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AEROPLANOS Texto de Carlos Gorostiza Tradução de Antonio Carlos Brunet PRIMEIRA PARTE A MANHÃ Uma casa modesta, de subúrbio, dessas com pequeno jardim à frente: o que pode ser visto, ou inferir-se, de onde transcorre a ação, um lugar onde, antigamente, foi uma simples sala de estar. Há uma comunicação com o exterior e outra para o interior. Embora ainda sobrevivam alguns móveis velhos – sofá, mesa, cadeiras, alguma poltrona, etc. -, o tempo foi acumulando ali, todo o tipo de coisas, algumas já pertencentes ao passado e outras atuais. Por exemplo: perto de uma antiga máquina de costura, há modernos instrumentos musicais de uma banda de rock, entre os quais se destacam uma bateria e um baixo elétrico. Junto a eles existem vários aparatos eletrônicos, e, não muito distante, um velho tocadisco. Junto a ele, um telefone. Por todo o espaço convive – caracterizando o tempo presente -, uma estranha e vital mistura de passado e futuro. De qualquer maneira, o lugar, graciosamente desarrumado, é agradável e poético: uma poesia criada pela convivência feliz do avô com seu neto, ausente nesta jornada. Por ali, sobre algum móvel, há uma foto emoldurada, de mulher. No centro do ambiente, há um velho baú. E, também, sobre uma mesinha de centro, um jogo de dominó. No escuro começamos a ouvir a valsa “El Aeroplano”, de Pedro Datta. É uma velha gravação, em disco de acetato, de 2 78rpm. A luz sobe, lentamente. A cena está vazia. Em seguida, de fora, como que atraído pela valsa, aparece Cristo, um homem delicado, porém ágil, de 78 anos. Com um olhar, comprova que no lugar não há ninguém e fica junto ao tocadisco, escutando a valsa, emocionado. Depois de um tempo, aparece Paco, vindo do interior. É um homem forte, de 78 anos, que rengueia. Traz uma garrafa térmica com café. Surpreende-se ao ver Cristo, e vai colocar a térmica sobre um móvel. PACO – O que estás fazendo? CRISTO (Pego de surpresa) - Ahn? O que disseste? PACO – Há muito tempo estás aqui? CRISTO – Um pouco. Entrei, ouvi a música e fiquei escutando. (Com nostalgia.) “O Aeroplano”! Era lindo. PACO – É. CRISTO - Como? PACO – É lindo. (Vai retirar o disco, antes que a valsa termine.). 3 CRISTO – Ah, sim. Há muito que não a escutava. Não sabia que tu... (A música pára.) Por que não a deixas tocar? PACO (Querendo mudar de assunto) – Diga-me: o que foi que aconteceu para apareceres a esta hora? CRISTO (Também dissimulando) – Ah. Nada. Tive que sair e... Na passada comprei pastilhas. Queres uma? PACO – Não. Pela manhã me detonam o estômago. CRISTO (Pensa) – Ah, é? E pela tarde, não? PACO (Pausa) – Depois de comer é diferente. CRISTO (Pausa) – O quê é diferente? PACO (Começando a irritar-se) – Tudo é diferente. A gente já comeu, assim que... o estômago, a pastilha... tudo é diferente. CRISTO – Ora bolas. Não me diga que a pastilha é diferente. A pastilha é a mesma. A pastilha... PACO (Interrompendo) – Escuta-me: vieste aqui para discutir? De manhã cedo e tu já estás discutindo? É melhor que venhas à tarde, então, como sempre. Assim não discutimos. 4 CRISTO – À tarde discutimos do mesmo jeito. PACO (Muito nervoso) – Não vá me dizer que quando vens à tarde, entras como entraste agora: discutindo antes de conversar. CRISTO – Ninguém pode discutir antes de conversar. PACO (Quase violento) – Antes de entrar, eu quis dizer. E não continua porque me deixas nervoso. CRISTO – Não há nem o quê discutir: estás mal. Se quiseres, eu vou, e volto à tarde. PACO (Controlando-se) – “Volto à tarde”. “Volto à tarde”. Senta. Já que estás aqui... (Cristo senta-se no sofá. Observa Paco. Este, depois de não saber o quê fazer, senta-se junto a Cristo. Tempo. Por fim.) E me dá. CRISTO – O quê? PACO – Uma destas pastilhas de merda. (Sem nenhum gesto de triunfo, Cristo dá-lhe uma pastilha e serve-se de outra. Durante um instante, e em silêncio, os dois saboreiam a pastilha. Por fim.). CRISTO – E então? PACO (Olhando-o) – “E então” o quê? 5 CRISTO – Como foste? PACO (Dissimula) – Com o quê? CRISTO – Com o resultado. PACO (Mais dissimulado) – Que resultado? CRISTO – O resultado do exame. PACO (Exagerando) – Aaah. Não. Ainda não fui. Vou buscá-lo esta tarde. CRISTO – Não ia ficar pronto hoje de manhã? PACO – Disseram para hoje: não para esta manhã. CRISTO – Bom, porém “hoje” já é desde manhã cedo. Não sei por quê... PACO (Interrompe, outra vez, violento) – Mas o que é que há contigo hoje de manhã? Pegaste alguma febre matutina? O exame ia ficar pronto hoje, não ia? Bom: eu vou buscá-lo hoje. E terminou! (Levanta-se e dirige-se para o móvel sobre o qual deixou a térmica. Pega duas xícaras de cafezinho.) Queres um café? 6 CRISTO (Sem lembrar da discussão sobre a pastilha) – Não. Pela manhã não tomo café. PACO (Pára e olha-o, fixamente) – Ah, não? E por quê? CRISTO – Antes da comida me cai mal. PACO – Ah é? O café te faz mal, agora, a pastilha não? CRISTO (Resistindo ao olhar. Por fim) – Está bem. Me dá um. (Paco serve. Volta ao sofá com a xicrinha. Cristo olha seu jeito de caminhar: agora, Paco, não somente rengueia, como caminha inclinando o corpo, graciosamente, para trás. Paco entrega o café a Cristo, e volta ao móvel para servir-se. Cristo observa-o, com curiosidade.) Estás rengueando mais. É por causa da operação? PACO – Estou caminhando como sempre. E isto não é rengueira: já te disse que é o de sempre. CRISTO (Tempo. Decide) – É uma rengueira. (Observa-o.) E agora rengueias mais do que antes. Ou rengueias de outro jeito, não sei, um dos dois. Quem sabe é por causa da operação. PACO (Enfrentando-o) – Diga-me: quanto tempo faz que me operei? 7 CRISTO – Mais ou menos uns dez dias. PACO – Onze. E depois de onze dias, recém agora tu te dás conta que estou caminhando de outro jeito, ou é por que nunca me viste de manhã? CRISTO – Ah. Então reconheces que estás caminhando de outro jeito. PACO – Claro. O médico mandou. Diz que é para que eu não me acostume mal, depois da operação, como aconteceu com o joelho. CRISTO – Então é como eu estou dizendo: estás caminhando diferente. PACO – Isso é outra coisa. Caminhar diferente, não quer dizer que esteja rengueando mais. Sigo as instruções médicas, e é só, porque, para o teu entendimento, desde que o tonto do Falquetti me quebrou o joelho, e isso faz 50 anos, sempre caminhei igual. É claro, que com alguma... Enfim... com alguma dificuldade. Porém, isso não é renguear, está claro? (Irrita-se.) Parece que para ti... ultimamente... os dias têm amanhecido escuros. (Senta-se outra vez, com seu café. Bebe.). CRISTO – Ah! Pastilha com café. (Bebe.) Pronto. Obrigado. (Devolve a xicrinha, porém Paco, que toma seu café com gosto, finge não ver. Então, Cristo deixa-a sobre o sofá, entre 8 os dois, e logo tira um pedaço de papel do bolso, mostrandoo. Paco olha sem interesse e depois olha para Cristo.). PACO – O que é que há? CRISTO – Gostas deste? PACO – Não. CRISTO – Mas nem o olhaste. PACO – Por acaso não sabes que eu não gosto de Loteria Esportiva? CRISTO – Já sei que tu não gostas de loteria esportiva. Estou te perguntando por este jogo. PACO – Se eu não gosto de Loteria Esportiva, como queres que eu goste de uma aposta dela? Disso entende qualquer ba... (Corrigindo-se.) qualquer um... CRISTO – O quê ias dizer? Qualquer babaca? PACO – Eu não falei babaca. CRISTO – Paraste a tempo. 9 10 PACO (Contendo-se) – Eu disse que tu não entendias, mais nada. CRISTO – Bom, está bem, eu não entendo. Explica-me, então: eu quero entender. PACO (Dissimulando) – É uma forma muito pessoal de ver as coisas. A gente não tem porque estar de acordo com o que os outros... (Pára.). CRISTO – O quê? Agora fazes filosofia também? PACO – Por quê não? Tu és o único que podes filosofar por aqui? CRISTO – Então me explica, vamos! PACO – Explicar o quê? CRISTO – Esta tua filosofia sobre a Loteria Esportiva. PACO – Mas tu és chato, não? CRISTO – Vamos! Vamos! PACO – Bom... O que eu quero dizer é que no futebol não há lógica. CRISTO – E daí? 11 PACO – E daí que não tem lógica! CRISTO – Sim, e então? PACO (Nervoso) – Então, que se não há lógica no futebol, não pode haver lógica na Loteria Esportiva. E, para mim, as coisas sem lógica... (Dá por subentendida a frase.) É isso. CRISTO – Ah! Essa é a tua filosofia. PACO – Sim, por quê? Está errada? CRISTO – Não. Porém, me diz uma coisa: para ti, a vida tem lógica? PACO – A vida? Como que vai ter? Aí está: nem a vida tem lógica, e tu queres que a Loteria Esportiva tenha. Ora! CRISTO – Porém da vida tu gostas, não? Pelo menos parece. PACO (Engole a saliva, coloca a mão no joelho de Cristo) Escuta-me, Cristo: hoje tiraste a manhã para me foder, não é? CRISTO (Tranqüilo) – Não me chames de Cristo. PACO (Olha-o com firmeza) – Vamos tratar deste assunto? 12 CRISTO – Que assunto? PACO – Este dos apelidos. Há muito que deveríamos ter falado sobre isso, e parece que esta manhã, o clima está propício. CRISTO – Não. Falemos da lógica: é melhor. PACO – Não senhor! Falemos dos apelidos. Já estou de saco cheio desta história, de que a cada vez que eu te chamo de Cristo, tu ficas irritado. E afinal de contas, a única coisa que faço, é encurtar um pouco o teu nome, nada mais. Em vez de Cristóvão, Cristo. É mais cômodo. Eu não o inventei. Todo o bairro te chamava assim. E, em troca, tu... Como é que tu me chamas? Por acaso, alguma vez me chamaste de Francisco? Não, senhor. Ou me chamas Paco... e Paco ainda vá lá, muitos me chamam assim... mas, quem me chama de Galego? Alguém mais, por aí, me chama de Galego? E, me diz: alguma vez eu te chamei de Italiano, hein? E Pé Grande, quem me chama de Pé Grande por aí? Tu! Tu és o único que me chama de Pé Grande! CRISTO (Sorrindo) – Carinhosamente. PACO – Eu também te chamo de Cristo, carinhosamente! E tu não gostas! CRISTO – Ah: te lembras de quem te apelidou de Pé Grande? 