio e muitos nichos de consumo
no município. Assim, constatamos nítida preocupação de lojistas em seguir
tendências globais, o que aparecia, por exemplo, no tipo de mercadoria
enfatizada na vitrine, na arrumação de prateleiras, no fardamento ou na
conduta dos trabalhadores.
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RONEY GUSMÃO DO CARMO e ANA ELIZABETH SANTOS ALVES
BIBLIOGRAFIA
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A ORGANICIDADE DA FLEXIBILIZAÇÃO
Palavras-chave:
acumulação flexível,
capitalismo, representações,
trabalho.
Resumo
Keywords
flexible accumulation,
capitalism, representations,
work.
Abstract
O texto se empenha em compreender a forma como o “novo”
capitalismo flexível adentrou o cotidiano das pessoas,
inspirando distintas interpretações do fenômeno. Embora
este ilustre um momento histórico do sistema capitalista
e seja marcado por reconversões na estrutura econômica,
seu alastramento tem ocorrido também através de artifícios
ideológicos, cuja arquitetura tem capturado a subjetividade
dos sujeitos e provocado um engajamento coletivo. Assim,
para falar de novas formas de resistências às correntes
estratégias de dominação, há que se reconhecer os novos
artifícios de perpetuação do capital.
This text strives to understand how the “new” flexible
capitalism entered the daily life of people, inspiring distinct
interpretations of this phenomenon. Although this illustrates
a historical moment of the capitalist system marked by conversions in the economic structure, its spread has occurred
also through ideological artifices, whose architecture has
stepped into the subjectivity of the subjects and caused a
collective engagement. Thus, to talk about new forms of
resistance to current strategies of domination, we must
recognize the new devices perpetuation of capital.
Recebido para publicação em agosto/2014. Aceito em março/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 243-258
Entrevista
Entre Jóias de Família, Trânsitos
internacionais e a Praia de Iracema:
uma instigante trajetória de pesquisa
Entrevistada: Adriana Piscitelli
Antropóloga, nascida em Buenos Aires, é professora do Departamento de Antropologia Social e do Doutorado em Ciências Sociais da Universidade Estadual
de Campinas-SP (UNICAMP). É pesquisadora – e uma das fundadoras – do
Núcleo de Estudos de Gênero (PAGU), no qual tem desenvolvido as funções de
coordenadora e coordenadora associada. É autora dos livros: Jóias de família –
gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais brasileiros (Editora
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ, 2006) e Trânsitos – brasileiras
nos mercados transnacionais do sexo (Editora da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro/Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, UERJ/
CLAM, 2013). Referência nos estudos de gênero e sexualidade, tem atuado como
professora visitante ou convidada em universidades da Europa, dos Estados Unidos
e de outros centros da América Latina. Integra o comitê editorial de importantes
revistas brasileiras e estrangeiras da área de Ciências Sociais. Desde a segunda
metade dos anos 1990, Adriana pesquisa prostituição e turismo sexual em Fortaleza.
Esta entrevista foi realizada por ocasião da vinda de Piscitelli a Fortaleza, em
março de 2013, como convidada, para proferir conferência intitulada “Emoções,
vítimas e direitos: tráfico internacional de pessoas envolvendo brasileiras”, no
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
Entrevistadores:
Antônio Cristian Saraiva Paiva
Doutor em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade. Coordenador do Núcleo de Pesquisa sobre Sexualidade, Gênero e Subjetividade (NUSS).
Jania Perla Diógenes de Aquino
Doutora em Antropologia pela Universidade de São Paulo (USP). Professora do
Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
Pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência (LEV).
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262
ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
Jania – Adriana, eu gostaria de começar abordando sua formação acadêmica, a graduação em ciências antropológicas, na Universidade de Buenos
Aires. Lá, o bacharelado dura seis anos não é? Você teve que fazer uma
etnografia para concluir o curso?
ADRIANA – Eu fiz a graduação em Antropologia, em um momento muito
particular. O tempo de graduação estabelecido na Universidade de Buenos
Aires são cinco anos. Só que, quando estava fazendo a graduação, teve
o golpe militar. A Universidade foi fechada durante um ano, então fiz
o curso em seis anos. E quando ela foi reaberta, o currículo tinha sido
modificado completamente. Tinham sido eliminadas várias disciplinas de
Antropologia Social – cursos envolvendo etnografias – para evitar que os
pesquisadores tivessem contato com o campo. Entre os antropólogos, havia
uma tendência muito forte de trabalhar com os setores populares e era isso
o que a ditadura estava querendo evitar, de maneira que essas matérias
foram substituídas por disciplinas da História: História Antiga e História
da América e da Argentina coloniais. Quando ingressei, esperava-se que
o curso fosse concluído com um trabalho de campo e uma monografia;
mas, com a ditadura, isso também foi eliminado. Minha monografia de
graduação foi sobre um tema muito distante: sobre socialização entre os
esquimós. Já que havia uma série de dificuldades para ir a campo com
qualquer tema, eu escolhi um que pelo menos tinha uma boa bibliografia. Em Buenos Aires, havia uma biblioteca extraordinária, centenária,
e que ainda existe, no Museu Etnográfico, e tinha trabalhos históricos
sobre esquimós. O que salvava a antropologia naquele momento eram
os grupos de pesquisa em instituições particulares, fora da Universidade;
professores que não tinham se exilado se concentravam nesses lugares.
Tive uma oportunidade extraordinária. Quando concluí a graduação,
retornou ao país uma antropóloga argentina que tinha se formado em Chicago: Esther Hermitte. Ela havia feito seu trabalho de campo no México
e era empiricista. Ela abriu um curso num centro de pesquisa privado
que ainda existe, o IDES (Instituto de Desenvolvimento Econômico e
Social). O IDES selecionava entre os jovens recém graduados, doze,
para ela formar em pesquisa etnográfica, com forte ênfase no trabalho
de campo e eu tive a sorte de ser uma das selecionadas. Ali, aprendi a
fazer trabalho de campo, já naquele momento. A Esther era dura; ela fez
com que cada um de nós escolhesse um recorte de campo, elaborasse um
projeto que era discutido coletivamente e naquele estilo bem argentino,
os projetos eram destruídos, para serem reconstruídos. Para preparar a
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primeira entrevista, você formulava os questionários, levava para o grupo
e o grupo avaliava. Depois, você tinha que gravar a entrevista e levava
a entrevista gravada para o grupo e eles iam analisando: “Erro!”. “Aí
você deveria ter ficado calado; aqui você deveria ter parado a pessoa e
aprofundado”. Foi uma escola absolutamente extraordinária.
Voltando ao seminário de Esther Hermitte, eu queria trabalhar com algo
que tivesse a ver com mulheres e o seminário era sobre Antropologia
Médica; então, resolvi trabalhar com processos de reprodução, incluindo gravidez e parto, que era uma maneira de articular a Antropologia
Médica com problemáticas vinculadas a mulheres. E foi ali que comecei
a me deparar com a dificuldade de encontrar bibliografia que tratasse
de mulheres, em 1979. Procurando bibliografia, comecei a descobrir
as antropólogas feministas, que naquele momento trabalhavam com a
antropologia da mulher. Foi a partir dessas inquietações de pesquisa que
descobri os grupos feministas que estavam se reorganizando na Argentina,
depois de todos os anos de ditadura, porque nem isso podia funcionar;
organizar um chá feminista naqueles anos era extremamente perigoso.
Mas aí já estávamos no início dos anos 80, o movimento feminista estava
se reorganizando e eu comecei a participar de um grupo fantástico que
era trotskista; a organização ainda existe e se chama ATEM.
Cristian – ATEM?
ADRIANA – ATEM, Asociación de Trabajo y Estudio de la Mujer. Foi
fabuloso por que elas tinham uma visão crítica sobre a sexualidade;
leituras em vários campos de saberes; e, como elas eram de uma tradição de diálogo que atravessava classes sociais, montavam grupos de
discussão, aqueles grupos de autoconsciência feminista, que juntavam
mulheres de classes populares com acadêmicas de classe média. Foi uma
época riquíssima. Os dois últimos anos que eu passei na Argentina, já
no final da ditadura, foram uma época de grande efervescência cultural,
de formação e atuação de grupos.
Naqueles últimos dois anos também me juntei com um grupo de colegas
para fazer uma revista de antropologia. Alugamos uma sala com nosso
próprio dinheiro... Todos trabalhávamos em qualquer coisa; não existiam
bolsas; equipamos a sala, chamamos as pessoas que poderiam ter interesse em publicar para darem palestras e organizarem os textos. O nosso
sonho era ver a revista se materializando. Não saiu um número sequer.
Olhando para trás, hoje, acho que não era para sair. Soube que há dois
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anos houve uma comemoração de aniversário da Sociedade Argentina de
Antropologia (SAA) e que, na ocasião, projetaram fotografias do nosso
grupo, aquela organização pela qual passou muita gente, considerando-o
como um dos aspectos da resistência à ditadura, de aglutinação em torno da antropologia. Enfim, o que não dava para fazer na Universidade,
tentávamos fazer fora.
Naquele período, na Argentina, os poucos espaços de trabalho estavam
tomados por pessoas extremamente complicadas ideológica e politicamente. Nós acabávamos trabalhando fora da universidade, em lugares
diversos: trabalhei um ano no Centro de Reeducação para Alcoólatras;
trabalhei com mulheres usuárias de drogas; sempre procurava trabalhar
com mulheres; e também trabalhei em um Centro Multidisciplinar de
Pesquisa, em um programa do município, na periferia, voltado para
ampliar a percepção da diversidade cultural entre professoras da escola
primária, dando-lhes elementos para interagir com crianças imigrantes
e indígenas.
Depois disso, quis sair para fazer uma pós-graduação em Antropologia,
que nesse momento não existia na Universidade de Buenos Aires. Na
época, eu compartilhava o desconforto de muitas pessoas com os saberes
do “primeiro mundo”, procurava uma antropologia latino-americana e
imaginava que os lugares para encontrá-la eram o Brasil e o México. Aí
vim primeiro para o Brasil.
Jania – Foi nesta viagem que você fez o primeiro contato com a pós-graduação da UNICAMP?
ADRIANA – Sim. Adorei essa viagem. Vim visitar os programas que me
indicaram como os melhores naquele momento: USP, UNICAMP e Museu
Nacional da UFRJ. Visitei os três. Na época, gostei mais da UNICAMP
porque era um momento em que lá havia grande número de pessoas de
fora, o que tornava a instituição muito acolhedora. Na minha turma do
mestrado, acho que tinha uma ou duas pessoas de Campinas; os demais
vinham de diferentes partes do país e do exterior. Era uma universidade
extremamente aberta; então, prestei seleção ali mesmo.
Cristian – Isso em que ano, Adriana?
