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AEROPLANOS
Texto de Carlos Gorostiza
Tradução de Antonio Carlos Brunet
PRIMEIRA PARTE
A MANHÃ
Uma casa modesta, de subúrbio, dessas com pequeno jardim
à frente: o que pode ser visto, ou inferir-se, de onde transcorre
a ação, um lugar onde, antigamente, foi uma simples sala de
estar. Há uma comunicação com o exterior e outra para o
interior. Embora ainda sobrevivam alguns móveis velhos –
sofá, mesa, cadeiras, alguma poltrona, etc. -, o tempo foi
acumulando ali, todo o tipo de coisas, algumas já
pertencentes ao passado e outras atuais. Por exemplo: perto
de uma antiga máquina de costura, há modernos instrumentos
musicais de uma banda de rock, entre os quais se destacam
uma bateria e um baixo elétrico. Junto a eles existem vários
aparatos eletrônicos, e, não muito distante, um velho tocadisco. Junto a ele, um telefone. Por todo o espaço convive –
caracterizando o tempo presente -, uma estranha e vital
mistura de passado e futuro. De qualquer maneira, o lugar,
graciosamente desarrumado, é agradável e poético: uma
poesia criada pela convivência feliz do avô com seu neto,
ausente nesta jornada. Por ali, sobre algum móvel, há uma
foto emoldurada, de mulher. No centro do ambiente, há um
velho baú. E, também, sobre uma mesinha de centro, um jogo
de dominó.
No escuro começamos a ouvir a valsa “El Aeroplano”, de
Pedro Datta. É uma velha gravação, em disco de acetato, de
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78rpm. A luz sobe, lentamente. A cena está vazia. Em seguida,
de fora, como que atraído pela valsa, aparece Cristo, um
homem delicado, porém ágil, de 78 anos. Com um olhar,
comprova que no lugar não há ninguém e fica junto ao tocadisco, escutando a valsa, emocionado. Depois de um tempo,
aparece Paco, vindo do interior. É um homem forte, de 78
anos, que rengueia. Traz uma garrafa térmica com café.
Surpreende-se ao ver Cristo, e vai colocar a térmica sobre um
móvel.
PACO – O que estás fazendo?
CRISTO (Pego de surpresa) - Ahn? O que disseste?
PACO – Há muito tempo estás aqui?
CRISTO – Um pouco. Entrei, ouvi a música e fiquei escutando.
(Com nostalgia.) “O Aeroplano”! Era lindo.
PACO – É.
CRISTO - Como?
PACO – É lindo. (Vai retirar o disco, antes que a valsa
termine.).
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CRISTO – Ah, sim. Há muito que não a escutava. Não sabia que
tu... (A música pára.) Por que não a deixas tocar?
PACO (Querendo mudar de assunto) – Diga-me: o que foi que
aconteceu para apareceres a esta hora?
CRISTO (Também dissimulando) – Ah. Nada. Tive que sair e...
Na passada comprei pastilhas. Queres uma?
PACO – Não. Pela manhã me detonam o estômago.
CRISTO (Pensa) – Ah, é? E pela tarde, não?
PACO (Pausa) – Depois de comer é diferente.
CRISTO (Pausa) – O quê é diferente?
PACO (Começando a irritar-se) – Tudo é diferente. A gente já
comeu, assim que... o estômago, a pastilha... tudo é diferente.
CRISTO – Ora bolas. Não me diga que a pastilha é diferente. A
pastilha é a mesma. A pastilha...
PACO (Interrompendo) – Escuta-me: vieste aqui para discutir?
De manhã cedo e tu já estás discutindo? É melhor que venhas à
tarde, então, como sempre. Assim não discutimos.
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CRISTO – À tarde discutimos do mesmo jeito.
PACO (Muito nervoso) – Não vá me dizer que quando vens à
tarde, entras como entraste agora: discutindo antes de conversar.
CRISTO – Ninguém pode discutir antes de conversar.
PACO (Quase violento) – Antes de entrar, eu quis dizer. E não
continua porque me deixas nervoso.
CRISTO – Não há nem o quê discutir: estás mal. Se quiseres, eu
vou, e volto à tarde.
PACO (Controlando-se) – “Volto à tarde”. “Volto à tarde”. Senta.
Já que estás aqui... (Cristo senta-se no sofá. Observa Paco.
Este, depois de não saber o quê fazer, senta-se junto a Cristo.
Tempo. Por fim.) E me dá.
CRISTO – O quê?
PACO – Uma destas pastilhas de merda. (Sem nenhum gesto de
triunfo, Cristo dá-lhe uma pastilha e serve-se de outra.
Durante um instante, e em silêncio, os dois saboreiam a
pastilha. Por fim.).
CRISTO – E então?
PACO (Olhando-o) – “E então” o quê?
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CRISTO – Como foste?
PACO (Dissimula) – Com o quê?
CRISTO – Com o resultado.
PACO (Mais dissimulado) – Que resultado?
CRISTO – O resultado do exame.
PACO (Exagerando) – Aaah. Não. Ainda não fui. Vou buscá-lo
esta tarde.
CRISTO – Não ia ficar pronto hoje de manhã?
PACO – Disseram para hoje: não para esta manhã.
CRISTO – Bom, porém “hoje” já é desde manhã cedo. Não sei por
quê...
PACO (Interrompe, outra vez, violento) – Mas o que é que há
contigo hoje de manhã? Pegaste alguma febre matutina? O exame
ia ficar pronto hoje, não ia? Bom: eu vou buscá-lo hoje. E terminou!
(Levanta-se e dirige-se para o móvel sobre o qual deixou a
térmica. Pega duas xícaras de cafezinho.) Queres um café?
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CRISTO (Sem lembrar da discussão sobre a pastilha) – Não.
Pela manhã não tomo café.
PACO (Pára e olha-o, fixamente) – Ah, não? E por quê?
CRISTO – Antes da comida me cai mal.
PACO – Ah é? O café te faz mal, agora, a pastilha não?
CRISTO (Resistindo ao olhar. Por fim) – Está bem. Me dá um.
(Paco serve. Volta ao sofá com a xicrinha. Cristo olha seu jeito
de caminhar: agora, Paco, não somente rengueia, como
caminha inclinando o corpo, graciosamente, para trás. Paco
entrega o café a Cristo, e volta ao móvel para servir-se. Cristo
observa-o, com curiosidade.) Estás rengueando mais. É por
causa da operação?
PACO – Estou caminhando como sempre. E isto não é rengueira:
já te disse que é o de sempre.
CRISTO (Tempo. Decide) – É uma rengueira. (Observa-o.) E
agora rengueias mais do que antes. Ou rengueias de outro jeito,
não sei, um dos dois. Quem sabe é por causa da operação.
PACO (Enfrentando-o) – Diga-me: quanto tempo faz que me
operei?
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CRISTO – Mais ou menos uns dez dias.
PACO – Onze. E depois de onze dias, recém agora tu te dás conta
que estou caminhando de outro jeito, ou é por que nunca me viste
de manhã?
CRISTO – Ah. Então reconheces que estás caminhando de outro
jeito.
PACO – Claro. O médico mandou. Diz que é para que eu não me
acostume mal, depois da operação, como aconteceu com o joelho.
CRISTO – Então é como eu estou dizendo: estás caminhando
diferente.
