Priscila Santos da Gloria - Programa de Pós

Transcrição

Priscila Santos da Gloria - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
REGIONAL E LOCAL
Priscila Santos da Glória
ENTRE A ROÇA E A CIDADE: TRABALHO, TRAJETÓRIAS E
MEMÓRIAS DE MIGRANTES EM ITABUNA, BA (1960-1990)
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
2011
PRISCILA SANTOS DA GLÓRIA
ENTRE A ROÇA E A CIDADE: TRABALHO, TRAJETÓRIAS E
MEMÓRIAS DE MIGRANTES EM ITABUNA, BA (1960-1990)
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção de título de mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local da Universidade do Estado
da Bahia, sob orientação do Prof. Dr.
Wellington Castellucci Junior.
SANTO ANTÔNIO DE JESUS
2011
FICHA CATALOGRÁFICA
SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNEB - SISB
Glória, Priscila Santos da
Entre a roça e a cidade : trabalho, trajetórias e memórias de migrantes em Itabuna, BA (1960-1990) /
Priscila Santos da Glória. _ Santo Antonio de Jesus, BA [s.n.], 2011.
160 f : il.
Orientador: Wellington Castellucci Junior
Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas.
Campus - V. Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local
Inclui referências
1. Migração rural-urbana - Itabuna (BA) - Estudo de casos. 2. Trabalhadores migrantes - Itabuna (BA) Condições sociais. 3. História oral - Itabuna (BA). 4. Itabuna (BA) - Condições econômicas (1960-1990).
I. Castellucci Junior, Wellington. II. Universidade do Estado da Bahia. Departamento de EducaçãoCampus V. Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local.
CDD: 304.809
PRISCILA SANTOS DA GLÓRIA
ENTRE A ROÇA E A CIDADE: TRABALHO, TRAJETÓRIAS E
MEMÓRIAS DE MIGRANTES EM ITABUNA, BA (1960-1990)
Dissertação de Mestrado apresentada à
comissão examinadora no dia 26 de abril de
2011, pelo Programa de Pós-Graduação em
História Regional e Local da Universidade do
Estado da Bahia em Santo Antônio de Jesus.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof. Dr. Wellington Castellucci Junior
_______________________________________________
Prof. Dr. Charles D' Almeida Santana
_______________________________________________
Profª. Drª. Maria Odila Leite da Silva Dias
A minha avó materna, Noêmia Ferreira dos
Santos, e aos meus pais, Eliane Ferreira dos
Santos e José Pedro Batista, migrantes que
buscaram em Itabuna melhores condições de
vida.
AGRADECIMENTOS
Na escrita destes “agradecimentos”, procuro ativar minha memória e recuperar
vestígios destes dois anos, dedicados, quase por completo, à pesquisa e escrita desta
dissertação. Neste ato de rememorar, encontro momentos de angústias, dificuldades e também
momentos felizes. A felicidade está entrelaçada à conclusão deste estudo, como também, à
participação de diversas pessoas neste caminhar.
Primeiramente, agradeço a Deus por me contemplar com saúde, paciência e
sabedoria em muitos momentos difíceis. Em segundo, aos meus pais: minha mãe, Eliane,
exemplo de luta e perseverança, me ensinou há algum tempo atrás a traçar objetivos e
conquistá-los, e também que o conhecimento é valioso e insubstituível; e ao meu pai, José
Pedro, que sempre acreditou no meu potencial, e me deu o verdadeiro amor de pai, do qual
nasceu um vínculo que ultrapassa qualquer laço sanguíneo.
Quero agradecer a toda família, em especial, a minha avó materna, Noêmia, uma nata
contadora de histórias; através dela, pude vivenciar um pouco do cotidiano rural, fosse por
suas histórias, ou pela sua companhia nas idas às roças do meu bisavô. As minhas tias
Eliandra, Cássia e Mônica, por todo carinho e apoio. Ao tio Jailton, pelas caronas até a
rodoviária, sem elas, teria perdido por diversas vezes o ônibus que me levava para Santo
Antônio de Jesus. Aos meus primos, em especial à pequena Maria Eduarda, que há três anos
veio alegrar os nossos dias.
Ao meu irmão Pedro Thiago, obrigada pelo apoio em meus momentos de angústia e
pelas brincadeiras, nem sempre bem-vindas, mas que resultavam em risadas intermináveis. A
minha irmã Thaís, por oportunizar este reencontro, pois não nos víamos há mais de dez anos,
e com seu amor pode me ajudar a ter calma nestes últimos instantes de escrita. As demais
irmãs Kaliana, Katiana e Katiúscia pelo carinho. Ao meu amor, outro Thiago, que esteve ao
meu lado desde a seleção deste curso de mestrado, até a conclusão da escrita; muito obrigada
mesmo pela paciência, incentivo e amor, sem eles jamais conseguiria trilhar estes caminhos.
Obrigada também por me ajudar a analisar os dados demográficos e por ler meus textos ainda
rascunhados.
As minhas “eternas” amigas, Fernanda, Daniele, Aline, Manuella, e Marília, pelo
incentivo, carinho e momentos de descontração como as quartas do “caranguejo dobrado”. A
outras amigas, que por diversas razões não estão tão próximas como gostaríamos, Camila,
Nádia, Kelly, Gabriela, as Julianas, Sibelle, Martha e Tenylly. Como também aos amigos
conquistados na graduação, Tércio, Carol, Luciana, Niviane, Laís, Nara, Regina, Fábio,
Sandro, Luís, Silvio, Wagner, Emiron, entre tantos outros, agradeço pelos primeiros
momentos compartilhados com a “História”.
A todos os colegas do mestrado, com os quais dividi muitos momentos árduos desta
escrita. Em especial a Wilma, por me receber sempre com carinho e hospitalidade em sua
casa, em Santo Antônio de Jesus. E também a Soanne, Marilva, Ednair, Carol, Lielva, Regina,
Gabriela, Margarete, Moíses, Alex, Antônio, Wadson, Gilson, Oscar e Klebson. Ao grupo de
pesquisa Conflito Bahia, pela leitura, considerações e críticas deste texto, à coordenadora e
amiga Kátia, Erahsto, Philipe, Danilo, e mais uma vez a Soanne, Geandson e Domingos.
Aos muitos professores do Programa de Pós-Graduação em História Regional e
Local, a Ana Maria, Gilmário, Raimundo, Raphael pelas indicações bibliográficas, leituras e
considerações do texto, quando o mesmo ainda era um projeto. Em especial, ao meu
orientador, Wellington Castelluci, pelo apoio, incentivo, críticas, muitas leituras desta
dissertação, e, principalmente, por ter visto o potencial da pesquisa nas trajetórias dos
migrantes. Também à banca de qualificação, na pessoa do professor Charles Santana e Carlos
Alberto, obrigada pela leitura e considerações, que foram imprescindíveis para a conclusão
deste trabalho. Não poderia esquecer do trabalho das secretárias Anne, Consuelo e Wilma,
sempre nos bastidores nos oportunizando tranquilidade neste percorrer. Também meus
agradecimentos a instituição CAPES, pela concessão da bolsa de estudos.
Ao amigo Egnaldo, por me acompanhar nos muitos caminhos do bairro Maria
Pinheiro, sempre com disponibilidade e atenção. Aos meus tios Carlinhos e José Raimundo
por ter me reapresentado ao bairro Pedro Jerônimo. Especialmente a todos os entrevistados
que concederam suas histórias para a construção desta pesquisa: Gilberto, Gessília, João,
Talmon, dona Caçula, Marinalva, seu Edinho, Valcir, Esmeraldo (in memoriam), Margarida,
Raimunda, Jorge, seu Delfino, dona Dora e seus filhos, José e Otoniel.
Com os seus pássaros,
Ou a lembrança dos seus pássaros
Com seus filhos
Ou a lembrança dos seus filhos
Com seu povo
Ou com a lembrança do seu povo
Todos emigram.
Alberto de Cunha Melo “Canto dos Emigrantes”
CD Cordel do Fogo Encantado – Transfiguração (2006)
RESUMO
Esta pesquisa analisa as trajetórias e memórias de migrantes que chegaram à cidade de
Itabuna, no estado da Bahia, entre as décadas de 1960-1980, e estabeleceram suas vivências
nos bairros populares Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro, trata-se especialmente de
trabalhadores rurais. As memórias emanaram duas temporalidades distintas: o “tempo da
roça” e o “tempo da cidade”. Na primeira, foram discutidas as relações e os ritmos do trabalho
rural, do trabalho familiar, as lembranças das famílias e das casas, além dos significados
atribuídos ao “tempo da roça”. Em o “tempo da cidade”, foram as motivações da migração
que se sobressaíram, enlaçadas ao cotidiano rural, às expectativas em torno da cidade, e aos
traços da conjuntura do sul da Bahia. Também neste âmbito, foram problematizadas as
percepções da chegada, as primeiras vivências nos bairros populares, as dificuldades com a
ausência de abastecimento de água e alimentação, e também a luta dos migrantes pela
construção das suas casas nestes espaços recém-ocupados. A pesquisa utilizou principalmente
a metodologia da História Oral, para reconstituir aspectos das trajetórias e memórias destes
sujeitos. E ainda fontes demográficas, estatísticas e hemerográficas como os censos do IBGE,
pesquisas do SEI, e jornais localizados no CEDOC e no APMI, que auxiliaram na análise da
conjuntura da Bahia, da região sul, e de Itabuna.
Palavras-chave: 1. Trajetórias. 2. Memórias. 3. Migrantes.
ABSTRACT
This research examines the trajectories and memories of migrants who arrived in the city of
Itabuna in the state of Bahia, between the decades of 1960-1980, and established his
experiences in poor neighborhoods Peter Jerome and Maria Pinheiro, this is especially for
rural workers. Memories emanated two distinct temporalities "time in the countryside" and
the "time of the city". The first was discussed relations and the rhythms of rural work, family
work, the memories of families and homes, plus the meaning attributed to "time in the
countryside."In "time of the city" were the motivations of migration that stood out, clasped
the daily rural, expectations around the city, and the traces of the situation in southern Bahia.
Also in this area was problematic perceptions of arrival, the first experiences in poor
neighborhoods, the difficulties with the lack of water and food, and also the struggle of
migrants in the construction of their homes in these newly occupied areas. The research
methodology used mainly for the Oral History of the trajectories and reconstruct memories of
these subjects. Yet demographic sources, such as statistics and hemerográficas IBGE census,
surveys of SEI, and newspapers located in CEDOC and APMI, they assisted in the analysis of
the Bahia, the region south and Itabuna.
Key-works: 1. Trajectory; 2. Memories; 3. Migrants.
LISTA DE ABREVIATURAS
APMI – Arquivo Público Municipal de Itabuna.
CEDOC – Centro de Documentação Regional.
CEPLAC – Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira.
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES E TABELAS
Figura 1: Mapa das Regiões Econômicas da Bahia e dos Municípios de Origem dos
Migrantes............................................................................................................23
Tabela 1: Crescimento populacional de Itabuna................................................................116
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................................12
2. O TRABALHO NA ROÇA........................................................................................27
2.1 DE DOMINGO A DOMINGO, SOB CHUVA E SOL, E ENTRE O CLARO E O
ESCURO............................................................................................................................27
2.2 AS DIVERSAS FACES DO TRABALHO FAMILIAR.............................................39
2.3 LEMBRANÇAS DA CASA E DA FAMÍLIA ...........................................................53
3. O TEMPO DA ROÇA: UM TEMPO DE
FARTURA?............................................70
3.1 SIGNIFICADOS DO TEMPO DA ROÇA: OS PEQUENOS PRODUTORES.........70
3.2 OS TRABALHADORES ALUGADOS......................................................................79
3.3 “EU NÃO QUERO MAIS TRABALHAR PRO SENHOR NÃO”............................88
4. O TEMPO DA CIDADE: TRAJETÓRIAS E VIVÊNCIAS..................................99
4.1 “EU VIM REALMENTE PRA VÊ SE EU MELHORAVA DE VIDA”...................99
4.2 A CHEGADA NOS BAIRROS POPULARES........................................................118
4.3 MORAR NA CIDADE .............................................................................................132
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................145
FONTES..........................................................................................................................151
REFERÊNCIAS.............................................................................................................153
12
INTRODUÇÃO
Nas minhas memórias estão presentes vivências em muitos bairros populares da
cidade de Itabuna, pelos quais percorri durante a infância e a juventude ao lado da minha mãe
e avó materna. Como vivíamos em casas alugadas, era comum que nos mudássemos após seis
meses ou um ano de residência. Buscando melhores condições de habitação, perpassamos
pelos bairros Santo Antônio, Conceição e Mangabinha.
No entanto, outros bairros me chamavam atenção, como os bairros Pedro Jerônimo,
Maria Pinheiro, estes circunvizinhos. Os conheci quando acompanhava minha avó em visitas
ao irmão do meu avô, este morador do Pedro Jerônimo. Lembro-me das dificuldades para
chegarmos até lá, pois o transporte coletivo nem sempre conseguia subir até o bairro. Assim,
costumeiramente pegávamos um ônibus até o São Caetano e de lá subíamos pelas ladeiras, a
pé.
As dificuldades não se resumiam ao transporte, mas também a falta de água, devido
ao abastecimento irregular, à ausência de ruas asfaltadas e esgotamento sanitário, entre outros
problemas infra-estruturais. Todavia, o quê mais salta as minhas lembranças são os momentos
de lazer, das brincadeiras de crianças, do encontro com meus familiares, tios e primos. Enfim,
as recordações estão afloradas de momentos de alegrias, traduzidos na receptividade da
família e dos vizinhos.
Depois que a esposa do meu tio foi para Belo Horizonte, levando meus primos, só
permaneceu apenas o meu tio, que era irmão do meu avô, lá no Pedro Jerônimo. Dessa forma,
as visitas frequentes, se tornaram cada vez mais escassas. Também porque minha avó,
companheira nessas aventuras, adoeceu e interrompeu nossas “andanças” pela cidade de
Itabuna. Não só pela cidade, era ela quem me levava para roça dos meus bisavós, pais do meu
tio.
Situada no Japú, distrito de Ilhéus, esta roça era habitada pelos meus bisavós e alguns
tios; nessa época, meu avô e alguns dos seus irmãos já haviam “ganhado o mundo”. Hoje vive
apenas um tio na pequena propriedade da família, de onde quase todos migraram para a
cidade. Deste tempo ficaram recordações de vivências rurais, tão distintas daquelas da cidade.
Lembranças das brincadeiras entre as matas, dos banhos de rio, da diversidade de frutas que
nos alimentavam, colhidas diretamente do pé. Das conversas à base do candeeiro, do medo
13
que eu sentia destas conversas, que eram sempre recheadas de lendas, me lembro
principalmente das estórias sobre lobisomem.
Após a doença da minha avó, não mais entrei em contato com este cotidiano rural e
nem mesmo com os bairros Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro. Porém, durante a minha
graduação em História, na Universidade Estadual de Santa Cruz, me vi novamente envolvida
com moradores destes bairros. Conheci um grupo que desempenha um trabalho social nesta
localidade, a ONG Encantarte, e assim resolvi pesquisar sobre as ações deste grupo na Escola
Municipal situada no Pedro Jerônimo.
Durante a pesquisa, pude notar que pouca “coisa” havia mudado no cotidiano dos
moradores daqueles bairros. Os mesmos problemas infra-estruturais se apresentavam, também
outros surgiram ao longo dos anos, como a violência e o preconceito, enfrentados pelos
moradores. Alguns questionamentos me perseguiram por toda pesquisa, mas naquele
momento não foi possível enveredar nos caminhos apontados por tais questões. Entre elas,
quem eram aqueles moradores? Como chegaram aqueles espaços? Como construíram suas
vivências diante de tantas dificuldades?
A origem do meu tio, seu José Raimundo, apontava algumas pistas, estas eram
intensificadas pelo contato com os integrantes do Encantarte, entre os quais descendentes de
migrantes de diversas zonas rurais. A limitada historiografia regional também me
impulsionava para compreender as trajetórias destes migrantes; pois, por muito tempo, ela
silenciou a história dos trabalhadores da região cacaueira1. Porém, pesquisas recentes de
graduação e pós-graduação2 vem construindo análises e problemáticas sobre as vivências,
trajetórias e estratégias destes trabalhadores da região sul da Bahia que “foram excluídos ou
marginalizados em narrativas históricas anteriores”3.
1
Obras que se limitaram a analise da elite cacaueira e mais especificamente a cidade de Ilhéus: FREITAS,
Antônio Guerreiro de; PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro do mundo: A capitania, os
frutos de ouro e a Princesa do Sul (Ilhéus, 1534-1940). Ilhéus. Editus, 2001. ; RIBEIRO, André Luis Rosa.
Família, poder e mito: o município de São Jorge dos Ilhéus (1880-1912). Ilhéus: Editus, 2001.
2
É importante citar as dissertações de LOPES, Rosana dos Santos. Morar, trabalhar, brincar, viver!:
experiências de moradores do bairro da Conceição, Itabuna, Bahia, 1950-1997. São Paulo. PUC-SP, 1999.
Dissertação (Mestrado), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Universidade Católica do Salvador,
Universidade Estadual de Santa Cruz; de LINS, Marcelo da Silva. Os vermelhos nas terras do cacau: a
presença comunista no sul da Bahia (1935-1936); Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em
História Social). Salvador: UFBA, 2007; e a monografia de SOUSA, Erahsto Felício. O Conceição em retalhos
de cidade, margens e dono: uma Itabuna-BA nos territórios subalternos (1950-55). Monografia (Graduação em
História). Ilhéus, UESC, 2007; CARVALHO, Philipe Murillo Santana. Uma cidade em disputa: tensões e
conflitos urbanos em Itabuna (1930-1948). Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local). Santo Antonio de Jesus: UNEB, 2009.
3
THOMSON, Alistair. Os debates sobre história e memória: alguns aspectos internacionais. In: AMADO,
Janaína (Org.) Usos e abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1998. p. 73
14
Estes caminhos só foram trilhados no mestrado. Neles encontrei diversas surpresas.
Quando pensei em pesquisar sobre as vivências dos moradores, não sabia que elas eram tão
carregadas de memórias rurais. Não percebia também que a migração destas pessoas
evidenciaria múltiplas motivações. Acreditava que a migração estava relacionada com a crise
cacaueira da década de 1980. Não compreendia, no primeiro momento, que nos meandros
desta conjuntura havia as expectativas dos sujeitos migrantes e suas memórias inundadas por
lembranças do cotidiano e do trabalho rural. Tampouco não entendia que esta conjuntura
também apresentava outros elementos, como a concentração de terras e uma crise cacaueira
contínua. Não só aquela causada pela vassoura-de-bruxa, como a gente aprendeu na escola e
ouvia os mais velhos contarem. Mas, uma década de 80 marcada pelos baixos lucros do
cacau, antes mesmo da primeira lavoura infectada pela doença.
Delineadas as trajetórias dos migrantes, surgiram outros questionamentos, pois não
basta conhecer a “história das pessoas comuns” é necessário saber “por que? E o quê? 4”.
Então, foi preciso entender por que eles migraram? Quais razões levaram os migrantes a
desistirem da vida rural? E por que escolheram a cidade de Itabuna como destino para o
continuar de suas vivências? Estas questões perpassaram a compreensão de um contexto rural,
as origens dos entrevistados, como também processos históricos urbanos, em Itabuna.
Neste sentido, busquei entender o quê Itabuna representava para aqueles migrantes,
pois a cidade nesta pesquisa é vista como um lugar “imaginado e sentido” por aqueles que
escolheram e atribuíram sentidos e significados ao espaço e ao tempo em que vivenciaram a
cidade. Assim, “o espaço se transforma em lugar, ou seja, portador de um significado e de
uma memória”5. O espaço, nesta pesquisa, não é visto apenas em seu aspecto funcional, mas
“como marca, como expressão, como assinatura, como notação das relações sociais, como
cartografia das relações sociais6”.
Itabuna está localizada no sul da Bahia, região que se tornou conhecida pelo cultivo
do “fruto de ouro”7, o cacau, que despontou no final do século XIX como principal produto
exportável do estado, ultrapassando o comércio de fumo8. Neste contexto, a região atraiu
migrantes de toda parte do país, e até mesmo de outros países. Para Milton Santos estas
4
HOBSBAWM, Eric. A História de baixo para cima. In: Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras,
1998, p. 230.
5
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Cidades visíveis, cidades sensíveis, cidades imaginárias. In: Revista Brasileira
de História. São Paulo: ANPUH, vol.27, nº53, jan.-jun., 2007, p. 14-15.
6
ROLNIK, Raquel. História urbana: história na cidade? In: FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio ª de
Figueiras (Orgs.). Cidade & História: modernização das cidades brasileiras nos séculos XIX e XX. Salvador,
UFBA, 1992, p. 28.
7
FREITAS; PARAISO, op. cit., p. 111.
8
ROCHA, Lurdes Bertol. A região cacaueira da Bahia: Uma abordagem fenomenológica. Aracaju, 2006. 290
f. Tese (Doutorado em Geografia). Universidade Federal de Sergipe., p. 87.
15
correntes migratórias e o procedente povoamento da região estavam relacionados ao
desenvolvimento das lavouras cacaueiras9.
Pensar a região sul da Bahia enquanto um espaço é perceber que esta delimitação vai
além das divisões políticas e econômicas, pois “a região configura-se como o espaço
localizado de realização e controle de poder”10. Nesta se estabeleceu o poder local dos
cacauicultores, fossem eles produtores e/ou exportadores de cacau, “filhos da terra” e/ou os
“desbravadores”. Eles exerceram o seu domínio explorando as terras e um contingente
significativo de trabalhadores, construindo um espaço de poder e auto-imagem de seu grupo.
Assim, a região é entendida como um “mapa de muitas dimensões no qual as coordenadas
representam espécies qualitativamente diferentes de poder, propriedade e controle”11. No
entanto, o sul da Bahia ganha contorno de região, nesta pesquisa, quando se percebe os
sujeitos, os trabalhadores rurais, pois a problemática central são as vivências e experiências12
destes trabalhadores que migraram para a cidade de Itabuna. Assim, “o sujeito na história
regional é o homem na sua prática social e não o espaço quanto delimitação geográfica”13.
A própria fundação da cidade de Itabuna é ainda hoje associada pela escrita
memorialista14 a migração e a chegada de sergipanos, no final do século XIX. Estes
sergipanos são vistos como os “fundadores” de Itabuna e “desbravadores” da região sul da
Bahia, atraídos principalmente pela fama de terras “virgens e ricas”. Sandra Pesavento
ressalta que estas escritas memorialísticas são histórias informativas sobre as cidades, mas
“não estabelecem reflexões maiores sobre o fenômeno da urbanização”15.
Na década de 1980, a chegada de migrantes despossuídos não era mais “aceita” na
cidade. Uma cidade famosa pela produção do cacau, mas que nada tem a oferecer aos
migrantes, assim Itabuna é vista pelo Diário de Itabuna, em periódico intitulado, Mendigos:
uma esmola pelo amor do ouro:
Dezenas de famílias das mais variadas regiões do país, principalmente das
regiões consideraras pobres, chegam quase que diariamente a Itabuna. Na
esperança de ter melhor condição de vida, elas se deparam com um quase
9
SANTOS, Milton. Zona do cacau: introdução ao estudo geográfico. Salvador: Artes Gráficas, 1955. p. 45.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História regional e transformação social. In: SILVA, Marcos A. (Org.).
República em migalhas: história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990. p. 69.
11
DAVIS, Natalie Zemon. Culturas do povo: sociedade e cultura no início da França moderna. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1990. p. 9.
12
“O conceito de experiência abre novas perspectivas para investigar novos agentes sociais que por muito tempo
a historiografia nacional negligenciou” In: PRIORI, Ângelo. História regional e local: métodos e fontes. In: Póshistória, Assis – SP: 1994, p. 184.
13
NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da
modernidade. Feira de Santana: UEFS; Salvador: Arcádia, 2002, p. 57.
14
SILVEIRA, Adelindo Kfoury. Itabuna, minha terra. Itabuna: Gráfica Santa Helena, 2002.
15
PESAVENTO, Sandra Jatahy, op. cit., 2007, p. 12.
10
16
sempre pior do que estavam acostumadas. A fome e a miséria contrastam
com a fama de cidade rica, produtora de cacau e pródiga em emprego (...)
aqui enfrentam o desemprego, como por exemplo, as famílias que formam
um aglomerado no subsolo do Estádio Municipal, que jamais receberam,
qualquer ajuda do poder público. Itabuna é ainda uma cidade carente. Não
dispõe de um centro de recuperação para pessoas marginalizadas, nem
mesmo de abrigo, capazes de absorver pelo menos parte deste contingente de
emigrantes, que prolifera pela cidade em busca do ouro que não chegou a
existir.16
Na notícia acima, os migrantes são retratados como pobres, mendigos e pessoas
marginalizadas, atraídos pelo emblema17 do cacau, os “frutos de ouro18”. Mas a riqueza,
segundo o periódico nunca existiu, apenas serviu para criar a fama de Itabuna, enquanto uma
cidade rica, por causa do comércio do cacau. Os migrantes, ou melhor, os mendigos, segundo
o periódico, encontraram em Itabuna desemprego, fome, miséria. Assim, problemas maiores
do que eles enfrentavam em seus locais de origem, pois Itabuna não dispunha de um local
para “abrigar” estes migrantes. Talvez o intuito não fosse abrigar no sentido da palavra, mas
evitar que eles ficassem transitando e mendigando na cidade. Assim, Os migrantes foram
alocados, certamente pelo poder público municipal, no estádio da cidade.
O que nos leva à algumas fontes utilizadas nesta pesquisa, como as fontes
hemerográficas. Entre estas, os periódicos do Diário de Itabuna e do Jornal Oficial do
Município de Itabuna, localizados no CEDOC (Centro de Documentação e Memória
Regional) na UESC, e no APMI (Arquivo Público Municipal de Itabuna), nesta mesma
cidade. Também as fontes demográficas que contribuíram para a compreensão dos processos
históricos da região sul e até mesmo do estado da Bahia, nos quais se delinearam as correntes
migratórias. Estas fontes empreenderam os censos demográficos e agrários no acervo digital
do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e estudos estatísticos de população e
migração digitalizados no SEI (Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia).
Estas fontes não foram utilizadas no sentido de sustentar as fontes orais, estas últimas
foram norteadoras desta pesquisa e apresentaram sua riqueza por si só. De qualquer modo “a
dimensão demográfica é uma primeira instância a ser considerada em qualquer tentativa de
caracterização ou definição da cidade”, porém não impede a busca pelas “especificidades” dos
povoados19, encontradas nesta pesquisa através das fontes orais. No entanto, as demais fontes
16
“Mendigos: uma esmola pelo amor do ouro”. Diário de Itabuna. 18 jun. de 1981. Ano XXIV. Nº 4.661, p. 1.
APMI.
17
Os emblemas são “representações objectais” construídas para o reconhecimento de uma região. In:
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio Janeiro: Bertrand Brasil, 2007, p.112.
18
FREITAS; PARAISO, op. cit., p. 111.
19
BARROS, José D' Assunção. Cidade e história. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007, p. 57.
17
contribuíram para a compreensão da conjuntura regional e também na problematização dos
símbolos20 presentes na imprensa. Como o estigma de mendigo, expressado na noticia acima
quando caracteriza os migrantes da década de 1980.
Neste mesmo ano da notícia, 1981, a região foi afetada por insistentes chuvas que
ocasionaram enchentes do rio Cachoeira. Itabuna é marcada pela presença do Rio Cachoeira
que atravessa o município de uma extremidade a outra, além de dividir a cidade em duas
partes. É inclusive, corriqueiro o uso da expressão “do outro lado do rio”, quando é necessário
indicar um dos lados da cidade, seja o esquerdo ou o direito21.
O rio possibilitou a sobrevivência de pescadores, lavadeiras e areeiros22, de onde
tiravam e ainda tiram seu sustento23. Em Itabuna, bairros foram formados a partir da presença
deste rio, como o bairro Conceição e o Banco Raso, localizados na margem direita do rio, e
outros como a Mangabinha e a Bananeira, situados na margem esquerda. Moradores destes
bairros enfrentaram dificuldades em situações extremas do rio Cachoeira, ao longo dos anos.
Quando não chovia na região, a estiagem impossibilitava a pesca; e quando aumentava o
índice pluviométrico, as chuvas se tornavam incessantes, então havia enchentes e destruição.
Em 1981, o poder público municipal decretou estado de calamidade na cidade de
Itabuna24, devido às enchentes do rio Cachoeira. Em função disso, muitos moradores de
bairros circunvizinhos ao rio ficaram desabrigados, os quais foram encaminhados a prédios
públicos25. Um destes locais públicos foi o Estádio municipal Luiz Viana Filho, conhecido
como Itabunão, onde também, segundo a notícia transcrita anteriormente, foram alocados os
migrantes. Entre os migrantes, ou mendigos, estavam trabalhadores rurais recém-chegados à
cidade, que encontraram possibilidades de moradias em bairros ribeirinhos, e quando
aconteceram as enchentes perderam seus “barracos”26.
As pessoas “abrigadas” no Itabunão foram deslocadas pelo poder público municipal
para o bairro Maria Pinheiro, que nesta época estava ainda se formando. Entre estas, estavam
20
Segundo Pierre Bourdieu os símbolos são “os instrumentos por excelência da integração social” que possibilita
o consenso e “contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”. In: BOURDIEU, Pierre, op., cit.
p. 10.
21
ROCHA, Lurdes Bertol. O Centro da Cidade de Itabuna: trajetória, signos e significados. Ilhéus: Editus,
2003, p. 68.
22
Ibidem.
23
Atualmente o rio se encontra poluído, pois recebe lixos industriais e esgotos, mas ainda há trabalhadores, como
pescadores e lavadeiras, que o utilizam como meio de sobrevivência. Cidades como Itaju do Colônia, Ibicaraí e
Santa Cruz da Vitória não têm tratamento de esgoto, que é jogado no rio Cachoeira. No entanto, ainda é a cidade
de Itabuna a que mais polui o rio, em função de sua grande população – se comparada às das demais cidades – e
por tratar apenas 10% do seu esgoto. In: CALASANS, Neylor. Jornal A Região - 7 fev. de 2004.
24
Decreto nº3.340 do Jornal Oficial do Município de Itabuna de 25 de março de 1981. APMI.
25
“CERIN faz levantamento dos danos das enchentes”. Diário de Itabuna. 21 de ab. de 1981. Ano XXIV. Nº
4.821, p. 1. APMI.
26
Rosiclei Oliveira Santos, entrevistada em 08 de novembro de 2007.
18
trabalhadores rurais que migraram para Itabuna, na década de 1980, os então sujeitos desta
pesquisa.
Entre estes migrantes houve aqueles que se alocaram no bairro Pedro Jerônimo,
vizinho ao Maria Pinheiro. Espaços nesta época em formação, pois eram antigas propriedades
rurais e que não disponibilizavam os principais serviços para a sobrevivência destes
migrantes. Não apresentavam saneamento básico, abastecimento de água, iluminação elétrica,
ruas asfaltadas, e transporte público, enfim, não havia infra-estrutura para moradia digna.
Através destas impressões, busquei compreender como o espaço urbano de Itabuna
foi adentrando a zona rural do mesmo município. Talvez Itabuna possa ser considerada uma
“cidade orgânica”, pois foi “se formando e crescendo mais ou menos à maneira dos
organismos vivos, adaptando-se a um terreno em que se viram inseridas de maneira não
planejada, e, sobretudo, fazendo concessões permanentes à vida em toda a sua
imprevisibilidade27”.
Não bastou compreender esta dinâmica urbana da cidade, foi ainda necessário
entender como se deram as primeiras vivências citadinas dos migrantes, nos bairros
populares, espaços recém-urbanos. O bairro é entendido “como um lugar onde se desvendam
os mil e um detalhes da vida cotidiana: o bairro é esse cenário público, onde a pessoa tem de
representar sua vida privada28”. É neste entrelaçar das vivências no público e privado dos
bairros Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro que surgiram novos questionamentos: Como os
migrantes chegaram nestes espaços recém-urbanos? Quais foram suas impressões? E entre
tantas dificuldades por que permaneceram nestes bairros?
O periódico Diário de Itabuna, citado anteriormente, afirma que não havia riqueza,
nem mesmo emprego para os migrantes que chegavam a Itabuna, na década de 1980. Mas,
seria o “trabalho” o norteador desta migração? Se não havia trabalho por que os migrantes
permaneceram na cidade? Itabuna hoje é considerada uma cidade rica em serviços comerciais
e industriais, segundo a imprensa. Uma propaganda televisiva da emissora Record local, em
comemoração ao centenário da cidade, retrata Itabuna como uma cidade “com comércio forte
e rica em industrias e serviços29”. Quanto ao comércio, desde a sua fundação Itabuna foi vista
como um lugar de passagem, pouso de tropeiros. Comerciantes que se locomoviam vendendo
produtos de primeira necessidade. Ao longo dos anos ganhou sinônimo de comércio,
atendendo as cidades circunvizinhas.
27
BARROS, José D' Assunção, op. cit., p. 23.
PROST, Antoine. Transições e interferências. In: ___________; VINCENT, Gérard. História da vida
privada: da primeira guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
29
CENTENÁRIO. Alerta Total. Itabuna: Record News. 15 de jul. 2010. Programa de TV.
28
19
Hoje várias avenidas são dedicadas ao comércio dos mais variados produtos.
Avenida Cinqüentenário, artigos de presente em geral, vestuário e calçados; Avenida Juracy
Magalhães, materiais de construção, eletrodomésticos e móveis; Avenida JS Pinheiro, outra
dedicada a materiais de construção, e também comércio de automóveis e seus acessórios.
Justamente no setor do comércio, em 1980, Itabuna apresentava aumento de desemprego.
Segundo o Diário de Itabuna, os índices de desemprego neste ano foram maiores que o
anterior, e tendia a crescer em 1981. Em entrevista ao periódico, o presidente dos sindicatos
dos comerciários, Agenor Medeiros, alegou que este aumento estava relacionado à crescente
inflação que afligia o país, gerando assim despesas altas para os empregadores30.
As indústrias, segundo Alan Santos, começaram a ser geradas com a criação do
Distrito Industrial no final da década de 70. Através de manobras do governo estadual, como
os incentivos fiscais e melhorias infra-estruturais, empresas como a Nestlé, a MADEL Exploração e Comércio de Madeira Ltda., entre outras, foram implantadas no município. Uma
industrialização ainda incipiente que só se concretiza após a crise cacaueira, com a
implantação de outras indústrias na década de 199031.
As expectativas dos migrantes com a migração para Itabuna perpassam a busca por
oportunidades de trabalho. “Trabalho” é uma presença marcante nas narrativas, pois norteia
grande parte das lembranças da vida rural, tanto nos depoimentos masculinos como nos
femininos. No entanto, a memória não se limita ao “trabalho”, à “família” também surge
como um elo entre a roça e a cidade. Muitos migrantes, especialmente as mulheres expressam
o desejo de manter a família unida como uma motivação para a migração.
As narrativas femininas sobre o cotidiano rural traduzem uma vida doméstica que
segundo Michelle Perrot “parece escapar à história32”. Mas, as migrantes não lembram apenas
dos seus afazeres domésticos, do cuidado com os filhos e da família. Elas também expressam
diversas funções nas lidas nas roças, acompanhando os maridos, ou sozinhas, elas
“ajudavam”, ou até mesmo eram responsáveis por grande parte do sustento familiar.
O contato com as fontes orais foi primordial a estas novas percepções e
encaminhamentos da pesquisa. As narrativas dos migrantes ampliaram as perspectivas sob os
processos migratórios na cidade de Itabuna. O quê contribuiu para a desconstrução do modelo
homogêneo que reduzia a migração ao contexto da crise cacaueira33. Foi possível então dar
30
“Desemprego aumenta em Itabuna”. Diário de Itabuna. 3 dez. de 1980. Ano XXIV. Nº 4.530, p. 1. APMI.
SANTOS, Alan Azevedo Pereira. Estratégias e ações do estado na produção do espaço urbano: um estudo de
caso da cidade de Itabuna-Ba. In: Anais do I Encontro de Cultura e Política. Ilhéus: UESC, p. 2.
32
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 1998, p. 110.
33
O estudo de Lurdes Rocha que analisou a crise cacaueira enquanto um fenômeno reduziu as circunstâncias da
migração na década de 1980 ao desemprego causado pela crise cacaueira. ROCHA, Lurdes Bertol, op. cit., 2006.
31
20
visibilidade às expectativas dos migrantes, pois as “fontes orais não contam apenas o que o
povo fez, mas o que queria fazer, o que acreditava estar fazendo e o que agora pensa que
fez”34.
As entrevistas propiciaram também a percepção de um mundo rural ainda muito
presente nas memórias, e até mesmo no cotidiano de alguns entrevistados. Por outro lado,
alguns resistiram, num primeiro momento das entrevistas, em relembrar este passado rural.
Como dona Marinalva, hoje com 64 anos de idade, migrante da zona rural do município de
Camacã, na região sul da Bahia. É conhecida por todos no bairro Maria Pinheiro, onde mora
há mais de trinta anos, e nos bairros circunvizinhos como “Marinalva parteira”, por ter
“colocado no mundo” muitas crianças, que, segundo ela, pela quantidade, há muito tempo
perdeu as contas.
Dona Marinalva nasceu na cidade de Itabuna, mas com apenas três meses de idade
foi morar em Jacareci, zona rural do município de Camacã35, onde passou a infância com sua
família e aprendeu logo cedo o “serviço de roça”36. Já viveu também no município de Itapebi,
e de lá foi para zona rural de Uruçuca, como ela mesmo diz: “sempre trabalhando em roça” 37.
No entanto, no início da entrevista diz não se lembrar deste tempo: “Isso eu nem lembro mais,
ai... ai, isso nem tá na minha mente mais (...) com todos problemas que vivo hoje, não lembro
de mais nada38”.
O depoimento foi concedido por dona Marinalva na sala de sua própria casa, porém,
quando estive pela primeira vez com ela, a mesma não demonstrou interesse algum em
conceder entrevista. Quando expliquei que se tratava de uma pesquisa sobre os primeiros
moradores do seu bairro, aqueles originários das zonas rurais, ela aceitou “contar” a sua
história. No entanto, no início da entrevista, ela ainda demonstrava certa resistência em
recordar o seu passado, explicou que vinha enfrentando algumas dificuldades com seu filho
mais novo, que tem problemas mentais, e por isso já havia esquecido a sua infância e a sua
juventude. Ao longo do depoimento, suas lembranças acerca das suas vivências rurais foram
ganhando força. No final da entrevista, ela, já bem mais à vontade, levou-me a conhecer o
quintal da casa dela, onde cria galinhas, planta banana, jaca, manga e ingá, e, neste clima, se
despediu com um abraço carinhoso.
34
PORTELI, Alessandro. O que faz a história oral diferente. In: Projeto História. São Paulo, 14 fev. 1997. p.
31.
35
Neste período “Camacã” era território do município de Canavieiras, desmembrado em 1961. In: BAHIA,
Secretária de Planejamento, Ciência e Tecnologia. Comportamento Demográfico e Divisão Territorial do
Estado da Bahia 1940-1970. Salvador: CPE, 1976. p.117. Acervo Biblioteca do SEI, Salvador.
36
Marinalva Fernandes, entrevistada em 13 de janeiro de 2010.
37
Ibidem.
38
Ibidem.
21
Dona Marinalva foi uma das primeiras migrantes que procurei no bairro Maria
Pinheiro, por ser uma das primeiras moradoras do bairro e por realizar partos,
consequentemente, ser bastante conhecida nas redondezas. Entrevistá-la foi uma experiência
marcante na trajetória da pesquisa, pois consegui vencer o “medo” das fontes orais e o
“apego” às fontes escritas. O “medo” decorria de diversas razões, tipo: como eu seria recebida
pelos depoentes? O quê representava em certa medida a minha timidez e a minha dificuldade
de enfrentar o desconhecido?
Na pesquisa, quando há uma apropriação das fontes escritas, o pesquisador não
estabelece relações pessoais. Assim, no início, a pesquisa no arquivo municipal com fontes
hemerográficas, se apresentava mais “fácil”39 do que a metodologia e a produção da fonte da
pesquisa oral. Através deste relato, pretendo aqui demonstrar a trajetória da pesquisa.
Segundo Alessandro Porteli40, é importante que os historiadores expressem como cresceram,
mudaram e tropeçaram durante a pesquisa com as fontes orais. É preciso “nos enxergarmos
entre outros”41, nos colocando no tempo histórico.
Após a entrevista com dona Marinalva, comecei a “enfrentar”42 as fontes orais e
compreender suas especificidades. Dalva Silva43 ressalta as especificidades de cada entrevista,
nas quais devemos perceber a relação entre a seletividade, a situação que o entrevistado se
encontra no momento da narrativa e a composição de uma memória sobre as experiências
passadas. Quando dona Marinalva se recusa a lembrar o “tempo da roça”, na verdade, ela não
demonstra a falta de interesse na entrevista, como acreditei inicialmente, mas a recusa de
encarar lembranças do seu cotidiano rural. Além da influência do momento real vivido por
ela, quando a entrevistei.
Dona Marinalva tinha consciência da ação que desenvolveria durante o rememorar o
“tempo da roça”, tanto que, inicialmente, diz não se lembrar desta época. Ecléa Bosi 44 vê no
39
Não pretendo com esta afirmação conferir maior dificuldade a metodologia da história oral, compreendo que
toda metodologia de pesquisa e fontes históricas tem suas dificuldades especificas. Me refiro aos dilemas éticos
da história oral que segundo Alistair Thonson “para os historiadores orais ele é particularmente mais difícil
porque nós estabelecemos relações pessoais com nossas fontes”. THONSON, Alistair. Desconstruindo a
memória: questões sobre as relações da história oral e da recordação. Projeto História, São Paulo abr. 1997, p.
74.
40
PORTELI, Alessandro. “O momento da minha vida”: funções do tempo na história oral. In: FENELON, Déa
Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes, et. al (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho dágua,
2005, p. 313.
41
Ibidem.
42
Devo registrar o incentivo do orientador desta pesquisa no trabalho com as fontes orais.
43
SILVA, Dalva Maria de Oliveira. Algumas experiências no diálogo com memórias. In: FENELON, Déa
Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes, et. al (Orgs.). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: Olho dágua,
2005, p. 192.
44
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: Memória de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 39.
22
narrador a “plena consciência de estar realizando uma tarefa”45, o ato de lembrar “é uma
paciente reconstituição”46. Outro entrevistado que resistiu bastante em recordar o tempo em
que viveu na roça foi seu Esmeraldo. Estava com 75 anos de idade, mas enfrentando muitos
problemas de saúde ele não resistiu a um câncer e faleceu durante o caminhar desta pesquisa,
após quatro meses da entrevista cedida para a mesma.
No momento da entrevista, colocou que tinha dificuldades em marcar um exame
pelo Sistema Único de Saúde, na cidade de Itabuna, onde residia, mas especificamente no
bairro Fonseca. Nesta época ainda não sabia que estava com câncer no estômago,
possivelmente a doença tenha sido diagnosticada por este exame. Durante a entrevista seu
filho, Egnaldo, estava presente, e contribuiu de forma expressiva para a realização desta
pesquisa, tanto me apresentando aos migrantes que moram no bairro Maria Pinheiro, quanto
me acompanhando nas entrevistas. Egnaldo ficou impaciente com a longa narrativa do pai
sobre os problemas de saúde, enfrentados pelo mesmo. Então, perguntou sobre o tempo em
que seu pai vivia na roça e assim ele respondeu: “Sobre a roça, onde eu nasci eu não lembro
de mais nada, rapaz”47.
Logo depois resolveu falar sobre este tempo, contando muitos “casos” que lembrou,
em meio a risadas. Talvez ele quisesse nos deixar cientes dos seus problemas atuais, antes de
compor sua memória. Prevenindo-nos que poderia confundir suas lembranças e/ou relacionar
as doenças que lhe afligem aos anos de trabalho fosse estes na roça ou nas cidades. Ou ainda
não queria recordar os momentos difíceis, como a morte do pai dele, que emanou sentimentos
antes adormecidos.
Durante as entrevistas com os moradores do bairro Maria Pinheiro, Egnaldo esteve o
tempo todo ao meu lado. No início me guiando e me apresentando a moradores que poderiam
ter migrado de zonas rurais. O mesmo aconteceu no bairro Pedro Jerônimo, só que agora
passo a ser apresentada pelo meu tio, seu Raimundo, que me orientou e me conduziu no
primeiro momento. Depois, os próprios moradores que eu fui conhecendo passaram a indicar
possíveis entrevistados. Eles reconheciam nos vizinhos a mesma identificação e origem rural.
Outros, no entanto, apresentavam familiares que comungavam do mesmo passado rural.
Seu José, por exemplo, concedeu a entrevista e durante a mesma apontou para a casa
dos pais dizendo que eu me entenderia “melhor com eles48”. Passou assim a posse da palavra
aos pais, que, na perspectiva dele, tinha muito mais a “contar” sobre o cotidiano da roça. Os
45
Ibidem.
Ibidem.
47
Esmeraldo Ferreira França, entrevistado em 14 de janeiro de 2010.
48
José Pinto Vieira, entrevistado em 25 de janeiro de 2010.
46
23
pais de seu José, dona Dora e seu Delfino, preferiram ser entrevistados no mesmo momento, o
quê foi bastante interessante. Em algumas temáticas convergiram os pontos de vistas, em
outras divergiram, indicando a diferença de gênero.
A família de seu José é originária da região sudoeste da Bahia, das proximidades do
município de Iguaí. Migraram para São José do Colônia, distrito de Itambé, na mesma região,
e de lá foram para Itabuna. Outros entrevistados, moradores do Maria Pinheiro, também
nasceram nesta mesma localidade. Seu Valcir, natural de Iguaí, e dona Raimunda, originária
do município de Poções, migraram para zonas rurais na região sul da Bahia, em Buerarema e
Ibicaraí, respectivamente, onde conviveram por um bom tempo com o cotidiano rural, antes
mesmo de se estabelecerem na cidade de Itabuna.
As origens dos entrevistados são das mais variadas possíveis, alguns de outras
regiões, como acima da região sudoeste da Bahia. A maioria, no entanto, nasceu na própria
região, em zonas rurais próximas ou distantes de Itabuna como Ilhéus, Buerarema, Barro
Preto, Itapé, Canavieiras, Camacã e Ubaitaba. Observemos estas diversas origens no mapa do
estado da Bahia, aqui apresentado:
Figura 1: Mapa adaptado por SILVA, Thiago Santana da. In: IBGE, Regiões econômicas da Bahia. Disponível
em: <www.ibge.com.br.> Acesso em 05 fev. 2011.
24
Ao lado esquerdo temos o estado da Bahia subdividido em regiões econômicas, em
destaque a região sudoeste e sul, pois ambas compreendem municípios emissores de
migrantes para Itabuna. Ao lado direito enfatizamos estes municípios. Na região sudoeste
encontramos Iguaí, local de nascimento de seu Valcir, dona Dora, seu Delfino e dos filhos
deste casal, seu José e seu Otoniel. Também o município de Itambé, onde a família de seu
Delfino viveu por cerca de vinte anos, mais precisamente no distrito de São José do Colônia.
Além de Poções, origem de dona Raimunda, que cresceu na roça da família e quando
“mocinha” mudou-se com um padrinho para o sul da Bahia.
Ainda na região sudoeste visualizamos Macarani, localidade onde cresceu e por
muito tempo viveu seu Edinho. Nascido em Itapé, na região sul da Bahia, ele migrou
acompanhado do pai e um irmão ainda criança para o sudoeste deste estado. Só retornou a
Itapé no final da década de 1970 a procura da mãe e de seus familiares. Já na região sul da
Bahia, compreende uma diversidade de municípios
muito próximos, e até mesmo
circunvizinhos a Itabuna. Entre eles está Buerarema, que por muito tempo pertenceu a
Itabuna, local de nascimento de dona Margarida, esposa de seu Esmeraldo. Outro município
que também compreendia parte do território de Itabuna foi Ibicaraí, onde dona Raimunda
viveu logo quando chegou à região sul da Bahia.
Visualizamos ainda Barro Preto, que pertencia a Itajuípe, também ex-integrante do
município de Itabuna, onde nasceu e cresceu seu Gilberto, morador do Pedro Jerônimo. E por
fim Ilhéus, um dos maiores retratados no mapa, notório pela sua grande zona rural, onde
encontramos Japú, origem de outros dois entrevistados, moradores do Pedro Jerônimo, seu
Raimundo e seu João. Outro morador deste bairro é seu Talmon, que é proveniente da própria
zona rural de Itabuna.
Quanto aos municípios da região sul da Bahia mais distantes de Itabuna,
encontramos Ubaitaba, ao norte, localidade onde nasceu dona Enelis, conhecida por todos no
Maria Pinheiro, bem como dona Caçula. Esta migrante foi para Itabuna ainda criança, com
apenas seis anos de idade, deixando a zona rural denominada Aldeia. Ao sul da região,
percebemos os municípios de Camacã e Canavieiras. O primeiro é a origem de dona
Marinalva que nasceu em Itabuna, mas com meses foi levada para Jacareci, distrito de
Camacã, onde cresceu e passou sua juventude. O segundo é a localidade onde nasceu seu
Esmeraldo, um dos maiores nômades desta pesquisa.
Assim como as origens são múltiplas, as trajetórias também. A mobilidade espacial é
o ponto chave nestas trajetórias, tanto nos espaços rurais, quanto urbanos. Os trabalhadores
rurais migraram por diversas áreas rurais em busca de trabalho e melhores condições de vida.
25
Alguns migraram também pelas cidades baianas e até em outros estados, como seu Esmeraldo
que perpassou por outros municípios nas regiões sul e extremo sul da Bahia. Chegando até
mesmo na capital, Salvador, também morou em Goiás, Espírito Santo e São Paulo.