ADRIANA – Em finais de 1983. Naquela época, o correio na Argentina
funcionava muito mal. Enviei as “cartas de recomendação” exigidas no
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processo seletivo, mas o resto do material se perdeu. Tive sorte porque na
visita que fiz à UNICAMP tinha conhecido a então chefe do Departamento,
professora Bela Bianco. E, naquele momento, havia na UNICAMP um
aluno de mestrado argentino, Néstor Perlongher. Ele estava viajando a
Buenos Aires e Bela recomendou que ele me procurasse urgentemente
para que eu enviasse o material que não tinha chegado. Em Buenos Aires,
Néstor se hospedava na casa de uma feminista histórica chamada Sara
Torres. Chegando lá, ele disse à Sara que tinha que procurar a Adriana
Piscitelli. Havia um imenso comício de protesto naquele dia. Então, a
Sara disse: “Ah, vamos ao comício hoje que ela vai estar lá”. Eu estava
lá, carregando um cartaz da ATEM e chega o Néstor e avisa que meus
papeis se perderam. Fiquei muito preocupada. Ele me deu o telefone da
Bela e saí correndo da Praça de Maio. Deixei meu cartaz com o Néstor,
que ficou carregando-o durante todo o comício. Foi naquele momento
inusitado que o conheci. Da Praça de Maio, telefonei para a Bela. Fiz
cópia de tudo e enviei a Campinas. E foi assim que cheguei à UNICAMP.
Jania – Na condição de estrangeira, recém-chegada, a pós-graduação da
UNICAMP correspondeu às suas expectativas?
ADRIANA – Sim. Cheguei à UNICAMP em um momento muito feliz, porque
tinha uma série de professores de primeiríssima linha e eles tinham contato
muito próximo com os alunos. Além disso, minha turma de mestrado foi
espetacular; ainda sou amiga de boa parte deles. Viajava com eles para
as suas cidades. Em um desses passeios, fui parar em Monte Santo, no
Sul de Minas, na casa de uma amiga cujos pais eram fazendeiros que
cultivavam café. Eu sentava no alpendre da casa e conversava muito
com eles e com as visitas, no final da tarde. Às vezes, não acreditava nas
histórias que contavam. Eram histórias de amores, casamentos, paixões,
heranças, terras... Aí resolvi fazer a minha dissertação de mestrado naquele lugar. E juntou tudo isso com outra coisa maravilhosa: de entrada
na UNICAMP, fui “adotada” por Mariza Corrêa. Ela olhou para mim
passando no corredor e disse: “você é a argentina; li seu trabalho e vou
orientar você”. Ela se encantava com o tema das famílias. Então, levei
adiante minha pesquisa lá em Minas, orientada por Mariza, que acompanhou toda a minha trajetória acadêmica.
Jania – Os grupos de pesquisas já existiam? Como funcionavam?
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ADRIANA – Na época, estavam se formando grupos de estudo sobre sexualidade, sobre família, sobre mulher, retomando inquietações presentes
na UNICAMP desde finais da década de 1970, quando houve um par
de famosas “Semanas da Mulher”. Falávamos em criar um centro de
pesquisa, que era uma ideia muito cara à Mariza.
Em 1988, ficamos sabendo que tinha um curso com Kate Young, uma
reconhecida antropóloga feminista na Inglaterra. Ela estava abrindo esse
curso para pessoas de diferentes partes do mundo, Women, Men, Gender
and Development. Suspendi meu mestrado e fui para a Inglaterra estudar
na University of Sussex, e foi uma experiência extraordinária porque
convivi com mulheres africanas, asiáticas e latino-americanas. Até esse
momento, nunca tinha me deparado com a ideia de não ser branca ou
de não ser branca de classe média, e, nesse sentido, essa experiência foi
muito rica. Nunca mais enxerguei o mundo e as coisas da mesma maneira.
Quando voltei, já foi possível articular mais professores para montar o
PAGU e Mariza organizou várias reuniões com esse fim. Delas participaram vários professores do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
(IFCH), incluindo Elisabeth Lobo – que era professora da USP, mas
que passava temporadas como professora convidada na UNICAMP – e
Néstor. Elisabeth foi uma professora importante na história do trabalho;
era vinculada ao Partido dos Trabalhadores (PT) e foi uma das precursoras nas reflexões sobre teoria de gênero mais contemporânea no Brasil.
Através dela, conhecemos o trabalho de Joan Scott, no final dos anos
80. Ela era extraordinária, mas morreu muito jovem, num acidente. Era
casada com Marco Aurélio Garcia, também professor da UNICAMP, e
meu amigo. Marco Aurélio e Néstor moravam em São Paulo e se hospedavam na minha casa, em Campinas, no período de aulas. Beth tinha
ido para os Estados Unidos e comprou uma bibliografia extraordinária,
super recente; naquela época, não havia internet e a gente pedia para
que ela achasse e trouxesse tudo o que fosse possível para xerocarmos
para o curso, que seria ministrado por ela. Quando ela morreu, Marco
Aurélio nos emprestou o material que Beth tinha reunido. E aí fizemos,
em formato de grupo de estudo, em 1991, o curso que ela tinha montado.
Essa é a base, em termos acadêmicos, da organização do PAGU. Um
par de anos depois, em 1993, o PAGU ganhou existência oficial, como
Núcleo de Pesquisa da UNICAMP.
Jania – Desde que foi fundado, o PAGU funciona no espaço físico da
UNICAMP?
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ADRIANA – Sim, no início funcionava numa sala que, hoje, é a biblioteca
do PAGU. O Néstor participou das várias discussões iniciais; mas, a
essa altura, quando a Beth morreu, ele já estava seriamente afetado pela
doença e já não viajava. Então, o Néstor se perdeu nesse caminho por
causa da doença e a gente começou com a biblioteca da Beth.
Cristian – Naquele momento inicial, ele integrava o PAGU?
ADRIANA – Sim, mas o PAGU não existia oficialmente, nem tinha esse
nome. Era como se fosse um grupo de reflexão. Participavam alguns
professores: Stella Bresciani, Suely Kofes, Mariza Corrêa, Ana Maria
Goldani, Leila Algranti, Margareth Rago... Nesse momento, eu estava na
transição para o doutorado e também era uma das participantes. Havia
outras alunas: Karla Bessa, que hoje é pesquisadora do PAGU, e Carla
Bassanessi, que saiu após terminar o doutorado, e hoje participa de uma
editora em São Paulo. Montamos o primeiro projeto de pesquisa, um
projeto super bonito, que se chamava Histórias e memórias femininas que
articulava todo mundo. Tinha pouco dinheiro, mas isso não era o mais
relevante; o importante era ter algo que nos articulasse. Nesse percurso,
foi possível institucionalizar o PAGU, em 1993; àquela altura, já tínhamos uma trajetória: alguns anos de trabalho de pesquisa e de reflexão e
também tínhamos os Cadernos PAGU. O primeiro número foi feito na
gráfica do IFCH. Cada uma das participantes entregou um texto. Já entre
o segundo e o terceiro números, Mariza, com experiência de participação
em publicações, organizou um comitê editorial. Uns quatro anos depois,
obtivemos o primeiro financiamento do CNPq; e o trabalho, aos poucos,
foi se tornando mais profissional e a revista foi crescendo. Lentamente
obtivemos vagas de pesquisador para o Núcleo. Fui contratada na primeira
vaga que foi disponibilizada.
A constituição do PAGU está associada a um “momento teórico” nos
estudos feministas, quando várias autoras começam a trabalhar, numa
linha pós-estruturalista, com a categoria gênero. Isso tornou possível que
o Néstor se articulasse conosco. Ele pesquisava prostituição homossexual
e, embora o referencial feminista “clássico” fosse importante para ele,
não era suficiente, porque ele estava colocando questões que na ocasião
não conseguíamos nomear, mas que se relacionavam com as novas
concepções de gênero.
As temáticas do PAGU foram muito diversificadas; até hoje são. No
entanto, parece que o que ficou mais visível foi a problemática da sexuRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286
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alidade. Mas no Núcleo há pessoas que vêm do Instituto de Geociências
que trabalham com gênero e política científica, gênero e a história da
ciência, com relações de trabalho, com produção cultural... Talvez a
questão da sexualidade tenha se tornado mais visível porque, durante
cinco anos, vários de nós, integrantes do PAGU, estivemos articulados
em um projeto temático1 no qual o trabalho com sexualidade era muito
forte. No eixo de sexualidade, tínhamos: Bibia (Maria Filomena Gregori),
Júlio Assis Simões e eu; e foram se juntando vários orientandos nossos
que hoje têm uma reconhecida trajetória na área: Larissa Pelúcio, como
pós-doutoranda; Regina Facchini, que hoje é pesquisadora no PAGU;
Camilo Albuquerque Brás, Isadora Lins França... O tema aglutinou
muita produção; ao redor dele organizamos vários seminários e, assim,
a questão da sexualidade ficou com maior destaque. Mas, até hoje, tem
uma diversificação grande nos trabalhos. Ainda sobre a questão da sexualidade, embora não fosse o foco, ela apareceu de maneira significativa
no mestrado, naquela pesquisa que comentei, que foi uma das pesquisas
que mais curti na vida. Foi muito bonita e inovadora na época.
Jania – Você poderia falar um pouco mais sobre essa pesquisa, o tema, as
questões que você levantou sobre os casamentos?
ADRIANA – Essa pesquisa tratou das articulações entre estratégias matrimoniais e noções de amor, em várias gerações de fazendeiros de café.
Articulava o trabalho com fontes históricas, abarcando um período de
cem anos, com material qualitativo colhido com três gerações das duas
principais famílias do lugar. Eram as duas principais famílias em termos
políticos e econômicos. A questão do casamento era relevante porque a
principal forma de manter o patrimônio, até certo momento, era basicamente através do casamento entre primos. Não se cogitava a possibilidade
de aliança, casando com o grupo oposto. Essa pesquisa era inovadora em
termos metodológicos, porque articulava o trabalho com fontes, com documentos, como registros de casamento, nascimentos, cartas de amor, etc;
e entrevistas em profundidade, procurando perceber como nas narrativas
se produziam articulações entre gênero e memória. E em termos teóricos,
porque num momento em que se estava difundindo o marco teórico de
Bourdieu, na segunda metade dos anos 80, minha questão era se o amor
era capaz de operar, desestabilizando o habitus. E fui me deparando com
questões de sexualidade – porque havia um corte quase dramático, entre
a geração mais jovem que, naquele momento, era próxima da minha e as
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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anteriores –, em termos de noções de amor e de sexualidade. Foi muito
gostoso trabalhar com tudo aquilo. As fazendas de café ainda estavam
em funcionamento nas mãos das famílias. Era possível visitar os locais
onde tinham funcionado as senzalas, onde os escravos trabalhavam com
o café. Havia uma fazenda projetada por arquitetos italianos que tinha
ainda o teto original pintado com anjinhos. Essa pesquisa acabou não
sendo publicada como tese, mas alguns capítulos foram publicados no
exterior e viraram referência nos estudos de gênero, história oral e memória. Isso foi reconfortante, porque foi o trabalho mais bonito que fiz.
Jania – E as herdeiras dos grupos empresariais – tema de sua tese de doutorado, Joias de família –, como é que estas personagens entram no seu
universo de pesquisa?