13 PACO (Interessado, de repente) – Não. Quem? CRISTO – O Alface. Aquele treinador que nos dirigia na chácara do Sportivo Palermo, estás lembrado? Um dia ele disse: “tu, Pé Grande, eu quero de zagueiro. Sei que os adversários vão te respeitar”. lembras? Desde esse dia, todos te chamaram de Pé Grande, e os adversários te respeitaram - eh, caralho! -, se respeitaram. PACO (Acalmando-se) – Sim. Porém eu gostava de jogar na frente. Como tu. Eu via de trás, como tu obstruías... Eu te invejava, sabes? Acho que nunca te disse. Mas invejava. CRISTO – Sim, mas eu parei, enquanto que tu... PACO – Ih!... Tu driblavas que era uma loucura. Eras um fenômeno. Porém, carne de hospital. Deixaste de jogar a tempo, me parece. CRISTO – Sim. E tu continuaste: porque tu eras dos que baixavam a ripa, não dos que apanhavam. PACO – Mas eu também apanhei. Olha como ficou o meu joelho. Agora até dizes que eu rengueio. 14 CRISTO – Sim: rengueias. A troco de que santo, nós vamos andar com rodeios? PACO – Aqui, ó, que eu rengueio! CRISTO (Emocionado) – Porém isso agora não importa, Pé Grande. O que importa é que foste um craque, com todas as letras. Sabes o que me disse o cara lá da Loteria Esportiva, há poucos dias atrás? “Diga-me – ele me disse – esse seu amigo, esse que rengueia... não foi um jogador famoso... um que chamavam de Falcão?” Assim ele me disse. (Pausa. Paco olha-o profundamente.). PACO – Um que chamam de Falcão. Ainda continuo vivo, parece. CRISTO – Sim, claro. Quem disse que não? PACO – E, de agora em diante, meu nome é Francisco, como consta nos meus documentos, estamos combinados? CRISTO – Sim, Galego, sim. PACO – Olha: não me irrita, está bom? (Toca o telefone. Paco vai atender, e Cristo aproveita para olhar, impunemente, o renguear do amigo.) Alô. - Ah, como estás? - Bem, bem. - Não; vou esta tarde – E que pressa, hein? Vai mudar alguma coisa se eu for pela manhã? Eu tenho mais interesse do que tu, em saber, 15 pelo menos parece. – Eh! Tens tanto medo assim que eu morra? – Não. Fito saiu cedo. Está tratando da burocracia desta tal viagem. – Não. Quem me dera estivesse sozinho: estou com o Cristóvão. – Não: Cristo não, porque ele não gosta. – E o que é que eu posso fazer: tenho que agüentar este chato. (Cristo sorri.) Sim, de saúde está bem, só um pouco mais velho. Ele pensa que quem está mais velho sou eu, porém, se ele pudesse se ver...(Para Cristo.) Meu filho te deseja saúde. CRISTO – O mesmo para ele. PACO (Ao telefone) – Ele te manda lembranças. (Um gesto de Cristo.) – Bom, sim, eu te ligo. – Sim, tchau. (Desliga. Para Cristo.) Ai, ai, ai... Tem medo que eu morra. CRISTO – Ele te ama. PACO – Eu não disse que ele não me ama. Eu disse que ele tem medo que eu morra. CRISTO – Tu também. PACO – Eu também o quê? CRISTO – Tens medo de morrer. PACO – Ah é? Não me digas! 16 CRISTO – Sim. Porque se não tivesses medo, terias ido esta manhã mesmo buscar o resultado. Assim, terminavas de uma vez por todas com este assunto, que cá entre nós, já está enchendo o meu saco. PACO – Ah é? Sabes o que é que acontece contigo? Tu tens medo de que eu não morra! CRISTO – O quê? PACO (Mostra o telefone) – Aquele tem medo que eu morra. E tu tens medo de que eu não morra. CRISTO – Ora, Paco! PACO – Não me chames de Paco! Francisco! E, para que saibas... não vou dar o gostinho para nenhum dos dois! CRISTO – Ah não? E como vais fazer? PACO – Não sei. Vou me arranjar. (Irritado, começa a servir-se de outro café. Cristo observa-o.). CRISTO – Não tomes tanto café. Faz mal. Sobretudo este. PACO – O quê? És a minha mãe, agora? Vou tomar todo o café que me der vontade. (Serve-se de mais um café. Tempo.). 17 CRISTO (Reclama) – Não tinhas me dito nada que o teu neto ia viajar. PACO (Disfarçando) – Fiquei sabendo ontem, ou anteontem. Vai com a tal banda de música. De repente receberam um convite, e... CRISTO – Convite de onde? PACO – Da Espanha. Para um festival. Vai toda a América Latina. E ele vai representando a Argentina. O que te parece o garoto, hein? CRISTO – Quer dizer que toca bem, então. PACO – Parece que sim. CRISTO – Vais sentir a falta dele. PACO – É... um pouco, sim. (Gesticula para os instrumentos.) Com a barulheira que eles fazem aqui... Tu não imaginas a tranqüilidade que vai ter agora! CRISTO – E ele vai por muito tempo? PACO – Não. Vinte e dois dias. Contando os dois dias de viagem, porque enfim, entre apitos e flautas, ir e voltar leva dois dias. 18 CRISTO – As propagandas dos jornais dizem que os aviões vão em doze horas. PACO – Sim, porém a burocracia, a alfândega... E, às vezes, os vôos vêm atrasados... Olha: se quiseres ficar tranqüilo, põe um dia de ida e outro de volta. CRISTO (Sacode os ombros) – Eu estou tranqüilo. PACO – É só uma maneira de falar. CRISTO – E tu falas como se já tivesses viajado: “a burocracia, a alfândega...” O que é que tu sabes disso tudo? PACO – Ora, tu nunca foste num aeroporto? CRISTO (Vacila antes de responder. Por fim, dá de ombros) – Não. PACO (Assombrado) – Nunca foste num aeroporto? CRISTO – Não. O que é que tem de mais: nunca viste alguém que não tivesse ido a um aeroporto? PACO – Não. É a primeira vez. CRISTO – Bom, isso sim é que é esquisito: não ter visto nunca alguém que não tivesse ido a um aeroporto. 19 PACO – Mas ouça Cristo: a um aeroporto vai qualquer ba... (Pára, confuso.) Vai qualquer um. CRISTO (Desgostoso) – De novo, a mesma coisa? Diga de uma vez: qualquer babaca! PACO – Não! Tu não és um babaca! Tu és um mala! E estás ficando muito pesado esta manhã! (Cristo olha-o, vai responder, mas opta por demonstrar sua irritação levantando-se e caminhando em direção à saída, ainda que sem a menor pressa.) O que estás fazendo? Aonde vais? CRISTO (Muito digno) – Eu tenho o que fazer. PACO – Ah é? E o que é que tens a fazer? CRISTO – É assunto meu. (Põe a mão no estômago.). PACO – Não sejas bolha! O que queres? Ficas nervoso e começa a te doer a úlcera. Vem, senta. CRISTO – Mais bolha és tu. 20 PACO – Bom: está bem. Eu sou mais bolha que tu. Mas tu também és, estamos combinados? CRISTO – Está bem. (Senta.) De onde tiraste esta palavra? Já nem se usa mais. PACO (Sentando-se, também) – Que palavra? CRISTO – Bolha. PACO – Não sei. Veio na hora. CRISTO – Antigamente havia um montão de palavras que queriam dizer a mesma coisa. E a gente escolhia. Bolha... boboca... PACO – Bocó... CRISTO – Bobalhão de camisola... PACO – Monga... CRISTO – Tonto... PACO – Abilolado... CRISTO – Papa-moscas... PACO – Ufa! Havia milhares de palavras! 21 CRISTO – Sim. Antigamente o idioma era riquíssimo. PACO – Sim. Agora, a única coisa que sabem dizer é panaca. CRISTO (Com intenção) – Ou babaca. PACO (Não ouve) – Sim. Estão acabando com o nosso idioma. CRISTO – E se fosse só com o idioma. Olha, não é para falar mal do teu neto, mas, por exemplo, vais comparar essas músicas de hoje com essa valsinha? (Mostra o toca-disco.). PACO – Têm algumas canções lindas, agora. São diferentes das nossas, mas algumas não são feias. CRISTO – Há quem goste! Olha, vou te dizer: convidá-los para ir a Espanha para ouvir isso! (Interessado.) Então, quer dizer que eles vão por vinte e dois dias? PACO - Ahn? Ah, sim. Isso se não os contratarem por lá. Sabe como são as coisas: com os artistas, a gente sabe quando vão, porém nunca se sabe quando voltam. CRISTO (Iniciando um discurso) – Por um lado tu vais sentir a falta dele, é claro... 22 PACO (Não o deixando continuar) – Bom, chega: já me disseste isso. Vais começar a chorar, agora? CRISTO (Tempo. Olhando para Paco) – Por que não me deixas terminar? PACO – Terminar o quê? CRISTO – De falar. PACO – Ah. Tu não tinhas terminado? CRISTO – Não. PACO – Bom: termina, então. CRISTO – Bom... (Vai começar de novo.) Te dizia que vais sentir falta dele, claro... PACO (Impede-o de seguir, novamente) – É a terceira vez que dizes isso. CRISTO (Forte) – Vais me deixar falar? Dizia-te que vais sentir a falta dele... mas, que, ao mesmo tempo, vai ser uma tranqüilidade! Isso é o que eu queria te dizer! PACO – E por que vai ser uma tranqüilidade? CRISTO – Pelo barulho que fazem aqui! Tu mesmo disseste! 23 PACO (Olhando-o firmemente) – Claro. É o que eu disse antes. CRISTO – Então está bom. Eu queria te dizer a mesma coisa: que eu estou de acordo. PACO – Tu vais desculpar-me, mas quando a gente diz alguma coisa, é porque quer acrescentar algo. Para repetir o que o outro disse, existem os papagaios. CRISTO - Viste? PACO – O quê? CRISTO – Quem está nervoso esta manhã, não sou eu. És tu. E isso acontece porque não foste buscar o resultado. PACO (Imóvel, olhando-o fixamente) – E tu estás conseguindo me acalmar, e eu vou acabar te expulsando daqui a patadas. CRISTO (Levanta-se, vira de costas e se abaixa) – Dá. PACO (Perdoando-o) – Juras que não vais mais me encher com isso? CRISTO – Não juro nada. Pode dar! 24 PACO – Olha que eu te acerto, hein! CRISTO – Vamos: dá, vamos! PACO (Tempo. Decide) – Bom, total... O que vale um juramento teu? (Afasta-se cantando.) “Hoje um juramento... amanhã uma traição...” CRISTO (Depois de escutar) – E ele não te leva? PACO - Como? CRISTO – Fito. Ele não te leva a Espanha com a banda? PACO – E vai me levar por quê? CRISTO – Como cantor. Se ele te ouve, com certeza vai querer te levar. (Ri.). PACO (Muito sério) – Ah, não. Já me ouviu. Mas não nos acertamos: pagam muito pouco. (Agora ele ri, forte, divertindose. Cristo agüenta, porém volta ao que lhe interessa.). 25 CRISTO – E isto de que vais ficar mais tranqüilo sozinho... Não sei. Toda esta casa somente para ti... Não é muito grande, mas só para ti... Garanto que vais sentir falta do “barulho”, como dizes. PACO (Com certo desgosto) - Não vou estar sozinho. CRISTO (Muito surpreso) - Como? PACO – Toda a família vem me fazer companhia. CRISTO – Teu filho? PACO – Sim, mas não somente ele. Minha nora também - é claro. E a irmã dela, a solteirona, também. Toda a família. CRISTO (Parece decepcionado) - Como? E não vão mais ficar no armazém? PACO – Vão transformá-lo num supermercado. Ampliam as instalações. Vão pôr as paredes abaixo... que sei eu. E vêm viver aqui. CRISTO (Disfarçando sua decepção) – Como... Como progrediram, hein? PACO – É. Imaginas meu pai se pudesse ver sua despensa transformada no “Supermercado Don Justo”, hein! 26 CRISTO (Com certa agressividade) – Queria ver se ele ia gostar. Teu pai era um sujeito simples. PACO – Sim. Bom. Mas quem não gosta de ver seu nome, assim... Garanto que o velho morreria de novo, de emoção. CRISTO (Tempo. Pensativo) – E é por isso que eles vêm viver aqui? Porque eles poderiam mudar-se para outro lugar, alugar, não sei. Eles têm condições, eu acho. PACO – Eles dizem que é para que eu não fique sozinho, que depois da operação e com a minha idade... Ah: o de sempre, tu sabes. CRISTO – Ah. (Aborrecido.) Isso, tampouco, tu me havias contado. PACO – Resolveram ontem também, ou anteontem. CRISTO – Não me contaste porque não estás gostando. PACO – Como não vou gostar de viver com meu filho... e minha nora... e a solteirona da irmã dela... e o Tito? CRISTO – O Tito? Quem é o Tito? PACO – O gato. 27 CRISTO – Não. Tu estás brincando! Mas garanto que no fundo, isto te agrada. PACO – O quê? CRISTO – Viver bem acompanhado. PACO – Ah, viver bem acompanhado, sim. CRISTO – Ouça Paco. (Enfrenta-o.) Vamos falar sério? PACO (Enfrentando-o) – Para quê? CRISTO – Deus dá pão a quem não tem dentes. (Afasta-se.). PACO – O que queres dizer com isso? CRISTO – Nada. (Leva a mão à boca do estômago, com dor e caminha indisposto. Paco observa-o.). PACO - Viste? Tu também rengueias. CRISTO – Não. Renguear o quê. É a úlcera que me incomoda. 