II Congreso de Estudios Poscoloniales III Jornadas de

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II Congreso de Estudios Poscoloniales III Jornadas de
II Congreso de Estudios Poscoloniales
III Jornadas de Feminismo Poscolonial
Mesa temática 10: Las Margenes y el Centro. Literaturas Poscoloniales
Titulo: “Representações da cidade através da produção cultural independente da
juventude da periferia leste da metrópole de São Paulo: em busca de um diálogo
poscolonial”.
Raquel de Padua Pereira
IPPUR – UFRJ
[email protected]
INTRODUÇÃO
Sobre a origem dos questionamentos levantados ou como se construiu o objeto de
estudo que se pretende rediscutir
O trabalho que se pretende apresentar no III Congreso de Estudios Poscoloniales
é inspirado nos resultados da dissertação de mestrado “Mobilidade da juventude da
zona leste de São Paulo: construindo representações sociais e visões da metrópole”,
defendida pela autora no Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro em novembro de 2012.
Resumidamente, a dissertação levanta uma reflexão acerca das representações sociais e
visões da metrópole de São Paulo, construídas a partir da mobilidade urbana da
juventude que habita a extrema zona leste desta cidade. A pesquisa foi realizada durante
os anos de 2010 a 2012. No entanto, os resultados apontaram para a insurgência de um
movimento cultural nesta margem periférica que foi escolhida como recorte territorial
dentro da metrópole de São Paulo. Acreditamos que este movimento cultural, de caráter
independente e original em termos de conteúdos e temáticas sociais e políticas, poderia,
no momento, ser lido e discutido à luz do debate poscolonial. Isto porque, dentro do
contexto em que se insere, busca romper com as formas hegemônicas de culturas e
saberes presentes na cena cultural de São Paulo e de outras metrópoles
latinoamericanas, através do próprio conteúdo de suas ações culturais.
Em relação ao trabalho que originou esta possibilidade de diálogo com o debate
poscolonial, o ponto de partida foi a reflexão sobre a mobilidade urbana, que foi trazida
à tona na medida em que nela pode ser reconhecido um tipo específico de experiência
urbana, produtora de formas de sociabilidade e de práticas sócio-espaciais singulares.
Problematizou-se a produção social do espaço, o sistema de circulação e mobilidade na
metrópole enquanto modelos de planejamento urbano; a formas de apropriação do
espaço urbano pela juventude da zona leste e a (re)criação das possibilidades de
realização da sociabilidade urbana e das formas de territorialidades, que são
criativamente (re)construídas pelos que moram no extremo leste, destacadamente os
jovens.
Esta é a essência do objeto de estudo, cuja construção foi inspirada num
processo vivido pela autora, que nasceu e morou na zona leste de São Paulo durante a
maior parte de sua vida. Nesta região da metrópole, notável por sua imensa proporção
territorial em relação ao município e pela complexidade nas formas urbanas e sociais, a
maioria dos habitantes é obrigada a enfrentar grandes distâncias e variados problemas e
obstáculos para se deslocar no espaço intraurbano. Tal processo, referente ao exercício
cotidiano de viver a mobilidade em crise numa uma grande metrópole, impulsionou,
portanto, instigantes questionamentos sobre a cidade e, assim, a construção do projeto
de pesquisa embrionário da dissertação.
O objetivo geral da pesquisa, então, foi investigar se este cotidiano de
movimentações dentro do espaço urbano de São Paulo, a partir da periferia da zona
leste, poderia realmente produzir/ interferir/construir o imaginário e a visão que os
jovens que realizam estes percursos/viagens/deslocamentos têm sobre a metrópole. Em
outras palavras: como a metrópole de São Paulo é lida sob a ótica dos jovens da extrema
zona leste, a partir de suas condições de mobilidade?
A pesquisa dividiu-se em três partes. A primeira dedicou-se à análise da forma
urbana da metrópole, resgatando séries históricas do processo de produção do espaço
urbano de São Paulo, com ênfase na conformação do sistema viário e de transporte
público na cidade como um todo e na zona leste em especial.