ADRIANA – Entraram por uma questão, sobretudo teórica; porque havia
várias discussões importantes sobre parentesco e herança que eu não
tinha contemplado no mestrado, e também em função da perspectiva
de gênero da qual eu estava me aproximando. Decidi, no doutorado,
enfrentar essas questões apoiando-me nas novas leituras, particularmente
as feministas, sobre gênero e parentesco. Fui às grandes famílias que
tinham sido relevantes em termos de constituição de grupos empresariais
brasileiros, em diferentes partes do país, mas com abrangência nacional.
Trabalhei com os Matarazzo, os Lundgren das [lojas] Pernambucanas,
as famílias vinculadas à Sadia e os Diniz, do grupo Pão de Açúcar. Eu
os escolhi porque cada um desses grupos tinha aberto ou fechado, de
maneiras radicalmente diferentes, as possibilidades de as herdeiras assumirem os negócios. Mas, tive que trabalhar muito com fontes escritas
porque o acesso às famílias naquele momento foi muito difícil. Algumas
pessoas às quais tive acesso me deram entrevistas, mas não consentiram
que as utilizasse em publicações. Utilizo-as na tese, mas não no livro,
respeitando o compromisso assumido.
O meu doutorado foi longo, porque nos anos que passei nele, gastei
a maior parte do tempo me ocupando da montagem do PAGU. Só fui
defender a tese quando estava acabando o prazo que me concedia o
contrato de pesquisadora – ainda estava no estágio probatório. Nesse
momento, já tinha interesse no turismo sexual em Fortaleza. Assim, antes
da concluir a versão final da tese, interrompi a escrita para escrever um
projeto que apresentei ao Edital da Fundação Carlos Chagas/McArthur
sobre masculinidades. E já obtive um financiamento para vir trabalhar
essa problemática em Fortaleza, em 1999.
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
Jania – Adriana, por que você se interessou por esta temática? Você já tinha
vindo aqui a Fortaleza antes?
Cristian – Isso; como é que esta temática se mostrou relevante para você?
ADRIANA – Frequento Fortaleza desde 1985; Fortaleza e o Ceará. Vinha
todos os anos, às vezes, mais de uma vez por ano. Fui acompanhando muitas
coisas: a violência do crescimento do processo turístico e a destruição
que o acompanhou. Sou daquela leva que foi para Jericoacoara quando
nesse lugar ainda não havia hotel, nem restaurante. E havia um lugar em
Fortaleza onde eu adorava ficar, que destruíram, arrancando um pedaço de
mim, que foi o Hotel Colonial. Ficava na rua Barão de Aracati; acho que
foi o segundo hotel de praia construído em Fortaleza, no início da década
de 1960. Tinha um jardim maravilhoso, planejado por Burle Marx, era
um hotel térreo, com apenas um andar de cima, quartos muito simples, e
a melhor piscina de Fortaleza: imensa, sem vento, sem sombra. Esse era
um momento de boom das adoções internacionais. Uma das exigências
para adotar era que os pais adotivos estrangeiros passassem um período
com a criança aqui. Muitos pais adotivos iam para o Hotel Colonial por
causa da piscina e do jardim. Eu ficava lá olhando aqueles casais brancos
com aquelas crianças morenas; aquilo me chamava muito a atenção e
me preocupava. Nesse momento, propus um projeto sobre adoção internacional que não foi aprovado. Nesse período, finais dos anos 80, eu ia
para a Beira-mar e começava a ver a problemática do turismo sexual. Via
estrangeiros com meninas muito novas, que entravam e saiam dos hotéis,
tranquilos. Fui acompanhando todos esses processos e, a partir das leituras
que vínhamos realizando no PAGU, estava alucinada com a questão das
interseccionalidades e também com as leituras feministas pós-coloniais
que analisavam a exploração e o “aproveitamento” do “terceiro mundo”
pelo “primeiro”. Assim, quando fiz meu parêntese na escrita da tese para
elaborar o projeto sobre turismo sexual, essa problemática para mim era
um recorte, como poderia ter sido, antes, adoção internacional. Não era a
questão da sexualidade que me chamava a atenção; era o fato de ser um
problema relevante sobre as relações entre “primeiro mundo” e “terceiro
mundo”, ou países do Norte e países do Sul, e que estava permeado pela
intersecção entre gênero e outras categorias de diferenciação. Este projeto
foi aprovado. Então, escrevi a conclusão de “Jóias de família” no Hotel
Colonial, já fazendo campo sobre turismo sexual. Lembro que, entre o
momento em que depositei a tese e a data da defesa, fiz uma viagem a
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Portugal, por um convênio de pesquisa, e já fiz trabalho de campo em
Portugal com homens interessados em vir ao Brasil em busca de sexo.
Depois, no verão, em 2000, vim e fiz a primeira fase de campo pesada,
que foi muito pesada. Acho que nesses primeiros três meses de 2000
saíram os insights que permearam o resto do trabalho que foi, sobretudo,
comprovação deles. Em 2000, era uma dinâmica muito gritante... Ali,
decidi, propositalmente, não me concentrar em crianças.
Cristian – E como foi o trabalho de campo?
ADRIANA – O trabalho de campo foi fascinante. Em primeiro lugar, tive
ótimos financiamentos, o que era importante porque era uma pesquisa
cara. Embora eu tivesse muito conhecimento sobre Fortaleza, amigos e
família na cidade, eu tinha que estar no meio daquelas dinâmicas para
fazer um bom trabalho de campo. Precisava alugar um flat ou pagar um
hotel em alta temporada, um assistente de pesquisa para poder me deslocar
com segurança nos lugares certos. Isso foi possível, graças à generosidade
da bolsa da Fundação Carlos Chagas/MacArthur e aos financiamentos
posteriores da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo). A irmã de uma amiga dirigiu a FEBEM-CE (Fundação do
Bem Estar do Menor, Ceará) aqui de Fortaleza, na Beira-mar. Através
dela e dos contatos que ela realizou, consegui entrar na “zona do Farol”,
no Serviluz, e em vários lugares cujo acesso teria sido muito difícil para
mim, sozinha, e sendo uma pessoa “de fora”. Dependendo do lugar, fui
escolhendo os acompanhantes, homens ou mulheres. Uma vez entrosada
nos circuitos, tive acompanhantes “gringos” para ir às boates. E isto era
fantástico, porque dependendo de com quem eu fosse, a aproximação
das pessoas era diferente. Se eu ia com um cearense, todo mundo nos
ignorava. Se ia com um holandês, algumas meninas vinham se oferecer
porque achavam que era um casal estrangeiro procurando serviços sexuais. Assim, as redes que montei me ajudaram no sentido de me oferecer
pessoas que pudessem me facilitar o trânsito por todos esses lugares.
Cristian – Isso era na Praia de Iracema?
ADRIANA – Isso foi na Praia de Iracema, na Praia do Futuro e um pouquinho no Farol; mas, depois, também nos bairros das meninas, mais
espalhados. Barra do Ceará, Messejana, e também praia de Iracema e
Beira-Mar. A Praia de Iracema era outro mundo na época desse trabalho
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
de campo; era um mundo no qual as interações que descrevo nos artigos
eram possíveis porque era um espaço inteiramente misturado. Tinha
muitas pessoas de classe média. Aquelas mulheres que vimos há dois
dias, com Jania, quando fomos ao Forró Mambo pareciam profissionais
mais velhas; muitas pareciam de fora daqui, pela “corporalidade”. Na
época em que pesquisei, as garotas procuravam não se diferenciar da
classe média local e criar distância dos estereótipos da prostituição,
favorecendo a ambiguidade das relações com estrangeiros. Nesses espaços, era raro que aparecessem vestidas de maneira hipersexualizada,
aquilo que correntemente se associa com a ideia de estar vestida para
“fazer programa”. Nos bares, locais abertos, estava cheio de estrangeiros,
estava cheio de garotas que tentavam ser chiques “como as moças da
Aldeota”. Teve um espaço pequeno que abriu em frente ao Pirata. Júlio
(proprietário do Pirata, tradicional casa de Forró da Praia de Iracema)
ficou enlouquecido. As moças atendiam com umas peças de roupa como
umas mini saias e sentavam no colo dos homens. Mas esse local durou
pouco porque, naquele momento, este tipo de espaço não fazia sucesso.
O que os turistas procuravam era “normalidade”. E boa parte das meninas
que se ofereciam eram “discretas”.
Cristian – Adriana, por que a decisão de não estudar as adolescentes e suas
relações com os turistas?
ADRIANA – O que me trouxe para Fortaleza foi, sobretudo, uma inquietação teórica: compreender a relação entre categorias de diferenciação
e a agência/agency que essas intersecções possibilitavam no marco de
relações desiguais. Se me centrasse em crianças e adolescentes, estaria
trabalhando com um crime, de exploração sexual e, provavelmente, com
situações de miséria. O turismo sexual envolvendo oferta de serviços
sexuais por mulheres maiores de 18 anos não é crime. E boa parte das
mulheres com as quais trabalhei não eram miseráveis, em termos locais.
Esse conjunto de aspectos facilitava perceber as margens de agência,
mesmo em situações de desigualdade. Algumas das meninas com as
quais trabalhei, de fato, eram adolescentes; mas elas só me disseram isso
depois de terem feito 18 anos. Eu as conheci com 16, 17, elas tinham
documentos falsos.
Jania – É interessante que esse seu trabalho de campo com as jovens de Fortaleza e as relações destas jovens com os turistas estrangeiros caminhou,
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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de modo bastante espontâneo, para a temática da migração internacional.
Você teve várias interlocutoras de campo que migraram para a Europa,
não foi? Qual a relação deste fenômeno com aqueles casos classificados
como “tráfico de pessoas”, por militantes dos direitos humanos e textos
jurídicos?
ADRIANA – A etnografia em Fortaleza me levou à Europa, acompanhando
a dinâmica do campo. Naquele período, entre 2000 e 2002, eu fazia pesquisa no Desigual, que era um bar da Praia de Iracema. Nele, havia uma
disputa interna entre as “garçonetes” (elas não se consideravam prostitutas,
porque não faziam programa) e as mulheres que as garçonetes chamavam
de “garotas de programa”. Entre estas, algumas se consideravam garotas
de programa e outras não. E todas elas disputavam os mesmos homens.
Aquelas mulheres jovens, praticamente todas, foram embora para a
Europa; a maior parte para Itália, porque os turistas as convidavam e as
levavam. Várias das minhas entrevistadas, as que ficaram mais próximas,
amigas, foram para a Itália. Pensei: “Bom, então vou atrás delas na Itália”. Eu não pensava em tráfico de pessoas, na época. Segui-as na Itália
e foi interessante porque na mesma turma de amigos italianos, uma parte
tinha casado com “garçonetes” e outra com as meninas que as garçonetes
consideravam “meninas de programa”. A interação era tensa, elas se
detestavam. Porque as “garçonetes” não deixavam de fazer distinções
entre elas; enquanto eles, os homens, não faziam diferença. Encontrei
com elas na Itália e demorei muito para pensar de modo positivo as
mudanças que tinham acontecido na vida delas. Vendo-as na Itália, me
decepcionei: aqui, eram autônomas, com projetos, sempre alegres... E
na Itália, eram donas de casa preocupadas com a limpeza da casa; algo
que aqui era irrelevante. Foram para a Itália e viraram algo assim como
“rainhas da domesticidade”. Demorei para entender o que aquilo queria
dizer. Mas elas estavam bem; estavam felizes com o upgrade que tinham
dado na vida. E nesse percurso, mulheres que, segundo elas, no primeiro
momento não estavam apaixonadas – mas sempre tiveram respeito e
consideração pelos companheiros – foram transformando as narrativas
sobre os seus sentimentos. A maioria delas casou porque queria permanecer na Itália, na Europa. Só que, com o tempo, conforme seus relatos,
foram se apaixonando.
