Miolo Paschoal Lemme 2

Transcrição

Miolo Paschoal Lemme 2
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
1
Paschoal Lemme
Memórias de um Educador
Volume 1
Infância, Adolescência, Mocidade
Volume 2
Formação Profissional e Opção Política
Volume 3
Estudos de Educação e Perfis de Educadores
Volume 4
Estudos de Educação, Participação em Conferências
e Congressos. Documentos
Volume 5
Estudos de Educação e Destaques
da Correspondência
PASCHOAL LEMME
MEMÓRIAS DE UM
EDUCADOR
Vida de Família, Formação profissional,
Opção Política
Volume 2
2ª edição
Apresentação de Jader de Medeiros Britto
Brasília-DF
2004
COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕES
Patrícia Barcelos
COORDENADORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Rosa dos Anjos Oliveira
COORDENADOR DE PROGRAMAÇÃO VISUAL
F. Secchin
EDITOR EXECUTIVO
Jair Santana Moraes
REVISÃO
Jardelino Bernardi
NORMALIZAÇÃO
Regina Helena Azevedo de Mello
PROJETO GRÁFICO/CAPA/DIAGRAMAÇÃO/ARTE-FINAL
Marcos Hartwich
FOTOS DA CAPA E DO FRONTISPÍCIO
Paschoal Lemme, 1988.
TIRAGEM
1.000 exemplares
EDITORIA
Inep/MEC - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 1, 4º Andar, Sala 418
CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil
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DISTRIBUIÇÃO
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CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil
Fone: (61) 2104-9509
[email protected]
http://www.inep.gov.br/pesquisa/publicacoes
Lemme, Paschoal, 1904-1997
Memórias de um educador / Paschoal Lemme. – 2. ed. – Brasília: Inep, 2004.
5 v. : il.
Conteúdo: v. 1. Infância, adolescência, mocidade – v. 2. Vida de família, formação profissional, opção
política – v. 3. Estudos de educação e perfis de educadores – v. 4. Estudos de educação, participação em
conferências e congressos, documentos – v. 5. Estudos de educação e destaques da correspondência.
1. Lemme, Paschoal, 1904-1997 - Biografia. 2. Escola pública. 3. Educação de adultos. 4. Lemme,
Paschoal, 1904-1997 - Correspondência. 5. Azevedo, Fernando - Correspondência. I Título.
CDU 92:37.011.31(81)
Em memória de:
Antonio Carneiro Leão
Fernando de Azevedo
Anísio Spínola Teixeira
M. B. Lourenço Filho
"os cardeais da educação brasileira" (segundo Afrânio Peixoto),
com quem tive a feliz oportunidade de colaborar.
Recordação carinhosa de:
Francisco Venâncio Filho
Edgar Süssekind de Mendonça
Ernesto Faria Junior
Pedro Gouvêa Filho
Valério Régis Konder
Edgard Guimarães de Almeida
amigos e companheiros inesquecíveis.
Homenagem a:
Armanda Alvaro Alberto
Branca Fialho
Alice Flexa Ribeiro
mulheres extraordinárias que aprendi a admirar.
Reconhecimento a:
Maria Geni Ferreira Silva
Ester Botelho Orestes
excelentes companheiras de trabalho e depois boas amigas.
Nos tempos que correm ninguém deve calar-se ou transigir.
J. W. GOETHE. Máximas e Reflexões
O silêncio é reacionário.
JEAN-PAUL SARTRE
Nel mezzo dei cammin di nostra vita
Mi retrovai per una selva oscura
Che la diritta via era smararita.
DANTE. A divina comédia
Querem uma originalidade absoluta? Não existe. Nem na arte nem
em nada. Tudo se constrói sobre o anterior, e em nada do que é
humano se pode encontrar a pureza. Os deuses gregos também eram
híbridos e estavam "infectados" de religiões orientais e egípcias.
ERNESTO SABATO. O escritor e seus fantasmas
E olhei para todas as obras que fizeram minhas mãos, bem como
para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis que tudo
era vaidade e aflição do espírito e que proveito algum havia debaixo do sol.
Eclesiastes, 2,11
SUMÁRIO
Apresentação da 2ª edição ................................................... 11
Explicação? .................................................................................. 15
Capítulo I
Acertando o rumo (1927-1928) .......................................... 17
Capítulo II
Entre os reformadores do ensino
no Brasil (1928-1929) ............................................................. 33
Capítulo III
A nova etapa de minha formação
profissional (1929-1930) ........................................................ 43
Capítulo IV
A revolução de 1930 e a Reforma Fernando
de Azevedo (1930-1931) ........................................................ 57
Capítulo V
O Instituto Brasileiro de Educação
– Ilusões perdidas (1931-1933) ........................................... 79
Capítulo VI
A Associação Brasileira de Educação – O Manifesto
dos Pioneiros da Educação Nova
(1932) ............................................................................................ 91
Capítulo VII
Minha volta à Diretoria de Instrução Pública
do Distrito Federal – A administração Anísio
Teixeira (1931-1935) .............................................................. 107
Capítulo VIII
Na Inspetoria de Ensino do Estado do Rio de Janeiro
(1933-1937) – Como me tornei professor de História
e Filosofia da Educação da Escola Superior
de Niterói (1952-1955) .......................................................... 147
Capítulo IX
Os tempos agitados e difíceis das opções
extremadas (1933-1935) .................................................. 175
Capítulo X
Nos presídios do capitão Felinto Strubling Müller
(1936-1937) ............................................................................... 195
Epílogo ......................................................................................... 243
Apêndice
As aulas de Sérgio Kamprad sobre Filosofia
na “Universidade da Cadeia” (Casa de Detenção
do Rio de Janeiro, 1936) ....................................................... 249
Referências bibliográficas ................................................... 263
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
APRESENTAÇÃO
DA 2ª EDIÇÃO
PASCHOAL LEMME: SERVIDOR DA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Celebra-se, neste ano de 2004, o centenário do
educador Paschoal Lemme. Nascido na cidade do Rio de
Janeiro em 12 de novembro de 1904, no bairro do Méier,
viveu numa família de classe média, sendo seu pai, de
origem italiana, dentista de profissão e sua mãe, de berço português, professora, inteiramente dedicada à educação dos filhos (Memórias, v. 1).
A formação de Paschoal, iniciada na família – foi
alfabetizado por sua mãe – , desenvolveu-se na escola
pública. Do primário ao superior, freqüentou sempre estabelecimentos da rede escolar do antigo Distrito Federal,
passando pela Escola Visconde do Cairu, pela Escola Normal do Rio de Janeiro e pela Escola Politécnica da rede
federal, na qual estudou engenharia até a 3ª série, pois já
havia se definido pelo total engajamento no universo da
educação. Disse a seu pai: "Se não for professor, não serei
mais nada!" (Memórias, v. 1).
Ativo colaborador das reformas do ensino no
município do Rio de Janeiro, durante as gestões de
Fernando de Azevedo (1928-1930) e Anísio Teixeira
(1931-1935), Paschoal já havia ingressado na Associação Brasileira de Educação (ABE), familiarizando-se com
os principais educadores de então (Memórias, v. 2).
Membro atuante dessa Associação, foi o mais jovem signatário do emblemático Manifesto de 1932, dos
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Pioneiros da Educação Nova, e um de seus articuladores (Memórias, v. 4). Ainda
que solidário com as idéias esposadas por esse Manifesto, nascido no âmbito da
ABE, terá sido no Manifesto dos Inspetores de Ensino do Estado do Rio de Janeiro
ao Magistério e à Sociedade Fluminense, de 1934 (Memórias, v. 4), que Paschoal,
seu principal redator, ao lado de Valério Konder, esboçou uma definição mais pessoal em termos de política educacional, ao adotar a premissa de que a educação, para
se tornar efetivamente democrática, pressupunha a transformação da própria sociedade, em termos de um real compromisso com a ascensão socioeconômica das classes
menos favorecidas.
Sua percepção objetiva da realidade vivida pelo operariado do Rio de Janeiro
levou-o, durante a administração do Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do
Distrito Federal, a organizar os cursos noturnos supletivos da União Trabalhista, considerada de orientação marxista pela polícia fascista do capitão Felinto Müller, nos
albores do Estado Novo. Ao lado de militantes socialistas como Graciliano Ramos e
Nise da Silveira, pagou o tributo da fidelidade a suas aspirações de justiça social,
recebendo o batismo do cárcere durante um ano e quatro meses (Memórias, v. 2).
Dessa experiência com o ensino supletivo, originou-se sua tese sobre
"Educação de Adultos", apresentada ao concurso para técnico de educação do
Ministério da Educação e Saúde Pública (Memórias, v. 5). Estando entre os primeiros classificados, foi convocado para integrar a equipe de Lourenço Filho na
organização do Inep, então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, de início como chefe da Seção de Documentação e Intercâmbio e, mais tarde, da
Seção de Inquéritos e Pesquisas.
Ao longo do Estado Novo e, após sua queda, no período seguinte, denominado de Democracia Liberal, sob a égide da Constituição de 1946, Paschoal Lemme
dedicou-se integralmente ao serviço público, sempre atuando no campo educativocultural, ora no Museu Nacional, ora no Instituto Nacional de Cinema Educativo.
Justamente nessa fase, em que simultaneamente exercia o magistério na Escola
Normal do Rio de Janeiro, foi divulgando suas idéias, por meio de livros como
Educação democrática e progressista, síntese de seu pensamento, mediante artigos, ensaios, cartas, relatórios técnicos ou comunicações a congressos nacionais e
internacionais de que participou. Em todos esses trabalhos, ressalta-se a absoluta
coerência e fidelidade a seu ideário, consubstanciado no leitmotiv de sua reflexão:
"Educação democrática somente numa sociedade democrática" (Memórias, v. 5).
Seu apurado gosto pela epistolografia fica evidente em sua farta correspondência constante de seu arquivo, por ele doado ao Programa de Estudos e
Documentação, Educação e Sociedade (Proedes), da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nela se destaca o intercâmbio com
Fernando de Azevedo, dos anos de 1930 a 1960 (Memórias, v. 5), além das cartas
aos jornais em que assume sempre a defesa da educação pública em todos os seus
aspectos. É nessa perspectiva que se tornou um dos principais articuladores do
Manifesto de 1959, dirigido ao povo e ao governo, da lavra de Fernando de
Azevedo. Debatia-se, então, no Congresso, o Projeto da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, marcado pela antinomia das correntes empenhadas na
primazia ideológica a ser concedida ao ensino público e ao ensino privado.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Ao reeditar os cinco volumes das Memórias, por ele estruturados, o Inep se
associa às justas homenagens que lhe estão sendo prestadas na celebração de seu
centenário, registrando o reconhecimento desse Instituto à relevante contribuição
do educador Paschoal Lemme, um de seus primeiros e qualificados servidores.
Para esta segunda edição, foram necessárias algumas alterações no título
dos volumes, com base em consulta a sua família, prevalecendo o título geral Memórias de um educador para todo o conjunto, com pequenos ajustes nos subtítulos
de cada volume. Acrescentou-se uma biobibliografia ao 5º, compreendendo a cronologia do educador, apoiada em seu curriculum vitae, por ele organizado, e sua
bibliografia, presente na primeira edição.
As idéias, reflexões e testemunhos de Paschoal Lemme reunidos nas suas
Memórias, certamente, poderão inspirar as novas gerações a melhor alicerçar sua
percepção dos caminhos para a educação brasileira.
Jader de Medeiros Britto
Rio de Janeiro, junho de 2004
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
EXPLICAÇÃO?
Este 2º volume destas minhas Memórias de um
professor abrange o período de dez anos, de 1928 a 1937.
Começa em 1928 com a minha convocação para
fazer parte da equipe que realizou a grande reforma de
ensino na capital do País, sob a liderança de Fernando
de Azevedo (e também com o nascimento de meu primeiro filho, em setembro desse mesmo ano) e termina,
dramaticamente, com a prisão de caráter político que
sofri, de fevereiro de 1936 a junho de 1937.
Desenvolveu-se nas três direções indicadas no
subtítulo: vida de família, formação profissional e opção política. E, segundo me parece, o texto explica-se
por si mesmo.
Entretanto, algum reparo poderá ser feito ao
fato dos dez capítulos de que se compõe o volume
terem recebido títulos que se referem, quase que exclusivamente, a ocorrências de minha carreira profissional, o que aliás procurei justificar ao longo da própria narrativa. É que minha vida de família e mesmo a
opção de caráter político que acabei por adotar estiveram sempre tão intimamente ligadas, imbricadas e
dependentes mesmo, de minha trajetória profissional
que, ao tentar reviver esse período, tal aspecto sobrepôs-se aos dois outros de maneira tão irrecusável, que
me levou a adotar suas várias etapas como as características das fases principais em que se dividiu o decorrer de minha vida nesses dez anos.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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É possível também que a leitura continuada do texto leve possíveis leitores
a fazerem objeção ou crítica semelhante à de alguns amigos que tiveram a oportunidade e a paciência de conhecer o manuscrito destas Memórias, quando se achava
ainda sem a revisão final. Esses amigos levantaram dúvidas sobre o que consideravam um excesso de citações e transcrições, algumas bastante extensas, de muitas
obras e opiniões de pessoas.
Também em relação a esse aspecto, tentei me justificar, não sei se com
sucesso, alegando que, pretendendo fazer a história de minha vida, mas sempre
procurando inseri-la no contexto geral da época em que ela decorria, pareceu-me
que muitas passagens e fatos se tornariam incompreensíveis ou até mesmo sem
qualquer significação, se não utilizasse o apoio da opinião e do depoimento de
outras personagens que viveram no mesmo período, participaram dos mesmos episódios ou influíram de maneira mais ou menos importante nos acontecimentos que
me atingiram e também em minha formação como homem, cidadão e profissional.
Quanto ao mais, conforme também me esforcei por explicar no próprio texto, não tive o objetivo de alcançar sucesso literário, do que não me julgo capaz,
quando resolvi me lançar nessa empreitada bastante árdua, muitas vezes tediosa e
quase desanimadora, em inúmeras ocasiões, ao tentar a revelação de aspectos, que
me parecem significativos, de minha vida pública e particular.
Teimei em levá-la ao fim, movido, principalmente, pela idéia de que, mesmo
modestamente, haveria tido a oportunidade de participar de alguns acontecimentos importantes, especialmente no que se refere à história da educação e do ensino
no País. E como, infelizmente, já não se contam entre os vivos, a quase totalidade
das figuras mais significativas que desencadearam ou impulsionaram esse movimento que se poderia, resumidamente, denominar como o processo de modernização da educação e do ensino no Brasil, pareceu-me, que, mesmo sem quaisquer
cintilâncias literárias ou maior aprofundamento técnico ou filosófico dos assuntos
tratados, deveria deixar registrado meu depoimento que, no futuro, talvez possa
servir de base ou inspiração para trabalhos de maior valia.
Por fim, devo expressar meu sentimento por não ter conseguido bastante
"engenho e arte" para produzir um documento com tal profundidade que pudesse
satisfazer àquelas condições a que se refere Ernesto Sabato, em certa passagem
desse seu admirável O escritor e seus fantasmas, quando afirma:
Considerando-se que o homem é um animal político, econômico, social e metafísico, na
medida em que seu documento seja profundo também será (direta ou indiretamente, tácita ou
explicitamente) um documento das condições da existência concreta de seu tempo e lugar.
Paschoal Lemme
Nesta casa de residência durante 45 anos, à
Travessa Santa Teresinha, número 16, Tijuca,
cidade do Rio de Janeiro, RJ, na manhã de 31
de outubro de 1982.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO I
ACERTANDO O RUMO
(1927-1928)
Naquele ano de 1927 pareceria que os caminhos
principais da minha vida estavam traçados.
Ao trabalho, que tomara rumos mais satisfatórios,
e à continuação dos estudos na Escola Politécnica, que
me envaideciam, acrescentara-se o casamento, que era
o calmante natural para as exigências físicas e afetivas,
que se tornavam cada vez mais imperiosas.
A essa distância de mais de meio século, vejo-me
assim, aos 23 anos, percorrendo essas três linhas bem
definidas de vida: do trabalho, dos estudos e da família
- como objetivos que se me afiguravam definitivos, em
seu natural desenvolvimento.
Mas a vida humana é cheia de imprevistos e
acasos, e não é sem razão que a sabedoria popular
resume esse indeterminismo num de seus provérbios
mais conhecidos: "o homem põe e Deus dispõe".
•••
A Escola Profissional Visconde de Cairu, minha
alma mater,1 já havia sido instalada no novo prédio do
Morro do Vintém, construído especialmente para ela. Fora
uma conquista árdua de seu diretor e fundador – o professor Teófilo Moreira da Costa – mas que o levaram a
1
Ver o primeiro volume destas Memórias.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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um desgaste tal, que dentro em pouco adoecia gravemente e, por fim, a 3 de janeiro de 1928, falecia.
Convidado por esse saudoso mestre e amigo, estava eu então lecionando
complementos de matemática no último ano do curso da Escola – o 7º programa
estendia-se especialmente na parte referente à geometria plana e ao espaço,
base indispensável para os trabalhos práticos, de caráter profissional, que os alunos desenvolviam nas oficinas. Constituía também fundamento para os cursos de
desenho que o professor Teófilo entregara à competência de Pedro Paulo Bernardes
Bastos e de Salvador Duque Estrada Batalha, que já vinham se distinguindo na
arquitetura, como competentes profissionais.
Para a secretaria da Escola, o professor Teófilo levara sua filha mais velha
- Maria de Lourdes Costa: formada na severa escola do pai, inteligente, ativa,
agradável no trato, mantinha a parte administrativa do estabelecimento em boa
ordem e atendia alunos, pais e responsáveis, sempre com a necessária cortesia e
bom humor. Inicialmente, sem qualquer prática de trabalho, tornou-se, em pouco tempo, elemento importante no funcionamento da "Cairu", como carinhosamente era denominada nossa escola.
Estabelecera-se assim um ambiente harmonioso, regido pelo idealismo
onipresente daquele homem franzino, aparentemente austero, e que dava tudo de
si para a realização do sonho que alimentava até ao extremo sacrifício: criar um
estabelecimento modelar de ensino e de trabalho, no qual transformaria até o mais
chucro dos adolescentes numa criatura humana, decente e capaz.
E esse sonho embalou-o até os últimos momentos de sua vida fecunda ao
exclamar, já moribundo, como derradeira preocupação:
– E a Cairu? E os pequenos?2
•••
Em breve, porém, a Escola recebia nova direção e pouco depois era reorganizada com novos planos de ensino.
Essas alterações não resultaram apenas na mudança da direção do estabelecimento, mas provinham de um movimento muito mais amplo de reforma do ensino
que se instaurara no Distrito Federal, a antiga capital do País.
A grande modificação que esse movimento produziu em minha vida justifica que me alongue aqui na pesquisa de suas origens históricas e posterior
desenvolvimento.
O governo tempestuoso de Artur Bernardes findara a 15 de novembro de
1926, com a posse do novo presidente eleito, Washington Luis Pereira de Souza.
Houve, então, como que um alívio geral no ambiente de tensão em que o País
vivera no quatriênio anterior, decorrido praticamente tudo em "estado de sítio", por
meio do qual procurava o governo sufocar os movimentos de rebeldia de caráter
social, político e militar que explodiram, a partir da primeira sublevação armada dos
"tenentes", em 5 de julho de 1922, ainda no governo de Epitácio Pessoa.
2
Sobre a obra do professor Teófilo Moreira da Costa ver o capítulo do volume I destas Memórias.
18
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
A suspensão do "estado de sítio" estabelecida para o último dia do ano de
1926, as medidas que se anunciavam de desafogo econômico-financeiro, o
restabelecimento das liberdades constitucionais fizeram com que se criasse uma
espécie de trégua nas lutas político-sociais que o povo brasileiro travava e cuja
manifestação mais ostensiva era o inconformismo dos jovens oficiais do Exército
que se levantaram em armas nos dois 5 de julho (1922 e 1924). Esses movimentos
tiveram prosseguimento depois na coluna Prestes-Miguel Costa – com sua heróica
marcha através de quase todo o território nacional, durante o qual foi percorrido
um total de 24 mil quilômetros, tendo sido formada em 1925. A 3 de fevereiro de
1927, Luis Carlos Prestes, o "Cavaleiro da Esperança", o então comandante da Coluna, resolveu internar-se na Bolívia, com os companheiros que o quiseram acompanhar, demonstrando assim que participava também desse sentimento da trégua
que a posse de Washington Luis na presidência da República viera tacitamente
estabelecer.
É certo que a euforia e as ilusões não foram duradouras.
Em breve, para reprimir manifestações de rebeldia da classe operária, já
então liderada pelo Partido Comunista, fundado em 1922, era votada, ainda em
1927, a chamada Lei "Celerada", que cercava a liberdade de imprensa e o direito de
reunião. O próprio presidente segundo se dizia, não hesitava em afirmar que "a
questão social era um caso de polícia"...
Otávio Brandão (1978, p. 335), um dos líderes do movimento operário da
época, assim se refere à elaboração dessa lei:
Em 1927, o governo Washington Luís pediu um empréstimo aos bancos ingleses. Estes
exigiram "garantias". O governo enviou ao Parlamento o projeto de uma lei profundamente
reacionária, que recebeu o nome de Lei "Celerada". O projeto foi apresentado pelo deputado
Aníbal de Toledo, politiqueiro ligado aos latifundiários de Mato Grosso. Ele declarou basear-se
nas informações da polícia inglesa sobre o PCB. Assim, sem querer, denunciou a origem do
projeto.
Em breve, pois, a trégua começa a ser rompida, os problemas antigos e
novos reaparecem, e, exacerbados pela crise mundial de 1929, vão explodir no
movimento armado de 1930, que pôs fim à 1ª República ou República Velha.
O Distrito Federal, sede da capital da República – a cidade do Rio de Janeiro
– , não tinha autonomia política. O chefe do Poder Executivo – o prefeito – era
nomeado livremente pelo Presidente da República. O Poder Legislativo era exercido
por um Conselho Municipal, composto de intendentes, eleitos por voto direto do
povo. Assumindo a chefia do governo federal, Washington Luís nomeou para prefeito Antonio Prado Junior, de tradicional família de São Paulo. Recebido, a princípio, com muitas reservas pelos meios políticos da capital, revelou-se depois excelente administrador. Homem rico e viajado, fez grandes melhoramentos na cidade
e tomou uma providência que já se fazia necessária para impedir a expansão caótica da capital – sede do governo da República – e foco de irradiação política e
cultural do País: contratou os serviços do arquiteto francês Alfred Agache para
elaborar um plano completo de desenvolvimento do Rio de Janeiro. Infelizmente,
esse plano foi posteriormente abandonado e os malefícios de um crescimento
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desordenado, ao sabor das iniciativas de cada governante, de interesses espúrios e
especialmente da ganância das empresas imobiliárias, transformaram com o correr
dos anos numa ironia a denominação que um dia recebeu minha cidade natal:
cidade maravilhosa.
•••
Das diretorias gerais que compunham a administração municipal, uma das
mais importantes, era, sem dúvida, a Diretoria Geral de Instrução Pública. Por ela
passaram figuras das mais ilustres dos meios intelectuais do País, tais como um Medeiros
e Albuquerque, um Amaro Cavalcante ou um Afrânio Peixoto. Na administração anterior coubera a Antonio Carneiro Leão, intelectual e publicista pernambucano, a
direção dos serviços de instrução pública da capital da República. Apesar de ter sua
ação cerceada pelas condições adversas que teve que enfrentar durante o governo de
Artur Bernardes e da hostilidade que sofreu por parte do prefeito Alaor Prata, conseguiu realizar algumas melhorias parciais. Cercando-se dos melhores elementos do
próprio magistério, tentou tirar a Diretoria de Instrução de sua condição de simples
repartição burocrática para transformá-la num órgão vivo de comando e modernização dos métodos de ensino. Não tendo conseguido, pelas razões citadas, introduzir
reformas mais profundas, empenhou-se entretanto, em resolver um dos problemas
mais importantes de qualquer administração de ensino, qual seja, o do aperfeiçoamento e da atualização dos conhecimentos do magistério, o que realizou, na medida
do possível, através de cursos especializados, ministrados por eminentes professores.
Como já informei no volume 1 destas Memórias, tendo recebido minha primeira nomeação para o ensino público do Distrito Federal durante a administração
Carneiro Leão (1924), tive a oportunidade de acompanhar esses cursos de aperfeiçoamento lecionados por conceituados professores, tais como Carlos Delgado de
Carvalho, Everardo Backheuser, Fernando Nerêo Sampaio, Edgar Süssekind de Mendonça, Pedro Deodato de Morais, entre outros.
Tal iniciativa, aparentemente muito modesta, tinha entretanto uma grande
significação prática, dada a precariedade dos cursos que os candidatos ao magistério primário faziam nas Escolas Normais da época, especialmente no tocante à
parte de especialização profissional (pedagogia, metodologia, psicologia, etc.).
Com o início do governo de Washington Luís e a nomeação do novo prefeito
Antonio Prado Junior, novas esperanças voltaram a agitar os elementos mais progressistas ligados ao ensino do Distrito Federal, já motivados pelo esforço feito por
Antonio Carneiro Leão. Sendo paulistas o presidente e o prefeito, começou-se desde logo a falar na nomeação também de um paulista para assumir a direção do
ensino na capital do País.
E foi o que realmente aconteceu.
O primeiro nomeado foi o professor Renato Jardim, amigo pessoal do Presidente da República. Empossado no cargo, empreendeu um balanço geral nas condições do ensino e do órgão que o dirigia no Rio de Janeiro. Os vícios e as grandes
falhas que encontrou, motivo de um extenso relatório confidencial, parece que o
deixaram inteiramente desanimado com as possibilidades que teria de corrigi-los e
corresponder assim à confiança que nele depositava o Presidente e o Prefeito, para
20
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
se desincumbir da pesada tarefa. E, por fim, levaram-no à desistência de continuar
à frente do cargo.
É certo que deve ter concorrido também para esse gesto a hostilidade com
que foi recebida sua investidura pelos elementos que então dominavam o ensino
no Distrito Federal – especialmente os inspetores escolares – movidos por um sentimento negativo de "bairrismo" que sempre existiu entre o Rio de Janeiro e São
Paulo e também pelas referências pouco lisonjeiras que transpiraram do relatório
elaborado sob a direção do professor Renato Jardim.
Guardo até hoje uma nota publicada pelo Correio da Manhã, em que essa
hostilidade se manifestava até no próprio título: "A Diretoria da Instrução Municipal – O Sr. Jardim foi um bluff'" e que continuava assim:
Não causou desgosto e muito menos estranheza a retirada do Sr. Renato Jardim do cargo
de diretor da Instrução Pública Municipal.
O que se deu era de esperar.
Todos os que tiveram ocasião de tratar com o pedagogo provinciano, impingido ao professorado municipal como notabilidade do ensino paulista (como se São Paulo não tivesse excelentes especialistas nesse e em outros ramos de atividade social) traziam a impressão de lidar com
um homem gasto, já sem forças para arrastar os embates de um cargo trabalhoso. Demais, a
publicação de seu relatório, mal alinhavado e dado à estampa, poucos dias depois de sua
investidura no lugar de diretor, mostrou, por um lado, o seu espírito trêfego, emitindo opinião
sobre serviços que não viu, que não observou pessoalmente, pois que as escolas se fecharam
poucos dias depois de sua posse e, por outro, a ausência de seus apregoados conhecimentos, dos
quais não há nenhuma demonstração, no seu trabalho de demolição do ensino carioca. Que
esse diretor não era uma autoridade de ensino, um alto espírito, animado do propósito de
prestar um grande serviço à instrução da capital do Brasil, com idéias nobres e elevadas, como
seria de esperar, ficou evidenciado em pequenos atos administrativos comentados desfavoravelmente nos círculos do magistério e no trabalho a que já aludimos e no qual fez questão de
divulgar mazelas administrativas, sem apontar tudo quanto de bom existe e sem haver visitado
um décimo sequer dos estabelecimentos anexos à sua diretoria e escolas municipais. Visitou três
ou quatro escolas, ouviu um ou dois alcoviteiros administrativos e, antes de ir contar as notas da
Caixa de Estabilização, quis deixar de sua rápida passagem pela Diretoria de Instrução o traço
desse trabalho em que a um tempo pretendeu desacreditar as administrações anteriores, as
escolas e os professores.
E por fim:
O novo diretor de Instrução Pública, professor Fernando de Azevedo, embora não muito
conhecido nesta capital, traz, como credencial, o fato de pertencer à redação de um grande
órgão da imprensa paulista e de ser apontado pelos jornais daquela cidade como um espírito
inteligente, culto e empreendedor.
Era esse o ambiente da época.
O professor Renato Jardim, deixando o cargo de Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, foi nomeado Diretor da Casa de Estabilização, órgão
importante nos planos do novo governo, em vista das providências que adotou
para a regularização da circulação monetária.
Mais tarde, voltando a São Paulo e ao magistério, o professor Renato Jardim
dedicou-se especialmente ao ensino da geografia, tendo publicado uma coleção de
livros modernos para o estudo dessa matéria, nos níveis primário e secundário.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
21
•••
Com a saída de Renato Jardim, ia se iniciar no Distrito Federal o grande
movimento de Reforma de Ensino, que por sua extensão e significação, ganhou
renome nacional, e até internacional, e se inseriu na história da educação do Brasil
como marco decisivo no processo de modernização do ensino no País.
A liderança desse movimento iria caber ao professor Fernando de Azevedo,
nascido em Minas Gerais (São Gonçalo do Sapucaí, 1894-1974), mas radicado em
São Paulo, onde exercia o magistério e se dedicava ao jornalismo num dos órgãos
de imprensa mais importantes do País – O Estado de S. Paulo. De sólida formação
humanista, sua mais recente notoriedade viera do inquérito sobre a situação do
ensino em São Paulo, que realizara por incumbência daquele órgão da imprensa
paulista, posteriormente publicado em volume (Azevedo, 1960).
Sobre esse inquérito é o próprio professor Fernando de Azevedo (1971, p.
75) quem escreve:
Quando fazia a crítica literária no O Estado de S. Paulo, fui incumbido pelo meu amigo Júlio
de Mesquita Filho, de proceder a um inquérito sobre a instrução pública em São Paulo. Um vasto
inquérito que durou meses e do qual se concluiu que estávamos numa encruzilhada, em que se
abriam para a educação dois caminhos: o do conservantismo ou do reacionarismo e o de transformações radicais. Eu optava francamente por este, com o apoio sem reservas de O Estado.
Sua indicação para o cargo de Diretor da Instrução Pública do Distrito Federal fora feita pelo próprio professor Renato Jardim ao Presidente da República, que
a aceitou e recomendou-a ao prefeito Antonio Prado Junior.
Sobre sua nomeação depõe o professor Fernando de Azevedo (1971, p. 75):
Um dia, em janeiro de 1927, fui chamado ao telefone. Era Alarico Silveira, secretário da
Presidência, que desejava falar comigo, da parte do presidente. Declarou-me ele então que
Washington Luiz indicara ao prefeito o meu nome para suceder a Renato Jardim no cargo de
Diretor Geral da Instrução Pública, no Distrito Federal, e que ele, o prefeito acolhera meu nome
sem reservas. E pedia-me resposta urgente.
E adiante:
No dia seguinte ao de nossa última conversa por telefone, parti e, ao chegar ao Rio, procurei Alarico Silveira que me pôs em contato com o presidente e, logo em seguida, solicitou ao
prefeito uma hora para me receber e conversarmos sobre o assunto. pois somente após essa
conferência com o prefeito, poderia dar resposta definitiva. Marcada hora, compareci no seu
gabinete, onde fui imediatamente recebido. Nossa palestra foi de parte a parte leal e franca.
Embora agradecido com o convite com que me honrou, e que em princípio aceitara, só podia
anuir aos seus desejos, em caráter definitivo, sob certas condições que pedia licença para expor,
submetendo-as à sua apreciação.
Por tudo o que já sabia da Instituição Pública, no Distrito Federal, e que foi confirmada no
relatório de Renato Jardim (e passei-lhe logo às mãos uma cópia), nós tínhamos que proceder a
reformas radicais. Necessárias e inadiáveis, que ouvisse mais uma vez, se assim o entendesse, o
julgamento de Renato Jardim, para sentir, em sua plenitude, a gravidade da situação. Eu estava
disposto a enfrentá-la. "Meu programa" – disse ao prefeito – "é lançar-me a profundas reformas, custe o que custar, custe a quem custar, e custe quanto custar". Antonio Prado Junior, a
princípio um pouco assustado, concordou e decidiu-se apoiar-me sem reservas.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mas, quanto à parte "custe quanto custar", isto é, quanto às despesas que essas reformas
poderiam acarretar, ele não teria provavelmente recursos para enfrentá-las. Era péssima a situação financeira que encontrara na Prefeitura. Os próprios auxiliares de gabinete e assessores de
que precisava, teria de pagar de seu bolso. Mas para uma obra dessas, de tamanha importância,
como a do ensino e da educação, ele esperava encontrar a ajuda do presidente. Que assumisse o
cargo, e nada me faltaria para a execução de meus planos. À vista dessas palavras, tão claras e
firmes, concordei em aceitar o pesado encargo. E foi marcada a data de minha posse, a 17 de
janeiro de 1927 (Azevedo, 1971).
Nomeado e empossado, nessas circunstâncias, no cargo de diretor geral da
Instrução Pública do Distrito Federal – o centro de maior repercussão administrativa e cultural do País – sua capital – dentro em breve ia-se sentir toda a força da
ação de Fernando de Azevedo, seu ímpeto, sua energia, sua capacidade, sua independência, às vezes áspera, mas, ao mesmo tempo, sua habilidade em inspirar
confiança de modo a aglutinar em torno de si um grupo constituído dos melhores elementos do magistério e da administração, que se deixaram contagiar pelo
entusiasmo do líder e pelo alcance da obra a realizar, e que se tornaram seus
dedicados companheiros de lutas, revezes e vitórias.
•••
A primeira coisa a fazer era dar um balanço geral em toda a legislação
existente, imensa e caótica, e que, segundo dizia Frota Pessoa, o secretário-geral
efetivo à frente desde muitos anos dos serviços administrativos da Diretoria Geral
de Instrução Pública, "necessitava de todo um caminhão" para ser transportada
para um local em que pudesse ser estudada, conforme solicitava o diretor.
Para proceder a esse balanço e, ao mesmo tempo, iniciar, desde logo, a
redação de um anteprojeto de lei que fosse um verdadeiro "código de educação"
moderno, à altura das novas necessidades do país, e que deveria ser enviado para
discussão e aprovação do Conselho Municipal, Fernando de Azevedo tomou, desde
logo, duas previdências:
Uma delas foi a de retirar o gabinete do diretor do antigo casarão colonial,
sede do governo municipal, situado na Praça da República, sem quaisquer condições para um trabalho eficiente, e instalá-lo num local longe daquele ambiente de
repartição burocrática, esterilizante, onde fosse possível estabelecer uma atmosfera apropriada a estudos e debates das várias comissões que deveriam se incumbir
da redação do referido anteprojeto de lei.
Esse local foi encontrado no 3º pavimento do prédio em que funcionava a
Escola Deodoro, à Rua da Glória, próximo ao Largo da Lapa, num ambiente puramente escolar, onde até as condições de ventilação e o panorama que se descortinava
sobre a Baía de Guanabara constituíam fatores favoráveis à execução das complexas tarefas que se impunham aos reformadores. Ali se instalou verdadeiro "quartelgeneral" da grande reforma de ensino, comandado por Fernando de Azevedo.
A segunda providência foi a convocação dos elementos da melhor categoria
do magistério e da administração para colaborarem na discussão e elaboração da
nova lei de ensino, trazendo para isso sua experiência e aspirações, quase sempre,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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antes sufocadas pela situação anterior de falta de estímulo, ocasionado pelo ambiente então reinante de "tricas e futricas", meramente burocráticas e de baixa politicagem que comprometiam os serviços da instrução pública.
Conquistando Frota Pessoa, o subdiretor administrativo, que havia muito tempo
dominava todo o setor burocrático da Diretoria, e que era quase sempre um opositor
sistemático a qualquer tentativa de mudança daquela situação, mas que se viu desde
logo impressionado pela personalidade marcante de Fernando de Azevedo, e pela
disposição inabalável que viu nele de levar a cabo "custasse o que custasse" a obra em
que estava empenhado; recrutando diretores como Jônatas Serrano, líder católico, de
grande cultura e prestígio, que apesar de não comungar inteiramente com a filosofia
de vida do novo diretor, sentiu toda a inteireza de sua posição e honestidade de
propósitos e dispôs-se a ajudá-lo; obtendo a colaboração dos mais destacados professores e diretores das escolas profissionais e da Escola Normal e dos elementos mais
capazes da inspeção e do magistério primário; pôde ser reunida excelente equipe, que
trouxe o melhor de sua experiência, completando o ímpeto do reformador com o
conhecimento e vivência das situações locais concretas.
Entre muitos outros, devem ser destacados os nomes de Francisco Venâncio
Filho, professor de renome do Colégio Pedro II e da Escola Normal, profundamente
interessado nos problemas de educação e ensino, e amigo íntimo de Fernando de
Azevedo, Edgar Süssekind de Mendonça, Fernando Nerêo Sampaio, Paulo Maranhão,
Maria dos Reis Campos, Álvaro Rodrigues, Zélia Braune, Manoel Marinho, Andréa
Borges Costa, Oscar Clark, Coelho Neto (então diretor da Escola Dramática), Florípedes
Anglada Lucas, Cecília Meireles.
Na imprensa, em O Jornal, Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, sobrinho de
Frota Pessoa e destacado jornalista, dispõe-se, desde o início, a colaborar nas lutas
que a Reforma deveria desencadear. Mais tarde, o próprio Frota Pessoa, no Jornal
do Brasil, e Diniz Junior, em A Noite, participaram também ativamente na defesa
da Reforma.
Além disso, um movimento paralelo de propaganda e discussão das novas
idéias da "escola nova", da "educação renovada", que a Reforma deveria adotar, era
lançado pela Associação Brasileira de Educação, fundada em 1924, tendo à frente
Heitor Lira da Silva, Francisco Venâncio Filho, Everardo Backheuser, Mano de Brito,
Barbosa de Oliveira, Edgar Süssekind de Mendonça, Armanda Álvaro Alberto e muitos outros professores, educadores e intelectuais da maior projeção.
Essa esplêndida equipe, depois de alguns meses de trabalho exaustivo e minucioso, sempre sob o comando esclarecido e entusiasta de Fernando de Azevedo,
reunia o trabalho de todas as subcomissões e redigia o anteprojeto de lei que deveria ser enviado ao Conselho Municipal para discussão e posterior aprovação.
Citando ainda Fernando de Azevedo (1971):
A Comissão da Reforma, por mim constituída e de que faziam parte entre outros, Renato
Jardim e Frota Pessoa, trabalhou meses a fio, com minha assistência e sob minha orientação.
Estávamos todos de acordo quanto às bases e diretrizes da reforma, que prometia ser, e na
verdade foi, uma reforma revolucionária. Já não se tratava de reforminhas e reformecas. Mas
instalação de uma nova ordem de coisas. Enquanto se trabalhava na comissão reconstrutora do
ensino e da educação, o que havia por fora era um ambiente de expectativa e de oposição, que
iria desencadear-se com uma força e violência inesperadas.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mas eu estava preparado para isso, porque era com isso que contava. Pronto o projeto, e
dada por mim sua redação final, eu devia levar, como levei, ao prefeito Prado Junior, para que,
aprovado, fosse encaminhado ao Conselho Municipal. Foi o que se fez. O que submeti à aprovação do prefeito, foi um projeto de reformas radicais que apresentei, com uma larga e bem
fundada exposição de motivos. O senhor prefeito o aprovou sem restrições e o encaminhou ao
Conselho Municipal, que devia sobre ele pronunciar-se.
Enquanto esperava essa tramitação do projeto no Legislativo da Cidade, a
Diretoria ia tomando várias iniciativas na expectativa da implantação da Reforma.
A principal delas foi o recenseamento escolar, o primeiro que se realizava na capital
da República. Planejado, realizado e apurado em menos de dois meses, os resultados colhidos foram desoladores. "O Distrito Federal não dava ensino primário senão
a pouco mais da metade das crianças em idade escolar" (Azevedo, 1971).
Com a remessa do projeto de reforma do ensino ao Conselho Municipal,
uma nova e mais árdua batalha teve que ser travada.
O legislativo carioca, fiel a velhos hábitos de clientelismo político, queria
negociar a aprovação da lei através da garantia para os intendentes de uma
percentagem das nomeações para as inúmeras vagas nos quadros de serviços de
educação que se abririam com a execução da reforma: desde inspetores de ensino, médicos escolares e professores de ensino secundário e normal até porteiros e
serventes das escolas primárias.
Fernando de Azevedo manteve-se intransigente: ou votavam a Reforma
na íntegra, sem qualquer compromisso ou a recusavam in totum. Todos os novos
cargos seriam preenchidos por meio de concursos públicos, abertos a quantos
preenchessem os requisitos necessários.
Com a demissão de todos os antigos docentes do ensino normal, nomeados
sem concurso e em excesso, muitos deles de grande prestígio político, a luta agravou-se tremendamente.
A imprensa refletia esse ambiente de tensão e conhecidos colunistas lançavam-se numa campanha áspera e contundente contra a Reforma, não sendo
sequer poupada a vida particular dos elementos mais destacados da administração do ensino.
Ficou célebre a coluna mantida por Brício Filho, em O Globo, jornal muito
popular na época, onde diariamente desancava furiosamente Fernando de Azevedo,
seus principais auxiliares e especialmente Jônatas Serrano, seu colega como professor
da Escola Normal, mas agora exercendo o cargo de subdiretor técnico da Diretoria de
Instrução Pública, que era achincalhado com expressões chulas tais como
"supertécnico", "pirotécnico" e outros. O fogoso jornalista não perdoava ao colega,
grande professor de história e líder católico, o fato de ter inspirado, como diretor da
antiga Escola Normal, a renovação dos quadros de professores pela abertura de concursos para todas as cátedras vagas, criados pela Reforma, ou resultantes das demissões dos docentes, cujas nomeações foram consideradas irregulares.
Um problema básico em qualquer reforma de ensino é, sem dúvida, a formação de novos quadros de professores pois são eles, em última análise, os executores das novas diretrizes impressas ao ensino. E a velha Escola Normal era um dos
estabelecimentos mais necessitados desse sopro de renovação com que a Reforma
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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pretendia arejá-la. E eu que a cursara, podia dar meu testemunho pessoal com
inteiro conhecimento de causa.
Convocado o prefeito pelo Conselho Municipal para esclarecer certos pontos do projeto que os intendentes julgavam pouco claros ou inadequados, foi
Fernando de Azevedo incumbido de representá-lo, como autor da Reforma. Em
memorável e rumorosa sessão pública, na qual, em certo momento, até um tiro foi
disparado no plenário do Conselho, Fernando de Azevedo rebateu ponto por ponto
as críticas e esclareceu todas as questões controvertidas.
Um dos mais veementes contestadores era Maurício de Lacerda, talvez a
figura mais destacada entre os intendentes: não poupou Fernando de Azevedo,
submetendo-o a um verdadeiro bombardeio de críticas e objeções, demonstrando
ter lido cuidadosamente todo o projeto.
Para surpresa geral, porém, no final da tempestuosa sessão Maurício de Lacerda
pede a palavra para dizer textualmente que "não poupara com apartes e objeções ao
Diretor da Instrução Pública, autor da Reforma, apenas para ver até que ponto ele
tinha consciência de reformas tão radicais e disposição de executá-las".
E é Fernando de Azevedo (1971), rememorando o episódio em sua História
da minha vida, quem escreve:
Em face dos debates, Maurício de Lacerda se convencera que o diretor era um homem, um
reformador que sabia o que queria e iria até o fim, enfrentando todas as dificuldades, para
executar o que planejara. Diante disso, ele, Maurício de Lacerda, hipotecava toda sua solidariedade ao reformador da educação no Distrito Federal. Ele conhecia bem a Reforma para não
hesitar em lhe assegurar apoio sem reservas. E diante dos debates travados entre o diretor e os
conselheiros, mais se firmou nessa convicção. E pedia ainda constasse da ata daquela sessão
especial um voto de louvor ao Diretor Geral da Instrução por ter acudido ao convite do Conselho para vir, democraticamente, explicar e defender sua reforma perante a assembléia política,
a cuja apreciação o prefeito a submetera, como tinha de submeter-lhe. Maurício de Lacerda
propôs e todos o aprovaram.
Mas as manobras continuaram e se prolongaram até o final do ano de 1927.
Por fim, conta ainda Fernando de Azevedo (1971):
Nos últimos minutos da noite de 31 de dezembro de 1927, depois de luta renhida e tempestuosa, Maurício de Lacerda levou o Conselho Municipal a capitular. O grande tribuno – realmente o único parlamentar do Conselho – dispôs-se a obstruir, dias e dias seguidos, todos os
projetos inclusive o orçamento de 1928, até que o Conselho se decidisse a aprovar o projeto da
reforma da educação: ou passa a reforma ou não passa nada: foi o seu grito de guerra contra os
que nos combatiam...
Um grave problema ia sendo criado com a não aprovação do orçamento geral
para 1928. O fato preocupou seriamente o prefeito que se dispôs até a renunciar ao
cargo. Afinal, no último minuto de 1927, o Conselho capitulou, pois estava interessado na aprovação do orçamento e em outros projetos, e a reforma foi aprovada.
Novas lutas deveriam, porém, ser travadas. Muitos dispositivos tinham sido
introduzidos no projeto que o desfiguravam e com os quais Fernando de Azevedo
não concordava. Tratava-se agora de identificá-los cuidadosamente e levar o prefeito a vetá-los, um por um, num total de quarenta e poucos. Houve da parte do
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
prefeito alguma hesitação, mas a firmeza inabalável do reformador acabou por
convencer Prado Junior a vetar as modificações inconvenientes apontadas.
Pela legislação da época, esses vetos teriam que ser submetidos à apreciação
do Senado Federal e aí, mais uma vez, um grande esforço teve que ser realizado
para escoimar o projeto de todos os adendos julgados indesejáveis. A maioria desses dispositivos, introduzidos no projeto e que foram vetados pelo prefeito, referiase a situações pessoais ou de grupos que desejavam manter ou ampliar suas vantagens e privilégios contra o interesse público. A pressão desses interessados e do
próprio Conselho Municipal sobre o Senado foi enorme, exigindo até a intervenção
do presidente da República, através de destacados políticos de projeção nacional.
Afinal, depois de inúmeras manobras políticas, a única saída encontrada foi
mesmo a aprovação integral dos vetos do prefeito e assim a lei foi restabelecida em
suas linhas primitivas. A sanção do prefeito se dera a 23 de janeiro de 1928, data
essa que é considerada um marco na história do ensino no Brasil.
•••
No decorrer desse ano de trabalhos incessantes, lutas e preocupações muitas providências já tinham sido adotadas em vista da execução da nova lei. Tratava-se agora, porém, de pôr em prática o conjunto das novas medidas estabelecidas
pela Reforma e aí é que se ia pôr à prova a inevitável distância que sempre existiu
entre os ideais inscritos no papel – na lei – e a realidade objetiva.
Uma imensa tarefa teria que ser realizada para formar, recrutar e selecionar
pessoal de toda a natureza, desde professores catedráticos da Escola Normal, professores do ensino profissional, das mais variadas cadeiras, inspetores, médicos e
dentistas escolares, até como já disse, porteiros e serventes de escolas primárias.
Havia que elaborar o novo regulamento, novos programas de ensino em todos os
níveis e modalidades de matérias: instalar os serviços criados pela reforma; executar um grande plano de construção de edifícios escolares modernos, sendo um dos
principais um prédio condigno para abrigar o novo estabelecimento de formação
dos professores da capital do País. Além disso, havia as inúmeras providências a
serem adotadas no dia-a-dia das atividades da Diretoria, onde sempre novos problemas se acumulavam, atritos surgiam, reclamações, recursos, protestos de velhos
elementos inconformados, contra medidas adotadas que continuavam a resistir a
perda de vantagens ou privilégios, que sei mais: aqui a linguagem mais uma vez
falha, pois é praticamente impossível descrever em palavras com exatidão, esse
processo diuturno, lento e muitas vezes enervante e áspero com que as novas idéias, novos hábitos, novas determinações, novo estilo, vão solapando, pouco a pouco,
o que é velho, ultrapassado, mas que continua a se opor até o último alento.
Muitas opiniões de educadores e intelectuais brasileiros e estrangeiros foram registradas sobre o valor e o alcance dessa verdadeira revolução educacional
que se realizava no Rio de Janeiro. Julgo, porém, interessante citar apenas duas. A
primeira do pensador uruguaio Manuel Bernardez, em artigos para os jornais O
Paiz e La Razón, de Buenos Aires, dos quais destaco os seguintes trechos:
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Confessei minha ignorância e um pouco minha surpresa. Então o Rio de Janeiro, cujas
escolas eu conhecia muito bem, e que até há pouco dormiam ainda a sesta colonial, tinha
realizado de uma vez, de improviso, a reforma total do seu ensino, em todas as escolas de seu
vasto Distrito? Parecia impossível. Mas era assim. O Rio de Janeiro realizava, num arranco formidável, mas não por surpresa e às cegas, senão num arranco refletido, medido, deliberado,
metódico, integral, o que nenhuma capital do mundo pôde ainda realizar, nem mesmo Bruxelas, onde quase todos os professores e mestres-escolas estão convencidos de que a "escola
ativa", a nova forma científica e humana de ministrar instrução, se impõe a todos os espíritos
cultos, mas onde a escola congregacionista que açambarca mais da metade da infância escolar
opõe uma barreira espessa ao avanço do ideal contemporâneo. O Rio de Janeiro, que há trinta
anos fez quase uma revolução e queimou bondes nas ruas para se opor à vacina obrigatória,
acaba de se situar, nessa matéria transcendental da instrução pública, à frente de todas as
capitais do mundo civilizado...
A outra opinião é de Adolphe Ferrière, considerado o pioneiro das idéias da
"escola nova" na França. Em artigo publicado na revista Pour l'Ère Nouvelle, órgão
oficial da Liga Internacional para a Educação Nova (ano 10, n. 67, abril de 1931),
escrevia:
Quelle surprise de recontrer au Brésil une des formes les plus complètes de l'education
nouvelle! Hier encore, c'était au point de vue pédagogique un des pays les plus arriérés du
monde. Aujourd'hui – précision: depuis la loi scolaire du District Fédéral de Rio de Janeiro de
1928 – il rivalise avec Chile et le Méxique, en Amérique, avec Vienne, en Europe, avec Turquia,
en Asie. Un homme a fait ce miracle, une cerveau clair, lucide, une volanté calme, harmonieuse.
J'ai nommé M. Fernando de Azevedo, directeur général de l'Instruction Publique du District
Fédéral.
•••
Alheio, quase que totalmente a essa luta dramática que se travava nos
altos escalões da administração municipal do ensino, continuava eu, tranqüilamente, minhas modestas aulas de matemática elementar na Escola Profissional
Visconde de Cairu. Além disso, esforçava-me por freqüentar algumas aulas da
Escola Politécnica, no velho casarão histórico do Largo de São Francisco. E, por
fim, cumpridos esses deveres, voltava ao refrigério do nosso quartinho de pensão
da Rua Francisco Muratori, onde encontrava Carolina, já desobrigada também de
seus deveres diários de professora, que aliás nunca abandonou até a aposentadoria. E assim iam decorrendo os nossos dias, com simplicidade e plena satisfação
afetiva, sem maiores preocupações, porque sem ambições, e dos quais guardo as
melhores recordações de minha vida. Até que em princípios de janeiro (de 1928)
começaram a aparecer os primeiros sinais de que íamos ter o primeiro descendente e então tudo começou a se transformar...
Na Escola Cairu, a partir do início do ano letivo de 1928, também surgiram
as primeiras modificações na organização do ensino, como resultado da aprovação
da Reforma de Ensino Fernando de Azevedo, sancionada, como vimos, em 23 de
janeiro desse ano.
As antigas escolas profissionais do Distrito Federal tiveram o nível de ensino
elevado, compreendendo agora um curso de grau médio ou secundário de 4 anos de
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
duração, articulado com um curso primário, também de quatro anos, por meio de um
"curso complementar anexo" de dois anos de extensão. Assim, o modelo de ensino
que a Reforma implantou na capital da República pôde ser definido abreviadamente
pelos números 4-2-4, ou seja, conforme ficou indicado acima, quatro anos para a
duração do curso primário propriamente dito; dois anos de um curso intermediário
(complementar ao primário ou anexo ao secundário), e quatro de curso de nível
médio. Esse curso de 2º grau, todo ele de caráter profissional, incluía um grande
número de atividades, desde a carpintaria a marcenaria, ou a serralharia e a eletricidade até as atividades de caráter agrícola ou comercial e os cursos geralmente
considerados como de caráter feminino, corte, costura, culinária, etc. As escolas
mantinham uma certa especialização, de acordo com as instalações que já possuíam anteriormente. Essas atividades profissionais eram complementadas por cursos
de desenho e de letras, que incluíam todas as matérias que usualmente fazem parte
dos currículos de 2º grau, isto é, língua nacional, línguas estrangeiras, matemática,
geografia, história e ciências físicas e naturais.
Não obstante a riqueza desses currículos e a qualidade do ensino ministrado nessas escolas, em razão do nível dos professores, a maioria selecionada
em concursos rigorosos, os certificados de conclusão dos respectivos cursos não
tinham qualquer validade para a admissão aos estabelecimentos de ensino superior. Isso porque, o governo federal, preso à letra do artigo 35 e seus parágrafos 3º e 4º da Constituição da República de 1891, reservou à União o direito
privativo de legislar e criar instituições de ensino superior e secundário nos
Estados e "prover a instrução secundária no Distrito Federal". E esses cursos
secundários de caráter, "acadêmico" eram os únicos cujos certificados de conclusão se constituíam em requisitos obrigatórios para a prestação dos exames
vestibulares às escolas superiores. Aos Estados cabia prover o ensino primário e
profissional, de nível elementar e médio, na prática, o ensino normal, de formação de professores primários, a maioria freqüentada por moças, e as escolas
técnicas para rapazes.
Conforme assinala Otaíza de Oliveira Romaneili, em sua História da educação no Brasil (1930-1973), um dos melhores trabalhos que conheço sobre esse
período da educação brasileira:
Era, portanto, a consagração do sistema dual de ensino [refere-se ao art. 35 da Constituição de 1891], que se vinha mantendo desde o Império. Era também uma forma de oficialização
da distância que se mostrava, na prática, entre a educação da classe dominante (escolas
secundárias acadêmicas e escolas superiores) e a educação do povo (escola primária e escola
profissional). Refletia essa situação uma dualidade que era o próprio retrato da organização
social brasileira (Romanelli, 1978, p. 41).
Aproveitado que fui como professor de curso complementar anexo, minha
situação pouco se alterou: continuei a lecionar matemática elementar em nível
bastante semelhante ao anterior, até que, na administração posterior, de Anísio
Teixeira (1931-1935), todos os professores nessas condições, mediante concurso de
títulos ou de provas, foram definitivamente transferidos para o quadro de professores de ensino secundário.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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•••
Certo dia de junho de 1928 estava eu em pleno desempenho de minhas
atividades de professor na Escola Profissional Visconde de Cairu, quando recebo um
telegrama assinado pelo professor Antonio Vitor de Souza Carvalho, secretário do
Diretor de Instrução – Fernando de Azevedo – , convidando-me para comparecer à
sede da Subdiretoria Técnica da Diretoria Geral de Instrução Pública, devendo procurar diretamente o subdiretor, professor Jônatas Serrano. Esse telegrama, que
ainda conservo entre meus velhos papéis, trazia a data de 19 de junho de 1928.
Fiquei seriamente preocupado com o convite, e jamais poderia imaginar
que, em conseqüência dele, minha vida iria mudar completamente de rumo.
Atendendo ao chamado, compareci ao 3° andar da Escola Deodoro e procurei
me entender com Antonio Vitor.
O Diretor Geral tinha apenas dois auxiliares diretos: um secretário, o professor Antonio Vitor de Sousa Carvalho, diretor de escola primária; e um oficial de
gabinete, o professor Álvaro de Sousa Gomes, também diretor de escola primária,
com quem já trabalhara anteriormente; eram ambos, portanto, meus colegas como
professores diplomados pela antiga Escola Normal, apenas em turmas anteriores à
minha.
De outro lado, a Reforma tinha criado dois setores principais em que se
dividiam todos os serviços da Diretoria Geral de Instrução Pública: a Subdiretoria
Técnica, entregue a Jônatas Serrano, e a Subdiretoria Administrativa, sob a direção
de Frota Pessoa.
A explicação que me deu Antonio Vitor me causou a mais profunda surpresa:
tinha, sido convocado para me entender com o professor Jônatas Serrano, que
necessitava de um assistente para a Subdiretoria Técnica recém-criada e eu tinha
sido indicado para ocupar essa função.
Mal refeito da surpresa, esperei o momento de ser recebido pelo professor
Jônatas Serrano, a quem não conhecia pessoalmente. Sabia apenas que era eminente professor de história geral do Colégio Pedro II e da Escola Normal, líder
católico de grande cultura clássica e, ainda mais, que era autor de um livro de
história geral para o ensino secundário, muito conhecido de todos nós estudantes
de "Preparatórios" e intitulado Epítome de História Universal.
Jônatas Serrano atendeu-me pouco depois, com aquele modo seco, mas
afável, com a voz rouca característica, de baixo timbre. Transmitiu-me o convite
para exercer a função de seu assistente, pois aceitara a indicação de meu nome
feita pelos dois referidos colegas, auxiliares de Fernando de Azevedo.
Bastante confuso, respondi-lhe que estava perplexo, pois jamais pensara em
abandonar o ensino, para onde me encaminhara por vocação. Receava não estar à
altura da função e, além disso, não apreciava as atividades de administração, que
considerava algo árido, desprovido de espírito criador. E, por fim, e essa parte me
saiu apenas balbuciada, ou nem me lembro, a essa distância de cinqüenta anos, se
cheguei mesmo a formulá-la claramente: prezava muito minha liberdade de apreciação e crítica, e me parecia que somente no magistério, em posição conquistada
pelo meu esforço próprio, me sentia perfeitamente à vontade para exercê-la.
30
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Jônatas Serrano respondeu-me, com muito espírito, que se encontrava numa
situação muito semelhante à minha: sempre fora professor e jamais pensara em se
afastar do magistério. Mas fora vencido pela insistência irresistível de Fernando de
Azevedo, pois compreendeu todo o alcance da obra em que o reformador estava
empenhado, e que afinal constituía talvez uma forma de magistério, apenas de
caráter mais amplo, e assim acabara por aceitar o cargo de diretor da Escola Normal e agora o de subdiretor técnico. Para isso tivera que abandonar até mesmo
aulas particulares e outras atividades que envolviam compromissos dificilmente
transferíveis. Compreendia, por tudo isso, perfeitamente, minha hesitação e davame um prazo de uns dois ou três dias para pensar e resolver. De qualquer forma,
disse-me por fim, há alguém aí fora pretendendo esse lugar, mas ele é seu, pois foi
o senhor o indicado, e somente pensarei em outro nome, diante de sua recusa
definitiva.
Realmente, um antigo colega meu da Escola Normal aguardava na antesala uma oportunidade para entregar ao subdiretor técnico uma carta na qual um
político de prestígio solicitava o cargo para esse seu recomendado...
Vim para casa meio tonto, mas abalado pela franqueza da conversa com
Jônatas Serrano. Discuti o problema com Carolina. Hesitei durante dois dias. Mas
afinal resolvi aceitar o convite. A razão principal, percebia claramente, era uma
intensa curiosidade de ir conhecer afinal como funcionava a administração do ensino em seus escalões mais altos. Até então sempre exercera o magistério como
"soldado raso", propenso a menosprezar as atividades de administração, talvez pelos vícios em que a burocracia do ensino mergulhara. Julgava que educação e ensino eram tarefas de professores, de educadores e não de burocratas. Além disso,
receava perder minha independência, minha liberdade de crítica, dado meu temperamento voltado sempre para a oposição e o inconformismo. Passados dois outros
dias, não me recordo bem, voltei a Jônatas Serrano para dizer-lhe que aceitava a
função. Minha nomeação, assinada por Fernando de Azevedo, investia-me assim
como o primeiro assistente do primeiro "serviço técnico" criado com essa denominação específica numa administração de ensino no Brasil, mais precisamente, da
capital do País.
E assim minha vida profissional iria tomar um novo rumo que não deveria
ser mais abandonado.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO II
ENTRE OS REFORMADORES
DO ENSINO NO BRASIL
(1928–1929)
A essa distância no tempo, de mais de meio século, desde aqueles dias de junho de 1928, não guardo
uma lembrança muito nítida do que foram os primeiros
momentos daquela nova etapa de minha vida, que se
iniciava como colaborador daqueles homens, todos professores e educadores de renome, que empreendiam a
primeira grande reforma de ensino no Brasil.
Sentia apenas que penetrava num verdadeiro
burburinho de pessoas, idéias, discussões, controvérsias,
num ambiente que nada tinha de burocrático, de rotineiro, de despacho de papéis, por homens pregados às
suas mesas de trabalho, naquela rotina estéril das repartições públicas, que sempre me repugnou.
Nos três salões do 3° andar da Escola Deodoro,
onde funcionava o quartel general da Reforma, havia algumas mesas semelhantes às das repartições públicas burocráticas, mas o principal local de trabalho era a grande
mesa situada no centro do salão onde funcionava a
Subdiretoria Técnica. Em torno dela, sucediam-se as comissões de professores que, diariamente, se empenhavam
na discussão dos inúmeros detalhes que era preciso elaborar e transformar em proposições claras, compreensíveis, para servir de regulamentação à lei básica que entrara em vigor a 23 de janeiro daquele ano de 1928.
Essas atividades criadoras prolongavam-se, às
vezes, até altas horas da noite, e era essa outra característica marcante do trabalho completamente
antiburocrático, anti-rotineiro, que ali se realizava.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Antonio Vitor e Álvaro Gomes não conseguiam um momento sequer de repouso, naquela azáfama que muitas vezes começava às primeiras horas da manhã.
Ao seu lado, e no gabinete do diretor geral, trabalhavam as duas funcionárias,
digamos, burocráticas – a Tereza e a Diva – esta depois Sra. Álvaro Gomes, que com
extrema atenção e delicadeza, atendiam a todos os serviços de datilografia da
Diretoria e da Subdiretoria. Havia ainda o Adriano, contínuo, "pau para toda obra",
e os dois motoristas, os irmãos Andrade, nordestinos atenciosos, discretos, fiéis e
extremamente eficientes, modelares na função, como nunca conheci outros.
Essa pequena equipe fixa, a que me incorporei, e com a qual dentro em
pouco me identifiquei plenamente, era capitaneada de maneira tão peculiar, comparada aos métodos antigos, por aquele homem aparentemente franzino, nervoso,
usando um pince-nez que lhe dava uma aparência irritante, mas de uma energia,
uma capacidade de luta, uma abnegação pela obra que realizava, que cativava e
contagiava quantos dele se aproximavam.
De outro lado, Jônatas Serrano, com quem ia trabalhar diretamente, fazia
um contraste gritante: sereno, ponderado, conciliador, mas enérgico quando se
fazia necessário, de cultura excepcional e delicadeza no trato que chegava ao
inverossímil: estive cerca de três anos a seu lado e jamais indagou ou se referiu,
mesmo indiretamente, às minhas idéias ou convicções religiosas, filosóficas ou políticas. Católico praticante, líder católico, nomeou e manteve como seu auxiliar
direto, um ateu, que eu já o era a esse tempo.
Além da absoluta inteireza de caráter e lisura na ação, com ele aprendi,
desde logo, duas lições inestimáveis para a vida prática. A primeira pode ser traduzida
pelo velho refrão, que cultivava: o ótimo é inimigo do bom. É preciso fazer as
coisas, o melhor que se pode, sem querer porém alcançar o ótimo, que é ideal
inatingível... Quanto à burocracia, deve haver sempre uma gaveta para os "papieles
que el tiempo arreglará", como dizia: ou morre o burro, ou morre o dono ou morrem ambos... Isso sempre com o cuidado rigoroso de nunca procrastinar as verdadeiras medidas justas, ou lesar os interesses legítimos de ninguém.
Era um freio necessário para o jovem impetuoso que se iniciava no intrincado
redemoinho de uma administração complexa, onde a paciência era a melhor virtude, mas que queria dar respostas imediatas a todos, resolver tudo sem tardança,
encontrar imediatamente solução para cada caso ou "processo" que lhe vinha parar
às mãos. Pois seu maior defeito foi sempre a impaciência: "liquidar os assuntos",
"virar a página", eram seus lemas prediletos, que não conseguiu abandonar inteiramente durante toda a vida.
Essa atitude nada tinha porém de transigência ou de menosprezo pelos problemas que eram de sua responsabilidade resolver ou sobre eles opinar: tudo deveria ser escrupulosamente estudado. Apenas, há sempre uma hierarquia entre as
questões e até se torna injusto tratar tudo como se tudo tivesse o mesmo grau de
importância e se as conseqüências não fossem diferentes nos vários casos. É, enfim,
o problema de que hoje tanto se fala, mas que raramente é resolvido com justeza:
o das prioridades nas atividades que se empreendem, da ordem em que, na prática,
as questões devem ser resolvidas. É enfim o problema filosófico das opções com
que nos defrontamos em cada momento da vida, até nas questões aparentemente
mais simples. Costuma-se dizer até que "viver é optar".
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Enfim, uma grande figura humana – Jônatas Serrano – com um trato
aprofundado dos grandes problemas da vida, o que revelava não somente por suas
atividades e comportamento, como também pelas obras que publicara, entre as
quais se destacava um excelente manual de História da Filosofia, no qual, naturalmente dentro de seus pontos de vista, procurava dar um panorama, tão isento
quanto possível, dos caminhos que os homens percorreram na indagação das grandes questões que sempre preocuparam a humanidade.
Difícil avaliar objetivamente o valor que teve para a minha formação esse
contato prolongado com esse homem de tão extensa cultura. O maior talvez tenha
sido ter-me feito justamente adquirir a consciência, bastante clara, de quanto era
fraco o meu lastro de conhecimentos, e em conseqüência levar-me a fazer um
grande esforço para aumentá-lo cada vez mais, para superar essa deficiência.
Entre as muitas faces dos interesses de Jônatas Serrano estava sua apreciação pela manifestação da mais moderna das artes – a cinematografia – , especialmente o cinema cultural, educativo e escolar, o cinema como instrumento de educação, ensino e cultura. Por ele incumbido e sob sua direção, organizei a primeira
filmoteca escolar e também a primeira exposição de cinematografia educativa,
realizada no País, reunindo na então Escola José de Alencar, no Largo do Machado,
tudo o que havia então de mais moderno em aparelhagem e filmes para o ensino
existente no Brasil. Nessa exposição foram feitas até mesmo experiências de cinema sonoro, que começava a aparecer como novo desenvolvimento da arte cinematográfica. Iniciando também sessões de cinema educativo, nas escolas, obteve a
autorização de Rosenwald, então diretor da Fox Film no Brasil, para utilizar os
jornais cinematográficos, devidamente remanejados e selecionados, como elementos ilustrativos de aspectos significativos dos acontecimentos mundiais, e também
da geografia, da história, do folclore e da vida política e social dos vários países do
mundo. Sob a orientação da Subdiretoria Técnica, foi produzido também um filme
de longa-metragem sobre os novos métodos de ensino das escolas profissionais,
introduzidos pela Reforma.
Por todas essas iniciativas, as quais dava uma atenção especial, Jônatas Serrano pode ser considerado como um pioneiro no Brasil da utilização do cinema
como meio auxiliar de ensino e educação.
•••
Sobre Fernando de Azevedo e seu estilo de trabalho, que tanto influiu também
em minha formação, poderia contar muitos episódios elucidativos e que projetam luz
nas características principais de sua personalidade.
Destacarei, porém, apenas os seguintes:
Cabia à Subdiretoria Técnica realizar todos os concursos para provimento dos
inúmeros cargos que a Reforma criara, em todos os setores da administração. O vulto
e a extensão desse trabalho conferia à Diretoria de Instrução Pública do Distrito
Federal um pioneirismo absoluto nesse aspecto de recrutamento de pessoal, que mais
tarde passou a ser conhecido como o "sistema de mérito".
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Hábitos arraigados na administração pública do País faziam do preenchimento dos cargos públicos de qualquer natureza um dos elementos principais das
barganhas políticas, num regime de clientela, de apadrinhamento, em que vigorava
o chamado popularmente como o sistema do "pistolão": conseguia conquistar os
cargos e as funções, mesmo as mais importantes, no serviço público, quem dispusesse de maior amparo dos políticos de maior prestígio, em cada momento.
No Distrito Federal, cargos do mais alto nível como o de inspetores escolares, médicos escolares, diretoras de escolas de todas as modalidades e até o de um
simples servente de escola primária eram preenchidos por essa forma e isso já
constituía uma verdadeira tradição.
Conforme se viu, as lutas às vezes violentas pela aprovação da Reforma
Fernando de Azevedo no Conselho Municipal e a aprovação dos vetos do Prefeito,
giraram justamente em torno das nomeações para os cargos novos criados pela
Reforma.
Como se trata de um dos aspectos fundamentais dos novos métodos que
Fernando de Azevedo procurava imprimir à administração do ensino na capital da
República, não será demasiado ouvi-lo mais uma vez:
E, então, por incrível que pareça, surgiram as manobras da maioria do Conselho, em que a
única figura respeitável e por todos respeitada, era a de Maurício de Lacerda. A maioria do
Conselho asseguraria a aprovação da reforma, tal e qual, com a condição de ficar com o direito
a 50% das nomeações. O diretor recusara a submeter-se a essa ou qualquer condição. E perde a
maioria do Conselho. E vem então a minoria com a mesma insuportável proposta: a aprovação
da reforma mediante a condição de se reservarem à minoria 50% das nomeações.
E adiante, em palavras de incontida veemência, apesar dos anos que já haviam
decorrido desses lamentáveis episódios, continua Fernando de Azevedo (1971):
Aprovada a reforma da educação – a primeira das reformas mais radicais que se empreenderam no País – e restituído o projeto de lei à sua feição primitiva, com o expurgo de todas as
disposições que o desfiguravam, tínhamos que entrar em ação. Em ação decisiva, rápida e corajosa. Nada me demoveria de meus princípios, ideais e propósitos. Eu sentia que, com as vitórias
alcançadas nas lutas, no Conselho Municipal, pela aprovação da reforma e, no Senado, pela
aprovação dos vetos, professores, diretores de escolas e inspetores, já nos consideravam o homem capaz de arrancar a educação no Distrito Federal, da lamentável situação a que a degradaram erros da administração e as explorações da politicagem sem freios.
E agora, essa pesada tarefa de organizar os concursos para preenchimento
de todos os cargos ia ficar, na prática, sob a responsabilidade direta de Jônatas
Serrano e de seu auxiliar, que mal se iniciava nas novas atividades de assessor da
Subdiretoria Técnica.
Era preciso redigir os editais, preparar os programas, convidar as bancas
examinadoras, fiscalizar a realização das provas, esclarecer as dúvidas que surgiam
freqüentemente, e, ao final, informar os muitos recursos que candidatos reprovados ou que se julgavam prejudicados pelos resultados das provas interpunham à
autoridade superior contra a deliberação dos examinadores.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
É certo que foi através dessa atividade tremendamente trabalhosa mas de
importância capital para a boa execução da Reforma – o recrutamento de pessoal
– que comecei a me desembaraçar no cumprimento de minhas novas atividades e a
sentir toda a importância das funções e dos encargos que me eram confiados e,
mais do que isso, ter a oportunidade de entrar em relação com as figuras das mais
destacadas do magistério do País.
Os editais dos concursos, os programas e principalmente a constituição das
bancas examinadoras me obrigavam a procurar, quase sempre entre os professores
catedráticos de ensino superior, os elementos necessários à consecução desses objetivos, inclusive a indicação de nomes de idoneidade inatacável para servirem como
examinadores. Ao procurá-los, como representante de uma administração com a
responsabilidade na implantação de novos métodos de trabalho, tinha, portanto,
de agir com muita segurança e absoluta honestidade de propósitos, pois não podia
trair a confiança em mim depositada, mas a compensação, além do dever rigorosamente cumprido, vinha na forma de amizades que conquistei entre muitos daqueles meus mais ilustres colegas – se posso falar assim – colocados nos postos mais
elevados do ensino do País.
No final de cada concurso era eu o incumbido de levar ao diretor geral o
ofício em que o subdiretor técnico comunicava o resultado das provas respectivas,
indicando o nome dos candidatos aprovados, a serem nomeados de acordo com o
número de vagas existentes em cada caso.
Fernando de Azevedo, com aquele maneirismo brusco, em que se notava o
peso das preocupações que carregava, sem indagar dos nomes dos vitoriosos nas
provas, despachava do próprio punho:
Oficie-se ao senhor prefeito propondo a nomeação dos candidatos, na ordem rigorosa de
classificação e de acordo com o número de vagas existentes.
Certo dia, ao apresentar um desses ofícios, informei a Fernando de Azevedo
que a esposa de um dos seus mais íntimos amigos e mais dedicados colaboradores
tinha sido reprovada, logo na prova escrita do concurso a que se submetera. Ele,
tomando do papel, deu uma sonora risada, e sem qualquer hesitação após o despacho de costume. E depois, dirigindo-se a mim e ao Antonio Vitor, que no momento
também despachava com ele, e já com semblante preocupado, falou:
– Será que o Fulano ficou aborrecido? É pena. Sinto muito, mas nada posso
fazer.
Episódio semelhante deu-se em relação ao concurso para o preenchimento do cargo de professor catedrático de literatura da Escola Normal. Foi um dos
concursos mais disputados e de maior repercussão na época. Entre os candidatos
estava Cecília Meireles, que em sua atividade brilhante de jornalista que iniciava,
primeiro ao Jornal do Brasil e mais tarde na "Página de Educação" do recémcriado Diário de Notícias, deveria se constituir numa defensora tenaz dos ideais
da Reforma de Ensino. Inteligente, culta e bela, já ia a esse tempo se consagrando
como poetisa de primeira grandeza e causava profunda impressão a quantos dela
se aproximavam. Fernando de Azevedo nutria por ela particular afeição. Na competição acirrada que então se estabeleceu em torno daquela cátedra, acabou
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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vitorioso o professor Clóvis Monteiro. Fernando de Azevedo não pôde senão lamentar o insucesso da amiga e colaboradora.
Outro episódio que bem define a personalidade de Fernando de Azevedo foi
o seguinte:
Os maiores opositores à Reforma, eram sem dúvida os antigos inspetores
escolares, homens, quase todos de grande influência política, e por meio dela é
que tinham logrado alcançar essa posição mais alta na administração do ensino.
Sentiram-se como que diminuídos e suas prerrogativas, pois a Reforma dera novo
sentido a esse cargo, tirando-lhe o caráter que sempre teve de função quase que
meramente burocrática, e masculina, para se constituir em final da carreira do
magistério. Como este era constituído, em sua maioria, de elementos do sexo
feminino, com a ampliação do quadro, Fernando de Azevedo propôs a nomeação
escolhendo para isso diretoras de escolas primárias, das mais conceituadas e competentes: uma Zélia Braune, uma Celina Padilha ou uma Loreto Machado, entre
outras. Essa diretriz foi mantida e ampliada nas administrações posteriores, com
a criação dos cargos de superintendentes de ensino, orientadoras educacionais e
outros, conferindo um caráter rigorosamente técnico à função e relegando definitivamente ao passado aquela figura do inspetor escolar leigo, prepotente, burocrata qualificado, produto das barganhas da politicagem rasteira.
Que me lembre, apenas dois desses antigos inspetores escolares compreenderam desde logo o alcance da Reforma e se dispuseram a colaborar. Um, foi
Paulo Maranhão, que se incorporou sem reservas à equipe de reformadores. Oriundo da política como se praticava naquela época, entretanto, estudou os novos
métodos e técnicas de ensino, procurou introduzi-los nas escolas do distrito escolar a seu cargo e participou de várias comissões instaladas na Diretoria para
elaborar a regulamentação da nova lei de ensino, programas e diretrizes para sua
execução. Chegou mesmo a publicar trabalhos sobre as novas técnicas de ensino,
inclusive um volume sobre medidas do rendimento escolar (testes). Era um homem bonachão, afável, sempre disposto a uma conversa amena e sempre muito
bem-informado dos meandros do processo político, que então se desenvolvia e
deveria desaguar na revolução de 1930.
O outro era Álvaro Rodrigues, professor de geometria descritiva da Escola
de Belas-Artes, um tanto arredio em relação ao grupo que trabalhava diretamente
sob a direção de Fernando de Azevedo, mas também muito interessado nas novas
diretrizes que a Reforma vinha imprimindo ao ensino. Assumia uma atitude de que,
para ele, nada constituía propriamente novidade, pois já havia muito tempo vinha
pondo em prática esses novos métodos nas escolas do distrito a seu cargo. Chegou
mesmo a publicar uma revista em que divulgava as experiências que realizava no
ensino, e que prestou bons serviços ao magistério.
Mas, a maioria desses inspetores, como disse, era de opositores ferrenhos
aos ideais da Reforma e, principalmente, das modificações que ela vinha ocasionando aos velhos hábitos de administração, que remontavam, sem dúvida, aos tempos
coloniais.
Certa vez, um desses inspetores, bacharel em direito, e pertencente ao grupo dos mais resistentes às novas normas de ação, rebelou-se contra uma ordem de
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
serviço baixada pelo diretor geral e dispõe-se a não cumpri-la. Chamado ao gabinete para explicações, diante da atitude enérgica do diretor, tentou justificar sua
atitude de rebeldia com ensinamentos do grande jurista Barbalho, usando para isso
de toda sua dialética de bacharel. Fernando de Azevedo ouviu-o até onde a paciência permitiu, e em dado momento, interrompendo-o bruscamente, falou-lhe rispidamente:
– Pois bem, com Barbalho ou sem Barbalho o senhor vai cumprir a determinação que baixei! – E deu-lhe as costas.
•••
Mas, depois de um dia de trabalho árduo, onde freqüentemente sobrevinham
atritos desse tipo, o próprio diretor nos reunia na sala da Subdiretoria Técnica, e se
deliciava com a leitura dos violentos artigos de Brício Filho em O Globo e as pitorescas denominações com que nos brindava, sendo a mais glosada por nós, a que atribuía ao austero e íntegro Jônatas Serrano, entre outras, a denominação de
"pirotécnico".
Nessas reuniões, que constituíam um refrigério, uma pausa reconfortante,
em meio àquela atividade febril, e às vezes, áspera, Fernando de Azevedo nos fazia
apreciar as belas fotografias que iam sendo tiradas dos aspectos mais relevantes
dos novos prédios escolares que estavam sendo construídos, em estilo tradicional
brasileiro. Eram momentos de alegria em ver como ia sendo traduzida em pedra e
cal toda uma nova filosofia de educação, em que se procurava dar às crianças e
adolescentes um novo ambiente, em que a comodidade e a adequação às finalidades próprias aliavam-se a um alto sentido de beleza.
Que eram antes os edifícios escolares? Ou residências particulares alugadas
e mal adaptadas ou algumas construções, que tanto podiam ser destinadas a cadeias como a escolas. Era toda uma filosofia de contenção, de prisão, de cerceamento
de liberdade, onde a arte não tinha vez, e, portanto, também a alegria, sem as quais
não é possível realizar qualquer trabalho sério e profundo de educação. Entre os
novos prédios escolares sobressaía o majestoso edifício que serviria à instalação da
nova Escola Normal (depois Instituto de Educação), situada à Rua Mariz e Barros,
que ainda hoje se destaca como um exemplar da melhor arquitetura brasileira, que
passou mais tarde a ter uma expressão internacional graças à obra realizada por
Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e outros.
Ouçamos ainda uma vez Fernando de Azevedo (1971), a propósito dessa
nova política de construções e instalação de escolas.
Mas, todos esses contratempos, essas incompreensões e manobras de interesses insatisfeitos
ou de ambições descabidas, não me desviavam a atenção de outros problemas, mais graves e
importantes. Um dos que tinha que enfrentar para tornar exeqüível a Reforma, em pontos essenciais, era o das novas instalações de escolas primárias e profissionais e da Escola Normal que
funcionava em condições precárias. Projetaram-se, construíram-se e instalaram-se seis grandes
edifícios para escolas primárias e três de vários pavimentos, para escolas profissionais. Para se ter
uma idéia da importância e quase arrojo desse empreendimento, bastará lembrar que até 1926, os
únicos edifícios construídos especialmente para escolas, datavam do tempo do Império. Eram os
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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da Escola do Largo do Machado e do Largo da Harmonia, mandadas construir por Pedro II, com os
recursos que se destinavam a homenagens ao Imperador, e que ele preferira aplicar na construção
de dois prédios escolares.
O lançamento da pedra fundamental da construção do belo edifício da Rua
Mariz e Barros foi feito com grande solenidade.
Jônatas Serrano, com a anuência de Fernando de Azevedo, fez questão de
convidar o cardeal D. Sebastião Leme para a cerimônia de batismo da pedra fundamental. E me pediu para que eu fosse com ele formalizar o convite. Deslocamo-nos
assim para Petrópolis, onde se localizava a residência de verão do Cardeal. Recebeu-nos com a bonomia que lhe era característica. Serrano, católico praticante, ao
cumprimentá-lo beijou-lhe como era normal, o anel cardinalício. Ao ser apresentado a D. Leme, notou ele o meu embaraço e recolheu a mão num gesto atencioso,
deixando-me à vontade. E ao ouvir meu nome de família (Lemme), perguntou-me,
se acaso, não seria seu parente. Desanuviei o ambiente, dizendo-lhe que talvez
estivesse no momento, entrando em relação com um tio, famoso, que lamentavelmente, até então, não conhecia pessoalmente. Nossa missão foi coroada de êxito, e
a pedra fundamental do futuro edifício do Instituto de Educação do Rio de Janeiro,
recebeu as bênçãos da mais alta autoridade da Igreja Católica do Brasil.
Para terminar essas breves referências a traços característicos da personalidade de Fernando de Azevedo, mais um episódio, este passado diretamente comigo.
Certa vez, Antonio Vitor, transmitiu-me a determinação do diretor para que
eu fosse representá-lo numa solenidade comemorativa da independência de um
país amigo, a ser realizada na sede da respectiva embaixada. Por circunstâncias
imprevistas, compareci com grande atraso ao local, quando a festa já ia quase se
aproximando do fim, e os alunos da Escola que recebera o nome do referido país,
convidados especialmente para a solenidade, como sempre acontecia, já tinham
cumprido quase todo o programa a seu cargo. De volta à Diretoria, verifiquei que
Fernando de Azevedo tivera conhecimento do ocorrido, pela maneira um tanto
ríspida com que me recebeu. Mas logo depois, desarmando-se de sua irritação encenada, bateu-me amavelmente nas costas e disse-me que não me preocupasse, pois
essas recepções eram verdadeiramente enfadonhas, principalmente para quem tinha
que interromper atividades importantes em que estava profundamente empenhado.
E em tom de blague:
– Mas a culpa é do Carneiro Leão, que inventou essa história de dar nomes de países estrangeiros às escolas: os embaixadores levam a sério essas homenagens, mas eu não tenho tempo
nem disposição de a elas comparecer; fico mal visto e vocês, meus representantes, se caceteiam.
Que se há de fazer, porém? Não pense mais no assunto e vamos trabalhar!
Reflexos desse estilo de ação colocaram-me várias vezes em situações bem
delicadas que puseram à prova minhas possíveis qualidades e me prepararam para
lutas futuras. Certo dia, uma candidata à professora de francês foi reprovada logo
na primeira prova. Apareceu então na ante-sala do gabinete de Fernando de Azevedo, de guarda-chuva em riste, querendo agredi-lo fisicamente, como represália
ao insucesso. Fui destacado para atendê-la. E foi preciso um longo período de argumentação e de paciência, que sei mais, para acalmá-la e fazê-la compreender
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
que não era aquela a solução. Alguém de muita responsabilidade e que assistia à
cena, passou a chamar-me "diplomata", admirada pelos recursos que usei para acalmar a raivosa candidata, o que fiz quase sem consciência clara nem muita segurança.
Judith Gouvêa, a professora em questão, tornou-se depois uma boa amiga.
Outra vez, foi um atrito sério que ocorreu entre Fernando de Azevedo e
Jônatas Serrano, não me lembro mais a que propósito. Serrano retirou-se para
casa, disposto a deixar o cargo. Ao saber do acontecido, Fernando de Azevedo
incumbiu-me de procurar meu chefe e colaborador insubstituível da Reforma, sem
outra opção senão a de trazê-lo de volta, com tudo esclarecido. Só eu sei como
cheguei à casa da Rua Montenegro onde morava o professor Jônatas Serrano, para
me desincumbir da espinhosa missão. Jônatas Serrano cedeu e as coisas voltaram
aos seus lugares.
Receber senadores e políticos de maior prestígio na época, e justificar por
que o Diretor, infelizmente, não os atendia, foi para mim um treinamento de paciência, do qual dificilmente poderia imaginar sair vitorioso, dado meu temperamento explosivo. Um desses políticos, senador dos mais importantes da época, autoritário, desaforado, disse-me tudo o que pensava do "diretorzinho" que se recusava a
receber um senador da República e tentou mesmo invadir o gabinete para interpelálo pessoalmente. Mas consegui que tudo acabasse se apaziguando...
Outros aspectos da personalidade tão rica e complexa de Fernando de Azevedo (1956) são por ele próprio revelados na autobiografia com que encerrou sua
vida tão fecunda em serviços prestados ao País, completando uma extensa bibliografia em que se destaca, sem dúvida, a monumental obra A cultura brasileira,
redigida inicialmente para servir de introdução aos resultados do recenseamento
geral do País, realizado em 1940.
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CAPÍTULO III
A NOVA ETAPA DE MINHA
FORMAÇÃO PROFISSIONAL
(1929–1930)
Não dispunha o Brasil, por essa época, de cursos
especializados de formação, em nível superior, de educadores, pedagogos ou técnicos de educação.
Essas atividades eram mesmo inexistentes em nossa incipiente organização escolar: havia os burocratas na
administração central do ensino, os inspetores escolares,
sem qualquer preparo técnico, diretores de escolas e professores, entregues a si mesmos.
As escolas normais, de nível secundário, eram pouco
mais do que ginásios comuns, quase que exclusivamente
destinados a dar algum preparo a moças de classe média
para exercerem a única profissão aceitável para elas, de
acordo com os padrões sociais da época, fora das atividades domésticas, resultantes do casamento.
Já a esse tempo, muito poucos rapazes procuravam esse curso de formação de professores primários, e a turma de que fiz parte e que freqüentou a
velha Escola Normal do Largo do Estácio, entre os anos
de 1918 e 1923, foi seguramente a última a incluir
um número relativamente grande de elementos do
sexo masculino. A quase totalidade desses rapazes
abandonou posteriormente o magistério primário,
dedicando-se a outras atividades, de nível superior,
de maior prestígio social e com melhores perspectivas
do ponto de vista econômico.
As circunstâncias já narradas levaram-me, entretanto, a um caminho diferente, em que, desviando-me
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do magistério primário e em seguida do secundário, conduziram-me ao interesse
pelos problemas gerais da educação e do ensino, e da organização e administração
escolares, da história e da filosofia e, principalmente, da política de educação.
E isso se deu, como vimos, pela minha incorporação à equipe de colaboradores de Fernando de Azevedo na elaboração e implantação da Reforma de Ensino
por ele liderado nos anos de 1927-1930, no Distrito Federal, antiga capital da
República.
Os poucos conhecimentos especializados que adquirira no precário curso da
antiga Escola Normal do Distrito Federal ampliaram-se e consolidaram-se nesse
contato que, durante cerca de três anos, tive com algumas das mais eminentes
personalidades no terreno da pedagogia, da didática, da administração e da organização do ensino público.
E as características desse verdadeiro curso de nível universitário que eu fazia eram inteiramente peculiares, pois ao lado das discussões teóricas, às vezes,
bastante acirradas, no entrechoque de opiniões, devia-se passar à ação e à prática.
Não se tratava, pois, de meras controvérsias acadêmicas, mas do aclaramento de
diretrizes que deveriam, em seguida, ser traduzidas em normas de ação concreta.
Nessa luta pelo esclarecimento, justificação e divulgação dos ideais da Reforma, não podiam deixar de aparecer os nomes das maiores figuras da pedagogia
contemporânea, líderes do movimento da chamada Escola Nova, que inspiravam a
ação dos reformadores brasileiros: Claparède, Binet, Durkheim, Decroly, Ferrière,
Montessori, Kerschenstein, Dewey, Kilpatrick, Lunartshastky, Thorndike, Wallon,
Piéron e tantos outros.
E eu, naturalmente, para ficar à altura das novas responsabilidades com que
deveria arcar, ia, pouco a pouco, me aprofundando no estudo desses mestres, e assim
ampliando meus conhecimentos e completando minha formação profissional.
A Reforma incentivou também o aparecimento de toda uma literatura especializada, antes escassa ou mesmo inexistente, de autores brasileiros ou de obras
traduzidas das mais conceituadas autoridades estrangeiras. Assim, por exemplo,
Fernando de Azevedo reuniu em volume os trabalhos que publicara durante a elaboração e a execução da Reforma, dando-lhe o título expressivo de Novos caminhos e novos fins e o subtítulo esclarecedor de "A nova política da educação no
Brasil", obra essa fundamental para o estudo do grande movimento renovador do
ensino no País. De Jônatas Serrano tivemos A Escola Nova, em que, dentro de sua
filosofia católica de vida, expõe os princípios dessa nova corrente de pedagogia.