A segunda parte iniciou-se com uma apresentação da espacialização dos perfis
da juventude paulistana em geral, para chegar à da zona leste e suas especificidades.
Baseando-se em depoimentos de jovens, a reflexão passou a focar aspectos do
cotidiano, sociabilidade, experiências de mobilidade, percepções da cidade em
movimento e, finalmente, as diversas representações sociais e visões da metrópole,
incluindo aí ações culturais e produção artística desta juventude.
A terceira e última parte destacou o trabalho de campo realizado em direção aos
eventos da cena cultural jovem da zona leste. Esta experiência aparece numa narrativa
em terceira pessoa, com destaque à preparação, tomadas de decisão e aos percursos pela
cidade vivenciados pela autora. Procurou-se explorar os detalhes da movimentação na
cidade via transporte público, bem como os dilemas de posicionamento epistemológico
da autora que, durante essa experiência, ora se viu como sujeito, ora como objeto do
conhecimento. Neste sentido, a autora tentou se afastar do passado objeto para tornar-se
sujeito do conhecimento, mas misturou as duas perspectivas ao reconhecer-se, durante a
pesquisa de campo, como objeto. Em termos metodológicos, experimentou a empiria
adaptando e recriando possibilidades de apreensão da realidade como geografia da
existência. O processo de formação deste sujeito requereu, portanto, a reflexão e a
compreensão de teorias e perspectivas metodológicas diversas, onde se buscou
apreender instrumentos que permitiram a análise da cidade em movimento pelos jovens
da periferia leste.
REPRESENTAÇÕES DA ZONA LESTE (E DA METRÓPOLE) EM AÇÕES
CULTURAIS
O que tem no sertão, tem também na terra da garoa; o pau de arara,
aqui, é de lata: mas só chegou até Itaquera. (SANTOS &
RODRIGUES, 2012, p.8).
Produzida e agitada por jovens que vivem em distritos localizados, em sua
maioria, no extremo leste da metrópole, a cena cultural que tivemos a oportunidade de
conhecer durante essa pesquisa é alternativa e, ao mesmo tempo, popular. Articulados
em grupos informais (Ibidem), a formação artística desses jovens é variada: são
músicos, poetas, atores, bailarinos e circenses. Apresentam seus espetáculos, saraus,
exposições, mostras, festivais e encontros preferencialmente em espaços públicos, como
ruas, praças, galpões e bares. Buscam resgatar e fortalecer elementos da cultura popular
sem, no entanto, estarem presos a estereótipos: misturam, por exemplo, referências da
cultura nordestina com clássicos do teatro universal, passando pela estética e técnica do
circo à poesia, numa cadência eclética de aportes que faz jus ao universo multicultural
da metrópole paulistana, mas com identidade e discurso próprios.
Um dos formatos mais consagrados de organização dos grupos são os saraus 1.
Desde meados da década de 1990, eles vêm acontecendo nas periferias de toda a cidade.
Na região do Campo Limpo, zona sul, estão os pioneiros Cooperifa e Sarau do Binho 2,
idealizados por uma geração contemporânea ao surgimento da cultura hip hop, do skate
e do rap. Muitos cresceram ouvindo os versos dos grupos Racionais Mc´s, Thaíde &
DJHum, Sabotage, entre outros, e tendo, entre muitas referências, poetas e escritores
como Sérgio Vaz e Ferréz. Esses escritores traziam em seus trabalhos uma noção mais
positiva da periferia, que pretendia valorizar ao invés de simplesmente absorver, sem
reflexão, o discurso hegemônico que rotula as periferias como lugares de ausências
generalizadas e de negação da cidade. Lugares de distâncias geográficas e sociais, sim,
mas que na literatura e na música passavam, aos poucos, a serem representados
positivamente, mesmo que na forma de denúncia das injustiças vividas no cotidiano
desses espaços. De acordo com o sociólogo Vinícius Carvalho Lima (2012), esses
grupos foram:
(...) fundamentais para a emergência de manifestações culturais
periféricas que se distanciaram de um modo de subjetivação ligado
exclusivamente às desigualdades sociais provocadas por processos
econômicos e a inserção desigual no mundo do trabalho. A
importância desses grupos está justamente na exposição de
imaginários diversos hoje na periferia, através de manifestações
culturais com potencial transformador. (LIMA, 2012, p. 46).