28 PACO – Está bem. Eu rengueio da perna e tu rengueias da úlcera. Mas, o quê é que tu quiseste dizer com isso de... (O telefone toca, interrompendo. Paco vai atender, enquanto segue falando.) Com isso de que Deus dá pão a quem... (Atende.) Alô! – Não, não está. – Que sei eu. Deve estar em algum confim deste país tratando da papelada para a viagem. Quem fala? - Goyo? – Tu és um dos cabeludos? – Bom, então deverias saber onde ele está. É um grupo pouco unido esse de vocês. – Bom. Goyo, não? – Está bem: eu digo para ele. – Tchau, garoto, tchau. (Desliga, divertindo-se. A Cristo.) São divertidos estes garotos. Que diferença de nós, não? Estes são mais livres, mais... como posso te dizer... mais... CRISTO – Mais irresponsáveis. PACO – Sim. Eles têm essa sorte, sim. CRISTO – Por que lhe perguntaste se ele era um dos cabeludos? PACO – É o nome da banda: “Os Cabeludos de Oferenda”. E então? Olha se não são mais livres do que nós éramos. Nós, sim, formávamos um grupo e o chamávamos de “Onze Desejos”. Ou “Juventude e Progresso”. Ou “Guatemala Juniores”. Seriíssimos, para que não nos ridicularizassem. Nem a uma banda de músicos de serenata colocaríamos um nome divertido. Lembras da nossa? “Os Elegantes de Palermo”. Deus que me perdoe! Elegantes! E cantávamos cada porcaria! 29 CRISTO – E bem! Tínhamos lindos trajes... lindos instrumentos... Além disso, àquela época as serenatas eram diferentes. PACO – Nisso tens razão. As serenatas, então, eram diferentes. CRISTO – Ah sim. Caralho se eram! (Ficam os dois pensativos. De repente Cristo.) O que invejo nestes de hoje são as viagens. Tu já imaginaste, nós - aos vinte anos -, percorrendo a Europa? PACO – O meu pai me deu a chave da porta da rua aos dezoito anos. CRISTO – Foste um privilegiado. O meu deu-me aos vinte. PACO – E este... (Aponta para os instrumentos.) olha só: ainda não tem vinte, todavia, e já... CRISTO (Perto dos instrumentos de Fito e observando o baixo) – Por que lhes colocam tantos plugues, me pergunto? PACO – Agora plugam tudo. CRISTO – Mas uma guitarra?... PACO – Isso não é uma guitarra. É um baixo. 30 CRISTO (Observando) – Para mim é uma guitarra. Maior, mais nada. Toca que eu quero ver. PACO – Não. Tem que ligar na luz, para ver se esperneia. CRISTO (Idéia fixa) – Não há o que discutir. Agora, as bandas são diferentes. PACO – Claro. Assim como os quadros de futebol. Agora, os jogadores passam viajando pelo mundo todo. Nós, em compensação... CRISTO – É verdade. Lembras da viagem que estiveste a ponto de fazer para a Espanha, com o clube, lá por 36? (Junto à bateria, começa a bater, distraidamente, num dos tambores.). PACO – Não vou me lembrar! Arruinou-me o franquista, esse tal de Franco. Ele teve a idéia de começar com a confusão quinze dias antes de embarcarmos, o cretino! (Novo golpe de Cristo na bateria.) Tudo porque íamos fazer a viagem de barco, lembras, não? CRISTO – Claro. Naquele tempo quem viajava de avião? (Duas ou três batidas mais fortes.). PACO – Os da guerra. Esses foram os primeiros. Na Espanha, vocês se divertiram às pampas, mandando balas lá de cima. CRISTO – Como, “nós”? 31 PACO – Claro, vocês! Mussolini! Vocês! CRISTO – Olha: não falemos de política, está bom. Além disso,... tudo o que começa primeiro tem a ver com a guerra, sempre. (Novas batidas.) Até as viagens de avião. (Mais batidas. Entusiasma-se.). PACO (Continua em seu tema) – E depois, começou a outra guerra: a grande. E dá-lhe que lhe dá. (Mais batidas.) A questão é que quando tudo acabou... eu também estava acabado. (Mais golpes.) E tudo, graças ao tonto do Falquetti, que me deixou assim, sem volta! (Mais golpes.) Porque não foi acidental, como disseram os jornais! Ele deixou-me assim, sem pena, com premeditação e deslealdade! (Cristo está batendo em tudo, agora satisfeito com o barulho. Paco se altera.) Não dá para parar com esta barulheira, não? (Cristo pára de bater.) Esse estúpido do Falquetti! Queria se vingar de uma que eu havia lhe aprontado numa partida anterior! E conseguiu, ó, se conseguiu! Vingativo de merda! CRISTO – Bom, não fica assim, não! (Abandona a bateria.) Isso foi há muito tempo. Além do mais, quando a guerra européia terminou, tu já estavas bastante crescidinho, não é? Tinhas como 32 35, não, se não me engano? Para mim, mais que o golpe de Falquetti, foi o teu joelho que cansou e disse basta. PACO – Meu joelho, todavia, teria agüentado muitos anos se não fosse esse asno do Falquetti! (Senta-se em uma pequena cadeira, junto a uma mesinha com um abajur.). CRISTO – Bom: está bem, fica tranqüilo. Pensa que tu, pelo menos, estiveste perto de ir para a Europa. Já é alguma coisa. Eu, nem isso. Além do mais, pegaste o início do profissionalismo... e conseguiste até algum dinheiro. Assim que não te queixes. PACO (Alterado) – Quem está se queixando? Eu, por acaso? CRISTO – Parece que um pouco, sim. Além do mais, pensa que graças a Falquetti pudeste dedicar-te integralmente ao armazém, e fazê-lo progredir. Como tu mesmo dizes, se o teu pai se levantasse – o quê não vai acontecer, é claro, mas suponhamos que sim -, tu sabes o quão orgulhoso ele ficaria de ti. PACO (Esta lembrança o tranqüiliza) – Sim. Isso sim. Pobre velho. De mim e de Mário também, porque ele fez a sua parte. CRISTO – Sim, claro: teu filho também. Os dois fizeram o negócio progredir. Cada um à sua época... (Paco aperta o interruptor e acende e apaga a luz, como que se divertindo, como antes fez Cristo com a bateria. Cristo olha-o e continua.) Em compensação eu, não posso nem dizer que tenho um armazém 33 nem que estive a ponto de ir para a Europa. (Paco acende e apaga o abajur.) Tu sabes o quanto eu teria gostado de uma viagenzinha dessas, não? (A luz acende e apaga.) Mais do que realizar um desejo, teria sido... realizar um sonho, para te dizer a verdade. (A luz acende e apaga.) Olha, eu vou te contar uma coisa: (Paco acende e apaga a luz. Cristo, agora, altera-se.) Queres queimar esta luz, queres? (Paco solta o interruptor.) Eu te dizia que ia te contar uma coisa! (Observa-o para ver se ele seguirá brincando com a luz.) Bom... Ia te contar que na última viagem que eu fiz, alguns dias antes de partir, de repente disse a mim mesmo: ”Vamos, Cristóvão... de uma vez por todas... Por que não te atreves? Já que vais... por que não dás um empurrãozinho a mais e...? Hein? Total, a Europa é assim tão distante?” Mas não. Não tive coragem. Não me decidi. PACO (Surpreso) – De que viagem tu me falas? CRISTO (Inebriado em suas lembranças) - Como? PACO – Que viagem fizeste? Não fiquei sabendo. CRISTO – Ah, a Tandil. Em dezembro faz dez anos, não te lembras? Eu até te mandei um cartão postal! PACO – Ah, sim. É claro: um com umas montanhas. 34 CRISTO – As serras. Eu as olhava e dizia: “como serão os Alpes?... As Dolomitas?...” Sabes o que são as Dolomitas? PACO – Sim... duas colinas. Uma ao lado da outra. CRISTO – Vamos: deixe de brincadeiras. PACO – Está bom: estás me ofendendo. CRISTO – Ah é? Não importa. Podes te ofender. Vamos lá: o que são? PACO – Montanhas, ignorante! CRISTO – Ah, mas onde estão? PACO – O quê? Vais me fazer um exame, agora? Vai, vai aprender a ler em japonês, vai! CRISTO – Estão na Itália. E não me digas que sabias, porque tu não sabias. PACO – E tu viste, alguma vez, estas tais Dolomitas, por acaso? Se viste-as, deve ter sido em algum pôster, e mais nada. Assim que... Ah, agora me lembro... (Afasta-se e procura algo junto às coisas de Fito, enquanto Cristo fica pensativo.). 35 CRISTO – Sim. Estás certo. Tens razão. Sou um ignorante, Paco. PACO (Procurando) – E essa agora, por quê? Sabes que são montanhas... que estão na Itália... O que mais queres? CRISTO (Quase triste) – O que mais quero? Vê-las. Olhá-las, é o que eu quero. A gente pode ler sobre as Dolomitas, por exemplo, um bocado. E, sim: a gente se intera de que são montanhas, onde estão, que altura têm. Tudo isso. Porém, continuamos sendo ignorantes. Para saber de verdade como são, teríamos que vê-las, pessoalmente. Teríamos que poder tocá-las. Teríamos que poder... (Não sabe como continuar.) Se não, a gente continua sendo um ignorante, Paco. PACO – Já começaste. CRISTO – Por quê? PACO – Estava estranhando que essa manhã ainda tu ainda não tivesses saído com uma dessas besteiras. Se continuares lendo, lendo e lendo, não vais mudar nunca. (Vira-se com um envelope, que entrega a Cristo.) Toma. Pega tudo o que quiseres. Aqui, no mínimo, encontrarás as Dolomitas. A Espanha, eu tenho certeza que tem. CRISTO (Pega o envelope, muito interessado) – O que é isso? Selos? PACO – Sim. Fito guardou-os. 36 CRISTO (Entusiasmado, já os olhando) – São sensacionais! De onde os tiraste? Olha este: é da África, me parece. Sim, é da Nigéria. Mas, de onde os conseguiste? PACO – Tu sabes como é o Fito, e os cabeludos. Eles têm amigos por todas os lugares. CRISTO – Aqui tem um da Espanha, também, tens razão. Olha: são lindos! PACO (Contemplando, com simpatia, o entusiasmo de Cristo) – Gostaste, não? Parece-me que gostas mais do que dos livros. CRISTO (Encolhe os ombros) – Sabes do quê é que eu gosto? Do mundo: é disso que eu gosto. Quero dizer, tudo o que há no mundo, por aí... Mas, como não posso tocar... nem sequer olhar... bom... pelo menos aqui, ou nos livros, tenho alguma coisa. Outro dia encontrei um livro fenomenal no sogro da Rosita. Ela me emprestou. É um livro de citações de homens célebres. E a gente lê essas frases, e, o que queres que eu te diga: é a filosofia do mundo, da França, da Inglaterra, da Itália. Da Espanha. É um livro Maravilhoso. E as fotos também são maravilhosas. A gente tem todo o mundo aqui, nas mãos... e pode-se levá-lo por aí... (Fica olhando os selos.). PACO – Tu tens um monte, não? 37 CRISTO – De quê? PACO – De selos. Tens um montão. CRISTO – Cruzes! Caixas de sapatos cheias. No início, colocavaos num álbum, mas depois... PACO – Deves sentir falta do Correio... CRISTO – Ah, sim. Até... (Pensa.)