Um pouco mais tarde, entre muitos outros trabalhos de valor, aparecem a
Técnica da pedagogia moderna, de Everardo Backheuser; A educação e seu aparelhamento moderno, de Francisco Venâncio Filho e a Introdução ao estudo da Escola Nova de Lourenço Filho, obra esta considerada como um verdadeiro marco na
divulgação de todas as correntes renovadoras da educação que nos chegavam da
Europa e dos Estados Unidos, como resultado da ânsia generalizada na procura de
novos meios e métodos para a educação de um novo tipo de homem que se pensava em formar, depois da catástrofe da 1ª Grande Guerra Mundial.
Muitas revistas periódicas começaram também a ser publicadas com os
mesmos objetivos: a própria Diretoria de Instrução lançou o Boletim da Instrução
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Pública, onde se registravam e debatiam as realizações da Reforma e se discutiam
os grandes problemas da educação e do ensino, em artigos assinados pelos mais
conceituados educadores brasileiros e estrangeiros.
Na Associação Brasileira de Educação, onde se congregavam os educadores
mais eminentes do País e que, desde sua fundação em 1924, assumiu a liderança ou
apoiou todos os movimentos de modernização do ensino no Brasil, promovia-se a
realização de palestras, cursos e de conferências nacionais onde eram ventilados
todos os temas particulares que interessavam os professores de todos os níveis de
ensino do primário ao universitário, ou os mais gerais que diziam respeito à organização e administração dos sistemas de ensino público, locais ou nacionais, à filosofia ou a política de educação. A essa verdadeira universidade, pela qualidade de
seus professores, expositores e conferencistas, brasileiros ou estrangeiros, me filiei
em 1926, e nela recebi inestimáveis ensinamentos nas especialidades a que em
breve me deveria dedicar.
Enfim, em meio a toda essa agitação fecunda e criadora, teórica e prática, ia
eu assimilando os fundamentos de novas carreiras e atividades tais como as de
técnico de educação, de orientadores educacionais, de administrador de sistemas
de ensino público ou de política de educação, cuja existência já se fazia sentir pelas
perspectivas que se iam abrindo para o desenvolvimento do País.
•••
Nesses quase três anos apenas de contato com essa nova situação, sentia
que sofrera um grande amadurecimento pessoal e que me transformara como que
em outra pessoa.
Eu era um dos mais jovens, senão mesmo o mais jovem, e sem dúvida, um
dos mais modestos elementos de toda aquela numerosa equipe, que colaborava no
grande movimento reformador da educação no Brasil. Mas, aos poucos, fui adquirindo a consciência da importância da obra em que estávamos todos empenhados
e o esforço que tive que fazer a partir de minha pequena experiência para atender
às exigências das novas situações em que me vi colocado, produziu naturalmente,
uma ampliação de horizontes culturais e profissionais que se traduziam naquele
sentimento interior de mudança de personalidade, como se tivesse sofrido um processo de rápido amadurecimento.
Em 1929, recebia eu novos encargos que fizeram crescer ainda mais o volume
de trabalho e de responsabilidades.
Com a proximidade da data da inauguração do novo e majestoso edifício
que deveria abrigar todos os serviços da Escola Normal, Fernando de Azevedo, privando-se de um dos seus colaboradores mais próximos e eficientes - o professor
Antonio Victor de Sousa Carvalho - seu secretário, designou-o para a espinhosa
tarefa de dirigir a instalação do novo estabelecimento destinado à formação dos
professores primários da capital da República. O professor Álvaro de Sousa Gomes
substituiu-o na secretaria do Gabinete do Diretor e eu fui designado para o cargo
de oficial de gabinete, sem prejuízo, entretanto, das funções que já vinha exercendo como assistente do subdiretor técnico.
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Espanta-me hoje, quando vejo a quantidade de pessoas que pululam nos gabinetes dos diretores exercendo as funções mais variadas, quando penso em como
conseguíamos nós dois apenas dar conta daquela enorme massa de trabalho como
auxiliares diretos de um diretor que, além de receber em seu gabinete, para decisão
final, todo o expediente comum de todo o sistema escolar, estava empenhado na
obra imensa de implantar a reorganização mais profunda já experimentada na educação e no ensino do País.
E nós, os dois únicos funcionários do gabinete, recebíamos apenas, por toda
essa sobrecarga de trabalho, uma pequena gratificação, além de nossos salários normais de diretor de escola primária e professor adjunto de 2ª classe, que eram respectivamente, nossos cargos como servidores efetivos, do quadro do magistério. Em meio
à criação de inúmeros cargos resultantes da execução da Reforma, nenhuma vantagem pessoal obtivemos, apesar de sermos os elementos em contato mais próximo e
direto com a autoridade máxima da Diretoria Geral da Instrução Pública. Em relação
a mim, por exemplo, as disposições transitórias da lei que instituiu a Reforma, facultavam ao diretor propor a transferência dos professores que tinham sido designados
para lecionar nos cursos complementares anexos às escolas profissionais, para os
quadros dos professores efetivos dessas mesmas escolas. Era exatamente o meu caso,
mas Fernando de Azevedo preferiu não utilizar essa autorização legislativa para ficar
a salvo de qualquer crítica a atos que pudessem ser interpretados como de
favorecimento pessoal, pois os aspectos mais violentos das lutas durante o processo
de tramitação da lei tinham sido exatamente, como vimos, os que se referiam às
nomeações para os novos cargos e funções criados pela Reforma.
De minha parte, também, não houve qualquer gesto que pudesse significar
uma quebra dessa linha de austeridade do diretor, da qual aliás compartilhava
plenamente. Meu acesso ao quadro de professores de ensino secundário só veio a se
efetivar, alguns anos mais tarde, já na administração de Anísio Teixeira, mediante
rigoroso concurso de títulos a que me submeti, baseado na legislação então vigente
e que atingia todos os casos semelhantes ao meu.
Nunca foi de meu feitio pleitear favores desse tipo: todos os cargos públicos que exerci foram obtidos por meio de provas, em competição, e em igualdade
de condições com os demais candidatos que a elas se submeteram. Assim foi no
concurso para o provimento do cargo de inspetor de ensino do Estado do Rio de
Janeiro (1933), em que cerca de 600 candidatos concorreram ao preenchimento
de 14 vagas; o mesmo se dando no primeiro concurso realizado para a constituição do quadro de técnicos de educação do Ministério da Educação (1938), de
nível universitário, incluindo defesa de tese, prova escrita e de títulos e no qual
de cerca de quinhentos candidatos lograram aprovação apenas 26, tendo eu obtido o 2° lugar na classificação final. E nesse último caso é preciso ressaltar que
eu vinha de sofrer, com alguns outros professores, a violência de uma prisão por
quase dois anos (1936-1937) em conseqüência da onda de repressão que se abateu sobre o País, após o levante militar de novembro de 1935, mas, na realidade,
como manobra preparatória para o golpe antidemocrático de novembro de 1937.
A compensação que resultou de minha incorporação ao grupo de reformadores
de 1927-1930, no Distrito Federal, além daquela já apontada do alargamento de
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minhas perspectivas culturais e profissionais, o que me permitiu, posteriormente galgar posições destacadas no âmbito da especialidade a que passei a me dedicar, foi a
de ganhar outro bem inestimável: a conquista de alguns amigos, da mais alta qualidade, que passaram a me distinguir como companheiro de lutas e ideais e me deram
o mais decidido apoio para a consecução dos objetivos que me tracei, a partir daqueles tempos heréticos da Reforma Fernando de Azevedo.
Entre esses amigos, dois ficaram para sempre credores da minha gratidão.
Um foi Francisco Venâncio Filho e o outro Edgar Süssekind de Mendonça.
O professor Francisco Venâncio Filho, o "Venâncio", como o chamávamos na
intimidade, foi o que se constituiu num verdadeiro cireneu em minha carreira de
educador. Profundamente interessado por todos os problemas da educação, da
ciência e da cultura, era incansável em me incentivar e fornecer todos os subsídios
que pudessem concorrer para facilitar meus estudos. Amigo íntimo de Fernando de
Azevedo e também de Jônatas Serrano, era essencialmente um aglutinador de vontades, as mais díspares, em vista da realização de objetivos comuns. Engenheiro
civil e professor de Física da Escola Normal e do Colégio Pedro II, sua vocação era
dirigida especialmente para o ensino, para a educação, para a pregação e divulgação de novas idéias, dos novos métodos e técnicas de ensino e para isso procurava
estar sempre a par do que melhor se fazia e se escrevia no Brasil e nos países mais
avançados. Sua curiosidade era insaciável na obtenção dos elementos onde quer
que eles se encontrassem, que pudessem servir a um ensino e uma educação que
correspondessem aos ideais que o animavam da formação de homens e mulheres
de larga visão, de caráter sólido e devotado ao bem do País, e porque não dizer, da
humanidade.
Conforme salientou Roquete-Pinto na bela oração pronunciada na Academia Brasileira de Letras, em 18 de agosto de 1946, em homenagem à memória de
Venâncio, que falecera a 12 desse mesmo mês e ano:
Durante toda a existência, Venâncio foi o enamorado das coisas puras e belas. O amor da
terra e da gente do Brasil foi nele um sentimento sério, sem clarinadas patrióticas, sem retórica,
sem miçangas e lantejoulas... Quase estou em dizer que Venâncio tinha pelo Brasil profunda
calma, segura amizade. Ele estimava a sua terra e a sua gente.
E adiante:
O problema essencial que a sua mocidade encontrou foi o da educação popular. O engenheiro civil trocou a carreira do construtor pelo do apostolado da cultura do povo.
E por fim:
Assim o encontramos à frente de todos os grandes surtos educacionais deste País, nos
últimos trinta anos... O que ele realizou, e o que deixou escrito, dá-lhe um posto excepcional na
galeria dos nossos maiores mestres.
Como um dos fundadores da Associação Brasileira de Educação, Venâncio,
foi dos maiores sustentáculos da obra inexcedível dessa agremiação, que reunia os
mais destacados educadores brasileiros, como pregadora de todos os movimentos
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de vanguarda verificados no País no âmbito da educação, do ensino e da cultura.
Seu espírito conciliador e desinteressado, sempre voltado para os objetivos mais
altos da ABE., de que era um verdadeiro enamorado, tornava-o um elemento indispensável para contornar as crises que por várias vezes ameaçaram seriamente a
própria vida da entidade máxima dos educadores brasileiros. Não hesito em afirmar
que, com sua morte prematura em 1946, a ABE. entrou num processo de decadência de que não mais conseguiu se restabelecer.
Profundamente interessado nas técnicas auxiliares de ensino e educação –
aos quais atualmente se dá a denominação geral de meios audiovisuais – os museus, o cinema, o rádio – dedicou-se a estudá-las profundamente e a divulgá-las,
como sempre fazia, na sua preocupação pura de ser útil ao maior número. Foi
colaborador dos mais entusiastas de Roquete-Pinto, desde a fundação da Rádio
Sociedade do Rio de Janeiro, em 1923.
Sobre o cinema como técnica de ensino e cultura, escreveu um trabalho
pioneiro, Cinema e educação.
Visitando os mais importantes museus da Europa e dos Estados Unidos,
consolidou os conhecimentos que já possuía sobre o valor dessas instituições
como meio de promover a cultura popular, e chegou mesmo a planejar um Museu
de Ciência, nos moldes do Deutsch Museum, de Munich, em que os visitantes de
qualquer nível cultural pudessem ter uma visão geral de todo o imenso desenvolvimento científico e técnico da humanidade.
Em A educação e o seu aparelhamento moderno, Venâncio passa em revista
todas essas novas técnicas de ensino e educação, constituindo essa obra uma excelente contribuição para professores e educadores que desejavam imprimir ao seu
trabalho uma orientação moderna e eficiente.
Mas também na literatura estritamente didática, Venâncio pode ser considerado um pioneiro. O curso que organizou em colaboração com Edgar Süssekind de
Mendonça e que publicou sob o título de Ciências físicas e naturais, é um modelo do
que deve ser o ensino dessas ciências nos currículos das escolas de 2º grau.
Mas, além de toda essa atividade multiforme e fecunda no campo da educação, do ensino e da cultura, Venâncio alimentava uma paixão maior que, sem
exagero, levou-o à morte prematura: o culto a Euclides da Cunha. Conhecedor
profundo da vida e da obra do "grande épico", dedicou-se, desde a adolescência,
a estudá-la e divulgá-la, escrevendo numerosos trabalhos de grande valor sobre
o autor de Os Sertões, considerado muito justamente como uma das obras mais
importantes ou talvez mesmo a mais importante já produzida pelo gênio criador
brasileiro. Fundado o Grêmio Euclides da Cunha, dedicado ao culto da memória e
à divulgação da obra de Euclides, Venâncio tornou-se talvez o mais fiel e devotado membro dessa agremiação, realizando um trabalho beneditino de reunir todo
o material que pudesse servir a uma mais perfeita compreensão e alcance da vida
e obra do imortal autor de Os Sertões.
Segundo observou Paulo Carneiro, que foi seu aluno e um de seus melhores
amigos, em sua magnífica conferência realizada na Academia Brasileira de Letras,
em 2 de setembro de 1976, pela passagem dos trinta anos da morte de Venâncio:
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Desde 1914, consagrou-se ao estudo da vida e da obra de Euclides, reunindo nos arquivos
do Grêmio, de que se tornara magna pars, manuscritos, cartas, artigos, depoimentos, fotografias, recortes de jornais, tudo o que pudesse servir à elaboração de uma autêntica biografia do
imortal aedo dos nossos sertões. A ele e a Edgar Süssekind de Mendonça, seu companheiro nessa
campanha, devem os críticos e os editores dos numerosos trabalhos de Euclides o precioso
material de que hoje dispõem. Assinalou-o, com justo reconhecimento, Afrânio Coutinho, ao
prefaciar as Obras Completas do insigne escritor, publicada sob seus cuidados. A Francisco
Venâncio coube escrever para essa primorosa edição o perfil de Euclides ("Retrato humano").
Fê-lo com o amor e a erudição com que durante trinta anos redigiu os seus artigos e compôs os
seus livros sobre o autor de Os Sertões (Carneiro, 1976).
Mas era nas comemorações de 15 de agosto, data da morte de Euclides, que a
devoção dos cultores de sua memória se revelava em toda a extensão e profundidade.
Nas romarias coletivas a São José do Rio Pardo, onde Euclides escreveu Os Sertões
e que incluía visitas ao museu que ali se organizou para manter vivo o culto a sua
memória, Venâncio era um dos devotos mais fiéis. E foi numa dessas peregrinações
que Venâncio insistiu em fazer, apesar de estar ainda convalescente de uma intervenção cirúrgica delicada que, em São Paulo, de passagem para São José do Rio
Pardo, após pronunciar uma palestra sobre seu amado ídolo, a morte o surpreendeu, deixando inconsoláveis seus inúmeros amigos, colegas e companheiros de idéias
e de lutas.
Dele ressaltou Fernando de Azevedo num artigo publicado em O Jornal do
Rio de Janeiro, em 12 de setembro de 1946, e depois incluído no livro Figuras de
meu convívio:
Todos os que o conheceram de perto, admiravam-lhe a altiva nobreza de sentimentos e a
constância singular de suas afeições. Ele tinha o gosto das viagens, o culto da amizade e um
amor ardente pela educação. Pois a morte o colheu, numa de suas viagens a São Paulo, de onde
chegara em visita aos amigos e de caminho para São José do Rio Pardo, que o esperava, fiel de
um novo culto, para as comemorações euclidianas. A derradeira palestra que proferiu, às vésperas de sua agonia, realizou-se numa escola, perante alunos, e versou sobre o aspecto moral, e
portanto educativo, da vida e obra de Euclides da Cunha (Azevedo, 1960, p. 49).
É com profundo sentido de reconhecimento e saudades que relembro aquelas visitas que, nos momentos cruciais de minha vida de professor e educador, fazia
ao apartamento em que Venâncio residia, à Rua Senador Vergueiro, e de onde saía
sempre reanimado por uma palavra de encorajamento e de fé e sempre armado de
um livro ou de uma publicação que me cedia como contribuição ao estudo ou ao
esclarecimento da questão que me preocupava no momento. À sua influência, sempre
oportuna e bondosa devo, mais do que a qualquer outra, o seguro encaminhamento de minha carreira de educador, a partir de nossos primeiros encontros nos anos
da Reforma Fernando de Azevedo. Durante a crise que se abateu sobre os serviços
de educação do Distrito Federal, após a Revolução de 1930, lutamos juntos em
defesa da grande obra, e foi aí que mais estreitamos nossas relações. Em seguida,
voltamos a nos encontrar já na administração Anísio Teixeira, de que foi também
dedicado colaborador. Em 1932, como um dos principais articuladores do movimento que resultou na elaboração do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova,
trabalhamos juntos para colhermos as assinaturas dos signatários residentes no Rio
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de Janeiro, e foi Venâncio quem insistiu para que meu nome figurasse entre eles.
Num dos momentos mais difíceis de minha vida particular e profissional, animoume e incentivou-me a prestar o concurso para o cargo de inspetor de ensino do
Estado do Rio de Janeiro. A aprovação que logrei obter veio contribuir decisivamente para que eu retornasse à carreira quase interrompida em 1930, e se resolvesse a aflitiva situação econômica em que me encontrava, com a família aumentando e passando necessidades. Dele tive também toda a assistência durante os
dias dramáticos de minha prisão (1936-1937). Em seguida, novamente, em 1938,
voltou a me estimular para que me inscrevesse no concurso para provimento do
cargo de técnico de educação do Ministério da Educação, pondo à minha disposição todo o material que possuía para o estudo de extenso programa que tinha que
preparar. Nossas relações se estreitavam cada vez mais e assim é que foi ele um dos
principais responsáveis pela obtenção da "bolsa de estudos" que me foi oferecida
pela Universidade de Michigan, nos Estados Unidos e onde pude completar minha
formação profissional, em nível superior, através dos cursos que ali freqüentei,
especialmente os de política e administração da educação pública, e do programa
de visitas que tive a oportunidade de fazer grande número de instituições e estabelecimentos de educação e ensino daquele País.
Finalmente, no momento em que resolvi deixar o Instituto Nacional de
Estudos Pedagógicos, por divergências em matéria de orientação com seu diretor, o professor Lourenço Filho, e onde exerci sucessivamente os cargos de chefe
das Seções de Documentação e Intercâmbio e de Inquéritos e Pesquisas, foi ainda
Venâncio quem sugeriu a Heloisa Alberto Torres minha designação para a chefia
da Seção de Extensão Cultural do Museu Nacional. Algum tempo antes, já indicara meu nome a Roquete-Pinto para sucedê-lo na direção do Instituto Nacional de
Cinema Educativo, por ocasião de sua aposentadoria, que estava para se efetivar.
No momento, porém, não pude aceitar o honroso convite de Roquete-Pinto, mas
ele concordou com a indicação que lhe fiz do nome do Dr. Pedro Gouveia Filho,
médico, meu colega na inspetoria de ensino no Estado do Rio de Janeiro e meu
colaborador na Superintendência de Educação de Adultos de Extensão Cultural da
Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal, em 1936.
E com as palavras repassadas de carinho e emoção com que Paulo Carneiro
concluiu a conferência já citada, quero terminar essa evocação, muito sumária, do
que representou para mim a amizade desse homem excepcional:
Senhor Presidente, Senhores Acadêmicos, entre todos os dons que possuía Francisco Venâncio,
o que mais o distinguiu e elevou foi, certamente, o seu constante e generoso devotamento.
Ninguém soube ser melhor amigo do que ele. Ninguém serviu com maior desprendimento a
causa pública, nem deu mais alto exemplo de fidelidade aos seus ideais, aos seus labores, à sua
terra e à sua gente.
Nesta hora de evocação e de saudade, sinto junto a mim a sombra ilustre do meu mestre e
amigo. Aqui o revejo com a alegria e a doçura que lhe iluminavam o olhar quando partia, como
peregrino, para São José do Rio Pardo... (Carneiro, 1976).
•••
A outra figura humana de excepcionais qualidades que se tornou um admirável companheiro, desde aqueles dias em que entramos em contato mais íntimo
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
nas lutas comuns pela discussão e implantação da Reforma Fernando de Azevedo –
foi a de Edgar Süssekind de Mendonça. Já o conhecia ligeiramente, desde os tempos da Escola Normal, onde fora admitido, ainda muito jovem, como docente, creio
que de desenho, e onde as alunas, em sua costumeira irreverência, deram-lhe o
carinhoso apelido de "cerejinha", por causa da vermelhidão característica de suas
faces.
Filho de Lúcio de Mendonça, um dos fundadores da Academia Brasileira de
Letras, viveu sempre num ambiente de grande estímulo cultural. Dedicando-se inicialmente às belas-artes, entrou porém em conflito com os professores da Escola,
em virtude dos métodos antiquados de ensino que adotavam e revelou desde logo
o temperamento combativo e polêmico que era uma de suas características
marcantes, escrevendo um verdadeiro libelo contra a congregação da Escola de
Belas-Artes, sendo punido com suspensão. Acabou por abandonar o curso, mas
manteve sempre seus pendores artísticos, tornando-se excelente desenhista. Dedicou-se especialmente ao estudo do desenho como meio de expressão espontânea e
de educação das crianças, desde a mais tenra idade, e sobre essas questões teve a
oportunidade de ministrar cursos de aperfeiçoamento e atualização para professores primários, já em 1926, na administração de Carneiro Leão, no Distrito Federal.
Dedicou-se depois às artes gráficas, tendo sido um dos sócios de uma tipografia, mas que creio não teve êxito comercial, talvez pelo seu desinteresse pelos
aspectos financeiros em todas as atividades em que se envolvia. Espírito sempre
aberto às novas correntes de pensamento, tornou-se amigo dos jovens oficiais revolucionários em 1922, 1924 e 1930, chegando mesmo a editar em 1928, em sua
tipografia, o 2º volume do livro de Juarez Távora À guisa de depoimento – Sobre a
Revolução Brasileira de 1924. Na administração Fernando de Azevedo, Edgar
Süssekind de Mendonça passou a se dedicar especialmente ao ensino das artes
gráficas, tendo sido nomeado diretor da Escola Profissional Álvaro Batista, especializada nesse ramo de ensino técnico. Mais tarde, passou a lecionar no Instituto de
Educação, já na administração de Anísio Teixeira, um curso de didática das ciências
físicas e naturais, onde mais uma vez demonstrou seus dotes excepcionais de professor, com pleno domínio dos melhores métodos e técnicas de ensino.
Fundador da Associação Brasileira de Educação, era um dos seus mais assíduos e eficientes batalhadores pelos ideais da agremiação. Excelente orador, suas
intervenções, sempre repassadas de emoção e paixão pelas questões que abordava,
despertava extraordinário interesse entre seus companheiros e ouvintes. Amigo íntimo de Venâncio, foi colaborador dedicado da obra que Armanda Álvaro Alberto
realizava na Escola Regional de Meriti. Ligando-se depois, pelo casamento, a essa
grande educadora brasileira, formaram um casal de excepcionais qualidades, como
lutadores por tudo que se fez de importante, nesse período, em matéria de renovação da educação e do ensino no Brasil.
Companheiro inseparável de Venâncio no Grêmio Euclides da Cunha, era um
dos mais atentos estudiosos e eficientes divulgadores da obra do grande escritor
brasileiro.
Extrovertido, sempre ao lado das correntes mais progressistas de pensamento, sofreu também o impacto das violências que se abateram sobre o País em
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conseqüência do levante militar de novembro de 1935. Foi demitido dos cargos
que exercia de professor do Instituto de Educação do Rio de Janeiro e de desenhista do Serviço Geológico do Ministério da Agricultura. Juntos curtimos muitos
meses de prisão e, apesar de seu estado de saúde precário, em virtude de uma
úlcera duodenal de que sofria, manteve um bom humor inalterado durante todas
aquelas vicissitudes por que passamos e as inúmeras barbaridades que presenciamos naqueles dias sombrios de cárcere, e isso sem que tivéssemos qualquer participação nos acontecimentos de novembro daquele ano trágico.
Tendo depois prestado concurso para o cargo de técnico de educação do
Ministério da Educação, sugeri a Pedro Gouveia Filho, então diretor do Instituto
Nacional de Cinema Educativo, o nome desse grande amigo e excepcional figura
de professor e educador para vir colaborar conosco na obra que estávamos procurando realizar, naquele Instituto, da elaboração do maior número possível de
filmes e diafilmes que viessem atender às necessidades do ensino primário, secundário e superior. Obtida sua designação, veio ele nos prestar inestimável cooperação nos trabalhos que vínhamos realizando, graças à sua extensa e variada
cultura que abarcava a literatura e a história, as artes e as ciências.
Mas, infelizmente, não pudemos gozar, durante muito tempo, dessa companhia tão agradável quanto fecunda, pelas qualidades de inteligência e de cultura, e
pelo temperamento permanentemente disposto a transformar os momentos de maior
preocupação em torneios de bom humor, com o que desarmava os espíritos mais
inclinados às controvérsias azedas e infecundas.
Sua morte inesperada, em conseqüência da enfermidade que o acometera
havia muito tempo, e sobre a qual, como era de seu feitio, pilheriava com a maior
despreocupação, roubou do nosso convívio, quase que diário, esse saudoso amigo e
companheiro, durante longos anos, de idéias e ideais.
Enfim, uma notável figura humana cuja presença constituía sempre um estímulo vigoroso para acompanhá-lo em suas fulgurantes manifestações de inteligência e cultura. E para mim, inclinado, por índole pessimista, a sentir sempre os
aspectos menos animadores dos acontecimentos, das coisas e das pessoas, constituía um verdadeiro refrigério, aquela permanente disposição de Edgar para considerar em tudo o lado amável e construtivo, aquelas inesgotáveis demonstrações de
alegria de viver, que faziam dele um verdadeiro professor de otimismo.
•••
Em princípios de 1930, recebia eu, de Fernando de Azevedo, mais uma árdua
missão.
Tendo sido inteiramente reformada a antiga Escola de Aperfeiçoamento,
que funcionava precariamente num sobrado no centro da cidade, tratava-se agora
de proporcionar-lhe novas instalações para que viesse a se constituir num modelar
estabelecimento de ensino comercial. Seu antigo diretor efetivo foi mantido no
cargo, mas Fernando de Azevedo julgou que deveria colocar ao seu lado uma pessoa de sua inteira confiança para pôr em prática os novos planos de ensino que a
Reforma introduziria nos cursos da Escola.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Fui então nomeado vice-diretor, em comissão, com a incumbência de dirigir
e organizar os cursos, isto é, tudo que se referisse ao ensino propriamente dito,
cabendo ao antigo diretor a parte relativa à administração do estabelecimento.
Como pela lei, o vice-diretor deveria ser um professor, fui igualmente designado, em comissão, para ministrar, no curso noturno, a cadeira de matemática
comercial.
Dentro em pouco, já com a nova denominação de Escola de Comércio Amaro
Cavalcante, era ela instalada no amplo prédio situado à Praia de Botafogo esquina
da Rua Marquês de Olinda (posteriormente demolido e substituído por um prédio
moderno de apartamentos).
Já na abertura do ano letivo de 1930, pudemos matricular cerca de 800
alunos, de ambos os sexos, em todos os cursos, inclusive no curso noturno, destinado especialmente a maiores de 16 anos que trabalhassem durante o dia. Entre esses
cursos havia alguns inteiramente novos tais como os de mecanografia, propaganda
e publicidade, que não constavam dos currículos das escolas de ensino comercial da
época.
Em breve, tínhamos constituído um corpo de professores da melhor qualidade, entre amigos e novos, que passaram a se dedicar com inexcedível entusiasmo
ao ensino e à educação daquele quase milhar de jovens e adultos. Entre os elementos mais destacados desse corpo docente, capaz e dedicado, incluía-se Paulo Filho,
antigo professor de língua nacional e literatura, jornalista de renome, diretor do
Correio da Manhã; Adelino Magalhães Filho, um dos precursores do modernismo
no Brasil, dotado de magnífica cultura, lecionava geografia e história; Waldemar
Pereira Cota, um dos novos professores admitidos por concurso, que renovou inteiramente o ensino da contabilidade e, mais tarde, lecionou com notável proficiência
os cursos de matemática comercial e financeira; Joaquim Matoso Câmara Jr., que
lecionava também língua nacional e literatura e que se tornou mais tarde um dos
maiores especialistas brasileiros em lingüística; Ernesto Faria Júnior, que depois de
brilhante concurso, iniciou aí sua carreira de professor de ensino público; Alberto
Carneiro Leão, competente professor da língua inglesa e estenografia; Hortência
Barragat, que lecionava língua e literatura francesas; e tantos outros. A escola foi
equipada com o que havia de mais moderno em matéria de técnicas comerciais na
época, inclusive com um escritório modelo, para prática dos alunos. Pela primeira
vez, no Brasil, o manejo de máquinas de calcular era incluído no currículo de uma
escola comercial. Promovi a fundação de uma revista em que alunos e professores
colaboravam, divulgando trabalhos de interesse para a vida da escola.
Dentro em pouco tínhamos conseguido formar um grupo de excelentes discípulos, muitos dos quais se destacaram posteriormente nas mais diversas atividades, graças aos sólidos conhecimentos que receberam na escola. Entre os que mais
se distinguiram pela inteligência e dedicação ao estudo, cito apenas como exemplo
o nome de Antonio Houaiss, que, depois de um curso brilhante, obteve o 1º lugar,
entre os colegas da turma. Ao concluir o curso, orientado e estimulado pelo professor Ernesto Faria, dedicou-se ao estudo e ao ensino de português e do latim, tornando-se depois um mestre dos mais conceituados da língua nacional. Posteriormente, em brilhante concurso, ingressou nos quadros de diplomatas do Ministério
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das Relações Exteriores, onde vinha fazendo uma destacada carreira, quando se
tornou uma das vítimas do "terrorismo cultural" que se abateu sobre o País, com o
advento do golpe de Estado de 1° de abril de 1964, sendo demitido do cargo que
exercia com brilhantismo invulgar no Itamarati. Não se deixou, porém, abater, ao
contrário, prosseguiu sem desfalecimentos nos seus estudos e atividades no campo
da lingüística e da literatura, e em breve via reconhecida sua capacidade excepcional nas especialidades a que se dedicou, com a eleição para membro da Academia
Brasileira de Letras. No momento em que revejo o texto destas Memórias (1978),
Antonio Houaiss é escolhido por seus pares para presidir o Sindicato de Escritores
Brasileiros, recentemente criado.
•••
O término da administração Fernando de Azevedo à frente da Diretoria Geral da Instrução Pública do Distrito Federal, verificado com a vitória da Revolução
em outubro de 1930, apanhou-me em pleno exercício do cargo de professor e vicediretor da Escola de Comércio Amaro Cavalcante. E então muitas coisas aconteceram comigo e com todos os colaboradores mais próximos do grande reformador do
ensino no Brasil. Mas isso já é uma outra história.
A Reforma Fernando de Azevedo e meu completo engajamento na equipe que
a elaborou e realizou, mudou completamente o rumo de minha vida profissional. Tive
que abandonar definitivamente os propósitos antes alimentados de me graduar em
engenharia civil nos cursos da velha Escola Politécnica do Largo de São Francisco.
Levou-me a essa resolução que, como já disse, nunca deixei de sentir profundamente,
em primeiro lugar, a falta de tempo para me dedicar aos estudos, em face da sobrecarga de trabalho que tive que enfrentar naqueles anos da Reforma Fernando de
Azevedo. Em conseqüência dessas minhas atividades, travei conhecimento pessoal
com os professores do tradicional estabelecimento de ensino, dos quais me tornara
colega de trabalho, pois a maioria deles fazia parte dos quadros de professores da
Escola Normal, do Colégio Pedro II ou eram membros da Associação Brasileira de
Educação, tais como entre outros Mário de Brito, Dulcídio Pereira, Azevedo Amaral,
Everardo Backheuser, Barbosa de Oliveira. E eu me sentia totalmente inibido de comparecer perante as bancas examinadoras da Escola Politécnica para prestar exames,
pois em quase todas as matérias teria que me defrontar com esses novos companheiros de trabalho e não poderia fazê-lo sem estar devidamente preparado, pois jamais
admitiria que esse companheirismo e as funções que desempenhava nos serviços
centrais da Diretoria Geral da Instrução Pública pudessem, de qualquer forma, influir
para qualquer atitude de benevolência em relação ao aluno, agora transformado em
colega.
De outro lado, a pedagogia, os problemas de educação e ensino tinham me
conquistado definitivamente, e os concursos e os cursos que fiz posteriormente, fixaram-me de vez na "profissão" de educador, que passou a se constituir exatamente a
partir do grande movimento de modernização do ensino e na educação no Brasil,
cujo ponto mais alto, foi sem dúvida a Reforma de Ensino liderada no Distrito Federal,
por Fernando de Azevedo.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
O abandono do curso de engenharia, entretanto, deixou-me, durante toda
a vida, um certo sentimento de frustração, não só pelo meu temperamento avesso a abandonar qualquer atividade sem a ter concluído, como também e principalmente porque sempre alimentei, tal como todos os jovens de minha posição
social, o objetivo de alcançar um título universitário conquistado em curso de
nível superior, em estabelecimento de meu País. Além disso, tal qualificação teria
me aberto perspectivas e permitido opções em situações críticas com que me
defrontei, posteriormente, na vida.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO IV
A REVOLUÇÃO DE 1930
E A REFORMA FERNANDO
DE AZEVEDO (1930–1931)
O estudo do processo histórico-social que culminou na deflagração e na vitória da chamada "Revolução
de 1930", apesar da bibliografia bastante extensa que já
produziu, ainda se mantém no terreno das teorias e das
hipóteses, não havendo um consenso sobre a maior ou
menor exatidão das várias interpretações que têm sido
apresentadas para explicar esse importante evento da
história nacional.
Sobre essa questão, a professora Aspásia Camargo,
coordenadora do Centro de Pesquisa e Documentação
de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas, comentando as intervenções feitas num ciclo de debates sobre os 50 anos da Revolução de 1930,
escreve:
Mesmo entre testemunhas e participantes, as versões proliferam e um extenso continuum de interpretações, que oscilam do tipo competição individual-regional pelo poder (versão regionalista); modernização administrativa e racionalização (no Estado Novo); industrialização e legislação trabalhista (versão desenvolvimentista); até os que vêem nos episódios
da Revolução de 1930 a prova de uma autêntica ação popular
(versão populista). Em um aspecto porém são unânimes: a
Revolução demoliu os pilares da República Velha, abalando o
condomínio político de São Paulo e Minas (Jornal do Brasil,
"Caderno Especial", 26/10/1980, p. 3).
Do outro lado, não é problema de fácil solução
estabelecer, com precisão, as relações de causa e efeito
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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que possam existir entre os sistemas econômicos, políticos e sociais e a organização
do ensino e da educação escolar num dado período histórico.
A propósito dessa questão, Samuel Bowles e Herbert Gintis, em Schooling in
Capitalist America, citado por Madan Sarup em Marxismo e educação, afirmam:
Em seu capítulo sobre as origens da educação pública de massa, eles fazem uma observação
reveladora, de que nenhuma relação muito simples, ou mecanicista, entre estrutura econômica
e o desenvolvimento educacional se harmonizará com as evidências históricas... fatores políticos intervieram entre as estruturas econômicas e os resultados educacionais, de maneiras complexas e, por vezes, evidentemente contraditórias (1980, p. 161).
Não sendo especialista nessas complexas matérias, evidentemente não posso
me abalançar a tomar posição definitiva nesse debate, nem é esse o meu objetivo
– discutir problemas técnicos de sociologia e história – ao tentar redigir estas
Memórias.
Elas visam muito mais a satisfazer a um impulso pessoal e bastante restrito
de evocar fatos, acontecimentos e pessoas que influíram de maneira mais ou menos decisiva em minha formação como homem e como educador.
Além disso, pareceu-me que tal relato, mesmo desprovido de maiores
cintilâncias literárias, poderia ser de alguma utilidade para possíveis pesquisadores
que, no futuro, tivessem sua atenção despertada para certas circunstâncias particulares que caracterizaram o desenvolvimento desse processo de modernização do
ensino no Brasil, de que fui, em muitos casos, testemunha direta ou até modesto
protagonista.
Acresce que a maioria das figuras mais importantes que lideraram ou participaram desse movimento já não pertence ao mundo dos vivos, e assim, meu depoimento, mesmo revestido da maior simplicidade, poderá vir a ser de alguma valia.
Coloco-me assim na posição de um pretenso escritor que não sendo especialista em nenhum ramo específico do conhecimento formula seu depoimento sobre
circunstâncias e fatos, coisas, pessoas e comportamentos, deixando ao leitor a liberdade de interpretá-los ou aproveitá-los de acordo com suas convicções filosóficas ou
políticas.
•••
Voltando, porém, às origens da Revolução de 1930, parece-me que é possível afirmar-se que, desde a Abolição da Escravidão e da Proclamação da República,
o Brasil entrou num processo agudo de lutas de oligarquias, de grupos de interesses
conflitantes, de emergência de novas classes sociais, de ingerência do poder econômico estrangeiro, o que levou um dos próceres da implantação do novo regime
político, a exclamar com amargura, que não era a de seus sonhos a República implantada em 89, e outro a afirmar que o povo recebeu bestificado.
Após o término da 1ª Grande Guerra Mundial, em razão de uma série de
motivos que cabe aos historiadores, sociólogos, economistas e políticos estudar (e
já há uma produção copiosa e do mais alto nível a respeito), todos esses conflitos se
agravaram, vindo a explodir em 1922, de forma violenta, na primeira tentativa de
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
levante armado, em julho de 1922, de jovens oficiais do Exército, episódio que
passou à história como a "Epopéia dos 18 do Forte de Copacabana".
Boris Fausto, nas conclusões de seu pequeno e interessante trabalho intitulado
A Revolução de 1930, dá a sua versão:
O agravamento das tensões no curso da década de vinte, as peripécias eleitorais das eleições
de 1930, a crise econômica, propiciam a criação de uma frente difusa, em março/outubro de 1930,
que traduz a ambigüidade da resposta à dominação da classe hegemônica: em equilíbrio instável,
contando com o apoio das classes médias de todos os centros urbanos, reúnem-se o setor militar,
agora ampliado com alguns quadros superiores e as classes dominantes regionais.
Eu era um típico elemento dessas classes médias urbanas: nascera, criarame e fizera toda a minha formação no maior centro político, social e cultural da
época no País: a cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Acompanhava com o mais vivo interesse e mal dissimulado entusiasmo, as reações da juventude militar que se levantava em armas contra uma situação que todos nós sentíamos
que não podia mais perdurar.
É ainda, Boris Fausto quem afirma:
Na década de vinte, o tenentismo é o centro mais importante de ataque ao predomínio da
burguesia cafeeira revelando traços específicos, que não podem ser reduzidos simplesmente ao
protesto das classes médias. Se sua contestação tem um conteúdo moderado, expresso em um
tímido programa modernizador, a tática posta em prática é radical e altera as regras do jogo,
com a tentativa aberta de assumir o poder pelo caminho das armas. Sob esse aspecto, embora
inicialmente isolado, o movimento tenentista está muito à frente de todas as oposições regionais, ao iniciar a luta, em julho de 1922.
Nesse mesmo ano, a pequena burguesia intelectual, através da Semana de Arte
Moderna, manifestava de maneira ruidosa, seu inconformismo com a verdadeira alienação em que o País ainda se encontrava, em todos os setores de sua vida cultural.
Os professores, educadores, escritores, intelectuais e publicistas, de modo
geral, interessados nos problemas de educação e ensino, que constituíam, podemos
dizer, uma fração especializada dessa pequena burguesia intelectual, também não
ficaram alheios a essa inquietação que permeava todas as camadas do povo brasileiro, em busca de novos caminhos.
Já em 1909, Carneiro Leão publicava um pequeno volume intitulado A
educação, que pode ser considerado como pioneiro na pregação de idéias novas
em matéria de educação e ensino. Mais tarde, nesse mesmo sentido, publica O
Brasil e a educação popular (1917), Problemas de educação (1919), Os deveres
das novas gerações brasileiras (1923). Conforme já vimos anteriormente, no governo Artur Bernardes (1922-1926), Carneiro Leão assumiria a direção dos serviços de educação do Distrito Federal, tendo feito um grande esforço para imprimir
uma nova orientação na organização e nos métodos de ensino e educação na
capital da República.
Desde 1920, em várias das unidades federadas, começaram a surgir as primeiras reformas estaduais de ensino, impulsionadas não somente pelos anseios de
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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tirá-la dos velhos padrões que remontavam aos tempos do Império e até mesmo do
Brasil-Colônia, como também, por influência das novas idéias que nos chegavam
da Europa e dos Estados Unidos, após a Grande Guerra Mundial e que constituíram
o movimento conhecido pela denominação genérica de "Escola Nova". Assim é que,
em 1920, em São Paulo, Sampaio Dória realiza a que pode ser considerada como a
primeira dessas reformas regionais. Nos anos de 1922-1923, Lourenço Filho tenta a
segunda, no Ceará. Em 1924, é a vez da Bahia, com Anísio Teixeira. No Rio Grande
do Norte, José Augusto Bezerra de Medeiros continua esse movimento (1925-1928);
Carneiro Leão, em 1922-1926, no Distrito Federal e em 1928, em Pernambuco, dá
prosseguimento a esse esforço de modernização do ensino público. Em 1927-1928
é a vez do Paraná, com Lisímaco Costa; e, nesses mesmos anos, esse movimento
chega a Minas Gerais, com Francisco Campos. A mais profunda de todas elas foi,
porém, a empreendida no Distrito Federal sob a liderança de Fernando de Azevedo,
não somente por ter sido consubstanciado numa legislação clara e moderna (Lei n°
3.281, de 23/1/1928) todos esses novos conceitos que vinham sendo objeto das
preocupações e das discussões dos educadores brasileiros mais progressistas, como
também por suas realizações práticas.
Um grupo desses educadores mais destacados fundava, em 1924, a Associação Brasileira de Educação que passou, então, a ser o grande centro propulsor de
todo esse movimento renovador do ensino e da educação, já agora em âmbito
nacional.
É preciso não esquecer também que em 1923, Roquete-Pinto inaugurava a
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, dando início à era da radiodifusão no Brasil.
Evidentemente, não foram apenas as idéias que nos chegavam da Europa de
após-guerra, com as denominações de "escola nova", "escola ativa" e semelhantes
que iriam impulsionar o surto de reformas de ensino que se verificaram no Brasil
especialmente a partir da década de 20. Elas resultaram também ou principalmente
de causas objetivas, geradas no próprio interior do País, ligadas a acontecimentos
econômicos, políticos e sociais, que deveriam caracterizar aquele período histórico
de nosso desenvolvimento.
Com a deflagração da 1ª Grande Guerra Mundial, cessou o grande fluxo da
importação de produtos industrializados que recebíamos dos países mais desenvolvidos da Europa, principalmente da Inglaterra, e que pagávamos com a exportação
de nossa produção agrícola, especialmente do café, de que éramos, na época, os
maiores produtores mundiais.
A esse tempo, nosso parque industrial não ia muito além de algumas fábricas de tecidos e de produtos alimentícios: tudo o mais recebíamos do exterior.
Com a interrupção da corrente de importações, fomos obrigados a ampliar
e diversificar nossa produção industrial para atender às necessidades do consumo
interno, entrando assim o País num processo de desenvolvimento acelerado, que os
economistas denominam de "substituição de importações". Como conseqüência
natural desse processo, nossa classe operária, a mão-de-obra, teria também que se
ampliar e diversificar e, além disso, melhorar seu preparo cultural e técnico, para
atender às novas exigências do trabalho industrial.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
De outro lado, a crise no setor agrícola que foi se agravando em vista dos
impedimentos drásticos que a guerra mundial impunha às nossas exportações, fazia com que se ampliassem e acelerassem as migrações internas dos trabalhadores
rurais, em busca de melhores condições de remuneração e de trabalho nas zonas
urbanas, onde se concentravam as novas indústrias.
Além disso, as correntes imigratórias, que antes eram dirigidas, de preferência, para as atividades agrícolas, para substituir o trabalho escravo, que se tornava
antieconômico, principalmente nas fazendas do interior do Estado de São Paulo,
pelas mesmas razões da crise na agricultura, procuravam os centros industriais
urbanos.
E, terminada a guerra, a Europa devastada, com enorme contingente de
desempregados, fez com que passássemos a receber grandes levas de imigrantes
operários, especialmente italianos, que possuíam um nível cultural e técnico mais
elevado em relação aos nacionais ou os que já aqui se encontravam, atraídos pelo
trabalho agrícola.
Todo esse processo de industrialização e urbanização teria que repercutir na
organização escolar e no ensino, pressionando-o, quer do ponto de vista quantitativo, quer do ponto de vista qualitativo: quantitativamente, forçava o aumento do
número de escolas, para dar oportunidade de ensino aos novos contingentes de
população, resultantes desse processo de urbanização; qualitativamente, porque os
novos alunos exigiam um melhor preparo para atender às novas necessidades do
trabalho industrial, que se ampliava e diversificava, pelas razões que apontamos
acima.
E assim, essas novas condições que se iam criando para a sociedade brasileira, especialmente no centro-sul do País, onde o processo descrito se verificava
com maior intensidade, constituíram, podemos dizer, a infra-estrutura que, a
partir especialmente, como dissemos, da década de 20, desencadearia o movimento de reformas de educação e de ensino, a que se somavam os outros fatores
citados: o desejo dos educadores brasileiros de tirá-los dos velhos padrões coloniais e a influência das idéias de uma nova pedagogia que nos chegavam da
Europa de após-guerra.
E não é de estranhar, pois, que esse movimento se verificasse paralelamente
aos anseios da mocidade militar e da intelectualidade brasileira, de modernização e
de afirmação da nacionalidade, expressos pelos levantes militares de 1922 e 1924 e
pela Semana de Arte Moderna, de 1922.
A propósito de todas essas transformações que o País vinha sofrendo, escreve, com muita propriedade, o sociólogo Octavio Ianni (em O colapso do populismo
no Brasil, 1971):
É no século 20 que o povo brasileiro aparece como categoria política fundamental. Em particular, é depois da Primeira Guerra Mundial – e em escala crescente a seguir – que os setores
médios e proletários urbanos e rurais começam a contar mais abertamente como categoria política. Por isso, pode verificar-se que a revolução brasileira, em curso neste século, é um processo que
compreende a luta por uma participação cada vez maior da população nacional, no debate e nas
decisões políticas e econômicas. O florescimento da cultura nacional, ocorrido em especial nas
décadas de vinte a cinqüenta, indica a criação de novas modalidades de consciência nacional.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Neste quadro é que se inserem os golpes, as revoluções e os movimentos que assinalam os fluxos
e os refluxos na vida política nacional. Mas, esses acontecimentos não são apenas políticos, nem
estritamente internos. Eles são, em geral, manifestações de relações, tensões e conflitos, que os
setores novos ou nascentes no País estabelecem com a sociedade brasileira tradicional e com as
nações mais poderosas com as quais o Brasil está em intercâmbio. Por essas razões, devemos tomar
sempre em consideração que os golpes, as revoluções e os movimentos armados ocorridos no
Brasil, desde a Primeira Guerra Mundial, devem ser encarados como manifestações de rompimentos político-econômicos, ao mesmo tempo internos e externos. Às vezes essas relações não são
imediatamente visíveis, isto é, não podem ser comprovados empiricamente, de modo direto. Mas,
geralmente, elas guardam vinculações estruturais verificáveis no plano histórico. Em última instância, esses rompimentos são manifestações de ruptura político-econômica que marcam o ingresso do Brasil na era da civilização urbano-industrial.
E os educadores brasileiros, consciente ou inconscientemente, conforme vimos, participaram ativamente desse processo, seja pela pressão que as referidas
transformações exerciam sobre a estrutura do ensino, seja pelo influxo das novas
idéias que nos chegavam do exterior, e que visavam igualmente a modernização da
educação e do ensino.
•••
Os reformadores do ensino brasileiro, especialmente os que participaram e
colaboraram na maior e mais profunda das reformas desse período – a Reforma
Fernando Azevedo, realizada na capital da República, nos anos de 1927-1930 –
consideravam-se como antecipadores e, de certa forma, precursores, de todos aqueles
anseios de renovação política, econômica e social do País, e que deveriam desaguar
fragorosamente na Revolução de 1930.
Foi por isso de surpresa, decepção e revolta o tratamento que receberam,
especialmente na capital da República, nos primeiros tempos da instalação do governo revolucionário, vitorioso em 24 de outubro de 1930.
E eu, apesar de me considerar um dos mais modestos colaboradores da grande
reforma de 1927-1930, também recebi minha cota de represálias e sofrimentos,
que repercutiram profundamente em minha vida pessoal e de família.
E essa repercussão não poderia deixar de se verificar: primeiro, porque tinha
me engajado completamente, como vimos, em todos os aspectos do movimento
liderado por Fernando de Azevedo; segundo, porque os recursos com que contávamos, eu e minha mulher, para a manutenção da família, provinham, exclusivamente, dos nossos salários de professores, dos cargos que exercíamos como membros
dos quadros do magistério primário da Prefeitura do Distrito Federal.
E em fins de 1929, a família tinha sido aumentada com o nascimento do
segundo filho.
Por essa época, já estávamos residindo à Rua Silveira Martins, exatamente
no trecho ocupado, em toda a extensão, pela ala direita do Palácio do Catete, sede
do governo federal.
E eu, conforme ficou relatado, estava exercendo o cargo de vice-diretor da
Escola de Comércio Amaro Cavalcanti, cujas novas instalações funcionavam à Praia
de Botafogo, na esquina da Rua Marquês de Olinda.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Em plena atividade nessas novas funções, depois de grande agitação política,
recebíamos a notícia da deflagração, a 3 de outubro de 1930, do movimento armado
que deveria pôr fim, a 24 de outubro, à chamada 1ª República, ou República "Velha" e
instituir a 2ª República ou a República "Nova".
Todos nós, ao menos os mais jovens, éramos partidários ou simpatizantes
dos revolucionários e acompanhávamos ansiosos, o desenrolar dos acontecimentos, mesmo que, como no meu caso, houvesse contradição entre essa atitude e o
fato de estar exercendo funções de confiança, apesar de modestas, no governo que
seria deposto pela Revolução.
A esse fato deveria causar-me não pequenos dissabores.
A deflagração do movimento de outubro obrigou-nos, desde logo, a tomar
uma primeira providência, relativa à proteção da família: aconselhados por parentes e amigos, resolvemos retirá-la das proximidades do Palácio do Catete, pois,
segundo se dizia, havia risco de bombardeio da sede do governo federal, por parte
de aviões revolucionários, o que parece, chegou a acontecer.
Convidados, insistentemente, transferimo-nos os quatro para a casa de uma
madrinha da Carolina – Helena Baião – situada no bairro do Méier. Criatura
boníssima, assim como todos os membros dessa família, católicos fervorosos, ainda
hoje, com mais de 90 anos, lúcida, apesar do precário estado de saúde, cercada pelo
carinho dos filhos, cega, Helena Baião é um admirável exemplo de paciência e,
como disse, de extrema bondade, de difícil entendimento, especialmente para mim,
um inveterado impaciente e inconformado.
Nessa casa modesta e hospitaleira tivemos um acolhimento repassado de
bondade e ternura, cuja lembrança se mantém ao longo desse passado de mais de
meio século.
Eu, porém, não podia abandonar meus encargos de professor e de vicediretor da Escola Amaro Cavalcanti e, diariamente, deveria comparecer à sede do
estabelecimento, à Praia de Botafogo, pois as aulas continuavam normalmente,
apesar da inquietação geral reinante.
•••
A partir de quinta-feira, dia 23 de outubro de 1930, sentíamos todos,
apesar da censura à imprensa, que acontecimentos decisivos estavam em gestação e que iriam redundar no fim da chamada 1ª República ou República Velha,
com a deposição, pela primeira vez na história do Brasil, de um presidente da
República, Washington Luís Pereira de Sousa.
Realmente, os comandantes militares das guarnições do Rio de Janeiro tinham resolvido assumir a responsabilidade de pôr fim ao movimento armado, que
consideravam incontrolável em todo o País, evitando assim maior derramamento
de sangue, e os graves acontecimentos imprevisíveis que resultariam de uma luta
pela tomada da capital da República pelas tropas revolucionárias, que já a assediavam, vindas do Norte e do Sul.
A 24 de outubro já se sabia que uma junta militar tinha sido constituída e
que depois de algumas alterações, teve como membros definitivos os generais
Tasso Fragoso e Mena Barreto e o almirante Isaias de Noronha.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Paschoal Lemme no almoço de
confraternização de Educadores,
promovido pela Associação Brasileira de Educação (ABE), em 19
de julho de 1934. Aparecem
Branca Fialho, presidente da ABE,
Fernando de Azevedo, Anísio
Teixeira, Celso Kelly, Ernesto Faria, Francisco Venâncio Filho,
Edgard Sussekind de Mendonça,
Armanda Álvaro Alberto, Lourenço Filho, Carneiro Leão, Juracy
Silveira, Cecília Meireles, Hermes
Lima e outros professores do Distrito Federal e do Estado do Rio
de Janeiro.
Nesse dia 24 de outubro, uma sexta-feira, o jornal O Globo, que apoiava a
revolução, dizia em editorial de primeira página:
A cidade que tanto vinha sendo angustiada pelo regime de terror policial, que lhe negava o
direito de comentar a situação política em que se imolava a flor da nossa mocidade, acordou
hoje desoprimida.
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A censura à imprensa, que vigorava desde o dia 4 de outubro, estava rompida.
Mais tarde, aviões deixavam cair sobre a cidade a proclamação da Junta
Militar, que assim explicava ao povo a sua atitude:
Excelentíssimo Senhor Presidente da República. A Nação em armas, de Norte a Sul, irmãos
contra irmãos, pais contra filhos, já retalhada, ensangüentada, anseia por um sinal que faça
cessar a luta inglória, que faça voltar a paz aos espíritos, que derive para uma benéfica reconstrução urgente as energias desencadeadas para a autodestruição... A salvação pública, a integridade da Nação, o decoro do Brasil e até mesmo a glória de Vossa Excelência instam, argúem e
imperiosamente comandam a Vossa Excelência que entregue os destinos do Brasil no atual
momento aos seus generais de terra e mar. Tem Vossa Excelência o prazo de meia-hora, a contar
do recebimento desta, para comunicar ao portador a sua resolução, e sendo favorável, como
toda a Nação livre o deseja e espera, deixará o poder com todas as honras e garantias.
Mas, a teimosia do presidente em desconhecer a verdadeira situação em que
o País se encontrava, transformaram esse ultimato em prolongadas negociações
que se estenderam por todo aquele dia 24 de outubro de 1930.
•••
Depois de passar em casa, na Rua Silveira Martins, consegui, a muito custo,
chegar até a sede da Escola Amaro Cavalcanti, onde deveria acompanhar o desenrolar dos acontecimentos desse último dia da 1ª República. Do Catete a Botafogo,
tropas, que eu não sabia se eram legalistas ou revolucionárias, se estendiam, com
seus armamentos engatilhados, prontos a atirar. Com muita dificuldade logrei passar por toda essa confusão e chegar, por fim, ao meu posto de trabalho.
Próximo a Escola, as tropas do 3º Regimento de Infantaria, do quartel da
Praia Vermelha, já tomavam posição na Praia de Botafogo, aguardando os acontecimentos, já do lado da revolução.
Pela Rua Farani, que dava acesso ao Palácio Guanabara, residência oficial do
presidente da República, havia grande movimentação de elementos civis e militares.
Aos poucos, porém, iam circulando os boatos e as notícias de que o governo
estava praticamente deposto e já pelo meio-dia multidões se dirigiam para o centro da cidade em manifestações de júbilo, onde não faltavam os excessos de toda a
ordem, difíceis de controlar nessas ocasiões.
Os lenços vermelhos, símbolos da revolução, iam aparecendo, amarrados
nos pescoços de muitos populares, e um verdadeiro carnaval se estabelecia na parte
central da cidade, numa euforia que consistia numa verdadeira explosão, depois
daqueles dias de contenção e medo. Alguns jornais que se mantiveram favoráveis
ao governo deposto eram empastelados e presas fáceis de incêndios: A Notícia, A
Noite, O Imparcial, A Vanguarda, Gazeta de Notícias, O País.
Políticos dos mais conhecidos como opositores do governo eram postos em
liberdade pelas multidões que abriam os presídios. E entre eles, o mais destacado
era o grande tribuno Maurício de Lacerda.
Mas, no Palácio Guanabara as negociações se prolongavam, dada a
intransigência do presidente Washington Luís, em renunciar e abandonar a chefia
do governo.
O Globo, em sua 3ª edição do dia 24, assim relata os últimos momentos do
governo:
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
As demandas para que o Sr. Washington Luís renunciasse à presidência prolongaram-se pela
tarde inteira. Chamado o cardeal D. Sebastião Leme sua eminência compareceu ao Guanabara em
companhia de Monsenhor Rosalvo Costa Rego. Até aí, a resposta do ex-presidente da República
era sempre a mesma:
– Só sairei morto!
Entrando em conferência com o Sr. Washington Luís, o cardeal Leme encontrou, da mesma
forma, forte relutância por parte do ex-chefe da Nação. Por mais de duas horas Sua Eminência
procurou convencê-lo de que deveria atender às ponderações que lhe fazia, as únicas cabíveis no
momento. O Sr. Washington teimava ainda. Não sairia vivo.
Já escasseavam a muitos a esperança de demover o Sr. Washington Luís. A sua irredutibilidade
raiava pela loucura. De repente, soube-se que o ex-presidente cedera. Não mais deixaria apenas
morto o Guanabara. Concordava em abandonar o Palácio, vivo...
E, realmente, momentos após, o Sr. Washington Luís deixava os seus aposentos em companhia do cardeal D. Sebastião Leme e se dirigia para a sala onde se encontravam os seus ministros e
membros de suas casas civil e militar. Despediu-se ligeiramente de todos abraçando-os. Logo, em
companhia dos oficiais do Exército presentes, ele se encaminhou para o jardim, a fim de rumar
para o local que lhe fora designado. Saiu pelo portão do lado direito. Ao seu aparecimento estrugiu
formidável vaia. O povo, que se comprimia nas ruas próximas, rompeu em longa e interminável
assuada. A vaia durou vários minutos, até o desaparecimento do auto que devia conduzir o presidente à prisão. Seguiram no mesmo auto o general Tasso Fragoso, o cardeal D. Sebastião Leme e o
monsenhor Rosalvo Costa Rego. Nos estribos do carro, viam-se vários oficiais do Exército, todos
armados. Eram justamente 18 horas.
•••
Do meu posto na Escola Amaro Cavalcanti, assisti a toda essa movimentação que agitava a Praia de Botafogo e penetrava pela Rua Farani até o Palácio
Guanabara, onde se desenrolava a parte principal do drama inédito na história
republicana: a deposição de um presidente da República. O Brasil, realmente, ia
entrar numa nova fase em sua vida política, econômica e social.
Terminado esse episódio culminante, não estou bem lembrado como chegou
ao meu conhecimento, resolvi ir até a Chefatura de Polícia, na Rua da Relação,
onde tomava posse do cargo de chefe de polícia, o coronel Sotero de Menezes,
amigo da família da Carolina, e em cuja casa eu já estivera várias vezes.
A confusão era enorme nas imediações e dentro do edifício onde eram soltos
presos políticos do regime decaído e novas autoridades tomavam posse. A muito
custo consegui chegar até o novo chefe de polícia, tendo então a oportunidade de
cumprimentá-lo.
Depois, creio, dirigi-me para o nosso abrigo, no Méier, onde passamos alguns
dias, até que a situação começou a apresentar sintomas de uma certa normalização.
Voltamos então para nossa casa à Rua Silveira Martins e aí retomamos a rotina de
nossa vida, até que outros acontecimentos vieram alterá-la.
•••
Na seqüência desses episódios, já na fase da vitória da Revolução, um se
destacou pela grande repercussão que teve: a chegada ao Rio de Janeiro, a 28 de
outubro, de Juarez Távora, cognominado depois o "vice-rei do Norte", e que sobressaía como o elemento de maior prestígio da corrente "tenentista", depois que
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Luís Carlos Prestes recusou-se a aderir à revolução. Chegou-se a falar até mesmo em
sua investidura na chefia do governo Revolucionário. Sua chegada ao Palácio do
Catete, onde foi recebido pela Junta Governativa, constituiu-se numa verdadeira
apoteose.
Mas, o último ato de afirmação definitiva do movimento revolucionário
vitorioso, dar-se-ia exatamente um mês após a sua erupção: 3 de novembro de
1930, desfazendo rumores e equívocos que insinuavam a intenção da Junta
Governativa de se perpetuar no poder. Getúlio Vargas, o chefe civil da Revolução,
chegava ao Rio de Janeiro a 31 de outubro, em comboio especial, vindo de São
Paulo, e atravessava a cidade em triunfo. No dia seguinte, já no Palácio do Catete,
em entrevista, comunica à imprensa que sua posse na chefia do governo dar-se-ia
na segunda-feira, dia 3 de novembro, às 15 horas.
Em seu discurso de posse afirma entre outras coisas:
O movimento revolucionário iniciado vitoriosamente a 3 de outubro, no sul, norte e centro
do País, e triunfante a 24 nesta capital foi a afirmação mais positiva que até hoje tivemos de
nossa existência como nacionalidade. Ele é efetivamente a expressão viva e palpitante da vontade do povo brasileiro, afinal senhor dos seus destinos e supremo árbitro de suas finalidades
coletivas.
E, em 17 pontos, resume seu programa de reconstrução nacional, no qual
inclui, entre outros, a anistia, difusão do ensino público, principalmente técnicoprofissional, reforma do sistema eleitoral, reorganização do Ministério da Agricultura, criação do Ministério do Trabalho, extinção progressiva, sem violência, do
latifúndio.
E assim, um novo período histórico se abria para o País: começava a era de
Getúlio Vargas.
•••
Passada a euforia natural desses primeiros dias da revolução vitoriosa, aos
poucos, as realidades de uma nova situação foram se impondo. E, como sempre
acontece, a pureza dos ideais, que todos acalentávamos, ao menos nós os jovens,
viriam a ser conspurcados por sentimentos e atitudes mesquinhas de vinganças e
desforços pessoais.
Uma Junta de Sanções tinha sido constituída para apurar e punir possíveis
atos de corrupção na administração pública federal. No âmbito municipal, providência semelhante foi adotada pelo governo local.
À frente do governo do Distrito Federal estava o conhecido político da oposição e grande tribuno parlamentar, Adolfo Bergamini, designado pela Junta
Governativa que assumira, no Rio de Janeiro, a responsabilidade de precipitar a
deposição do governo de Washington Luís.
Para a Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal foi nomeado o professor Osvaldo Orico, docente da Escola Normal e um dos opositores mais ferrenhos
de Fernando de Azevedo, em virtude do ato que demitira todos aqueles professores
daquele estabelecimento de ensino, que o atingira e que considerava ilegal, arbitrário
e até mesmo violento.
68
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Sobre a indicação do professor Osvaldo Orico para assumir a direção do ensino da capital da República, encontrei a seguinte informação num curioso livrinho de
autoria de Campos de Medeiros, intitulado Lutas pela Pátria, edição de 1953. Campos de Medeiros era um dos mais antigos funcionários da Diretoria de Instrução
Pública do Distrito Federal, onde exercera cargos de relevo como secretário de vários
diretores que por ali passaram. Pertencia a uma família tradicional, em que se destacavam os nomes de seus irmãos Medeiros e Albuquerque e Maurício de Medeiros.
Adolfo Bergamini tinha a intenção de nomear Campos de Medeiros para o
cargo mais elevado da Instrução Pública do Distrito Federal, entretanto não pôde
fazê-lo pelas razões que expôs ao próprio Campos de Medeiros, conforme este
relata no citado livrinho:
No dia 24 de outubro, ao anoitecer, estava eu na Rua Marechal Floriano, quando me avisaram:
– O Bergamini tomou conta da Prefeitura, por ordem da Junta Governativa. Ele está no
Palácio da Municipalidade.
Entrei pela chamada Avenida Tomé de Sousa e avistei uma massa popular que se achava
defronte ao edifício dando vivas à Revolução e ao prefeito Bergamini. As portas do edifício
estavam fechadas. Dei a volta para alcançar a outra entrada, da Praça da República, pois que a
Portaria Geral era daquele lado. Falei com o soldado de sentinela, alegando minha qualidade de
funcionário e pedindo-lhe que chamasse alguém da Portaria. Chegou um funcionário da Portaria, que, avistando-me, deu ordem para a minha entrada. Subi as escadas, atravessei os dois
pátios e fui ter à entrada do grande salão onde os prefeitos despachavam. Um funcionário que
guardava a porta facilitou meu ingresso. Realmente, Adolfo Bergamini era o interventor federal
no Distrito Federal. Logo que ele me avistou, conduziu-me a uma das sacadas, dizendo-me:
– Quando eu saí do Palácio Guanabara, no carro em que vim, escrevi neste caderninho o
nome dos diretores que ia nomear. Aqui está o seu nome para a Diretoria de Instrução. Mas,
aqui chegando, recebi um memorando da Junta Governativa pedindo-me a nomeação do doutor Osvaldo Orico para o lugar de diretor geral dessa Diretoria. Diante disso, fui forçado a alterar
a minha deliberação. Mas faço questão do seu auxílio, da sua colaboração na Diretoria da
Instrução Pública, e assim, recomendarei ao doutor Osvaldo Orico que o designe como secretário dele.
E assim foi feito.
Poucos dias depois, porém, o professor Osvaldo Orico era substituído pelo
doutor Raul de Faria, segundo parece, por imposição da política mineira, pois o
novo diretor fora deputado federal filiado à Aliança Liberal, cuja derrota do candidato à eleição para a Presidência da República fora um dos fatores determinantes
do desencadeamento da Revolução de Outubro.
Raul de Faria era então inspetor escolar no Distrito Federal e também um dos
maiores opositores à nova situação que se criara para o ensino na capital da República com a Reforma que se implantara sob a liderança de Fernando de Azevedo.
E assim, sob essa direção inteiramente adversa a todos nós que participáramos desse movimento de modernização do ensino público no Distrito Federal,
começaram os inquéritos e as investigações para apurar as irregularidades que
acaso tivessem sido cometidas pela administração municipal que a Revolução
interrompera em 24 de outubro de 1930.
Não seria exagero afirmar que iríamos enfrentar um ambiente de verdadeiro revanchismo por parte de quantos se consideraram prejudicados por medidas
adotadas pelos reformadores do ensino, capitaneados por Fernando de Azevedo.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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•••
Difícil retratar em palavras esse ambiente de retaliações, calúnias e angústias, que, naturalmente, se refletia em nossas vidas particulares e de nossas famílias,
com todas as incertezas sobre os desfechos que poderiam atingir a cada um de nós.
E para mim que, atendendo a um chamado, me atirara com todo o meu entusiasmo
e exclusivismo ao trabalho, como era próprio do meu temperamento, era esse um
verdadeiro "batismo de fogo" nas lutas que, com esse episódio, se iniciava minha
carreira na instrução pública.
Fernando de Azevedo tinha se retirado para São Paulo, logo após a vitória
da Revolução, e por isso nada sofreu diretamente.
Mas, Jônatas Serrano, subdiretor técnico, foi chamado a prestar esclarecimentos perante os responsáveis pelos inquéritos. Lembro-me bem que, ao ler nos
jornais a notícia desse fato, entrei em contato com o meu ex-chefe e amigo, não só
para prestar-lhe minha solidariedade, como também para me pôr a sua inteira
disposição em tudo o que julgasse necessário à sua defesa.
Procurava-se incriminar os antigos administradores, até em problemas como
o desvio de dinheiro público, para que pudessem ser atingidos em sua
honorabilidade pessoal e diminuir assim a importância de suas atividades técnicas, pedagógicas e administrativas. Na realidade, era uma reação contra a
moralização da administração pública ou, pelo menos, contra os esforços para
modificar velhos hábitos no trato dos problemas de educação e ensino, tirandoos do âmbito do proveito pessoal para um terreno impessoal que tivesse por
objetivo atender aos interesses mais gerais para os quais os serviços públicos são
organizados. E essa era, como sempre, uma manifestação do velho espírito contra
as normas inovadoras, de caráter progressista.
O caso, por exemplo, da construção e instalação do novo e majestoso edifício da Escola Normal, à Rua Mariz e Barros, foi típico nesse sentido.
A mentalidade acanhada dos opositores e inquisidores, que agiam contraditoriamente em nome de uma Revolução purificadora vitoriosa, considerava como
obra suntuária e um desperdício de recursos destinar-se aquele belo conjunto
arquitetônico, para abrigar o estabelecimento padrão para a formação dos novos
professores da capital da República. Conta-se que o prefeito Prado Junior, que
autorizara a construção e a aquisição do equipamento do novo edifício, ao tomar
conhecimento das acusações que eram feitas à sua administração, reagiu de maneira peremptória, dizendo:
– Se acham exageradas as despesas com essa obra, que consagraria qualquer administração, avaliem os prejuízos que ela trouxe para os cofres públicos e pagarei do meu bolso pelo
preço que esses prejuízos forem arbitrados, adquirindo o prédio e todas as instalações.
Se non é vero...
Como soam ridículas hoje ao relembrar essas alegações que pretendiam
incriminar os homens que tiveram a coragem e visão de legar ao Rio de Janeiro
aquele que é hoje considerado como um legítimo patrimônio da cidade, inaugurado
naquele sábado, dia 4 de outubro de 1930, exatamente no dia seguinte à deflagração
do movimento revolucionário que se tornaria vitorioso vinte dias depois!
70
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Mas, a minha vez deveria chegar também.
Na Escola Amaro Cavalcanti, em que eu era o vice-diretor, incumbido especialmente das questões do ensino, houve também um inquérito para apurar
irregularidades havidas, segundo constava, no processo de aquisição de máquinas e equipamentos diversos, por ocasião da instalação da escola, e no qual era
acusado o diretor, que se encarregava diretamente da parte administrativa do
estabelecimento. Na ausência desse diretor, José Alves de Oliveira, que entrara em
férias regulamentares, recebi pessoalmente, como seu substituto legal, a comissão
de sindicâncias, constituída por três antigos inspetores escolares, desafetos notórios da administração Fernando de Azevedo.
A transformação desse importante cargo da administração e orientação do
ensino – o de inspetor escolar – , antes mais consagrador de prestígio político do
que de conhecimentos e preparo técnico, em uma função que passava a ser o
coroamento de uma carreira de dedicação ao ensino, desagradara profundamente
a maioria dos ocupantes dessa função, que se consideraram diminuídos em suas
prerrogativas anteriores e de seu poderio administrativo, que cerceava as iniciativas dos diretores de instrução.
E agora encontravam uma excelente oportunidade de exercer seu desforço
contra a administração que ousara atacar e modificar completamente aquela antiga
situação.
Os três elementos que constituíam a comissão que deveria preceder ao
inquérito na Escola Amaro Cavalcanti, já eram meus antigos conhecidos – creio
que um deles era o professor Pedro Deodato de Morais – e me trataram sempre,
devo confessar, com a maior cordialidade. Foi sempre uma das minhas características de temperamento não dar caráter pessoal a problemas funcionais e assim
sempre mantive, mesmo com os mais empedernidos opositores ao nosso trabalho, um bom relacionamento. Os inquisidores declararam-me, desde logo, que as
sindicâncias não se referiam às minhas atividades, pois sabiam de minha idoneidade e que como vice-diretor, legalmente, só era responsável pelos problemas de
ensino. As irregularidades que pretendiam apurar teriam sido praticadas pelo diretor efetivo responsável pela arte administrativa da escola e versavam, especialmente, sobre a aquisição dos novos equipamentos da escola, e mais precisamente, das
máquinas de escrever e calcular.
Recusei a escusa prévia que pretendia isentar-me de qualquer responsabilidade, pois como parte da administração do estabelecimento e até substituto legal
do diretor efetivo em suas faltas e impedimentos, estava solidário com ele, até que
as acusações fossem devidamente apuradas e os culpados apontados.
E, num gesto que era muito próprio do meu temperamento, e que me parecia
a única resposta válida naquelas circunstâncias, disse à Comissão que me considerava
desde aquele momento afastado do cargo para que os incumbidos do inquérito administrativo pudessem trabalhar em completa liberdade.
Passei a direção da escola ao secretário e enderecei ao Interventor uma
comunicação em que me considerava destituído do cargo de vice-diretor da Escola
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
71
e solicitava ao mesmo tempo uma licença para tratamento de saúde, em face do
esgotamento em que me encontrava, depois de tantos anos de trabalho exaustivo e ininterrupto.
Minha comunicação ao Interventor estava assim redigida:
Senhor Interventor no Distrito Federal,
O abaixo-assinado, professor-adjunto da 2ª classe, exercendo em comissão os cargos
de professor de matemática aplicada ao comércio e estabelecimento de ensino profissional
e de vice-diretor da Escola de Comércio Amaro Cavalcanti, respectivamente desde 21 de
março de 1930 e 25 de abril do mesmo ano, vem comunicar a V. Sª, para os devidos fins, que
nesta data se considera dispensado dessas comissões. Distrito Federal, 4 de março de 1931.
Como se vê, essa comunicação estava inteiramente fora das normas administrativas e era fruto de minha irritação, de meu temperamento, e do ambiente
que se estabelecia naqueles dias de tantas incertezas e em que nos sentíamos atingidos em nossa honorabilidade, depois de termos nos empenhado tão a fundo numa
obra que julgamos merecer, ao menos, algum respeito, mesmo por parte dos que
não a aceitavam, por incompreensão, por ignorância, ou por terem sido atingidos
por medidas de caráter geral que consideravam como seus legítimos interesses
pessoais ou funcionais.
A licença que solicitei para recuperação da saúde, realmente abalada, me foi
negada, depois de submetido a um exame médico, em que senti a falta de coragem
de quem deveria atestar em meu benefício. Minha demissão dos dois cargos em
comissão que exercia, com excesso de trabalho e parca remuneração, foi efetivada
pelo Interventor e assim me encontrei de volta ao meu antigo e único cargo efetivo
de professor-adjunto de 2ª classe, pois como já disse, a administração Fernando de
Azevedo em nada me beneficiou do ponto de vista pessoal, apesar de poder fazê-lo,
dentro da legislação existente.
Fui em seguida designado para ter exercício numa longínqua escolinha de
ensino primário, no subúrbio de Bangu, como coroamento das mesquinharias a que
fui submetido. Encerrava-se assim um período de quase 4 anos no qual os ganhos
de amadurecimento pessoal e os progressos do campo de minha formação profissional eram imensos em face daqueles dias em que me vi sujeito às turbulências
daquelas baixezas, às quais, devidamente avaliadas, em face das circunstâncias,
muito pouco deveriam representar.
Naquele momento, porém, de exaltação e ressentimentos, de desforços e
incompreensões, recebi a volta a uma situação funcional que já considerava ultrapassada, como uma insuportável humilhação.
E comecei a faltar sistematicamente ao trabalho naquela escolinha de ensino primário, comparecendo apenas em dias necessários para me manter no cargo,
enquanto resolvia definitivamente o rumo que deveria imprimir, daí em diante, à
minha vida.
A família crescera e com ela as despesas e as responsabilidades e não poderia agir levianamente. Era preciso pensar em novas fontes de renda, pois o salário
de professor primário e as despesas que teria que fazer para exercer essa função em
local tão distante, colocava-me em situação difícil para fazer face aos encargos de
família que se avolumavam.
72
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Estive, assim, quase a ponto de abandonar definitivamente o "serviço público" e procurar outros caminhos que pudessem me proporcionar melhores perspectivas de vida. Não era fácil porém mudar de rumo e assim era preciso contemporizar, mantendo, dentro do possível, o cargo público, mesmo modesto, e esperar que melhores tempos e melhores oportunidades aparecessem.
Foram, porém, dias de amargura, que representavam aquela mudança tão
brusca de situação: antes, empenhados numa obra em que não medíamos esforços,
canseiras ou sacrifícios e onde a recompensa material seria a última coisa a nos
preocupar. Orgulhava-me da participação naquela obra que deveria ganhar uma
significação histórica importante no processo de modernização do ensino no País.
E agora estávamos sendo submetidos a investigações, como se fôssemos
funcionários relapsos, pouco escrupulosos no cumprimento de nossos deveres e até
mesmo aproveitadores das prerrogativas dos cargos que exercíamos para auferir
proveito pessoal em detrimento do erário público.
Vistos os fatos na perspectiva da distância no tempo, o que mais impressiona
hoje não é a ação desses funcionários menores contra nós, dando pasto aos seus
ressentimentos e frustrações. É a enorme contradição que se estabelecia entre uma
Revolução que se considerava e era historicamente, na verdade, um amplo movimento para tirar o País do atraso político, econômico e social, e a Reforma de
ensino, a mais profunda que se realizara entre nós, até então, e que sem dúvida
antecipara, em seu setor, os anseios e propósitos da Revolução, como freqüentemente
tem acontecido na história da humanidade: a luta das idéias antecedendo a luta
das armas.
Mas, esse é um processo muito comum na história, que nunca se faz em
linha reta, mas que percorre os caminhos nem sempre os mais curtos, e que se
desenvolvem em marchas e contra-marchas, quase nunca compreendidos pelos protagonistas, em cada momento.
Resolvi então escrever a Fernando de Azevedo, que ainda considerávamos
como nosso "comandante", sobre as circunstâncias que determinaram meu afastamento da direção da Escola Amaro Cavalcanti, cargo que me fora confiado por ele,
pondo-me à frente de uma iniciativa que considerava como uma das mais importantes de sua administração.
Essa troca de correspondência, assim iniciada, representou o prosseguimento de relações que se estenderam praticamente até a sua morte e que já agora se
desenvolviam sem a rigidez da hierarquia funcional, num plano de amizade e compreensão. Para mim, foram essas relações de grande significação na conquista da
minha autonomia de pensamento e de convicções, em que as palavras do grande
educador e figura das mais representativas da intelectualidade brasileira me chegavam como um estímulo, pela aprovação dos trabalhos a que me dedicava, em
que se incluíam sempre oportunas ponderações.
Eis a resposta que recebi de Fernando de Azevedo:
São Paulo, 8 de abril de 1931.
Meu caro Paschoal Lemme,
Ao sair hoje, para o trabalho, à tarde, tive a agradável surpresa de um encontro com seu
pai, que ainda não conhecia pessoalmente, e que vinha à minha procura, a seu pedido. Na
rápida palestra que entretivemos turvou-se logo o grande prazer de conhecer e abraçar seu pai
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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com a notícia que me deu, de se haver demitido o seu digno filho e meu caro amigo do cargo que
conquistara pelos seus merecimentos.
Confesso, porém, que o meu pesar não foi tanto por ter perdido uma situação, a que o elevara
o reconhecimento de seu valor e de seus serviços, quanto por saber que a Escola Amaro Cavalcanti,
que perdera havia pouco o seu dedicado diretor, se privava, com sua atitude, de uma das figuras
mais dignas do magistério. Onde quer que esteja, seja qual for o campo em que aplique a sua
atividade, ser-lhe-á fácil elevar-se a uma posição de destaque, pela sua inteligência lúcida e prática, pela sua lealdade irrepreensível, pela moderação de seu trato e pela sua capacidade de trabalho e dedicação.
Mas, já não será tão fácil substituí-lo, no cargo, de que se exonerou, e que exerceu com uma
prudência, um tato e um equilíbrio, que me surpreenderam em um homem de sua idade. O antigo
diretor, meu caro José Alves de Oliveira, a cuja dedicação tanto deve a Escola Profissional de
Comércio, instalada pelo governo da Cidade, e o vice-diretor completaram-se admiravelmente. A
atividade impetuosa do ex-diretor, o zelo insofrido pela sua escola e o desejo impaciente de melhoramentos e reformas com uma visão unilateral do problema da educação, mas sempre com
boa fé, com personalidade e com franqueza, encontraram como que um contrapeso na energia
serena, na discreta polidez e no equilíbrio prudente do vice-diretor, ambos colaboradores desinteressados eficazes e esforçados.
Lamentei sinceramente que a Escola Amaro Cavalcanti um sonho feito realidade, a custa de
tantos sacrifícios e de tantas dificuldades, viesse a privar-se de elementos tão úteis ao seu desenvolvimento constante, dentro do plano geral da Reforma. Não sei o que seria da Reforma, do
ponto de vista da educação profissional, tão mal compreendida e tão injustamente hostilizada, se
não fossem a energia, a lucidez e o entusiasmo, com que tomaram a seu cargo a sua defesa alguns
'espíritos novos', leves, retos e ativos, inteiramente identificados com os ideais da Reforma, que
são os novos ideais da educação.
A documentação que teve a gentileza de enviar-me, dessa campanha de defesa da Reforma,
bastaria pelo seu valor e pelo seu alcance, para me conformar de todas as injustiças que me têm
sido feitas pela camarilha de parasitas e de aproveitadores das situações.
Escreverei logo ao Edgar, ao queridíssimo Edgar Mendonça, cuja altivez e cuja nobreza são
uma tradição de família. Obrigado por todas as suas atenções. Escreva-me sobre o Instituto Brasileiro de Educação, em que vejo agitar a mesma bandeira de reivindicações pedagógicas: a bandeira da educação nova.
Um abraço, um grande abraço que repartirá por todos os amigos, do muito seu
(a) Fernando de Azevedo.
Difícil exprimir em toda a sua plenitude o que para mim representavam, na
época, essas palavras de reconhecimento do esforço, da lealdade e da dedicação
com que eu, que me considerava o mais modesto dos colaboradores da grande
Reforma, procurei ficar à altura dos ideais que animavam aquele grupo de homens
e mulheres, professores e educadores do mais alto gabarito então existentes no
País, que se haviam empenhado tão profundamente na realização daquela obra
que deveria se inscrever, sem dúvida, como um dos marcos mais importantes da
história da educação no Brasil.
Meu nome se via assim consagrado como membro daquela equipe, exatamente pela pessoa mais autorizada para fazê-lo – Fernando de Azevedo, o chefe
reconhecido e o inspirador da grande obra.
•••
Não foi menor minha satisfação quando, muito mais tarde, ao publicar História
da minha vida (1971), Fernando de Azevedo voltava agora, de público, a citar meu
nome entre os que o "acompanharam em seus trabalhos e suas lutas".
74
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Escreve ele:
Nomeado, em janeiro de 1927, Diretor Geral da Instrução Pública no Distrito Federal, resolvi lançar-me a reformas radicais. Depois de muito refletir e com o apoio do prefeito, Antônio
Prado Junior e do presidente da República, Washington Luís. Nas campanhas que tive de enfrentar, apoiado por esses dois grandes brasileiros, havia de suscitar, como suscitei, obstinadas
oposições e adesões entusiásticas. E, entre estas a de um Frota Pessoa, colaborador de primeira
ordem e amigo incomparável; Francisco Venâncio Filho, que queria, fraternalmente e se habituara a dar tudo sem nada pedir; os dois Süssekind de Mendonça, Carlos e Edgar; o incansável
Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, que me dava a melhor cobertura em O Jornal, e tantos outros
que estavam prontos a servir-me na hora difícil. Nenhum daqueles de que esperava apoio me
faltou e de muitos que não esperava senão oposição e hostilidade, o que me veio foi solidariedade e tantas vezes sem restrições.
A esses, que logo nos começos me vieram ao encontro, trazendo-me mais do que um apoio
e testemunho de uma dedicação sem reservas, outros se juntaram depois para me acompanharem em meu trabalho e em minhas lutas. Um Antônio Victor de Sousa Carvalho e Paschoal
Lemme, aquele meu secretário e este oficial de Gabinete, em cujo convívio cotidiano aprendi a
querer-lhes e admirá-los. Lembro-me sempre tão honrado quanto agradecido das atenções
cativantes e da assistência exemplar de um Fernando Nerêo Sampaio, um dos meus assessores
para os projetos de construções escolares, de Vicente Licínio Cardoso, professor da Escola Politécnica e de Jônatas Serrano, da Escola Normal e do Colégio Pedro II, escritores e mestres,
altamente reputados, que exerceram (e com que eficiência e brilho!) o cargo de subdiretor
técnico com o de subdiretor administrativo, pela lei com que se reformou a instrução pública no
Distrito Federal, de 23 de janeiro de 1928. São apenas alguns dos mais chegados a mim, colaboradores de ontem e amigos de sempre.
•••
Enquanto nós, do grupo da Reforma do ensino no Distrito Federal, éramos
fustigados por esse espírito de revanchismo mesquinho, é curioso registrar que a
Revolução, no plano federal, adotava iniciativas de grande alcance, que significavam profundas transformações na orientação dos problemas da educação no País.
Pelo Decreto Federal n° 19.402, de 14 de novembro de 1930, era criado o
Ministério da Educação e Saúde (depois da Educação e Cultura), antiga reivindicação
dos mais destacados educadores brasileiros. Foi nomeado para dirigir a nova pasta
ministerial Francisco Campos, político mineiro, que trazia um apreciável lastro de
serviços prestados à educação pública em Minas Gerais, e considerado por nós como
pertencente à corrente de renovação do ensino no País. Entre suas iniciativas mais
notáveis no plano regional destacava-se a criação da Escola de Aperfeiçoamento
de Professores de Belo Horizonte e a vinda da chamada Missão Claparède para
organizá-la. Entre os membros dessa missão, estava a notável educadora Helena
Antipoff, que deveria radicar-se no Brasil e aqui prestar assinalados serviços na especialidade a que se dedicava: a da educação de crianças excepcionais.
Por iniciativa de Francisco Campos, em 1931, era criado o Conselho Nacional de Educação que deveria assessorar o ministro em todas as reformas que seriam
introduzidas no ensino do País. Em seguida, duas grandes providências foram
adotadas: a lei de organização das Universidades e a Reforma do ensino secundário, este passando a obedecer a um plano orgânico, através de um curso seriado
que vinha substituir o antigo regime dos chamados exames "parcelados" ou de
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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"preparatórios". O novo plano se desenvolvia numa extensão de sete anos de curso,
compreendendo um curso ginasial de cinco anos e um curso complementar de dois
anos, e que deveriam ser completados em estabelecimentos oficiais ou particulares,
estes "equiparados" e devidamente autorizados e fiscalizados pelo Ministério da
Educação. Somente a conclusão desse curso daria a possibilidade de o estudante
candidatar-se aos exames vestibulares para a matrícula nas escolas superiores ou
universidades.
Na organização do novo ministério tive uma pequena participação. Nunca
soube exatamente quem teria indicado meu nome, mas o fato é que recebi do
ministro Francisco Campos a designação para fazer parte de uma comissão que
deveria apresentar sugestões para a regulamentação do departamento que, no
Ministério, deveria se incumbir dos problemas do ensino técnico-profissional. Eram
meus companheiros de comissão, o meu velho amigo e companheiro de trabalho,
Edgar Süssekind de Mendonça, e Francisco Montojos. Este último, gaúcho, viera do
Rio Grande do Sul, trazido pela Revolução vitoriosa e, posteriormente, nomeado
para diretor do referido departamento. Permanecendo durante muitos anos à frente desse cargo, realizou obra importante nesse setor sob sua responsabilidade. De
temperamento expansivo, afável, possuidor das melhores qualidades da gente gaúcha, tive o prazer de contá-lo como bom amigo e excelente companheiro de trabalho, quando me tornei seu colega, ao ingressar no quadro de técnicos de educação
do Ministério da Educação, em 1939.
•••
Como disse, minha correspondência com Fernando de Azevedo prolongouse por mais de trinta anos: recebi dele mais de 50 cartas em resposta às que lhe
enviara e que espero algum dia possam ser publicadas. Nelas se evidenciarão, ainda
mais, se possível, as características de caráter dessa admirável figura humana.
A última que recebi, a única não manuscrita, ditada à sua secretária, pois a
visão já lhe faltava completamente, é datada de 10 de março de 1969, e era fruto
de sua preocupação com o que poderia estar acontecendo comigo e os meus, como
conseqüência da repressão desencadeada pelo golpe de Estado de 1º de abril de
1964. Estava assim redigida:
São Paulo, 10 de março de 1969.
Meu caro Paschoal,
Somente agora, pelo nosso Nelson (Nelson Werneck Sodré, concunhado de Fernando de
Azevedo) consegui, afinal, seu endereço certo. É para aí que vai esta carta. Mas, senão me falha
a memória (já tão esquiva nesta altura), foi para aí, para seu endereço na Tijuca que lhe mandei
duas cartas registradas. A última foi para Miguel Pereira, no Estado do Rio, para onde você teria
transferido sua residência, ao que me informaram.
Dessas três cartas, nenhuma resposta. Teriam sido com endereço errado? Ter-se-iam extraviado? Mas você deve ter sabido, por seu irmão (com quem o Nelson teve contato) que eu
estava à sua procura e aflito por notícias suas e dos seus. Pelo Nelson, que me enviou seu novo
endereço, soube também que não ia bem de saúde.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Esse é um prolongado silêncio, para o qual não encontro outra explicação que não as
desordens de nosso correio. Os nossos desencontros, as notícias que chegam de você, escassas e
às vezes contraditórias, tudo isso me preocupa e me deixa um pouco no ar, sem saber o que há
com você, com os seus e em nossas relações, que sempre se basearam numa compreensão
recíproca e numa perfeita lealdade de um para com o outro.