Assim, ao longo da última década, foram despontando periferia afora encontros
e eventos3 como as tradicionais rodas de samba, espetáculos de teatro de rua, duelos de
rappers e mc´s e, em grande número, os saraus. Não se cobra ingresso no espaço que
está sempre aberto para lançamentos de livros, discos, pocket shows e videoclips.
1
Um sarau caracteriza-se por uma reunião onde quem se apresenta tem liberdade de expressão
artística, no qual a declamação de poesias e a literatura são dominantes. Hoje em dia, inclusive, há um
movimento bastante forte de produção literária, já chamada de literatura periférica (e que a essa altura
já deve ser objeto de estudos acadêmicos), organizada num circuito independente de produção e
divulgação.
2
Em junho de 2012 o prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, fechou por falta de alvará o bar onde
funciona o Sarau do Binho. Ficou claro, no entanto, que essa medida foi mais uma das muitas
equivocadas que esse político tem praticado contra manifestações culturais, pobres, sem-teto, viciados
em drogas, estudantes, numa clara opção por uma política higienista de organização do espaço urbano
por parte do poder público.
3
Desde 2007 circula a Agenda Cultural da Periferia, em versão impressa e digital
(http://www.agendadaperiferia.org.br/),
organizada
pela
ONG
Ação
Educativa
(http://www.acaoeducativa.org/). Essa publicação conta com uma extensa agenda que abrange quase
todos os eventos culturais da periferia de São Paulo (incluindo a região metropolitana), como shows,
saraus, mostras de cinema, teatro, festivais, rodas de samba.
Na zona leste, as opções são múltiplas: há os saraus “O que dizem os Umbigos?”
(Itaim Paulista); Mesquiteiros (Ermelino Matarazzo); Sarau na Cozinha – Coletivo
Cultural Marginaliaria (São Miguel Paulista), entre outros4. Para quem gosta de samba,
há as rodas Berço do Samba de São Mateus (São Mateus), Pagode do Cafofo (Jd.
Marilia), Samba no Asfalto (Ermelino Matarazzo), só para citar as mais famosas. Há
campeonatos de poesia, como o Slam da Guilhermina, e uma batalha de Mc´s, a Batalha
da Leste. Há coletivos de grafiteiros, como Muros que Gritam; de teatro e circo, como
Pombas Urbanas e Filhos da Dita (Cidade Tiradentes), Sucatas Ambulantes (José
Bonifácio), Grupo do Balaio (Vila Curuçá), Cia. Do Outro Eu (São Mateus), Trupe
Arruacirco (Itaim Paulista) e muitos outros.
O que mais nos chamou a atenção ao observar como se organizam esses
coletivos é sua articulação em rede, na qual as atividades realizadas costumam ser
compartilhadas entre eles. A maioria dos coletivos trabalha em parceria. Nos saraus, é
muito frequente que os organizadores convidem e homenageiem seus pares. As agendas
dos grupos tendem as ser organizadas de forma que não sejam criados, na medida do
possível, conflitos entre as datas. Assim, cada organização escolhe um dia fixo do mês
para acontecer o sarau, o que permite que os próprios coletivos e o público possam
conhecer e frequentar vários deles. É constituída, dessa maneira, uma rede social strictu
sensu entre os jovens que organizam e frequentam esses coletivos.