PACO – Isso é outra coisa. Caminhar diferente, não quer dizer que
esteja rengueando mais. Sigo as instruções médicas, e é só,
porque, para o teu entendimento, desde que o tonto do Falquetti
me quebrou o joelho, e isso faz 50 anos, sempre caminhei igual. É
claro, que com alguma... Enfim... com alguma dificuldade. Porém,
isso não é renguear, está claro? (Irrita-se.) Parece que para ti...
ultimamente... os dias têm amanhecido escuros. (Senta-se outra
vez, com seu café. Bebe.).
CRISTO – Ah! Pastilha com café. (Bebe.) Pronto. Obrigado.
(Devolve a xicrinha, porém Paco, que toma seu café com
gosto, finge não ver. Então, Cristo deixa-a sobre o sofá, entre
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os dois, e logo tira um pedaço de papel do bolso, mostrandoo. Paco olha sem interesse e depois olha para Cristo.).
PACO – O que é que há?
CRISTO – Gostas deste?
PACO – Não.
CRISTO – Mas nem o olhaste.
PACO – Por acaso não sabes que eu não gosto de Loteria
Esportiva?
CRISTO – Já sei que tu não gostas de loteria esportiva. Estou te
perguntando por este jogo.
PACO – Se eu não gosto de Loteria Esportiva, como queres que
eu goste de uma aposta dela? Disso entende qualquer ba...
(Corrigindo-se.) qualquer um...
CRISTO – O quê ias dizer? Qualquer babaca?
PACO – Eu não falei babaca.
CRISTO – Paraste a tempo.
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PACO (Contendo-se) – Eu disse que tu não entendias, mais
nada.
CRISTO – Bom, está bem, eu não entendo. Explica-me, então: eu
quero entender.
PACO (Dissimulando) – É uma forma muito pessoal de ver as
coisas. A gente não tem porque estar de acordo com o que os
outros... (Pára.).
CRISTO – O quê? Agora fazes filosofia também?
PACO – Por quê não? Tu és o único que podes filosofar por aqui?
CRISTO – Então me explica, vamos!
PACO – Explicar o quê?
CRISTO – Esta tua filosofia sobre a Loteria Esportiva.
PACO – Mas tu és chato, não?
CRISTO – Vamos! Vamos!
PACO – Bom... O que eu quero dizer é que no futebol não há
lógica.
CRISTO – E daí?
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PACO – E daí que não tem lógica!
CRISTO – Sim, e então?
PACO (Nervoso) – Então, que se não há lógica no futebol, não
pode haver lógica na Loteria Esportiva. E, para mim, as coisas sem
lógica... (Dá por subentendida a frase.) É isso.
CRISTO – Ah! Essa é a tua filosofia.
PACO – Sim, por quê? Está errada?
CRISTO – Não. Porém, me diz uma coisa: para ti, a vida tem
lógica?
PACO – A vida? Como que vai ter? Aí está: nem a vida tem lógica,
e tu queres que a Loteria Esportiva tenha. Ora!
CRISTO – Porém da vida tu gostas, não? Pelo menos parece.
PACO (Engole a saliva, coloca a mão no joelho de Cristo) Escuta-me, Cristo: hoje tiraste a manhã para me foder, não é?
CRISTO (Tranqüilo) – Não me chames de Cristo.
PACO (Olha-o com firmeza) – Vamos tratar deste assunto?
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CRISTO – Que assunto?
PACO – Este dos apelidos. Há muito que deveríamos ter falado
sobre isso, e parece que esta manhã, o clima está propício.
CRISTO – Não. Falemos da lógica: é melhor.
PACO – Não senhor! Falemos dos apelidos. Já estou de saco
cheio desta história, de que a cada vez que eu te chamo de Cristo,
tu ficas irritado. E afinal de contas, a única coisa que faço, é
encurtar um pouco o teu nome, nada mais. Em vez de Cristóvão,
Cristo. É mais cômodo. Eu não o inventei. Todo o bairro te
chamava assim. E, em troca, tu... Como é que tu me chamas? Por
acaso, alguma vez me chamaste de Francisco? Não, senhor. Ou
me chamas Paco... e Paco ainda vá lá, muitos me chamam
assim... mas, quem me chama de Galego? Alguém mais, por aí,
me chama de Galego? E, me diz: alguma vez eu te chamei de
Italiano, hein? E Pé Grande, quem me chama de Pé Grande por
aí? Tu! Tu és o único que me chama de Pé Grande!
CRISTO (Sorrindo) – Carinhosamente.
PACO – Eu também te chamo de Cristo, carinhosamente! E tu não
gostas!
CRISTO – Ah: te lembras de quem te apelidou de Pé Grande?
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PACO (Interessado, de repente) – Não. Quem?
CRISTO – O Alface. Aquele treinador que nos dirigia na chácara
do Sportivo Palermo, estás lembrado? Um dia ele disse: “tu, Pé
Grande, eu quero de zagueiro. Sei que os adversários vão te
respeitar”. lembras? Desde esse dia, todos te chamaram de Pé
Grande, e os adversários te respeitaram - eh, caralho! -, se
respeitaram.
PACO (Acalmando-se) – Sim. Porém eu gostava de jogar na
frente. Como tu. Eu via de trás, como tu obstruías... Eu te invejava,
sabes? Acho que nunca te disse. Mas invejava.
CRISTO – Sim, mas eu parei, enquanto que tu...
PACO – Ih!... Tu driblavas que era uma loucura. Eras um
fenômeno. Porém, carne de hospital. Deixaste de jogar a tempo,
me parece.
CRISTO – Sim. E tu continuaste: porque tu eras dos que baixavam
a ripa, não dos que apanhavam.
PACO – Mas eu também apanhei. Olha como ficou o meu joelho.
Agora até dizes que eu rengueio.
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CRISTO – Sim: rengueias. A troco de que santo, nós vamos andar
com rodeios?
PACO – Aqui, ó, que eu rengueio!
CRISTO (Emocionado) – Porém isso agora não importa, Pé
Grande. O que importa é que foste um craque, com todas as
letras. Sabes o que me disse o cara lá da Loteria Esportiva, há
poucos dias atrás? “Diga-me – ele me disse – esse seu amigo,
esse que rengueia... não foi um jogador famoso... um que
chamavam de Falcão?” Assim ele me disse. (Pausa. Paco olha-o
profundamente.).
PACO – Um que chamam de Falcão. Ainda continuo vivo, parece.
CRISTO – Sim, claro. Quem disse que não?
PACO – E, de agora em diante, meu nome é Francisco, como
consta nos meus documentos, estamos combinados?
CRISTO – Sim, Galego, sim.
PACO – Olha: não me irrita, está bom? (Toca o telefone. Paco
vai atender, e Cristo aproveita para olhar, impunemente, o
renguear do amigo.) Alô. - Ah, como estás? - Bem, bem. - Não;
vou esta tarde – E que pressa, hein? Vai mudar alguma coisa se
eu for pela manhã? Eu tenho mais interesse do que tu, em saber,
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pelo menos parece. – Eh! Tens tanto medo assim que eu morra? –
Não. Fito saiu cedo. Está tratando da burocracia desta tal viagem.
– Não. Quem me dera estivesse sozinho: estou com o Cristóvão. –
Não: Cristo não, porque ele não gosta. – E o que é que eu posso
fazer: tenho que agüentar este chato. (Cristo sorri.) Sim, de saúde
está bem, só um pouco mais velho. Ele pensa que quem está mais
velho sou eu, porém, se ele pudesse se ver...(Para Cristo.) Meu
filho te deseja saúde.
CRISTO – O mesmo para ele.