Nunca me esqueço de sua colaboração, como assistente do Jônatas Serrano, quando eu era
Diretor da Instrução Pública, no Distrito Federal (1927-1930). Éramos companheiros de quase
todos os dias. E, depois de 30, os contatos que tivemos não foram freqüentes. Mas, embora mais
raros, todos marcados por uma amizade sem desfalecimentos e pela velha lealdade com que
sempre nos tratamos, sem quebra do respeito às divergências de opinião.
Nas esferas da educação e fora delas, a minha atitude foi sempre a mesma: de fidelidade
aos propósitos e ideais de disposição de lutar por eles, enfrentando dificuldades de toda ordem.
Mas sei bem o que devo a todos que conviveram ou trabalharam comigo e quanto me confortava e estimulava o apoio de tantos.
Escreva-me logo. Gostaria muito de ter notícias suas.
Com um saudoso abraço do
(a) Fernando de Azevedo.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO V
O INSTITUTO BRASILEIRO
DE EDUCAÇÃO – ILUSÕES
PERDIDAS (1931–1933)
A interrupção brusca daquela atividade contínua
e intensa de cerca de três anos, em que nos considerávamos devotados a uma obra pura, de alcance superior – a
reforma radical do ensino na capital do País – em contraste com as mesquinharias e perseguições
desencadeadas contra nós – após a vitória da Revolução
de 1930 – por aquela "camarilha de parasitas e
aproveitadores de situações", como me escrevia Fernando
de Azevedo, produziram em mim a reação extrema de
abandonar tudo e me dirigir a outros caminhos.
Havia, porém, uma realidade inarredável. O segundo filho, conforme já disse, nascera em dezembro
de 1929, em nossa casinha modesta da Rua Silveira
Martins, aquele justamente que iria, mais tarde, sofrer
a fatalidade de ser atacado por uma doença mental
que o inutilizaria para uma vida normal, trazendo para
nós terríveis preocupações, que, em certos momentos,
se tornaram verdadeiramente dramáticas. Só mesmo
os que se viram em situação semelhante, podem avaliar, em toda a extensão, o que significa a doença mental deformando lentamente a personalidade de um ente
querido, sem qualquer perspectiva de cura. Os tratamentos violentos, as internações sempre diminuidoras,
as revoltas, as agressões, a medicação química, enfim,
toda essa parafernália de recursos, afinal inócuos. Nada
mais doloroso é possível imaginar. Nem mesmo a morte.
E a vida, entretanto, tinha que continuar...
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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E a esse tempo, parece que o terceiro filho já se anunciava.
Tinha, pois, que considerar essa situação concreta, e procurar meios dentro
de minhas possibilidades e competência, para fazer frente a essas novas e maiores
responsabilidades. Nessa conjuntura, mais uma vez, lamentava amargamente não
ter concluído o curso de engenharia civil, pois nesse caso, uma nova alternativa
estaria aberta para mim, provavelmente mais promissora, ao menos materialmente, do que aquela que vinha trilhando, até então, como professor.
É certo que minha mulher nunca deixou de trabalhar em seu cargo de professora primária, mesmo nos momentos mais difíceis que atravessamos e com a
sobrecarga, sempre crescente, ocasionada pelo aumento da família. Vivíamos em
condições muito modestas, mas com a redução dos meus ganhos, resultante do
quase abandono de minha função pública, o orçamento doméstico foi se tornando
muito precário.
•••
Foi aí que o acaso me fez entrar em contato com um grupo de pessoas que
pensava em fundar um colégio em moldes inteiramente modernos, no qual seriam
aplicadas as aquisições mais recentes da chamada "escola nova".
À frente desse grupo estava a professora Julieta Arruda, do magistério primário do Distrito Federal, e que voltara recentemente de uma viagem de estudos
aos Estados Unidos da América do Norte. Fizera parte de uma excursão promovida
pela Associação Brasileira de Educação, onde a conheci, e pela União Pan-Americana, de Washington, e da qual participaram também outros destacados professores
do magistério carioca, tais como Consuelo Pinheiro, Celina Padilha e Maria dos Reis
Campos.
Regressaram dessa visita entusiasmadas com o que puderam observar naquele país, que era considerado então como a Meca das idéias e realizações mais
avançadas em matéria de educação e ensino.
Julieta Arruda, mãe de três filhos e separada do marido, mantinha uma
pensão familiar à Rua Ferreira Viana, no bairro do Catete, com a qual completava
os encargos da manutenção da família.
Comecei a me interessar pelo projeto de dona. Julieta Arruda, indo visitá-la
freqüentemente em sua casa, que ficava muito próxima de nossa residência, à Rua
Silveira Martins.
Por fim, depois de discutirmos por algum tempo e verificarmos nossa concordância sobre a orientação a seguir, acertamos a fundação de um colégio, que
depois denominamos de Instituto Brasileiro de Educação.
Não dispúnhamos, entretanto, de grandes recursos para a instalação e a
manutenção do estabelecimento, tal como desejávamos, e assim resolvi lançar mão
de nosso patrimônio de família, constituído, na época, por um pequeno imóvel
situado na estação do Méier, adquirido com a venda de algumas apólices de propriedade de Carolina. Com os recursos obtidos com a hipoteca desse prédio e mais
alguns que consegui reunir, fizemos face às primeiras despesas.
80
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Dona Julieta acenou apenas como uma vaga promessa, sem compromisso, da
possível colaboração de seu primo – José Maria Belo – , que, eleito governador de
Pernambuco, como sucessor de Estácio Coimbra, fora, porém, impedido de assumir o
cargo em conseqüência da vitória da Revolução de 1930. Através dele, havia também
a possibilidade de recebermos apoio do professor Henrique Doodsworth, do Colégio
Pedro II, sobrinho de Paulo de Frontin, e que posteriormente foi Prefeito do Distrito
Federal.
O passo seguinte foi a procura de um prédio para a instalação do estabelecimento, o que se conseguiu através de relações de dona Julieta Arruda, e localizado à Rua Paissandu n° 108.
Dado o vulto das despesas que teríamos que enfrentar para iniciar o funcionamento do colégio, não podíamos manter ao mesmo tempo a casa em que morávamos e o prédio alugado para a instalação do Instituto, e assim propus à minha
mulher nossa mudança para a sede do estabelecimento, para assim pouparmos um
dos aluguéis.
Sobreveio aí, então, nosso primeiro desentendimento mais sério. Ela, com o
espírito "prático" e a intuição que dizem possuir, de modo geral, as mulheres, não
podia compreender que eu não procurasse me conformar com a situação, aceitando a verdadeira punição que me fora imposta, com a remoção para aquela longínqua escolinha primária e esperando melhores tempos. Considerava a iniciativa da
fundação do colégio como uma verdadeira aventura, em face da situação precária em que vivíamos e do comprometimento do nosso pequeno patrimônio na
iniciativa, e especialmente, por não confiar em minha capacidade comercial, pois
um colégio particular é uma empresa, e nisso ela tinha razão. Minha insistência,
porém, fez com que, mesmo discordando, ela acabasse por aceitar a mudança da
família para a sede do Instituto.
Mas havia, creio eu, para sua atitude, uma certa "ciumada" pelas relações
que passei a manter com dona Julieta Arruda, com quem me encontrava
freqüentemente, em sua residência, na pensão da Rua Ferreira Viana, para tratar da
organização do colégio. Dona Julieta não era uma pessoa desinteressante, que de
certa forma me atraía como mulher, e também pelas concepções idênticas que
tínhamos em matéria de orientação pedagógica: com ela, aprendi mesmo muitos
recursos de ordem prática em matéria de educação e ensino. Mas nossas relações
nunca foram além das normais, em qualquer sentido, durante a sociedade que
mantivemos por algum tempo, na tentativa de realizar o que tínhamos em vista:
um estabelecimento que empregasse os métodos mais modernos de educação e
ensino, conforme entendíamos então.
Inicialmente, os alunos, além de três filhos de dona Julieta, eram os de outros parentes de dona Julieta, que pagavam suas mensalidades e aproveitavam da
orientação que procurávamos imprimir ao ensino. José Maria Belo veio também
prestar sua ajuda, lecionando geografia e história, sem qualquer remuneração.
Obtivemos também a colaboração de alguns amigos e colegas, que recebiam muito
pouco pelo seu trabalho.
Entretanto, não conseguíamos ampliar de muito a matrícula de novos alunos, talvez por causa mesmo da orientação muito especial que imprimíamos ao
ensino, inteiramente fora dos padrões dos colégios comuns.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
81
E assim as dívidas foram se acumulando e os fornecedores batiam à nossa
porta para procurar receber contas atrasadas, e até mesmo de nossas despesas particulares com a alimentação da família. Carolina sofria enormemente com essas cenas
freqüentes de humilhação, que enfrentávamos pela primeira vez na vida de casados e continuava a não apoiar meus planos de insistir na tentativa, cada vez mais
difícil, de manter o colégio.
O terceiro filho nasceu em meio a esse ambiente de dificuldades e aflições e
era mais um encargo a se somar a todos os outros.
Talvez o único derivativo para essa situação tão penosa fosse o fato de
estarmos residindo num prédio antigo, porém amplo, com um terreno extenso,
todo arborizado, com grandes árvores, onde as crianças gozavam de uma ampla
liberdade e largueza e também a proximidade do mar, situado a pouca distância,
numa das praias mais tradicionais do Rio de Janeiro: o Flamengo.
Às tardes, muitas vezes víamos passar na calçada, em frente ao nosso portão,
vindo do Palácio Guanabara, Getúlio Vargas, com sua postura característica, de
mãos atrás das costas, acompanhado apenas por um oficial de gabinete, fazendo
um passeio higiênico, após o jantar. Em 1931, já começava a consolidar seu poder,
que emergia aos poucos da confusão inicial em que as várias correntes que fizeram
a Revolução não conseguiam se entender sobre os rumos definitivos, políticos, econômicos e sociais, a serem impressos ao movimento vitorioso.
E nossas crianças, montadas nos cavalinhos de madeira que faziam parte
das instalações do jardim de infância, mantidas pelo Instituto, exclamavam com
entusiasmo:
– Viva Getúlio Vargas!
•••
Mas, a situação do Instituto Brasileiro de Educação agravava-se dia-a-dia:
o número de alunos não aumentava de modo a cobrir as despesas sempre crescentes. Tentei intensificar a propaganda, imprimindo folhetos caros e contratando uma
empresa especializada em afixação de cartazes em lugares indicados, mas essa providência não produziu os resultados esperados e aumentou ainda mais as dívidas. A
situação acabou por se tornar insustentável e tivemos que pensar em transferir o
colégio para instalações de aluguel mais barato. E, em breve, íamos ocupar um
casarão antigo, de dois pavimentos, situado à Rua Marquês de Abrantes, 191, quase
na Praia de Botafogo, e que era geminado com o prédio de propriedade de Marcos
de Mendonça e de Ana Amélia, a grande poetisa, e que era minha companheira nas
atividades da Associação Brasileira de Educação.
Com a família habitando a parte posterior do prédio, tentamos prosseguir
no esforço de manter e consolidar o Instituto.
Dentro em pouco, porém, verifiquei que não era possível continuar e propus
a dona Julieta a dissolução da sociedade, que aliás não tinha se concretizado em
termos jurídicos.
Separamo-nos então sem vitória e sem ressentimentos e fiquei, eu, sozinho,
como responsável pelo empreendimento, pois não podia liquidá-lo de súbito em
face dos compromissos que tinha assumido.
82
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Continuaram, entretanto, a residir em dependências do Colégio, a família
Blatter Pinho, constituída de parentes de dona Julieta e que depois se tornaram
nossos bons amigos, especialmente o doutor Braulio Blatter Pinho e sua irmã Ana
Lídia, esta professora do Instituto.
Dentro em pouco, porém, iríamos entrar em nova fase, em que persistiríamos por algum tempo ainda, na tentativa de manter o colégio, já agora contando
com a colaboração mais interessada da Carolina, sempre solícita e devotada nas
situações difíceis e talvez mesmo em conseqüência do afastamento de dona Julieta,
cujo temperamento autoritário não se coadunava com a placidez e a paciência de
minha mulher.
•••
Estava pois nessa situação bastante difícil, cheio de dívidas e de preocupações, quando vim a saber que o professor Ernesto Faria, que comigo colaborara na
Escola Amaro Cavalcanti, quase ao mesmo tempo tentava também organizar um
colégio em Copacabana, mas que também não conseguia consolidar por falta de
recursos.
Depois de alguns entendimentos, acabamos por resolver nos unir, mudando-se ele com a família para o casarão da Rua Marquês de Abrantes, para tentar
levar avante a iniciativa. Ernesto Faria trouxe alguns alunos de Copacabana e procuramos ampliar a matrícula com os conhecimentos que ele possuía como antigo e
conceituado professor de colégios particulares de renome.
Ernesto Faria dedicava-se desde muito jovem, ao magistério particular lecionando português, francês e latim e trabalhando em grandes colégios tais como o
Aldridge e o Licée Français, e onde adquirira renome de excelente professor. Perdera o pai muito cedo e fora educado pela mãe, professora primária, tendo sido aluno
do Colégio Anchieta, de Friburgo, dos padres jesuítas. Fora depois um dos melhores
discípulos de Antenor Nascentes, que despertara nele o gosto pelo estudo da língua
nacional e os dos clássicos, especialmente do latim.
Na administração Fernando de Azevedo fizera concurso para a cadeira de
português das escolas técnico-secundárias da Prefeitura do Distrito Federal e, designado para a Escola Amaro Cavalcanti, aí nos conhecemos e fizemos excelente
amizade.
Ernesto Faria era dotado de uma personalidade muito interessante que aprendi a conhecer e a admirar numa convivência de muitos anos, os primeiros dos quais
em condições extremamente difíceis.
Estudioso, bondoso, sempre alegre e comunicativo, um tanto dado a aventuras galantes, falava correntemente o francês, que dizia, sem reservas, que aprendera
com as "francesas" de vida fácil, com quem privara em suas aventuras eróticas, naquelas pensões tradicionais da Rua do Catete, nos anos da mocidade.
Ensinava o francês utilizando métodos modernos, em que incluía as canções
francesas mais em voga, como as de Maurice Chevalier, e com isso despertava grande
interesse dos alunos e excelentes resultados na aprendizagem.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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84
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Instituto Brasileiro de Educação,
escola particular criada por
Paschoal Lemme, 1931-1933. As
fotos são, respectivamente, do
logotipo e da área de recreio da
escola.
Ainda durante o período em que esteve associado comigo, resolveu enfrentar o concurso para provimento da cátedra de latim do Colégio Pedro II. Atirou-se
ao estudo e à elaboração da tese, na qual, pude auxiliá-lo bastante. Versava sobre
os métodos modernos do ensino do latim nos cursos secundários. O assunto era
relativamente novo entre nós, pois o ensino da língua latina ainda sofria daquele
ranço jesuítico do mensa, mensae, que constituía o terror da juventude, que era
obrigada a memorizar aquelas intermináveis declinações, sem ter a oportunidade
de compreender e apreciar todas as belezas e valores da cultura e da civilização
greco-romana.
Ernesto Faria fez um estudo completo de todas as tendências do ensino das
letras clássicas nos principais países do mundo, do ponto de vista histórico e da
metodologia, percorrendo para isso os principais autores da pedagogia moderna
sobre o assunto, o que foi facilitado pela biblioteca bastante rica que já tínhamos
conseguido reunir no Instituto e que íamos completando sempre com tudo o que
aparecia de melhor em nossas livrarias. Essa biblioteca já constituía um bom
patrimônio, feito mesmo naquelas condições tão precárias em que viviam nossas
economias pessoais e do colégio. Era, porém, resultante de um impulso incontrolável
que nos atingia a mim e ao Faria, o gosto pelo livro, pela literatura, que mantivemos pela vida afora.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Pelas exigências formais do concurso, a tese recebeu o título de A pronúncia
do latim. Novas diretrizes do estudo do latim. Dedicava-a "Ao insigne e sábio mestre dr. Antenor Nascentes, a quem devo minha iniciação nos estudos filológicos".
Em certa passagem da tese e sob o título "Os novos meios", escreveu Ernesto
Faria:
Sintetizemos, pois, o nosso pensamento no concernente aos novos meios que julgamos
corresponderem às novas finalidades dos estudos latinos, que a nosso ver, no século 20 não
podem ser os mesmos do século 16.
Antes de tudo, não se compreende mais o critério gramatical do curso do latim. A gramática é uma disciplina normativa, muito distanciada da observação, cujo ponto de vista é forçosamente estreito (Saussure). Ora, o que nos interessa é assimilar a Civilização Romana, reflexo do
pensamento antigo, e nos pormos em situação de melhor compreender as alterações deste
mesmo latim transformado em línguas românicas.
Se a gramática, por seu formalismo estreito não nos satisfaz, o que desejamos nos é fartamente fornecido pela ciência dos textos, a filologia e pela lingüística.
E nessa orientação prossegue ele, traçando os rumos a que deve obedecer
ao ensino das letras clássicas.
Infelizmente, porém, seu trabalho não foi devidamente compreendido e aceito
pelos velhos e rotineiros professores do estabelecimento tradicional do ensino secundário, apegados a velhas fórmulas. Ernesto Faria não obteve aprovação no concurso. A cadeira foi dada a Nelson Romero, um dos filhos de Sílvio Romero, cuja
tese obedecia aos cânones clássicos do estudo da obra de um autor latino. Esse
resultado produziu, durante muito tempo, profunda amargura em Ernesto de Faria,
especialmente pela acusação que os examinadores lhe fizeram, em ter impresso um
caráter pedagógico à sua tese, para encobrir as deficiências no conhecimento da
língua latina propriamente dita, que se baseava essencialmente na tradução à primeira vista.
Como professor do Instituto Brasileiro de Educação, Ernesto Faria, sentia-se sempre muito à vontade no contato com a juventude e assim tomou a
iniciativa de fundar um "Clube da Mocidade", que reunia alunos do Colégio e
de outros estabelecimentos em que lecionava, para o lazer sadio, através de
jogos, torneios, tertúlias e também para o aperfeiçoamento cultural, por meio
de palestras, conferências e atividades semelhantes.
Professor, no Colégio Aldridge, dos filhos de Getúlio Vargas – Alzira e
Manuel – , trouxe-os para o Clube do Instituto, onde participaram de várias atividades. Foi depois professor de Alzira Vargas, preparando-a para o exame vestibular da Faculdade de Direito e, mais tarde, lhe dava aulas de cultura geral, no
Palácio do Catete.
Ernesto Faria teve uma família marcada pela tragédia: perdeu a filha mais
velha num desastre em que foi esmagada por um veículo, próximo à sua residência,
à Rua Barão de Mesquita, quando passava pela calçada dessa rua. Depois, morreulhe a esposa, vitimada por doença insidiosa. Muito mais tarde, Paulo, o filho mais
velho, engenheiro, já casado, faleceu também em desastre.
Casou-se em segundas núpcias com uma colega do Instituto de Educação –
Ruth Junqueira, com quem teve outros filhos.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Tornando-se depois catedrático, por concurso, da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil e exercendo um certo período o cargo de vicediretor desse estabelecimento de ensino superior, de certa forma acabou por recuperar-se da amargura que lhe trouxera a reprovação no concurso para a cátedra do
Colégio Pedro II.
Aos poucos foi elaborando e publicando obra de grande vulto e valor em
sua especialidade, sendo considerado como um dos pioneiros da renovação dos
estudos das letras clássicas, da filologia e da lingüística no Brasil.
Algum tempo antes de falecer repentinamente, na própria sede da Faculdade, realizou um de seus sonhos mais acalentados, que era fazer uma viagem à
Europa, especialmente à França e a Paris. Lá foi recebido, com grande apreço, pelos
mais eminentes mestres nos estudos clássicos, com quem, aliás, já se correspondia
havia muito tempo.
Sua morte, sem dúvida prematura, deveu-se em grande parte ao profundo
desgosto que o atingiu pelo fato de a língua latina ter sido retirada, em caráter
obrigatório, do currículo dos cursos secundários.
Dizia-me ele, decepcionado:
– Que sentido tem o curso que ministro na Faculdade de Filosofia, para a formação de
professores de língua latina, se a importância dela não é mais reconhecida na formação da
juventude?
E foi durante a discussão desse problema, em sessão do Conselho Universitário, que a morte o surpreendeu.
Desse excelente amigo, companheiro de lutas e colega emérito, guardo as
melhores recordações e a mais profunda admiração pela tenacidade com que enfrentou uma luta desigual, vencendo com galhardia todos os obstáculos apostos
por um ambiente de incompreensões e até mesmo de incultura, que tanto dificultaram seus esforços em prol de um melhor ensino e educação de nossa juventude.
•••
Num esforço supremo de salvar o Instituto, tentamos ainda criar cursos de
nível superior em matéria de pedagogia, metodologia, história da educação, psicologia, sociologia e estatística aplicada à educação e outros correlatos. Chegamos
mesmo a fundar a Sociedade de Pedagogia do Rio de Janeiro, uma espécie de
academia, onde desenvolveríamos essas atividades. O anúncio da fundação dessa
entidade foi feito em notas para os jornais, de 2 de janeiro de 1933.
Eis o texto de duas notas que fizemos publicar, respectivamente em O Globo
de 3 de janeiro de 1933 e em 4 desse mesmo mês no Diário de Notícias:
FUNDADA A SOCIEDADE DE PEDAGOGIA DO RIO DE JANEIRO
A sua reunião preliminar
Conforme estava anunciado, realizou-se ontem, às 17 horas, na sede do Instituto Brasileiro
de Educação, à Rua Marquês de Abrantes, nº 191, a reunião preliminar para a fundação da
Sociedade de Pedagogia do Rio de Janeiro.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Como se sabe, essa sociedade vem preencher uma lacuna real em nosso meio, pois não
temos na capital da República nenhum centro para estudos especializados de pedagogia. Presentes vários professores, foram os trabalhos de instalação dirigidos pelos professores Paschoal
Lemme e Ernesto Faria, diretores do Instituto Brasileiro de Educação, tendo sido aprovado o
plano geral por eles apresentado. A Sociedade de Pedagogia do Rio de Janeiro manterá cursos
permanentes das ciências que servem de base à pedagogia: sociologia, psicologia, filosofia, estatística aplicada à educação. Haverá cursos de prática pedagógica, de aplicação de métodos
modernos e de experimentação com os próprios alunos do Instituto Brasileiro de Educação. A
Sociedade manterá ainda biblioteca especializada para uso dos sócios, cursos por correspondência e bureau de informações. Publicará uma revista técnica, que será também o órgão brasileiro
da Ligue Internationale pour l'Éducation Nouvelle. Todas as informações poderão ser obtidas na
Rua Marquês de Abrantes, n. 191, sede da Sociedade.
Infelizmente, esse esforço supremo não foi suficiente para reerguer o Instituto Brasileiro de Educação que praticamente entrava em agonia.
A nova lei que passou a regular a organização do ensino secundário exigia
novos encargos financeiros para os colégios que quisessem se "equiparar", para
gozarem das prerrogativas de ter os respectivos cursos reconhecidos pelo governo federal, os únicos, como dissemos, que, após sua conclusão, permitiriam a
prestação dos exames vestibulares para o ingresso nas escolas superiores. E, evidentemente, os estabelecimentos que não pudessem gozar desse privilégio não
poderiam sobreviver.
Era porém exigida uma taxa muito alta para essa "equiparação", além de
grandes despesas para as instalações exigidas pelo Ministério da Educação para que
os colégios fossem "reconhecidos".
Nossos recursos estavam, porém, esgotados, e não dispúnhamos de meios
para obtê-los. Entrávamos assim em agonia, exatamente no momento em que, a
existir esses recursos, poderíamos lograr a vitória.
Resolvemos, por isso, liquidar o colégio, entregando o prédio aos proprietários, vendendo o material de que dispúnhamos para cobrir algumas dívidas e
mudando as duas famílias para moradias separadas.
•••
Em Marquês de Abrantes, naqueles modestos quartinhos dos fundos do
casarão, nascera a nossa única filha, aquela que seria depois minha herdeira no
campo da pedagogia e que iria sofrer o rude golpe de perder, ainda tão moça, o
marido – o professor Arthur Bernardes Weiss – , vitimado por aneurisma cerebral
quando estava em meio a uma aula de história, sua especialidade, na Pontifícia
Universidade Católica. Era uma excelente criatura, a quem me liguei profundamente, pela mesma preocupação que tínhamos pelos problemas da história e de
seu ensino. Tinham então três filhos menores. Felizmente, a Maria Lúcia, nossa
filha, com admirável energia, conseguiu levar a bom termo a criação dos três
filhos, sobrepujando todas as dificuldades materiais e afetivas que a assoberbaram.
88
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
A vida de família saiu bastante arranhada desse período de tentativas e
enormes dificuldades. Perdêramos praticamente tudo, contraíramos dívidas que
teríamos ainda que saldar durante muito tempo, e ainda eu não pudera voltar
plenamente a minha antiga função pública na administração da educação do Distrito Federal.
Fomos residir então numa casinha muito modesta numa avenida à Rua Cruz
Lima, ainda no Flamengo e aí, aos poucos, fomos refazendo a vida tão abalada.
Nessa casa, em 1934, nasceu o quinto filho, aquele que iríamos perder, vitimado,
em 1943, por uma meningite cérebro-espinhal, doença para a qual não havia, por
essa época, recursos médicos eficazes. Tal ocorrência deixou profunda marca em
nossa família, principalmente em minha mulher, que nunca mais se refez desse
rude golpe que é a perda de um filho de 8 anos, de maneira tão inesperada.
Esse fato, doloroso, com todas as suas conseqüências e desdobramentos,
pode ser considerado mesmo como o marco divisório em nossa vida de família.
•••
E assim terminou, melancolicamente, o Instituto Brasileiro de Educação no
qual tinha depositado tantas esperanças de se tornar uma instituição capaz de
compensar todas as decepções pelo tratamento que recebi na primeira hora, dos
que agiram, nos meios de educação, em nome dos revolucionários de 1930, na
Capital da República. Nesse Instituto, em que Fernando de Azevedo, em sua carta
cheia de calor amigo e de ânimo, via "agitar-se a mesma bandeira de reivindicações
pedagógicas", mas que acabava, no rol das "ilusões perdidas".
•••
Dentro em pouco tempo, porém, ou melhor, imbricados com a própria
agonia do Instituto Brasileiro de Educação, outros acontecimentos iriam mudar
completamente a situação em que nos encontrávamos, de desânimo e amargura,
com o fracasso da iniciativa em que puséramos tantas esperanças.
E novas perspectivas deveriam abrir-se para prosseguimento de minha carreira e para a melhoria das condições de nossa vida de família.
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CAPÍTULO VI
A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
DE EDUCAÇÃO –
O MANIFESTO DOS PIONEIROS
DA EDUCAÇÃO NOVA (1932)
Naquele mesmo ano de 1924, em que iniciava a
minha carreira de professor de ensino público do antigo
Distrito Federal, era fundada no Rio de Janeiro uma
agremiação de educadores que deveria desempenhar um
papel da maior importância no estudo e nos debates dos
problemas mais relevantes da educação e do ensino no País.
Refiro-me à Associação Brasileira de Educação, cuja
sigla ABE tornou-se, dentro de pouco tempo, conhecida e
respeitada em todo o País, especialmente nos meios culturais e de professores e educadores de maior expressão.
Não será descabido afirmar que sua criação refletia aquele mesmo ambiente de inquietações e procura de
novos caminhos, que ocasionou outras iniciativas em outras áreas da vida política, social e cultural do País, tais
como a Semana da Arte Moderna, de 1922; a rebeldia da
mocidade, especialmente das Forças Armadas, que produziram os dois cinco de julho (1922 e 1924), e seu desdobramento na Coluna Prestes (1924-1927); indo toda
essa agitação desaguar no movimento revolucionário vitorioso que, em 1930, poria fim à 1ª República.
Basta atentar para o fato de que os principais
fundadores da nova organização de educadores estavam, de certa forma, ligados pelos mesmos anseios de
renovação que impulsionaram os elementos de outras
áreas que promoveram ações radicais em vista das transformações políticas, econômicas e sociais que almejavam para o País.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Alguns deles desenvolviam atividades políticas, tendo sofrido o peso da repressão, inclusive com prisões, especialmente durante o governo de Arthur Bernardes
(1922-1926). Entre esses, contavam-se Mário de Brito, Everardo Backheuser,
Ferdinando Laboriau, Edgar Süssekind de Mendonça e outros.
Edgar Süssekind de Mendonça, por exemplo, era um elemento combativo,
desde os bancos escolares, e que mantinha estreitas relações com os "tenentes" de
1922 e 1924, tendo, como sócio principal de uma tipografia-editora, publicado o
livro de Juarez Távora, uma das principais figuras do "tenentismo" e depois da
Revolução de 1930: À guisa de depoimento sobre a Revolução Brasileira de 1924.
Os outros eram professores e educadores de renome, intelectuais e cientistas,
inconformados com a situação da educação e do ensino vigorantes no Brasil da
época, entre os quais sobressaía a figura apostolar de Heitor Lyra da Silva, considerado o maior inspirador dos ideais que deveriam nortear as atividades da nova
entidade.
Como demonstração das ligações que havia entre esses homens e os problemas políticos do País, é preciso lembrar que a primeira idéia dos fundadores
da ABE foi a de organizar um partido político que tivesse como objetivo principal
de seu programa lutar pela melhoria das condições da educação e do ensino do
povo brasileiro, em todos os seus aspectos, fator que consideravam básico para
promover as transformações econômicas, políticas e sociais que, segundo eles, o
País estava a exigir, para que o povo brasileiro pudesse atingir o desenvolvimento
e o progresso que todos desejavam.
Essa primeira idéia foi desde logo abandonada e tornou-se vitoriosa a opinião
de que o melhor instrumento para promover a realização dos objetivos visados seria
a fundação de uma entidade que congregasse professores, educadores, cientistas e
intelectuais de modo geral, para, sem qualquer subordinação aos poderes públicos,
discutir todos os problemas relacionados com a educação e o ensino no País, criticando as situações existentes, apresentando às autoridades sugestões para a melhoria
dessas condições, erigindo-se num fórum aberto a todas as correntes de opinião, em
ambiente de perfeita convivência democrática. Assim é que, desde o início, contavam-se entre os mais destacados diretores da ABE elementos de relevo filiados a
correntes opostas de pensamento, tais como católicos e ateus, que trabalhavam em
plena harmonia na consecução dos objetivos visados.
Em discurso pronunciado a 19 de novembro de 1925, comemorativo de um
ano de fundação da ABE, assim se expressava Heitor Lyra da Silva, considerado
como dissemos, o inspirador mais destacado dos ideais da nova agremiação:
Quando há pouco mais de um ano, fundamos em um grupo muito reduzido a Associação
Brasileira de Educação, moveu-nos principalmente a certeza a que todos tínhamos chegado de
que, por maior que seja sua boa vontade, nunca conseguirão os nossos governos, como não
conseguem em parte alguma do mundo, sem o concurso da iniciativa particular, resolver, quer
em quantidade, quer em qualidade, esse grande problema nacional.
E no final do discurso:
Em síntese pois: a Associação aspira constituir-se em órgão legítimo da opinião das classes
cultas, prontas a colaborar em perfeita harmonia com os governos e a aplaudir-lhe os acertos,
92
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
mas capaz também de falar-lhes de frente, de apontar-lhes, quando necessário, os erros e as
lacunas de suas leis de educação e de ensino e de defender vigorosamente nesse terreno os
grandes interesses do Brasil.
E nos 60 anos de sua existência, a ABE ficou sempre fiel a esses ideais de seus
fundadores, naturalmente sofrendo vicissitudes inerentes a situações e às crises
que, atingindo o País como um todo, não poderiam deixar de se refletir em suas
atividades.
•••
Tendo me filiado à ABE já em 1926, que reunia, como dissemos, as mais
representativas figuras do ensino e da educação do País, a influência que delas
recebi e as atividades que ali desenvolvi em várias oportunidades, como participante dos programas e iniciativas por ela levados a efeito, justificam plenamente a
inclusão da ABE como fator importante de minha formação profissional e também
como realização de minha personalidade, já na fase da maturidade.
Além de estimulante convívio com as mais destacadas figuras de intelectuais, cientistas, professores e educadores brasileiros, a ABE promovia inúmeros cursos e conferências de especialistas estrangeiros, que alargaram em muitos sentidos
minha formação cultural geral e a referente ao campo estritamente profissional:
desde, por exemplo, uma Mme. Arthur Perrelet, com seus cursos de metodologia
dos trabalhos manuais nas escolas primárias, até as notáveis conferências de um
George Dumas ou do professor Henri Wallon, entre muitos outros.
Mas, em relação a mim, especialmente, a participação nas atividades da
ABE, inclusive como membro de seu conselho diretor, para o qual fui eleito várias
vezes, deu-me a oportunidade de desenvolver a capacidade de falar em público,
inclusive perante grandes auditórios, o que foi de enorme benefício para meu desenvolvimento, dado meu temperamento extremamente tímido, o que, a princípio,
tornava-me totalmente incapaz até de expressar meu pensamento com clareza
quando tinha de enfrentar mesmo o círculo reduzido de participantes das sessões
semanais do conselho diretor.
Mas, as iniciativas de maior alcance promovidas pela ABE, eram, sem dúvida,
as Conferências Nacionais de Educação, convocadas anualmente para diferentes regiões do território nacional, mobilizando professores e educadores das respectivas
localidades, que tinham assim a oportunidade de ouvir os mais representativos elementos da direção nacional da ABE, e participar de debates dos temas que constituíam os assuntos a serem tratados em cada uma dessas reuniões. E assim, durante
vários dias, podia-se verificar o estimulante efeito produzido pela presença desses
grandes nomes de educadores e professores no seio de um magistério freqüentemente
atingido pela rotina e pela descrença, em vista das condições, quase sempre muito
precárias, em que desenvolviam suas atividades, geralmente sem qualquer apoio efetivo das autoridades encarregadas de dirigir o ensino público.
Comecei a participar ativamente dos trabalhos dessas conferências nacionais a partir da quarta, que se reuniu, no Rio de Janeiro, em 1931. Fui designado
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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como um dos relatores da parte do temário referente, ao ensino técnico-profissional, em vista de minhas preocupações com esse problema, como professor que era
dessa modalidade de ensino no Distrito Federal.
Mas, o tema geral a ser discutido nessa conferência tinha como título: As
grandes diretrizes da educação popular. Instalada essa conferência sob a presidência do próprio chefe do governo provisório – Getúlio Vargas – e do ministro
da Educação – Francisco Campos, os educadores presentes foram convocados por
essas autoridades a definirem o "sentido pedagógico" da Revolução de 1930, o
qual se comprometiam a adotar na obra de reorganização do País, em que estavam empenhados, no tocante aos problemas de educação e ensino. Dessa conferência resultaram duas conseqüências importantes: uma, direta, que consistiu na
assinatura de um convênio estatístico que adotaria normas para a padronização
e aperfeiçoamento das estatísticas de educação e ensino, em todo o País, reconhecidamente muito precárias até então, e que tornavam difícil a adoção de uma
política que redundasse na melhoria real para esses importantes aspectos da organização administrativa, quer no âmbito federal quer no tocante às várias unidades da Federação, isto é, os Estados e os municípios.
O sucesso dessa iniciativa deveu-se especialmente à dedicação exemplar de
Mário Augusto Teixeira de Freitas, diretor dos Serviços de Estatística do recémcriado Ministério da Educação, que modernizou completamente esses serviços, que
passaram a servir de base para estudos completos e fidedignos sobre os problemas
de educação e ensino no Brasil.
A outra conseqüência dessa conferência seria a elaboração de um documento, no qual, os mais representativos educadores do País traçariam a orientação
geral a que deveria obedecer a uma política educacional pelo poder público na
organização do ensino público, em todos os seus aspectos, modalidades e níveis, e
em todas as esferas administrativas. Esse documento apareceria mais tarde, em
março de 1932, redigido por Fernando de Azevedo e subscrito por 25 outros educadores de renome sob o título: A reconstrução educacional no Brasil. Manifesto dos
Pioneiros da Educação Nova e dirigido "Ao Povo e ao Governo". Esse documento
foi considerado da maior importância por todos os meios intelectuais do País, e
recebido como a única contribuição verdadeiramente orgânica para a indicação
dos rumos que a Revolução de 1930 deveria imprimir aos problemas de educação e
de ensino no País. Tornou-se, por isso, um documento histórico no panorama educacional e intelectual do Brasil.
•••
A 5ª Conferência, realizada na cidade de Niterói, capital do Estado do Rio de
Janeiro, de 26 de dezembro de 1932 a 8 de janeiro de 1933, foi considerada uma
das mais importantes. Nela seria discutido um Plano Nacional de Educação que
deveria ser levado depois como sugestão para a redação de um capítulo especial
sobre ensino, educação e cultura, a ser inscrito na nova Constituição do País, a ser
elaborada pela Assembléia Nacional Constituinte, já convocada pelo governo.
A chamada Revolução Constitucionalista de São Paulo que irrompera a 9 de
julho de 1932, tinha sido militarmente derrotada pelo governo federal, mas seu
94
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
principal objetivo que era a volta do País a um regime constitucional foi de certa
forma atingido e a Assembléia Nacional Constituinte foi convocada e instalada a
15 de novembro de 1933.
Num longo período, que se estendeu por todo o ano de 1933 até a promulgação da nova Constituição em 16 de julho de 1934, a ABE esteve mobilizada,
primeiro para oferecer aos constituintes sugestões para um capítulo especial em
que fossem fixados todos os dispositivos referentes à educação, ao ensino e à cultura, e, em seguida, para acompanhar a tramitação do processo legislativo, com
críticas e novas sugestões para a matéria que ia sendo votada. Toda essa atividade
foi reunida num volume intitulado O problema educacional e a nova Constituição,
organizado pela Associação Brasileira de Educação e publicado, em 1934, em edição da Companhia Editora Nacional, de São Paulo.
A "Explicação" para a publicação desse volume está assim redigida:
A Associação Brasileira de Educação que acompanhou a elaboração da nova carta política
do Brasil tendo apresentado à Assembléia Nacional Constituinte o resultado dos estudos das
comissões técnicas encarregadas de traçar as normas gerais sobre a organização do ensino
público, reúne na presente publicação os documentos mais expressivos de sua atividade, bem
como as diversas redações que para o capítulo "Educação e cultura" foram apresentados pelas
comissões daquela Assembléia Nacional de Educação, reunida por iniciativa da ABE, na cidade
de Niterói, em 1932; os comunicados e exposições esclarecedoras, redigidas pelas comissões do
Departamento do Rio de Janeiro da ABE; os textos do anteprojeto governamental do substitutivo
e da redação final da Constituição; os discursos interpretativos deste texto proferidos pelos
deputados Medeiros Neto, Odilon Braga, Prado Kelly e Raul Bittencourt; a oração da sra. Branca
Fialho, presidente do Departamento desta capital; e outras notas explicativas. Com isso, visa a
ABE facilitar aos estudiosos da educação a verdadeira interpretação dos textos que se referem à
"Educação e cultura", na nova carta constitucional.
Foi durante essa longa discussão que se deu o choque entre as duas correntes principais que lideravam os debates: de um lado, o grupo de educadores que se
consideravam intérpretes das idéias liberais democráticas e que propugnavam pela
primazia do Estado na responsabilidade de proporcionar educação e ensino ao povo,
sem qualquer discriminação, obedecendo aos princípios da obrigatoriedade, da
gratuidade e da laicidade, dentro dos limites que fossem fixados, sem entretanto
cercear a ação da iniciativa privada, desde que ela se desenvolvesse dentro dos
preceitos estabelecidos em lei.
De outro lado, estava a corrente católica que advogava a preponderância
da família na responsabilidade de decidir sobre o caráter da educação e ensino a
serem ministrados aos filhos, devendo o Estado, até mesmo, subvencionar os estabelecimentos particulares de ensino, além de manter a rede de ensino público, de
modo a atender às preferências que fossem manifestadas em cada caso.
Além disso, advogava a introdução do ensino religioso como matéria obrigatória no currículo das escolas de todos os graus, pois só assim, afirmavam, se poderia
falar numa verdadeira educação integral. Consoante afirmava um dos mais destacados líderes dessa corrente, o padre jesuíta Leonel Franca, em seu livro Ensino religioso
e ensino leigo (Schmidt, Editor, Rio de Janeiro, 1931):
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
95
Se a educação não pode deixar de ser essencialmente religiosa, a escola leiga que, por
princípio, ignora a religião, é essencialmente incapaz de educar. Tal o veredictum irrecusável de
toda a sã pedagogia.
Do choque dessas duas correntes resultou para a ABE numa cisão irremediável
entre elementos dos mais representativos de sua própria direção, retirando-se os que
estavam ligados às posições defendidas pela Igreja Católica, tais como Barbosa de
Oliveira, Everardo Backheuser e outros, fundadores da ABE, que chegaram mesmo a
criar uma outra associação em que se congregaram esses elementos dissidentes e
outros professores e educadores católicos.
Por fim, uma solução de compromisso foi encontrada, resultando na redação final do capítulo em questão no qual as duas correntes puderam capitalizar
vitórias e lamentar derrotas que expressaram em declarações públicas.
O comunicado da ABE dizia na introdução:
A Associação Brasileira de Educação (Departamento do Rio de Janeiro) ao concluir-se a
votação do capítulo "Educação e cultura" da Constituição Brasileira, a cuja elaboração, desde os
primeiros dias, vem atentamente acompanhando, antecipa à opinião pública o conhecimento
da futura organização do ensino em nosso país realça a circunstância de ver incluídos na Magna
Carta pontos fundamentais de suas legítimas reivindicações e lamenta a adoção de algumas
disposições impróprias a um texto constitucional contrárias entre si e inconvenientes ao ensino.
De outro lado, Alceu de Amoroso Lima, sem dúvida, o líder mais destacado
e atuante da corrente católica, assim se manifestava em declaração que vem
transcrita em seu livro Indicações políticas, no capítulo intitulado "Da Revolução
à Constituição. O sentido de nossa vitória":
O dia 30 de maio de 1934 marca uma data capital na história do catolicismo brasileiro.
E adiante:
Conseguimos incorporar na legislação constitucional de 1934 as aspirações políticas essenciais do catolicismo nacional na hora presente. Conseguimos introduzir um princípio novo nas relações entre a Igreja e o Estado. Conseguimos, enfim, que a ordem jurídica se pusesse de acordo, em
suas linhas fundamentais, com a ordem social brasileira, isto é, que a lei respeitasse o fato.
Entre essas conquistas, estava a introdução do ensino religioso como matéria obrigatória nos currículos escolares, contrariando a orientação adotada pela 1ª
Constituição Republicana, de 1891, de inspiração positivista, e que separara completamente a Igreja do Estado, considerando o ensino religioso como questão de
caráter puramente privado, a ser resolvido no âmbito das famílias, não cabendo
pois às escolas mantidas pelo Estado incluí-lo em seus programas escolares.
É interessante assinalar aqui a mudança de posição de Alceu de Amoroso
Lima em relação aos principais líderes da ABE e signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Em Memórias improvisadas – Diálogos com Medeiros
Lima (Vozes, 1973), Medeiros Lima pergunta:
96
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
– Nessa fase de sua vida, a que estamos nos referindo, o senhor desempenhou uma atuação
importante, não só com relação ao apostolado católico, como fora dele. Coube-lhe, por exemplo, combater o plano de reforma de educação no Brasil, liderada na época por Anísio Teixeira,
Almeida Júnior, Lourenço Filho e outros, autores de um manifesto que ficou conhecido como
Manifesto dos Pioneiros. Não havia aí, de sua parte, o mesmo espírito de intolerância e de
dogmatismo que posteriormente viria a condenar em muitos católicos de hoje?
Com sua característica inteireza de caráter, responde Alceu:
– O senhor tem toda a razão. Em 1932, quando foi lançado o Manifesto dos Pioneiros
vinha eu de minha recente conversão, com todo o ímpeto de cristão, se não novo, pelo menos
revertido às suas raízes. Daí certas posições extremadas dos meus debates pedagógicos. O mesmo sucedeu em sentido oposto com dois ou mesmo três dos mais destacados líderes dessa
"revolução pedagógica", como Anísio Teixeira, Lourenço Filho, e mesmo Everardo Backheuser,
pouco mais tarde convertido ao catolicismo. Mais de uma vez no Conselho de Educação, de que
fizemos parte (e no qual foi feita uma imperdoável injustiça a Lourenço Filho, quando não foi
confirmado ao ser transformado, pelo menos em nome, de Conselho Nacional em Conselho
Federal), conversei com aqueles dois ilustres ex-adversários no plano pedagógico – eles adeptos
da chamada "escola nova" e eu seu contraditor – a respeito de um cruzamento de caminhos. Eu
reconhecia, cada vez mais, a necessidade de uma metodologia pedagógica baseada na liberdade
e na autodeterminação do aluno, bem como na importância dos fatores sociológicos e ambientais.
Enquanto eles se tornavam cada vez mais convictos por experiência própria da importância dos
valores espirituais e da formação da personalidade individual, isto é, da promoção humana,
como um objetivo precípuo da tarefa educativa. Cruzamo-nos a meio caminho. Acabei grande
amigo de ambos, reconhecendo a importância da função "democrática" da educação, que ambos sempre haviam promovido.
•••
Mas, para mim, o momento que julgo mais alto e talvez mesmo o "canto do
cisne" da Associação Brasileira de Educação, no conjunto de inestimáveis serviços
que prestou ao País, foi a Grande Conferência Nacional pela Educação Democrática, realizada em julho de 1945, um pouco antes da queda do chamado "Estado
Novo", o nosso fascismo caboclo, implantado pelo golpe de Estado de 10 de novembro de 1937 e terminando em 29 de outubro de 1945, com a deposição de
Getúlio Vargas.
O manifesto de convocação dessa Conferência deve ser lembrado aqui como
um documento do mais alto valor histórico e atualidade e de que me orgulho de ter
sido um dos signatários.
Estava assim redigido:
Moção aprovada pelo Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação, na sessão
realizada em 19 de março de 1945.
Considerando que, somente sob um regime democrático pode ser empreendida a educação
do povo, porque é uma falsidade evidente toda a doutrina educacional ou política que pretende
formar bons cidadãos num ambiente onde foi anulado o exercício dos deveres cívicos elementares, como de escolher os representantes da Nação e o de discutir e fiscalizar os atos dos
detentores do poder;
Considerando que a ABE foi fundada sob a inspiração dos mais puros ideais democráticos e,
desde então, em todas as ocasiões necessárias vem acompanhando a tarefa sagrada de oferecer
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
97
aos poderes públicos a sua crítica construtiva e as sugestões de seus estudos, procurando manter
essa diretriz, apesar das dificuldades oferecidas pelas suspensões das franquias constitucionais;
Considerando que a essência do regime democrático está no respeito à majestade da Constituição e das leis emanadas dos legítimos representantes da Nação e no respeito aos direitos
individuais consagrados pela Civilização;
Resolve:
a) exprimir o seu voto pelo retorno do País ao regime democrático no mais curto prazo
possível;
b) felicitar calorosamente a legião de escritores, professores, estudantes, jornalistas e homens públicos que acabam de reconquistar para a Nação o direito de ser ouvida quanto
aos seus destinos;
c) convocar, o mais breve possível, um Congresso de Educação a fim de reafirmar os princípios e corolários da educação democrática e sugerir as medidas necessárias para sua
aplicação na atualidade brasileira.
Rio de Janeiro, 19 de março de 1945.
Assinaram esse documento: Alice Flexa Ribeiro, Raul Jobim Bittencourt,
Massilon Saboia, Adalberto Menezes de Oliveira, José Augusto Bezerra de Menezes,
Antônio Victor de Sousa Carvalho, Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça,
Gustavo Lessa, Juraci Silveira, Fernando Tude de Sousa, Thomaz Newlands Neto,
Ruth Gouvêa, Consuelo Pinheiro, Paschoal Lemme, Branca Fialho, Moisés Xavier de
Araújo, Mário Paula de Brito, Clotilde S. Mata e Francisco José da Silva.
Nessa Conferência, a 9ª, realizada no Rio de Janeiro, de 22 a 28 de julho de
1945, foi adotada como uma de suas mais importantes conclusões uma Carta brasileira de educação democrática, que assim definia o que devia ser entendido por
educação democrática:
Educação democrática é aquela que, fundada no princípio da liberdade e no respeito à
pessoa humana, assegura a expansão e a expressão da personalidade, proporcionando a todos,
igualdade de oportunidades, sem distinção de raças, classes ou crenças, na base da justiça social
e da fraternidade humana, indispensáveis a uma sociedade informada pelo espírito de cooperação e de consentimento. Por isso mesmo, a educação democrática exige, além de uma concepção democrática de vida, uma organização social em que a distribuição do poder econômico
não estabeleça nem antagonismos nem privilégios.
•••
Mas, foi na 10ª Conferência Nacional de Educação realizada no Rio de Janeiro, de 15 a 27 de novembro de 1950, que tive a oportunidade de intervir de
modo mais efetivo em seus trabalhos. Dessa minha intervenção resultou a elaboração, por mim, de um documento o qual, não tendo sido acolhido pela Comissão de
Redação dos Anais da Conferência, divulguei posteriormente no volume que publiquei, em 1953, sob o título Estudos de educação. Nesse documento, pela primeira
vez, manifestava claramente minhas divergências com os pontos de vista de muitos
daqueles meus mestres, que aprendi a admirar pelo seu idealismo e pelo devotamento
98
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
com que se dedicavam à tarefa de esclarecer os problemas de educação e ensino na
Associação Brasileira de Educação ou, fora dela, e promover a modernização do
ensino, em postos ou direção nos serviços de educação pública do País.
Considerava-os agora, com todo o respeito que me mereciam, como defensores de um exagerado "otimismo pedagógico", que fazia com que acreditassem
que reformas de educação e ensino seriam os motores fundamentais das transformações econômicas, política e sociais que vinham sendo preconizadas pelos setores
mais responsáveis e esclarecidos do País, para que o povo brasileiro pudesse trilhar
o caminho do progresso e do desenvolvimento que o conduzisse a um futuro mais
promissor, de melhores condições de vida, que atingisse o maior número possível
dos nossos concidadãos.
E já com bastante nitidez, afirmava nesse trabalho minha nova posição perante
esses graves problemas da nacionalidade, concluindo com a seguinte advertência:
É profundamente lamentável, insistimos, que os educadores brasileiros, por algumas de
suas figuras mais representativas, nestes meados do século 20, quando no mundo, povos, até há
pouco dominados e reduzidos à miséria e à ignorância pela dominação imperialista, colonizadora, e que secularmente estavam submetidos, levantam-se dispostos a seguir os caminhos da paz,
da liberdade, da independência e do progresso, ainda uma vez não quisessem se inspirar na
advertência de Benito Juarez, a grande figura de revolucionário mexicano, quando advertia:
Ainda que se multipliquem as escolas, e os professores sejam bem pagos, sempre haverá escassez
de alunos, enquanto exista a causa que impede a assistência à escola... Essa causa é a miséria geral... O
homem que não pode dar alimento à família vê a educação dos filhos como obstáculo à sua luta diária
pela subsistência... Elimine-se a pobreza... e a educação seguirá em forma natural... (citado pela Revista
do Clube Militar do Rio de Janeiro, n. 89, p. 28, maio/jun. 1948).
•••
Minha participação nas atividades da ABE desenvolveu-se durante muitos
anos e em muitas direções, desde aquele longínquo ano de 1926, quando me filiei ao
seu quadro de sócios, até os agitados anos de 1963, em que meus companheiros
julgavam inconveniente minha reeleição como membro do Conselho Diretor. Et pour
cause...
Daí em diante, suas atividades passaram a chegar ao meu conhecimento
como ecos de um passado remoto, que evocarei sempre com repassado sentimento
de saudade. Os grandes nomes que ali aprendi a admirar e que se tornaram depois
excelentes amigos e companheiros de lutas, às vezes ásperas, pela melhoria das
condições de educação e ensino para o povo sofrido de nossa terra, foram sendo
ceifados, um a um, pelo inexorável destino a que todos estamos condenados: desde
um Venâncio Filho ou um Edgar Süssekind de Mendonça, permanentes enamorados
da obra cujos alicerces ajudaram a lançar na realização do sonho do apóstolo Heitor Lyra da Silva, até um Arthur Moses, um Gustavo Lessa, um Nóbrega da Cunha,
sem falar nos quatro expoentes da educação nacional brasileira, os cardeais, no
dizer de Afrânio Peixoto: Carneiro Leão, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira e
Lourenço Filho; daquele admirável grupo de mulheres, Branca Fialho, Armanda
Álvaro Alberto, Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça, Alice Flexa Ribeiro;
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
99
e tantos outros; sem esquecer o último deles, que acaba de desaparecer, nesses
dias de outubro de 1980, numa idade que a poucos brasileiros é dado atingir
(96 anos), depois de uma vida de extraordinária fecundidade: o professor Carlos
Delgado de Carvalho. Possuidor de uma cultura excepcional, adquirida nos
melhores centros da velha Europa, voltando ao Brasil, na década de 20, Delgado de Carvalho entregou-se à tarefa de modernização do ensino no âmbito de
suas especialidades: a geografia, a história e a sociologia, produzindo, nesses
campos, uma notável obra de caráter científico e didático, em nível secundário
e superior.
•••
A Associação Brasileira de Educação, "nossa querida ABE", como entre nós era
carinhosamente denominada, constituiu assim um fator decisivo em minha formação
profissional e de personalidade, e um estímulo para o alargamento de minha cultura
geral, pelo contato que ali mantive com as figuras mais notáveis, nacionais e estrangeiras, em campos de atividade os mais diversos. Minha participação em suas realizações, de outro lado, proporcionou-me um desenvolvimento de caráter pessoal, de
profundos efeitos na afirmação e na formação de um pensamento independente em
relação aos problemas que vieram a ser minha especialidade, principalmente no que
se poderia denominar de política de educação e ensino.
•••
Nos últimos tempos, sob a direção do professor Benjamim Albagli, médico especialista em problemas de nutrição, de pensamento avançado, vinha eu
recebendo reiteradas solicitações para voltar a prestar colaboração às atividades da ABE.
Achava porém, para isso, que deveria receber uma explicação ou mesmo
uma reparação pelo que tinha acontecido em 1963: minha exclusão do Conselho
Diretor. Não me parecia justo que voltasse às atividades da associação como simples sócio, depois de tantos anos ter pertencido ao órgão diretor da Associação.
Certo dia, Juraci Silveira, então vice-presidente, telefonou-me para comentar uma carta que eu escrevera à imprensa carioca sobre a volta do ensino de
filosofia ao currículo dos cursos secundários.
Falou-me também das razões que me levaram a me afastar dos trabalhos da
ABE e então pude dar-lhe uma explicação completa.
Recebi, em seguida, novamente, insistente apelo do professor Benjamim
Albagli para que voltasse a colaborar nos trabalhos da ABE. Continuei, porém, no
mesmo ponto de vista: não me achava em situação de poder atender aos seus
apelos.
Afinal, datada de 22/10/1980, recebia do professor Albagli a seguinte carta:
100
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Ao Ilustríssimo Senhor Professor Paschoal Lemme.
Prezado Professor,
A Diretoria da Associação Brasileira de Educação tem a satisfação de comunicar ao prezado
consórcio e ilustre educador – atualmente o único signatário vivo do Manifesto dos Pioneiros
da Educação Nova – a sua eleição, por unanimidade para Conselheiro Vitalício da Casa de Heitor
Lyra da Silva.
A ABE, após uma longa e difícil fase do ponto de vista financeiro, com dificuldades para
levar a bom termo suas atividades culturais, está agora, em condições de prosseguir, em sua
nova sede, na reativação de suas atividades, de acordo com as finalidades estatutárias. Para isso,
contamos com a sua experiência de velho abeano e suas invulgares qualidades, razão porque
renovamos o nosso convite para retornar à sua ABE.
Cordiais saudações, afetuosamente,
(a) B. Albagli.
Minha resposta a essa gentilíssima carta, foi a seguinte:
Prezado professor Benjamim Albagli, dd. presidente da Associação Brasileira de Educação.
Com a maior emoção, acabo de receber sua gentilíssima carta de 22/12/1980, em que me
comunica ter sido eu eleito, por unanimidade, conselheiro vitalício da Casa de Heitor Lyra Silva.
Nenhuma homenagem seria mais grata para mim do que essa que acabo de receber, depois
desses longos anos em que, na medida de minha modesta capacidade, procurei colaborar com
ilustres educadores, companheiros e amigos, na tarefa, às vezes bastante ingrata, de tentar
influir para que nosso sofrido povo pudesse desfrutar, como é de seu direito, de educação e
ensino de qualidade um pouco melhor e em quantidade menos insuficiente.
Pela honra excepcional que acabam de me conceder, rogo transmitir aos companheiros de
"nossa querida ABE" (como a denominavam os dois enamorados fundadores e inesquecíveis
amigos Francisco Venâncio Filho e Edgar Süssekind de Mendonça) os meus mais calorosos e
emocionados agradecimentos.
Infelizmente, minha idade e meu estado de saúde não permitem que possa prometer uma
colaboração muito assídua nos trabalhos da ABE. Entretanto, sempre que for possível, será com
o maior interesse que procurarei atender ao seu apelo, feito com palavras tão bondosas quanto
inescusáveis.
Com os protestos de estima e consideração, receba o abraço afetuoso do
(a) Paschoal Lemme.
Sem qualquer dúvida, porém, pode-se afirmar, que ninguém poderá escrever a história da educação do Brasil, sem estudar as atividades da Associação Brasileira de Educação e consultar especialmente os Anais das Conferências Nacionais
de Educação, por ela convocados.
•••
Como já ficou dito anteriormente, os trabalhos da 4ª Conferência Nacional
de Educação, realizada no Rio de Janeiro, em 1931, tiveram como uma de suas
conclusões a idéia da elaboração de um documento em que fosse definido o "sentido pedagógico" da Revolução de 1930, conforme a solicitação feita pelo próprio
chefe do governo, que presidiu à instalação desse certame.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
101
Tal documento foi realmente elaborado e, redigido por Fernando de Azevedo, está hoje incorporado à história da educação no Brasil, como um marco de
grande relevo. Foi publicado posteriormente em volume, já referido anteriormente,
em cuja introdução, igualmente redigida por Fernando de Azevedo, afirmava-se:
Esse documento público, que teve a mais larga repercussão, foi inspirado pela necessidade
de precisar o conceito e os objetivos da nova política educacional e desenvolver um esforço
metódico, rigorosamente animado por um critério superior e pontos de vista firmes, dando a
todos os elementos filiados à nova corrente as normas básicas e os princípios cardeais para
avançarem com segurança e eficiência nos seus trabalhos.
•••
Tive participação ativa no aparecimento desse documento e, até onde posso
reconstituir os fatos, eles assim se passaram:
Em certo dia de março de 1932, fui procurado no Instituto Brasileiro de
Educação pelo meu querido amigo Francisco Venâncio Filho que trazia cópias de
um documento, redigido por Fernando de Azevedo, por incumbência de um grupo
de educadores, sendo ele também o primeiro signatário, e vinha solicitar minha
colaboração para que fossem colhidas as assinaturas de algumas personalidades
residentes no Rio de Janeiro.
Na situação de abatimento e desânimo em que eu me achava por essa
época, em virtude das vicissitudes que atingiram a mim pessoalmente e à família,
inclusive pela perspectiva de ter que fechar o Instituto Brasileiro de Educação,
por absoluta falta de recursos para mantê-lo, essa visita de Venâncio e os motivos que a determinavam representaram para mim, em meio a tantas dificuldades,
uma espécie de clareira. Via-me transportado àqueles bons tempos em que as
preocupações materiais eram postas em segundo plano em face daquilo que considerávamos como nossos deveres perante os compromissos que assumíramos com
a causa pública, no desempenho de nossas funções de administradores do ensino
e propugnadores de novos caminhos para a educação do povo brasileiro.
Mas, minha surpresa, e porque não dizer, minha satisfação, elevou-se ao máximo quando Venâncio acrescentou que sua missão não se limitava a esse pedido de
colaboração, mas que o documento deveria ser submetido também à minha apreciação, e, caso com ele concordasse, seria eu também, um dos signatários, dada a projeção que já adquirira, não somente como colaborador da Reforma Fernando de Azevedo, mas também em muitas atividades posteriores, inclusive na Associação Brasileira de Educação e como fundador e diretor do Instituto Brasileiro de Educação.
Difícil exprimir aqui toda a significação que teria para mim aparecer na
companhia dos mais destacados educadores brasileiros e de outros intelectuais de
renome, como co-autor de um documento que representava o que de mais representativo produziu a inteligência brasileira naquele período histórico e na especialidade a que me dedicava.
Ainda tentei explicar a Venâncio que não julgava que meu nome tivesse a
projeção necessária para figurar na companhia daqueles destacados signatários do
importante documento, mas ele não estava autorizado a modificar a deliberação já
102
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
adotada, a não ser que eu não concordasse com os termos em que estava redigido
o Manifesto.
Evidentemente, de acordo com a visão que tinha, àquela época, dos problemas tratados no documento, minha concordância com ele era completa. E foi assim
que me tornei o 25° signatário do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. E,
no momento em que escrevo estas notas, rememorando esses fatos de minha vida,
acontece ser o único sobrevivente entre os signatários do Manifesto: era o mais
moço na em época e aqui estou como último representante desse grupo de figuras
exponenciais da cultura nacional, tal é a ironia da sorte...
Foram os seguintes, na ordem em que aparecem na publicação do Manifesto, os seus signatários:
1. Fernando de Azevedo (redator); 2. Afrânio Peixoto; 3. Antônio Sampaio
Dória; 4. Anísio Spinola Teixeira; 5. Manoel Bergström Lourenço Filho; 6. Edgard
Roquete-Pinto; 7. José Getúlio da Frota Pessoa; 8. Júlio de Mesquita Filho; 9. Raul
Briquet; 10. Mário Casas-santa; 11. Carlos Delgado de Carvalho; 12. Antônio Ferreira
de Almeida Júnior; 13. J. P. Fontenelle; 14. Roldão Lopes de Barros; 15. Noemy M.
da Silveira; 16. Hermes Lima; 17. Atílio Vivacqua; 18. Francisco Venâncio Filho; 19.
Paulo Maranhão; 20. Cecília Meireles; 21. Edgar Süssekind de Mendonça; 22. Armanda
Álvaro Alberto; 23. Garcia de Rezende; 24. Nóbrega da Cunha; 25. Paschoal Lemme;
26. Raul Gomes.
Não é aqui o lugar apropriado para fazer a apreciação do Manifesto em sua
filosofia, em sua significação e em suas propostas. O que é certo, porém, é que ele se
constituiu, naquele momento, como a única manifestação realmente de valor e grande alcance como definição de um grupo das mais destacadas figuras da intelectualidade
brasileira da época quanto aos rumos com que deveriam ser conduzidos os problemas
de educação do País, para que se realizasse a renovação desse setor da vida nacional,
que correspondessem aos anseios e às esperanças que tantos depositavam nos resultados da vitória da Revolução de 1930. Uma coisa é certa: foi o único documento
claro e preciso, que apareceu, então, no setor de que tratava, e em meio de toda
aquela confusão que se estabeleceu nos primeiros tempos que se seguiram à instalação da 2ª República.
E se tais anseios e esperanças não corresponderam completamente às expectativas, talvez seja porque, conforme diz o próprio Manifesto, logo no início,
desde então até agora, continuaram
[…] dissociados das reformas econômicas e educacionais, que era indispensável entrelaçar e
encadear, dirigindo-as no mesmo sentido; todos os nossos esforços sem unidade de plano e sem
espírito de continuidade, não lograram ainda criar'um sistema de organização escolar à altura
das necessidades modernas e das necessidades do País. Tudo fragmentário e desarticulado.
Ou quem sabe se, tal como definia a ABE em sua Carta brasileira de educação democrática, de 1945, "a educação democrática exige, além de uma concepção
democrática de vida uma organização social em que a distribuição do poder econômico não se estabeleça nem antagonismos nem privilégios". E nós ainda não
conseguimos nos livrar de um regime social de antagonismos e privilégios, em que
uma minoria ínfima desfruta dos mais elevados padrões de vida enquanto que a
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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maioria apenas consegue sobreviver em meio das maiores dificuldades. E, nesse
sentido, a educação e o ensino, constituem-se em um verdadeiro privilégio para
essa minoria dos já privilegiados. E Benito Juarez, o líder revolucionário mexicano,
teria assim razão quando afirmava que era preciso eliminar a miséria para que a
educação pudesse desenvolver-se em forma natural... Ou, ainda, segundo outro
grande chefe revolucionário contemporâneo, somente depois de realizada a revolução econômico-social, é que haveria condições para a implantação de um regime
verdadeiramente democrático, em que possa vicejar, efetivamente, a igualdade de
oportunidades para todos e no qual o acesso à educação, ao ensino e à cultura
deixariam de ser um privilégio de poucos para se tornar um direito de todos.
Tais pontos de vista parecem confirmar-se plenamente, pois, há mais de
cinqüenta anos do lançamento do Manifesto, com tão promissoras esperanças, ao
rever os originais destas Memórias, leio na conceituada revista Veja (n° 793, p. 8485, de 1º de novembro de 1983) a matéria, que em seguida transcrevo sobre a
Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativa a 1982, e que revelam um quadro
terrivelmente trágico da situação do povo brasileiro, sob os aspectos econômico,
social e educacional.
É a seguinte a referida matéria:
Os brasileiros estão ficando mais pobres. Se, em 1981, 63,7% da população ativa do País
ganhavam até dois salários mínimos, esse contingente de pobreza aumentou consideravelmente
de um ano para outro: passou para 69,3%, em 1982. E a pobreza soprou mais forte exatamente
nas faixas mais baixas da pirâmide dos trabalhadores. A faixa da miséria absoluta, constituída
pelas pessoas que ganham até meio salário mínimo – ou irrisórios 28.560 cruzeiros – , engordou de
15,6% da população ativa, em 1981, para consideráveis 20,1%, em 1982. E a faixa dos que recebem até um salário mínimo – ou 57.120 cruzeiros – cresceu de 21,5% para 23,5%.
Esses dados fazem parte da mais recente Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio, Pnad,
um amplo levantamento estatístico que é realizado anualmente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística e que teve sua última edição, relativa a 1982, divulgada na última quinta-feira.
A população é pobre mesmo, afirmou o presidente do IBGE, Jessé Montello, ao divulgar os dados.
Na verdade, a Pnad vai mais longe do que constatar que a população é pobre: revela que os
brasileiros estão empobrecendo ainda mais. Se entre o Censo de 1980 e a Pnad de 1981 havia sido
constatada uma significativa melhora, e o contingente de trabalhadores que ganham até dois
salários mínimos diminuíra de 67,1% para 63,7%, em 1982 esse percentual, ao pular para 69,3%,
sobrepujou os dois os indicadores anteriores. A Pnad agora divulgada é, no fundo, uma dramática
ilustração estatística da crise que o país atravessa. É um flagrante da recessão - com todos os
horrores que ela tem espalhado na vida dos brasileiros.
Mais analfabetos – A cada ano, além dos dados gerais sobre população, renda ou ocupação
de mão-de-obra, a Pnad se dedica, com especial atenção, a um aspecto específico da vida
nacional – e desta vez, na pesquisa relativa a 1982, o setor escolhido foi o da educação. Os
resultados, aí, são também desalentadores – da mesma maneira como eram desalentadores os
resultados sobre saúde, o setor escolhido na Pnad 81. Revela-se, por exemplo, que no Brasil há
26 milhões de analfabetos, ou 26% da população – o que demonstra que a taxa de analfabetismo aumentou em relação a pesquisas anteriores (cf. p. 86). Ao dissecar a população por raças, a
Pnad também revela uma situação especialmente cruel para os brasileiros classificados como
negros ou pardos. Conclui-se pelo levantamento, por exemplo, que 52,5% dos pardos recebem
apenas até um salário mínimo, uma situação de sensível piora com relação ao porcentual de
44,7% revelado pelo Censo de 1980 (cf. p. 91).
104
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Por toda a Pnad a crise revela seus efeitos devastadores. O crescimento do número de
pessoas que ganham até meio salário mínimo é, segundo o economista José Cláudio Ferreira de
Sousa, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, o dado mais impressionante da
pesquisa. Mas, se a crise bate forte nas classes menos favorecidas, ela também não poupa a
classe média. O contingente de pessoas que recebe mais de dez salários mínimos – 572.120
cruzeiros, a preços de hoje – diminuiu de 4,5% da população ativa, em 1981, para 3,8%, em
1982. Em números absolutos, isso significa que o número de pessoas nessa faixa de rendimentos
caiu, entre 1981 e 1982, de 2,1 milhões para 1,9 milhão.
Ilha de paz – A população total do Brasil, segundo a Pnad-82, é de 122.507.125 pessoas. E
a população economicamente ativa é de 49.884.736 pessoas. Segundo alguns, a sensível quebra
na renda dos brasileiros detectada pelo levantamento pode ter sido exagerada em função de
um problema metodológico. Como a pesquisa foi realizada entre setembro e dezembro do ano
passado, alguma confusão pode ter sido causada pelo fato de se tratar de um período durante o
qual incide o aumento do salário mínimo. Em todo caso, o empobrecimento geral da população
casa logicamente com outros dados. A oferta de emprego no País, por exemplo, cresceu apenas
0,7%, entre 1980 e 1981, época em que a recessão começa a levantar seu vôo, segundo os
números da Rais, Relação Anual de Informações Sócio-Econômicas, um levantamento realizado
pela Caixa Econômica Federal. Ou seja: a oferta de emprego cresceu, nesse período, três vezes
menos que a população.
Outro dado que dá respaldo à situação de empobrecimento dos brasileiros é um levantamento sobre a produção industrial no País, divulgado pelo IBGE paralelamente à Pnad. Segundo
esses números, tomando-se por base uma média mensal de 100, em 1981, em janeiro deste ano,
a indústria de bens de capital, por exemplo, apresentava uma produção de apenas 56,72% - isto
é, 43,28% a menos. A tabela divulgada pelo IBGE traça um perfil da produção industrial mês a
mês, até agosto último (cf. p. 85). E revela alguma recuperação nos últimos meses – mas não o
suficiente para compensar as perdas acumuladas ao longo do ano. A mesma pesquisa sobre
produção industrial também apresenta dados sobre emprego. E demonstra, por exemplo, que
em julho último a indústria revelava um índice de 91,91% com relação aos 100 do ano anterior
– ou seja, 8% a menos.
Em seu profundo reservatório de tristezas, a Pnad não acusa apenas que os brasileiros estão
ganhando menos. Revela também que, apesar disso, estão trabalhando mais. Segundo o Censo
de 1981, 19,6% dos brasileiros trabalhavam mais de 48 horas por semana. Agora, esse contingente aumentou para 30,7% – o que significa um total de 14,7 milhões de pessoas empenhadas
em dar duro além das 8 horas diárias regulamentares. Nesse aspecto de carga de trabalho, uma
ilha de paz e prosperidade é representada pela classe dos burocratas. Apenas 11,5% do total de
2 milhões de funcionários públicos brasileiros vão além das 8 horas diárias – um porcentual bem
menor do que a média geral de 30,7%. E, melhor ainda, o número de burocratas que estoura o
expediente diminuiu: passou de 12,6%, em 1981, para os atuais 11,5%.
Tal quadro é, sem dúvida, profundamente desanimador para a maioria dos
educadores brasileiros, liberais democratas que, antes e depois do Manifesto, alimentavam a convicção de que, através de uma "educação nova", o povo brasileiro
alcançaria um estágio superior de desenvolvimento, de bem-estar e até, quem sabe,
de felicidade.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO VII
MINHA VOLTA À DIRETORIA
DE INSTRUÇÃO PÚBLICA
DO DISTRITO FEDERAL –
A ADMINISTRAÇÃO ANÍSIO
TEIXEIRA (1931–1935)
Naquele ano de 1932, em meio a tantas vicissitudes, o lançamento do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, em que meu nome figurava entre os 26
signatários, marcou um momento decisivo em minha carreira profissional, na qual fizera a definitiva opção de
servir ao meu País no setor da educação e do ensino
públicos.
Mas, desde o ano anterior (1931), no ambiente
ainda muito confuso que se seguiu à vitória da Revolução de 1930, alguns acontecimentos importantes começaram a se verificar, os quais, dentro em pouco, iriam
redundar em mudanças profundas em minha situação
pessoal e profissional.
A luta travada entre o "tenentismo" para manter
seus ideais revolucionários e as oligarquias derrotadas
que procuravam retomar sua influência na direção da
política e da economia do País, tornava-se cada vez mais
áspera. E num momento dado desse confronto, os "tenentes", congregados por suas figuras mais expressivas
no Clube 3 de Outubro, conseguiram ascender à direção
de algumas das unidades da Federação, tais como Pedro
Ernesto, no Distrito Federal, Juraci Magalhães, na Bahia,
Carneiro de Mendonça, no Ceará, Bertino Dutra, no Rio
Grande do Norte e Ari Parreiras, no Estado do Rio de
Janeiro, entre outros.
A investidura do doutor Pedro Ernesto Batista na
interventoria da capital da República e do comandante
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Ari Parreiras, na do Estado do Rio de Janeiro, resultando na nomeação, respectivamente, de Anísio Teixeira e Celso Kelly para dirigirem os serviços de educação dessas unidades federadas, iria provocar grandes alterações nos rumos de minha vida
particular e funcional, num sentido mais animador.
Conforme escreve Hermes Lima, que exerceu durante certo período, junto a
Pedro Ernesto, a função de uma espécie de conselheiro político,
[...] no novo interventor no Distrito Federal, nomeado em 1931 e eleito em 1934, prefeito, cargo
que exerceu por cinco anos, encarnou, no melhor sentido da palavra, um líder popular. Revolucionário de 22 e 24, emergiu na Revolução de 30 entre as principais figuras. Os companheiros
confiaram-lhe a presidência do Clube 3 de Outubro, que congregava os veteranos das rebeliões
anteriores. Organizou e chefiou o Partido Autonomista. Médico visceralmente humanitário,
cirurgião afamado, formara-se na Bahia onde, ainda no segundo ano, desencadeou simpática
baderna estudantil em defesa do direito ao internato de uma clínica, ganho em concurso por
um coestaduano. Eram ambos de Pernambuco. Teve de custear a parte final dos estudos vendendo a colegas desenhos de anatomia, bom desenhista que era, e soprando uma flauta medíocre em orquestras de segunda ordem. Em 1918, fundou a primeira Casa de Saúde de seu nome
e a segunda em 1924. Ambas estiveram muito ligadas a necessidades e peripécias da atuação
dos revoltosos. Pedro Ernesto sentia instintivamente as causas populares. Certa vez, pediramlhe que se definisse ideologicamente: "Sou, antes de tudo, humano". Era antes sentimento que
ideologia. Ele soube encarná-lo nas tarefas de uma administração memorável pelos dois pontos
culminantes: educação e saúde (Lima, 1978).
•••
A 15 de outubro de 1931, Anísio Teixeira assumia o cargo de diretor da
Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal. Hermes Lima, seu coestaduano e
companheiro desde os bancos escolares do ensino primário, no livro já citado, revela que a nomeação de Anísio deveu-se à indicação do ministro Temístocles Cavalcanti,
[...] líder intelectual prestigioso da Revolução, pois Pedro Ernesto não tinha maiores ligações
com os meios educacionais do País. Com as referências recebidas e depois, no diuturno contato
pessoal com Anísio, durante sua administração, as relações entre os dois se estabeleceram numa
base mútua de apreço e confiança e se aprofundaram e fortaleceram cada vez mais durante
quase cinco anos em que Anísio Teixeira teve a responsabilidade de dirigir os serviços de educação da capital da República.
Sem qualquer exagero, pode-se afirmar que, naquele 15 de outubro de 1931,
ia iniciar-se no Rio de Janeiro, a mais criativa, corajosa e também controvertida
administração de ensino como jamais se verificara no País. E isso se deu, não somente em razão das qualidades pessoais, de temperamento e de formação cultural
e técnica do novo diretor, como também pelo conturbado momento histórico vivido pelo País e pelo mundo, no período em que se desenvolveram as atividades de
Anísio Teixeira no Distrito Federal.
É certo que as duas administrações anteriores, a de Carneiro Leão e, especialmente, a de Fernando de Azevedo (1927-1930), que introduziu radicais transformações na estrutura da administração e na organização e na orientação do ensino
na capital da República, facilitaram extraordinariamente a ação de Anísio Teixeira.
108
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Suas iniciativas, se tiveram caráter de ampliação e consolidação do legado que
recebeu de seus dois ilustres antecessores, apresentaram, de outro lado, características muito peculiares de originalidade na consecução dos objetivos visados, o que
deveria provocar, como de fato aconteceu, oposições radicais, mas também dedicações de elementos da melhor qualidade do magistério carioca.
E isso nada tinha de estranhável, pois, não somente o comportamento e a
forma de ação de Anísio Teixeira, como dissemos, mas também o período histórico
em que atuou, eram por si mesmos altamente polêmicos.
Lembre-se mais uma vez que, por essa época, lavrava no mundo uma das
maiores crises do regime capitalista, que resultou nos dramáticos acontecimentos
de 1939 e que, em seu desdobramento, desencadeou a onda de reação que teve sua
máxima exacerbação com a subida de Hitler ao poder na Alemanha, em 1933, o
que deveria levar o mundo ao desfecho sangrento, em 1939, com a 2ª Grande
Guerra Mundial.
Entre nós, à vitória da Revolução de 1930, seguiu-se o período de grandes
lutas entre as facções vitoriosas, mas com muito pouca clareza na definição de seus
objetivos, e as oligarquias e outros grupos econômicos se esforçavam por retornar
às posições perdidas ou afirmar sua preponderância.
Como reflexo do que acontecia nos países líderes da política mundial, também entre nós se extremaram e se organizaram as correntes de direita e de esquerda,
inspiradas cada uma delas nos modelos que lhe eram oferecidos por aqueles países.
Em outubro de 1932, fundava-se em São Paulo a Ação Integralista Brasileira
que assumiria a direção e a propaganda do nosso nazi-fascismo caboclo. Segundo
observa Hermes Lima na obra citada,
[...] o integralismo porejava ambigüidade, decorrente da própria vacilante atuação barroca de
seu chefe, do forte apoio recebido dos meios militares, das fileiras do clero e da vanguarda
intelectual católica.
De outro lado, o Partido Comunista Brasileiro, fundado em 1922, e que
tivera até então uma atuação muito restrita, mais ou menos clandestina, sempre
fortemente reprimido, passa a atuar de maneira mais efetiva na política nacional,
inspirando a formação de uma "frente popular legal" de esquerda – a Aliança Nacional Libertadora. Nela se congregaram as correntes que de uma forma ou de
outra lutavam contra o fascismo e para que se processassem no País transformações profundas em suas estruturas econômicas, políticas e sociais, que viessem tirálo do atraso crônico em que ainda se encontrava. A Revolução de 1930 que, sem
dúvida, recebera grande apoio popular, liberara essas forças antagônicas que passaram a atuar no sentido de promover aquelas transformações.
Conforme escreve Edgard Carone em Revoluções do Brasil contemporâneo
(1922-1938),
A Aliança Nacional Libertadora surge no momento crítico desta virada histórica. Naturalmente, o perigo operário e dos pequenos partidos de esquerda parecia distante à burguesia,
exatamente pela dispersão de suas forças. Agora ele surge ameaçador. A Aliança foi uma frente
única de partidos de esquerda, sindicatos, certa ala tenentista e elementos apartidários - fusão
de parte da classe média e operariado.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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E foi exatamente durante esse período extremamente conturbado de nossa
história (1931-1935) que a administração de Anísio Teixeira se desenvolveria, recebendo, como não poderia deixar de acontecer, todo o impacto dos acontecimentos
contraditórios nele verificados.
Acresce que, como já ficou narrado anteriormente, os debates em torno da
nova Constituição do País, promulgada em 16 de julho de 1934, na parte referente
à educação, radicalizaram-se extremamente entre as duas principais posições ideológicas em confronto: a dos partidários da escola pública, única, obrigatória, gratuita e laica, conforme o que postulava o Manifesto dos Pioneiros da Educação
Nova, de 1932, e a corrente dirigida pela Igreja Católica que, naturalmente, se
identificava com as posições políticas de direita. E Anísio Teixeira, como um dos
líderes mais destacados da primeira dessas correntes em choque, na posição de
relevo que assumia, com sua ascensão à direção dos serviços de educação da capital
da República, não poderia deixar de sofrer o peso das campanhas dessas forças
reacionárias, que muitas vezes chegaram ao nível mais baixo de acusações, verdadeiramente desatinadas.
De uma delas, por exemplo, guardo triste recordação. No auge da campanha
de tentativa de desmoralização da obra de Anísio Teixeira e seus colaboradores,
houve certa alta patente militar que endossou a acusação caluniosa de que, nos
novos prédios escolares, construídos na administração de Anísio, e que constituíam
uma de suas maiores realizações, as instalações sanitárias seriam comuns às crianças dos dois sexos, pois assim se cumpria melhor os objetivos do "comunismo ateu",
na obra de dissolução da família e da perversão moral das crianças.
•••
Sobre a inteira falsidade das acusações de esquerdismo, marxismo ou comunismo com que a reação, especialmente clerical, procurou inutilizar as notáveis
realizações de Anísio, movendo-lhe tenaz perseguição pessoal, talvez seja eu a pessoa mais habilitada para dar um testemunho completamente insuspeito.
Lá pelos idos de 1933 e 1934, eu já vinha fazendo clara opção pelas teses
fundamentais da filosofia denominada marxista, especialmente nos aspectos que
considerava como um verdadeiro humanismo: a liquidação da exploração do homem pelo homem e a previsão para a humanidade de um regime político, econômico e social que proporcionasse a todos maiores oportunidades de usufruírem
todos os bens materiais e culturais criados pelos próprios homens. Comecei a
compreender, porém, que isso somente se realizaria no final de um longo processo de lutas encarniçadas, conforme já vinha ocorrendo através dos séculos, desde
a dissolução das sociedades primitivas, sem classes, e a instauração da sociedade
de classes antagônica, pela denominação de umas sobre outras. Concordava assim com as teses marxistas de que o capitalismo, tal como outros regimes de
classes, estava condenado a desaparecer em virtude de suas próprias contradições internas, e que o homem, afinal, conseguiria estabelecer um regime político,
econômico e social, de verdadeira justiça social, no qual cada um contribuiria
com seu esforço para o bem comum e receberia em retribuição, da sociedade,
110
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
assim organizada em bases realmente democráticas, todos os elementos necessários para se desenvolver com a dignidade desejada de verdadeiros seres humanos.
Desde 1932 até 1935, em contato quase que diário com Anísio, em virtude
das várias funções que fui chamado a exercer em sua administração, pude captar
com bastante precisão seus pontos de vista em matéria de filosofia social. Pude
perceber assim que sua visão, pelo menos, àquele tempo, era fortemente influenciada pelo contato que tivera com a sociedade norte-americana, que para ele, como
para a maioria dos educadores, era considerada como um modelo de democracia,
onde se devia buscar inspiração. Impressionara-o, a ele, como a tantos outros, aquele
espetáculo de um país, que se caracterizava especialmente pela existência de uma
numerosa classe média, que usufruía enorme liberdade de opinião e de um elevado
padrão de vida, especialmente se comparado à nossa situação, verdadeiramente
oposta, em que enormes massas desprovidas das mais elementares condições de
vida decente, conviviam com minorias ínfimas, gozando de todos os privilégios e
recursos de uma civilização moderna.
E os educadores, em geral, e parece-me que Anísio também, defendiam a
tese de que o caminho adequado para promover as transformações econômicas,
políticas e sociais, em que todos estávamos empenhados, não era o da luta revolucionária de classes, de acordo com as teorias marxistas, mas o esforço pela elevação
do nível cultural do povo, através de um sistema democrático de educação pública
acessível a todos, por meio do qual, se desse a cada indivíduo a oportunidade de
desenvolver plenamente suas potencialidades e dessa forma vir a ocupar na sociedade a situação que correspondesse melhor às suas capacidades e aspirações.
E o modelo dos sistemas escolares capazes de realizar essa democratização
da sociedade era o que fora criado e desenvolvido pelos nossos grandes vizinhos do
norte. Esqueciam-se, porém, nossos educadores de que aquela organização fora
resultante da tradição anglo-saxã luterana, em que a escola de ler e escrever era
uma peça indispensável à existência das comunidades, cujos membros faziam da
leitura e interpretação da Bíblia o elemento básico de sua formação. Enquanto que,
em nossa tradição católica, a educação popular não tinha a mesma importância e a
mesma condição de necessidade, e até se beneficiava com a existência de grandes
massas de iletrados, mais dóceis e menos céticos.
Acrescia que essa igualdade de oportunidades para colher os benefícios do
processo de educação assim concebido, era frustrado, entre nós, desde o início,
para a maioria, que não dispunha nem de condições mínimas para freqüentar com
regularidade e proveito instituições de educação e ensino, mesmo nas paupérrimas
escolinhas do interior. Respondia-se então que cabia justamente ao Estado democrático mobilizar todos os meios e empregar todos os recursos para que tal situação
fosse modificada. Daí a preocupação de colocar à disposição das populações mais
carentes as escolas mais bem equipadas, providas dos professores mais capazes e
dispondo de todos os serviços de assistência e funcionando em tempo integral, de
modo a corrigir todas as deficiências materiais, culturais e morais dos meios de onde
provinham os alunos, fossem crianças ou adultos.
As chamadas escolas-parque, criadas por Anísio Teixeira, obedeciam a essa orientação. E o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, inaugurado na cidade de Salvador,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Bahia, em 1950, foi a realização mais completa nesse sentido de dar às crianças, especialmente dos meios mais carentes, uma "educação integral", que as preparasse para
participar das transformações sociais que o País estava a exigir.
Do livro de Hermes Lima, já citado por ser o melhor repositório sobre a vida
e a obra de Anísio Teixeira, recolho as seguintes referências a essa realização e na
qual ele fundava tão grandes esperanças de ver concretizada sua orientação e seus
ideais em matéria de educação e ensino:
Era a solução ideada e reivindicada por Anísio como manifestou no discurso proferido no
dia inaugural do Centro. Havia, por diversas vezes, examinado com o Governador o problema da
chamada infância abandonada, e, segundo ele, na realidade, entre nós, quase toda a infância,
com exceção das famílias abastadas, podia ser considerada abandonada. De fato, se tinham pais
não tinham escolas, na realidade não as tinham, pois as mesmas haviam passado a simples casas
em que as crianças eram recebidas por sessões de poucas horas, para um ensino deficiente e
improvisado. No mínimo, as crianças brasileiras, que logram freqüentar escolas, estão abandonadas em metade do dia. E esse abandono é o bastante para desfazer o que, por acaso, tenha
feito a escola na sua sessão matinal ou vespertina.
E, continua Hermes Lima:
Era contra a tendência de simplificação destrutiva da escola primária, asseverava Anísio,
que se levantava o Centro, aparentemente visionário, porém, na realidade modesto. Que se
pedia ao Centro? Reintegrar a escola primária em seu dia letivo completo, dar-lhe os cinco anos
de curso, o programa completo de leitura aritmética e escrita, ciências físicas e sociais, artes
industriais, desenho, música, dança e educação física. Além disso, hábitos, atitudes, aspirações,
preparando a criança para a civilização técnica e industrial de nosso tempo, civilização difícil e
de modo especial, porque está em mutação permanente. Insistia em que a escola desse saúde e
alimento à criança, visto não ser possível educá-la no grau de desnutrição e abandono em que
se encontra.
E, em seguida, conclui Hermes Lima:
Estapafúrdio, visionário? Estapafúrdios e visionários, respondia Anísio, são os que julgam
que se pode formar uma nação pelo modo pelo qual estamos destruindo a nossa. Estamos
imersos numa desagregação, fato verificável de física social, basicamente provinda das transformações que se sucedem. Fazer face a esse fenômeno por meio de paliativos poderá apenas
retardar o debate, numa sociedade como a brasileira em que se encontram ingredientes tão
incendiáveis como os de suas desigualdades e iniqüidades sociais. Anísio enxergava na escola
primária o instrumento mais deliberado e intencionalmente dirigível na dinâmica da sociedade.
Esse "otimismo pedagógico", como tem sido classificado, é completamente
oposto a qualquer concepção marxista, e não era porém somente de Anísio, mas da
quase totalidade dos mais conceituados líderes do movimento de reformas educacionais do País e que tinha sido definido, com toda a clareza, logo na introdução do
Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, onde se lê:
Na hierarquia dos problemas nacionais, nenhum sobreleva em importância e gravidade ao
da educação. Nem mesmo os de caráter econômico lhe podem disputar a primazia nos planos de
reconstrução nacional. Pois, se a evolução orgânica do sistema cultural de um País depende de
suas condições econômicas, é impossível desenvolver as forças econômicas ou de produção, sem
112
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
o preparo intensivo das forças culturais e o desenvolvimento das aptidões à invenção e à iniciativa que são fatores fundamentais, do acréscimo de riqueza de uma sociedade.