Essa rede desenha um novo circuito cultural, o qual perpassa os limites
territoriais da zona leste, na medida em que são estabelecidos vínculos e trocas com
coletivos semelhantes, provenientes de outros extremos da metrópole paulistana. Além
do mais, os coletivos culturais da zona leste subvertem a ordem de localização das
consagradas boas opções culturais paulistanas, reinventando a própria concepção de
acesso e produção de cultura urbana contemporânea, o que é extremamente novo e
original.
Um exemplo dessa articulação é a Rede Livre Leste5, coletivo que agrega
coletivos da zona leste e que teve início em 2009. O marco de nascimento da Rede é a
realização de um cortejo como em Vila Curuçá, que reuniu mais de 30 coletivos
artísticos, bem como núcleos independentes e artistas de outras regiões, com a
finalidade de mobilizar e chamar a atenção acerca de problemas locais como enchentes
4
Para informações sobre estes saraus: http://oquedizemosumbigos.blogspot.com.br/,
http://mesquiteiros.blogspot.com.br/, http://marginaliaria.blogspot.com.br/p/o-levante.html.
5
http://redelivreleste.wordpress.com/
e desapropriações (HOENNE, 2012). Percorreram as ruas do bairro com instrumentos
musicais e vestimentas artísticas, e o cortejo finalizou-se num teatro de arena público. A
partir daí, este ato evoluiu para “força de movimento artístico, social, cultural e político
da periferia” (HOENNE, 2012, p. 10). Estava constituída a Rede Livre Leste e, a partir
de então, muitas outras ações foram realizadas ao longo desse curto período de
existência.
Esses coletivos buscam expandir suas vozes na forma de intervenções urbanas,
como o cortejo e as apresentações em espaços públicos, concebendo a rua como local
sagrado de apropriação. No entanto, preocupam-se em compartilhar suas ideias tanto
com as comunidades dos bairros como também com a sociedade de forma geral, posto
que estão presentes nas redes sociais e blogs da internet. Essa presença intensa na
internet é decisiva na maneira com que elaboram o conteúdo artístico de seus trabalhos
e na articulação e divulgação de suas ações. Através da internet, obtém acesso a um
universo de bens culturais globais, de origens as mais diversas, que antes não eram
compartilhados:
A inserção no mundo virtual possibilita acesso a conhecimentos que,
sem ela, não seriam possíveis. Esta tecnologia permite o acesso e
experimentação cultural em um ambiente não hierarquizado, uma fuga
dos constrangimentos simbólicos que por ventura viessem a acontecer
se a opção fosse ter que ir fisicamente ao centro da metrópole.
Portanto, os movimentos culturais que surgem nos anos 2000 com
ligações e conexões virtuais permitem/propiciam acesso aos jovens
dos espaços periféricos, elementos culturais globais vis-à-vis a
elementos locais, dentro de um ambiente favorável à troca de
experiências menos ligadas à práticas de mercado/consumo. (LIMA,
2012, p.45)
Hibridizando, assim, elementos culturais do popular e do global (CANCLINI,
2004) em formato alternativo ao mercado de consumo cultural metropolitano, buscam
ultrapassar os estigmas e a segregação sócio-espacial de quem provém da periferia,
compartilhando sua arte principalmente com a juventude periférica.6 No entanto, todo
esse circuito é relativamente pouco conhecido cidade afora7, talvez por tempo bastante
6
Poderíamos pensar, aqui, numa provável constituição e fortalecimento de um tipo de identidade
periférica.
7
Quando iniciei o trabalho empírico, justamente indo ao sarau “O que dizem os Umbigos?”,
simplesmente não sabia da existência desses grupos e coletivos. Ao comentar com outros colegas e
amigos de outras regiões da cidade – alguns deles pesquisadores acadêmicos, como eu – todos se
surpreenderam porque tampouco tinham ouvido falar da existência dessa cena, muito menos articulada
em rede de coletivos como a Rede Livre Leste.
limitado, pois tanto a academia quanto a mídia já passam, aos poucos, a voltar suas
atenções para a produção desses coletivos.