Nesse percurso, era chamada para participar de seminários sobre “tráfico
de pessoas” e eu dizia: “mas eu não trabalho com tráfico de pessoas, eu
trabalhei com turismo sexual e migração”; e os organizadores diziam:
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
“Ah, tudo bem, serve igual”. Eu ia, falava das pesquisas e as perguntas
das plateias eram chocantes: “E essas mulheres traficadas?”. Eu respondia: “Não, eu não usei a palavra tráfico nenhuma vez; falei de migração
e falei de turismo sexual”. E a plateia continuava repetindo os mesmos
termos como se não tivesse ouvido o que falei. Mas no meu universo de
pesquisa, tirando os poucos casos em que as meninas eram adolescentes
– o que configurava exploração sexual de crianças e adolescentes – no
resto não havia crime nenhum; nem entre aquelas que faziam programa,
nem entre as que não faziam programa. Por que? Era uma atividade
autônoma. Aqui na Praia de Iracema, naquele momento, havia muito
espaço para a realização de programas sem esquema de agenciador;
as minhas entrevistadas meninas iam para os hotéis deles, brigavam
entre elas, mas não havia mediadores regulando as relações entre elas
e os estrangeiros. Além disso, o fato de os homens as convidarem para
ir para o exterior e enviarem as passagens, não configurava, em si, um
crime; e só provocava escândalo quando se tratava de jovens pobres.
Quando eu entrevistava meninas de classe média, universitárias, era o
mesmo mecanismo. Conheciam um “gringo” na Beira-mar, ele enviava
a passagem, ela ia para o país dele. Aquilo não era compreendido como
turismo sexual. Mas, quando acontecia com as meninas da periferia que
circulavam pela Praia de Iracema, sim, era turismo sexual. Analisando
situações as mais diversas, envolvendo mulheres locais e homens estrangeiros, havia situações de violência, sim. Cada categoria de mulheres
com as quais trabalhei, inclusive as mulheres de classe média, tinha
uma história de violência para contar: uma tentativa de assassinato, uma
situação de cárcere privado... Acontecimentos que não tinham relação
direta com tráfico de pessoas. Mas, percebendo a insistência em vincular
essas dinâmicas de contato e de migração com tráfico de pessoas, resolvi
considerar essa problemática.
Em 2004 e nos anos seguintes, o país tido como o que recebia a maior
quantidade de mulheres brasileiras em situação de tráfico de pessoas
era a Espanha. Iniciei uma pesquisa naquele país. No entanto, era difícil
considerar as viagens das minhas entrevistadas como “tráfico de pessoas”,
tendo como base a definição do Protocolo de Palermo2 a esse respeito. Já,
considerando o Código Penal brasileiro, a situação era outra. Aqui precisamos nos deter para pensar na diferença entre as duas disposições legais.
No Protocolo de Palermo, a noção de tráfico de pessoas está centrada no
uso de violência, fraude ou abuso de uma situação de vulnerabilidade, em
algum momento do processo de deslocamento, para submeter uma pessoa
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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a uma situação de exploração em trabalho forçado em qualquer atividade,
ou de exploração sexual. Essa ideia de violação do consentimento, presente no Protocolo de Palermo, como elemento que define o crime, não
está presente no Código Penal que, até hoje, tipifica o crime de tráfico
internacional de pessoas como facilitação para exercer a prostituição
no exterior ou para chegar do exterior a exercê-la no país. E a ideia de
facilitação pode ser ampla, incluindo diversos tipos de ajuda. Só que
as pessoas que se deslocam para exercer alguma atividade, dificilmente
o fazem sem ajuda, algum contato, relação ou vínculo. Nesse sentido,
todas as minhas entrevistadas poderiam ser consideradas traficadas,
segundo o Código Penal, pois todas tinham tido ajuda para se deslocar
e se instalar no exterior, para exercer trabalho sexual.
Observe-se que na formulação anterior do Código Penal, de 1940, o crime
era exclusivamente de tráfico internacional de mulheres. Na alteração
de 2005, o crime passou a ser tráfico de pessoas, não exclusivamente de
mulheres, e pode ser nacional ou internacional. Quando o crime passou
a ser pensado não em função de mulheres, mas de pessoas, e para o
território nacional, começou a atingir as travestis; estas, em um primeiro momento, ficaram atordoadas porque essas práticas (isso a Flávia
Teixeira3 mostra muito bem) de deslocamento para oferecer programas
faziam parte até dos circuitos de sociabilidade. Porém, de repente, elas
se tornavam vítimas e, muitas vezes, criminosas, quando pensadas como
“facilitadoras”. Maia Sprandel, José Miguel Olivar e eu organizamos um
workshop sobre tráfico de pessoas – integrando a programação do 35º
Encontro Anual da ANPOCS (Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais), em 2011 – que foi, nesse sentido, muito
interessante. Participou dessa atividade uma travesti de Uberlândia-MG.
Havíamos pedido que cada participante pensasse sobre as disposições
legais relativas ao tráfico de pessoas, refletindo sobre como tais disposições tinham contribuído, ou ao contrário, interferido negativamente no
trabalho de defesa dos direitos das pessoas que elas apoiavam. Havia
participantes vinculados à defesa dos direitos de migrantes; outras a
organizações de apoio às trabalhadoras do sexo. E Pâmela, uma das
participantes, representava as travestis. Começou narrando uma história.
Ela tinha uma “casa de travestis” na beira de um rio. As casas de travestis
abrigam várias travestis, pois com frequência elas têm dificuldades para
alugar moradias, assim como para se hospedar em hotéis. Pâmela criou
essa casa onde elas dormiam, comiam, por uma diária, acho que era
de R$ 30,00 (trinta reais), com pensão completa. Isto não tem relação
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
com o exercício da prostituição. Um dia ela acordou com um barulho e
encontrou a Polícia na porta, em helicóptero, em barco, uma verdadeira
força-tarefa. Ela se deu conta de que a sua casa tinha sido denunciada
e ela estava sendo procurada como traficante. E dizia à Polícia: “Olha,
as meninas me pagam a diária porque elas moram aqui, não é que eu
alugo ponto para elas ou me beneficio daquilo. Às vezes, elas viajam e
me telefonam e dizem: ‘Ô, Pâmela, eu estou no Maranhão, sem dinheiro
para viajar!’. Aí eu mando dinheiro para ela voltar”. Pronto. Foi tudo o
que eles queriam ouvir; isso pode ser classificado como aliciamento ou
facilitação. Foi aberto um processo contra ela. Mas, na verdade, a vida
na casa da Pâmela, pelo que conheço, é uma vida comunitária como em
muitas outras casas de travestis. É onde elas vivem, têm sua “família”,
festejam os seus aniversários...
Em 2009, novas alterações no Código Penal4 tornaram a tipificação
mais complicada: a prostituição passou a ser pensada como uma forma
de exploração sexual. No Protocolo de Palermo, a exploração não é
definida; mas, como nele, são parâmetros para a exploração em outras
atividades as noções de “trabalho forçado”, “escravidão” e “servidão”,
é possível supor que a exploração da prostituição remeta também à ideia
de prostituição forçada. Considerando que o Brasil ratificou o Protocolo
de Palermo, estamos diante de um problema, ou de uma confusão conceitual: um crime conceituado de maneiras diferentes.
De acordo com o Código Penal, praticamente todas as minhas entrevistadas teriam sido traficadas. Embora viajassem por sua vontade e como
parte de um projeto próprio, todas tiveram ajudas que poderiam ser lidas
como facilitação. Lendo suas trajetórias a partir do Protocolo de Palermo,
as viagens de algumas entrevistadas estavam claramente fora da noção
de tráfico de pessoas; e, em outros casos, havia situações “cinza” ou nebulosas, na medida em que, em algum momento, elas pagaram dívidas.
Embora não tenham tido seus passaportes retidos, nem estado em situação
de cárcere privado ou deixado algum percentual do que ganhavam nos
estabelecimentos nos quais trabalharam. Essa nebulosidade está presente
em trajetórias de muitas pessoas que migram para trabalhar na “indústria
do sexo”. O problema é que se costuma fazer um caminho fácil para chegar
à conclusão de que essas situações, necessariamente, remetem a casos de
tráfico de pessoas e violações de direitos humanos. Se levássemos esses
casos a sério, mergulhando fundo neles, surgiria uma série de perguntas
importantes; algumas delas iriam além dos problemas e ambiguidades
nas tipificações do crime. Como reforçar os direitos das pessoas em siRevista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286
ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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tuações de deslocamento? E das pessoas envolvidas no trabalho sexual?
Como as disposições legais se relacionam com condenações morais?
Se conseguíssemos reforçar direitos, provavelmente teríamos menos
violações de direitos, não apenas por parte de traficantes, mas também
em relação às ações dos estados nacionais, particularmente com pessoas
estrangeiras em situação migratória irregular.
Cristian – Adriana, na sua conferência aqui no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia você procurou tensionar a categoria de vítima, analisando
eventuais usos políticos feitos atualmente desta categoria; e, pelo que
entendi, você a mobilizou, para problematizar a ideia de vitimização,
pensando um pouco a categoria agência. Poderia falar um pouco, agora,
sobre como você retoma a “agência”? Porque esse conceito vem, principalmente, de uma sociologia inglesa... Giddens, por exemplo, trabalha
muito com essa noção de agência, não é?
ADRIANA – Na verdade, trabalho a ideia de agência numa perspectiva
antropológica. Há linhas sociológicas que pensam nas dinâmicas entre
agentes e estruturas, às vezes polarizando-as. Essas linhas trabalham
com noções de autonomia, racionalidade e escolha. Entre as leituras
antropológicas, gosto particularmente das formulações de Marilyn
Strathern. Ela pensa em agência como capacidade de agir. De acordo
com ela, alguém age tendo o outro em mente; mas, a capacidade de agir
não é associada ao livre arbítrio, nem à escolha. Os agentes operam no
âmbito de um repertório cultural que oferece certas possibilidades, no
marco das quais tem lugar a ação. Não se trata necessariamente de resistência. Na palestra, tentei explicar que muitas vezes eu, assim como
outros pesquisadores, tinha me oposto ao discurso englobante do tráfico
que afirma que as mulheres em situações de deslocamento para o trabalho sexual são vítimas, destacando a agência delas. No entanto, esse
caminho analítico, contrapondo as vozes das pessoas e mostrando suas
margens de agência, não tinha sido útil para interferir nos discursos sobre
tráfico de pessoas. E acho que não foi útil porque muito desse debate está
ancorado numa moral humanitária que requer a existência dessa noção
de vítima. Recorro aqui aos argumentos do Didier Fassin, para quem no
marco dessa moral se produz uma ideia de vítima para poder sustentar
certos discursos e ações. Essa moral humanitária, que é complexa, é
utilizada tanto pelas ONGs que defendem direitos humanos como para
justificar ações militares que violam direitos humanos com a justificativa
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
de resgatar, salvar, vítimas. A questão é que essa moral cria uma noção
de vítima que não tem ancoragem empírica. É uma vítima ideal que não
corresponde a pessoas concretas. Fassin mostra como, em uma série de
intervenções diversificadas, a vítima não aparece, a vítima não tem voz.