... Até 84... tinha o... Como é que era o nome daquele que me guardava? (Procura na memória, e não consegue lembrar.) Era um armênio, caralho! Tenho aqui, ó, na ponta da língua. Um grande cara. Era armênio! Puta merda, não consigo me lembrar de nomes... (Desiste.) Bom. Lembras-te de que quando eu me aposentei do Correio, ele era quase um moleque? Entretanto, prometeu-me que ia me guardar todos os selos raros que aparecessem, e não falhou nem uma vez. Eu ia visitá-lo todos os meses, tomávamos um café e ele me enchia de selos. E todos fenomenais. Pena que um belo dia... PACO – Também se aposentou. CRISTO – Não. Não chegou a se aposentar, o pobre. Fumava muito. Pobre Somoyanian! (Pausa.) Somoyanian! Somoyanian era o nome dele! Era armênio. 38 PACO – Sim: entendi. (Pausa.) E agora não terá algum outro armênio, no Correio? CRISTO – Que sei eu. Porém, tanto faz... agora ninguém me conhece. E garanto que estes não entendem nada de selos. Nem lhes interessa. Já te deste conta que agora... (É interrompido pelo toque do telefone.) Saco. Mas este telefone enche, hein? PACO – Espera. (Vai atender.) Alô. – Antes de tudo, bom dia, senhorita. – Agora sim, senhorita. Não, Fito não está, saiu com a noiva. (Pisca o olho para Cristo, divertido.) - Como? Então ele tem outra noiva! (Segue divertindo-se, piscando o olho para Cristo, embora este não participe muito da brincadeira.) – Você é a ruiva ou a morena? – Ah, mas e quando tira a peruca? (Para Cristo, divertido.) É gente boa! (Ao telefone.) – Mas e quando tira a última peruca? Porque sempre chega o momento em que as perucas acabam, ou não? (Para Cristo.) Fodeu: disse que quando chega essa hora as luzes já se apagaram.(Ao telefone.) Ganhaste, garota. Meus cumprimentos. – Fito está fazendo os trâmites para a viagem. – O avô. – Não. O avozinho não. Não sou tão pequeno assim. – Sim, mas os da minha geração, não dávamos tempo das luzes se apagarem. (Ri, divertido.) – Sei. E o que vais fazer? Chegaste tarde, garota, perdeste para ela. – Bom, digo-lhe, sim. – Mas e tu, como te chamas? - Olga? Que Olga? A do Magaldi? – O quê? Não conheces a canção? Escuta: (Canta.) “No cantes, Hermano, no cantes... No cantes que Olga no viene... 39 Que los lobos aúllan de hambre... Y Moscú está cubierta de nieve...” E aí? Que tal? Gostaste? – Sim, tens razão: demasiado frio. – Sim, digo-lhe. Tchau, garota. Meus cumprimentos. – Tchau. (Desliga. Divertido, volta a Cristo.) Linda garota. Simpática. O Fito sabe o que faz. CRISTO – Não mudas. PACO – Como que não mudo? CRISTO – Com as mulheres, não mudaste. PACO – Elas pensam diferente. CRISTO – Mas se fosse por ti... seguirias sendo o mulherengo de sempre. Porque quando podias, zás!... Não deixavas boneco com cabeça. PACO (Gostando) – Ora, vamos, não exageres. CRISTO – Pobre Ñata: não merecia o que tu aprontavas para ela. Julia sempre me dizia: “o dia em que a Ñata souber de tudo o que Paco lhe faz, morre”. PACO (Contrariado) – Ah, não vais agora me dizer que ela morreu por causa disso. CRISTO – Não, claro que não. 40 PACO – Além do mais, eu não era mulherengo, como tu dizes. Eu me contentava com uma única: a Ñata. E, sempre lhe fui fiel, como mulher. Eu era zoneiro, mais nada, o que é bem diferente. Uma coisa é a mulher da gente e outra coisa, são as putas. E eu gostava das putas, o que queres que eu faça: gosto. Não sei porquê falo no passado. Claro que com o passar do tempo, Deus vai te colocando barreiras, mas não há porquê pensar que tudo está perdido. (Toca o telefone.) Uiuiui! Pode ser que Deus tenha levantando as barreiras! (Vai atender, rapidamente.) Alô! (Passa o seu entusiasmo. Olha para Cristo.) Ah, que tal? Como estás? – Sim, ele está aqui. Já te passo para ele. (Passa o telefone para Cristo. Cristo se aproxima.) É a tua filha. CRISTO – O que ela quer? PACO – Não sei. CRISTO (A contragosto, pega o telefone) – Alô. – Sim, o quê é que tu queres? – E onde queres que eu esteja? Aqui. Ou estou em outro lugar? – Saí para jogar a Loteria Esportiva, e aproveitei para vir ver o Paco. – E qual é o problema que seja de manhã? Quer dizer, então, que enquanto eu não comer a sopa eu não posso sair? (Disfarçando, baixando a voz lentamente.) Não, não... não posso. (Com a voz normal.) Não, não estou irritado, mas é como se estivesses me vigiando. Queres que na volta eu passe pela 41 veterinária e compre uma coleira e uma corrente, para mim? – Sim, vou almoçar, sim. Não vou ficar aqui, para comer as porcarias que este cozinha. – Bom, sim, Rosita, tchau. – Sim Rosita! (Desliga e suspira, de saco cheio. Enquanto isso, Paco havia colocado sobre a mesinha, as pedras de um jogo de dominó.). PACO – Quer dizer que eu cozinho porcaria, é? Por quê não pergunta a Fito? Ele diz que em nenhum restaurante se come como aqui. CRISTO – Claro. Em que restaurante vão se atrever a fazer porcaria? (Automaticamente, sem prévia combinação, os dois já estão sentados, frente a frente, e arrumando as peças do dominó, prontos para iniciar o jogo.). PACO – Parece que tua filha te deixou nervoso. CRISTO – Ela pensa que eu estou doente. PACO (Devolvendo-lhe a mesma resposta anterior) – Ela te ama. CRISTO – Sim. Demais. PACO – Por quê? Ela te disse alguma coisa? 42 CRISTO (Custa a responder, porém, finalmente) – Ela tem medo que eu me perca. PACO – Ah. (Tempo. Levanta uma peça do jogo.) Dupla de seis. Eu jogo. (Coloca-a.). CRISTO (Não presta atenção ao jogo) – Lembras do Nicola? PACO - Qual? O pai do gordo da oficina? CRISTO – Sim, esse. PACO – O que foi que aconteceu com ele? CRISTO – Ele se perdeu. (Silêncio. Cristo joga. Agora é Paco quem está pensativo.). PACO – Bom, mas isso lhes acontece porque eles pegam... (Não lembra a palavra.) a... Puta caralho, como é que se chama isso que lhes pega... (Estala os dedos, tentando lembrar a palavra.) a... a ... a ... puta merda... (Finalmente lembra e pronuncia triunfante.) a arteriosclerose! Isso! CRISTO (De repente, nervoso) – Não quero jogar mais! PACO (Olha-o, surpreso) – Por quê não queres jogar mais? 43 CRISTO – Não sei... Tu tens razão: estou nervoso. Não quero jogar mais. (Levanta-se e caminha, nervoso, pela sala.). PACO – A tua filha te disse algo que não me contaste? CRISTO – Não. Não me disse nada. PACO – Sabes que eu sou teu amigo, não? CRISTO (Explode) – Sim, já sei! E não tem porquê envergonhar-te disso! Porque se tu és meu amigo, é porque eu sou teu amigo! Queres zombar! E eu sou mais amigo que tu, apesar de tudo! Porque se tu fosses, realmente, um bom amigo, pensarias nos outros, e buscarias de uma vez por todas esse resultado, que nos põe a todos nervosos! Ou pensas que vais me enganar, dizendo que não tens pressa? Poderás enganar a tua família, se quiseres, mas não a mim! Eu te conheço muito bem! Há setenta anos que te conheço! Ora se não vou te conhecer! E te digo uma coisa: nestes setenta anos... não mudaste nenhum bocadinho assim! Continuas o mesmo egoísta de merda! O mesmo... E, tchau! Não tenho porquê eu estar te dando explicações. (Vai-se muito digno e muito rápido. Sai da casa. Paco fica quieto, olhando para a porta de saída. Levanta-se, caminha alguns passos, quase se podendo dizer que ao invés de espiar, cheira para o lado de fora e logo, sem pressa, aproxima-se do toca-disco e coloca de novo o disco do início. Ouve-se a valsa. Sempre lentamente, vai até a mesinha, e senta-se frente ao dominó. 44 Em seguida, quase deslizando, reaparece Cristo. Avança alguns passos. Escuta a valsa. Por fim, com a voz muito calma.) Por que puseste outra vez “El Aeroplano” ? PACO (Sem olhar) – Disseste que era lindo, não? (Lentamente, Cristo vai aproximando-se da mesinha e senta-se outra vez em seu lugar. Pensa, e por fim.). CRISTO – Lembro-me de quando nós a dançávamos. Com Julia... com a Ñata... Os quatro... (Paco não olha Cristo. Olha somente para as peças do jogo.). PACO – Vamos: continua. Eras tu quem jogava. (A valsa segue tocando. Os velhos reiniciam o jogo. As luzes baixam, lentamente, até a obscuridade total). SEGUNDA PARTE A TARDE Termina a valsa e com ela o blecaute. A cena se ilumina, aos poucos. É a tarde do mesmo dia que está terminando. Paco está com uma jaqueta ou com um sobretudo, e tem a cabeça coberta. Está sentado sobre o baú, quase no centro do cenário – pensativo -, olhando de soslaio, o envelope que tem à mão, e que de vez em quando bate contra a outra. Tenta observar o conteúdo, através da contraluz, mas logo lembra 45 que não é isso o que quer. Toca o telefone. Vai devagar até ele, tira o fone do gancho, e afasta-se, caminhando nervoso. Em seguida ouve-se um ruído que vem da porta de entrada. Paco guarda, rapidamente, o envelope num bolso, e disfarça. Aparece Cristo. CRISTO – Ainda estás aqui? PACO – Por que “ainda”? Espero estar aqui por muitos anos. CRISTO – O que eu quero dizer é: ainda não foste? PACO - Aonde? CRISTO – Como “aonde”? Vamos, Paco: buscar o resultado. PACO – Ah! E por que achas que eu não fui? Posso não ter ido... posso ter ido... CRISTO – Mas como? Não estás por sair? (Desconcertado, mostra-lhe a roupa e o chapéu ou boné que Paco usa. Paco, que os havia esquecido, surpreende-se e disfarça.). PACO – Ah! (Tira-os, rapidamente, e leva-os para um local distante de Cristo.) Não. Acabo de chegar. Eu estava para tirá-los quando chegaste, de novo. Agora tu vens o dia inteiro: pela manhã... pela tarde... 