hebreus

Transcrição

hebreus
HEBREUS
Bruno Glaab
Hebreus não e um texto abstrato, como muitas vezes se pensou, mas visa a uma comunidade concreta a quem exorta (13,22). Não se pode precisar quem a escreveu, nem quais sejam as
comunidades, mas pode-se supor que o autor esteja afastado (13,19) e que havia problemas de
perseguição (13,23).
1 - O que?
Hebreus sempre foi apresentada como carta, mas não é. É antes um discurso, tratado ou
sermão. Mistura doutrina com parêntese (2,1-4;3,7-4,11; 4,14-16; 5,11-6,12; 10,19-39; 12,113,17). Pode-se perceber a seguinte estrutura:
a) A Palavra de Deus em Jesus 1,1-4,13
- Jesus é superior aos anjos 1,1-2,18
- Jesus é superior a Moisés e Josué 3,1-4,13
b) Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,31
- aproximar-se de Jesus, o sumo sacerdote 4,14-16
- Jesus, o sumo sacerdote solidário 5,1-10
- Parênese 5,11-6,20
- Jesus, sumo sacerdote perfeito = Melquisedec 7,1-28.
- Jesus, sumo sacerdote celeste se ofertou a si 8,1-10,18.
- Parênese 10,19-31
c) Perseverar em Jesus (parênese) 10,32-13,17
- esperar a vinda de Jesus com paciência 10,32-39
- testemunhos, desde Abel até Jesus 11,1-12,3
- os sofrimentos são correção. É preciso suportar 12,4-17
- não negligenciar a Revelação de Deus em Jesus (12,18-29
- Amar o próximo, resignação e obediência 13,1-17
- Conclusão 13,18-25.
2 - Quem?
Nos primeiros séculos da igreja, Hb é vista como uma carta paulina (Orígenes), mas não
do próprio Paulo, antes de um dis-cípulo seu (Lc?). No ocidente ela não é considerada paulina até
o século IV. Tertuliano a atribuiu a Barnabé. Só no século IV ela entra definitivamente no cânon
e é encarada como a 14ª car-ta de Paulo.
Lutero e outros reformadores duvidavam ser ela de Paulo. Trento a decretou paulina.
Mais tarde, ainda no século XVI, os protestantes voltaram a classificá-la de paulina. Só em 1828,
o biblista Bleek (protestante) concluiu definitivamente que ela não era paulina.
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Em 1914 a Pontifícia Comissão Bíblica decidiu que Hb deve ser incluída nas paulinas, ainda que talvez não fosse de Paulo. A partir de então, os biblistas católicos concluem sempre mais
que ela não é paulina. Bem mais tarde a Comissão deu o caso por vencido.
Não sobram elementos, no texto, que possam definir o au-tor. Sabe-se, no entanto que
não foi Paulo, nem sequer um dis-cípulo seu, uma vez que a linguagem e os conceitos divergem
bastante.
3 - Como?
A estrutura de Hb é bem diferente das cartas de Paulo. Este sempre traz uma seção principal contendo doutrina e depois vem a parénese. Hb mistura tudo.
O estilo e a linguagem são bem distantes de Paulo. Só a conclusão (13,18ss) tem certa
semelhança. O vocabulário é grego fino, os conceitos teológicos pouco tem de parentesco com os
do apóstolo:
Paulo  Ressurreição: Hb  Exaltação no céu
Paulo  Reconciliação: Hb  Purificação
Hb  S.sac. aus. em Paulo. Paulo  Just. p/fé aus. em Hb
Hebreus se aproxima do judaísmo alexandrino e de Filon. Interpreta o AT livremente, sem
se importar com sua história (4,3; 7,2). Liga o NT com o AT = Melquisedec (7), o tabernáculo
(8,2. 5).
Hb, além da proximidade com a literatura helenista, tem parentesco com a gnose
(8,1ss;9,11.23s).
4 - Para quem?
Pensava-se ser um escrito para judeu-cristãos, pois usa muito o AT, argumenta conceitos
teológicos judaicos (Moisés, Aliança, etc). Esta teoria cai, pois Hb não reflete o mundo conturbado de Jerusalém que se conhece do primeiro século cristão.
Não se pode dizer claramente quem é o destinatário, mas parece que se dirige a cristãos
vindos da gentilidade (Novo Israel (6,1; 11,6).
Pode-se, no entanto, dizer algo sobre a situação das comunidades:
- Quando o autor lembra a superioridade de Jesus sobre os anjos (1,1-2,18), ele se refere a
cristãos de segunda geração que esfriaram seu ardor e se facinam pela angeologia grega. Em 2,14 se interrompe a cristologia e se faz uma exortação. Isto também reflete cristãos de 2ª geração,
pois lhes falta o testemunho daqueles que ouviram Jesus.
- Jesus, superior a Moisés e Josué (3,1-4,13) reflete comunidades relapsas que devem ver
na negligência do antigo povo, que não chegou ao descanso, uma avertência. Jesus é superior,
mas mesmo assim, poderão ficar fora.