•••
Propositadamente, deixo de me referir às posições puramente filosóficas de
Anísio, muito bem descritas por Hermes Lima, no livro por mim citado. Discípulo de
John Dewey, na Universidade de Columbia, e o maior divulgador de sua filosofia
entre nós, parece-nos, entretanto, que sua atuação como verdadeiro introdutor
dos métodos norte-americanos de educação no Brasil, de maneira sistemática, decorreram menos de sua adesão ao instrumentalismo deweyano do que da observação e da apreciação das práticas pedagógicas norte-americanas. Ao fazer, em 1939,
um curso de educação na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos, pude
verificar, aliás com alguma surpresa, que os métodos educacionais preconizados
por John Dewey, e o principal era o chamado "método de projetos", tinham uma
aceitação muito restrita entre os educadores norte-americanos: de modo geral,
eles faziam críticas severas ao movimento denominado da "educação progressiva"
(progressive education), diretamente inspirados nas idéias de Dewey. E se, em sua
administração, Anísio Teixeira incluiu a criação das chamadas "escolas experimentais", de nítida influência deweyana, as modificações mais significativas que introduziu na organização escolar do Distrito Federal foram inspirados diretamente nas
práticas educacionais generalizadas nos sistemas comuns de educação norte-americana, conforme verificaremos adiante.
Lembro-me, a propósito, que, certa vez, discutindo com Anísio o problema
da igualdade de oportunidades, "o sonho da educação norte-americana", acabei
concluindo que sua filosofia de educação, inspirada nas idéias de John Dewey,
pressupunha uma sociedade homogênea, sem classes, retratada naquela imensa
classe média norte-americana, tão igual em seus hábitos, idiossincrasias e aspirações. E ele concordava e estava sendo fiel à doutrina do mestre de Columbia.
Conforme observa Madan Sarup, na obra já citada:
[...] para Dewey, a história era a luta contra a Natureza, e não de homens contra homens, classes
contra classes. A história violenta dos índios, dos negros, dos imigrantes e do movimento operário não contava. Não havia conflito, nem violência – uma história sem classes. O que Dewey
criou em sua escola, em Chicago, foi uma história de classe média, que ignorava o conflito e a
violência e apoiava o pensamento organizacional da nossa classe média. Quando, porém, ele
reconheceu a existência do conflito social, suas soluções foram o uso inteligente da educação
para controle social e a utilização de especialistas.
•••
Esboçado assim o que me pareceu fundamental no pensamento e na orientação de Anísio Teixeira no desenvolvimento de suas atividades à frente dos serviços de educação do Distrito Federal, limitar-me-ei, em seguida, a relatar minha
participação em sua administração e as conseqüências de caráter pessoal e profissional que advieram para mim desse fato. Dispenso-me, de outro lado, de estudar
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
113
aqui a formação e o desenvolvimento dos vários aspectos da personalidade extremamente complexa e fascinante de Anísio Teixeira, porque disso se encarregou, de
maneira brilhante e completa, Hermes Lima, seu colega e amigo desde os bancos
escolares, no trabalho que já tivemos a oportunidade de citar. Sobre a natureza
desse trabalho é o próprio autor, lamentavelmente desaparecido em 1º/10/1978,
que explicava ao jornal O Globo, de terça-feira, 25/7/1978, p. 39:
Escrevi o livro sobre Anísio Teixeira porque ele é, sem dúvida, a primeira figura da educação
brasileira contemporânea, republicana. Ele não era apenas um técnico, nem um manipulador
burocrático de sistemas educacionais. Era um político, um estadista da educação, já que esta
era, no seu pensamento e na sua ação, uma face da sociedade e do Estado, e, portanto, uma das
bases essenciais do desenvolvimento social e político.
E adiante:
Anísio Teixeira padeceu porque entendia que o País necessitava de uma educação que
correspondesse à entrada na civilização industrial e técnica moderna. Foi exatamente nessa
tarefa de prepará-lo para isso que Anísio teve que enfrentar dificuldades, preconceitos, que
tornaram sua trajetória no ensino quase que uma verdadeira batalha.
•••
Anísio Teixeira era quase um desconhecido nos meios do professorado do
Rio de Janeiro. Apenas um pequeno número de educadores, filiados à Associação
Brasileira de Educação, e poucos mais, sabiam de suas atividades anteriores como
diretor da Instrução Pública do Estado da Bahia, na administração Góes Calmon
(1924), e também de suas viagens de estudos e cursos de educação feitos nos Estados Unidos da América do Norte.
Sua nomeação para o cargo de diretor da Instrução Pública do Distrito
Federal foi recebida, de certa forma, com hostilidade pelo magistério da capital
da República.
É típico desse ambiente o registro que Campos de Medeiros faz, no livrinho
já citado, da escolha e nomeação de Anísio Teixeira para o cargo em questão.
Diz ele:
Com a subida do senhor Pedro Ernesto, foi nomeado Diretor Geral de Instrução Pública um
mocinho de nome Anísio Teixeira. Dois jornais fizeram tópicos – reclames do extraordinário
pedagogo, que viera dos Estados Unidos, onde aprendera coisas mirabolantes. E o Sr. Pedro
Ernesto, para ser agradável aos reclamistas, nomeou o "pedagogo" [sic].
Mas, a razão principal dessa hostilidade era a de que o professorado carioca
se considerava talvez o mais culto e capaz de todo o País, sem dúvida acertadamente, e se sentia diminuído em ser dirigido por pessoas de outros Estados, quando, segundo julgavam, possuíam, em seu corpo de professores, educadores capazes
de assumir a direção do ensino no Distrito Federal, o que também era verdade.
Aceitaram de má vontade, ao menos no início, a direção de Fernando de
Azevedo, que, afinal, era de São Paulo, mas, um elemento quase desconhecido da
Bahia, era dose demasiado forte...
114
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Além disso, havia também os boatos de uma tendência para a "americanização" da organização escolar e dos métodos de ensino, que estariam nas diretrizes
de trabalho do novo diretor, que fizera sua formação especializada em educação
nos Estados Unidos e, sob esse aspecto, o professorado carioca não deixava de ter
razão.
Anísio Teixeira foi, sem dúvida, o introdutor entre nós dos métodos e processos de educação norte-americana. De um lado, havia aspectos positivos em tais
métodos, como a organização de um sistema integrado de ensino, desde o primário
até o superior e também o enriquecimento do currículo, especialmente da escola
elementar, como a prática das artes, como expressão, muito descuidada ou mesmo
inexistente em nossas escolas. Mas, de outro, a avaliação dos conhecimentos através das chamadas "medidas objetivas", os chamados testes de escolaridade e também os da "medida" da inteligência e o exagero dado ao voluntarismo dos alunos,
que conduziam à indisciplina, que se tornou um flagelo em nossas escolas, especialmente de 2º grau, eram questões controvertidas e consideradas como aspectos
negativos, ao menos para os hábitos e métodos utilizados geralmente em nossas
escolas.
Sobre o chamado movimento dos "testes" de inteligência e de escolaridade,
um sério trabalho crítico vem sendo realizado pelos próprios historiadores norteamericanos da educação. Assim, por exemplo, Edgar Gumbert e Joel Spring (citados
por Mandan Sarup em Marxismo e educação)
[..] argumentaram que o desenvolvimento dos testes de QI foi socialmente tendencioso, desde o
início, tanto em termos da maneira pela qual eram validados como em termos dos pressupostos
que seu elaborador tinha da sociedade.
E em outra passagem:
[...] os testes criados por L. B. Terman baseavam-se numa hierarquia ocupacional que era, de
fato, o sistema de classes sociais do Estado liberal corporativo que então surgia. Hoje a situação
não é diferente: a diferenciação seletiva na escola visa preparar os alunos para papéis sociais
selecionados na sociedade. Os testes de inteligência e escolaridade, usados em toda a sociedade
americana, são parte vital da infra-estrutura que serve para estabilizar e ordenar os valores da
sociedade liberal corporativa.
Eu, que já era bem conhecido do magistério carioca, pela colaboração
que prestara à administração de Fernando de Azevedo, e segundo constava, iria
também ser designado para um dos assessores de Anísio Teixeira, recebi muitas
observações de professores, especialmente na Escola Normal. Uns, por exemplo,
se apegavam até a detalhes menores para manifestar seus receios quanto à
orientação que o novo diretor iria imprimir ao ensino. Por exemplo, criticavam
acerbamente a "americanização" de certas denominações: por que educacional
e não educativo, como sempre usamos como adjetivo; por que Instituto de
Educação e não o nome tradicional de Escola Normal, para o estabelecimento
de formação dos nossos professores primários. E assim por diante... Aliás, esse
vezo de mudar nomes de instituições é um hábito muito nosso...
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
115
•••
É evidente que o processo violento de "americanização" a que fomos e
estamos sendo submetidos não se originou na escola nem nas iniciativas de Anísio.
Ele é o resultado da pressão industrial e comercial que nos conduziu a esse
"consumismo" desenfreado e ao desperdício característico da sociedade norte-americana. A indústria lança constantemente novos produtos e a propaganda quase
que impõe seu consumo, mesmo desnecessário: a troca de carros pelo modelo do
ano; sabonete ou a pasta de dentes com propriedades miríficas e outras mil e umas
bugigangas cujas propriedades são trombeteadas pelos meios de comunicação e
que, em estilo norte-americano característico, infernizam e tonteiam, especialmente
as classes médias, e causam um impacto pernicioso nas classes menos providas de
recursos.
Mas, o aspecto mais grave desse processo, segundo penso, é o que se refere
à cultura: a degradação de nossa música popular; o best-seller comercial, substituindo a verdadeira literatura; os "enlatados" do cinema e da televisão, mergulhando
constantemente nosso povo e, lamentavelmente, nossas crianças, nos ambientes
históricos e de costumes, que não são nossos, com o desprezo de nossas mais caras
e autênticas tradições. Nossas crianças, através das histórias em quadrinhos, do
cinema e da televisão, sabem muito mais dos costumes e dos heróis norte-americanos do que dos feitos mais significativos de nossa história nacional.
E até os nossos marginais se inspiram e aprendem o crime e a violência nos
filmes policiais ianques, repetidamente exibidos em nossos cinemas e na televisão...
•••
Eu conhecia muito pouco Anísio Teixeira. Durante a administração Fernando
de Azevedo recebi a recomendação para prestar ao educador baiano informações
sobre os concursos para o preenchimento dos cargos vagos de professores catedráticos da Escola Normal. Confesso que não guardo qualquer recordação muito nítida desse ligeiro contato com Anísio e também que não tinha informação muito
completa sobre suas atividades anteriores na Bahia, como educador e administrador do ensino naquele Estado, nem de seus cursos de especialização feitos nos
Estados Unidos da América do Norte.
Certo dia de outubro de 1931, estando eu na luta para consolidar o Instituto Brasileiro de Educação, ali no velho casarão da Rua Marquês de Abrantes, recebi
um telefonema de Frota Pessoa dizendo que meu nome fora indicado a Anísio
Teixeira para fazer parte de seu gabinete, como secretário. A notícia surpreendeume bastante pois, como já disse, minhas relações com o novo diretor não eram
muito estreitas. Atribuí a indicação, talvez a Venâncio Filho, sempre cuidadoso, e
com o propósito de colocar junto a Anísio uma pessoa bastante familiarizada com
os problemas da educação no Distrito Federal, onde fizera toda a minha carreira, de
modo a ajudá-lo no seu relacionamento inicial com os elementos com quem deveria trabalhar no desenvolvimento de suas atividades.
E assim dispus-me a procurá-lo.
116
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Não guardo recordação muito clara desse primeiro encontro com Anísio.
O fato é que a 17 de outubro de 1931 era publicada minha designação para o
cargo de secretário do novo diretor, a do professor Álvaro de Sousa Gomes para
oficial de gabinete e a do professor baiano Isaias Alves para o de subdiretor técnico.
Isaias Alves viera recentemente dos Estados Unidos onde se especializara nas chamadas "medidas educacionais", ou seja, em testes de inteligência e de escolaridade que
Anísio pretendia utilizar largamente no sistema escolar do Distrito Federal.
Mas aí ocorreu uma circunstância curiosa, mas não inesperada, dada a
situação em que o País ainda vivia.
Indo tomar posse do cargo e iniciar minhas atividades, notei desde logo, um
grande constrangimento da parte de Anísio. Afinal, explicou-me que, submetido o
ato de minha nomeação ao interventor Pedro Ernesto, este lhe dissera que tinha
surgido um impedimento, pois meu nome tinha sido "vetado" pelos "tenentes", por
ser eu um elemento da administração passada, isto é, da República "Velha"...
Respondi então a Anísio que não tivesse qualquer preocupação com essa ocorrência, porque somente aceitara minha indicação para o cargo porque fora convencido por meus amigos de que poderia prestar ao novo diretor uma colaboração útil
no início de sua administração. Nunca antes, em minha carreira, solicitara qualquer
cargo e era essa uma conduta que sempre observara rigorosamente e que pretendia
continuar a seguir durante toda a minha vida. De qualquer forma, porém, ficava à
sua disposição para, independentemente de qualquer função, incumbir-me de qualquer encargo que ele julgasse necessário à sua administração. Ponderou-me ele que
essa situação era passageira e tão logo as coisas se esclarecessem e se normalizassem
faria questão de que eu assumisse o cargo de seu secretário.
E realmente, um ano mais tarde, 1932, era eu novamente nomeado para
essa função, na qual aliás não permaneci durante muito tempo.
•••
A administração de Anísio Teixeira começou, como vimos, a 15 de outubro
de 1931, e terminou brusca e dramaticamente a 2 de dezembro de 1935. No ato de
posse pronunciou o seguinte discurso, que transcrevo aqui na íntegra, por me parecer interessante documento para ser confrontado com a carta de demissão que
enviou ao prefeito Pedro Ernesto, em 2 de dezembro de 1935:
Ao assumir o cargo de Diretor Geral de Instrução no Distrito Federal, tenho perfeita consciência de suas graves responsabilidades. Por mais que me acabrunhassem, entretanto, essas
responsabilidades eu não me sinto livre para recusar o posto a que me chamou o honrado
Interventor desta cidade. E não me senti livre, porque o Excelentíssimo Senhor doutor Pedro
Ernesto pôs o convite tão nitidamente no terreno técnico e revelou uma compreensão tão alta
da natureza do problema educacional e das suas exigências legítimas, que recusar seria desertar
dos compromissos de coragem e de sacrifício, que assumimos todos os que batalhamos pela
reconstrução do Brasil, através da educação.
O Distrito Federal vem tendo, desde longa data, diretores de Instrução de reconhecida
eminência intelectual, que têm deixado aqui traços fortes de inteligência e de ação. Ultimamente, com a transformação que se operou na finalidade da escola, solicitada pela civilização
moderna para um papel maior na sociedade, os que acompanhamos com interesse as coisas do
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
117
ensino vimos o modo por que aparelho pedagógico do Distrito Federal respondeu a essa intimação
de uma nova filosofia de educação e uma nova política de educação. Por intermédio dos seus
diretores mais recentes, dentre os quais cumpre destacar Carneiro Leão e Fernando de Azevedo
– a instrução pública no Distrito Federal, encaminhou-se para a corrente mais avançada do
pensamento educacional.
Sentiram esses líderes da educação brasileira que, em um país jovem e de pequenas tradições educativas, tornava-se possível, por isso mesmo, obra radical de renovação. E se o primeiro
realizou o trabalho carinhoso de amanho do terreno, agitando-o e revolvendo-o por meio de
uma campanha inteligente e lúcida, o segundo continuou o trabalho comum, ideando um
sistema escolar nas linhas harmoniosas e robustas que todos conhecemos.
A reforma que se fez no Distrito Federal, em 1928, foi uma dessas obras audaciosas de
previsão, que o engenho vigoroso e amadurecido de Fernando de Azevedo planejou com o traço
largo e quente de quem rasga perspectivas para o futuro. Depois do lento trabalho de preparação que se vinha fazendo, foi possível lançar os alicerces de uma nova política educacional. O
Rio de Janeiro recebeu essa obra como um fruto longamente elaborado, que vinha ao encontro
de uma consciência educacional dinâmica e moderna, que a reforma avivou e fortaleceu.
Longe, porém, está a obra de completa. A sedução que arrebatou Fernando de Azevedo, no
seu ímpeto encantado de criação, cede agora lugar ao trabalho obscuro e penoso de adaptação
e realização. A obra entrevista pelo sociólogo que gizou a nova orientação da política educacional precisa, agora, da contribuição de outros técnicos para vir a realizar-se na progressão
natural de seus passos e seus estágios.
Nesse sentido, o serviço de educação ganhou, recentemente, em algumas nações, pelos
seus métodos de administração, pela precisão de suas medidas e pelo caráter das investigações
em que se deve fundar, uma feição científica e progressiva. Mas, por isso mesmo, perdeu o seu
caráter pessoal. Já se foi o tempo em que se podia administrar um serviço escolar pelas conjecturas
mais ou menos autorizadas dos "experimentadores". A autoridade pessoal cedeu lugar às conclusões dos inquéritos. Toda uma técnica se desenvolveu, que torna a obra mais segura, mais
objetiva, mais científica. Por outro lado, porém, menos pessoal.
A obra que temos de realizar aqui, portanto, é anônima de todos nós, que nos devemos
esquecer de nós mesmos, para tornar a nossa colaboração mais solidária e mais fiel. E nesse
trabalho de cooperação a hierarquia segue o caminho oposto da criação intelectual do plano
que foi o trabalho de alguns antecessores. O diretor do serviço educacional é, agora, o seu mais
modesto operário. O mestre é quem realiza a obra de educação. O diretor é o simples servidor do
mestre.
Toda a administração não tem outro fim que o de dispor as condições de êxito para a obra,
que é só do mestre: educar.
É com esse espírito que chego hoje aqui. Não me perturbam as possíveis honras do cargo
para que fui distinguido pelo senhor Interventor do Distrito Federal, porque venho exercê-lo
com a humildade profissional de quem percebe, por esse ângulo, as funções da administração
escolar.
São as reconhecidas credenciais do professorado público do Distrito Federal e a própria
força dos novos ideais de educação que me fortalecem, neste momento, em que assumo, perante o senhor Interventor o compromisso de corresponder à sua alta confiança, servindo sem
desfalecimentos à causa da instrução.
Apesar dos possíveis "pecados" da "americanização", estou convencido de
que a Administração Anísio Teixeira, representou o ponto mais alto atingido entre
nós no esforço de oferecer ao povo uma organização de ensino público, de inspiração democrática, limitada apenas pelas próprias limitações do regime econômico,
político e social em que vivíamos e continuamos a viver, até os dias de hoje.
Interrompida pela onda reacionária que começou a se elevar no País, resultante da crise geral da democracia liberal que se estendia pelo mundo todo e que,
118
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
naturalmente, deveria chegar até nós, nunca mais foi possível repetir uma experiência semelhante, com as características de organicidade e integração em que a
quantidade e a qualidade do ensino procuraram ser plenamente atendidas.
A Revolução de 1930, que contou com forte apoio popular, deu-nos a ilusão
de que tinha chegado a hora de se construir uma nacionalidade livre e independente,
com um desenvolvimento político, econômico e social autônomo, realizado em benefício da maioria do nosso povo e em que pudessem ser organizados sistemas
de educação e ensino apropriados às necessidades de formação do povo brasileiro,
preservadas as características de nossa autêntica cultura nacional.
O Manifesto dos Pioneiros de Educação Nova de 1932 foi a expressão mais
alta dessa crença, bastando atentar para os nomes de seus signatários, sem dúvida,
um grupo dos mais representativos da intelectualidade brasileira.
A administração Anísio Teixeira (1931-1935) foi a tentativa mais expressiva
de levar à prática as principais indicações do Manifesto.
•••
A tradição do nosso ensino primário, freqüentado principalmente pelas classes
médias urbanas, era a da existência de escolas isoladas, conhecidas pelos alunos e
suas famílias pelos nomes dos respectivos diretores: era a escola de "Dona Olímpia",
a escola do "professor Teófilo" ou a escola de "Dona Isabel Mendes"... Através dos
inspetores escolares, essas escolas se relacionavam com a Diretoria da Instrução
Pública. O prestígio de cada escola provinha do trabalho desses diretores, havendo
pois uma sadia emulação entre elas. Todas as atividades se processavam internamente, inclusive a apuração do conhecimento dos alunos, e sua promoção às várias
classes, feita por meio de bancas examinadoras, constituídas de professores da própria escola, presididas pelo diretor, e prestigiadas pela presença do inspetor escolar.
Lembro-me da seriedade com que esses exames eram realizados e o ambiente de
nervosismo com que nós, os alunos, aguardávamos os resultados, revelados em
solenidades de fim de ano, com prêmios e louvores, e a entrega dos "diplomas".
Agora, uma das primeiras providências adotadas pela administração Anísio Teixeira, em vista da constituição de um verdadeiro sistema escolar, foi criar
serviços centralizados de matrícula, freqüência e obrigatoriedade escolar. As escolas, antes isoladas, tendo que resolver seus problemas sozinhas, passaram a ser
comandadas, como um todo, por esses serviços centrais, que distribuíam os alunos de acordo com a existência de vagas, procurando assim atender sempre ao
maior número possível em cada bairro. Tratava-se do início de um "sistema escolar de massas", que ia aos poucos quebrando aquela tradição das escolas isoladas,
funcionando com a responsabilidade pessoal de seus diretores.
Além disso, a apuração da aprendizagem dos alunos passou a ser feita por
meio de provas – "os testes de escolaridade" – elaborados por um serviço central
especializado. Essas provas eram recebidas pelas escolas, que apenas as aplicavam,
ficando a responsabilidade da apuração e da classificação, enfim do aproveitamento dos alunos, a cargo desse serviço central.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Tais medidas, como era de esperar, despertaram certa resistência por parte
do professorado, acostumado ao regime tradicional, em que lhes cabia a responsabilidade de julgar, aprovar e promover os alunos.
As maiores controvérsias despertaram as provas de apuração de conhecimentos, feitas por meio dos chamados "testes de escolaridade" e aplicados em dias
certos à totalidade dos alunos do sistema escolar, dando assim o início do emprego,
entre nós, desses métodos de educação de massas, de larga utilização no ensino
norte-americano.
Acerbas críticas eram feitas então à queda da qualidade do ensino, talvez
pela perda do interesse dos professores pelo seu trabalho individual, julgado não
mais por ele próprio, mas por esses métodos impessoais emanados de um serviço
central distante.
Colho ainda no livrinho de Campos de Medeiros (Lutas pela Pátria) algumas impressões a esse respeito, que de certa forma refletiam a opinião de setores
do magistério carioca, inconformados com a perda de prestígio daquelas escolas
individualizadas.
Nosso ensino fora magnífico durante muitos anos, como atestaram grandes patrícios nossos e eminentes visitantes estrangeiros, sem a necessidade de exibições de pedagogos de importação. Desmanchou-se, pois, o que era bom, somente pelo prazer de mudar, de alterar, de se
propalar que se estava fazendo coisas extraordinárias. Professoras brilhantes foram enxotadas
do magistério ou, pelo menos, jogadas para escolas que deveriam caber a iniciantes [...] Em
matéria de ensino primário (alicerce da instrução) retrogradamos lamentavelmente, a despeito
do zelo e da dedicação de muitas professoras, que têm que acompanhar o préstito da desordem,
para que não sejam chamadas de "retrógradas".
Era a luta natural e compreensível entre o "velho" e o "novo": antes era o
País predominantemente agrário, com o analfabetismo como norma nesse imenso
interior, onde não havia necessidade de uma mão-de-obra com elevado grau de
qualificação. Nas cidades, algumas poucas escolas recebiam os filhos das classes
médias, que nelas passavam quase o dia inteiro, num curso que se estendia por sete
anos. E podiam se dar ao luxo dos exames solenes, com distribuição de prêmios,
medalhas e diplomas. Agora, era o País que se urbanizava e industrializava e precisava dar um mínimo de formação ao maior número. Os cursos das escolas primárias
baixaram para uma extensão de quatro anos, e até mesmo o regime de três turnos
teve que ser adotado para atender a massa de alunos que acorria às escolas em
busca de um preparo mínimo, que permitisse enfrentar as necessidades que iam
sendo criadas pelas novas condições de desenvolvimento, especialmente nos centros urbanos. A queda da qualidade do ensino não podia deixar de se verificar e a
perda de todos aqueles atavios do antigo regime, deveria, naturalmente, despertar
sentimentos de saudosismo da "aristocracia" dos velhos tempos.
•••
Mais tarde, aqueles serviços centralizados foram ampliados com a criação
de um Instituto de Pesquisas Educacionais, onde havia uma seção de ortofrenia e
120
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
higiene mental, uma de estatística educacional e uma de medidas e programas,
que elaborava manuais com a metodologia das principais matérias do currículo
do ensino primário.
O enriquecimento do plano de ensino das escolas primárias foi outra realização notável de Anísio pela criação de superintendências especializadas de artes
industriais, de educação musical e artística e de educação física, recreação e jogos.
A educação musical foi entregue ao maestro Heitor Villa-Lobos, figura então muito controvertida, e que promoveu as grandes demonstrações de canto
orfeônico, congregando milhares de alunos das escolas primárias e secundárias e
que se constituíram numa das realizações mais brilhantes da época, no Distrito
Federal.
O temperamento de Villa-Lobos, entretanto, ocasionava certa reação por
parte do professorado, pela maneira brusca e às vezes até mesmo descortês com
que era tratado nos ensaios para aquelas grandes demonstrações artísticas. Lembro-me de, em várias oportunidades, ter de contornar situações delicadas, ocasionadas pela impulsividade do grande maestro. A esse tempo, ele ainda não tinha
ganhado aquela notoriedade que passou a desfrutar depois que teve o reconhecimento, nos principais centros artísticos e culturais do mundo, de seu talento e da
qualidade de sua produção musical.
Tornamo-nos depois bons amigos, pois eu, como assistente do diretor, encarregado de tomar providências para a realização daqueles memoráveis espetáculos,
procurava criar todas as facilidades para que o trabalho a ser realizado tivesse o mais
completo êxito. Mais tarde, quando nos encontrávamos, especialmente no Instituto
Nacional de Cinema Educativo, onde eu trabalhava, e onde o maestro ia colaborar
com Humberto Mauro na parte musical de alguns filmes, ele sempre insistia para que
fosse assessorá-lo, inclusive no Instituto de Canto Orfeônico que fundou posteriormente, subordinado ao Ministério da Educação e Cultura.
Respondia-lhe sempre que minha cultura musical era muito reduzida, mas
ele insistia dizendo que lhe seria muito útil meu tino administrativo...
•••
Inteiramente relacionado com o problema da modernização do ensino
primário estava o da formação do professor.
A antiga Escola Normal, transformada em Instituto de Educação, sofreu
profunda reforma. Instalada no belo conjunto arquitetônico da Rua Mariz e Barros,
construído por iniciativa de Fernando de Azevedo, passou a compor-se de uma
"escola de professores", uma escola secundária, uma escola primária e um jardim da
infância, como também de laboratórios e escolas de aplicação para a prática dos
professorandos. Completamente reequipado, em todos os aspectos, sua direção geral
foi entregue a Lourenço Filho, que interrompeu todas as suas atividades em São
Paulo, onde estava radicado, para atender ao convite de Anísio e assim participar
de uma de suas mais notáveis realizações. Com a criação da Universidade do Distrito Federal, a Escola de Professores passou a denominar-se Escola de Educação e foi
elevada em nível universitário.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
121
O Instituto de Educação tornou-se um estabelecimento modelar de formação de professores primários do Distrito Federal e, mais tarde, também de técnicos
e orientadores de ensino. Em seus cursos formou-se toda uma geração de educadores do mais alto nível, que recebiam as lições dos mestres mais ilustres que por ali
passaram e que dispunham de uma aparelhagem e de instalações as mais modernas. Infelizmente, essa como todas as outras realizações da administração de Anísio
Teixeira, que representaram um verdadeiro "pique" de progresso e desenvolvimento
educacionais, posteriormente, entrou em irremediável decadência, quando forças
retrógradas assumiram a direção dos serviços de educação do País.
Outras muitas iniciativas relacionadas com o enriquecimento do ensino primário foram adotadas: as escolas experimentais ensaiavam a prática de métodos e
técnicas modernas de ensino tais como o todo de projetos", o "sistema Platoon", em
vista de uma possível generalização futura. A seção de Museus e Radiodifusão,
entregue à competência de Roquete-Pinto, fundou uma radioescola, que passou a
transmitir programas diários divididos em três partes: hora infantil, jornal dos professores e suplemento musical. Uma divisão de bibliotecas e cinema educativo, pôs
ao alcance do magistério carioca o livro e o filme, para seu aperfeiçoamento permanente e como meios auxiliares de ensino.
•••
No tocante ao ensino secundário, a preocupação foi a unificação desse grau
de ensino, dando-se o mesmo nível ao chamado ensino de letras e ao ensino técnico-profissional, transformando as antigas escolas profissionais em escolas técnicosecundárias, com uma organização inspirada nas "escolas compreensivas" norteamericanas.
Uma verdadeira batalha, porém, teve Anísio que travar com as autoridades federais, para que reconhecessem a validade dos cursos dessas escolas, sem a
fiscalização direta do Ministério de Educação, a fim de possibilitar o ingresso nas
escolas superiores, mediante a prestação de exames vestibulares.
Já depois de o Departamento de Educação ter sido transformado em Secretaria Geral de Educação e Cultura, em sua organização foi incluída uma Superintendência de Educação Secundária Geral e Técnica e Ensino de Extensão. Essa
última parte tornou-se uma das mais populares realizações da administração de
Anísio com a criação de cursos de extensão, continuação, aperfeiçoamento e
oportunidade, mais tarde, na nomenclatura da estatística federal, denominado
de ensino supletivo, que deveria atender às situações de pessoas que não puderam iniciar ou completar seus estudos, nas épocas e nas idades próprias, nos
cursos regulares sistemáticos.
•••
Finalmente, pelo Decreto n° 5.513, de 4 de abril de 1935, Anísio Teixeira
completava a construção do sistema de educação que planejara para o Distrito
Federal: Criou a Universidade do Distrito Federal, cujos cursos foram inaugurados
122
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
solenemente a 31 de julho daquele mesmo ano. Era constituída pelas seguintes
escolas e instituições: Escola de Educação, Escola de Ciências, Escola de Filosofia e
Letras, Escola de Economia e Direito, Instituto de Artes.
Afrânio Peixoto foi escolhido seu primeiro reitor. Viajando para a Europa
para contratar professores, conseguiu trazer grandes nomes em várias especialidades: Brehier, Desfontaines, Wallon, Hauser, Jules Peret, Albertini, por influência e
colaboração de Georges Dumas. Entre os professores brasileiros que iriam prestar
sua colaboração ao novo estabelecimento de ensino superior, cúpula do sistema de
ensino público da capital da República, figuravam: Gilberto Freyre, Delgado de
Carvalho, Hermes Lima, Artur Ramos, Heloisa Alberto Torres, Francisco Venâncio
Filho, Edgar Süssekind de Mendonça, Gastão Cruls, Pedro Calmon, Lelio Gama, Costa Ribeiro, Carlos Werneck, Roberto Marinho de Azevedo, Carneiro Leão, Celso Kelly,
José Faria Góes Sobrinho, Gustavo Lessa, Castro Rebelo, Isnard Dantas Barreto, José
Oiticica, Cândido Portinari.
Tal como acontecera com o ensino secundário, conforme lembre Hermes Lima,
a criação da UDF. "nasceu sob o fogo de ferrenhos opositores". Primeiro, sob a alegação de que era desnecessária, pois, conforme diziam, "sobram-nos instituições de
ensino superior e nos faltam escolas primárias". Depois, brandiam contra ela o argumento ideológico: seria uma "universidade esquerdista, se não comunista".
Com a saída de Anísio Teixeira da direção da educação do Distrito Federal,
primeiro tentaram neutralizá-la, com o expurgo de mestres insignes, acusados de
"esquerdismo". Afinal, foi literalmente desmantelada, sendo incorporada, ou melhor, dissolvida, na Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.
•••
Deve-se referir, por fim, entre as mais significativas realizações da administração de Anísio Teixeira, ao plano de construções de prédios escolares e respectivo aparelhamento, em número que jamais tinha sido cogitado até aquela
data. A importância dessa iniciativa é comentada pelo próprio diretor, em seu
relatório correspondente ao ano de 1934, quando adverte:
A idéia de que se educa de qualquer forma, debaixo de árvores ou em casebres e porões, é
um dos resíduos mais alarmantes da velha idéia, puramente intelectualista de ensino, idéia que,
em educação popular se veste das roupagens místicas da alfabetização salvadora.
•••
Aquele veto inicial ao meu nome para assumir o cargo de secretário de
Anísio Teixeira, na Diretoria Geral de Instrução Pública, fruto da confusão natural
do momento, não teve maiores conseqüências.
Durante todo o tempo que durou sua administração fui colaborador dela,
em diversos cargos e funções.
Nesse período, ainda acreditava, como a maioria dos educadores, nas virtudes
das reformas da educação e do ensino como fatores fundamentais da transformação
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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social, que todos desejávamos para tirar nosso País do estado de subdesenvolvimento, causador das situações mais negativas em que vivia o povo brasileiro.
Concordávamos, assim, com a dramática formulação de Miguel Couto que,
em célebre oração, lá pelos idos de 1920, exclamava patético: "No Brasil só há um
problema – o da educação do povo".
Aos poucos, porém, fui compreendendo a ingenuidade dessas crenças, pois
o que me faltava antes "era a compreensão de que a luta para libertar a educação
e a luta para democratizar a vida econômica estão inseparavelmente ligadas".
•••
Criado um serviço especial para se encarregar dos problemas do ensino técnico-secundário e convidado Venâncio Filho para sua chefia, o condicionou a aceitação do convite à minha designação para seu assistente.
Venâncio não tinha qualquer gosto pela administração, preferindo continuar sempre com suas aulas, seus estudos e seus livros, colaborando, porém, com os
administradores, com sugestões e indicação de pessoas para os vários cargos e
funções e nisso ele era inexcedível, pelo largo círculo de relações que mantinha nos
meios educacionais, científicos e literários do País. Assim fora na administração
Fernando de Azevedo e agora na de Anísio Teixeira, na qual funcionou como verdadeiro cireneu, pelo pouco conhecimento que Anísio tinha dos meios educacionais
do Rio de Janeiro.
Quanto a mim, era exatamente o ensino técnico-secundário o setor da administração que melhor conhecia. Formado em escola profissional, tornara-me depois professor e, por fim, ascendera à direção de uma das mais importantes unidades do ensino técnico: a Escola de Comércio Amaro Cavalcanti, na administração
Fernando de Azevedo.
Tratava-se agora de preparar as escolas técnico-secundárias para as reformas que se projetavam em sua organização e planos de ensino, ou seja, a elevação
de todas elas ao nível de segundo grau e a introdução do ensino secundário de
letras em conjugação com o ensino de caráter profissional.
Havia então várias categorias de professores e instrutores: os professores
propriamente ditos das antigas escolas profissionais; os mestres e contra-mestres
dos ofícios; os professores primários que tinham sido designados para lecionar nos
cursos complementares anexos, no regime criado pela reforma Fernando de Azevedo. Havia ainda professores que trabalhavam nos cursos noturnos, com qualificação suficiente para o ensino de 2° grau, e, por fim, os antigos docentes da Escola
Normal, dos quais muitos continuavam sem função.
Fui encarregado de unificar todas essas categorias de professores num quadro único e ao mesmo tempo de organizar uma tabela de reajustamento de vencimentos que desse condições de vida condigna a esses professores de 2° grau, em
cuja categoria eu próprio estava incluído.
Foi um trabalho minucioso, demorado e de consultas individuais para verificar quais as preferências para um melhor aproveitamento da capacidade de cada
um nas antigas e novas matérias criadas pelos novos planos de ensino das escolas
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
técnicas-secundárias. Havia, além disso, os antigos mestres e contra-mestres do
ensino de ofícios, de caráter masculino e feminino – muitos sem dispor de uma
formação cultural muito elevada.
Com muito esforço e alguns desentendimentos consegui afinal aplainar as
maiores dificuldades e, por fim, pôde ser constituído o quadro único de professores,
passando todos a gozar dos mesmos direitos e receber, dentro de uma mesma escala,
remuneração condigna.
Todos esses professores eram meus colegas e alguns tinham sido também
meus mestres de ofícios e de letras na Escola Profissional Visconde de Cairu e na
antiga Escola Normal, agora dirigidos pelo seu jovem colega e ex-discípulo. Consegui captar a confiança da quase totalidade e assim o trabalho pôde ser concluído com geral satisfação para todos. O decreto então baixado incluía um substancial aumento de vencimentos para todos. No conjunto dessas medidas ficou
também resolvida a incorporação definitiva dos professores dos cursos complementares anexos, ao quadro das escolas técnicas-secundárias, e, isso significava,
sem favores pessoais, a solução da minha situação individual e também de minha
mulher que a esse tempo, exercia suas atividades nesses cursos. Isso se deu, porém, através de um concurso de títulos, conforme determinava a lei. Assim, mais
uma vez, apesar de estar em atividade junto à autoridade superior, não recebi
qualquer favor de ordem pessoal. Isso que poderá passar despercebido ao leitor
desatento, era entretanto para mim uma circunstância fundamental, pois constituía uma verdadeira obsessão pessoal, essa manutenção da minha independência
em relação ao poder ocasional, que procurei manter durante toda a minha vida.
Sempre considerei meu trabalho no "serviço" público, como verdadeiro "serviço"
ao meu País, e não a qualquer autoridade, mesmo que essa fosse exercida por
amigos meus e com cujos pontos de vista concordasse plenamente. Honrava-me
extraordinariamente servir ou colaborar com um Fernando de Azevedo ou um
Anísio Teixeira, mas nunca esquecia a minha condição primordial de "servidor
público", de "servidor" de meu povo, tão desatendido.
De passagem, quero aqui desfazer um equívoco em que incorreu Hermes
Lima em seu excelente trabalho Anísio Teixeira – Estadista da educação. Não compreendi porque ele não procurou me ouvir, pois, sem dúvida, poderia prestar a ele
muitas informações sobre a administração de Anísio. Ele afirma, em certa passagem de seu livro, que essa primeira regularização da carreira do professor, das
escolas técnicas-secundárias foi resultante do trabalho de Joaquim Faria Góes "um
dos colaboradores mais íntimos do pensamento de Anísio", conforme escreve, com
muita razão. Por essa época, porém, Faria Góes, baiano, amigo e colega de Anísio,
desde os bancos escolares, creio que ainda nem estava no Rio de Janeiro. Mais
tarde, aqui chegando, foi-lhe entregue a direção da Escola Profissional Visconde de
Mauá, tradicional estabelecimento de ensino, profissional, especializado em atividades agrícolas e sediado no subúrbio de Marechal Hermes, onde dispunha de grande
área de terra. Faria Góes, que não tinha qualquer contato anterior com os problemas específicos de educação e ensino, revelou-se um administrador competente
fazendo brilhante carreira de educador, completada com os cursos especializados
que realizou, mais tarde, na Universidade de Columbia, em New York. Tornamo-nos
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
125
bons amigos e companheiros de trabalho e, com justiça, concordei plenamente
com Anísio Teixeira, quando resolveu investi-lo nas funções mais altas de Superintendente da Educação Secundária Geral e Técnica e do Ensino de Extensão, quando
esse cargo foi criado pela lei que transformou o Departamento de Educação em
Secretaria Geral de Educação e Cultura. Todos os meus colegas estavam certos de
que esse cargo seria entregue a mim, como um final de carreira, que deveria coroar
todo o meu trajeto, desde os bancos escolares de uma escola profissional, até as
responsabilidades do magistério nos cursos dessas escolas. Abri mão, porém, do
cargo, quando senti as preferências de Anísio, e aceitei apenas a função de assistente de Faria Góes, prestando depois toda a minha colaboração quando fui designado para organizar e dirigir os cursos de extensão, continuação, aperfeiçoamento
e oportunidade, subordinados àquela Superintendência, e que constituíam um dos
grandes destaques da administração de Anísio Teixeira.
Faria Góes prosseguiu em sua carreira brilhante, sendo um dos organizadores
do Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), realização esplêndida do
governo federal, já nos tempos do "Estado Novo". Posteriormente, passou a fazer
parte do quadro de técnicos da Fundação Getúlio Vargas, onde se encontra até
hoje.
•••
A 5 de março de 1932, Anísio cumpria a palavra empenhada, e me nomeava
seu secretário.
O Departamento de Educação passara a funcionar em algumas salas do andar superior do prédio em que estivera instalada, no meu tempo de estudante, a
antiga Escola Normal, ali no Largo do Estácio. Eu o conheci bem e a ele retornava,
evocando, com saudade, aqueles anos descuidados de 1919-1923. Atualmente, o
velho edifício é sede de uma escola primária – a Estácio de Sá – e o tradicional
largo mudou completamente de aspecto, com a construção da estação do "metrô".
O prédio que ficava na esquina da rua Machado Coelho com Joaquim Palhares e
que, abrigara a secretaria da antiga Escola Normal, foi demolido.
Assumindo as novas funções, convidei para meu auxiliar oficial de gabinete
– Carlos Teixeira, meu colega mais jovem, professor primário, e que em situação
difícil numa escolinha da zona rural, me fizera um apelo quase dramático para
ajudá-lo. Não me arrependi. Carlos Teixeira revelou-se um companheiro de trabalho eficiente e dedicado. Fez depois carreira na área administrativa, chegando mais
tarde a trabalhar no gabinete do Prefeito, indo depois, segundo me parece, para
uma repartição da Secretaria de Fazenda.
A atividade desenvolvia-se febril sob o comando de Anísio, e os planos iam
sendo postos em execução gradativamente.
Não me demorei, porém, durante muito tempo nessa situação. Um incidente
que, infelizmente, não pude absorver, como se diz hoje, fez-me deixar o cargo de
secretário do diretor.
Organizados os quadros de professores do ensino técnico-secundário, medida
que exigira muito trabalho, deviam ser eles distribuídos pelas respectivas matérias e
126
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
receberem os atos de nomeação, assinados pelo interventor. Ao receber o meu título,
verifiquei que constava dele minha nomeação para a cadeira de contabilidade. Pensei que se tratava de um engano, pois jamais lecionara tal matéria, nem tinha habilitação para isso. Procurando esclarecer o caso, acabei por descobrir o que se passara.
Waldemar Pereira Cota, que era militar e fora anistiado pela Revolução – um tenente
"picolé" – como pitorescamente eram denominados esses oficiais, fizera, na administração Fernando de Azevedo, concurso brilhante para aquela cadeira e fora designado para ter exercício na Escola Amaro Cavalcanti, onde eu era o vice-diretor. Aí
fizemos boa camaradagem. Agora, não desejava mais lecionar contabilidade, e queria transferir-se para a cadeira de matemática, onde a única vaga era a que me cabia.
Com seu prestígio, como "tenente", conseguira a troca e daí o meu título ter sido
mudado para o de contabilidade. Não pude aceitar tal situação, pois, de maneira
alguma poderia ver incluída em minha carreira de professor matéria que não conhecia e à qual não pretendia me dedicar. Senti que Anísio nada poderia fazer para
corrigir o erro e assim preferi deixá-lo à vontade. E foi assim que abandonei o cargo
de secretário do diretor do Departamento de Educação. Fui designado, então, primeiro para ter exercício na Escola Amaro Cavalcanti e depois para a Escola Rivadávia
Correa. Mais tarde, consegui a correção daquele ato, sendo então, incluído na seção de
matemática, matemática aplicada e estatística, do quadro de professores das escolas
técnicas-secundárias.
Sei que esse foi um episódio menor, mas que, na época, me causou grande
aborrecimento. Nestas Memórias procuro relatar os fatos que tiveram repercussão
em minha carreira ou modificaram, em qualquer sentido, minha situação. Não estou preocupado em descrever a administração de Anísio Teixeira, como tal, mas
apenas minha participação nela, e a repercussão que tal fato teve em minha vida
profissional e pessoal.
•••
Com a reforma do Instituto de Educação, tinham sido criadas, na Escola de
Professores, novas cadeiras que visavam à elevação do nível cultural e profissional
dos futuros membros do magistério carioca. Ainda por influência da educação norteamericana, Anísio teve sempre a preocupação de dar à formação dos professores
primários nível universitário, dentro do ponto de vista de que, ao contrário do que
geralmente se pensa, os problemas com que o professor primário se defronta, no
trato com crianças, dependem de conhecimentos que não podem ser devidamente
aprendidos no nível de ensino secundário, como se dava nas escolas normais tradicionais. Tal pensamento era até certo ponto irreal, em nosso meio, no qual, o nível
geral de cultura, não poderia ser comparado ao dos países mais avançados, e o
professor primário tinha a qualificação correlativa a essa situação concreta, até
mesmo pelos baixos salários que recebia.
Mas, o fato é que as novas cadeiras foram criadas e a formação dos professores primários passou a ser feita dentro da Universidade. Essas novas cadeiras
foram as seguintes: filosofia da educação, biologia educacional, sociologia educacional, psicologia geral e da aprendizagem, história da educação e administração
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
127
escolar. Assumiu o ensino dessas matérias um grupo de mestres, realmente excepcional: o próprio Anísio Teixeira incumbiu-se de lecionar filosofia da educação, sem
dúvida, o mais credenciado, dentro de sua orientação; Lourenço Filho, Gustavo
Lessa, Delgado de Carvalho, José Faria Góes Sobrinho, Celso Kelly, as outras. Essas
designações foram feitas em caráter interino, de acordo com legislação vigente.
Era então secretário do diretor, o professor Pedro Matos, um diretor de
escola primária, e que já fora chefe do serviço de obrigatoriedade escolar, matrícula e freqüência. Foi o meu substituto naquela função. Certa vez, Anísio teve necessidade de viajar a São Paulo. Estávamos ainda no regime discricionário, em que as
nomeações podiam ser feitas livremente pelo interventor. Pedro Matos aproveitou
a ausência de Anísio e propôs ao doutor Pedro Ernesto a efetivação daqueles professores que, de acordo com a lei, teria que ser feita após a aprovação em concurso
público de títulos e provas. Assinados os atos, apenas o doutor Gustavo Lessa, que
lecionava administração escolar, os considerou irregulares e não aceitou a nomeação, demitindo-se. Mais tarde, foi substituído por Antônio Carneiro Leão. Quando a
Universidade do Distrito Federal foi dissolvida e absorvida pela Faculdade Nacional
de Filosofia da Universidade do Brasil, esses professores passaram à condição de
catedráticos efetivos daquelas cadeiras.
Anísio tinha um total desprezo pelo formalismo burocrático, estávamos
em pleno regime revolucionário, discricionário, e, realmente, não seria possível
conseguir, naquele momento, professores com melhores qualificações para reger
aquelas novas cadeiras. Além disso, tratava-se mesmo de imprimir uma determinada orientação àqueles conhecimentos a serem transmitidos às futuras professoras, e a escolha dos professores desse ponto de vista, fora muito acertada:
estavam todos imbuídos do espírito da reforma profunda pela qual passavam os
serviços de educação do Distrito Federal, sob o comando de Anísio.
Eu, porém, que nessa ocasião estava na "planície", pude captar, com bastante constrangimento, a repercussão negativa que esses atos tiveram nos meios do
professorado carioca.
•••
Depois que eu fizera a opção definitiva pela carreira de educação, fui, aos
poucos me desinteressando pelo ensino da matemática elementar, que era a matéria que lecionava, desde muito tempo, nos cursos das escolas técnicas-secundárias.
Durante algum tempo, dediquei-me ao estudo da estatística, especialmente da estatística aplicada à educação, que estava então muito em voga, por causa da técnica da elaboração dos testes de inteligência e de escolaridade: falava-se muito,
nessa época, em média, mediana, moda, desvio-padrão, curva de Gauss, etc. Tudo
isso me aparecia agora como muito árido, a matemática e suas variadas ramificações, com seus "modelos" e esqueletos de vida: a própria vida é que sempre me
interessou realmente. Uma pessoa foi sempre para mim um ser humano, com suas
alegrias e suas dores, suas vitórias e seus fracassos, nunca podendo ser substituída
por um número estatístico.
128
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mas agora, o que eu desejava para minha carreira profissional era me
especializar numa das cadeiras dos cursos de educação e terminar como professor do Instituto de Educação ou da Escola de Professores. Afinal, todos aqueles
mestres, nomeados para o ensino das várias especialidades do curso de educação
eram também autodidatas. Como eu próprio...
Em breve, vi surgir uma oportunidade para que pudesse realizar esse objetivo.
A reforma do ensino tinha criado no currículo do curso de formação de
professores, além das cadeiras já citadas, as de aplicação, isto é, as de didática: da
linguagem, da matemática aplicada, da geografia, da história, das ciências físicas e
naturais, das artes, da música, pois no final do curso, os futuros professores, obviamente, além dos conhecimentos de conteúdo das respectivas matérias, deveriam
estar preparados para transmitir esse conhecimento com a metodologia adequada.
Em linguagem, era preciso saber, por exemplo, qual o melhor método de ensino a
ser utilizado em cada caso: o chamado método global ou de sentenciação, no qual
se parte da sentença, da frase com sentido para a sílaba e os fonemas ou da
palavração ou da silabação, e assim por diante.
Foi aberto concurso para o preenchimento das vagas existentes e eu me
inscrevi na de metodologia da matemática, aproveitando os conhecimentos básicos que já possuía.
Prestei as prova escritas e de aula, sendo minha concorrente a professora
Alfredina de Paiva e Sousa, que já conhecia desde a escolinha de Bangu, para onde
eu fora "desterrado". E que se tornou depois boa amiga.
A banca examinadora considerou, porém, insuficientes para um julgamento
final dos dois candidatos os resultados que apresentamos nas provas realizadas e
nos propôs fazer um período de estágio, no departamento de didática, até mesmo
para unificar os métodos que deveríamos adotar quando assumíssemos o ensino da
cadeira. Era então chefe desse departamento a professora Maria dos Reis Campos,
que exercera na administração Fernando de Azevedo o Cargo de superintendente
do ensino primário e, desde então, tornamo-nos bons amigos.
Freqüentei durante algum tempo o estágio proposto, mas, em determinado
momento, achei um pouco exagerado o que estava sendo exigido de mim, pois,
além dos titulares das cadeiras, já referidas, numerosos professores tinham sido
nomeados sem a prestação de quaisquer provas. O próprio Anísio tinha proposto a
nomeação efetiva de vários deles, tais como Hermes Lima, Amando Fontes, Rodrigues
Lima, Francisco Martins Capustiano, este último, jornalista, redator da revista FonFon, e que freqüentemente fazia reportagens sobre as realizações do Departamento de Educação. E abandonei o estágio e a pretensão de me tornar professor de
metodologia da matemática...
Mantendo sempre meu critério de não pleitear cargos, a não ser em disputa
em concursos públicos, vi frustrado dessa vez meu desejo de me dedicar ao ensino
de uma matéria de caráter puramente pedagógico.
Somente mais tarde, pelas circunstâncias que serão relatadas adiante, é que
vim a lecionar História e Filosofia da Educação, como professor da Escola Normal
de Niterói, e, posteriormente, do Instituto de Educação do Rio de Janeiro. Aliás,
somente assim, cheguei a me dedicar aos ramos de conhecimentos que realmente
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
129
me interessavam, depois de percorrer o ensino de assuntos mais áridos e menos
humanos: a história e a filosofia.
Todo esse esforço em que estávamos empenhados profundamente, de modernização e enriquecimento do ensino na escola pública elementar comum, evidentemente não atingia a estrutura social, conforme imaginavam e ainda imaginam muitos educadores, que esperam das reformas de educação aquilo que elas
jamais poderão realizar.
É certo, ao contrário – e os educadores tomavam "a nuvem por Juno" – que
as transformações que se vinham processando na sociedade brasileira, resultante
da evolução do País de um estágio de economia predominantemente agrária para
um processo de industrialização e urbanização, vinham influindo para que se começasse a exigir uma escola primária, um preparo elementar, que não se limitasse à
antiga escolinha do precário ler, escrever e contar.
De outro lado, a visão que Anísio Teixeira trouxera da América do Norte, de
uma escola pública com planos de ensino muito mais ricos, o que naturalmente,
correspondia às necessidades de uma sociedade industrial desenvolvida, influiu também na orientação das reformas que iam sendo introduzidas em nossa incipiente
escola primária.
Mas nem por isso a sociedade deixava de produzir aquele contingente, sempre mais numeroso, de crianças e adolescentes que, em outros tempos, recebiam a
denominação de "desvalidos", depois de "abandonados", e que modernamente passaram a ser conhecidos como "carentes". E, segundo as estatísticas oficiais, estes
últimos, nos dias de hoje (1980), teriam atingido a assombrosa cifra de 25 milhões!
O fato é que as administrações públicas e as entidades privadas, desde os
tempos mais recuados, foram sempre obrigadas a se preocupar com esse problema,
fundando asilos, orfanatos e instituições semelhantes.
As antigas escolas profissionais do Rio de Janeiro tiveram essa origem.
Já em 1854, um decreto do Imperador, que baixava novo regulamento para
o ensino primário da Corte, conhecido como Reforma Couto Ferraz, incluía dispositivos que visavam atender às necessidades dessas chamadas crianças "desvalidas".
Dizia o artigo 62:
Se qualquer dos distritos vagarem menores de 12 anos, em tal estado de pobreza que, além
da falta de roupa decente para freqüentarem escolas, vivam em mendicidade, o governo os fará
recolher a uma das "casas de asilo" que devam ser criadas para esse fim, com um regulamento
especial. Enquanto não forem estabelecidas essas casas, os meninos poderão ser entregues aos
párocos ou coadjutores, ou mesmo aos professores dos distritos, com os quais o inspetor geral
contratará, precedendo aprovação do governo, o pagamento mensal de soma precisa para o
suprimento dos mesmos meninos.
E o artigo 63, acrescentava:
Os meninos que estiverem nas circunstâncias dos artigos antecedentes, depois de receberem a instrução de primeiro grau, serão enviados para as companhias dos arsenais ou de imperiais marinheiros, ou para oficinas públicas ou particulares, mediante um contrato, neste último
caso, com os respectivos proprietários, e sempre debaixo da fiscalização do juiz de órfãos. Àqueles, porém, que se distinguirem, mostrando capacidade para estudos superiores, dar-se-á o destino que parecer mais apropriado à sua inteligência e aptidão.
130
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Somente em 1875, porém, é que o governo imperial criava o primeiro desses
estabelecimentos: o Asilo para Meninos Desvalidos, o qual, mais tarde se transformou no Instituto Profissional João Alfredo, em homenagem ao ministro do Império, da época de sua fundação – João Alfredo Corrêa de Oliveira.
O número desses estabelecimentos aumentou com o correr dos tempos, –
separados para meninos e meninas. Evoluíram, posteriormente, para se tornarem
"escolas profissionais", masculinas e femininas, mantendo uma parte com instalações para o funcionamento em regime de internato, que recebiam agora as crianças e adolescentes desprovidos de recursos.
Foi esse o regime que a administração Anísio Teixeira encontrou, já modificado pela Reforma Fernando de Azevedo, e esses estabelecimentos foram então
elevados ao nível de 2º grau, recebendo a denominação de "escolas técnicas-secundárias", conforme já relatamos.
Mas, a pressão das famílias que não dispunham de recursos para manter os
filhos no regime de freqüência às escolas comuns aumentava sempre, e foi preciso
contratar vagas em estabelecimentos mantidos por particulares.
Lembro-me que, ainda como secretário de Anísio Teixeira, fui designado
para fazer parte de uma comissão que deveria examinar as propostas desses estabelecimentos particulares para receberem crianças carentes mediante contratos
com o Departamento de Educação. O outro membro da comissão era a superintendente de ensino primário Maria Loreto Machado, das mais competentes mestras do
magistério carioca. Percorremos e examinamos, minuciosamente, todos os estabelecimentos que se candidataram a esses contratos e indicamos em relatório os que,
a nosso ver, deveriam ter a preferência para receber as crianças naquelas condições
de carência econômica.
Mas o problema se avolumava a cada ano, e, em breve, foi necessário
criar um serviço centralizado para se encarregar, rotineiramente de resolver
essa questão: primeiro um serviço de assistência a menores, mais tarde, uma
superintendência especializada para o mesmo fim.
Parece que a candidata de Anísio Teixeira para dirigir a nova Superintendência era a referida professora Loreto Machado.
Mas aí sobreveio um incidente que diz bem do ambiente em que ainda se
vivia naqueles primeiros tempos agitados da revolução vitoriosa.
Para a Câmara Municipal de Vereadores tinha sido eleito pelo Partido
Autonomista, fundado por Pedro Ernesto, um oficial do exército, que iniciava
então sua carreira política e que se consagrou como a mais longa de um parlamentar brasileiro - o intendente Frederico Trotta. Certo dia, vi-o entrar no gabinete do diretor do Departamento de Educação, numa atitude muito agressiva.
Temi que o pior pudesse acontecer, mas, felizmente, tudo acabou se acomodando. Frederico Trotta pleiteava para sua esposa, a professora dona Laudímia Trotta,
a nomeação para o cargo de superintendente da assistência a menores. Dona
Laudímia era uma diretora de escola primária de muitos méritos. Acabou por
conseguir a desejada nomeação, desempenhando o cargo, muitos anos, com toda
a eficiência e dedicação.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
131
Esse é mais um dos pequenos flashes daqueles tempos e por onde se verifica,
naturalmente, que nem só de pedagogia e idealismo vivem os educadores...
Episódios dessa natureza levavam-me sempre, e sem propósito deliberado, a
comparar os tipos de personalidades dos dois educadores com que privara tão estreitamente: Fernando de Azevedo era muito cioso de sua autoridade e, como já
deixei narrado anteriormente, tive várias vezes de contornar situações delicadas
que esbarravam na sua intransigência. Anísio era muito mais flexível, ou porque se
criara naquele ambiente de política de província em que imperava o "coronelismo",
a troca de favores, como ingredientes normais das relações entre as pessoas e entre
essas e as autoridades, ou porque, imbuído de um verdadeiro espírito de missão
com que realizava sua obra, considerasse essas manifestações de ambições e interesses pessoais como pecados menores, que não deveriam prejudicar a consecução
dos objetivos mais altos em que estava empenhado.
•••
Segundo parece, Anísio fora perdendo sua fé religiosa, num processo sempre difícil de acompanhar, mas que se completara ao impacto daquela visão da
poderosa civilização norte-americana, racionalizada ao receber, diretamente, os
ensinamentos daquele que é considerado seu maior ideólogo: John Dewey.
Mas o traço característico de sua personalidade – a vocação missionária – não
poderia ser facilmente anulado, mas apenas transferido. E parece que foi o que aconteceu: com o mesmo fervor passou a se devotar àquela "entidade" que lhe deveria dar
os maiores títulos neste País, mas também torná-lo alvo das maiores perseguições e
incompreensões mais injustas e ineptas: – a educação pública democrática.
A peça fundamental dessa entidade era, sem dúvida, a escola pública primária, leiga, gratuita, aberta a todos, formadora do cidadão comum... aquela que
[...] ignorando distinções sociais e religiosas, abria para a sociedade a possibilidade de uma nova
estrutura social, em que, pobres e ricos, crentes e descrentes, pessoas de uma ou de outra raça,
todos se pudessem educar e por essa "escada educacional" subir na escala social em comum
emulação e comum convivência [...],
conforme escrevia Anísio, num artigo publicado em 26 de março de 1960, na
Tribuna de Santos, São Paulo, sob o título de "Escola particular e escola pública".
Para mim, a possibilidade da existência de uma instituição capaz de reunir
todas essas virtudes, era, sem dúvida, um ato de fé, verdadeiramente religioso...
Mas era a nova fé de Anísio...
Por isso mesmo, é que deve ter representado para ele uma enorme decepção
quando a Constituição de 16 de junho de 1934, depois de uma luta áspera, consagrou a introdução, no currículo da escola pública, o ensino da religião: no mínimo,
era uma traição ao espírito republicano de 1989.
Encontrei-o certo dia seriamente preocupado em procurar a melhor forma de
cumprir o novo dispositivo constitucional sem que houvesse qualquer prejuízo para o
desenvolvimento das atividades específicas, especialmente da escola primária, já tão
sacrificada pelos horários reduzidos, para atender às imposições do aumento gradativo
132
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
da matrícula. Pensou, como uma das fórmulas, colocar o ensino da religião no último
tempo dos horários das aulas. Tive, então, a oportunidade de expressar meu ponto de
vista e ponderar a ele, que não deveria tomar qualquer iniciativa que pudesse dar a
impressão de que ele estivesse tentando opor qualquer resistência à plena execução
do novo dispositivo constitucional, pois eu, pessoalmente, não acreditava que as aulas de catecismo pudessem despertar grande interesse pela forma por que eram ainda
ministradas. Deixasse às autoridades eclesiásticas toda a responsabilidade de encontrar a melhor forma de se desincumbir de suas obrigações. Aliás, meu ponto de vista
era, de certa forma, partilhado, por essas mesmas autoridades que tiveram que enfrentar o problema de modernizar também o ensino religioso, de forma mais de
acordo com as exigências da pedagogia moderna. Foi mesmo designada uma comissão para tratar dessa questão, e creio que um de seus membros foi o então padre
Helder Câmara, que já a esse tempo vinha se dedicando aos problemas da técnica da
educação e do ensino num início de carreira que levou a outros desdobramentos.
Fizemos em 1938 o mesmo concurso para provimento dos cargos de técnicos de
educação do Ministério da Educação e posteriormente trabalhamos juntos no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do Ministério da Educação, dirigido por Lourenço Filho, cada um de nós dirigindo uma das seções técnicas desse Instituto. Esteve
depois na direção da Divisão de Ensino Primário do MEC, dedicou-se a obras sociais e
de evangelização e, por fim, ganhou grande notoriedade, já como arcebispo de Recife
e Olinda, pela sua admirável resistência aos desmandos, especialmente no tocante
aos atentados aos direitos humanos, desencadeados sobre o País pelos homens que
chefiaram a chamada revolução de 1º de abril de 1964.
Ainda sobre o cumprimento dos dispositivos constitucionais que introduziram o ensino da religião nas escolas, eu ponderava a Anísio que qualquer atitude
sua, no tocante a essa matéria que pudesse transpirar, poderia ser mal interpretada
e só iria agravar a animosidade que já existia contra ele. Mas Anísio, como verdadeiro cruzado, de sua nova fé, concentrado na realização de sua obra de dimensões,
sem dúvida, extraordinárias, parece que, a esse tempo, não se preocupava muito
com a onda que ia se avolumando contra ele, tecida de incompreensões, ressentimentos, ignorância e má-fé e que acabaria por forçá-lo a interrompê-la bruscamente, acusado falsamente de estar envolvido nos dramáticos acontecimentos do
final do ano de 1935.
•••
Minha participação pessoal mais extensa e de maior importância na administração de Anísio Teixeira verificou-se, durante os anos de 1933 a 1935, quando
exerci a função de assistente da Superintendência de Educação Secundária Geral e
Técnica e do Ensino de Extensão, a cuja frente estava, conforme já vimos, Joaquim
Faria Góes.
Tratava-se de uma iniciativa que poderia ser considerada como pioneira
entre nós, mas de certa forma inspirada em organizações semelhantes existentes
nos sistemas de educação norte-americana e que recebiam a denominação geral de
adult education (educação de adultos). Eram cursos de extensão, aperfeiçoamento
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
133
e oportunidade que se distribuíam por uma enorme gama de aspectos e que, já em
1926, ocasionava a fundação da American Association for Adult Education, que, ao
publicar seu primeiro Handbook, em 1934, registrava 35 modalidades de instituições que agiam nesse campo da educação.
Nossa experiência em educação desse tipo era, até então, muito limitada,
pois se reduzia aos cursos vespertinos de ensino primário, que funcionavam muito
precariamente, nos vários sistemas escolares do País, e que, no Distrito Federal,
foram reorganizados pela Reforma Fernando de Azevedo, em 1928.
Agora, o Decreto n° 4.299, de 25 de julho de 1933, além de dar nova regulamentação ao ensino primário para adultos, criava a nova modalidade de cursos,
cuja responsabilidade de instalação e funcionamento me foi entregue.
Creio que vale a pena reproduzir aqui os principais dispositivos desse decreto, que definiram essa nova iniciativa, de cuja implantação e desenvolvimento fui
incumbido realizar e que tanta influência teve, não somente em minha carreira
profissional, mas também nos dramáticos acontecimentos que atingiram minha
vida pessoal e de família, ainda em conseqüência dos graves episódios políticos
ocorridos naquele ano de 1935.
Acresce que se tratava da primeira realização, em minha carreira de educador, cuja responsabilidade me coube inteiramente.
O artigo 3° do referido decreto estabelecia:
[...] os cursos de continuação, aperfeiçoamento ou oportunidade, destinados a estender, melhorar ou completar a cultura de qualquer pessoa, compreenderão todas as matérias de ensino
comumente ministradas num nível primário e secundário, geral ou profissional, bem como quaisquer matérias ou especialidades que venham a ser requeridas por um grupo de vinte alunos, no
mínimo, desde que seja possível obter o professor e as instalações o permitam.
E o artigo 4° estava assim redigido:
"A matrícula nesses cursos será livre, não havendo seriação obrigatória, nem
dependência forçada entre os mesmos".
E o parágrafo único desse artigo, acrescentava:
"Havendo conveniência, poderão também ser organizados cursos seriados
secundários, gerais ou profissionais, para os que quiserem continuar a sua educação regular e sistemática".
Desde a instalação e a direção do ensino na Escola de Comércio Amaro
Cavalcanti, na administração Fernando de Azevedo, não tivera a oportunidade de
me empenhar na realização de tarefa da importância da que me era entregue agora: a montagem, desde o início, dessa nova modalidade de ensino, que a administração Anísio Teixeira acabava de criar, como experiência inédita entre nós.
A ela me entreguei totalmente durante os anos de 1933, 1934 e 1935, e os
resultados obtidos foram de tal monta, que ao ter que decidir sobre o tema da tese
que deveria apresentar e defender como uma das exigências para a prestação do
concurso para o cargo de técnico de educação do Ministério da Educação, realizado em 1938, não encontrei melhor assunto senão relatar, com a maior fidelidade, a
experiência realizada, fazendo-a preceder de uma introdução de caráter histórico e
teórico, que a justificasse. E o título do trabalho surgiu naturalmente: Educação de
134
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
adultos (uma experiência de cursos de continuação, aperfeiçoamento e oportunidade realizada no Distrito Federal – 1934-1935).
A publicação dessa tese constitui também o primeiro trabalho impresso de
minha autoria e que reproduzi, mais tarde, no primeiro volume que publiquei sobre
problemas de educação, intitulado Estudos de educação (Lemme, 1953).
Além de tudo isso, o tipo de educação e de ensino que esses cursos pretendiam
oferecer ao povo de minha terra natal constituía uma iniciativa que me agradava de
maneira muito particular. Tratava-se de um ensino eminentemente popular, sem exigências burocráticas, visando diretamente os interessados, desde os mais humildes, e
isso constituía para mim uma espécie de resgate de uma dívida que contraíra com
meu povo, tão não-assistido e com tão poucas oportunidades para se elevar cultural
e profissionalmente, eu que, em nosso meio, poderia me considerar um privilegiado,
pelo ambiente em que nascera, onde encontrei todos os elementos para construir a
carreira que conseguia ir percorrendo. Visão idealista, sem dúvida, fruto do meu temperamento, era essa, entretanto, na época, a sensação que me animava ao iniciar
minhas atividades nessa nova direção.
•••
A primeira etapa dessa nova atividade, na qual deveria empenhar toda a
minha capacidade de trabalho, começou efetivamente em maio de 1934.
Daqui em diante, aproveito quase que integralmente a redação que dei ao
relato da experiência para servir como tese para o concurso a que me referi, pois
não poderia encontrar melhores palavras para figurar nestas Memórias.
Inicialmente, procuramos, de acordo com o superintendente, estabelecer,
com maior precisão, a esfera de ação do ensino de extensão que era agora posto
sob minha responsabilidade. Sob as finalidades dessa modalidade de ensino, assentamos que elas seriam as seguintes: ministrar ensino de instrumentos essenciais a
adolescentes e adultos que não tiveram nenhuma oportunidade escolar no tempo
próprio ou a tiveram incompleta; ministrar variados cursos práticos de artes e ofícios a quantos desejassem neles ingressar; organizar cursos de aperfeiçoamento
para os que já tivessem abraçado determinadas profissões e desejassem progredir
nas mesmas, ganhando mais eficiência; oferecer cursos de oportunidade, segundo
interesses de grupos de alunos e as oportunidades de empregos e de atividades
existentes no momento. A organização e as condições de funcionamento seriam:
cursos de preferência noturnos, sem limite de idade, sem formalidades de matrícula, sem seriação especial de matérias, cursos de duração variável, segundo as solicitações e os interesses dos candidatos.
Traçadas assim as diretrizes gerais, cabia-me agora passar imediatamente à
ação.
Deveria, como primeiro passo, verificar quais as necessidades mais urgentes
da população do Distrito Federal em relação a esses cursos, no sentido de aproveitar
da melhor maneira possível a pequena verba de que dispúnhamos para as primeiras
despesas: contrato de professores, gratificações para os que já pertenciam aos quadros do magistério oficial, pelo aumento das horas de trabalho, material, etc.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
135
Na impossibilidade de procedermos a um levantamento direto dessas necessidades, procuramos obter no Ministério do Trabalho alguns dados relativos à distribuição das principais atividades da capital da República. Infelizmente, nada pudemos conseguir, pois nesse momento, justamente, esse Ministério, criado havia
pouco tempo, iniciava os estudos preliminares com a mesma finalidade.
Tivemos assim que nos socorrer dos índices gerais fornecidos por nossa experiência pessoal no trato com os problemas do ensino técnico-profissional, que
nos vinham preocupando, desde 1924, quando nos iniciamos no magistério municipal, como professores da Escola Profissional Visconde de Cairu.
Por outro lado, era preciso considerar com muito cuidado o problema do
professor, sabido que a freqüência a essa espécie de cursos tem, em geral, como
objetivo principal um interesse imediato dos indivíduos adultos em obter progresso rápido em suas condições culturais ou técnicas, em vista de conseguir uma
melhoria de ordem econômica e, para isso, sacrificam, quase sempre, suas já reduzidas horas de repouso ou de lazer. O professor tem, pois, que possuir, além dos
requisitos normais de um domínio completo da técnica de ensino, condições especiais que lhe dêem uma atitude adequada para enfrentar, com sucesso, todas
essas variedades de situações dos alunos a seu cargo, que são provenientes não
somente das condições apontadas, como também da diversidade de formação e
de conhecimentos que apresentam.
Nesse terreno, estávamos com tudo quase que totalmente por fazer: o professor de que pudemos dispor, apesar do cuidado que pusemos na seleção, não
tinha, nem poderia ter, qualquer formação especializada para enfrentar a nova e
delicada tarefa que lhe era confiada.
Situação semelhante tínhamos que enfrentar em relação à escolha de diretores para os novos cursos.
Por todas essas considerações é que deliberamos dar aos primeiros cursos a
serem instalados uma grande simplicidade de organização, compreendendo apenas
duas peças principais: o diretor, que funcionava, especialmente, como coordenador
de todas as atividades; e o professor, diretamente responsável perante os alunos e a
administração, pelo seu trabalho. Essas duas peças ligavam-se diretamente com a
Superintendência, que agia junto a uma e outra, esclarecendo, estimulando, fiscalizando e resolvendo todas as dúvidas que iam surgindo no desenvolvimento de uma
atividade inteiramente nova para quase todos os que nela estavam empenhados.
Assentadas essas medidas preliminares, passamos à etapa da propaganda,
aspecto importante para o êxito do empreendimento. Para isso, era preciso utilizar
processos adequados, de forma a atingir os indivíduos para quem os cursos eram
especialmente destinados: pessoas de condições econômicas e culturais geralmente
modestas, operários e comerciários, principalmente, uma vez que nosso ponto de
vista era de que deveríamos empregar os limitados recursos de que dispúnhamos
em benefício dessas classes menos favorecidas.
Chamar a atenção desses grupos, vencer neles a natural desconfiança em
relação a tais iniciativas, o esgotamento quase total em que vivem em conseqüência
das próprias atividades a que se dedicam, as preocupações provenientes dos encargos
de família, que não lhes permite dar uma atenção continuada ao aperfeiçoamento
136
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
cultural e profissional, enfim, procurar vencer aquele acanhamento resultante do
temor ao ridículo, de que fala Thorndike, tal era a tarefa a realizar com a utilização de
uma propaganda hábil e sugestiva. Os meios principais que usamos foram os comunicados à imprensa diária e o apelo às associações de classe através de cartas circulares.
Tínhamos agora tudo preparado para iniciar a experiência e assim entre 15
de maio e princípio de junho de 1934 foram abertos os cinco primeiros cursos de
continuação, aperfeiçoamento e oportunidade, instalados nas seguintes escolas
técnicas-secundárias:
1. Escola Amaro Cavalcanti (mista): cursos de português, francês, inglês,
matemática, contabilidade, datilografia e estenografia.
2. Escola Sousa Aguiar (masculina): cursos de português, francês, inglês,
matemática, ciências, desenho, mecânica e eletricidade.
3. Escola João Alfredo (masculina): cursos de português, francês, inglês,
matemática, ciências, geografia, desenho, mecânica e eletricidade.
4. Escola Visconde de Cairu (masculina): cursos de português, francês, matemática, ciências, geografia, história, desenho, tecnologia de madeira.
5. Escola Orsina da Fonseca (feminina): cursos de português, francês, inglês,
matemática, desenho, puericultura, estenografia, confecção de chapéus,
costura, malharia, flores, bordados e rendas.
A procura de matrículas excedeu, desde logo, a qualquer expectativa. Em
alguns dos cursos, como na Escola Amaro Cavalcanti, por exemplo, foi necessário
limitar imediatamente a matrícula para ficar dentro das possibilidades do prédio e
do aparelhamento escolar.
Essa afluência de candidatos, que poderia ser atribuída à propaganda, à
gratuidade dos cursos e à ausência de qualquer formalidade burocrática para a
matrícula, que era feita por simples declaração verbal, foi para nós também um
indício seguro de que a iniciativa vinha corresponder a uma necessidade inadiável
da população do Distrito Federal.
A qualidade dos alunos nos conduziu também a algumas observações interessantes e que nos deram elementos para melhor adaptar a organização dos cursos às
suas verdadeiras finalidades, no segundo ano de seu funcionamento.
As espécies de alunos se distribuíam desde estudantes de ensino secundário
interessados em corrigir deficiências dos cursos que estavam fazendo, até vendedores ambulantes, de condição muito humilde, que tiveram sua atenção despertada pela passagem ocasional pelas imediações dos locais em que se aglomeravam os
candidatos à matrícula.
Constatamos, porém, desde logo, a existência de uma percentagem muito
pequena de candidatos provenientes da classe operária, em relação, principalmente, aos que exerciam profissões ligadas às atividades comerciais.
Esse fato pareceu-nos ter uma dupla explicação: em primeiro lugar, as atividades de caráter comercial, consideradas de nível mais alto, eram favoráveis à obtenção de empregos que podiam proporcionar rendimento econômico imediato, com a
freqüência a cursos de curta duração: por exemplo, um bom aperfeiçoamento em
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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estenografia e inglês, proporcionava um acesso rápido nas carreiras comerciais. Em
segundo lugar, os elementos oriundos das classes operárias e industriais, encontravam maiores dificuldades em freqüentar os cursos, porque, em geral, residem em
localidades longínquas.
Essas observações, nos conduziram a adotar medidas tendentes a levar os
benefícios da cultura a estas últimas classes, sem dúvida, as mais necessitadas, tais
como a localização dos cursos nos bairros de moradia operária, o aproveitamento
das sedes de sindicatos e associações de classe, e até mesmo a instalação de cursos
nos próprios locais de trabalho.
Infelizmente, porém, somente em escala muito reduzida puderam essas medidas ser postas em prática, no ano seguinte, sempre pelo mesmo alegado motivo:
a falta de recursos.
Inúmeras outras observações decorrentes do próprio funcionamento das
aulas, tais como a grande mobilidade da freqüência, a enorme diversidade de
preparo dos alunos e de interesses demonstrados pelos candidatos e também das
próprias condições, já bastante debatidas, referentes aos horários, programas,
preparo e atitude dos professores, etc., nos deram elementos para introduzir, no
ano seguinte, algumas modificações para melhor ajustamento dos cursos às reais
necessidades dos alunos.
E para podermos agir com maior segurança ainda, no atendimento das necessidades e aspirações dos candidatos, no fim do primeiro ano letivo, através de
um questionário, procuramos colher as impressões dos próprios interessados, tendo
recebido, por esse meio, sugestões de grande valor.
E, assim, apesar de todas as falhas, aliás explicáveis pelo ineditismo da
iniciativa, fortaleceu-se em nós a convicção de que ela correspondia a uma real
necessidade das populações mais carentes do Distrito Federal e que cabia agora
ao governo municipal proporcionar cada vez maiores recursos que permitissem
uma ampliação, sempre crescente, dessa nova modalidade de ensino, que vinha
assim enriquecer extraordinariamente o sistema de educação pública da capital
da República.
E, assim, ao se referir a ela no relatório anual, relativo ao ano de 1934, das
atividades do Departamento de Educação, Anísio Teixeira pôde escrever:
Poucas iniciativas do Departamento de Educação lograram aceitação tão imediata e entusiástica quanto esta. É que a educação, de ordinário tão remota em seus frutos, porque se
dedica exclusivamente aos indivíduos em idade de preparação para a vida econômica associouse, nesse caso, aos interesses do adulto e se dispôs a dar-lhe uma assistência direta no seu
trabalho. Passando, assim, a retribuir os esforços nela empregados, era de esperar a simpatia
com que os novos alunos acorriam ao seu chamado. Infelizmente, trata-se de empreendimento
que exige grande facilidade de recursos, de professores e de verbas.
O sistema escolar carioca, embora desenvolvido, não oferece, ainda, a variedade de magistério e, muito menos, magistério especializado para essa função, como se fazia mister.
Por esse motivo, tais cursos foram reduzidos em número e extensão. Mesmo assim, o êxito
de que foram coroados foi de tal natureza que a administração, não só os quer conservar, como
incrementar, na medida do possível, nos próximos exercícios.
138
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Somente em fins de abril de 1935 foi possível reabrir os cursos, já agora
modificados em face da experiência colhida no ano anterior.
A verba para manutenção, bastante aumentada, deu-nos a possibilidade de
criar mais quatro centros de ensino e cultura, com as mesmas facilidades de matrículas e freqüência, e sem qualquer despesa para os alunos.
Foram os seguintes esses novos cursos, localizados segundo um critério de
melhor atenderem às necessidades das classes trabalhadoras do Distrito Federal:
1. Escola Bento Ribeiro (feminina), localizada na estação do Méier;
2. Escola Gonçalves Dias (mista), no Campo de São Cristóvão;
3. Escola Julio de Castilhos (mista), na Gávea.
4. Escola João Barbalho (mista), em Ramos.
Os cursos foram divididos em básicos, de informação e especializados, e as
condições de matrículas foram estabelecidas para cada uma dessas modalidades,
de forma a assegurar um melhor ajustamento às condições individuais dos alunos.
O plano de cursos foi grandemente ampliado com uma nova série de oportunidades de aquisição de conhecimentos, em vista da formação cultural, social e
profissional dos alunos.
Foram estabelecidas medidas visando a uma melhor homogeneidade das
turmas, pois é esta uma das condições essenciais para se obter um melhor rendimento do ensino. Os candidatos eram submetidos, inicialmente, a uma prova de
verificação de conhecimentos e, periodicamente, a provas de apuração de aproveitamento, para permitir a reorganização das turmas.
Os diretores, com a experiência adquirida, puderam iniciar um trabalho de
aconselhamento e orientação vocacional, feito através de indagações e conselhos aos alunos, no sentido de melhor poderem resolver seus problemas pessoais,
relacionados com as necessidades de aperfeiçoamento cultural e profissional.
Foram introduzidas também atividades extraclasse, de iniciativa dos próprios alunos, tais como clubes e associações, onde se faziam realizar palestras e conferências de cultura geral, sessões de cinema educativo e teatro de amadores.
E dessa forma, num ambiente verdadeiramente estimulante, de vida e entusiasmo, as matrículas em quase todos os cursos passaram a ser disputadas e no
total subiram de 1.366, em 1934, para 5.174, em 1935.
Não é, pois, de estranhar a enorme celeuma que se levantou e os veementes protestos que se fizeram ouvir por parte dos interessados, quando, em fins
desse ano de 1935, transpirou a notícia de que as verbas para a manutenção
desses cursos seriam reduzidas. Eu mesmo, pessoalmente, conduzi várias comissões de alunos ao Palácio do Governo Municipal, onde procuravam se avistar com
o prefeito Pedro Ernesto e seus auxiliares, para manifestar seu inconformismo
com as providências que se anunciavam e que representariam uma limitação no
desenvolvimento futuro dos planos desses cursos, que tinham provado que estavam atendendo a necessidades urgentes das classes trabalhadoras do Distrito
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
139
Federal. Foram dias de grande agitação, em que me envolvi diretamente em defesa da obra que tinha sido posta sob minha direta responsabilidade.
O governo negou as anunciadas intenções de fazer quaisquer restrições ao
desenvolvimento dos cursos, e os acontecimentos prosseguiram naquele ritmo já
bastante conturbado daquele ano de 1935.
•••
Minha situação funcional a esse tempo sofreu também uma considerável
modificação, resultando no grande aumento de minhas responsabilidades.
Joaquim Faria Góes recebera uma bolsa de estudos para fazer um curso de
educação na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e eu fui designado
para assumir a chefia da Superintendência de Educação Secundária, Geral e Técnica e do Ensino de Extensão.
Em 2 de setembro de 1935, pela Lei n° 7, eram reorganizados os serviços da
Prefeitura do Distrito Federal, sendo o Departamento de Educação transformado
em Secretaria Geral de Educação e Cultura. A secretaria ficou dividida em 2 setores
principais: um encarregado do ensino que poderíamos denominar de sistemático
ou comum e o outro incumbido de toda a educação assistemática. Este último
recebeu o nome de Diretoria de Educação de Adultos e Difusão Cultural, compreendendo além da Superintendência dos Cursos de Continuação e Aperfeiçoamento
e também todo o ensino primário para adultos, as Divisões de Biblioteca Central e
Escolares, os museus, o cinema educativo, os teatros e a radiodifusão.
Continuando à frente da nova Superintendência, agora acrescida com a
incorporação de todo o ensino elementar para adultos, antes a cargo do Departamento de Ensino Primário, minhas responsabilidades foram muito ampliadas. Mas a
nova organização somente poderia entrar em funcionamento efetivo a partir do
ano seguinte de 1936.
•••
Essa experiência de educação de adultos, que teve ainda uma breve seqüência em 1936, conforme veremos mais adiante, mereceu da professora Vanilda Pereira Paiva, em sua tese para a obtenção do grau de mestre em educação na Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1972, as seguintes referências:
Essa experiência de educação de adultos é muito importante na história da educação brasileira, não somente pelas características de sua organização – configurando-se como o primeiro movimento de caráter extensivo fora dos moldes tradicionais das escolas noturnas – mas
principalmente pelo seu aspecto político.
E adiante:
Nesse clima de definições políticas que penetra também os meios educativos, a experiência de educação de adultos do Distrito Federal se coloca como a primeira manifestação concreta das novas exigências feitas aos educadores. Pela primeira vez no País, um profissional
140
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
da educação era levado à prisão por suas atividades educativas: a principal acusação a Paschoal
Lemme era a da organização de cursos para operários da União Trabalhista, associação fundada pelo então prefeito Pedro Ernesto (Paiva, 1973).
•••
Aquele ano trágico de 1935 aproximava-se do fim. Quatro anos de trabalhos árduos, ininterruptos, sem descanso e sem tréguas, em meio a controvérsias
ácidas e conquistas brilhantes e compensadoras, tinha produzido, sem dúvida, resultados extremamente positivos. A capital da República possuía agora um verdadeiro sistema de educação integrado, que compreendia desde a educação pré-escolar, os jardins de infância, até a universidade. Os órgãos técnicos de estudos,
pesquisa, fiscalização e divulgação funcionavam com toda a eficiência, tendo à
frente elementos dos mais qualificados e interessados em suas atividades. Anísio
Teixeira podia considerar-se assim plenamente vitorioso na realização de sua obra
e projetar, com segurança, desdobramentos e aperfeiçoamentos para o futuro.
A reforma de todos os serviços de educação com a criação da Secretaria
Geral de Educação e Cultura viera permitir o alargamento do âmbito de ação desses serviços, através de novos órgãos que permitiriam um maior desenvolvimento.
O ambiente reinante entre nós, os colaboradores de Anísio, apesar de muitos contratempos e restrições, podia ser considerado de franco otimismo.
Em contraste, porém, com esse sentimento que nos animava, lá fora a crise
político-social se avolumava, espraiando-se ameaçadoramente por todo o País, como
fogo em campo ressecado, as chamas tangidas pelo vento. E por fim, naqueles dias
trágicos de novembro de 1935, as explosões, tornaram-se violentas, envolvendo a
todos nós, colhidos de surpresa pela brutalidade dos acontecimentos.
Desencadeadas as paixões incontroláveis, vieram à tona todos os ressentimentos acumulados, as acusações ineptas, os pressupostos estúpidos, a ignorância
enfatuada, os radicalismos ideológicos que, desde muito tempo, ameaçavam Anísio
Teixeira e sua obra.
E naquele dia 2 de dezembro de 1935 era ela definitivamente interrompida,
através de um documento, que já se incorporou à história da educação brasileira
como um de seus momentos, ao mesmo tempo, mais dignos e mais lamentáveis:
naquela data, Anísio Teixeira dirigia ao prefeito Pedro Ernesto a carta com que se
exonerava do cargo de Secretário da Educação e Cultura do Distrito Federal.
Ei-la, em toda a sua extensão e significação:
Rio de Janeiro, 2 de dezembro de 1935.
Excelentíssimo Senhor Prefeito,
Pela conversa que tive, ontem, com Vossa Excelência, pude perceber que a minha permanência na Secretaria de Educação e Cultura do Distrito Federal constituía embaraço político
para o governo de Vossa Excelência. Reiterei, imediatamente, o meu pedido de demissão, que
esteve sempre formulado, porque nunca ocupei incondicionalmente esse cargo, nem nenhum
outro, mas o exerci, como os demais, em caráter rigorosamente técnico, subordinando a minha
permanência neles à possibilidade de realizar os programas que a minha consciência profissional houvesse traçado.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
141
Renovo a declaração, porque não me é possível aceitar agora minha exoneração sem a
ressalva de que ela não envolva, de modo algum, a confissão que se poderia supor implícita, de
participação, por qualquer modo, nos últimos movimentos de insurreição ocorridos no País. Não
sendo político e sim educador, sou, por doutrina, adverso a movimentos de violência, cuja eficácia contesto e sempre contestei. Toda a minha obra, de pensamento e ação, aí está para ser
examinada e investigada, exame e investigação que solicito, para que se descubram outras
tendências e outra significação, senão as de reconhecer que o progresso entre os homens provém de uma ação inteligente e enérgica, mas pacífica.
Sou, por convicção, contrário a essa trágica confiança na violência que se vem espalhando
no mundo, em virtude de um conflito de interesses que só pode ser resolvida, a meu ver, pela
educação, no sentido largo do termo. Por isso mesmo, constrange-me, nesta hora, ver suspeitada minha ação de educador e toda a obra de esforço e sacrifício realizada no Distrito Federal,
obra que possuía a intenção profunda e permanente de indicar o rumo a seguir para se resolver
as tremendas perplexidades do momento histórico que vivemos.
Lavro contra tal suspeita o meu protesto mais veemente, parecendo-me que tem ela mais
largo alcance que a minha pessoa, porque importaria em não se reconhecer que progredir por
educação é exatamente o modo adequado de se evitarem revoluções. Se porém, os educadores,
os que descrêem da violência e acreditam que só as idéias e seu livre cultivo e debate é que
operam, pacificamente, as transformações necessárias, se até esses são suspeitados e feridos e
malsinados nos seus esforços - que outra alternativa se abre para a pacificação e conciliação
dos espíritos?
Conservo, em meio de toda a confusão momentânea, as minhas convicções democráticas,
as mesmas que dirigiram e orientaram todo o meu esforço, em quatro anos de trabalhos e lutas
incessantes, pelo progresso educativo do Distrito Federal, e reivindico, mais uma vez, para essa
obra, que é do magistério do Distrito Federal, e não somente minha, o seu caráter absolutamente republicano e constitucional e a sua intransigente imparcialidade democrática e doutrinária.
Cumpre-me, neste momento, Excelentíssimo Senhor Prefeito, apresentar a Vossa Excelência a expressão do meu constante reconhecimento pelas atenções e, sobretudo, pela resistência
oferecida por Vossa Excelência a todos que se opuseram, por ignorância ou má-fé, ao desenvolvimento dessa obra, até o momento atual.
Possam outros, com mais inteligência e valor, retomá-la e conduzi-la, pelos mesmos rumos
liberais e republicamos para seu constante progresso.
Apresento a Vossa Excelência as expressões de meu devido reconhecimento e os meus votos
pela sua felicidade pessoal e a felicidade de seu governo.
(a) Anísio Teixeira.