46 CRISTO – Queria saber como tinhas ido. (Olha-o ansioso. Paco evita o olhar.) Então, como te foste? Não vais me contar? PACO (Com fingida indiferença) – Não fui. CRISTO – Por que dizes que não foste? PACO (Fingindo irritação) – Porque ainda não estavam prontos. Os resultados, digo. Fizeram-me ir até lá, para nada. Gente de pouca confiança. Só o que fazem é incomodar a gente e... CRISTO – Que estranho, não? Por que te disseram que iam estar prontos hoje? PACO – O quê? Pensas que estou te mentindo? CRISTO – Não. Como vais me mentir? Por que me mentirias? PACO – Isso mesmo: por quê? CRISTO – E quando vão ficar prontos? PACO – Ih! Amanhã. Ou depois. Que sei eu: são uns desorganizados. CRISTO – Que estranho, não? Porque num caso como este... 47 PACO – Como assim num caso “como este”? O que é que tem de especial neste caso? CRISTO – É... que a gente está apertando o cu. Entretanto eles estão na maior tranqüilidade: tanto faz hoje, como amanhã, como depois... PACO – Quem está apertando o cu? CRISTO – Todos, Galego: inclusive tu. Não me digas que não. As coisas têm que ser enfrentadas. PACO – Olha Cristo: aqui, o único que tem que enfrentar as coisas, és tu mesmo, porque tu és o único que anda apertando o cu. E isso, porque passas a vida pensando na morte. E não tens medo somente da tua morte. Mas, a de qualquer um. Assim que, portanto, deixas de encher. CRISTO - Eu? Medo da morte? Ora: a morte nem existe. (Olha-o, triunfante.). PACO – Como assim? CRISTO – O que existe é a vida. 48 PACO (Observando-o) – Garanto que isso está nesse livro de frases que estavas lendo. CRISTO – Como percebeste? PACO – Porque se essa idéia fosse tua, não estarias sempre falando de mortes! Sempre vens com a história de que morreu este... morreu aquele... CRISTO – Bom, as pessoas morrem: o que posso fazer? PACO – Não falar dos mortos! Isso é o que podes fazer! Ter uma visão um pouco mais otimista, uma visão de futuro! Não dizes que a morte não existe, que o que existe é a vida? Bom, então, fala do que existe! CRISTO – Sabes que tens razão? PACO – Sim, por cinco minutos. Depois, começas, outra vez, com isso de: “sabes quem morreu?... Sabes quem morreu?”. CRISTO (Tempo) – Não vais te irritar, mas... sabes quem morreu? PACO (Olha-o fixamente. Tempo) - Quem? CRISTO – O Passarinho. 49 PACO – O Passarinho? Mas ele era mais jovem que nós! Nós o carregávamos... No mínimo uns três anos. Passarinho! Há tanto tempo que não o via! E morreu de quê? CRISTO – Não sei. Não falemos mais de mortos. PACO (Sem acreditar. Olha-o fixamente) – Quem trouxe o tema dos mortos foste tu, me parece. CRISTO – Bom... Eu não podia continuar guardando isso por mais tempo. Há mais ou menos uns dez dias que eu estou sabendo. PACO – Dez dias? CRISTO – Sim. O Carniça me telefonou para me contar. Uns dias antes tinham pensado em organizar um jantar, com os que restam da turma de então, para festejar cinqüenta anos não sei de quê. Mas agora... imaginas... cancelaram o jantar. Não havia quorum. PACO – E se tu sabias há dez dias, por que não me disseste nada? CRISTO – Ora, Paquito... Para não te deixar preocupado. PACO – E por que eu iria me preocupar? CRISTO – Bem... eu imaginei. 50 PACO – Olha: é melhor que a gente nem fale de tudo o que podes imaginar, não é? CRISTO – Está bem. Não falemos. PACO – Isso. (Tempo.) Pobre Passarinho! Foi um dos melhores meios-de-campo daquela época... CRISTO – Sim, mas... recém disseste que não era para se falar mais dos mortos. PACO – E quem está falando dos mortos? Eu estou te falando do Passarinho, de quando ele estava vivo! CRISTO – Ah, bom. Então, falemos. PACO – Não. Agora não falamos mais nada. CRISTO – Bom: está bem. (Tempo.) Mas, na verdade, como jogava, hein? PACO (Com o pensamento longe) - Hein? CRISTO – O Passarinho! Como jogava! PACO – Sim. Mas não teve sorte. Creio que jogou em uma ou duas partidas como titular, mais nada. Ficava sempre na reserva... 51 CRISTO – Também!... Com os animais de primeira do Independiente, não iam escalá-lo. (Maldoso.) Lembras daquela linha de frente, não? Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e Orsi. Que gracinhas! (Mais maldoso ainda.) Lembras, não? PACO (Entendendo a maldade) – O que queres dizer? É claro que me lembro! CRISTO (Gozando com ele) – Que baile te deram aquela vez, hein? PACO – Bom, sim! Porém foi a única vez que me pegaram uma dessas, em toda a minha vida. E olha que eu joguei, hein! CRISTO – Ah, como incomodava o sujo do Seaone! Àquela tarde tiveste que lhe dar umas porradas, porque senão...! PACO – Não, só um momento! O que aconteceu foi que ele começou a me encher. Ele tinha esse costume: colocava-se diante da gente, assim... mexia o rabo para um lado... a gente ia atrás... e ele saía com a bola pelo outro. Fez isso em mim duas vezes. Na terceira eu perdi as estribeiras, o que queres? E lhe dei. CRISTO – E te expulsaram. PACO (Com certo orgulho) – Bah. Não foi a única vez. CRISTO – Tu gostavas, não, que tivessem medo de ti? 52 PACO – Eu me divertia. (Começa a rir, divertindo-se.) Lembras daquele meio-campo pequenininho, ruivo, do Sportivo de Buenos Aires? Como se chamava? CRISTO (Começa a contagiar-se, sem saber do quê se trata) Qual? Um de cabelo encaracolado? PACO – Esse mesmo. Um que pensava que estava jogando sozinho... que queria driblar até mesmo o juiz. CRISTO – Sei. Como não vou me lembrar? Como se chamava, caralho... Ufa: estou mal para os nomes... Começava com S, se não me engano. PACO – Bom, não importa: logo nos lembraremos. CRISTO – Sim, sim. Está na ponta da língua. PACO – Bom... Uma vez eu tive que lhe dar umas porradas, sabes? Ele vinha gambeteando até a grama, ia, vinha...O quê é que eu podia fazer? Tive que lhe dar, para que parasse de nos foder. E sabes o quê ele fez? Não te lembras? (Dá gargalhadas.). CRISTO (Ri mais) – Não. O que foi que ele fez? PACO (Morrendo de rir) – Mas tu não lembras? 53 CRISTO (Contagiado, também morrendo de rir) – Não. Se me lembrasse, te diria. O que fez? PACO (Os dois estão mortos de rir, mal conseguindo falar) – Ele... ele... (Não consegue continuar, de tanto rir.). CRISTO (Morrendo de rir, sem saber porquê) – Anda, vamos: conta. Eu quero saber do quê é que estou rindo. PACO (Vencendo o riso) – Ele... se foi... Fugiu do campo. (Volta a gargalhar.). CRISTO (Sem acreditar, sempre com risadas incontroláveis) Fugiu? Fugiu... do campo? Fugiu? Saiu? PACO – Sim. Fugiu do campo. Deixou o time com dez. Disse... (Ri.)... disse: “com esse eu não jogo mais”. E se foi. Ninguém podia acreditar, porque mesmo que, todavia, ainda não fôssemos profissionais... não ficava bem que a gente abandonasse, assim, sem mais nem menos, o campo. Estava tudo lotado de gente... CRISTO (Sério) – Eu também, muitas vezes, tive vontade de fugir de campo. 54 PACO (Parando de rir, aos poucos) – Porque tu também eras outro dos que passavam fazendo gracinhas. CRISTO – Bom, eu gostava de jogar. Eu não era como tu, que a única coisa que fazias era bater. PACO – Ah não, qual é? Não me diz uma coisa dessas, porque eu também sabia jogar. CRISTO – Sim. Até encontrar quem jogasse melhor do que tu. PACO – Bom, na vida, de vez em quando, a gente tem que bater. Se não... CRISTO – Claro. E o outro, que se foda. Como eu, que por culpa de tipos como tu, que não deixavam os outros jogarem, tive que abandonar o futebol. E... e muitas outras coisas. PACO (Surpreso) – Estás te dando conta do que estás dizendo? Depois de tantos anos vens com essa? CRISTO – Bom, algum dia isso teria de acontecer. Nunca te disse antes, porque... enfim... não queria terminar com a nossa amizade. Mas agora... bem, agora posso te dizer. PACO – Ah: queres dizer que agora não tem a menor importância se a nossa amizade terminar? 55 CRISTO – Ora, Galego! E a nossa amizade vai terminar? Nossa amizade não acabará nunca! (Olham-se profundamente. Em seguida Paco vai até a mesinha, senta-se e ajeita as peças do dominó. Cristo, que a partir deste momento está visivelmente preocupado, segue-o. Antes de sentar-se à frente de Paco sussurra, quase a contragosto.) Salomoni. PACO – Como? CRISTO – Salomoni. O nome do meio-campo. O pequenininho. O que fugiu porque tu bateste nele. PACO – Ah, sim! Salomoni! Claro! Viste: Salomoni! Eu disse que a gente ia lembrar. (Mostra uma peça do jogo.) Dupla de seis. Eu jogo. CRISTO (Continuando no tema anterior) – Julia sempre me repetia: “diga a Paco como ele é. Afinal, ele é teu amigo. Deverias dizê-lo”. Mas, a mim parecia que não devia te dizer nada. Para quê? Afinal de contas, se tu gostavas de bater... cada um é como é e o outro, se quiser, aceita ou não. E eu te aceitava assim, e pronto. PACO – Eu também te aceitava. Não eras somente tu que tinhas que agüentar certas coisas. Eu - com a Ñata -, também falava de 56 ti, e dizia para ela: “olha, eu agüento o Cristo, porque ele é um bom sujeito, se não...”. CRISTO – E o que é que tu tinhas que agüentar de mim? Diga-me, para eu saber. PACO – Queres que eu diga? CRISTO – Sim, claro: diga! PACO – Bom, várias coisas, mas sobretudo a tua fidelidade: isso eu não comentava com a Ñata, claro. Mas era o que eu mais tinha que agüentar em ti. Nunca querias sair com nenhuma garota. Eu sempre tinha que sair sozinho, e se as garotas fossem duas, tinha que conseguir algum outro candidato, pois tu nunca pulavas a cerca. Sempre fiel... sempre falando de Julia. Eu ficava louco. CRISTO (Consigo mesmo) – Dávamo-nos muito bem os quatro. PACO – Isso sim! Mas era tudo muito familiar! Elas se conheciam desde crianças, e nós também! A gente se aborrecia! Por isso, que não fazia mal nenhum, sair de vez em quando, com alguma garota. (Cristo, nervoso, abandona o jogo e caminha pela sala. Paco observa-o com curiosidade.). PACO – O que é que há? Não vais jogar mais? 57 CRISTO (Distante) – Às vezes penso... em como passávamos bem, juntos, os quatro. No clube, no cinema... em qualquer lugar que fôssemos, nos divertíamos. É uma pena que... PACO – Estás vendo? Já começaste de novo! (Cristo não o ouve. Agora, está frente a foto de Ñata. Olha-a, fixamente.). CRISTO – Eu não tenho nenhuma foto artística de Julia, assim como esta. A Ñata está linda aqui. Todas as que eu tenho de Julia são pequenas, dessas 3X4. Tenho uma, em que estão as duas, quando eram crianças, na casa da Ñata. (Tempo. Mostra a foto.) Continuas sentindo a falta dela, não? PACO (Depois de uma pausa. Sincero) – Sim... CRISTO – Eu sinto muito a falta de Julia. PACO – Sim. Já sei. Mas vais ou não vais jogar? CRISTO (De repente) – Sou um desgraçado, Galego! PACO – Como assim? O que estás dizendo? CRISTO – Que sou um desgraçado! PACO – Sim: já ouvi. Mas por que dizes isto, agora? O que foi que te aconteceu? 