A mobilidade ocupacional acompanha a espacial. Boa parte dos migrantes já
exerceram, em algum momento da sua trajetória, serviços rurais por um longo tempo, outros
nem tanto, e tem até mesmo aqueles que não conheceram outras atividades de trabalho. Entre
as atividades desenvolvidas no campo, encontramos diferentes relações de posse da terra,
eram meeiros, rendeiros, pequenos proprietários, trabalhadores de empreitada e diária. Quanto
aos serviços urbanos temos mecânicos, ajudantes de pedreiro, carpinteiros, porteiros,
metalúrgicos, serralheiros, lavadeiras, domésticas, e até mesmo pescadores. Dona Marinalva
continuou desempenhando o trabalho de parteira na cidade, e alguns continuaram exercendo
funções rurais em propriedades próximas ao Maria Pinheiro. Entre eles, dona Raimunda e o
esposo, seu Delfino e seu Valcir.
Assim como as problemáticas foram construídas ao longo da pesquisa, a
temporalidade também foi traçada neste caminhar. No início estava delimitada a década de
1980, devido à intensa migração do período e formação de bairros populares em Itabuna,
como os bairros Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro. Porém com a percepção das memórias, o
marco temporal regrediu as demais décadas, se localizando entre 1960-1990, para abordar o
cotidiano rural destes migrantes. Mas, este marco não é um elemento rígido, pois as memórias
dos migrantes me encaminharam às significações de duas temporalidades 49: o “tempo da
roça”, e o “tempo da cidade”.
A dissertação foi dividida em três capítulos: “O trabalho na roça”, “O tempo da roça:
um tempo de fartura?” e o último, “O tempo da cidade: trajetórias e vivências”. No primeiro
capítulo busquei enfatizar as vivências rurais, através dos ritmos de trabalho narrados tanto
pelos pequenos produtores como pelos trabalhadores assalariados, alugados, ou diaristas que
conviviam com a exploração do cacauicultor. Também discuti as especificidades do trabalho
familiar, a divisão das tarefas daqueles que tinham suas próprias propriedades e as funções
exercidas pelos diversos membros da família, quando trabalhavam em propriedades de
outrem. Trouxe à baila as lembranças da família e das moradias rurais. No emaranhando
49
Alguns estudos contribuíram na visualização desta temporalidade: SANTANA, Charles D’Almeida. Fartura e
Ventura Camponesas: trabalho, cotidiano e migrações Bahia: 1950-1980. São Paulo: Anablume, 1998;
_________. Linguagens urbanas, memórias da cidade: vivências e imagens da Salvador de migrantes. São
Paulo: Annablume, 2009; LUCENA, Célia Toledo. Artes de lembrar e de inventar: (re) lembranças de
migrantes. São Paulo: Arte & Ciência, 1999; GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. Cidades da Mineração:
memória e práticas culturais: Mato Grosso na primeira metade do século XX. Cuiabá: Carlini & Caniato;
EdUFMT, 2006.
26
destas recordações encontrei ainda sinais de sociabilidades construídas nas relações de
vizinhança no “mundo” rural.
No segundo capítulo, novamente o “tempo da roça” foi abordado, devido a amplitude
deste “tempo de memória” nas lembranças dos migrantes. A pergunta “Um tempo de
fartura?” sugere os diversos significados compostos pelas lembranças rurais. Para alguns
entrevistados, o “tempo da roça” significa como um “tempo de fartura”, enquanto para outros
expressa um “tempo de dificuldade”. Busquei compreender os “porquês” das múltiplas
percepções atribuídas ao “tempo da roça”, delineando a posse da terra, as condições de
sobrevivência na roça, os objetivos da migração e alguns conflitos entre os trabalhadores e os
proprietários rurais.
No último capítulo, são as expectativas e as trajetórias dos trabalhadores rurais que
norteiam as vivências na cidade. A chegada e a “escolha” pelos bairros populares Pedro
Jerônimo e Maria Pinheiro foram pontos amplamente discutidos, especialmente sobre as
percepções da chegada. No entremeio destas lembranças, surgem muitas dificuldades, como a
luta para construir suas casas, a falta de água e alimentação. Em contrapartida, emanam as
solidariedades no entrelace das vivências nos espaços recém-constituídos, estas e a herança
rural dos migrantes foram essenciais para a sobrevivência e permanência destes na cidade.
27
2 O TRABALHO NA ROÇA
2.1 DE DOMINGO A DOMINGO, SOB CHUVA E SOL, E ENTRE O CLARO E O
ESCURO:
As memórias dos migrantes são carregadas de reminiscências de um passado rural,
onde o trabalho e o cotidiano se enlaçam, no vai e vem da memória. Pelo fio condutor do
presente, os entrevistados compõem suas lembranças de uma época que não integra suas
vivências do “agora”. Trata-se de uma época carregada de temporalidades que fogem à
cronologia do relógio e do calendário, pois se constituem em tempos armazenados em suas
memórias.
Os migrantes se identificam com este passado rural, no entanto, este passado é
recordado em versões múltiplas. Apesar da semelhança entre estes sujeitos, a origem rural,
eles não constituíram suas vivências nos mesmos espaços. Muitos são originários de zonas
rurais da região sul da Bahia, porém de diversos municípios. Uns próximos a Itabuna, outros
mais distantes. Com exceção da família de dona Dora e de seu Delfino, os quais migraram da
região sudoeste, mais precisamente da zona rural do município de Itambé.
Demais diferenças também diversificam os entrevistados, como a relação de posse da
terra. Alguns eram pequenos proprietários, e por razões distintas deixaram suas terras ou as
perderam. Estes utilizavam o trabalho familiar para plantar e colher produtos para subsistência
e para o comércio. Outros conviveram em algum momento da sua trajetória como pequenos
produtores, mas a maior parte da vivência rural foi carregada de relações de trabalho, entre os
trabalhadores e os donos das terras. Entre estes, estão os meeiros, rendeiros e por fim os
trabalhadores alugados.
A maior parte dos entrevistados teve experiências de trabalho em propriedades
cacauicultoras, como trabalhadores alugados, “aqueles que vivem, sobretudo, da venda da
força de trabalho a grandes proprietários”50. Segundo Garcia Júnior51, o alugado trabalha
mediante a diária ou empreitada; no primeiro caso, recebe o pagamento por dia trabalhado.
No segundo, recebe quando conclui a “empreita”, tarefa bem determinada pelo proprietário
das terras. Em ambas, o pagamento é realizado em dinheiro.
50
GARCIA JÚNIOR, Afrânio Raul. O Sul: caminho do roçado: estratégias de reprodução camponesa e
transformação social. São Paulo: Marco Zero, 1999. p. 53.
51
Ibidem, p. 190.
28
Alguns entrevistados, que eram pequenos produtores sob o sistema de meia e/ou
rendeiro, também executavam serviços a diária em lavouras cacaueiras, pois o quê produzia e
lucrava no comércio nas feiras não abarcava a sobrevivência de todo grupo familiar. Dessa
forma, alguns trabalhadores rurais se dividiam entre o trabalho familiar na própria produção e
o trabalho nas médias e grandes propriedades.
Seu Valcir, com 62 anos, hoje está aposentado e não trabalha mais devido a um
acidente ocorrido na última fazenda em que trabalhou. Foi mordido por uma cobra, há cerca
de dois meses, antes do nosso encontro. Este ocorrido na porta de sua casa, no bairro Maria
Pinheiro, ainda me faz recordar o canto dos pássaros e a brisa da árvore acima de onde nos
sentamos.
Durante a maior parte da sua vida, seu Valcir trabalhou em propriedades
cacauicultoras, nasceu na região de Poções, mas especificamente em Iguaí52. Mas ainda
jovem, em meados da década de 1950, ele e a família foram para região cacaueira, onde
percorreram inúmeras fazendas produtoras de cacau. Sua família nunca gozou de uma
propriedade própria, assim o trabalho familiar era atrelado a exploração do cacauicultor. Logo
no início da entrevista pedir a seu Valcir que falasse sobre a sua vida na roça e ele
imediatamente introduziu o trabalho em sua fala, abordando as rotinas dos “alugados” que
prestavam jornadas de trabalho nas fazendas de cacau:
A gente trabalhava de domingo a domingo, tinha colheita de cacau na
segunda, terça, quarta, quinta, sexta, quando era dia de sábado, dia de
quebrar cacau, começou, mas não terminou? No domingo: – Há tem que
quebrar cacau, quebrar que amanhã é dia de colher, tem que quebrar. Aí a
gente ia, aí pronto tava liberado (...) todo trabalho de fazenda era plantar
cacau, colher cacau, plantar bananeira, fazia todo serviço de roça, até hoje
sei fazer tudo de roça, tudo que a senhora disser de roça eu sei: podar, eu sei
plantar, roçar, eu sei colheita de cacau, secar cacau, eu faço tudo isso de roça
(...).53
Seu Valcir inicia sua narrativa afirmando que o trabalho consumia todo seu tempo
semanal. O quê explica a relação intrínseca cotidiano-trabalho, presente em sua memória.
Nem o domingo, considerado por muitos um dia de descanso, escapava do trabalho árduo. Se
não fosse concluída a quebra do cacau, que segundo seu Valcir acontecia aos sábados, o
trabalho adentrava o dia de descanso.
52
Segundo a Enciclopédia dos Municípios o território de Iguaí até 1928 pertencia ao município de Poções. In:
IBGE, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros.
Volume XX. Rio de Janeiro: IBGE, 1958.
53
Valcir José Novaes, entrevistado em 15 de janeiro de 2010.
29
Domingo, para muitos trabalhadores rurais, era o dia de ir às feiras das cidades, para
vender os produtos do roçado e ganhar um trocadinho para comprar mantimentos de primeira
necessidade. Também no final das feiras, tomarem uma “cachacinha” nas pequenas vendas,
aquelas nos arredores e/ou nas próprias feiras. Para outros, o dia de domingo era apenas
descanso, em que não lidavam com as lavouras cacaueiras. Para as mulheres, entretanto, era o
dia dedicado aos serviços domésticos, o dia de cuidar da casa e dos filhos.
Percebemos na narrativa, como a semana era dividida entre a colheita e a quebra do
cacau: de segunda. a sexta trabalhavam na colheita e o sábado era reservado para quebrar o
fruto e retirar as amêndoas. A quebra tinha um dia específico, o sábado. Dia em que muitos
trabalhadores rurais se preparavam para ir às feiras das cidades, especialmente os rendeiros,
meeiros, ou pequenos produtores. As feiras, em algumas cidades, ocorriam no sábado; em
outras, no domingo. A preparação ia desde a colheita dos pequenos plantios, futuros produtos
comercializados, até o carregamento dos mantimentos nos animais.
Será que os trabalhadores alugados por morarem nas fazendas de cacau não tinham
como participar das feiras? Por que não podiam nem mesmo plantar para a subsistência? Se
podiam, como faziam para participar das feiras, na época da colheita do cacau? Justamente na
época em que sugavam o suor de cada trabalhador contratado pelos fazendeiros e, até mesmo,
exploravam o trabalho de todo grupo familiar, que vivia junto aos trabalhadores nas fazendas
de cacau.
Seu Valcir, em outro fragmento, afirma que ele e os familiares participavam das
feiras em Buerarema, quando o cacauicultor arrendava ou cedia uma pequena faixa de terra
para que os trabalhadores plantassem produtos de subsistência. Talvez os trabalhadores
alugados aproveitassem esta “facilidade” para comercializar o excedente desta pequena
produção.
No momento em que seu Valcir lembra os seus conhecimentos do trabalho da roça,
ele o faz com orgulho. Há uma entonação mais forte em sua voz quando diz “sei fazer tudo de
roça”. Estes serviços que desenvolvia na roça ainda estão muito recentes em sua memória.
Pois, como citei acima, no momento da entrevista, ele havia deixado há pouco tempo o
trabalho nas lavouras.
A memória carregada de orgulho também o identifica54 com o trabalho rural, ele
repetiu a expressão “tudo de roça” várias vezes, no sentido de enfatizar sua relação com o
campo. Descreveu também como realizava o trabalho. Roçava que é a preparação da terra
54
Segundo Michael Pollack “a memória é um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual
como coletiva”. Grifos do autor. In: POLLACK, Michael. Memória e identidade social. In: Estudos históricos,
Rio de Janeiro, vol 5, n. 10, 1992, p. 204.
30
para o plantio, e/ou a retirada de vegetação envolta dos cacauais, plantava, podava55, colhia e
secava o fruto. Seu Valcir também expressou o tempo da colheita em sua fala:
Tinha o mês da colheita começava em malço, abri, mai, junho, julho,
setembro ia acabando, ia começar a podar, a fazer a limpeza, tirar galho
essas coisa, plantar bananeira (...) plantava bananeira pra fazer sombra pro
cacau.56
Segundo estudo do SEI57 (Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da
Bahia) o período de maior concentração de mão de obra em propriedades cacauicultoras são
nos meses de dezembro a março, quando se dá a colheita do fruto. Porém, há dois períodos de
produção do cacau: o temporão, no primeiro semestre do ano, e a safra, no segundo
semestre58. Dessa forma, é possível que o SEI59 trate da safra, já que não diferencia estas duas
fases da colheita, apenas afirma que é o período de maior necessidade de braços para trabalhar
nas lavouras de cacau.
Seu Valcir, no entanto, se refere ao período do temporão, pois a sua memória emana
esta temporalidade quando se remete ao período da colheita. Para seu Valcir, era o período
que mais exigia mão-de-obra, e também mais árduo para o trabalhador. Período que ia do
outono ao inverno, e era finalizado no início da primavera. Também época do ano de chuvas
na região sul da Bahia. O quê nos faz pensar nas condições de trabalho, pois dois difíceis
elementos, o frio e a chuva, se relacionavam há quantidade e exigência do serviço,
dificultando ainda mais o trabalho desempenhado por estes sujeitos.
Há uma possível contradição entre a pesquisa do SEI e a narrativa de seu Valcir.
Seria a safra ou o temporão o período de maior empenho dos trabalhadores e maior produção
cacaueira? Na opinião de seu Valcir, é o temporão que prevalece, pois é desta forma que
rememora seu trabalho nas lavouras cacaueiras. Um período extenso de colheita que abarcava
grande parte do seu tempo semanal.
Após a colheita, seu Valcir trabalhava na poda e no plantio das bananeiras,
desenvolvendo a manutenção dos cacauais, podando os galhos secos e doentes, e plantando
bananeiras para sombrear os cacauais. O quê geralmente acontecia no verão, onde o sol podia
55
Segundo a SEAGRI há três tipos de podas: “A poda de formação serve para dar forma e equilíbrio à planta e
consiste na retirada de brotos e galhos indesejáveis. A poda de manutenção dá condições de produção à planta,
por meio de eliminação dos ramos doentes, secos, sombreados e malformados. A desbrota ‚ uma poda superficial
para a retirada de brotos-ladrões.” In: http://www.seagri.ba.gov.br/cacau1.htm
56
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
57
SEI, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Mão de obra agrícola na Bahia. Salvador:
SEI, 2000. p. 59. Disponível na internet in: http://www.sei.ba.gov.br/.
58
SANTOS, Milton, op. cit., p. 29.
59
SEI, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2000. Op. cit., p. 59.
31
degradar as plantações, e então havia necessidade das sombras das bananeiras, além das podas
para retirar os galhos desgastados pelo sol.
Período mais ameno do trabalho. Mas, também, trazia preocupações aos
trabalhadores, pois muitos eram dispensados. Não necessitando mais do grande contingente
que trabalhou na colheita, muitos cacauicultores dispensavam parte dos trabalhadores.
Principalmente aqueles que foram contratados, especificamente, para colheitas, os quais os
cacauicultores estabeleciam contratos temporários, ou trabalhavam sob diária, os mais antigos
permaneciam para trabalhar na preservação dos cacauais.
Embora alguns trabalhadores fixos, que estabeleceram moradias nas fazendas,
também tenham sido contratados no mesmo sistema de diária e de empreita, que os
trabalhadores temporários. Dessa forma, os cacauicultores no intuito de estabelecer uma
relação temporária e sem vínculo empregatício, fugiam dos benefícios como férias, décimo
terceiro, FGTS, previdência e dos custos com as demissões, previstos na lei. Estes recursos e
benefícios dos trabalhadores foram formulados em lei pelo Estatuto do Trabalhador Rural, em
196360.
Então, antes da promulgação deste Estatuto, os proprietários rurais não tinham muito
com o que se “preocupar” na relação trabalhador-empregado, assim, exploravam os serviços
dos trabalhadores que viviam em suas fazendas, além de utilizar a mão de obra infantil e da
mulher, muitas vezes gratuitamente. Segundo Charles Santana61 o Estatuto contribuiu para o
desemprego de trabalhadores rurais, pois os proprietários “temeram” a nova legislação e a
fiscalização do cumprimento das leis. Conforme Edinelia Souza62, os rendeiros foram os
maiores prejudicados com esta “ampliação dos direitos trabalhistas”, pois foram substituídos
pelos diaristas e assalariados.
No entanto, na região sul da Bahia, os cacauicultores utilizaram o recurso dos
serviços dos contratados, os diaristas e os empreiteiros para driblar a legislação e explorar a
mão de obra sem a preocupação com os benefícios, de direito dos trabalhadores. Estes, por
sua vez também, se aproveitavam dos vínculos temporários para migrarem em busca de
melhores pagamentos, perseguindo o sonho de ter uma terra própria63. Utilizavam o artifício
dos cacauicultores para exercer a sua mobilidade espacial e não se submeter a uma relação
estável e prolongada patrão-empregado.
60
SANTANA, Charles D’Almeida, 1998, p. 115.
Ibidem.
62
SOUZA, Edinelia Maria de Oliveira. Memórias e Tradições: viveres de trabalhadores rurais no município de
Dom Macedo Costa-Bahia 1930-1960. Dissertação (Mestrado - Programa de Pós-graduação em História Social.
São Paulo: PUC, 1999, p. 123.
63
SANTOS, Milton, op. cit., p. 99-100.
61
32
O cultivo do cacau é uma lavoura permanente, uma “cultura de longa duração (...)
após a colheita não necessita de novo plantio”64. Já existe, portanto, todo um cronograma de
produção, expressado na fala de seu Valcir. Um calendário que segue um tempo cronológico,
obedecendo às estações do ano e à divisão mensal. Divisões relacionadas diretamente à
execução de tarefas pré-determinadas, como a colheita, a poda (manutenção dos cacauais), e o
plantio das bananeiras.
Quando se trata do tempo agrícola para lavouras temporárias, “culturas de curta
duração (...) com necessidade de ser plantadas após a colheita”65, encontramos um tempo que
não segue, necessariamente, nosso tempo cronológico, ou seja, o tempo do relógio. Está em
questão o “tempo dos trabalhos agrícolas e dos produtos agrícolas” 66. Aquele que é
determinado pelas tarefas e necessidades diárias dos trabalhadores, estas diretamente
relacionadas pela natureza67. Não quero afirmar a existência de um tempo que não é
significado pelo homem e apenas determinado pela natureza, mas, perceber a importância da
relação destas lavouras com os ritmos naturais e a relação do homem com esta natureza.
A diferença entre o tempo agrícola das lavouras permanentes e das lavouras
temporárias no cotidiano dos trabalhadores rurais é evidenciada nas narrativas de um casal de
migrantes. Nascidos na região de Poções, nos arredores de Iguaí, Dona Teodora e seu
Adelfino, ou dona Dora e seu Delfino, como são conhecidos no bairro Maria Pinheiro, se
conheceram e se casaram nesta mesma região, no final da década de 1940.
Após o casamento foram morar em uma pequena propriedade do pai de seu Delfino.
Lá viveram cerca de quinze anos, nos quais constituíram família, onde dona Dora teve seus
quatro filhos. Mas, também viviam lá outros núcleos familiares, as irmãs de seu Delfino, que
também se casaram. Acontece que a convivência entre eles não deu muito certo. Assim,
migraram para São José do Colônia, distrito de Itambé, no início da década de 1960, quando
não mais tiveram a oportunidade de trabalhar em uma terra própria. Atualmente, moram no
bairro Maria Pinheiro, em Itabuna, onde já estão há mais de vinte anos.
Quando o casal falou sobre a divisão do tempo nos trabalhos da roça, seu Delfino e
dona Dora expressaram, respectivamente, perspectivas distintas:
64
IBGE, Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agrícola 1960 – VII Recenseamento
Geral do Brasil. Serie Nacional, volume 11, I parte. Rio de Janeiro: IBGE, 1960. Disponível na internet in:
http://biblioteca.ibge.gov.br/.
65
Ibidem.
66
GARCIA JÚNIOR, Afrânio Raul, op. cit., p. 107.
67
Ver THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. In: __________. Costumes em
comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 271.
33
Quem trabalha na roça não tem tempo certo pra trabalhar não, não tem
tempo certo pra trabalhar, faz a terra e espera chuver pra plantar.68
Lá era assim, trabalhava a semana toda, quando era no dia de sábado agente
ia cortar cacau pra entregar os home, quando era segunda-feira ia outra vez
com o podão colher, quando era sexta-feira ia cortar de novo, era essa vida
assim (...) e não era só agente não, tinha outros que cortava e levava pra
barcaça. Quem trabalhava de empreitada já entregava o cacau pronto, mas
nós era o dia.69
Entrevistei seu Delfino e dona Dora na sala da casa deles no mesmo momento, como
preferiram, e foi uma experiência interessante. Pois, mesmo sendo casados há mais de
cinquenta anos e tendo compartilhado muitas experiências de vida e trabalho, eles
apresentaram opiniões diferentes, outras vezes semelhantes. Evidenciando diferenças de
gêneros que serão discutidas na próxima seção deste capítulo. Por enquanto vamos nos ater às
diferentes percepções do tempo agrícola.
Seu Delfino, hoje com 86 anos de idade, e dona Dora, com 80 anos de idade, já estão
aposentados, mas durante toda vida trabalharam na agricultura, em diferentes realidades. Já
trabalharam como pequenos produtores nas terras do pai de seu Delfino, como meeiros
plantando feijão, banana e mandioca. E a maior parte do seu dia a dia, foi consumida pelo
trabalho alugado em São José do Colônia, onde conviveram nas décadas de 1960 e 1970.
Dona Dora explica, no final da sua narrativa, que eram diaristas, trabalhavam por dia e não
por empreitada.
Seu Delfino se refere ao “tempo” que trabalhou de meia cultivando lavouras
temporárias como citei acima, banana, feijão, mandioca, entre outras. Sendo assim, coloca no
centro da narrativa a relação entre o agricultor a e o “ritmo da natureza”, principalmente, a
espera pelas chuvas. Para o homem, fica a função do roçado e para a natureza, a distribuição
das chuvas, que determina o plantio.
Em muitas regiões, é comum o início do plantio do milho no dia de São José, santo
católico, no mês de março, pois é quando se iniciam os meses chuvosos. Assim, os plantios se
misturam aos festejos católicos e, geralmente, são colhidos na época do São João, para
rechear as festas juninas. Seu José, filho do casal, se remete a este período de plantio:
José: O pessoal mais velho antigamente preparava a terra no mês de, nós
tamo em janeiro, né? Janeiro, fevereiro, malço. Começava a preparar a terra
pra malço, no mês de malço fazer o plantio. Porque dezembro, janeiro e
fevereiro são meses quente né? Já no mês de malço é que a terra estava
68
Adelfino Martins Vieira, entrevistado em 28 de janeiro de 2010.
Teodora Pacheco Pinto, entrevistada em 28 de janeiro de 2010.
69
34
pronta pra plantar, chovia, molhava a terra, agente fazia o plantio (...) se a
planta tivesse no jeito que o sol pegava não colhia nada, paciência, né
Priscila: E colhia quando?
José: Tinha o feijão de cinqüenta dia, sessenta dia e a mandioca como todo
mundo sabe, a terra sendo boa com oito meses ela já tava quase, a pessoa
não precisava esperar ela madura que ela já começava a ranca ela e já
começa a cuidar pra fazer a farinha. O milho dá muito ligeiro, o feijão
também é ligeiro, o jiló, o quiabo, que agente plantava tudo. E levamo a vida
assim.70
Assim como o pai, seu José fala do tempo da meia, dos diversos cultivos que
desenvolviam e da importância da chuva para o plantio. No período do verão se dedicavam ao
preparo da terra. Destaca o mês de março, dos demais, como o início das chuvas, e assim com
a terra molhada era chegada à hora de plantar. Mesmo depois do plantio a natureza devia
“ajudar”, pois o sol em excesso não era bom para as plantações.
Quando perguntei sobre o tempo da colheita, seu José se refere às lavouras
temporárias que segundo ele oferece uma colheita “rápida”, facilitando a alimentação e o
comércio nas feiras. Ele também lembra que isto é um ensinamento dos mais velhos,
evidenciando a aprendizagem efetivada pelo pai, seu Delfino.
Percebemos também que as lavouras de subsistência eram plantadas paralelas ao
trabalho na colheita do cacau, na mesma época, durante o outono e inverno, meses chuvosos.
Assim, aqueles que tinham uma pequena propriedade e também eram diaristas em
propriedades cacauicultoras, se dividiam entre as diárias, na colheita do cacau, e os plantios
das suas roças de subsistências.
A família de seu Delfino não é originária da região sul da Bahia, mas da região
sudoeste, ou região de Vitória da Conquista. Nasceu em Iguaí e viveu por muito tempo em
São José do Colônia, distrito de Itambé, até o início da década de 1980, quando migraram
para Itabuna, esta região cultiva principalmente café, mandioca e feijão. Segundo o SEI71 esta
era a realidade das pequenas e médias propriedades, sendo estas de maior concentração na
estrutura fundiária.
Porém, segundo as entrevistas de seu Delfino e dona Dora, havia também plantações
de cacau. Tanto nas terras do pai de seu Delfino, em Iguaí, nas quais, desde pequeno, ele
carregava “vasilha de caroço de cacau”72. Quanto nas propriedades em que trabalharam como
diaristas, em São José do Colônia. Este trecho onde se localiza São José do Colônia está mais
próximo da região cacaueira, assim percebemos uma influência forte da cultura do cacau,
nesta região.
70
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
SEI, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia., 2000, op. cit., p. 67.
72
Adelfino Martins Vieira. Entrevista citada.
71
35
Dona Dora quando fala do “tempo agrícola” retrata a colheita do cacau, reproduzindo
o cotidiano de seu Valcir, mesmo sendo de outra região baiana. De segunda a sexta colhia
cacau com o podão, retirando os frutos dos cacauais. E sábado cortava cacau para retirar as
amêndoas.
Ela rememora que como eram diaristas, ela e o esposo, não eram responsáveis pela
secagem das amêndoas. Eram contratados apenas para colher e quebrar o cacau. Outros
trabalhadores que trabalhavam de empreitada era quem entregava o “cacau pronto”, ou seja,
pronto para a exportação. Diferente de seu Delfino, ela não traduz o “ritmo da natureza”, mas
o tempo cronológico já exercido no plantio do cacau. Por que dona Dora emana uma
temporalidade diferenciada do seu esposo e do seu filho? Mesmo tratando de uma memória
coletiva, em se tratando de uma família, há diferenças, estas próprias das lembranças
revisitadas por cada integrante.
Talvez, o que marcou por demais as lembranças de dona Dora fora o cotidiano difícil
de trabalhadores diaristas, a incerteza do amanhã, o trabalho cansativo da colheita e quebra do
cacau; por outro lado, seu Delfino rememora possivelmente a época, meados da década de
1950, em que trabalhou nas terras do pai, durante a infância e a juventude, a relação da
família com a natureza, a espera pela chuva. Seu José, filho do casal, também narra esta
espera e relação, a chuva e o sol, a contradição entre a promessa do plantio e a perda, caso o
sol castigasse as plantações. Em sua narrativa, o “tempo da natureza” está vinculado ao
“tempo das festas”, São José para o plantio e São João para a colheita73.
No entanto, seu José não retrata a mesma época do pai, pois quando experimentou o
trabalho rural eles já moravam em São José do Colônia. E por vezes, durante a entrevista, ele
se referiu como uma região “fraquinha”, e comentou que sua família não foi muito bem
sucedida, neste lugarejo. Esta localidade marcou a juventude dos filhos do casal, dona Dora e
seu Delfino, onde eles cresceram e experimentaram as primeiras relações de trabalho.
Compartilharam também com os pais alguns conflitos nestas relações, estas serão discutidas
no próximo capítulo. Assim, as lembranças em torno do trabalho rural de seu José se atêm a
década de 1970 e a localidade referida, certamente este retalho histórico da família fora muito
importante.
A migrante Margarida, com 64 anos de idade, esposa de seu Esmeraldo, originário
da zona rural e também entrevistado da pesquisa, quando lembra o “tempo da roça” fala da
época que vivia com sua família, pai, mãe e irmãos em uma terra própria, na zona rural de
73
SOUZA, Edinelia Maria, op. cit., p. 110.
36
Buerarema74, onde viveu toda infância e juventude, durante as décadas de 1950 e início de
1960.
Uma terra que, na visão dela, era muito boa para o plantio. O que ela demonstra pela
diversidade de cultivos, plantavam café, cacau, feijão, mandioca, abacaxi, milho. Eles
desenvolviam lavouras temporárias e permanentes. Dona Margarida, assim como seu Delfino,
apresenta uma concepção do ritmo da natureza:
Meu pai sabia a época de plantar, porque no claro não plantava não, plantava
no escuro, quando a lua tava boa, quando tava no turvo (...) porque quando a
lua ta fora é ruim plantar, porque bicha tudo, dá lagarto nas planta, acaba
com a planta, aí ele só plantava quando a lua tava no escuro, aí ele começava
a plantar, aí não bichava.75
Dona Margarida também expressa à relação entre o plantio e a natureza. Mas
diferentemente de seu Delfino, que fala sobre a importância da chuva, ela narra a preocupação
do pai com as fases lunares. O tempo do “claro”, quando não podia plantar, é o período da lua
cheia. Por isso, ela diz que estava claro e se plantasse daria pragas nas plantações. O tempo do
“escuro”, o “tempo turvo”, quando o pai plantava, era porque a “lua tava boa”. O período da
lua nova76, no qual as plantações floresciam e frutificavam.
Observem como os adjetivos se relacionam com as fases lunares. Enquanto a fase do
“claro” está atrelada ao “tempo ruim” e a impossibilidade do plantio; a fase do “escuro”
relaciona-se com o “tempo bom” para o plantio. Sobremaneira que, a temporalidade da
natureza se enlaça à temporalidade significada pelo homem.
A narrativa acima também expressa a importância da natureza e o conhecimento dos
seus meandros. Porém, os trabalhadores não estavam limitados pelas determinações da “mãe”
natureza, como podíamos pensar no primeiro momento. Eles eram astuciosos, pois conheciam
os aspectos da natureza, sabiam o tempo certo para plantar, quando suas plantações lhes
trariam frutos. Conheciam até mesmo como burlar a natureza, vigiando o sol para não
desgastar as folhagens. Mas também, os trabalhadores esperavam pela natureza, aguardando
pela chuva, ou pela lua cheia. Percebemos assim, uma relação complexa e intrínseca entre os
ritmos da natureza e os ritmos do homem.
Talvez os trabalhadores organizassem suas tarefas sob aspectos naturais, pois sabiam
que no final seriam recompensados. Possivelmente, foram estes ensinamentos passados pela
74
Neste período Buerarema era distrito de Itabuna, emancipada em 1961. In: BAHIA, Secretária de
Planejamento, Ciência e Tecnologia. Op. cit. p. 117.
75
Margarida Rocha França, entrevistada em 20 de janeiro de 2010.
76
Milton Santos também demonstra a preocupação dos cacauicultores com os períodos da lua, sendo a lua nova
o melhor período para o plantio de cacau. In: SANTOS, Milton. Op. cit., p. 26.
37
tradição oral familiar para dona Raimunda e para seu José, que ambos demonstram a
importância da sabedoria dos mais velhos. Eram eles que conheciam o “tempo” do plantio e
ensinavam aos mais novos, passando sua sabedoria rural também acerca da natureza.
Outra migrante de Buerarema, que retrata “temporalidades” e ritmos do trabalho na
roça é Dona Gessília, ela nasceu nesta localidade e trabalhou durante a infância e a juventude
em propriedades cacauicultoras de outrem, no entremeio das décadas de 1950 e 1960, como
dona Margarida. Mas, diferente desta, dona Gessília, apenas três anos mais nova que a
primeira, se casou quando ainda era uma menina, não tinha nem completado os quinze anos,
pois não tinha pai nem mãe, havia ficado órfã ainda criança. Casou para fugir da casa de
parentes, que se tornaram responsáveis por ela. Fugiu, entretanto, continuou ao lado do
esposo no cotidiano rural cacauicultor.
Quando o esposo dela faleceu, em meados de 1960, ela se mudou para Ibicaraí, onde
não mais trabalhou em roça. Morando e trabalhando na cidade como lavadeira, assim
terminou de criar os filhos. De lá foi para Ilhéus morar com uma das filhas, mas não se
adaptou à vida do litoral e logo foi morar em Itabuna, no início de 1980. Lá se estabeleceu no
bairro Pedro Jerônimo e mora até com hoje com uma filha. Dona Gessília retrata também, em
concordância com seu Valcir, o trabalho nas lavouras como consumidor de todo cotidiano:
“agente trabalhava pros outros, era capinando, era limpando cacau (...) trabalhava em chuva,
sol, não tinha hora pra me ir, não tinha hora pra voltar, tivi meus filho tudo em fazenda”77.
O depoimento acima retrata o cotidiano difícil dos lavradores rurais, as expressões
“sol”, “chuva”, “hora pra ir”, “hora pra voltar”, assumem temporalidades deste trabalho que,
na visão de dona Gessilia, eram constantes, colocando o trabalho nas lavouras no centro do
seu cotidiano. Percebemos a relação intrínseca entre trabalho e vivência no cotidiano dos
trabalhadores rurais. Porém, se faz necessário diferenciar esta relação, seu Delfino, o filho
deste e dona Margarida expressam a importância da natureza no trabalho rural. Assim, “a
inexistência da separação entre trabalho e vida cotidiana”78 pode estar ligada à interferência da
natureza.
Enquanto dona Dora, seu Valcir e dona Gessilia narram suas vivências entrelaçadas
ao cotidiano das lavouras cacaueiras, e apresentam temporalidades guiadas a um cronograma
especifico e suscetível a estas lavouras. Então, estas narrativas podem apontar para um
77
Gessilia Souza, entrevistada em 29 de agosto de 2009.
CASTELLUCCI JUNIOR, Wellington. Pescadores da modernagem: cultura, trabalho e memória em Tairu,
BA (1960-1990). São Paulo: Anablume, 2007. p. 93.
78
38
entrelaçamento entre cotidiano e vida que independe da natureza, mas está relacionada à
exploração dos cacauicultores79.
Por que dona Gessília, quando se refere ao trabalho rural, envolve o nascimento dos
seus filhos em sua narrativa? “tive meus filho tudo em fazenda”. Para ela, foram
acontecimentos importantes que marcaram sua história. E que ela os viveu, os experimentou
durante a vivência nas propriedades cacauicultoras, intercalando o trabalho com a convivência
matrimonial, as gestações, os nascimentos e crescimento dos seus filhos.
No meio da entrevista, quando expressava sua vida nas propriedades rurais, ela
recorda que dois dos seus filhos já faleceram. Neste momento, olha melancolicamente para
sua neta que se encontra em seus braços durante o depoimento, e fala sobre a morte recente da
mãe desta criança, sua filha80. Dona Gessília, através do seu olhar entristecido, narra
lembranças de um passado recente que se sobrepõe a um passado longínquo.
A morte dos seus filhos a faz recordar do nascimento deles, e ambos os
acontecimentos aparecem emaranhados nas narrativas sobre o cotidiano rural, quando sua
vida era consumida pelo trabalho. Porteli81 ressalta a importância de compreender a
linguagem do corpo que não fica registrada na gravação, mas na memória do entrevistador,
onde uma “performance se transforma em um texto”. Os gestos são símbolos empreendidos
pelos depoentes, numa constante significação do que está sendo lembrado82. A simbologia
desta entrevista emana uma relação entre o nascimento na família e o trabalho rural, além de
indicar lembranças recentes que transbordam dor e sofrimento para a entrevistada.
As narrativas dos migrantes sobre os ritmos de trabalho são específicos do contexto
vivido por cada um. Aqueles que trabalharam em lavouras cacaueiras recordam o tempo
agrícola do cacau, que segue uma cronologia, esta determinava a execução de distintas
tarefas. Enquanto outros que conviveram com o trabalho em plantios, fosse na própria
propriedade, ou sob a relação de meia, relembram aspectos da natureza como norteadores do
trabalho rural. Dessa forma, para o pequeno produtor “a relação com o tempo do trabalho era
79
Devo lembrar que a professora Kátia Vinhático me alertou sobre as diferenças na relação cotidiano-trabalho,
entre aquelas narrativas que remetem a influência da natureza, e outras que indicam a exploração do
cacauicultor. Agradeço a professora e a todo grupo de pesquisa Conflito Bahia pela leitura deste texto e pelas
contribuições.
80
Gessilia Souza. Entrevista citada.
81
PORTELI, Alessandro. História oral como gênero. In: Projeto História, São Paulo, n.22, jun. 2001, p. 24.
82
Segundo Janaína Amado o historiador necessita perceber a dimensão simbólica da entrevista para “rastrear as
trajetórias inconscientes das lembranças (...) compreender os diversos significados que indivíduos e grupos
sociais conferem às experiências que tem” In: AMADO, Janaína. O grande mentiroso: tradição, veracidade e
imaginação e história oral. In: História n° 14 – Universidade Estadual Paulista. São Paulo, UNESP, 1995, p.
135.
39
mais livre, já que, quase sempre, as suas ocupações estavam direcionadas às suas próprias
terras83.
A relação intrínseca trabalho-cotidiano está presente nas narrativas dos dois grupos,
tanto nos produtores, quanto nos trabalhadores alugados. No entanto, aqueles que trabalhavam
com a pequena produção, conforme seu Delfino, seu José e dona Margarida conduzem esta
relação pelo conhecimento dos meandros da natureza.
Enquanto para aqueles que conviveram com o trabalho nas lavouras cacaueiras e a
cronologia do cacau, a execução das tarefas, apesar de relacionadas à chuva e até aos períodos
lunares, estão interligadas pela organização do cacauicultor, pela exportação e
comercialização do produto. E assim o trabalho adentra o cotidiano, pela imposição e pela
exploração do proprietário, que submete ao trabalho em “sol e chuva”, e à supressão do dia de
descanso.
2.2 AS DIVERSAS FACES DO TRABALHO FAMILIAR
Algumas leituras84 me sugeriram uma divisão de gênero no trabalho rural, nas
sociedades tradicionais denominadas patriarcalistas. Nelas, o homem é considerado o chefe da
família com a função de mantenedor da casa. Enquanto para mulher cabe o papel do “cuidar”
da casa e dos filhos, além de auxiliar o marido na lida nas roças e também cuidar das hortas e
aves.
Nos primeiros instantes da pesquisa caminhei neste sentido, ávida por encontrar tais
diferenças e funções preestabelecidas. Porém, no incansável retorno à audição das entrevistas
me deparei com outros rumos para esta escrita, das vivências destes trabalhadores rurais, em
especial, que conviveram na região sul da Bahia e regiões vizinhas, mas migraram para
Itabuna.
Neste retorno às fontes orais, pude compreender que as diferenças de gênero
apareciam de forma mais sutil do que eu concluíra. Nesta infinita escuta, busquei me despir de
conclusões e empreender alguns questionamentos. Existiam divisões de trabalho no cotidiano
rural? Se havia, era expressa por questões de gênero, etária, posse da terra, ou tempo de
serviço? As divisões de trabalho se caracterizavam no trabalho familiar e/ou alugado? Havia
83
SOUZA, Edinelia Maria, op. cit., p. 110.
GARCIA JÚNIOR, Afrânio Raul, op. cit.; LUCENA, Célia Toledo, 1999, op. cit.,; DURHAN, Eunice R. A
caminho da cidade: A vida rural e a migração para São Paulo. São Pulo: Perspectiva, 1973.
84
40
funções específicas para as mulheres e para os homens? E o reconhecimento e o pagamento
eram o mesmo para ambos?
Quando questionados sobre tais papéis e divisões, os entrevistados negaram qualquer
diferença que houvesse entre o trabalho desenvolvido pelo homem ou pela mulher. Como
salienta a migrante, dona Marinalva: “todo mundo fazia a mesma coisa, não tinha esse
negócio de dizer que a mulher fazia isso e o homem não, todos fazia a mesma coisa (...)
pegava pesado do mesmo jeito”85.
Dona Marinalva é uma das primeiras moradoras do bairro Maria Pinheiro, onde é
conhecida por todos como “Marinalva Parteira”, devido à função exercida por ela quando
ainda muito jovem, de realizar partos. Trabalho desenvolvido desde que morava na zona rural.
Nascida em Itabuna, foi com apenas três meses morar em Jacareci, distrito de Camacã, onde
foi criada com seus familiares. Na década de 1960, foi morar no município de Uruçuca, onde
se casou e teve seus filhos.
Nesta zona rural constituiu grande parte de suas vivências, onde também iniciou a
sua carreira de parteira. Por que dona Marinalva utilizou tamanha altivez em sua voz para
negar as diferenças de gênero no trabalho rural? Seria o seu desejo deixar claro que na roça a
mulher não era “frágil”, pois era próprio do cotidiano rural a inexistência de uma separação
homem-mulher. Ou ela buscou um certo reconhecimento do trabalho rural feminino, ou talvez
sua intenção foi que os futuros leitores desta dissertação reconheçam o trabalho dela.
É possível que buscando este reconhecimento dona Marinalva fez questão de
expressar uma função especifica do trabalho rural, a qual ela teria desenvolvido, cabo de
turma. No entremeio das lembranças do trabalho rural, ela enfatiza:
Marinalva: Minha vida na roça era boa, saía de manhã pra trabalhar chegava
de noite. O trabalho era colher cacau, limpar de enxada, roçar manga, tudo
isso eu já fiz (...) trabalhava de cabo de turma também, pegava assim um
monte mulher para trabalhar.
Priscila: Você plantava também?
Marinalva: Agente só fazia colher, plantar não, quebrava cacau, agora não
guento mais, já tô nessa idade.86
Em sua narrativa ela descreve o trabalho nas lavouras de cacau, principalmente, seu
cotidiano na roça em Uruçuca, onde viveu durante as décadas de 1960-1970. Ela pode ser
enfática nesta temporalidade pelo fato de ter sido a zona rural mais recente em que trabalhou,
assim está mais presente em sua memória. Quando dona Marinalva chegou nesta propriedade,
já se produzia cacau, por isso ela diz que não plantava.
85
86
Margarida Fernandes. Entrevista citada.
Marinalva Fernandes. Entrevista citada.
41
Era responsável principalmente pela colheita, pela manutenção dos cacauais.
Segundo a SEAGRI (Secretária de Agricultura, Irrigação e Reforma Agrária da Bahia)87 os
cacauais podem durar de sessenta a setenta anos, tendo a Bahia cacauais de 100 anos. A
manutenção se dá principalmente na retirada de “ramos doentes, secos, sombreados e mal
formados”. Limpando a área de enxada, “roçando a manga” 88 e também pela retirada das
amêndoas do fruto, quebrando o cacau e colocando as amêndoas para secar.
O trabalho de colheita, o quê mais necessitava de mão de obra, era um trabalho
repetitivo e árduo. Imagine retirar todos os frutos dos cacauais de uma grande propriedade! E
ainda atrelar à colheita a quebra do cacau, não deveria ser nada fácil para os trabalhadores
rurais. E por isso dona Marinalva diz que hoje, nos seus 62 anos, não suportaria mais realizar
este trabalho. O corpo demonstra o cansaço, os cabelos brancos, as mãos calejadas e marcadas
pela lida com o podão.
Mas, retomemos à função específica no trabalho rural, cuja função desenvolvida por
dona Marinalva era a de “cabo de turma”. Durante sua narrativa ela não explicou o serviço
executado por um cabo de turma, assim eu pedi que detalhasse este trabalho. Ela explica,
então, a função desempenhada por um cabo de turma:
Cabo de turma era assim homens de um lado e mulher de outro, eu tomava
conta de mais de vinte mulher que eu era cabo de turma (...) é assim, não tem
os empregado? Tem os empregado, aí eu tomava conta das mulhé, assim era
cabo de turma, aí em dia de pagamento eu pagava pra elas, aí meu patrão, ele
me dava o dinheiro, eu pagava a todo bixinho ali, eles já sabia o dia de sextafeira, eu ia pagar eles, cabo de turma era assim.89
Dona Marinalva explica que um cabo de turma era responsável por um grupo
determinado de trabalhadores. Depois do proprietário, era ao “cabo de turma” quem os
empregados deviam “satisfação”. No caso de dona Marinalva, ela ficava responsável pelo
grupo das mulheres. Tanto para verificar o trabalho, como também para realizar o pagamento,
demonstrando, com isso, que era uma pessoa de confiança do seu patrão.
“Homens de um lado e mulher de outro”, porque a necessidade da separação entre os
sexos na realização da colheita? O que nos remete a uma grande propriedade cacauicultora,
pois para ocorrer tal separação é porque havia um grande contingente de trabalhadores.
Talvez fosse para facilitar o controle, ou verificar a eficácia e a velocidade do trabalho de
ambos os grupos, ou para impedir que houvesse relações mais íntimas entre homens e
mulheres durante o trabalho. Ou, até mesmo, porque as mulheres tinham suas conversas, suas
87
In: http://www.seagri.ba.gov.br/cacau1.htm
Expressão comum na região cacaueira que significa cortar a vegetação de uma área especifica (a manga).
89
Marinalva Fernandes. Entrevista citada.
88
42
cantorias, seu jeito próprio de enfrentar as mazelas do trabalho. Apesar de separados, ambos
os grupos executavam as mesmas funções, segundo dona Marinalva.
Uma mulher cabo de turma seria comum no trabalho nas roças de cacau? Dona
Marinalva foi à única depoente a trazer à baila esta função específica. E se durante a narrativa
ela resolveu expressar que exercia esta função, certamente era uma função de certo prestigio.
Ser responsável pela eficácia do trabalho, e decerto tal função tenha contribuído na velocidade
da colheita e na quebra do cacau. Foi algo que lhe trouxe orgulho, assim demonstrou durante
a narrativa. Talvez ela tenha mencionado esta função para valorizar o trabalho feminino, e até
mesmo enfatizar que não havia diferenciação entre o trabalho desempenhado pelas mulheres
em relação ao dos homens.
Mas, uma mulher cabo de turma era diferente das demais empregadas, porque
expressava a confiança que o proprietário depositava, quiçá dona Marinalva fosse uma
funcionária antiga e por isso desempenhava esta função. Devia também apresentar outros
predicativos, ou porque era assídua ao trabalho, ou tinha voz altiva, fazia com que as outras
mulheres a ouvissem e a respeitassem. É possível também que a razão estivesse no seu
conhecimento naquele contexto rural, devido à outra função que desempenhava, refiro-me à
realização de partos, portanto, era bastante conhecida.
Nesta discussão do que seria a função de um cabo de turma também se sobressaí o
seguinte questionamento: por que havia a necessidade de um cabo de turma na lida nos
cacauais? Será que os trabalhadores, especialmente aqueles que trabalhavam mediante o
salário e a diária, aproveitavam o trabalho na mata fechada, durante as colheitas, para “matar
o tempo”? Afinal experienciavam “uma distinção entre o tempo do empregador e o seu
próprio tempo”90.
Burlando assim a exploração dos cacauicultores, já que estes não teriam como
apontar aqueles trabalhadores que melhor desenvolveram suas funções. O que talvez explique
a necessidade de um cabo de turma para fiscalizar o trabalho desenvolvido pelos demais
envolvidos. Aqueles que trabalhavam mediante a empreitada, certamente não necessitavam de
um “cabo de turma” entre eles, pois precisavam executar seus serviços em tempo hábil para
receber o pagamento, levando-se em consideração o tempo, a eficácia e a produção.
Certamente um cabo de turma que fiscalizava os serviços dos seus “semelhantes”,
não era visto com “bons olhos”, pelos demais trabalhadores. Em algum momento, se indispôs
com algum trabalhador que “matou o tempo”, ou como dizem, fez “corpo mole”, pois teve
que relatar a situação ao cacauicultor, dono das propriedades.
90
THOMPSON, E. P., op. cit., p. 272.
43
Então, teria o cabo de turma vantagens para exercer esta função, talvez um salário
diferenciado, ou “regalias”, uma carga horária menor, a vantagem de ter um pedacinho de
terra para plantar, a possibilidade de ir nas feiras da cidade vender seus produtos? Dona
Marinalva não afirma as razões para ela ter sido escolhida e ter aceitado esta função, mas a
expressa com orgulho, em sua narrativa.
Os depoimentos femininos e os masculinos não evidenciam uma separação homemmulher no trabalho rural, na lida na cacauicultura, na roça de meia, arrendada e/ou de
subsistência. Mas, diferente dos homens, as narrativas femininas expressam o trabalho
exercido no lar, sobre o qual os homens não expressam em seus depoimentos. É possível que
coubesse apenas às mulheres os serviços domésticos e a criação dos filhos91.
Não há uma homogeneidade na divisão dos afazeres no cotidiano rural, cada família
expressa sua própria forma de organização, especialmente aquelas que conviviam com o
trabalho familiar92. Quanto às mulheres, estas exerciam diversas funções na roça93, desde o
trabalho na lavoura cacaueira, que por muitos cacauicultores, era visto como auxiliar ao do
esposo. O trabalho no cultivo familiar, na produção da farinha e produtos auxiliares, e
também na participação das feiras, perpassando pela criação dos filhos, e pelos serviços do
lar.