Esses coletivos costumam, para além de sua rotina de apresentações, concorrer
aos editais de fomento à cultura das secretarias municipais, estaduais e do governo
federal. É uma das formas de garantir a estabilidade e a concretização de seus projetos,
além de projetar a visibilidade de sua arte para dentro e fora das periferias. Mas o
fazem questionando as próprias políticas culturais, sempre embasados num pensamento
crítico, porém lúdico.
Sob nosso ponto de vista, há uma provável interface entre a espacialização
desses grupos com uma das muitas questões que suscitam a reflexão acerca das visões
da cidade e das formas de sociabilidade dos jovens da zona leste. Em que medida sua
produção cultural seria motivada pela ausência de opções culturais e de lazer de
qualidade nas periferias? Quais as interferências que a mobilidade, enquanto
experiência citadina, exerceria sobre a apropriação dos espaços da cidade, sobretudo os
voltados para o consumo cultural, concentrados no eixo centro-sudoeste da metrópole e,
agora também, na periferia? Quer dizer, no sentido inverso, como se dá a frequência do
público que provém de fora da zona leste? Existiria algum tipo de limitação a esses
espaços e ações devido aos obstáculos e distâncias diretamente relacionados à
mobilidade urbana? Quando essas indagações foram expressas aos jovens integrantes
dessa cena, a resposta foi sim. Muita gente que vive em outras regiões da cidade desiste
de conhecer os saraus periféricos por conta da distância, conforme exemplificam S.S.O.
e N.S.:
Uma coisa curiosa é que as vezes a gente pensa que não é tão longe, e
quando a gente convida alguém pra vir no sarau a pessoas dizem „ah,
mas é longe, né‟, e a gente „não, meu, que nada, você pega o trem, só
uns cinquenta minutos!‟. Aí a pessoa não vem nem ferrando, pensa
„não, mano, o Itaim Paulista é muito longe!‟. (S.S.O., Itaim Paulista,
depoimento concedido à autora).
(...) com certeza tem pessoas que vem de fora e que não vão lá na
(Cidade) Tiradentes assistir porque é longe, e isso acaba caindo na
questão dos transportes, né, porque você imagina, um cara saindo da
Vila Madalena leva três horas pra ir curtir uma coisa, e dependendo do
horário, ferrou, ele vai virar abóbora, a não ser, né, claro, que ele
esteja de carro. Realmente tem essa coisa do „ai, vamo (sic) lá na
Cidade Tiradentes?‟. Fora o preconceito que já tem, o estigma, não é
só a questão da distância. (N.S., Cidade Tiradentes, depoimento
concedido à autora).
Nas falas acima, além de explícito o peso da localização periférica – por limitar
um intercâmbio entre o público de outras regiões da cidade – é possível notar que essa
mesma distância é bastante relativa. Em outras palavras, 50 minutos numa viagem de
trem é normal – às vezes, até pouco – para quem está habituado a esse trajeto
cotidianamente. É uma representação sobre o próprio transporte público e que, na
prática, permite que esses jovens desbravem e usem o território da cidade, até mais
intensamente do que os que vivem no eixo centro-sudoeste.
Ou seja, é um movimento duplo: ao mesmo tempo em que a distância limita e a
mobilidade em crise constrange a apropriação livre e criativa do espaço da cidade como
um todo, a própria convivência com essa realidade – ou seja, o “costume” – constrói
uma visão mais realista e uma disposição maior em enfrentar deslocamentos longos.
Assim, muitas vezes, quem vive na periferia acaba conhecendo mais e melhor a cidade
do que quem vive cercado de possibilidades e acessos à mobilidade. É uma contradição
observada nessas situações, onde os jovens da periferia estão ao mesmo tempo cansados
e dispostos (ou seriam acostumados?) a enfrentar longos deslocamentos.
Outro aspecto muito interessante é que, nessa conjuntura, esses coletivos em
rede criam formas de sociabilidade através de sua produção cultural. Quem está
envolvido com essa cena costuma dedicar seu tempo livre para frequentar seus pares.