O que importa é a testemunha para dizer que aquela pessoa é vítima;
porque se a vítima falar, ela se afastará da noção de vítima ideal; ela terá
uma trajetória, uma biografia, que anulará o seu estatuto de vítima [ideal].
Nas discussões sobre tráfico de pessoas, um problema apontado recorrentemente é que há pouquíssimas pessoas que se apresentam como
vítimas desse crime. E se pensa que isso ocorre porque as pessoas sentem
medo dos traficantes, ou vergonha de se reconhecerem como tais. Tentei
realizar outro percurso, explorando os efeitos que o reconhecer-se como
“vítima de tráfico de pessoas” oferece às supostas vítimas. E, tomando
como referência minha pesquisa na Espanha, cheguei à conclusão de
que oferece muito pouco; mesmo que as pessoas se reconheçam como
vítimas, esse estatuto dificilmente era reconhecido pelo Estado espanhol.
Jania – É muito complexo porque a centralidade assumida pelo termo “vítima”
configura um tipo de captura desta categoria pelos sistemas classificatórios
e discursos do estadismo. Isso, em alguma medida, envolve agenciamentos. Por outro lado, a dificuldade em encontrar sustentação empírica para
a abstração “vítima” – mobilizada em ações que se apresentam como
“protetoras” e “salvadoras” de pessoas – serviria para elucidar os limites
deste constructo legal-normativo ante as especificidades e contradições
tão características dos trânsitos internacionais dos trabalhadores do sexo.
ADRIANA – A categoria e sua mobilização remetem a instâncias de agência; concordo. Agora, unir a noção de vítima [ideal] com a trajetória
da pessoa concreta, é difícil. A história de qualquer migrante que for
trabalhar na indústria do sexo, particularmente migrantes irregulares, e
sobretudo em países nos quais essa atividade não é despenalizada, mostrará diversos espaços de agência e também de transgressões. Diante de
histórias concretas com seus detalhes, com sua complexidade, os agentes
do Estado – e me refiro aqui particularmente ao Estado Espanhol e às
minhas entrevistadas brasileiras – desqualificam a pessoa como “vítima
do tráfico”, tornando-a migrante irregular que deve ser deportada.
Eu já tinha clareza de que as análises das discrepâncias entre a noção de
vítima e as trajetórias das pessoas concretas, que problematizam as noções
de tráfico e as políticas para enfrentá-las, não têm efeito para rebater os
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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discursos sobre “tráfico de pessoas”. E, ao explorar também as [escassas]
possibilidades que o uso da noção de vítima de tráfico de pessoas oferece,
ficou mais claro, para mim, que esses discursos são criados em planos
narrativos diferentes; esse é o problema. A noção de vítima produzida
no âmbito desses discursos está eivada de normatividades e se torna uma
questão de fé, que não é abalada por evidências empíricas.
Cristian – Adriana, você trabalha com uma categoria analítica muito interessante, a de interseccionalidade.
ADRIANA – Sim; trabalho com interseccionalidades. Para mim, foi uma
categoria fundamental para poder pensar os meus campos tanto aqui,
como na Europa; mas, é uma categoria que também está aberta à disputa.
Fiz um levantamento, há alguns anos, para ver como estava sendo usada
aqui no Brasil. E me deparei com a utilização dessa categoria em vários
programas de governo. Ela foi sendo absorvida no âmbito das políticas
públicas. Está presente, por exemplo, nos planos da Secretaria de política
para as mulheres, seguindo, sobretudo, a linha de Kimberley Crenshaw.
Essa autora é uma advogada, ativista. Ela é muito interessante, mas
também problemática. Fez uma formulação que ofereceu ferramentas
para os movimentos sociais: a imagem de uma mulher no cruzamento
entre avenidas, atravessado por diversos fluxos de trânsito. E cada um
desses fluxos representaria um eixo da subordinação a que a mulher está
submetida. Por exemplo: para pensar em uma mulher negra, não bastaria
pensar em uma sobreposição de determinações, e sim em entrecruzamentos entre raça, nacionalidade, casta, gênero, sexualidade. Numa leitura
antropológica, essa ideia de diferenças como necessariamente eixos de
subordinação é problemática. Uma diferenciação pode se tornar uma desigualdade, mas ela pode também abrir caminhos para afirmações positivas
e a história nos mostra isso; inclusive, com os movimentos de reafirmação
das identidades. Há uma série de autoras que também são feministas e
pós-coloniais, e que fazem uso diferente, positivo e criativo, da categoria
interseccionalidade. Avtar Brah e Anne Macklintock são autoras que, em
diferentes momentos, nós publicamos nos cadernos PAGU. Elas realizam
uma distinção entre diferença e desigualdade. Além disso, elas pensam
nas formas de operação do poder de uma maneira um pouco diferente,
considerando que as diferenciações podem limitar, sujeitar, mas também
possibilitar margens de ação e de recriação de categorias. Um processo de
“racialização” nem sempre será negativo, há “racializações” que podem
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
ser positivas. Avtar Brah mostra como categorias identitárias negativizadas
podem ser apropriadas pelos movimentos sociais, transformando-se em
algo positivo, mais igualitário. Anne Macklintock vai mostrando que na
articulação entre categorias, estas se constroem mutuamente em relações
altamente contraditórias. E nessas contradições se criam margens para
a ação. Tais formulações contribuíram muito para pensar no que vi aqui
no universo do “turismo sexual” em Fortaleza. De um lado, porque me
ajudavam a pensar como nesse contexto era impossível separar as noções
de gênero, raça e nacionalidade. De outro lado, contribuíram para que
compreendesse como as mulheres de Fortaleza que se envolviam no
turismo sexual tentavam – e, às vezes, conseguiam – dotar de um caráter positivo as intersecções entre diferenças que as afetavam. Não teria
sido possível explicar as dinâmicas entre essas mulheres e os visitantes
estrangeiros pensando puramente em termos de articulação entre eixos
de subordinação, à maneira de Creenshaw.
A questão agora é perguntar-se como a noção de interseccionalidades pode
contribuir para pensar as dinâmicas sociais e culturais no momento atual
do Brasil, em termos migratórios. Digo isto porque essas formulações
foram pensadas, em termos geopolíticos, tomando como referência um
“terceiro mundo” subalternizado de maneira estável. Agora o Brasil “é
BRICS” e países do Sul da Europa, como a Espanha estão sofrendo uma
severa crise econômica. Os espanhóis jovens estão migrando para diferentes lugares, inclusive para o Brasil, que é um dos principais destinos
para os jovens portugueses. Nesse contexto global, a “ideia sexualizada”
do Brasil não desapareceu, mas se integra num leque mais diversificado
de noções sobre o país. Por exemplo: a TV espanhola veiculou, em 2013,
uma reportagem sobre os cursos de inglês oferecidos por uma Associação
de trabalhadoras do sexo, para que as prostitutas de Belo Horizonte apreendessem inglês, para receber os clientes estrangeiros que viriam durante
a Copa do Mundo. Isso provocou um forte impacto, reiterando a relação
já existente entre mulheres brasileiras e prostituição. Paralelamente, as
matérias que tratam do Brasil em jornais e TVs se alteraram: tratam de
investimentos no Brasil, falam da redução das desigualdades ou sobre
o crescimento econômico. Este é o marco no qual se situa algo novo,
em termos de casamentos entre espanhóis e brasileiros(as). No passado,
eram brasileiras e brasileiros que compravam casamentos com espanhóis
para obterem visto para permanecer na Europa. Agora, são espanhóis
e espanholas que compram casamentos pela internet com brasileiras e
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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brasileiros para terem residência no Brasil. E o mais interessante é que há
também intercâmbios de casamentos, sem serem mediados por dinheiro,
entre espanholas – das elites da Catalunha que procuram vistos para terem
acesso a financiamentos do governo brasileiro – e músicos brasileiros
que desejam permanecer na Espanha. E esta ideia de troca remete a uma
certa equivalência. Então, a meu ver, uma questão em aberto é o alcance
da noção de interseccionalidades, para se pensar no deslocamento das
categorias de diferenciação que se articulam no âmbito da alteração dos
posicionamentos geopolíticos das nacionalidades em jogo.
Cristian – Adriana, você mencionou, por exemplo, Brah, Anne Macklintock e Strathern como estudiosas/pesquisadoras que publicaram ou que
passaram pelo PAGU. Queria que você falasse um pouco dessa rede de
pesquisa internacional, articulada em torno do PAGU; ou seja, se é uma
política do Núcleo convidar essas teóricas. Como é que você localiza
a participação do PAGU dentro dessa rede de debate? E mais uma perguntinha: O PAGU é a revista sonhada pela juventude?
ADRIANA – [risos] na minha interpretação, o PAGU virou algo que é
bem mais do que a revista dos sonhos da juventude. Isso tem a ver com
o próprio PAGU, mas também com um movimento maravilhoso que o
Brasil viveu. O PAGU está fazendo vinte anos de institucionalização; o
PAGU e a revista. E estamos planejando um seminário de celebração.
Não consigo me lembrar quantos anos tem o CLAM5... Em torno de dez
anos, aproximadamente. Talvez um pouquinho mais. O PAGU vinha
crescendo. Agora esse momento do nascimento do CLAM, quando recebe muito dinheiro para ativar os estudos sobre sexualidade no Brasil,
considero um marco extraordinário. Porque de repente uma série de
centros e núcleos de pesquisa no Brasil inteiro passam a intensificar suas
conexões, e as redes se ampliam. Fui me dando conta disso, indo para
seminários... Não só os pesquisadores, mas os alunos de pós foram se
articulando em redes e se conhecendo. Tal processo aconteceu fora do
eixo Rio-São Paulo, abrangendo praticamente o país inteiro. Isto tem
relação com a inclusão das temáticas vinculadas a gênero e sexualidade
nos grandes encontros (ABA, RAM, Fazendo Gênero, ANPOCS, etc.),
e também com os encontros menores e direcionados para os estudos
sobre sexualidade. Sobretudo, nesta primeira década do século XXI, se
abrem caminhos para muitas articulações que também afetaram o PAGU,
viabilizando uma intensa circulação de pessoas e de ideias.