PACO (Ao telefone) – Ele te manda lembranças. (Um gesto de
Cristo.) – Bom, sim, eu te ligo. – Sim, tchau. (Desliga. Para
Cristo.) Ai, ai, ai... Tem medo que eu morra.
CRISTO – Ele te ama.
PACO – Eu não disse que ele não me ama. Eu disse que ele tem
medo que eu morra.
CRISTO – Tu também.
PACO – Eu também o quê?
CRISTO – Tens medo de morrer.
PACO – Ah é? Não me digas!
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CRISTO – Sim. Porque se não tivesses medo, terias ido esta
manhã mesmo buscar o resultado. Assim, terminavas de uma vez
por todas com este assunto, que cá entre nós, já está enchendo o
meu saco.
PACO – Ah é? Sabes o que é que acontece contigo? Tu tens
medo de que eu não morra!
CRISTO – O quê?
PACO (Mostra o telefone) – Aquele tem medo que eu morra. E tu
tens medo de que eu não morra.
CRISTO – Ora, Paco!
PACO – Não me chames de Paco! Francisco! E, para que saibas...
não vou dar o gostinho para nenhum dos dois!
CRISTO – Ah não? E como vais fazer?
PACO – Não sei. Vou me arranjar. (Irritado, começa a servir-se
de outro café. Cristo observa-o.).
CRISTO – Não tomes tanto café. Faz mal. Sobretudo este.
PACO – O quê? És a minha mãe, agora? Vou tomar todo o café
que me der vontade. (Serve-se de mais um café. Tempo.).
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CRISTO (Reclama) – Não tinhas me dito nada que o teu neto ia
viajar.
PACO (Disfarçando) – Fiquei sabendo ontem, ou anteontem. Vai
com a tal banda de música. De repente receberam um convite, e...
CRISTO – Convite de onde?
PACO – Da Espanha. Para um festival. Vai toda a América Latina.
E ele vai representando a Argentina. O que te parece o garoto,
hein?
CRISTO – Quer dizer que toca bem, então.
PACO – Parece que sim.
CRISTO – Vais sentir a falta dele.
PACO – É... um pouco, sim. (Gesticula para os instrumentos.)
Com a barulheira que eles fazem aqui... Tu não imaginas a
tranqüilidade que vai ter agora!
CRISTO – E ele vai por muito tempo?
PACO – Não. Vinte e dois dias. Contando os dois dias de viagem,
porque enfim, entre apitos e flautas, ir e voltar leva dois dias.
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CRISTO – As propagandas dos jornais dizem que os aviões vão
em doze horas.
PACO – Sim, porém a burocracia, a alfândega... E, às vezes, os
vôos vêm atrasados... Olha: se quiseres ficar tranqüilo, põe um dia
de ida e outro de volta.
CRISTO (Sacode os ombros) – Eu estou tranqüilo.
PACO – É só uma maneira de falar.
CRISTO – E tu falas como se já tivesses viajado: “a burocracia, a
alfândega...” O que é que tu sabes disso tudo?
PACO – Ora, tu nunca foste num aeroporto?
CRISTO (Vacila antes de responder. Por fim, dá de ombros) –
Não.
PACO (Assombrado) – Nunca foste num aeroporto?
CRISTO – Não. O que é que tem de mais: nunca viste alguém que
não tivesse ido a um aeroporto?
PACO – Não. É a primeira vez.
CRISTO – Bom, isso sim é que é esquisito: não ter visto nunca
alguém que não tivesse ido a um aeroporto.
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PACO – Mas ouça Cristo: a um aeroporto vai qualquer ba... (Pára,
confuso.) Vai qualquer um.
CRISTO (Desgostoso) – De novo, a mesma coisa? Diga de uma
vez: qualquer babaca!
PACO – Não! Tu não és um babaca! Tu és um mala! E estás
ficando muito pesado esta manhã! (Cristo olha-o, vai responder,
mas opta por demonstrar sua irritação levantando-se e
caminhando em direção à saída, ainda que sem a menor
pressa.) O que estás fazendo? Aonde vais?
CRISTO (Muito digno) – Eu tenho o que fazer.
PACO – Ah é? E o que é que tens a fazer?
CRISTO – É assunto meu. (Põe a mão no estômago.).
PACO – Não sejas bolha! O que queres? Ficas nervoso e começa
a te doer a úlcera. Vem, senta.
CRISTO – Mais bolha és tu.
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PACO – Bom: está bem. Eu sou mais bolha que tu. Mas tu
também és, estamos combinados?
CRISTO – Está bem. (Senta.) De onde tiraste esta palavra? Já
nem se usa mais.
PACO (Sentando-se, também) – Que palavra?
CRISTO – Bolha.
PACO – Não sei. Veio na hora.
CRISTO – Antigamente havia um montão de palavras que queriam
dizer a mesma coisa. E a gente escolhia. Bolha... boboca...
PACO – Bocó...
CRISTO – Bobalhão de camisola...
PACO – Monga...
CRISTO – Tonto...
PACO – Abilolado...
CRISTO – Papa-moscas...
PACO – Ufa! Havia milhares de palavras!
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CRISTO – Sim. Antigamente o idioma era riquíssimo.
PACO – Sim. Agora, a única coisa que sabem dizer é panaca.
CRISTO (Com intenção) – Ou babaca.
PACO (Não ouve) – Sim. Estão acabando com o nosso idioma.
CRISTO – E se fosse só com o idioma. Olha, não é para falar mal
do teu neto, mas, por exemplo, vais comparar essas músicas de
hoje com essa valsinha? (Mostra o toca-disco.).
PACO – Têm algumas canções lindas, agora. São diferentes das
nossas, mas algumas não são feias.
CRISTO – Há quem goste! Olha, vou te dizer: convidá-los para ir a
Espanha para ouvir isso! (Interessado.) Então, quer dizer que eles
vão por vinte e dois dias?
PACO - Ahn? Ah, sim. Isso se não os contratarem por lá. Sabe
como são as coisas: com os artistas, a gente sabe quando vão,
porém nunca se sabe quando voltam.
CRISTO (Iniciando um discurso) – Por um lado tu vais sentir a
falta dele, é claro...
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PACO (Não o deixando continuar) – Bom, chega: já me disseste
isso. Vais começar a chorar, agora?
CRISTO (Tempo. Olhando para Paco) – Por que não me deixas
terminar?
PACO – Terminar o quê?
CRISTO – De falar.
PACO – Ah. Tu não tinhas terminado?
CRISTO – Não.
PACO – Bom: termina, então.
CRISTO – Bom... (Vai começar de novo.) Te dizia que vais sentir
falta dele, claro...
PACO (Impede-o de seguir, novamente) – É a terceira vez que
dizes isso.
CRISTO (Forte) – Vais me deixar falar? Dizia-te que vais sentir a
falta dele... mas, que, ao mesmo tempo, vai ser uma tranqüilidade!
Isso é o que eu queria te dizer!
PACO – E por que vai ser uma tranqüilidade?
CRISTO – Pelo barulho que fazem aqui! Tu mesmo disseste!
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PACO (Olhando-o firmemente) – Claro. É o que eu disse antes.
CRISTO – Então está bom. Eu queria te dizer a mesma coisa: que
eu estou de acordo.
PACO – Tu vais desculpar-me, mas quando a gente diz alguma
coisa, é porque quer acrescentar algo. Para repetir o que o outro
disse, existem os papagaios.
CRISTO - Viste?
PACO – O quê?
CRISTO – Quem está nervoso esta manhã, não sou eu. És tu. E
isso acontece porque não foste buscar o resultado.