Muitas vezes, não fazem questão de sair desse núcleo já constituído:
Costumo sair para frequentar meus amigos dos grupos, como o
Arruacirco, o Balaio, gente desta cena, que sempre foi forte, mas que
agora está bombando. Os grupos querem usufruir destes espaços na
periferia e não no centro. (N.S., Cidade Tiradentes, depoimento
concedido à autora).
O que mais tem me atraído pra ver é o Slam da Guilhermina, Sarau
dos Mesquiteiros, o sarau que eu organizo. Aí, interessante é que
através do Slam da Guilhermina você conhece uma pessoa, que
conhece outra pessoa que vem até aqui no Itaim, mas que é de Itaquá;
outra que é do Ermelino Matarazzo, que é da Penha, ou de São
Miguel, e aí você vai criando uma ponte que é dessa periferia, que é
muito grande, muito ampla. (S.S.O., Itaim Paulista. depoimento
concedido à autora).
A presença e a articulação desses grupos numa rede de coletivos e sua própria
produção cultural poderiam ser entendidas como uma das representações que eles
compõem da cidade. Se existem dificuldades e obstáculos para realizar a circulação no
espaço urbano – circulação essa experimentada como (sobre)vivência em uma
mobilidade em crise, logo, numa experiência urbana singular , a partir da periferia leste
– , essas ações culturais poderiam ser interpretadas como fruto da criatividade e da
tomada de consciência social e política, bem como de sua posição na zona leste cidade:
seu ponto de visão da metrópole, seu lugar no mundo. A cidade está expressa e
representada nessas ações, no conteúdo e na articulação dessa cena cultural. Forma-se,
assim, um circuito cultural periférico, “lestiano”, agregador de formas variadas de arte,
desenho de uma nova geografia e de uma nova concepção sobre a periferia, como bem
colocou Leandro Hoenne, integrante da Rede Livre Leste:
“Uma nova geografia”, com diria Milton Santos (1923-2001) deve ser
pensada. Quantos mapas cabem na periferia de acordo com aquilo que
se pensa dela? A mídia a considera pobre e vende esta ideia – uma
pechincha! Eis que um estandarte destaca-se no mapa da periferia. Na
ação da Rede, também fazemos dela um território onde a arte flui. O
conhecimento é construído aqui, por pessoas daqui, que aprenderam a
olhar de outra maneira para este território. (HOENNE, 2012, p.11).
Interpretamos esse posicionamento e olhar dos coletivos acerca do território da
metrópole resgatando a noção de território usado, de Milton Santos. O território da
metrópole, para esses coletivos, é fruto dos contextos sociais, enraizado por sua vida de
relações, em suma, de experiências sociais (RIBEIRO, 2011), resgatando a própria
vivacidade da cidade como experiência urbana a partir da periferia. Revelam uma
perspectiva que exalta a periferia para a periferia em suas ações e discursos, que procura
chamar a atenção da sociedade sem perder sua autenticidade, enaltecendo um forte
conteúdo identitário.
Assim, essas opções localizadas na periferia servem de entretenimento, sim, mas
com conteúdo social, cultural e político. Seu ecletismo entre as manifestações artísticas
sugere o abandono de imagens pré-concebidas relacionadas à cultura mercadológica de
massa para as classes populares. Ao mesmo tempo em que a constituição dessa cena
cultural significa romper para com as fronteiras da segregação sócio-espacial, sua
essência é a expressão de uma cidade que separa ao invés de unir, resultado da produção
de um espaço urbano fragmentado.
Enfim, percebemos que no conteúdo desses discursos e ações parece haver uma
certa revanche da juventude da periferia direcionada à cidade, tanto no sentido prático –
que se refere à uma apropriação literal e ao mesmo tempo alternativa e criativa de
apropriação do espaço urbano – , quanto na formação de um posicionamento político,
criativamente construído de forma transgressora, através da arte.