Dona Margarida conviveu com o trabalho familiar durante a sua infância e
adolescência, quando vivia com os pais e irmãos em uma pequena propriedade rural em
Buerarema. Sobre o trabalho na propriedade, ela não expressa diferenciações quanto às
funções exercidas por cada um. Do qual, todos participavam, desde o plantio, a colheita, e até
mesmo o trabalho na casa de farinha, que não era destinado apenas às mulheres. As funções
dentro da casa de farinha eram divididas entre os membros da família. O trabalho era
realizado em conjunto, incluindo seus pais e irmãos.
Suas lembranças evocam o trabalho no preparo da farinha: “agente torrava farinha,
fazia beiju, goma pra fazer tapioca (...) peneirava a massa pra torrar a farinha, enquanto um
tava na peneira, meu pai torrava farinha94”. Depoimento que retrata o âmbito da casa de
farinha, o preparo da massa da mandioca, depois o peneirar e o torrar, na fase final do
91
Lucena retrata um cotidiano feminino rural estável, as mulheres ou estavam trabalhando nas roças, ou lidando
com os afazeres domésticos. Quando solteiras auxiliavam as mães nos serviços da casa e/ou depois de casadas
tinham a responsabilidade total dos serviços do seu próprio lar. In: LUCENA, Célia Toledo, op. cit., 1999, p.
112.
92
Thompson ressalta que o trabalho familiar de pequenos agricultores é orientada pelas tarefas. Mas, não deixa
de haver uma divisão de trabalho interna. In: THOMPSON, E. P., op. cit. p. 272.
93
Souza afirma que as mulheres camponesas do recôncavo baiano tem uma variedade de funções nas lidas nas
roças para garantirem a sobrevivência. Contrariando muitos estudos sobre camponeses que delegam a mulher
“funções secundárias no campo”. SOUZA, Edinelia Maria, op. cit., p. 50.
94
Ibidem.
44
preparo, além da fabricação do beiju e da tapioca, que enriquecia as refeições da família.
Talvez esta possibilidade de um trabalho em conjunto fosse própria daqueles que dependiam
da agricultura familiar. Ou aqueles que trabalhavam como alugados também o
experimentavam.
Entrelaçando as duas entrevistas, a de dona Marinalva e a de dona Margarida
percebemos diferenças e semelhanças. A primeira narra um trabalho em uma propriedade
cacauicultora de outrem, já a segunda expressa uma vivência em uma propriedade familiar.
Porém, ambas as narrativas expressam a importância do trabalho feminino no cotidiano rural
e há pouca diferenciação no trabalho na roça.
Enquanto dona Marinalva relata a função de cabo de turma desempenhada pela
mesma, dona Margarida expressa, nos meandros do trabalho familiar, a participação dela e da
mãe no trabalho na casa da farinha. Certamente este produto e os seus derivados serviam para
enriquecer as refeições da família e também o comércio nas feiras de Buerarema.
Quando se trata da participação nas feiras, era o pai de dona Margarida que conduzia
as negociações. Apenas ele e os irmãos mais velhos eram responsáveis pelo comércio,
enquanto ela e a mãe ficavam em casa executando os afazeres domésticos. Já dona Marinalva
participava junto ao marido das negociações nas feiras de Uruçuca, nos dias de sábado e
domingo95.
Dona Margarida permanecia no lar, enquanto seu pai resolvia a venda e a compra de
produtos de primeira necessidade na cidade de Buerarema e, às vezes, sua mãe o
acompanhava para auxiliar nas compras. Assim ela fala que ia muito pouco à cidade quando
morava na zona rural: “Quando comecei ir pra Buerarema já tinha uns quinze anos, ficava
mais na roça, fui criada na roça e de dezessete anos em diante agente passou a ser noivo”96.
Notamos que elas tratam de temporalidades diferenciadas, a narrativa de dona
Marinalva é carregada por uma temporalidade mais recente em sua memória, quando vivia
com o marido e os filhos em Uruçuca, durante 1970. Dona Margarida, por sua vez, envereda
por sua infância e adolescência, quando ainda estava sob custódia de seus pais, no final da
década de 1950. Enquanto a primeira já denota uma conquista de “liberdade”, sendo até
mesmo cabo de turma; a outra, ainda dependia das decisões do pai, o “homem da casa”.
A narrativa de dona Margarida expõe sua permanência na roça, pois só começou a
frequentar a cidade quando completou quinze anos e depois de dois anos noivou com seu
Esmeraldo, sobre o qual retratara durante a narrativa. O casamento é muito recordado pelas
95
96
Marinalva Fernandes. Entrevista citada.
Margarida Rocha França. Entrevista citada.
45
mulheres, significando um divisor de águas em suas trajetórias. O casamento para dona
Margarida significou a separação da família matricial e a constituição de uma nova família,
mas também sua migração para a cidade de Itabuna, pois, depois de casada foi morar com a
família de seu Esmeraldo.
Talvez por esta razão, quando trata do cotidiano rural, ela rememore a temporalidade
juvenil, afinal nesta época conviveu com o trabalho na roça. O casamento podia significar,
para algumas mulheres, um contínuo na relação de submissão homem-mulher. Logo, muitas
deixavam a companhia dos pais para se submeter às decisões do marido. Outras, porém,
experimentavam um pouco mais de autonomia depois de casadas, quando os maridos
trabalhavam e se ausentavam, cabia a elas as decisões familiares. Como dona Margarida que
se casou com seu Esmeraldo, este um “andarilho convicto”.
Enquanto dona Margarida conviveu com seus pais, ela se submetia às definições do
pai. O homem que não a deixava frequentar a cidade como também não permitia a
participação dela, da mãe e dos irmãos nas festas da vizinhança: “(...) tinha festa na fazenda,
era difícil dagente ir porque o véí não deixava agente ir, às vezes ele ia, às vezes ele não ia,
era assim97”.
O “véí” que ela se refere é seu pai que determinava onde os filhos e a esposa deviam
permanecer, geralmente no lar, enquanto ele frequentava a cidade e as festas da vizinhança. A
maior parte das migrantes mulheres, quando questionadas sobre os vizinhos e as horas de
lazer, referem-se à permanência no lar e a utilização do tempo vago nos afazeres domésticos.
Dona Margarida expressa uma dupla jornada, onde ela e a mãe se dividiam no
trabalho na roça e no serviço doméstico. Outras mulheres, entretanto, narram uma tripla
jornada, pois além destes dois âmbitos, elas também participavam das feiras nas cidades.
Dona Raimunda que nasceu em Poções, onde foi criada junto a sua família em uma
pequena propriedade e levou a vida de tripla jornada. No final da década de 1950, migrou ao
lado do padrinho, para Ibicaraí, onde se casou e constituiu família. Em 1960, foram para o
município de Buerarema, onde trabalhavam como rendeiros e como diaristas em lavouras
cacaueiras, a trajetória dela é carregada de mobilidade rural.
Recordando sua trajetória, dona Raimunda lembra a sua tripla jornada, já na zona
rural de Buerarema, pois além de trabalhar nas roças, se tornou também dona de casa, e ainda
nos fins de semana assumia o papel de negociante nas feiras de cidades próximas. Sendo
responsável pelo cotidiano doméstico, dona Raimunda traduz suas funções no fragmento
abaixo:
97
Ibidem.
46
Agente trabalhava pra agente mesmo, a terra era arrendada, teve um tempo
que agente trabalhava pros outros pra receber um trocado, era assim brabo.
Eu trabalhava na roça e em casa. Quando chegava em casa as benção de
Deus tava tudo em casa, ainda bem que meus filho não brigava não. Era
roupa pra lá, roupa pro canto, eu ia junta aquelas coisa tudo, ia lavar roupa,
eu lavava sábado e domingo pra segunda ir pra roça de novo pra ter dinheiro
(...) meu marido pegava empreitada e eu ia ajudar meu marido, ele pegava
empreitada, as criança era pequena e não dava nem para trabalha, dia de
semana tava na roça e a sexta-feira ainda ia pra feira vender, meu marido
ficava em casa com as criança e eu vinha praqui pra Itabuna vender, aí eu
fazia as compra e levava pra casa98.
A narrativa retrata sua tripla jornada, o trabalho nas roças em terras arrendadas e o
trabalho nas lavouras cacaueiras. Além de cuidar dos seus plantios, ela ainda “ajudava” o
marido no trabalho de empreita. Como os cacauicultores contratavam o esposo para realizar a
empreitada, o trabalho de dona Raimunda era visto apenas como “auxiliar”. Raimunda
D’Alencar afirma que o trabalho feminino nas lavouras cacaueiras muitas vezes era visto
como “auxiliar” ao do esposo, sendo um trabalho não pago. Principalmente daquelas
mulheres que viviam com suas famílias nas propriedades cacauicultoras99.
O restante do cotidiano de dona Raimunda se dividia entre os afazeres domésticos e a
venda de produtos agrícolas nas feiras. Até quinta era a lida nas roças, sexta ia para a feira de
Itabuna comercializar os produtos, onde comprava bens de primeira necessidade e retornava
para Buerarema. No final de semana cuidava da casa, lavava roupa, cozinhava, cuidava dos
filhos, que nesta época ainda pequenos e não trabalhavam na roça. A narrativa também
expressa o cruzamento entre “tempo privado e tempo público” na memória feminina, durante
a “percepção e descrição dos quotidianos do passado100”. As lidas na roças e a ida a feira se
mistura a convivência familiar.
No momento da entrevista com Dona Raimunda, seu filho estava presente e também
cedeu seu depoimento. Jorge, hoje aos 39 anos, mora em São Paulo, e estava visitando os pais
com sua esposa e filhos no mês de janeiro, quando realizei a entrevista, para minha “sorte”.
Jorge sente falta dos pais, mas permanece em São Paulo devido a maiores oportunidades de
trabalho que desempenha como pedreiro, na construção civil. Sua memória também aflora
lembranças do “tempo da roça”:
98
Raimunda Libarino de Jesus, entrevistada em 21 de janeiro de 2010.
D’ALENCAR, Raimunda Silva. O trabalho do menor de idade na cacauicultura do Estado da Bahia.
Dissertação (Mestrado) Porto Alegre: UFRGS, 1988. p. 43.
100
FERREIRA, Sônia. Entre a casa e a fábrica: memórias do trabalho operário no feminino. In: Revista de
Antropologia Iberoamericana. Ed. Electrônica. Vol. 1. Num. 3. Agosto-Diciembre 2006, p. 17. Disponível em:
<http://www.aibr.org>. Acesso em: 02 mai. 2011.
99
47
Nós com oito ano já trabalhava na roça, revezava eu e ela, porque trabalhava
todo tempo. Meu pai pegava as roça de cacau pra empreitada e minha mãe
tava junto e eu também junto, no outro dia ia meu irmão, no outro dia eu
ficava e meu irmão ia mais ela, pra nós ta ajudando ela, porque nós sabia que
era ela uma pessoa muito, assim uma mulher, com uma idade, pra dando
conta de tudo, então nós tava ajudando ela dessa idade, nós tava ajudando
pra se manter.101
Jorge retrata o trabalho familiar na manutenção da sobrevivência, onde todos
ajudavam como podiam. Então ele e o irmão se revezavam, pois eram os mais velhos,
enquanto um acompanhava os pais na lida com a roça, o outro permanecia em casa tomando
conta dos irmãos mais novos. Quando Jorge diz que ajudava a mãe porque ela era mulher de
idade avançada, talvez ele expresse uma percepção da mulher como um ser “frágil”.
O pai, enquanto chefe da família, era contratado pelo cacauicultor para realizar a
empreitada, onde os filhos, ainda crianças e a esposa, os ajudavam para que ele pudesse dar
conta do serviço dentro do prazo estabelecido pelo proprietário. O trabalho do pai, visto como
via de sustento para a família, enquanto o trabalho feminino e infantil, considerado apenas
como um trabalho “auxiliar” ao masculino.
Não quero negar a importância do trabalho feminino e infantil no contexto da
agricultura familiar. Mas, apenas lembrar que, apesar da família estar unida em torno do
trabalho rural, não expressava um trabalho em uma própria propriedade, mas em lavouras
cacauicultoras de outrem. Assim, o cacauicultor considerava a mulher e as crianças como
“auxiliadores” do contratado para empreita, o esposo de dona Raimunda. Era uma forma de
explorar o trabalho feminino e infantil, sem ter que se preocupar com o custo. Decerto que,
por essa razão, Jorge considerou importante narrar a sua presença ao lado da mãe,
expressando uma possível consciência que eles eram explorados pelos cacauicultores.
Lucena nos lembra que “a memória além de seletiva, flexível, subjetiva é também
sexuada102”, quando as lembranças são masculinas tendem a camuflar o papel feminino no
sustento familiar, e/ou negligenciam sua atuação profissional, relegando às mulheres o papel
de auxílio no trabalho masculino. “A atividade profissional da mulher é entendida como um
meio de colaboração para melhorar a vida da família103”. Talvez Jorge também compreenda o
trabalho da mãe como “auxiliador”.
A exploração do cacauicultor objetivava envolver toda família, mas também podia
adentrar questões de gênero. Ele podia ver a mulher como ser “frágil”, que não gerava
101
Jorge Pedro dos Santos, entrevistado em 21 de janeiro de 2010.
LUCENA, Célia Toledo. Mobilidade social: histórias de família e variedades de gênero. In: MEIHJ, José
Carlos Sebe. (Org.). (Re)introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo: Xamã, 1996, p. 214.
103
Ibidem, p. 212.
102
48
grandes rendimentos no trabalho rural, mas por outro lado, esta perspectiva poderia apenas
camuflar a exploração exercida pelo donos das terras. É possível que os homens da família
também vissem o trabalho feminino como “auxiliador”. No entanto, a narrativa de Jorge
parece enveredar para o reconhecimento do trabalho da mãe como norteador para o sustento
da família, pois sem o trabalho dela, o pai sozinho não conseguiria prover o sustento da
família.
O cotidiano rural feminino vai além da dupla jornada entre a divisão do trabalho na
roça e na casa. Muitas trabalhadoras expressam uma tripla, na qual se dividiam entre o
trabalho na roça, os afazeres domésticos e a sua participação nas feiras, como o depoimento
abaixo de dona Dora:
De noite eu fazia uma farofinha e de manhã pra roça, chegava de noite,
lavava roupa de noite, pra noutro dia ir pra roça, era um sofrimento mulher,
só Deus sabe o sofrimento da gente (...) trabalhava na casa de farinha pra
fazer dinheiro, raspava mandioca, fazia beiju pra sexta-feira botar tudo em
cima do jegue, beiju, farinha de goma e ia vender na feira de Itororó, pra
comprar comida pra comer (...) arrumei meus freguês, botei minha
barraquinha, vendia um cafezinho, uma comidinha e os menino encostado
vendendo os trem, vendendo banana, abóbora, o que pudesse agente
comprava pra revender, e com tudo isso fomo vivendo sofrendo até quando
viemo praqui.104
Como passava o dia todo “labutando” na roça, só sobrava a noite para realizar os
serviços do lar, tipo, cozinhar, lavar roupa, para no outro dia novamente trabalhar nas
lavouras. Além das lavouras, exercia atividades na casa de farinha para fabricar farinha e seus
derivados. Diferente de dona Margarida, ela não retrata os “homens”, os filhos e o esposo
trabalhando na casa de farinha. Certamente a fabricação do beiju era uma função realizada por
ela, ou ela não considerou importante expressar esta presença.
Na sexta-feira, dona Dora ia vender na feira de Itororó os produtos produzidos com a
mandioca. Na feira, acompanhava o esposo e os filhos, no entanto, não ia “auxiliar” a venda
dos produtos cultivados e/ou comprados para revender. Ela tinha o seu próprio negócio,
vendia produtos alimentícios, já tinha seus fregueses certos e até mesmo possuía sua própria
barraquinha.
Quem não se recorda destas mulheres que ficam nas feiras citadinas vendendo beiju,
mingau, café, e assim levando para casa no fim do dia o sustento da sua família? Dona Dora
não “auxiliava” apenas a renda familiar, era acima de tudo uma provedora105, pois assegura
104
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
Perrot ressalta o “poder oculto” das mulheres, que muitas vezes não é reconhecido pelo homem. Lembrando
daquelas que gerenciam o comércio nas feiras. PERROT, op. cit., p. 112.
105
49
que vendia para “comprar comida pra comer”. Ela expressa um cotidiano sofrido de muito
trabalho, quando diz “era um sofrimento, mulher”. Me reconhecendo como semelhante, não
digo, enquanto lugar social, mas com relação a uma posição de gênero, onde eu deveria
compreender sua tripla jornada.
O filho de dona Dora, seu José Pinto, que foi o primeiro entrevistado da família
Pinto, também nega a separação homem-mulher no cotidiano rural:
Não, todo mundo trabalhava, agora hoje é que o negócio mudou,
antigamente as vez as mulher tinha muito filho dentro de casa, aí sempre iam
cuidar mais dos filho e agente ia trabalhar e a condição chegou que hoje
cinco trabalha em uma casa e ainda tem dificuldade, entendeu? Hoje cinco
pessoa trabalha em uma casa, duas, três e ainda tem dificuldade e naqueles
tempo passado, um homem, pai de família tinha quatro, cinco filho, ele
trabalhava e sobrevivia todo mundo né? E hoje a mulher trabalha, o esposo
trabalha, outra vez tem filho dentro de casa, o homem toma conta da casa e a
mulher vai trabalhar, você sabe que mudou né? Cê chega hoje tem casa que
você chega vê o marido e cadê a família? Ta no trabalho, às vez não tem
nada pra ele fazer, corri, corri, não arruma nada, o estudo é pouco, não
arrumou uma condição melhor, entendeu? Fica dentro de casa que a mulher
ta trabalhando e a vida continua assim.106
A sua narrativa é carregada de temporalidade, comparando o “tempo da roça” com os
dias atuais. Ele faz uma leitura surpreendente das transformações no âmbito da família.
Primeiro ele diz que “naquele tempo” a mulher tinha uma maior quantidade de filhos, como
sua mãe que teve quatro filhos, e assim tinha a responsabilidade de permanecer em casa para
criar os filhos. O que não foi a realidade de sua mãe, que, apesar de ter quatro filhos, se
dividia no cotidiano do lar, no trabalho das lavouras e nas feiras, auxiliando a família no
sustento e até mesmo provendo a renda familiar.
Novamente as diferenças da organização familiar no cotidiano rural aparecem. Dona
Dora revela uma família pequena, pois em algumas famílias rurais a mulher tinha uma grande
quantidade de filhos. Isto se devia, acredito, tanto à distância de hospitais, quanto a pouca
proximidade com os métodos contraceptivos. Como também ao fato de uma família grande,
com muitos filhos, significar maior número de mãos de obra para o trabalho nas lavouras.
Seja essa a razão, talvez, que na memória de seu José ter ficado registrado que era
comum as mulheres com uma expressiva quantidade de filhos para cuidar em seus lares.
Na perspectiva de seu José, hoje as “coisas” mudaram, as famílias são menores, e
todos que tem possibilidades trabalham para sobreviver, mas mesmo assim algumas famílias
ainda enfrentam dificuldades. No “tempo da roça”, quando morava com os pais, em São José
da Colônia, em meados da década de 1970, apenas o pai de família trabalhava e assim
106
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
50
sobrevivia toda a família. É possível que seu José estivesse considerando trabalho, cargos
específicos, com remunerações especificas, e na sua visão a mulher trabalhava sim, mas para
“auxiliar” o marido e não exercer uma função profissional especifica.
No “tempo da cidade”, nos dias atuais sim, a mulher exerce cargos profissionais, e
até mesmo sustenta uma casa sozinha. Então, seu José nos fala das mudanças, como hoje o
homem em algumas famílias, permanecem no lar cuidando dos filhos, enquanto a esposa
trabalha para sustentar a família.
Novas estruturações familiares se apresentam nas famílias brasileiras sim, e seu José,
como um homem “antenado”, não deixou de perceber tais mudanças. Estas novas
organizações familiares também nos remetem a um reconhecimento do trabalho feminino na
atual sociedade, também demonstrado por seu José. Ele reconhece o esforço de sua mãe no
passado da sua família, mas parece que ele não percebe o trabalho desenvolvido por ela como
autônomo, mas como dependente e “auxiliador” do seu pai.
Em outro momento da entrevista, ele me pediu que entrevistasse seus pais,
especialmente a sua mãe; pois assim, eu me entenderia “melhor” com sua mãe, afinal ela
havia sofrido muito também com o trabalho árduo do campo. Neste momento seu José
referencia a importância da “fala” de sua mãe. O que pode indicar um reconhecimento do
trabalho feminino no cotidiano rural, mas continua expressando este trabalho como
“auxiliador” ao do homem.
O depoimento do filho de dona Raimunda, Jorge, nos trouxe uma questão
interessante, o trabalho infantil no cotidiano rural. Onde ele e o irmão “auxiliava” os pais para
garantir o prazo imposto pelo cacauicultor, e assim também garantir o sustento da família.
Outro migrante, seu Esmeraldo, também nos leva a uma reflexão do trabalho infantil, e mais,
coloca em baila a divisão etária do trabalho.
Seu Esmeraldo nasceu na zona rural de Canavieiras, onde morou com os pais e os
irmãos durante sua infância, de lá ele percorreu muitos lugares exercendo serviços rurais. Até
se casar em Buerarema com dona Margarida e ir para Itabuna, na década de 1960. Naquele
município também demorou de fixar residência, passando por vários bairros, e trabalhando de
ajudante de pedreiro.
Ainda neste período migrou para São Paulo, com sua família, esposa e filhos,
acompanhando seu pai, lá tornou-se metalúrgico. Porém, com o falecimento de seu pai ele
retornou a Itabuna, residindo novamente em alguns bairros, até construir um “barraco” no
bairro Maria Pinheiro, em meados de 1980, onde viveu por mais de vinte anos.
51
Mesmo fixando residência seu Esmeraldo não “parou”, ele passava um período em
Itabuna e o restante do ano partia para São Paulo, na tentativa de ganhar mais e melhorar as
condições de vida da sua família. No início da entrevista, ele passou um bom tempo narrando
seus problemas de saúde, do inchaço das suas pernas, devido a um problema de circulação, da
cirurgia cardíaca que realizou em São Paulo há pouco tempo, explicando com a voz já
cansada, como sequela da cirurgia107.
Ao iniciar sua narrativa sobre o “tempo da roça”, ele lembra que ajudava o pai no
trabalho rural:
Um lugar chamado Esperança, onde eu nasci, perto do rio Pardo, sai de lá
com uns doze anos, mais ou menos aí fui morar em Canavieiras e de
Canavieiras eu vim pra aqui. Lá era trabalhando na roça de cacau e colhendo
(risadas), meu pai trabalhava na roça e nós trabalhava mais ele, nós colhia
cacau de enxada e de noite nos bandeirava.108
Seu Esmeraldo diz que de Canavieiras foi para cidade de Itabuna, em outro momento
da entrevista ele fala que de Canavieiras foi para Sambaituba, zona rural do município de
Ilhéus. Posteriormente, ele explica que o pai não quis ficar em Itabuna, pois gostava da vida
na roça e por isso arrendou umas terras em Sambaituba109.
Na época retratada, em meio a década de 1940, na narrativa de seu Esmeraldo, ele e
sua família viviam em uma propriedade cacauicultora e seu pai trabalhava para o proprietário
das terras. Desde muito novo, antes mesmo de completar doze anos de idade, seu Esmeraldo
já “auxiliava” o pai na lida na roça. Durante o dia ele e o irmão ajudavam na colheita,
retirando os frutos com a enxada.
À noite era destinada a organização dos frutos, arrumando-os em pequenas porções,
para facilitar o manejo. O que ele denomina de bandeirar. Segundo Euclides Neto, bandeirar é
juntar os frutos, os organizando em uma pilha110. De onde são quebrados e descaroçados,
retirando assim as amêndoas para secagem.
Os trabalhadores, com a poda ou com a enxada, vão derrubando os frutos do pé dos
cacauais no chão. Mas não os recolhem no mesmo momento, depois outros trabalhadores vem
“bandeirando”, isto é, recolhendo os frutos e os arrumando em pilhas, tudo para facilitar a
posterior quebra do cacau, e retirada das amêndoas.
107
Infelizmente seu Esmeraldo veio a falecer após quatro meses da entrevista.
Esmeraldo Ferreira França. Entrevista citada.
109
Janaína Amado nos lembra da “capacidade da memória de transitar livremente entre os diversos tempos”.
Segundo a autora esta liberdade transitória da memória é a consciência dos seres humanos tem do tempo. In:
AMADO, Janaína, 1995, op. cit., p. 132.
110
NETO, Euclides. Dicionareco das roças de cacau e arredores. Ilhéus: Editus, 2002. p. 33.
108
52
Segundo seu Esmeraldo, havia uma divisão temporal e etária durante a colheita.
Durante o dia, os adultos, aqueles contratados pelos cacauicultores, colhiam, também muitas
vezes “auxiliados” por suas esposas e filhos. Chegada à noite, entravam em campo as
crianças, filhos dos trabalhadores, que eram responsáveis por “bandeirar” o cacau, para que
no dia seguinte, a colheita continuasse e também a quebra do cacau acontecesse.
D’Alencar, em um estudo sobre o trabalho de menores de idade em algumas
propriedades cacauicultoras na região de Ilhéus, ressalta que muitas vezes o trabalho dos
menores de 14 anos de idade não era remunerado, pois como muitas famílias residiam nas
fazendas, aqueles menores acompanhavam seus pais. Manter o menor como “ajudante” dos
pais, era a justificativa ideal para o cacauicultor que desejava explorar a mão de obra destas
crianças111.
Nesse contexto, as crianças trabalhavam arduamente, porém, para os cacauicultores,
eles apenas “ajudavam” os pais. Um trabalho que não era pago, talvez os proprietários
defendessem que as crianças não faziam mais do que a “obrigação”, já que moravam na
propriedade, e usufruiam de moradia “gratuita”.
Assim, seu Esmeraldo, ainda menino, aprendeu a lida nas roças de cacau,
enfrentando ao lado do pai o cotidiano difícil, que no tempo da colheita ultrapassava o dia e
adentrava a noite. É possível que as crianças não estivessem sozinhas quando bandeiravam o
cacau; poderiam seus pais também realizar esta função, já que era tempo de colheita e o
cacauicultor necessitava de muita mão de obra.
D’Alencar112 ressalta a importância da colheita no contexto cacauicultor, como sendo
um momento crucial, pois se relaciona diretamente aos prazos do produtor na exportação do
cacau. Considerando essa premissa, o serviço deve ser rápido, levando-se em conta a
derrubada, a quebra e a retirada das sementes, a fim de “evitar a decomposição das amêndoas,
causada por chuva ou excesso de sol”113. O proprietário, portanto, disponibiliza toda mão de
obra da fazenda e quando esta não dá conta do serviço, ele contrata mais trabalhadores.
Neste contexto, o trabalho feminino e infantil é indispensável para o cacauicultor
cumprir os prazos da exportação das amêndoas e evitar o desgaste destas pelo sol.
Percebemos que este trabalho era exercido por aquelas crianças e mulheres que viviam nas
fazendas cacauicultoras, a exemplo da família de seu Esmeraldo. Além daqueles que
prestavam serviços de empreitadas, como a família de dona Raimunda. Em ambas as famílias,
111
D’ALENCAR, Raimunda Silva, op. cit., p. 72.
Ibidem, p. 84.
113
Ibidem.
112
53
o trabalho feminino e o infantil não era pago e sim considerado como uma forma de “auxílio”
ao trabalho masculino adulto.
O núcleo familiar era um elemento importante no cotidiano rural, tanto na conexão
entre os membros, como também na realização do trabalho. Isto não era apenas visto na
agricultura familiar, aqueles que trabalhavam em propriedades cacauicultoras para outrem
também permaneciam interligados pela família. O cacauicultor se aproveitava desta ligação e
explorava todos os membros familiares, sendo que o homem muitas vezes era contratado ou
assalariado, enquanto a mulher e as crianças eram apenas “auxiliadores” do homem adulto.
Quanto às mulheres, elas eram diversas, e dentro do cotidiano rural algumas
desempenhavam funções importantes para o sustento familiar. Estas não estavam limitadas
aos cuidados dos filhos e das casas, não querendo negar a importância desta função. A mulher
ia além, para frente da organização dos trabalhadores rurais, como dona Marinalva, uma
mulher cabo de turma. Era também negociante nas feiras, como dona Raimunda que ia vender
os produtos cultivados pela família, enquanto o esposo cuidava dos filhos. Como fazia dona
Dora, cozinheira de “mão cheia”, produzia seus quitutes para vender nas feiras e levar o
sustento familiar.
No âmbito da organização familiar, os membros trabalhavam em conjunto e esta
participação da família em uma mesma atividade econômica também ocasiona uma relação
intrínseca entre “a vida privada e o trabalho produtivo114”. O que para o cacauicultor era um
meio de explorar os trabalhadores e suas famílias, para estas era o meio de manter o grupo
unido e diminuir as dificuldades do cotidiano rural.
2.3 LEMBRANÇAS DA CASA E DA FAMÍLIA
A casa era de taipa, assim aquela barcacinha que agente morava, não era
casa boa de fazendeiro não115.
Os migrantes, ao recordarem o “tempo da roça”, expressam principalmente as
relações de trabalho, porém não se limitam ao cotidiano do trabalho. Inserem, neste cotidiano,
também a família, as vivências com os pais, as suas moradias e a vizinhança, com as quais
estabeleciam laços de solidariedade. Os depoimentos femininos, no entanto, são peculiares
114
PROST, Antoine. O trabalho. In: ________; VINCENT, Gérard. (Orgs.) História da vida privada: da
primeira guerra a nossos dias. v.5. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 26.
115
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
54
quando se trata destas lembranças, as mulheres são mais falantes e colocam a família como
um elemento norteador durante as narrativas, pois elas são as “guardiãs da memória das
famílias116”.
Sob a ótica de Lucena117, as mulheres “são grandes especialistas na memória da
família”. Enquanto os homens narram suas atividades profissionais desenvolvidas ao longo de
suas vidas, as memórias femininas emanam lembranças da família, evidenciando o seu papel
na convivência familiar e social.
Dona Raimunda, ao recordar a sua juventude, em meio a década de 1950, lembra que
vivia com os pais e a eles pertencia o seu destino: “Minha juventude foi muito boa, naquele
tempo ninguém pensava em nada (...) porque nós trabalhava, não sabia de nada, vivia junto
dos pais, era uma vida muito longa, uma vida muito boa118”.
Apesar de se submeter às decisões de seus pais, dona Raimunda caracteriza estas
vivências como “boas”, “uma vida longa”, hoje mora em Itabuna distante de seus pais, que
ficaram na região de Poções, e sente saudades da família, assim ao rememorar o tempo da sua
juventude o faz com alegria.
O depoimento anteriormente citado, nos revela a importância da família para os
migrantes, esta relevância ultrapassa a produção econômica familiar, perpassando pelas
relações emocionais, o que implica na percepção de uma “vida muito longa, uma vida muito
boa”. Para os migrantes, a “família é o centro da vida afetiva onde as relações sociais refletem
a busca de segurança, sustento e proteção119”.
Quando dona Raimunda diz que “não sabia de nada”, também se refere à ausência
dos estudos, pois na localidade não havia escolas, então, ela e os irmãos não tiveram acesso à
educação básica sequer. A escola foi substituída pelo trabalho nas roças, trabalho que
realizava em conjunto com seus familiares.
Ao narrar a expressão: “ninguém pensava em nada”, enfatizando que ela e os irmãos
não tinham opinião própria, seus pais era quem pensavam e decidiam o futuro familiar. No
início da entrevista, quando Dona Raimunda fala da sua trajetória, relembra do seu
casamento:
(...) com a idade de 13 anos eu vim pra aqui pra roça de meu sogro, me casei,
me noivei e casei. (...) eu morava com meu padrinho, depois chegou aqui em
116
PERROT, Michelle, op. cit., p. 112.
LUCENA, Célia Toledo, op. cit., 1996, p. 210.
118
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
119
LUCENA, Célia Toledo, op. cit., 1999, p. 88.
117
55
Ibicaraí, perto de Ibicaraí, nós noivou, fiquemo junto, e tamo até hoje, vai
fazer quarenta ano.120
Dona Raimunda expressa o momento que conheceu seu esposo e se casou, confessa
ainda que morava com um padrinho e só deixou a companhia deste padrinho depois do
casamento. Ela casou bastante nova, talvez porque procurasse um “gestor” para sua vida já
que não tinha mais o pai ao seu lado.
Narrativa que também expressa às relações de parentesco da zona rural, o compadrio,
nas quais, um padrinho e uma madrinha tem a mesma função dos pais, em algumas famílias
rurais. Neste caso, dona Raimunda ficou na responsabilidade do padrinho, quando saiu de
Poções, seu segundo pai e, só depois do casamento, deixou a companhia dele. Os padrinhos
muitas vezes são vizinhos próximos que dividem o cotidiano rural com os grupos familiares
que estabelecem estas relações de compadrio.
A relação de compadrio em comunidades rurais estabelece duas relações, a primeira
entre os padrinhos e as crianças. E a segunda dos padrinhos com os pais da criança, esta
ultrapassa a amizade e constitui uma reprodução de laços entre irmãos. Assim “o compadrio
não é apenas um seguro social para a criança, (...) é uma relação entre adultos que se
estabelece através da criança121”.
A relação entre dona Raimunda e seu padrinho também pode refletir a subjugação
das mulheres ao domínio dos homens. Primeiro ela dependia da decisão do pai, depois do
padrinho e por último do marido, com o qual se casou aos 13 anos de idade, ainda uma
menina, com o qual vive há cerca de quarenta anos. Neste contexto, temos duas
subordinações: da mulher ao homem e do mais novo ao mais velho122.
As recordações acerca da família dos migrantes não são lineares e homogêneas. Pelo
contrário, são exercidas pela memória que não é cronológica e é carregada de emoções. Há
uma “sucessão de etapas na memória que é toda dividida por marcos, pontes, onde a
significação da vida se concentra123”, da qual emana situações de sofrimentos, conflitos,
entrelaçados aos momentos de alegrias, solidariedades, e união.
Dona Margarida, ao narrar sobre sua família, deixou transparecer algumas
recordações dolorosas, como o falecimento do seu pai, fato que ela relaciona ao problema do
alcoolismo enfrentado por ele e convivido por todo grupo familiar. Assim ela retrata durante a
entrevista:
120
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
DURHAN, Eunice, op. cit., p. 73.
122
Segundo Durhan essas subordinações são expressas em atitudes de respeito dos filhos para com os pais, e da
mulher para com o marido. In: Ibidem, p. 64.
123
Bosi, op. cit., p. 415.
121
56
Meu pai bebia muita cachaça, bebia, não tinha quem segurasse a cachaça
dele, minha mãe largava ele em Buerarema e vinha embora, aí ele morreu,
meu pai morreu, morreu bebo, caiu em uma cisterna de água, tava
chovendo, aí ele morreu, morreu novo, ele ia fazer sessenta ano ainda, ele
morreu novo (...)124
Dona Margarida diz que o pai consumia a cachaça, geralmente nos fins de semana,
quando ia pra feira em Buerarema vender os produtos agrícolas que a família produzia. Ás
vezes ia sozinho deixando a família na pequena propriedade, e nas demais vezes, quando a
produção superava as expectativas, ele levava a esposa, no caso, a mãe de dona Margarida.
Ela lembra que ninguém conseguia controlar sua vontade de consumir bebida alcoólica, nem
sua mãe, que não aguentava mais tamanho sofrimento e retornava sozinha para roça.
O pai de dona Margarida teve um destino infeliz. Nas “bebedeiras” em Buerarema,
num certo dia chuvoso ele caiu em uma cisterna, devido ao estado alcoólico em que se
encontrava, e não conseguiu retornar à superfície. Dona Margarida lamenta a morte do pai,
dizendo que ele morreu novo, evidenciando que para ela a bebida interrompeu o continuo de
uma vida que poderia ter sido longa.
A recordação do falecimento também está relacionada à perda da propriedade da
família de dona Margarida, visto que, depois do falecimento do pai, sua mãe vendeu a roça,
porque sozinha ela não podia tocar a roça, e os filhos queriam viver na cidade de Buerarema.
Como eram jovens, não tinham o mesmo apego dos pais com a propriedade e preferiam
trabalhar na cidade, não dando valor aos anos investidos da família na pequena roça.
O falecimento do chefe da família rural pode causar a desestruturação da unidade
familiar produtiva, assim os membros se dispersam, ou buscam novas unidades rurais, ou
migram para a cidade em busca de novas perspectivas125. Assim aconteceu com a família de
dona Margarida que se dispersou por várias cidades brasileiras, e até ela mesma foi para
Itabuna, após o falecimento de seu pai e a venda das terras da família.
Dona Teodora e seu Delfino, quando recordam a família, expressam reminiscências
de sentimentos conflituosos. Lembram do tempo em que trabalhavam na propriedade do pai
de seu Delfino, do conflito durante a venda das terras e da separação da família. Reproduzo
abaixo meu diálogo com o casal, seu Delfino e dona Dora:
Teodora: Casamo, trabalhamo uns tempo na fazenda do pai dele uns tempo,
depois o pai dele vendeu a fazenda aí fomo pra São José do Colônia.
124
125
Margarida Rocha França. Entrevista citada.
DURHAN, Eunice R, op. cit. p. 68.
57
Priscila: Por que vendeu a fazenda?
Adelfino: Porque patroa pai de família que tem fia, você vá me desculpa,
casa a fia até com o satanás, foi por isso que meu pai jogou a fazenda fora,
porque ele tinha um genro juntou mais um irmão meu cumungaram pro veí
vender a fazenda, eles dois assinou o termo do bom viver.
(...)
Teodora: Agente morava na fazenda todo o bolo, depois se disintenderam,
deu pra brigar uns com os outros, um bota a roça aqui, outro bota aqui, aí
venderam a fazenda, cabou a roça do pai126.
Quando questionei sobre a motivação que levou a família de seu Delfino a deixar a
propriedade do pai e ir para São José do Colônia não esperava ter “cutucado” sentimentos e
ressentimentos tão resguardados. Gostaria apenas de entender as razões de tal migração. Foi
dona Dora que respondeu, apontando seu casamento e a permanência do casal na propriedade
do sogro até a venda das terras.
Dona Dora não “matou” a minha curiosidade e eu fui obrigada a perguntar mais uma
vez, em busca do entendimento, pensei: se as terras eram boas, com diversidade de plantações
e criações de animais, por que venderam as terras? E expressei meu pensamento em forma de
pergunta, mas não esboçando minhas prévias conclusões, os deixando à vontade para me
“contar” o acontecido.
Desta vez foi seu Delfino que “tomou” a palavra, pela qual expressou ressentimentos
guardados “debaixo de sete chaves”. Ressentimentos com o cunhado e o irmão que fizeram o
pai de seu Delfino assinar a venda das terras. Parece que para seu Delfino o cunhado tem mais
“culpa no cartório”, ou talvez o irmão por ter um laço familiar mais forte já tenha sido
perdoado, enquanto o cunhado é denominado por seu Delfino como “satanás”.
Aquele anjo mal expulso do céu, ou aquele “capetinha” que aparece nos desenhos
animados mandando os personagens realizar coisas “erradas”. Foi isso que passou pela minha
mente no momento da narrativa de seu Delfino, assim visualizei o cunhado de seu Delfino.
Um “capetinha” convencendo o sogro a vender a propriedade da família, o que para seu
Delfino era algo “errado”, era “jogar a fazenda fora”.
Neste momento, o filho de seu Delfino, Otoniel, pede para o pai contar sobre a briga
entre ele e o cunhado por causa da venda da fazenda, e seu Delfino se recusa. Assim não
reproduz este trecho do diálogo, seguindo o desejo do entrevistado que não quis falar sobre tal
acontecimento. No entanto, fiz questão de me referir ao trecho para salientar que seu Delfino
não aceitou a venda da propriedade da família sem se rebelar.
126
Adelfino Martins Vieira, Teodora Pacheco Pinto, Otoniel Pinto Vieira, entrevista realizada em 28 de janeiro
de 2010.
58
Dona Dora achou necessário explicar o que levou ao conflito e a venda das terras,
talvez ela tenha percebido que a narrativa de seu Delfino foi carregada de ressentimentos e
conflitos. Ou então ela considerou a importância de detalhar os fatos, explicá-los para que o
ouvinte não permanecesse com dúvidas.
Dessa maneira, dona Dora “toma” a palavra e explica que moravam todos os filhos e
os novos respectivos núcleos familiares juntos na fazenda, e no meio a tanta gente surgiram os
desentendimentos, até mesmo na localização e na escolha dos plantios. Assim “acabaram”
com a roça do pai de seu Delfino vendendo as terras, e com a família, pois os membros se
dispersaram devido aos conflitos.
No entanto, seu Delfino continua a expor os seus ressentimentos; desta vez os alvos
são os irmãos, que segundo ele não são inconscientes:
Adelfino: Dos filhos do veí meu pai o mais consciente sou eu, porque eu
sepultei meu pai, eu e ela, eu sepultei meu pai, sepultei minha mãe e uma
neta que eles criavam que era minha subrinha sepultei também, eu e ela, tão
tudo sepultado em São José do Colônia, no cemitério de São José do
Colônia.
Teodora: Porque eles venderam a fazenda, os outro tudo, cada um foi pro
um canto e agente levou o veí pra morar em São José do Colônia, então
fomos nós que tomamos conta do veí.
Adelfino: Eu e ela que tomou conta do veí (...) nesse tempo ele jogou uma
fazenda fora por causa do genro, por causa do genro e do um irmão meu
que já morreu, dos filho criado do veí Batista só tem eu vivo, dos filho
homem, agora mulher tem minha irmã, Mariquinha que mora no Rio do
Meio, dos filho homem só tem eu vivo127
Seu Delfino se considera como o único consciente entre os irmãos e relaciona esta
consciência ao ato de sepultar os pais. Ele ressalta que foi ele e a esposa que “enterraram” os
pais, e uma sobrinha. Neste contexto “enterrar” talvez não signifique apenas a ação de
sepultar, ele quis enfatizar que o casal permaneceu na companhia dos pais até o falecimento
de ambos. Cuidando e gerenciando a velhice, com zelo e carinho.
Após o depoimento de dona Dora, compreendemos melhor o que seu Delfino
denomina como “falta de consciência dos irmãos”; para o casal, eles saíram pelo mundo
deixando os pais à toa. Depois das vendas das terras a família se dispersou, cada núcleo
familiar seguiu seu rumo. Sendo assim, o casal tomou conta dos pais e de uma sobrinha, os
levaram para São José do Colônia e cuidaram deles até o falecimento, por isso a referência de
seu Delfino ao sepultamento dos três.
127
Ibidem.
59
A narrativa evidencia que seu Delfino tem ressentimentos com o irmão e o genro
pela venda das terras, mas também porque eles não se preocuparam em manter a família
unida, pois venderam as terras, o sustento da família, sem levar em conta à sobrevivência do
pai. Seu Delfino demonstra também que mesmo ressentido ele não abandonou seu pai, o
levou para São José do Colônia e cuidou dele até a sua morte, e ele se orgulha disso repetindo
que dos irmãos homens, o único vivo até hoje é ele.
Conforme Pierre Ansart128, os ressentimentos no interior de um grupo produzem
cumplicidade e solidariedade “afetiva que, extrapolando as rivalidades internas, permite a
reconstituição de uma coesão, de uma forte identificação de cada um com seu grupo”. Assim,
o núcleo familiar de seu Delfino, formado por ele, os filhos e dona Dora se uniu ainda mais
depois da perda da fazenda, tanto que hoje moram todos na mesma rua do bairro Maria
Pinheiro. Além de se unirem, eles se solidarizaram com os pais de seu Delfino e a sobrinha,
ultrapassaram o ressentimento de perda e cuidaram deles até o fim dos seus dias de vida.
As memórias femininas também guardam lembranças sobre as casas, suas moradias
no “tempo da roça”, o acesso à moradia é muito importante para os migrantes. Quando
expressam suas condições de vida, seja do “tempo da roça”, ou do “tempo da cidade”,
relacionam as características das suas casas, referendando o material utilizado para sua
construção, e a condição de ocupação, se é alugada ou própria. Dona Dora expressa as
características da casa em que viveram em São José do Colônia:
A casa era boa, tinha 12 cômodo, era um casalhão, depois que o veí morreu
vendeu a casa deu a parte dos irmão e a nossa nós comprou uma casa em São
José do Colônia mesmo, essa era de tijolo também de tijolinho (...) depois
que o veí morreu, aí tinha os herdeiro, deu cada um o seu, uma das irmã deu
a parte dela a Delfino, porque quem cuidou do veí fomos nós, ela não quis a
parte dela deu a Delfino, aí juntou parte dela e a de Delfino nós comprou
outra casa em São José do Colônia, só não era grandona que nem a outra,
mas era boa tinha tudo dentro. E de lá, foi no tempo da enchente que levou
tudo, vendemo a casa e nós veio compra esse barraquinho aqui.129
Dona Dora descreve primeiramente a casa do sogro em que viveram até o
falecimento dele. Depois que venderam a fazenda em Poções, eles foram para São José do
Colônia e com uma parte do dinheiro da venda das terras o sogro de dona Dora comprou uma
casa. Segundo ela, era uma casa grande, com muitos cômodos, de tijolo, uma casa muito boa,
depois do falecimento do sogro vendeu a casa para repartir o dinheiro entre os filhos.
128
ANSART, Pierre. História e memória dos ressentimentos. In: BRESCIANI, Stella; NAXARA, Márcia.
(Orgs.). Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas, SP: Unicamp, 2001, p.
22.
129
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
60
Uma das irmãs se “solidarizou” com seu Delfino por ele ter cuidado dos pais e
entregou a parte dela, assim seu Delfino juntou a parte dele e a da irmã e comprou novamente
uma casa em São José do Colônia. Uma casa boa também, como afirma dona Dora, pois era
de tijolo, “tijolinho”, própria e não faltavam móveis, “tinha tudo dentro”, apesar de ser uma
casa menor do que a do sogro, mas também nesta época apenas o núcleo familiar de seu
Delfino dividia a habitação.
Observamos que a família de seu Delfino, mesmo trabalhando em propriedades
cacauicultoras, não morava nas fazendas, como alguns dos entrevistados. Os membros da
família moravam em casa própria, pois não eram trabalhadores com um vínculo permanente,
eles eram diaristas. Assim trabalhavam durante o dia nas fazendas e à noite retornavam para
sua casa, no distrito de São José do Colônia.
No fim da narrativa, dona Dora retrata a migração de sua família para cidade de
Itabuna, devido a uma enchente em São José do Colônia, onde a família perdeu todos os
móveis, então resolveram migrar. Diante da situação, venderam a casa de “tijolinho” e
compraram um “barraquinho” no bairro Maria Pinheiro, trocaram uma casa “boa, por um
“barraquinho”. A vivência em uma “nova” casa, em um novo espaço, não apaga as
lembranças das casas antigas, as recordações de suas casas estão vivas nas memórias dos
migrantes130
O filho de dona Dora, seu José, fala com remorso sobre a venda da casa em São José
do Colônia, porque o dinheiro não deu para comprar outra casa do mesmo padrão, na cidade
de Itabuna:
Nós vendeu a casa lá, lá era uma casa bem feitinha, tinha uma casinha todo
no tijolinho lá o dinheiro da casa não deu pra comprar uma casa aqui, aí
compramos um barraco de tábua. Hoje o velho lutou e conseguiu fazer a
casinha dele. Sofreu muito eles também, passando lá eles também vão
contar. Aliás você tem que se entender mais com minha mãe que minha mãe
que sabe mais falar daí.131
Seu José também se lembra de uma casa “boa”, o lar de sua família em São José do
Colônia, ele, assim como sua mãe, referencia as condições materiais da casa. Lamenta o
dinheiro da venda desta casa “bem feitinha” só ter dado para comprar um “barraco de tábua”
na cidade de Itabuna. Porém, ele lembra a luta de seu pai para construir sua “casinha” no
bairro Maria Pinheiro, pois no lugar do barraco hoje há uma casa de dois andares. Ainda por
130
131
LUCENA, Célia Toledo, 1999, op. cit., p. 86.
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
61
terminar, necessitando de reboco, mas uma casa própria, que seu Delfino se orgulha em dizer,
“hoje eu tenho meu rancho”.
As recordações da casa emanaram em seu José lembranças do sofrimento de seus
pais, onde ele ressalta que eles próprios poderão “contar”. Neste ínterim, aponta para a casa
de seus pais e nos apresenta a novos depoentes, mas ele evidencia a importância do
depoimento de sua mãe, dizendo que a mãe “sabe mais falar”. Dos depoimentos utilizados
para registrar a história da sua família, o depoimento da sua mãe é considerado por seu José
como fundamental.
Continuando no trilho das lembranças das casas, enquanto estrutura física, dona
Margarida expressa no seu depoimento às condições materiais da casa da sua família na zona
rural de Buerarema: “Meu pai fez um casão de taipa, seis cômodos grandes, a casa era bem
feita, muito bem feita, tinha casa de farinha, tinha tudo132”. Ela retrata que a casa não era de
tijolo, mas de taipa, porém fora bem construída por seu pai, era grande e não faltava nada,
tinha até casa de farinha.
As recordações da família Pinto e as de dona Maragarida sobre as casas em que
constituíram suas vivências evidenciam suas trajetórias. Para a família Pinto, a perda da
propriedade rural do pai de seu Delfino resultou na migração das regiões de Poções para São
José do Colônia. Lá, jamais conseguiram ter uma terra própria e assim conviveram com
trabalho de meia e o alugado na cacauicultura. Como para dona Margarida que, com a venda
da propriedade do pai migrou para Itabuna, e não exerceu mais serviços rurais. Estas perdas
das propriedades e consequentes migrações podem sinalizar a concentração de terras e a
necessidade de mão-de-obra dos grandes proprietários.
Dona Raimunda, quando lembra a sua casa no “tempo da roça”, recorda um tempo
recente em sua memória, quando vivia na zona rural de Buerarema e trabalhava em
propriedades cacauicultoras. Dessa forma, ela compara sua casa às moradias dos fazendeiros:
“A casa era de taipa, assim aquela barcacinha que agente morava, não era casa boa de
fazendeiro não, o fazendeiro morava lá na casa dele e nós morava assim naquelas casinha, ou
embaixo das barcaças”133.