PACO (Imóvel, olhando-o fixamente) – E tu estás conseguindo
me acalmar, e eu vou acabar te expulsando daqui a patadas.
CRISTO (Levanta-se, vira de costas e se abaixa) – Dá.
PACO (Perdoando-o) – Juras que não vais mais me encher com
isso?
CRISTO – Não juro nada. Pode dar!
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PACO – Olha que eu te acerto, hein!
CRISTO – Vamos: dá, vamos!
PACO (Tempo. Decide) – Bom, total... O que vale um juramento
teu? (Afasta-se cantando.) “Hoje um juramento... amanhã uma
traição...”
CRISTO (Depois de escutar) – E ele não te leva?
PACO - Como?
CRISTO – Fito. Ele não te leva a Espanha com a banda?
PACO – E vai me levar por quê?
CRISTO – Como cantor. Se ele te ouve, com certeza vai querer te
levar. (Ri.).
PACO (Muito sério) – Ah, não. Já me ouviu. Mas não nos
acertamos: pagam muito pouco. (Agora ele ri, forte, divertindose. Cristo agüenta, porém volta ao que lhe interessa.).
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CRISTO – E isto de que vais ficar mais tranqüilo sozinho... Não
sei. Toda esta casa somente para ti... Não é muito grande, mas só
para ti... Garanto que vais sentir falta do “barulho”, como dizes.
PACO (Com certo desgosto) - Não vou estar sozinho.
CRISTO (Muito surpreso) - Como?
PACO – Toda a família vem me fazer companhia.
CRISTO – Teu filho?
PACO – Sim, mas não somente ele. Minha nora também - é claro.
E a irmã dela, a solteirona, também. Toda a família.
CRISTO (Parece decepcionado) - Como? E não vão mais ficar no
armazém?
PACO – Vão transformá-lo num supermercado. Ampliam as
instalações. Vão pôr as paredes abaixo... que sei eu. E vêm viver
aqui.
CRISTO (Disfarçando sua decepção) – Como... Como
progrediram, hein?
PACO – É. Imaginas meu pai se pudesse ver sua despensa
transformada no “Supermercado Don Justo”, hein!
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CRISTO (Com certa agressividade) – Queria ver se ele ia gostar.
Teu pai era um sujeito simples.
PACO – Sim. Bom. Mas quem não gosta de ver seu nome,
assim... Garanto que o velho morreria de novo, de emoção.
CRISTO (Tempo. Pensativo) – E é por isso que eles vêm viver
aqui? Porque eles poderiam mudar-se para outro lugar, alugar, não
sei. Eles têm condições, eu acho.
PACO – Eles dizem que é para que eu não fique sozinho, que
depois da operação e com a minha idade... Ah: o de sempre, tu
sabes.
CRISTO – Ah. (Aborrecido.) Isso, tampouco, tu me havias
contado.
PACO – Resolveram ontem também, ou anteontem.
CRISTO – Não me contaste porque não estás gostando.
PACO – Como não vou gostar de viver com meu filho... e minha
nora... e a solteirona da irmã dela... e o Tito?
CRISTO – O Tito? Quem é o Tito?
PACO – O gato.
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CRISTO – Não. Tu estás brincando! Mas garanto que no fundo,
isto te agrada.
PACO – O quê?
CRISTO – Viver bem acompanhado.
PACO – Ah, viver bem acompanhado, sim.
CRISTO – Ouça Paco. (Enfrenta-o.) Vamos falar sério?
PACO (Enfrentando-o) – Para quê?
CRISTO – Deus dá pão a quem não tem dentes. (Afasta-se.).
PACO – O que queres dizer com isso?
CRISTO – Nada. (Leva a mão à boca do estômago, com dor e
caminha indisposto. Paco observa-o.).
PACO - Viste? Tu também rengueias.
CRISTO – Não. Renguear o quê. É a úlcera que me incomoda.
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PACO – Está bem. Eu rengueio da perna e tu rengueias da úlcera.
Mas, o quê é que tu quiseste dizer com isso de... (O telefone toca,
interrompendo. Paco vai atender, enquanto segue falando.)
Com isso de que Deus dá pão a quem... (Atende.) Alô! – Não, não
está. – Que sei eu. Deve estar em algum confim deste país
tratando da papelada para a viagem. Quem fala? - Goyo? – Tu és
um dos cabeludos? – Bom, então deverias saber onde ele está. É
um grupo pouco unido esse de vocês. – Bom. Goyo, não? – Está
bem: eu digo para ele. – Tchau, garoto, tchau. (Desliga,
divertindo-se. A Cristo.) São divertidos estes garotos. Que
diferença de nós, não? Estes são mais livres, mais... como posso
te dizer... mais...
CRISTO – Mais irresponsáveis.
PACO – Sim. Eles têm essa sorte, sim.
CRISTO – Por que lhe perguntaste se ele era um dos cabeludos?
PACO – É o nome da banda: “Os Cabeludos de Oferenda”. E
então? Olha se não são mais livres do que nós éramos. Nós, sim,
formávamos um grupo e o chamávamos de “Onze Desejos”. Ou
“Juventude e Progresso”. Ou “Guatemala Juniores”. Seriíssimos,
para que não nos ridicularizassem. Nem a uma banda de músicos
de serenata colocaríamos um nome divertido. Lembras da nossa?
“Os Elegantes de Palermo”. Deus que me perdoe! Elegantes! E
cantávamos cada porcaria!
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CRISTO – E bem! Tínhamos lindos trajes... lindos instrumentos...
Além disso, àquela época as serenatas eram diferentes.
PACO – Nisso tens razão. As serenatas, então, eram diferentes.
CRISTO – Ah sim. Caralho se eram! (Ficam os dois pensativos.
De repente Cristo.) O que invejo nestes de hoje são as viagens.
Tu já imaginaste, nós - aos vinte anos -, percorrendo a Europa?
PACO – O meu pai me deu a chave da porta da rua aos dezoito
anos.
CRISTO – Foste um privilegiado. O meu deu-me aos vinte.
PACO – E este... (Aponta para os instrumentos.) olha só: ainda
não tem vinte, todavia, e já...
CRISTO (Perto dos instrumentos de Fito e observando o
baixo) – Por que lhes colocam tantos plugues, me pergunto?
PACO – Agora plugam tudo.
CRISTO – Mas uma guitarra?...
PACO – Isso não é uma guitarra. É um baixo.
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CRISTO (Observando) – Para mim é uma guitarra. Maior, mais
nada. Toca que eu quero ver.
PACO – Não. Tem que ligar na luz, para ver se esperneia.
CRISTO (Idéia fixa) – Não há o que discutir. Agora, as bandas são
diferentes.
PACO – Claro. Assim como os quadros de futebol. Agora, os
jogadores passam viajando pelo mundo todo. Nós, em
compensação...
CRISTO – É verdade. Lembras da viagem que estiveste a ponto
de fazer para a Espanha, com o clube, lá por 36? (Junto à bateria,
começa a bater, distraidamente, num dos tambores.).
PACO – Não vou me lembrar! Arruinou-me o franquista, esse tal
de Franco. Ele teve a idéia de começar com a confusão quinze
dias antes de embarcarmos, o cretino! (Novo golpe de Cristo na
bateria.) Tudo porque íamos fazer a viagem de barco, lembras,
não?
CRISTO – Claro. Naquele tempo quem viajava de avião? (Duas
ou três batidas mais fortes.).