Essa cena projeta luminosidade sobre a periferia e traz consigo mais
questionamentos; conhecê-la permitiu que surgissem novas reflexões e reascendeu o
debate sobre as representações sociais e as visões da metrópole sob a ótica dos jovens
da periferia leste.
EM BUSCA DE UM COMPLEMENTO TEÓRICO E DIALÓGICO: UMA POSSÍVEL
LEITURA POSCOLONIAL ACERCA DAS AÇÕES CULTURAIS DESCRITAS
O universo descrito acima levantou questionamentos que permanecem em aberto
após o término desta pesquisa. Se observarmos que o conteúdo das ações culturais
destes coletivos periféricos se contrapõe à ordem cultural dominante da São Paulo
moderna e espelhada em padrões culturais europeus e norte-americanos, a forma como a
cidade é vista e a sociabilidade praticada por esta parcela da juventude envolvida em
ações culturais na periferia instiga uma reflexão que venha a superar o referencial
teórico hegemônico europeizado sobre eles – por exemplo, fazemos uma leitura alusiva
à escala opositiva entre periferia e centro, simplesmente – enxergamos a possibilidade
de debater este conteúdo artístico e cultural enquanto literaturas genuinamente originais
e, talvez, descoloniais.
Tentamos problematizar o aspecto de que a imagem da metrópole de São Paulo
vendida e veiculada mundo afora é uma a de uma cidade dinâmica e global, moderna e
cosmopolita, ou seja, correspondente a um imaginário de cidade que é “terceiro
mundista” mas que, por sua vez, está conectada com os grandes cidades globais e isto se
verifica na cena cultural urbana. Este aspecto pode parece ser unânime no que se refere
às práticas sócio-espaciais da juventude classe média ou média alta da cidade, e, no
entanto não o é, já que o espaço da metrópole é totalmente fragmentado, ou seja, o
acesso à esta suposta “cultura cosmopolita global paulistana” não é democrático por
questões socioeconômicas e de localização. Esta realidade aparece quando encontramos
e analisamos esta cena cultural periférica, a qual tenta legitimar um discurso e uma
práxis cultural totalmente opositora da cena “paulistana” hegemônica.
As perguntas que temos são muitas, mas que caminham na direção de um
paralelo com o paradigma descolonial. Até que ponto seria possível debater se esta
dominação de saberes, poderes e intersubjetividades que compõe o colonialismo
(QUIJANO, 2005) estaria presente nesta cena e no fazer cultural prático hegemônico da
São Paulo metrópole? E, no sentido oposto, seriam as ações culturais periféricas uma
tentativa de rompimento com a ordem cultural dominante, formadora de um novo
discurso, advindo de subjetividade compositora de uma identidade periférica
intraurbana e original, que se legitima na realização de sua cena cultural independente e
autóctone? Estariam formando uma nova identidade geocultural “lestiana”, à maneira
descolonial, dentro da própria metrópole de São Paulo?
O que se observou, em relação ao conteúdo artístico da cena cultural, seja em
forma de literatura ou teatro, é a intenção de resgatar elementos do que estes próprios
grupos denominam como sua cultura popular, ou seja, eles valorizam o fato de serem
descendentes de grupos indígenas (todos somos) e de migrantes nordestinos (o
contingente migratório que no contexto do crescimento industrial da cidade de São
Paulo consolidou a população e a urbanização da zona leste). Da mesma maneira,
distanciam-se tanto presencialmente quanto simbolicamente do que acontece na cena
cultural do eixo centro-sudoeste da cidade, aquele em que acontece o que chamamos de
cena cultural hegemônica e cosmopolita.