58 CRISTO – Sabes de uma coisa? (Patético.) Eu também fui infiel a Julia. PACO (Gratamente surpreso) – Tu também? Não me digas! CRISTO (Quase chorando) – Sim, eu também! Sou um desgraçado! (Desespera-se.). PACO (Contente, levanta-se e aproxima-se de Cristo) – Espera, espera um pouco: não fiques assim, que não é para tanto. Contame! Conta-me com quem foi. Eu a conhecia? CRISTO – Não. Era uma colega do Correio. Eu nunca quis ter passado por isso, mas estávamos todo o dia juntos, trabalhando. E foda vai, foda vem... PACO – Sei. É difícil, estando todo o dia juntos. E mais ainda, se há foda no meio... CRISTO – Mas, eu te juro, que não havia me proposto a isto. Julia não o merecia. Não. A coisa aconteceu de repente, quase sem me dar conta... Que sei eu! Aconteceu porque tinha que acontecer. PACO – E então? Foi no escritório mesmo que... CRISTO – Não! Estás louco? Como íamos fazer no escritório? 59 PACO – Achei que fosse! Se bem que, teria sido incômodo demais, não? E aonde foram? CRISTO (Com vergonha) – A um hotel! PACO – Ah... Então não foi tão de repente. Um pouco de premeditação houve. CRISTO – Que sei eu. Eu já nem me lembro. A única coisa que sei é que fui um desgraçado. PACO – Bom: chega, Cristo! Cada vez que dizes isto, insultas a mim também. E, afinal de contas, não é para tanto. Tu sempre foste fiel a Julia. Ela sempre foi a tua esposa. A garota do Correio era uma garota, mais nada. (Olha-o com curiosidade.) E durou muito tempo isso? CRISTO – Não. Estás louco? Foi só esse dia. PACO (Não acreditando) – Só esse dia? Estás querendo me dizer que foram ao hotel somente uma vez? CRISTO – Sim. PACO (Sem entender) – Mas o que foi que houve? Vocês não gostaram? 60 CRISTO (Desesperado) – Será que tu não entendes? Eu não podia seguir fazendo isso com a Julia. Dava-me um... dava-me um não sei o quê. PACO (Olha-o, desiludido) – Na verdade és mais fiel do que eu pensava. CRISTO – Nunca vou esquecer daquela noite, ao chegar em casa. Julia recebeu-me melhor do que nunca. Senti-me uma porcaria tão grande que... quase lhe contei tudo. PACO – Mas não contaste. CRISTO – Não. Como poderia contar? PACO – Então não és assim tão fiel. CRISTO – “Oi, meu huia”, ela me disse quando entrei. Nunca vou esquecer. Foi a pior coisa que ela poderia ter me dito. PACO – Meu “o quê” ela te disse? CRISTO (Reticente) – Meu huia. PACO - Huia? E o quê é isso? Algum insulto? 61 CRISTO – Não. Ao contrário. Os huias eram uns pássaros extintos, da Nova Zelândia, que viviam em par. Nenhum dos dois podia viver sem o outro, entendes? Nem o macho e nem a fêmea. Por isso nós, de brincadeira, nos chamávamos de huias. E logo nesta noite... PACO – Perdoa-me, sim, mas estes pássaros eram meio idiotas? Por que não podiam viver um sem o outro? CRISTO – Porque um tinha o bico curto, mas forte, para poder fazer um buraco nas árvores; e, o outro tinha o bico frágil, mas comprido, para poder enfiá-lo no buraco e tirar a comida. Os dois se complementavam, entendeste? E um sem o outro... CRISTO – E o que aconteceu com esses bichos? Porque eu nunca ouvi falar deles. CRISTO – Estão extintos: já disse. A espécie se acabou. PACO – Eram completamente imbecis, então. Em compensação, tu continuas vivendo, o que quer dizer que não és assim, tão imbecil. CRISTO (Revoltado) – Mas por que é que tu tens que fazer gracinhas com tudo? Sabes como eu me senti naquele dia? E mais ainda, por estes dias? Porque eu nunca precisei tanto dela como 62 agora: nunca... (Pára, como se entendesse que está falando demais. Disfarça.). PACO – Por que nunca precisaste tanto dela como agora? O que é que está acontecendo contigo? CRISTO – Nada. Deve ser por causa desta valsa, que sempre dançamos juntos, e que aconteceu de tu colocá-la justamente hoje... Não sei. (Está confuso.). PACO (Observando-o) – Ouça-me Cristo: alguma coisa está acontecendo contigo, estás estranho. CRISTO (Nervoso) – Não me chames de Cristo, está bem? E já te disse que se estou assim, é por causa desta valsa! E, por falar nisso, tu já podias ter comprado um aparelho de K7, ao invés de andar colocando este disco do tempo do tico... (Ao olhar para o disco, descobre, ao seu lado, o telefone fora do gancho. Pegao e mostra a Paco.) E isto? PACO (Disfarça. Pega o telefone e coloca-o no lugar, enquanto responde somente sobre o disco) – Estás louco? Como vou jogar fora este disco? Já não vem mais desses, de acetato autêntico, e de 78rpm: a velocidade que eu gosto. (Afasta-se.). CRISTO – Eu te perguntei pelo telefone. PACO (Disfarça) – Ah, eu estava fazendo uma limpeza. 63 CRISTO – Escuta: tu estás me escondendo alguma coisa. PACO (Tempo. Sério) – Está bem. Como te deste conta? CRISTO – Porque eu te conheço! E por esse telefone desligado! (Entende tarde, a aparente confissão de Paco.) Então estás escondendo alguma coisa? PACO – Sim. A ti eu não posso enganar. Mas tu não vais contar para ninguém, está bom? CRISTO – Não. Juro que não. PACO – Vais guardar segredo? CRISTO – Sim: estou dizendo que sim. PACO – Bom. (Faz uma pausa. Cristo espera, angustiado.) Tenho uma namorada. CRISTO (Explode) – Ora, vai-te à merda! PACO – Epa! Tu estás realmente estranho hoje, hein? 64 CRISTO – Olha... eu já te disse o que está me acontecendo! E quem está estranho... e tu sabes porquê... és tu! Assim que, não me enche mais! (Vai rápido para a mesinha, senta-se e joga.) Pronto!... Os dois quatro! (Paco aproxima-se.). PACO – Queres um copo de leite? CRISTO – Não! Estou até aqui de leite! (Paco senta-se e começa a rir, baixinho. Cristo olha-o fixamente.) E agora: qual é a graça? PACO – Sabes de quem estava me lembrando? (Ri baixinho, enquanto Cristo segue olhando-o, esperando.) Do turco Alef. Sabes o quê a mulher dele fez, uma noite, quando descobriu que ele andava com uma garota? (Continua rindo baixinho, e jogando, colocando as peças do jogo uma detrás da outra, como se a conversa não interferisse no jogo.). CRISTO (Também começa a rir, como na cena anterior) – Não. O quê foi que ela fez? PACO (Em meio às risadas) – Esperou por ele, sentadinha - o mais tranqüila possível -, com um pulverizador de Flit na mão... Lembras daqueles aparelhinhos que bombeavam inseticidas? Bom: quando o turco apareceu, feliz que só ele, aí pelas duas horas da madrugada... sem esperar que ele dissesse “oi”.... Pffffffff”... começou a bombear-lhe, sem dó! Pfffffff! Ah, ele ficou 65 nojento, de cima a baixo! Tratou-lhe como se fosse um inseto, sem dizer uma palavra. Não é uma maravilha? A turca estava um portento. (Riem, os dois: Paco mais que Cristo. Até que Paco.) Pelo menos Julia não te esperou com um bodoque. (Ri, enquanto Cristo fica sério.) Já imaginaste? Toma minha huia! E zás: um bodocaço! (Ri.) Huia se chamava o passarinho, não é? (Ri.). CRISTO – Eu não acho a menor graça. PACO – Hoje, tu não achas graça em nada. CRISTO – Claro que não, porque eu não posso engolir isso de que ainda não te tenham dado o resultado! (Enfrenta Paco.) A Ñata podias enganar, agora a mim, não. PACO – Bom: chega, não? CRISTO – Sim! Chega! Isso é o que eu digo! PACO – Bom: então, chega! CRISTO – Sim: basta! PACO – Isso! Basta! (Levanta-se, desgostoso. Faz uma careta de dor.) Ai!!! Esse idiota do Falquetti! (Caminha à toa, pela sala.). 66 CRISTO (Muito chateado) – Eu pensava que eu fosse teu amigo. Mas parece que... PACO – Mas, o quê tu estás dizendo, Cristo? Tu és pior que o Falquetti! CRISTO – Penso que se tu sabes de alguma coisa... terias de ter me contado! É isso que eu estou dizendo! Não sei porquê não queres falar comigo sobre... (Toca o telefone, interrompendo. Depois de uma certa hesitação, Paco pede a Cristo.). PACO – Atende, vamos! CRISTO (Desafiando-o) – Não! Atende tu! Anda, atende! PACO – Não sejas estúpido: atende! (O telefone segue tocando. Paco espera a decisão de Cristo.) E então? Vais atender ou não? (A contragosto, Cristo vai até o telefone. Paco adverte-o, rapidamente.) E se for Mário diga que eu não estou. Que estás me esperando... o que quiseres. Mas não estou. CRISTO (Indo ao telefone) – Olha que eu não sei mentir, hein? (Atende.) Alô! – Não. Cristóvão! – Ah, o que mandas Mariozinho? Como vais? – Não, não, ele não está. Parece que ainda... não sei, não voltou. – Não, Fito tampouco. – Sim, a verdade... não sei porque o teu pai não me dá a chave de sua casa. Porque aqui, eu não sou mais que... (Olha para Paco, mas não continua.) - Ahn? – Não, nada. Eu digo para ele te chamar, então. – Sim, claro, é 67 certo que tudo sairá bem. Erva daninha não morre nunca. É. – Sim. É o que eu sempre digo. Que ele vai me enterrar, primeiro. – É. Bom. Um de nós vai ter de enterrar o outro, não é? – Bom, tchau, Mariozinho. – Sim, deve ter ido tomar um café. Olha, não é para falar mal, não, mas o teu velho é um egoísta de merda... (Olha para Paco, desafiador.) e pouco lhe importa que nós todos estejamos esperando. – (Ouve. Surpreso.) Sim! Claro que ele também é capaz disso! Hoje, casualmente... Bom, tu o conheces, não? (Paco olha interrogativamente.) – Bom, sim, eu digo para ele. – Tchau, Mariozinho. (Desliga. Para Paco.) O teu filho te conhece, hein? PACO – Por quê? O que foi que ele te disse? CRISTO – Que certamente tu tinhas saído com alguma garota por aí. PACO (Contente) – Ele disse isso? Eta Mariozinho velho, e cabeludo! Garanto que a ele seria melhor que eu... Bom: e a mim... nem te conto. CRISTO – Mas ele também está de acordo que tu és um egoísta de merda! PACO – Sim, mas nunca tão egoísta quanto tu, que queres que eu te enterre primeiro. Cuidado! Que se eu te enterro primeiro, depois 68 tu te levantas e enterras a mim. Pacto de sangue? (Estende a mão fechada com o polegar para cima.). CRISTO (Olha-o, seduzido. É um velho jogo de quando eram crianças. Aperta seu polegar contra o de Paco) – Pacto de sangue. PACO (Depois de ‘misturar os sangues’, sorrindo, com a mão dá um soco no punho de Cristo) – Ah, sim, fizemos pacto de sangue. (Olham-se, carinhosamente.). CRISTO – Sim. E quase sempre o respeitamos. (Emocionado, Paco afasta-se. Cristo, imóvel, espera, até que insiste.) Dá-lhe Pé Grande. PACO – Dá-lhe o quê? CRISTO – Então, tu não vais mesmo me contar? (Paco pára. Pensa. Pausa. Afinal, vai até o casaco e tira o envelope do bolso. Mostra-o para Cristo. Cristo se surpreende.) O quê? Eles te entregaram? PACO – Sim. CRISTO – E o que diz? PACO – Por enquanto não vou abri-lo. CRISTO – Mas o que estás dizendo? 