A narrativa demonstra a consciência de dona Raimunda que ela e sua família não
tinham as mesmas condições de vida dos fazendeiros que os contratavam, por isso sua
moradia era uma “casinha” de taipa. O diminutivo é para enfatizar a comparação, “casa boa”
versus “casinha”. Diferentemente de dona Margarida, e de dona Dora, dona Raimunda não
132
133
Margarida Rocha França. Entrevista citada.
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
62
narra uma moradia própria, mas uma dependência da sua família ao cacauicultor, pois
moravam nas propriedades nas quais trabalhavam. Dona Raimunda perpassou por distintas
relações de posse da terra, já foi produtora, meeira, rendeira, diarista e alugada, mas ela
rememorou apenas a casa onde viveu e trabalhou como alugada.
Dona Raimunda não descreveu as possíveis demais casas onde sua família morou,
que talvez tivessem condições diferentes desta descrita pela mesma. Ela fez questão de
comparar a casa do proprietário rural com a habitação dos moradores. É possível que ela
tenha considerado importante expor esta comparação para que os futuros leitores
conhecessem as condições de vida dos trabalhadores nas roças de cacau, e até mesmo,
percebessem a exploração empreendida pelos cacauicultores que aproveitavam os espaços
embaixo das barcaças como habitação para os trabalhadores. Pode dona Raimunda ter
utilizado sua sabedoria e narrativa134 para denunciar a exploração do cacauicultor.
Marcelo Lins135 comenta sobre as péssimas condições de moradia dos trabalhadores
rurais da região cacaueira, afirmando que eles moravam na parte inferior das barcaças. Apesar
de Lins tratar da década de 1930, e a narrativa de dona Raimunda se referir a mais ou menos a
década de 1970, observamos características semelhantes. Dona Raimunda diz que moravam
embaixo das barcaças, em “barcacinhas”, novamente ela utiliza o diminutivo para ressaltar as
más condições de moradia que ela e sua família se sujeitavam.
Seguindo a BR 101, no trecho da região sul da Bahia, me deparo com reminiscências
deste passado rural. Encontro estas barcaças cobrindo em média 3 a 4 casebres. Muitos destes
casebres estão abandonados, em ruínas. Talvez este abandono esteja atrelado à desistência dos
cacauicultores em lidar com a vassoura-de-bruxa. No entanto, ainda há sinais de
permanências e vivências em algumas fazendas.
Percebo trabalhadores vivendo nestas mesmas casas, que foram descritas por dona
Raimunda, onde encontro roupas estendidas na porta das casas e crianças correndo nos
arredores, indicando um contínuo de vivências. Em outras fazendas, no entanto, ao lado dos
casebres em ruínas aparecem “novas” casas, certamente também destinadas às moradias dos
trabalhadores rurais. Assim, as lembranças dos migrantes se sobrepõem às imagens
construídas pelas minhas cotidianas viagens pela BR 101. Seja para ir às aulas do mestrado,
em Santo Antônio de Jesus, seja para ministrar aulas em São João do Panelinha, distrito de
Camacã.
134
Antonio Montenegro lembra como os trabalhadores pobres utilizam com sabedoria a linguagem para
demonstrar sua consciência. O quê ele denomina de “rachar palavras”. In: MONTENEGRO, Antonio Torres.
História, Metodologia, Memória. São Paulo: Contexto, 2010, p. 33.
135
LINS, Marcelo da Silva, op. cit., p. 60.
63
As barcaças, segundo Santos, “eram grandes tabuleiros cobertos por um telhado
móvel de zinco (...) embaixo dessas barcaças, ordinariamente, ficam as residências dos
trabalhadores136”. Nos tabuleiros são expostas as amêndoas de cacau ao sol para a secagem, e
quando finalizado este processo o tabuleiro é novamente coberto pelo telhado móvel. Nesse
vai e vem, o telhado protege as amêndoas, no entanto, as casas que ficam nas partes inferiores
são úmidas e apresentam um cheiro forte, devido à presença das amêndoas137.
Seu Valcir, que também trabalhou na zona rural de Buerarema em propriedades
cacauicultoras, não expressa este contexto quando recorda sua casa:
Tinha fazenda que as casas era muito boa, onde eu tava mesmo que
aconteceu esse problema comigo lá em seu Valtério, lá tinha luz, água, tudo,
casinhas boas, banheiro, tudo em fim tinha lá, mas tem fazenda que não tem
né, mas nos lugares em que eu morei tudo tinha.138
A memória de seu Valcir emana uma temporalidade recente, quando ele trabalhava
na propriedade de seu Valtério, onde também já trabalharam seu Esmeraldo e seu Adelfino,
ao chegarem à cidade de Itabuna, sendo esta fazenda localizada próxima ao bairro Maria
Pinheiro. O problema ao qual ele se refere foi a picada de cobra, que danificou os movimentos
da sua mão, impedindo que ele continuasse exercendo atividades rurais.
Nesta fazenda, não faltava nada para seu Valcir, lá estava disponível água, luz,
banheiro, enfim... Certamente, esta casa segue a edificação destas “novas” casas que
encontramos nas fazendas, à beira da BR 101. Fazendas que insistem na produção do cacau e
ainda empregam trabalhadores rurais, sendo que alguns ainda residem nas mesmas fazendas.
Talvez devido à fiscalização do Ministério do Trabalho, mais eficaz hoje, e baseado na CLT
(Consolidação das Leis Trabalhistas) os cacauicultores buscaram melhorar as condições de
vida dos trabalhadores, oferecendo uma residência mais digna ao trabalhador.
Em outro momento da entrevista, seu Valcir fala também das diversidades de
plantações que ele tinha acesso para se alimentar e comercializar nas feiras de Itabuna. Seu
Esmeraldo também residiu nesta fazenda e conviveu com a “fartura” da alimentação.
Enquanto seu Delfino trabalhava durante o dia, e retornava a sua casa no bairro Maria
Pinheiro, até conseguir se aposentar e não mais trabalhou no cotidiano rural.
Muitos depoimentos femininos são centralizados nas lembranças familiares, porém
são poucos depoentes que expressam os laços de sociabilidade entre eles e os vizinhos. Falam
que eram vizinhos bons, outras mulheres dizem que não tinham contato com a vizinhança,
136
SANTOS, Milton, op. cit., p. 30.
LINS, Marcelo da Silva, op. cit.
138
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
137
64
como dona Raimunda e dona Margarida. Porém, “a história oral não tem sujeito unificado; é
contada de uma multiplicidade de pontos de vista139”. Então, vamos tratar desta
“multiplicidade”, iniciando pela percepção de dona Dora sobre sua vizinhança: “Eu tenho
muita saudade do meu vizinho, lá era uma beleza mesmo, aqui a bondade daqui, é se adoecer
vai pro hospital e lá a casa enchia, não tinha hospital140”.
Dona Dora compara a importância de seus vizinhos em São José do Colônia, no
“tempo da roça”, com o acesso ao hospital na cidade de Itabuna. Lembra que se algum
membro da família adoecesse não tinha hospital próximo, mas tinham a solidariedade dos
vizinhos. Fica claro que dona Dora sente saudades de seus antigos vizinhos, apesar de desejar
migrar para a cidade de Itabuna, devido a uma enchente, ela sente falta da vizinhança. Talvez
na cidade ela não encontre os mesmos laços de solidariedade, assim contou apenas com o
hospital para tratar as enfermidades da sua família. A migração também significou o
rompimento destes laços de sociabilidade, não proporcionado, com tanta ênfase, no “tempo da
cidade”.
Dona Marinalva, quando se lembra dos seus vizinhos da zona rural de Uruçuca,
também retrata a ausência de assistência médica. Abaixo reproduzo a narrativa de dona
Marinalva:
Tinha uns cinco vizinho, tudo ótimo, aí comecei a fazer parto, fiquei logo
conhecida, aí comecei a fazer parto, uma menina, ela era até de menor, aí fiz
esse parto, aí ia pra tudo quanto era canto, até pra Ilhéus me levaram pra
fazer parto, quando nascia em casa, nascia em casa não tinha problema (...)
graças a Deus nunca deu complicação, aqui mesmo eu faço parto, quando
chama Samu a mulher já ta é comendo pirão, (Risadas), já ta deithada,
quando ele olham, precisar levar não ta tudo em orde (...) De primeira não
tinha esse negócio de hospital era difici. A pessoa cortava o pé, não tinha
médico, lavava, botava folha de bananeira, colocava café ali mesmo, aí
estancava o sangue, fechava o talho (...) Eu mesmo tomei um talho de podão
foi curado com café e açúcar, oh qui, eu fui tirar tangerina no dia de quintafeira maior, aí o podão escapuliu de lá e pau, foi um trabalho danado, mas
com quinze dia tava sã.141
A narrativa expressa seu trabalho de parteira, que se inicia na zona rural no “tempo
da roça”, e perpassa toda trajetória da entrevistada. Dona Marinalva oscila durante sua fala
entre o “tempo da roça” e o “tempo da cidade”, para expressar como o trabalho de parteira
ainda faz parte do seu cotidiano na cidade.
139
PORTELI, Alessandro, op. cit., 1997, p. 39.
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
141
Marinalva Fernandes. Entrevista citada.
140
65
Durante o depoimento, dona Marinalva privilegia este trabalho e negligencia o
trabalho nas lavouras. No trecho acima, ela demonstra com orgulho o reconhecimento dos
seus vizinhos rurais ao se tratar da sua função de parteira. Apesar de ter poucos vizinhos,
apenas cinco, ela diz que se tornou conhecida nos arredores e até mesmo em outro município,
onde ela também realizou partos, isto em Ilhéus.
Lembra com orgulho também dos partos realizados não terem gerado complicações
para as mães e para os bebês. Então, neste momento ela perpassa o “tempo da cidade”, na
qual ela ainda exerce sua função. Mesmo Itabuna contando com duas maternidades, dona
Marinalva ainda é procurada no bairro Maria Pinheiro e em bairros circunvizinhos. O que
pode indicar reminiscências rurais nos bairros populares, nos quais talvez não houvesse tantas
opções para as mulheres em trabalho de parto, e estas utilizavam os serviços de parteiras.
Dona Marinalva ressalta, com ênfase e alegria, entre risadas, que muitas vezes
quando o Samu142 chega à residência da paciente, a mesma já está até “comendo pirão”, e não
necessita mais que a Unidade móvel a transfira para um hospital. Dona Marinalva é ainda
muito requisitada no bairro Maria Pinheiro, um bairro com muitos migrantes da zona rural.
Moradores que ainda confiam nas parteiras, e até mesmo dão mais credibilidade a estas do
que aos médicos. Evidenciando, com isso, uma reprodução do cotidiano rural na cidade.
Percebemos no caso de dona Marinalva, que os laços de sociabilidade são renovados
na cidade, e baseados em uma memória deste passado rural, diferente de dona Dora que sente
falta dos vizinhos rurais. A confiança na parteira e a desconfiança nos médicos nos permitem
pensar em um entrelaçamento entre a roça e a cidade. Pensamento sinalizado quando os
vizinhos logo chamam dona Marinalva ao sentirem as primeiras dores do parto. A parteira é a
primeira a ser convidada a participar e até mesmo a reger este momento de alegria, e em
muitas vezes de medo e dor. Sentimentos múltiplos que perpassam os momentos do parto que
dona Marinalva se permite e é permitida a compartilhar.
Em seguida dona Marinalva retorna ao “tempo da roça” para falar da ausência de
assistência médica, principalmente na zona rural onde ela vivia. Ela “conta” como as pessoas
tratavam feridas, utilizando artífices da natureza e da alimentação, folha de bananeira, pó de
café e açúcar, curando suas enfermidades.
E como ela já era conhecida como parteira, tornou-se uma espécie de “médica rural”,
e se orgulha dos seus conhecimentos “medicinais”, os quais ela já testou nela mesma. Quando
cortou o colo do seio, ela faz questão de mostrar durante o depoimento, tocando o talho
cicatrizado, no intuito de enfatizar que foi um corte profundo, mas que foi solucionado.
142
Unidade de saúde móvel do sistema único de saúde.
66
Dona Marinalva deu asas a minha imaginação, pois me transportei para aquela zona
rural em uma quinta-feira da Semana Santa e presenciei, dona Marinalva subindo em um pé
de tangerina e levando um corte do podão, infelizmente. Como ela reproduziu o som do corte,
“pau”, imaginei até o sangue jorrando. Mas, “tudo acabou bem”, através da sua sabedoria
natural o talho foi curado e com quinze dias já havia cicatrizado.
No meio rural a fabricação de remédios é muitas vezes uma das funções femininas,
devido à distância dos hospitais e das farmácias, as mulheres assumem a responsabilidade da
saúde de seus familiares, e até mesmo de seus vizinhos143. Como bem faz dona Marinalava,
conhecida “aos quatro cantos” como parteira e conhecedora de medicamentos caseiros. No
entanto, estas funções extrapolam o cotidiano rural e se reproduzem na vivência na cidade.
Seu Valcir também se lembra dos seus vizinhos, um “tempo” de alegria, de união e
solidariedade, é o que ele expressou no fragmento reproduzido abaixo:
(...) em outros lugar agente fazia as festinhas da gente e o dono não ligava
não. Quando era fim do ano, era tempo de ano novo, tempo de natal, tinha
fazenda que era muitos vizinhos, vizinhança boa, um ajudava o outro, era
difícil agente chegar em uma fazenda e não ter os vizinhos da gente, todo
tempo agente tinha os amigo. Tinha vez da gente ir quebrar o cacau e agente
não ai quebrar todo, aí agente ia fazer aquela união pra quebrar, fazia uma
união pra catar um feijão, um milho, tudo.144
A vizinhança, para seu Valcir, era um elemento de solidariedade, onde havia ajuda
mútua. Seu Valcir, que já viveu em muitas fazendas e conviveu em distintos contextos, retrata
que quanto mais vizinho houvesse, maior a “união”, e a composição de um terreno fértil até
mesmo para a comemoração dos festejos de fim de ano.
Seu Valcir fala em “união”, espécie de mutirão de trabalho, para contribuir na
conclusão de algum serviço, fosse na quebra do cacau, ou para catar feijão, milho. Em “tudo”
que necessitasse a reunião dos vizinhos e fosse em prol da melhor sobrevivência de alguém
que pertencesse aos laços daquela vizinhança, era razão para executarem em “união”.
Estes laços de sociabilidade também eram reproduzidos nas festas de fim de ano, e
talvez nas festas juninas. Momentos de descontração, em que também havia “união”, mas
desta vez com outra finalidade, que não o trabalho, e sim o entretenimento. Seu Valcir lembra
que quanto mais vizinhos houvesse nas fazendas, maior seria a dimensão destas festas, pois a
vizinhança era “boa”.
O depoimento também expressa um orgulho de seu Valcir em todo “tempo” em que
viveu na roça, sobretudo por ter construído bons laços de vizinhança, amigos que ele recorda
143
144
LUCENA, Célia Toledo, 1999, op. cit., p. 113.
Ibidem.
67
com saudades. Seu Valcir não se queixa de nenhuma dificuldade de alimentação, moradia e
vizinhança no “tempo da roça”, ao contrário, as dificuldades para seu Valcir, se apresentam
no “tempo da cidade”.
Dona Raimunda quando fala sobre os vizinhos recorda a ausência de laços de
amizade e de proximidade:
No tempo de folga eu ia cuidar da casa, ia cuidar da casa, cuidar dos filhos,
fazer as coisas de dentro de casa, aí passava os tempo. Naquele tempo não
tinha casa perto mesmo, uma casa aqui, outro no Rio de Janeiro (risadas) Os
vizinho tudo longe e tudo trabalhava também, qual tempo de ficar nas casa
dos outro? Cansei de dormir seis horas, passarinho cantando, quando a
galinha subia com o agasalho, nós já tomado banho, comia feijão e um borá
dormir, pra quatro hora, cinco hora da manhã levantar, dormia a noite toda,
era assim. Oxe era tão gostoso.145
A citação expressa um cotidiano de trabalho, onde as horas vagas eram concentradas
nos serviços domésticos. Dona Raimunda relaciona ainda o cotidiano de trabalho à distância
dos vizinhos que não possibilitava um convívio mais íntimo. Então, ela brinca com esta
distância “uma casa aqui, outra no Rio de Janeiro” para enfatizar o pouco contato com os
vizinhos. Além do mais, eles também concentravam seu cotidiano no trabalho e não tinham
tempo de ficar “nas casa dos outros”.
Interessante, que neste momento da narrativa, ela não recorda o “tempo” em que
viveu em propriedades cacauicultoras, pois nestas, certamente, tinham outros trabalhadores
que moravam nas propriedades. Assim, este contexto não condiz com a expressão, “uma casa
aqui, outra no Rio de Janeiro”. Talvez esta narrativa expresse o momento em que viveu em
propriedades arrendadas ou de meia. Isto pode explicar a distância das casas.
No entanto, quando narrou as condições de moradia, ela enfatizou as péssimas
condições das casas nas propriedades cacauicultoras. Esta alternância pode indicar o “vai e
vem” da memória, a sua capacidade de se deslocar no tempo, sem necessariamente procurar
um lugar fixo146. Caso contrário a denúncia de dona Raimunda está atrelada às más condições
de vida dos trabalhadores nas propriedades cacauicultoras.
O trecho da entrevista destacado acima também expressa a relação do cotidiano com
o “ritmo da natureza”, quando dona Raimunda diz que dormiam quando “a galinha subia com
o agasalho”, ou seja, acompanhavam o “canto das galinhas”, o pôr e o nascer do sol.
Utilizando a expressão nordestina “oxe”, ela caracteriza o “tempo da roça” como gostoso,
apesar do trabalho contínuo a noite era reservada ao descanso.
145
146
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2009, p. 150.
68
Novamente é necessário tentar compreender as contradições presentes na entrevista.
Quando dona Raimunda tratou das casas, estas não empreenderam significados positivos.
Como ela mesma negou, “não era casa boa de fazendeiro, não”. Porém quando narrou sobre a
vizinhança e seu cotidiano ligado aos afazeres domésticos, estes regidos pelos ritmos da
natureza, ela positivou este “tempo”, com o adjetivo “gostoso”. Poderia dona Raimunda
novamente expressar temporalidades distintas. Possivelmente ela significou as diferenças
entre sua experiência na propriedade cacauicultora de outrem e a vivência em roças
arrendadas, onde ela expressa a preferência pela segunda alternativa.
As narrativas sobre a família emergem sentimentos distintos, alguns lembram de
momentos de alegria, e união. Enquanto outros rememoram ressentimentos e conflitos
familiares. Estes ressentimentos, para alguns migrantes, estão relacionados à perda da
propriedade da família. No caso de seu Delfino, consequência do conflito com o irmão e com
o cunhado. E para dona Margarida a venda da pequena roça foi resultado do alcoolismo do pai
e consequentemente o falecimento dele.
No entremeio destas lembranças surge o compadrio, em um mister de laços
familiares e vizinhança. Também o papel da parteira, uma espécie de “médica rural”, tão bem
retratado pela entrevista de dona Marinalva. Funções reproduzidas na cidade, onde um
vizinho ainda é visto como padrinho, e a parteira ainda convidada a partilhar e reger o
nascimento de muitas crianças. Outros migrantes, no entanto, revelam pouca proximidade
com a vizinhança na roça, devido a distância. No caso de algumas mulheres, a proibição
expressa do pai, ou marido, e a utilização do tempo “vago” nos afazeres domésticos.
As casas também são recordadas pelos migrantes, as imagens das antigas casas rurais
se entrelaçam às moradias atuais na cidade. Os migrantes descrevem principalmente o
material utilizado na construção das casas. Alguns comemoram a possibilidade de ter uma
casa própria na cidade, conquistada com muita luta. Dona Raimunda, quando retrata sua casa
rural, faz questão de comparar as casas dos trabalhadores rurais com as dos patrões, o que
talvez represente uma denúncia das difíceis condições de vida destes trabalhadores.
As recordações do “tempo da roça” foram norteadas por distintas relações de
trabalho, o que, em grande parte, reflete a posse da terra. Esta influenciou as diferentes
percepções dos ritmos de trabalho, alternando entre o ritmo da cacauicultura, e a influência da
natureza. Também esteve relacionada à organização do trabalho familiar, um ponto
importante para a união dos migrantes diante das mazelas do trabalho rural.
Sobre as multiplicidades dos grupos familiares, percebemos como as mulheres foram
importantes no cotidiano rural. Elas desempenharam diversas funções, desde o “cuidar” da
69
casa e dos filhos, até o trabalho nas roças e nas feiras da cidade. São especialmente as vozes
femininas que narram as lembranças familiares com altivez e emoção. “Vozes vivas e
diversas que se aprovam, se comovem, se lembram (…) vozes que revelam sem pretensão,
com palavras do cotidiano, práticas comuns. Vozes de mulheres que revelam a vida das
pessoas (...)147”.
As trajetórias dos migrantes também indicam alguns traços da conjuntura do sul da
Bahia. Muitos saíram do seu local de origem, nascimento, e foram em busca de trabalho em
algumas zonas rurais. Esta mobilidade coincidiu em muitas trajetórias em torno da década de
1960 e ainda neste contexto significou uma mobilidade rural, pois muitos migrantes não
buscaram a cidade, mas insistiram em vivenciar o campo.
Dona Marinalva e dona Raimunda, quando constituíram sua própria família,
deixaram a companhia dos pais em terras próprias e foram em busca de trabalho rural em
Uruçuca e Buerarema, respectivamente. Enquanto o casal dona Dora e seu Delfino, devido a
venda da propriedade familiar, buscaram no trabalho alugado em São José do Colônia um
meio de sobrevivência.
Dona Margarida, foi outra que, por conta da venda da pequena propriedade, da morte
precoce de seu pai e seu casamento, também migrou. No entanto, ela e o esposo não foram
para outra zona rural, buscaram em Itabuna a continuidade de suas vivências. Dona Gessília
também deixou Buerarema e se estabeleceu na cidade no mesmo período, ainda não foi
Itabuna o seu destino, se fixou em Ibicaraí, e não mais trabalhou na roça.
Estas mobilidades podem indicar mudanças no contexto do sul da Bahia, pois a partir
da década de 1960148, houve cada vez mais uma concentração de terras nas mãos de grandes
proprietários, muitos destes compravam propriedades de pequenos produtores, como a família
de seu Delfino e dona Margarida. A migração também indica uma busca dos cacauicultores
por mão de obra para suprir as necessidades do plantio e especialmente da colheita, enquanto
os trabalhadores buscavam oportunidades de trabalho e acima de tudo de sobrevivência.
147
GIARD, Luce. Cozinhar. In: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A invenção do
cotidiano: morar, cozinhar. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 224.
148
Selem Asmar ressalta que os minifúndios compreendiam um número expressivo (65%) na estrutura agrária do
sul da Bahia na década de 1970, porém a área ocupada não chegava a vinte por cento das terras exploradas. O
quê indica já neste período uma crescente concentração de terras. In: ASMAR, Selem Rachid. Economia da
microrregião cacaueira. Itabuna: Colograf, 1985, p. 17-18.
70
3 O TEMPO DA ROÇA: UM TEMPO DE FARTURA?
3.1 SIGNIFICADOS DO TEMPO DA ROÇA: OS PEQUENOS PRODUTORES
Agente plantava de tudo menina, cacau, café, arroz, feijão, milho, de tudo,
agente plantava de tudo (...) lá agente tinha de tudo149.
As memórias dos migrantes se enlaçam e se distanciam quando expõe um cotidiano
rural carregado de relações de trabalho. Esta diversidade também está presente nas
significações do “tempo da roça”. Há aqueles que rememoram este tempo como um passado
de dificuldades. E outros que lembram este tempo como um referencial de “fartura”, onde
“tudo” plantavam e de “tudo” se alimentavam.
Esses distintos significados estão inter-relacionados às relações de trabalho no
passado rural? Ou as experiências do presente? São os pequenos proprietários os portadores
das lembranças de fartura? E os trabalhadores alugados, são eles os emissores das
dificuldades do “tempo da roça”?
O depoimento acima é de seu João, que migrou do Japu, zona rural do município de
Ilhéus. Hoje, com 58 anos de idade, não desenvolve mais atividades rurais, trabalha na cidade
de Itabuna, como mecânico. No entanto, sua família ainda possui uma pequena propriedade
no Japu, onde ele passou sua infância e sua juventude, mas hoje vai somente a “passeio”150.
Seu João relembra com tranquilidade o tempo da lavoura e sua fala traduz um tempo
de “fartura151”; em sua fala, seu João destaca o advérbio “tudo” por várias vezes no sentido de
enfatizar uma diversidade de cultivos, que tanto era aproveitada na alimentação da família,
como também no comércio nas feiras de Itabuna e Ilhéus.
Percebemos a construção de uma narrativa carregada de temporalidades e
significados, quando o entrevistado rememora o “tempo” da roça. A memória de seu João
sobre esta temporalidade, não significa um tempo de dificuldade, mas um tempo de “fartura”.
Durante a narrativa ele vai empreendendo significados152 ao seu passado rural. E entre eles o
149
João Silva, entrevistado em 29 de agosto de 2009.
Ibidem.
151
Para Charles Santana a fartura na vida camponesa reflete na “sensação de se viver bem (...) de ter certa
facilidade em satisfazer às necessidades de alimentação”. In: SANTANA, Charles D’Almeida, op. cit., 1998, p.
38.
152
Yara Khoury destaca a forma como os entrevistados significam, marcam e usam o tempo. KHOURY, Yara
Aun. Muitas memórias, outras histórias: cultura e sujeito na história. In: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL,
Laura Antunes, et. al (Orgs.), op. cit., p.128.
150
71
de um “tempo de fartura”. Possivelmente, a “fartura” da vida rural é enfatizada porque hoje na
cidade ele não experimenta a mesma “fartura”. Talvez seu João construa uma relação entre o
passado e o presente, memória e percepção, quando torna significativas estas temporalidades
em sua narrativa153. Sua vida urbana hoje, no bairro Pedro Jerônimo, já não possibilita as
muitas plantações e frutos que a roça lhe oportunizara.
Na roça, segundo seu João, não faltava alimentação, lá eles plantavam de “tudo” e
tinha de “tudo”. E ele completa: “só faltava carne e querosene (...) só não tinha dinheiro154”. A
carne, importante para complementar a alimentação, denota que na propriedade não havia
criação de animais. O querosene, para dar luz aos ambientes. Nessa época, a roça ainda não
contava com a energia elétrica, e assim dependiam do candeeiro, regado ao querosene. E para
comprar a carne e o querosene precisavam de dinheiro.
O dinheiro está associado à cidade. Era nas feiras que vendiam os produtos
cultivados. Era na cidade que vendiam as amêndoas do cacau, nas casas de exportação. Além
de plantar roças de subsistência, plantavam algumas lavouras permanentes como o cacau e o
café. Na roça não tinha dinheiro, era necessário ir à cidade, comercializar os produtos
plantados para conseguir o dinheiro e, assim, complementar suas necessidades cotidianas.
Seu Raimundo é também originário da região do Japu, onde trabalhava com a
família, pais e irmãos, em uma pequena propriedade. É necessário ressaltar que o entrevistado
é meu tio, irmão do meu avô materno. Depois do falecimento dos pais de seu Raimundo,
meus bisavós, a pequena propriedade ficou de herança para os filhos. Estes acabaram
vendendo suas partes a um único irmão que permaneceu na roça e que nunca desistiu de uma
vida rural. Os demais acabaram se dispersando para Itabuna, Rio de Janeiro, entre outras
cidades.
Assim como seu João, seu Raimundo trabalha hoje em sua própria oficina, no ofício
de mecânico. Ambos são moradores do bairro Pedro Jerônimo, eram vizinhos na zona rural
em que viveram e hoje continuam vizinhos em Itabuna. Apesar destas semelhanças e da
relação de proximidade entre os dois, seu Raimundo, ao rememorar o “tempo da roça”, revela
outros significados. Não recorda este tempo com saudosismo, então ele diz:
Minha vida lá na roça era bater biscó e plantar mandioca, milho, feijão, vida
assim de lavrador mesmo né, eu vim pra trabalhar no ramo de oficina, vim
pra aprender uma profissão, como aprendi tô aqui levando a vida (...) eu vi
153
Montenegro ressalta que a memória deve ser vista “como trabalho ininterrupto de ressignificação do presente
enquanto leitura a partir de um passado que se atualiza enquanto memória informando a percepção”. In:
MONTENEGRO, Antonio Torres, op. cit., p. 40.
154
João Silva. Entrevista citada.
72
que a roça não dava, não tinha possibilidade, fui aprender a profissão pra
sobreviver.155
A narrativa acima retrata o cotidiano de seu Raimundo como lavrador na roça,
batendo “biscó”, que é o mesmo que roçar a vegetação, e plantando cultivos diversificados.
Segundo Euclides Neto, biscó é uma espécie de facão grande. Depois que os facões quebram
o cabo, o trabalhador “criativo, e por economia”, emenda um cabo de madeira comprido no
facão quebrado e o amarra com arame, o que facilita a roçagem, impedindo que o trabalhador
abaixe muito durante o serviço156.
O biscó é um facão muito comum na região sul da Bahia e nas lavouras cacaueiras.
Foi um “jeitinho” que os trabalhadores rurais “arranjaram” para facilitar o trabalho na roça.
Uma apropriação do facão comum transformando-o em um grande facão, para melhorar as
condições de trabalho. Em um cotidiano difícil, os trabalhadores utilizam suas “artimanhas”
para diminuir as dificuldades do trabalho.
A ferramenta de trabalho, tanto o identifica com um passado rural que emerge na sua
narrativa, como também evidencia mecanismos utilizados pelos trabalhadores rurais para
burlar o trabalho árduo, além de facilitar a retirada da vegetação, diminuindo o desgaste da
coluna vertebral durante a roçagem.
Seu Raimundo logo em seguida ressalta sua migração para a cidade de Itabuna. Na
qual ele esperava aprender outro ofício, pretendia ser mecânico, ter mais “possibilidade”. A
roça, na sua perspectiva, limitava seus horizontes e assim não dava para “sobreviver”.
Começou trabalhando em oficinas “dos outros [pois] não sabia de nada”157, e agora tem sua
pequena oficina, onde faz seu próprio horário de trabalho e retira seu sustento.
Atualmente vive sozinho no Pedro Jerônimo, pois a mulher e os filhos foram embora
para Belo Horizonte, devido aos problemas conjugais, causados, sobretudo, pelo excesso de
bebida de seu Raimundo. Tal hábito foi, para seu Raimundo e para tantos outros, uma forma
de desabafar o trabalho duro do cotidiano rural, pois desde a sua vida rural ele havia
encontrado na “cachaça” um momento de lazer, tanto nas feiras das cidades quanto nas
pequenas vendas rurais.
Quando recorda a família, seus olhos se entristecem e diz: “tô vivendo aqui como
Deus quer158”. Se sente sozinho, abandonado à própria sorte, vivendo hoje pro trabalho na
155
José Raimundo Jesus Santos, entrevistado em 28 de agosto de 2009.
NETO, Euclides, op. cit., p. 35-36.
157
José Raimundo Jesus Santos. Entrevista citada.
158
José Raimundo Jesus Santos. Entrevista citada.
156
73
oficina e pra “cachaça”, sem muitas perspectivas para o futuro, deixando este nas mãos de
“Deus”.
Ao reconstruir o “tempo” da roça seu Raimundo expõe sua memória. Expressando
uma época de poucas oportunidades, na qual ele não encontrava aquela “possibilidade” que
desejava. As percepções de uma vida na roça se diferem quando cruzamos os depoimentos de
seu João e seu Raimundo159. Este último, mesmo sendo pequeno produtor, não via na roça o
“tempo de fartura” expressado por seu João.
Mesmo trabalhando para a própria família e reconhecendo um presente insatisfatório
sem perspectivas para o futuro, seu Raimundo não sente falta do cotidiano rural. Ele não
constrói o mesmo significado baseado na relação passado-presente conforme faz seu João.
Quiçá o trabalho na roça não lhe tenha possibilitado alternativas de se tornar
mecânico, que era o seu principal objetivo quando foi para a cidade de Itabuna160.
Desta forma, o presente não é sua referência, ele parte das realizações de um passado
recente, quando chegou para Itabuna, aprendeu a profissão e construiu sua própria família. É
possível que seu Raimundo perceba a migração como bem sucedida, pois conquistou seu
objetivo na cidade, embora não aparente satisfação plena.
Outro morador do bairro Pedro Jerônimo, Gilberto, também lembra do passado rural
da sua família. Ele migrou ainda criança para a cidade de Itabuna, na década de 1980, veio
com seus pais e irmãos de Barro Preto, antigo distrito de Itajuípe, e se fixaram no Pedro
Jerônimo, cerca de vinte anos atrás. Hoje com 33 anos de idade, está desempregado, vive de
“bicos” feitos nas vizinhanças, limpando terrenos, executando serviços de construção, como
carpinteiro, pintor, e/ou zelador.
Sua entrevista foi realizada no mesmo momento e local da entrevista de seu
Raimundo, na sala da casa deste último. Uma entrevista interessante, pois trouxe pontos de
divergências, um deles a percepção do “tempo da roça” enquanto um “tempo de fartura”.
Gilberto recorda um tempo que viveu quando criança, então são lembranças que se
confundem com os acontecimentos presenciados por ele. E com as vivências da sua família
que ele não viveu, e/ou não lembra, mas que foi transmitido como herança pela oralidade dos
seus pais.
159
Khoury evidencia a importância das narrativas na compreensão das vivências, pois no ato de narrar às pessoas
expressam suas próprias interpretações, a partir de seu próprio ponto de vista. In: KHOURY, Yara Aun, op. cit.,
p. 128.
160
Neste contexto é válido ressaltar a condição da cidade de Itabuna como entroncamento comercial, na qual
perpassa a BR 101 com grande movimento de automóveis, talvez este fato tenha alguma relação com o desejo de
seu Raimundo em ser mecânico? Questão levantada por Erahsto Felício em uma das reuniões do Grupo Conflito
Bahia.
74
Pollack denomina estas vivências de acontecimentos “vividos por tabela”, aqueles
“dos quais a pessoa nem sempre participou mas que, no imaginário, tomaram tamanho relevo
que, no fim das contas, é quase impossível que ela consiga saber se ela participou ou não”161.
São vivências coletivas que compõem a memória de Gilberto. Não foi possível entrevistar
seus pais, pois o pai de Gilberto já faleceu e sua mãe enfrenta difíceis problemas de saúde,
devido a sua deficiência visual.
No momento em que Gilberto rememora o “tempo da roça” diz: “nós plantava era de
um tudo, era feijão, milho, nós já foi bom, eu já fui rico”. Narrativa que se assemelha ao
depoimento de seu João, com a utilização do advérbio “tudo” e a referência à diversificação
de cultivos. Mas, Gilberto exalta o significado de fartura quando afirma que ele e a família
eram ricos. É possível que ele tenha comparado o passado de “fartura” com suas vivências de
hoje162. Se existe a relação passado-presente nas memórias e percepções de Gilberto é porque
ele compara o “tempo da roça” com o “tempo da cidade”.
Quando se refere a um possível retorno à zona rural, ele ressalta que só voltaria caso
possuísse sua própria terra: “pra mim comprar, sendo minha mesmo, pra mim trabalhar pra
mim mesmo, você trabalhar pros outros não presta não cê é doido, agente tem que trabalhar
pra agente, sendo no meu nome, aí eu resolvo minha vida né?”163.
Os pronomes possessivos demonstram o desejo de ter uma propriedade rural, onde
ele tivesse autonomia. Apesar de ele não ter convivido como trabalhador alugado na zona
rural onde viveu, ele já passou por diversas experiências de trabalho na cidade, vivenciando a
relação patrão-empregado, isso pode significar um desejo de autonomia. Dessa forma,
resolveria sua vida, sairia do desemprego sem precisar se submeter à relação de exploração.
Quando Gilberto diz “sendo em meu nome” ele retrata a consciência de que a terra só
seria sua de fato e ele teria a autonomia sonhada se a propriedade fosse selada em uma
escritura. O que nos leva novamente ao “tempo da roça”, pois quando rememora seu passado
familiar e rural ele diz: “Antigamente lá em Itajuípe era pai, aí acabou tudo, pronto (...)
naquele tempo nós era pequeno, nós não sabia de nada, aí acabou com tudo164”.
Ao mesmo passo que ele recorda um passado de fartura, dizendo que a família era
rica, ele lembra a perda das terras. Onde o “tempo da fartura” é substituído pelo “tempo da
migração”, quando o pai perdeu as terras e eles migraram para Itabuna.
161
POLLACK, Michael, op. cit., p. 201.
Porteli ressalta a relação da narrativa com o tempo o passado e o presente, pois “uma história de vida é algo
vivo (...) no qual os narradores examinam a imagem do seu próprio passado enquanto caminham”. In: PORTELI,
Alessandro. “O momento da minha vida”. Op. cit., p. 298.
163
Gilberto Sena, entrevistado em 28 de agosto de 2009.
164
Ibidem.
162
75
Revelando uma lembrança dolorosa165, seu Gilberto não soube explicar como
aconteceu a perda. Ressaltando apenas, que ele e os irmãos eram pequenos e não tinham
consciência do desenrolar dos acontecimentos. Porém, sua narrativa foi carregada de remorso
e desconsolo, evidenciando sua inconformidade com a perda ainda presente em sua memória.
Será que a terra fora tomada do pai? Ou este não tinha um documento provando que
a terra era sua? Ou perdeu a terra por endividamentos? Perdera para um grande proprietário?
Seu Gilberto não saberia responder a estes questionamentos. A certeza que se tem é que a
perda marcou a vida de toda a família, que sem trabalho e sustento migrou para Itabuna, na
década de 1980.
Dona Margarida, migrante de Buerarema, morou por dez anos no bairro Maria
Pinheiro, circunvizinho do Pedro Jerônimo, também comunga um passado rural em uma
propriedade própria. Quando rememora o “tempo da roça” retrata o trabalho familiar e a
diversificação das plantações:
Agente trabalhava pra agente mesmo, tinha tudo lá, tinha animais, tinha
água corrente, agente tinha tudo, era até bom lá, o quê eu não gostava era
das ladeira, nós tinha de tudo, de banana a mandioca de tudo nós tinha. Eu
ajudava ele [o pai] a limpar mandioca, a plantar milho, tinha a terra do
feijão, tudo agente tinha, tinha café, tinha tudo (...) até que não era ruim,
tinha cacau, café, tinha tudo. Meus pais tiravam o café, botava o café pra
secar, cacau também tinha uns pé, tinha um bocado de pé, em cada restante
que derrubava ele plantava um pé de cacau e café era assim. Aí ele botava
agente pra limpar, tanto ele limpava, como agente limpava também, enchia a
terra do milho e do feijão, até agente enjoar, oh trabalhozinho enjoado ali. Aí
eu trabalhei na roça até uns 14 anos né? 14 ou 17, com 17 anos fiquei
noiva.166
O pai de dona Margarida era um pequeno produtor que através da diversidade de
plantações sustentava toda família, sendo a esposa e os onze filhos. Dona Margarida repete a
expressão “tinha tudo” para enfatizar essa diversidade, também fala da criação de animais e
da água corrente, fato que a faz lembrar que para eles nada faltava e assim viviam bem.
Descreve ainda o cotidiano do trabalho, o plantio do milho, do feijão, do café, do cacau, a
colheita do feijão, do milho e do café, além da limpeza da mandioca, que preparavam para
fabricar a farinha167.
165
Conforme Alistair Thonson as pessoas buscam administrar os desejos frustrados, perdas e fraquezas, na sua
vida cotidiana selecionando e excluindo estes sentimentos para evitar momentos dolorosos, e os atos de narrar
por vezes camuflam essas recordações. No entanto, pequenos detalhes das entrevistas podem revelar
reminiscências deste passado mal resolvido. In: THONSON, Alistair, op. cit., p. 58.
166
Margarida Rocha França. Entrevista citada.
167
Na região cacaueira a farinha de Buerarema, onde Dona Margarida vivia com a família, é muito famosa e
requisitada.
76
Durante a entrevista com dona Margarida, seu esposo, Esmeraldo, estava presente,
ouvindo tudo atentamente, mas sem intervir, pois uma semana antes de entrevistá-la já o
havia entrevistado. Ela também esteve presente naquele momento, ficava na sala um pouco,
ouvia e depois retornava à cozinha para os seus afazeres domésticos, mas também não
interrompeu a prosa, por assim dizer.
Suponho que baseado nisso, seu Esmeraldo também respeitou a fala da esposa. No
trecho acima quando ela pergunta sobre a idade em que ficou noiva é a ele que se refere, então
ele balança a cabeça concordando que foi quando ela tinha 17 anos. Dona Margarida entrelaça
o “tempo da roça” com a sua trajetória, pois quando se casou foi o momento em que migrou
para Itabuna, por volta da década de 1960, o casamento representou, durante o depoimento,
um “divisor de águas” entre a vida no campo e a vida na cidade.
Seu Esmeraldo que já trabalhou em distintas relações, em terras da sua família, em
terras arrendadas, em relação de meia e até ajudando o pai em propriedades cacauicultoras,
rememora um “tempo de fartura” entrelaçado a um “tempo de perda”. Diante do contexto, ele
narra alguns acontecimentos presentes em sua memória:
Aí depois meu pai comprou uma roça e nós fomos morar na roça, lá nós
plantava mandioca, cacau, milho, feijão, esses negócio, nós passamo um
perrengue uns tempo, porque nós tava novato e a mandioca era nova, nós
derrubou a roça, quatro tarefa, quando nós viu já tava dentro e a mandioca
tava verde, agente rançava só pra comer (...) Vendemo a roça e compramo
um terreno em Canavieiras, tinha cana, banana, jaca, tinha de tudo no
terreno, uma casa, tinha bastante peixe, bastante marisco, aí o rio Pardo
encheu e alagou tudo, ficou tudo debaixo d’água, quando agente saiu não
tinha mais nada, só ficou os coqueiro e as laranja, a cana embebedou tudo,
o milho caiu tudo, o arroz perdeu, o terreno era mole, o arroz deitou tudo
assim oh.168
Seu Esmeraldo, durante a entrevista, descreveu a trajetória rural e urbana da sua
família, carregada de mobilidade espacial. No trecho acima, expressa a mudança da família
para uma terra própria, depois de muito trabalhar em fazendas cacauicultoras, possivelmente
no final da década de 1940. Inicia sua narrativa lembrando uma roça que o pai comprou na
zona rural de Canavieiras. Lembra a pouca experiência no cultivo da mandioca, “nós era
novato”, pois como trabalhavam em propriedades cacauicultoras, lidavam apenas com o
cultivo do cacau.
A família de seu Esmeraldo colheu a mandioca antes do tempo. Derrubaram as
plantações para poder retirar a raiz, o cultivo, mas quando viram a mandioca ainda estava
168
Esmeraldo Ferreira França. Entrevista citada.
77
verde, mas já era tarde demais, pois já tinham “derrubado” quatro tarefas de terra. A
inexperiência no plantio de outros produtos, além do cacau, fez com que a família perdesse o
cultivo da mandioca. Dessa forma, o trabalho dedicado ao plantio não acarretou frutos com a
colheita mal sucedida.
Como Dona Margarida, seu Esmeraldo utiliza diversas vezes o advérbio tudo, porém
com outro sentido. Apenas na primeira citação de “tudo” que ele emite o mesmo significado,
o de “fartura”, quando fala do sítio em que viveu em Canavieiras. Além da diversidade de
cultivo, ele também cita a diversidade de mariscos e peixes, demonstrando o potencial de
Canavieiras enquanto uma cidade litorânea, onde muitas pessoas se sustentam através das
atividades pesqueiras e marisqueiras, utilizando-as na alimentação e comércio.
Os demais “tudo”, no entanto,
estavam associados a perdas devido à ação da
natureza, a enchente do rio Pardo, que alagou as plantações do sitio em Canavieiras. Assim da
mesma forma que a natureza possibilitou um “tempo de fartura”, ela também interveio e
destruiu as plantações. Substituindo o “tempo da fartura”, por um “tempo de perda”. Logo, a
família de seu Esmeraldo perdeu as plantações de banana, jaca, cana, arroz, milho. Perdeu a
diversidade que certamente enriqueceria a alimentação da família.
Quando fala que o arroz deitou, seu Esmeraldo gesticula me explicando como
aconteceu. Com os gestos, ele buscou uma melhor forma de compreensão do acontecido e
também de enfatizar a perda que tiveram, na tentativa que eu visualizasse e melhor
compreendesse como é uma plantação de arroz deitada. Quando os cultivos foram alagados
pela enchente do rio, as plantações de arroz caíram, foram derrubadas pelas águas. Assim, o
arroz deitado significou as plantações caídas no solo.
O gestual também mexe com a imaginação do ouvinte que é convidado pelo narrador
a reviver aquele momento. Diante disso, eu me transpus para o remoto sítio em Canavieiras
tentando compreender como seria uma plantação de arroz “deitada”. E buscando visualizar o
desespero vivido pela família de seu Esmeraldo ao ver o trabalho do plantio ruído pelas águas,
e pelo “fim da fartura”.
Os gestos dos depoentes se intensificam durante a narrativa e eles reproduzem
performances de outrora, dando “asas” aos acontecimentos. Emparelhando a narrativa a uma
relação corpo-fala, o narrador transforma suas impressões, expectativas e pontos de vistas
narrados em vida humana169.
Alguns migrantes, considerados à época pequenos produtores, rememoram um
“tempo de fartura”, de diversificação dos cultivos, da facilidade em satisfazer a alimentação.
169
BOSI, Ecléa, op. cit., p. 90.
78
Outros, não significam esta temporalidade desta forma. Como seu Raimundo que projetava
algo mais do que a vida de lavrador, e seu Esmeraldo que devido à ação da natureza não pode
aproveitar a colheita que talvez representasse um “tempo de fartura”.
O tempo da roça também é expresso na narrativa de dona Raimunda, migrante da
zona rural de Buerarema. Quando rememora o tempo em que vivia na roça, traz na sua fala a
história da sua própria vida, que se inicia em Poções, onde nasceu e morava com os pais e os
irmãos. Por toda vida dona Raimunda exerceu atividades rurais, tanto em Poções, Ibicaraí,
Buerarema, e na própria Itabuna, lugares por onde ela escreveu a sua história que está
entrelaçada ao trabalho rural, como percebemos em sua narrativa:
Lá em Poções minha vida era boa, morava com meus pais, trabalhava tudo
junto em roça, nós foi criado, nós não estudava, viu, (...) de sete ano pra oito,
meu pai tinha sítio de café e nós ia pra roça trabalhar, pai voltava, dentro de
casa aquele rebanho de menininho, não tinha escola perto, criado igual um
rebanho de filho de índio, tudo trabalhando só na roça, alegre viu! Todo
mundo alegre, todo mundo, não tinha briga, nós não brigava, aquela união,
parecendo filho de índio mesmo. Vinha pra dentro de casa comia, de tarde
lavava minhas roupinha de novo e tornava ir pra roça de novo e criava muita
coisa, porco essas coisa, o dia amanhecia de novo via os passarinho cantar,
roça de novo, (...) mas eu achava a vida muito bonita, muito boa.170
Dona Raimunda inicia sua narrativa dizendo que a vida era boa e logo em seguida
introduz o trabalho na roça em sua fala. Desde pequena ajudava o pai no sítio de café em
Poções. Lembra que ela e os irmãos não estudavam, pois não tinha escola próxima ao sítio,
assim o seu cotidiano era ocupado pelo trabalho na roça, repete a expressão “de novo” para
representar a continuação da rotina do trabalho na roça, onde plantavam café e criavam
animais.
Quando dona Raimunda fala que ela e os irmãos não frequentaram a escola, associa a
criação que seus pais deram aos filhos, à criação dos “filhos de índio”. Expressando a idéia de
grupos indígenas que vivem ou viveram isolados, não tinham acesso à escola. Também utiliza
esta comparação quando diz que viviam em união, “parecendo filho de índio mesmo”. É
possível que ela apresente uma consciência que os grupos indígenas trabalham coletivamente,
comparando o trabalho indígena ao trabalho familiar, na qual se baseava a produção do sítio
de seu pai.
O início e o fim da narrativa são marcados por adjetivos positivos, “boa” e “bonita”.
É assim que dona Raimunda caracteriza a vida na roça. Adjetivação compreensível, pois
mesmo vivendo isolados, a família estava unida e trabalhava na própria terra, independendo
170
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
79
das decisões alheias. As lembranças saudosistas em relação ao campo estão relacionadas à
“manutenção da propriedade” familiar171. Dona Raimunda sente ainda vontade de retornar ao
convívio com os pais, que vivem na zona rural de Poções, em um sítio da família.
Neste subcapítulo busquei perceber os significados do “tempo da roça” apreendidos
pelos migrantes, que em algum momento de sua trajetória, trabalharam em sua própria
propriedade, convivendo assim, com o trabalho familiar e com a diversidade de cultivos. Os
significados foram diversos, ao contrário do que podíamos pensar, que eles rememorariam um
“tempo de fartura”, outros não seguiram este caminho.
Alguns migrantes utilizaram como referencial o presente para representar seu
passado rural, entre estes estão aqueles que sentem falta da “fartura” da roça. Outros, no
entanto, se basearam nas motivações da migração, como seu Raimundo, que não positivou o
“tempo da roça”, se referindo à conquista na cidade de uma profissão, que já era antes
desejada.
Não podemos configurar as vivências rurais de seu Esmeraldo apenas como pequeno
produtor, pois sua família perpassou por diversas relações de posse da terra. Além da pequena
propriedade, já trabalharam em propriedades cacauicultoras, como rendeiros e também como
meeiros. Assim o tempo que conseguiram conquistar um próprio pedaço de terra foi marcado
pela perda dos cultivos, fosse pela falta de experiência no cultivo da mandioca, fosse pela
ação da natureza que destruiu as plantações de arroz. Desta forma, o tão sonhado “tempo de
fartura” foi interrompido pelo “tempo de perda”.