Todos nós, auxiliares e colaboradores de Anísio, em sua obra que findava,
assim, de maneira tão inesperada, solidários irrestritamente com ele, como não
podia deixar de acontecer, abandonamos, naquela mesma data, os cargos que exercíamos na Secretaria Geral de Educação e Cultura. O Secretário do Interior e Justiça
que substituiu Anísio, provisoriamente, ainda tentou convencer alguns de nós a
continuar à frente dos serviços que dirigíamos, até que fossem designados substitutos. Isso aconteceu comigo, que fui insistentemente solicitado a permanecer
por algum tempo ainda na chefia da Superintendência, mas não me foi possível
atendê-lo. E assim, mais uma vez, em minha carreira, dispensado da comissão que
exercia, voltei automaticamente ao meu cargo efetivo de professor das escolas
técnicas-secundárias e entrei em férias, cujo período regulamentar tinha começado, pois já estávamos em meados do mês de dezembro.
Em casa, no velho prédio da Rua Visconde de Figueiredo n° 91, quase na
esquina da Rua Almirante Cócrane, junto com a família, que já se completara com
142
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
os cinco filhos, em meio às maiores preocupações, assistia ao desenrolar dos acontecimentos que se precipitavam, desde aquele trágico 27 de novembro de 1935. As
prisões continuavam, e já tinham atingido alguns amigos e colegas – Edgar Süssekind
de Mendonça, Valério Konder, Hermes Lima – e ameaçavam muitos outros que
conhecia apenas dos meios políticos...
•••
Anísio, ferozmente perseguido pela reação que se desencadeava violenta
por todo o País, a muito custo, depois de dramática viagem pelo interior, como um
criminoso foragido da Justiça, conseguiu chegar até junto de sua família, no interior da Bahia, acompanhado de sua esposa, que segundo me lembro, estava grávida
e teve, logo depois, a primeira filha.
Terrivelmente amargurado e desiludido, durante mais de dez anos esteve
afastado completamente de todas aquelas atividades, que foram a razão maior de
sua vida.
De seu estado de espírito, da revolta e da amargura em que mergulhara, em
face das injustiças e das incompreensões que sofrera, tive duas manifestações dolorosas e diretas.
Em 1940, esteve no Brasil o professor norte-americano Robert King-Hall,
que assumira a cátedra de educação comparada da Universidade de Columbia, em
New York. Vinha fazer pesquisas sobre sua especialidade, em gozo de uma bolsa de
estudos. Entrando em contato com o Ministério da Educação, foi conduzido ao
Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, dirigido por Lourenço Filho, que o encaminhou a mim, que, no momento, chefiava a Seção de Documentação e Intercâmbio daquele Instituto. Depois de receber todas as informações solicitadas, o
professor King-Hall demonstrou desejo de conhecer a organização da educação em
alguns Estados. Lembrei-me então de apresentá-lo a Anísio, que estava em Salvador, pois o professor Hall, desejava também conhecê-lo pessoalmente, pela repercussão de sua obra no Distrito Federal e na Bahia, e ainda pelo fato de ter sido
aluno de John Dewey na Universidade de Columbia.
Escrevi, então, uma carta a Anísio apresentando-lhe o prof. Hall e algum
tempo depois recebi a seguinte resposta:
Bahia, 4 set. 1940.
Caixa Postal 588
Meu caro Paschoal,
Aqui recebi sua carta e com ela o prof. Hall. Tivemos uma longa conversa fiada de cerca de
duas horas. E durante esse tempo, esqueci um pouco os meus grandes esquecimentos de coisas
de educação. Tive uma vaga impressão de outra época e de que ainda existia o Anísio dos
remotíssimos anos de 31-36. Foi um rápido despertar de minha total letargia. Rápido e fugaz.
Porque logo voltei ao estado anterior. Ando, com efeito, em estado de hibernação. Não podendo colaborar nas mudanças porque passa o mundo, poderia pelo menos pensar e sonhar... Como,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
143
porém, não dou para sonhar, hibernei, entrei em vida latente. Não leio, não escrevo, não discuto, não penso... Estado de morte espiritual. Não sei se V. conhece isto. Se não conhece, não
procure conhecer, pois é horrível. De qualquer modo, gratíssimo pela visita que me proporcionou seu grande amigo, visita que me deu uns momentos saborosos e estranhos de vida... Recomende-nos aos seus e creia no velho amigo de sempre, Anísio.
Em 1945, eu e Venâncio fizemos uma nova tentativa de tirar Anísio daquela
atitude negativista, fruto da amargura que ainda não pudera vencer.
Estávamos às vésperas da terminação da 2ª Grande Guerra Mundial e o
mundo inteiro se rejubilava com a vitória próxima das forças democráticas. Entre
nós, também, tudo começava a reflorir, com os primeiros indícios de uma ressurreição, que deveria se seguir, fatalmente, aqueles anos todos de repressão ao
pensamento livre.
Consideramos que, afinal, Anísio e nós todos educadores, sofrêramos o
impacto da reação e do fascismo em ascensão, e que com sua derrota próxima,
deveríamos ressurgir para a atividade. Pensávamos em elaborar um documento
em que expressaríamos nossa opinião de educadores sobre os acontecimentos
que se precipitavam, no País e no mundo, e para isso não poderíamos deixar de
solicitar a colaboração de Anísio.
Escrevemos a ele, e eis a resposta que recebemos:
Bahia, 17 de março de 1945.
Meus caros Paschoal e Venâncio:
Está claro que apesar de aposentado, estou acompanhando os acontecimentos e chego a
crer que estamos realmente respirando... Mas, os pulmões estão fracos, que todo o cuidado é
pouco. Reconheço também que uma manifestação dos educadores caberia no momento, pois,
no Brasil, toda evolução ou revolução se terá de fazer por meio da educação.
Acho, entretanto, tudo ainda tão frágil, tão tênue, que não sei em que íamos apoiar a
nossa declaração. Não seria melhor começar a organizar o estudo dos sete anos de fascismo
na educação, para que o futuro documento tivesse o aspecto concreto indispensável para não
se tornar apenas um enunciado de aspirações? Estas aspirações estão já escritas e publicadas.
O documento de agora seria um documento de condenação para se retomar a marcha interrompida em 1936... Ora, para essa condenação, para articulá-la, bem pouco posso eu prestar,
pois vivi completamente alheio ao movimento de educação nestes últimos sete anos...
Além de tudo isso, entretanto, o maior motivo de não atender ao chamado afetuoso dos
amigos é a impossibilidade material de sair da Bahia, onde estou preso por ocupações de toda
hora e todo dia, ocupações que desejo sejam de liquidação, mas, que nem por isso, posso
prever quando acabam... É meu propósito deixar minhas atuais atividades comerciais este
ano, mas prendi-me tanto nelas, que não sei quando me poderei libertar...
Desejava, pois, que me dispensassem. Vou dar ao movimento que se inicia meu total
apoio de homem privado, mas já não sou educador, nem coisa nenhuma, mas um simples
trabalhador desmoralizado e gasto pela opressão getulina... Não serei eu o único triturado
nas moendas suaves do fascismo brasileiro. Muitos outros se terão também perdido. Creiam
ambos no meu pesar em não acompanhá-los, mas se algum velho, no Brasil, deseja vê-los
retomar a charrua e recomeçar, com alegria e sem ressentimentos e arrotear o campo, esse
velho será o seu de sempre e muito devotado Anísio.
144
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Somente em 1947, Otávio Mangabeira, empossando-se no cargo de governador do Estado da Bahia, conseguiu que Anísio voltasse às suas atividades de
educador, sendo nomeado, pela segunda vez, para dirigir a educação pública de seu
Estado natal. Antes, em 1946, Paulo Carneiro obtivera sua colaboração para a implantação da Unesco, tendo por mais de um ano exercido, nessa entidade da Organização das Nações Unidas (ONU), as funções de conselheiro para o ensino superior.
Meus contatos com Anísio foram poucos e esporádicos, desde aqueles trágicos dias de novembro de 1935. Nossos caminhos seguiram direções diferentes. Apenas, estivemos novamente em colaboração mais íntima quando se processava no
Congresso Nacional a discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Tentava-se ali, sob a chefia do então deputado Carlos Lacerda, o desvirtuamento
total do primitivo anteprojeto, para tornar a educação e o ensino brasileiro praticamente um problema a ser entregue à iniciativa privada e às forças sectárias. Os
educadores resolveram, então, lançar à Nação um novo manifesto em defesa da
educação pública democrática, e Fernando de Azevedo foi mais uma vez convocado para redigi-lo. Nessa ocasião, eu estive várias vezes com Anísio, que era então
diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos do MEC, para providenciar a
coleta de assinaturas e promover a mais ampla divulgação do documento.
Retornando assim, aos poucos, às preocupações e atividades de educador,
produziu uma obra teórica e prática cada vez mais importante e festejada, justificando plenamente o título que Hermes Lima lhe outorgou de Estadista da Educação, na excelente biografia que escreveu.
Sua morte trágica, em março de 1971, quando se preparava para concorrer
a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, o que seria uma merecida consagração, chocou profundamente a todos nós, amigos e colaboradores dessa extraordinária figura humana.
Jorge Amado, recordando traços marcantes da personalidade de Anísio, escrevia, com toda a justeza:
Foi o mais modesto dos grandes homens, o mais simples, o que menos desejou para si
próprio. O mais ambicioso, porém, em relação ao Brasil e ao homem brasileiro. Ninguém como
ele era tão capaz de acreditar e confiar nos demais, de ver e revelar as qualidades de cada um e
de valorizá-las, de conseguir estabelecer a confiança e descobrir valores.
E Péricles Madureira de Pinho, um dos seus melhores amigos e colegas, desde os bancos escolares, resumiu o sentimento de todos os amigos, colegas, colaboradores e admiradores daquele excepcional espírito que acabava de desaparecer:
– Agora, temos que aprender a viver sem Anísio!...
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO VIII
NA INSPETORIA DE ENSINO
DO ESTADO DO RIO
DE JANEIRO (1933–1937)
COMO ME TORNEI PROFESSOR
DE HISTÓRIA E FILOSOFIA
DA ESCOLA SUPERIOR
DE NITERÓI (1952–1955)
Minha volta à administração do ensino do Distrito Federal e, em seguida, em 1932, minha efetivação
no cargo de professor das escolas técnicas-secundárias, além da reparação moral, representou, sem dúvida,
uma melhoria bastante significativa do ponto de vista
material.
Mas, os compromissos que eu e Ernesto de Faria
tínhamos assumido com a liqüidação do Instituto Brasileiro de Educação e os crescentes encargos de manutenção
da família, sempre aumentados, levaram-nos a procurar
obter novos meios de enfrentar a situação.
Uma primeira perspectiva nesse sentido abriu-se
quando começou a ser anunciado que o recém-criado
Ministério da Educação iria realizar um concurso para preenchimento de vagas de inspetor de ensino, encarregados
da fiscalização dos colégios particulares, de acordo com a
nova legislação do ensino secundário.
Nunca chegamos a saber exatamente por que tal
providência não chegou a se concretizar, mas apenas veio
ao nosso conhecimento que alguns dos inspetores que já
exerciam o cargo interinamente tinham sido efetivados,
mediante a prestação de provas de caráter interno, e entre esses estavam Lúcia Magalhães e Francisco Montojos.
Decepcionados com a ocorrência, pois já tínhamos começado a nos preparar para a eventualidade da
realização do concurso, tivemos que aguardar outra
oportunidade.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Essa, entretanto, apareceu pouco tempo depois, graças à ocorrência de uma
circunstância a que já nos referimos anteriormente. A reação do "tenentismo" aos
esforços da volta das chamadas "oligarquias" para dominar a política do País fez
com que fossem nomeados para interventores em alguns Estados, representantes
dessa corrente de pensamento e ação revolucionária.
Entre eles estava o comandante Ari Parreiras, um dos mais conceituados representantes da classe militar que decidiu a vitória da Revolução de 1930 e que foi
nomeado para interventor no Estado do Rio de Janeiro. Homem sério, de aparência
tímida, mas de grande firmeza, fizera parte da Comissão Geral de Investigações encarregada de apurar e punir revolucionariamente os possíveis delitos praticados por
elementos da "República Velha", especialmente os chamados "carcomidos". Essa Comissão acabou por se dissolver sem apurar grande coisa. Constava ainda que o comandante Ari Parreiras tinha, acentuada tendência para as idéias socialistas.
Em 18 de dezembro de 1931, assumia o governo da velha província que, desde
a abolição da escravidão, vivia em permanente estado de crise política, econômica e
social, com a queda brusca da produção do café, que fizera sua grandeza nos tempos
imperiais, sendo conhecida como "Terra dos Barões", que nos solares principescos de
suas fazendas exibiam a maior opulência e os costumes mais refinados.
Um dos maiores e mais prósperos centros da produção cafeeira foi o município de Vassouras e sua riqueza se refletia na cidade de Vassouras, sede do município.
Veja-se, por exemplo, a descrição verdadeiramente fantasmagórica que Inácio
Raposo faz em sua História de Vassouras, dessa época, da cidade de Vassouras:
O ano de 1857 que foi o do triunfo econômico de Vassouras foi também o da elegância,
mesmo porque não se pode compreender que em tempos de dificuldades existam pompas em
alguma parte.
Até 1864 essa febre de luxo aumentou, começando a estacionar certo tempo depois.
Foi também nesse ano feliz que se fundou em Vassouras o primeiro atelier de modistas,
com todo o luxo e conforto que se encontrariam em qualquer estabelecimento congênere na
capital do Império.
Pertencia esse atelier a Madame Masson, que já trazia fama do Rio e muito se esforçou
para bem servir e agradar à sua rica e poderosa freguesia.
Alguns meses depois apareceu uma segunda casa de modas, ainda melhor que a primeira.
Era sua diretora a habilíssima artista Madame Simon, que trouxe para esta cidade mais
algumas companheiras de nacionalidade francesa, que iniciaram entre nós o requinte de elegância no traje feminino, o chique parisiense, notado pelos viajantes oriundos das grandes
capitais na sociedade fina de Vassouras.
Ignora-se hoje onde funcionavam esses estabelecimentos de moda, mas é de presumir que
na rua do Comércio.
Enquanto o luxo das roupas deslumbrava os olhos das donas e senhoritas, as pequenas
joalherias de João Joaquim Calhois e de José Calazão atraíam diariamente um grande número
de pessoas que se iam deliciar na contemplação dos rubis, das pérolas, dos brilhantes, fazendo
não raras vezes aquisições valiosas.
As casas dos relojoeiros Émile Perrenoud e Etiènne Agréve Chabons não tinham tréguas
nem descanso, tal era o número de fregueses que os procurava.
A vida noturna da cidade, que fora nenhuma a princípio, intensificou-se de tal sorte que
até tarde da noite se encontravam pessoas pelas ruas, apesar da proibição que havia de
perambularem escravos depois das dez horas.
Durante a noite inteira ouvia-se o rodar com carros das duas grandes cocheiras da cidade...
carruagens transitavam pelas ruas continuamente dando-lhes incrível movimento.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
E por aí segue. Inácio Raposo, falando-nos dos teatros, dos clubes recreativos, dos bailes, das festas religiosas... Tudo isso baseado no trabalho escravo e na
produção e comercialização do café...
Depois de 1888, o panorama muda completamente. Escreve ainda Inácio
Raposo:
Deixando, porém, a longa digressão acerca da Lei Áurea, consignemos aqui ter sido Vassouras devastada durante os últimos meses de 1888 por um desalento tão forte que seria impossível
sonhar com seu reerguer, assim como o da Província inteira, que a acompanhava nesse delíquio
tremendo.
Pareceu-me interessante registrar nestas Memórias estas referências ao passado faustoso da velha província, não somente pelo documento em si, mas principalmente pelo valor sentimental que Vassouras teve para mim. Ali passei os dias de
"lua-de- mel", em casarões que lembravam aquela época de opulência. Agora, em Pati
do Alferes, que foi o núcleo inicial da formação do município de Vassouras, no Sítio
"Remanso", encontro a tranqüilidade suficiente para prosseguir na redação destas Memórias, o que não mais conseguia fazer na agitação daquele Rio de Janeiro de 1981.
•••
Retomemos, porém, o fio de nossa narração, dizendo que a tarefa do novo
interventor no Estado do Rio de Janeiro, não era nada fácil. Podia ser resumida
numa fórmula muito simples: recursos extremamente escassos para enfrentar aquela
decadência política, econômica e social, que originava problemas de enormes dimensões. Por isso mesmo, sua ação, pelo menos na fase inicial de seu governo, teve
que se limitar ao estabelecimento de planos de realizações muito modestas, em que
a tônica era a mais rigorosa economia nas despesas. O cumprimento estrito dessa
diretriz chegou mesmo a suscitar o espírito anedótico dos fluminenses: propalavase que o Interventor dormia com as chaves dos cofres do Estado debaixo dos travesseiros, para que não houvesse a tentação de realizar qualquer gasto, além do
que fosse rigorosamente autorizado por ele...
•••
Ari Parreiras nomeou para a Secretaria do Interior e Justiça, Stanley Gomes,
irmão de Eduardo Gomes, revolucionário da primeira hora e único sobrevivente da
chamada epopéia dos "18 do Forte".
A Diretoria de Instrução Pública do Estado, àquele tempo, estava subordinada a essa Secretaria. Para dirigir os Serviços de Educação foi escolhido Celso
Kelly, de tradicional família fluminense. Seu pai era o jurista Otávio Kelly, que
chegara a ministro do Supremo Tribunal Federal e tivera destacada atuação nas
lutas em defesa da ordem jurídica nos governos anteriores à Revolução de 1930.
Seu irmão, Prado Kelly, dirigia um escritório de advocacia, que gozava de grande
conceito, graças ao nome que ostentava e a idoneidade e competência com que
agia, e fez posteriormente brilhante carreira política.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Eu já conhecia Celso Kelly superficialmente, desde que ele, na administração
Fernando de Azevedo, prestara concurso para professor de português das escolas
técnicas-secundárias, concursos esses de cuja organização e realização era eu o
responsável.
Nunca se dedicara, porém, especificamente, aos problemas técnicos de
educação e ensino: sua formação era mais dirigida para o cultivo das letras e das
artes plásticas, exercendo também o jornalismo.
Inteligente, sempre bem-humorado, tinha uma especial habilidade para
contornar e resolver situações aparentemente as mais intrincadas, talvez pela
experiência que tivera na prática da advocacia. Outro traço marcante de seu
comportamento era uma permanente disposição para a apreciação dos encantos
femininos, mas que, durante os anos que convivi com ele, em que estávamos em
contato diário, com inúmeras jovens professoras, suas subordinadas, que eram
obrigadas a recorrer a ele para resolver problemas de toda a ordem, nunca pude
observar qualquer tipo de relação que ultrapassasse os limites da mais rigorosa
conveniência funcional.
Hoje, quando vejo o desembaraço e ao mesmo tempo a decência com que
seu filho João Roberto Kelly, se apresenta em público, dirigindo espetáculos de
arte, em que predomina a exibição da beleza feminina, não posso deixar de imaginar que é ele um legítimo herdeiro de todas aquelas qualidades que o pai era
obrigado, de certa forma, a reprimir em face das responsabilidades das funções
muito diversas que a vida o levou a exercer.
Outro traço da personalidade de Celso Kelly, que chegava a me causar inveja, era a capacidade que ele tinha de "se desligar", como ele próprio dizia, das
preocupações as mais aborrecidas; ao tomarmos a embarcação de volta ao Rio de
Janeiro, depois de um dia inteiro de trabalho, quase sempre desgastante, na Diretoria de Instrução, em Niterói, ele se nos apresentava como se fosse outra pessoa, sem
quaisquer sinais de fadiga, sempre disposto às conversações amenas, como se estivesse totalmente alheio a todos aqueles problemas que deixara para trás e que,
como ele próprio dizia, só voltariam a existir para ele, no dia seguinte.
Foi a esse homem que os destinos do ensino no Estado do Rio estiveram entregues durante cerca de três anos apenas e onde revelou, além de uma extraordinária
capacidade de trabalho, apreensão rápida dos problemas postos sob sua responsabilidade e busca de soluções cuja criatividade mereceu a entusiástica aprovação dos
mais conceituados educadores, que congregados na Associação Brasileira de Educação, passaram a lhe dar a mais interessante assistência e colaboração.
Basta lembrar, que a 5ª Conferência Nacional de Educação, uma das mais
importantes, promovida pela ABE, foi realizada em Niterói por sugestão de Celso
Kelly, aceita unanimemente pela entidade promotora.
•••
Segundo imagino, pois na fase inicial da administração ainda não participávamos dela, a primeira providência que teria sido posta em prática pelo novo diretor
fora a de dar um balanço geral em todos os serviços subordinados à Diretoria de
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Instrução Pública do Estado, ponto de partida para traçar planos de trabalho para
sua administração. O resultado desse balanço não deve ter sido nada animador, pois
o aparelho de ensino público do Estado do Rio de Janeiro não poderia constituir uma
exceção na desorganização que imperava, de modo geral, em todos os setores da
administração do Estado, dadas aquelas razões históricas já apontadas, e que levaram
a Velha Província a um processo de acentuada decadência, cujo resultado mais visível
era, sem dúvida, a aguda falta de recursos para atender às necessidades de desenvolvimento de seus serviços.
Tudo era enormemente deficiente, tanto do ponto de vista material quanto
do pessoal. O próprio corpo de inspetores escolares, que deveria assessorar o diretor, não apresentava condições de exercer essas funções, de acordo com a nova
orientação que Celso Kelly pretendia imprimir aos serviços de educação do Estado.
E esse foi um dos problemas mais graves que ele teve que enfrentar, pois a maioria
desses inspetores, tal como em outros Estados, era nomeada mais por influência
política do que por qualquer qualificação que apresentasse para o exercício de
cargo tão importante.
A solução radical de afastar dos cargos esses funcionários, sendo mesmo
alguns submetidos a inquéritos administrativos para apuração de supostas irregularidades cometidas no exercício de suas funções, foi considerada por eles de extrema violência, e o era na verdade. Eles nunca se conformaram com ela, o que era um
direito deles, e isso gerou uma permanente atitude de revolta e hostilidade contra
a administração e também contra nós, que os substituímos em seus cargos, sem que
tivéssemos participado, de qualquer forma, na solução que o governo revolucionário do Estado deu ao problema. Quanto a mim, sempre procurei manter as melhores
relações com aqueles ex-colegas, nunca me preocupando com as razões alegadas
para seu afastamento de suas funções.
Mas, eles nunca aceitaram essa situação, e não descansaram, mobilizando
toda a influência política de que dispunham, até que, tendo havido, mais tarde,
uma radical mudança na administração do Estado, conseguiram voltar aos seus
antigos cargos, e mais do que isso, obtiveram o afastamento do novo quadro de
inspetores, que foi submetido a inquérito administrativo, por falta de exação no
cumprimento de seus deveres.
•••
Tomada aquela providência drástica de afastar dos cargos os antigos inspetores escolares, era necessário recompor o quadro, que constituía peça fundamental da administração do ensino, pois é o elo que liga a administração central a cada
parte do sistema escolar, transmitindo a orientação assentada, estimulando o professorado, que deve executá-la, em vista do desenvolvimento do ensino.
E foi aí que Celso Kelly pôs em prática uma idéia muito feliz: ao invés de
realizar um concurso de caráter tradicional, constando de duas ou três provas, para
selecionar os novos asses, resolveu organizar um curso especializado, a ser freqüentado pelos candidatos àqueles cargos, durante o qual seriam submetidos a repetidas provas de aproveitamento e que classificariam, dentro do número de vagas
estabelecidas, os que seriam nomeados para o novo quadro.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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As vagas foram fixadas em número de 14, sendo uma de inspetor geral de
ensino, para o candidato que obtivesse o 1º lugar; 3 para inspetores de ensino
secundário e normal (2ª, 3ª e 4ª colocações) e as 10 restantes para os cargos de
inspetores de ensino primário e profissional.
Resolvida a instalação do curso, Celso Kelly conseguiu de Lourenço Filho,
que então dirigia o Instituto de Educação do Rio de Janeiro, na administração
Anísio Teixeira, a aquiescência para dirigi-lo e, além disso, ministrar a parte principal das aulas que versavam sobre princípios gerais de educação. A escolha não
poderia ter sido mais feliz, pois o nome de Lourenço Filho imprimia à iniciativa um
caráter de extrema seriedade, dado o prestígio nacional de seu nome nos meios
educacionais do País. O curso que o educador paulista deveria desenvolver constava das teorias modernas da aprendizagem e da orientação e da prática do ensino
dentro dos princípios da chamada "escola nova". O professor Isaías Alves, que recentemente se especializara em cursos na América do Norte, incumbiu-se da parte
referente às medidas educacionais, isto é, da verificação dos resultados da aprendizagem, incluindo toda a base estatística necessária à elaboração das chamadas
provas objetivas, para a avaliação do rendimento do ensino e também para os
testes da chamada medida da inteligência. Finalmente, ao professor Alair Acioli
Antunes, do Instituto de Educação do Rio de Janeiro, foi entregue a parte referente
à higiene escolar, incluindo os problemas relativos à construção e à instalação de
edifícios escolares. Como prova final do curso, os candidatos deveriam redigir um
trabalho de maior fôlego versando sobre os problemas específicos da inspeção
escolar, e que constituiria uma verdadeira tese.
O número de candidatos inscritos elevou-se a cerca de 600, incluindo muitos professores primários e diretores de escola, que tinham por objetivo, especialmente, atualizar seus conhecimentos, pela freqüência às aulas do curso.
•••
Tendo tomado conhecimento da realização desse curso-concurso, o que seria efetivado pelos fins do ano de 1932, Ernesto Faria e eu, resolvemos, desde logo,
nos inscrever, com o objetivo principal de melhorar nossa situação financeira, que
continuava bastante precária, apesar da minha efetivação no cargo de professor
das escolas técnicas secundárias no Distrito Federal. Acompanhou-nos também Pedro
Gouvêa Filho, médico, que viera recentemente do interior de São Paulo para tentar
estabelecer-se no Rio de Janeiro e se pusera em contato conosco através de um
anúncio que fizemos publicar nos jornais de um curso que o nosso Instituto Brasileiro de Educação abriria para preparar candidatos ao concurso de inspetores de
ensino do Ministério da Educação, concurso esse que não chegou a se realizar.
Pedro Gouvêa tornou-se depois um dos melhores amigos meus e de minha família,
amizade que se aprofundou através de um convívio de muitos anos em que trabalhamos juntos em várias situações e que só terminou com sua morte.
O curso-concurso era realizado no Liceu e Escola Normal "Nilo Peçanha", em
Niterói, para onde, quase todas as noites nos deslocávamos depois de um dia de
trabalho e cheio de preocupações, que nem sempre nos deixavam a calma suficiente
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
para fazer, com segurança, aquelas inúmeras provas, todas escritas, a que éramos
submetidos, depois de assistir às aulas respectivas.
Nossa situação, na época, era tão precária que muitas vezes até mesmo nos
faltavam recursos para atender às despesas com as passagens de casa, em Botafogo,
até o local do curso e das provas, em Niterói. Creio que, desse ponto de vista, foi
talvez, o período mais difícil que atravessamos na vida.
Ernesto de Faria acabou por desistir de continuar no concurso, e voltou
inteiramente a se dedicar à sua especialidade, que era o ensino do latim, de que se
tornou um mestre consagrado, conforme vimos anteriormente.
Afinal, depois de cerca de três meses desse esforço, que foi o tempo que
duraram as aulas e as provas, foi proclamado o resultado final do concurso. Com
surpresa e grande decepção vi meu nome aparecer exatamente no 14º lugar, o
último, portanto, entre as vagas estabelecidas. Acrescia que, entre todos os candidatos aprovados, era eu o único que tinha experiência e qualificação anterior em
matéria de educação. Mas, por outro lado, meu confronto, conforme verifiquei
depois, fora feito com elementos do mais alto gabarito, pois todos os outros candidatos eram profissionais de nível universitário: médicos, engenheiros, advogados e
até mesmo os professores de escolas superiores entre os quais se destacavam Oscar
Porto Carneiro e Francisco de Oliveira Castro, considerados matemáticos de alto
nível e professores assistentes da Escola Politécnica. A diferença de pontos que me
colocou em inferioridade, verificou-se justamente na parte relativa às questões de
estatística, de base matemática. Tornaram-se depois, todos, meus excelentes amigos e reconheciam em mim o preparo de um educador com uma experiência já
comprovada.
Eram eles, na ordem em que foram aprovados: 1º lugar – 1.843 pontos –
Moisés Xavier de Araújo, médico e meu colega como professor das escolas técnicas
secundárias no Distrito Federal, nomeado inspetor geral do ensino; 2° lugar – 1.842,5
pontos – Waldemar Dias da Paixão, médico; 3° lugar – 1.838 pontos – Otávio Augusto
Lins Martins, engenheiro e estatístico; 4° lugar – 1.829 pontos – Oscar Edvaldo Porto
Carreiro, engenheiro, matemático e professor-assistente da Escola Politécnica do Rio
de Janeiro; esses três, foram nomeados inspetores de ensino secundário e normal; 5°
lugar – 1.827 pontos – Roberto Pessoa, médico; 6° lugar – 1.826 pontos – Milton
Paranhos Fontenelle, engenheiro, professor-assistente da Escola Politécnica do Rio
de Janeiro; 7º lugar – 1.824,5 pontos – Fábio Crissiúma de Oliveira Figueiredo, médico e professor de ensino secundário; 8° lugar – 1.817 pontos – Pedro Gouvêa Filho,
médico; 9º lugar – 1.801,5 pontos – Paulo Celso de Almeida Moutinho, advogado;
10º lugar –1.788,5 pontos – Valério Regis Konder, médico sanitarista; 11º lugar –
1.783 pontos – Francisco Mendes de Oliveira Castro, engenheiro, professor-assistente da Escola Politécnica do Rio de Janeiro e matemático de renome; 12° lugar – 1.773
pontos – Abelardo Coimbra Bueno, engenheiro; 13° lugar – 1.766,5 pontos – Jorge
Barata, médico e, finalmente; 14° lugar – 1.764 pontos – Paschoal Lemme, professor
de ensino secundário, educador. Os dez últimos, conforme estava previsto no regulamento, foram nomeados inspetores de ensino primário e profissional.
Com exceção de Jorge Barata, todos os outros residiam e tinham sua vida
profissional no Rio de Janeiro e esse fato foi mais uma circunstância a agravar a
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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animosidade contra nós por parte dos antigos inspetores afastados dos cargos, pois
nos acusavam de não ter quaisquer ligações com a vida do Estado do Rio de Janeiro
e isso era, sem dúvida, uma verdade.
Mas, de outro lado, havia nessa circunstância um aspecto positivo, pois nos
tornava imunes à ação política que, como se sabe, procurava se imiscuir sempre, em
todos os setores da administração pública, tornando, muitas vezes, a simples transferência de uma professora de uma escolinha do interior, um problema cheio de
complicações e dificuldades.
A nomeação dos novos inspetores sofreu demorado processo de contestação por parte dos antigos titulares dos cargos e seus protetores políticos e, assim,
somente a 14 de março de 1933 puderam os atos ser assinados pelo interventor Ari
Parreiras.
•••
E assim, uma nova fase de minha vida pessoal e profissional se iniciava: a
acumulação de vencimentos dos dois cargos que passava a exercer vinha proporcionar à família uma situação um pouco mais confortável. De outro lado, do ponto
de vista profissional, minha experiência ia se enriquecer num campo que até então
não tivera a oportunidade de conhecer diretamente: a inspeção do ensino, ou seja,
na prática, a supervisão e a orientação do trabalho do professor, quer no âmbito da
sala de aula, quer na parte referente à organização e à administração escolares.
Além disso, tratava-se de uma atividade que devia ser exercida com plena
autonomia e completa responsabilidade nas decisões a serem tomadas, em cada
situação, e em cada caso.
A esse tempo o Estado do Rio de Janeiro estava dividido em dez regiões escolares, cada uma delas devendo ficar a cargo de um inspetor de ensino primário e
profissional. Cada uma dessas regiões era constituída por dois ou mais municípios.
Tendo sido aprovado no último lugar do concurso, fui designado para servir
nos três municípios mais afastados da capital do Estado: Itaperuna, Pádua e Cambuci,
situados na zona mais ao norte, acima do rio Paraíba, estendendo-se até os limites
com o Estado do Espírito Santo. Era uma zona predominantemente agrícola, produtora de café, açúcar e criação de gado. Posteriormente, o município de Itaperuna,
um dos maiores do Estado, foi dividido em três outros. Por essa época, ainda existia,
neste último, um remanescente de quase cangaceirismo, especialmente exercido
pelo roubo de gado.
Nossa função principal era visitar mensalmente as escolas da região a nosso
cargo, lavrando em cada uma dessas visitas um termo, no qual deveriam constar as
condições em que encontrávamos cada estabelecimento, a matrícula e a freqüência de alunos no dia da visita, as irregularidades, porventura, constatadas e as providências que adotávamos ou as que deveríamos solicitar à autoridade superior. Em
breve, porém, começamos a verificar que essas visitas se transformavam numa verdadeira rotina burocrática, adotada desde muito tempo, sem a obtenção de resultados significativos, para a consecução do nosso objetivo principal que era a melhoria
das condições do ensino.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Discutindo o problema em reuniões da inspetoria, que sempre realizávamos,
resolvemos adotar uma nova orientação: se o objetivo fundamental era a melhoria
da qualidade de ensino, ele só poderia ser alcançado realmente com o aperfeiçoamento cultural e profissional do professor, que é, em última análise, o fator decisivo para a obtenção de melhores resultados, isto é, desenvolver os programas
adotados, com o máximo de eficiência, de modo a conseguir o melhor preparo
possível dos alunos, evitando a repetência e procurando fixá-los na escola pelo
aproveitamento que efetivamente obtivessem e pela assistência que recebessem.
E assim foi que, pondo em segundo plano aquelas visitas rotineiras e burocráticas às escolas, passamos à realização de um plano de cursos de aperfeiçoamento dos professores, realizados em locais onde pudéssemos reunir o maior número possível deles, sem prejuízo do andamento normal dos trabalhos escolares.
Esses cursos constavam de uma parte de cultura geral e outra de aperfeiçoamento
de técnicas de ensino, no qual se incluía especialmente a metodologia das várias
matérias que compunham o currículo da escola primária.
Nosso trabalho também não se realizava mais isoladamente, cada inspetor
em sua região, mas por grupos, em que cada um de nós se incumbia de lecionar
uma parte do programa organizado para cada um dos cursos. Íamos assim, em
verdadeiras caravanas, passando o tempo necessário nos locais escolhidos para a
realização dos cursos. Como constituíamos um grupo de pessoas com formação
cultural muito variada e de nível superior, pudemos nos desincumbir, com bastante
eficiência, dos cursos, que iam desde as aulas de conteúdo (português, matemática,
geografia, história, ciências, artes, etc.) até as de modernos métodos de ensino. Essa
iniciativa foi recebida com grande interesse e entusiasmo pelo magistério fluminense,
que se via, pela primeira vez, alvo das preocupações da administração do ensino em
atender às suas necessidades de aperfeiçoamento.
Contra nós, porém, levantou-se acerba crítica dos nossos opositores, que
entre muitas outras inverdades, propalavam que inventáramos esses cursos para
nos livrar dos incômodos das visitas regulamentares às escolas, algumas realmente
muito penosas, em escolinhas longínquas de difícil acesso. Acrescentavam que, com
isso, não prejudicávamos as outras atividades que exercíamos fora do Estado, especialmente no Rio de Janeiro.
Essa última acusação era formalmente verdadeira, pois, realmente, quase
todos nós exercíamos outras funções públicas ou particulares, que passáramos a
acumular com o cargo de inspetor de ensino do Estado do Rio de Janeiro. Eu era um
deles, pois conforme descrevi no capítulo anterior, durante os anos de 1933, 1934
e 1935, desenvolvi intensa atividade como colaborador na administração Anísio
Teixeira, no Distrito Federal, inclusive em cargos de chefia. Minhas atividades nos
dois lados da baía de Guanabara eram, entretanto, da mesma natureza e exercidas
no mesmo sentido e, por isso, tinha perfeitamente consciência de que, de forma
alguma, uma poderia prejudicar a outra.
E assim prosseguimos, sem desfalecimentos, e com toda a determinação em
nossa orientação e em nosso trabalho, que foi se ampliando cada vez mais. Nos
anos seguintes, realizamos nos maiores centros culturais do Estado, verdadeiras
conferências regionais, nas quais, além dos cursos sistemáticos que ministrávamos,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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convidamos personalidades e especialistas para proferir palestras e conferências,
versando sobre assuntos de caráter cultural ou pedagógico. As mais importantes
dessas concentrações foram realizadas nas cidades de Campos, Niterói e Barra do
Piraí, onde reunimos grande número de professores praticamente de todo o Estado,
com resultados considerados como excelentes, nesse trabalho de atualização de
cultura e renovação de métodos de ensino.
Não obstante essas atividades, consideradas por nós da mais alta importância, que aos poucos iam substituindo a apatia reinante entre os professores, mergulhados na rotina e no desalento, por um entusiasmo novo e criador, não abandonamos a função regulamentar de visitar, uma a uma, as escolas em cada uma das
regiões a nosso cargo.
Para mim, ao contrário do que assoalhavam nossos gratuitos detratores,
essas visitas constituíam uma atividade a que me dedicava com toda a satisfação.
Deixar aquela azáfama em que vivia no Rio de Janeiro, embarcar naqueles
trenzinhos, mesmo desconfortáveis, e atingir, depois de muitas horas e até mesmo,
depois de uma noite inteira, aquelas zonas longínquas do norte do Estado, naquele
ambiente inteiramente rural, que aliás sempre me atraiu intensamente, constituía,
para mim, um verdadeiro refrigério, uma confortante mudança.
Além disso, era extremamente gratificante a maneira pela qual éramos recebidos por aquelas professorinhas rurais, verdadeiras heroínas, perdidas naqueles
locais de difícil acesso, trabalhando nas condições as mais precárias, sem a assistência de ninguém, e freqüentemente sendo vítimas de perseguições e até de violência
por parte dos poderosos. Nessas escolinhas faltava um mínimo de requisitos para a
efetivação de um ensino de qualquer espécie: crianças paupérrimas, doentes, tornando o trabalho dessas abnegadas criaturas uma tarefa tremendamente árdua,
inclusive pelas ameaças de toda ordem a que estavam sujeitas, inclusive à resultante da ação da politicagem local, que colocava essas jovens ou idosas educadoras
numa situação de permanente insegurança. Até o simples ato de recebimento dos
parcos salários que lhe eram devidos, tornava-se freqüentemente uma operação
complicada, pelas distâncias que eram obrigadas a percorrer ou pelo fato de ter
que entregar essa incumbência a terceiros, nem sempre muito honestos no cumprimento do compromisso assumido.
Em meio a esse ambiente quase sempre desolador, a chegada do inspetor
escolar constituía um dos acontecimentos mais importantes era a autoridade máxima que, consciente de seus deveres, mais do que avaliar o trabalho realizado
naquelas condições tão difíceis, vinha trazer o apoio e ouvir o rosário de queixas e
reclamações sobre todas aquelas falhas e desconfortos, para os quais, muito raramente, podia prometer soluções rápidas.
Às vezes, deparávamos com situações verdadeiramente dramáticas.
Lembro-me bem que em certa ocasião vi-me diante de um caso que me
chocou bastante.
Chegando à sede da inspetoria, creio que ainda no município de Itaperuna,
recebi um chamado aflito de uma jovem professora que pedia minha ida urgente à
escolinha rural em que trabalhava. Lá chegando, contou-me ela seu drama: como
não podia deslocar-se diariamente para a sede da escola, por causa da distância,
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
era obrigada a pernoitar no prédio do estabelecimento. Não podia, entretanto, descansar com tranqüilidade durante a noite, porque certo indivíduo a assediava, rondando e tentando forçar a porta da precaríssima construção escolar, para atacá-la.
Não pude encontrar outra solução senão transferir a moça para outra escola mais
acessível e tentar conseguir uma colega mais experimentada e menos jovem que
soubesse repelir o assédio do referido elemento.
Em outra ocasião, recebi a recomendação do diretor geral, que na época era
Nóbrega da Cunha (Celso Kelly tinha deixado o cargo pelas razões que conheceremos adiante) para me dirigir com urgência a certa localidade de um dos municípios
sob minha responsabilidade, para resolver um grave incidente em que uma professora era acusada de ter agredido uma aluna, em plena sala de aula.
Chegando à localidade em questão, procurei colher informações sobre o
que realmente ocorrera e sobre a professora acusada, antes de ouvi-la pessoalmente. As opiniões das várias pessoas ouvidas eram contraditórias, mas desde logo
percebi que havia um grande exagero nas queixas que tinham chegado ao diretor
geral. Parecia tratar-se, mais uma vez, da intervenção de elementos, alheios à vida
escolar, e que visavam prejudicar a professora. Chamei-a, por fim, à minha presença, em uma dependência da escola em que o fato ocorrera, para ouvir dela sua
versão do fato. Verifiquei tratar-se de uma pessoa muito jovem, de aparência bastante atraente e que me impressionou favoravelmente, por sua atitude, muito
educada. Relatou-me com a maior simplicidade e com toda a aparência de veracidade que fora rudemente desacatada, durante uma aula, por uma aluna quase de
sua mesma idade, e que reagira energicamente, para manter sua autoridade, fazendo-a retirar-se da sala e suspendendo-a por alguns dias, conforme permitia o
regulamento. Não houvera, porém, em absoluto, qualquer agressão física, como
constava da queixa dirigida ao diretor geral. Estava muito nervosa e temerosa das
conseqüências que poderiam advir para ela do fato. Procurei acalmá-la, aconselhando-a a manter uma atitude da maior discrição. Voltando a Niterói, em relatório
verbal, informei a Nóbrega da Cunha, meu amigo e companheiro na Associação
Brasileira de Educação, que não encontrava qualquer razão para punir a professora, pois o fato em si tinha pouca importância e fora, segundo parece, deliberadamente
deturpado por motivos que não cheguei a alcançar. Propunha assim, apenas, que a
professora acusada fosse transferida para outra localidade, o que foi feito, encerrando-se, assim o caso.
E como esses, uma série de outras ocorrências semelhantes era constantemente trazida ao nosso conhecimento para julgamento e deliberação, desviando
nossa atenção dos problemas que tinham realmente importância, dos quais o principal era a melhoria das condições de ensino e do trabalho dos professores. Eram
fatos resultantes de antigos vícios que assolavam a velha província, especialmente
no interior, onde tudo girava em torno de lutas entre facções que se digladiavam
em vista da conquista do poder político, que proporcionava o gozo de vantagens
aos vitoriosos.
Nas sedes dos municípios e nos principais centros urbanos, a situação era
sempre melhor, pois em geral havia em funcionamento um ou mais grupos escolares, providos de professores com melhor qualificação profissional e dispondo de
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
157
melhores instalações e equipamentos. Nesses estabelecimentos podíamos realizar
um trabalho mais produtivo, de nível mais alto, orientando diretores e professores
no emprego de métodos mais modernos de administração e ensino. E mesmo, em
certos casos, havia até condições para realizar cursos de aperfeiçoamento para os
professores que, por qualquer motivo, não podiam freqüentar os cursos mais completos que realizávamos nos maiores centros.
Assim, por exemplo, aconteceu na sede do município de Cambuci, onde,
com a colaboração da diretora e do corpo de professores, conseguimos reorganizar
completamente a distribuição das turmas de todo o Grupo Escolar, classificando-as
por um critério de maior homogeneidade, de modo a se obter um melhor rendimento para o ensino.
Uma outra providência que sempre facilitava muito o nosso trabalho era a
articulação com os prefeitos dos municípios. Em geral, por verdadeiro interesse e
dedicação funcionais ou por questões de carreira política, havia sempre, da parte
deles, um grande interesse pelas questões do ensino, que sempre proporcionavam
grande prestígio, por ser um dos aspectos da vida das comunidades que tinha o
maior apreço das respectivas populações. O povo, em geral, alimenta uma crença
quase mística no valor da escola como meio de ascensão social, e tem, em parte,
muita razão. E as pessoas que se preocupam em resolver esse problema passam a
desfrutar da confiança das comunidades.
Assim, quando chegávamos à sede dos municípios para iniciar nosso trabalho, procurávamos sempre, em primeiro lugar, entrar em contato com os respectivos prefeitos, que nos forneciam uma informação muito completa sobre as condições das escolas e nos proporcionavam todas as facilidades para melhor cumprir
nossa missão. Um dos maiores auxílios que nos prestavam era fornecer condução
para que pudéssemos realizar as visitas às escolas, principalmente àquelas que se
situavam em locais de difícil acesso.
Outra colaboração que nos era dada e que muito facilitava nosso trabalho,
provinha dos sacerdotes que exerciam sua missão nas localidades em que tínhamos
que agir e que por suas próprias funções dispunham de um conhecimento muito
proveitoso das pessoas e dos problemas das comunidades. Às vezes havia, até mesmo
um interesse específico e muito particular por determinada escola e, especialmente,
por determinada professora, como certa vez, pude constatar da parte de um dinâmico e jovem sacerdote por determinada jovem professora... Fato aliás relativamente
comum no interior, que em nada desabona a obra admirável que a Igreja realiza
junto a essas nossas populações, tão abandonadas desse nosso tão áspero sertão.
•••
Mas, nesse primeiro período de minhas atividades no Estado do Rio de Janeiro, onde consegui resultados mais satisfatórios foi no município de Pádua, em
cuja sede havia um ambiente cultural mais elevado, pois além do grupo escolar do
Estado, funcionava também um ginásio e uma escola normal, mantidos por iniciativa particular, por uma família de raízes tradicionais na localidade, e cujo ensino
podia ser considerado de muito boa qualidade.
158
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
A população local era também muito interessada em todos os problemas da
comunidade e participava ativamente dos movimentos que visassem a melhoria
das condições de vida da região, numa manifestação de um bairrismo muito sadio.
Havia na sede do município uma loja maçônica, um centro espírita, templos protestantes, todos muito ativos.
Dadas essas condições é que foi possível, em memorável reunião na sede da
Prefeitura de que participaram representantes de todas essas entidades, em perfeita confraternização, lançar o movimento para a construção de um novo prédio
para sede do Grupo Escolar, movimento esse que foi coroado de pleno êxito, apesar
do regime de estrita economia em que vivia o Estado.
Foi ainda em Pádua que tive a feliz oportunidade de travar conhecimento
com uma pessoa que deveria se tornar depois um dos meus melhores amigos e
companheiro de trabalho, lamentavelmente desaparecido ainda muito jovem. Refiro-me a Rui Guimarães de Almeida, de tradicional família paduana, sobrinho da
diretora do Grupo Escolar local, que era pessoa dedicadíssima ao seu trabalho e que
se tornou também excelente cooperadora das minhas atividades.
Rui de Almeida vivia hospedado no hotelzinho da localidade, aliás muito
modesto, dirigido por uma figura muito curiosa de italiano que cometia deliciosos
erros de linguagem, o que arrancava dos hóspedes gostosas gargalhadas durante as
refeições. Em dias em que o prato principal era feito à base de vagens, ele se saía
com esta, com a maior naturalidade:
– O dotere non quere comere estas "vaginas"?... Sono belas!...
Rui formara-se em Direito, fez depois carreira política, atividade para a qual
tinha grande vocação, elegeu-se deputado à Assembléia Legislativa do Estado, quando o País voltou ao regime constitucional, em 1934, perdendo depois o mandato,
em conseqüência do golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, que instaurou no
País o "Estado Novo".
Fiquei devendo a Rui de Almeida um extraordinário gesto de solidariedade,
por ter conseguido minha recondução ao cargo de inspetor de ensino do Estado,
quando deixei a prisão política que sofri durante os anos de 1936 e 1937. Esse ato
foi aprovado pelo Secretário do Interior e Justiça na época, doutor Heitor Collet, o
que significou a reconstituição de minha situação funcional e financeira, interrompida pela violência que sofri com aquela prisão e também pelo iníquo processo
administrativo a que nós, inspetores de ensino, fomos submetidos no Estado, após
a renúncia do comandante Ari Parreiras e de seus auxiliares.
Rui de Almeida era uma pessoa dotada de um permanente bom humor,
sempre pronto para desanuviar o ambiente mais carregado com uma anedota ou
um caso, quase sempre envolvendo personalidades do mundo político, com suas
fraquezas, suas mazelas ou mesmo com a manifestação de sua ignorância. Estava
também, quase sempre, envolvido com o belo sexo, de que era um assíduo cortejador,
agindo em completa liberdade, como solteiro que era, vivendo sempre sozinho. Era
também dado ao cultivo das letras, escrevendo crônicas e poesias de muito boa
qualidade. Perdendo o mandato parlamentar, em 1937, e tendo se mudado definitivamente para o Rio de Janeiro, viu-se por essa época, em sérias dificuldades
financeiras. Foi então que tive a oportunidade de poder retribuir tudo o que fizera
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
159
por mim quando me encontrei em situação semelhante. Naquele mesmo ano, quando
deixei a prisão política, auxiliei-o a se preparar conosco a fim de prestar o concurso
para o preenchimento das vagas de técnico de educação do Ministério da Educação, realizado em 1938.
Reunimo-nos, em minha casa da Rua Visconde de Figueiredo, na Tijuca, ele,
Moisés Xavier de Araújo, Pedro Gouvêa e eu, e aí repassávamos o extenso programa
que tinha sido elaborado para o referido concurso. Sempre carinhoso com as crianças, saudava o aparecimento de nossa irrequieta garota, a Maria Lúcia, na época
com uns 6 anos, exclamando:
– Como vai a princesinha da fita azul?
Isso porque certa vez ele a vira com um laço de fita azul prendendo os
cabelos.
Tendo sido aprovado no referido concurso, aproximei-o de Lourenço Filho,
então diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos e quando fui designado para a chefia da Seção de Documentação e Intercâmbio desse Instituto, convidei Rui de Almeida para trabalhar comigo. Inteligente e ativo, passou a dedicar-se
inteiramente aos problemas de educação e ensino, e foi assim que, quando deixei o
Inep e me transferi para o Museu Nacional, Lourenço Filho designou-o para me
substituir na chefia daquela Seção.
Rui de Almeida casou-se tarde com uma admirável criatura, que a ele se
dedicou, inteiramente, quando uma doença insidiosa, transformou-o num inválido,
procurando suavizar seu tremendo infortúnio, até os últimos instantes de sua vida.
Extremamente criativo, de ânimo cativante pela alegria que irradiava permanentemente, bondoso, compreensivo, Rui Guimarães de Almeida, admirável figura humana, foi o primeiro da série de amigos que comecei a perder, um a um, numa
triste sucessão, deixando um vácuo e uma grande saudade, pelo muito que cada
um representava para os acontecimentos e recordações que os ligaram a minha
vida pessoal, emocional, sentimental ou simplesmente profissional.
•••
Ao iniciar-se o ano letivo de 1934, tendo nosso cargo recebido a nova denominação de inspetor regional de ensino, fui transferido para a região que compreendia os municípios de Campos e São João da Barra.
O município de Campos, como se sabe é um dos mais importantes do Estado
do Rio de Janeiro, pelo seu passado senhorial, sua produção açucareira, um dos
sustentáculos da economia do Estado. E como conseqüência desse desenvolvimento econômico, a cidade de Campos tornou-se um dos centros culturais mais importantes da Terra Fluminense. Clubes, associações, comércio intenso e diversificado,
publicações periódicas, entre os quais sobressaía O Monitor de Campos, um dos
mais antigos jornais do País; templos de todos os credos, sendo o mais importante
a imponente catedral que se ergue à Praça São Salvador. Uma rede extensa de
escolas primárias e secundárias, públicas e particulares, tendo no topo, como instituição de educação e ensino, o tradicional Liceu de Humanidades, tudo isso dava à
cidade de Campos uma vida de riqueza e intensidade sob todos os aspectos.
160
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Na rede de transportes, contava-se com os bondes elétricos, de instalação
das mais antigas do País, além do importante entroncamento ferroviário.
Imediatamente em seguida à área urbana, estendiam-se, a perder de vista,
os imensos canaviais com sua paisagem típica, com as enormes chaminés das usinas
de produção de açúcar e os grandes sobrados, as casas senhoriais, cuja opulência
fazia um chocante contraste com a situação de quase miséria em que viviam o
plantador e o cortador da cana, que com seu trabalho extremamente penoso, alimentavam a voracidade das moendas e das caldeiras, cujo produto fazia a acintosa
riqueza dos usineiros.
E, completando o quadro daquela imensa baixada da Terra dos Goitacazes,
corria para o mar, quase em. sua foz o majestoso Paraíba, com suas pontes suas
praias, seus clubes náuticos, para os lazeres dos ricos.
•••
Era nesse novo ambiente, muito mais exigente, de nível cultural muito mais
alto, que as minhas atividades deveriam se desenvolver, nesse ano de 1934.
As diretrizes a seguir seriam as mesmas, naturalmente ampliadas, e para isso
fizemos do Liceu de Campos o centro de nossas atividades. Ali realizamos vários
cursos de aperfeiçoamento, cultural e profissional, para os professores da região,
onde pudemos contar com auditórios que enchiam o maior salão da tradicional
instituição. Para as aulas e conferências foram convidados não somente os colegas
da inspetoria como também personalidades dos meios educacionais, inclusive dos
mais conceituados mestres da Associação Brasileira de Educação, que apoiavam
decididamente nossas atividades.
Nossas aulas tinham que manter o nível mais elevado possível, pois entre os
assistentes encontravam-se sempre elementos dos mais cultos e competentes, quer
do corpo de professores do próprio Liceu, quer de outras instituições culturais e
profissionais da cidade.
Acrescia ainda que nosso comportamento e pontos de vista sobre os vários
temas que abordávamos em nossas aulas ou palestras eram permanentes e cuidadosamente vigiados pelos desafetos gratuitos que adquirimos com a nossa nomeação
para o corpo de inspetores e também pelas atividades que desenvolvêramos até então, opositores esses que estavam sempre prontos a tentar nossa desmoralização por
qualquer falha que, por acaso, viéssemos a cometer. Lembro-me, por exemplo, a verdadeira via crucis sofrida pelo nosso boníssimo colega e, depois, grande amigo, Pedro
Gouvêa Filho, por ter, num dos "termos de visita" que éramos obrigados a redigir
quando terminávamos a inspeção às escolas, cometido na redação um pequeno deslize de linguagem, de que não me recordo, naturalmente pela pressa com que o
documento foi elaborado. Alguém, naturalmente, avisado por algum elemento da
escola, obteve uma cópia do referido "termo", e divulgou-o pela imprensa como
prova de nossa ignorância até mesmo em matéria elementar de linguagem...
E, por fim, nosso cuidado tinha que ser meticuloso até na forma de nos
expressarmos, pois durante esses anos de 1933, 1934 e 1935, como se sabe,
lavrava violenta luta política e ideológica entre posições de "direita" e "esquerda".
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
161
E Campos era, sabidamente, um dos grandes centros de irradiação da doutrina
integralista, e nós, inspetores, éramos, de modo geral, considerados elementos de
"esquerda"...
Mas, apesar de todas essas dificuldades e pressões, os cursos realizados no
Liceu de Campos constituíram um excepcional sucesso. A maioria do professorado
nos apoiava firmemente, não só por sentir nossa completa honestidade de propósitos, como pelo real proveito que obtinham das aulas, quer do ponto de vista cultural, quer sob o aspecto do aperfeiçoamento profissional.
Um dos cursos em que conseguimos melhores resultados foi o que organizamos para preparar professores especializados em educação pré-escolar. Os poucos
jardins de infância que o Estado mantinha eram dirigidos e operados por professores de formação comum para o ensino primário.
Criado, por lei, um quadro separado para professores de jardins de infância,
era necessário preenchê-lo com elementos que tivessem recebido a necessária preparação especializada. Foi esse o objetivo do curso acima referido, no qual, pela
primeira vez, tive que desenvolver um programa completo de psicologia infantil (1ª
e 2ª infâncias), o que me obrigou a um trabalho minucioso e exaustivo, para conseguir uma exposição acessível aos candidatos, muitos dos quais ouviam, pela primeira vez, referências a todas aquelas teorias e doutrinas da psicologia, pedagogia e
filosofia. Resumos mimeografados das aulas eram distribuídos aos candidatos, para
que pudessem melhor acompanhar a exposição, fixar e rever a matéria. No final do
curso, realizadas as provas para a classificação dos candidatos, obteve o 1º lugar
uma professora primária de Campos – Maria Geni Ferreira da Silva.
Nomeada e transferida para Niterói, Maria Geni tornou-se colaboradora em
nossas atividades profissionais e até mesmo companheira de idéias políticas. Extremamente inteligente, fez brilhante carreira nos serviços de educação do Estado do
Rio de Janeiro e do Distrito Federal. Dotada de permanente inquietação, estava
sempre procurando novos caminhos de aperfeiçoamento cultural e profissional.
Esse temperamento instável, entretanto, não poderia nunca lhe proporcionar uma
vida pessoal e íntima muito tranqüila: seu casamento não teve grande duração,
pois sua personalidade forte e irrequieta dificilmente se adaptaria a situações que
não permitissem experiências variadas em todos os aspectos da vida. Perdi-a, mais
tarde, completamente de vista, guardando dela, porém, recordações de momentos
muito agradáveis, de um convívio rico e estimulante.
•••
Além de todo esse trabalho de preparo de cursos, palestras e conferências,
cabia-me, como inspetor de ensino, cuidar de toda a rede de escolas dos dois municípios, que se não me falha a memória, elevava-se a cerca de uma centena, entre
grupos escolares e escolas isoladas.
Essa tarefa era agora, de certa forma, facilitada, pois o inspetor dispunha,
pelo novo regulamento, da cooperação de uma "auxiliar de inspeção", que se incumbia, especialmente, das visitas de rotina às escolas e somente os problemas que
ela não podia resolver é que eram trazidos à consideração do inspetor, na sede da
inspetoria, para estudo e deliberação.
162
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Essas novas auxiliares eram escolhidas, por indicação do inspetor, dentre
diretoras de escolas que revelassem maior capacidade profissional e de trato com
as colegas. Indicada por mim, foi designada para essa função, a professora Alzira
Quitete, de tradicional família campista, competente e conceituada diretora de
escola primária.
Verificando que pouco se podia fazer em relação às escolas isoladas localizadas nas zonas rurais mais distantes, além das visitas de inspeção e de apoio ao
trabalho das professoras, resolvemos concentrar nosso trabalho nos problemas da
rede escolar da cidade de Campos.
Apesar de todo o desenvolvimento da cidade, havia ainda na zona urbana
um grande número de escolas primárias que denominávamos "de sala de visitas",
nas quais, uma única professora se encarregava do ensino de todos os alunos, das
3ª ou 4ª séries, reunidos numa classe apenas e que funcionava, geralmente, na sala
de visitas de um prédio residencial comum. A professora e sua família residiam nas
outras dependências da casa. Freqüentemente, quando visitávamos tais escolinhas,
encontrávamos as respectivas professoras atarefadas em atender, ao mesmo tempo, aos alunos, aos filhos menores, até recém-nascidos, e aos afazeres domésticos.
Muitas vezes, tinha que abandonar às pressas uma aula para correr à cozinha, onde
um cheiro intenso indicava que o feijão estava queimando na panela...
E dentro da própria cidade de Campos havia, numa mesma rua, mais de uma
dessas escolas.
Discutindo esse problema em reuniões sucessivas com as professoras interessadas, procurei convencê-las de que seu trabalho, feito em condições tão precárias, era muito deficiente, e que a cidade já exigia uma organização de ensino com
características mais modernas. Era necessário criar-se um maior número de grupos
escolares, onde os alunos pudessem ser distribuídos pelas várias classes, de acordo
com o adiantamento que revelassem, sendo cada uma dirigida por uma professora,
que assim poderia obter um rendimento melhor para o ensino, em benefício dos
alunos, que era o objetivo visado.
Esse trabalho de persuasão, no qual fui muito ajudado pela auxiliar de
inspeção e por outras professoras mais dispostas a colaborar, aos poucos foi produzindo os efeitos desejados e, de modo geral, conseguimos o apoio da maioria.
Havia, porém, um problema muito sério: com a extinção das "escolinhas de sala
de visitas" e a concentração dos alunos em classes dos novos grupos escolares, as
professoras daquelas escolas isoladas perderiam a moradia, o que lhes acarretaria
maiores dificuldades, além das que já sofriam, pelos parcos salários que recebiam,
pois teriam que arcar com as despesas de aluguel de outras residências. Além
disso, tratava-se, na maioria dos casos, de professoras idosas, com muitos anos de
serviço e muitas com saúde precária e que não poderiam se deslocar para a sede
dos novos grupos escolares a serem criados.
Ponderados todos esses aspectos da questão, a solução mais humana e eqüitativa encontrada foi a de solicitar ao interventor a expedição de um decreto que
concedesse aposentadoria especial às professoras atingidas pelas medidas em questão, mesmo que ainda não tivessem completado o tempo de serviço necessário para
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
163
uma aposentadoria normal. Depois de muitas controvérsias e hesitações, especialmente por parte dos burocratas acostumados a não enxergarem nada além dos textos frios das leis, conseguimos a adesão de Ari Parreiras para o nosso ponto de vista e
o decreto foi finalmente expedido.
Dessa forma, pude concorrer para que a cidade de Campos ganhasse mais uns
quatro grupos escolares, num processo de modernização da organização do ensino,
sem prejuízo das professoras que não puderam ser incluídas na nova situação.
Para mim, pessoalmente, a conclusão feliz de todas essas iniciativas, constituiu
motivo de grande satisfação, por ter podido deixar naquela progressista cidade, verdadeira capital do norte fluminense, a marca de um trabalho eficiente, realizado por
métodos inteiramente democráticos, para conseguir a adesão dos elementos interessados no problema, através de um longo processo de discussão e convencimento.
Algum tempo mais tarde, por ocasião de uma visita de Ari Parreiras ao Norte
Fluminense, em cuja comitiva ele fez questão que eu fosse incluído, pude expor
pessoalmente a ele o alcance do plano que fora desenvolvido para a melhoria do
ensino, que só pôde ser adotado graças à compreensão que ele demonstrou pelo
problema. Ao mesmo tempo, conseguimos recursos para melhorar as instalações
dos antigos grupos escolares e a aprovação de planos para a construção de novos,
a fim de atender ao crescimento da matrícula.
•••
Foi ainda nessa excursão com o interventor, que, pela primeira vez, fui
obrigado a me tornar orador de improviso em praça pública, numa solenidade de
inauguração de um grupo escolar.
Aconteceu, que uma autoridade local, creio que o próprio prefeito, ao inaugurar o novo estabelecimento, em inflamada oração, propôs que fosse a ele dado o
nome de "Ari Parreiras". Terminado o discurso, vejo o comandante Ari Parreiras dirigir-se a mim, e com aquela atitude delicada e quase tímida, que era sua habitual
postura, dizer-me quase no ouvido:
– Agora é sua vez doutor Paschoal! Responda por mim, sugerindo que seja
dado ao novo grupo escolar o nome do almirante Saldanha da Gama, pois, de
forma alguma aceito a indicação do meu nome!
Tomado de surpresa e meio atordoado, atendi à ordem do Interventor, improvisando um discurso em plena praça, em frente ao prédio escolar que era inaugurado. Procurei recordar alguma coisa dos méritos do almirante Saldanha da Gama
e só acordei daquele pesadelo, quando Rui de Almeida, que nos acompanhava na
comitiva, na qualidade de deputado eleito pelo Norte do Estado, veio me felicitar
pelos excelentes dotes de orador que eu acabava de revelar e que eu desconhecia
completamente!
•••
Antes de concluir as evocações desse período em que estive em contato com
essa briosa e culta gente de Campos dos Goitacazes, cuja paisagem típica continua
164
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
sempre muito viva em minhas recordações, não posso deixar de fazer uma referência especial a mais uma figura humana, que, ligando-se a nós, deu-nos um apoio
importante no desenvolvimento de nossas atividades – nem sempre muito bem
compreendidas.
Trata-se de Teobaldo Miranda Santos, mineiro, cirurgião-dentista e que, em
Belo Horizonte, freqüentava as rodas boêmias, de que faziam parte nomes que,
mais tarde, ganhariam importância nacional, especialmente na literatura.
Fixando, depois, residência em Campos, prestou concurso para professor da
cadeira de ciências naturais do Liceu de Campos, onde o fomos encontrar em pleno
exercício de suas funções, na qual granjeou renome de homem culto, estudioso e
excelente professor. Em breve, aproximavam-se de nós os inspetores de ensino,
proporcionando-nos, com seu prestígio, apoio decidido e participando mesmo dos
cursos que ali realizamos. Além disso, tornou-se um excelente companheiro dos
dias em que éramos obrigados a permanecer em sua cidade adotiva, no cumprimento de nossas obrigações funcionais. Em muitas oportunidades, recebeu-nos em
sua casa, obsequiando-nos com esplêndidas refeições, pois era também um apreciador da boa comida.
Numa crise administrativa ocorrida em torno da direção do Liceu, seu nome
surgiu como solução e assim foi nomeado diretor do tradicional estabelecimento,
passando a nos dar um apoio ainda mais constante e efetivo.
Teobaldo, quando o conhecemos, era um descrente, infenso a qualquer
ideologia, e com acentuada tendência pare a vida boêmia.
Mas, aqueles anos de 1933-1935 foram o "período das grandes opções",
conforme assinalou alguém, e, em breve, víamos o novo companheiro mergulhado
numa crise religiosa, que deveria resultar em grandes transformações em sua vida.
O fato culminante de sua conversão ao catolicismo deu-se quando foi indicado para saudar Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Ataíde) que vinha a Campos
para receber excepcionais homenagens, especialmente das correntes católicas e de
direita, pela liderança que assumira nas lutas em torno da nova Constituição de
julho de 1934, em que a Igreja Católica obtivera grandes vitórias, inclusive com a
introdução do ensino religioso como matéria obrigatória no currículo das escolas
de todos os graus.
A solenidade principal da recepção ao líder católico realizou-se dentro da
própria catedral de Campos, onde Teobaldo pronunciou aplaudida oração que significou seu engajamento definitivo nas hostes do catolicismo militante.
Daí em diante, sua carreira de professor e, em seguida, de educador, desenvolveu-se de maneira cada vez mais promissora. Transferiu-se para Niterói e, dentro em pouco, seu nome era lembrado para ocupar cargos públicos nos serviços de
educação, até mesmo no Rio de Janeiro, que, a esse tempo em conseqüência dos
acontecimentos de 1935, já estavam totalmente entregues a elementos representativos das correntes católicas e de direita. O cônego Olímpio de Melo era o
interventor no Distrito Federal, Alceu de Amoroso Lima tinha sido nomeado reitor
da Universidade do Distrito Federal, o coronel Pio Borges era o Secretário da Educação e Cultura da capital do País e assim por diante. Teobaldo foi nomeado para o
cargo de Superintendente da Educação Geral e Técnica e de Ensino de Extensão,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
165
cargo que eu exercera na administração Anísio Teixeira, naquele trágico ano de
1935...
Mas, o grande sucesso de sua carreira aconteceu quando, tendo sido o ensino normal regulamentado em lei de âmbito nacional, Teobaldo teve a feliz idéia de
lançar-se à elaboração de manuais didáticos para o ensino das matérias especializadas
de educação do currículo obrigatório em todo o território nacional: filosofia da
educação, história da educação, sociologia educacional e outros, para as quais
não havia bibliografia em língua nacional. Sendo a maioria das escolas normais
existentes no País dirigidas por entidades católicas, os livros de Teobaldo tiveram
grande aceitação, ocasionando a tiragem de grandes edições dos volumes que
iam aparecendo, o que lhe granjeou grande notoriedade e, naturalmente, sucesso
financeiro.
Por essa época, poucas vezes tivemos a oportunidade de nos reencontrar:
nossos caminhos seguiram direções quase que opostas em matéria de pensamento
filosófico, político e social. Entretanto, quando esses encontros se verificavam, quase
sempre em livrarias onde ambos procurávamos novidades em nossas especialidades, nosso trato mútuo continuava sempre com a maior cordialidade.
Depois, fui, aos poucos, perdendo-o completamente de vista. Vagas notícias
me chegaram, certa vez, que, como resultado do grande sucesso financeiro que lhe
proporcionava a edição de seus livros, resolvera abandonar todos os cargos públicos, comprar uma "fazenda", em local de que nunca tive notícia exata, e dedicar-se
às lides da agropecuária, talvez numa volta nostálgica ao ambiente rural em que
fora criado.
Certo dia, eu não me lembro exatamente quando, casualmente deparei com
uma pequena notícia num jornal sobre sua morte, sem qualquer referência às circunstâncias em que ela se dera. E, imediatamente, veio-me à memória a recordação
daqueles tempos difíceis e fecundos em que trabalhamos juntos em sua cidade
adotiva da terra fluminense, ou das horas de lazer que nos proporcionava, em
agradável convívio em sua residência ou em outros locais amenos, nos quais nos
entregávamos a intermináveis tertúlias, às vezes como simples passatempo, em
outras ocasiões em discussões sérias, de idéias filosóficas, políticas, sociais ou, simplesmente, pedagógicas.
•••
Ainda um registro dessa época, que bem demonstra o ambiente em que se
vivia naquele final de 1934.
Certo dia, saindo do quarto no hotel em que eu estava hospedado, em Campos, deparei no corredor com três figuras espetacularmente paramentadas com os
uniformes e as insígnias da Ação Integralista Brasileira: eram Raimundo Padilha, o
chefe provincial no Estado do Rio de Janeiro; Thiers Martins Moreira, creio que seu
ajudante de ordens, e um terceiro elemento, que não conhecia. Vinham assistir a
uma das concentrações que nosso fascismo caboclo estava realizando em todos os
grandes centros de quase todo o País: a grande tragédia estava se desenvolvendo
em ritmo acelerado, em direção ao desfecho dramático de 1935.
166
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Thiers Martins Moreira, inteligente, estudioso, e que fora adquirindo excelente cultura, tendo, muito tempo depois, se livrado dos pruridos fascistas que o
acometeram naqueles anos da juventude e de "opções extremadas", veio a se tornar excelente professor da Faculdade Nacional de Filosofia, creio que levado por
Alceu de Amoroso Lima, em sua difícil especialidade da língua portuguesa arcaica.
Com ele sempre mantive excelente camaradagem, apesar de nossas posições antagônicas em matéria de pensamento filosófico, político e social.
A última vez que o encontrei, antes de sua lamentável morte prematura, foi,
segundo me lembro, no saguão da Faculdade Nacional de Filosofia, que ainda funcionava no prédio tomado à Embaixada Italiana, ali na Avenida Presidente Antônio
Carlos. O golpe de 1º de abril de 1964 acabava de se consolidar e Thiers,
preocupadíssimo, não escondia seu temor de que teríamos agora muitos anos de
ditadura militar. Sem muita convicção, procurei reanimá-lo em suas apreensões.
Mas, na verdade era ele quem estava com a razão.
O ano de 1934 chegava ao fim. Nele ocorreram acontecimentos da maior
importância no País, sendo o principal, sem dúvida, a volta do regime constitucional com a promulgação da nova constituição de 16 de julho. Esse processo de
reconstitucionalização, naturalmente, incluía a abertura das assembléias legislativas
dos Estados e com ela a rearticulação dos grupos político-eleitorais e das oligarquias afastadas do poder pela Revolução de 1930. No Estado do Rio de Janeiro isso
significava, em grande escala, o restabelecimento dos antigos vícios que entravavam seriamente o funcionamento de métodos de administração mais eficientes,
pela intromissão perniciosa do clientelismo político.
A ação dessas forças em breve entrava em choque com as diretrizes de governo adotadas pelo comandante Ari Parreiras, levando-o por fim a demitir-se do
cargo. Foi substituído, em 12 de novembro de 1935, pelo almirante Protógenes
Guimarães que, ao contrário do antecessor, aliou-se àquelas forças políticas que de
certa forma, dificultavam uma ação mais imune por parte da máquina administrativa do Estado.
Essas alterações acarretaram inclusive a volta aos cargos de que tinham
sido afastados dos antigos inspetores escolares, iniciando-se, então, um processo
de revanchismo contra nós e o nosso trabalho, que acabou resultando em nossa
submissão a inquérito administrativo por ineficiência e falta de exação no cumprimento dos nossos deveres... A acusação mais grave era a mesma de sempre: a
de não visitarmos todas as escolas de cada região sob nossa responsabilidade.
Eu, a esse tempo, já tinha sido transferido para a região de ensino mais
importante do Estado que era constituída pelos municípios de Niterói e São Gonçalo. Naquele ambiente de tensões gerais e específicas do nosso trabalho, pouco
era possível realizar, apesar da inestimável cooperação da auxiliar de inspeção,
professora Ester Botelho Orestes e de meu grande amigo e colega, Moisés Xavier
de Araújo, inspetor geral de ensino.
Stanley Gomes, Secretário do Interior e Justiça e Celso Kelly, diretor da Instrução Pública, tinham deixado os cargos, acompanhando Ari Parreiras em sua demissão. Dessa forma, perdemos completamente o apoio para dar prosseguimento ao
nosso trabalho, dentro da orientação que emanava da própria Diretoria Geral.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
167
Ainda tentamos junto ao almirante Protógenes Guimarães esclarecer os enormes equívocos, incompreensões e os interesses subalternos que estavam impedindo
o prosseguimento de nossas atividades. Ele, entretanto, recebeu-nos de maneira
ríspida e até descortês, o que nos levou à convicção de que o novo Governador
estava completamente envolvido pelos elementos interessados em destruir o trabalho que realizáramos no Estado, em meio das maiores dificuldades.
Discutindo mais minuciosamente o que estava ocorrendo conosco, chegamos à conclusão de que tinha sido muito acertado o Manifesto que lançáramos às
autoridades e ao povo do Estado do Rio de Janeiro, explicando o caráter de nossas
atividades e denunciando o faciosismo e a falsidade das acusações que contra nós
eram assacados. Aliás, o lançamento desse documento, pela linguagem bastante
enérgica que usamos, foi um dos fatores do acirramento dos ânimos contra nós.
Eu e Valério Konder fôramos encarregados pelos colegas de redigir um esboço do documento para ser submetido à apreciação de todos.
Em abril de 1934 era o Manifesto lançado ao público, com os seguintes
títulos: "A Reconstrução Educacional no Estado do Rio de Janeiro" e "Os Inspetores
de Ensino do Estado do Rio de Janeiro ao Magistério e à Sociedade Fluminense".
Na introdução, dizíamos:
Decorrido que é o primeiro ano de nossa atividade como Inspetores de Ensino do Estado do
Rio de Janeiro, para o qual ingressamos através de concurso, na administração Celso Kelly e, ao
iniciar-se o período escolar de 1934, julgamos de oportunidade o nosso pronunciamento de
público, em face dos fatos concretos que exprimem o ambiente educacional fluminense.
Se assim fazemos, obedecemos também a um fim educativo: o que vai escrito se oferece ao
Magistério do Estado e a todos que, de alguma forma, procuraram interessar-se pelo nosso
trabalho, como um documento afirmativo dos conceitos esparsos que nos foi dado defender
durante esse ano, ao sabor do próprio desenvolvimento de nossa atividade.
Sob muitos aspectos, nossa palavra aqui deve ser considerada como uma resposta às críticas que, no âmbito das idéias, suscitamos, porque naturalmente deveríamos suscitar. A ninguém escapa que numa campanha da natureza da que encetamos, pregando uma reforma de
idéias, deva haver, necessariamente, do outro lado, todo um mundo de reacionários, que são
por si mesmos a mais evidente justificativa da própria pregação. O que se contém nesse nosso
gesto é dirigido, pois, a aliados e contrários, nesses últimos se compreendendo a ponderável
massa amorfa dos que ainda se conservam indiferentes, por ser, além de tudo o mais, uma
definição frente à hora social em que vivemos.
Fazíamos, em seguida, um retrospecto histórico da educação desde os seus
primórdios até os dias em que vivíamos então no Estado do Rio de Janeiro. Descrevíamos depois o ambiente que tínhamos encontrado ao iniciar nossas atividades no
Estado. Transcrevíamos o plano geral de reconstrução educacional por nós organizado, aprovado pelo Conselho de Educação Fluminense, que reproduziremos em
seguida, pelo interesse que possa despertar entre especialistas nesses problemas.
Dizia o Manifesto:
Em suas linhas gerais, o plano de ação idealizado pela então Diretoria de Instrução, inspirado nas conclusões indubitavelmente autorizadas da V Conferência Nacional de Educação e
referendada de uma forma expressiva pelo Conselho de Educação Fluminense, pode ser sintetizada nos seguintes itens:
168
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
1º – A educação não se limitará às escolas primárias comuns para crianças, portanto, além
de ser necessária nos diversos graus, precisa estender-se a adultos que não mereceram até hoje
nem o ensino elementar de letras, nem qualquer preparação técnica para o trabalho.
O item primeiro do plano estabelece quatro grandes esferas de ação:
a) a educação comum sistemática para as gerações novas;
b) a educação especializada para débeis e defeituosos;
c) a educação intensiva destinada a adultos analfabetos;
d) a educação emendativa para delinqüentes.
2° – A progressão em três graus: o elementar, com a iniciação profissional; o secundário,
com a preparação profissional; o universitário, com a especialização profissional, para a correspondente formação do aprendiz, do obreiro e do mestre, e no domínio da atividade profissional
em geral.
3º – A educação integral do indivíduo com respeito às suas aptidões e conformidade com as
necessidades regionais, assentando a estrutura da educação na organização do trabalho.
4º – A transformação de todas as escolas em centros permanentes de atividade e a ampliação da ação educacional, a partir das instituições pré-escolares.
5º – A socialização absoluta da escola, com as organizações complementares e a prática do
trabalho.
6º – O livro, a imprensa, o cinema e o rádio como fatores de divulgação.
7º – A localização racional das escolas, atendendo-se à distribuição da população, às condições de climas, ao acesso, em geral, à rede de transportes e à situação econômica da região.
8° – A formação do professorado e a segurança da carreira do professor.
Continuava o documento descrevendo o desenvolvimento que foi dado ao
plano, a ação da Inspetoria, o curso de férias, a matéria da pregação e por fim as
conclusões.
Terminava com as seguintes afirmações, sem dúvida, extremamente radicais,
mas que refletiam bem o ambiente em que se vivia naquele período conturbado da
vida nacional:
Escola ativa, progressiva, socializada, única, pública, obrigatória, gratuita, mista e leiga...,
belíssimo programa, mas não para uma democracia liberal por definição, mas capitalista de
fato... porque incompatível com sua própria vida, principalmente no Brasil.
E é por isso mesmo que nós, dentro de nossa pregação, não nos limitamos a uma revisão de
métodos de ensino, nem ficamos na divulgação das idéias doutrinárias que geraram esses métodos.
Tivemos a coragem de dizer claro à sociedade fluminense que a renovação que propúnhamos estava muito mais fora do que dentro da escola; dependia muito menos da compreensão
que sobre o assunto pudesse ter o mestre do que da consciência social que possuísse a massa
laboriosa do Estado do Rio.
E só nesse sentido continuaremos, integrados que estamos no pensamento da alta administração do Estado.
Temos a consciência tranqüila pela certeza de que estamos na verdadeira trilha que nos
levará a uma renovação escolar, que essa é a nossa função técnica.
Ao nosso lado forma quem quer; não coagimos ninguém, pela razão clara de que não nos
interessa o número e sim o estado de ânimo dos que desejem cooperar conosco em uma obra
que não nos pertence, que a ninguém pertence, porque ela faz parte integrante do pensamento
do nosso século.
•••
Afastado do cargo, pelas razões já apontadas, e depois impedido de reassumi-lo
quando terminou o "inquérito", que nada apurou nem podia apurar contra nós, por ter
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
169
sido preso em conseqüência dos acontecimentos de novembro de 1935, somente
em meados de 1937, pude voltar ao exercício de minhas antigas funções no Estado
do Rio de Janeiro. E foi nessa oportunidade que recebi, conforme já ficou relatado,
a ajuda inestimável de Rui Guimarães de Almeida, que gozava então de influência
política no Estado.
Minha permanência no cargo foi porém de curta duração. A 10 de novembro de 1937 era instaurado no País o chamado "Estado Novo", e a "Constituição"
então outorgada não permitia a acumulação de cargos públicos. Em 10 de dezembro daquele ano, todos os funcionários que estivessem nessa situação eram obrigados a optar por um dos cargos: e minha escolha recaiu no de professor das escolas
técnicas-secundárias do Distrito Federal, por ser o mais antigo e fazer jus a uma
remuneração mais alta.
E novamente nos foi imposto um período de dificuldades financeiras, a mim
e a todas as outras pessoas que mantinham um razoável padrão de vida resultante
da possibilidade de acumulação de vencimentos de duas ou mais funções públicas.
Minha situação só veio a melhorar de certa forma quando, em 1939, ingressei no quadro de técnicos de educação do Ministério da Educação, cujo salário era
mais compensador.
A nova reconstitucionalização do País, em 1946, e a promulgação da Constituição de 18 de setembro desse ano, mais uma vez veio modificar minha situação
funcional, pois dispositivo expresso das disposições transitórias da Carta Magna de
1946 permitia a recondução a cargo público perdido em conseqüência da "Constituição" do "Estado Novo".
A esse tempo, porém, o antigo cargo de inspetor de ensino, que exercêramos
fora extinto e substituído pelo de técnico de educação.
Fomos então, eu e meus antigos colegas, declarados em disponibilidade remunerada, de acordo com a lei, até que pudéssemos ser aproveitados em funções
compatíveis com a nossa capacidade. Evidentemente, foi essa uma medida capciosa
da administração do Estado, pois deveríamos ser imediatamente aproveitados nas
funções de técnico de educação que substituíra a de inspetor de ensino, cargo que
obtivéramos por meio de concurso público. Mas as insondáveis intenções da politicagem e da burocracia nos deixaram durante seis anos sem qualquer função. Somente em 1952 nos foi oferecida a regência de cadeiras do currículo do ensino
normal, de acordo com as nossas aptidões e preferências. E foi assim que, por ato
de 6 de maio de 1952, do então governador do Estado do Rio de Janeiro, Ernani do
Amaral Peixoto, era eu aproveitado no cargo de professor de ensino normal, na
cadeira de História e Filosofia da Educação.
Essa nova situação foi de grande utilidade para mim, pois, para preparar o
curso que deveria ministrar às alunas da 3ª série (última) da Escola Normal de
Niterói, tive que rever e sistematizar todos os meus conhecimentos da matéria, que
eram então esparsos, apresentando grandes falhas.
Atirei-me com o máximo de determinação ao estudo, completando minha
bibliografia e minha biblioteca, vencendo em pouco tempo minhas deficiências e
me sentindo plenamente seguro para assumir as novas responsabilidades que me
tinham sido impostas. Cheguei mesmo a iniciar a redação de um manual, em nível
superior, para o estudo da matéria em questão, plano que não pude realizar.
170
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
De outro lado, foi muito estimulante essa volta ao ensino, depois de tantos
anos de trabalho nos serviços centrais de administração da educação e na inspeção
escolar e acima de tudo o contato com a juventude naquela turma de professorandas
da Escola Normal de Niterói. Eram cerca de 40 moças das quais, como sempre
acontece, havia mais ou menos um terço muito interessado nas aulas, um terço um
pouco menos, e um último terço quase que completamente sem qualquer disposição para acompanhar o ensino que eu procurava transmitir.
A matéria era relativamente difícil, dadas às deficiências do preparo que a
maioria possuía, especialmente na parte referente à filosofia da educação. Seus
conhecimentos de história geral eram também muito deficientes e isso dificultava
o entendimento da história da educação.
Minha técnica era deixá-las completamente à vontade, exigindo apenas das
que não demonstrassem interesse pela matéria que não perturbassem a aula com
conversas em tom muito alto.
E dizia-lhes mesmo:
– Vocês vão ser professores no próximo ano, e reconheço que, para enfrentar os problemas
que vão encontrar imediatamente, precisam de um bom preparo nas matérias que vão ensinar
e sua metodologia e também os conhecimentos indispensáveis de psicologia da criança e da
aprendizagem – esse é o feijão-com-arroz, o cardápio obrigatório de todos os dias. Enquanto
que a história e mesmo a filosofia da educação podem ser consideradas como uma espécie de
sobremesa que vocês poderão saborear ou não... Vocês terão que fazer provas de aproveitamento nessas matérias, de acordo com o regulamento, e por isso, procurarei organizá-las da
maneira mais simples a acessível. Penso mesmo que a matéria a meu cargo, poderia ser lecionada com maior proveito em cursos de aperfeiçoamento. Mas temos que cumprir a lei.
Organizei, realmente, as provas parciais obrigatórias, de forma a poderem
ser vencidas razoavelmente, até mesmo pelo grupo menos interessado na matéria. Mas, apesar disso, algumas alunas desse grupo demoravam excessivamente a
responder às questões, até que, esgotado o tempo regulamentar, vinha pedir, de
maneira muito feminina, minha tolerância e ajuda, o que, naturalmente sempre
conseguiam.
Não foi longa, porém, minha permanência no ensino normal no Estado do
Rio de Janeiro. Dentro em pouco, completava o tempo de serviço necessário à
minha aposentadoria e, um pouco mais tarde aposentando-me também nos outros
dois cargos públicos que exercia no Distrito Federal e no Ministério da Educação e
Cultura, tive que optar por duas das aposentadorias, e assim deixei definitivamente
o Estado do Rio de Janeiro.
•••
Minhas relações com os problemas de educação da terra fluminense, que
começaram por motivos de ordem prática, como um casamento de conveniência,
acabaram por se transformar não somente num extraordinário aprofundamento
de minha experiência profissional, mas acima de tudo, como um enriquecimento
inestimável de minha vida pessoal e íntima, através das relações que travei com
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
171
algumas admiráveis criaturas humanas que, vivas ou mortas, continuam sempre
presentes em minha saudade e em minhas melhores recordações. Não posso, por
isso, deixar de relembrar, aqui, nestas Memórias, os nomes das que mais profundamente me tocaram, por sua amizade e por suas qualidades excepcionais: um Rui
Guimarães de Almeida, um Teobaldo Miranda Santos, um Pedro Gouvêa Filho, um
Valério Konder, um Celso Kelly, um Moisés Xavier de Araújo, e estas extraordinárias
mulheres, dedicadas amigas e colaboradoras, Maria Geni Ferreira da Silva e Ester
Botelho Orestes.
•••
Nessa minha passagem pelas coisas do ensino do Estado do Rio de Janeiro,
em meio a tantas lutas e vitórias, derrotas e alegrias, não poderiam ficar esquecidos, dois acontecimentos de grande dramaticidade.
Para chegar ao nosso local de trabalho na cidade de Araribóia, naturalmente, usávamos aqueles ronceiros e pitorescos barcos da velha Companhia
Cantareira de Viação Fluminense. Durante essas viagens, de 25 minutos a meia
hora, coisas das mais inesperadas aconteciam: ora um náufrago, que tinha que
ser "pescado", em meio à expectativa de toda aquela população flutuante, que
compreendia desde os peixeiros mais humildes, até as mais altas autoridades do
Estado; ora era o abalroamento iminente, com outra embarcação, evitado na
última hora pela perícia do mestre; ou, nos dias de inverno, os apitos prolongados, em meio ao nevoeiro..., que sei mais... Certo dia, porém, fui eu próprio o
protagonista de um episódio que quase me levava para o outro mundo. Vínhamos nós, um grupo de inspetores, de Niterói para o Rio, acompanhados por
Teobaldo. Já tínhamos pisado o velho flutuante, quando o último apito da barca anunciou que ela ia desatracar imediatamente. Como sempre faziam os retardatários, em desabalada correria procuravam atingir a embarcação. Naquele
dia, éramos uns deles e acompanhamos a carreira: dois de nós, creio que Moisés
e Valério Konder, conseguiram pular para dentro da barca, mas eu, mais atrás,
com a velocidade em que vinha, não pude mais alcançar o chão molhado do
veículo e precipitei-me em pé, diretamente dentro da água, entre o flutuante e
a barca, que já se afastava. Foi um momento dramático, mas, como por essa
época, morando ainda na Zona Sul, nadava freqüentemente, estava em boa
forma, e consegui me equilibrar na água, apesar de vestido, pois as roupas eram
de brim leve. A barca, ainda quis voltar para me "pescar", mas eu, já refeito do
primeiro impacto, e querendo evitar o "vexame", ainda pude fazer sinal para o
mestre de que não precisava me "salvar". Com muito esforço, consegui subir
pelas estacas do flutuante e atingir o chão, onde me esperavam muitas pessoas
e também o Teobaldo que não conseguira também embarcar. Refugiei-me nos
fundos do bar anexo à estação das barcas e ali fiquei até que as roupas secassem o suficiente para me dar uma aparência razoável que me permitisse continuar a viagem para o Rio. Fui direto para casa e ali pude dissimular o que
acontecera. Só muito tempo depois, meus familiares vieram a saber do ocorrido. Estávamos no ano de 1934.
172
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
O outro episódio revestiu-se de maior dramaticidade, pois, constitui-se enorme tragédia. Corria o mês de agosto de 1954. Minha aula de história de educação
ia, em meio, na Escola Normal de Niterói. De súbito, entra na sala uma funcionária
da secretaria da escola, bastante nervosa, e comunica que o presidente da República tinha morrido e as aulas tinham sido suspensas. Grande agitação estabeleceu-se
entre as alunas e uma delas chorava convulsivamente: era a filha de um barbeiro de
Getúlio Vargas. Pouco depois, grupos de professores e alunos comentavam nos
corredores o acontecimento, e já agora se recebera a informação sobre o que realmente acontecera: Getúlio Vargas suicidara-se com um tiro no coração,
inconformado com a situação que se criara para ele pela imposição da renúncia à
presidência da República, feita pelos chefes militares, depois de toda aquela agitação provocada pelo atentado contra Carlos Lacerda.