De acordo com a interpretação de uma leitura de Bhabha (2005), a criação de
novas epistemes na atualidade está criativamente agitada no pós-colonialismo através de
vozes dissidentes, como as que foram destacadas neste estudo, que insurgem em
movimentos da vida cotidiana, trazendo consigo elementos da cultura local e
hibridizados com o que vêm “de fora”, porém agora reinventados, que vão contra aquela
suposta “modernidade” da cultura hegemônica paulistana:
Tais culturas de contra-modernidade pós-colonial podem ser contingentes à
modernidade, descontínuas ou em desacordo com ela, resistentes a suas
opressivas tecnologias assimilacionistas, porém, elas também põem em
campo o hibridismo cultural de suas condições fronteiriças para “traduzir”, e
portanto reinscrever, o imaginário social tanto da metrópole como da
modernidade. (BHABHA, 2005, p.26)
O que também observamos, em relação ao conteúdo artístico da cena cultural
periférica “lestiana”, seja em forma de literatura ou teatro, é a intenção de resgatar
elementos do que estes próprios grupos denominam de sua cultura popular. Eles
valorizam o fato de sermos originários de grupos indígenas e de migrantes nordestinos
(o contingente migratório que no contexto do crescimento industrial da cidade de São
Paulo consolidou a população e a urbanização da zona leste); valorizam o samba, o funk
e danças relacionadas a estes ritmos que, em geral, são desprezados pela cena cultural
de São Paulo, a qual costuma exportar nomes e grupos dos mais variados gêneros
artísticos. Desta maneira, distanciam-se tanto presencialmente quanto simbolicamente
do que acontece na cena cultural do eixo centro-sudoeste da cidade, no qual se localiza
o que chamamos de cena cultural hegemônica e cosmopolita. No entanto, essa
valorização do que é periférico na forma de ações culturais parece buscar a essência da
cultura local ao mesmo tempo em que reinventa aquilo que lhes foi dificultado por
condições materiais e políticas, ou seja, o acesso pleno à cidade tanto física quanto
culturalmente.
É muito importante re também, o fato de que existe uma rede latinoamericana de
coletivos culturais periféricos presente em metrópoles como Buenos Aires, Bogotá,
Medellin, entre outras, que mantém um intercâmbio constante e intenso com os grupos
da periferia leste de São Paulo. O discurso afinado entre eles é o de fortalecimento de
uma identidade periférica urbana latinoamericana que está em pleno processo de
construção, já que as periferias destas cidades cresceram num período histórico
relativamente recente. Ou seja, como estas ações que se originam do que é localizado
“às margens” dos centros urbanos, socioeconomicamente e culturalmente, se constroem
e se legitimam e constroem suas leituras e literaturas do contexto latinoamericano
contemporâneo, presentes em suas ações culturais?
Acreditamos que esse processo de construção de uma cena cultural própria
procura legitimar um conhecimento que seria localizado a partir desta experiência
urbana periférica que lhes atribuiu uma subjetividade e uma corporalidade singulares.
Daí surge, para nós, a instigação de olharmos para a construção desse saber periférico
cultural como episteme original e, se possível, a partir desta, elaborarmos outras tantas
quanto forem possíveis.
Rede Livre Leste em intervenção cultural na Avenida Paulista, região centro-sudoeste de São Paulo
Fotos: Raquel de Padua Pereira, março de 2012.
À esquerda, Slam da Guilermina, batalha de poesias na estação Guilhermina do metrô; à direita, apresentação do cantor Edvaldo
Santana e no primeiro plano a Agenda Cultural da Periferia, no Centro Cultural Arte em Construção, Instituto Pombas Urbanas,
bairro de Cidade Tiradentes Foto: Raquel de Padua
Fotos: Raquel de Padua Pereira, março de 2012.
Enfim, estas breves reflexões/indagações surgem neste momento como um
embrião dialógico com o paradigma e debate poscolonial. É evidente o quão superficial
se encontra a análise em direção a estes aportes, e isto é posto de maneira totalmente
consciente e com intuito propositivo para este fim, quer dizer, o de intercâmbio de
saberes e conhecimentos produzidos nos rincões e nas academias latinoamericanas,
posto que a autora é também periférica “lestiana”. A inscrição neste encontro se faz na
expectativa de um porvir frutífero enriquecedor do estudo e das trocas intelectuais e de
experiência.
BIBLIOGRAFIA
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