3.2 OS TRABALHADORES ALUGADOS
A “fartura”, narrada por alguns entrevistados, está associada à diversificação de
plantações cultivadas nas roças e à “facilidade de alimentação172”. Outro elemento que norteia
esta “fartura” é a participação nas feiras, onde vendiam os cultivos da semana e/ou do mês. As
feiras aconteciam nas cidades, em geral nos fins de semana, sábado e domingo. Era um
momento de ir às cidades comercializar os frutos do trabalho e realizar outro tipo de “feira”,
as compras semanais. Estas empreendiam desde mantimentos básicos para a alimentação até
artigos de vestuário.
171
172
SANTANA, Charles, 2009, op. cit., p. 46.
SANTANA, Charles, 1998, op. cit.
80
Para os pequenos produtores, a participação nas feiras era algo certo, era necessário
comercializar o que havia plantado. No entanto, para os trabalhadores alugados, esta
participação estava ligada à relação entre os trabalhadores e os fazendeiros. A atuação destes
trabalhadores era forjada no cotidiano rural, negociada com seus patrões, que, por interesses
próprios até, permitiam o plantio de hortas, além de outras lavouras de subsistência. Ao
contrário, cobravam por estes plantios, arrendando as terras que serviriam para estas lavouras,
em específico. Havia ainda aqueles que estabeleciam uma relação de “meia” desses cultivos,
onde os trabalhadores pagavam a utilização das terras com metade da produção.
Seu Valcir, que trabalhou grande parte da sua vida como trabalhador alugado, afirma
que os donos das terras permitiam plantações e hortas, para servir de subsistência, e/ou
dessem algum lucro através do comércio nas feiras. No entanto, esta não era a realidade de
todos aqueles que viviam exclusivamente do trabalho alugado. Alguns evidenciam uma
“realidade” difícil, pois dependiam exclusivamente do pagamento irrisório do patrão.
Seu Valcir, por muito, viveu em propriedades cacauicultoras e só abandonou este
contexto e se fixou em Itabuna, pouco tempo antes da realização da entrevista para esta
pesquisa. Quando se acidentou, foi mordido por uma cobra, e também porque hoje está
aposentado, não depende mais exclusivamente do trabalho rural.
Enquanto trabalhador alugado, seu Valcir não rememora um “tempo de dificuldade”,
mas de “fartura”, porque talvez mantivesse relações trabalhistas com seus patrões menos
hostis e estes, por sua vez, permitiam plantações de subsistências próprias dos trabalhadores,
com o intuito de obscurecer os baixos salários. Ou esta lembrança está relacionada com o seu
presente, a impossibilidade de continuar trabalhando na zona rural, e se dedicando aos
serviços que realizou durante praticamente toda a sua vida. Suas lembranças entrelaçam o
trabalho nas lavouras cacaueiras ao trabalho em lavouras de subsistências com a participação
nas feiras:
Eu já trabalhei em muita fazenda que dava direito agente plantar pé de
feijão, pra agente fazer assim uma aérea, pra fazer uma horta, plantava
cebola, pimentão, plantava tudo de horta, folha, aí era difícil agente vim aqui
na cidade pra levar um moi de coentro, hoje em dia cabou. Tem tanta coisa
na cidade, mas que vem de onde? Sabe de onde vem as coisas? De muito
longe (...) De vez em quando agente plantava, por exemplo, se vaga hoje,
hoje é sexta né, agente colhia, quando era sábado agente corria com as
coisinha pra rua, às vezes não tinha pagamento, ou não era dia de
pagamento, agente corria com uma bananinha que eles davam, com um
coentrinho, uma aipim, e aí dava pra fazer uma feirinha, quebrava um galho
até o fim do mês, mas hoje em dia cabou, ninguém tem mais isto, hoje em
dia ta faltando de um tudo (...) hoje tá diferente (...) a senhora já ouviu dizer
que ia sair coentro de lá da serra de Goiás pra gente comer? Pergunte a seu
81
pai e sua mãe, a seu pessoal se era assim, tinha feijão, milho, cebola,
coentro, tudo tinha aqui, é tudo de fartura, hoje em dia ta tudo caríssimo.173
Seu Valcir também utiliza o advérbio “tudo” para situar um tempo que ficou para
trás em sua perspectiva, um tempo que não volta mais. Hoje acidentado, não podendo mais
exercer atividades rurais, seu Valcir passa o dia em casa com a nova esposa, afinal é viúvo e
na companhia dos filhos desta, que ainda são crianças.
Sente falta do cotidiano rural, da lida com os cacauais, com as plantações citadas
acima que “quebravam um galho”, pois, além de suprir a alimentação ele vendia o excedente,
nas feiras de Buerarema e/ou de Itabuna mesmo. E do comércio nas feiras livres, retirava o
dinheiro de fazer uma feira, comprar outros artigos para acompanhar o que colheram nas
refeições do dia-a-dia.
A dupla jornada do trabalho nas propriedades cacauicultoras e o plantio das próprias
hortas, quando o patrão permitia, eram forjados no cotidiano. Ele aproveitava qualquer
momento vago e plantava, quando era no dia de sexta colhia, para no sábado vender nas
feiras, assim seu Valcir se dividia entre o trabalho nas lavouras cacaueiras, o de lavrador e o
de negociante.
Segundo Garcia Júnior174, negociantes são “aqueles que obtêm no comércio das
feiras a renda fundamental que garante a subsistência familiar”. Dessa forma, a maioria dos
trabalhadores rurais se dividia nestas atividades, pois o que ganhava como diaristas ou
empreiteiros não dava pra suprir as necessidades básicas.
Seu Valcir demonstra ainda em seu depoimento a consciência do tempo histórico,
nos convidando a perceber as modificações geradas neste processo. Ele compara um “tempo
de fartura” de outrora com o “tempo do agora”, onde “cabou” a fartura do plantio, da colheita,
da alimentação, agora os legumes e as hortaliças “vem de muito longe”. E por esta razão “tá
tudo caríssimo”.
Não tendo mais onde plantar ou colher, já que hoje vive na cidade e sua casa não tem
um quintal, e não lhe oferece um espaço para o plantio, seu Valcir percebe as diferenças, com
muita nitidez e sente os seus reflexos no cotidiano, no momento em que realiza compras,
adquirindo hortaliças, por exemplo, que antes não necessitava pagar, uma vez que tinha ao
seu alcance.
Sua consciência do movimento do tempo histórico vai muito além da sua percepção
das modificações. Quando pediu que eu perguntasse aos meus pais se houve mudanças, se
173
174
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
GÁRCIA JÚNIOR, Afrânio Raul, op. cit., p. 53.
82
precisavam comprar alimentos provenientes de outros estados, demonstrou sua sabedoria.
Consciente que eu sou jovem e não vivenciei este “tempo de fartura”, e que só compreendo o
“tempo do agora” ele pediu que eu conversasse com os mais velhos; com aqueles que
sentiram estas modificações, e talvez estendessem melhor o que, durante toda a entrevista, ele
tentou me ensinar.
O ensinamento de seu Valcir é para que os mais jovens “escutem” aqueles que muito
viveram, que nós aprendamos a valorizar o trabalho rural daqueles sem estudo, que não
conseguem trabalho nas cidades, mas com muito conhecimento de mundo para nos passar. De
acordo com Bosi175, “a memória vem acompanhada por uma valorização do trabalho evocado
e de uma crítica, ou melhor de uma estranheza em face de certos costumes atuais”. A
valorização do trabalho presente na memória dos “velhos”, não deve ser interpretada como
simples saudosismo, mas como uma “forma de ensino, de conselho, de sabedoria”.
Seu Valcir recorda diferentes momentos da sua trajetória em Buerarema e na última
fazenda em que trabalhou, quando retrata a sua participação nas feiras:
Quando meus pais tavam em Buerarema agente ia pra Buerarema, tinha vez
que vinha até praqui fazer feira aqui, trazia batata, laranja (...) nessa fazenda
derradeira que eu tava mesmo, o dono dizia: - Leva aí banana, leva jaca, o
quê você acha aí se você quiser levar, pode levar, eu não ligo não, tudo bem.
Eu plantava batata tinha vez que quando eu pegava no dinheiro da semana só
era pra comprar roupa, sapatos, porque o que eu trazia de lá vendia aqui em
Itabuna. Quando era em Buerarema, dava pra fazer a feira, eu vendia batata,
feijão de arranque, feijão de corda, o quê chama aqui de feijão catador. Hoje
em dia ninguém tem mais isso minha senhora cabou, cabou, pra arranjar um
trabalho aqui em Itabuna, dá trabalho, é dois trabalho, chega numa firma aí,
tu tem que ter muito amigo, muito conhecido pra entrar numa firma dessa
aí.176
A narrativa retratada acima não segue uma cronologia, seu Valcir primeiro fala do
tempo em que viveu em Buerarema, isto entre as décadas de 1960 e 1970, depois narra um
tempo mais recente em sua memória, o trabalho na última fazenda em que trabalhou, um
passado recente. Então, volta a tratar do cotidiano de Buerarema e por último chega ao
“tempo da cidade”. Ele compõe sua memória através do fio do presente177. Caminhando no
tema da sua participação na feira, mas movimentando-se de forma livre entre o passado e o
presente.
Seu Valcir expressa também a dificuldade de conseguir um emprego em Itabuna,
apesar de aposentado, ele não quer ficar parado, novamente ele utiliza o presente como seu
175
BOSI, Ecléa, op. cit., p. 481.
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
177
A “estória está sendo contada tendo o presente em mente”. In: PORTELI, Alessandro, 2005, op. cit., p. 302.
176
83
referencial. Segundo ele, as pessoas que chegam do campo tem dificuldades de encontrar
trabalho na cidade, pois, suas experiências anteriores são particularmente de trabalho rural. E
assim as pessoas da cidade não valorizam esta forma de trabalho, dificultando a permanência
destes migrantes na urbe.
O que aconteceu com seu Valcir, quando sua família chegou a Itabuna e não se
adaptou aos viveres citadinos pode estar relacionado ao fato dele negativizar o “tempo da
cidade”. O trabalho foi decisivo para que o pai dele retornasse a Buerarema, no intuito de
continuar exercendo serviços rurais. Seu Valcir, que também não encontrou muitas
oportunidades de trabalho na cidade, continuou trabalhando em fazendas cacauicultoras,
enveredando nas suas idas e vindas da cidade para o campo. Não havendo outro jeito, optou
pelo campo para continuar trabalhando, enquanto a cidade era o seu ponto de apoio, onde
estavam sua mulher e filhos.
Dona Marinalva, outra moradora do bairro Maria Pinheiro, quando lembra o tempo
em que viveu na zona rural de Uruçuca, fala da diversidade de plantações para subsistência e
comércio, mesmo se tratando de uma propriedade cacauicultora, ela recorda um “tempo de
fartura”:
O dono arrendava pra agente plantar, nós só não plantava, porque não tinha
tempo e na roça tinha muita fartura também, comia de tudo galinha, carne,
comia mais galinha, comia galinha, peixe esses negócio (...) quando dava
agente plantava mandioca, verdura, agente fazia muita horta, coentro,
cebola, alface, esses negócio de verdura, agente comia muita jaca, agente
vendia também, dia de sábado e domingo tinha feira em Uruçuca, como era
distante, agente levava as coisa sexta e deixava lá, aí vendia sábado e
domingo, e domingo ia embora, o quê sobrava agente comia (...) Naquele
tempo o dinheiro dava, lá era tudo mais barato, não é como hoje em dia tudo
tem que comprar, lá agente não comprava fruta, nem nada, agora não, o
dinheiro não dá nem pra nada.178
O dono da propriedade não cedia, como no caso de seu Valcir, ele arrendava,
cobrando um valor ‘x’, pelo uso da terra. Assim, dona Marinalva e seu esposo plantavam
quando tinham tempo, quando este não era consumido totalmente pela cacauicultura. Mesmo
porque, segundo ela, não precisava se preocupar com alimentação, na propriedade “tinha
muita fartura”. No entanto, quando necessitavam complementar a renda familiar, plantavam
hortaliças para consumo próprio e vendiam o excedente para o comércio, na feira de Uruçuca.
As hortaliças eram as principais escolhidas, porque na propriedade já existia uma
diversidade de frutas muito grande e os trabalhadores eram autorizados a colher para se
alimentar. As hortaliças, portanto, completavam o consumo diário e o orçamento da família.
178
Marinalva Fernandes. Entrevista citada.
84
Criavam galinhas também para o consumo próprio, por isso quando se tratava da carne, as
refeições eram ricas em carne branca, peixe e frango; quanto à carne vermelha, essa era mais
escassa, pois dependia da compra e nem sempre sobrava dinheiro para adquiri-la.
Dona Marinalva, migrante de Uruçuca, assim como seu Valcir, também dividia seu
tempo entre o trabalho alugado, a agricultura e o comércio nas feiras. Fala sobre a ida à
cidade para participar da feira, tinha que ir um dia antes, na sexta, para levar os mantimentos,
e ficava o fim de semana todo por lá. Vendiam os produtos das hortas que plantavam, mais
algumas frutas e verduras. No domingo voltavam para a roça, e as sobras dos produtos já
tinham destino certo, ia direto para mesa compor as refeições.
O dinheiro que possuía através do pagamento dos honorários do trabalho na
cacauicultura e no comércio nas feiras, segundo ela, dava para sobreviver. Nesta percepção de
“tempo de fartura” é possível que ela utilize o presente como referência. Porque hoje ela ainda
não se aposentou e vive de contribuições das mulheres que ela realiza partos. Então vende
juju179 para complementar a renda, tem ainda a pensão do filho, que tem problemas mentais e
que ela tutela, e ainda divide a pensão entre o sustento da própria casa e da casa dele.
Dona Marinalva lembra que no “tempo da roça” ela não necessitava comprar todos
os produtos alimentícios, porque na roça estavam disponíveis muitos produtos. E o hoje no
“tempo da cidade” para ela satisfazer a alimentação, precisa comprar, e ter dinheiro para tal.
No entanto, dona Marinalva conta ainda com os cultivos que desenvolve em seu quintal, são
muitas frutas, tipo: jaca, ingá, banana, manga e também tem criação de galinhas, que ela
utiliza para complementar as refeições. São evidências de uma reprodução do cotidiano rural
na cidade de Itabuna.
Dona Raimunda, não permaneceu na propriedade familiar em Poções, pois migrou
com um padrinho e se casou em Ibicaraí, na década de 1950. Trabalhou com o esposo em
roças e também em propriedades cacauicultoras e para sobreviver na terra que arrendaram,
com a produção que obtiveram insuficiente, foram obrigados a trabalhar como alugados e
diaristas. Esta dupla jornada é expressada por dona Raimunda quando fala de sua vida em
Ibicaraí e Buerarema, na região cacaueira:
A vida era boa, era voltada também pra esse negócio de cereais, nós também
não estudava lá, era tudo roça (...) agente trabalhava, plantava mandioca,
cacau, café, arrendava aquelas terra e ia trabalhar, era como meeiro, a vida
muito boa, depois agente foi pra outra roça, trabalhei 13 ano ou foi 14 ano
em Buerarema, terra arrendada também, arrendava e agente trabalhava, a
vida foi assim minha filha, de lá que eu vim praqui
Priscila: Vocês plantavam cacau?
179
Suco ensacado e congelado.
85
Agente tinha muito feijão, andu, milho, abobora, agente tinha, tudo que
agente plantava (...) era mais cereal, cacau tinha os fazendeiro, meu marido
trabalhava pra aquele pessoal, assim o dia pra ganhar o dinheiro, aí agente
pegava assim um pedaço de terra que a pessoa dava agente pra trabalhar, aí
roçava, queimava e plantava, aí tocamos a vida assim minha filha.180
Dona Raimunda retrata três realidades de seu trabalho nas zonas rurais. Em outra
narrativa, quando relembrou a infância, mencionou o trabalho na pequena propriedade da sua
família. A migração significou a separação da família, os pais continuaram em Poções, onde
ainda vivem hoje, na sua própria roça. No entanto, dona Raimunda se separou deles,
migrando com o marido. Nos novos caminhos, ela não mais trabalhou em terra própria.
Trabalhava como rendeira e meeira, em terras de outrem. Nas terras, plantavam roças de
subsistência, que serviam tanto para a alimentação da família, como para o comércio nas
feiras.
Primeiro ela fala da vida como rendeiros. Então perguntei se eles também plantavam
cacau, quando ela desdenhou que “cacau tinha os fazendeiro”. Talvez quem arrendavam as
terras eram os próprios cacauicultores, a fim de não permitir que os rendeiros e/ou meeiros
plantassem cacau. Ou os agricultores estavam atentos acerca da impossibilidade de concorrer
com os grandes cacauicultores, uma vez que, estes últimos eram muito influentes no comércio
e na exportação do produto. A área das terras arrendadas não era suficiente também para
agregar uma “grandiosa” lavoura de cacau. Os trabalhadores rurais preferiam dedicar os
cultivos à subsistência, já no intuito de contribuir com a alimentação da família.
Mesmo narrando sobre a perspectiva de outras relações de trabalho de posse da terra,
dona Raimunda continua afirmando que a vida era boa. O “tempo da roça” para dona
Raimunda apreende significados de uma vida tranquila, de muito trabalho, mas de sossego.
Mesmo a produção não dando para garantir a sobrevivência da família, o esposo trabalhava
como diarista nas propriedades cacauicultoras, que ajudava um pouco.
Acima diferencia o trabalho nas terras arrendadas, onde plantavam diversidades de
cultivos, com o trabalho nas propriedades cacauicultoras de outrem, quando ela “ajudava” o
esposo. Dona Raimunda, além de cuidar das roças de subsistência, também “ajudava” o
esposo no trabalho de diarista. Como apenas “ajudava”, não recebia pelo trabalho, apenas o
marido era remunerado, afinal era ele o contratado para o serviço nas lavouras de cacau.
Dessa forma, percebemos que muitas vezes o meeiro tinha que trabalhar em grandes
propriedades como diaristas para complementar a renda familiar, este foi o caso de dona
Raimunda, seu esposo e filhos. E ainda por cima, os filhos e a esposa “ajudavam” o chefe da
180
Ibidem.
86
família, no trabalho de diarista. Eram raras as vezes que os ‘ajudantes’ recebiam por este
trabalho, a razão? apenas o pai/esposo era contratado pelo cacauicultor.
Mas, por que dona Raimunda quando retrata a vida da família em terras de outrem
continua emitindo o significado de uma “vida boa”? Quando rememora o “tempo da roça”, o
faz com tranquilidade. Naquele tempo ela e o marido eram saudáveis, podiam trabalhar e
sustentar a família, hoje ela e o filho nos fala dos problemas de saúde do esposo, muitos deles
resultados do trabalho árduo na roça, segundo o filho de dona Raimunda. Pode ser que o
presente influencie a percepção de dona Raimunda e faça com que ela signifique o “tempo da
roça” como um tempo de uma vida “boa”.
Alguns entrevistados, como dona Marinalva e seu Valcir, relacionam este “tempo de
fartura” com a participação nas feiras das cidades. No entanto, dona Raimunda não recorda a
ida à cidade, com tranquilidade:
Agente plantava, levava em animal ia pra feira no lombo de animal, a estrada
era muito ruim, ia em cima de animal pra feira vender, sufoco a vida (...)
agente tinha que vender as coisinha pra comprar o alimento pra agente levar
pra roça pra agente comer e tornar a trabalhar.181
A participação na feira dela e do esposo é lembrada como um momento de
dificuldade, de “sufoco”, com uma viagem difícil, devido às estradas em mal estado e o meio
de transporte utilizado por eles, ser um animal, mais exatamente, um burro. A necessidade de
vender os produtos cultivados nas terras arrendadas para angariar recursos os conduzia a tal
situação. Precisavam comprar outros alimentos que complementassem as refeições, esta é
uma recordação sofrida de dona Raimunda. Esse “sufoco” e necessidade ofuscam o brilho da
vida “boa” retratada por ela anteriormente.
Dona Raimunda ainda relaciona a necessidade de se alimentar com o continuo
cotidiano de trabalho. A entrevistada, na qualidade de mulher, ainda tinha que enfrentar as
atividades domésticas, pois seu cotidiano era dividido em uma tripla jornada de trabalho:
agricultura, comércio e serviços do lar.
As lembranças de um “tempo de fartura” são substituídas por um “tempo de
dificuldade, quando seu Valcir retrata os ensinamentos de seu pai:
Eu fui criado assim, meu pai dizia: - Meu filho morra, mas não roube e nós
foi criado todo mundo (...) todo mundo trabalhava, todo mundo tinha
serviço, todo mundo trabalhava alegre, quando era sexta-feira todo mundo
tinha dinheiro, fim de mês todo mundo tinha seu dinheirinho (...) a coisa era
melhor, depois veio a vassoura de bruxa, os tempo foi modificando,
181
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
87
fazendeiro não quis mais. Ás vez o cacau dava vassoura de bruxa, fazendeiro
não quis mais cuidar. – Eu vou limpar essa roça, não vou deixar a bruxa
comer não, há deu o que dê. Esses daí ainda tem um cacauzinho, esses que
deu duro assim ainda tem, deu de meia. Mas no tempo que tinha cacau não
tinha isso, tinha ladrão, mas era muito pouco, todo mundo trabalhava, tinha
seu dinheirinho de mês, o décimo todo ano, hoje não tem mais nada disso,
cabou!.182
A narrativa se inicia retomando a família como instituição fundamental na vida
humana, sobretudo, quando ele aborda os ensinamentos de seu pai sobre a importância do
trabalho, para ele e seus irmãos. Lembra que toda família trabalhava no cotidiano rural, não
faltava trabalho e pagamento, fosse por semana ou por mês. Era um “dinheirinho”,
expressando que não devia ser alto o pagamento, mas pelo menos não se ausentava, segundo
seu Valcir. E assim, com os trabalhadores empregados, não havia motivo para existir
“ladrão”.
Neste caso, seu Valcir esboça uma leitura interessante das transformações da
conjuntura regional. Ele divide a temporalidade entre o “tempo” do cacau, quando não faltava
serviço, e o “tempo” da vassoura de bruxa. Doença que afetou as lavouras cacaueiras, a partir
da década de 1980, um “tempo” modificado, com escassez de trabalho na zona rural.
Na perspectiva de seu Valcir, a ausência de cuidado ou o zelo dos fazendeiros pela
plantação foi crucial para a manutenção ou não dos cacauais. Aqueles que efetivaram esta
manutenção preservaram parte do plantio, até mesmo estabelecendo relação de meia, mas
aqueles que descuidaram perderam o plantio, a produção e desempregaram muitos
trabalhadores rurais.
E por fim seu Valcir retrata o “hoje”, onde o cacau, o emprego, o dinheiro,
acabaram.. Narrativa que expressa também o seu cotidiano atual, aposentado e acidentado,
não pode mais exercer funções rurais, às quais fazem muita falta para ele que passou uma vida
se ocupando destas atividades. O “tempo” da cidade para ele é o tempo do desemprego, como
foi explorado em um trecho do seu depoimento, ainda nesta seção.
Um “tempo” de dificuldade para aqueles que não tem estudo e não estão preparados
para atuar em cargos profissionais urbanos. Um “tempo” que é posterior ao “tempo” da
migração, é o próprio resultado do processo migratório. O “tempo da cidade”, na opinião de
seu Valcir, é um “tempo de dificuldade”.
Problematizando as narrativas dos migrantes que conviveram com o trabalho
alugado, percebemos que há aqueles que também rememoram um “tempo de fartura”. Em
parte, estes significados podem estar relacionados às experiências do presente, enfrentadas
182
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
88
diariamente pelos migrantes. O desemprego atual ou a aposentadoria irrisória, os problemas
de saúde e a impossibilidade de continuar na roça trabalhando, são algumas razões levantadas
pelos entrevistados para representar a roça como um “tempo de fartura” e a cidade como um
“tempo de dificuldade”.
3.3 “EU NÃO QUERO MAIS TRABALHAR PRO SENHOR NÃO”:
A memória não é singular e homogênea, assim os migrantes não empreendem os
mesmos significados ao “tempo da roça”. Alguns rememoram um “tempo de fartura”, entre
estes, aqueles que foram pequenos produtores e aqueles que conviveram no cotidiano rural
com o trabalho alugado.
No entanto, alguns migrantes significam o “tempo da roça” como um “tempo de
dificuldade”, de exploração, de escassez de alimentação. Estas perspectivas são tão
ressonantes quanto às lembranças da “fartura”. E para não pensarmos em um passado linear,
homogêneo e sem conflitos, é que se faz necessário colocar em pauta as lembranças deste
“tempo de dificuldade”. Carregado de relações de exploração entre patrão-empregado, donomeeiro, o que não é revertido nas memórias destes sujeitos como um “tempo de fartura”.
A família de seu Delfino é uma das que conviveu com diferentes formas de posses da
terra. Durante a infância e a juventude, seu Delfino viveu em uma pequena propriedade da sua
família na região de Poções:
Adelfino: (...) passei muitas privações, passei muita necessidade, hoje eu
posso dizer que to aqui, porque eu tenho meu rancho, já passei muitas
privação, trabalhei na roça, trabalhei igual um doido, eu trabalhava na
fazenda de meu pai, quando era solteiro em Barro Branco, o trabalho era
plantar cacau, eu deste tamanhinho carregando uma vasilha de caroço de
cacau pra meu pai plantar (risadas), plantar café, meu pai criava porco,
criava vaca, criava jegue, ovelha, porco, galinha, na fazenda de meu pai
era.183
Seu Delfino inicia sua narrativa tratando das privações que já passou na vida. E logo
em seguida se remete ao presente, no qual construiu uma casa própria com muito esforço, por
isso demonstra orgulho em possuir “um rancho”. Depois de lembrar-se das privações, ele fala
dos “altos” do trabalho familiar, no qual ajudava o pai a plantar cacau. Entre risadas, ele conta
também sobre a diversidade das criações de animais que a família possuía.
183
Adelfino Martins Vieira. Entrevista citada.
89
Após a percepção de seu Delfino de uma vida “boa” na roça do pai eu fiquei curiosa
para entender porque ele inicia a narrativa falando de privações. Então eu perguntei como
foram morar em São José do Colônia. Dona Dora e seu Delfino revelaram conflitos familiares
que contribuíram com a perda das terras da família. Estes conflitos foram tratados já no
primeiro capítulo, quando discutidas as lembranças da família.
Depois que perdeu as terras, a família de seu Delfino migrou para São José do
Colônia, onde não mais conseguiu trabalhar em terras próprias. E assim perpassaram pelo
trabalho à diária nas fazendas cacauicultoras e pelo trabalho de meia. Esta relação de trabalho
marcou para sempre a família de seu Delfino, pois tanto o casal, quanto os filhos rememoram
este “tempo”.
O cotidiano daqueles que trabalhavam como meeiros, apresentava dificuldades
especificas na relação de meia. O trabalhador tinha a posse, mas não a propriedade da terra;
ainda devia entregar ao dono da terra a metade da produção. Este era o caso da família de seu
Delfino e dona Dora. Eles e o filho, seu Otoniel, durante a entrevista, expressam o contexto e
os conflitos do trabalho de meia. Dona Dora e o filho nos contam como iniciou a relação de
meia com o cacauicultor:
Teodora: Os cacau dele pegou fogo, queimou tudo, aí nós limpou essa terra e
botamo roça, os cacau saindo, e nós plantando mandioca, feijão, aí pra mim
já foi melhor, aí foi uma farturazinha que nós teve.
Otoniel: Mas, antes de comer nós passamo fome, mas também depois um
monte de mandioca que nós fez um sacão de farinha, muito feijão, aí
melhorou. Pra pessoa ter uma melhorazinha tem que sofrer também né.
Também no início da entrevista participaram os dois filhos de dona Dora. Seu
Otoniel, demonstra em sua fala que, depois da primeira colheita, veio o alívio e a “fartura”.
Momento em que aproveitaram os produtos cultivados para saciar a necessidade da
alimentação e também comercializaram o excedente na feira de Itororó. Mas, antes da
“fartura”, passaram fome e necessidade. Será que para pessoa melhorar de vida tem que
sofrer? E por que para dona Dora foi apenas uma farturazinha?
A outra filha do casal se retirou da casa dos pais, pois não conseguiu lidar com as
lembranças do “tempo da roça”. Talvez emanassem sofrimentos de uma infância sem estudo e
de muito trabalho, foi o que ela expressou antes de se retirar. Falou, com ressentimentos, do
trabalho, que acabou ocupando o lugar do estudo, no cotidiano dela e dos irmãos. E também
dos problemas de saúde que a mãe enfrenta hoje causados, sobretudo, pelo excesso do sol,
como a sinusite e os problemas de pele.
90
A propriedade era cacauicultora, mas sofreu um incêndio que destruiu os cacauais.
Então o dono cedeu as terras à família de seu Delfino e dona Dora, sob a relação de meia, para
dividirem a produção. Porém, depois que a terra frutificou e começou a gerar subsistência e
lucro, o proprietário, se valendo de “picuinhas”, quis retirar a família que trabalhou
incansavelmente para fazer ressurgir plantações, da inércia das cinzas dos cacauais. Como
expressa dona Dora, abaixo:
Teodora: Mas pra fazer essa roça foi um sofrimento, que eu dizia há não vou
vencer não, nós comia era banana verde cozida, quando achava um taco de
osso botava pra cozinhar, mais trabalhei, mas mulher eu trabalhei de mais,
quando deu, foi feijão, mandioca, abóbora, era tudo quanto era coisa aí foi
bom de mais. Depois o dono mandou meter um caminho pros animá passar,
ele queria que colocasse pra passar dentro da roça de feijão, aí meteram os
animá dentro da roça, aí Delfino foi pra garra os animá, ele [o empregado do
proprietário] disse: - Foi seu Vitório que mandou. Aí Delfino falou: - Oh seu
Vitório como é que você manda meter animá dentro da roça de nós dois,
como é que mete animá dentro da roça de feijão? Aí ele [seu Vitório, o
dono] disse: - Você quer mandar mais do que eu? De hoje em diante sua
enxada tá suspendida. Aí ficou nós com fome, aí passou dia, passou dia e
nada de seu Vitório aparecer. Aí Delfino falou: - Seu Vitório vamo acertar
nossa dívida da roça. E eu falei: - Seu Vitório tô com fome. E ele [o
proprietário] disse: - Uê com tanta coisa na roça dona Teodora e a senhora tá
com fome? [Dona Teodora respondeu:] – O senhor não disse que não era pra
nós não entra mais lá? Agora tem que acertar com nós o trabalho, pra nós
caçar nosso jeito. [O proprietário respondeu:] – Não, eu falei com a cabeça
quente, pode colher suas roça. Só que Delfino não foi mais não.
Dona Dora demonstra em sua narrativa as dificuldades enfrentadas no início das
lavouras, em uma terra que nada havia plantado, nada tinha para comer. Então passaram
fome, comeram “banana verde”; diante da falta de alimentos, não havia outra alternativa a não
ser plantar, e na hora de muita necessidade também conseguiram colher.
Recordo no momento da entrevista a feição de sofrimento de dona Dora me dizendo:
“(...) mas mulher eu trabalhei demais (...)”, quando enfatizou o trabalho duro que enfrentaram
para superar o problema da fome. Enquanto dona Dora falava seu Delfino ouvia atentamente,
sempre balançando a cabeça, confirmando a narrativa de dona Dora.
Como pode o proprietário romper com a relação de meia desta forma? O proprietário
mandou os animais atravessarem as plantações de feijão. Quando questionado por seu
Delfino, fez questão de lembrar que era o dono das terras, perguntando a seu Delfino: “você
quer mandar mais do que eu?”. Proibiu então que o casal e os filhos desfrutassem do próprio
trabalho. E novamente eles passaram fome e necessidades.
O tempo de “fartura” para dona Dora não foi completo, por isso, ela utiliza o
diminutivo “farturazinha”, pois foi rompido com a retirada da sua família das terras que
91
começaram a prosperar. O proprietário, depois que as cinzas dos cacauais foram substituídas
por plantações de feijão, milho, mandioca, banana, quis acabar com a relação de meia e
usufruir sozinho das terras frutíferas. Assim a “fartura” acaba, ou melhor, a “farturazinha” e
novamente a família passa necessidades de alimentação.
Quando o casal pediu que “seu Vitório” acertasse as contas, para poder seguir em
frente, quem sabe arranjar outras formas de sobrevivência, o proprietário se negou, ironizando
com dona Dora, pergunta por que ela estava com fome se a roça estava frutificada.
Afirmando também, que “suspendeu” a enxada deles por que no dia estava nervoso, mas que
eles não levassem a sério. Mas, seu Delfino levou muito a sério, vejam na fala dele:
Adelfino: Uma coisa que eu tenho é vergonha, viu patroa. A roça valia era
2.500 conto naquele tempo, eu falei: - Passa meu 1.250 pra cá e toma conta
da sua porcaria lá viu. Tinha uma roça de banana, aí eu falei: - Não vou
voltar mais lá não, o senhor já me botou pra correr. E quanto o senhor quer
na roça de banana? [O proprietário respondeu:] – Me dá aí o quê o senhor
ganha por mês. [E seu Adelfino respondeu:] – Eu vou lhe dar banana da
terra, banana da prata. Eu peguei umas três penca e disse: - Toma aqui sua
porcaria, que eu só queria se fosse de meia, porque se é milho é metade do
senhor, feijão é um saco de senhor, se eu chamo o senhor pra partir a
mandioca, o senhor manda eu comer farinha, então pronto. O senhor tá
pensando que eu vou pegar o que é seu, tome conta disso daí, que eu não
quero trabalhar pro senhor mais não. Eu tava em casa um dia lá e ele [o
proprietário] chegou e eu disse, essa alma ta querendo um padre nosso (...)
Dora fez beiju de goma e eu perguntei: - O senhor quer tomar um cafezinho
seu Vitório? [E o proprietário respondeu:] – É bom, é bom! Dora trouxe o
quente-frio de café, beiju pra ele, tomou café e tudo [E o proprietário disse:]
– Eu vim aqui pro senhor tocar uma roça mais eu. Eu disse: - Seu Vitório, se
eu pudesse tocar uma roça eu tocava sozinho e não precisava de nada do
senhor e de nada de vocês.184
Seu Delfino expressou sua consciência, enquanto trabalhador, que estava sendo
explorado. Depois de observar a fala da esposa em silêncio a primeira frase que ele diz é que
ele tem vergonha, por isso não voltou a trabalhar para “seu Vitório”. Mesmo este pedindo o
retorno da família à enxada. Seu Delfino entendeu que talvez “seu Vitório” havia se
arrependido, ou necessitava da mão de obra da sua família outra vez. Mas, seu Delfino,
orgulhoso do seu trabalho, se recusou, dizendo: “eu não volto mais lá não”.
Talvez “seu Vitório” achou que a família iria retornar à situação de exploração, pois
ele sabia que a família necessitava do trabalho para sobreviver. É possível que ele tenha
armado essa “picuinha” no intuito de mostrar quem era o verdadeiro dono das terras, e
objetivasse humilhar mais ainda a família de seu Delfino, para que eles não colocassem “as
manguinhas de fora” e se sentissem donos das terras.
184
Adelfino Martins Vieira, Teodora Pacheco Pinto, Otoniel Pinto Vieira. Entrevista citada.
92
Em outro trecho seu Delfino reproduz o diálogo com “seu Vitório”, no momento em
que estavam “acertando as contas”. Novamente o proprietário rompe a relação de meia. Seu
Delfino queria que as plantações fossem divididas meio a meio, mas, “seu Vitório” queria o
valor completo da venda das bananas. Então, seu Delfino, que não é besta nem nada, lembrou
que a relação estabelecida era de meia, e que tudo deveria ser dividido em duas partes iguais.
A vontade do proprietário em romper a relação de meia está clara na visão de seu
Delfino. Na percepção dele, “seu Vitório” pretendia tornar a família de dona Dora em simples
trabalhadores alugados. Depois da prosperidade das terras, ele só precisaria de trabalhadores
para realizar a manutenção da sua propriedade. Ele queria acabar com a relação de meia e
tomar as plantações frutíferas para o seu total usufruto.
Diante de tal situação, seu Delfino não se conformou com a exploração. Ele se
recusou a voltar a trabalhar nas terras de “seu Vitório”, dizendo: “(...) eu não quero trabalhar
pro senhor mais não (...)”185, se insubordinando a exploração exercida e anunciada por “seu
Vitório”. Seu Delfino não poderia aceitar tamanha humilhação, aceitar que sua família visse
todo um trabalho jogado fora, pois, não alcançaram a “fartura” tão esperada.
Outra vez sua narrativa traz a insubordinação, quando ele recorda que depois de
algum tempo “seu Vitório” esteve em sua casa para lhe oferecer trabalho em outras terras. Ele
o recebeu muito bem, lhe ofereceu até café e beiju. Por um instante, o leitor conclui que os
ressentimentos acabaram. No entanto, seu Delfino foi apenas receptivo, ele jamais retornaria à
submissão de “seu Vitório”, sendo claro em sua posição: “(...) Seu Vitório, se eu pudesse
tocar uma roça eu tocava sozinho e não precisava de nada do senhor e de nada de vocês”186.
Em tom de desabafo, seu Delfino finaliza sua fala com uma entonação forte como se
estivesse diante de “seu Vitório”, revivendo, através da memória, o desfecho do trabalho de
meia.
Seu José, também filho do casal, foi entrevistado anteriormente e indicou os pais
para que eles também contassem a história de suas vidas. Quando se referiu aos pais, disse:
“Sofreu muito eles também, passando lá eles também vão contar”187. Entrevistei seu José na
varanda da casa dele, em meio ao canto dos seus passarinhos. E de lá ele apontou para a casa
de seus pais, me indicando que os procurassem e também os entrevistassem.
Hoje com 56 anos, seu José não mais depende do serviço de roça. Trabalha para
Prefeitura Municipal de Itabuna, onde já ocupou o cargo de gari, mas hoje devido à idade e
aos problemas na coluna, desenvolve a função de porteiro. Seu passado rural ainda está
185
Adelfino Martins Vieira. Entrevista citada.
Ibidem.
187
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
186
93
presente em sua memória, sendo que ele dividiu com os pais o cotidiano do trabalho duro,
tanto nas propriedades cacauicultoras, como no trabalho de meia, que ele assim recorda:
José: (...) trabalhemo um bocado de tempo numa roça de meia e no mais
trabalhemo pros outros.
Priscila: Como era o trabalho de meia?
José: O trabalho de meia é que agente cultiva a terra e depois agente planta e
aquela plantação é dividida com o dono, entendeu? Uma plantação de
mandioca é meia tarefa da gente, meia tarefa é do dono, entendeu? Negócio
de feijão se colhia também dividia, o negócio de meia é que era dividido, a
meia era assim era dividido. Ele entrava com a terra e agente entrava com o
trabalho para trabalha. Ás vez ele prometia um agrado pra ajudar, quando ele
ajudava bem, quando ele não ajudava agente se virava. Agora essa história é
complicada que agente já passou e comeu até banana verde com sal, que
hoje em dia agente fala pra própria criança da gente que agente já passou
uma vida sofrida de comer banana machucada com feijão, de vez faltava
farinha, machucava aquela banana, pra poder comer, pra poder pegar o
serviço. Depois que a lavoura chegava, chegava o milho, chegava a
mandioca, as bananeira que agente plantava, ia colher o cacho, aí vinha o
milho, o feijão. Depois que agente começava a colher os fruto é que agora a
vida da gente começava a melhorar um pouco, mas enquanto agente não
colhia agente passava uma situação muito difici.188
O trabalho de meia marcou a família Pinto189, que compôs sua memória a partir do
cotidiano difícil que enfrentara. Lembrar deste tempo é deixar fluir no presente sentimentos e
ressentimentos de uma época de muito trabalho e necessidade de alimentação, retratado no
depoimento dos dois filhos e do próprio casal. Seu José me explicou como era a relação de
meia, demonstrando sua consciência do processo. É categórico quando diz que o proprietário
cedia a terra e eles “entravam” com o trabalho, e acaba me perguntando por duas vezes se eu
tinha compreendido sua explicação.
Seu José também demonstra consciência da exploração do proprietário quando diz
que ele prometia ajudar e não cumpria. Então eles se “viravam”, comendo banana verde com
sal e mesmo depois da colheita, seu José não fala em um “tempo de fartura”, para ele a vida
melhorou, mas foi pouco. Percebemos o porquê da insignificância das melhores condições de
vida, através da fala de dona Dora e seu Delfino.
Seu José não foi tão minucioso quanto os seus pais ao narrar a relação de meia.
Talvez porque não queria enfrentar sentimentos difíceis de uma época de muitas necessidades.
Ou até mesmo esperava que eu fosse entrevistar os seus pais, e estes sim estavam mais aptos
para falar deste “tempo”. Assim ele não contou como eles deixaram o trabalho de meia, mas
188
189
Ibidem.
Família de seu Delfino e dona Dora.
94
deixou transparecer os conflitos, quando diz que esperaram o auxílio de “seu Vitório”, mas
este não chegou.
O diálogo da família Pinto nos traz algumas reflexões: primeiro, as lembranças do
“tempo da roça” não repercutem um “tempo de fartura”, pois esta temporalidade foi marcada
pela exploração e humilhação. Segundo, que os significados desta temporalidade podem estar
relacionados à migração da família Pinto para a cidade de Itabuna, assim emana a passagem
do “tempo da roça” para o “tempo da cidade”.
Seu Esmeraldo, esposo de dona Margarida, um andarilho convicto, também já
experimentou muitas formas de trabalho, tanto em áreas rurais, quanto em cidades. Já foi
pequeno produtor, trabalhou em fazendas cacauicultoras, e também sob a relação de meia.
Percorreu muitos caminhos das zonas rurais do sul da Bahia, nas quais acompanhava os pais.
Na narrativa, ele nos fala de um conflito em uma terra arrendada por sua família:
Meu pai arranjou uma casa em Samabaituba e nós fomos pra lá. Lá nós tinha
burro, tinha porco, tinha cachorro, vendeu tudo e foi pra Ilhéus, do outro
lado do rio, rio Almada. Lá ele arrendou as terra do home e foi trabalhar,
plantando feijão de corda, mandioca, nós ralava uma mandioca danada.
Quando foi um dia o homem botou uns animá perto da roça, eles
arrebentaram a cerca e cabou com a roça toda. Comeram tudo, cabou com
tudo. Aí foi uma confusão danada com o cabra lá, vendemo pela metade,
qualquer trocado e nós viemo pra Itabuna de novo.190
Originária da zona rural de Canavieiras, a família de seu Esmeraldo migrou para
Itabuna pela primeira vez, na década de 1950, porém não se fixou ali, preferiu retornar à zona
rural, desta vez da cidade de Ilhéus, Sambaituba. Tentaram se estabelecer por lá, compraram
um pequeno sítio com casa, plantações e criações de animais. No entanto, por alguma razão
que não é evidenciada na narrativa de seu Esmeraldo, eles migraram novamente. Para mesma
zona rural de Ilhéus, próxima ao rio Almada, no distrito de Castelo Novo.
Nesta nova região, eles arrendaram uma terra e plantaram feijão e mandioca, que
comercializavam em Ilhéus, na feira do Centro de Abastecimento. Desta vez, mais experientes
nas lavouras de subsistências souberam a época correta de colher os produtos. Assim, ralaram
as mandiocas para produzir a farinha, certamente esta terra também contava com uma casa de
farinha, que podia ser de usufruto dos proprietários e dos rendeiros. Era a oportunidade de
tentaram se estabelecer e garantir a sobrevivência da família.
Mas, logo perceberam que ali não seria o “paradeiro” da família. Alguns conflitos
com o proprietário os avisavam que logo teriam que partir. O proprietário, de propósito ou
190
Esmeraldo Ferreira França. Entrevista citada.
95
não, colocou alguns animais próximos às plantações; não deu outra, os animais arrebentaram
a cerca e invadiram a roça da família de seu Esmeraldo.
Os animais acabaram com as plantações que seriam colhidas, comeram os frutos do
trabalho da família e não deixaram nada para aproveitar. Talvez depois do “incidente”, o pai
de seu Esmeraldo tenha ido acertar as contas com o proprietário, mas algo aconteceu, uma
“confusão danada”, pois a família vendeu o que tinha por qualquer “trocado” e foi embora pra
Itabuna.
Seu Esmeraldo não detalha que confusão se sucedeu, se foram ameaçados? Se foram
ameaçados, por quem teria partido as ameaças? Algo aconteceu para que a família desistisse
das terras, das plantações e resolvessem procurar outro lugar para viver. A narrativa expõe
uma constante busca pela sobrevivência, se não havia dado certo naquela zona rural, era hora
de partir.
O depoimento também traz o advérbio “tudo”, que é repetido algumas vezes,
diferente de outros entrevistados que utilizam “tudo” para enfatizar a fartura. Seu Esmeraldo o
utiliza para confirmar a perda das plantações, das roças e principalmente do trabalho da
família, que não pode desfrutar daqueles frutos, fossem das plantações ou do trabalho árduo,
durante o plantio.
A família de seu Esmeraldo já havia cogitado a possibilidade de escolher Itabuna
para viver, mas, neste momento não a Itabuna urbana, mas sim a rural. Quando foram pela
primeira vez a Itabuna, na década de 1950, encontraram ainda uma expressiva zona rural, com
muitas roças pequenas e até mesmo, algumas grandes propriedades. Seu Esmeraldo lembra
que o pai ficou entusiasmado e disse: “Oh, o pessoal cheio de roça191”. Vislumbrando assim, a
possibilidade de comprar um sítio.
Não conseguiram adquirir uma terra própria, então, não perderam tempo e foram
tentar a vida em outra localidade. No entanto, depois do conflito nas terras arrendadas, a
família resolveu retornar a Itabuna, na década de 1960 e, novamente no intuito de
permanecerem na zona rural, uma vez que o pai de seu Esmeraldo “gostava muito de roça 192”.
E assim aconteceu, conseguiram trabalho em uma propriedade, hoje localizada próxima aos
bairros Maria Pinheiro, Vale do Sol e Fonseca, que nesta época eram propriedades rurais,
cacauicultoras e integravam a zona rural do município.
Foi o conflito motivador para que a família se fixasse em Itabuna? Ou a possibilidade
de continuar na labuta com as roças? A confusão que seu Esmeraldo expõe na narrativa e não
191
192
Ibidem.
Ibidem.
96
explica em detalhes se configurou em uma motivação. Alguém pode ter tentado contra a vida
da família. Talvez o proprietário tenha se aborrecido com as reclamações da família, que
certamente, não aceitou a destruição das plantações e tenha ameaçado o pai de seu Esmeraldo.
E assim, chegou-se à conclusão que se mudar de lá seria a melhor coisa a fazer.
Seu Esmeraldo disse que na propriedade em Itabuna a vida era “tranquila”, não
passaram necessidade por lá. Ele e sua família tinham direito a plantar roças de subsistência,
tornando com isso a mesa farta; no entanto, a vida talvez não fosse tão boa, pois
permaneceram apenas quatro anos e depois migraram para São Paulo.
Migrante da própria zona rural de Itabuna, seu Talmon, hoje com 74 anos, está
aposentado. Trabalhou durante a infância e a juventude com a família em propriedades
cacauicultoras. Ele demonstrou muito interesse pela entrevista, ficou animado, queria “contar”
sua história, mas privou-se de falar do “tempo da roça”. Sempre que perguntei sobre sua vida
na roça ele caracterizava este tempo com adjetivos negativos e retornava para o “tempo da
cidade”. Abaixo ele descreve, com poucas palavras, sua vida na roça: “(...) cê sabe quem
trabalha na roça a vida é horrível, não tem condição nenhuma (...) quando você trabalha em
fazenda a propriedade é do outro, não é sua, a propriedade é do outro (...) sua vida é
mixuruca”193.
O depoimento remete à insatisfação de trabalhar em uma terra que não lhe pertencia.
Seu Talmon repetiu a expressão “propriedade é do outro” na intenção de enfatizar as relações
de poder que permeavam o trabalho nas lavouras de cacau. Diferente de seu Valcir e de dona
Raimunda que significam o “tempo da roça”, como um tempo bom, quando a vida era boa.
A memória de seu Talmon não segue esse caminho, o “tempo da roça” nas suas
lembranças emana como um tempo de exploração, de escassez, no qual a vida era mixuruca.
Um tempo em que a família fora humilhada e explorada pelos donos das terras. Lembranças
que se assemelham aos significados compostos pela família Pinto acerca do “tempo da roça”.
No final da entrevista, quando compara sua vida na roça com a vida na cidade, seu Talmon
deixa claro sua preferência pela cidade.
Afirmando que na roça o que ele ganhava “não dava nem pra comer 194”.
Expressando, dessa forma, as dificuldades do trabalho alugado, dificuldade até para conseguir
o alimento. Não plantavam porque o patrão não permitia e nunca possuíram o próprio
“pedaço de terra”.
193
Mixuruca segunda o dicionário da língua portuguesa é insignificante, de má qualidade. In: Depoimento de seu
Talmon Soares Santos, entrevistado no dia 30 de agosto de 2009.
194
Talmon Soares Santos. Entrevista citada.
97
Ao afirmar que “na roça a vida é horrível (...) vida é mixuruca” 195, seu Talmon
expressa, através destes adjetivos, seu sentimento em torno do cotidiano na roça. Um
ressentimento com a exploração dos proprietários rurais. Quando diz que não tinha “condição
nenhuma”, ele transmite não só as necessidades de sobrevivência (alimentação, vestuário,
lazer), mas também a condição de estudar, adquirir outros conhecimentos que fossem além do
labor na roça de cacau, ele queria projetar um futuro além do trabalho nas “roças dos
outros”196.