Voltei ao Rio, encontrando a cidade em verdadeiro estado de revolta, com
grupos populares desfilando aos gritos de protestos, incêndios de jornais
antigetulistas, discursos inflamados de parlamentares... Depois foram aqueles dias
trágicos registrados pela história do País.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO IX
OS TEMPOS AGITADOS
E DIFÍCEIS DAS OPÇÕES
EXTREMADAS (1933–1935)
Duas características, segundo me parece, foram
sempre dominantes em minha personalidade: uma forte
tendência para a oposição, para a contestação, e um marcado sentimento de repulsa à injustiça ou à humilhação,
feitas a mim ou a quem quer que fosse, em minha presença, ou de que viesse a tomar conhecimento.
Lembro-me muito bem de certa ocasião em que,
quando era menino de escola primária, desafiei um colega bem mais velho e muito mais forte fisicamente do
que eu, que costumava infernizar a vida dos menores,
com brincadeiras estúpidas e humilhações insuportáveis.
Surpreso com minha inesperada reação, o Odilon, moderou-se um pouco, daí em diante.
Evidentemente, essas características não eram
resultantes, apenas de um temperamento que se pudesse considerar inato. Elas se desenvolveram e se afirmaram pelas influências que recebi no ambiente em que
fui educado. Meu pai, conforme vimos, foi um calabrês
garibaldino que, ainda muito jovem, praticamente sozinho, em terra estranha, com excepcional determinação,
conseguiu elevar-se de uma situação econômica e social
extremamente modesta, até uma qualificação cultural e
profissional de nível superior. Em sua pátria adotiva, acostumou-se e nos acostumou a acompanhar os mais importantes acontecimentos políticos e sociais, com todo
o interesse, mas sempre comum agudo espírito crítico.
Basta relembrar que foi um leitor diário do Correio da
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Manhã, desde sua fundação. Educado na fé católica, abandonou-a completamente,
convertendo-se ao espiritismo e adotando uma posição francamente anticlerical, que
muito nos influenciou. Até mesmo sua saída de casa, foi ato extremo de coragem.
Minha mãe, frustrada em suas aspirações de se tornar professora, enfrentou
a criação e a educação de 12 filhos, quase sempre em condições bastante difíceis.
Acompanhava também, com grande interesse, o desenrolar dos acontecimentos
que se sucediam à sua volta, comentando-os, freqüentemente, com expressões que
nada tinham de conformistas, como acontece geralmente com as mulheres. Quase
no fim da vida, com mais de 80 anos, lia os jornais, cuidadosamente, apesar das
deficiências da visão, e, mostrava-se sempre muito bem informada sobre as principais ocorrências políticas e sociais. Encontrava sempre uma palavra apropriada para
cada um de nós, seus filhos, demonstrando que estava muito mais a par do que
poderíamos imaginar, das dificuldades que alguns de nós enfrentávamos, em razão
de problemas de família ou de envolvimento com sérios problemas políticos.
Recebendo tais influências, não era pois de estranhar que aquelas características de oposição e repúdio a humilhações e injustiças se desenvolvessem e se
tornassem traços dominantes de nossas personalidades, minha e dos irmãos.
O desprezo pelo exercício de cargos públicos, que significa, para meus pais,
uma subordinação ao poder, com a conseqüente perda da liberdade – o bem mais
precioso da vida – , era outra manifestação desse espírito de independência. Eu,
pessoalmente, tive que lutar bravamente para vencer essa concepção de liberdade
e me tornar professor de ensino público. E a oposição ao meu casamento, por parte
de meu pai, fez-me sair de casa em atitude de rebeldia.
Em minha longa carreira profissional, esses traços marcantes de meu
comportamento manifestaram-se sempre de maneira decisiva, provocando mudanças, algumas bastante significativas, nos rumos de minha vida. Os atritos
com o inspetor Deodato, fazendo-me abandonar uma situação de relativo prestígio, logo no início de minhas atividades, como professor de ensino primário,
foi uma das primeiras manifestações de inconformismo com as situações que
não julgava corretas. Seguiram-se, posteriormente, muitos episódios semelhantes
e que já foram narrados em passagens anteriores destas Memórias e em muitos
outros que aparecerão em capítulos futuros. Inclusive, a deliberação de deixar
definitivamente, o serviço público, ao completar o tempo de serviço necessário
para a aposentadoria, quando estaria em condições de continuar a trabalhar,
resultou, em grande parte, do propósito de não compactuar com as situações
que considerava de completa desorganização e decadência nos setores da administração pública em que atuava. A última aposentadoria que requeri e obtive, a do cargo de técnico de educação do Ministério da Educação e Cultura, foi
por ter me incompatibilizado totalmente com a orientação, ou melhor, com a
desorientação que passou a reinar naquele ministério, especialmente depois
que Jânio Quadros foi eleito presidente da República, por um lamentável equívoco de uma expressiva maioria do eleitorado brasileiro da época. O ato de
minha aposentadoria, no referido cargo, foi assinado por ele próprio, a 17 de
agosto de 1961. A renúncia deu-se uma semana depois. Saí, portanto, na hora
certa.
176
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Também em outros locais ou instituições em que exerci atividades, meus
pontos de vistas eram sempre defendidos sem a preocupação de agradar ou desagradar quem quer que fosse. Na Associação Brasileira de Educação, por exemplo,
onde fui eleito por várias vezes membro do Conselho Diretor, em muitas oportunidades fiquei praticamente sozinho contra a quase totalidade de meus companheiros, em discussões dos assuntos em pauta. Certa vez, esse meu comportamento ia
gerando um grave incidente, felizmente depois contornado. Exercia na época a
presidência da ABE o marechal reformado Mário Travassos, aliás contra o meu
voto, pois achava que, dada sua formação e sua pouca familiaridade com os problemas que preocupavam a Associação e o ambiente ali reinante de plena liberdade
de manifestação do pensamento, sem quaisquer restrições, segundo me parecia,
não seria ele a pessoa mais indicada para exercer a presidência. Esse meu ponto de
vista nada tinha de pessoal, pois sabia ser o marechal Mário Travassos um dos mais
cultos e conceituados elementos de nosso Exército, autor de obra importante, e
além disso, era pessoa de trato extremamente educado e amável. Acontece, porém,
que certa vez, discordando de uma proposição de sua iniciativa, feita ao Conselho
Diretor (não me recordo de seus termos e alcance), manifestei-me contra m a liberdade e a veemência habituais que punha em minhas intervenções. Comecei a perceber, desde logo, que o marechal-presidente estava interpretando minhas opiniões quase que como uma agressão pessoal, pois a verdade é que, por mais polidos e
experientes que sejam os militares, de modo geral, mantêm preconceitos contra
nós os paisanos, que consideram no mínimo, como elementos indisciplinados natos
e pouco propensos a cultivarem as verdadeiras virtudes de patriotismo de que eles
se consideram os únicos depositários autênticos...
Contornado no momento o incidente, recebi , entretanto, no dia seguinte,
um chamado para me encontrar com o marechal, em hora marcada, pois ele queria
ter comigo uma conversa a sós. Ao receber-me, numa das dependências da própria Associação, percebi desde logo que iria receber uma espécie de advertência
de superior para subordinado, pelas expressões que usara na véspera em defesa
de meus pontos de vista em relação ao problema em discussão. Não o deixei,
porém, prosseguir no tom que se dispunha a adotar na conversa. Disse-lhe que,
como membro do Conselho Diretor, eleito pela Assembléia Geral da Associação não
abria mão dos meus direitos consagrados em nosso estatuto, de opinar livremente
sobre qualquer assunto que fosse submetido à discussão naquele órgão máximo da
direção da ABE. Ao presidente ocasional cabia justamente assegurar essa liberdade
de expressão, que, talvez ele desconhecesse, era um dos títulos de que a velha
entidade mais se orgulhava. Acabamos por nos entender, pois ele sentiu perfeitamente minha firmeza, sinceridade e honestidade de propósitos. Confessou-me, então, ter ficado bastante chocado com minha intervenção, a ponto de começar a se
sentir mal, pois sofria de males cardíacos. Desculpei-me, então, pois desconhecia
completamente tal circunstância e se dela tivesse conhecimento moderaria, sem
dúvida, minha costumeira veemência, que aliás já era bem conhecida de meus companheiros, que sabiam tratar-se apenas de um traço pessoal de temperamento,
resultante contraditoriamente de um esforço de compensação de minha timidez
nata. Acabou por me declarar que somente suas convicções espíritas fizeram com
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
177
que não tivesse adotado medidas de ordem mais enérgicas contra mim... Mas, ao
lhe responder que também tivera um largo contato com a doutrina espírita, através
das atividades de meu pai, que chegara a ser elemento de certa influência nas
hostes do credo de Allan Kardec, todo o mal entendido se desfez, por encanto. E daí
em diante, nossas relações tornaram-se plenamente satisfatórias.
•••
Mas, foi, sem dúvida, em relação às questões de caráter político e social que
esse meu espírito contestatório, de ânsia de liberdade e procura permanente da
justiça entre os homens, me levou a caminhos mais difíceis e inesperados.
Mal saído da infância a pregação civilista de Rui Barbosa me tocava profundamente. Os violentos debates ocorridos durante a "República Velha", já na
juventude, no Parlamento ou na praça pública, pelos grandes tribunos, tais como
um Irineu Machado, um Adolfo Bergamini, um Barbosa Lima e, principalmente,
um Maurício de Lacerda, os editoriais veementes do Correio da Manhã, de Edmundo
Bittencourt, da Crítica, de Mário Rodrigues, e as charges políticas da Careta,
faziam-me vibrar de entusiasmo.
Os movimentos armados dos "tenentes", de 22 e 24, e em seguida, a epopéia
da Coluna Prestes, que se erguiam contra os desmandos da Velha República, repercutiam intensamente em nossas almas de moços, ainda cheias das mais puras ilusões cívicas. Por fim, a Revolução de 1930, em que vieram convergir,
avassaladoramente, todas as correntes de oposição do antigo regime, foi recebida
por nós, os moços, com insopitável entusiasmo, apesar de, no meu caso particular,
estar desempenhando, então, funções públicas de confiança de autoridades do
governo derrotado, circunstância essa que, conforme foi relatado, causou-me não
pequenos dissabores. Nesse período ainda, lembro-me, que tendo havido eleições
para a Assembléia Legislativa nos Estados e no Distrito Federal, meus votos foram
dados ao chamado Bloco Operário e Camponês, constituído por organizações de
oposição de esquerda, existente na época, inclusive, do Partido Comunista.
Pouco depois, entrávamos nos tempos agitados e difíceis das opções extremadas.
•••
Parece que há um consenso bastante generalizado de que a humanidade, a
partir da 1ª Grande Guerra Mundial (1914-1918), ou mais precisamente, desde a
consolidação da Revolução Socialista Russa de 1917, entrou num processo crônico
de crise - econômica, política e social - de que não mais se refez, até os dias de hoje.
Sobre as causas determinantes dessa situação, já não há um acordo tão
completo, mas, para mim, a corrente de opinião que mais se aproxima da verdade
histórica é aquela que afirma que a origem fundamental da deflagração desse
processo, foi a luta que veio se travando, desde aquele acontecimento, entre o
regime econômico, político e social denominado capitalismo, prevalecente nas áreas mais desenvolvidas do mundo, e o novo, que se estabeleceu na Rússia, naquele
ano de 1917, denominado socialismo.
178
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Essa luta veio assumindo, no decorrer de todos esses anos, aspectos muito
diversos, em intermináveis marchas e contra-marchas, com características próprias
em cada região do mundo. Por fim, chegamos, depois da 2ª Guerra Mundial (19391945), a uma verdadeira bipolaridade, estabelecida entre as duas grandes superpotências mundiais – Estados Unidos da América do Norte e União Soviética – a
primeira dirigindo a luta pela permanência do regime capitalista e a segunda, pela
extensão do socialismo a todo o mundo. E quando se aprofunda o estudo dessa
crise, em qualquer região do planeta, acaba-se sempre por encontrar na base, o
conflito, mais ou menos agudo, entre os partidários de um ou de outro desses
regimes.
Os reflexos dessas lutas, como sempre aconteceu, deveriam chegar até nós,
quer pela nossa situação de desenvolvimento dependente, quer por ser impossível
criar muralhas intransponíveis entre os povos, idéias e concepções, principalmente
nos dias de hoje, em que os meios de comunicação instantâneos transformaram a
terra na "Aldeia Global" de que fala MacLuhan.
Entre nós, houve um período, que se estendeu, aproximadamente, dos anos
de 1932 a 1937, em que esses conflitos assumiram um caráter particularmente
agudo. E nessas épocas, como é notório, as pessoas interessadas mais de perto por
esses problemas, ou ameaçadas em seus interesses pelos possíveis desfechos dessas
lutas, têm a tendência natural e compreensível de assumirem posições radicais:
"Quem não é militante quando a civilização está em crise e as nações se defrontam,
por isso, com a revolução social?", pergunta o sociólogo Florestan Fernandes, em
certa passagem de seu trabalho Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina, que considero como um dos enfoques mais próximos da verdadeira
realidade da situação dessa região do mundo, e, portanto também do Brasil, com as
diferenças das características peculiares ao desenvolvimento de cada país.
E eu, com as características de personalidade que procurei definir no início
deste capítulo e com o profundo interesse que sempre demonstrei por essas questões, desde quase a infância, não podia fugir à regra.
•••
Creio que a memória não me trai, dizendo que foi Alberto Carneiro Leão
que, pela primeira vez, me pôs em contato mais profundo com as concepções e a
literatura marxistas. Ele, que nunca militou em qualquer partido político, era irmão
de Antônio Carneiro Leão, diretor da Instrução Pública do Distrito Federal, no governo Arthur Bernardes, e de quem recebi, como disse antes, em 1924, a primeira
nomeação para o serviço público, no cargo de professor adjunto de ensino primário. Seu outro irmão, Josias, foi durante muitos anos membro do Partido Comunista
do Brasil e afastando-se das fileiras desse Partido, ingressou na carreira diplomática, onde teve brilhante desempenho, galgando todos os postos.
Conheci Alberto Carneiro Leão quando, em 1930, na administração Fernando
de Azevedo, prestou concurso para a cadeira de inglês das escolas técnicas-secundárias do Distrito Federal e foi designado para ter exercício no curso noturno da
Escola de Comércio Amaro Cavalcanti. Conforme já referi, eu era vice-diretor dessa
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
179
escola e também professor de matemática daquele curso. Alberto Carneiro Leão, de
tradicional família pernambucana, era casado com dona Letícia, irmã de Barbosa
Lima Sobrinho, jornalista de renome, e que depois seria eleito governador do Estado de Pernambuco, dedicando-se também a estudos de caráter histórico e político,
considerados de grande valor. O casal Alberto e Letícia entrou no círculo de nossas
amizades mais chegadas, relações que se prolongaram durante muitos anos. Em
1940, Alberto Carneiro Leão obteve uma "bolsa de estudos" para aperfeiçoamento
em língua inglesa, na Universidade de Michigan, nos Estados Unidos da América do
Norte, a mesma que me concedera distinção semelhante, no ano letivo 1939-1940,
para graduação em educação. Terminado o período de estudos em Michigan, Alberto
conseguiu o prolongamento de sua permanência nos Estados Unidos, chegando
mesmo a trabalhar, como tradutor, para o governo norte-americano, durante a 2ª
Grande Guerra Mundial. Voltando ao Brasil, pouco depois falecia dona Letícia, e
nossas relações foram esmorecendo, até um quase completo afastamento.
A princípio, não prestei maior atenção às referências que Alberto Carneiro
Leão fazia sobre as concepções econômicas, políticas e sociais dessa corrente de
pensamento que recebe a denominação genérica de marxismo.
Só algum tempo mais tarde, lá pelo ano de 1932 e, principalmente, a partir
de 1933, influenciado pelos acontecimentos político-sociais que vinham se desenrolando no mundo e no País, é que comecei a me interessar mais de perto pelo
estudo dessas questões. Creio que, por essa época, li o Manifesto comunista e algum resumo de O Capital, a obra fundamental de Karl Marx, e confesso que essa
leitura me causou um grande impacto. Pareceu-me que tinha encontrado a chave
que desvendava as causas da situação a que chegara a humanidade e, mais do que
isso, dos instrumentos lógicos e operacionais que poderiam levar os homens a encontrarem os caminhos e os meios que conduziriam à realização dos anseios que eu
sempre alimentara de justiça social e, especialmente, da abolição da exploração do
homem pelo homem, que criava a situação de uma minoria se apropriar da maior
parte da riqueza produzida pela maioria, deixando esta, em certos casos, mergulhadas na mais extrema miséria.
Em seguida, fui tomando conhecimento de quase toda a literatura sobre as
idéias marxistas, a Revolução Russa e o regime soviético e suas realizações, que
começou a aparecer, abundantemente, entre nós, a partir, especialmente, daquele
ano de 1933.
Jamais, porém, pensei em me filiar a qualquer partido ou organização de
propaganda ou de execução dessas teorias e considerava mesmo, por essa época, o
Partido Comunista como uma entidade de caráter secreto, misterioso, uma espécie
de Maçonaria e de cuja existência real nem sequer tinha muita certeza. Meu temperamento e formação pequeno-burguesa, individualista, tornavam-me avesso a
qualquer tipo de arregimentação, em que a obediência e a disciplina estrita foram
exigidas. Sempre prezei a discussão livre, a liberdade de pensamento e de ação.
Segundo vem revelado por trabalhos de caráter histórico sobre a vida do
Partido Comunista do Brasil, fundado em 1922, somente nesse período dos anos de
1933 e 1934, em diante, é que ele passou a ter uma certa unidade de organização
e maior influência política, especialmente depois que sua direção foi entregue à
lendária figura de Luís Carlos Prestes.
180
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Conforme já vimos, mas nunca é demasiado repetir, esses eram tempos difíceis, tempestuosos.
O fascismo estava em plena ascensão. Com a marcha de Mussolini sobre
Roma e a tomada do poder na Itália iniciara-se o ciclo. Agora, era a Alemanha que
procurava caminho semelhante para tentar resolver seus problemas econômicos,
políticos e sociais.
Em 1932, funda-se em São Paulo a Ação Integralista Brasileira, nossa versão
do movimento que Benito Mussolini há dez anos implantara na Itália. Apenas, os
nossos fascistas caboclos, ao invés das camisas pardas, escolheram a cor verde,
substituindo a cruz suástica dos nazistas, pelo sigma grego. No mais, os mesmos
símbolos, gestos e doutrinas. Seus corifeus começaram a produzir uma copiosa
literatura de propaganda e realizar marchas e concentrações nas principais cidades
do País. Suas idéias e práticas iam se infiltrando em alguns setores das forças armadas, especialmente em nossa Marinha de Guerra, e também nos hostes do clero
católico.
Em 1933, Adolf Hitler sobe ao poder na Alemanha, reforçando os partidários da "Nova Ordem", que deveria durar mil anos, espalhando-se por todo o
mundo... E assim se preparava também a grande tragédia, cujo desfecho seria a 2ª
Grande Guerra Mundial.
A escalada de Hitler ao poder foi pontilhada de violências de toda ordem,
atentados contra pessoas e instituições, assaltos à mão armada por suas tropas de
choque, distúrbios de rua, assassinatos de opositores, prenunciando o que seria o
domínio do nazismo sobre a Alemanha e os países conquistados. Uma das maiores
provocações arquitetadas pelos nazistas foi o incêndio do Reichstag (o Parlamento
alemão), cuja autoria pretenderam atribuir aos comunistas, através da falsa confissão de um doente mental. O principal acusado, o chefe comunista búlgaro George
Dimitrof, projetou seu nome no cenário internacional, ao fazer, ele próprio, sua
defesa perante o tribunal alemão, desmascarando a farsa.
Um jornalista brasileiro, José Jobim, que assistiu pessoalmente a esses acontecimentos, registrou-os num pequeno livro, do qual cheguei a possuir um exemplar, depois extraviado. Irmão de Danton Jobim, jornalista de renome e depois
senador pelo Estado da Guanabara, José Jobim fez, posteriormente, carreira diplomática brilhante, vindo a falecer, recentemente, em circunstâncias ainda não
muito bem esclarecidas.
•••
Voltemos, porém, aos acontecimentos ocorridos, nesse período, no Brasil.
A 23 de março de 1935 era fundada a Aliança Nacional Libertadora, organização de esquerda, cujo núcleo propulsor era o Partido Comunista, conforme se
dizia. Tinha como objetivo principal a luta contra o fascismo, assumindo uma
posição nacionalista, anti-imperialista e contra o latifúndio, isto é, contra as chamadas sobrevivências pré-capitalistas ainda existentes nas relações de produção
das imensas massas rurais brasileiras e da América Latina em geral. Segundo também se afirmava, seu programa tinha sido traçado pelo último Congresso da
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
181
Internacional Socialista para os países denominados coloniais e semicoloniais,
hoje denominados subdesenvolvidos ou do Terceiro Mundo. Colocava o Brasil e
outros países na etapa de desenvolvimento em que se tornava necessário realizar
a chamada revolução democrático-burguesa, para somente posteriormente se
passar à etapa popular", que além dos elementos comprometidos com os ideais
socialistas deveria reunir os da burguesia nacionalista, anti-imperialista, a pequena burguesia, os intelectuais, etc. Nos países desenvolvidos essa "frente popular" destinava-se especialmente a lutar contra o fascismo, em ascensão: na França
ela se materializou através do governo do Front Populaire, de León Blum.
A Aliança Nacional Libertadora recebeu a adesão de vários setores da população e de políticos e intelectuais de prestígio, tais como, entre outros, Maurício de
Lacerda, Abgar Bastos, João Mangabeira, e também de elementos da antiga corrente dos "tenentistas", entre os quais sobressaíram os nomes de Agildo Barata, do
Exército, e de Hercolino Cascardo, da Marinha.
O programa da Aliança Nacional Libertadora podia ser resumido nos seguintes
pontos:
I – suspensão definitiva do pagamento das dívidas imperialistas do Brasil,
por serem considerados já pagos, e aplicação da quantia assim retida em
benefício do povo explorado do Brasil;
II – nacionalização imediata de todas as empresas imperialistas, por serem
consideradas como verdadeiras "arapucas", para as quais os brasileiros
trabalhavam até o esgotamento, enquanto os lucros eram canalizados
para as metrópoles;
III – proteção aos pequenos e médios proprietários e lavradores: entrega das
terras dos grandes proprietários aos camponeses e trabalhadores rurais
que as cultivassem, pela consideração de que são eles que as valorizam
com seu trabalho devendo, portanto, tornar-se proprietários delas;
IV – gozo das mais amplas liberdades democráticas pelo povo brasileiro, nele
incluídos os estrangeiros que aqui trabalhassem e fossem explorados, tal
como os brasileiros;
V – constituição de um governo popular, orientado somente pelos interesses
do povo brasileiro e do qual poderia participar qualquer pessoa
identificada com o programa da ANL e disposto a levá-lo à prática.
O choque das duas correntes, dirigidas pelas duas entidades de ideologias
antagônicas, começou a se verificar, não somente no terreno das idéias, mas, em
seguida, em violentas lutas de rua, entre os respectivos partidários.
O governo de Getúlio Vargas não escondia suas simpatias pelas idéias
integralistas, com as quais se identificavam também os principais chefes militares,
sustentáculos da ordem vigente.
A situação ia se agravando cada vez mais, conforme assinala Afonso
Henriques, no interessante trabalho intitulado Ascensão e queda de Getúlio Vargas,
o maquiavélico:
182
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
[...] a Aliança Nacional Libertadora apesar do expressivo apoio que recebeu de amplos setores da
classe operária, da baixa classe média dos centros urbanos e de muitos intelectuais, pouco se
fortaleceu, sobretudo, por causa das divergências internas entre os elementos comunistas e não
comunistas e a própria infiltração policial. A marcha mundial para a direita, com a política nazifascista cada vez mais agressiva, o temor da burguesia de uma revolução socialista, a pressão da
Igreja católica e as ostensivas tendências do próprio Governo, fizeram com que se desencadeasse severa repressão contra o movimento aliancista que acabou no fechamento da Aliança Nacional Libertadora [em 11 de julho de 1935].
Essas ocorrências, segundo observa Manuel Correia de Andrade em seu trabalho 1930 – A atualidade da Revolução (1980), determinaram o afastamento dos
elementos mais moderados e levou os mais exaltados a cerrarem fileiras em torno
do Partido Comunista, para tentarem uma solução pelas armas para o conflito, sob
a liderança de Luís Carlos Prestes.
•••
Por essa época, eu poderia ser classificado como um "intelectual de esquerda", de acordo com a nomenclatura geralmente usada. Entretanto, não estava filiado
a qualquer organização política, nem desenvolvia qualquer atividade partidária
militante. Meu trabalho e os cargos que desempenhava na Secretaria de Educação
e Cultura do Distrito Federal e na Inspetoria do Ensino do Estado do Rio de Janeiro
e as responsabilidades de família, não me deixavam qualquer tempo disponível
para me entregar a quaisquer outras atividades. Não era, porém, apenas o problema de tempo, pois não tinha, como nunca tive intenção de me filiar a qualquer
agremiação partidária.
Dei, entretanto, tardiamente, em data que não me recordo, minha adesão
formal ao programa da Aliança Nacional Libertadora, mas nunca participei de qualquer manifestação de sua iniciativa nem mesmo freqüentei, em qualquer tempo,
sua sede. Creio que minha inscrição como associado me foi solicitada por meu
irmão Humberto, que exercia alguma atividade na secretaria da entidade, o que,
aliás, resultou para ele em alguns meses de prisão, após o 27 de novembro de 1935.
Humberto acabara de concluir o curso de Agronomia e Veterinária na Escola
Superior de Agricultura e Medicina Veterinária, então com sede na Praia Vermelha,
no Rio de Janeiro, era o quinto dos doze irmãos que chegamos a ser e dos que mais
se envolveram nesse período em política partidária. Os outros foram o Lemme Júnior,
como era conhecido nos meios profissionais, e que alcançou posição de relevo na
direção do Partido Comunista, tendo morte prematura, sem dúvida, pelo enorme
desgaste que sofreu com suas atividades políticas e profissionais; o Abel, também
formado em Odontologia, que acometido de grave doença, mudou-se para São
Paulo, onde se radicou definitivamente e onde faleceu. O quarto – Kardec – fez
carreira militar, apesar de todos os embaraços que encontrou desde o curso do
Colégio Militar, de onde esteve a ponto de ser excluído, menos por suas atividades
propriamente ditas, mas provavelmente pelos antecedentes de família. Já como
oficial, envolveu-se seriamente em atividades partidárias, filiando-se especialmente às correntes nacionalistas, sofrendo então severas represálias, que culminaram,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
183
após 1964, em sua expulsão das Forças Armadas. Os outros - Vinício, deixando o
Colégio Militar em boa hora, tornou-se funcionário do Banco do Brasil; Áurea e Lígia,
professoras primárias no Distrito Federal; e os dois mais moços – Frauda (falecida) e
Evandro – todos seguiram sempre uma linha de pensamento progressista.
•••
Fora das minhas atividades profissionais, lembro-me de ter participado de
um grupo de estudo, no qual, nosso objetivo principal era esclarecer as obscuridades de O Capital de Marx. Dele faziam parte Valério Konder, médico e meu colega
na Inspetoria do Ensino do Estado do Rio de Janeiro, Alberto Carneiro Leão, Evandro
Pequeno, que sabia alemão e ajudava a corrigir as falhas das traduções duvidosas,
e algum outro elemento de que não me recordo. Dificuldades de conciliar os horários fizeram com que o grupo se dissolvesse em pouco tempo.
Ainda nesse período, redigi, não sei bem com que objetivo, uma espécie de
ensaio refutando ponto por ponto o livrinho de Plínio Salgado intitulado O que é
o integralismo, que era uma espécie de catecismo a ser cuidadosamente aprendido pelos candidatos à filiação ao movimento integralista. O meu trabalho mantinha o mesmo título e guardo de memória, com pouca nitidez, porém, que, convidado pelo casal Edgar Süssekind de Mendonça e Armanda Álvaro Alberto, li-o,
em sua casa, numa vila à Rua Princesa Isabel, logo à saída do Túnel Novo, para um
grupo de pessoas amigas do casal. Vim a saber depois que eram dois dos irmãos
Meireles, Ciro e Ilvo, e o capitão Costa Leite, amigos de Edgar, e que somente
mais tarde tomei conhecimento que eram companheiros de Prestes, membros do
Partido Comunista e que deveriam desempenhar papel importante nos acontecimentos de novembro de 1935.
Um pouco mais tarde, apareço colaborando nas atividades de um Clube de
Cultura Moderna, fundado em novembro de 1934, por intelectuais de esquerda e
que teve como primeiro presidente o doutor Roquete-Pinto. Somente, porém, em
1935, o clube desenvolveu alguma atividade mais significativa, mas teve duração
efêmera. Publicou uma revista intitulada Movimento, na qual, nos dois primeiros
números, meu nome aparece integrando o comitê de redação, em companhia de
Jorge Amado, Santa Rosa, Febus Gikovate, Flávio Poppe de Figueiredo e Américo
Leite. No terceiro número, os dois últimos são substituídos por Amadeu Amaral e
Joaquim Ribeiro. Colaborei em dois desses números com matéria sobre as relações
dos problemas de educação com as questões econômicas, políticas e sociais.
Por último, recordo-me de ter escrito um longo artigo comentando e refutando as conclusões do ensaio de Otávio de Faria intitulado "O destino do socialismo", publicado em 1933, no qual ele defendia a tese do fim das estruturas liberais
e fazia sua opção pelas soluções propostas pelo integralismo. Meu trabalho foi
publicado em página dupla interna do tablóide A Marcha, – fundado por Francisco
Mangabeira, um dos dirigentes da Aliança Nacional Libertadora, creio que em 1935,
mas que não foi além do segundo número.
184
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Certo dia, já no ano de 1935, eu recebi através de Anísio Teixeira, Secretário
Geral da Educação e Cultura, uma ordem do prefeito Pedro Ernesto para que fossem organizados cursos noturnos para operários filiados a uma associação denominada União Trabalhista, que funcionava à Rua Sacadura Cabral, no bairro da Gamboa.
Esses cursos estavam previstos nos regulamentos da Superintendência da
Educação Secundária Geral e Técnica e de Ensino de Extensão da Secretaria Geral
de Educação e Cultura, na época, por mim, dirigidos.
A colaboração da Prefeitura com essa associação operária, conforme verifiquei depois, visava finalidades político-eleitorais de interesse de Pedro Ernesto que,
segundo se comentava, tinha pretensões futuras em sua carreira política e talvez
mesmo a de candidatar-se à presidência da República, sucedendo a Getúlio Vargas.
Dizia-se também que foram essas pretensões do antigo chefe civil da Revolução de
1930, que levaram Getúlio Vargas, aproveitando-se do possível envolvimento de
Pedro Ernesto nos acontecimentos de novembro de 1935, a afastá-lo definitivamente do caminho da presidência da República, tendo sido preso e processado em
conseqüência de documentos encontrados que, segundo se dizia, o comprometiam
naqueles episódios.
Cumprindo a ordem recebida e comparecendo, em caráter oficial, à sede da
referida entidade, discuti com os dirigentes da mesma a melhor forma de atender
às solicitações que tinham feito ao prefeito Pedro Ernesto. Além dos cursos de
alfabetização e aperfeiçoamento profissional, os responsáveis pela direção da União
Trabalhista demonstraram o desejo de que fossem organizados cursos de cultura
geral, nos quais seriam tratados problemas referentes aos interesses da classe operária, sua defesa, direitos trabalhistas, história geral e do Brasil, e especificamente
história do trabalho.
Para os cursos sistemáticos seriam contratados professores, com os recursos
que a Superintendência dispunha para esse fim. Visando ministrar os outros cursos
convidei o professor Hermes Lima, da Faculdade de Direito e que, na época, creio,
desempenhava a função de uma espécie de assessor político do prefeito Pedro
Ernesto, e, nessa qualidade, exercia a supervisão geral das atividades da União Trabalhista. Trouxe também o doutor Valério Konder, médico sanitarista e meu colega
na Inspetoria de Ensino do Estado do Rio, para assumir a direção da Seção Cultural,
a quem cabia organizar os cursos e os programas de extensão; e, por fim, obtive a
colaboração do professor Edgar Süssekind de Mendonça, companheiro e amigo,
que, com sua ampla e polimorfa cultura geral, poderia dar uma valiosa colaboração
aos cursos, desde literatura até história do Brasil e divulgação científica. Eu próprio
me encarreguei de fazer algumas palestras sobre história do trabalho, assunto a
cujo estudo me dedicava no momento.
Tudo resolvido, foi providenciada a redação e a distribuição de um impresso
a todos os interessados, contendo as instruções sobre as inscrições nos cursos, programas e demais informações indispensáveis.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
185
Jamais poderia imaginar que tal impresso, de cunho oficial, mimeografado,
contendo apenas as referidas informações que pudessem trazer tão graves conseqüências para mim e para os três colegas encarregados dos referidos cursos, que
aliás mal chegaram a ser iniciados.
•••
O ano de 1935 ia se aproximando do fim e a agitação política crescia cada
vez mais, fazendo-se prever um desfecho dramático para dentro de pouco tempo.
Realmente, a 24 de novembro começaram a chegar as primeiras notícias da
deflagração de um movimento armado de esquerda, em Natal, tendo se instalado no
Estado do Rio Grande do Norte um governo "popular-revolucionário", com a deposição de todas as autoridades constituídas. O levante, em breve, estendia-se a Recife.
Um sentimento de estupefação apoderou-se de todos nós, intelectuais de
esquerda, que tínhamos dado nossa adesão ao programa da Aliança Nacional
Libertadora, mas que estávamos perfeitamente cientes de que o movimento, em
face da repressão desencadeada contra ele, não tinha chegado a amadurecer e a
ganhar a extensão e a força necessárias para pretender tomar e manter o poder em
qualquer área do País.
Foram assim horas sombrias de enormes apreensões e prognóstico – os mais
desencontrados, em face das informações contraditórias que iam chegando do teatro
dos acontecimentos.
Em breve, as forças armadas legalistas, sob o comando do general Rabelo,
conseguiam dominar a situação, derrotando os revolucionários, sendo a maioria
presa e fugindo muitos para o interior, com o objetivo de continuar a luta sob a
forma de guerrilhas.
Gregório Bezerra, que teve ação destacada nesses acontecimentos do Nordeste, escreve em suas Memórias (1979), que constituem documento de grande
importância para a compreensão de muitos aspectos, até então desconhecidos, do
que ocorreu no País, nesse período e nos seguintes:
Em Natal, vitorioso o movimento revolucionário, foi estabelecido o governo popular nacional-revolucionário, que teve apenas quatro dias de poder. Além de muitos outros combatentes, destacou-se ali a figura destemida e enérgica do cabo Giocondo Dias, e foi graças à sua
energia que o movimento venceu em Natal. Não obstante, cometeram-se vários erros, inclusive
o do assalto do Banco do Brasil, depois que o poder já estava em mãos dos revolucionários. Mas
o erro maior foi a distribuição do dinheiro às massas que, depois de endinheiradas, abandonaram a luta e foram tratar de seus interesses. Eram elementos sem politização e sem qualquer
consciência ideológica. Os camaradas tentaram organizar uma grande coluna de guerrilheiros,
mas a massa, pouco a pouco foi desaparecendo. A revolução fracassou completamente.
Conheci pessoalmente alguns dos elementos que integraram a chefia desse
governo "popular-revolucionário" de Natal, quando foram transferidos para a Casa
de Detenção do Rio de Janeiro, onde eu me encontrava preso. Eram pessoas simples, senão simplórias, cheias dos melhores propósitos, honestos, mas, segundo me
pareceu, desprovidos das mínimas qualidades para cumprirem as difíceis tarefas de
que foram encarregados ou em que se investiram.
186
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Alguns anos mais tarde, tive em minhas mãos, por mero acaso, um exemplar
do único número que chegou a ser impresso do jornalzinho oficial do governo
nacional-revolucionário instalado em Natal. Além das incitações naturais aos brios
revolucionários, as muitas ilusões sobre uma vitória próxima, alguns decretos do
"governo" e um editorial sobre o caráter da revolução que tinha como objetivo
cumprir o programa da Aliança Nacional Libertadora, sob a direção do general Luís
Carlos Prestes... Nesse editorial era negado qualquer propósito de implantar no País
um regime comunista, conforme propalavam as autoridades.
Teria assim terminado essa aventura, em torno da qual, já na prisão, ouvi
discussões intermináveis entre os chefes revolucionários, com quem estive preso no
Rio de Janeiro. Alguns apoiavam inteiramente a deflagração do movimento, outros
o julgavam precipitado e, finalmente, havia os que insinuavam tratar-se de uma
verdadeira "provocação", partida de agentes do próprio governo, infiltrados entre
os aliancistas. Nunca pude chegar a uma conclusão sobre a verdade dos fatos.
A propósito dessa questão, Agildo Barata, figura de destaque em todos
esses acontecimentos, assim se manifesta em seu livro Vida de um revolucionário
– Memórias (1978).
A insurreição em Natal se iniciou no dia 23. Dois dias depois, já quase extinta a rebeldia em
Natal, sempre o incrível "Comitê Revolucionário do Nordeste" determina o levante em
Pernambuco. A eclosão não simultânea e precipitada dos dois pronunciamentos de que o governo estava cientificado pelos agentes provocadores infiltrados, permitiu que o governo batesse por partes cada um dos dois focos da insurreição. Nos dias 25 e 26 houve duras lutas em
Recife, mas na manhã do dia 26, já o governo dominava completamente a situação em Natal e
Recife.
E Gregório Bezerra, em suas Memórias, acrescenta sobre essa mesma questão:
A meu ver, a causa principal de nossa derrota no Nordeste foi a precipitação do dia. O
Comando da Revolução decretou o início do movimento sem levar em conta as minhas reiteradas ponderações de não deflagrar o movimento armado de sábado para domingo, quando os
quartéis estavam vazios. Outro erro, mais clamoroso, foi que, o Comando não se ligou às organizações partidárias, para que estas mobilizassem seus membros e as massas trabalhadoras. Em
uma palavra, o Partido não foi mobilizado e, por isso, não poderia mobilizar a classe operária.
Essa só teve conhecimento da revolução depois do pipocar da fuzilaria. Finalmente, a falta de
um comando militar capaz, enérgico e audacioso...
Já estavam escritas estas últimas referências ao movimento armado de 1935,
quando apareceu o trabalho dos jornalistas Denis de Morais e Francisco Viana,
intitulado: Prestes – Lutas e autocríticas (Petrópolis: Vozes, 1982). Assim, não posso
deixar de incluir aqui o depoimento da pessoa mais autorizada a falar sobre esses
acontecimentos daquele ano trágico: – Luís Carlos Prestes. Sobre a eclosão do movimento revolucionário no Nordeste, afirma ele, à página 71, do referido trabalho:
O clima no Brasil era tenso, particularmente nos quartéis. Todos os dias havia problemas.
Era uma greve no refeitório, um protesto, um movimento em torno de uma reivindicação qualquer. A agitação era permanente. Sargentos e oficiais fechavam os olhos porque estavam ligados a ANL, sendo comunistas, ou não, e achavam que aquele clima era desfavorável ao governo.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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E acabou a insurreição eclodindo, espontaneamente, em Natal. Não creio que tenha havido
provocação. Foi um erro de agitação. Recife se levantou em apoio a Natal e nós aqui no Rio
levantamos em apoio aos demais companheiros. Eu tenho estudado muito essa questão e tenho
minha autocrítica a fazer, mas sem renegar o movimento.
E, daqui para diante, tenho que modificar quase tudo o que já estava escrito
sobre esse período e esses graves acontecimentos, em face do depoimento de que
agora passamos a dispor, feito como disse, pela pessoa mais autorizada, como pivô
e responsável mais alto por todos eles, dos quais, aliás, nunca se esquivou de assumir plena responsabilidade, com sua reconhecida inteireza de caráter.
•••
Contudo, o mais grave estava ainda por acontecer. Na madrugada de 26
para 27 de novembro, os levantes militares irrompem no 3° Regimento de Infantaria, sediado na Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, e na Escola de Aviação Militar,
segundo se dizia, em apoio aos revolucionários do Nordeste. A luta prolongou-se
por toda a madrugada, sendo os revoltosos batidos na Escola de Aviação. Os do 3°
RI, porém, só depuseram as armas por volta do meio-dia.
Na madrugada de 23 para 24 de novembro [recorda-se Prestes], eu recebi informe de um
companheiro dando conta do levante de Natal. Há muitas versões sobre esse levante. Fala-se de
provocação, mas a verdade é que foi um movimento espontâneo, sem ordem da direção do partido. No dia seguinte, houve o levante no Recife. Eu achei que era o momento dos operários se
sublevarem no Rio para dar apoio aos companheiros de Recife. Mas não queria tomar essa decisão
sem consultar o secretário geral do partido. Só no dia 25, à tarde, é que conseguimos encontrar
Miranda. Fizemos uma reunião e decidimos que o levante seria na noite de 26 para 27 (p. 75).
E adiante:
A grande derrota do movimento foi a inexistência de participação popular. Não houve
nenhuma greve operária. O movimento ficou restrito exclusivamente aos quartéis e fracassou.
O esquema que Miranda dizia existir não passava de fantasia da cabeça dele (p. 76).
E antes, na página 72:
O movimento fracassou, mas foi honesto. Como diz Lênin: "Todo movimento honesto produz frutos". Foi o movimento de 23 que permitiu desmascarar o verdadeiro caráter do
integralismo.
E adiante ainda:
Foi graças a 23 que o governo de Getúlio não chegou a ser um estado propriamente fascista.
É preciso que se atente para um fato: em 37, o ambiente era de guerra, a guerra estava se aproximando. Já havia guerra civil na Espanha e Getúlio fez o movimento de 10 de novembro para
concentrar poderes. O mais espetacular de 37 foi a queima das bandeiras estaduais. Era o fim da
Federação. Era a centralização de poder nas mãos do poder central para enfrentar a guerra. Mas
não chegou a ser um estado fascista. As grandes torturas e assassinatos deram-se após 35. O ano
de 36 foi de repressão violenta.
188
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Eu, nesse dia 27 de novembro, pela manhã, como sempre, tendo comparecido ao meu gabinete de trabalho, localizado no Beco Manoel de Carvalho, nos fundos do Teatro Municipal, pouco depois me encontrava com Anísio Teixeira e ambos,
estarrecidos diante dos acontecimentos, procurávamos obter mais informações sobre o que estava realmente ocorrendo.
Sabendo da campanha de ódios e das ameaças que se encanizavam contra
Anísio, recomendei ao Andrade, o nosso fiel motorista, nordestino valente, que
procurasse proteger o secretário por todas as formas, mesmo que tivesse que utilizar a arma que levava sempre no carro, naqueles dias em que imperava a violência,
e o convencesse a voltar para casa. E isso foi feito.
Dirigi-me então para a Galeria Cruzeiro, que era o melhor centro de informações do Rio de Janeiro, naqueles tempos.
As edições dos jornais se sucediam com enormes "manchetes" sobre o desenrolar dos acontecimentos, inclusive do matutino que se tornara porta-voz oficial da
Aliança Nacional Libertadora – A Manhã – , dirigido por Pedro Mota Lima, pouco
depois impedido de circular. Publicava o manifesto de Luís Carlos Prestes explicando
as razões da deflagração do movimento armado no Rio de Janeiro.
•••
Pessoas amigas que tiveram a paciência de ler alguns capítulos destas Memórias, a meu pedido, têm feito restrições ao grande número de citações e transcrições
que utilizo em muitas passagens do texto. Justifico-me, com a explicação de que as
considero indispensáveis para a melhor compreensão dos fatos que venho tentando
narrar ou das situações que pretendo descrever com o máximo de fidelidade e de que
não fui participante direto. E, nesse sentido, discordando dessas opiniões, venho continuando e pretendo continuar a usar esse recurso, sempre que o julgar necessário.
Creio não incorrer em falta de ética quando recorro a obras e documentos
para tentar estabelecer a verdade histórica ou esclarecer melhor meu pensamento,
e, além disso, ponho à disposição dos possíveis interessados as indicações para um
estudo mais aprofundado dos assuntos que abordo ou os fatos a que me refiro.
Agora mesmo, dada a grande obscuridade que cerca o trágico episódio desse dia 27 de novembro de 1935, que vem sendo utilizado durante todos esses anos
decorridos para fins nem sempre muito honestos, sou mais uma vez obrigado a
incluir aqui citações de duas figuras que tiveram participação da mais alta relevância nesses dramáticos acontecimentos, de conseqüências tão graves e dolorosas
para o povo brasileiro e que resultaram em sofrimentos inenarráveis para milhares
de pessoas.
No livro já citado de Agildo Barata (Vida de um revolucionário – Memória –
1978), colho as seguintes passagens:
Ao iniciar-se a segunda quinzena de novembro de 1935, a tensão política no Brasil, era
muito grande: os integralistas, sempre estimulados pelo Catete e pela polícia, cresciam em audácia, enquanto emissários da ANL percorriam os Estados, ajustando ligações, dando retoques
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
189
finais num plano geral de resistência e protesto contra a completa fascistização do País e o
prosseguimento da política de submissão crescente ao imperialismo anglo-americano.
A polícia brasileira, diretamente orientada por experimentados agentes da Intelligence Service
(polícia política inglesa) e pela Gestapo (polícia política da Alemanha nazista), conseguiria infiltrar
na direção do PCB alguns agentes provocadores e o PCB supondo-se mais forte do que estava e
ambiciosamente querendo assumir a total direção do movimento de frente única, começou a
agir por cima e à margem da direção da ANL, preparando por sua conta, a luta armada e assumindo, na prática, o controle e a responsabilidade da precipitação das coisas. A provocação,
infiltrada na direção comunista, encontrou na ambição dos dirigentes do Birô Político do Partido um campo de fácil atuação provocadora.
E adiante:
[...] no Rio e, possivelmente mais que noutro lugar qualquer, a polícia tinha se infiltrado nos órgãos
dirigentes do PCB e é absolutamente falsa a versão de que o governo houvesse sido surpreendido
pelos acontecimentos. Ao contrário: os agentes da Intelligence Service, do FBI e da Gestapo, com os
agentes de Getúlio (Felinto Muller, etc.), na realidade foram os que 'conduziram o baile', à cata de
um acidente que servisse à idéia fixa de Getúlio: ficar.
A ditadura getulista nunca divulgou essa sua hábil infiltração porque preferiu apresentarse como vítima de um golpe de surpresa o que lhe facilitava a divulgação de calúnias e infâmias
contra os revolucionários. Ademais, revelar infiltração provocadora seria confessar a ligação, ou
antes, a submissão a que governo e polícia getulistas tinham-se entregue aos agentes angloamericanos e alemães.
Ainda de Agildo Barata e do mesmo livro, creio que vale a pena transcrever
mais o seguinte trecho, bastante esclarecedor:
Todos sabíamos que o levante do 3° RI seria uma tarefa dura e difícil porque nossas forças
eram muito reduzidas e o inimigo, já alertado, dispunha de grande superioridade numérica.
Apesar de tudo, ali sempre era possível tentar alguma coisa. De minha parte, eu sabia que nossas
possibilidades, em escala nacional, eram quase nulas e, portanto, eu não devia apoiar a resolução de tentar o levante do 3° RI Adotou-se porém, a resolução de cumprir a ordem e passou-se
à adoção de medidas práticas, uma das quais era a de me entregar o comando do regimento
sublevado. Sabia que, de minha parte, embora pudéssemos, num golpe de audácia, dominar a
situação no 3° RI, no resto do País nossas possibilidades, como disse, eram nenhumas. A vida,
entretanto, me reservava a minha vez de "ter medo de parecer medroso".
Ainda sobre essa mesma questão das origens dos levantes militares de Natal,
Recife e Rio de Janeiro, em novembro de 1935, não se pode deixar de citar a versão
de Leôncio Basbaum, que foi, por muitos anos, membro influente do Partido Comunista do Brasil.
Escreve ele em sua História sincera da República – De 1930 a 1960 (3°
volume, p. 94-96, São Paulo: Edaglit, 1962):
É tempo de contar o motivo pelo qual a sublevação se iniciou em dias diferentes, roubando,
sem dúvida, força e unidade ao movimento. Os fatos, tais como sucederam, parecem mais um
enredo de filme policial.
A história começa precisamente em Natal. Ou melhor em Moscou, onde um agente da
Gestapo, ex-membro do Partido Comunista Alemão, infiltrado entre os agentes russos, é designado para vir ao Brasil prestar auxilio técnico à revolução projetada. Trata-se de Paulo Gruber,
que se celebrizou mais tarde como San Valtin, autor de um livro que, publicado pouco antes da
190
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
guerra, se tornou famoso: No fundo da noite. Esse indivíduo, chegando ao Brasil, procurou
imediatamente o Itamarati onde explicou as razões pelas quais chegara ao país. Daí o mandam
ao chefe de Polícia, Felinto Müller, que se interessa pelas coisas espantosas que o mesmo lhe
conta: Prestes devia chegar a qualquer momento para chefiar uma revolução. E ele, Gruber,
especialista em sabotagem, explosivos, instalações elétricas etc., devia colocar-se às ordens do
chefe revolucionário brasileiro. Recebe então ordens de continuar sua tarefa como bom comunista e aguardar ordens, informando a polícia somente em casos especialíssimos.
Gruber estava ligado, de um lado, ao Comitê Central do PCB e, de outro, à Polícia. Não era
a primeira vez que exercia papel semelhante. Em 1933, era agente do PC alemão na Gestapo e
se transformou em agente da Gestapo no PC alemão.
Uma das mais importantes tarefas fora construir um dispositivo elétrico na casa de Prestes,
na Rua Barão da Torre, de modo que numa batida policial de surpresa, todos os documentos se
incendiariam. Todavia, quando depois de 27 de novembro a batida se verificou, a polícia pode
pegar todos os documentos intactos porque Gruber havia mostrado à polícia como desligar o
alarme.
E entre outras coisas informara que a revolução deveria eclodir em fevereiro ou março de
1936 e que a chave para o início seria dada por um telegrama dirigido a todos os responsáveis
pelo movimento nos Estados. Gruber porém ignorava a fórmula do telegrama secreto. Restava
ainda saber a quem passar o telegrama para que o movimento fosse iniciado antes do tempo e
ser assim facilmente dominado.
Em Natal, o chefe de polícia, um tal Aloísio Moura, se fizera de grandes amizades com um
membro do PC, pertencente ao Comitê Regional daquela cidade, por nome Santa ou Santana.
Aloísio Moura, dizendo-se comunista e garantindo a confiança de Santa, dele conseguira a
confirmação da chave do telegrama.
E num belo dia Santa recebe, surpreso, o famoso telegrama, devidamente datado do Rio
(mais tarde verificou-se que o telegrama fora forjado lá mesmo em Natal).
Diante da ordem vinda do Rio, embora não suficientemente preparados, os comunistas e
aliancistas de Natal iniciam o movimento, mas, para sua surpresa, estão sozinhos.
Em Recife, a notícia da explosão do movimento, somente esperado para três meses depois,
é igualmente recebida com surpresa, mas não lhes resta outra alternativa senão secundar, prematuramente, o movimento de Natal.
Mas é no Rio que a surpresa é maior. Ante as notícias de sublevações no Rio Grande do
Norte e Recife, o Comitê Central não pôde mais esperar e desencadeia o movimento, com os
desastrosos resultados já conhecidos.
Mas, em 2 de julho de 1979, num programa denominado Encontro com a
Imprensa, da TV Bandeirantes, canal 7 do Rio de Janeiro, Luís Carlos Prestes fazia as
seguintes declarações:
A insurreição de novembro de 1935 foi um erro porque não tivemos o apoio das massas e
por isso fomos derrotados. O que deveria ter sido feito seria reforçar, ampliar e aprofundar o
movimento da Aliança Nacional Libertadora, que foi a maior frente antifascista e antiimperialista
já organizada na América Latina. Aliás, era essa a opinião de George Dimitrof, grande líder
antifascista, que desprezamos.
Precipitação, provocação ou "simplesmente" erro grave, o fato é que o verdadeiro "putsh" desfechado pelos militares aliancistas e comunistas, a 27 de novembro
de 1935, teve conseqüências gravíssimas para o povo brasileiro, conseqüências essas
que se prolongam até hoje.
A propósito, sempre me pareceu que o Partido Comunista do Brasil representava, naquela época, pouco mais que uma espécie de seita de pequenas proporções. E
no contato forçado que tive, na prisão, com elementos de sua direção, ficou-me a
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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impressão de que suas atividades sofreram uma séria distorção com o predomínio
de uma corrente militar, que, por sua própria formação ou deformação profissional, tendia sempre a resolver os problemas políticos pela ação armada, "golpistas",
evidentemente sem contar com o apoio das "grandes massas".
Individualmente, um Agildo Barata, um Agliberto, um Ivan Ribeiro, um
Sócrates ou um Apolônio de Carvalho podiam ser excelentes pessoas, valentes e
patriotas. Faltava-lhes, porém, a experiência política e, principalmente, a indispensável paciência para se dedicarem a um trabalho, necessariamente longo e difícil,
de explicar os postulados do socialismo para os possíveis beneficiários desse novo
regime econômico, político e social, constituído no Brasil por uma maioria de marginalizados e iletrados.
As grandes transformações históricas são processos longos, tortuosos, cheios de avanços e recuos e de caminhos imprevistos e que não podem ser abreviados
ou detidos por "golpes" de impaciência, ignorância ou insensatez.
•••
A partir daquele dia trágico, abateu-se sobre o País uma onda de reação,
com milhares de prisões em todo o território nacional; um cortejo de perseguições
indiscriminadas e de violências inauditas que, em círculos cada vez mais amplos,
iam atingindo todos os que, por qualquer motivo, em qualquer lugar e em qualquer
época tivessem demonstrado pensamento independente, anseios por transformações econômicas, políticas e sociais em benefício da maioria do povo brasileiro, ou
até mesmo, simplesmente, lutassem por proporcionar-lhe maiores e melhores oportunidades de ensino, educação e cultura.
•••
Conforme já vimos, a campanha contra Anísio Teixeira e sua obra acabou
por determinar sua demissão a 2 de dezembro de 1935, sendo acompanhado por
todos os seus colaboradores, entre os quais eu me incluía.
Voltando ao meu cargo efetivo de professor das escolas técnicas secundárias entrei em férias e, em casa, junto à família, num ambiente de grandes
apreensões, ia acompanhando os graves acontecimentos, que se desenrolavam
com grande velocidade.
Não havendo tido qualquer participação naquelas lamentáveis ocorrências, limitei-me a retirar de minha biblioteca e guardar numa dependência interna
de nossa casa, os livros que me pareceram possíveis de serem apreendidos nas
buscas policiais que estavam sendo realizadas nas residências de pessoas que
eram consideradas como suspeitas e cuja situação se agravaria extraordinariamente se possuíssem obras que fossem consideradas como "subversivas" pelos
"caçadores de bruxas", a serviço da reação.
Minhas preocupações, porém, foram aumentando, quando comecei a receber notícias das prisões que ocorriam, cada vez em maior número, e que passaram
a incluir professores universitários, tais como Castro Rebelo, Leônides Rezende,
192
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Frederico Carpenter, Hermes Lima, e, em seguida, colegas e amigos próximos, como,
Edgar Süssekind de Mendonça e Valério Konder, além de meu próprio irmão
Humberto.
E assim, nesse ambiente pesado de denúncias, violências e sofrimentos, em
que os integralistas aproveitavam a oportunidade para acusar todos os que não rezavam por sua cartilha verde de serem "vermelhos", traidores da Pátria, "vendidos ao
ouro de Moscou", terminou esse fatídico ano de 1935, de tão amargas recordações.
•••
Nesse ano o Natal não foi condignamente comemorado.
As preocupações, o medo, as tensões do ambiente não permitiam as alegrias
da maior festa da Cristandade.
As crianças quase não ganharam brinquedos e os adultos sequer trocaram
presentes nem se sentiram tranqüilos em torno das escassas ceias natalinas...
Parecia que a Humanidade descria da missão e do sacrifício do Salvador...
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO X
NOS PRESÍDIOS
DO CAPITÃO FELINTO
STRUBLING MÜLLER
(1936–1937)
O ano de 1936 começou naquele mesmo ambiente sombrio, cheio de incertezas, violências e ameaças que
pairavam sobre o País, desde novembro do ano anterior.
As prisões se sucediam, cada vez em maior número, como conseqüência das informações que iam sendo
obtidas pela Polícia, por meio de torturas selvagens,
infligidas aos elementos que eram detidos. Entre eles
contavam-se alguns estrangeiros: o alemão Harry Berger
e sua mulher; o norte-americano Victor Allan Baron, que
se dizia ter-se suicidado na prisão; o francês Jules Vallée
e sua mulher, Alfonsine, e, por fim, Rodolfo Ghioldi, secretário do Partido Comunista Argentino e sua mulher,
Carmem. Esse fato permitiu ao governo reforçar suas
afirmações de que os levantes militares de 1935 eram
de caráter comunista, e dirigidos do exterior pela Internacional Comunista.
Entretanto, esse "caráter comunista" da revolta
militar foi sempre negado pelos principais chefes do
movimento. Agildo Barata, em seu livro já citado, descrevendo o Plano de levante do 3° RI, de novembro de
1935, afirma no item 4:
Afastados os reacionários do contato com as tropas que
comandavam, os "encarregados do levante", se dirigiam à
tropa concitando-a a servir à Revolução. Nas arengas deviase caracterizar as finalidades do movimento: a) conquista
de um governo popular-nacional-revolucionário, com Prestes à frente; b) a revolução era feita sob a bandeira da ANL e
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
195
sua finalidade estava implícita na palavra de ordem da ANL: "Todo o poder a ANL! Por Pão,
Terra e Liberdade!"; c) o novo governo deveria liquidar com a dominação do País pelo capital
estrangeiro colonizador; nacionalizar as empresas estrangeiras que exploravam a economia
nacional e providenciar a supressão imediata da remessa de capitais para o exterior a título
de pagamento de juros ou amortizações de pseudodívidas; d) providenciar a distribuição de
terras aos lavradores sem terra que nelas trabalhassem; e) dissolução das milícias fascistas e
das polícias especiais; f) aumento substancial dos efetivos do Exército; g) estabilidade dos
sargentos; h) possibilidade de os praças ascenderem ao oficialato; i) aumento geral de salários
e vencimentos; j) defesa e ampliação das liberdades públicas, etc.
Com essas inúmeras prisões que iam sendo realizadas eram também apreendidos arquivos e documentos em grande quantidade, nos quais apareciam referências a nomes de centenas de pessoas que iam enchendo cada vez mais os cárceres.
Essas circunstâncias facilitaram ainda mais ao governo a decretação de leis especiais tais como a do "Estado de Guerra" e a criação de um Tribunal de Segurança, que
permitiram aumentar as violências e a repressão contra todos os elementos considerados comprometidos, direta ou indiretamente, nas conspirações ou nos levantes
militares. Todos os presos com armas nas mãos e muitos outros cuja participação
não chegou a se concretizar foram demitidos das Forças Armadas ou dos cargos
públicos que exerciam.
Criada uma "Comissão de Repressão ao Comunismo", logo em sua primeira
reunião, seu presidente pediu a prisão imediata de pessoas apontadas como suspeitas de ligação com as atividades comunistas, sendo consideradas como as principais, as seguintes: Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal; o coronel Moreira
Lima; Maurício de Lacerda; Anísio Teixeira; Elieser Magalhães, irmão de Juraci Magalhães, então governador do Estado da Bahia; Luís de Barros, irmão de João Alberto;
Valério Konder, médico sanitarista; e Odilon Batista, médico, filho de Pedro Ernesto.
As demissões de funcionários federais, estaduais e municipais continuaram a ser
feitas em grande número.
Por ato de 27 de abril, o prefeito do Distrito Federal, cônego Olímpio de
Melo, que substituíra o prefeito Pedro Ernesto depois de sua prisão e destituição do
cargo, foram exonerados na Secretaria Geral de Educação e Cultura, os professores
Anísio Spínola Teixeira e Edgar Süssekind de Mendonça, do Instituto de Educação, e
Henrique de Almeida Fialho, das Escolas Técnicas-Secundárias, além de muitos outros em outras Secretarias. Eu escapei dessas demissões. É bem verdade que não me
dedicava a qualquer atividade de caráter estritamente político, não somente por
não ter qualquer vocação para tal, muito especialmente as que tivessem conotações
conspiratórias, como também por não me sobrar tempo, na época, todo dedicado
aos meus encargos de superintendente-substituto da Secretaria Geral de Educação
e Cultura do Distrito Federal e de inspetor de ensino no Departamento de Educação
do Estado do Rio de Janeiro. Por isso mesmo, as autoridades policiais tiveram muita
dificuldade em me localizar, quando meu nome apareceu em certo documento,
conforme relatarei adiante, e andaram detendo vários Paes Leme, inclusive o professor Jurandir Paes Leme, do Instituto de Educação...
Em março, era preso Luís Carlos Prestes e sua mulher, depois de uma verdadeira caçada, em que se empenharam elementos de nossa polícia política e agentes
de serviços de inteligência estrangeiros. Em abril, chegava a vez de Pedro Ernesto, e,
196
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
mais tarde, eram levados aos cárceres parlamentares que se opunham às medidas
solicitadas do Congresso pelo Governo ou denunciavam o tratamento desumano
infringido aos presos políticos: o senador Abel Chermont e os deputados Otávio da
Silveira, Abguar Bastos, Domingos Velasco e João Mangabeira.
A maioria das pessoas detidas no Rio de Janeiro era recolhida ao navio Pedro
I, transformado em presídio político. Quando essa embarcação, ancorada na Baía
da Guanabara, já não comportava mais presos, começou a ser utilizado o chamado
"Pavilhão dos Presos Primários" da Casa de Detenção situada à Rua Frei Caneca e,
posteriormente, também a "Sala da Capela" da Casa de Correção, naquela mesma
rua, onde, no passado, funcionava a capela do estabelecimento.
Para permitir uma melhor compreensão e avaliação do ambiente em que se
vivia naquele ano de 1936, de tão penosas recordações para mim, sou obrigado a,
mais uma vez, utilizar o método de transcrever aqui palavras de quem melhor do
que ninguém sabia dos fatos que vinham ocorrendo naquele período trágico da
vida nacional. E a transcrição tem que ser necessariamente longa, senão pouco
adiantaria para o objetivo que tenho em vista ao escrever estas Memórias.
Alzira Vargas do Amaral Peixoto, filha e colaboradora íntima do presidente
Getúlio Vargas e também acusada até de ter participado dos acontecimentos daquela época, aluna da Faculdade Nacional de Direito, foi, certo dia, procurada por
um grupo de colegas que solicitavam sua ajuda para tentar obter a liberdade dos
professores daquele estabelecimento, que consideravam presos injustamente. Em
seu livro Getúlio Vargas, meu pai, escreve ela sobre esse episódio:
Pedi esclarecimentos antes de me comprometer, queria saber por que haviam sido detidos
e qual a parcela de culpa que cabia a cada um. Não sabiam muito: um certo mistério envolvia os
fatos, não havia processo contra eles. Foram presos sob a acusação de comunistas e mais nada.
De nossa faculdade eram quatro: Edgardo Castro Rebelo, catedrático de Direito Comercial e
professor interino de Introdução à Ciência do Direito; Leônidas de Rezende, catedrático de
Economia Política; Hermes Lima, o novo catedrático de Introdução à Ciência do Direito, e
Carpenter Ferreira, catedrático de Direito Judiciário Penal. Avisaram-me que as pessoas favoráveis a eles, na escola, eram também tachadas de comunistas; que havia em toda a cidade um
ambiente de mal-estar, receio e desconfiança; que quem fosse apanhado lendo obras de determinados autores, era considerado suspeito e muita gente andava atemorizada. Fiquei logo solidária com eles, grata pela confiança que depositaram em mim. Não me consideravam delatora
e mostravam que tinham coragem. Pedi-lhes que me dessem tempo para obter informações.
Depois fiquei pensando se devia ou não esconder O Capital de Marx, que tinha entre vários
outros livros, igualmente condenados. Fui a pé da faculdade para o Palácio Guanabara e, ao
longo da minha tão familiar Rua das Laranjeiras, ia perguntando a mim mesma se era essa a
diferença que eu havia encontrado no Brasil. Alguma coisa estranha ao clima de meu país está
empestando o ar.
Esperei que papai terminasse seu despacho e o interpelei com cuidado. Estava com medo.
Se ele me mentisse, eu me sentiria roubada e aniquilada toda minha confiança. E a verdade me
apavorava. Papai me ouviu, atentamente, deixou que extravasasse minhas dúvidas. Depois, com
um gesto seu muito característico de quando se libertava de uma angústia, cruzou as mãos
sobre a mesa cheia de papéis. Pensou um pouco, medindo as palavras, levantou o punho esquerdo, contraiu os lábios e jogando a cabeça ligeiramente para frente, começou:
– Tu não estavas aqui quando estourou a revolução comunista e não podes avaliar a onda
de indignação criada pelo crime frio, calculado a relógio, que se perpetrou naquela madrugada.
Não foi uma luta, foi um assassinato premeditado. Os responsáveis foram presos, processados e
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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condenados. Quase todos pertenciam às forças armadas e perderam sua condição de militares.
A Constituição não dá poderes ao Executivo para punir esse tipo de crime político-militar e o
Legislativo teve que votar leis excepcionais. Prestes, o principal causador de todo esse drama,
desapareceu. Ainda não foi encontrado. Aqueles que acreditaram nele ou nas idéias dele, já
estão sofrendo suas penas. Sobre Prestes pesam acusações mais graves. Se verdadeiras, ele é
passível de crime comum. Assassinatos misteriosos de ex-adeptos do comunismo, inclusive de
uma moça, Elza Fernandes, acusada por eles de delatora, consta terem sido executados por
ordem dele. A repressão tinha que ser drástica para poder satisfazer a opinião pública, revoltada
ante a brutalidade dos fatos e também restabelecer a sensação de segurança que todos necessitavam para poder trabalhar, produzir e viver sem sobressaltos. Infelizmente, à sombra dessa
proteção dada pelo Governo, com as leis da exceção, muitas injustiças foram cometidas, difíceis
de reparar imediatamente. Houve quem se aproveitasse do momento para vingar-se de desafetos
políticos, sob a acusação de idéias subversivas. De todos os Estados estão enviando para cá, sem
processo, sem provas, centenas de pessoas, talvez inocentes. Não sou polícia. Não aprendi nem
mandei prender ninguém individualmente. É isso que queres saber?
Era. Mas ele continuou:
– Os autores da desordem têm de responder perante o povo pelos atos que praticaram.
Todos os suspeitos foram detidos de acordo com as leis votadas pelo Congresso e, agora, cabe ao
Judiciário averiguar se são justas ou injustas as prisões efetuadas e se os verdadeiros culpados
ainda estão impunes, não a mim. Ao Executivo compete a manutenção da ordem e a garantia
do cumprimento das sentenças dadas.
E, adiante, continua Alzira Vargas:
A explicação me satisfez e respirei aliviada: papai não havia mudado. Duas perguntas ainda
me queimavam a garganta: "E o Pedro Ernesto? Foi preso por quê? O que há de verdade a
respeito dele?" Respondeu-me:
– Não acredito que o Pedro Ernesto seja comunista. Ele é um homem bom e estava fazendo
uma apreciável administração na Prefeitura do Distrito Federal. Deixou-se envolver por pessoas
mais inteligentes do que ele e de poucos escrúpulos, que dele se serviram. Caiu dentro de uma
rede de conspiradores e se tornou imprescindível afastá-lo do governo da cidade para a própria
segurança do regime. Ele está sendo bem tratado, com todas as considerações que merece.
O terreno estava propício para o que era o objeto de minha missão. E os professores? Papai
meditou, relutante em me contar o resto. Levantou-se, acendeu um charuto, deu alguns passos
em torno da mesa, e depois disse:
– Foi uma exigência dos chefes militares. Consideraram uma injustiça serem punidos os
oficiais presos de armas na mão, enquanto os instigadores de tudo, os intelectuais que pregavam as idéias subversivas, continuavam em liberdade. Foi alegado em favor da prisão imediata,
o fato de se utilizarem da cátedra, da pena e da imprensa para instilarem o comunismo na
cabeça não suficientemente amadurecida dos jovens. Eram muito mais perniciosos do que aqueles
que combateram. Os relatórios sobre esse assunto devem estar entre os papéis que te entreguei,
depois da tua chegada.
•••
Não é fácil estabelecer a verdade histórica. Em contraposição às afirmações
do próprio chefe do governo sobre possíveis atrocidades cometidas pelos revolucionários durante os levantes nos quartéis, que incluíram até assassinatos de companheiros que dormiam, Agildo Barata, no livro já citado:
Quero chamar a atenção do leitor para esse fato: durante o levante do 3° RI, na noite de 27 de
novembro, só se verificaram duas baixas por morte: a do tenente Meireles, do lado da Revolução
198
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
e a do major Misael, do lado do governo. Até hoje se repete a calúnia de que o major Misael foi
assassinado dormindo... Das páginas deste livro eu dirijo um desafio aos nossos infames caluniadores
para que citem os nomes dos assassinados e como foram. Dirijo este desafio principalmente aos
chefes militares que, até hoje, em seus boletins dos dias 27 de novembro, repetem, numa
subliteratura infame, a velha calúnia do DIP getulista, esquecidos de que Getúlio tinha um propósito ao alimentar o clima do anticomunismo sistemático, tomando-nos como bodes expiatórios de
sua solerte propaganda para continuar no poder, salvando a democracia.
A essas afirmações indignadas de Agildo Barata, cabe acrescentar o que
Prestes diz sobre essa mesma questão, no livro citado:
É preciso esclarecer, mais uma vez, que nenhum soldado ou oficial do Exército morreu
dormindo durante o levante. Trata-se de grosseira mistificação anticomunista. É mentira. Aliás,
gostaria de saber como alguém poderia morrer dormindo se o quartel estava de prontidão. O
próprio senador Jarbas Passarinho declarou essa falsidade (p. 71).
Na Escola de Aviação, segundo parece, as coisas se passaram de maneira
completamente diferente. Os chefes revolucionários vieram de fora, invadindo a
Escola durante a madrugada, num carro em disparada, segundo os relatos muito
fragmentários que ouvi na prisão. Um tiroteio travou-se no pátio da Escola e em
outras dependências internas. Os aviões que deveriam ser utilizados no levante
tinham sido sabotados desde a véspera, ficando impossibilitados de levantar vôo.
Somente um, o do tenente França, que conheci na cadeia, sempre risonho e de bom
humor, conseguiu sobrevoar a cidade, lançando manifestos sobre os objetivos da
Revolução.
•••
Em princípios de 1935, tínhamos deixado a Zona Sul e fixado residência
definitiva no bairro da Tijuca. A razão principal dessa mudança era que Carolina
passara a exercer suas atividades de professora de ensino secundário na Escola
Técnica Secundária "Orsina da Fonseca", que funcionava em antigo prédio à Rua
São Francisco Xavier, junto à matriz tradicional daquele bairro, consagrada ao mesmo
santo. Ela tinha sido efetivada no referido cargo, desde a reorganização daquela
modalidade de ensino, realizada na administração Anísio Teixeira, e designada para
lecionar a cadeira de geografia. E nessa situação permaneceu até completar o tempo exigido para aposentadoria. A deliberação de deixar o ensino não foi, entretanto, tomada por ter ela se sentindo cansada do trabalho ou incompatibilizada com
ele por qualquer outro motivo relacionado com o desempenho de sua função de
professora. A razão principal de sua resolução foi a moléstia grave, de natureza
mental, que atingiu nosso segundo filho, conforme referi anteriormente, e que
tornou necessária sua maior permanência em casa para que pudesse prestar a ele
uma assistência continuada. Ela muito dedicada ao trabalho, e à convivência com
as alunas e as colegas, relutou muito em afastar-se da Escola e ressentiu-se bastante com a cessação de suas atividades no magistério, que tinha se iniciado em 1924,
com sua primeira nomeação para o cargo de professora-adjunta de ensino primário, e designada para aquela escolinha de Guaratiba, onde nos conhecemos.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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A Tijuca era, a esse tempo, um bairro tipicamente residencial, talvez o mais
agradável do Rio de Janeiro. Tinha como eixos principais as tradicionais Ruas Hadock
Lobo, que começava no Largo do Estácio e ia até o Largo da Segunda-Feira, e, em
seguida, e Conde de Bonfim, que começava nesse Largo e se estendia até quase a
entrada da Floresta da Tijuca, caminho para o Alto da Boa Vista. Nessas ruas ainda
podiam ser encontradas muitas daquelas mansões senhoriais e grandes chácaras,
liquidadas, mais tarde, impiedosamente, pelo crescimento da população e a especulação imobiliária, entrando-se, então, na era dos edifícios de apartamentos.
A casa que alugamos por 650 mil réis mensais ficava na Rua Visconde de
Figueiredo, quase na esquina da rua Almirante Cócrane, aberta recentemente. Bem
arborizada e tranqüila, os meninos podiam jogar bola na frente das moradias, quase todas de um único pavimento, sem qualquer perigo para sua integridade física,
pois o trânsito de veículos era diminuto.
O prédio em que passamos a residir era antigo, como quase todos os outros,
geminado, com um porão alto e três sacadas, dando diretamente para rua. Com
uma divisão muito típica na época, constava da "sala de visitas", onde instalei meu
escritório e a pequena biblioteca; o corredor – para onde davam as portas de dois
quartos, e a sala de jantar, ocupando toda a largura da casa e as demais dependências, em seguida. A entrada era por um portão alto, de ferro, ao lado, com duas
escadinhas de pedra que davam acesso, respectivamente, às salas de visitas e de
jantar. O terreno era bastante amplo e todo arborizado. Tempos de vacas magras,
nosso mobiliário era muito simples, senão mesmo bastante precário. Ali vivemos,
até 1939, quando pudemos adquirir nossa primeira casa própria de residência: primeira e única e onde permanecemos até os dias de hoje.
Na esquina da rua ficava o armazém do "seu" Florêncio, nosso fornecedor e
depois amigo. Por essa época, os comerciantes disputavam a freguesia e logo que um
novo morador se fixava numa rua era assediado por representantes das padarias, dos
armazéns, dos açougues, dos leiteiros, que tudo faziam para obter a preferência de
novos possíveis consumidores de seus produtos. Bons tempos aqueles!...
•••
Nessa velha casa, era grande a tensão e a ansiedade naquele final do ano de
1935 e princípios de 1936. O meu afastamento, juntamente com todos os colegas
da Inspetoria de Ensino do Estado do Rio de Janeiro, em virtude do "inquérito" a
que tínhamos sido submetidos, somavam-se os acontecimentos relacionados com a
demissão de Anísio Teixeira da Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito
Federal, acompanhada por todos os seus auxiliares e colaboradores. Essa situação,
além de tudo o mais, significava também uma drástica diminuição em nossos recursos para a manutenção da família. Por fim, o que era mais grave, vinham as
ameaças que pesavam sobre minha liberdade, depois que começaram a ser detidos
colegas de trabalho, do Rio e de Niterói, acusados de participação nos movimentos
sediciosos de novembro de 1935, ou de esposarem idéias consideradas "esquerdistas" ou "subversivas".
200
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mas havia, além desses, outros motivos de preocupações. Em princípios de
1936, Carolina tivera um aborto, não sei exatamente se provocado pelo estado de
tensão em que vivia ou por outro motivo qualquer. Desde algum tempo, vínhamos
utilizando todos os métodos disponíveis na época para evitar uma procriação excessiva, pois, do contrário, era muito provável que a família crescesse quase todos
os anos. E já estávamos com cinco filhos, nascidos respectivamente em 1928, 1929,
1931, 1932 e 1934... Em conseqüência desse acidente, o estado de saúde dela era
bastante precário naquele momento. E tinha que continuar a atender às necessidades das cinco crianças, além do trabalho na escola.
•••
Em meados de janeiro de 1936, Venâncio Filho, sempre dedicado aos amigos
e muito preocupado com o que estava acontecendo com alguns deles, tais como
Edgar Süssekind de Mendonça e outros, procurou-me para me transmitir um recado de Roquette Pinto, que desejava ter um encontro comigo.
Edgar Roquette-Pinto era grande nome nacional, naturalista e mestre na
antropologia, colaborador do marechal Rondon, em suas atividades junto aos indígenas brasileiros, de que resultou a obra Rondônia, – considerada um dos mais
importantes estudos sobre os nossos aborígenes. Figurava também como um dos
pioneiros da instauração das transmissões radiofônicas no Brasil e fundador da
Rádio-Sociedade do Brasil, mais tarde doada ao governo. A convite de Anísio Teixeira,
ainda em sua administração, assumira a direção dos serviços de museus, rádio e
cinema educativo do Departamento de Educação. Organizou a Rádio-Escola que
irradiava, diariamente para os estabelecimentos de ensino, programas educativos.
Com a demissão de Anísio Teixeira, dado seu grande prestígio nacional, que o colocava acima de qualquer suspeita, Roquete Pinto continuou na direção daqueles
serviços.
Francisco Campos tinha sido nomeado para o cargo de Secretário de Educação e Cultura em substituição a Anísio, segundo se dizia, para realizar o expurgo
dos elementos da Secretaria considerados como "subversivos" e comprometidos
com os acontecimentos de 1935.
Com a criação da Secretaria Geral de Educação e Cultura, em setembro de
1935, os serviços de educação e ensino do Distrito Federal tinham sido divididos em
dois setores principais: o Departamento de Educação, que se incumbiria de dirigir
toda a educação considerada sistemática, que compreendia o ensino pré-primário,
primário, secundário geral e técnico comuns; o outro, a Diretoria de Educação de
Adultos e Difusão Cultural, teria a seu cargo a educação assistemática, compreendendo, além do ensino elementar noturno e os cursos de extensão, continuação,
aperfeiçoamento e oportunidade, para adolescentes e adultos, as atividades dos
teatros, museus, bibliotecas, radiodifusão e cinema educativo.
Francisco Campos convidou Roquette Pinto para assumir a direção da nova
diretoria, tendo ele aceito o cargo.
Creio que, por indicação de Venâncio Filho, como disse, Roquette Pinto resolveu, por sua vez, me convocar para dirigir toda a parte referente ao ensino para
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
201
adultos, que eu tinha organizado na administração de Anísio, agora ampliada com os
cursos de educação primária, antes a cargo do Departamento de Educação Elementar.
Segundo me dizia Venâncio, ao me transmitir o convite, Roquete-Pinto discutindo com ele o problema da escolha de seus colaboradores, diante das informações que recebera sobre meu trabalho anterior, achava "que eu é que entendia
dessa questão do ensino para adultos", conforme suas expressões textuais, e por
isso ele decidira me entregar essa parte para poder se dedicar, com maior liberdade
e eficiência, aos outros aspectos que estavam mais dentro de sua especialidade e
experiências anteriores.
Apesar de não ter a intenção de aceitar o honroso convite, pelas razões que
expus pessoalmente a Roquette Pinto, não podia deixar de atender à sua convocação.
O encontro se deu no interior do Teatro Municipal onde o novo diretor tinha
instalado, na ocasião, seu gabinete de trabalho.
Ponderei então a Roquette Pinto que eu era um elemento muito visado,
quer como colaborador de Anísio Teixeira, quer como pessoa considerada como
partidária de idéias consideradas de "esquerda", apesar de não haver tido qualquer
participação nos lamentáveis acontecimentos de novembro de 1935, que condenava veementemente como insensatos. E não acreditava mesmo que a indicação de
meu nome para as funções que ele me destinava na Diretoria de Educação de Adultos e Difusão Cultural fosse aceita pelas autoridades então à frente da administração do Distrito Federal.
Roquette Pinto, entretanto, insistiu, com a obstinação que o caracterizava,
dizendo-me que talvez eu estivesse exagerando nas minhas suposições e que não
abriria mão de minha colaboração.
Ocorreu-me então uma saída para o impasse: sugeri que ele consultasse
previamente o Secretário de Educação e Cultura, Francisco Campos, sobre minha
nomeação, antes de propô-la oficialmente, pois estava certo de que ela não seria
aprovada. E isso foi feito. Com enorme surpresa, porém, passados uns dois ou três
dias, Roquette Pinto mandava-me comunicar que a consulta fora feita, e o Secretário concordava com minha nomeação, pois nada havia contra mim que a
desaconselhasse.
Assim, desarmado no meu firme propósito de recusar o convite feito por um
homem da estatura e do prestígio de Roquete Pinto, a quem o País tanto devia em
matéria de educação, ciência e cultura, submeti-me, apesar de não ter qualquer
segurança quanto às possibilidades de êxito das novas e mais pesadas tarefas que
seriam postas sob minha responsabilidade, dado o ambiente cada vez mais confuso
em que vivia naquele grave momento da vida nacional.
E se essa minha volta, pela segunda vez, aos serviços centrais de educação
da capital da República, poderia ser interpretada como uma quebra da solidariedade que devia aos amigos, companheiros e colegas que estavam sofrendo perseguições, algumas violentas, por outro lado, uma recusa depois de meu nome aprovado,
poderia também levar à falsa suposição que eu haveria tido qualquer participação
naqueles trágicos episódios de 1935.
E assim, a 27 de janeiro de 1936, assinada por Francisco Campos, era publicada
minha nomeação para o cargo de superintendente dos serviços de educação de
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
adultos da Diretoria de Educação de Adultos e Difusão Cultural da Secretaria Geral
de Educação e Cultura do Distrito Federal.
A respectiva portaria estava assim redigida:
Prefeitura do Distrito Federal
O Secretário Geral de Educação e Cultura resolve designar o professor de escolas técnicassecundárias – Paschoal Lemme – para superintender os Cursos de Continuação e Aperfeiçoamento e Ensino Elementar para Adultos, da Diretoria de Educação de Adultos e Difusão Cultural. Distrito Federal, 27 de janeiro de 1936.
(a) Francisco Campos.
Para meu colaborador direto convidei o doutor Pedro Gouvêa Filho, meu
colega na Inspetoria do Ensino do Estado do Rio de Janeiro, professor de ciências
naturais das escolas técnicas secundárias do Distrito Federal, com o curso de especialização da Universidade do Distrito Federal e que se tornara um dos meus melhores e mais íntimos amigos. Certa vez, tirou-me de uma situação terrivelmente
embaraçosa: não tendo podido encontrar o médico-parteiro da confiança de minha mulher, doutor Cassiano Gomes, também nosso excelente amigo, para fazer o
parto do nosso quinto filho, recorri ao boníssimo Gouvêa que, com sua competência profissional, resolveu com a maior eficiência e tato o problema, ganhando, para
sempre nossa gratidão. Sempre achei, e manifestei a ele muitas vezes, que sua
verdadeira vocação era para a medicina por suas qualidades de serenidade e probidade, e não compreendia por que, aos poucos, fora abandonando a carreira a que
tanto se devotara, desde os dias de residência no interior de São Paulo. E ele me
respondia com aquele seu jeito bonachão: não tivera sorte no Rio de Janeiro, e seu
consultório não progrediu como imaginava, e era preciso fazer face às necessidades da vida, sempre crescentes.
Assim, assistido por Pedro Gouvêa, atirei-me ao trabalho para preparar a
reabertura, em março, de todos os cursos: – os de ensino elementar noturno que
funcionavam, em grande número, nos prédios das escolas primárias e os de extensão, aperfeiçoamento e oportunidade, que deveriam ter seus planos ampliados
grandemente em relação ao que pudera realizar no ano anterior.
No dia 10 de fevereiro de 1936, O Globo publicava a seguinte nota sobre
minha nomeação:
Prof. Paschoal Lemme
Regozijo-me pela sua volta à Superintendência da Educação de Adultos.
Antes de sua nomeação para Superintendente de Educação Secundária, Geral e Técnica, o
professor Paschoal Lemme, como assistente técnico desse serviço, promoveu uma organização
modelar do serviço de educação de adultos, sistematizando-o e dando às escolas noturnas uma
distribuição que logo mostrou o resultado por uma grande afluência de matrículas, ao lado de
uma freqüência intensa.
Do êxito desse esforço O Globo teve ocasião de apresentar provas eloqüentes e palpáveis.
Sob sua orientação, essas escolas aumentaram o círculo das possibilidades de toda ordem,
proporcionadas a todos aqueles que quisessem melhorar e ampliar os seus conhecimentos e
aptidões, tanto próprios para o sexo masculino, como para o feminino.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
203
Elevado ao cargo de superintendente interino, esse professor aí pouco se demorou, pois
pediu a sua demissão e conseqüentemente das funções de assistente técnico, retirando-se da
atividade técnico-administrativa com o professor Anísio Teixeira.
À atual administração do ensino municipal, porém, não escapou a eficiência da obra do
professor Paschoal, no ensino de adultos, convidando-o, por isso, a retornar à sua direção.
Esse ato teve a mais lisonjeira repercussão no meio do professorado, tanto assim que nesse
sentido se manifestou o Centro dos Professores das Escolas Noturnas Municipais, como se verifica pelo seguinte ofício que lhe enviou o professor Múcio Cordeiro, presidente do mesmo
Centro:
É-me grato comunicar a V.S. que este Centro, em sua última sessão de diretoria, aprovou, com viva
satisfação, a proposta do Exmo. Sr. Secretário de Educação, designando V.S. – a quem a classe rende
merecidas homenagens pela apreciada operosidade e competência - para o elevado cargo de Superintendente dos Cursos de Continuação, Aperfeiçoamento e Extensão, lugar já desempenhado por V.S. com
inexcedível brilho. Congratulando-me com a Secretaria de Educação pelo acerto da escolha, apresento
a V.S., envolto com os afetuosos parabéns do Centro, os protestos de muito elevado apreço e grande
estima.
Temos a registrar, ademais, outra homenagem que lhe preparam os seus colegas e amigos.
Trata-se de um almoço que lhe será oferecido em princípio de março em dia, hora e local
que serão oportunamente fixados.
Dentro de alguns dias estarão à disposição dos que quiserem aderir, as respectivas listas.
Mas, a razão, infelizmente, estava comigo, quando tentei recusar o convite
de Roquette-Pinto. Alguns dias depois da publicação do ato de minha nomeação, A
Ofensiva,1 órgão oficial da Ação Integralista Brasileira, publicava uma violenta nota
em que estranhava minha investidura em cargo tão importante da Secretaria Geral
de Educação e Cultura, eu que fora o organizador e o dirigente dos célebres cursos
"comunistas" (sic) do senhor Anísio Teixeira, nos quais se pregava abertamente a
"ideologia de Moscou", segundo as expressões textuais do referido jornal.
O recorte de A Ofensiva, que guardei por muito tempo, infelizmente, extraviou-se, não me sendo possível transcrevê-lo na íntegra, aqui, como um exemplo
típico das provocações mais torpes que, naqueles tempos, levaram tantas pessoas
inocentes a sofrerem inomináveis perseguições, fato esse reconhecido pelo próprio
chefe do governo – Getúlio Vargas – quando declarava à sua filha e secretária,
Alzira Vargas, conforme já vimos, mas não é demasiado repetir:
– Infelizmente, à sombra dessa proteção dada pelo Governo com as leis da exceção, muitas
injustiças foram cometidas, difíceis de reparar imediatamente. Houve quem se aproveitasse do
momento para vingar-se de desafetos políticos, sob a acusação de idéias subversivas. De todos
os Estados estão enviando para cá, sem processo, sem provas, centenas de pessoas, talvez inocentes.
Senti que a tempestade se aproximava...
No dia 14 desse aziago mês de fevereiro de 1936, estava eu em minha sala
de trabalho, situada num dos andares do edifício do beco Manoel de Carvalho, nos
1
A ofensiva, tradução literal do alemão Die Angriff, nome do jornal oficial do Partido Nazista Alemão.
204
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
fundos do Teatro Municipal, atendendo a um grande número de pessoas interessadas nos cursos que deveriam começar a funcionar em março. Entre elas havia professores, que se candidatavam a obter contratos para lecionar as variadas matérias
constantes dos planos de ensino e até mesmo os políticos que vinham pleitear
empregos para seus protegidos, pois o orçamento do ano incluía verbas generosas
para os contratos de admissão do pessoal necessário ao desenvolvimento dos trabalhos da Superintendência, conforme tinha sido amplamente divulgado.
No fim daquele dia exaustivo, em que atendera a um grande número de
pessoas, notei que restava ainda um rapaz de boa aparência, carregando debaixo
do braço uma pasta de couro e que estava sentado num dos cantos da sala, em
atitude de espera paciente. Convidei-o a vir até a minha mesa de trabalho, para
dizer-me a razão de sua presença. Ele, sentando-se ao meu lado, tirou do bolso
uma carteirinha de investigador da Divisão de Ordem Política e Social, e, segundo
me pareceu, bastante constrangido, disse-me, mais ou menos o seguinte:
– Vim até aqui para lhe transmitir a solicitação do capitão Filinto Müller, Chefe de Polícia,
para que o senhor compareça à Polícia Central para prestar alguns esclarecimentos. Como verifiquei que estava muito ocupado, esperei até que terminasse seu trabalho...
Agradeci a gentileza, e disse-lhe que estava à sua disposição, pedindo-lhe
apenas que aguardasse alguns momentos para que eu, por telefone, avisasse, sobre
minha ausência, meu chefe, o professor Roquete-Pinto.
