Substituição eventual do Presidente e ratificação de

Transcrição

Substituição eventual do Presidente e ratificação de
Substituição eventual do Presidente e ratificação
de precedente regimental
Parecer no 12/00-FNB
Ementa: Indagação sobre a validade de atos do Exmo.
Sr. Primeiro Vice-Presidente, quando em substituição
eventual do Exmo. Sr. Presidente. Os atos do substituto
dito automático, investido por força de lei (cf. arts. 33
e § 1o da Lei municipal no 94, de 1979), presumem-se
válidos; mas a mesma lei pode subordinar-lhes os efeitos a condição, como seja a ratificação presidencial dos
precedentes regimentais, exigida pelo art. 291, § 2o, do
Regimento Interno desta Câmara Municipal. Tal ratificação incumbe, por imperativo lógico, a quem esteja no
exercício pleno das funções de Presidente. Parecer no
sentido de serem válidos os atos da nobre Autoridade
substituta eventual, mas ineficaz o Precedente que editou,
à míngua de ratificação da Autoridade substituída.
Senhor Presidente:
Por ofício de no 205/2000-GVRC, de 03 de maio último, o eminente
Parlamentar interessado, reportando-se ao ofício GP no 5-180/00, de 28 de
abril anterior, onde Vossa Excelência noticiou não se ter afastado da Chefia
do Legislativo, embora estivesse ausente das sessões plenárias de 25 e 28 do
mesmo mês, solicitou “relação de todos os atos administrativos (despachos,
decisões, aposições de assinaturas em cheques, etc.)” praticados pelo Exmo.
Sr. 1o Vice-Presidente, no período compreendido entre aquelas duas datas (fls.
2), juntando cópia truncada da publicação, no “Diário da Câmara Municipal”,
do expediente presidencial a que alude (fls. 3). A eficiente Assessoria da Presidência, informando não dispor de cópias de cheques ou despachos de mero
expediente (fls. 04), juntou cópias dos ofícios “GP” subscritos pelo mesmo e
Exmo. Sr. 1o Vice-Presidente no período em questão (fls. 5/10).
2. Despachado o feito àquela Autoridade (fls. 11), respondeu a mesma,
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com azedume, caber à Presidência o atendimento do pleiteado (fls. 11). Ao
tomar ciência do curso da matéria, o nobre Edil interessado despachou asserindo não ter havido decisão “quanto a dúvida” sobre se os “atos nominados
neste expediente são válidos”, solicitando, caso negativo, “informar a data da
anulação” (fls. 13). Lobrigando, aí, questão jurídica, Vossa Excelência mandou
colher-se “pronunciamento, com vistas inclusive à definição da natureza sob
a qual se deu o exercício da Presidência pelo Excelentíssimo Senhor Primeiro
Vice-Presidente no período referido no presente processo”, desta ProcuradoriaGeral (fls. 14), cujo ilustre Titular o fez distribuir ao signatário do presente
(fls. 15). Tendo a distribuição se dado durante as férias do mesmo signatário,
somente agora foi possível lavrar-se opinamento respectivo.
I. Histórico
3. Deflui do processado que, nos dias 25 a 28 de abril recente, Vossa Excelência, titular da Presidência desta Câmara Municipal, ausentou-se da Casa,
informando estar-se submetendo a exames médicos (fls. 3). Nesse entretempo,
praticou atos de Chefia do Poder Legislativo o Exmo. Sr. 1o Vice-Presidente,
editando, inclusive, precedente regimental. Retornando ao seu posto, Vossa
Excelência absteve-se de ratificar tal precedente, considerando-o sem efeito
e mandando excluí-lo da respectiva seriação, para reaproveitamento do respectivo número. Nada manifestou, contudo, relativamente aos demais atos
praticados pelo nobre Autoridade substituta.
4. A indagação trazida a esta Procuradoria-Geral parece concernir à
validade dos atos praticados pelo Exmo. Sr. 1o Vice-Presidente, na ausência
do Titular da Presidência. É o que se passa a examinar.
II. Fundamentação
5. Deve-se, possivelmente, ao memorável PONTES DE MIRANDA a introdução, na doutrina brasileira, da teoria, de origem germânica, dos planos da
existência, validade e eficácia dos atos jurídicos, como tais entendidos aqueles
fatos do universo (mundo fático), envolventes de um agir humano e sobre os
quais incida(m) regra(s) jurídica(s). Com base nesse enfoque, o signatário do
presente teve ensejo de sustentar, em ensaio teórico, que
“o ato jurídico, inclusive administrativo, existe se o pratica um agente (ser humano, ainda que na condição de órgão de outra entidade), relativamente a um objeto
juridicamente relevante e de uma certa forma exteriorizada; e vale se esse agente é
capaz (competente, no caso de ato administrativo), se esse objeto é lícito e possível
(inclusive motivado por fundamento compatível com a atividade pública e visante
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a finalidade prevista em norma) e se essa forma é adequada, isto é, adotada em
consonância com o que está regrado positiva (prescrita) ou negativamente (não
vedada).” 1
Noutras palavras, os atos jurídicos administrativos se têm por válidos quando
praticados por agente público competente, tendo objeto legalmente autorizado
e materialmente realizável, estando embasados em motivo associável ao interesse público, orientado para finalidade legal e formalizado em consonância
com a lei.