69 PACO – Não entendes? Por enquanto não vou abri-lo. CRISTO – Mas estás louco? Como não vais abri-lo? PACO – Por enquanto, não. CRISTO – Como não? Como não vais inteirar-te desse resultado, se...(Pára.). PACO – Se o quê? CRISTO – Vamos, Paco: sabes o quê está em jogo aí. PACO – Nada está em jogo. A partida já terminou. CRISTO – Sim, mas e o resultado? PACO (Mais forte) – Bom, não enches mais, está bom? O que queres? Vamos terminá-la de uma vez! (Enfrenta-o, porém sai rápido do enfrentamento, e vai sentar-se, com raiva, sobre o baú. Aparece outra careta de dor. Toca no joelho.) Esse idiota do Falquetti! 70 CRISTO (Depois de uma pausa, dolorosamente) – Preferes que eu me vá, então? PACO (Com afeto, sem olhá-lo) – Já te disse que a termines. (Cristo vai sentar-se sobre o outro lado do baú, quase de costas para Paco. Finalmente, Paco olhando o envelope que tem à mão.) Não o quero abrir e nem quero deixar de abrir. CRISTO (Deixando-o falar) – Ah, sim. PACO – Não estou decidido. Essa é que é a verdade. Que sei eu se vai servir para alguma coisa saber que me resta um ano... ou dois... ou cinco. Ou cinqüenta. Essa é que é a verdade. CRISTO – Ah, sim. PACO – Olha: (quase desafiante.) não sei se isto que vou te dizer aparece em algum desses livros geniais que tu lês. Mas todo o tempo que passou, o que ficou para trás... o tempo que ainda vai passar, esse que está à frente... e este, este tempo que vivemos agora... tudo... todos os tempos... (Mais desafiador.) são o mesmo tempo. (Olha-o e espera.) O que eu quero dizer é que nenhum vale mais que o outro. Todos são o mesmo, entendes? (Pausa. Ficam olhando-se. Por fim.) Vamos, discuta, se quiseres. 71 CRISTO (Sem deixar de olhá-lo, interessado) – Não, não quero discutir. Eu, justamente... PACO (Interrompendo-o, discutindo, talvez consigo mesmo) – E mais, ainda! Quem sabe, este minutinho que agora estou vivendo, aqui, contigo... vale tanto quanto todos os anos e anos que... Porque, afinal de contas... diga-me: onde estão os anos que passaram, os anos que já vivemos? Tu, certamente, dirás: “psss!... se foram!” E foram sim. Por um lado tens razão, se foram. Porém, por outro lado, não se foram. (Leva a mão à cabeça.) Estão aqui. E ai, contigo, também. Com os dois. E o tempo que está por vir, se é que há algum tempo que esteja por vir... também está agora, aqui, conosco. Muito, pouco... O que for. (Está entusiasmado. Pára. Observa Cristo.) Que cara é essa? Estás me entendendo, ou não? CRISTO (Com certa admiração e temor, ao mesmo tempo) – Tu me prometes que não vais ficar irritado? PACO – Sim. Por quê? CRISTO – Porque isso tem num livro. Não me lembro em qual: “a eternidade está no minuto em que vivemos”. Ou algo parecido com isso, dizia. (Olham-se. Tempo.). PACO (Sorri) – Filosofia. CRISTO (Concordando) – Sim, sim. 72 PACO - Viste? E isso que eu não li quase nada. CRISTO – E, além disso, dizia algo assim como que a vida era uma série de eternidades, e que o homem deveria ter... PACO (Levantando) – Já cagaste tudo. CRISTO – Por quê? PACO – Porque estou cagando um monte para esta tal série de eternidades! A mim, o que importa, é esta eternidade! Esta eternidade minúscula que estamos vivendo aqui e agora, mais nada! E, quando acabar... quando esta eternidade minúscula acabar... (Aproxima-se e pega Cristo pelo peito, divertido e, talvez, provocativo.) eu não vou me dar conta de que acabou, entendes? Não vou me dar conta! E fodo todo o mundo. (Vai em direção à garrafa térmica.) Queres um café? CRISTO – Claro! O egoísta de sempre! Que te importam os outros, não é mesmo? Desde que tu não te dês conta... que se fodam os que ficarem, não é assim? PACO – Os que ficarem também não vão se dar conta, Cristo! Uma semana, duas semanas, no máximo. Um mês, digamos. Mas depois, adeus. Se não se esquecerem, se acostumarão. O que é 73 algo parecido. Afinal, queres um café? (Aproxima-se da garrafa para servir-se. Cristo fica sozinho, desprotegido. Por fim fala, sem olhar para Paco, quase que como para si mesmo.). CRISTO – Não quero que morras antes de mim, Galego. PACO – Ah, não? Haha! Queres que quem fique e se foda seja eu, não é? Muito esperto! CRISTO (Cada vez mais desprotegido) – Eu não quero ficar sozinho. PACO – Vamos, Cristo: deixe de brincadeiras. Como vais ficar sozinho? Tens tua filha, teu genro... teus netos... O que mais queres? CRISTO – Eles se vão. PACO - Como? CRISTO – Se vão. PACO (Surpreso. Larga o café) – Vão aonde? CRISTO – Há tempos que Luis esperava que saísse um trabalho no Canadá. E finalmente conseguiu. Ele é um bom técnico, tu 74 sabes, e não vão desperdiçar uma oportunidade dessas, por minha causa. PACO – Mas, como? Eles não vão te levar? CRISTO – Não. Estás louco! Já são cinco. Eles os dois, as crianças... Não, como é que vão me levar? (Tenta sorrir, mas não consegue.) Não cabemos todos no Canadá. PACO – Ah, não. (Continua assombrado.) Claro. Não cabem. E, então... o que vão fazer contigo? Vão te jogar num terreno baldio? CRISTO – Eles vão me colocar num desses lugares que... De lá, com os dólares, eles vão poder pagar, porque eu, aqui, com minha aposentadoria... (Pára. Tenta sorrir, mas está muito triste. Paco entendeu e recebe a notícia como se fosse um soco. Não consegue acreditar.). PACO – O quê? Uma clínica geriátrica? CRISTO – É. (Paco não consegue reagir. Apenas repete, mecanicamente.). PACO – Clínica geriátrica. (Caminha algum tempo, nervoso, sem encontrar solução, até que por fim explode.) Como numa clínica geriátrica? (Enfrenta Cristo, surpreendentemente.) Não podem fazer isso! Não, senhor! (Acusa-o, enfiando-lhe o dedo 75 no peito.) Não podem fazer isso contigo, entendes? Tu trabalhaste toda a tua vida! Desde garoto, trabalhaste! Como um negro! Sempre encerrado lá naquele Correio! Todo o dia lá dentro, dá-lhe que lhe dá, carimbando selos! Sac, sac, sac! O braço ficava duro! Ou não te lembras? E a luz do sol? Quando vias a luz do sol, hein? Todo o dia naquele sótão! (Cristo, timidamente, vai falar, porém Paco continua.) Sim, senhor! Passaste a vida, metido naquele sótão, não digas que não! (Cristo desiste e Paco continua.) Eu sei muito bem! Sei muito bem tudo o que trabalhaste! Fui testemunha de tudo o que te sacrificaste! Sim, senhor! Te sacrificaste por tua família, pela sociedade, pelo país... pelo mundo! Por isso, que agora, eles não podem te meter em uma... Entendes? (Paco está gritando e acusando-o. Cristo recebe o bombardeio sem saber como reagir. Por fim, Paco chega ao cúmulo de sua indignação.) Mas tu estás me ouvindo, ou não? (Quase suplicante.) Eu disse que não podem fazer isso contigo, Cristo! CRISTO (Com um fio de voz) – E o que queres que eu faça? Eu... PACO (Esforçando-se, debilmente) – Como o quê que eu quero? Quero que não deixes te fazerem isso! O quê és, afinal? Diga-me: o quê és? (Ficam olhando-se. Por fim, Paco vencido, caminha, outra vez, nervoso, resmungando.) Hum! Uma clínica geriátrica! É a única coisa que eles pensam! (Tempo. De repente.) Clinica geriátrica, um caralho! (Enfrenta Cristo.) Vens viver aqui, comigo, e está resolvido! CRISTO – Ora, Paco: aqui, tampouco cabemos todos! 76 PACO (Lembrando) – Ah, então foi por isso que hoje perguntavas e... Mas por quê não me disseste? Não sabes, por acaso, que eu... Mas como que tu não vais caber aqui? Eu te arranjo um lugar, e pronto. Esta casa, ainda está no meu nome, assim que tu... Tu vais dormir na minha cama, e pronto! Do lado esquerdo, está bom? Eu estava acostumado a dormir, com a Ñata, do lado direito! Vem, vem que eu te mostro! (Pega-o pelo braço, levanta-o, e quer levá-lo até o quarto de dormir. Cristo resiste, soltando-se.). CRISTO – Ora, Galego: sabes que não posso! PACO – Por quê? És sonâmbulo, por acaso? Falas dormindo? CRISTO – Sem brincadeiras, Galego! Sabes muito bem que eu não posso viver aqui, contigo, por mais que isso me agrade! E fique quieto, por favor, que eu... que eu... Eu vou me embora de uma vez! (Movimenta-se com intenção de ir embora. Paco coloca-se à sua frente.). PACO – Tu não vais coisa nenhuma! (Enfrentam-se. O telefone toca. Paco está quase indo atender, quando de repente.) E atende, para mim, o telefone! (Cristo não reage.) Vamos, atenda! E se for o meu filho, diga-lhe que o telefone está com defeito. Que saco! (Cristo olha-o sem responder. Então, Paco fala com certa 77 delicadeza.) Vamos, queres atender? (Como Cristo não se decide, Paco pega-o pelo braço.) Atende, anda, pamonha! (Leva-o até o telefone, que agora, mesmo a contragosto, Cristo atende.). CRISTO – Alô. – Ah, como vais? – Cristóvão, sim. – Sim, espera que eu te passo para ele. (Gesto de surpresa e ameaça de Paco, porém logo Cristo esclarece.) É Fito, babaca! PACO – Ah! (Pega o telefone.) Alô. – Fito, o que queres? – Sim, espera: uma garota te chamou... Olga... E um cabeludo: Goyo. Eu disse a eles que tu estavas fazendo os trâmites do passaporte. – Já te entregaram? Que milagre. Eu te felicito. – O meu? Para que é que eu vou querer um passaporte? – Ah, é? E o que é que eu vou fazer lá? Tu vais à frente e diz: “o velho, esse que vem atrás, é o meu carregador de guitarra”? Quando eu tinha a tua idade... uma vez me meti num casamento... (Paulatinamente, como se através da lembrança fosse lhe aparecendo uma idéia importante, sua voz vai se apagando, ao mesmo tempo em que as palavras surgem cada vez mais lentas.) carregando um bandoneon, sabes? Era o carregador de bandoneon. Porém, agora, na Espanha, eu... (Pára. Fica imóvel, pensando em algo que acaba de elaborar. Olha para Cristo, que está distante, ocupado com seus pensamentos. Paco começa a aceitar a idéia que teve. Seus olhos brilham. Esquece o telefone, de onde por fim, é solicitado.) - Hein? – Sim, estou aqui, estou aqui. (Mente.) – Não, é que está se ouvindo muito mal, é por isso. – 78 Certo, certo. – Queres que te prepare uma tortilha? – Ah, vais comer com Olga? – Diga-lhe, de minha parte, que... que agora... Moscou não está coberta de neve. – É, de neve, sim. Ela vai entender. Não precisa ficar com ciúmes. – Bom, mas à noite vens. – Bom. Tchau! (Desliga e fica pensativo. Tempo. Medita, enquanto mais adiante, Cristo está esperando para ir-se embora, nervoso. Em compensação, Paco, agora sorridente e pensativo, está saboreando uma decisão, enquanto canta baixinho.) “E Moscou não está coberta de neve...”