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
Nesse contexto, os interesses de pesquisa das integrantes do PAGU e a
própria dinâmica de disseminação de conhecimento que se materializa
nos Cadernos estimularam as articulações com pesquisadores brasileiros
e internacionais. Para mim, a qualidade dos Cadernos PAGU tem relação
com nossa própria atividade de pesquisa e nossos esforços de criação de
redes de pesquisa; mas ela não pode ser separada do momento florescente
para os estudos sobre gênero e sexualidade no Brasil. Quando esse momento chegou, os Cadernos já eram uma publicação muito bem avaliada
em termos do sistema Qualis, mas a extensão do impacto da produção
do PAGU deve ser contextualizada. Em relação aos autores estrangeiros,
os temos convidado a publicar ou a nos visitar, em função dos interesses
e inquietações teóricas dos diferentes pesquisadores. Quando achamos
que algo é fundamental para nós e para nossos alunos, e relevante para o
campo de estudos, traduzimos e publicamos. Essas traduções têm valor,
sobretudo, em termos didáticos. Muito do que traduzimos é material
que já trabalhamos em sala de aula. Mariza traduziu muito para trabalhar
com os alunos. The Gender of the Gift, por exemplo, foi traduzido para
publicação por um tradutor extraordinário que é o André Villalobos, com
revisão técnica de Mariza, mas vários capítulos já haviam sido traduzidos,
por ela, para trabalhar em sala de aula porque se The Gender of the Gift
é difícil em português, em inglês era muito mais difícil.
Jania – Talvez seja interessante abrirmos um parêntese para você comentar
sobre como chegou a The Gender of the Gift. De certa forma, você apresenta o livro ao público brasileiro com aquela resenha em uma edição dos
Cadernos Pagu, de 1994. Você já se interessava pelos trabalhos anteriores
da Strathern ou pelas etnografias melanésias?
ADRIANA – Ouvi falar do The Gender of the Gift pela primeira vez, por uma
excelente professora da Universidade de Brasília (UnB), já aposentada,
antropóloga e feminista, Mireya Suárez. Ela fez comentários muito elogiosos sobre esse livro no final dos anos oitenta: “dá uma olhada porque
quem estuda gênero hoje vai ter que conhecer esse trabalho”. Encomendei
o livro e fui lendo, fui me maravilhando. Levei-o para o PAGU e o lemos
durante várias sessões do grupo de estudos. Era difícil de ler; primeiro
porque o pensamento e a escrita de Strathern são peculiares. Segundo,
porque ela dialoga com uma tradição de pensamento feminista que não
é tão difícil de apreender, mas a articula com uma tradição de estudos
da melanésia que não conhecíamos. Isso tornava a leitura mais difícil.
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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Mas, naquele momento, participava do grupo Suely Kofes, uma antropóloga brilhante, com um grande conhecimento teórico, e ajudou muito
a “destrinchar” o livro. A resenha saiu das discussões desse grupo, que
continuaram depois com Mariza. Ela a convidou para vir à Unicamp e
fez algo maravilhoso: organizou um curso exclusivamente sobre o livro.
Mariza foi traduzindo cada capítulo, que trabalhou com um excelente
grupo de alunos, entre eles, Daniel Simião, hoje professor na UnB e Heloísa Buarque, hoje professora na USP. Há uma bela fotografia da Mariza
com essa turma de alunos. Nesse contexto, depois da visita, foi acertada
a tradução do livro. Isto que contei é importante para exemplificar algo
que considero importante, que é articular nosso debate com discussões
que estão sendo levantadas em âmbito internacional. Há aí um contexto
que não pode ser ignorado se queremos que nosso trabalho tenha impacto.
Cristian – Você está falando da internacionalização, tanto do ponto de
vista da avaliação da ciência e tecnologia no País, como da produção
intelectual, não é?
ADRIANA – Sim. Tudo isso; mas estou falando da importância de difundir
o que fazemos aqui. Às vezes, fico chocada com a dificuldade de muitos
pesquisadores em articular seus trabalhos com o debate de seu tema de
pesquisa em um contexto mais amplo. Tenho falado muito sobre antropologia, porque sou antropóloga e é a disciplina que mais acompanho.
A última reunião da ABA, que fizemos em São Paulo sob a gestão de
Bela Bianco, foi um dos eventos mais extraordinários que vi na minha
vida. Era assim: a PUC lotada, mesa redonda atrás de mesa redonda, uma
melhor do que a outra, pessoas de primeiríssimo nível. Era impossível
acompanhar tudo. E é uma produção que dificilmente será lida no exterior, principalmente porque ela não é publicada também em inglês. E se
isso não é feito, não há reconhecimento no exterior. Assim, a meu ver,
há dois aspectos importantes a considerar. Um, é disseminar a excelente
produção brasileira fora. E isso é facilitado na articulação em redes de
pesquisa. O outro ponto é fazer com que a produção aqui seja menos
voltada para dentro e procurar discutir mais em uma perspectiva internacional. No âmbito da produção brasileira – talvez por ser tão grande, tão
rica, tão peculiar –, às vezes, as pessoas tendem a priorizar a produção
nacional. Valorizar essa produção é importante; mas, muitas vezes, não
há um esforço equivalente de considerar o que está sendo discutido no
âmbito internacional. Já me deparei com alunos que fizeram trabalhos
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
extraordinários e que enviam seus resumos para congresso no exterior
e não são aceitos porque as questões colocadas estão dialogando apenas
com o debate interno, e pouco ou nada com o debate internacional. Então
é necessário fazer uma espécie de duplo esforço.
Jania – Essa demanda por internacionalização está sendo colocada, inclusive, com certa coercitividade, pelas nossas instituições de avaliação das
pós-graduações e de fomento das pesquisas.
ADRIANA – Embora tenha falado em favor da internacionalização das
questões colocadas em nossos trabalhos, não posso dizer que estou de
acordo com os métodos de avaliação da produção entre nós. Às vezes,
a avaliação é baseada em indicadores quantitativos, que nem sempre
são muito significativos. A meu ver, o importante não é quantos textos
você tenha publicado no ano, mas quanta novidade há ali. Seria muito
melhor uma avaliação qualitativa, de acordo com a qual se valorizasse,
por exemplo, o fato de uma pessoa produzir um único texto no ano, desde
que fosse significativo para o conhecimento no campo de estudos. As
avaliações atuais não possibilitam isso. A internacionalização a que me
refiro diz respeito ao impacto na produção do conhecimento, à articulação
de trabalhos fantásticos que são feitos no Brasil com questões que estão
sendo debatidas no exterior. Isso requer diálogo e esforço. Nosso empenho em trazer convidados internacionais ao PAGU e em publicá-los nos
Cadernos tem relação com isso. Não considero que tenhamos tido muito
sucesso na difusão de nossa produção no exterior. Essa disseminação é
um movimento mais vagaroso que tem relações, talvez, nem tanto com
uma subalternização de nossa produção, mas com a combinação entre
dificuldades para escrever em inglês e essa tendência a não considerar
de maneira suficiente as discussões internacionais. Acredito tratar-se de
algo que possa ser revertido a longo prazo. Tenho esperança de que os
nossos trabalhos venham a marcar presença no mapa global da maneira
que merecem.
Cristian – O que o PAGU projeta para os próximos vinte anos? Será possível falar de uma transição ou mudança geracional no Núcleo? Como
você pensa isso?
ADRIANA – Se pensamos não apenas nos pesquisadores contratados e
associados, mas na rede fantástica que temos de pós-doutorandos e
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ANTÔNIO CRISTIAN e JANIA PERLA entrevistam ADRIANA PISCITELLI
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doutorandos, o PAGU tem muito fôlego. Temos pessoas extraordinárias,
criativas; vejo os trabalhos dos alunos e dos “pós-docs”, os encontros que
eles organizam, os debates são muito ricos. Mas, o futuro do PAGU vai
depender muito – tal como ocorre em outros centros de outras universidades brasileiras – da possibilidade de efetivação de novas contratações,
possibilitando a fixação de alguns desses jovens talentos, de maneira
que possamos ampliar, com eles, as articulações com redes nacionais e
internacionais de pesquisa.
Cristian – Em relação às novas gerações, que temas você acha que ganharão
mais destaque nas pesquisas do PAGU?
ADRIANA – Entre os jovens, há muita pesquisa sobre sexualidade, sobre
diversidade sexual e também há muito interesse nas articulações entre
raça, gênero, geração, classe social e sexualidade, nos mais diversos
recortes de pesquisa, como em migrações trasnacionais e em áreas de
fronteira. Agora começam a despontar outros interesses como a análise
dos novos feminismos, por exemplo. Este é um tema significativo, se
pensamos nas novas formas de articulação presentes nos últimos dois ou
três anos, tanto no Brasil como no exterior, nas dinâmicas de mobilização
política, na “marcha das vadias” e em outras ações que são mobilizadas
via internet. As dinâmicas do cuidado, em escala transnacional, também
têm chamado muito a atenção. A meu ver, essas são as linhas que se
delineiam para o futuro. Há também interesse em outros temas, relacionados à questão dos sentimentos, dos afetos, em diferentes contextos e
envolvendo diversas classes sociais e a articulação das emoções com as
economias sexuais. São abordagens muito interessantes; considerando,
sobretudo que, se olhamos para a produção sobre sexualidade no Brasil, nesses dez ou quinze anos, vemos que ela teve um foco intenso em
práticas sexuais, e as dinâmicas do amor articuladas com sexualidade e
classe social quase não foram analisadas. Temos alguns alunos se voltando para essas temáticas. Enfim, esse é o panorama que vislumbro e
espero que haja mais concursos, e mais vagas para que o PAGU possa
continuar expandindo seus trabalhos.
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ENTRE JÓIAS DE FAMÍLIA, TRÂNSITOS INTERNACIONAIS E A PRAIA DE IRACEMA
Constitui uma modalidade de projeto de pesquisa financiada
NOTAS 1pela
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP), envolvendo o projeto coletivo de um grupo de pesquisa
e também pesquisas individuais dos seus integrantes, articuladas
entre si e ao projeto geral.
2 Conjunto de leis elaboradas em 2004, em Palermo, adicionais
às regulamentações decorrentes da Convenção das Nações Unidas
contra a criminalidade transnacional. Fonte: http://www.compromissoeatitude.org.br/protocolo-de-palermo/
3 Flávia Teixeira do Bonsucesso é autora da tese “Vidas que
desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro
no gênero e na sexualidade”, defendida em 2009, no Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNICAMP, orientada
por Adriana Piscitelli.
4 Alterações pela L-01215-2009, Parte Especial, Título VI, Dos
Crimes contra a Liberdade Sexual.
5 Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos.
“Criado em 2002, o Centro é um projeto do Programa de estudos e
pesquisas em gênero, sexualidade e saúde, do Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, instituição
que há muitos anos desenvolve pesquisas em sexualidade, gênero
e saúde.
A iniciativa integra um projeto internacional que vincula
centros congêneres implantados na Ásia, África e EUA”. Fonte:
http://www.clam.org.br.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 261-286
Resenhas
O PT e a lenda do Boto cor de rosa
De: Francisco Uribam Xavier de Holanda
O PT e a lenda do Boto cor de rosa.
Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2013.