PACO – Os da guerra. Esses foram os primeiros. Na Espanha,
vocês se divertiram às pampas, mandando balas lá de cima.
CRISTO – Como, “nós”?
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PACO – Claro, vocês! Mussolini! Vocês!
CRISTO – Olha: não falemos de política, está bom. Além disso,...
tudo o que começa primeiro tem a ver com a guerra, sempre.
(Novas batidas.) Até as viagens de avião. (Mais batidas.
Entusiasma-se.).
PACO (Continua em seu tema) – E depois, começou a outra
guerra: a grande. E dá-lhe que lhe dá. (Mais batidas.) A questão é
que quando tudo acabou... eu também estava acabado. (Mais
golpes.) E tudo, graças ao tonto do Falquetti, que me deixou
assim, sem volta! (Mais golpes.) Porque não foi acidental, como
disseram os jornais! Ele deixou-me assim, sem pena, com
premeditação e deslealdade! (Cristo está batendo em tudo,
agora satisfeito com o barulho. Paco se altera.) Não dá para
parar com esta barulheira, não? (Cristo pára de bater.) Esse
estúpido do Falquetti! Queria se vingar de uma que eu havia lhe
aprontado numa partida anterior! E conseguiu, ó, se conseguiu!
Vingativo de merda!
CRISTO – Bom, não fica assim, não! (Abandona a bateria.) Isso
foi há muito tempo. Além do mais, quando a guerra européia
terminou, tu já estavas bastante crescidinho, não é? Tinhas como
32
35, não, se não me engano? Para mim, mais que o golpe de
Falquetti, foi o teu joelho que cansou e disse basta.
PACO – Meu joelho, todavia, teria agüentado muitos anos se não
fosse esse asno do Falquetti! (Senta-se em uma pequena
cadeira, junto a uma mesinha com um abajur.).
CRISTO – Bom: está bem, fica tranqüilo. Pensa que tu, pelo
menos, estiveste perto de ir para a Europa. Já é alguma coisa. Eu,
nem isso. Além do mais, pegaste o início do profissionalismo... e
conseguiste até algum dinheiro. Assim que não te queixes.
PACO (Alterado) – Quem está se queixando? Eu, por acaso?
CRISTO – Parece que um pouco, sim. Além do mais, pensa que
graças a Falquetti pudeste dedicar-te integralmente ao armazém, e
fazê-lo progredir. Como tu mesmo dizes, se o teu pai se levantasse
– o quê não vai acontecer, é claro, mas suponhamos que sim -, tu
sabes o quão orgulhoso ele ficaria de ti.
PACO (Esta lembrança o tranqüiliza) – Sim. Isso sim. Pobre
velho. De mim e de Mário também, porque ele fez a sua parte.
CRISTO – Sim, claro: teu filho também. Os dois fizeram o negócio
progredir. Cada um à sua época... (Paco aperta o interruptor e
acende e apaga a luz, como que se divertindo, como antes fez
Cristo com a bateria. Cristo olha-o e continua.) Em
compensação eu, não posso nem dizer que tenho um armazém
33
nem que estive a ponto de ir para a Europa. (Paco acende e
apaga o abajur.) Tu sabes o quanto eu teria gostado de uma
viagenzinha dessas, não? (A luz acende e apaga.) Mais do que
realizar um desejo, teria sido... realizar um sonho, para te dizer a
verdade. (A luz acende e apaga.) Olha, eu vou te contar uma
coisa: (Paco acende e apaga a luz. Cristo, agora, altera-se.)
Queres queimar esta luz, queres? (Paco solta o interruptor.) Eu
te dizia que ia te contar uma coisa! (Observa-o para ver se ele
seguirá brincando com a luz.) Bom... Ia te contar que na última
viagem que eu fiz, alguns dias antes de partir, de repente disse a
mim mesmo: ”Vamos, Cristóvão... de uma vez por todas... Por que
não te atreves? Já que vais... por que não dás um empurrãozinho
a mais e...? Hein? Total, a Europa é assim tão distante?” Mas não.
Não tive coragem. Não me decidi.
PACO (Surpreso) – De que viagem tu me falas?
CRISTO (Inebriado em suas lembranças) - Como?
PACO – Que viagem fizeste? Não fiquei sabendo.
CRISTO – Ah, a Tandil. Em dezembro faz dez anos, não te
lembras? Eu até te mandei um cartão postal!
PACO – Ah, sim. É claro: um com umas montanhas.
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CRISTO – As serras. Eu as olhava e dizia: “como serão os
Alpes?... As Dolomitas?...” Sabes o que são as Dolomitas?
PACO – Sim... duas colinas. Uma ao lado da outra.
CRISTO – Vamos: deixe de brincadeiras.
PACO – Está bom: estás me ofendendo.
CRISTO – Ah é? Não importa. Podes te ofender. Vamos lá: o que
são?
PACO – Montanhas, ignorante!
CRISTO – Ah, mas onde estão?
PACO – O quê? Vais me fazer um exame, agora? Vai, vai
aprender a ler em japonês, vai!
CRISTO – Estão na Itália. E não me digas que sabias, porque tu
não sabias.
PACO – E tu viste, alguma vez, estas tais Dolomitas, por acaso?
Se viste-as, deve ter sido em algum pôster, e mais nada. Assim
que... Ah, agora me lembro... (Afasta-se e procura algo junto às
coisas de Fito, enquanto Cristo fica pensativo.).
35
CRISTO – Sim. Estás certo. Tens razão. Sou um ignorante, Paco.
PACO (Procurando) – E essa agora, por quê? Sabes que são
montanhas... que estão na Itália... O que mais queres?
CRISTO (Quase triste) – O que mais quero? Vê-las. Olhá-las, é o
que eu quero. A gente pode ler sobre as Dolomitas, por exemplo,
um bocado. E, sim: a gente se intera de que são montanhas, onde
estão, que altura têm. Tudo isso. Porém, continuamos sendo
ignorantes. Para saber de verdade como são, teríamos que vê-las,
pessoalmente. Teríamos que poder tocá-las. Teríamos que
poder... (Não sabe como continuar.) Se não, a gente continua
sendo um ignorante, Paco.
PACO – Já começaste.
CRISTO – Por quê?
PACO – Estava estranhando que essa manhã ainda tu ainda não
tivesses saído com uma dessas besteiras. Se continuares lendo,
lendo e lendo, não vais mudar nunca. (Vira-se com um envelope,
que entrega a Cristo.) Toma. Pega tudo o que quiseres. Aqui, no
mínimo, encontrarás as Dolomitas. A Espanha, eu tenho certeza
que tem.
CRISTO (Pega o envelope, muito interessado) – O que é isso?
Selos?
PACO – Sim. Fito guardou-os.
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CRISTO (Entusiasmado, já os olhando) – São sensacionais! De
onde os tiraste? Olha este: é da África, me parece. Sim, é da
Nigéria. Mas, de onde os conseguiste?
PACO – Tu sabes como é o Fito, e os cabeludos. Eles têm amigos
por todas os lugares.
CRISTO – Aqui tem um da Espanha, também, tens razão. Olha:
são lindos!
PACO (Contemplando, com simpatia, o entusiasmo de Cristo)
– Gostaste, não? Parece-me que gostas mais do que dos livros.
CRISTO (Encolhe os ombros) – Sabes do quê é que eu gosto?