Seu Talmon migrou para a cidade de Itabuna no início da década de 1960, em busca
destas expectativas “fugindo” assim da exploração dos cacauicultores. Na cidade, encontrou
um trabalho na CEPLAC197, onde, utilizando seu conhecimento rural e da mata atlântica, foi
integrado à área da botânica. Neste setor, caminhou na identificação da flora da mata
atlântica. Então, ele diz com orgulho: “aí eu entrei na CEPLAC, trabalhando no campo, aí
comecei a minha vida, fui melhorando os meus conhecimentos”198.
Narrativa que relaciona sua entrada na CEPLAC com o começo de sua vida,
revelando que sua vivência nas lavouras cacaueiras não representava uma vida. Para ele, a
vida se inicia quando há uma perspectiva de futuro, criada com seus novos conhecimentos:
“foi aí que eu comecei a minha vida, porque eu não tive condição de estudar, por causa do
trabalho pesado, trabalhava dia e noite, mas também comecei a desenvolver minha mente
nessa área da botânica”199. Depoimento que também revela a intrínseca relação do trabalhovida presente na memória de alguns migrantes, o trabalho na CEPLAC significou a vida de
seu Talmon.
Seu Talmon não se adaptou ou não se conformou àquela realidade de subordinação.
Assim como à família Pinto, se recusou a permanecer humilhado pela relação de exploração
emitida pelos proprietários rurais. Ele migrou em busca de melhores condições de vida,
burlando a exploração e a humilhação. Ao tempo em que projetou seu futuro reelaborando
experiências e expectativas200 na cidade de Itabuna.
Alguns migrantes que trabalhavam em terras de outrem, sob relação de meia e/ou
alugado expressam um “tempo da roça” carregado de conflitos e exploração dos proprietários.
O ato de rememorar, traz à tona ressentimentos deste passado rural, construindo significados
195
Ibidem.
Expressão citada anteriormente, presente no depoimento de seu Talmon.
197
Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira.
198
Talmon Soares Santos. Entrevista citada.
199
Ibidem.
200
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Encantos e desencantos da cidade: trajetórias, cultura e memória de
trabalhadores pobres de Uberlândia – 1970-2000. In: FENELON, Déa Ribeiro; MACIEL, Laura Antunes, et. al
(Orgs.), op. cit., p. 144.
196
98
de “dificuldade”, “exploração” e “humilhação”. Talvez estes significados tenham sido
produzidos pelas experiências do presente, sendo que na atualidade estes migrantes convivam
com realidades menos hostis. Ou também se relacione com as conquistas do “tempo da
cidade”, onde alguns efetivaram seus desejos, conseguiram uma casa própria, um emprego ou
ampliaram seus conhecimentos. Pode ser que os ressentimentos do “tempo da roça” sejam tão
fortes que não dão espaço para lembranças de um “tempo de fartura”.
Neste capítulo, percebemos as diferentes percepções do passado no vai e vem da
memória. Esta, para alguns, constrói lembranças de um “tempo de fartura”, e, para outros, um
“tempo de dificuldade”. Assim, a temporalidade da roça não é vista sob a mesma perspectiva
pelos migrantes. Esta diversidade se deve à inúmeras razões, suas condições atuais de vida, as
motivações quando migraram para a cidade, a relação que tinham com a posse da terra, e para
alguns, a relação que tinham com seus patrões. Enfim, os significados do “tempo da roça”
estão emaranhados ao “tempo da cidade”.
99
4 O TEMPO DA CIDADE: TRAJETÓRIAS E VIVÊNCIAS
4.1 “EU VIM REALMENTE PRA VÊ SE EU MELHORAVA DE VIDA”
Os primeiros migrantes que chegaram à região sul da Bahia buscaram “terras virgens
e ricas201” e muitos conseguiram efetivar suas expectativas formando grandes propriedades
cacauicultoras. Estes foram retratados pela escrita memorialística e escrita ficcional202 como
os “desbravadores da região sul que lutaram contra epidemias, feras e índios selvagens”203, os
quais, ao lado dos descendentes dos colonizadores constituíram o poder local desta região.
Outros migrantes, advindos do nordeste e de outras regiões da Bahia, chegaram ao
sul da Bahia em meados do século XX, buscando terras inexploradas. Segundo Marcelo
Lins,204 estes foram atraídos por propagandas ilusórias do governo, que compreendiam
estratégias das elites, apoiadas pelo poder estatal, para fortalecer as relações de dominação e
atrair trabalhadores para compor uma mão de obra barata.
Os migrantes da década de 1980 foram retratados pela imprensa itabunense 205 como
“retirantes”, pessoas pobres advindas de regiões afetadas pela seca. Santana206 ressalta a
importância de problematizarmos as migrações, no sentido de não homogeneizar os
processos, para não difundirmos o “tripé seca-exploração-migração”. O autor ainda lembra
que a literatura fictícia foi uma grande disseminadora dessa imagem da migração207.
Perguntas emanam em meio a esta discussão: os migrantes que chegaram a Itabuna
na década de 1980 eram “retirantes”? Quem eram estes migrantes? Não quero negar que
muitos nordestinos saíram do sertão em busca de melhores condições de vida, para diversos
pontos do Brasil, como a própria historiografia retratou, pois, estas migrações foram objetos
de estudo de distintas pesquisas208.
201
FREITAS; PARAISO, op. cit., p. 85.
Lembrando da literatura que também retratou os primeiros migrantes como “desbravadores”. In: AMADO,
Jorge. FILHO, Adonias.
203
SILVEIRA, Adelindo Kfoury, op. cit.
204
Ibidem.
205
A imprensa neste caso é representada pelo Diário de Itabuna, fonte de pesquisa desta dissertação. In:
“Retirantes chegam a Itabuna”. Diário de Itabuna. 25 jan. de 1983. Ano XXVI. Nº 5.039, p. 1. APMI.
206
SANTANA, Charles D’Almeida, op. cit., 1998, p. 108.
207
Santana cita algumas das obras que reproduziram esta imagem: Os Quinze de Rachel de Queiroz, Vidas
Secas de Graciliano Ramos e Seara Vermelha de Jorge Amado. In: Ibidem.
208
Entre muitas obras: DURHAN, Eunice R, op. cit.; ESTRELA, Ely Souza. Os sampauleiros: cotidiano e
representações. São Paulo: FAPESP, EDUC, 2003. SOUZA, João Carlos de. Na luta por habitação: a
construção de novos valores. São Paulo: Educ, 1995.; SANTOS, Daniel Francisco dos. Experiências de
202
100
A preocupação aqui é problematizar a chegada de migrantes a Itabuna na década de
1980, compreendendo quem eram estes migrantes e por que escolheram Itabuna como
destino. Talvez a imprensa utilizasse a chegada de “retirantes” para anular os demais
processos migratórios, que também se faziam presentes em Itabuna, na década de 1980, a
exemplo da migração de trabalhadores rurais de diversas zonas rurais da região sul da Bahia e
de regiões circunvizinhas.
Na intenção de “romper com o anonimato e a impessoalidade que o termo migrante
impõe”209, esta pesquisa propõe analisar as múltiplas trajetórias e expectativas destes
trabalhadores rurais quando decidiram migrar para Itabuna. Estas motivações são distintas em
cada trajetória, porém, encontramos um ponto de convergência, a busca por melhores
condições de vida, que, aliás, perpassa o trabalho, a moradia, a assistência médica, a educação
dos filhos e a preocupação com o bem estar da família.
Seu Talmon, migrante da própria zona rural de Itabuna, expressa às razões da sua
migração. Lembrando as expectativas que a vida no campo lhe oferecia e contrapondo-as com
as possibilidades que encontrou na cidade:
Eu vim realmente pra vê se eu melhorava de vida, pra vê se eu melhorava de
vida, eu não tinha expectativa nenhuma, pra vê se eu melhorava de vida,
aqui eu passei onze meses horrível. Foi como eu te falei, foi quando um tio
meu que já morreu, aí agente conversando, ele tinha um amigo na CEPLAC,
ele conversou com o amigo e disse: – Mande ele lá. Aí eu fui, aí eu me
empreguei na CEPLAC.210
A narrativa denota a busca por melhorias, sendo que seu Talmon fez questão de
repetir por três vezes a expressão “pra vê se eu melhorava de vida”, enfatizando esta busca.
Esta ênfase indica a denominação deste subcapítulo. Quando diz que não tinha expectativa
nenhuma, ele se refere à vida na roça, onde por muitas vezes foi trabalhador alugado. Para ele,
aquela condição de trabalho limitava suas possibilidades de melhorias, fosse às relações de
trabalho, fosse à expectativa de adquirir novos conhecimentos.
Seu Talmon lembra-se também que não alcançou rapidamente as melhorias que tanto
buscou, pois viveu momentos difíceis na cidade de Itabuna. Desempregado e tendo
experiências apenas no trabalho rural, não conseguiu opções no trabalho urbano. Desta
forma, buscou na informalidade, ou nos “bicos” a sobrevivência da sua família que migrou ao
seu lado211. As expectativas que levou seu Talmon a Itabuna, só se concretizaram, segundo
migração de trabalhadores nordestinos – Rondônia, 1970-1995. Salvador: EGBA, 2003.
209
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz, op. cit., p. 97.
210
Talmon Soares Santos, entrevista citada.
211
Francisco Nascimento e Regianne Monte quando trataram da migração de trabalhadores rurais para Teresina
ressaltaram que a inexperiência dos migrantes em serviços urbanos os leva ao mercado informal. In:
101
ele, quando conseguiu um emprego de carteira assinada na CEPLAC. Como citado no
capítulo anterior, nesta instituição ele entrou na área da botânica e mesmo sem uma educação
formal ampliou seus conhecimentos neste ramo.
Na oportunidade, também reutilizou seus conhecimentos rurais. As andanças em
mata fechada e o contato com muitas espécies da Mata Atlântica o levaram ao exímio trabalho
de campo nas matas do sul da Bahia. Itabuna foi o “paradeiro” de seu Talmon, diferente de
muitos entrevistados, sua trajetória não foi carregada de mobilidade espacial. Talvez porque
as expectativas que ele construiu durante o processo migratório foram encontradas na cidade
de Itabuna.
As trajetórias de muitos migrantes são carregadas de mobilidade espacial, tanto nas
áreas rurais, quanto nas urbanas. Como a trajetória de seu Esmeraldo que perpassou por
muitos lugares em busca de melhores condições de vida. Imbricadas a estas trajetórias se
situam também as perspectivas sobre as vivências na cidade, onde alguns demonstram a
preferência pelo campo enquanto outros optam pela cidade.
Dona Margarida e seu Esmeraldo, assim como seu Talmon, chegaram a Itabuna na
década de 60. Ali permaneceram por sete anos, diferente de seu Talmon, não vieram para a
zona urbana. À princípio, foi morar e trabalhar em uma propriedade rural, hoje localizada
próxima ao bairro Maria Pinheiro, este possivelmente, nesta época, ainda integrado à zona
rural da cidade. Como narra seu Esmeraldo:
Esmeraldo: Eu fui trabalhar em Buerarema lá eu me amarrei, me casei,
depois deu casado vim morar aqui, ali em cima na Bela Vista, agente criava
galinha e trabalhava com roça. Eu vim morar ali, onde nasceu a minha
menina mais velha, foi lá em cima naquela fazenda (...) esses coqueiro que
tem aí nós plantamo no dia em que ela nasceu é da idade dela. (...).212
Seu Esmeraldo percorreu muitos caminhos em busca de melhoria de vida; muitos
destes caminhos, ele acompanhava o seu pai. Depois que casou com dona Margarida resolveu
se fixar na zona rural de Itabuna, pois seus pais já moravam e trabalhavam na fazenda Bela
Vista, onde se juntou a eles. No entanto, por alguns motivos, esta fazenda não foi o seu
“paradeiro”. Ao contrário de seu Talmon, a trajetória de seu Esmeraldo foi carregada de
mobilidade, tanto na área rural, quanto na urbana. A mobilidade espacial estava imbricada às
relações de trabalho, perpassando por atividades rurais, em sítios, fazendas cacauicultoras, e
serviços urbanos, como ajudante de pedreiro e metalúrgico.
NASCIMENTO, Francisco Alcides; MONTE, Regianni Lima. Olhares da periferia: os migrantes na construção
de Teresina na década de 1970. In: Tempo e Argumento. Florianópolis, v.1, n.2. jul/dez de 2009. p. 134.
212
Esmeraldo Ferreira França, entrevista citada.
102
Talvez o trabalho na zona rural de Itabuna não deu para cobrir a necessidade das
famílias, pois o núcleo familiar de seu Esmeraldo ganhou um novo membro, a primeira filha
do casal. Sendo o nascimento associado ao plantio dos coqueiros no alto da propriedade, da
porta da casa de seu Esmeraldo, no bairro Fonseca, avistamos os coqueirais. Assim, tanto o
nascimento quanto o plantio podem ser considerados marcos da temporalidade presentes na
memória de seu Esmeraldo.
O que também nos leva à própria forma como ele dá significação ao tempo. Não fala
de um tempo cronológico, mas de um tempo expresso em símbolos. O nascimento do
primeiro filho é sempre um marco na história de uma família, o plantio de coqueiros, também
um nascimento pode significar um novo ciclo de cultivo. Coqueiros que até hoje simbolizam
o crescimento da sua família.
Seu Esmeraldo, então “ganhou a estrada”, desta vez sozinho, deixando mulher e a
filha na companhia dos pais, foi para Eunapólis, dando continuidade a suas “caminhadas”.
Nesta localidade, adoeceu e decidiu retornar a sua casa, pois não confiou nos medicamentos
receitados pelo médico. A trajetória de seu Esmeraldo é carregada de idas e vindas que se
confundem no emaranhado da sua memória.
Por inúmeras vezes, durante a entrevista, ele interrompeu sua narrativa e ficou em
silêncio tentando ativar a memória e lembrar quais caminhos percorreu. Então percebemos
que a memória não segue cronologias, e sim significações construídas pelos entrevistados. E
também que a trajetória de seu Esmeraldo foi bastante diversificada: Eunapólis, ainda na
Bahia, Vitória, Goiás, Salvador e São Paulo.
A família de seu Esmeraldo está entre outras tantas famílias baianas e nordestinas,
que decidiram buscar novas expectativas no estado de São Paulo. Entre as décadas de 40 a
60, a Bahia foi um dos principais estados nordestinos emissores de trabalhadores para compor
a mão de obra paulista213. João Souza214 ressalta que muitos nordestinos que chegaram a São
Paulo eram originários do campo, e assim tinham experiências de trabalho rural. Nesse
aspecto, com pouca qualificação, muitos eram cooptados por empregos temporários.
O autor que retratou as experiências de luta por moradias de migrantes em São Paulo,
fez ressalvas também à permanência de alguns dos entrevistados em metalúrgicas 215. Foi o
caso de seu Esmeraldo que conseguiu um emprego de carteira assinada em uma metalúrgica,
213
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Dinâmica sociodemográfica da Bahia: 19802000 v. 2. Série Estudos e Pesquisas Nº 60, Salvador, SEI, 2003. p. 35.
214
SOUZA, João Carlos de, op. cit., p. 42.
215
Ibidem, p. 41.
103
mas depois de algum tempo perdeu o emprego, época que coincidiu com o falecimento de seu
pai, fatores decisivos para fazê-lo voltar a Itabuna, como ele expressa na narrativa abaixo:
Priscila: Por que vocês vieram de São Paulo?
Esmeraldo: (…) eu fui pra lá por causa do meu pai, eu nunca gostei de São
Paulo, eu fui pra lá por causa de meu pai. Eu trabalhava, mas não gostava de
lá. (…) Meu pai morreu de repente e eu tinha saído do emprego, aí eu falei: Vou aproveitar e vou me borá. Aí eu vendi o barraco que eu tinha comprado
por 40 conto, vende guarda-roupa, vende armário, vendemo um bocado de
coisa e viemo embora.216
Quando foi para São Paulo, levou a esposa e filha, pois seus pais já tinham partido
para o sudeste do país. Ele deixa claro que só foi para São Paulo para acompanhar o pai,
repete por várias vezes que foi por causa do pai. Mesmo trabalhando em metalúrgicas, ele não
gostava de São Paulo, assim quando seu pai faleceu retornou a Itabuna, no final da década de
70. Seu Esmeraldo já havia construído uma vivência em São Paulo até mesmo tinha
comprado um “barraco”. No entanto, o sentimento da perda do genitor, falou mais alto, se ele
foi a São Paulo para ficar ao lado do pai, nada mais tinha sentido depois da sua partida. E
assim uniu a vontade de ir embora de São Paulo ao falecimento do seu pai, e à perda do
emprego.
Seu Esmeraldo não compreendeu porque seu pai, um homem ligado ao campo, que
gostava tanto de roça, resolveu ir para São Paulo; mesmo assim, seu Esmeraldo decidiu
acompanhá-lo. Ele também era muito acostumado à lida rural, mas suas “caminhadas” por
diversas cidades mudou sua visão sobre a roça, tanto que, no início da entrevista, ele se recusa
a rememorar o “tempo da roça”, talvez o cotidiano citadino já havia persuadido seu
Esmeraldo.
Entretanto, ele fez questão de ressaltar que de São Paulo não gostava, mas algo lhe
atraía, talvez as oportunidades de trabalho, pois, boa parte da sua vida foi dedicada ao
trabalho em metalúrgicas neste mesmo estado. Seu Esmeraldo fixou sua família em Itabuna
quando retornou à Bahia, no bairro Maria Pinheiro, onde construiu um “barraco” e lá viveram
por vinte anos. Acontece que ele não encontrou trabalho naquela região, e assim enveredou
nas idas e vindas, trabalhando em metalúrgicas em São Paulo e visitando a família em
Itabuna. Ele é um migrante em constante processo de mudança217.
O retorno de parte da família de seu Esmeraldo, pois ainda ficaram irmãos por lá,
também é significativo na dinâmica demográfica da Bahia. Entre as 288.858 pessoas que
216
Esmeraldo Ferreira França, entrevista citada.
GUERRA, Yaponira Machado Barbachan. O espaço dos sem espaço: estudo de caso de representações
sociais de migrantes de classes subalternas no Recife. Recife: Editora Massangana, 1993, p.33.
217
104
chegaram à Bahia entre as décadas de 70 e 80, destas, 99.782 eram naturais da Bahia218, ou
seja, trabalhadores que retornam ao seu estado de origem.
Na década de 60, seu Talmon conseguiu um emprego na CEPLAC, na mesma época
o casal Margarida e Esmeraldo trabalhou na zona rural do município. Me questiono: por que
não havia trabalho na zona urbana de Itabuna, ou não estavam qualificados para serviços
urbanos?
Dona Marinalva, que migrou na década de 70 para Itabuna, vinda de propriedades
rurais de Uruçuca, já veio com o trabalho de doméstica certo, como ela nos narra:
Deu vontade de eu vim embora, agente vivi na cidade até quando dá
vontade. Eu tava cansada de trabalhar nas roças dos outros. Eu nasci aqui,
sai daqui com três mês, não conhecia Itabuna. Quando eu vim foi trabalhar
com uma família, eu pensava em me dar bem, eu vim pro trabalho pra me
dar bem. Eu não conhecia Itabuna, nem a rua, nem nada não, fui conhecer
quando eu tava trabalhando. Mas era tudo mais fácil do que roça dos
outros.219
Apesar de dona Marinalva ter nascido em Itabuna, ela só se estabeleceu na cidade
depois de viver em muitas roças, nos distritos de Camacã e Uruçuca. Depois do cansaço de
trabalhar em propriedades alheias, ela conseguiu um trabalho de doméstica na casa de uma
família em Itabuna. Migração que trouxe novos conhecimentos à dona Marinalva, assim ela
conheceu a cidade, a “rua”, que certamente expressa o comércio de Itabuna.
Mesmo sem conhecer a cidade, sem saber se locomover, e mesmo sem ter tido
experiência no trabalho no lar de outrem, dona Marinalva achou tudo mais fácil. A facilidade
referida emana da comparação da cidade com o campo, mas também do trabalho nas roças
dos outros com o trabalho no lar de outros.
Nas duas formas de trabalho ela estava subordinada ao proprietário, fosse da roça ou
da casa. No entanto, a cidade e o trabalho doméstico ganham,
na percepção de dona
Marinalva. Talvez porque exprimissem novidades de conhecimentos, de outras relações
trabalhistas. Enfim, ela foi para Itabuna porque estava cansada de “trabalhar nas roças dos
outros”. Todavia, em outro momento, quando narra as dificuldades encontradas no bairro
Maria Pinheiro, ela expressa saudades pela “fartura” da alimentação na roça.
No início da narrativa, ela diz que as pessoas permanecem na “cidade” até quando se
sentem motivadas. Ela fala em “cidade” se referindo a Uruçuca. Apesar de morar na zona
rural deste município, ela frequentava a cidade nos fins de semana para participar das feiras e
realizar compras. Tal fato demonstra a fragilidade das fronteiras entre o campo e a cidade nos
218
219
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2003, op. cit., p. 36.
Marinalva Fernandes, entrevistada citada.
105
pequenos municípios. Aqueles também onde a área rural é maior comparada à urbana, como é
o caso de Uruçuca.
Alguns migrantes sinalizam outras motivações na escolha de Itabuna como um
espaço de sobrevivência, entre às quais não compreendem busca por trabalho. Seu Delfino,
que migrou com a família na década de 1980, expressou as possibilidades de assistência
médica e moradia:
Aqui é bom viu patroa, pessoa que adoece vem praqui, pessoa de Itapetinga
vem praqui, pessoa de Itambém se adoece vem praqui, de Santa Luzia
adoece vem tudo praqui. Se eu não tivesse aqui em Itabuna, não tinha mais
nós, porque eu vim praqui doente, me operei duas vez (...) se não minha
senhora eu já tava debaixo de terra. Eu vou falar daqui? Aqui é bom, foi
onde eu pude fazer meu rancho, pra eu ficar debaixo, eu e minha mulher.220
As percepções da cidade e da migração estão entrelaçadas pela memória que segue o
fio condutor do presente. Neste momento atual, seu Delfino, já nos seus 86 anos de idade,
necessita de uma assistência médica próxima à sua residência. Ele lembra que migrou doente
para Itabuna, onde pode realizar cirurgias para alcançar as melhorias de saúde que buscava.
Para seu Delfino, Itabuna representa um centro de assistência médica 221, onde
pessoas de cidades circunvizinhas encontram possibilidades de atendimento médico. Ele cita
até mesmo cidades de outra região, como Itambé e Itapetinga que pertencem à região sudoeste
da Bahia ou de Vitória da Conquista. Região que abriga também o local de nascimento da
família de seu Delfino, distritos de Iguaí. Talvez lembre estas cidades, por ter conhecidos
próximos, ou parentes que tenham aproveitado os serviços médicos de Itabuna.
Outro ponto relevante da narrativa, compreende a conquista por seu Delfino de sua
moradia, ou como ele mesmo diz, do seu “rancho”. Uma casa no bairro Maria Pinheiro, de
dois andares que ainda necessita de reparos, piso e pintura. Uma casa por terminar, mas que
seu Delfino sente orgulho, quando enfatiza aumentando o tom da voz, no momento que diz
“onde eu pude fazer meu rancho”. Assim, a migração para Itabuna também representa nas
lembranças de seu Delfino, a conquista da casa própria.
O filho de dona Raimunda, Jorge, também nos aponta a possibilidade de ter uma
moradia como uma das razões da migração da família:
Foi o seguinte nós deixamos ele lá e vinhemo para Itabuna. Eu e meu irmão
nós vinhemo trabalhar aqui, lá na Mangabinha, e nós ficamo tipo escravo
nesse lugar, faziamo lanche. Acordavamo três hora da manhã pra fazer
220
Adelfino Martins Vieira, entrevista citada.
Itabuna contava com dois hospitais de assistência do SUS, hoje apenas um, o Hospital de Base, pois a Santa
Casa de Misericórdia atualmente presta apenas serviços privados.
221
106
lanche, entregar, vender ao mesmo tempo. Nós saindo assim nós já tinha um
pouco de conhecimento da cidade, nós não queria mais voltar pra roça. Aí
foi quando meu pai conseguiu esse lote aqui, aí nós juntamo nós três pra
fazer, pra construir, aí foi quando minha mãe veio praqui e nós continuamo a
vida né. Chegou um ponto que nós não queria mais ficar na roça, não tinha
possibilidade da gente crescer na agricultura, né. Nós queria estudar,
aprender uma cultura, crescer. Porque na roça ninguém cresce, só mesmo os
dono, os trabalhador não cresce, só pros proprietário mesmo que é os dono
que pode crescer, mas agente não cresce na roça. Então eu achei que na
cidade tinha mais possibilidade da gente crescer. Como agente vai ensinar os
filho, oportunidade de escola é melhor, emprego é melhor, aí sim vale né.222
Primeiro Jorge fala que veio pela necessidade de conseguir trabalho, ele e o irmão.
Mas, o sonho do trabalho se tornou um pesadelo, pois era do “tipo escravo”. Uma casa de
família que vendia lanches, onde tinham a responsabilidade de preparar, entregar e vender o
lanche. Em troca recebiam casa e alimentação, mas sem remuneração, por isso um trabalho
escravo.
No entanto, durante as tarefas realizadas, os irmãos puderam conhecer a cidade e
aprenderam a gostar dela. Saíram do trabalho “escravo” e procuraram bicos de ajudante de
pedreiro para sobreviver, estes não muito diferentes do “escravo”, pelas remunerações
irrisórias.
Na perspectiva de Jorge, a cidade apresentava mais alternativas de crescimento,
quando comparada com a roça. Reconhece que na roça eles trabalhavam para outros,
enriqueciam outros e nada conquistavam. Eles queriam estudar, “aprender uma cultura”. Na
visão dele, cultura é o que oferece a ONG Encantarte com aulas gratuitas de dança afro,
capoeira e percussão no bairro Maria Pinheiro e bairros circunvizinhos.
Jorge participou do início das discussões, quando alguns jovens pensavam em fundar
um movimento que resgatasse outros jovens das drogas e da prostituição223. Não presenciou a
oficialização do grupo no ano 2000, pois já morava em São Paulo há quatro anos, mas pelo
visto os encontros e conversas influenciaram suas idéias.
As oportunidades de melhorias em suas vidas vão desde emprego, perpassando pela
escola e chegando à conquista da moradia própria. Essa visão ele ensina aos seus filhos.
Quando Jorge e o irmão decidiram permanecer em Itabuna, seu pai procurou um meio de não
separar a família, já que ele e dona Raimunda estavam em Buerarema.
Certamente, foi no mesmo período que se encontrava os desabrigados da enchente no
estádio municipal, pois, muitos destes desabrigados, os migrantes, trabalhadores rurais,
222
Jorge Pedro dos Santos, entrevista citada.
GLORIA, Priscila Santos. Encantarte: uma análise histórica. Ilhéus, 2007. 55f. Monografia (Graduação em
História). Universidade Estadual de Santa Cruz.
223
107
receberam lotes da fazenda Gaúcha, localizada na zona rural de Itabuna, até então, e que mais
tarde se tornou o bairro Maria Pinheiro.
A família aparece nos depoimentos como um elo, durante a migração. Os
trabalhadores migram porque querem estar próximos de seus familiares ou porque
constituíram novos núcleos. Ou até mesmo para buscarem a sobrevivência dos seus pares. As
mulheres também expressam o sentimento de união, de tentar manter os membros juntos.
Assim, elas migram para acompanhar seus filhos e seus maridos, na tentativa de não dispersar
a sua família, para impedir que um vá para um canto e outros busquem destinos diferentes.
Dona Dora, quando fala da migração, ao deixar São José do Colônia, e ir para
Itabuna, expressa a vontade de estar perto da filha:
Essa menina minha já morava aqui, então eu vim mais também por ela,
porque o marido dela era muito cachaceiro e só queria matar ela, ela vivia
corrida dormindo nas casas dos outros. Eu digo: – Eu vou para Itabuna, que
na hora que Dio tiver doido ela vai pra minha casa, dormir comigo e assim
foi. De tanta cachaçada ele morreu, deram uma surra nele e mataram, não
chegou a morrer na hora não, acho que morreu depois.224
Dona Dora foi para Itabuna não apenas para unir sua família, mas também para
proteger a sua filha de um esposo “beberrão” e violento. Ela não podia permitir, por melhor
que fosse a boa vontade dos vizinhos, que a filha ficasse desabrigada, dormindo na casa de
um e outro. Dona Dora queria ela mesma cuidar da filha, lhe dando abrigo em sua casa. E, de
acordo com o depoimento dela, assim aconteceu, a família foi morar em Itabuna, no mesmo
bairro da filha, o Maria Pinheiro.
Migraram o casal, dona Dora e seu Delfino, com os três filhos homens. Quando a
filha passou dificuldades, a família estava ali unida para protegê-la, até quando o esposo
“beberrão” faleceu. Apesar dos problemas causados por ele, dona Dora recorda seu
falecimento com tristeza. Olhou para sua neta, uma das filhas do genro falecido, que estava
presente na casa de dona Dora no momento da entrevista, com uma expressão facial muito
triste. Talvez por que mesmo tendo fim os problemas causados, não pelo genro diretamente,
mas pela “cachaça”, sucederam-se novos problemas. Um dos, foi o fato de os netos irem
crescendo sem a presença do pai.
Seu Delfino, esposo de dona Dora, não recorda esta motivação da migração. Ele
lembra uma enchente que houve em São José do Colônia como razão maior da partida para
Itabuna. Uma grande enchente, como lembrou seu Delfino:
224
Teodora Pacheco Pinto, entrevistada citada.
108
Eu tô aqui é corrido de enchente que o comércio o rio invadiu que os carro
de Itororó ficaram tudo escorado de pedra assim oh (...) Essa enchente que
teve lá em São José do Colônia, foi enchente braba, deixei as porta da minha
casa tudo aberta, ia descendo uns madeirão deste tamanho de o pessoal fazer
barraco. Ia descendo uma vaca parida na enchente dentro do comércio,
tiraram o bezerrozinho, laçaram e tiraram pra fora, e a vaca foi morrer sabe
daqui aonde? Daqui ao São Caetano, viu? Se não fosse mais longe. Essa
enchente braba que teve lá que eu corri praqui. Aqui não tem nenhum rio, só
tem o rio de cá pra baixo (risos) e ele não vem aqui né não?225
A enchente foi narrada várias vezes por seu Delfino durante a entrevista, expressando
certa significância deste incidente na sua trajetória. Foi algo que marcou a vida da sua família;
a enchente, portanto, simboliza a mudança para Itabuna. Uma enchente que virou os carros,
que levou pedaços grandes de madeiras e levou, até mesmo, uma “vaca parida”.
Símbolos transcritos na memória de seu Delfino, como o bezerro que sobreviveu e a
morte da vaca. Ele até compara a distância que a vaca percorreu até morrer, considerando a
distância da sua casa, no Maria Pinheiro, ao bairro São Caetano. Entre risadas e com
segurança, expressa que em Itabuna não corre risco de ser afligido com uma enchente. Apesar
de o rio Cachoeira cortar a cidade de Itabuna, seu Delfino se sente protegido, pois mora em
um dos pontos mais altos da cidade226. Um dos filhos do casal, seu José, também recorda a
enchente como causa da migração. Porém, levanta também o contexto rural em que viviam
como motivação para a mudança para Itabuna:
Trabalhei um pouco na roça, arranjei pouco na roça, porque na roça é ruim,
eu mesmo não gosto da roça. Em São José do Colônia, era uma região muito
fraquinha, nós não conseguimo nada lá, e de lá nós viemos pra aqui. Nós
decidimos vim pra Itabuna porque minha mãe é muito medrosa, entendeu? E
lá uma região fraca. Além disso tudo, tinha um rio que quando dava
enchente alagava a cidade. (...) Aí foi o quê aconteceu, nós vendeu a casa lá
e vinhemo pra aqui.227
Quando fala da roça, a caracteriza com os advérbios pouco e nada. O trabalho na
roça “pouco” possibilitou à família de seu José uma vida digna. Quanto à região, a
característica marcante é uma região “fraquinha”.
No primeiro capítulo discutimos as
lembranças da família Pinto acerca do “tempo da roça”. Lembranças que emanaram relações
de trabalho conflituosas, como o trabalho de meia e a exploração exercida pelo cacauicultor.
Além da insubordinação dele e de sua família, quando se recusaram a permanência do
225
Adelfino Martins Vieira, entrevista citada.
Segundo a Prefeitura Municipal de Itabuna o bairro Maria Pinheiro era o ponto mais alto da cidade. Isto, em
1996, quando foram produzidas algumas estatísticas da cidade. Hoje, já existe um novo bairro acima do Maria
Pinheiro, o Vale do Sol. In: ITABUNA. Prefeitura Municipal. Itabuna em números. Itabuna: CGAE, 1996.
227
José Pinto Vieira, entrevista citada.
226
109
trabalho de meia e da exploração acarretada por este. Será que partindo dessas lembranças seu
José levanta estas características para o local de origem da sua família? Se nada conseguiram
por lá, por que continuariam naquela região depois de perder tudo na enchente?
Seu José, em nenhum momento da entrevista, lembra a irmã que morava em Itabuna,
e nem mesmo seu Delfino, o pai. Eles não colocam em suas narrativas as vivências da filha
em Itabuna como um dos motivos da migração. Embora ambos lembrem a enchente. Seu
Delfino lembra o que ocorreu no comércio, os carros, a vaca, o bezerro. Seu José concentra
sua narrativa nas poucas possibilidades da vida rural. Percebemos em seu José um
“descontentamento228” com as condições de vida em São José do Colônia.
No entanto, nada falam sobre a filha e/ou a irmã que atravessava momentos difíceis,
em Itabuna. Para seu José, sua mãe, dona Dora, decidiu abandonar o local de origem pelo
medo de uma nova enchente. Dona Dora concorda que a enchente foi uma das causas, quando
seu esposo narra os acontecimentos, porém ela diz que foi para Itabuna “mais” pela filha.
Uma nova enchente a assombrava, mas os problemas da filha foram decisivos na partida da
família.
Diferente da família de dona Margarida, onde o esposo decidia o momento de
migrar, e ela aceitava. A família de dona Dora foi guiada por ela, que talvez tenha
“aproveitado” a enchente para ir a Itabuna cuidar e proteger uma das suas crias. Claro que a
enchente também fez com que o esposo, seu Delfino, aceitasse bem a migração. E para seu
José o que contou mesmo foi “largar de mão” uma região “fraquinha” e partir na busca de
melhorias para a família.
As mulheres são as que mais compõem a trajetória da família229. E também colocam
esta ligação como motivação da migração. Mas, não são as únicas, os homens também elegem
a família como um dos motivos dos deslocamentos. Como seu Edivaldo, mais conhecido
como seu Edinho, que reside por muitos anos no bairro Maria Pinheiro.
Seu Edinho nasceu em Itapé, na época distrito de Itabuna, mas com seis anos foi
levado pelo pai para Macarani, na região sudeste da Bahia. Nesta migração a família dele se
separou, ficaram a mãe e alguns irmãos em Itapé. E ele, o pai e outro irmão se deslocaram
para Macarani, devido às condições de seca na região. Em Macarani o seu pai faleceu, e mais
uma parte da família se desintegrou, ele foi criado por uma senhora, e o irmão por outra
família. Assim, ele nunca mais encontrou o irmão, mas tem esperanças, já que atualmente
planeja percorrer a região de Macarani no intuito de encontrá-lo.
228
229
ESTRELA, op. cit., p. 58.
Michelle Perrot ressalta que a mulher “é a guardiã da memória da família”. In: PERROT, op. cit., p. 112.
110
Após quinze anos, segundo seu Edinho, ele retornou à região sul da Bahia para
reencontrar parte da sua família. Veio guiado por um endereço cedido por uma tia que migrou
com ele, o irmão e o pai, e ainda vivia em Macarani. Retornou a Itapé na década de 1970,
neste período já município independente de Itabuna.
O endereço que lhe foi dado não conferia mais com o lar de sua mãe. Porém, ele deu
“sorte”, pois Itapé é uma pequena localidade, onde “todo mundo conhece todo mundo”.
Assim, ele logo encontrou conhecidos de sua mãe, mas especificamente um compadre dela,
que oportunizou o encontro deles, na feira livre da cidade. Assim narra seu Edinho:
Eu fui perguntando, investigando e me disseram: - Sua mãe mora aqui
mesmo. Aí fui na feira, quando fui chegando na feira, perguntaram: - Se
você vê sua mãe você conhece? – Nem eu conheço ela, nem ela me conhece.
– É aquela negona que ta sorrindo lá (...) Perguntaram a ela: - Oi minha
cumadre! – Oi meu cumpade. – A senhora conhece esse homem? – Não nem
nunca vi. Aí ela olhou assim, ela olhou umas dez vez assim, e eu olhando pra
ela. Aí ela falou: - É cumpade a nossa família é grande. Vai ver ela lembrou
que tinha dois filho no mundo, eu e outro. Aí ela foi sentando e ele falou: - É
seu filho. Ela começou a chorar, eu dei uns abraço nela, ela perguntou pelo
outro. E eu disse: - Tem muito tempo que eu não vi. Fiquei por lá três, quatro
anos, e depois saí fora.230
Seu Edinho narra emocionado, com os olhos mareados, o reencontro com a mãe.
Ambos não se reconheceram, foi necessário o compadre reapresentá-los. Quando questionada
pela primeira vez, a sua mãe respondeu prontamente que não o conhecia. Depois olhou
fixamente para seu Edinho, e talvez tenha lembrado que havia perdido parte da família, então
a surpresa do reencontro com o filho, e os abraços reconfortantes deste.
Depois de encontrar a mãe, ele permaneceu por um tempo em Itapé, nesta época
trabalhou em propriedades cacauicultoras, mas logo “colocou o pé na estrada”, literalmente.
Saiu pelo extremo sul da Bahia trabalhando na construção da BR 101. Com o final da obra,
depois de constituir família, se casando e tendo filhos, retornou a Itapé, onde trabalhou um
tempo em uma serralheria. Foi, através deste mesmo trabalho, para Itabuna, porque continuou
empregado em uma serralheria do mesmo dono.
Ao longo dos anos aprendeu a pescar, e com este trabalho suplementava as despesas
da casa. Depois deixou a serralheria e se dedicou apenas à pesca no rio Cachoeira. Levou tão
a sério a nova profissão que no bairro é conhecido como seu Edinho pescador. Nos fins de
semana, vendia também tempero verde pelo bairro Maria Pinheiro para ajudar no orçamento.
Durante a entrevista em sua casa, ele me mostrou com orgulho o seu material de
pescaria, que se encontra fixado na parede, que agora apenas utiliza como lazer, não mais para
230
Edivaldo Domingos dos Santos, entrevistado em 06 de janeiro de 2010.
111
o sustento da casa. Na trajetória de seu Edinho, a mobilidade espacial está atrelada à
mobilidade ocupacional. Ambas unidas na busca por melhores condições de vida e pela
sobrevivência da sua família.
Hoje aos 64 anos, já aposentado, não consegue ficar parado, ainda trabalha de mototáxi. Esta atividade não é mais para garantir a sobrevivência, pois seus filhos estão criados e
hoje vive sozinho, mas para ocupar os seus dias e também pelo sonho de ter um carro. Assim
pretende juntar dinheiro e no futuro vender a moto e concretizar este sonho.
Algumas narrativas refletem a conjuntura da região cacaueira, quanto ao trabalho
rural, e quanto à ocupação das terras. Como dona Margarida, que lembra a migração da
família depois da morte de seu pai e a consequente venda da pequena propriedade:
Minha mãe ficou na roça sozinha com os menino, os menino não queria
trabalhar bem na roça, trabalhava fora e deixava a roça. Minha mãe não ia
dar conta da roça, a roça era grande. Minha mãe se aborreceu e vendeu, ela
vendeu e comprou casa dentro de Buerarema (…) Vendeu pro um fazendeiro
que tinha lá (...) era um fazendeirão veí, ele era doido pra comprar essa roça.
Os menino não queriam botar a roça pra frente e aí ela pegou e vendeu. Mas,
se botasse pra frente era um fazendão, porque ali era uma terra boa danada
era 15 hectare de terra, era pequena, mas era boa , muito boa.231
Com o falecimento do pai de dona Margarida, os irmãos dela encontraram a
possibilidade de deixar o trabalho da roça. Não quiseram conservar o que a família havia
construído com tanto sacrifício. E preferiram buscar outras formas de trabalho na cidade de
Buerarema. Dona Margarida e a mãe, sozinhas, não dariam conta do serviço da roça.
Poderiam fazer até a parte delas, como acontecia quando o pai e/ou marido estava vivo. Mas,
necessitavam da presença dos irmãos e/ou filhos. Depois de se “aborrecer” pelo descaso dos
filhos com a terra da família, a mãe de dona Margarida decidiu vender a propriedade. Vendeu
e comprou uma casa “dentro” de Buerarema, deixando a vida na roça para traz.
A roça foi vendida a um “fazendeirão”, o aumentativo enfatizou a condição do novo
proprietário, talvez um latifundiário, que possuía grandes fazendas próximas à terra da família
de dona Margarida. Experiente e já intencionado na compra da terra, esperava apenas uma
oportunidade de expandir ainda mais suas propriedades.
Dona Margarida expressa, durante sua narrativa, uma espécie de remorso com a
venda da roça, dizendo que apesar da terra ser pequena, era uma terra “muito boa”. Em outro
momento da entrevista, já mencionado nesta dissertação, ela fala da fertilidade da terra e da
boa produtividade. Lá tinha de “tudo” e o que não tinha quando chegaram, a casa, a família
construiu.
231
Margarida Rocha França, entrevista citada.
112
A entrevista de dona Margarida pode indicar uma concentração de terras nas mãos de
grandes proprietários rurais. Devido à impossibilidade dos pequenos agricultores se manterem
nas suas terras. No caso da família dela, a impossibilidade de permanência estava ligada a
dispersão dos membros familiares, após a morte do chefe da família, o pai232. A família se
dispersou por cidades baianas, e até mesmo dona Margarida, após seu casamento, foi para
Itabuna.
Segundo Alencar, na região sul da Bahia até a década de 1980 houve um crescimento
de pequenas propriedades, estas de até 20 hectares. Após este período, houve uma crescente
concentração de terras nas mãos dos latifundiários233. No entanto, outro autor, o Selem
Asmar234, ressalta que mesmo a região em questão apresentando um número expressivo de
minifúndios até 1970, cerca de 65% da ocupação territorial da área ocupada por estes
minifúndios não compreendia 20% do território rural. Assim, o autor defende uma crescente
concentração de terras desde a década de 60235. Pesquisa do SEI sobre o cenário rural atual
traça a ocupação da região sul da Bahia hoje, na qual, 41% da área é ocupada por grandes
propriedades rurais, enquanto os minifúndios se apresentam em apenas 5,4%236.
Esta concentração de terras em poucas mãos na área rural da região sul da Bahia
pode também ter afetado outros tipos de trabalhadores rurais, como aqueles que sobreviviam
de arrendamentos, e/ou de trabalho alugado em propriedades cacauicultoras de médio porte.
Dona Raimunda e família, que dentre as múltiplas razões que os levaram para a
cidade de Itabuna, como a vontade de manter a família unida, com a ida dos filhos
anteriormente, também sofreu a motivação da casa própria, devido ao recebimento de um lote
no bairro Maria Pinheiro. Este retrato, expressa até mesmo a perda dos trabalhos rurais em
Buerarema, como narra dona Raimunda: “(...) Aí os fazendeiro vendeu as fazenda né, nós
pegamo nosso trocadinho, chegamo aqui, arrumamo aqui e esperamo as melhora. Trouxe
minha bagagezinha, consegui fazer meu barraquinho (…)”237.
O fazendeiro que arrendava parte das suas terras e também contratava o trabalho do
esposo de dona Raimunda vendeu sua propriedade, deixando a família de dona Raimunda sem
as fontes de renda que recebia: a terra arrendada e o trabalho alugado. Talvez este fazendeiro
232
Durhan ressalta que o falecimento do chefe da família rural pode causar a desestruturação da unidade familiar
produtiva. Assim os membros se dispersam, ou buscam novas unidades rurais, ou migram para a cidade em
busca de novas perspectivas. In: DURHAN, Eunice R, op. cit. p. 68.
233
D’ALENCAR, Raimunda Silva, op. cit., p. 47.
234
ASMAR, Selem Rachid, op. cit.
235
Ibidem.
236
SEI, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2000, op. cit., p. 59.
237
Raimunda Libarino de Jesus, entrevistada citada.
113
fosse um médio produtor rural que também não conseguiu manter sua propriedade diante da
concentração de terras.
Depois da venda das terras em que a família trabalhava, restou apenas receber o
“trocadinho”, o pagamento pela empreitada, e arrumar as malas, segundo dona Raimunda uma
“bagagezinha” e ir para Itabuna construir um “barraquinho”. Os diminutivos são para
enfatizar respectivamente o pouco dinheiro pago pelo fazendeiro; os poucos pertences da
família; o pequeno e carente lar que o “trocadinho” possibilitou construir.
A venda da propriedade significou a motivação que faltava para a partida da família.
Nesta época, apenas parte dos membros mudou, pois dois filhos do casal já se encontravam
em Itabuna, trabalhando para uma família no preparo e na distribuição de lanches.
O Diário de Itabuna, no início da década de 1980, reclamava do desemprego na zona
rural da região cacaueira. Propriedades que empregavam em média quarenta trabalhadores,
reduziram este número para dez e até cinco funcionários. Segundo os cacauicultores, não
havia cacau para colher e tinham que reduzir despesas devido ao baixo preço das amêndoas
no mercado internacional238.
Como não tinha cacau para colher? Se o mês de setembro, quando a notícia foi
publicada, compreende o período da safra do cacau? Os trabalhadores demitidos “ouvidos”
pelo periódico afirmaram que procurariam outras fazendas cacauicultoras na região, por duas
razões: “Não entendiam de outro tipo de mão de obra”, e “estavam informados que existiam
outras propriedades contratando”239.
O editorial do periódico de 21 de abril de 1981, titulado, “A face dura do
desemprego240”, busca explicações para o desemprego no meio rural da região. Segundo o
editorial, as causas do desemprego eram o baixo preço do cacau no mercado internacional e o
reajuste salarial. Mesmo com muitos trabalhadores desempregados, o nível de desemprego
não era “agudo”. Duas características deste contingente de trabalhadores desempregados
“amenizavam” a situação. Primeiro, a maior parte dos demitidos eram mulheres, e segundo,
uma parte daqueles eram pequenos proprietários que também trabalhavam em médias e
grandes propriedades.
Então não havia com o que se preocupar, já que boa parte dos trabalhadores
demitidos eram em sua grande maioria mulheres, e também pequenos produtores. Talvez os
cacauicultores preferissem dispensar aqueles que dividiam seus afazeres: fossem as mulheres,
238
“Trabalhadores rurais entram em desespero”. Diário de Itabuna. 16 set. de 1980. Ano XXIV. Nº 4.476, p. 1.
APMI.
239
Ibidem.
240
“A face dura do desemprego”. Diário de Itabuna. 21 ab. de 1981. Ano XXIV. Nº 4.479, p. 2. APMI.
114
com as tarefas domésticas e/ou os pequenos proprietários, com o trabalho em sua própria
roça. Permanecendo empregados, os que sobreviviam, se dedicavam integralmente às
atividades cacauicultoras.
Por que preferencialmente demitiam as mulheres? Talvez pela visão de uma
sociedade tradicional que o trabalho feminino não tem o mesmo rendimento do trabalho
masculino. Ou por a mulher apresentar outras preocupações, como a vida familiar no
ambiente do lar. No trabalho rural, nesta região, o trabalho feminino por muito tempo foi visto
como auxiliar ao do marido e por isso não merecia pagamento, ou não merecia os mesmos
honorários241.
A cacauicultura não teve bons momentos na década de 80, oscilando nas estatísticas
da produção baiana. Os anos de 1981, 82 e 83 a produção cacaueira apresentou um queda de
51, 5% para 32,3% na produção agrícola baiana. Em 1984, se recuperou um pouco, chegando
a 45,3%, no entanto em 85/86/87 retornou a queda, chegando a 28,6%. Em 1988, atingiu
37%, e no ano posterior 89, caiu a 16%242. Ano em que foram encontrados os primeiros
cacauais atingidos pela vassoura-de-bruxa. A expansão da doença levou a descendente escala
na década de 90243.
Mesmo antes da infecção das lavouras pela vassoura-de-bruxa, a produção cacaueira
oscilava entre quedas e pequenas recuperações. Atribui-se tal oscilação ao preço do mercado
internacional, como também a alguns fatores climáticos: ora chuvas incessantes, ora estiagem.
Além de outras doenças, como a podridão parda.
Sendo a cacauicultura o principal setor empregador da agricultura na região sul da
Bahia, a década de 80 apresentou um crescente desemprego no meio rural244. Neste contexto,
muitos trabalhadores migraram. Por que estavam desempregados? Ou pelas condições de
exploração dos cacauicultores, do trabalho duro e dos baixos salários?
Diante do quadro de exploração e/ou desemprego, os trabalhadores rurais partiram
para outras localidades. A razão é a busca de emprego, melhores salários e até mesmo
trilhavam o sonho de ter uma propriedade própria245. Não foram apenas para as cidades
próximas, alguns chegaram a regiões distantes como Rondônia, movidos por propostas de
trabalho que prometiam altos salários e até mesmo a posse de propriedades rurais246.
241
D’ALENCAR, Raimunda Silva, op. cit., p. 43.
SEI, Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Especialização da agricultura e
organização do espaço agrícola no Estado da Bahia. Salvador: SEI, 2001. p. 16
243
Ibidem.
244
“Cresce desemprego no meio rural” Diário de Itabuna. 8 jul. de 1983. Ano XXVI. Nº 5.145, p. 1. APMI.
245
SANTOS, Milton, op. cit. pp. 99-100.
246
“Trabalhadores da região cacaueira estão sendo aliciados para Rondônia”. Diário de Itabuna. 21 jan de 1984.