Por: André Haguette
Ph.D. Professor Titular em sociologia
Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal do Ceará
Este livro, O PT e a lenda do Boto cor de rosa, de
Francisco Uribam Xavier de Holanda, se junta a vários outros
escritos por acadêmicos nos últimos anos sobre o Partido dos
Trabalhadores (PT), o governo Lula e o que veio a ser conceituado como lulismo. Citemos quatro, a título de exemplos: Os
sentidos do Lulismo. Reforma gradual e pacto conservador, de
André Singer, Companhia das Letras, 2012; Lulismo, carisma
Pop e cultura anticrítica, de Tales Ab´Saber, Hedra, 2011;
Lulismo: da era dos movimentos sociais à ascensão da nova
classe média brasileira, de Rudá Ricci, Contraponto, 2010; A
modernização sem o moderno: análises de conjuntura na era
Lula, de Luiz Werneck Vianna, Contraponto, 2011.
Ao explicar o título um tanto esotérico do livro, o autor
apresenta o objetivo do ensaio:
Ao se construir numa alternativa neodesenvolvimentista
ou social-democrata mitigada, o PT tornou-se um partido
à oposição. Essa metamorfose me fez resgatar uma crença
do povo ribeirinho do Rio Amazonas, a lenda do boto cor
de rosa. Conta a lenda... que quando uma moça aparece
grávida sem ter contraído matrimônio e sem querer revelar quem é o pai, ela conta para a família que estava à
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293
290
RESENHA
beira do rio e que fora seduzida pelo boto cor de rosa, que lhe apareceu
na forma de um belo rapaz. O PT, em sua trajetória, é uma moça que
nasceu carregando uma estrela vermelha, símbolo do compromisso socialista com os explorados pelo capitalismo, mas que ao decidir entrar a
qualquer custo no rio do poder – Palácio do Planalto – ficou grávida de
trigêmeos: uma aliança conservadora com os setores mais atrasados da
política brasileira, o mensalão e uma gestão social-democrata. Bem, mas
se o PT não assume que mudou, fica se escondendo no “me engana que
eu gosto”, de quem pode ser a culpa pela sua metamorfose? Só pode ser
do boto cor de rosa, ou seja, da sedução do poder capitalista que aparece
na forma de dinheiro, cargo, distinção e poder (p. 15).
Assim, o autor quer discutir a metamorfose do PT e do Lula, uma
vez no poder; Lula, aliás, que aceitou se autocaracterizar de “metamorfose
ambulante”. Francisco Uribam confessa: “há tempos venho me propondo a
escrever os sentimentos e percepções que tenho sobre o significado moral
e político da trajetória do Partido dos Trabalhadores”.
Como tantos outros companheiros, Francisco Uribam se desfiliou do PT
em 1998, passando de militante convicto e ativo a simpatizante e, finalmente, “a ser um crítico”. Na qualidade de pesquisador, o autor não nega feitos
importantes do PT no poder, para os trabalhadores, como o programa Bolsa
Família, mas pretende “avaliar se todos esses feitos se portam dentro de uma
lógica de construção do Socialismo. Trata-se de avaliar que tipo de projeto
de sociedade o PT está construindo”. (p.10). Para executar essa avaliação,
o livro se divide em uma Introdução, quatro capítulos e Conclusões. Em
quarenta e uma páginas do primeiro capítulo, “Da nascente ao poder”, o autor
sobrevoa os embates marcantes da vida política brasileira após a fundação do
PT e seu Manifesto de Fundação (candidatura derrotada, ao governo de São
Paulo; campanha ‘Diretas já’; Assembleia Nacional Constituinte; eleições
para prefeitos e a saga pelo poder, as eleições para a Presidência da República, de 1989, 1994, 1998. 2002). O autor conclui o capítulo recorrendo a
Emir Sader: “... A apologia do ‘carisma’ de Lula (...) favoreceu a postura
‘bonapartista’ de Lula, individualizando a campanha, a vitória e o governo.
Seus discursos cada vez mais acentuaram o tom individual da empreitada,
dispensando o sujeito coletivo do PT e dos trabalhadores” (p. 57).
No segundo capítulo, “Do Lula paz e amor à perplexidade”, Francisco
Uribam – partindo do documento do Diretório Nacional do PT, de 1999, de
três “resoluções sobre o PT e a crise” – mostra que instalado no governo,
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293
ANDRÉ HAGUETTE
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Lula, contrariando as orientações do documento, dá continuidade a políticas
de FHC, as quais, na oposição, criticava. Já o “mensalão” põe em xeque o
capital ético do PT que tanto ostentou para chegar ao poder. O autor ainda
desmonta quatro falácias criadas pelo PT para se proteger contra as críticas
dos oposicionistas, afirmando que elas “não suportam um ligeiro confronto
com os fatos produzidos por suas práticas no comando administrativo da
coisa pública” (p. 91). São elas: “o governo não rouba e não deixa roubar”;
“tem gente incomodada com o sucesso do governo Lula”; “existe uma onda
de conspiração contra o governo com o intuito de antecipar o debate eleitoral
de 2006”; “o governo Lula é um governo republicano”.
No terceiro capítulo, “Deixa o homem trabalhar”, o autor argumenta
que o governo Lula abandonou o histórico caminho petista dos princípios
socialistas e do compromisso com a formação de uma nova cultura política,
mesmo reconhecendo o sucesso que o governo Lula obteve com o programa
Bolsa Família, complementado por um conjunto de políticas sociais compensatórias. O autor afirma que “a política econômica e social do PT não
faz é colocar em risco a dinâmica na qual os ricos (banqueiros, construtores,
ruralistas, mineradores e operadores de empresas de serviço) ficam cada vez
mais ricos”. No poder, dando prova de cordialidade, “petistas ganharam a
confiança dos capitalistas e querem ser como eles: ricos, corruptos e poderosos” (p. 113). Na realidade o que o autor reprocha em Lula é o fato de
aproveitar-se da enorme popularidade atingida, e de não ter adotado ações
factíveis, tais como: uma reforma agrária profunda; a taxação de impostos
para as grandes fortunas; a moralização e a eficiência da coisa pública; uma
radicalização da democracia com a criação de esferas públicas que deliberassem sobre parte das políticas públicas; a implementação do orçamento
participativo no âmbito da federação; uma ampla política que valorizasse a
diversidade cultural e regional; uma ação que limitasse os lucros dos bancos
para investir o excedente em políticas públicas de saúde e educação; uma
política que limitasse a transferência de lucros das empresas internacionais
para o exterior. Ao deixar de aplicar tais políticas socialistas, o governo Lula
tomou o rumo de uma socialdemocracia. Pior, neoliberal. Escreve: “Minha
tese sobre o PT é a de que alguns setores, que juntamente com Lula, controlam o partido, assumiram não fazer rupturas com o neoliberalismo para
se credenciar junto ao sistema financeiro internacional como os melhores
condutores da expansão do capital...” (p. 116). Uma vez no poder, diante
de uma conjuntura internacional favorável, “o PT passou a incorporar de
forma mitigada ou possível o projeto social-democrata abandonado pelos
tucanos” (idem).
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293
292
RESENHA
Vale destacar que pela primeira vez o autor usa, nesse capítulo, o
conceito “lulismo” (p. 106) sem, todavia, dar-lhe a mesma importância que
outros comentadores do mesmo fenômeno – a metamorfose do PT sob a
liderança de Lula – lhe atribuíram. Os dois governos de Lula teriam abandonado suas teses históricas e características para submeter-se a um novo
modo de fazer política e governar, que seria o lulismo.
O quarto capítulo, “A crise no Senado: o PT assume a cultura patrimonial”, descreve e discute mais uma desistência dos petistas no poder.
Segundo o autor, em vez de romper categoricamente, como anunciavam
os sucessivos documentos e programas do partido dos trabalhadores e pregavam seus militantes, os petistas no poder vão dar continuidade ao velho
patrimonialismo, promovendo ações vergonhosas como o “mensalão”, a
“balcanização” dos cargos públicos e a espetacularização das campanhas
políticas. Lula se tornara cúmplice de Sarney e de muitos outros políticos
da velha guarda patrimonialista, habitués da política do “toma lá, dá cá”
e da “privatização de privilégios” (p. 144). Melancolicamente, em apoio
à sua tese, o autor cita Max Weber duas vezes, sem explicitar as devidas
referências: “A política sem cultura e sensibilidade moral seria pouco mais
do que cobiça privada realizando-se graças aos meios políticos”; e ainda: “o
domínio de um grande homem nem sempre é um meio de educação política” (145). Em suma, diante da camisa-de-força que o presidencialismo de
coalizão representa, o governo Lula não deu “indicação de nenhuma ação
ou esforço deliberado de inibição das práticas patrimoniais, pelo contrário
encontramos todo um esforço para sua expansão, esforço que ficou patente
nas disputas internas do PT por cargos todas as vezes que o partido ganhava
uma fatia do poder” (p. 147).
Como dito no início desta resenha, neste livro Francisco Uribam se
junta a outros autores que querem entender o PT e Lula no governo, no poder.
Muitos, como este, descrevem o afastamento do PT-poder em relação às
teses históricas e definidoras do PT-oposição. Daí ter surgido o conceito de
lulismo alusivo a uma atuação política diferenciada do PT sob a liderança de
Lula, criando uma maneira própria de fazer política e de desfrutar do poder.
Creio que a categoria lulismo se manterá por um bom tempo na ciência política brasileira, ao lado de outras como populismo, caudilhismo, etc.
Se, como mencionei anteriormente, Francisco Uribam não faz um
grande uso do conceito, ele, no entanto, descreve com acuidade as opções,
os comportamentos e as políticas de Lula e do PT no poder que os afastaram
da opção socialista e os levaram a enveredar por uma “socialdemocracia
mitigada”. As análises são baseadas em fatos e ajudam a ter uma atitude
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 289-293
ANDRÉ HAGUETTE
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crítica – mas não em todo negativa – do período Lula no governo. O autor
poderia ter explicitado melhor as diferenças conceituais e políticas que
julga existir entre socialismo e socialdemocracia, já que se sabe que esta
última foi, historicamente, obra de uma conjunção de partidos, governos e
sindicatos socialistas. É evidentemente possível entender e justificar o pouco
caso que o autor manifesta pela social democracia brasileira, se é que ela
existe de fato. Mas a social democracia europeia e, especificamente, a dos
países escandinavos alcançaram para os trabalhadores e as classes médias
bem-feitos econômicos, políticos, sociais, culturais, ecológicos e de direitos
humanos que podem ser chamados de socialistas.
O livro de Francisco Uribam, como mencionado no início desta
resenha, se harmoniza muito bem com livros conduzidos academicamente,
avaliando e discutindo a trajetória do PT e de seus governos federais sob
a liderança de Lula. A leitura é estimulante e provocativa, apresentada em
uma linguagem descomplicada, argumentativa e baseada em dados e fatos,
como deve ser um trabalho de pesquisador. O livro, todavia, contém muitos
erros ortográficos que uma revisão competente teria facilmente eliminado.
Recebido para publicação em outubro/2014. Aceita em março/2015.
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Qual viagem? Enlaces do gozo no
subjetivo e no social
De: Alexandre Porto Vidal
Sérgio Y vai à América
São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Por: Andréa Borges Leão
Doutora. Professora do Departamento de Ciências Sociais
Universidade Federal do Ceará.
e
Alef de Oliveira Lima
Estudante do curso de graduação em Ciências Sociais.
Bolsista do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência
(PIBID/Sociologia).