Do mundo: é disso que eu gosto. Quero dizer, tudo o que há no
mundo, por aí... Mas, como não posso tocar... nem sequer olhar...
bom... pelo menos aqui, ou nos livros, tenho alguma coisa. Outro
dia encontrei um livro fenomenal no sogro da Rosita. Ela me
emprestou. É um livro de citações de homens célebres. E a gente
lê essas frases, e, o que queres que eu te diga: é a filosofia do
mundo, da França, da Inglaterra, da Itália. Da Espanha. É um livro
Maravilhoso. E as fotos também são maravilhosas. A gente tem
todo o mundo aqui, nas mãos... e pode-se levá-lo por aí... (Fica
olhando os selos.).
PACO – Tu tens um monte, não?
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CRISTO – De quê?
PACO – De selos. Tens um montão.
CRISTO – Cruzes! Caixas de sapatos cheias. No início, colocavaos num álbum, mas depois...
PACO – Deves sentir falta do Correio...
CRISTO – Ah, sim. Até... (Pensa.)... Até 84... tinha o... Como é
que era o nome daquele que me guardava? (Procura na
memória, e não consegue lembrar.) Era um armênio, caralho!
Tenho aqui, ó, na ponta da língua. Um grande cara. Era armênio!
Puta merda, não consigo me lembrar de nomes... (Desiste.) Bom.
Lembras-te de que quando eu me aposentei do Correio, ele era
quase um moleque? Entretanto, prometeu-me que ia me guardar
todos os selos raros que aparecessem, e não falhou nem uma vez.
Eu ia visitá-lo todos os meses, tomávamos um café e ele me
enchia de selos. E todos fenomenais. Pena que um belo dia...
PACO – Também se aposentou.
CRISTO – Não. Não chegou a se aposentar, o pobre. Fumava
muito. Pobre Somoyanian! (Pausa.) Somoyanian! Somoyanian era
o nome dele! Era armênio.
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PACO – Sim: entendi. (Pausa.) E agora não terá algum outro
armênio, no Correio?
CRISTO – Que sei eu. Porém, tanto faz... agora ninguém me
conhece. E garanto que estes não entendem nada de selos. Nem
lhes interessa. Já te deste conta que agora... (É interrompido
pelo toque do telefone.) Saco. Mas este telefone enche, hein?
PACO – Espera. (Vai atender.) Alô. – Antes de tudo, bom dia,
senhorita. – Agora sim, senhorita. Não, Fito não está, saiu com a
noiva. (Pisca o olho para Cristo, divertido.) - Como? Então ele
tem outra noiva! (Segue divertindo-se, piscando o olho para
Cristo, embora este não participe muito da brincadeira.) –
Você é a ruiva ou a morena? – Ah, mas e quando tira a peruca?
(Para Cristo, divertido.) É gente boa! (Ao telefone.) – Mas e
quando tira a última peruca? Porque sempre chega o momento em
que as perucas acabam, ou não? (Para Cristo.) Fodeu: disse que
quando chega essa hora as luzes já se apagaram.(Ao telefone.)
Ganhaste, garota. Meus cumprimentos. – Fito está fazendo os
trâmites para a viagem. – O avô. – Não. O avozinho não. Não sou
tão pequeno assim. – Sim, mas os da minha geração, não
dávamos tempo das luzes se apagarem. (Ri, divertido.) – Sei. E o
que vais fazer? Chegaste tarde, garota, perdeste para ela. – Bom,
digo-lhe, sim. – Mas e tu, como te chamas? - Olga? Que Olga? A
do Magaldi? – O quê? Não conheces a canção? Escuta: (Canta.)
“No cantes, Hermano, no cantes... No cantes que Olga no viene...
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Que los lobos aúllan de hambre... Y Moscú está cubierta de
nieve...” E aí? Que tal? Gostaste? – Sim, tens razão: demasiado
frio. – Sim, digo-lhe. Tchau, garota. Meus cumprimentos. – Tchau.
(Desliga. Divertido, volta a Cristo.) Linda garota. Simpática. O
Fito sabe o que faz.
CRISTO – Não mudas.
PACO – Como que não mudo?
CRISTO – Com as mulheres, não mudaste.
PACO – Elas pensam diferente.
CRISTO – Mas se fosse por ti... seguirias sendo o mulherengo de
sempre. Porque quando podias, zás!... Não deixavas boneco com
cabeça.
PACO (Gostando) – Ora, vamos, não exageres.
CRISTO – Pobre Ñata: não merecia o que tu aprontavas para ela.
Julia sempre me dizia: “o dia em que a Ñata souber de tudo o que
Paco lhe faz, morre”.
PACO (Contrariado) – Ah, não vais agora me dizer que ela
morreu por causa disso.
CRISTO – Não, claro que não.
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PACO – Além do mais, eu não era mulherengo, como tu dizes. Eu
me contentava com uma única: a Ñata. E, sempre lhe fui fiel, como
mulher. Eu era zoneiro, mais nada, o que é bem diferente. Uma
coisa é a mulher da gente e outra coisa, são as putas. E eu
gostava das putas, o que queres que eu faça: gosto. Não sei
porquê falo no passado. Claro que com o passar do tempo, Deus
vai te colocando barreiras, mas não há porquê pensar que tudo
está perdido. (Toca o telefone.) Uiuiui! Pode ser que Deus tenha
levantando as barreiras! (Vai atender, rapidamente.) Alô! (Passa o seu entusiasmo. Olha para Cristo.) Ah, que tal? Como
estás? – Sim, ele está aqui. Já te passo para ele. (Passa o
telefone para Cristo. Cristo se aproxima.) É a tua filha.
CRISTO – O que ela quer?
PACO – Não sei.
CRISTO (A contragosto, pega o telefone) – Alô. – Sim, o quê é
que tu queres? – E onde queres que eu esteja? Aqui. Ou estou em
outro lugar? – Saí para jogar a Loteria Esportiva, e aproveitei para
vir ver o Paco. – E qual é o problema que seja de manhã? Quer
dizer, então, que enquanto eu não comer a sopa eu não posso
sair? (Disfarçando, baixando a voz lentamente.) Não, não... não
posso. (Com a voz normal.) Não, não estou irritado, mas é como
se estivesses me vigiando. Queres que na volta eu passe pela
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veterinária e compre uma coleira e uma corrente, para mim? –
Sim, vou almoçar, sim. Não vou ficar aqui, para comer as porcarias
que este cozinha. – Bom, sim, Rosita, tchau. – Sim Rosita!
(Desliga e suspira, de saco cheio. Enquanto isso, Paco havia
colocado sobre a mesinha, as pedras de um jogo de dominó.).
PACO – Quer dizer que eu cozinho porcaria, é? Por quê não
pergunta a Fito? Ele diz que em nenhum restaurante se come
como aqui.
CRISTO – Claro. Em que restaurante vão se atrever a fazer
porcaria? (Automaticamente, sem prévia combinação, os dois
já estão sentados, frente a frente, e arrumando as peças do
dominó, prontos para iniciar o jogo.).
PACO – Parece que tua filha te deixou nervoso.
CRISTO – Ela pensa que eu estou doente.
PACO (Devolvendo-lhe a mesma resposta anterior) – Ela te
ama.
CRISTO – Sim. Demais.
PACO – Por quê? Ela te disse alguma coisa?
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CRISTO (Custa a responder, porém, finalmente) – Ela tem
medo que eu me perca.
PACO – Ah. (Tempo. Levanta uma peça do jogo.) Dupla de seis.
Eu jogo. (Coloca-a.).
CRISTO (Não presta atenção ao jogo) – Lembras do Nicola?
PACO - Qual? O pai do gordo da oficina?