6. O preenchimento de tais requisitos cumulativos se presume iuris
tantum, ou seja, até que se prove a falta de algum deles: na precisa dicção
de MARCELLO CAETANO, “[o]s actos administrativos gozam de presunção de
legalidade” 2. Em linha de princípio, portanto, os atos praticados por substituto legal, na ausência de titular, valem, até que se prove estarem carentes de
algum dos pressupostos acima elencados.
7. Daí, porém, não se extrai, ipso facto, que semelhantes atos sejam eficazes. No mesmo estudo acima referido, houve oportunidade de definir-se:
“Eficácia, de rigor, é, pura e simplesmente, a possibilidade de produzir quaisquer
efeitos jurídicos — a saber, aqueles para os quais se praticou o ato ou outros, a tais
fins estranhos, como, por exemplo, a responsabilidade do Estado e/ou do agente
que ilicitamente o praticou. Importa insistir na distinção: existência jurídica é
ingresso no mundo jurídico, isto é, incidência de norma jurídica sobre o fato; validade é adequação desse ingresso, ou seja, conformação do ato com as condições
normativas de produção dos efeitos a que visa; e eficácia é a produção de algum
efeito jurídico, pretendido ou não pelo agente e visado ou não pelo ato. Assim, por
exemplo, o casamento celebrado entre duas pessoas do mesmo sexo, segundo a lei
brasileira, não existe; o celebrado entre irmão e irmã, existe, mas é nulo (Código
Civil, arts. 183, no IV e 207); o casamento entre menores, “para evitar a imposição
de pena criminal” e sob ordem judicial de separação de corpos até que cheguem
à idade legal (Código Civil, art. 214 e parágrafo único), existe e é válido, mas é
ineficaz, quanto à obrigação de convivência dos cônjuges, até atingirem aquela
idade; o casamento de pessoas que faleceram no estado de casadas existe e, embora
nulo, é eficaz no que respeita à prole comum, salvo no caso de bigamia (art. 203
BAPTISTA, Francisco das Neves. Da efetividade das normas (in)constitucionais. Diário da
Câmara Municipal, Rio de Janeiro, v. 22 n. 232, p. 21, 17 dez. 1998.
1
CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. 10. ed. Coimbra : Almedina,
1997. t. I, p. 465. No mesmo sentido, entre muitos, DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 5. ed. São Paulo : Atlas, 1995. p. 65; e GASPARINI, Diógenes. Direito
administrativo. 4. ed. São Paulo : Saraiva, 1995. p. 72.
2
3
BAPTISTA, op. cit. p. 22.
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do Código Civil).” 3
Tem-se, portanto, que a lei, sem embargo da validade do ato, pode condicionar-lhe os efeitos a outro ato ou fato superveniente.
8. Vem a pêlo considerar-se que a investidura em cargo ou função pública,
permanente ou temporária (e ainda quando “automática”, como prevista no
art. 33 e seu § 1o da Lei municipal no 94, de 14 de março de 1979), depende
de lei — em sentido formal ou lato sensu, isto é, ato legislativo típico ou ato
normativo com força vinculante. A substituição, pois, há de estar prevista
em norma imperativa, editada por Órgão competente, que lhe estipule os
limites; no silêncio da norma, é óbvio, compreenderá todas as atribuições do
substituído.
9. Para a espécie em exame, a norma de regência é o art. 39 do Regimento
Interno da Casa, que reza:
“Art. 39 - O Primeiro Vice-Presidente substituirá o Presidente em suas faltas, ausências, impedimentos ou licenças, ficando, nas duas últimas hipóteses, investido
na plenitude das respectivas funções.” (grifos daqui).
A regra, visivelmente, não cogita de uma substituição automática ampla, com
assunção ilimitada, em qualquer caso, de poderes e funções. Ao revés, distingue
duas diferentes situações, a saber: as faltas e ausências, quais sejam as ocasiões
em que, embora tivesse perfeitas condições de permanecer no exercício do
cargo, o Titular da Presidência não comparece ou se retira (justificadamente
ou não) de seu posto; e os impedimentos e licenças, ocorrentes quando, ex-vi
legis (ao deixar a Mesa para participar de discussão, como previsto no art. 34
do Regimento Interno) ou por ato da Câmara (v.g., na instauração ou no curso
de processo visante à sua destituição, na forma dos arts. 50 e seguintes do
referido Regimento), fica vedado ao Presidente o exercício de suas atribuições,
bem como quando autorizado a afastar-se para tratar de assuntos particulares
ou de saúde ou em licença natalina (art. 11 do mesmo Regimento).