Apesar de, ao utilizar o telefone em dependência interna do prédio, ter
podido escapar ao amável convite, ou melhor à ordem de prisão – pois era exatamente disso que se tratava – nem pensei em tal. Fiz a comunicação e voltei à
presença do funcionário da polícia carioca. Descemos até a Avenida Rio Branco, ao
lado do Teatro Municipal, tendo o investigador proposto que fôssemos a pé até a
Rua da Relação, onde ficava a sede da Polícia Central, pois não dispunha de qualquer condução e considerava pequena a distância que teríamos que percorrer. Recusei a proposta, alegando que estava bastante fatigado por causa da atividade
intensa que vinha desenvolvendo nos últimos dias, conforme ele mesmo verificara
enquanto estivera à minha espera.
Acenei para um táxi que passava, convidei por minha vez o agente policial a
me acompanhar e, dentro de alguns minutos desembarcávamos em frente à entrada do tristemente célebre edifício da Rua da Relação, de onde o capitão Filinto
Strubling Müller e seus "eficientes" auxiliares e colaboradores dirigiam a caça aos
"comunistas", aos milhares de elementos "subversivos", partidários de "ideologias
exóticas", "traidores da Pátria", "a serviço de Moscou" que, em todo o território
nacional lutavam para entregar o nosso amado Brasil aos "negregados senhores do
Kremlin", desprezando criminosamente nossas mais caras tradições, admiravelmente
sintetizadas na trindade sagrada: Deus, Pátria e Família.
Paguei o táxi e o meu gentil acompanhante conduziu-me ao 3° andar, entregando-me na chamada "Sala dos Detidos"...
Eram, mais ou menos, 5 horas da tarde do dia 14 de fevereiro de 1936...
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
205
•••
Ignorava, então, e por muito tempo ainda, que, a essa mesma hora, uma
turma de investigadores comparecia à minha casa para efetuar uma busca, onde
fossem colhidos documentos que pudessem me comprometer.
Recebidos por minha mulher, que de nada sabia sobre minha prisão, e que,
parece, manteve-se muito calma, limitaram-se a revolver meu escritório e a biblioteca, instalada na sala da frente da casa, recolhendo apenas alguns livros e
documentos sem maior importância.
Convidados a percorrer o resto do prédio, não aceitaram, dando-se por satisfeitos em sua busca.
Os livros, recolhidos à mala colocada em cima do guarda-roupa no nosso
quarto de dormir, não foram localizados e pareciam salvos.
Mas, minha mulher, muito justamente temerosa, aconselhando-se com o
Pedro Gouvêa, resolveu destruí-los todos, o que foi feito nessa mesma noite, consumindo-os, um a um, pelo fogo.
E assim, num auto-de-fé, medieval e nazista, foram reduzidos a cinzas todos
aqueles livros, que durante tantos anos consegui reunir com tantos sacrifícios e até
privações, inclusive uma coleção completa de O Capital, de Karl Marx, edição francesa Mollitor, em dez volumes, que recebera recentemente...
•••
O doutor Roquette Pinto, ao saber de minha prisão, ainda tentou obter algum
esclarecimento, mandando o Pedro Gouvêa à Polícia Central procurar um amigo que
lá trabalhava. Mas, o ambiente naqueles tempos era de tal ordem, que o referido
amigo desaconselhou-o a demonstrar interesse excessivo por mim, pois poderia ele
também, o doutor Roquette Pinto, passar a figurar na lista dos suspeitos.
•••
Creio que pouca coisa de novo, de original ou mesmo de sensacional é possível dizer da experiência vivida num presídio político, depois do que escreveu
Dostoievski em sua obra clássica Recordações da casa dos mortos. Brito Broca, em
nota explicativa em uma das edições em português, assim se refere a essa obra
imortal do genial russo:
[...] Quatro anos num presídio perdido nas solidões das estepes, entre criminosos vulgares, condenados de toda espécie. É o inferno. E mais do que o inferno – é a morte. Urgia dar testemunho
ao mundo dessa dura, dessa terrível experiência. E daí as Recordações da casa dos mortos,
editados em 1863...
E as características nacionais e particulares de experiência semelhante, do
que fui modesto protagonista, tiveram sua evocação praticamente esgotada pelo
gênio de Graciliano Ramos em suas Memórias do cárcere, sobre as quais Nelson
Werneck Sodré escreve em prefácio:
206
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
É certo que estas Memórias do cárcere despertarão um interesse invulgar mercê do depoimento em si que elas encerram, mercê de se constituírem como que a autópsia de uma época
das mais sombrias que este País já atravessou. Muitas das figuras que aparecem em suas páginas
estão vivas. Algumas, despertam e vivificam a paixão. Viveram grandes episódios, padeceram
dores inauditas, mostraram traços de grandeza como é raramente dado ao homem experimentar. Outras, que se fizeram notáveis pelo dado oposto, pela ignorância, pela malevolência, pela
crueldade, pela estupidez, apenas nos ensinarão a conhecer a exata medida do que existe de
sórdido na condição humana.
Mas, apesar de tudo, parece-me que há sempre uma área a ser explorada
nessa experiência terrível. Refiro-me às reações pessoais perante o que se sofreu e
se observou, e as particularidades de cada caso, que são sempre edificantes e, por
isso, talvez, justifiquem sua perpetuação pela palavra escrita, mesmo sem a
genialidade que tornaram imorredouras as obras citadas.
•••
A "Sala dos Detidos", naquele sombrio 3° andar do "Quartel-General" dos
domínios do capitão Felinto Strubling Müller, era uma espécie de vestíbulo do Inferno, onde à entrada, poderiam ser inscritos os versos imortais de Dante:
Per me si va nella città dolente,
Per me si va nell'eterno dolare,
Per me si va tra la perduta gente
Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!
E ali me achava eu, numa situação insólita, que jamais poderia ter concebido, mesmo nas mais imaginosas divagações de meu pensamento, apesar de todas as
ameaças que vinham se acumulando, desde aqueles dias trágicos de novembro de
1935.
•••
Naquela antecâmara de humilhações e violências, havia grande número de
pessoas. O aspecto da maioria indicava que já se achavam ali durante vários dias:
barbados, sujos, fisionomias insones. Não conhecia qualquer delas. Acomodei-me
da melhor forma a um canto, troquei algumas palavras com uma ou outra, daquelas criaturas, e esperei, pois nada mais havia a fazer. O tempo ia avançando e,
naturalmente, pelo meu cérebro perpassavam toda a espécie de pensamentos e
indagações: o que iria suceder; de que seria acusado concretamente; quanto tempo
ficaria naquela situação; como teria sido recebida em casa minha prisão...
Alguém me trouxe um prato de comida, fornecido, segundo soube depois,
por um botequim das proximidades. As emoções impediam acentuadas sensações
de fome e o aspecto do jantar não era nada convidativo. Assim mesmo, engoli
alguma coisa.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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•••
A noite já ia alta. Eu cochilava no meu canto. O ambiente, porém, não era
tranqüilo. De vez em quando, alguém era chamado e saía da sala, sabe Deus para
onde. Outras vezes, era a chegada de algum novo preso, pois as detenções continuavam pela noite adentro. Por fim, entrou um policial com um papel na mão, lendo
meu nome em voz alta e convidando-me a acompanhá-lo.
Fui conduzido a uma outra dependência, do mesmo andar. Era uma sala não
muito espaçosa, atravancada por uma mesa retangular, colocada ao centro. Numa
das cabeceiras, de pé, estava um senhor gordo, de biotipo português, tendo no
rosto marcas de varíola. Seria Serafim Braga, elemento importante da Ordem Política e Social, na época. Com Emílio Romano e Miranda Corrêa, formavam a trinca
que chefiava a repressão com grande "eficiência", na polícia dirigida por Felinto
Müller. Eu mesmo tive a oportunidade de verificar os resultados dos métodos que
usavam para obter confissões de presos que voltavam da Polícia Central para a
Casa de Detenção, onde então me achava: palmatória e chama de maçarico na sola
dos pés, espancamentos, farpas de bambu enfiadas nas unhas, e outros mais ou
menos bárbaros.
Nos dois lados da mesa estavam sentados alguns elementos, todos exibindo
um excessivo armamento para as circunstâncias.
Convidado a me sentar na outra extremidade da mesa, recusei, sem qualquer objeção.
Assim, de pé, ainda meio atordoado com o que vinha me acontecendo com
tanta rapidez, ouvi algumas indagações a respeito de minhas relações com Anísio
Teixeira, mas compreendi desde logo que havia especial interesse em atingir Pedro
Ernesto. O curioso é que não me foi feita nenhuma pergunta direta sobre possíveis
atividades "subversivas", que eu tivesse praticado e que teriam dado motivo à minha detenção.
Tomei então a palavra e de maneira veemente fiz uma defesa completa de
Anísio, de quem me declarava amigo e colaborador, desde o início de sua administração, em 1931. Ainda nesses últimos dias, declarei, recebi dele um afetuoso cartão, escrito da cidade de Santos, onde se encontrava no momento. Em seguida falei
abundantemente sobre a obra que ele realizara no Rio de Janeiro, interrompida
bruscamente por acusações falaciosas, sem qualquer fundamento. Como era notório, Anísio fizera sua formação na América do Norte, tornando-se discípulo destacado do maior filósofo daquele país, John Dewey, na Universidade de Colúmbia.
Sua formação liberal-democrática jamais permitiria que ele se envolvesse em qualquer atividade de caráter conspiratório, conforme deixara perfeitamente claro na
carta que dirigira ao prefeito Pedro Ernesto quando solicitara demissão do cargo
de Secretário da Educação e Cultura do Distrito Federal. Por tudo isso, constituía
um verdadeiro absurdo imaginar-se que ele poderia haver tido qualquer participação nos acontecimentos que culminaram nos levantes militares de novembro de
1935. Quanto ao doutor Pedro Ernesto, nunca tivera qualquer contato pessoal com
ele, pois meu chefe hierárquico era o Secretário de Educação e Cultura e nada sabia
de suas atividades políticas, mas, apenas como era notório, que ele proporcionava a
208
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Anísio integral apoio para a realização da obra em que estavam ambos empenhados, que era de proporcionar ao povo carioca as melhores condições de ensino,
educação e cultura.
Um pouco encabulado por esse discurso, que era muito mais resultado do
nervosismo pela situação em que me encontrava do que qualquer intenção deliberada de fazer demonstração de coragem diante daquela exibição de força, em número de figurantes e quantidade de armamento, calei-me bruscamente, na expectativa de alguma reação desagradável. Ao contrário, notei, porém, uma certa estranheza por aquela minha atitude aparentemente destemerosa, mas que, como disse,
era simplesmente manifestação de meu estado emocional.
Um certo sentimento de ridículo invadiu-me então, ao me dar conta da
total impropriedade do discurso, que acabava de proferir em tal lugar, e para a
qualidade do auditório que me ouvia...
Senti uma certa perplexidade no ambiente, só quebrada pela voz do chefe
que me dizia que eu deveria voltar para a Sala dos Detidos, para repousar e no dia
seguinte, então, meu depoimento seria tomado por escrito.
Verifiquei assim, que teria que passar a noite naquela situação de absoluto
desconforto, o que era apenas um começo das experiências que iria viver desse dia
em diante.
Aos poucos, ia compreendendo que estava realmente preso dentro de uma
trama que já havia atingido milhares de pessoas e que, apenas, chegara a minha vez.
Começava também a entrar naquele típico estado de espírito de prisão, em
que o isolamento faz a imaginação trabalhar de maneira anormal, com enorme
velocidade e facúndia, criando-se um quadro inteiramente artificial da situação
em que se está mergulhado, e que vim a conhecer melhor, mais tarde, já no cárcere.
Essa condição traduz-se numa exaltação permanente que perpassa os cérebros dos
prisioneiros e que se agrava com o decorrer do tempo, às vezes alternada com
períodos de completo desânimo, depressão e mesmo desespero. Uma das maiores
torturas infligidas ao preso é mantê-lo nesse desconhecimento total do que se está
passando no mundo exterior, levando à falsa avaliação do tempo que decorre e à
deformação dos acontecimentos que se vão verificando.
Dessa noite, véspera da revelação das causas exatas de minha prisão, pouco
guardei de memória. A luz do dia acabou por penetrar naquele triste recinto em
que seres humanos e indormidos, esperavam que sua sorte fosse definida.
•••
Lá pelas dez horas da manhã, do dia seguinte, um policial me convidava a
acompanhá-lo. Descemos no precário elevador para o andar térreo do edifício e
soube então que iríamos até a Avenida Gomes Freire, onde, num daqueles velhos
sobrados de dois pavimentos, funcionava uma dependência da Polícia. Os inquéritos instaurados eram tantos que o prédio da Polícia Central já não dispunha de
dependências para acomodar todas as comissões deles encarregadas.
Aquela rápida permanência ao ar livre depois de tantas horas passadas no
ambiente confinado e angustiante da Sala dos Detidos, reanimou-me um pouco e
trouxe-me a ilusão de que o meu caso se resolveria sem muita tardança.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Subindo a velha escada que dava acesso ao andar superior do prédio no
qual entramos, por feliz coincidência, encontrei dona Armanda Álvaro Alberto, irmã
do Comandante Álvaro Alberto e mulher de Edgar Süssekind de Mendonça, amiga
e companheira nas atividades da Associação Brasileira de Educação. Acabava de
depor num inquérito instaurado para apurar atividades "subversivas" de uma entidade denominada União Feminina, de que fora presidente em certa época. Ao passar por mim, em meio da escada, segredou-me dissimuladamente uma frase cujo
alcance, no momento, não compreendi: "O Valério Konder assumiu a total responsabilidade pela confecção do programa".
Pouco depois, porém, iria verificar que a informação de dona Armanda seria
extremamente valiosa para o meu depoimento, além de ser a expressão da verdade.
Finalmente, era entregue ao encarregado do inquérito a que seria submetido, o delegado Lineu Cotta, já falecido, e que era também professor dos cursos
noturnos da Prefeitura do Distrito Federal e, portanto, meu subordinado. Esse cargo de professor das escolas noturnas era, então, os de acumulação permitida com
outras funções, e de exercício muito cômodo e as nomeações, como quase todas
outras no funcionalismo municipal, tinham caráter essencialmente político.
Feita a minha qualificação pelo escrivão, o delegado iniciou o interrogatório, sendo de justiça acentuar que fui sempre tratado com toda a atenção e até
cordialidade. Atribuo essa circunstância, que vinha se mantendo, desde que fui
detido em minha sala de trabalho, ao fato, que aliás nunca apurei devidamente, de
minha mulher ter um parente oficial do Exército, trabalhando ou pelo menos freqüentando o gabinete de Filinto Müller ou Miranda Corrêa, e o irmão dela e meu
cunhado, o capitão Everardo de Barros e Vasconcelos, ter sido colega de turma de
Filinto, sendo provável que tivessem feito alguma recomendação a meu respeito.
Lineu Cotta começou por indagar sobre minha filiação partidária e idéias
políticas, tendo eu respondido que nunca pertencera a qualquer partido político.
Sobre minhas idéias políticas não neguei que minhas tendências eram pelas correntes socialistas, que pregavam e lutavam pela igualdade de oportunidades entre os
homens, pela justiça social, por uma mais eqüitativa distribuição dos frutos do
trabalho de todos.
Depois de uma digressão mais ou menos prolongada em torno desses temas,
o delegado passou a uma questão mais concreta, como disse, apresentando-me
uma folha de papel mimeografada e indagando se eu reconhecia tal documento.
Não tive muito trabalho para verificar que se tratava exatamente daquele impresso
que, em caráter oficial, distribuíramos aos freqüentadores dos cursos da União
Trabalhista e que continha os planos, programas e condições de inscrição e freqüência às aulas que ali iríamos ministrar, conforme fora combinado com a direção
da referida entidade.
Quis saber, então, minuciosamente, o que era exatamente essa União Trabalhista. Respondi-lhe que, até onde pude verificar, tratava-se apenas de uma
agremiação operária de caráter beneficente, organizada sob a chefia política do
doutor Pedro Ernesto que, como era público e notório, pretendia consolidar suas
bases políticas junto à classe trabalhadora, para, segundo me parecia, futuras campanhas eleitorais.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Para ali fora eu mandado, em caráter oficial, por determinação do prefeito,
para organizar cursos de alfabetização e extensão cultural, conforme previa o regulamento da Superintendência a meu cargo, na época.
Nada mais do que isso.
Senti com maior clareza ainda que havia o propósito deliberado de atingir o
doutor Pedro Ernesto, muito mais mesmo do que a Anísio Teixeira ou mesmo a mim
pessoalmente. As razões eram óbvias: Pedro Ernesto aparecia então como um futuro concorrente sério, dada sua popularidade crescente, que se afirmara através da
administração que vinha fazendo no Distrito Federal, à presidência da República e
isso, é claro, não poderia agradar a Getúlio Vargas, que alimentava notórias intenções de permanecer, pelo maior tempo possível, na chefia do governo.
Continuando suas considerações, Lineu Cotta ponderava, porém, que o programa contido nesse impresso incluía passagens francamente de caráter "marxista", pois falava claramente em "luta de classes" e outras formulações específicas
das doutrinas de Karl Marx.
Utilizando a informação que recebera de dona Armanda Álvaro Alberto,
respondi-lhe que o autor do programa fora o doutor Valério Konder, mas que eu o
aprovara, e que tais conceitos além de não terem sido inventados por Marx, eram
de uso corrente em história e sociologia.
Afirmei-lhe ainda que fora eu quem convidara os professores Valério Konder
e Edgar Süssekind de Mendonça para colaborarem comigo nos cursos de extensão
da União Trabalhista, de cultura geral, ficando o doutor Valério Konder, meu colega
na Inspetoria de Ensino do Estado do Rio de Janeiro e médico sanitarista, como
supervisor geral, o professor Edgar Süssekind de Mendonça, como encarregado dos
cursos de história do Brasil e literatura brasileira, e eu próprio me incumbiria de
ministrar um curso de história do trabalho, do qual dera apenas duas aulas. Quanto
ao doutor Hermes Lima, pessoa da confiança do doutor Pedro Ernesto, creio, que
exercia a função de uma espécie de assessor político do prefeito, e não dera qualquer aula, apesar de figurar na relação dos professores, segundo constava do referido impresso.
O delegado Lineu Cotta pareceu dar-se por satisfeito com a minha explicação, que aliás era a exata expressão da verdade: conforme acentuei, nada tinha a
esconder sobre a questão, tudo fora feito às claras e em caráter oficial.
Mas, num gesto quase teatral, virando a amarfanhada folha de papel mostra-me o que no verso estava escrito, em verdadeiros garranchos, de pessoa semianalfabeta, o que era mais ou menos o seguinte: "Esse pessoal é nosso e trabalha
para o Pedro Ernesto. Manda esse programa para a nossa aprovação. Eu acho bom
e vocês? A. Fernandes". E em seguida: "Si, pero hay que cuidar dos campesinos".
Negro.
A. Fernandes, consoante me informou o delegado Cotta, era Antonio Maciel
Bonfim, então secretário do Partido Comunista do Brasil. Negro era nada mais
nada menos do que Harry Berger, o chefe comunista alemão que estava clandestinamente no Brasil, segundo se dizia, enviado pela Internacional Comunista para
assessorar os revolucionários brasileiros e mesmo os de toda a América Latina. Era
um especialista em questões agrárias e estranhava, com sua observação, que em
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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nosso programa não constasse qualquer referência aos problemas da terra, fundamentais para os países coloniais e semicoloniais.
E agora José?
De golpe, compreendi tudo o que se passara. Não se tratava nem da União
Trabalhista nem mesmo do programa dos cursos. O problema grave é que o tal
impresso fora encontrado num dos muitos arquivos apreendidos na papelada que
aos poucos ia sendo descoberta pela Polícia, com as prisões que iam sendo efetuadas
dos elementos revolucionários em seus esconderijos, com aquele recado que parecia estabelecer claramente relação entre nós, os organizadores dos cursos da União
Trabalhista, e os chefes comunistas.
Mas, na verdade, nada, absolutamente nada, tinha eu a ver com esse fato,
profundamente estranho e deplorável para mim. Tal como reafirmei ao delegado
Cotta, o impresso tinha sido amplamente distribuído aos freqüentadores dos cursos
e era possível que houvesse entre eles, alguém filiado ao Partido Comunista, que
tivesse entendido, em sua visão acanhada das coisas, que seria bom obter a opinião
da direção do Partido Comunista sobre o programa dos cursos. No momento, era a
única hipótese que poderia adotar para o fato, que me causava a maior surpresa,
senão estupefação.
Na verdade, mais tarde, ponderando melhor o que na realidade ocorrera,
cheguei à conclusão que teria sido talvez Valério Konder, que se filiara por aquela
época ao Partido Comunista, fato que eu desconhecia, e entendeu de submeter o
tal programa "às luzes" dos chefes comunistas. Valério Konder era uma pessoa proba e muito inteligente, mas sem dúvida, por essa época ainda sofria de uma doença
que já teria há muito sido diagnosticada como infantil.
O que é inacreditável, porém, é a leviandade com que se escreviam coisas
daquela espécie e, mais do que isso, se guardavam papéis dessa ordem, comprometendo pessoas que nada tinham a ver com acontecimentos que se desencadearam sobre o País gerando a onda de violências, que acabou atingindo milhares
de inocentes.
Por fim, o delegado Cotta perguntou-me se eu me filiara à Aliança Nacional
Libertadora. Respondi-lhe afirmativamente, pois nessa época era uma entidade
perfeitamente legal e seu programa, na parte referente aos problemas de educação, ensino e cultura, coincidia com meus pontos de vista. Não tivera, porém, a
oportunidade de desenvolver qualquer atividade política por ela patrocinada, nem
mesmo comparecera a qualquer reunião por ela convocada ou freqüentara sua
sede, declarações essas que faziam não para me isentar de qualquer culpa, mas por
ser a simples expressão da verdade. Aliás, considerava a Aliança Nacional Libertadora
como o maior movimento popular nacionalista de massas que já fora organizado
no País e pelo menos sua luta contra o fascismo e, especificamente, contra o
integralismo, merecia o apoio de todos os brasileiros verdadeiramente democratas.
Retrucou-me ele, porém, que tudo o que eu dizia seria perfeitamente aceitável se a Aliança Nacional Libertadora não fosse apenas uma "máscara" do Partido
Comunista e até mesmo da Internacional Comunista, em sua nova política de organização de "Frentes Populares".
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
A isso, disse-lhe, nada podia responder, senão que me filiara a uma entidade
brasileira, nacionalista, antifascista e progressista, legal, que apresentara um programa claro e amplamente divulgado, e onde militavam figuras bastante representativas da política e da cultura brasileiras.
E nada mais me foi perguntado.
Assinado o depoimento, fui mandado de volta à Sala dos Detidos.
Também, nunca mais fui chamado a depor, a não ser alguns meses depois,
para explicar o aparecimento de meu nome, escrito, segundo me informaram, pelo
próprio Luís Carlos Prestes e que se referia a certa greve na Cantareira...
Por agora, será interessante e elucidativo confrontar o depoimento que realmente prestei, conforme está descrito acima, e a versão constante do relatório
oficial do delegado Eurico Bellens Porto sobre o que ele denominava A insurreição
de 27 de novembro. Às páginas 121 a 124 do volume publicado pela Imprensa
Nacional, em 1936, lê-se o seguinte:
Os documentos apreendidos em 26 de dezembro do ano passado (1935), na Rua Paul Redfern
n. 33, residência de Arthur Ernest Ewert ou Harry Berger, vieram revelar a existência de novos
implicados nos movimentos extremistas.
Assim é que a fl. 25 do 4° volume da mencionada apreensão, vê-se um programa datilografado da "Secção Cultural da União Trabalhista", organizado pelos Srs. Valério Regis Konder,
Edgar Süssekind de Mendonça, Paschoal Lemme e Hermes Lima, a fim de servir de orientação às
aulas que seriam ministradas a operários pertencentes à União Trabalhista.
Ressaltam do programa as suas diretivas marxistas, bastando para comprovar o que dizemos, transcrever algumas de suas passagens:
[...]
2º – A sociedade é dividida em classes, com base nos interesses econômicos de cada classe. Antagonismo
natural entre esses interesses; antagonismo de classe; lutas de classe.
3° – A defesa dos interesses do proletariado, portanto, não obedece a razões sentimentais; razões lógicas e científicas dessa defesa; a unidade de classe e o papel histórico reservado ao proletariado. Crítica
do momento atual dessas relações (isto é, das relações de produção e das relações políticas entre as
classes). A democracia liberal e o capitalismo. A burguesia e o advento do fascismo. Teoria dos "governos
fortes", conservadores e a dualidade de classes como base do capitalismo. O fascismo na Itália, na
Alemanha, nos Estados Unidos. Nos países coloniais e semicoloniais. O fascismo no Brasil: o integralismo.
4° – Técnicas da luta da classe operária. Solidariedade de classe. Organização sindical, Unidade sindical.
Logo abaixo, seguem-se os nomes dos acusados com as funções que desempenhavam, e,
em seguida, escrito a lápis, por Antônio Maciel Bonfim ou Adalberto de Andrade Fernandes, um
bilhete, remetendo o programa a Artur Ernest Ewvert e Luís Carlos Prestes, a fim de que estes se
pronunciassem a respeito:
Este pessoal está encarregado dos cursos populares de Pedro Ernesto e apresenta este programa
para darmos opinião. Pedro Ernesto está de acordo, acha bom. Todos são simpatizantes. Achamos bom,
e vocês, que acham? Mandem dizer (ass.) Adalberto.
Segue-se a opinião de Artur Ernest Ewert, propondo o seguinte acréscimo à tese Técnica da
luta da classe operária: "A aliança do proletariado com os camponeses também". Negro (Artur
Ernest Ewert).
Ouvido o primeiro acusado, Valério Regis Konder, a fl. 19 do 6° volume da apreensão que
nos vimos referindo, informa que em maio do ano passado foi convidado pelo doutor Anísio
Teixeira, Diretor da Instrução Pública, em nome do doutor Pedro Ernesto, para chefiar a Seção
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Cultural da União Trabalhista, recém-fundada e instalada no prédio nº 34 ou 43, da Rua Sacadura
Cabral. Cerca de um mês gastou o acusado na elaboração do programa da seção Cultural, que é
de sua exclusiva autoria. Concluído o trabalho, apresentou-o aos doutores Anísio Teixeira e
Pedro Ernesto, obtendo dos mesmos a aprovação; que só então convidou os seus três colegas,
senhores Edgar Süssekind de Mendonça, Paschoal Lemme e Hermes Lima para auxiliarem-no na
execução do programa, de acordo com a especialidade de cada um.
Diz textualmente o acusado que
[...] tendo obtido a aprovação do programa, o declarante convidou os professores acima referidos para
auxiliarem-no na execução do mesmo, dentro das respectivas especialidades, isto é, o professor Paschoal
Lemme incumbir-se-ia da parte referente à "História do Trabalho", o doutor Hermes Lima da parte
referente à "Economia Política" e o doutor Edgar Süssekind de Mendonça da parte referente à "História
do Brasil", sendo que o professor Hermes Lima não chegou a dar nenhuma aula.
O acusado Valério Regis Konder, ainda em suas declarações, tem a suprema ingenuidade de
afirmar que leu
[...] o programa da Aliança Nacional Libertadora que foi publicado em todos os jornais desta capital,
tendo encontrado nele, de fato, pontos afins com o seu modo de pensar, desconhecendo, porém, em que
consistia a finalidade do Partido Comunista do Brasil por nunca ter lido nada que se relacionasse com
essa entidade.
Paschoal Lemme, em suas declarações a fl. 105 do 6° volume da apreensão citada, afirma:
"Que os professores Süssekind de Mendonça e Valério Konder fizeram parte da Aliança Nacional
Libertadora, segundo os mesmos lhe declaram".
Nem Valério Konder, nem Süssekind, nem Paschoal Lemme, nem Hermes Lima explicam o
aparecimento do programa da "União Trabalhista" pelo primeiro organizado, na casa de Harry
Berger, sendo que todos eles negam "as suas simpatias proclamadas por Adalberto Fernandes ao
Partido Comunista".
Mas os termos do bilhete de Adalberto a Ewert e a Prestes, remetendo o citado programa
são muito claros para que possam deixar qualquer dúvida em nosso espírito. Ouvido este, isto é,
Adalberto, a fl. 56 do 6° volume da apreensão da rua Paul Redfern, confirma-o dizendo que
[...] o programa da Seção Cultural da União Trabalhista que neste ato lhe é mostrado, chegou às mãos do
declarante por intermédio do Comitê da Região do Rio, sem saber quem tenha sido o portador, e com a
nota manuscrita a lápis pelo declarante foi encaminhada a Harry Berger e a Luís Carlos Prestes, para
opinarem sobre o mesmo; que esse programa foi entregue pelo declarante aos destinatários acima referidos por ocasião de uma das costumeiras reuniões na casa da Rua Sá Ferreira, cujo número não se lembra.
À fl. 192 do 2° volume da apreensão à rua Barão da Torre n. 636, encontra-se uma carta de
Ilvo Meireles a Luís Carlos Prestes, informando o seguinte:
Reunimo-nos ligeiramente na casa de "Pratti" (Gastão Pratti de Aguiar), ele, Valério (Valério Regis
Konder), Metalúrgico (7) e eu. Resolvemos reunião no próximo domingo quando então será eleita a nova
direção. Até lá pensamos melhor em outros nomes e não faremos a coisa à margem do Duque Estrada.
Fiquei encarregado de procurar o Duque e com ele e o Metalúrgico redigirmos o manifesto sobre a situação, acontecimentos de novembro, ligeira análise autocrítica, perspectivas e tarefas. Esse manifesto será
discutido domingo próximo.
Antônio Maciel Bonfim. ou Adalberto Andrade Fernandes, à fl. 52 da mesma apreensão (4°
volume), a propósito do trecho que transcrevemos declara que
[...] a carta à fl. 192 se refere a uma reunião havida na casa de um engenheiro de nome Gastão Pratti, à
Rua Visconde de Pirajá, cujo número não se recorda e que nessa reunião estiveram presentes o declarante, Valério Konder, um representante dos metalúrgicos, cujo nome ignora e que é referido na carta
citada como "Metalúrgico", o Dr. Pratti e o Dr. Ilvo Meireles; que nessa reunião tratou-se da reorganização da Aliança Nacional Libertadora, nada sendo resolvido, ficando por isso marcada outra reunião.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
À fl. 205 da mesma apreensão e volume há um documento do punho de Luís Carlos Prestes
(laudo de exame gráfico a fl. 3.000 do 12° volume), relacionando os elementos com que os
revoltosos podiam contar, onde se encontram as seguintes referências a Valério Konder e a
Paschoal Lemme: "Cantareira (isto é, organizar e orientar a greve), Ismar (Ilvo Meireles); Pratti
(Gastão Pratti de Aguiar), Valério (Valério Regis Konder); ... Leme (Paschoal Lemme, inspetor
escolar)".
Edgar Süssekind de Mendonça prestou declarações à fl. 23 do 6° volume; Paschoal Lemme,
à fl. 105 e Hermes Lima à fl. 25.
Os dois primeiros formaram no quadro social da Aliança Nacional Libertadora com destacada atuação. O último não pertencia, porém, àquela associação.
Em face dos termos das declarações da Valério Regis Konder, o organizador do programa da
Seção Cultural da União Trabalhista e na ausência de outros elementos de acusações contra o
professor Hermes Lima, não vemos como apontá-lo à Justiça como direta ou indiretamente
implicado na inssurreição de novembro.
À página 239 do referido relatório de autoria do delegado Belens Porto, lêse ainda:
Da exposição feita, quanto aos co-réus, conclui-se que estão incursos [...]
Nas penas do art. 1º combinado com os arts. 14 e 20, § 2° (da Lei nº 38, de 4 de abril de
1935): Valério Regis Konder, Paschoal Lemme e Edgar Süssekind de Mendonça.
•••
Publicação rara, esse volume contendo o relatório do delegado Bellens Porto sobre a chamada Insurreição de 27 de novembro; só a obtive, não me lembro
bem como, passados alguns anos dos acontecimentos a que se referiam.
E foi assim que tomei conhecimento da versão oficial sobre minha "participação" naquilo que posteriormente passou a ser denominado de A intentona comunista de 27 de novembro, comemorada, religiosamente, nessa data, pelas autoridades militares, com patrióticos discursos de advertência.
E fiquei imaginando o verdadeiro milagre que acontecera naquele maio de
1935, em que numa modesta associação de operários, que nem mesmo chegou a
funcionar, através de duas aulas de "história do trabalho", por mim, mal alinhavadas pudessem ter o mágico efeito de muitos meses depois concorrer para que um
pequeno grupo de delirantes oficiais das nossas Forças Armadas, contra a opinião
da maioria de seus próprios companheiros de idéias, resolvessem sublevar-se de
armas na mão, com o objetivo, de pela força, impor ao País as receitas de que se
diziam possuidores para a salvação da Pátria!
Esse primor de imaginação criadora só era ultrapassado, quando o autor do
relatório me elevava a "elemento de destacada atuação na Aliança Nacional
Libertadora", eu, que nem mesmo saberia indicar com exatidão onde funcionava a
sede dessa entidade!
Dera minha adesão ao programa adotado por ela conforme declarara em
meu depoimento, mas não dispunha de tempo nem meios para dedicar-me às suas
atividades, apesar de compreender perfeitamente suas finalidades e importância,
assim muito bem resumidas por Edgard Carone em seu livro Revoluções do Brasil
contemporâneo (1922-1938):
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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No espaço de quatro meses, a Aliança Nacional Libertadora desenvolveu um programa que
abrangia aspirações de todas as classes sociais e partidos, dos democráticos aos nacionalistas e
comunistas. Seus pontos básicos conservam-se quase os mesmos em todos os manifestos, a não
ser a radicalização das soluções. No manifesto-programa de fevereiro (1935) pede-se o cancelamento das dívidas imperialistas, nacionalização das empresas estrangeiras, liberdade de manifestação, fim dos latifúndios, extinção de tributos dos aforantes, defesa da pequena e média
propriedades, etc. Mais meticulosa ainda, outra publicação fala em revisão dos contratos celebrados com a finança internacional, monopólio cambial e controle do comércio exterior, criação de amplo mercado interno, expansão de indústrias básicas e eletrificação, proteção do pequeno comerciante, educação e saúde, garantias e liberdades constitucionais, etc.
E adiante:
A idéia de revolução com predomínio do Partido Comunista não existiu enquanto a Aliança
foi legal. Com o fechamento desta e a dispersão de parte de seus membros, os comunistas
passam a predominar, pois eram organizados e afeitos à ilegalidade; e o que era perspectiva
remota pareceu possibilidade imediata.
•••
Naquele dia 15 de fevereiro de 1936, ao voltar à Sala dos Detidos, depois de
ter prestado depoimento perante o delegado Lineu Cotta, ainda vinha cheio de
ilusões.
Imaginei, ingenuamente, que minhas declarações tinham sido satisfatórias
e que, na realidade, foi comprovado que eu nada tinha a ver com o levante militar
de 27 de novembro, nem jamais me envolvera em atividades que pudessem ser
consideradas como "subversivas", seria posto em liberdade.
Minhas ilusões em breve, porém, se desfizeram completamente.
Pouco me recordo dos dias que ainda passei naquela famigerada dependência do tenebroso prédio da Rua da Relação.
Conservo a vaga lembrança de que me permitiram telefonar para casa, onde
afinal pude ter um contato com minha família, sem, entretanto, poder adiantar
nada de concreto sobre o que iria ainda acontecer comigo.
Afinal, passados mais alguns dias, sou convidado a acompanhar um policial
que me conduzindo para fora do edifício da Polícia Central, fez-me entrar num
automóvel oficial, em companhia de mais duas ou três pessoas. O destino era a Rua
Frei Caneca, ou mais precisamente, o velho presídio ali existente, onde começaram,
efetivamente, os longos dias de minha prisão.
•••
O Pavilhão dos Presos Primários, ou abreviadamente, o "Pavilhão dos Primários", era uma construção relativamente recente comparada com os outros edifícios,
de aspecto verdadeiramente medieval, que compunham o conjunto penitenciário da
Rua Frei Caneca.
Constava de dois pavimentos, com cinqüenta cubículos, metade em cada
um dos pavimentos, sendo que o superior, era contornado por uma galeria estreita,
aberta em toda a extensão para o primeiro pavimento.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
À entrada e separado por uma grade, do restante do edifício, ficavam algumas dependências, inclusive um gabinete para atendimento médico e dentário,
tendo na parte superior alojamentos, onde tinham sido colocadas as mulheres,
presas políticas.
Os cubículos mediam mais ou menos uns 2,5 metros de largura por 5 de
comprimento. Ao fundo, um vaso sanitário, sem qualquer separação do resto, o que
tornava seu uso extremamente constrangedor. Uma pequena grade de ferro, na
parte posterior, proporcionava precária ventilação e iluminação. Na frente, a grade
clássica de todos os presídios, portão de ferro e cadeado medieval. O chão, de
cimento.
Duas camas de ferro com colchões ordinários e já batidos pelo uso constituíam o único mobiliário. À noite, os percevejos, que infestavam camas e colchões,
tornavam impossível um sono tranqüilo.
A entrada de novos presos no Pavilhão era saudada sempre por gritos, urras
e palmas pelos que lá já se encontravam. Diziam eles que era para levantar o ânimo
e evitar o "abafamento", a depressão dos que iam sendo colhidos pela repressão
policial e que, muito raramente, não acabavam hóspedes, por tempo indeterminado,
dos presídios do capitão Felinto Müller.
Fui colocado num cubículo do 1º pavimento, situado mais ou menos no
meio do Pavilhão, tendo por companheiro um senhor de maneiras finas, usando
óculos, que falava castelhano e que viera comigo da Sala dos Detidos, na mesma
condução. Pouco depois, pelas inevitáveis apresentações que trocamos, uma vez
que íamos ser hóspedes do mesmo alojamento, vim a saber que se tratava, nada
mais, nada menos, de Rodolfo Ghioldi, secretário do Partido Comunista Argentino.
Ex-professor primário, meu colega portanto, de maneiras extremamente educadas,
excelente cultura e palavra fácil, ótimo orador, tomamo-nos bons amigos. Sua
mulher, Carmen, também presa, estava junto com as outras mulheres, nas dependências da entrada do Pavilhão, a elas reservadas.
Depois vim a conhecer também a mulher de Prestes, Olga Benário Prestes,
Elisa, mulher de Harry Berger, além das brasileiras Rosa Meireles, Eneida Morais,
Maria Werneck de Castro, Nise Silveira, Beatriz Bandeira e, mais tarde, Valentina,
mulher de Adolfo Barbosa, e algumas outras cujos nomes não guardei. Delas,
conhecia apenas Rosa Meireles, que fora minha colega na Escola Normal do Largo do Estácio: era irmã de Silo, Ilvo e Francisco Meireles e mulher do capitão
Costa Leite, todos amigos e colaboradores de Luís Carlos Prestes em suas atividades revolucionárias.
Ghioldi, considerado pela Polícia como um dos homens-chave da trama da
insurreição de 27 de novembro, tinha sido torturado várias vezes e, quando novos
documentos iam sendo colhidos era novamente chamado para prestar novos esclarecimentos. Isso se dava sempre em horas avançadas da noite, e na gíria macabra
da cadeia os presos eram convocados para "sessões espíritas", onde os "espíritos"
que baixavam eram novos espancamentos e torturas.
Acabrunhado, ao ser convocado para esses novos depoimentos, Ghioldi, desesperado, repetia monotonamente:
– Papieles, papieles, más papieles!.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Sua mulher foi solta e recambiada para a Argentina, pouco tempo depois.
Ele, porém, continuou preso ainda por muitos meses. Tendo, por fim, adoecido
gravemente, talvez por isso e também por influência do irmão, Américo Ghioldi,
líder do Partido Socialista Argentino, nossas autoridades acabaram por devolvê-lo
à terra natal, para não ser responsabilizadas por sua morte num cárcere brasileiro.
Durante sua permanência no Pavilhão dos Primários, tornou-se figura conhecida e
admirada por todos os presos, não somente pelo seu trato ameno e educado, como
principalmente pelas palestras que pronunciou em várias oportunidades, comentando ocorrências políticas ou discorrendo sobre significação de datas ou figuras
importantes do cenário latino-americano e mundial. Seu castelhano, claro e fluente, não constituía obstáculo para a compreensão do que dizia, mesmo pelos detentos
de menor cultura.
Anos mais tarde, já recuperado da saúde, passando pelo Rio de Janeiro, creio
que de volta de uma viagem à Europa, pronunciou uma conferência na sede da União
Nacional dos Estudantes, sobre problemas políticos da época. Soube então que perguntara por mim, mas não cheguei a encontrar-me com ele. Depois disso, nunca mais
tive qualquer notícia de Ghioldi e nem posso imaginar o que poderia ter acontecido
com ele com os acontecimentos que levaram a Argentina à deplorável situação política em que hoje se encontra.
No cubículo que ficava exatamente fronteiro ao nosso, depois de alguns
dias, comecei a notar o aparecimento de uma figura de aspecto grosseiro e linguajar
nordestino, que passou a travar com Ghioldi, através das grades, intermináveis discussões, que, às vezes, se tornavam bem ásperas. Soube então que se tratava de
Adalberto Fernandes ou Antonio Maciel Bonfim, secretário do Partido Comunista
Brasileiro. Fazia com Ghioldi um contraste constrangedor, nas maneiras, no vocabulário grosseiro e no comportamento desabrido. Fora, segundo se dizia, aluno dos
jesuítas na Bahia e se gabava de seu parentesco com Antônio Conselheiro, o fanático de Canudos.
Os dois usavam, às vezes, um francês primário em suas discussões. Aos poucos
fui entendendo que elas versavam, principalmente, sobre o caso de uma jovem, creio
que de nome Elsa e que e tornara amante de Bonfim. Presa pela Polícia, parece que fora
forçada a fazer confissões que comprometeram gravemente elementos da direção do
Partido Comunista. Acabara por desaparecer, segundo se dizia, sacrificada pela Polícia,
ou de acordo com outras versões, a mando dos próprios dirigentes comunistas.
Somente vim a compreender toda a extensão desse terrível episódio, quando
li a referência que a ele faz Luís Carlos Prestes no livro já citado. Diz ele à página 88:
Eu não mandei matar Elsa. O que ocorreu foi que a polícia ligou a morte dela com uma
carta minha, escrita antes de ser preso, em que recomendava punição para os traidores. Quem
mandou matar Elsa foi o Partido [sic]. Aliás, eu não sabia nem da existência desse processo,
porque Sobral Pinto não me comunicou.
E por fim:
Quem lê a sentença, percebe claramente que o juiz transformou, no último momento, a
absolvição em condenação. E eu realmente merecia ser absolvido porque não tinha nada com o
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
crime – um ato brutal que devia ser evitado. O Honório, quando foi preso, confessou sua responsabilidade. Outros membros do partido também.
Depois que conseguimos sair por algumas horas por dia, fora dos cubículos,
tive ligeiros contatos com Maciel Bonfim, sempre para mim profundamente desagradáveis. Mais tarde, circularam entre os presos boatos de que Bonfim se tornara
um informante da Polícia, talvez, segundo se dizia, levado pelo sentimento de vingança contra os antigos companheiros a quem acusava de causadores da morte da
infeliz moça. Enfim, um drama pungente, entrelaçado a tantas outras desgraças
maiores e menores que atingiram milhares de pessoas, a maioria, sem dúvida, sem
qualquer culpa efetiva.
Prestes faz as seguintes referências a esse Miranda no livro já citado:
O processo avançava e nós imaginávamos que o governo estava com os dias contados.
Engano. Na verdade as informações que tínhamos eram falsas. O Miranda mentia. Ele dizia:
"Temos grande influência nas Forças Armadas no Rio". Não era tanto assim (p. 68).
E na página 69:
Houve erros, o movimento fracassou. Mas foi um movimento honesto, patriótico, o primeiro grande movimento contra a fascistização do País. Eu até hoje não renego 35. Miranda – este
sim, o maior responsável pelo levante - o renegou: foi preso e passou a colaborar com a polícia.
•••
A vida no Pavilhão ia, aos poucos, ganhando aquela enervante rotina própria dos cárceres. Pela manhã, nos era servido um café ralo, trazido por um preso
comum, numa espécie de regador de jardim, e despejado, através das grades dos
cubículos, em canecos de alumínio, grosseiros e encardidos. Num caixote engordurado
pelo uso vinham uns pãezinhos lambuzados com manteiga ordinária. Segundo constava, a esse café era adicionado certo preparo à base de bromo, com o objetivo de
diminuir a excitação sexual dos presos: é o que se dizia, veiculado pelos presos
comuns, mas nunca constatado na realidade.
O almoço era servido também por presos comuns, nos mesmos caixotes
engordurados e em pratos de folhas, atirados por baixo das grades dos cubículos. É
indispensável dizer que a qualidade dessa comida era quase sempre de causar náuseas, mesmo para os prisioneiros de menores recursos, os operários, habituados às
suas clássicas "bóias-frias". Somente depois que conseguimos receber visitas das
famílias, é que pudemos obter algum suplemento alimentar de melhor qualidade.
Depois desse almoço era preciso procurar qualquer passatempo que ajudasse
a preencher as longas horas que tínhamos que suportar até o jantar, semelhante ao
almoço, e, em seguida, as noites intermináveis, cheias de imprevistos. A princípio, sem
jornais, sem livros, sem jogos, sem nada, esgotados os assuntos das conversas com os
companheiros de cela, ou, à distância, em comunicações com os outros cubículos,
invadia-nos o tédio mortificante, a revolta impotente perante as iniqüidades de que
éramos vítimas, a maioria inocentes, e, por fim, até mesmo o desespero.
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Inventavam-se alguns recursos para manter o ânimo. Todas as notícias importantes que podíamos recolher durante o dia eram repetidas num boletim diário "irradiado" pela Rádio Nacional Libertadora, ao cair da noite. Ouvia-se, então, através das
grades de seu cubículo, a portentosa voz do doutor Campos da Paz Filho, locutor de
nossa "emissora", sem antenas, sem fios e sem microfone, que abria o programa tendo como prefixo a canção do brasileiro pobre. Mais tarde, esse programa foi enriquecido com números musicais, onde prevaleciam algumas paródias de algumas canções
populares: Cidade maravilhosa, O orvalho vem caindo, Implorar só a Deus. "Praia
maravilhosa/Cheia de encantos mil..." enaltecia o levante do 3º RI.
As outras canções apareciam com letras revolucionárias ou de lamentos à
nossa situação.
Essas paródias, posteriormente acompanhadas ao violão, por algum companheiro de prisão, eram cantadas por todos os presos do Pavilhão, levantando o
ânimo dos mais abatidos e infundindo coragem para resistir às condições desumanas que nos eram impostas:
De vez em quando, os programas eram enriquecidos com números de declamação, comentários políticos ou palestras.
Olga Prestes, encostando-se às grades que nos separavam do alojamento
das mulheres, com sua voz quente e o sotaque judeu-alemão, entoava canções
revolucionárias: "De pé, oh vítimas da fome!"
Eneida declamava, com aplausos entusiásticos, Essa nega fulô...
Benjamin Schneider com sua voz enrouquecida, cantava, em russo, Os barqueiros do Volga...
E assim íamos passando o tempo...
•••
Durante muitos dias fomos mantidos sem receber qualquer notícia das famílias. Alguns presos recebiam embrulhos deixados na portaria do Presídio por
familiares ou amigos, contendo, em sua maioria, guloseimas, que eram recebidas
com a maior alegria e quase sempre divididas com os mais necessitados.
Os comunistas, com a experiência de prisões anteriores, organizaram o que
denominavam de coletivo, uma comissão de presos que procurava obter toda a
espécie de donativos, inclusive dinheiro, para auxiliar os companheiros mais desprovidos de recursos.
E assim, nessa rotina exasperante, sem quaisquer perspectivas ou possibilidade de previsão do que nos poderia acontecer no momento ou no dia seguinte,
iam se escoando as horas, os dias, as semanas, numa tranqüilidade mórbida, onde
não faltavam ilusões, atritos, impaciências, por aquele contato permanente e forçado de pessoas que, nem sempre, podiam demonstrar entre si boa vontade nessa
situação. Eu, por exemplo, com meu temperamento pouco expansivo, introspectivo,
sofria enormemente com essa exposição, sem tréguas, de sentimentos e atitudes.
Esse ambiente só era quebrado pela chegada de algum novo prisioneiro, que
procurávamos acolher da melhor forma, e que quase sempre trazia alguma novidade do exterior, ou por notícias truncadas que nos eram veiculadas através dos
220
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
presos comuns que nos serviam, por algum carcereiro mais acessível ou ainda por
algum jornal, sempre atrasado, que conseguíamos obter clandestinamente.
•••
Essa tranqüilidade viscosa e angustiante não durou, porém, muito tempo.
Aos poucos, os presos recolhidos ao navio-presídio Pedro I foram sendo
transferidos para o Pavilhão dos Primários. Tentativas de fuga de um grupo de
militares e também a pressão de algumas famílias de presos de maior prestígio
social, que insistiam em visitá-los, parecem ter levado as autoridades a desativar a
embarcação.
Em breve, o Pavilhão estava com sua lotação normal enormemente excedida: os cubículos, projetados para dois presos, passaram a receber três, quatro e até
mais, agravando tremendamente as condições de higiene e também a da alimentação. E, mais tarde, com a chegada dos prisioneiros do Nordeste e de outros pontos do
País, a situação tornou-se verdadeiramente calamitosa. Foi então que a chamada
"Sala da Capela" da Casa de Correção começou também a receber presos políticos,
transferidos, a princípio os que, segundo o critério das autoridades policiais, apresentavam melhor comportamento ou condições sociais mais elevadas.
O Pavilhão vivia agora em permanente agitação. Os militares que se levantaram em armas no 3° RI e na Escola de Aviação, se consideravam verdadeiros
heróis de uma causa profundamente patriótica e expressavam suas convicções
em manifestações ruidosas e em protestos violentos contra as autoridades. Estavam convencidos de que grandes parcelas do povo brasileiro tinham compreendido e apoiado, com entusiasmo, seu gesto e sacrifícios e, quem sabe, um belo
dia, viriam, em massa, libertá-los, reparando as injúrias e as injustiças de que
eram vítimas... Doce ilusão, que lhes levantava o ânimo e os mantinha naquele
permanente transbordamento de entusiasmo e exaltação. Além disso, as próprias
características de sua educação militar levava-os àquela tendência a procurar
sempre, a "enquadrar" os companheiros de infortúnio, nós os pobres civis, sempre
"indisciplinados", e pouco dispostos a acrescentar às misérias da vida carcerária,
que nos era imposta, qualquer rigidez de comportamento e de apoio à agitação
em que viviam os jovens militares, cuja mais alta graduação não ia além de patente de capitão. Depois, é preciso reconhecer, que eles, apesar de terem sido
derrotados de armas na mão, mantinham sempre aquela "esprit de corps", que os
fazia gozar de certos privilégios, alguns difíceis de definir, que era radicalmente
negado a nós paisanos, principalmente os de condições sociais inferiores, os operários. Até mesmo a ginástica, os exercícios físicos, que era um hábito adquirido
através de longos anos pelos nossos agitados companheiros militares, eles nos
queriam impor, sem qualquer condescendência, o que sendo uma prática salutar
nas circunstâncias em que nos encontrávamos, nem sempre era bem recebida
pelos métodos de imposição que utilizavam.
Quanto à eufórica ilusão que acalentavam do reconhecimento do povo pelo
heroísmo que demonstraram, levantando-se em armas, contra as condições que a
maioria desse mesmo povo vivia, nós, civis, éramos, em geral, muito céticos a respeito
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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e preferíamos ir curtindo aqueles dias de sofrimentos e humilhações da maneira mais
tranqüila possível, procurando, antes de tudo, preservar nossa saúde, para termos
forças capazes de enfrentar o futuro incerto que nos aguardava.
Mas, a intransigência e a combatividade dos jovens oficiais tinha seus lados
positivos. Apesar de derrotados e muitas vezes caluniados, utilizavam o prestígio
que ainda conservavam, para dirigir a luta contra a administração dos presídios,
que nos queriam impor as piores condições de vida carcerária, segundo alegavam,
em cumprimento de ordens expressas das autoridades superiores, mas
freqüentemente, por fraqueza, e até por desonestidade e conivência no exercício
de suas funções.
E foi por meio dessas lutas que, aos poucos fomos conseguindo algumas
melhorias em nossa situação: na alimentação, no atendimento médico aos presos
doentes, maior liberdade dentro do presídio, recebimento de jornais, revistas e livros, visitas regulares de familiares, e, até mesmo, algumas horas por dia de vida ao
ar livre e banho de sol, no terraço do Pavilhão dos Primários.
Em diversas ocasiões essas lutas assumiram um caráter verdadeiramente
dramático, em que todos nós nos envolvemos.
Benigno Fernandes, um advogado e jornalista, apesar de gravemente doente, não conseguia ser removido para um hospital, apesar de todos os apelos feitos
pela família, por amigos e colegas, e protestos violentos que endereçamos à administração do presídio. Em tumultuosa assembléia, resolvemos então que entraríamos em "greve de fome", até que Benigno recebesse os cuidados médicos que seu
estado de saúde exigia.
Depois de uma luta de vários dias, afinal, a administração cedeu e o doente
foi removido para um hospital. Foram muitas horas de protesto violento, em que
por todos os meios, infernizamos a vida dos nossos carcereiros com o barulho ensurdecedor e permanente que produzíamos, ininterruptamente, dia e noite, com
todos os meios de que dispúnhamos, batendo nas grades dos cubículos com os
objetos capazes de produzir som, com gritos e cânticos que chegaram até a suscitar
reclamações dos moradores da vizinhança do presídio.
Além disso, esses protestos eram uma forma de descarregarmos as tensões e
frustrações de tantas semanas passadas naquele ambiente pesado, em que vínhamos sendo mantidos, contra todas as regras de tratamento de presos e especialmente de presos políticos, protegidos até mesmo por convenções e normas internacionais. Contudo, era mais uma lição que íamos aprendendo na prática: o chamado
delito político desperta reações muito mais ferozes do que o delito comum, pois
nesses os "donos do poder" não se sentem ameaçados.
Pouco tempo depois, de novo, foi preciso usar esse mesmo método de protestos violentos para se conseguir que Eneida, escritora e jornalista, recebesse o
atendimento médico exigido pelo seu estado de saúde.
Mas, os momentos mais dramáticos que tivemos que enfrentar foi quando
começaram a chegar até nós notícias vagas de que Olga Prestes, mulher de Prestes,
grávida de sete meses, seria retirada da companhia das outras mulheres presas, e
embarcada para a Alemanha nazista. Um movimento unânime de revolta apossouse de todo o Pavilhão, que durante toda uma noite entregou-se a manifestações
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
descontroladas, produzindo sem cessar barulho ensurdecedor. A Polícia fingiu ceder, alegando que a mulher de Prestes iria apenas ser transferida para um hospital,
onde lhe seria proporcionada a assistência que seu estado exigia. Concordamos,
mas com a condição de que ela fosse acompanhada por dois elementos indicados
por nós: os dois médicos doutores Campos da Paz, pai e filho, nossos companheiros
de prisão. A exigência foi aceita aparentemente, mas, em meio do caminho, o automóvel em que viajavam os dois médicos foi desviado, e num golpe baixo, bem de
acordo com os métodos usados pelas autoridades policiais, Olga Prestes foi conduzida
diretamente para bordo do navio cargueiro que a levaria aos cárceres nazistas e à
morte. Como se sabe, na prisão Olga deu à luz a filha Anita Leocádia, e somente
através de uma vigorosa campanha internacional, liderada por dona Leocadia, mãe
de Prestes, foi conseguida a libertação da menina, que mais tarde foi trazida para o
Brasil e entregue ao pai.
Ao tomarem conhecimento do que acontecera, com a volta ao presídio dos
dois médicos, a indignação apossou-se do Pavilhão dos Primários, onde aqueles
trezentos homens e mulheres continuaram, por todos os meios, a manifestar-se
contra aquele ato bárbaro das autoridades brasileiras, segundo se dizia, assessoradas por elementos da Gestapo, a polícia-política de Hitler.
Foi essa seguramente a maior tragédia entre tantas as que aconteceram
naqueles dias torvos de nossa história e que, mais uma vez, liquidava uma daquelas
qualidades de que se pretendia atribuir ao povo brasileiro: a da cordialidade, que
presidiria as relações entre pessoas e classes sociais no Brasil.
Nossos violentos protestos contra esse ato desumano de nossas autoridades,
custou-nos represálias covardes: suspensão, por largo tempo, das visitas de nossos familiares; restrições em nossa locomoção nas áreas do presídio; trancamento dos cubículos à noite; proibição do banho de sol no terraço do Pavilhão; impedimento para o
recebimento de jornais, livros e publicações em geral, entre outras mesquinharias.
•••
O ambiente no Pavilhão dos Primários mantinha-se sempre em grande agitação, com intervalos de desânimo e depressão.
As divergências entre os vários grupos e correntes de opinião se entrechocavam, às vezes violentamente, chegando até mesmo às lutas corporais.
Havia sérios ressentimentos entre o grupo militar, que resolvera apelar para
o levante armado, segundo, podíamos verificar, contra a opinião de elementos civis
da direção do próprio Partido Comunista e, especialmente, da Aliança Nacional
Libertadora. Pelo que pude ir entendendo aos poucos, essas divergências se traduziam em graves acusações mútuas e que tinham chegado ao extremo de ocasionar
expulsões e renúncias de elementos das direções do Partido Comunista e da Aliança
Nacional Libertadora. Alguns desses elementos eram acusados mesmo como traidores e "trotzkistas", e para esses últimos pretendia-se impor aos presos um boicote
nas relações pessoais dentro do presídio.
Naquele conglomerado bastante heterogêneo, quer política, quer socialmente,
havia de tudo, o que agravava esses atritos, que se tornavam mais freqüentes com o
cansaço e a irritação produzidos pelos já longos dias de prisão.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Havia os intelectuais de orientação marxista, que discordavam dos métodos
de direção e especialmente da predominância militar que desencadeara o levante
armado...
Havia os professores catedráticos de Direito, que, como já vimos, tinham
sido presos por exigência dos chefes militares, que alegavam não ser justo que
apenas os militares sofressem as sanções rigorosas da lei, deixando em liberdade os
maiores responsáveis pela pregação das idéias marxistas à juventude.
Havia os profissionais liberais, médicos, engenheiros, advogados e outros. Os
médicos predominavam em número, talvez porque a profissão os obrigava a conviver com a miséria e outras mazelas sociais, levando-os a se tornarem partidários de
reformas drásticas, revolucionárias, para corrigir as injustiças sociais.
Havia os líderes sindicais, bancários, marítimos, portuários, metalúrgicos e
outros que eram acusados de não terem sabido apoiar devidamente o levante militar, mas que amargavam na prisão da mesma forma, por sua influência sobre os
trabalhadores...
Havia os jornalistas, alguns filiados ao Partido Comunista e à Aliança Nacional Libertadora, ou simplesmente acusados de esposarem idéias subversivas...
Havia simples operários, presos em vários locais e ocasiões, vítimas de vagas
acusações ou denúncias...
Havia políticos de carreira, dos quais, entre nós estava apenas Lacerda.
Havia as mulheres trazidas à prisão por motivos bastante diferentes mesmo
sem qualquer acusação concreta...
Havia pessoas presas por relações muito vagas com supostos ou simplesmente vítimas de vinganças pessoais, conforme o próprio chefe do Governo em
suas confidências à sua Vargas...
Havia, por fim, até mesmo casos que poderiam ser classificados com pitorescos, se não representassem uma violência em que um ser humano perdia sua
liberdade por muito tempo, sem acusações sem processo...
Contava-se entre esses últimos que certo rapaz, garçom de um botequim
localizado nas imediações da Polícia Central, indo levar uma refeição a um preso,
conforme fora solicitado por um guarda do presídio, viu-se de repente detido nas
malhas da repressão, sem conseguir que fossem atendidas suas explicações, e assim
passou muitos dias preso. Como se dizia na época, o camundongo não conseguiu
provar que não era elefante...
E não faltava, entre nós, essa escória de todos os presídios que são os
espiões recrutados entre os próprios prisioneiros que fraquejavam na tortura ou
eram pleiteados, com favores, pelas autoridades, ou ainda eram policiais nesse
serviço profissional. Nosso comportamento era cuidadosamente observado por
esses elementos que, naturalmente transmitiam suas observações às autoridades
superiores.
Eu, pessoalmente, tive a prova dessa prática usual em todos os presídios
políticos. Tendo meu cunhado, oficial do exército, procurado, a pedido de minha
mulher, saber junto ao capitão Miranda Correa, de minha exata situação, informou-o ele que, na realidade, nada de grave havia contra mim, mas que, na prisão,
eu tinha me deixado envolver pelos elementos mais exaltados, especialmente os
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
militares, participando de todas aquelas desordens por eles lideradas, durante as
quais eram assacadas violentas ofensas às autoridades e que isso complicara minha
situação. Realmente, eu apoiava sistematicamente todos os movimentos de protesto contra o tratamento desumano a que eram submetidos os presos. E quando
minha mulher me transmitiu essa resposta, dada a meu cunhado, só pude dizer-lhe
que se esse era o preço de uma possível libertação, isto é, um comportamento
pusilânime perante as iniqüidades e as barbaridades que eu testemunhava contra
pessoas indefesas, sem culpa formada, sem julgamento, então eu ficaria no cárcere
por tempo indefinido.
•••
Em meio a toda essa exaltação, alternada com períodos de depressão, havia
momentos particularmente tenebrosos: eram as chamadas, altas horas da madrugada de algum preso, que, conduzido ao tristemente célebre edifício da Rua da
Relação, ia participar das "sessões espíritas", onde seria submetido às mais selvagens torturas para "confessar" muitas vezes coisas de que não tinha sequer conhecimento: espancamentos nas partes mais sensíveis do corpo, queimaduras por chama de maçarico ou cigarros acesos; choques elétricos; alicate aplicado nos órgãos
sexuais; farpas ou alfinetes enfiados entre as unhas; e outras diabólicas invenções
daquelas mentes doentias a quem estava entregue a salvaguarda da "ordem" pública.
Contava-se que os gritos das vítimas eram abafados ou disfarçados pela música
que os sádicos carrascos faziam executar em dependências contíguas às salas de
torturas, onde, muitas vezes, ficavam à espera dos resultados da aplicação desses
métodos selvagens os próprios chefes dos torturadores.
Essas não eram histórias criadas pela imaginação descontrolada dos torturados: eu próprio vi alguns desses infelizes, voltarem completamente inutilizados
depois desses tenebrosos interrogatórios.
Segundo tenho lido em depoimentos publicados por pessoas que foram apanhadas pelo poderoso aparelho de repressão, criado pelo governo que se instalou no
País após o movimento de 1964, esses "métodos", por incrível que pareça, foram
ainda extraordinariamente aperfeiçoados segundo consta, com a ajuda da "técnica"
estrangeira...
Mas, não parou aí a criatividade paranóica dos mantenedores da ordem, na
época. Inventaram, como a alternativa considerada mais arrasadora, a transferência de presos para o presídio da Ilha Grande, onde o infeliz iria sofrer as mais
indescritíveis humilhações, e ataques sórdidos à sua condição de pessoa humana,
em meio de facínoras e degenerados da pior espécie, e cuja descrição pela pena
genial de Graciliano Ramos, constitui os momentos mais dramáticos das Memórias
do cárcere e um dos pontos mais altos da literatura brasileira.
•••
Sob a pressão de nossos reiterados protestos e, certamente, das reclamações
das famílias dos presos de maior prestígio social e também das denúncias que alguns parlamentares faziam da tribuna do Congresso tínhamos, afinal, conseguido
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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alguma melhoria em nossa situação. Os cubículos passaram a ficar permanentemente abertos; a alimentação e o atendimento médico tornaram-se menos precários; foram estabelecidos dias certos para as visitas de pessoas das famílias dos
presos e de outras pessoas autorizadas pela Polícia; o banho de sol ao ar livre foi
concedido regularmente. Como já referimos, porém, essas regalias eram suspensas
arbitrariamente pelas autoridades, quando queriam nos castigar pelo comportamento indesejável que adotássemos.
Depois de tanto tempo de reclusão, as visitas de familiares eram os momentos de maior alegria para nós. De outro lado, porém, o conhecimento das dificuldades por que passavam a maioria com a ausência de seus chefes, aumentava nossa
angústia, e nos fazia mergulhar em depressão ainda maior, durante muitos dias.
Em várias ocasiões, a direção do presídio procurou descaracterizar nossa
condição de presos políticos, tentando introduzir, entre nós, presos comuns. De
uma vez foi um húngaro, apanhado em delito de contrabando, e que foi colocado
no Pavilhão dos Primários, com uma história de que teria sido até companheiro de
Bela Kun, em suas atividades revolucionárias na Hungria. Ficou algum tempo entre
nós, sem compreender exatamente o que estava se passando com ele e acusando a
Polícia de ter se apropriado de quantia avultada em moeda estrangeira, que carregava quando foi preso. Descoberta, sua, verdadeira identidade e atividades, acabou
por deixar o Pavilhão por pressão, especialmente dos militares, talvez também por
alguma influência poderosa de seus correligionários.
Em outra ocasião, nova tentativa foi feita visando a nossa desmoralização:
Meia-Noite, um bandido perigoso, foi colocado sem que percebêssemos, num cubículo situado na entrada do Pavilhão, separado pela grade principal do recinto em
que se encontravam os nossos. Descoberto por nós na manhã seguinte, a administração do presídio alegou, em sua defesa, que tinha que mantê-lo separado dos
outros presos comuns porque sua presença entre eles estava provocando sérios
problemas e não havia outro local disponível no momento. Não aceitamos a alegação por julgá-la capciosa e sem fundamento, além de estarmos convencidos de que
se tratava de uma manobra para nos desmoralizar. Nosso ponto de vista inarredável
sobre essa questão era de que, de acordo com a lei, os presos políticos deveriam ser
colocados em prisões especiais. O governo alegava, falsamente, que não dispunha
de locais apropriados para esse fim. Transformou por isso o Pavilhão dos Presos
Primários e, posteriormente, a sala da Capela da Casa de Correção, em presídio
político, removendo desses presídios os presos comuns. Assim, não poderia nos misturar com eles, apesar de, na prática, não gozarmos de qualquer tratamento especial, conforme estabelecia a lei.
Segundo histórias que circularam no presídio, esse Meia-Noite seria filho de
uma alta patente militar e que acabara por enveredar pelo caminho do crime,
como assaltante à mão armada, assassino e jogador. Na prisão, comportava-se com
um verdadeiro líder, infundindo terror aos companheiros de cela, apropriando-se
arbitrariamente dos resultados da jogatina a que se entregavam. Outras versões
davam-no como um verdadeiro Robin Hood carioca, expropriando os ricos para
ajudar os pobres. Era uma figura impressionante, jovem ainda, branco, de boa aparência, ao contrário da maioria dos companheiros de prisão, de porte atlético e
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
"ágil como um gato", segundo as informações veiculadas pelos presos comuns que
nos serviam e pelos próprios guardas do presídio.
Meia-Noite não se mostrou ofendido com a nossa repulsa a sua permanência no Pavilhão dos Primários, mas, ao contrário, parece que compreendeu perfeitamente nossas razões, e, com seu "prestígio" passou até a nos dispensar favores.
Entre esses, lembro-me que, num período em que fomos proibidos de receber jornais, ele conseguiu ludibriar a vigilância dos guardas e fazê-los chegar até nós. Um
dos métodos usados para isso era por meio de um barbante que fazíamos descer
por uma das janelinhas de um dos cubículos ao longo da parede externa do Pavilhão que ia dar ao pátio de lazer do presos comuns. Com sua agilidade e destemor
Meia-Noite amarrava os jornais que conseguia na ponta do barbante, que então
era puxado por um de nós para dentro do cubículo.
•••
Uma das coisas que mais irritavam as autoridades era o fato de fazermos
chegar, através de pessoas que nos visitavam, até a alguns parlamentares, documentos contendo denúncias sobre a situação em que nos encontrávamos e os maustratos e torturas a que muitos presos eram submetidos. Esses documentos eram lidos
da tribuna da Câmara e do Senado, por membros do Legislativo que se opunham ao
governo e que demonstravam com isso muita coragem. Alguns deles, como se sabe –
Abel Chermont, João Mangabeira, Domingos Velasco, Otávio da Silveira – foram presos e processados por causa dessas denúncias e por se manifestarem radicalmente
contra as leis de exceção que o governo solicitara ao Congresso. Para impedir, por
todas as formas o vazamento dessas denúncias, as autoridades, de tempos em tempos, enviavam ao presídio turmas de investigadores que invadiam nossas precárias
acomodações carcerárias remexendo brutalmente nossos objetos de uso pessoal, confiscando livros, cartas e papéis de qualquer natureza, à procura de documentos e seus
autores que visavam tornar públicos os crimes praticados contra nós pelos agentes
policiais, ou transmitiam instruções ou ainda pediam orientação a membro das organizações a que estavam filiados e que viviam na clandestinidade.
As revistas aos nossos visitantes tornavam-se então mais rigorosas para a
descoberta desses documentos e seus portadores e destinatários. E as mulheres e
companheiras dos presos sofriam os maiores vexames, sendo muitas vezes despidas
na Portaria do presídio, na busca desses papéis proibidos.
Nada disso, porém, impedia que esses documentos continuassem a sair e entrar e a chegar aos destinatários, vencendo todos os obstáculos, pois a inventividade
dos prisioneiros ia se aguçando, cada vez mais, com o passar do tempo.
Apesar de toda essa tensão e agitação em que vivíamos, havia sempre alguns dentre nós que, por temperamento, formação ou força de vontade, procuravam manter um certo equilíbrio naquelas condições tão adversas e se esforçavam
para tirar algum partido daquela inatividade forçada a que estávamos obrigados.
Foi assim que, depois e perdermos as ilusões de liberdade a curto prazo,
surgiu a idéia de criarmos uma "universidade" sui generis, onde se pudesse aproveitar os conhecimentos e talentos de muitos dos presos, alguns até de alta cultura,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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para ensinar e aprender tudo o que fosse possível, o que, além dos aspectos práticos, constituía um excelente meio de ocupar aquelas longas horas com uma atividade compensadora.
Apesar de estarem entre nós alguns professores universitários, entenderam
de me escolher para reitor e organizador dessa "universidade", talvez por uma apreciação um tanto exagerada dos meus títulos de educador ou, quem sabe, porque eu
era notoriamente um dos poucos elementos que conseguiu manter boas relações
com todos os grupos e correntes em que se dividiam aqueles quase 300 homens e
mulheres, das mais diversas formações, graus de cultura, orientação política e temperamento, que iam desde comunistas mais radicais até, como vimos, operários
semi-analfabetos que chegaram ali sem nunca terem compreendido exatamente as
razões de sua prisão, como elementos considerados capazes de ameaçar a segurança nacional.
Nunca compactuei, apesar de minhas idiossincrasias pessoais, com imposições partidas principalmente de alguns militares mais radicais no sentido de que
fossem isolados ou boicotados certos elementos civis ou militares contra os quais
assacavam acusações, procedentes ou não.
Meu estado de espírito não era, porém, dos melhores na ocasião: vivia terrivelmente preocupado com a situação da família, de minha mulher obrigada sozinha a cuidar das cinco crianças, que bruscamente foram privadas de minha assistência. É certo que ela, em nenhum momento, expressou qualquer gesto ou atitude
de recriminação, apesar de ser radicalmente contrária à minha real ou suposta
orientação ou comportamento de natureza política. Ao contrário, era eu quem,
muitas vezes, durante as visitas que ela me fazia, me queixava, em ocasiões de
maior desânimo, de que ela não mobilizava de maneira eficiente suas relações de
família para tentar resolver mais depressa minha situação. Minhas recriminações
eram, porém, totalmente injustas, pois ela agira da melhor maneira, mas a situação
é que era inteiramente desfavorável para o sucesso de qualquer intervenção.
Por fim, acabei por aceitar a tarefa, como um derivativo para as preocupações e sofrimentos e por considerar que realmente o fato de manter boas relações
com todos os companheiros de infortúnio, facilitava enormemente a incumbência
que recebia.
Pude assim convidar os professores pelo conhecimento que tinha de sua
competência e disposição de aceitar a tarefa.
Sérgio (ou Rafael?) Kamprad encarregou-se de lecionar filosofia e matemática superior. Era um rapaz que se dizia russo do Cáucaso, que andara por muitas
terras, numa vida misteriosa e cheia de aventuras, vindo parar, no Brasil, não se
sabia bem por quê. Cursara a Universidade de Berlim, segundo dizia, e demonstrava
realmente um largo conhecimento de filosofia e de matemática. Era considerado
como "trotzkista" e fora preso na casa de Adolfo Barbosa, onde dava aulas de
matemática e discutia questões de política. Pelo que constava, em seu poder foram
encontrados documentos, inclusive correspondência trocada com Trotzki, e naquela confusão em que o País vivia na época, foi considerado como elemento altamente perigoso, mas que na realidade nenhuma relação teria com os acontecimentos
de novembro de 1935. Entretanto, foi torturado na Polícia e depois mantido preso
por muito tempo, somente pelo fato de ser estrangeiro, e que estrangeiro...
228
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Seu curso de filosofia, que não passou de uma introdução, era dado com
muita segurança e clareza, e, ainda hoje, conservo um velho caderno no qual anotei
minuciosamente suas aulas.2
Depois que fomos postos em liberdade, tive a oportunidade de encontrá-lo
algumas vezes e pude assim confirmar a impressão que me deixara de seu alto nível
cultural, aliado a uma grande modéstia ou quase humildade. Trabalhou durante
algum tempo na publicação dedicada a assuntos econômicos – O Observador Econômico e Financeiro e nessa ocasião Kamprad me procurou para me pedir sugestões sobre um inquérito que pretendia realizar para essa publicação sobre as relações da educação com os problemas econômicos.
Mais tarde, encontrei-o muito ligado a uma senhora, funcionária do Ministério da Educação, creio que bem mais velha do que ele, e por quem se enamorara
perdidamente. Passado algum tempo, num encontro casual com essa senhora, soube que Kamprad tinha desaparecido súbita e misteriosamente, sem deixar qualquer
rastro. E apesar de todos os esforços que ela fazia para localizá-lo, não conseguiu
obter qualquer pista para desvendar esse mistério. Uma história verdadeiramente
estranha, entre tantas outras, envolveu a esquisita figura do nosso jovem professor
de filosofia e matemática da "Universidade da Cadeia".
Benjamim Schneider, um romeno da Bessarábia, dava aulas de russo a um
reduzido grupo de interessados, mas que em breve diminuiu ainda mais, pois as
dificuldades da aprendizagem da língua exigiam muita persistência, principalmente porque o professor improvisado, apesar da boa vontade, não utilizava métodos
muito eficientes de ensino.
Emílio Barros Falcão de Lacerda, que apelidamos de "Lacerdão", por sua
elevada estatura, era professor de inglês e ao ser preso, mantinha com outros colegas, um curso para o ensino dessa língua, no centro da cidade, com bastante sucesso. Foi o curso que despertou maior interesse, reunindo grande número de alunos,
não somente pela proficiência do professor, como também pelo interesse que o
conhecimento da língua inglesa despertava entre todos nós.
Tavares Bastos, poeta, ligado à carreira diplomática, e que já vivera algum
tempo em Paris, lecionava o francês com muito sucesso. Ao contrário do "Lacerdão",
era um tipo miúdo, sempre voltado para a apreciação do elemento feminino, mas
excelente pessoa, exibindo permanente bom humor.
Aristóteles Moura, alto funcionário do Banco do Brasil, e que mais tarde
escreveria um importante trabalho sobre os capitais estrangeiros no Brasil, dava
aulas de economia e contabilidade.
Ghioldi continuava, em todas as oportunidades, a nos deliciar com suas brilhantes palestras sobre política internacional, história e marxismo, comentando
sempre com muita agudeza e propriedade os acontecimentos mundiais.
O professor Frederico Carpenter, durante o pouco tempo que esteve entre
nós, discorria sobre temas de direito, sua especialidade.
2
Posteriormente, resolvi, como curiosidade, anexar o texto dessas aulas como Apêndice a este volume.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Os militares mais graduados como, por exemplo, o major Alcedo Batista
Cavalcanti, que servira no Estado Maior do Exército, Agildo Barata, Álvaro de Souza, Agliberto Azevedo, Ivan Ramos Ribeiro e alguns outros tentavam nos transmitir
um pouco de seus conhecimentos sobre a arte e a história militares, e freqüentemente
travavam-se longas discussões sobre a significação exata dos conceitos básicos de
tática e de estratégia.
Por fim, todos os que tinham alguma habilidade e boa vontade entregavam-se ao ensino das matérias comuns dos níveis dos cursos primário e secundário:
português, matemática elementar, geografia, história, ciências físicas e naturais e
também algumas técnicas como a radiotelegrafia e a topografia.
E foi assim que todos os presos analfabetos, que estiveram durante tempo
suficiente entre nós, saíram do cárcere alfabetizados.
A "Universidade da Cadeia" não teve, porém, grande duração. O entusiasmo
inicial foi, aos poucos, esmorecendo em face do cansaço e de outros acontecimentos que iam ocorrendo e que distraíam nossa atenção. Por fim, as transferências de
muitos presos para a Sala da Capela da Casa de Correção foram tornando inviáveis
o prosseguimento dos cursos, aulas e palestras. Somente alguns mais interessados e
mais persistentes, continuaram a aprendizagem de algumas matérias por conta
própria, utilizando livros e apontamentos.
•••
O outro grande derivativo para a nossa situação eram os tradicionais jogospassatempo. A princípio, as várias espécies de carteado e depois o xadrez. O pôquer
e o bridge eram os preferidos. Destes participavam quase todos os presos e entre
eles sobressaía a figura de Aparício Toreli, que vivia com a preocupação permanente de transformar em galhofa as situações, mesmo as mais trágicas: assim, conforme dizia, zombeteiro, se autopromovera à nobreza republicana, com o título de
"Barão de Itararé", uma vez que ninguém se animara a fazê-lo antes... Com sua
barba à Karl Marx, era uma das figuras mais populares e mais queridas entre toda
aquela tão díspar população que amargava nos cárceres da repressão de 1935 a
1937. Gaúcho, inteligentíssimo, e extremamente bondoso, dedicara-se a desmontar a mediocridade e a reação nacional com a velha máxima de Juvenal, ridendo
castigat mores. E, nessa especialidade, tornara-se um mestre e um precursor, desprezando todos os acenos da riqueza e morrendo pobre, num leito de hospital,
mantido por amigos e colegas da profissão a que se voltara durante toda a vida: o
jornalismo.
O alvo principal de suas "piadas", não sei por que razão, era a doutrina
positivista, sobre a qual lançava seu permanente espírito humorístico, parodiando
as máximas mais conhecidas da filosofia da Augusto Comte, tais como: "Viver às
claras... e comer as gemas", "Os vivos são cada vez mais governados pelos mais
vivos..." e muitas outras semelhantes...
O xadrez tornou-se depois uma verdadeira mania no Pavilhão dos Primários. Estava entre nós, preso, nunca soube exatamente por que, Tomás Pompeu Acioli
Borges, cunhado de Juraci Magalhães, então governador do Estado da Bahia. Pompeu,
230
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
na época, era o campeão brasileiro de xadrez, e um dos homens de trato mais
educado que jamais conheci. Uma verdadeira febre de aprendizado e de prática
desse jogo nobre apossou-se de um grande número de habitantes do Pavilhão. O
campeão fazia verdadeiras exibições de seu virtuosismo, jogando ao mesmo tempo
com um grande número de tabuleiros colocados na parte central do Pavilhão, enquanto ele ficava retido num dos cubículos do pavimento superior, comandando os
lances e vencendo todos os desafiantes.
Eu, porém, jamais consegui me interessar pela prática desse ou de qualquer outro jogo. Sempre senti uma certa sensação de inutilidade em empregar
qualquer esforço em atividades que não considerava produtivas ou enriquecedoras
dos meus conhecimentos. A prática de qualquer jogo me dava sempre a impressão de que estava desperdiçando o ato de pensar, a faculdade mais nobre do ser
humano e que o caracteriza como tal. Talvez, uma postura radical, resultante de
meu temperamento.
Minha maior distração ou passatempo sempre foi a leitura. E naquelas circunstâncias em que a escolha era muito difícil, lia e relia tudo o que me caía nas
mãos, desde algumas obras de pedagogia, história ou filosofia, assuntos de minha
especialidade e preferência, que podia obter ou minha mulher trazia, a meu pedido,
nas visitas que me fazia, até os calhamaços mais indigestos, entre os quais se destacavam as biografias histórico-literárias de Stefan Zweig.
•••
Mas, ainda nesse 1936, que se arrastava sem perspectivas, tivemos alguns
momentos de grande dramaticidade, que puseram à prova nossa resistência às mais
fortes emoções.
Certa manhã, já bem próximo da hora do almoço, nos foi comunicado que
deviam chegar ao Pavilhão dos Primários um grande contingente de prisioneiros,
vindo do Nordeste.
Realmente, dentro em pouco, o portão principal do Pavilhão era aberto
pelos guardas e, em "coluna por um", entrava um punhado de seres humanos, a
maioria de aspecto deplorável, barbados, fisionomias que revelavam os sofrimentos
e privações, de toda ordem, que tinham suportado na longa viagem que acabavam
de fazer, das cidades do Norte e Nordeste até o Rio de Janeiro.
Formamos alas para receber os novos hóspedes do Pavilhão, que desfilaram
em meio de nossos aplausos, vivas, punhos cerrados e cânticos. Em seguida, os
ajudamos a se instalarem nas vagas ainda existentes nos cubículos, cujas lotações,
como já dissemos, ficaram assim grandemente excedidas, pois onde deviam estar
duas pessoas, tiveram que ser alojadas cinco ou até mais. Em alguns, conforme os
hábitos nordestinos, foram estendidas redes, que substituíam as camas existentes.
O almoço começava a ser servido nos habituais caixotes e pratos de folha: desistimos da nossa parte para atender às necessidades dos recém-chegados.
Entre eles, vinham algumas figuras que já conhecíamos de nome, tais como
as pessoas que durante uns dois ou três dias estiveram à frente do governo nacional-libertador de Natal, no Rio Grande do Norte; o médico Sebastião da Hora,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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presidente da Aliança Nacional Libertadora no Estado de Alagoas, e homem de
recursos, e alguns outros.
Mas, a figura mais notável e que, naturalmente, despertava maior curiosidade entre nós era, sem dúvida, a de Graciliano Ramos, que já começava a despontar como um dos mais destacados valores da moderna literatura brasileira.
Aproximei-me dele e procurei prestar-lhe todos os esclarecimentos sobre as
características daquele ambiente confuso e trepidante em que ele acabava de penetrar, mas que já se tornara rotineiro para nós. Tornei-me, além de seu admirador
que já era, um amigo. Sempre amargo, arredio, e até, algumas vezes, áspero, via-se
que era um temperamento que sofria naqueles contatos obrigatórios e agitados
com pessoas de naturezas tão diversas, e isso eu podia compreender perfeitamente,
porque, de certa forma, eram também características da minha índole introvertida
e dada a poucas expansões.
Graciliano cumpriu, com a maior dignidade, seus dias de preso sem qualquer
culpa. E as humilhações que sofreu e as torpezas e violências que presenciou durante os meses em que o arbítrio rombudo lhe roubou a liberdade, sua pena genial
soube transformar na matéria de uma das mais impressionantes obras-primas de
nossa literatura: Memórias do cárcere. Com ela, o mínimo que se pode dizer é que
Graciliano vingou, de maneira arrasadora, todas as vilezas cometidas contra milhares de pessoas, a maioria, humildes e sem que tivessem praticado crime de qualquer
espécie.
•••
Ainda em 1936, outro acontecimento, agora de caráter internacional, causou entre nós profundo impacto. A contra-revolução tinha sido deflagrada na
Espanha e por todos os meios de que dispúnhamos procurávamos acompanhar a
luta heróica do povo espanhol contra o terror fascista, que procurava conquistar
ali posições para tentar se lançar em aventuras mais perigosas. Compreendíamos
perfeitamente que, na Espanha, se travava uma batalha decisiva para o futuro da
humanidade. Realmente, conforme escrevia Julio Alvarez de Vaya, Ministro de Estado do Governo Republicano Espanhol, no prefácio de sua conhecida obra La
guerra empezó en España – Lucha por la libertad –1936 -1939, terminada quando
era deflagrada a 2ª Grande Guerra Mundial (1939-1945):
La primera gran batalha de esta guerra fué en Espafia donde se libró. Una série de agressiones
– Mandchuria, Renania, Abissínia, Áustria, Checoslováquia, Albânia – la procederon o seguiron;
totalitaria alcanzó mayor brio e intensidad y donde los agressores pudieron ser destruídos por
mucho tiempo, o para siempre, si las democracias occidentales, cuyo interés vital residia en
ayudar ao pueblo español, no hubiesen incorrido en la monstruosa insensatez de consentir y
favorecer la agressión.
E adiante:
Si la intervención armada de Alemanha e Itália en España no hubiese sido tolerada, ni
Austria hubiese sido probablement anexionada, ni Checoslováquia invadida, ni Polônia atacada,
232
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
o en el caso em que la desesperación hubiese conducido a los agressores a intentar forzar una
salida, se hubieron tenido que afrontar con una Europa robustecida por el espirito de resistencia
en vez de hallarla desmoralizada y rota al cabo de tanta capitulación.
Sentíamos perfeitamente que a luta que se desenvolvia feroz na Espanha
contra o obscurantismo fascista e o terror nazista, era a mesma que levara aos
cárceres aqui, no Brasil, os que se empenharam no combate ao nosso fascismo
caboclo – o integralismo.
Assim, acompanhávamos com a mais viva emoção os lances daquela luta
sem tréguas que ensangüentou, por cerca de quatro anos, a bela terra de Cervantes
e Garcia Lorca.
Nos mapas que conseguíamos ou que eram desenhados especialmente pelos
militares, os deslocamentos dos exércitos eram acompanhados com os alfinetes de
cabeças coloridas, e as notícias que nos chegavam através dos jornais e do rádio
eram seguidas, dia e noite, com a maior avidez.
A derrota das forças democráticas na Espanha coincidiu com o início da 2ª
Grande Guerra Mundial; como previu Alavarez del Vayo. O totalitarismo nazi-fascista, animado com a experiência vitoriosa contra o povo espanhol, pôde lançar-se
na catastrófica aventura de 1939-1945.
Alguns dos jovens oficiais que aqui se levantaram em armas, em 1935, convictos de que estavam fazendo sua parte nessa luta contra o fascismo, cuja insânia
percorria o mundo, desde 1922, com a marcha de Mussolini sobre Roma, foram
participar da luta do povo espanhol, assim que conseguiram se libertar das prisões
brasileiras, num gesto de solidariedade internacional. E um deles, pelo menos, um
jovem tenente que conheci na prisão, sempre em permanente e esfuziante bom
humor, que me causava inveja e admiração – Apolônio de Carvalho – , depois da
derrota das forças democráticas na Espanha, refugiando-se na França, alistou-se
no Movimento da Resistência Francesa contra a invasão nazista, e ali granjeou o
reconhecimento do povo francês, recebendo condecorações por atos de bravura na
luta subterrânea contra às forças de ocupação de Hitler, até a libertação.
•••
O ano de 1936 ia se aproximando do fim, sem qualquer decisão sobre o
nosso destino. No Congresso, discutia-se a instituição de um Tribunal de Segurança, para submeter a julgamento quantos houvessem praticado "crimes" capitulados
na Lei de Segurança Nacional.
Parlamentares que levantavam suas vozes contra essa legislação de exceção, e
denunciavam da tribuna o tratamento desumano que estava sendo dispensado aos
presos políticos, foram, como vimos, por sua vez, levados à prisão e cassados em seus
mandatos.
Pelo Natal, renovavam-se as esperanças de liberdade... Realmente, para alguns essas esperanças se concretizaram. Creio, que entre esses foram incluídos os
professores universitários e alguns outros mais. Meu irmão Humberto, que nunca
fora ouvido ou processado, também pôde voltar para casa e tentar refazer sua vida,
interrompida por aquele pesadelo de tantos meses.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
233
Eu, porém, continuei a purgar o "crime" de cumprir meu dever regulamentar
de organizar ensino para aquele pequeno grupo de trabalhadores, congregados
naquela insignificante União Trabalhista, e, principalmente, o de ter pronunciado
aquelas duas mal alinhavadas aulas de história do trabalho, dentro de um programa "marxista", de acordo com a classificação dos ideólogos da polícia-política do
capitão Felinto Strubling Müller...
•••
Ao começar aquele ano de 1937, em que o País assistiria ao desfecho de
toda uma preparação que vinha sendo cuidadosamente realizada, para nossa entrada na corrente dos ventos autoritários que percorriam o mundo, a situação dos
presos políticos fora de alguma forma alterada.
Cerca de uma centena tinha sido transferida para a chamada Sala da Capela da
Casa de Correção, segundo parece, por um critério de nível e prestígio social: dos militares, apenas os oficiais; os civis, eram praticamente todos os profissionais liberais,
professores, médicos, engenheiros, jornalistas e alguns bancários de maior categoria.
As instalações e o tratamento que passou a nos ser dispensado eram realmente um pouco melhores.