CRISTO – Sim, esse.
PACO – O que foi que aconteceu com ele?
CRISTO – Ele se perdeu. (Silêncio. Cristo joga. Agora é Paco
quem está pensativo.).
PACO – Bom, mas isso lhes acontece porque eles pegam... (Não
lembra a palavra.) a... Puta caralho, como é que se chama isso
que lhes pega... (Estala os dedos, tentando lembrar a palavra.)
a... a ... a ... puta merda... (Finalmente lembra e pronuncia
triunfante.) a arteriosclerose! Isso!
CRISTO (De repente, nervoso) – Não quero jogar mais!
PACO (Olha-o, surpreso) – Por quê não queres jogar mais?
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CRISTO – Não sei... Tu tens razão: estou nervoso. Não quero
jogar mais. (Levanta-se e caminha, nervoso, pela sala.).
PACO – A tua filha te disse algo que não me contaste?
CRISTO – Não. Não me disse nada.
PACO – Sabes que eu sou teu amigo, não?
CRISTO (Explode) – Sim, já sei! E não tem porquê envergonhar-te
disso! Porque se tu és meu amigo, é porque eu sou teu amigo!
Queres zombar! E eu sou mais amigo que tu, apesar de tudo!
Porque se tu fosses, realmente, um bom amigo, pensarias nos
outros, e buscarias de uma vez por todas esse resultado, que nos
põe a todos nervosos! Ou pensas que vais me enganar, dizendo
que não tens pressa? Poderás enganar a tua família, se quiseres,
mas não a mim! Eu te conheço muito bem! Há setenta anos que te
conheço! Ora se não vou te conhecer! E te digo uma coisa: nestes
setenta anos... não mudaste nenhum bocadinho assim! Continuas
o mesmo egoísta de merda! O mesmo... E, tchau! Não tenho
porquê eu estar te dando explicações. (Vai-se muito digno e
muito rápido. Sai da casa. Paco fica quieto, olhando para a
porta de saída. Levanta-se, caminha alguns passos, quase se
podendo dizer que ao invés de espiar, cheira para o lado de
fora e logo, sem pressa, aproxima-se do toca-disco e coloca
de novo o disco do início. Ouve-se a valsa. Sempre
lentamente, vai até a mesinha, e senta-se frente ao dominó.
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Em seguida, quase deslizando, reaparece Cristo. Avança
alguns passos. Escuta a valsa. Por fim, com a voz muito
calma.) Por que puseste outra vez “El Aeroplano” ?
PACO (Sem olhar) – Disseste que era lindo, não? (Lentamente,
Cristo vai aproximando-se da mesinha e senta-se outra vez em
seu lugar. Pensa, e por fim.).
CRISTO – Lembro-me de quando nós a dançávamos. Com Julia...
com a Ñata... Os quatro... (Paco não olha Cristo. Olha somente
para as peças do jogo.).
PACO – Vamos: continua. Eras tu quem jogava. (A valsa segue
tocando. Os velhos reiniciam o jogo. As luzes baixam,
lentamente, até a obscuridade total).
SEGUNDA PARTE
A TARDE
Termina a valsa e com ela o blecaute. A cena se ilumina, aos
poucos. É a tarde do mesmo dia que está terminando. Paco
está com uma jaqueta ou com um sobretudo, e tem a cabeça
coberta. Está sentado sobre o baú, quase no centro do
cenário – pensativo -, olhando de soslaio, o envelope que tem
à mão, e que de vez em quando bate contra a outra. Tenta
observar o conteúdo, através da contraluz, mas logo lembra
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que não é isso o que quer. Toca o telefone. Vai devagar até
ele, tira o fone do gancho, e afasta-se, caminhando nervoso.
Em seguida ouve-se um ruído que vem da porta de entrada.
Paco guarda, rapidamente, o envelope num bolso, e disfarça.
Aparece Cristo.
CRISTO – Ainda estás aqui?
PACO – Por que “ainda”? Espero estar aqui por muitos anos.
CRISTO – O que eu quero dizer é: ainda não foste?
PACO - Aonde?
CRISTO – Como “aonde”? Vamos, Paco: buscar o resultado.
PACO – Ah! E por que achas que eu não fui? Posso não ter ido...
posso ter ido...
CRISTO – Mas como? Não estás por sair? (Desconcertado,
mostra-lhe a roupa e o chapéu ou boné que Paco usa. Paco,
que os havia esquecido, surpreende-se e disfarça.).
PACO – Ah! (Tira-os, rapidamente, e leva-os para um local
distante de Cristo.) Não. Acabo de chegar. Eu estava para tirá-los
quando chegaste, de novo. Agora tu vens o dia inteiro: pela
manhã... pela tarde...
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CRISTO – Queria saber como tinhas ido. (Olha-o ansioso. Paco
evita o olhar.) Então, como te foste? Não vais me contar?
PACO (Com fingida indiferença) – Não fui.
CRISTO – Por que dizes que não foste?
PACO (Fingindo irritação) – Porque ainda não estavam prontos.
Os resultados, digo. Fizeram-me ir até lá, para nada. Gente de
pouca confiança. Só o que fazem é incomodar a gente e...
CRISTO – Que estranho, não? Por que te disseram que iam estar
prontos hoje?
PACO – O quê? Pensas que estou te mentindo?
CRISTO – Não. Como vais me mentir? Por que me mentirias?
PACO – Isso mesmo: por quê?
CRISTO – E quando vão ficar prontos?
PACO – Ih! Amanhã. Ou depois. Que sei eu: são uns
desorganizados.
CRISTO – Que estranho, não? Porque num caso como este...
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PACO – Como assim num caso “como este”? O que é que tem de
especial neste caso?
CRISTO – É... que a gente está apertando o cu. Entretanto eles
estão na maior tranqüilidade: tanto faz hoje, como amanhã, como
depois...
PACO – Quem está apertando o cu?
CRISTO – Todos, Galego: inclusive tu. Não me digas que não. As
coisas têm que ser enfrentadas.
PACO – Olha Cristo: aqui, o único que tem que enfrentar as
coisas, és tu mesmo, porque tu és o único que anda apertando o
cu. E isso, porque passas a vida pensando na morte. E não tens
medo somente da tua morte. Mas, a de qualquer um. Assim que,
portanto, deixas de encher.
CRISTO - Eu? Medo da morte? Ora: a morte nem existe. (Olha-o,
triunfante.).
PACO – Como assim?
CRISTO – O que existe é a vida.
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PACO (Observando-o) – Garanto que isso está nesse livro de
frases que estavas lendo.
CRISTO – Como percebeste?
PACO – Porque se essa idéia fosse tua, não estarias sempre
falando de mortes! Sempre vens com a história de que morreu
este... morreu aquele...
CRISTO – Bom, as pessoas morrem: o que posso fazer?
PACO – Não falar dos mortos! Isso é o que podes fazer! Ter uma
visão um pouco mais otimista, uma visão de futuro! Não dizes que
a morte não existe, que o que existe é a vida? Bom, então, fala do
que existe!
CRISTO – Sabes que tens razão?
PACO – Sim, por cinco minutos. Depois, começas, outra vez, com
isso de: “sabes quem morreu?... Sabes quem morreu?”.
CRISTO (Tempo) – Não vais te irritar, mas... sabes quem morreu?
PACO (Olha-o fixamente. Tempo) - Quem?
CRISTO – O Passarinho.
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PACO – O Passarinho? Mas ele era mais jovem que nós! Nós o
carregávamos... No mínimo uns três anos. Passarinho! Há tanto
tempo que não o via! E morreu de quê?