Ano XXVI. Nº 5.217, p.1. APMI.
242
115
Segundo o Diário de Itabuna, estas promessas eram “ilusórias” 247 porque, ao chegar
ao destino, eles se deparavam com um “regime de semi-escravidão”. A realidade era bem
outra, incluindo baixos pagamentos, ou quase nenhum, sem assistência e convivendo com
diversas doenças, malária, leishmaniose, entre outras, além de ficarem impossibilitados de
deixarem as propriedades, devido a ameaças de morte248.
O trabalhador Ivan José dos Santos, casado, pai de cinco filhos e natural de
Belmonte, havia passado três meses na cidade de Ariquemes, em Rondônia. Como tantos
outros, fora seduzido por estas propostas tentadoras e, ao chegar a Ariquemes, trabalhou de
domingo a domingo, sem receber pagamento. Ele e sua família passaram fome. Segundo sua
esposa, quando decidiu voltar para Bahia, o proprietário das terras o assassinou249.
Em 1984, cerca de 80 famílias teriam saído de diversos municípios do sul da Bahia,
principalmente de Camacã, para a cidade de Cacoal, em Rondônia, destinados a trabalhar em
lavouras de cacau.250 Segundo Olímpio Vargens, presidente do Sindicato Rural de Camacã, o
principal motivo desta migração para Rondônia era a crise cacaueira que levava os
fazendeiros a demitirem seus trabalhadores e impossibilitava a melhoria de salários251.
Os fazendeiros encontravam razões de toda ordem para explicar as demissões de
trabalhadores rurais e os baixos pagamentos. Reajustes salariais, crises com o baixo valor do
cacau no mercado, doenças, e intempéries climáticas. No entanto, mesmo antes da década de
80, os trabalhadores rurais conviviam com a exploração dos grandes proprietários rurais, e
viram na migração uma possibilidade de melhorar de vida.
Não quero negar que os fatores citados acima, e até mesmo as diversas crises
cacaueiras tenham influenciado a migração de trabalhadores rurais. Porém, como vimos neste
sub-capítulo as motivações eram inúmeras. Não apenas no âmbito econômico, mas também
no contexto familiar, emocional e até mesmo no intuito de driblar a exploração dos
proprietários rurais.
Também é relevante o aumento populacional de Itabuna a partir da década de 1970.
Segundo pesquisa do SEI252 até a década de 1980, a cidade apresentava saldos migratórios
negativos, ou seja, o movimento de saída ultrapassava o movimento de entrada. A partir deste
247
Ibidem.
“Trabalhador rural levado a Rondônia é assassinado para não retornar”. Diário de Itabuna. 06 ab. de 1984.
Ano XXVI. Nº 5.259, p. 1. APMI.
249
Ibidem.
250
“Trabalhadores da região cacaueira estão sendo aliciados para Rondônia”, op. cit., p, 1.
251
“Trabalhadores rurais estão sendo levados para Rondônia”. Diário de Itabuna. 03 fev. de 1984. Ano XXVI.
Nº 5.220, p. 1. APMI.
252
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. Migração e Migrantes da Bahia 1980 e 1990:
tendências e perfis demográficos. Salvador: SEI, 2006, p. 50
248
116
período esta situação se inverteu, a cidade passou a receber mais migrantes e até o ano 2000,
houve um crescente aumento populacional253.
Com base nos dados dos censos demográficos do IBGE, entre 1970 e 1991 a
população de Itabuna teve um incremento relativo na marca dos 64,37%, um aumento de
72.556 mil habitantes, conforme tabela abaixo:
Tabela 1: Crescimento Populacional de Itabuna
População Residente Total
Taxas de crescimento
1970
1980
1991
2000 1970/1980 1980/1991 1991/2000
112.721 144.283 185.277 196.675
28,00%
28,41%
6,15%
Fonte: SEI. Dinâmica sociodemográfica da Bahia: 1980-2002 v. 2. Série Estudos e Pesquisa Nº 60,Salvador,
SEI, 2003. p. 128 Elaboração: GLORIA, P.S.
É notável que entre as décadas representadas acima, o período de 1980-1991 foi o
que apresentou maior crescimento populacional. No entanto, percebemos que houve também
um crescimento significativo na década de 1970, fato que não explica a informação do SEI,254
que apenas em 1980 Itabuna apresentou um saldo migratório positivo.
Comparando estes dados com as taxas de natalidade da Bahia, observa-se que a partir
de 1970, foi verificado neste estado de forma geral, uma diminuição destas taxas, em função
da expansão do trabalho assalariado para as mulheres e o aumento dos níveis de escolaridade.
Com esta tendência o crescimento vegetativo apresentou perdas em números, a partir de 1970.
Considerando-se tal situação, o saldo migratório passou a ter uma importância para o
crescimento demográfico das cidades baianas o que se verifica também em Itabuna255.
Sendo assim, mesmo antes das primeiras lavouras infectadas pela vassoura-de-bruxa
terem sido detectadas em Itabuna, houve uma chegada de muitos migrantes na cidade. O
período (1991-2000) mais afetado por esta doença apresenta taxa de crescimento populacional
inferior aos períodos anteriores. O que talvez indique uma migração significativa anterior ao
aparecimento da vassoura-de-bruxa. Evidenciado também outras razões para o crescimento
populacional de Itabuna e até mesmo para a migração.
Novamente não nego que esta doença tenha causado prejuízos aos fazendeiros e um
consequente desemprego. Porém, busco não homogeneizar estas correntes migratórias e
explorar as inúmeras razões que levaram os trabalhadores rurais a escolherem Itabuna como
um destino na década de 1980.
253
Ibidem.
Ibidem.
255
Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, op. cit., 2003.
254
117
O aparecimento da vassoura-de-bruxa não atingiu apenas os grandes cacauicultores,
mas também os pequenos produtores, como seu João, que vivia em uma pequena propriedade
da sua família no distrito de Ilhéus, Japú. Ele fala das suas expectativas com a ida para
Itabuna e sobre o contexto rural em que vivia:
Eu vim realmente pra vê se eu melhorava mais a minha vida, sabe. Minha
vida na roça era ótimo, mas a roça foi enfraquecendo e agente teve que
procurar outras melhora (...) A roça foi acabando, o cacau acabando, a
doença matando cacau todo (...) Aí o seguinte não dava pra ficar os filho
tudo num pedacinho de roça, mas ainda tem gente morando lá, meus irmão
tá tomando conta, mas eu só vou a passeio.256
Seu João foi para Itabuna já no final da década de 80, entre os entrevistados
apresenta a migração mais recente. Talvez por esta razão foi o único que colocou na narrativa
a doença da vassoura-de-bruxa. Ele lembra que a vida na roça era boa. Além do cacau, eles
também plantavam variedade de produtos, que tanto enriquecia a alimentação da família,
como também eram vendidos nas feiras de Ilhéus e Itabuna.
O fato é que a doença afetou os cacauais e fez com que a roça fosse
“enfraquecendo”. Talvez fosse a venda das amêndoas do cacau o que desse mais lucro para a
família. Assim, com a doença, eles não podiam permanecer na roça, “não dava pra ficar os
filho tudo num pedacinho de roça”. A família numerosa também contribuiu para a migração e
dispersão de seu Raimundo e os irmãos, gerando uma “desagregação da família257”.
Além de seus pais, lá estavam irmãos e todo grupo sobrevivia da lida na própria roça.
Seu João lembra que nunca trabalhou em roça pra outrem e nem cogita esta possibilidade.
Como narra: “(...) trabalhar pros outros em roça não, a não ser pra mim mesmo, assim eu
quero258”. Ele lembra também que depois da doença teve de procurar “outras melhora”.
Procurou então na cidade de Itabuna, onde seus pais compraram uma casa no bairro da
Mangabinha, com o objetivo que os filhos pudessem buscar outras formas de trabalho.
Então seu João aprendeu o serviço de mecânico, montando sua própria oficina. Mas,
não permaneceu na casa dos pais na Mangabinha, pois, logo se casou, constituiu família e
novamente teve que procurar outro rumo, encontrando no bairro Pedro Jerônimo a
possibilidade de ter uma casa própria e abrigar sua família.
256
João Silva, entrevista citada.
Edinelia Souza ressalta que muitas famílias que conviviam com pequena produção não conseguiam se manter
unida depois que os filhos cresciam e constituíam outros laços familiares, devido ao tamanho da propriedade,
levando a migração de alguns membros para cidades e a “desagregação” da família. In: SOUZA, Edinelia Maria,
op. cit., p. 123.
258
João Silva, entrevista citada.
257
118
Seu João ressalta, no fim do depoimento exposto acima, que apesar da roça não
poder abrigar todos os irmãos, pois hoje formam novos núcleos familiares, e pela condição da
propriedade ser pequena, impossibilitando a sobrevivência de todos; ainda assim, a família de
seu João não abandonou a roça. Mesmo depois da doença nos cacauais e da migração de
alguns irmãos, os demais permaneceram cuidando e sobrevivendo da roça. Mas seu João só
vai lá “a passeio”.
Percebemos inúmeras motivações dos trabalhadores rurais ao migrarem para Itabuna.
Uns relatam motivações familiares, como a proteção dos filhos e a união da família. Outros
expressam a busca incessante por melhores condições de vida, seja na procura por trabalho,
moradia, assistência médica ou educação. Há aqueles ainda que revelam recortes da
conjuntura da região sul da Bahia, na década de 1980. Lembrando da venda das pequenas
propriedades, que pode indicar uma concentração de terras. E também a vassoura-de-bruxa
que infectou as plantações de cacauais. Alguns, até mesmo, entrelaçam várias razões para
justificar a migração, expressando a heterogeneidade das trajetórias, vivências e memórias.
4.2 A CHEGADA NOS BAIRROS POPULARES
As distintas trajetórias dos migrantes, que chegaram a cidade de Itabuna a partir da
década de 1960, se enlaçaram nos diversos bairros populares259. Os caminhos percorridos por
estes trabalhadores rurais delinearam o nascimento de alguns destes novos espaços da cidade.
Em especial, tratarei dos bairros Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro, já que os trabalhadores,
sujeitos desta pesquisa, escolheram os mesmos para comporem suas vidas na cidade de
Itabuna.
Ambos os bairros circunvizinhos constituíam parte da zona rural do município. O
Pedro Jerônimo nasceu da iniciativa privada de cacauicultores, ou melhor, como o próprio
nome do bairro invoca, do Pedro Jerônimo. Este começou a lotear algumas das suas
propriedades cacauicultoras, em meados da década de 1970, sob o sistema de aforamento.
Como nos narra abaixo seu Raimundo, através das suas primeiras impressões do bairro:
Aqui era tudo rodiado de cacau, aí pra baixo mesmo era tudo cacau, era tudo
fazenda de Pedro Jerônimo. Ele foi cortando os cacau e arrendando (…) Foi
259
Denominarei os bairros em questão de populares, evitando assim as “metáforas (espaciais) de 'centralidade' e
'periferia'” apesar de compreender que elas expõem relações de poder, acredito que elas também contribuam com
a ideia de segregação espacial e social. In: BARROS, José D' Assunção, op. cit., p. 19.
119
antes de aparecer a doença que matou o cacau, porque o bairro São Caetano
foi crescendo, o pessoal foi chegando e foi arrendando o terreno (...).260
Quando seu Raimundo trocou a vida na roça dos pais no Japú pela vida na cidade de
Itabuna, ele morou por um tempo na casa em que os mesmos mantinham no bairro da
Conceição. Porém, a convivência da sua esposa com a mãe dele não deu muito certo. Então,
ele percebeu que era o momento de ter um lugar para abrigar a família. Logo ele foi morar de
aluguel na Mangabinha, mas quando teve a oportunidade de ter uma “casa” própria, ele não
pensou duas vezes e arrendou um dos terrenos que estavam sendo loteados por Pedro
Jerônimo.
Neste local primeiramente fez um barraco, naquele momento suas possibilidades só
permitiram a construção de um barraco para alojar a família. Também o sonho de ser
mecânico e ter sua própria oficina teve que esperar tempos mais prósperos. Como ele mesmo
afirma: “Quando cheguei aqui fui trabalhar pros outro, porque não sabia de nada, só entendia
de roça261”. Muitos dos migrantes ao chegarem neste espaço recém ocupado, permaneceram
em atividades rurais. Alguns porque gostavam, outros devido às necessidades e por não
conhecerem outro tipo de trabalho, como seu Raimundo.
O entrevistado narra na primeira citação, que Pedro Jerônimo foi se desfazendo da
propriedade cacauicultora e arrendando as terras. Este arrendamento foi estabelecido sob o
sistema de aforamento. Sendo que os moradores têm a posse dos lotes, mas não a propriedade,
e ainda pagam foros anuais. Com isso, percebemos que a cidade vai se expandindo para, atém
então, a zona rural do município.
Erivaldo Neves lembra que o aforamento surge “num sistema jurídico de origem
medieval, que separa a propriedade da posse, de modo, a manter a primeira e comercializar a
segunda, numa transição pré-capitalista”. Na contemporaneidade brasileira este sistema vai
contribuir com a formação de espaço urbano carregado de concentração de renda e
desigualdade social262.
Eduardo Santos263 ressalta as transformações do meio rural de Itabuna a partir da
década de 1960, às quais foram causadas pelo nascimento de bairros populares em locais que
260
José Raimundo Jesus Santos. Entrevista citada.
Ibidem.
262
NEVES, Erivaldo Fagundes. Conveniências, vantagens e interesses: conflitos na gênese das invasões de
terrenos periféricos em Salvador. In: LEAL, Maria das Graças de Andrade; MOREIRA, Raimundo Nonato
Pereira Moreira; CASTELLUCCI, Wellington Junior. (Orgs.). Capítulos de História da Bahia: novos
enfoques, novas abordagens. São Paulo: Anablume, 2009, p. 253.
263
SANTOS, Eduardo Antônio Estevam. São Pedro: aforamento, mecanismos de apropriação e experiências de
moradia (1965-1995). In: Anais do XIX Encontro Regional de História: Poder Violência e Exclusão. São
Paulo: ANPHU, USP.
261
120
antes eram fazendas cacauicultoras. Santos analisou principalmente fazendas que foram
loteadas, no sistema de aforamento, em especial que compuseram o bairro São Pedro, espaço
pesquisado pelo mesmo.
A partir da década de 50, a zona rural itabunense perde população, enquanto a urbana
cresce. Em três décadas subsequentes 60/70/80, Itabuna apresentou taxas de crescimento
negativo em relação à população rural264. Na década de 50, Itabuna perdeu território com a
criação dos municípios de Ibicaraí e Itororó265. Em 60, novamente a área municipal itabunense
sofreu perdas territoriais, com a criação dos municípios de Buerarema, Itaju do Colônia e
Itapé266. Estes “novos” municípios eram distritos de Itabuna, e assim parte integrante de sua
zona rural.
As emancipações destes distritos contribuíram para a perda territorial itabunense e
também para a perda populacional da zona rural do município de Itabuna. A criação de
bairros periféricos nas áreas rurais também possibilitou a queda da população rural. O que
antes era considerado zona rural passou a ser zona urbana, a partir da década de 1960.
Na visão de Santos, este tipo de loteamento é um mecanismo utilizado no meio rural,
sendo incomum na zona urbana. Assim, ele defende que não há uma separação concreta entre
o campo e a cidade em Itabuna267. Bairros como o São Pedro, Zizo, Pedro Jerônimo, são
exemplos deste aforamento de propriedades cacauicultoras268 e também vizinhos ao Maria
Pinheiro.
Mas, por que Pedro Jerônimo desfez a sua propriedade cacauicultora e investiu no
sistema de foro? Seu Raimundo nos revela em parte este questionamento, quando afirma que
a divisão da fazenda em lotes foi anterior à vassoura-de-bruxa, então a doença não foi a razão.
Para ele o que causou o aforamento foi a expansão urbana, pois o bairro “São Caetano foi
crescendo”. Esta localidade é vizinha aos bairros populares em questão. Apesar de não estar
próximo ao centro da cidade, este local se desenvolveu muito ao longo dos anos, talvez se
tornando um novo centro na cidade de Itabuna. Hoje ele aloca a Prefeitura Municipal, um
estádio, uma vila olímpica, e muitas lojas comerciais.
Seu Raimundo, considerando a sua perspectiva de morador, observou este
crescimento e desenvolvimento do São Caetano. Através do seu olhar, percebeu que este
264
SILVA, Barbara Christine Nentwig. Dinâmica do crescimento demográfico urbano e rural no Estado da
Bahia: 1940-1980. In: Geografia. V.14, n° 27, abril 1989, p. 69.
265
BAHIA, Secretária de Planejamento, Ciência e Tecnologia. Comportamento Demográfico e Divisão
Territorial do Estado da Bahia 1940-1970, op. cit., p. 121.
266
Ibidem.
267
SANTOS, Eduardo Antônio Estevam, op. cit., p. 7.
268
Ibidem, p. 4.
121
crescimento foi atingindo áreas até então consideradas rurais e não habitadas. Santos comunga
da mesma opinião de seu Raimundo, não acredita que o abandono das áreas cultivadas
estivessem relacionadas apenas com as crises do cacau. Mas, também com o crescente
processo de urbanização da cidade e chegada de migrantes, principalmente, os trabalhadores
rurais, e o sonho destes da casa própria, como uma forte razão para o aforamento269.
As propriedades rurais que se transformaram em bairros eram de médio porte. E
muitos dos donos contraíram dívidas, em formas de hipotecas bancárias e de terceiros. O que
também se revela como causa dos aforamentos, ainda na perspectiva de Santos 270. Não basta
apenas pensar nos interesses das pessoas que chegavam e buscavam uma moradia, mas
também daqueles que, de alguma forma, “lucraram” com os loteamentos de áreas rurais e
afastadas do centro da cidade271. Seria apenas o pagamento de dívidas e/ou Pedro Jerônimo
também “lucrou” com os loteamentos?
As dívidas e/ou o lucro também podem explicar a origem do Maria Pinheiro. Este
não foi produto do sistema de aforamento, ele teve uma dinâmica de formação um pouco
distinta. Se formou por uma ação do poder público, a desapropriação de uma propriedade
rural, esta pertencia à Firma Pedro Jerônimo Imobiliária Agricultura, Comércio e Pecuária, e
foi desapropriada pelo poder público municipal272, em março de 1980.
As terras em questão não se configuravam em fazendas cacauicultoras, em sua
maioria não eram cultivadas. O que pode ter ocasionado a desapropriação, sendo áreas
improdutivas273. Ou, talvez o dono das terras, por sinal o próprio Pedro Jerônimo, estivesse
endividado, e assim o poder público desapropriou como quitação de dívidas públicas. Mas, é
válido ressaltar que a propriedade não foi desapropriada por completo, ainda hoje existe uma
parte da Fazenda Gaúcha, esta é vizinha ao bairro Maria Pinheiro. Talvez apenas parte da
fazenda tenha quitado as dívidas do proprietário.
Após a desapropriação, o prefeito na época, Fernando Gomes repartiu as terras em
terrenos e os distribuiu à população carente, que habitava a cidade. Entre esta população se
encontravam os trabalhadores rurais recém-chegados a Itabuna em 1981 e 1982 e os
desabrigados de algumas enchentes do rio Cachoeira. Já no governo de Ubaldo Dantas em
269
Ibidem.
Ibidem.
271
Analisando um contexto diferente, Porto Alegre, Sandra Pesavento nos faz pensar sobre nos interesses da elite
e o governo em lotear áreas distante do centro da cidade. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade:
vida e trabalho – 1880-1920. Porto Alegre: Editora da Universidade/UFRGS, 1994, p. 98.
272
, Decreto nº3.292 do Jornal Oficial
,
do Município de Itabuna de 10 de março de 1980. APMI.
273
Lembrando do Estatuto da Terra de 1964, legislação que coloca a reforma agrária em evidência. O Estatuto
regulamenta a desapropriação de propriedades rurais pelo poder público com o intuito do interesse social. In:
STEDILE, João Pedro. (Org.). A questão agrária no Brasil: programas de reforma agrária 1946-2003. São
Paulo: Expressão Popular, 2005, p. 127.
270
122
1984, alguns moradores da Favela do Bode, vizinha ao centro comercial, a maior feira livre da
cidade, também foram removidos para o bairro Maria Pinheiro. A “favela” fora acusada de
manter um matadouro274. Porém, talvez o motivo da remoção era a presença de um bairro
popular com carências básicas, como saneamento, próximo à principal feira livre da cidade.
Mas, voltemos ao bairro Maria Pinheiro, espaço visto pelo poder público como
receptivo a qualquer “excesso populacional” e problemas infraestruturais. Será que a
desapropriação foi realizada em defesa dos “interesses sociais” para abrigar migrantes, e
pessoas que perderam suas casas nas enchentes? Talvez fosse um lugar “ideal” para alocar
pessoas que “incomodavam” o poder público. Ou, também, para executar manobras políticas,
sendo o poder municipal visto como “benfeitor”. Nenhum leitor se perguntou por que o bairro
não se chamou Fernando Gomes e sim Maria Pinheiro? Já que existia o Pedro Jerônimo, o
“benfeitor” em questão, e também o Daniel Gomes, irmão do prefeito, no contexto.
O bairro recebeu este nome devido à estratégia política e/ou homenagem feita pelo
prefeito Fernando Gomes, em seu primeiro mandato275, à cirurgiã-dentista, Maria Pinheiro.276
Natural de Irará, na Bahia, Maria Pinheiro migrou para Itabuna, na década de 1950, onde
tornou-se uma personalidade importante e onde também construiu uma imagem pública
atrelada a um trabalho tido como solidário. Segundo Rita Lima277, ela atendia gratuitamente
em um determinado dia da semana e distribuía cestas básicas em bairros periféricos. No bairro
Maria Pinheiro, costumava distribuir presentes em datas festivas como no dia das crianças e
no Natal.
Na década de 1970, se candidatou à vereadora pelo partido do MDB, mas não
conseguiu se eleger naquele pleito e não mais se tornou candidata, talvez por se sentir traída
pelos eleitores, como fala uma amiga próxima de Maria Pinheiro, Rita Curvelo: “(...) eu
pensava assim, que se ela fazia tantas caridades, não precisaria nem subir no palanque para
fazer política, e eu me enganei (...) e ela também; resultado, ela não se elegeu e ficou
chateada, chamando a todos de ingratos(...) “278. Ainda segundo Lima,279 Fernando Gomes, era
274
“Maria Pinheiro não será favela”. Diário de Itabuna. 14 de ab. de 1984. Ano XXVI. Nº 5.265, p. 1. APMI.
Fernando Gomes ocupou também o cargo de prefeito nos períodos de 1977-82; 1989-92; 1997-00; 2005-08
pelos seguintes partidos: Movimento Democrático Brasileiro – MDB, Partido do Movimento Democrático
Brasileiro – PMDB, Partido Trabalhista Brasileiro - PTB e Partido da Frente Liberal – PFL, tendo alternado o
governo municipal com Geraldo Simões do Partido dos Trabalhadores – PT, que governou nos anos (1993-96;
2001-04). Esta alternância ficou conhecida em Itabuna como a política do “troca-troca”.
276
LIMA, Rita de Cássia Carvalho. Rompendo Barreiras: trajetória de uma mulher (Itabuna anos cinqüenta).
Ilhéus: UESC. 47 f. Monografia (Graduação em História). p. 39.
277
Ibidem, p. 36.
278
Ibidem, p. 40.
279
Ibidem, p. 39.
275
123
amigo da cirurgiã-dentista, e ao que tudo indica este vínculo, além da atuação política dela,
favoreceu a homenagem e/ou estratégia política citada acima.
Mas, retomemos às narrativas dos migrantes, pois se o poder público impunha uma
“ordem espacial”, os moradores por sua vez, através das vivências, constituíram outros
“elementos espacias280”. Dona Marinalva, uma das mais antigas moradoras do Maria Pinheiro,
foi também uma das primeiras a receber o lote no bairro, e nos conta como chegou neste
espaço:
Eu morava no Daniel Gomes, morei dez anos lá. Com dez anos tirei o
barraco de lá coloquei aqui. Já estavam cavando, eu conhecia um advogado,
aí eu pedir a ele pra fazer meu barraco aqui. Ele disse: - Vai lá e faz. Aqui
era tudo capoeira, só tinha eu, depois que encheu de gente (…) não tinha
nada, não tinha ninguém, só tava o trator trabalhando, só tinha mato.281
A narrativa acima nos informa que ela morava em um bairro próximo ao Maria
Pinheiro, mas por algum motivo ela preferiu remover seu barraco. Em outro momento, ela me
disse que a mudança foi devido a muitas ladeiras que enfrentava diariamente no Daniel
Gomes, mas no Maria Pinheiro ela também encontrou ladeiras bem semelhantes. Dona
Marinalva chegou ao bairro antes mesmo da distribuição dos terrenos, um tempo depois da
desapropriação das terras, no momento em que o poder público preparava-se para o “ato de
solidariedade”.
Ela mesma fora “agraciada” com um terreno, porque conhecia um advogado,
certamente alguém influente e amigo do prefeito. Ela esperou apenas a permissão e se mudou
para o bairro. Segundo a mesma, nada havia no espaço que seria ocupado pela população
carente, nem água, luz, nem vizinhança. Apenas “capoeira”, que se refere a um grande
matagal e os tratores que na certa terraplanavam a área para a posterior distribuição dos
terrenos. Observamos que diferente do Pedro Jerônimo, onde os pés de cacauais foram
arrancados, no Maria Pinheiro a “capoeira” cedeu lugar às novas moradias.
Outro morador também bastante antigo, seu Edinho pescador, como é conhecido no
Maria Pinheiro, também nos fala sobre sua chegada no espaço recém-desapropriado:
Resolvi procurar um jeito de fazer uma casinha, aí vim com a mulé, tava
dando terreno no Daniel Gomes. Aí encontramo Fernandes que era prefeito
de Buerarema, ele era amigo de Fernando e pedimos o terreno e ele deu. Aí
em 82 quando Fernando abriu aqui, agente já morava aqui, aí as coisa foi
melhorando.282
280
CERTEAU, op. cit., p. 164-165.
Marinalva Fernandes dos Santos. Entrevista citada.
282
Edivaldo Domingo dos Santos. Entrevista citada.
281
124
A narrativa se inicia com a busca por uma casa, um lar próprio. Seu Edinho, quando
se estabeleceu em Itabuna, morou por um tempo na Bananeira em casa alugada, mas não
esqueceu o sonho de ter uma casa em seu nome. E a oportunidade veio como aconteceu com
dona Marinalva, devido o conhecimento de uma pessoa influente e amiga do prefeito
Fernando Gomes. Assim, conseguiu realizar seu sonho, mas o fim da sua fala expressa que
houve algumas dificuldades, pois só em 1982 que “as coisas foi melhorando”, após a
distribuição dos terrenos, e com a chegada de muitos moradores, vizinhos, e talvez no coletivo
seu Edinho tenha usufruído de melhorias no bairro.
Por ser um lugar onde não havia rede elétrica, água encanada, saneamento básico,
ruas asfaltadas e transporte público, ou seja, os serviços básicos para a sobrevivência dos
recém-chegados, os primeiros dias vividos no espaço recém-desapropriado não devem ter sido
fáceis para seu Edinho e dona Marinalva, mas a oportunidade de uma casa própria, um abrigo
para a família ultrapassou qualquer dificuldade encontrada na “ex” zona rural.
O primeiro construiu seu barraco em uma rua distante da escolhida por dona
Marinalva, mas ambos foram morar no bairro, por se formar, antes mesmo da distribuição dos
terrenos. A localidade onde construíram seus “barracos” ficou conhecida como Pau do Urubu,
a parte mais alta do bairro Maria Pinheiro. Segundo Egnaldo, filho de seu Esmeraldo, que
cresceu e morou por muito tempo no Maria Pinheiro, a denominação pejorativa “Pau do
Urubu” predominou devida a uma árvore que ficava no alto do bairro, esta abrigava muitos
urubus.
Esta localidade foi a primeira habitada pelos recém-chegados e assim as pessoas
começaram a denominar o bairro por completo como “Pau do Urubu”. Só depois com a
ocupação de outras áreas que, mais tarde, constituíram o bairro e se pensou em outra
denominação para o conjunto, mas permaneceu o nome antigo para esta parte do Maria
Pinheiro. As demais ficaram conhecidas como Alto da Conquista e Baixa Fria.
Outros migrantes que chegaram a Itabuna ao longo da década de 1980, após a
distribuição dos lotes, encontraram os espaços ocupados no já formado bairro Maria Pinheiro.
Como o pai de seu Valcir que comprou um barraco na década de 1980. Após muitos
caminhos percorridos em diversas zonas rurais na região sudoeste e sul da Bahia, ele decidiu
“fincar” os pés em Itabuna. Porém, não conseguiu permanecer na cidade por muito tempo,
logo apareceu uma oportunidade de comprar outro “barraco” no município de Buerarema, e
ele “acabou lá, Deus mandou chamar meu veí lá em Buerarema283”.
283
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
125
Após o falecimento do pai, seu Valcir se estabeleceu, em parte, na cidade de Itabuna.
Ficou tomando conta do barraco que o pai havia comprado no Maria Pinheiro, apesar de
continuar trabalhando em roças de cacau nos arredores ou em lugares mais distantes. Depois
que constituiu sua própria família percebeu a necessidade de ir e vir das zonas rurais onde
trabalhava, pois sua mulher e filhos continuaram morando no Maria Pinheiro. Seu Valcir
também relatou suas primeiras impressões do bairro:
Aqui não era muito bonitinho não, quase tudo aqui era barraco de tábua,
tinha uma casinha ali, tinha um terreno, na outra ponta tinha outro terreno.
Diziam: – Aquele terreno ali era de fulano. Fulano tava trabalhando na roça,
mas tinha um terreno. Tinha lugar que tinha mato também. Inté hoje ainda
tem lugar aí com barraco (...).284
Seu Valcir descreve outra parte do bairro que ficou conhecida como Alto da
Conquista, possivelmente área ocupada após o Pau do Urubu. Evidenciamos em sua narrativa
que na localidade já existiam muitos moradores, além de muitos terrenos com seus
respectivos donos. Apesar de muitos destes não morarem e até mesmo não terem construído
nada nos terrenos, os vizinhos sabiam que aqueles lotes tinham donos e avisavam aos novos
moradores.
Um ponto interessante é que muitos destes donos, segundo seu Valcir, eram
trabalhadores rurais que, na certa viviam em fazendas de outrem, mas pensaram em garantir
um terreno na cidade, para, quem sabe no futuro, construírem uma casa e “largarem” de vez,
ou parcialmente a vida na roça. O pai de seu Valcir teve esta mesma idéia, mas não conseguiu
concluir suas vivências na cidade, preferiu retornar à roça e encerrar os seus dias, onde
dedicou toda a sua vida.
Seu Valcir permaneceu de forma parcial na cidade, por muito tempo, mas depois que
perdeu os movimentos de uma mão, devido a uma mordida de cobra, não pode mais trabalhar.
Se aposentou, pode financiar sua casa, já que o “barraco” do pai, há muito tempo foi repartido
com os irmãos. Mas, até hoje seu Valcir vive no bairro Maria Pinheiro, no Alto da Conquista.
Suas impressões do local não se diferem muito dos outros migrantes, como afirma
não era um local “muito bonitinho”. A principal diferença que muitos evidenciam era a
ausência de vizinhos, enquanto seu Valcir afirma que já existiam muitos barracos na
localidade. Poucas casas, no sentido do material utilizado na construção, “casa” para ele seria
as de bloco, tijolo, reboco. E os barracos, aqueles de tábua, seriam uma espécie de “casa”
temporária. Fizeram um barraco porque as condições não permitiram algo “melhor”, mas
284
Ibidem.
126
esperavam no futuro construir uma “casa” de bloco. Segundo seu Valcir, muitos conseguiram,
outros não, pois “inté hoje ainda tem lugar aí com barraco”.
O casal dona Dora e seu Delfino, que também não receberam o terreno
gratuitamente, compraram um “barraco” no alto de um barranco. Não se recordam da data em
específico, para eles era a substituição do “tempo da roça” pelo “tempo da cidade”:
Adelfino: Olha quando eu cheguei aqui só encontrei seu Gileno, Udinho,
Zezito. Aqui era tudo taboa. Eu cansei de cortar taboa para ela fazer esteira.
E matei muita preá aqui!
Teodora: Aí na frente, onde mora minha menina hoje, era um brejo de taboa,
tinha até sanguessuga, pra entrar tinha que calçar umas bota, pra poder tirar
taboa. Sofri muito quando cheguei, agente não conhecia ninguém, se virava
como podia. Mas, foi o lugar melhor que eu encontrei para viver (…)
Delfino comprou esse barraquinho lá em cima. Porque aqui foi ele que
construiu.285
Seu Delfino ao narrar suas impressões sobre aquele espaço recém-ocupado recorda
os poucos vizinhos que habitavam a parte conhecida hoje como Baixa Fria, no bairro. Talvez
essa localidade tenha sido a última a “encher” de moradores, devido aos brejos que tomavam
conta dos terrenos. Espécie de fronteira entre o Pedro Jerônimo e o Maria Pinheiro, como a
denominação diz, é a parte mais baixa do bairro. Onde ele comprou um barraco e constituiu
suas vivências. Dona Dora lembra do sofrimento dos primeiros dias, como ainda não eram
aposentados, foram em busca de um meio para sobreviver.
No início tiravam taboa do brejo, em frente ao barraco onde moravam. Uma espécie
de planta aquática, proveniente de mangues, brejos e várzeas, aproveitada por algumas
comunidades ribeirinhas para o artesanato, confecção de chapéus, bijuterias, bolsas e
esteiras286. Desta planta, dona Dora produzia esteiras que serviam tanto para o consumo da
família, onde descansavam o corpo, já que os móveis nesta época eram escassos no “barraco”;
como também foram fontes de renda, vendiam nos arredores e na feira do São Caetano. Nesta
labuta, foram conhecendo vizinhos e criando outras oportunidades de sobrevivência.
O casal, apesar de ter uma filha que já morava no bairro, não tinha estado em Itabuna
antes da migração da família por completo. Só conhecia a filha e o esposo dela, não tinham
muitos vizinhos, não conheciam a cidade, não sabiam trabalhar em algo que não estivesse
ligado à vida rural, que levavam em São José do Colônia. Aspectos que certamente
influenciaram a narrativa transcrita acima, pois ela afirmou “sofri muito quando cheguei”.
285
Adelfino Marins Vieira e Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
FILHO, Maia. Taboa vira fonte de renda para artesãos de Maracangalha. In: Revista Global Tourism. Ed.
Projetos de Turismo, Cultura ou Artesanato apoiados pelo SEBRAE. V. 5, dez. De 2009. Disponível na internet:
http://www.periodicodeturismo.com.br/site/revista/index.php
286
127
Imagine ter que entrar em um brejo, enfrentar sanguessugas para retirar o sustento da família,
não devia ser fácil para uma senhora de meia idade.
O filho do casal, seu José, também fala das dificuldades da chegada, do início do
“tempo da cidade”, no qual, “a situação tava tão feia, sem ter dinheiro, sem ter conhecimento,
nós passamo dificuldade aqui287”. O conhecimento é algo evidenciado nas duas narrativas, da
mãe e do filho, a falta da vizinhança do local de origem foi algo sentido pela família. Os
vizinhos talvez suprissem algumas necessidades básicas com laços de solidariedade em
épocas difíceis.
A vizinhança também podia indicar um trabalho, uma colheita de cacau, uma
roçagem, ou podamento. Nas feiras livres também eram os conhecidos que compravam as
hortaliças e verduras vendidas pela família, ou os mingaus e beijus cozinhados por dona Dora.
Chegar em um local desconhecido, recém-ocupado, com tantas carências infra-estruturais, e
ainda enfrentar as próprias carências da família, de dinheiro, alimentação e conhecimento foi
algo ultrapassado e rememorado pelos sujeitos da ação.
Seu Delfino enfatiza que matou muito preá nas proximidades da sua casa, animal que
também contribuía com a sobrevivência da família ante as dificuldades, servindo de alimento,
quando este era escasso. Os meios encontrados pelo casal para sobreviver nos primeiros dias
no bairro Maria Pinheiro evidenciam reminiscências rurais. A família certamente utilizou seus
conhecimentos para a confecção de esteiras, no caso de dona Dora, lembrando que havia um
rio que cortava a localidade em que viviam e isso ajudava para o feitio das esteiras. Talvez
dona Dora já produzisse suas esteiras com taboa na zona rural, e também seu Delfino tenha
caçado muito preá na juventude, na roça de seu pai.
Depois que conheceram as redondezas, foram trabalhar naquilo que sabiam fazer de
melhor. Seu Delfino foi roçar e colher cacau nas fazendas próximas ao bairro, através das
diárias que ganhava, ele e os filhos, pois estes acompanhavam o pai, pode sustentar em parte a
família, digo em parte, pois o pagamento irrisório não deu para a manutenção do casal e dos
quatro filhos. Então, dona Dora também “arrumou” uma forma de contribuir com as despesas
da casa, como a mesma narra:
Eu dei pra vender acarajé, botei uma barraquinha e vendia na feira do Paty,
do São Caetano. Lá mesmo eu comprava um pratinho de peixe que tinha uns
menino que vendia. No outro dia comprava um taco de farinha, e fui vivendo
assim.288
287
288
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
128
Dona Dora sempre ajudou a família, trabalhando na casa de farinha na roça e
vendendo seus derivados, produzidos pela mesma, nas feiras de Itororó. Também em Itabuna
não pode ver, de braços cruzados, o esposo e os filhos se degradarem nas roças de cacau.
Então começou a fazer acarajé e vender nas proximidades, montando sua barraquinha nas
feiras livres. Mais uma vez utilizou os seus dotes culinários para aumentar a renda familiar.
Na feira, ela vendia o produto do seu trabalho, o acarajé, ganhava um trocado e
comprava alimentos, um dia um peixe, outro dia a farinha, para melhorar as refeições
familiares. O que antes poderia ser conquistado com facilidade na roça, a alimentação, se
tornou precária na cidade. Tudo dependia do dinheiro, assim uma frase dita com entonação
por seu Delfino expressa as dificuldades vivenciadas pela família: “Tive que trabalhar pra não
morrer de fome289”.
O trabalho alcançado no novo espaço foi de muita valia para a família, não se
configurou como um trabalho urbano, pois continuaram desempenhando funções rurais. Mas,
foi originário do “conhecimento”, como afirma seu José: “Aí depois que nós foi tendo
conhecimento com o povo, comecemos arrumar trabalho nas fazendas dos outros290”. O
trabalho “pra não morrer de fome” foi necessário à sobrevivência, mas o “conhecimento” foi
além da sobrevivência, trouxe novamente os laços de solidariedade. Não mais aqueles
constituídos na roça, mas de igual importância para a adaptação da família em Itabuna.
Na última narrativa citada acima, dona Dora não fala com a tristeza da primeira, na
qual conta que enfrentava o brejo, sanguessugas para pegar taboa e sobreviver. Quando diz
“fui vivendo assim”, a entonação se modifica, a voz se torna altiva, vivaz, emitindo uma
espécie de orgulho em poder ajudar a família, de ter saído de casa e retornado com o alimento
para o esposo e os filhos. Enquanto a aposentadoria de seu Delfino não se tornava realidade, e
as diárias ganhas por ele e pelos filhos não abarcava a sobrevivência da família, dona Dora foi
conquistando o alimento através do seu aprendizado tanto na cozinha de sua mãe, depois de
sua sogra, e também com a lembrança da sua sagacidade nas feiras de Itororó.
Dona Marinalva também fala sobre a dificuldade da alimentação, nos primeiros dias
vivenciados por ela, no Maria Pinheiro. Até então praticamente inabitado, já que a
distribuição dos terrenos só aconteceu um tempo depois da sua chegada. Assim, ela recorda:
Marinalva: Não tinha nada aqui, só o trator. Jogavam lixo aí, verdura,
galinha. No dia que eles vinha jogar falavam pra agente: – Oh vai ter muita
coisa boa! Eles avisavam, porque eu era mais esperta e eles me conheciam.
289
290
Adelfino Marins Vieira. Entrevista citada.
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
129
Quando chegava era tanta coisa, era galinha boa, doce, era muita galinha, aí
eles jogavam lá perto da cancela.
Egnaldo: Quem jogava?
Marinalva: Vinha do Hiper, do Itão, aí eles me avisavam. Agente
aproveitava era tudo novinho. Porque não era como na roça, lá tudo era mais
fácil. Hoje em dia eu tenho muita coisa aí no fundo, tenho uma cisterna
grande, tinha uma horta, mas eu acabei, que eu crio muita galinha e elas
comem tudo [risos].291
No “tempo da cidade” a alimentação se apresenta escassa, e assim os migrantes
criaram estratégias para sobreviverem. Dona Marinalva relata que alimentava sua família por
muitas vezes através de “restos” dos supermercados Itão e Hiper Messias. Mas, se no primeiro
momento eu pensei que seria um relato carregado de tristeza, me enganei. O que ela enfatizou
foi o seu “conhecimento” e esperteza, em estar atenta para garantir os mantimentos que
seriam jogados no lixo.
Percebemos a mesma altivez na voz, tanto de dona Dora, quanto de dona Marinalva
para transmitirem o orgulho que sentem em poder, em diversos momentos de suas trajetórias,
contribuir e muitas vezes manter as despesas da casa. Assim, dona Marinalva fez questão de
enfatizar que ela “era mais esperta”, ela era atenta, aguardava, “conhecia” as pessoas que
depositavam os “restos”. Acima disso, ela estava além dos outros moradores, esse destaque
nos faz pensar neste sentimento de orgulho que estas mulheres sentiam. E também de como
construíram “táticas” com improviso e “criatividade” para “manipular” e “alterar” as
condições miseráveis a que foram impostas292.
Novamente o “conhecimento” aparece como um elemento importante nas narrativas
dos migrantes. Seu Raimundo falou da ausência de um “conhecimento” em trabalhar em algo
que não estivesse ligado à roça. Dona Marinalva já havia narrado a conquista do terreno pelo
“conhecimento” de alguém influente e amigo do prefeito, como também afirmou seu Edinho.
A família de seu Delfino nos fala de um “conhecimento” semelhante, mas não de pessoas
“importantes”, amigas de políticos. Mas de pessoas importantes na adaptação dos mesmos na
cidade de Itabuna. Pessoas conhecidas, amigas, vizinhas que de alguma forma contribuíram
para a sobrevivência da família.
No fragmento acima, dona Marinalva fala também da importância do
“conhecimento” entre pessoas. Desta vez de pessoas não tão “influentes”, na certa
trabalhadores que descarregavam os “restos” dos supermercados citados. Conhecidos que
avisavam o dia dos descarregamentos e ela “esperta” se prontificava e recolhia o que serviria
291
Marinalva Fernandes dos Santos. Entrevista citada.
Certeau ressalta que “as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem
utilizá-los, manipular e alterar”. In: CERTEAU, op. cit., p. 87.
292
130
para alimentar sua família. Segundo dona Marinalva, os “restos” eram “muita coisa boa”, ela
destaca as galinhas, eram novinhas e muito úteis para sua família.
Dona Marinalva estava acostumada a se alimentar de carne branca, na roça havia
“fartura” de peixe e galinha, conforme citei no segundo capítulo. A vida na cidade não
oportunizara a mesma “fartura” da roça, como ela mesma narra no fim do fragmento citado
acima, “lá tudo era mais fácil”. Então, ela se “arranjava” como podia, não dava para renegar
os “restos” dos supermercados, que para ela não eram “restos”, mas alimentos bons,
necessários às refeições.
Também se faz necessário esclarecer que Egnaldo, como amigo e morador do Maria
Pinheiro por muitos anos, me acompanhou em muitas entrevistas e até mesmo me apresentou
aos moradores, como citei nas considerações iniciais. Ele foi vencido pela curiosidade e
questionou a dona Marinalva sobre quem seriam as pessoas que jogavam os alimentos no
lixo.
Funcionaria também naquele momento na fazenda improdutiva um “lixão”? Ou os
funcionários dos supermercados eram vizinhos daquela localidade e conheciam de perto as
dificuldades enfrentadas por dona Marinalva e outros poucos que habitavam o local? Não
saberei responder a tais questionamentos, mas entendo que havia uma proximidade ou
“conhecimento” entre a migrante e aqueles empregados.
A narrativa caminha nas temporalidades da memória, primeiro narra os primeiros
momentos no novo espaço, depois compara estas vivências com a roça, onde não faltava
alimentação, “era tudo mais fácil”. E depois retorna ao presente, fazendo questão de falar
sobre o seu quintal, onde ela cria galinhas, tem uma cisterna, que certamente é útil quando
falta água em Itabuna. Lembra também que já teve uma horta neste espaço, mas como ela cria
muita galinha, estas comiam a horta.
Estas lembranças são carregadas de alegria, satisfação em ter este “pequeno pedaço
rural na cidade293”, bem em seu quintal. E o orgulho ultrapassa a narrativa, pois no fim da
entrevista ela nos convidou a visitar o seu quintal, mostrando com orgulho as suas galinhas, e
os muitos pés de frutas, de onde retira parte da sua alimentação. Além das frutas servirem de
matéria-prima para os “jujus”, que ela vende à vizinhança, contribuindo também para a sua
renda. Fosse no passado na roça, ou na cidade, e no presente dona Marinalva, através dos seus
conhecimentos rurais e da sua criatividade, garantiu e ainda proveu a sua sobrevivência.
293
Santana salienta que estes “pequenos pedaços rurais da cidade confundem campo/cidade, mas não impedem o
querer voltar para o interior”. In: SANTANA, 2009, op. cit., p. 65.
131
As distintas trajetórias dos migrantes se encontraram na formação dos bairros
populares, Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro. Os migrantes participaram ativamente da
formação destes bairros “inventando seu cotidiano294” e tornando estes espaços em “lugares
praticados295”. As fazendas “renovadas” se tornaram “lugares de trânsito296” entre o passado
rural e a vida urbana que tenta prevalecer no presente.
A oportunidade de conquistar uma casa própria fosse ela, inicialmente, um simples
“barraco”, foi a motivação para que muitos migrantes escolhessem estes espaços recémformados para constituir suas vivências na cidade de Itabuna. Alguns tiveram condições de
aforar um lote no Pedro Jerônimo, no qual pagam o foro anual até os dias atuais.
Outros, no entanto, dependeram da “bondade” da elite e/ou do poder público
municipal para conseguir um terreno no recém-desapropriado Maria Pinheiro. Estes agentes
“empurraram” a todo custo a população pobre que chegava a Itabuna para bairros distantes do
centro. O poder público tentou esconder a “experiência camponesa” afastando os migrantes
para a periferia, mas eles persistiram, constituindo na cidade “lugares heterogêneos297”.
Percebemos que as fronteiras em Itabuna entre o campo e a cidade são móveis. Tanto
por conta da proximidade da área rural com a urbana, também da expansão desta última,
como pelas “estratégias” da elite com o sistema de aforamento, uma prática rural. E
principalmente pelas “táticas298” dos migrantes que povoaram os bairros formados com a
herança rural das vivências no “tempo da roça”.
Os migrantes, utilizando bastante criatividade e suas sabedoria rural, conseguiram
burlar a maioria das dificuldades encontradas nos bairros. As primeiras percepções do espaço
recém-chegado foram marcadas por frustrações, como enfatizou dona Marinalva “na roça era
tudo mais fácil”. Mas também pelo sentimento de orgulho em ter conseguido sobreviver
diante das adversidades encontradas no “tempo da cidade”.
O “conhecimento” foi algo narrado como importante para a adaptação destes
migrantes à vida na cidade. Contudo, não foi visto com o mesmo sentido pelos narradores.
Alguns consideram o “conhecimento” de outro tipo de trabalho que não o rural como
necessário. Outros o “conhecimento” de pessoas “influentes” que contribuíram com o sonho
da casa própria. E por último o “conhecimento” de pessoas comuns, amigos, vizinhos, ou
simples conhecidos que tornou o “tempo da cidade” mais ameno e carregado de lembranças
de superações.
294
Ibidem, p. 159.
Para Certeau “o espaço é um lugar praticado”. In: CERTEAU, op. cit., p. 184.
296
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre, op. cit., p. 194.
297
Ibidem.
298
CERTEAU, op., cit., p.87.
295
132
É notável como os espaços rurais foram se tornando territórios, preenchidos pelas
subjetividades dos migrantes, em especial suas heranças rurais. Segundo Raquel Ronilk299, um
território é um “espaço real vivido”, onde os sujeitos estabelecem relações entre si. É desta
forma que os migrantes narram suas primeiras vivências nos bairros populares, evidenciando
a importância destas relações de sociabilidade e de vizinhança para a sua sobrevivência.
4.3 MORAR NA CIDADE
A permanência dos migrantes na cidade de Itabuna, e em especial nos bairros
populares Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro, pode ter sido motivada pela possibilidade da casa
própria, entre outras razões. Arrendar um lote e/ou receber um terreno gratuitamente foi algo
decisivo para a continuidade das vivências no “tempo da cidade”. No entanto, assinalamos no
sub-capítulo anterior, através das primeiras percepções durante a chegada nos espaços recémocupados, quantas adversidades estes trabalhadores enfrentaram para constituir estas
vivências.
Entre tantas dificuldades, a memória dos migrantes fez ressurgir, com bastante
ênfase, a ausência do abastecimento de água. Em um local carente, das principais
necessidades básicas, a escassez da água é uma das principais adversidades relatadas,
especialmente, pelas mulheres. Talvez fossem elas que mais sentissem a necessidade da água
durante seus afazeres domésticos, para preparar o alimento, lavar a louça e a roupa, entre
outras atividades. Ou também estariam as lembranças do cotidiano em casa transbordando em
suas memórias. No entanto, elas não enfatizam a falta de energia elétrica, transporte público,
esgotamento sanitário, mas lembram com pesar da falta de água.