O grande salão da antiga Sala da Capela foi transformado numa espécie de
dormitório de internato de colégio, com as "camas patentes" dispostas em três
fileiras ao longo de toda a extensão dessa dependência carcerária. As refeições
passaram a ser feitas em mesas improvisadas, no andar térreo. Anexo, havia um
campo de esporte dos presos comuns, que foi posto à nossa disposição.
A princípio, havia restrições para a utilização, em todas as horas do dia,
dessas dependências. Pouco depois, porém, essas restrições foram suspensas e passamos a circular livremente em todas elas.
Minha cama estava situada bem no fundo do salão, perto do antigo altar.
Ao lado, tinha se instalado Maurício de Lacerda.
E foi essa proximidade que estreitou nossas relações.
Maurício era uma figura singular em meio a todo aquele tumulto em que
vivíamos, naquele ambiente de gente tão heterogênea. Logo ao levantar-se, vestiase com todo o apuro e assim permanecia durante todo o dia, sempre com aquela
aparência de extrema dignidade no trajar e no trato educado com todos. Mantinha, entretanto, uma certa distância ou, pelo menos, não estimulava a aproximação muito íntima com qualquer dos companheiros de prisão. Ele, velho militante de
ásperas lutas políticas, com grande experiência de prisões e violência, parecia olhar
com certa ironia toda aquela agitação, de verdadeiros principiantes, e nas poucas
vezes em que se manifestou foi para tentar acalmar o radicalismo dos mais afoitos,
especialmente dos militares: creio que tentava demonstrar pelo seu comportamento, que cadeia é cadeia, vencido é vencido e atividade política era outra coisa – não
se resolvia com xingamentos ou agitações descabidas. Melhor seria manter a saúde
e o equilíbrio à espera dos momentos mais apropriados para a ação.
Assim, Maurício passava os dias, mergulhado na leitura de obras, especialmente de literatura francesa moderna, cujas páginas sublinhava, quase todas, a
234
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
lápis vermelho. Recebia visitas de sua companheira, Aglaiss Caminha, filha do romancista da escola naturalista Adolfo Caminha e que era professora de desenho e
artes aplicadas das escolas técnicas-secundárias municipais e, portanto, minha colega, e a quem eu conhecia havia bastante tempo.
Dado meu temperamento também infenso àquela agitação inócua que caracterizava a maioria dos companheiros de prisão, acabamos por estabelecer boas relações e, confesso, que essa aproximação me fez modificar de muito a impressão que
tinha de Maurício, através de sua longa e inquieta carreira política, que, em momentos mais agudos sempre recebera críticas severas de elementos mais radicais.
Dizia-me muitas vezes que, ao sair da prisão, iria empenhar-se em prosseguir na redação de suas memórias, e contava com meus conhecimentos especializados
da língua portuguesa para ajudá-lo nessa tarefa.
Postos em liberdade, encontrava-o freqüentemente, pois fazia "ponto" quase
que diariamente na tradicional casa-de-chá e confeitaria "A Brasileira", estabelecimento situado na antiga Cinelândia, depois desaparecido. E aí, durante alguns minutos,
comentávamos os principais acontecimentos políticos brasileiros e internacionais.
Certa vez, anunciando minha intenção de adquirir uma pequena propriedade em Pati do Alferes, para servir, principalmente de lazer para as férias das crianças, pôs-se desde logo à minha disposição para facilitar minha instalação em sua
terra natal, pois as raízes de toda a sua ascendência estavam no município de
Vassouras. Acontecia ainda que o prefeito na época era um seu amigo e correligionário político – Edmundo Bernardes – e, apesar de todos os meus protestos, não
sossegou enquanto não me entregou uma carta pessoal dirigida àquele político
residente em Pati do Alferes, e, no momento, também proprietário de um estabelecimento que se encarregava de construções civis.
Fui recebido com as maiores atenções pelo prefeito, em sua casa, e realmente, pôs à minha disposição todos os seus préstimos e recursos para a construção da
modesta casa naquele aprazível 2° distrito do município de Vassouras, dizendo-me:
"Um amigo de Maurício merece toda a atenção de minha parte!".
Passado algum tempo, certo dia, indo eu despreocupadamente pela avenida
Rio Branco, após deixar meu trabalho na Secretaria de Educação e Cultura, encontro Maurício muito agitado, quase em lágrimas. Tomou-me pelo braço, num gesto
seu muito característico e, num desabafo contou-me a história de sua recente desavença com o filho, Carlos Lacerda, que acusava de ter se voltado contra ele num
processo em que Maurício, depois de muitos anos de separação, procurava regularizar sua situação jurídica com sua mulher, a mãe do Carlos. Contou-me, então,
episódios de sua vida conjugal, ocorridos havia muitos anos e sentia que Carlos,
mais do que um filho, conforme dizia, um companheiro de lutas políticas, tivesse
tomado tal atitude contra ele. Maurício tinha sido reintegrado no cargo de Procurador da Prefeitura do Distrito Federal, do qual fora demitido em virtude de seu
pretenso envolvimento nos acontecimentos de novembro de 1935. Iria receber vultosa quantia de vencimentos atrasados, e atribuía, com razão ou não, a atitude de
Carlos à partilha desse dinheiro. Naquele tom emocional que o caracterizava, dizia
que ninguém se apropriaria desses recursos, pois iria doá-los à Campanha pela
Aviação Nacional, então patrocinada por Assis Chateaubriand.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Não é preciso acentuar que toda essa história, tão íntima, mas que viera a
público pela notória importância dos elementos envolvidos, causou-me o mais profundo constrangimento. E nada podia dizer, senão ouvir.
Creio que, mais tarde, pai e filho se reconciliaram plenamente, num final
feliz, naturalmente esperado, para situações humanas semelhantes, entre figuras
de inteligência, sem dúvida, privilegiada.
•••
Apesar da melhoria inegável das condições de nossa prisão, o cansaço pelo
longo período de detenção, agravava a tensão, provocando constantes atritos e
desentendimentos entre os vários grupos das várias tendências em que se dividia
aquele conjunto de pessoas, e que redundaram até em lutas corporais.
Já não havia mais passatempos que conseguissem preencher as longas
horas passadas daquela convivência diuturna, tão próxima, dadas as condições
das instalações em que vivíamos. Já era difícil aturar aquelas mesmas atitudes,
aqueles mesmos comportamentos, até os mesmos tiques, ou aquela conduta de
muitos que já ia descambando para um certo relaxamento e cinismo. O desgaste já era realmente muito grande e poucos ainda podiam manter certa integridade e mesmo dignidade de maneiras. E isso tudo, nada tinha de peculiar: era o
resultado natural, daquilo que se poderia denominar de "síndrome do cárcere",
a paulatina degradação do prisioneiro, em todos os sentidos, que é, sem dúvida,
um dos resultados que a reação espera ao privar de liberdade durante muito
tempo, seres humanos, mantendo-os em situação desumana. Até os animais se
deterioram no cativeiro... A liberdade, mesmo a mais elementar, a da livre
locomoção. É, sem dúvida, um bem fundamental da vida.
•••
Em meio a esse ambiente de desânimo e quase torpor, em que até casos de
delação aconteceram de elementos de quem jamais se poderia esperar tal conduta,
na ânsia de obter algumas precárias regalias, de repente, nova onda de exaltação
começou a agitar os presídios.
Iam, afinal, começar os julgamentos do recém-instalado Tribunal de Segurança.
A denúncia contra milhares de pessoas já tinha sido apresentada no célebre
relatório do delegado Bellens Porto, intitulado A insurreição de 27 de novembro de
1935.
Numa introdução pretensiosa, e quase pernóstica, o autor pretendia demonstrar que todos os movimentos de esquerda no Brasil, verificados nos últimos
tempos, eram orientados por resoluções de organismos internacionais, tais como a
Internacional Comunista e os próprios líderes de Moscou. E a criação da Aliança
Nacional Libertadora e mesmo os levantes armados de novembro eram ditados por
esses organismos. A prova evidente era a presença dos elementos estrangeiros que
assessoravam os revolucionários brasileiros...
236
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Essa lógica capenga, mas geralmente aceita pelas pessoas da melhor boa-fé,
desprezava grosseiramente o fato de que, na história de todos os tempos da humanidade, nunca foi possível represar inteiramente o pensamento humano, quando
idéias novas surgiam condicionadas por novas situações estabelecidas pela convivência entre os homens. O sacrifício dos primeiros cristãos nos circos romanos não
impediu o crescimento e a difusão, por todo o mundo, do cristianismo. As idéias
liberais burguesas, nascidas à base da revolução industrial inglesa, espalharam-se
por todo o mundo ocidental, e tiveram seus momentos históricos culminantes na
Declaração da Independência Norte-Americana e seu desfecho dramático na Revolução Francesa, de 89, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a
tábua dos princípios que passaram a reger o mundo moderno. E até no acanhado
ambiente colonial brasileiro tivemos, entre outros, o caso do estudante José Joaquim da Maia, que viajou para a França em busca do apoio de Jefferson para o
movimento da Inconfidência Mineira, que pretendia libertar o Brasil do jugo colonial português: como se vê, um pioneiro na subversão, altamente perigoso para a
coroa portuguesa... Isso sem falar de Tiradentes e dos outros inconfidentes, irremediavelmente envenenados pelas "idéias francesas".
No mundo atual, em que as comunicações se tornaram instantâneas, através dos meios eletrônicos, que o transformaram na "Aldeia Global", ganham um
caráter verdadeiramente ridículo essas tentativas de cercear a livre circulação de
notícias e informações. A única saída é transformar a informação em desinformação.
Isso é feito através dos artifícios largamente utilizados pelas empresas especializadas
e os centros de geração, minimizando o noticiário de maior importância para a
maioria das populações, ou o disfarçando na mistura com amenidades da propaganda comercial, num processo de "despolitização" dos temas de maior importância, desmobilizando a opinião pública na defesa de seus interesses fundamentais. É
essa aliás, uma das diretrizes mais importantes da "nova democracia" preconizada
pelos ideólogos da chamada Trilateral, a nova organização do capitalismo mundial,
que congregou as três maiores potências econômicas do mundo – os Estados Unidos, a Europa ocidental e o Japão – para a defesa de seus interesses e de sua
sobrevivência, pelo maior tempo possível. Ao que Richar Uelman, em seu trabalho
"Trilaterlism: partinership for What?" (Foreign Affairs, outubro de 1976), imprime
maior precisão quando qualifica o "trilateralismo" como "uma frente unida das
sociedades industriais avançadas do Ocidente... para contrariar as novas exigências
e ação militante do Terceiro Mundo".
E, conforme comenta Hugo Assmann, em seu estudo intitulado "Os
trilateralistas sugerem uma chave de leitura para este livro: o terceiro mundo visto
como ameaça" (A Trilateral – Nova fase do capitalismo mundial):
Dos países dependentes se tem dito que são países "subinformados". Nos últimos anos, a
queixa desses países começou a superar a velha concepção da notícia como simples quantidade
de informação. Já não exigem somente que exista uma maior quantidade de fluxo informativo
dirigido a eles e informando sobre eles. Pedem, antes de tudo – e visto que a notícia tem seu real
conteúdo na forma que se lhe dá – que os fatos sejam não apenas noticiados em abundância
como também elaborados a partir de critérios que respondam aos interesses do Terceiro Mundo
(1976, p. 7).
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
237
•••
Mas o nosso delegado – denunciante – tinha que cumprir o seu papel na
época, e o fez com o maior empenho e, naturalmente, dentro das diretrizes recebidas e das luzes que iluminavam sua formação política e cultural.
Sobre essa questão do comando estrangeiro dos acontecimentos de 1935,
cabe, mais uma vez, ouvir Luís Carlos Prestes, em suas declarações na obra já várias
vezes,citada. À página 59, lê-se o seguinte:
A versão oficial é de que o levante de 35 foi preparado no VII Congresso da IC, o que não é
verdade. Não houve nenhuma orientação de Moscou para que a insurreição acontecesse. A
responsabilidade é de nosso Partido e do secretário-geral, Miranda, que transmitia informações
falsas sobre o que estava acontecendo. Berger estava aqui com a mulher porque, já em 1934, a
delegação brasileira que fora a Moscou manifestara desejo de receber alguma assessoria de alto
nível. Então veio Berger. Mas ele recebeu recomendações para não se envolver nos assuntos
internos do Partido. Era um conselheiro. Aliás, Berger era um grande tático, um homem de
muito valor que, infelizmente, morreu louco devido às torturas que sofreu na prisão. Jovem,
viajou para os Estados Unidos, onde passava seis meses trabalhando (era operário de couro) e o
restante do ano estudando em bibliotecas. Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, ele foi
preso, sua mulher fugiu e acabou presa no Canadá. Mais tarde, ele voltou à Alemanha e participou do grupo Spartacus, que daria origem ao Partido Comunista Alemão. No VI Congresso da
Internacional Comunista, ele foi o único que se opôs à proposta de ruptura com a social-democracia; a ruptura era a única forma de garantir a formação do Partido, já que o operariado
alemão tinha tradição social-democrata. Berger percebeu que se cometia um erro. Dizia: devemos fazer a ruptura ideológica, mas manter a unidade tática. E tinha razão: mais tarde, quando
Hitler chegou ao poder, o PC alemão quis fazer unidade com a social-democracia, mas não
conseguiu. Se tivesse conseguido, talvez fosse sustada a ascensão de Hitler.
•••
Quando começaram a chegar até nós as notícias de que iam, afinal, ter
início os julgamentos do Tribunal de Segurança, uma áspera controvérsia estabeleceu-se entre os presos políticos.
Um grupo mais radical, constituído especialmente de militares, optou logo
por não aceitar o julgamento, considerando que o Tribunal era de caráter fascista
e as sentenças, evidentemente, já estavam determinadas pelo Poder Executivo:
tratava-se de uma farsa a que eles não se submeteriam.
Um outro grupo adotava a posição clássica simbolizada na atitude de George
Dimitroff, que compareceu, ele próprio perante o Tribunal Nazista para se defender
das acusações falsas de que teria ele sido o autor intelectual do incêndio de Reichstag;
aproveitou então a oportunidade para expor e pregar suas idéias político-sociais,
perante um grande auditório, até de caráter internacional.
Finalmente, a terceira posição era defendida pela maioria dos civis, que se
consideravam isentos de qualquer culpa nos acontecimentos de novembro de 1935,
especialmente na parte referente aos levantes militares. Discordavam, assim, frontalmente, das duas primeiras posições e achavam que deviam se aproveitar dos
trâmites jurídicos normais do julgamento, para conseguirem o que era mais importante no momento: a liberdade e, posteriormente, reivindicariam o ressarcimento
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
dos prejuízos que tiveram com a longa prisão, sem fundamento e, até mesmo, a
volta às funções das quais muitos tinham sido demitidos, arbitrariamente.
Iniciado o julgamento, assistiu-se a um espetáculo grotesco e degradante:
os militares que se recusavam a comparecer perante o Tribunal eram levados à
força pelos latagões da Polícia Especial, que invadiam brutalmente as instalações
do presídio, lançando bombas de gás lacrimogêneo, e agarrando de qualquer forma
os recalcitrantes e jogando-os nos camburões que os transportavam até a sede do
Tribunal. Eles se negavam a responder ao interrogatório dos juízes, desacatavam o
Tribunal e, por fim, eram conduzidos de volta ao presídio, com o mesmo aparato e
a mesma brutalidade, e presos nos cubículos da parte velha da Casa de Correção. A
Polícia tinha perdido toda a cerimônia: eram comunistas confessos, que traíram
seu juramento de militares, levantando-se em armas contra as autoridades constituídas, e não mereciam mais qualquer consideração. Foram sendo condenados à
revelia, a penas que variavam em torno de dez anos.
Eu, com outros presos políticos civis, constituímos advogados e nos submetemos ao processo estabelecido na Lei de Segurança.
O grupo a que eu pertencia era aquele, já referido, do ridículo episódio dos
cursos "marxistas" da União Trabalhista.
Os professores Hermes Lima e Edgar Süssekind de Mendonça foram, desde
logo, excluídos da denúncia, e já tinham mesmo sido postos em liberdade.
Os outros dois eram: eu e Valério Konder. Eu fui, a princípio, também excluído da denúncia, pela mesma ausência de fundamentos para ser processado. Do
grupo, ficara somente Valério Konder que, com sua reconhecida inteireza de caráter, prontamente assumira a autoria do tal programa "marxista", e, segundo afirmava a Polícia, fora devidamente apurado que ele se filiara, justamente naquela
ocasião, ao Partido Comunista.
Com a mudança do procurador encarregado dessa parte do inquérito, com
surpresa, pouco tempo depois, fui reincluído entre os denunciados e, portanto,
devendo ser submetido a julgamento perante o Tribunal de Segurança e continuar
preso.
Procurando indagar sobre a razão dessa mudança brusca de critério em
relação a mim, recebi uma informação que mostra bem o ambiente em que se vivia
na época: a explicação que me foi transmitida revela que, tendo sido dois dos
quatro implicados considerados isentos de culpa, não ficava bem para as autoridades, que nos detiveram durante tanto tempo, simplesmente dizer no fim de tudo
que nada tinha sido apurado contra nós e que podíamos voltar tranqüilamente
para casa... Dois, pelo menos, serviriam de "bodes expiatórios", para justificar a
arbitrariedade, deixando que a "justiça" de exceção resolvesse, quando fosse chegada a nossa hora... Assim, Valério e eu, continuamos presos e fomos "julgados"
pelo Tribunal de Segurança.
•••
A situação do País, porém, ia aos poucos se modificando, quando nos aproximávamos do fim do primeiro semestre desse ano de 1937.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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O período do governo de Getúlio Vargas, de acordo com o disposto na
Constituição de 1934, deveria terminar e era preciso que se realizasse o plebiscito a que se referia também a Constituição, para que ele tivesse sua permanência homologada à frente do governo. A pressão política, porém, começou,
então, a se fazer sentir, culminando com a apresentação das candidaturas à
presidência da República de Armando Salles de Oliveira, governador do Estado
de São Paulo, e José Américo de Almeida, um dos líderes da Revolução de 1930,
de maior prestígio, e que se dizia ter a preferência de Getúlio Vargas, sendo até
mesmo considerado candidato oficial.
Manobrando com sua reconhecida habilidade e sensibilidade políticas, em
vista de seus objetivos ainda não muito claros, Getúlio Vargas verificou que chegara a hora de desanuviar o ambiente político do País, extremamente conturbado,
desde os insensatos acontecimentos de 1935.
O Ministério da Justiça, que tinha comandado toda a repressão, é então
entregue ao embaixador José Carlos de Macedo Soares, pessoa sabidamente moderada e conciliadora.
Em relação aos presos políticos, começou desde logo a fazer uma triagem,
estudando a situação de cada um, e resolvendo pôr em liberdade, imediatamente,
todos os que ainda não tinham sido denunciados ou os que, já tendo recebido
denúncia, poderiam gozar desse benefício, aguardando o julgamento em liberdade;
era a chamada "macedada".
Estávamos então em junho de 1937 e, no dia 16 desse mês, os portões do
cárcere da Casa de Detenção se abriram para mim e pude, enfim, voltar à velha casa
da rua Visconde de Figueiredo, que deixara naquela triste manhã de 14 de fevereiro
de 1936. Foram dezesseis meses de grandes sofrimentos, mas também de inestimável aprendizado.
Não me livrei, porém, do processo e do julgamento pelo Tribunal de Segurança, pois, conforme ficou dito, depois de excluído da denúncia, fui reincluído,
como co-réu (?) de todos aqueles "crimes", que tiveram como núcleo o levante
militar de 27 de novembro de 1935.
E assim, em julho desse mesmo 1937, fui chamado a comparecer perante o
Tribunal de Segurança que, por ironia do destino, funcionava numa escola primária, situada à Avenida Oswaldo Cruz e que fora desalojada sumariamente para abrigar esse órgão da justiça de exceção... Essa mesma escola onde estive tantas vezes
para inspecionar o funcionamento dos cursos de extensão, aperfeiçoamento e oportunidade, na qualidade de organizador e chefe desse serviço da Secretaria Geral de
Educação e Cultura.
Ali, depois do rápido interrogatório de praxe, fui absolvido do grave
"crime" que praticara, no exercício de minhas funções, ao organizar aqueles
cursos "marxistas", por ordem do prefeito Pedro Ernesto, naquela obscura União
Trabalhista, instalada no velho sobrado da Rua Sacadura Cabral, n° 34, ou 43,
em maio de 1935.
Não se podia desejar nada de melhor como obra de ficção, daqueles tempos
de dimensões surrealistas, mas, que incluíram momentos de tragédia grega.
240
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Na minha "volta ao lar", como dizia uma colega e amiga dedicada de minha
mulher, durante muito tempo, um sentimento profundo de consternação e de culpa me oprimia: as crianças e a casa, abandonadas havia tanto tempo, exibiam em
silêncio as marcas das dificuldades que suportaram. Nunca ouvi, porém, qualquer
queixa ou recriminação de minha mulher. Com a dignidade e o devotamento que
sempre punha em tudo o que considerava seu dever, amparada por sua profunda fé
religiosa, venceu todas as dificuldades desses quase dois anos de minha ausência.
Mas, de outro lado, aqueles primeiros dias de liberdade me infundiam um
sentimento de verdadeiro deslumbramento: andava de um lado para outro, pelo
bairro e pelo centro da cidade como a medir e experimentar as verdadeiras dimensões da liberdade; encontrava amigos e colegas, apreciando como nunca aquele
movimento de pessoas, que me pareciam todas amáveis e rejuvenescidas, sorvendo,
nas menores coisas, as sensações que são devidamente sentidas somente quando se
esteve privado delas.
Com alguma dificuldade, ia, assim, aos poucos, retornando ao ritmo normal
da vida, que perturbado por aqueles longos meses de reclusão e de convivência
com tanto sofrimento, tanta violência paranóica, tanta baixeza, mas também tantas ilusões ingênuas e até mesmo tanto heroísmo inútil.
•••
A essa distância de quase meio século, vejo que todos esses dolorosos acontecimentos não deixaram em mim qualquer laivo de amargura, marca profunda ou
mesmo de ressentimento.
Ao contrário, considero-os hoje como uma experiência inestimável,
insubstituível mesmo, pelo amadurecimento que me proporcionaram em minha
formação de homem e de educador, produzindo um alargamento extraordinário da
minha visão das coisas, dos fatos e dos homens.
A primeira e mais elementar lição que recebi foi de que, os "donos do poder", ou se quiserem, as "classes dominantes", quando se sentem ameaçadas, real ou
ficticiamente, em seus interesses e privilégios, não hesitam em cometer os crimes
mais monstruosos para manter seu controle ou na pior das hipóteses, entregarem
muito a contragosto alguns anéis para não perderem os dedos...
E, freqüentemente, servem-se de movimentos que sabem incapazes de
ameaçá-los seriamente, desalojando-os de suas posições, como pretexto para
manter a repressão permanente que julgam necessária para conter, dentro dos
limites que estabelecem, suas prerrogativas de minorias contra as reivindicações das maiorias dominadas.
Os movimentos de esquerda, entre nós, por exemplo, até hoje, foram sempre muito débeis e desorganizados para constituírem reais ameaças às forças
dominantes de nossa sociedade. Mas, têm sido largamente utilizados, como dissemos, para manter a repressão sobre o conjunto da Sociedade, pois, num País
como o nosso em que são imensas as diferenças entre a minoria dos ricos e as
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
241
grandes massas mergulhadas na mais extrema pobreza, "só mesmo a repressão
política permanente é que permite uma longa convivência com essa situação de
gritantes desigualdades e injustiças sociais" (V. Franz J. Hinbelmamert, O credo da
Comissão Trilateral. Obra citada, p. 103).
A outra lição que me ficou daquela convivência longa e íntima com todas
aquelas pessoas que se propunham, por várias formas e métodos, a concorrer para
que fossem realizadas no País transformações político-sociais em benefício da maioria do povo brasileiro, foi verificar, concretamente, a nenhuma preparação de qualquer deles para levar à prática a tarefa gigantesca a que se devotaram.
Individualmente, como já dissemos antes, poderiam ser considerados quase
todos como excelentes pessoas portadoras das mais nobres qualidades, capazes mesmo de praticarem atos do mais acendrado heroísmo para levarem a cabo seus ideais
e intenções. Mas, nenhum deles me pareceu reunir as qualidades de grande liderança,
nem dominar os problemas extremamente complexos, econômicos, políticos e sociais
que teriam que enfrentar para a consecução de seus objetivos, no desenvolvimento
da atividade revolucionária a que dedicaram suas vidas, sem medir esforços e sacrifícios, e durante a qual muitos pereceram de maneira tão trágica.
•••
E terminando este capítulo, que sinto necessitaria de uma capacidade muito
maior do que a de que disponho para escrevê-lo.
Muito esquematicamente poder-se-á dizer:
– As facções de direita são aquelas que se empenham na tarefa impossível
de fazer retroceder a marcha da História.
– O Centro, entrincheirado em suas sólidas e poderosas posições da ordem
estabelecida, naturalmente, deseja manter o status quo.
– As várias correntes do chamado pensamento de "esquerda", são as que
ainda acreditam no progresso e num futuro melhor para a humanidade. Lutam, por
isso, contra todas as forças que querem acorrentar o homem como um novo Prometeu, que roubou o fogo dos céus, para tentar trilhar os caminhos da paz, do
amor e da felicidade, aqui mesmo na terra...
Minha opção já havia algum tempo vinha sendo feita, e o que vi, ouvi e
meditei durante aqueles sombrios meses em que passei nos presídios do capitão
Felinto Strubling Müller, só serviriam para reforçar minhas convicções.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
EPÍLOGO
Os presos políticos recolhidos aos vários presídios
do Rio de Janeiro, depois de terem repetido e inutilmente
denunciado e protestado contra o tratamento bárbaro
que lhes era dispensado, resolveram por fim dirigir-se diretamente ao Chefe do Governo por meio de um documento em que era relatada toda aquela situação, pela
qual, em última instância era ele o responsável.
Co-autor e signatário do referido documento,
transcrevo-o aqui como um complemento e fecho desse
2° volume destas Memórias.
Não dispondo porém de uma cópia original, sirvo-me da reprodução que David Nasser incluiu em seu
opúsculo intitulado Falta alguém em Nuremberg – Torturas da polícia de Filinto Strubling Müller (1966), no
capítulo sobre "A responsabilidade de Getúlio Vargas".
Escreve David Nasser como introdução:
Impossível a Getúlio Vargas negar sua culpabilidade no
assassínio e tortura dos presos políticos, durante o longo tempo em que durou a noite fascista. Guardados em celas úmidas, separados do mundo exterior, os homens que ele mandara prender e supliciar; não tinham perdido, entretanto, a espantosa coragem que os marcara. Lançaram do fundo das
masmorras um libelo que ficaria para sempre como a principal peça de acusação ao ditador, ao seu chefe de polícia e a
outros elementos que participaram dos imensos e trágicos
serões de mortes na Polícia Central, na Casa de Correção, na
Polícia Especial e na Colônia de Dois Rios. Nesse documento
inesquecível, o Dr. Manuel Venâncio Campos da Paz e outros
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
243
civis se juntaram a dezenas de valentes militares para historiarem, numa linguagem serena e
digna, os acontecimentos que se imaginava ficarem sepultados naqueles antros de martírio. O
documento de acusação foi dirigido ao senhor Getúlio Vargas. O tirano não tem o direito de
alegar desconhecimento. Nesse papel, saído clandestinamente da Detenção, se afirmava, de
maneira desassombrada e categórica, que os signatários não pleiteavam qualquer medida que
viesse melhorar a terrível situação em que se encontravam, mas apenas desejavam caracterizar
a responsabilidade do ditador que se arvorava em Presidente da República.
Agravando-se, cada vez mais, a já precária e insuportável situação dos presos políticos, cujo
número se elevou, em todo o Brasil, a cerca de 10 mil (só no Distrito Federal foram detidas,
segundo relatório da polícia, mais de 3 mil pessoas), em sua grande maioria privadas de liberdade por simples delação ou desafeição pessoal, os presos políticos resolveram, de acordo com o
memorial que enviaram a Vargas, participar ao mais graduado agente do Poder, e, por conseqüência, o mais responsável, os fatos revoltantes da abjeta perseguição.
Dizia o documento:
Não nos move a expectativa de providências que, de vossa parte, venham pôr termo a esse miserável estado de coisas, mas o objetivo de caracterizar a vossa responsabilidade pela aprovação do procedimento extralegal de certas autoridades. Elas vêm praticando uma série de monstruosidades que são
uma negra mancha nas tradições da civilização brasileira e o descrédito do Brasil no conceito das nações
cultas. Contra isso, levantam-se os clamores de nossa consciência de homens livres e a voz ativa do
nosso exaltado patriotismo. Temos a mais absoluta certeza de que o povo brasileiro se solidariza conosco,
e neste momento compreende que os fatores de desmoralização de nossa terra no estrangeiro não são
criados pelos presos políticos, mas pela ação do governo. Sobre este recairá justamente a pecha de
incivilização e de bárbaro que se queira imputar ao povo brasileiro, proverbialmente respeitado pelo seu
sentimento de justiça e humanidade.
Os presos políticos já protestaram perante o senhor ministro da Justiça, em janeiro do corrente ano,
contra os assassínios, espancamentos, torturas e maus-tratos de toda natureza a que estavam submetidos
sob o "estado de sítio". Da tribuna, o senador Abel Chermont leu esse protesto. Quais as providências
tomadas por aquela autoridade? Prisão do senador Abel, devassa na casa desse parlamentar e toda sorte de
represálias, indo até a prisão de seu filho Francisco Chermont, estudante de Direito, remetido para a
colônia de Dois Rios, de onde o vimos regressar, de cabeça raspada, desfigurado e horrorizado por tudo o
que ali presenciara e sofrera. E dos fatos referidos naquele protesto, apenas um mereceu caricata tentativa
de desmentido: o espancamento do estudante Clóvis de Araújo Lima, cujas sevícias foram testemunhadas,
a bordo do navio-presídio "Pedro I", por todos os presos políticos e pelas autoridades presentes: Capitão
Gonçalves, comandante do Destacamento de Polícia Militar; Capitão Linhares, comandante do navio, e
outros. Dois meses depois, a Polícia submetia sua vítima a exame médico, cujos laudos publicou em confronto com o lavrado a bordo por três clínicos, tendo o cuidado de omitir a data deste último, para evitar
que se depreendesse a falsa fé e a mistificação das autoridades policiais.
Sob o "estado de guerra" novos crimes vieram aumentar a já numerosa e nefanda lista das atrocidades cometidas de novembro para cá. Seria demasiado longo o relato completo desses horripilantes
crimes atentatórios aos mais elementares princípios de respeito à pessoa humana e nos quais só a
evidência dos nossos próprios olhos nos obrigou a acreditar. Limitamo-nos, assim, a citar alguns dos que
foram por nós constatados e, dos quais, pela precisão e riqueza de detalhes de nosso conhecimento, se
tornaria impossível sequer uma tentativa de contestação honesta.
O regime da Colônia de Dois Rios, ironicamente chamada de "Correcional", é de tal forma bárbaro e
desumano que afasta toda possibilidade de descrição. Centenas de pessoas de todas as condições sociais,
arrancadas violentamente de seus lares e afazeres, encontram-se, sem a menor culpa formada e algumas
sem mesmo terem sequer sido ouvidas pelas autoridades, submetidas a um regime de trabalhos forçados,
que nenhuma lei autoriza, premeditada e criminosamente sujeitas a viverem em promiscuidade com delinqüentes e tarados da pior espécie (vagabundos, pederastas, etc.), com morféticos, tuberculosos, epiléticos,
etc., dormindo sobre a areia molhada de um barracão coberto por telhas de zinco furado, onde não podem,
ao menos, conciliar o sono, assaltados que são, a cada momento, por toda a sorte de parasitos. Espoliados
de todos os objetos de uso pessoal (roupas, cobertores, escovas de dente, sabonetes, etc.) e do próprio
dinheiro, os presos políticos de Dois Rios são obrigados a andar seminus e sujos e com a cabeça raspada. As
condições higiênicas são as mais precárias possíveis. A falta de banho, de camas, de assistência médica e
medicamentos faz com que inúmeros presos apresentem o corpo coberto de chagas. São exemplos concretos e por nós testemunhados os dos cabos Jancy d'Ávila e Benedito de Oliveira, respectivamente da Escola
de Aviação e do 3° R.I., há dias transferidos para a Casa de Detenção. Uma alimentação deficientíssima e
nauseabunda debilita os presos, que são forçados, além disso, a trabalhar exaustivamente nas galés do
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
tenente Vitório Caneppa, administrador do presídio. No momento, grassa na Colônia disenteria epidêmica.
E, para ampliar esse quadro verdadeiramente dantesco, os presos políticos são espancados a cacete, coice
de fuzil, borracha (camarão), pelos mais fúteis pretextos e mesmo sem pretexto algum. As síncopes freqüentes, motivadas pela subalimentação e a falta de repouso, constituem um dos motivos de espancamento e prisão celular, completada pela privação de alimentos e racionamento da água, durante um mínimo de
três dias. Porque se achasse doente, ainda em conseqüência dos espancamentos que sofrera na Polícia
Central, quando de sua detenção, um desses presos, o Cabo Arlindo Pinho, do 1º Grupo de Obuses, não
podendo transportar oito tijolos sob a cabeça nua, pediu que lhe reduzissem a carga para seis. E isso deu
lugar a que o enfermo fosse impiedosamente espancado a cacete e sujeito às piores humilhações. O cabo
Aristóteles, do Corpo de Fuzileiros Navais, porque distraidamente descruzasse os braços na formatura,
posição obrigatória para todos os presos, recebeu uma coronhada na região renal. O marinheiro José Sete
Filho, da nossa Marinha de Guerra, surpreendido a olhar uma das cenas freqüentes da Colônia, uma briga
entre dois vagabundos, foi barbaramente espancado e atirado à cela. E, na Colônia de Dois Rios, estão
lançados cerca de quatrocentos presos políticos, desamparados, como párias, dentro da própria Pátria e
sobre os quais ainda não se pronunciaram os tribunais do País, a não ser para absolvê-los, como é o caso do
ancião Manuel Leal e outros, absolvidos pelo juiz federal do Estado de Alagoas e violentamente segregados
do seio de suas famílias por força das arbitrariedades do general integralista Newton Cavalcanti.
Dentre os cidadãos brasileiros vitimados pela barbaridade do regime de Dois Rios, encontram-se os
senhores Graciliano Ramos, conhecido escritor patrício Joel de Carvalho, funcionário da Justiça federal;
João Antônio de Assis Brasil, cadete da Escola Militar; Anastácio Pessoa, alto funcionário do Banco do
Brasil e primo do Governador Juraci Magalhães; Álvaro Ventura, deputado à Constituinte Federal;
Aristóteles Moura, ex-diretor do Sindicato dos Bancários e ex-contador do Instituto do Açúcar e do
Álcool; Euclides Vieira Sampaio, presidente da Federação dos Ferroviários; Anaklício Louriçal, presidente
da UTL; Newton Freitas, jornalista; Jansênio Janserico Daemon, agente da Estrada de Ferro Central do
Brasil; José Augusto Simões Barros (Zezé), "sportman" e bancário; e grande número de dirigentes sindicais, líderes ferroviários, comerciários, marítimos, bancários, estudantes, etc.
E, tudo quanto afirmamos, Senhor Presidente, é a pura verdade. Tanto que, daqui vós repitais a
provar que mentimos, nomeando comissões mistas de pessoas gradas, parlamentares, oficiais das nossas
Forças Armadas de terra e mar, magistrados, professores, médicos, jornalistas, padres, estudantes etc.,
que irão "in loco", constatar a veracidade de nossas asserções.
A Casa de Detenção é outro exemplo da "benignidade" do Governo para com os presos políticos
que aqui se encontram, sem exceção, sob grades. Todos os que se achavam detidos a bordo do "Pedro I"
foram para cá transportados em "tintureiros". Chegados à Casa de Detenção foram, cerca de duzentos,
lançados nas chamadas "galerias". Aí, permaneceram semanas e semanas, sem o menor conforto, sem
banho, sem sol, dormindo sobre o ladrilho e recebendo, uma vez por dia, uma marmita de caldo de feijão
e farinha, como única alimentação. Em xadrezes com lotação para vinte pessoas foram atirados até 63.
A situação era tal que, à noite, os presos dormiam por turmas, por não haver área suficiente para todos
se deitarem. Presos políticos, vítimas das perseguições policiais, ficam sujeitos a um regime penitenciário desumano e ilegal, que não é aplicado nem mesmo a criminosos comuns. Era inexistente a assistência
médica e dentária. Nesse ambiente, todos os males tinham livre curso e inúmeros são os que se viram
atacados de afecções pulmonares (tuberculose, gripe epidêmica, bronquites), reumatismo, parasitas de
pele. As constantes reclamações feitas pelos presos das galerias, tinham como resposta ameaças mesquinhas e humilhações. Não pára aí, no entanto, a série de atos bárbaros e infames praticados pelos
agentes do poder público. Aos presos políticos nem sequer é permitida a leitura de jornais, o que constitui uma verdadeira tortura intelectual. A lavagem e higiene dos cubículos são feitas por nós próprios.
Tuberculosos se encontram em nosso meio, e, como medida de isolamento, por nós, reclamada, foram
transferidos para cubículos, entregues à sua própria sorte. Há poucos dias, achando-se à morte, no
cubículo onde estava recolhida, a companheira Eneida Costa, e não tendo a direção, durante mais de
uma semana, tomado as providências reiteradamente por nós solicitadas para remoção da enferma,
resolveram os presos, em desespero de causa, forçar o entendimento pessoal com o doutor Aloísio Neiva,
diretor da Casa. Para isso, uma comissão composta dos senhores major Alcedo Batista Cavalcanti, capitão-tenente Hercolino Cascardo, capitão Agildo Barata e médico Sebastião da Hora, encaminhou-se à
Diretoria aproveitando um momento em que o portão do Pavilhão dos Primários estava aberto. Em
conseqüência disso, foram aqueles companheiros violentamente metidos, sob aparato de metralhadoras
da Polícia Especial, nas solitárias chamadas – "novo raio", da Casa de Correção, de onde saíram cinqüenta horas depois, por força dos nossos protestos, que culminaram na greve de fome. E só dessa maneira
foi que conseguimos a remoção da enferma para um hospital.
Outro sugestivo exemplo da covardia da Polícia chefiada pelo senhor Filinto Müller é a maneira
pela qual vêm sendo tratados Luís Carlos Prestes, presidente da Aliança Nacional Libertadora, e sua
mulher, Maria Prestes. O grande brasileiro acha-se há mais de três meses num quarto da Polícia Especial,
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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sob o rigor de incomunicabilidade absoluta, não lhe sendo permitida a leitura de jornais, nem mesmo de
livros, o que constitui, dentro da insuportável vida de inteiro isolamento que lhe impõe a Polícia, uma
tortura inominável. É-lhe vedado até avistar-se com sua mulher, que se acha recolhida à Casa de Detenção, grávida e enferma, e sem assistência que essas circunstâncias exigem. Maria Prestes,*** em tal
situação, não recebeu até agora, da parte do governo, senão o covarde insulto público que lhe lançou o
senhor Carlos Maximiliano. E, o que é mais ignominioso, neste momento, as autoridades do Ministério
da Justiça acabam de preparar sua expulsão para a Alemanha nazista, apesar da delicadeza e do adiantado de sua gravidez – num flagrante desrespeito às legítimas garantias que, em todo o mundo civilizado, amparam a mulher que vai ser mãe.
Essa a benignidade apregoada em discursos e notas, tendentes a manter o povo enganado a respeito da ação das autoridades governamentais.
Agora, desenterraremos da Polícia Central e da garagem da Polícia Especial as horripilantes cenas
de banditismo que enchem a história do "estado de guerra".
Já nos referimos, em protestos anteriores, aos espantosos atos de espancamentos e torturas físicas e
morais sofridas pelo estudante Clóvis de Araújo Lima e pelo engenheiro e químico Abelardo Araújo, pelos
cabos do Exército José Basílio Luna e Eneu Gonçalves de Paulo, etc. Passaremos a apontar mais algumas
vítimas dos processos medievais usados pela Polícia, dando local e dia em que foram praticados e os que
ordenaram ou assistiram a tais atos e que, apesar disso, continuam a desempenhar as suas funções.
Francisco Romero, pintor. Às vinte e duas horas do dia 22 de dezembro p.p. foi, em uma das salas da
Delegacia de Ordem Política e Social, sujeito a espancamento com palmatória, nos pés, nas mãos e no
tronco. A 23 e 24, foi espancado a cano de borracha pelo próprio chefe de Segurança Pública, senhor
Emílio Romano e a relho de couro pelo chefe de Segurança Social, senhor Serafim Braga. Em todo esse
período, foi privado de toda e qualquer alimentação. A 18 de março foi novamente surrado a cano de
borracha pelo tenente Américo de tal, da Ordem Política e Social. O menor Osvaldo, de 12 anos, filho de
Romero, também foi espancado na delegacia de Vila Isabel.
Esses espancamentos foram seguidos de torturas, inclusive enterramento de alfinete debaixo das
unhas. Todas as surras foram até a perda dos sentidos. Júlio Ferreira Alves, 2° sargento reformado do
Exército, apanhou de cano de borracha em 26 de dezembro e, posteriormente, a 5 de março, na sola dos
pés e nas mãos, sendo autores da violência Emílio Romano e seus agentes. José Ferreira Ramos, marítimo, espancado às 3 horas do dia 2 de janeiro, na Polícia Central, pelo próprio capitão Miranda Correia e
investigadores, a cano de borracha. Carlos Emílio, padeiro, espancado no dia 21 de janeiro, às 3 horas,
também pelo capitão Miranda Correia, no mesmo local. Rodolfo Ghioldi, jornalista, secretário do Partido
Comunista Argentino, irmão do deputado do Parlamento da vizinha República, Américo Ghioldi, foi
espancado a 28 de janeiro, na garagem da Polícia Especial, a socos e pontapés e cano de borracha, na
sola dos pés, por José Torres Galvão e agentes da citada milícia, com a assistência de Francisco Julian. A
30 de janeiro, novamente, pelo dito Galvão e uma turma da Polícia. Milton Rodrigues da Silva, comerciário
em Niterói, espancado às 24 horas do dia 5 de maio, na Polícia Central, a cano de borracha, socos e
pontapés, por uma turma de investigadores, chefiados pelo senhor Emílio Romano. Carlos Marighela,
estudante de engenharia, espancado na Polícia Central, a 1º de maio, pela manhã, cinco vezes seguidas,
a cano de borracha, nos pés e nas nádegas, socos no estômago por Serafim, Romano e agentes da Ordem
Política e Social. A 2 do mesmo mês, na garagem da Polícia, sofreu a chamada "tortura chinesa"; simultaneamente apertaram-lhe os testículos, enterram-lhe um alfinete de gravata sob as unhas e queimaram-lhe a pele com brasas de cigarro. Tudo feito sob a chefia de Galvão, com a assistência de Julian. Foi
ainda desta vez jogado repetidamente ao chão, o que lhe produziu contusões generalizadas e profundos
ferimentos no supercílio esquerdo. A 6 de maio, às 2 horas, na garagem da Polícia Especial, a cano de
borracha, socos e pontapés. Taciano José Fernandes, farmacêutico, agredido a socos e pontapés e surrado a cano de borracha na Polícia Central, às 3 horas do dia 1º de maio, pelo próprio Julian. Levado às 4
horas para a Polícia Especial foi aí novamente espancado e supliciado por Julian e polícias especiais,
tendo-lhe sido enterrados alfinetes sob as unhas. Na tarde desse mesmo dia, foi outra vez torturado por
Galvão, com a assistência de Julian. Recambiado, no dia 4, para a Polícia Central, foi durante 3 horas,
das 2 às 5 da manhã, submetido a sucessivos espancamentos por um grupo de policiais, sob a direção de
Romano. A 6 de maio, às 24 horas, novos suplícios lhe foram infligidos pelo mesmo Romano. A violência
dos espancamentos foi tal que a vítima teve reincidência de uma hérnia inguinal esquerda, há tempos
operada. Assas Halem, cozinheiro, espancado a 3 de maio, às 13 horas, por Romano, a cano de borracha,
socos e pontapés. Miguel Xavier Barba, cabo radiotelegrafista do encouraçado 'São Paulo", espancado a
18 de maio, das 22 às 23:30 horas, na garagem da Polícia Especial, a cano de borracha, soco; e pontapés,
pelo investigador Matos, adido ao Ministério da Marinha e por uma turma da Polícia Especial, com
*** Olga Benário Prestes.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
autorização do capitão-tenente Paulo Martins Meira. Tal foi a violência daqueles espancamentos, que a
vítima teve o pé esquerdo deslocado e fratura de uma das falanges do dedo mínimo da mão esquerda.
Félix Wandismel da Costa Rego Sobrinho, marinheiro, servindo na Aviação Naval, espancado em 3 de
junho, na Polícia Central, pelo mesmo investigador Matos e Emílio Romano, a cano de borracha, nas
nádegas. Esses dois marinheiros foram depois mandados para a Detenção, onde os vimos chegar em
estado verdadeiramente lastimável.
Até meninos do Colégio Militar foram brutalmente surrados na Polícia Central. Em 12 de abril,
estavam na sala de detidos e seus corpos apresentavam sinais dos espancamentos sofridos.
A maioria dos espancamentos e torturas efetuados na Polícia Central tiveram lugar numa dependência contígua à sala de trabalho de Romano.
Nem o tradicional e natural respeito à intangibilidade da mulher deteve a mão inquisitorial dos
agentes policiais. Dona Júlia Santos, empregada em casa de Luís Carlos Prestes, presa a 5 de março, foi
conservada até o dia 8, na Polícia Central, sem comer e sem dormir, sendo espancada nesse dia, pela
manhã, por uma turma de policiais. Para ser surrada, vendaram-lhe os olhos. Após o espancamento
sofrido, foi suplicada com choques elétricos nas axilas e na fronte. Dona Leonilda Félix, presa no dia 1º
de dezembro p.p., em Natal, Rio Grande do Norte, no dia 6 deste mês, às 22 horas, foi levada para um
lugar deserto, nos arredores da cidade, e aí foi transferida para o Rio, onde se encontra, na Casa de
Detenção. Dona Elise Ewert Berger, presa com seu marido Harry Berger, a 26 de dezembro p.p., permaneceu dois dias na Polícia Central, privada de qualquer alimentação. Levada a 28 para a Polícia Especial,
continuou sem comer e beber até o dia 1º de janeiro. Nesse dia, ao ser interrogada, Julian ofereceu-lhe
um copo d'água, em troca de certas declarações. De 1º a 6 de janeiro, foi por várias vezes espancada na
presença de seu marido, com um cinturão de couro e com fios eletrificados que produzem, simultaneamente, dor da vergastada, choques e queimaduras. Foi obrigada a assistir a alguns dos horríveis suplícios
a que submeteram seu marido, foi despida, surrada e bestialmente supliciada nos seios. São indescritíveis
os outros suplícios por que passou e que só cessaram por força da intervenção do Consulado NorteAmericano, a 16 de janeiro. Sendo que Harry Berger, que viera para a Casa de Detenção, foi novamente
levado para a Polícia Especial, onde até hoje continuam seus sofrimentos.
O que está aí, Senhor Presidente, é a expressão da verdade. É justamente isso que desmoraliza o
bom nome do Brasil no conceito das Nações. Não alegue, pois, a mais alta autoridade, o desconhecimento de tais ocorrências. Os torturados aí estão, tendo presentes até hoje os quadros da requintada
selvageria de que foram vítimas. E aqui, mais uma vez, vos raptamos a que sejam mandadas, até nós,
comissões, já e já, sem subterfúgios nem mistificações, a fim de que lhes mostremos as vítimas do
"estado de guerra" que povoam os cárceres da Casa de Detenção.
Senhor Presidente da República, a Nação Brasileira, neste momento algemada no tronco odioso do
"estado de guerra", ainda não tomou pleno conhecimento de todos esses crimes, de todas essas torpezas.
O capitão José Augusto Medeiros, membro do Diretório Nacional da ANL, foi assassinado pela
Polícia, na Vista Chinesa, como é público e notório. O cabo do 1º Grupo de Obuses, Abdenego Martins,
foi supliciado, até a morte, na Polícia Especial.
Ao lado desses, verdadeiros mortos na Colônia de Dois Rios, o ex-soldado do 29° B.C., de Recife,
pelo método assassino de suplício lento da cela, a pão e água, e o soldado da Força Pública do Rio
Grande do Norte, João Teodoro, de 18 anos, vítima de disenteria e de absoluta falta de socorros médicos.
O relato frio desses fatos dispensa qualquer comentário. À sombra do "estado de guerra", que é o
instrumento da manutenção dos governos que se incompatibilizam com o povo e se colocam fora da lei,
inúmeros outros crimes se cometem em todo o País, e tudo nos indica não estar terminado o seu sombrio desfile. Mais do que nunca, os milhares de brasileiros, que por amor à sua Terra, acham-se confinados no recesso tenebroso das Casas de Detenção e das Colônias Correncionais, estão sujeitos à miséria,
à fome, às doenças, aos suplícios, à morte.
Mas, longe de nos abater, tal situação só pode reforçar a nossa profunda convicção de que devemos lutar ao lado do povo por um Brasil onde haja "Liberdade e Justiça".
E, acrescenta David Nasser:
Vários dos homens que assinaram esse documento histórico e que durante tanto tempo
permaneceu desconhecido, por imposição da censura ditatorial, seguiram outros rumos. Naquele instante, entretanto, se firmaram como figuras de vanguarda, impregnadas de heroísmo.
Guardo seus nomes neste livro:
Roberto Sisson, capitão-tenente, por si e pelo major Alcedo Batista Cavalcanti; Agildo Barata
e doutor Sebastião da Hora, recolhidos à 3ª Galeria da Casa de Correção e capitão-tenente Hercolino
Cascardo; doutor Francisco Mangabeira; jornalista Aparício Torelli; presidente do Sindicato dos
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Bancários Afonso Sérgio Ferreira; bancário Henrique Dantas; doutor Lourenço Moreira Lima,
que se acham na Sala da Capela do mesmo presídio, todos na impossibilidade de aporem suas
assinaturas no presente memorial.
Manuel Venâncio Campos da Paz, médico; Renato Tavares da Cunha Melo, capitão; Benjamin
Soares Cabelo, jornalista; Abliberto Vieira de Azevedo, capitão; Álvaro Francisco de Souza, capitão;
José Leite Brasil, capitão; Antônio Rollemberg, capitão; Valério Regis Konder, médico; Paschoal
Lemme, professor, inspetor de ensino e superintendente da Educação de Adultos do Distrito
Federal, por si e pelo professor Edgar Süssekind de Mendonça; Euclides Oliveira, capitão: Lauro
Cortes Lago; Manuel Venâncio Campos da Paz Junior, médico; Rosa Furtado Soares de Meireles,
professora; primeiros-tenentes: David Medeiros Filho, Benedito de Carvalho, Hugo de Souza Silveira;
Valdemar Bessa, médico; Emílio de Barros Falcão de Lacerda, professor; Enzman Cavalcanti, químico-industrial; Isnard Texeira, médico; Sílvio Dias, 1º tenente; Durval de Barros, 1º tenente; Cícero
Carneiro Neiva, 1º tenente; Dinarte Silveira, 1º tenente; Antero de Almeida, 1º tenente; Antonio
Travassos Barros, 1º tenente; Saturnino Santana, 1º tenente; Paulo Carrion, 1º tenente; Raul Pedroso,
1º tenente; Colbert Malheiros, jornalista; Francisco Leivas Otero, 2° tenente; Otávio Malta, jornalista; José Gay da Cunha; 2° tenente; Humberto Lemme, médico-veterinário; Aristides Souza Torres, 2° tenente; José Gutmann, 2° tenente; Francisco de Souza, 2° tenente; ledo de Faria Pinto,
Valdemar Piedade Cardoso, bancários; Ivan Ramos Ribeiro, 2° tenente; Afonso Henriques, bancário; Humberto de Moraes Rego, 2° tenente; Dinarco Reis, 2° tenente; Jonas V. Machado; Júlio dos
Santos, engenheiro; Abelardo Araújo, químico-industrial; Flávio Poppe, médico; Luís Xavier de
Souza; Carlos Brunsvick, 2° tenente; Valter J. B. da Silva, aspirante; Amil de Oliveira Aranha; piloto
marítimo; Augusto Paes Barreto, 1º tenente.
248
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APÊNDICE
AS AULAS
DE SÉRGIO KAMPRAD SOBRE
FILOSOFIA NA “UNIVERSIDADE
DA CADEIA”
(CASA DE DETENÇÃO DO RIO
DE JANEIRO, 1936)
I
Todos os sistemas filosóficos são essencialmente determinados pela concepção das relações entre o consciente (faculdade de percepção, sujeito da consciência, que não deve ser confundido com o eu real, porque é apenas uma parte deste último)
e a realidade objetiva (matéria, que não se deve confundir com
substância, isto é, a matéria impenetrável, etc., que é apenas
uma parte da realidade objetiva. Como matéria consideram-se
as leis da natureza, etc.).
As escolas filosóficas que atribuem o primado ao consciente, isto é, que consideram a realidade objetiva criada pelo
consciente, chamam-se idealistas; as que julgam o consciente
inteiramente determinado pela realidade objetiva, denominamse materialistas. Entre elas há um grande número de concepções
intermediárias formando as correntes ecléticas.
O postulado fundamental da concepção materialista afirma: o consciente é determinado pela matéria, sem influenciá-la.
Matéria é uma categoria filosófica que designa a
realidade objetiva.
O postulado materialista não se baseia em nenhuma
hipótese particular sobre a constituição da matéria e, portanto, é inteiramente inatingível por qualquer delas.
A investigação da natureza da matéria é tarefa das ciências físicas e naturais, como também das ciências sociológicas.
II – A LÓGICA DIALÉTICA
A lógica dialética é a ciência das leis fundamentais da
matéria. Ela tem por fim a investigação das leis da natureza,
que abrangem todos os fenômenos.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
249
Decorre, do postulado fundamental do materialismo, a identidade das leis fundamentais da matéria e do consciente. A dialética, portanto, é a ciência das leis fundamentais
de toda a realidade objetiva e subjetiva.
Segundo o postulado fundamental do materialismo, a realidade objetiva independe
do nosso modo de pensar sobre ela; obedecemos, pois, às leis da dialética, mesmo quando
não as conhecemos ou quando as interpretamos mal.
O conhecimento da dialética, porém, facilita-nos o trabalho, pois aplicamos conscientemente as leis que, no caso contrário (de ignorância), somos forçados a determinar em
cada caso concreto.
Sendo o reflexo perfeito da realidade, a dialética torna-se o método de investigação
científica e, por isso, é o único que pode aspirar a essa qualificação.
O método de investigação para determinar as leis básicas da dialética é a análise da
experiência cotidiana e geral. Basta analisarmos o movimento do nosso raciocínio abstrato
para que encontremos as leis da dialética.
III– O PRINCÍPIO FUNDAMENTAL DA LÓGICA DIALÉTICA
O princípio fundamental da lógica formal (Aristóteles) é o princípio da identidade.
A escola formalista (metafísica) afirma que o nosso julgamento se reduz à constatação
de identidades. Entretanto, não podemos constatar a identidade senão daquilo que é diferente. Para verificarmos uma identidade, é preciso que haja uma contradição.
Se dissermos que A é idêntico a B, afirmaremos, de fato, que A é B, porque é
diferente de B.
Constatamos a identidade apenas porque há contradição.
Assim, o princípio da identidade é completado pelo princípio da contradição e ambos
se unem no princípio da identidade e da contradição, que forma o princípio fundamental da
lógica dialética.
IV – A LEI FUNDAMENTAL DA DIALÉTICA
Decorre do princípio fundamental da dialética que todos os fenômenos constituem
unidades de partes contraditórias. Se, constatamos, pois, a unidade de um fenômeno consigo próprio o fazemos apenas porque ele se contradiz a si mesmo.
Formulamos, assim, a lei básica, a primeira lei fundamental da dialética:
Todo fenômeno é constituído pela unidade de dois pólos e forma uma polaridade
dialética.
Esses pólos são:
a) irreconciliáveis entre si (estão em contradição);
b) formam uma unidade indissolúvel (um se manifesta no e através do outro);
c) são equivalentes;
d) são inseparáveis (a destruição de um acarreta o aniquilamento do outro).
Apenas quando essas quatro condições são satisfeitas, tem-se uma polaridade dialética.
Algumas polaridades importantes
Quantidade e qualidade
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Todos os fenômenos são caracterizados por uma identidade e por uma variação.
Chama-se qualidade ao elemento constante, imutável; e quantidade ao elemento variável,
em transformação (São, portanto, qualidades da matéria as leis da natureza, pois são relações constantes).
Quantidade e qualidade formam uma polaridade, pois são contradições irreconciliáveis; formam uma unidade indissolúvel (a qualidade só se manifesta através de uma determinada quantidade e qualidade, por sua vez, é apenas a quantidade de uma qualidade concreta);
são equivalentes, pois a qualidade se nos apresenta como determinada quantidade e reciprocamente, a quantidade como qualidade; finalmente são inseparáveis, pois sem o elemento
quantitativo não pode existir o elemento qualitativo e reciprocamente.
Polaridades de importância semelhante são, por exemplo: geral e particular, total e
parcial, multiplicidade e distância, unidade e pluralidade, equilíbrio e movimento, diminuição e aumento, etc.
A lei da polaridade explica-nos a constituição bipolar de todas as forças da natureza,
como a eletricidade, positiva e negativa; o magnetismo, positivo e negativo; força e inércia;
ação e reação, etc.
Os fenômenos aparentemente unipolares
A análise de certos fenômenos materiais revela que um de seus pólos é "imaginário",
isto é, existe apenas em nosso pensamento mas não se encontra na própria natureza.
Assim, por exemplo, a força de atração que atribuímos à massa tem por pólo oposto
a força de repulsão. Ora, esta só está em nossa imaginação e não se encontra na própria
massa. Nesse caso, trata-se de um fenômeno aparentemente unipolar e a lei da dialética
parece invalidada.
A força de atração, porém, que atribuímos à massa é uma representação
antropomórfica de um processo que nada tem a ver com a atração. Trata-se apenas da ação
e reação entre duas massas (fenômeno polar). Nesse caso, a nossa interpretação do fenômeno introduziu-lhe elementos estranhos, heterogêneos e esse absurdo manifesta-se no absurdo de uma polaridade com um pólo real e um pólo imaginário.
Dessa maneira, a primeira lei fundamental da dialética nos facilita extremamente a análise das nossas interpretações da natureza: o conceito de um fenômeno que apresenta a anomalia
da unipolaridade é mal interpretado: introduziram-se nele elementos heterogêneos.
A lei da polaridade abrange todos os fenômenos e conceitos e até mesmo as
nossas ficções que não refletem a realidade objetiva, obedecem a essa lei. Assim, conceitos os mais subjetivos são forçosamente polares (o bem e o mal, etc.).
A lei da polaridade e as ciências
As concepções, que não reconhecem o princípio da unidade das contradições, têm
por objetivo reduzir, por meio da ciência, a concepção do mundo a um princípio uno e
indivisível, isto é, a uma identidade. Ora, a primeira lei fundamental da dialética mostra que
tal utopia é irrealizável, pois tudo existe como unidade de contradições irreconciliáveis. Não
há princípio indivisível e uno, pois, a fim de se tornar real e perceptível, esse princípio se
desdobra em dois pólos antagônicos. Portanto, conhecendo a dialética, compreendemos a
razão de ser do fracasso de todas as tentativas puramente movistas da concepção do mundo,
como também as causas psicológicas da crise que as ciências físicas e naturais atualmente
atravessam e cujas causas de ordem ideológica são os erros psicológicos de investigação.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
251
Conhecendo, pois, a dialética podemos evitar os erros cometidos antigamente e baseando-nos na lei da polaridade revelar como necessário aquilo que foi e ainda é considerado absurdo.
V – SEGUNDA LEI FUNDAMENTAL DA DIALÉTICA
A segunda lei fundamental da dialética decorre do princípio fundamental. Realmente, este afirma que não pode haver identidade senão de uma contradição. Ora, existem fenômenos que permanecem idênticos a si mesmos, como, por exemplo, os objetos, etc. Porém, a
fim de verificarmos sua identidade, necessitamos observar-lhes a transformação, pois eles só
existem quando se transformam; a transformação é a condição básica da existência de uma
identidade.
Existem, entretanto, fenômenos que não apresentam transformação visível; não
obstante, podemos perfeitamente percebê-los. Parece, à primeira vista, que o princípio fundamental da dialética cai por terra, mas assim não acontece, pois para perceber fenômenos
imutáveis precisamos compará-los, relacioná-los a outros que se acham em processo de
transformação. Eles, isolados, realmente se tornariam inexistentes. Existem, porém, em relação a uma transformação. O resultado dessa comparação entre um fenômeno imutável e um
processo que denominamos tempo. O tempo é um processo que exprime a relação entre um
fenômeno imutável e um fenômeno em transformação. Podemos, portanto, formular a segunda lei fundamental da dialética da seguinte maneira:
Todo fenômeno manifesta-se através de um processo, numa transformação, e
completá-la pelo seguinte lema (princípio da relatividade dialética):
a) um fenômeno imutável só existe (só é perceptível) em relação a um processo;
b) dois fenômenos imutáveis existem somente no processo que resulta da sua ação
mútua ou, formulando este princípio de maneira diferente, só é perceptível o
processo que resulta da relação entre dois fenômenos imutáveis (constantes); cada
um, em separado, não pode ser observado.
Movimento mecânico e movimento dialético
Em dialética denominamos movimento a qualquer transformação. O movimento
mecânico é um caso especial do movimento dialético; e nem todo movimento mecânico
pode ser considerado uma transformação dialética. Assim, o movimento uniforme é um fenômeno estático sob o ponto de vista dialético, pois nele as características fundamentais do
movimento mecânico, velocidade e direção, são imutáveis. Devemos, pois, aplicar ao movimento uniforme o princípio geral da relatividade mecânica formulado por Galileu e Newton.
O movimento uniforme absoluto não pode ser observado: somente a relação entre
dois movimentos uniformes é suscetível de percepção.
Um movimento acelerado qualquer, porém, apresenta as características de um processo dialético, pois nele se opera uma transformação dos elementos fundamentais do
movimento mecânico. O movimento acelerado, por essa razão, pode ser estudado mesmo
isoladamente.
A diferença fundamental entre o movimento mecânico uniforme e o acelerado explica-se por meio da segunda lei fundamental da dialética.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
O processo mecânico e o processo de evolução
Os processos observados na natureza podem ser divididos em dois grandes grupos:
processos mecânicos e os processos de evolução.
Os processos mecânicos caracterizam-se pelas seguintes qualidades:
1. são a-históricos (a história da transformação não influi sobre seu resultado);
2. podem ser reversíveis ou parcialmente anuláveis, sem destruição de sua identidade característica;
3. um fenômeno pode sofrer a mesma transformação com iguais resultados entre si,
repetidas vezes;
4. as fases constitutivas desses processos são permutáveis.
Os processos de evolução são historicamente irreversíveis, não podem ser repetidos,
suas fases não são permutáveis.
Essa classe de processos é sujeita a várias leis importantes que formam a chamada
tríade hegeliana.
A tríade hegeliana
O processo histórico é essencialmente o desdobramento dos pólos opostos de uma
polaridade dialética que, em sua reação mútua, sintetizam-se numa nova identidade. Chamamos aos pólos desdobrados e em reação tese e antítese do processo evolutivo e a sua
identificação no resultado do processo denomina-se síntese.
Tese e antítese conservam as propriedades básicas dos opostos da polaridade dialética
e, portanto, são simultâneas e equivalentes. É um erro considerá-las sucessivas no tempo,
formando fases distintas do processo.
O processo evolutivo consiste na explosão, por assim dizer, da contradição entre os
seus pólos, tese e antítese, que conduz à permuta entre os seus elementos: a antítese incorpora em si a tese e, reciprocamente, resultando desse processo um novo fenômeno que
apresenta uma nova polaridade.
Um exemplo: o homem e o meio ambiente constituem uma polaridade latente. Na
ação do homem sobre o meio, a polaridade se desdobra e o homem se opõe, como tese à
antítese, o meio. Durante a ação, o homem transforma o meio, imprime à natureza o seu
caráter e a natureza, reagindo sobre o homem o transforma segundo as suas propriedades,
transmitindo-lhes novos conhecimentos e habilidades.
Assim, os elementos da tese e da antítese permutam-se; o homem, através da ação,
incorpora em si uma parte da natureza e a natureza uma parte do homem. Resulta dessa
interação como síntese um novo homem e uma nova natureza, que formam uma nova polaridade dialética, prestes a desdobrar-se em outra tese e em outra antítese, mediante uma
nova ação.
A síntese, pois, contém em si a tese e a antítese reunidas numa nova polaridade, por
meio de uma permuta.
O processo evolutivo, histórico, é composto desses elementos triádicos desdobrando-se cada síntese em tese e antítese, que de novo formam uma síntese. O processo histórico
acumula, por assim dizer, os resultados das duas fases, cada fase baseando-se nos resultados
da fase imediatamente inferior; a ordem em que se sucedem essas fases não é indiferente
para o resultado total do processo. O processo histórico é, portanto, um processo de integração
em que cada fase é determinada por todo o processo anterior.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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Pode-se comparar o processo integrativo a uma série matemática em que cada termo é a soma de todos os termos anteriores: 1, 2, 3, 6, 12, 24...
Naturalmente, essa analogia é um tanto superficial, no entanto, reflete um lado
característico da questão.
O estudo do processo de integração é particularmente importante para as ciências
biológicas e sociológicas.
VI – A 3ª LEI FUNDAMENTAL DA DIALÉTICA: O PONTO NODAL
Vimos que a qualidade é um elemento imutável e que a quantidade é um elemento
essencialmente variável. Decorre daí que a qualidade só pode deixar de existir ou surgir por
um salto brusco, ao passo que a quantidade existe somente através de uma transformação
contínua. A ligação íntima entre esses dois elementos fundamentais da natureza contém a
contradição enunciada.
A qualidade não pode desaparecer gradualmente como a quantidade nem tão pouco
surgir por um processo contínuo. Ela se apresenta e desaparece por um salto, quando o
movimento quantitativo atinge um determinado ponto crítico, o ponto nodal, que caracteriza cada processo completo.
A destruição de uma qualidade é seguida sempre pela criação de uma nova qualidade, pois o simples fato de uma qualidade deixar de existir modifica qualitativamente o
processo que se opera essa transformação.
O ponto nodal não é, como se pensa freqüentemente, uma transformação de quantidade em qualidade; o que realmente se opera é uma brusca alteração qualitativa no decorrer de um processo quantitativo. Naturalmente, essa alteração qualitativa marca o início de
um novo processo quantitativo que, em certos casos, pode-se manifestar como uma
descontinuidade no processo quantitativo já existente.
Um exemplo: se aumentarmos a energia molecular da água até um certo grau, o seu
estado de coesão se altera qualitativamente e a água passa do estado líquido para o estado
gasoso. Com isso, além de se iniciar uma série de processos novos, as próprias leis que regem
a variação da energia molecular se alteram e o processo quantitativo em questão atravessa
um ponto de descontinuidade.
Não se tratando, no fenômeno do ponto nodal, de uma transformação propriamente
dita, de quantidade em qualidade, não pode existir também o processo inverso, a transformação de qualidade em quantidade.
O ponto nodal relativo e o ponto nodal absoluto
O ponto nodal, como vimos, é de fato a criação de uma qualidade anteriormente
inexistente no processo em que ele surge. Sendo o processo em questão um típico, isto é, um
processo que já se realizou objetivamente (na realidade objetiva) várias vezes e que pode ser
repetido nos seus caracteres básicos, o ponto nodal marca um salto, apenas, em relação ao
processo, mas não cria novas qualidades da própria realidade objetiva. Trata-se, nesse caso,
apenas de um ponto nodal relativo ou típico.
Se, porém, o ponto nodal surge no próprio processo universal, que é um processo
atípico e absolutamente único, representa uma verdadeira criação, isto é, marca o início de
uma nova qualidade antes absolutamente inexistente. Trata-se, nesse caso, de um ponto
nodal absoluto ou atípico.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Segundo o postulado fundamental do materialismo dialético, um ponto nodal absoluto escapa totalmente a toda e qualquer precisão, pois altera as leis da natureza existentes
anteriormente a eles, não sendo determinado por nenhum deles.
Um ponto nodal absoluto foi, por exemplo, o salto qualitativo que marcou o início
dos fenômenos da vida.
Com a doutrina sobre o ponto nodal absoluto, a dialética, de fato, destrói definitivamente a concepção determinista do mundo. O Processo Universal é uma evolução criadora
na acepção própria do termo, isto é, acha-se em desenvolvimento espontâneo e ilimitado.
Toda e qualquer previsão científica não pode ultrapassar os limites impostos por um ponto
nodal absoluto. "A contradição entre o conhecimento finito e o infinito Processo Universal
só se pode resolver pelo desenvolvimento infinito da ciência".
O ponto nodal histórico
Cada síntese num processo de integração ou histórico marca, de fato, um ponto
nodal; porém, essa espécie de ponto nodal difere tanto do ponto nodal absoluto quanto do
ponto nodal típico. Existindo, pois, uma lei que rege a formação da síntese da tese e da
antítese, a síntese, em seus traços gerais, se acha contida nestas. O ponto nodal, representado pela síntese, pode, portanto, em parte, deduzir-se de suas componentes. Outrossim, a
síntese sempre apresenta elementos novos, alheios à tese e à antítese. Daí se deduz que essa
espécie de ponto nodal é uma forma semitípica que em suas linhas gerais pode ser prevista,
mas em grande parte apresenta características de um ponto nodal atípico.
VII – A CAUSALIDADE
A polaridade entre a ação e a reação apresenta-se, em grande parte de suas manifestações concretas, como lei da causalidade. Se um processo age sobre outro provoca neste
fenômeno de reação, segundo o princípio da ação e reação. Chamamos ao processo agente:
causa; ao processo medium; condição; e ao fenômeno provocado como reação: efeito.
No caso em que todo o processo medium é alterado pela ação, trata-se de ação e
reação propriamente ditas (ex.: gravitação de duas massas). No caso, porém, em que o
fenômeno de reação se distribui do medium da ação, desaparece a reversibilidade que
caracteriza ação e reação como polaridade dialética e, assim, o fenômeno se torna diferente dessa polaridade.
Para haver uma causalidade deve, portanto, haver 3 elementos: a causa, a condição
e o efeito, sendo causa e efeito irreversíveis e, portanto, não equivalentes.
A causa é essencialmente dinâmica, é o processo que provoca o efeito; a condição é
essencialmente estática, inalterável e determina o efeito.
São esses os critérios pelos quais podemos distinguir causa e condição de um determinado efeito.
(Ex.: A causa do fenômeno da alternação do dia e da noite é a rotação da Terra; a
condição é a existência do Sol).
Há duas classes de condições: acidentais e específicas. São condições acidentais
aqueles fenômenos que são estáticos apenas em relação a um determinado fenômeno,
podendo tornar-se causa em relação a outro fenômeno. As condições específicas são
aquelas que, essencialmente imutáveis, nunca podem agir como causas. Assim, por exemplo, uma lei da natureza (a gravitação) não é uma causa; mas uma condição específica
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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dos fenômenos determinados por ela. Chamamos também condição específica à razão
de ser do ciclo de fenômenos por ela caracterizados.
Vimos que a causalidade é determinada pelos 3 elementos: causa, condição e efeito.
A ausência do elemento "condição" numa relação constante entre dois fenômenos
torna inaplicável a categoria da causalidade. Assim, por exemplo, a relação constante existente entre o movimento rotatório e as forças centrífugas que o acompanham, não é uma
relação causal, pois as forças centrífugas que o acompanham, não é uma relação causal, pois
as forças centrífugas não são determinadas por condições alheias aos elementos dinâmicos
da rotação. Trata-se, nesse caso, de polaridades dialéticas, mas não de relações causais.
Há três espécies de relações causais:
1. a causalidade de manifestação;
2. a causalidade nodal;
3. a causalidade de transformação.
A causalidade de manifestação
Cada qualidade de matéria somente existe manifestando-se através de outras qualidades. Denominamos à qualidade que se manifesta de qualidade em si; à qualidade que se
manifestam de qualidade manifestada e o processo por meio do qual se manifesta, de medium
de manifestação.
Existe entre a qualidade em si e a qualidade manifestada uma relação de causalidade. O processo da qualidade em si provoca a manifestação do medium; e essa relação é
irreversível. O medium determina a natureza da qualidade manifestada e é um elemento
estático de forma que tem todas as características de condição. Assim, podemos considerar a
relação entre uma qualidade em si e a sua manifestação uma relação causal.
A causalidade definida por essa relação tem as seguintes características:
Causa e efeito – são processos simultâneos e qualitativamente diferentes; existe
entre os seus elementos quantitativos uma relação funcional; pode existir uma série de efeitos derivados de uma única causa.
Exemplo: as manifestações da alteração da energia molecular de uma substância.
A causalidade nodal
Quando o estado quantitativo de um processo acha-se nas proximidades de um
ponto nodal, uma pequena alteração provoca uma transformação qualitativa. Nesse caso,
existe entre o ato (processo de duração muito curta) que provoca a transformação qualitativa e o salto provocado, uma relação causal, sendo a conclusão a localização do ponto nodal
e a sua natureza.
As seguintes características são próprias a essa mencionada classe de relações
causais:
Causa e efeito se sucedem no tempo; são qualitativamente diferentes e não existe
relação funcional entre os seus elementos quantitativos. A causa é um ato, isto é, um processo comprimido num instante de tempo, ao passo que o efeito é um estado ou um processo
indefinido em sua duração. Não há coexistência de vários efeitos provocados pela mesma
causa. Exemplo: o acréscimo de energia que provoca a explosão de uma substância química
instável (pólvora).
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
A causalidade de transformação
Uma manifestação da mesma qualidade (fenômeno) fundamental pode transformar-se em outra manifestação sem perder suas características básicas.
Existe, nesse caso, uma relação causal entre a manifestação que se transforma e a
transformada. As condições da operação desse processo causal são as circunstâncias em que
ele se realiza. Assim, a causa e efeito são quantitativamente equivalentes e se sucedem no
tempo; a uma causa corresponde sempre um só efeito; causa e efeito são indeterminados
quanto à sua duração no tempo, que pode variar desde um instante infinitamente pequeno
até uma duração indefinida.
Sempre, porém, uma diferencial do processo causal provoca uma diferencial do processo efeito. A essa categoria de causalidade pertence a maioria das causas estudadas na
mecânica. Exemplo: as transformações de energia.
Erros freqüentes
A relação causal manifesta-se, como vimos, em três categorias distintas e inteiramente heterogêneas. Abstraindo-nos erradamente dessa verdade, fatalmente chegamos a
atribuir à relação causal, simultaneamente, caracteres contraditórios. É a ignorância desse
fato – das três categorias distintas de causalidade – que criou uma série de erros na interpretação da causalidade, tornando-a um conceito inteiramente vago e contraditório.
Causalidade e espontaneidade
A lei causal afirma: causas iguais em condições iguais provocam efeitos iguais. Essa
lei formula o princípio do determinismo. Ela, porém, contém em si o seu pólo dialético, pois
a própria afirmação da lei causal supõe a possibilidade de ação de uma multiplicidade de
causas equivalentes, isto é, cuja ação é de igual probabilidade, ou das quais nenhuma tem
preferência sobre outra. Significa isso que a causa efetiva não é, por sua vez, determinada,
ela é indeterminável ou espontânea (a ciência moderna, na teoria atômica, confirma essa
concepção pelo princípio do indeterminismo).
Ao determinismo dos efeitos corresponde o indeterminismo das causas. Não se pode
determinar a causa (entre os infinitos prováveis) que vai agir uma vez, porém, entrada em
ação a causa, o efeito se manifesta como uma necessidade férrea.
O determinismo é o pólo dialético da espontaneidade, do indeterminismo: um sem o
outro não se compreende.
A aplicação da categoria causal ao processo universal
1. A causa é causa apenas em relação ao efeito que provoca; e reciprocamente.
Ambas as categorias consideradas como tais formam uma polaridade dialética.
Assim, não podemos considerar o efeito como causa de outro efeito nem a recíproca. Quando um fenômeno se torna causa, deixa de ser efeito. É, portanto, um
erro encadear uma série de causas e efeitos em um nexo, de maneira que cada
causa se torne efeito de uma causa anterior. Com essa crítica do nexo causal, de
fato a concepção mecanicista do mundo recebe mais um golpe mortal.
Vida de Família, Formação Profissional, Opção Política | Volume 2
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2. Para aplicar a um fenômeno a categoria causal, é necessário, como vimos, que haja
a possibilidade de intervenção de uma multiplicidade de causas. Onde só pode agir
uma única causa, sem intervenção possível de outra causa qualquer a categoria da
causalidade torna-se ilusória, perde o sentido. Por essa razão, não podemos aplicar
essa categoria ao processo universal em conjunto. O ponto de vista dos mecanicistas,
segundo o qual cada estado do universo causa o estado imediatamente seguinte,
cai, portanto, como errôneo.
Livre arbítrio e determinismo
O conhecimento das relações causais da natureza proporciona ao homem a possibilidade de prever o efeito das suas ações e de dirigir o processo da natureza segundo os seus
desejos. A consciência da causalidade a transforma na categoria da finalidade: o efeito previsto de um processo torna-se o seu fim desejado e, como tal, age como motivo de ação. A
consciência do determinismo dos processos naturais é o poder de ação do homem; o poder,
porém, é o pólo dialético da liberdade e podemos, pois, dizer: a liberdade (o livre arbítrio) é o
conhecimento do determinismo, da necessidade.
Ao determinismo da natureza corresponde a liberdade do homem e apenas os processos espontâneos põem limites intransponíveis ao livre arbítrio humano.
O fim da ciência é a conquista da onisciência e, com isso, da onipotência humana.
VIII – A CONCEPÇÃO DIALÉTICA DA MATÉRIA
A dialética considera a matéria como a realidade objetiva infinita que nunca poderá
ser reduzida a um princípio imutável, uniforme, e que se acha num processo eterno e infinito
de evolução criadora. Atribui, pois, à matéria, a espontaneidade e forças criadoras, isto é, a
propriedade de criar (do nada) faculdades anteriormente absolutamente inexistentes (como,
por exemplo, a vida). Nenhuma hipótese nem teoria pode esgotar e esquematizar a infinidade das qualidades da matéria.
A concepção dialética da matéria é inteiramente diversa da concepção mecanicista
e do materialismo vulgar.
IX – O CONHECIMENTO - OS LIMITES DO CONHECIMENTO
Tudo que é sujeito a leis é suscetível ao conhecimento humano. Os limites do conhecimento humano são essencialmente relativos; os únicos limites absolutos são os domínios
da natureza em que predomina a espontaneidade. Aquilo que não está sujeito a leis não
pode ser conhecido, não pode ser previsto nem dirigido, apenas pode ser registrado pelo
aparelho dos nossos sentidos.
O conhecimento humano tem duas espécies de limites absolutos: os que são impostos pela espontaneidade, existentes na matéria (por exemplo: o princípio do indeterminismo
na teoria atômica, presentemente), e os limites marcados pelos pontos nodais da evolução
criadora do universo. Uns se impõem no presente, os outros impedem a previsão do futuro
(do processo universal in totum) além de certos limites.
Os limites relativos do nosso conhecimento são determinados pela própria natureza
destes que é essencialmente um processo contínuo da verdade absoluta (imagem perfeita da
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
realidade objetiva) e o qual se opera através de uma série infinita de verdades relativas,
interpretações defeituosas, unilaterais e deficientes da realidade.
Esses limites relativos, por sua própria natureza, são temporários e se alargam continuamente, ampliando cada vez mais o nosso campo de visão científica.
O critério da verdade e a natureza do erro
E verdadeiro um conceito ou um sistema de conceitos que refletem um determinado
setor da realidade objetiva. Verificamos a exatidão de uma hipótese pela experiência, isto é,
pela observação dos fenômenos previstos à base de nossa hipótese.
Esses fenômenos "crucis" da hipótese podem ser, se existem independentes da nossa
atividade, procurados e, observados com exatidão, ou então, se for necessário, provocados
por nós próprios. Em ambos os casos, trata-se de experiências apenas formalmente diferentes. Toda concepção que aspira ser considerada como verdadeira deve passar por essa verificação. Apenas, quando concorda com a realidade e na medida em que isso se verifica, pode
ser julgada verdadeira. Quando, porém, a previsão não se harmoniza com a experiência, a
hipótese deve ser corrigida, a fim de se eliminar o erro. O único critério da verdade é, pois, a
experiência, isto é, a identidade do fenômeno previsto a priori, por meio de um sistema de
conceitos, com o fenômeno realizado objetivamente, nas circunstâncias previstas. Contra o
critério da experiência não há apelação. Mas, toda hipótese é limitada, pois abrange apenas,
um campo restrito do setor da realidade de que trata. Essa restrição é a fonte do erro, pois
prevê somente certas possibilidades, ao passo que ignora outras. Essa espécie de erros científicos é inevitável, pois provém da relatividade (da contradição entre a capacidade limitada
no nosso conhecimento e da infinidade da realidade objetiva). O erro, contido na verdade
relativa, só pode ser abolido pela pesquisa de uma verdade relativa mais ampla. Esta, porém,
por sua vez, contém erros: assim, a contradição é permanente e encontra sua solução num
processo infinito. O erro imposto pela própria natureza relativa do nosso conhecimento, é
um erro progressivo, pois é a mola do progresso da ciência.
Há, porém, erros de espécie diferente e cujas causas são deformações orgânicas do
consciente, determinadas por condições sociais ou individuais. Esses erros têm uma natureza
estéril e, geralmente, não podem ser abolidos sem destruição prévia de sua causa; provocam
uma deformação intrínseca do sistema do conhecimento, a qual tende a impedir o progresso.
Em ambos os casos, o erro é o resultado de uma deficiência do consciente, originada,
ou por sua própria estrutura ou por razões sociais ou de psicologia individual, que impede a
visão integral da realidade. O erro é, portanto, sempre, em comparação com a verdade, uma
deficiência. E erro porque contém menos do que a verdade ou os elementos verdadeiros
deformados ou desproporcionados e nunca porque contém mais. Deduz-se isso do fato de o
conhecimento não ter a capacidade de criar; é apenas um instrumento de reflexão, segundo
o postulado básico dialético; nada, portanto, que está no intelecto pode deixar de ter uma
correlação com a realidade. As relações entre a realidade e a sua imagem só podem ser
deformadas ou deficientes.
O processo da aquisição do conhecimento
A única fonte do nosso conhecimento é, como vimos, a nossa experiência. Entende-se
por experiência a nossa atividade e não a simples percepção. A percepção sensorial é fonte do
nosso conhecimento somente na medida em que se torne elemento da atividade. A atividade,
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no seu sentido material, é a origem de todo o conhecimento. A gnoseologia dialética, pois,
baseia-se no primado da atividade e nisso difere fundamentalmente do empirismo que se baseia
no primado da sensação e do racionalismo que, por sua vez, se baseia no predomínio da razão (do
pensamento).
O próprio processo da aquisição do conhecimento é um processo histórico e essa
classificação caracteriza sua natureza básica. Assim sendo, o resultado do processo torna-se
condição necessária e determinante do seu desenvolvimento ulterior. A causa da aquisição
de um novo conhecimento é sempre uma experiência, porém, a sua condição indispensável
(existindo a priori em relação ao ato) é o resultado do processo anterior.
Lembrando-se da experiência e dos capítulos anteriores sobre o processo histórico e
a causalidade e, a significação rigorosamente correta dessa afirmação torna-se evidente.
X – A HIPÓTESE CIENTÍFICA
A hipótese científica é, de fato, uma generalização da experiência, isto é, a síntese de
uma multiplicidade de casos concretos numa fórmula abstrata e geral, da qual podem ser
derivados todos os casos particulares.
O objetivo da hipótese científica é a explicação dos fenômenos reais. Significa o
termo "explicar" prever a marcha de um processo, dado seu estado inicial ou produzir conscientemente um fenômeno previsto (ver o capítulo "O critério da verdade"). Procedemos de
acordo com o exposto no capítulo mencionado, para elaborar a hipótese cientifica, isto é, à
fase puramente descritiva da observação de um fenômeno estudado, sucede-se a da formulação de uma hipótese, à base da analogia com outros fenômenos já explicados. A esta
última, segue-se a fase da dedução das conseqüências contidas na hipótese, se possível, por
meio da matemática; é essa a fase dedutiva, a da verificação experimental da hipótese.
Conforme os resultados da experiência, a hipótese sofre uma remodelação e, em sua nova
forma, é confrontada, mais uma vez, por meio da experiência, com a realidade objetiva.
Assim, constitui-se uma nova aproximação à verdade absoluta, que de novo é confrontada
com a realidade objetiva etc. O processo da elaboração de uma teoria científica é, pois,
formado de uma infinita sucessão de fases alternadas de experiência e dedução, processo
esse que se aproxima, como uma assíntota, da verdade absoluta, sem jamais atingi-la.
Desse processo deduz-se imediatamente o princípio: nunca se deve formular hipóteses que não possam ser verificadas pela experiência. Esse princípio, importantíssimo para as
ciências físicas e naturais, é uma conseqüência da natureza própria da hipótese. Sua não
observação conduz a erros constitucionais da teoria.
No processo de elaboração da hipótese científica, a matemática desempenha um
papel importante que, não obstante, não deve ser superestimado. A matemática, nas ciências
físicas e naturais, é apenas um instrumento de dedução; é verdade que, como tal, é
insubstituível; mas, apesar disso, não pode ser considerada uma fonte de novos conhecimentos. A matemática só permite deduzir as conseqüências já contidas implicitamente no fato
observado. Além desse papel, a fórmula matemática é a linguagem mais concisa em que se
podem expressar certas hipóteses das ciências físicas.
Essa importância baseia-se no fato de que a matemática é a ciência das propriedades fundamentais de um grande setor da matéria (precisamente daquele que é objeto do
estudo da física), e, como tal, para essa disciplina desempenha o mesmo papel que a dialética
para a ciência em geral.
Sendo a matemática a ciência de todos os fenômenos determinados pelas polaridades: qualidade-quantidade e multiplicidade-espaço, sua aplicação torna-se indispensável
para todas as ciências que estudem objetos cuja constituição é essencialmente determinada
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por essas polaridades. A matemática, pois, torna-se um método de investigação, porque
reflete qualidades gerais e fundamentais de certos setores da matéria.
Sobre a classificação das ciências
A relação entre as várias ciências existentes é precisamente a relação que existe entre
os objetos de seu estudo. Sendo o nosso conhecimento desses objetos, relativos, também a
classificação das ciências será relativa e intimamente determinada pela natureza concreta das
próprias hipóteses científicas. A filosofia, pois, não pode estabelecer nenhuma classificação das
ciências, nem delimitar os campos de sua investigação. Essa obra é tarefa da própria ciência
que se resolve continuamente num processo, no decurso de evolução científica.
Rigorosamente falando, a própria divisão das ciências, uma como reflexão da matéria,
é uma simples questão de organização do trabalho prático, imposta por necessidades práticas.
De fato, sendo todos os fenômenos intimamente entrelaçados, uma separação artificial das
disciplinas que os investigam é impossível. E o próprio plural do termo ciência é uma inexatidão, pois só existe uma única ciência, composta de vários setores: suas disciplinas. Cada problema concreto exige, para sua solução, a aplicação de várias disciplinas científicas.
XI – O OBJETO DA FILOSOFIA DAS CIÊNCIAS FÍSICAS E NATURAIS
A filosofia científica não pode intervir na solução de problemas que pertencem ao
próprio campo da ciência. A filosofia também não visa generalizar e popularizar os resultados (sempre parciais e aproximados) da investigação científica, para reuni-las numa unidade
artificial, apresentado-o como explicação do Universo.
A filosofia é apenas a ciência chave do trabalho científico experimental e, assim
sendo, de fato ensina somente o modo do trabalho científico sem, no entanto, impor-lhe
hipóteses construídas a priori. O conteúdo da filosofia dialética, baseando-se no postulado
fundamental do materialismo dialético, limita-se à lógica dialética, que compreende, também, a teoria da causalidade e a teoria dialética do conhecimento.
Essas disciplinas, por sua vez, são objetos de investigação e, em si, formam uma
ciência à parte, que, como todas as ciências, baseia-se no método experimental. Devido
somente à natureza intrínseca do objeto da dialética, esta se baseia na experiência cotidiana
e ininterrupta da atividade humana em si, e se condensa na intuição imediata do pensamento criado por ela.
Dessa maneira, a dialética, que é em si uma ciência, como todas as outras, graças à
natureza geral (na mais alta acepção do termo) do seu objeto, torna-se para as outras ciências um método de investigação, o único método que corresponde à realidade objetiva de
todos os fenômenos. A dialética, portanto, cujo objetivo em si, é a investigação (experimental) das leis mais gerais da natureza, precisamente por isso desempenha o papel de único
método universal e científico da investigação.
A referida natureza condiciona a diferença essencial existente entre a dialética e
todas as outras doutrinas filosóficas, diferença essa que consiste principalmente no fato de
a dialética não se basear em nenhuma hipótese metafísica e independer, por completo, do
conteúdo dos resultados das investigações concretas das ciências particulares.
(E aqui termina a última aula, dada por Sérgio Kamprad, na "Universidade
da Cadeia", da Casa de Detenção do Rio de Janeiro, no ano letivo de 1936...)
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