10. Na primeira dessas situações — falta ou ausência — o Primeiro
Vice-Presidente apenas supre as necessidades de comando da Casa, praticando os atos de rotina da Presidência e tomando as decisões que se fizerem
inadiáveis: cuida-se de típica substituição eventual e a esse título se deram os
atos documentados a fls. 5/10 do presente feito. Somente no impedimento ou
licenciamento do Chefe do Legislativo é que o Primeiro Vice-Presidente fica
investido de todas as atribuições, ordinárias ou excepcionais, da Autoridade
impedida ou licenciada. Suas decisões, são, nesta última hipótese, atos da
Presidência da Câmara, que somente se desconstituem mediante declaração
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de nulidade, anulação ou revogação.
11. Coerentemente, o § 1o do art. 291 regimental dispõe:
“Art. 291 - [...]
§ 2º - Se fixado por ocupante da Presidência dos trabalhos que não o Presidente da
Câmara Municipal, o Precedente Regimental deverá ser ratificado pelo Presidente,
na primeira Sessão subseqüente ao ocorrido.” (grifos daqui).
O Regimento condiciona, dessarte, o precedente estabelecido por quem não esteja no exercício pleno da Presidência à ratificação do Titular desta, ou de quem
esteja nesse pleno exercício. Entenda-se: a regra não reserva a esse Titular o
poder de editar precedentes regimentais; apenas os sujeita a ratificação.
12. Assim, pois, não há controverter-se a validade, em tese, do precedente
regimental ou de quaisquer outros atos do substituto eventual do Presidente, a
não ser que se lhe possam questionar os elementos essenciais — competência
do agente (que lhe decorre da designação em lei para substituição automática),
licitude e possibilidade do objeto, natureza pública do motivo e finalidade e
forma legal (que se presumem iuris tantum). O que pode é pender de ratificação, por exigência legal, o precedente editado por aquele substituto.
13. Não sendo condição de existência, nem de validade do ato, semelhante exigência diz, evidentemente, com a eficácia do mesmo. Os atos em
geral, praticados pelo ocupante eventual da Presidência, induvidosamente
valem e, não os subordinando a lei a condição ou termo algum, são eficazes;
os precedentes, que porventura editar, igualmente valem, mas somente são
eficazes se e quando ratificados pelo Presidente.
14. Tal o que, desenganadamente, se deu com o Precedente no 19/2000:
embora válido (porque, repita-se, expedido por Autoridade, naquele momento,
competente, bem assim ornado, em tese, dos mais requisitos de validade),
restou ineficaz, ao recusar-lhe Vossa Excelência ratificação (cf. fls. 3). À
semelhança do testamento onde se condicionasse o legado ao casamento do
legatário e que, morrendo este no estado de solteiro, resultaria inócuo, sem
embargo de sua inequívoca validade, entrou aquele Precedente no mundo jurídico manietado, na expectativa da ratificação presidencial que lhe desataria
os efeitos; à míngua de tal ratificação, permanece inoperante. Por isto mesmo,
bem andou Vossa Excelência em mandar excluí-lo da série respectiva, evitando
a excrescência de um ato inoperante numa seqüência de atos eficazes.
15. Não vinga, intuitivamente, a suposição de que o próprio substituto
eventual, repetindo-se a falta ou ausência do Presidente “na primeira Sessão
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subseqüente ao ocorrido”, pudesse ratificar o ato. A ser assim, a disposição
regimental susotranscrita resultaria absolutamente sem sentido: para que
submeter-se o precedente à ratificação de quem, ao ocupar ocasionalmente a
Presidência, o editou? Salta aos olhos que essa “primeira Sessão subseqüente” será, por imperativo lógico, a primeira a que comparecer o Titular ou,
sobrevindo impedimento ou licença deste, seu substituto estiver “investido na
plenitude das respectivas funções”, como prevê o art. 39, também regimental
e acima reproduzido.
III. Conclusão
16. Em resumo, os atos do Primeiro Vice-Presidente, em substituição
eventual do Chefe do Legislativo, nas faltas e ausências episódicas deste, se
têm, em princípio, por válidos, ressalvada a carência de algum outro dos requisitos de validade dos atos administrativos, que não a competência — esta
legalmente deferida ao substituto automático (art. 39 do Regimento Interno).
A lei pode, contudo, vincular algum ou alguns desses atos a condição, como
sucede com a edição de precedente regimental, sujeita a ulterior ratificação
pela Autoridade substituída; o ato resta, se não ratificado por quem esteja no
exercício pleno das funções presidenciais, carente de eficácia, isto é, incapaz
de produzir efeitos de direito.
Tal o parecer, que encaminho à consideração de Vossa Excelência.
Rio de Janeiro, 05 de julho de 2000.
Francisco das Neves Baptista
Procurador-Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro em exercício
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