Dona Marinalva, uma das primeiras moradoras do bairro Maria Pinheiro, relembra
como se “virava” para conseguir água nos primeiros anos vividos nesta localidade:
Água só lá no São Caetano, quando dona Caçula chegou aqui, eu já era
veona aqui (…) o povo fala de hoje, mas agente tem que agradecer a Deus
hoje em dia. Agente pegava água lá no São Caetano, e aqui pra trás tinha um
minadouro que agente pegava água três hora da manhã. Quando queria pegar
água mais limpa era doze hora, agente saía daqui com vela e candeeiro.300
Quando cheguei à casa de dona Marinalva, expliquei sobre a pesquisa e disse que já
havia entrevistado seu Edinho e dona Caçula, também moradores do Maria Pinheiro. Durante
299
300
ROLNIK, Raquel, op. cit., p. 28.
Marinalva Fernandes dos Santos. Entrevista citada.
133
a entrevista, quando falava sobre o problema da água, comentei que dona Caçula narrou muito
sobre esta dificuldade. Por isso dona Marinalva inicia sua narrativa, no trecho acima, citando
dona Caçula, ela fez questão de esclarecer que era “veona” no bairro, tinha chegado muito
antes da vizinha. Talvez na tentativa de se mostrar desbravadora daquela localidade e também
melhor conhecedora dos problemas do espaço recém-ocupado.
Dona Marinalva disse que pegava água no São Caetano, bairro vizinho ao Pedro
Jerônimo, este último também não tinha abastecimento de água. Naqueles arredores só o São
Caetano, no início da década de 1980 possuía a água tão desejada pelos primeiros moradores
do Maria Pinheiro e Pedro Jerônimo. Mas, para chegar ao São Caetano era necessário descer e
subir uma grande ladeira quando retornava, imagine o esforço para carregar os baldes de
água. Diante de tamanho sacrifício, às vezes ela preferia pegar no minadouro que ficava nas
proximidades da fazenda Gaúcha.
Para conseguir água tinha que ser de madrugada, talvez fosse o horário que caísse
água mais forte no minadouro. E se quisesse água limpa era necessário chegar ainda mais
cedo, meia-noite, então como não havia iluminação pública, poucos moradores eram
auxiliados pelo candeeiro, um velho conhecido destes migrantes, do “tempo da roça”. Era na
base da vela e deste conhecido que eles conseguiam chegar ao minadouro e pegar água para
“tentar” suprir algumas necessidades.
Dona Dora outra moradora do Maria Pinheiro, também se recorda da carência de
água: “Ia buscar água no São Caetano, às vezes comprava água pra beber. Pra lavar roupa ia
com os menino raspa água da lama no minadouro, onze da noite, era um sofrimento301”.
Também lembra que buscava água tanto no São Caetano, quanto no minadouro.
Porém, expressa que a água não era potável e algumas vezes necessitava comprar
água, para saciar a sede da família. No São Caetano, certamente quem dava água aos
moradores dos bairros vizinhos eram aquelas pessoas que tinham cisternas em suas
residências. Assim, não se configurava uma água muito limpa, não dava para beber.
A água do minadouro devia ser ainda mais “suja”, dona Dora enfatiza que retirava da
lama, não servia nem para cozinhar, muito menos para beber. Seria um “quebra galho” nas
horas da necessidade, mas imagine lavar louça e roupa com uma água enlameada. Mas, como
o minadouro era mais próximo que descer até o São Caetano, era com essa água mesmo que
fazia alguns afazeres domésticos. Sempre acompanhada dos filhos, que deviam ajudá-la a
carregar os baldes de água, percebemos como a família estava unida no enfrentamento das
dificuldades.
301
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
134
Dona Caçula, uma moradora mais recente, como frisou dona Marinalva, também
recorda a falta de água. Esta entrevistada não foi citada anteriormente nesta dissertação, pela
simples razão de ter migrado com apenas seis anos de idade da zona rural de Ubaitaba, uma
localidade denominada Aldeia, com a mãe e não se recorda do “tempo da roça”. Foi criada na
cidade de Itabuna, no bairro da Conceição, onde ajudava a irmã mais velha a cuidar dos
filhos. Depois que cresceu seguiu o caminho da mãe se tornando lavadeira e mais tarde foi
trabalhar em casas de família.
Resolvi inserir a trajetória de dona Enelis, ou Caçula, como é conhecida por todos no
Maria Pinheiro, no “tempo da cidade” e principalmente na discussão da ausência de água. Ela
narra enfaticamente esta precariedade, uma narrativa longa e riquíssima, inclusive por que
expressa sua origem rural. Então vamos ao primeiro trecho da sua entrevista:
Quando eu cheguei tava aquele calor, verãozão. Chegava do trabalho era só
arriar a sacola e pegando a lata e descendo aqui. Aí uma vez sabe o que me
aconteceu? No sol bem quente de verão mesmo, ali embaixo morava uma
senhora. Fui eu e uma vizinha, bati na porta dela e disse: – A senhora me
arranja uma lata de água? E ela falou: – Eu tenho mais não dou. Aí me doeu
na alma, foi a frase pior da minha vida, saí com aquela dor no coração com
aquela vontade de chorar, sem saber onde eu ia pedir água.302
A entrevista aconteceu na sala de sua casa no Maria Pinheiro, onde ela mora com as
filhas, esta casa está situada na rua principal do bairro, hoje é uma das poucas asfaltadas e por
onde passa o transporte público municipal. Mais precisamente no topo da ladeira, quando
realizei a entrevista era esta época de “verãozão”, pois foi no mês de janeiro. E quando subi a
ladeira para chegar à casa de dona Caçula pude sentir o sol a pino, era umas 2:00h da tarde.
Então, quando ela narrou este “verãozão” pude imaginar um pouco, e apenas um pouco, o
sofrimento mencionado acima.
Ao final do dia, ela subia a ladeira, cansada do trabalho nas “casas dos outros”,
deixava apenas seus pertences pessoais e tornava a descer a ladeira com a lata na mão para
procurar água. Certamente quando encontrava, voltava com a lata de água na cabeça para
ainda preparar o alimento para os filhos, lavar a louça e algo mais, se a água sobrasse. Talvez
o que mais dona Caçula necessitasse naquele “verãozão” era um banho para descansar o
corpo de trabalho.
No entanto, naquele dia em especial, ela encontrou alguém que negasse a água tão
desejada. Dona Caçula se deparou com o “poder do não”, as relações de solidariedade
construídas no “tempo da cidade” e das dificuldades do bairro Maria Pinheiro foram
302
Enelis Batista de Oliveira. Entrevistada em 07 de janeiro de 2010.
135
rompidas. Se a senhora tivesse “mentido”, dizendo que não tinha água, talvez não houvesse
rompido estas relações. Mas, pelo contrário, ela fez questão de afirmar primeiramente que
tinha água, para depois negá-la, quando recusou em ajudar dona Caçula e sua vizinha.
Quando dona Caçula afirmou que “doeu na alma” aquele não, e que ela saiu da casa
da senhora com “uma vontade de chorar”, naquele instante de transmissão da memória através
da oralidade, seus olhos encheram de água303. Ela reviveu aquele momento novamente, e
sentiu vontade de chorar, talvez porque anos atrás não teve a oportunidade de expressar os
seus sentimentos em relação ao “não”.
Também porque logo em seguida a mesma senhora que negou a água necessitou da
ajuda de dona Caçula, como a mesma conta abaixo:
Aí eu sair e ela me gritou: – Vem cá! Oh, minha galinha tava sã e agora
ficou batendo e gritando. A senhora sabe fazer remédio? Eu não sabia fazer,
mas lembrei que minha mãe criava galinha e uma vez vi minha mãe batendo
na galinha. Aí eu entrei de bom coração, peguei a galinha dei um banho e
bati três vezes, mas não foi que a galinha melhorou, saiu meia tonta
andando. Aí ela me agradeceu e disse: – Pode pegar água. Se eu fosse uma
pessoa ignorante eu dizia que não queria mais. Mas, eu tava precisando, fui e
peguei a água.304
A senhora que negou a água, criava galinha em seu quintal e uma delas deu um
colapso, então ela rapidamente recorreu à dona Caçula pedindo que a ajudasse. Esta não se
baseou no remorso do “não”, decidiu reativar os laços de solidariedade, e utilizando os
ensinamentos da mãe “curou” a galinha. Ela mesma, tendo migrado da roça ainda criança,
lembrou das reminiscências rurais de sua mãe, que talvez tenha continuado criando suas
galinhas na cidade, e assim dona Caçula pode aprender como lidar com a criação destas.
A senhora deve ter ficado envergonhada com a negação da água e na sequência
surpreendeu-se com o auxilio de dona Caçula. Pois, no mesmo momento que a galinha parou
de gritar e “saiu andando tonta”, a senhora agradeceu e permitiu que ela pegasse sua lata
d'água. Dona Caçula poderia recusar, como ela mesma fala, se fosse “ignorante”, mas fez
justo o contrário, aceitou a água, pois sabia que precisava e era tempo de “verãozão”. No
verão ainda hoje é comum a falta de água na cidade de Itabuna, o rio Almada305 seca, a
EMASA, empresa municipal responsável pelo abastecimento reduz este, e os bairros
populares são os mais atingidos pela escassez.
303
Certeau nos lembra a necessidade de observar a relação entre o corpo e a oralidade. Quando as “nuanças
acrescentadas pela entonação e pelos movimentos do rosto” apresentam sinais para interpretar a oralidade. In:
CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre, op. cit., p. 337.
304
Enelis Batista de Oliveira. Entrevistada citada.
305
Responsável pelo abastecimento de água em Itabuna.
136
Dona Caçula sabia que no “verãozão” quando a água não caía todo dia, as pessoas
restringiam a “ajuda” a aquelas que não tinham abastecimento de água nem no verão, nem no
inverno, como os moradores do Maria Pinheiro. Ela diz que “quem tinha suas águas no verão
não queria dar306”, consciente disso, e preferindo também estabelecer laços de vizinhança com
a tal senhora, ela não se ateve ao desafeto e pegou a sua água tão desejada.
Dona Caçula recorda ainda de uma caminhada que as mulheres do bairro Maria
Pinheiro fizeram até a prefeitura para pedir água ao prefeito Fernando Gomes, “foi de lata, foi
de panela, fazendo barulho na prefeitura. Quando chegou lá, tinha quatro segurança e aí
agente invadiu assim mesmo, dissemos um bocado de indireta pra Fernando (...)307. Mas,
apesar da insistência destas mulheres, a água não chegou ao bairro durante este governo. A
manifestação terminou frustrada, mas dona Caçula narra com orgulho que não ficou de braços
cruzados, tinha suas “táticas” para reivindicar a água desejada.
Segundo seu José, a água só chegou ao bairro no governo de Ubaldo Dantas. Em
uma notícia do Diário de Itabuna, o prefeito em questão prometeu que levaria água a alguns
bairros periféricos, entre eles o Maria Pinheiro308. Na época, a empresa responsável pelo
abastecimento de água ainda era estatalizada (EMBASA), agora é municipalizada.
Enquanto a água não chegava, os moradores se “viravam” como podiam, pedindo
água nos bairros circunvizinhos ou raspando na “lama” do minadouro. Chegaram a comprar
água, tanto para beber, como também para outras necessidades, como relata seu Esmeraldo:
“Água pra beber agente comprava na mão de Tonho, ele vendia em cima do jegue. Ele
morava lá na rua e tinha um tancão, aí vendia água309”.
Seu Esmeraldo foi um dos poucos homens que se referiu ao problema da água em
sua narrativa; mesmo assim, de forma rápida, ele informa como fazia sem o abastecimento
desse “bem” tão precioso. Como os demais, pegava água no minadouro e a água potável ele
comprava na mão de um vizinho que tinha um reservatório e vendia “em cima do jegue”. Ele
não deixa claro como era este reservatório, se ficava lá mesmo no Maria Pinheiro, ou em
alguma roça próxima. Apenas fez questão de falar como Tonho vendia a água, talvez para
enfatizar que o bairro ainda era uma extensão do meio rural.
As narrativas do “tempo da cidade” enfatizam a busca por água, mas também por
uma moradia nos espaços recém-ocupados. Não bastou apenas o arrendamento, recebimento
306
Ibidem.
Ibidem.
308
“Bairros terão água potável”. Diário de Itabuna. 1 de ag. de 1985. Ano XXVII. Nº 5.542, p. 1. APMI.
309
Esmeraldo Ferreira França. Entrevista citada.
307
137
do terreno, ou compra de um barraco, para os migrantes foi necessário construir cada
“pedaço” da sua casa, torná-la segura e confortável para sua família.
Segundo Roberto Da Matta, a “casa” tem uma grande simbologia em nossa
sociedade, da palavra origina-se “casamento”, “casadouro”, e “casal”. Idéias entrelaçadas ao
significado de “casa”, que de acordo com o autor, ultrapassa o individual e perpassa o
coletivo, onde pessoas se relacionam “por meio de laços de sangue, idade, sexo e vínculos de
hospitalidade e simpatia310”.
O que talvez explique a insistência em algumas narrativas dos migrantes em relatar a
construção de suas casas. Em especial são os homens que mais rememoram a conquista da
“casa” própria. Talvez porque estiveram envolvidos de “corpo e alma” na construção da
moradia, ou sentissem que a função de abrigar a esposa e os filhos era especialmente do pai
de família.
Seu Delfino, por muitas vezes, durante sua entrevista, relatou a luta para construir a
sua casa no Maria Pinheiro. Quando chegou era apenas um “barraco” no alto de um barranco,
então ele teve que aterrar o barranco para poder começar a construir:
Eu morava aqui nun barraco de tábua que vivia escorado pra não cair em
riba de mim (…) cavei pra construir minha casa (…) eu tava cavando isso
aqui, deu uma chuveirada, era uma camada de barro e outra de cascalho, caiu
em riba de mim. Falaram: - Eta o barranco matou o veí. Eu debaixo do
barranco, deu trabalho pra sair, mas eu não morri, não, tô aqui! [risadas] (…)
Aqui só tenho o serviço de pedreiro pra levantar parede e pilastra, mas o
resto foi eu que fiz. Quase morro debaixo da terra. Mas, Deus é justo e eu tô
aqui.311
Considero esta citação um dos trechos mais significativos da luta de seu Delfino para
“levantar” sua casa. A narrativa está envolta de orgulho e felicidade pela conquista. Em
nenhum momento ele relembra o sofrimento que lhe custou o trabalho para obter esta
conquista. Entre risadas ele nos conta como quase morreu quando cavava o barranco para
terraplanar o terreno, sem auxílio de nenhuma máquina, apenas dos filhos e alguns vizinhos.
Os pedreiros só foram contratados depois para construir as pilastras.
Enquanto cavava, fora surpreendido por uma enxurrada, então o barranco deslizou
numa mistura de barro e de cascalho que enterrou seu Delfino. Este lembra que muitos
disseram, talvez vizinhos, conhecidos e os poucos transeuntes da rua, que ele havia morrido.
A família na certa esperou no mister de desespero e ansiedade encontrar seu Delfino com
vida. E assim se sucedeu, pois como o próprio frisa, “não morri não, tô aqui”.
310
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1991, p. 59-60.
311
Adelfino Martins Vieira. Entrevista citada.
138
Para o entrevistado o que prevaleceu foi a justiça divina que o ajudou a sair debaixo
da lama e ainda continuar a luta pela casa própria. Seu Delfino acredita que “Deus” viu sua
batalha para conquistar o seu sonho e não permitiu que ele morresse antes de concluí-la. E ele
conseguiu realizar este projeto, foi nesta casa que pode descansar com sua esposa pelos
árduos anos de trabalho. No fim da entrevista ele ressalta: “Quando eu morrer mais a mulher,
deixo a casa pros filho, se souberem aproveitar”.
A transmissão da casa para os filhos no futuro perpassa a idéia de após a morte
deixar os filhos “garantidos”, se estes conservarem os trabalhos dos pais. Souza expressa a
“função social da moradia, como espaço de sobrevivência, de constituição e preservação da
família312”, o que se sobressaí quando os entrevistados falam da casa e da família, como algo
unificado. Apesar de hoje os filhos do casal, de seu Delfino e dona Dora, terem constituído
novos núcleos familiares e morarem em suas próprias casas, com exceção de Otoniel, que no
momento da entrevista morava com os pais, seu Delfino deixa claro o desejo de sucessão da
casa para os filhos.
Seu José, filho de seu Delfino, depois que se casou teve que deixar a casa dos pais e
procurar uma forma de ter a sua própria moradia, no início também só deu para um “barraco”,
como ele recorda:
Essa casa aqui quando eu comprei era um barraco de tábua, passei um
bocado de tempo aqui nesse barraco, quando dava chuva, aqui mesmo já
entrou água de ir até o fogão pra deságua no esgoto (…) Trabalhando na
prefeitura com o salário pequeno não tinha condição, mas sempre eu
sonhava. Quem se apega com Deus. Aí eu soube que o governo de Fernando
Gomes ia fazer muitas casas no Maria Pinheiro, aí colocaram a minha no
cadastro (…) Há eu fiquei muito alegre, aí fizeram a alvenaria, mas era
época de eleição, Fernando Gomes perdeu a política e a casa ficou no meio
da estrada, foi um sufoco. Aí eu pedi umas férias e levantei minha casa, com
a ajuda de um compadre e do mutirão. Eu fiquei tão agradecido.313
Ele lembra das adversidades vividas no “ barraco”, principalmente quando chovia e o
local alagava. Atrás da casa de seu José passa um córrego de um esgoto, e quando chove este
adentra a sua residência. No tempo em que esta era apenas um “barraco”, certamente ele
enfrentou dificuldades maiores expressadas na perda do fogão que desceu pelo esgoto.
Mesmo não tendo condições de construir uma “casa” mais segura e confortável, seu José
nunca deixou de sonhar. E um dia conquistou este sonho, através das construções das casas
pela Prefeitura de Itabuna.
312
313
SOUZA, João Carlos de, op. cit., p. 122.
José Pinto Vieira. Entrevista citada.
139
Quando narra sua conquista, ele também cita “Deus” como seu pai, expressando uma
herança religiosa, certamente ensinada por sua família. Seu José acredita que também deve
agradecer a “Deus” por ter conquistado seu sonho. Mas, nem tudo estava resolvido, depois
que a prefeitura fez a alvenaria, Fernando Gomes não se elegeu e as obras ficaram pela
metade. Então, a alegria dele foi substituída por um “sufoco”. Pois, ele havia deixado parte de
seus pertences na casa dos pais, parte na casa do compadre, e a família também estava alojada
na casa dos seus pais.
Ele deve ter pensado muitas vezes como conseguiria terminar a casa com o pequeno
salário que ganhava na prefeitura, desempenhando os serviços de gari. Qual a solução neste
momento de “sufoco” para chegar novamente à felicidade de conquistar seu sonho? Mas, nem
tudo estava perdido, talvez outros moradores também estivessem na mesma situação de seu
José com a casa incompleta, pois o novo governo que se instalou na prefeitura não deu
continuidade às obras.
Não quero com esta afirmação, sob nenhuma hipótese, inocentar Fernando Gomes, o
“benfeitor” em questão, pois vimos como ele distribuiu os terrenos no Maria Pinheiro,
deixando as pessoas totalmente desamparadas. Se ele decidiu construir as casas no bairro, não
fez mais do que a obrigação enquanto poder público, além deste “ato de bondade” ter se
configurado em uma nova estratégia política, com o intuito de se reeleger, já em seu segundo
mandato (1989-1992).
Também o novo governo, na figura de Geraldo Simões (1993-1996), em seu
primeiro mandato, não deu continuidade às obras no bairro Maria Pinheiro. Atitude comum a
muitos políticos. Quando eleitos, “esquecem” e paralisam as obras iniciadas por um governo
anterior, se este, claro, disputou as mesmas eleições em uma coligação oposta. Dessa forma,
as pessoas comuns “pagam” por estas disputas políticas “mesquinhas”.
Como seu José, que passou um “sufoco” ficando com a casa pela metade. A
solidariedade foi maior. A vizinhança logo se uniu e formou um mutirão para ajudá-lo e
também a outros envolvidos neste incidente. E com este ato de solidariedade, ele conseguiu
terminar a casa onde mora. E hoje nos fala da sua varanda como ficou “agradecido” aos
vizinhos, e em especial a um compadre, padrinho da sua filha que esteve do seu lado durante
este “perrengue”. Percebemos como os laços de compadrio, assim como os de vizinhança se
reproduzem no “tempo da cidade”. E como estes laços na ausência do poder público
contribuíram para a sobrevivência dos migrantes.
A vontade de construir uma “casa” de alvenaria no lugar do “barraco” perpassa pelo
objetivo de oferecer segurança à família. Seu Delfino, quando fala de um “barraco” que tinha
140
que segurar para não cair em cima dele e dos filhos, expressa através de uma hipérbole, o
desejo de segurança. Seu José nos fala de novo deste mesmo desejo quando narra a chuva que
levou seu fogão para o esgoto. A segurança está além do conforto, para estes trabalhadores o
que importava era ter um lugar para, como dizem, “colocar a cabeça debaixo e dormir em
paz”.
Seu Edinho, também morador do bairro Maria Pinheiro, narra a dificuldade, como
muitos migrantes, de construir uma “casa” de bloco na cidade de Itabuna. Mesmo trabalhando
em uma serraria, ele não encontrou facilidades no caminho trilhado até o sonho da casa
própria, como ele expressa no trecho abaixo do seu depoimento:
Quando eu falei que ia construir uma casa de bloco na serraria todo mundo
riu. Por quê? Porque eu não tinha condições, não tinha as vantagens que
temos hoje. Aí eu comecei a comprar material de construção, comprei mil
blocos e toda semana eu pagava, passei dez anos pra construir essa casa.314
Seu Edinho morou por muito tempo em um “barraco”, pois como disse acima não
tinha condições financeiras para construir uma casa de bloco. Inicia sua narrativa
rememorando as risadas dos colegas de trabalho quando ele afirmou que um dia deixaria de
morar no “barraco” e passaria a habitar uma “casa de bloco”. Ele não se deixou abater pelas
dúvidas e algazarras dos colegas e foi em frente nos seus objetivos.
Mesmo não tendo as vantagens de hoje, se referindo talvez ao programa do governo
federal “Minha casa, minha vida”, seu Edinho conquistou o seu sonho, passou dez anos, mas
ele conseguiu. Foi comprando o material aos poucos, juntando um dinheirinho daqui, outro
acolá, e atualmente tem uma casa de dois andares no bairro Maria Pinheiro, onde terminou de
criar os filhos e hoje pode abrigar a família da filha, que mora no andar de cima.
Seu Talmon tem uma trajetória um pouco distinta no “tempo da cidade”, quando
chegou, também passou muitas dificuldades, no entanto após o emprego na CEPLAC, e seu
desenvolvimento na área da botânica, ele pode alcançar algumas conquistas. Entre elas a da
casa própria, pois morou de aluguel um bom tempo no bairro da Mangabinha, mas depois que
arrendou um terreno no Pedro Jerônimo pode construir sua casa, como ele rememora:
Eu paguei o aforamento e comecei a construir pedindo dinheiro emprestado
ao meu sogro. Que meu sogro morava em Arataca e tinha uma rocinha (…)
aí quando eu recebi esse prêmio, a medalha que tá aí oh e o dinheiro paguei
tudo a ele.315
314
315
Edivaldo Domingos dos Santos. Entrevista citada.
Talmon Soares Santos. Entrevista citada.
141
O orgulho da conquista da casa própria está presente na narrativa acima, só que
agora direcionado para os méritos do trabalho desenvolvido por seu Talmon, na Mata
Atlântica do sul da Bahia. Logo que arrendou o terreno, não tinha condições de construir a
casa, então pediu dinheiro emprestado ao sogro que tinha uma “rocinha”, e então construiu
sua moradia. Onde vive até hoje com uma das filhas, pois sua esposa já faleceu.
Seu Talmon, ao contrário de seu Delfino e de seu José, não morou em um “barraco”
no início de sua vivência no bairro popular. O dinheiro emprestado, originado do trabalho
rural do sogro, possibilitou que ele conquistasse o sonho da casa própria na cidade de Itabuna.
E com o trabalho na CEPLAC quitou a dívida com o sogro. Como já frisei no primeiro
capítulo, este trabalho trouxe bastante satisfação a seu Talmon. Tanto que, durante a
entrevista ele insistia no “tempo da cidade” se recusando a rememorar o “tempo da roça”.
O prêmio ao qual ele se refere na narrativa é um dos méritos deste trabalho, ele
recebeu por ser um conhecedor nato da flora da Mata Atlântica. Ele mostra com orgulho a
medalha e o certificado emoldurado expostos na parede da sala da sua casa. O sentimento de
conquista da casa própria está atrelado à conquista de um ofício que não fosse o trabalho duro
nas “roças dos outros”; estes, aliás, seus maiores objetivos quando saiu de Brejinho, na zona
rural de Itabuna e migrou para a cidade, mas neste novo trabalho ele certamente utilizou seus
conhecimentos rurais.
Ao longo dos anos, os bairros Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro foram sendo vistos
pela “sociedade” itabunense como localidades “violentas” e “perigosas”, como também outros
bairros populares, onde o tráfico de drogas penetrou massivamente. Não me cabe aqui discutir
estas representações, quero apenas discutir mais uma dificuldade, entre tantas, enfrentadas
pelos moradores destes bairros, o preconceito.
Seu Edinho, no fim da narrativa, traz à tona a falta de respeito da polícia com o
moto-táxi, relatando sua experiência atual, pois desempenha esta função na cidade de Itabuna.
Ele fala também do preconceito que sofre enquanto morador do Maria Pinheiro:
Chegando lá embaixo e falar que mora no Maria Pinheiro, já era, não arruma
trabalho. Uma vez mesmo eu fui na Insinuante comprar uma televisão e
perguntaram:– Você mora onde? Eu respondi: - No Maria Pinheiro. Aí
fizeram: – Hum, hum, hum! Eu perguntei: - E você mora onde? Porque aqui
em Itabuna se você não quiser morar perto de ladrão e maconheiro não vai
morar em Itabuna. E eu falo com orgulho que moro aqui, eu criei meus filho
aqui, não tem inimigo aqui e aqui que eu quero viver, tranquilo.316
316
Edivaldo Domingo dos Santos. Entrevista citada.
142
Seu Edinho inicia sua narrativa fazendo uma diferenciação entre “lá embaixo” e o
espaço do bairro Maria Pinheiro, que ele não fala, mas fica implícito, como sendo “lá em
cima”. Inscrevendo assim uma “demarcação espacial317” entre o centro e a periferia que neste
caso se configura entre o “baixo”, o centro, e o “alto”, a periferia. Então, quando um morador
do “alto” chega no centro da cidade de Itabuna não pode falar onde reside, pois fica mais
difícil para conseguir um “trabalho”. Supostamente os contratadores acreditam que a maioria,
ou “todos”, originários destes bairros, seriam como diz seu Edinho, “ladrão e maconheiro”.
Ele segue a sua narrativa rememorando um incidente onde ele “sentiu na pele” o
preconceito. Como hoje ele está aposentado e faz um “bico” como moto-táxi, não necessita
procurar trabalho “lá embaixo”. Mas, transita pela cidade como qualquer “cidadão”
itabunense. E foi exercendo o seu lado consumidor que seu Edinho experimentou o
preconceito, quando foi comprar uma televisão na loja Insinuante de eletrodomésticos situada
“lá embaixo”, e o questionaram sobre sua residência. Não teve dúvidas, e respondeu
imediatamente que morava no bairro Maria Pinheiro.
Talvez um dos funcionários que o atendia, fazia seu cadastro na loja, ou queria saber
para onde enviaria a televisão, fez uma expressão de negação repetida por seu Edinho. “Hum,
hum, hum”, foi refeito pelo entrevistado através da oralidade e dos gestos, ele entoava e ao
mesmo tempo balançava a cabeça no sentido de negação.
O funcionário assim demonstrava a sua desaprovação em relação ao espaço em que
seu Edinho habitava. Se seu Edinho foi vítima do preconceito da “sociedade itabunense”
enquanto consumidor em uma loja, onde teria que ser bem atendido, para comprar o produto
procurado, na lógica do consumo, imagine se ele estivesse enquanto desempregado buscando
um trabalho no “centro”.
Seu Edinho no ato da negação do funcionário não se sentiu intimidado, no mesmo
instante revidou com uma pergunta para o funcionário, buscando conhecer onde residiria tal
pessoa. Porque se o Maria Pinheiro era motivo de desagrado, moraria um simples funcionário
que recebe um salário mínimo, mais comissão, em um local de luxo, ou em um bairro
próximo do “centro” da cidade. Mas, a pergunta de seu Edinho era uma retórica, não
necessitava de resposta, foi apenas uma provocação, pois ele afirmou que quem desejasse
morar distante de “ladrão e maconheiro”, procurasse outra cidade, que não Itabuna.
Dessa forma, seu Edinho confirma haver “ladrão e maconheiro” no bairro Maria
Pinheiro, mas em qual local não haveria? Mostrando sua consciência do contexto atual das
317
“A demarcação espacial e social se faz sempre no sentido de uma gradação ou hierarquia entre centro e
periferia”. DAMATTA, Roberto, op. cit., p. 36.
143
poucas oportunidades para os jovens “pobres”, que se tornam iscas fáceis para o consumo e
para o tráfico de drogas. E quando este “mal” já penetrou até mesmo muitas áreas rurais, e
principalmente, as casas daqueles mais abastados com tantas oportunidades de educação
privada, lazer, alimentação de qualidade e emprego, o que se pode pensar?
Seu Edinho continua demonstrando sua indignação diante da desaprovação do
funcionário em relação ao espaço que constituiu grande parte de suas vivências. Então ele
expressa o orgulho de morar no Maria Pinheiro, onde conquistou o sonho da casa própria,
encontrou segurança e tranquilidade para criar seus filhos, estabeleceu laços de vizinhança, e
quer concluir sua vida e o “tempo da cidade”.
As trajetórias dos migrantes são diversas, como também as razões que levaram estes
a buscarem a cidade de Itabuna. As perspectivas de melhorar de vida, fosse no âmbito do
trabalho, da moradia, ou para assegurar suas famílias, foram enfatizadas nas narrativas dos
migrantes. As memórias também expõem traços da conjuntura em que se efetivou tais
migrações. Como a crescente concentração de terras e a doença da vassoura-de-bruxa no
contexto da região sul da Bahia.
A heterogeneidade de trajetórias e expectativas se enlaçaram na formação de novos
espaços urbanos em Itabuna. A chegada e permanência nestes bairros populares em formação
foi impulsionada, em muitas trajetórias, pelas oportunidades de ter uma “casa” própria.
Aqueles que foram pequenos proprietários nas roças talvez não conseguiram viver em casas
alugadas, uma condição diferente da vida na roça. Outros que conviveram com o trabalho nas
terras de outrem, conservaram o sonho de ter seu próprio “cantinho”, seguro e tranquilo para
abrigar suas famílias.
O poder público “empurrou” estes trabalhadores rurais para a periferia de Itabuna
com o objetivo de expandir a área urbana da cidade e homogeneizar ou “alisar o território318”.
Assim os entregou a sorte, pois por muito tempo, e ainda hoje não assegura os principais
serviços básicos para a sobrevivência destes moradores. Estes, últimos, por sua vez, forjaram
diversas maneiras de enfrentar e ultrapassar as dificuldades impostas pelo cotidiano em
espaços com aspectos rurais e sem nenhum traço de urbanidade. O enfrentamento a este meio
é explicado pela origem destes migrantes, a herança rural de laços de vizinhança, compadrio,
trabalho rural, e participação nas feiras foram imprescindíveis para a construção das “táticas”
de sobrevivência e construção de “territórios” no “tempo da cidade”.
318
Rolnik nos lembra como as estrategias de controle social constituem movimentos de “singularização e de
desterritorialização” nas cidades. In; ROLNIK, Raquel, op. cit., p. 29.
144
As percepções da chegada, as dificuldades de alimentação, falta de água e a
construção das casas foram reminiscências inscritas nas memórias e expostas na oralidade,
nos gestos e expressões destes trabalhadores, que escolheram Itabuna como destino. As
mulheres, muitas vezes responsáveis pelos afazeres domésticos, narraram com mais ênfase a
falta de alimentação e água. Enquanto os homens, dedicados à segurança da família, relataram
por vezes as construções de cada pedaço da “casa” própria.
Em meio às lembranças das dificuldades, surgem ressentimentos com este passado
recente. Para alguns, estes foram gerados pela ausência da “fartura” e dos laços de
solidariedade do “tempo da roça”, outros emitem a falta de assistência do poder público como
principal fator para tantas adversidades no “tempo da cidade”. No entanto, para muitos
migrantes as lembranças de sofrimento foram substituídas pelo sentimento de orgulho em ter
conquistado a sobrevivência em Itabuna, diretamente relacionada à alimentação, a água e a
“casa” própria, nas suas narrativas.
O orgulho também se refere, em alguns casos, ao trabalho exercido no “tempo da
cidade”, base para a conquista da própria moradia. Em outros, como em seu Edinho, o
orgulho está envolto de pertencimento ao bairro onde vive. Mesmo se qualificando como
vítima de preconceito, ele enfrenta mais uma, entre tantas dificuldades encontradas na cidade.
Sua arma é o orgulho constituído a partir das suas vivências no bairro Maria Pinheiro, pois foi
no “tempo da cidade” que pode terminar de criar seus filhos e conquistar seu sonho da “casa”
própria.
145
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os migrantes são oriundos de diversas localidades rurais, alguns da região sul da
Bahia, outros de regiões circunvizinhas. Suas trajetórias rurais e urbanas são carregadas de
mobilidade espacial e ocupacional, perpassando por distintos espaços e trabalhos. No entanto,
suas vivências rurais são as que mais ressurgem em suas memórias, enfatizando a importância
do “tempo da roça” em suas trajetórias.
As vivências rurais indicam múltiplas relações de posse da terra; há aqueles que
foram pequenos produtores, outros que se estabeleceram como rendeiros e/ou meeiros, e
ainda os trabalhadores alugados. Muitos migrantes conviveram com diferentes condições de
posse da terra, alguns perderam suas pequenas propriedades por diversas razões e trabalharam
como meeiros, rendeiros, assalariados, ou diaristas. Estas relações significam as lembranças
do trabalho rural, seus ritmos, ora cronológicos, ora “naturais”, evidenciando a relação do
homem do campo com a natureza. As condições de posse da terra também influenciaram os
distintos significados do “tempo da roça”, alguns rememoram esta temporalidade como um
“tempo de fartura”, outros, no entanto, como um “tempo de dificuldade”.
As vivências citadinas e também atuais influenciaram a composição desta memória
rural. Alguns consideram as conquistas que obtiveram na cidade como um ponto norteador
para narrar aspectos negativos do trabalho rural. Outros através das adversidades na cidade
constroem um “tempo de fartura” na roça. Estes significados heterogêneos do “tempo da
roça” expõem diferentes razões que perpassam a posse da terra, as relações conflituosas com
os grandes proprietários rurais, as perdas das pequenas propriedades e por último as trajetórias
na cidade de Itabuna, as dificuldades e conquistas. Neste míster de trajetórias e vivências
rurais e citadinas, as memórias são constituídas no enlaçamento do “tempo da roça” e do
“tempo da cidade”.
As narrativas sobre o “tempo da roça” são carregadas pelas relações de trabalho, mas
também no entremeio destas lembranças surgem as famílias, as casas, as vizinhanças, o
compadrio. As mulheres emitem estas lembranças de forma mais minuciosa e detalhada, não
são as únicas a rememorarem a família, mas a coloca no centro das narrativas e das suas
trajetórias. Era para garantir a sobrevivência dos filhos que elas enfrentaram uma tripla
jornada, no trabalho nas lavouras, no comércio das feiras e nos serviços do lar. As memórias
sobre a família também aparecem como um elemento de ligação entre o “tempo da roça” e o
146
“tempo da cidade”, algumas mulheres expressam a perspectiva de permanecer ao lado dos
filhos como uma forte razão para a migração. Espero que esta pesquisa tenha contribuído para
romper com o silêncio acerca das histórias das mulheres319, e em especial, destas que estão
submersas pela vida rural.
Muitos entrevistados chegaram a Itabuna na década de 1980, porém outros decidiram
morar na cidade em períodos anteriores. No continuo das trajetórias surgem duas migrações
específicas. Um movimento migratório na década de 1960, onde alguns perderam suas terras
e/ou buscaram trabalho em outras zonas rurais. Fato este ocorrido também com a família de
seu Delfino, que migrou da região de Poções para São José do Colônia para trabalhar em
fazendas cacauicultoras. Também com dona Raimunda que saiu da mesma região e foi
trabalhar no sul da Bahia. Outros migrantes, neste mesmo período, deixaram a vida rural e
buscaram nas cidades uma forma de sobrevivência; como dona Gessília, que se estabeleceu
em Ibicaraí, enquanto seu Esmeraldo, dona Margarida e seu Talmon escolheram Itabuna
como destino. Este primeiro movimento migratório pode estar relacionado à crescente
concentração de terras e à busca dos cacauicultores por mão de obra.
A década de 1980 teve um movimento migratório para cidade de Itabuna, e não mais
para zonas rurais, foi um período que muitos migrantes decidiram substituir as vivências
rurais pelas citadinas. O crescimento populacional de Itabuna marcou esta década, neste
período também o perímetro urbano avançou para a zona rural da cidade, evidenciando uma
crescente urbanização. Também houve uma constante crise do cacau devido a intempéries
climáticas, aos baixos preços do cacau no mercado internacional e, no final da década, o
aparecimento da vassoura-de-bruxa. Porém, as narrativas dos migrantes evidenciam múltiplas
expectativas com a migração para Itabuna que extrapolam o modelo crise-migração.
Estas expectativas com a cidade perpassam a busca por trabalho, mas também
expressam a preocupação com a família, fosse para reencontrar membros afastados pelo
tempo, como seu Edinho que queria reencontrar sua mãe; fosse para manter a família unida,
como dona Raimunda e dona Dora. Compartilhamos ainda narrações que trouxeram no
discurso a procura de assistência médica e educação. Quanto ao contexto rural como
influenciador da migração, percebemos também diversos significados, desde acidentes de
trabalho como seu Valcir, passando por perda de propriedades, conflitos familiares e até
mesmo a constituição de novos núcleos familiares, que não cabiam mais nas pequenas
propriedades.
319
PERROT, op. cit., p. 16.
147
As vivências citadinas também são permeadas por uma heterogeneidade de
significados. O ponto central são as adversidades vivenciadas na cidade, em especial, nos
bairros populares Pedro Jerônimo e Maria Pinheiro. As lembranças da chegada nestes espaços
recém-formados, permeiam as dificuldades de alimentação, abastecimento de água e,
principalmente, a ausência de “conhecimento”. Este é lembrado como algo necessário para a
sobrevivência, desde a conquista dos terrenos até a construção das casas são atribuídos ao
“conhecimento” de pessoas influentes na política municipal.
Os migrantes também narram outro tipo de “conhecimento” que se funde com as
relações de vizinhança. A necessidade de recriar laços de sociabilidade na cidade é
evidenciada nas memórias, seja pelos vizinhos, ou pelo compadrio. São essas pessoas comuns
que auxiliavam de todo modo a sobrevivência nestes locais carentes de tudo. É um vizinho
que dava uma lata de água para suprir algumas necessidades, é um compadre que ajudava a
terminar a casa, é um conhecido que avisava sobre uma possível leva de alimentos que seriam
jogados no lixo. Na ausência das principais funções do poder público, são estes laços que
permitem o continuo das vivências na cidade.
Mas, nem tudo eram flores! Os migrantes também sentem falta dos vizinhos rurais,
apesar de renovarem estes laços na cidade, eles ainda consideram os da roça mais firmes e
duradouros. Dona Dora relembra dos vizinhos em sua casa quando estava doente, mas na
cidade só encontra o hospital, falta a hospitalidade daqueles vizinhos de porta, segundo a
mesma. Também percebemos que o auxilio da água também é limitado, pois os migrantes
necessitavam comprar água para beber, alguns vizinhos eram os próprios vendedores.
Seu Valcir, como ele mesmo diz, “um roçarino de primeira 320”, narra uma vida na
cidade mais carregada das relações capitalistas. Para ele, a roça ainda não está tão contagiada
com a lei do consumo como a cidade: “A roça pra mim é um presente (…). Aqui tudo tem que
comprar, um pé de coentro, uma banana, a água é comprada. Na roça você só paga energia,
tudo de bom tem na roça321”. Enquanto a roça é um presente, e onde só precisa pagar a
energia, na cidade a vida só é possível se você aceita a lei do consumo. Você precisa do
dinheiro para garantir a sobrevivência da família, até mesmo para comprar água.
No entanto, por outro lado, os migrantes constroem suas “táticas322” para
sobreviverem em meio há tantas dificuldades, utilizando principalmente sua herança rural.
Caçam preá para matar a fome, fabricam esteiras com taboa, cozinham quitutes para vender
nas feiras, buscam o “conhecimento” e a manutenção dos laços de solidariedade. Onde falta o
320
Valcir José Novaes. Entrevista citada.
Ibidem.
322
CERTEAU, op. cit.
321
148
poder público, eles “inventam323” diariamente o seu cotidiano para garantir a sobrevivência da
família. Ao lembrar das dificuldades da cidade, eles não emitem o sofrimento, mas, acima de
tudo, o orgulho de ultrapassar os obstáculos. E neste contexto eles também narram a luta para
construir suas casas; quando muitos duvidavam, eles conseguiram realizar o sonho da casa
própria, fosse através do trabalho, da ajuda dos vizinhos, dos parentes, ou da dedicação sobrehumana.
No final das entrevistas, os migrantes deixam escapar suas expectativas para o
futuro, alguns querem permanecer na cidade, melhorar a vida, outros sonham em retornar ao
campo, reencontrar familiares e terminar os dias com tranquilidade. Alguns pensam que a
idade não permite mais sonhos grandiosos, estão satisfeitos em ver os filhos criados. Outros
mais novos, ainda buscam trabalho, ainda tem uma vida por construir. Como Gilberto, um dos
mais novos migrantes, foi para Itabuna ainda criança, hoje com 33 anos de idade ainda busca
“se dar bem na vida”, como ele mesmo narra: “Eu tô desempregado, mas não fico parado não,
eu corro atrás do meu. Eu trabalhei quatro ano na Cargil, de lá pra cá, parece que desandou
meu lado. Tomo mundo tem comércio e tudo, e eu assim, cê é doido324”.
Depois que saiu da Cargil, empresa agrícola que no sul da Bahia produz artigos
agrícolas e pecuários, além de desenvolver a industrialização do cacau, Gilberto não
conseguiu mais emprego. A narrativa acima expressa a tristeza de ver seus vizinhos da mesma
origem, estarem hoje com comércio, trabalhando e sobrevivendo, como seu João e seu
Raimundo, que tem suas oficinas. Enquanto ele ainda espera encontrar um emprego na
cidade, não fica “parado”, também só retornaria à roça se pudesse comprar uma terra própria,
como foi discutido no segundo capítulo.
Seu Talmon, que conquistou um emprego na CEPLAC no “tempo da cidade”,
através deste trabalho, construiu uma casa no Pedro Jerônimo onde mora com uma filha, e
outra no Jardim Primavera, na qual abriga a irmã, não pretende mais retornar à roça. Quando
fala das suas expectativas para o futuro lembra-se dos irmãos: “Hoje tá todo mundo velho,
sessenta e poucos anos, setenta, tá esperando só a hora que Deus chamar325”. Ele próprio tem
74 anos, quase todos dedicados ao trabalho e a sobrevivência da família. Abandonado pelo
pai, migrou com a mãe e os irmãos para Itabuna; como sendo dos filhos o mais velho, sempre
se preocupou em ajudá-los, hoje olhando para o passado ele vê que cumpriu sua missão, já
pode descansar em paz.
323
Ibidem.
Gilberto Sena. Entrevista citada.
325
Talmon Soares Santos. Entrevista citada.
324
149
Seu Edinho, um pouco mais novo, com 64 anos, também quer tranquilidade, agora
que já criou os filhos, mas ainda pensa em passear, “curtir” um pouco da aposentadoria:
“Pescaria hoje só vou na farra, se me der vontade de comer um peixe eu vou lá no rio, na roça
eu só vou a passeio, pra chupar uma laranja, comer uma banana, uma jaca… Os filho tudo
criado, saio, não tenho que dar satisfação, volto quando eu quiser326”. Pescaria e roça,
trabalhos que desenvolveu para garantir a sobrevivência, agora são vistos como meio de lazer,
apenas para se divertir e saciar a vontade de um alimento diferente, daquele disponível na
cidade.
O casal dona Dora e seu Delfino também pretendem permanecer na cidade,
aproveitar a segurança da casa própria, conquistada com tanto sacrifício. Seu Delfino afirma:
“Se Deus me ajudar vou terminar de construir minha casa, falta eu rebocar toda 327”. Mesmo
aos 86 anos de idade, seu Delfino ainda pensa em melhorar sua residência, rebocar, torná-la
mais confortável e segura para ele e sua esposa. Dona Dora, por sua vez, fala das melhorais
ainda necessárias ao bairro, das ruas que precisam ser asfaltadas, mas mesmo assim, ela
acredita que o Maria Pinheiro está muito melhor do que quando chegaram há 27 anos atrás,
assim ela narra: “O bairro tá ruim ainda, mas pra mim tô achando bom, do jeito que eu vi
[risadas], agora tá uma cidade328”. Dona Dora deixa claro que quando chegou ao espaço
recém-formado não acreditou que estava em uma cidade, certamente reconheceu o bairro
como uma área rural, mas hoje “tá uma cidade”. Então, ela compara suas primeiras
impressões da localidade recém-urbana com suas perspectivas do “agora”.
Também há aqueles migrantes que sonham com o retorno ao campo, como seu
Valcir, dona Raimunda e dona Marinalva. Nas últimas, o sonho é movido pelo desejo de
reencontrar familiares. Como narra dona Marinalva: “Se eu pudesse eu voltava pro lugar onde
eu fui criada, eu já tava lá! Quem me prende aqui é o meu filho, mão tenho mãe nem pai, mas
tenho meus irmão. Agora também só espero me aposentar, é a última esperança329”. Com o
filho necessitando de seus cuidados, por apresentar problemas mentais, ela não pode realizar o
seu sonho, também espera alcançar a aposentadoria para ter uma vida mais tranquila. O sonho
de retornar está interligado ao desejo de reencontrar os irmãos, que continuam vivendo na
roça, em Jacareci.
Dona Raimunda vive com o esposo que também enfrenta problemas de saúde, seus
filhos moram no estado de São Paulo. No entanto, quando fala do futuro ela não demonstra
326
Edivaldo Domingo dos Santos. Entrevista citada.
Adelfino Martins Vieira. Entrevista citada.
328
Teodora Pacheco Pinto. Entrevista citada.
329
Margarida Rocha França. Entrevista citada.
327
150
vontade de ir se juntar aos filhos, seu desejo é retornar a Poções, onde seus pais ainda hoje
tem uma pequena propriedade rural, assim ela enfatiza:
O bom da cidade é quando a pessoa adoece, mas dizer que a roça é boa, é!
Eu sinto saudades da roça, é muito sossego. Não sabia de nada, mas agente
brincava de roda, brincava no cavalo véí quando era criança, pegando picula,
correndo. Fomo criado assim que nem uns bichinho do mato [risadas].330
Devido aos problemas de saúde do esposo, ela ressalta a facilidade de encontrar
atendimento médico na cidade, mas a roça não deixa de ser “boa”. Quando compara o “tempo
da roça” com o “tempo da cidade”, a roça ganha, pois lá ela encontra sossego. Ela revira sua
memória rural e lembra do tempo de criança, das brincadeiras de roda, picula, montaria no
cavalo, enfim. Fala ainda que “não sabiam de nada”, não tinham acesso à escola, viviam
“isolados” no cotidiano rural, mas não vê isto como uma dificuldade, são lembranças boas, às
quais colocaram um belo sorriso no rosto de dona Raimunda, e fizeram ela preferir e sonhar
com o retorno ao campo.
Seu Esmeraldo, um andarilho convicto, nunca gostou de permanecer por muito
tempo em uma localidade. Mesmo depois que estabeleceu sua família em Itabuna, a esposa e
alguns filhos, continuou viajando para São Paulo, onde trabalhava e também via os demais
filhos que se encontram naquele estado. Quando falou de suas expectativas para o futuro,
lembrou destes filhos: “Agora eu quero saúde, melhora, pra eu puder passear [risadas], ir pra
São Paulo ver meus filhos, meus netos, bisnetos, chega lá vou encontrar um monte de
bisnetos331”. Infelizmente seu Esmeraldo não conseguiu realizar este desejo de reencontrar os
filhos e conhecer os bisnetos que moram em São Paulo, quando realizei esta entrevista ele
estava com câncer, mas ainda não havia sido diagnosticado. Um tempo depois ele faleceu em
razão desta doença, concluindo seus dias de vida na cidade de Itabuna, ao lado da esposa, dos
filhos e netos. Seu desejo de saúde que narrou em meio a risadas, não se concretizou, assim
seu Esmeraldo descansou o corpo dos muitos anos de trabalho, encerrando suas andanças
rurais e citadinas.
As trajetórias e memórias dos migrantes estão embebidas pelo “tempo da roça” e
pelo “tempo da cidade”. Espaços vivenciados e transformados pelas escolhas e histórias
destes trabalhadores rurais. Dessa forma, “tanto a cidade, quanto o campo surgem como dois
lugares da memória que passaram por profundas transformações vivenciadas pelo mesmo
sujeito histórico e que denotam rememorações radicais332”.
330
Raimunda Libarino de Jesus. Entrevista citada.
Esmeraldo Ferreira França. Entrevista citada.
332
SANTANA, Charles D' Almeida, 2009, op. cit., p. 52.
331
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Otoniel Pinto Vieira. Residente no bairro Maria Pinheiro, Itabuna, nascido em 1959 em Iguaí.
Entrevista em 28 de janeiro de 2010.
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