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5 - Alguns destaques
- Jesus, o sumo sacerdote 4,14-10,39. O sumosacerdócio é derivado de Aarão. Jesus tem
seu sacerdócio da ordem de Melquisedec. Sua base é a oferta de si mesmo.
- Exortações 12,1-13,17. A comunidade passa por momentos difíceis: perseguições
(12,4), certa letargia (12,2), lembrar-se dos presos (13,2), gente tentando desviar o povo (13,9).
- A comunidade tem um passado que enobrece 10,32.33.34. Por isto, não devem perder a
segurança (10,35), nem se voltar para trás (10,39).
- A história do povo de Deus é lembradad (11,1-40). Pela fé os grandes personagens do
AT permaneceram fiéis. Eles são modelos de fé. Assim como os heróis do passado, também os
cristãos devem permanecer fiéis (12,1).
- Acima de tudo, os cristãos devem ter o modelo de Jesus (12,2ss; 2,14-18; 4,14-16). Ele
sofreu a cruz, por isto os cristãos devem suportar
"Não há consolo maior do que saber que a causa dos leitores cansados e amedrontados está bem representada junto ao coração de Deus"1.
6 - Conclusão
Para que serve Hb? Pixeley supunha ser um evangelho espiritual para as massas urbanas,
próximo à filosofia platônica. Hb fala do imaterial que é visto como o real (8,5), o material, como
esboço do celeste. O Reino de Deus visto como imaterial (12,18-21.28). Porém, Hb acentua bastante a dimensão histórica do processo de salvação (1,1-3; 8.12). Isto, segundo Ragaz seria sinal de
Hb ser uma carta militante, antes de ser espiritual.
6.1 - Resposta às religiões
A comunidade estava cercada de uma miscelânea de crenças. Por uma lado as religiões exóticas, por outro, as formais (judeus e romanos). Nenhuma respondia ao povo. Quanto mais o formalismo das religiões oficiais se acentuava, tanto mais a busca por mistérios aumentava. As religiões mistéricas se tornavam o chão fecundo para as fugas do povo. Nestas religiões havia manifestações das divindades no auge do culto: transe. Isto encantava, mas eram deuses distantes, pois só
se manifestavam ao povo em momentos especiais, no culto, fora disto, desapareciam. As religiões
mistéricas tornam-se escatológicas, ou seja, manifestam ao fiel, um pouco do além. Por um isto encanta, mas por outro, aliena o fiel, pois, para contemplar o mundo do além, o fiel foge deste mundo, se esquece do real.
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HOFFELMANN, V. Alento para os cansados e atemorizados. in: Estudos Bíblicos,
n.34. Vozes, 1992. p.14.
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Certamente alguns cristãos, diante das perseguições e da constante exposição a estas doutrinas, se sentiam atraídos para tais aberrações (Hb 5,11ss). Isto representava um ópio para o povo.
A carta aos Hb usa linguagem mistérica (6,4s; 12,22s) para se fazer entender pelo povo.
Porém, Hb insiste na materialidade de Jesus (1,1ss; 11,1-40; 12,1-4). Assim combate a alienação das religiões mistéricas e lança o fiel à militância. Até o conceito de história em Hb é diferente do que na filosofia grega. Ou seja, em Hb a história não é sobra do passado, mas remete para o
futuro (11,1-12,12).
Em Hb a salvação é celestial e a história é cópia da celestial (8,5). Desta forma Hb arranca
a escatologia do presente (religiões mistéricas) e a remete ao futuro, pois a escatologia presente
(transe) não tem compromisso com a história.
Pontos a ponderar
- A salvação não é desmaterializada da história como no êxtase, nem é intransponível. Jesus
fez um acesso para todos (6,19s; 9,8.11; 13.12).
- Encarnação, paixão e ascenção acontecem na história, não no mundo das idéias (2,17).
Também o processo salvífico só se dará na história (13,12-13).
- Se Cristo foi tão material, é de se supor que a salvação não seja imaterial 9,24).
- Como Cristo realiza a salvação na história, assim, os fiéis devem seguir o caminho histórico de Jesus (10,19-20).
Concluindo
Hb insiste na historicidade de Jesus, bem como na dos heróis do AT. Isto é uma luta aberta
contra a a-historicidade dos mistéricos (11,1ss). A a-história é o veneno da história. Hb reconta a
história para neutralizar a a-história. Então, a fé no Cristo histórico estava em jogo entre os fiéis.
Hb quer resgatá-la.
A história do Deus encarnado, bem como a dos heróis históricos (11,1ss) são sinais de resistência diante do a-histo-ricismo. Deus é fiel na história, por isto mesmo, o Deus apresentado em
Hb é solidário com os sofrimentos (Hb 2,17ss; 4,15; 5,17). Sua história entra na história dos sofredores. Um rebelde uniu a terra ao céu. Contando a história, Hb não entende a vida como fuga do
mundo. A salvação não é apenas da alma, mas realização histórica da esperança escatológica.