Universidade Federal do Ceará.
A análise sociológica da obra literária se apresenta permeada por uma série de demandas. Algumas delas se referem
aos métodos e possibilidades que se destinam a tratar a literatura
como espaço de formalização da experiência social. Com efeito,
esta perspectiva circunscreve a cena literária acontextualidades
históricas e/ou aos percursos de cada autor. Tudo fica mais complexo quando a obra literária vai além daquilo a que ela mesma
se propõe. Ou seja, além de suas dimensões contextualizadas.
A obra literária consegue estabelecer outras conexões com as
realidades sociais ou psíquicas – quer por meio da inscrição
significativa da narrativa dentro da contemporaneidade, quer
pela renovação de sua tematização frente ao seu contexto de
produção/circulação.
A respeito desse conjunto de considerações, trazemos
a discussão sobre o livro de Alexandre Vidal Porto, Sérgio Y
vai à América (2014). Nele, o autor nos leva a indagar o valor
da escuta psicanalítica e as ressonâncias intersubjetivas que
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299
296
RESENHA
se apresentam na relação analista-analisado. As novidades das colocações
literárias de Vidal Porto consistem em trazer ao texto um deslocamento de
posições entre aquele que “classicamente” definiríamos como protagonista
e o seu Outro, que tratamos como “protagonizado” ou o sujeito que é descrito. A leitura nos revela que histórias são contadas dentro de histórias.
Quando desenhamos trajetórias sobre os percursos do Outro, suas jornadas
são, em certa medida, também nossas jornadas. E ainda mais, o conjunto
dessa tematização nos mostra em que medida a psicanálise resulta em um
intrincado processo de impactos e identificações.
Alexandre Vidal Porto é diplomata, nasceu em São Paulo, no ano
de 1965. É mestre em Direito pela Universidade de Harvard, e atualmente
possui uma coluna no jornal Folha de São Paulo.
Em resumo, o livro trata da narrativa de Armando, um renomado
psicanalista brasileiro, de meia-idade, que tem o hábito de investigar seus
pacientes. Ele crê que: “[...] a velhice precoce é comum entre os psiquiatras.
Absorvemos os problemas dos pacientes. Envelhecemos por eles”. O fruto
da acumulação de problemas do Outro traduzido como envelhecimento faz
todo o sentido ao compreendermos que Armando é o centro do caleidoscópio
traçado por Vidal Porto. O psicanalista, à moda de Freud, narra a história de
Sérgio Y, um adolescente – de uma família tradicional e bem posicionada
socialmente, da cidade de São Paulo – que possui “tudo” materialmente falando, mas que convive psiquicamente com um contragosto, um “mal-estar”
estrutural, um incômodo na alma.
Sérgio pareceu ao psiquiatra1 um jovem interessante, esclarecido sobre questões de sua existência, mas que sentia uma infelicidade sistemática
e constante. A inconformidade com sua condição o levou a procurar ajuda
especializada. Armando confessa que se sentiu atraído pela integridade de
Sérgio. O garoto havia despertado sua curiosidade. A partir daí, sobressai o
enredo condutor da trama, no qual o narrador escuta a narrativa do sujeito
do inconsciente, que o leva às origens (genealógicas) do “paciente”. E elas
diziam sobre o seu bisavô imigrante, um homem que realizou a fundação
de um império comercial.
Posterior a isso, Sérgio interrompe as sessões e vai para Nova York.
Neste interregno entre a escuta e a viagem, há um deslocamento, uma mudança de posição subjetiva, antes alheia ao desejo e construída pelo gozo2.
O desejo vê-se, finalmente, desencaixado do gozo; ele reage ao nível do
corpo. E então Y finaliza o tratamento, com esta afirmação: “Dr. Armando,
acho que descobri uma maneira de ser feliz”. Não se sabe se foi unicamente
o tráfego equívoco construído pela viagem que desalinhou o gozo do desejo.
Mas o fato é que, neste aspecto, o narrador-analista tornar-se - ele parece,
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ANDRÉA BORGES LEÃO e ALEF DE OLIVEIRA LIMA
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sentir-se assim - responsável pela guinada do desejo de Sérgio Y, a ponto
de se culpar do fato trágico que se avizinhava.
O “paciente”, outrora masculino (Sérgio), inicia sua transformação.
Desenrolada do gozo surge Sandra. É a operação subjetiva desencadeada
no trânsito São Paulo-Nova York. Armando só tem notícias de Sérgio por
um encontro ocasional com a mãe de seu outrora analisado, e fica sabendo
da sua morte pela internet. O psiquiatra é enredado a seguir os passos de
Sandra (Sérgio), operando por ouvir diversas vezes suas falas nas sessões,
tentando criar no imaginário seus percursos na mudança subjetiva. Afinal,
pergunta-se: em que lugar enlaçado na carne estava Sandra, a ponto de não
ser percebida? Sua indagação acessada pelo ego não vislumbrava que é no
conjunto de laços sociais reeditados que se fundavam novas inscrições do
desejo.
Sandra torna-se chef; é uma das alunas mais brilhantes de um curso de
culinária em Nova York. Divide apartamento com Laurie Clay, uma estudante
filha de pais conservadores. Laurie vive em meio a delírios causados em
parte pelo uso de alucinógenos e por algumas crenças religiosas contadas e
ditas como “vozes do além”, que seriam, também, “a voz do pai”. O mesmo
que dizia ser a “transexualidade, um artifício do demônio”. Laurie Clay joga
Sandra da janela para a morte. Assim, Armando é levado a uma jornada de
busca pelos rastros de Sérgio Y, tentando desvencilhar-se da culpa. Ele conversa com a psiquiatra americana de Sandra, que o informa sobre a cirurgia
de “adequação”. Procura por pistas nos arredores do apartamento de Sandra,
faz uma espécie de entrevista com a assassina de Sérgio, seu paciente. Um
tanto obsessivo, é assim que resta nosso narrador-psicanalista.
Ao fim de sua busca, descansado da obsessão da culpa, percebe que
ao invés de “ouvir as respostas é preciso, antes, senti-las”. Desfaz-se a obsessão que caracteriza, até então, a narrativa. O que se percebe ou o que se
retira de uma história bem urdida é que ela está em toda parte. Os sujeitos
desencaixados do “gozo cotidiano” que lhes comprime o desejo estão para
além das regras sociais e por isso passam despercebidos; mas, basta deslocarem-se (mover simbolicamente os corpos) que eles reeditam seus desejos.
A narrativa de Alexandre Vidal Porto se presta a esse lugar de “desassossego” simbólico; ele nos leva a dizer do nosso gozo. Quem está preso
em cada um de nós? Qual viagem é necessária para fazê-lo vir-a-ser? É tanto
pela escrita, como por toda linguagem, sempre desviada e arbitraria, que
se conformam e desenformam as subjetividades; não importando se este
aspecto é sociológico ou inconsciente, ou mesmo os dois; contanto que nos
ofereçam um belo livro para ler ao fim de uma tarde chuvosa e melancólica.
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NOTAS
RESENHA
1 Para os fins desta resenha, usam-se como sinônimos os termos psiquiatra e psicanalista, pelo fato de o autor do livro basear-se na tradição
psicanalítica dos Estados Unidos.
2 A noção de “gozo”, aqui,se alinha à veiculada na experiência analítica, segundo a qual o gozo não necessariamente tem a ver com prazer e
satisfação; e sim com um “excesso insuportável de prazer“ que desencadeia sofrimento. Mais informações, consultar: Uma abordagem sobre
o conceito de gozo em psicanálise. Disponível em: http://www2.dbd.
puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/1012178_2012_cap_3.pdf. Acesso em:
12 de dezembro de 2014.
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ANDRÉA BORGES LEÃO e ALEF DE OLIVEIRA LIMA
BIBLIOGRAFIA
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ARÁN, Márcia. A transexualidade e a gramática normativa do sistema
sexo-gênero. Ágora, Rio de Janeiro, volume IX, número 1, p. 49-63,
jan/jul. 2006.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade: estudos de teoria e história
literária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.
FREUD, Sigmund. O mal-estar da civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos. (1930-1936). Tradução de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
FREUD, Sigmund. Observações sobre um caso de neurose obsessiva[“O
homem dos ratos”], uma recordação de infância de Leonardo da Vinci e
outros textos. (1909-1910). Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013.
NIETZCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia ou o helenismo e o
pessimismo. Tradução de Facó Guinsburg. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
Recebido para publicação em agosto/2014. Aceita em março/2015.
Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, v. 46, n. 1, jan/jun, 2015, p. 295-299
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Livro: sobrenome em maiúsculas, nome. Título da obra em itálico. Local da
publicação: Editora, ano.
Exemplo: HABERMAS, Jüngen. Dialética e hermenêutica de Gadamer. Porto
Alegre: L&PM Editores, 1987.
Livro de vários autores (acima de 3): sobrenome em maiúsculas, nome et al.
Título da obra em itálico. Local da publicação: Editora, ano.
Exemplo: QUINTANEIRO, Tania et al. Um toque de clássicos: Marx, Durkheim
e Weber. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1990.
Obs: até três autores deve-se fazer a referência com os nomes dos três.
Artigo em coletânea organizada por outro autor: sobrenome do autor do artigo
em maiúsculas, nome. Título do artigo, seguido da expressão In: e da referência
completa da coletânea, após o nome do organizador, ao final da mesma deve-se
informar o número das páginas do artigo.
Exemplo: MATOS, Olgária. Desejos de evidência, desejo de vidência: Walter
Benjamin, in: NOVAES, A. (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras,
1990. p. 157-287.
Artigo em periódico: sobrenome do autor em maiúsculas, nome. Título do artigo
sem destaque. Nome do periódico em negrito, local de publicação, número da edição
(volume da edição e /ou ano), 1a e última numeração das páginas, mês abreviado,
seguido de ponto final e do ano em que o exemplar foi publicado.
Exemplo: VILHENA, Luís Rodolfo. Os intelectuais regionais. Os estudos de
folclore e o campo das Ciências Sociais nos anos 50. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, n. 32, ano 2, p.125-149, jun.1996.
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mês abreviado. Ano.
EXEMPLOS: LIVRO
BALZAC, Honoré. A mulher de trinta anos. Disponível em: <http:// www. terra.
com.br.htm>. Acesso em: 20 ago. 2009.
Periódico em meio eletrônico
GUIMARÃES, Nadeja. Por uma sociologia do desemprego. Rev. Bras. Ci. Soc*.,
São Paulo, v. 25, n. 74, out. 2010. Disponível em: <http://www. Scielo.br/scielo.
php?script>. Acesso em: 11 mar. 2011.
Jornal em meio eletrônico
* Sem o nome do autor. Quando a matéria não informa o autor,
iniciamos pelo título.
TSUNAMI no Japão. O Povo online, Fortaleza, 11mar. 2011. Disponível em:
<http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso em: 11mar. 2011.
* Com o autor
BRÁS, Janaína. Fraternidade: campanha discute proteção à natureza. O povo
online, 11mar.2011. Disponível em: <http://www.jornal o povo.com.br>. Acesso
em: 11mar. 2011.
Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Sociologia