. CRISTO – Bom, Paco, eu...(Faz o movimento para sair.). PACO – Ainda não. CRISTO – Sim, Paco. Não estou me sentindo bem, e... PACO – Não. Digo que Moscou ainda não está coberta de neve. Há pouco tempo atrás, sim, estava. No inverno, quando aqui era verão. E, agora, aqui é outono, e lá é primavera. Assim que, por enquanto, estamos livres do frio. (Caminha eufórico.) Estamos livres do frio, Cristo! Livres do frio! CRISTO – Mas do que é que tu estás falando? PACO (De repente pega Cristo pelo braço) – Te lembras do dia em que eu voltei do médico? Quando... quando descobriram o que descobriram? CRISTO – Como que não vou me lembrar? Lembro sim... 79 PACO (Interrompendo) – Bom. Nesse dia... senti o que todos devem sentir num caso desses: como se o mundo viesse abaixo, fiquei sem ar, com o coração explodindo... Que sei eu mais lá o quê. (Tempo. Solta o braço de Cristo, e olha para frente.) Porém, depois, saí para a rua, e comecei a andar. A rua estava cheia de gente, a avenida, sabes? E, é claro: comecei a olhá-los, um por um, como se estivesse despedindo-me. Dentro de pouco tempo, eu não ia mais estar neste mundo. E eles continuariam caminhando nele... Mas... (Deixa-se cair, com suavidade, sobre a poltrona, e Cristo imita-o, sentando ao seu lado.) de repente – lembro o rosto de uma menina que passava, e que me olhou -... de repente comecei a ver tudo de outra maneira. Ou seja: a ver tudo como realmente é. Porque... sabes, Cristo?... comecei a sentir que cada um deles, essa menina... os rapazes... os meninos... os velhos... o jornaleiro... o taxista que passava... todos... todos, eles e eu, éramos companheiros de viagem. E de uma viagem... não sei como te dizer isso, Cristo... De uma viagem... de uma viagem fantástica. Daqui a algum tempo, nenhum de nós vai estar aqui, todos teremos nos ido. Porém todos, sem dar-nos conta, fomos companheiros de uma mesma viagem. E de uma viagem que... (Fica olhando fixamente nos olhos de Cristo.) De uma viagem fenomenal, Cristo. De uma viagem, onde o tempo não tem nenhuma importância; de uma viagem que tem um minuto, mais 80 nada: este, agora. (Pega as mãos de Cristo.) Mas, este minuto... por dentro... tem todos e tudo. Estás me entendendo, ou não? CRISTO – Não sei. Acho que sim. PACO – E sabes onde vamos ir, neste minuto? Mesmo que não me entendas? CRISTO - Aonde? PACO (Sorri. Levanta-se.) – Vamos encontrar com o Fito. CRISTO – Por quê? Onde ele está? PACO – Onde ele “vai estar”. CRISTO (Olha-o, apavorado) - Onde? PACO (Toureando) – Olé! Na Espanha! É primavera, lá. CRISTO (Recebe a novidade com impacto) – Tu não tens remédio. (Levanta-se.). PACO (Toca no bolso, onde guarda o envelope) – Quem sabe se aqui diz a mesma coisa? Ou quem sabe não? Quem é que vai saber. CRISTO – Vamos, Paco! Esfria a cabeça, por favor! 81 PACO (Totalmente tranqüilo) – Para quê? CRISTO (Desesperado) – Mas tu não te dás conta de que...(Não consegue continuar.). PACO – Não me dou conta de quê? CRISTO (Não sabe o que responder. Vacila) – Bom... de... Vamos, Galego! Tu não estás falando sério, estás? PACO – Sim. CRISTO – Mas como vais ir para a Espanha? Como?... PACO (Interrompe, fazendo um gesto que imita o vôo de um avião, e, com a boca, o som do motor) – Pppprrrrrrrrr... De avião. CRISTO – Ora, deixa de te fazer de bobo, Paco! Como é que tu vais ir a Espanha? PACO – Já te disse como: de avião. E não somente eu. Os dois: tu e eu. 82 CRISTO (Não sabe mais o que fazer) – Ah, é? E quem paga a viagem? Vamos ver? PACO – Eu. Ou tu pensas que eu ia deixar tudo para o Mário, sem guardar nada para mim? Como tu és ingênuo! E o que eu guardei, é o suficiente para uma viagem de, pelo menos... uma eternidade. Sim, porque não vai ser somente a Espanha. A Espanha primeiro. Lá assistimos aos Cabeludos, visitamos a cidade dos meus velhos – assim cumpro a promessa que havia feito quando Franco me fodeu a viagem de 36... e depois, continuamos. Ao redor do mundo. O que quiseres: França... Itália... as Dolomitas... (Sorri.) Até Moscou. Isso sim. Antes da neve, porque lá, os lobos uivam de fome. E isso não é para mim. (Olha para Cristo, sorrindo, que não sabe o que dizer.). CRISTO (Finalmente) – Quer dizer que a Espanha... as Dolomitas... Moscou... PACO – Sim. CRISTO – Com certeza? PACO – Com certeza. CRISTO – Muitas vezes tu estiveste demasiado seguro sobre demasiadas coisas. 83 PACO – Sim. Foi um dos meus defeitos. Porém, para o futuro, penso em corrigir-me. CRISTO (Sem saber o que fazer com a sua vida) – Galego, por que não vais à merda? Queres deixar de brincar, por favor? (Foi quase uma súplica. Afasta-se. Não pode e nem quer acreditar. Vai até a mesinha, senta-se frente a ela e constrói casinhas com as peças do dominó, de costas para Paco, enquanto segue resmungando em voz baixa.). PACO (Depois de observá-lo, decide) – Está bem. Vou sozinho. (Canta.) “No cantes hermano, no cantes, que Moscú no está cubierta de nieve...”. (Segue cantando. Em algum lugar, em cena, há uma taça de metal, troféu ganho por Paco em jogos passados. Sem parar de cantar, ele pega o troféu e coloca-o bem à vista. Tira o envelope do bolso, e começa a queimá-lo, enquanto deixa-o cair dentro da taça. Ao final, pára de cantarolar.) Total... alguma velhinha eu hei de encontrar por lá. Sabes como aguardam na Suécia, um “latin lover” maduro, não é? CRISTO (Vira a cabeça e vê Paco jogando o papel em chamas dentro da taça. Levanta-se, desesperado) – Mas o que estás fazendo? Paquito... eu... (Não consegue compreender. Aproxima-se rapidamente de Paco.). 84 PACO (Cantarola, enquanto levanta a taça com o papel em chamas) – “... No cantes, hermano, no cantes... que Moscú no está cubierta de nieve...”. CRISTO (Tenta apagar o fogo. Gira, desesperado, ao redor de Paco, que lhe dá, constantemente, as costas, enquanto reclama, apenas com um fio de voz) – Mas Paco... não... como podes... PACO (Não para de cantarolar) – “No cantes que Olga no viene... y los lobos aúllan de...”. (Pára.) Não. Os lobos não. Não gosto deles. (O fogo já se apagou.) Feito! (Levanta a taça bem no alto, como em um ritual.). CRISTO (Sem entender) – Mas, estás louco, Galego! Como queimaste isso? Como?... PACO (Com a taça no alto, caminha, tirando as cinzas e esparramando-as pelo espaço, enquanto inventa e cantarola a confusa letra de um tango antigo) – “Las cenizas de los años... que blanquearon mis cabellos... ahora sólo son cenizas... en mi pobre corazón...”. (As cinzas voam por todo o espaço. Paco repete os dois versos, até que a taça esteja vazia. Cristo olha hipnotizado, para as cinzas que Paco esparrama, e, por fim, fala.). 85 CRISTO (Segurando Paco pelos braços) – Ouça-me, Galego, por favor! (Paco escuta-o, obediente. Tempo. Cristo está ficando já sem vontade. Afinal, quase em lágrimas, fala.) Digame... como vais a?... E, depois, como vais fazer depois, hein? PACO (Tranqüilo. Quase sorrindo) – De que depois estás me falando? (Ficam olhando-se. Pareceria que Cristo por fim tivesse entendido, e tivesse vontade de juntar-se a Paco. Porém, após algum tempo, quase com raiva.). CRISTO – Sabes de uma coisa, Pé Grande? PACO – O quê? CRISTO – Tu és um degenerado. PACO (Sorri) – Ah, é? CRISTO – E mais uma coisa. PACO - Qual? CRISTO – Sabes por que nunca fui a um aeroporto? PACO – Não. Por quê? 86 CRISTO (Está por revelar-se) – Porque eu ficava puto em pensar que estava lá, e... (Revela-se.) Pé Grande: tu sabes muito bem o desejo que eu sempre tive em viajar de avião... PACO (Pega-o e lhe dá uma palmada) – Cristo, velho barbudo! Assim é que eu gosto! (Mostra-lhe o polegar.) Pacto de sangue, então? CRISTO (Devolve os golpes. Eufórico) – Pé Grande, caralho, pacto de sangue, sim! Hip, hip, hurra! (Os dois brincam, trocando seu entusiasmo.). PACO – Sim, hip hip hurra! Mas, dá-lhe, vamos, apura! Não percamos mais tempo, anda! (Daqui para diante, tudo é nervoso, veloz.). CRISTO – Por quê? Aonde tenho que ir? PACO – A tua casa, buscar teus documentos. Depois, Fito vem e vamos pedir-lhe que nos ajude. CRISTO (Meio tonto) – Ah, é? (Vai e vem, de um lado para o outro.) Bom. Mas... (Vacila.) Tens certeza? Assim tão... tão rápido? PACO – Claro. Vamos, apura! Anda, anda! 87 CRISTO (Caminha. Pára) – Ei... Diga-me, Pé Grande... Como será isso de... (Faz com a mão o gesto de avião voando, e aponta para cima.) estar lá em cima e... hein? PACO – O quê? Está te dando um cagaço agora, é? CRISTO (Rápido, antes que seja tarde) – Não, não. Deus me livre. Estava somente pensando, pensando, mais nada! (Imita um avião.) Prrrrrrrrrr! Hein? PACO – Sim, bom, mas apura, então. Anda. CRISTO (Confuso) – Sim. Vou... vou... tchau. (Afasta-se, gira, tropeça numa cadeira, ri, está no céu.) Tchau!... PACO – Apura, anda! CRISTO – Sim, sim, tchau. Tchau. (Já na saída, tropeça, outra vez, ao girar. Não pára mais de rir.) Ouça-me... O que eu não tenho é... certificado de vacina... de boa conduta... essas coisas. Tenho que me vacinar? PACO – Não perca mais tempo, Cristo. Depois a gente vê isso. Agora, anda. Vá, e traga tudo o que tiveres. (Cristo sai rapidamente. Paco gira e fica sozinho no meio da cena. Olha as cinzas no chão, avança até a mesinha do dominó, e ali 88 deixa, como num cerimonial, o troféu que ainda tem nas mãos. Em seguida Cristo reaparece, e, de onde está, sussurra.) CRISTO – Galego... (Paco gira e olha para ele. Começa a ouvirse, como que chegando de muito longe, magicamente, a valsa “El Aeroplano”. Cristo vai até Paco. Paco também avança para Cristo. Apertam-se num forte abraço. A valsa agora é ouvida bem forte. Os dois, então, começam a mover-se, ao compasso da valsa. Quase dançam. Depois de alguns compassos, lentamente, seus corpos começam a separar-se, embora eles ainda continuem unidos pelas mãos. Agora dançam naturalmente. A música transporta-os por todo o espaço. Rejuvenescem. São dois homens jovens, sem limites, que dançam a valsa com alegria. Até que soltam as mãos, sem deixar de dançar. Separam-se. E seus braços, agora abertos, estendidos nas laterais dos seus corpos, imitam as asas de um avião. Agora dançam “El Aeroplano” por todo o espaço. Como dois jovenzinhos. Como dois aviões novos.). FIM