CRISTO – Não sei. Não falemos mais de mortos.
PACO (Sem acreditar. Olha-o fixamente) – Quem trouxe o tema
dos mortos foste tu, me parece.
CRISTO – Bom... Eu não podia continuar guardando isso por mais
tempo. Há mais ou menos uns dez dias que eu estou sabendo.
PACO – Dez dias?
CRISTO – Sim. O Carniça me telefonou para me contar. Uns dias
antes tinham pensado em organizar um jantar, com os que restam
da turma de então, para festejar cinqüenta anos não sei de quê.
Mas agora... imaginas... cancelaram o jantar. Não havia quorum.
PACO – E se tu sabias há dez dias, por que não me disseste
nada?
CRISTO – Ora, Paquito... Para não te deixar preocupado.
PACO – E por que eu iria me preocupar?
CRISTO – Bem... eu imaginei.
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PACO – Olha: é melhor que a gente nem fale de tudo o que podes
imaginar, não é?
CRISTO – Está bem. Não falemos.
PACO – Isso. (Tempo.) Pobre Passarinho! Foi um dos melhores
meios-de-campo daquela época...
CRISTO – Sim, mas... recém disseste que não era para se falar
mais dos mortos.
PACO – E quem está falando dos mortos? Eu estou te falando do
Passarinho, de quando ele estava vivo!
CRISTO – Ah, bom. Então, falemos.
PACO – Não. Agora não falamos mais nada.
CRISTO – Bom: está bem. (Tempo.) Mas, na verdade, como
jogava, hein?
PACO (Com o pensamento longe) - Hein?
CRISTO – O Passarinho! Como jogava!
PACO – Sim. Mas não teve sorte. Creio que jogou em uma ou
duas partidas como titular, mais nada. Ficava sempre na reserva...
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CRISTO – Também!... Com os animais de primeira do
Independiente, não iam escalá-lo. (Maldoso.) Lembras daquela
linha de frente, não? Canaveri, Lalín, Ravaschino, Seoane e Orsi.
Que gracinhas! (Mais maldoso ainda.) Lembras, não?
PACO (Entendendo a maldade) – O que queres dizer? É claro
que me lembro!
CRISTO (Gozando com ele) – Que baile te deram aquela vez,
hein?
PACO – Bom, sim! Porém foi a única vez que me pegaram uma
dessas, em toda a minha vida. E olha que eu joguei, hein!
CRISTO – Ah, como incomodava o sujo do Seaone! Àquela tarde
tiveste que lhe dar umas porradas, porque senão...!
PACO – Não, só um momento! O que aconteceu foi que ele
começou a me encher. Ele tinha esse costume: colocava-se diante
da gente, assim... mexia o rabo para um lado... a gente ia atrás... e
ele saía com a bola pelo outro. Fez isso em mim duas vezes. Na
terceira eu perdi as estribeiras, o que queres? E lhe dei.
CRISTO – E te expulsaram.
PACO (Com certo orgulho) – Bah. Não foi a única vez.
CRISTO – Tu gostavas, não, que tivessem medo de ti?
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PACO – Eu me divertia. (Começa a rir, divertindo-se.) Lembras
daquele meio-campo pequenininho, ruivo, do Sportivo de Buenos
Aires? Como se chamava?
CRISTO (Começa a contagiar-se, sem saber do quê se trata) Qual? Um de cabelo encaracolado?
PACO – Esse mesmo. Um que pensava que estava jogando
sozinho... que queria driblar até mesmo o juiz.
CRISTO – Sei. Como não vou me lembrar? Como se chamava,
caralho... Ufa: estou mal para os nomes... Começava com S, se
não me engano.
PACO – Bom, não importa: logo nos lembraremos.
CRISTO – Sim, sim. Está na ponta da língua.
PACO – Bom... Uma vez eu tive que lhe dar umas porradas,
sabes? Ele vinha gambeteando até a grama, ia, vinha...O quê é
que eu podia fazer? Tive que lhe dar, para que parasse de nos
foder. E sabes o quê ele fez? Não te lembras? (Dá gargalhadas.).
CRISTO (Ri mais) – Não. O que foi que ele fez?
PACO (Morrendo de rir) – Mas tu não lembras?
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CRISTO (Contagiado, também morrendo de rir) – Não. Se me
lembrasse, te diria. O que fez?
PACO (Os dois estão mortos de rir, mal conseguindo falar) –
Ele... ele... (Não consegue continuar, de tanto rir.).
CRISTO (Morrendo de rir, sem saber porquê) – Anda, vamos:
conta. Eu quero saber do quê é que estou rindo.
PACO (Vencendo o riso) – Ele... se foi... Fugiu do campo. (Volta
a gargalhar.).
CRISTO (Sem acreditar, sempre com risadas incontroláveis) Fugiu? Fugiu... do campo? Fugiu? Saiu?
PACO – Sim. Fugiu do campo. Deixou o time com dez. Disse...
(Ri.)... disse: “com esse eu não jogo mais”. E se foi. Ninguém
podia acreditar, porque mesmo que, todavia, ainda não fôssemos
profissionais... não ficava bem que a gente abandonasse, assim,
sem mais nem menos, o campo. Estava tudo lotado de gente...
CRISTO (Sério) – Eu também, muitas vezes, tive vontade de fugir
de campo.
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PACO (Parando de rir, aos poucos) – Porque tu também eras
outro dos que passavam fazendo gracinhas.
CRISTO – Bom, eu gostava de jogar. Eu não era como tu, que a
única coisa que fazias era bater.
PACO – Ah não, qual é? Não me diz uma coisa dessas, porque eu
também sabia jogar.
CRISTO – Sim. Até encontrar quem jogasse melhor do que tu.
PACO – Bom, na vida, de vez em quando, a gente tem que bater.
Se não...
CRISTO – Claro. E o outro, que se foda. Como eu, que por culpa
de tipos como tu, que não deixavam os outros jogarem, tive que
abandonar o futebol. E... e muitas outras coisas.
PACO (Surpreso) – Estás te dando conta do que estás dizendo?
Depois de tantos anos vens com essa?
CRISTO – Bom, algum dia isso teria de acontecer. Nunca te disse
antes, porque... enfim... não queria terminar com a nossa amizade.
Mas agora... bem, agora posso te dizer.
PACO – Ah: queres dizer que agora não tem a menor importância
se a nossa amizade terminar?
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CRISTO – Ora, Galego! E a nossa amizade vai terminar? Nossa
amizade não acabará nunca! (Olham-se profundamente. Em
seguida Paco vai até a mesinha, senta-se e ajeita as peças do
dominó. Cristo, que a partir deste momento está visivelmente
preocupado, segue-o. Antes de sentar-se à frente de Paco
sussurra, quase a contragosto.) Salomoni.
PACO – Como?
CRISTO – Salomoni. O nome do meio-campo. O pequenininho. O
que fugiu porque tu bateste nele.
PACO – Ah, sim! Salomoni! Claro! Viste: Salomoni! Eu disse que a
gente ia lembrar. (Mostra uma peça do jogo.) Dupla de seis. Eu
jogo.
CRISTO (Continuando no tema anterior) – Julia sempre me
repetia: “diga a Paco como ele é. Afinal, ele é teu amigo. Deverias
dizê-lo”. Mas, a mim parecia que não devia te dizer nada. Para
quê? Afinal de contas, se tu gostavas de bater... cada um é como é
e o outro, se quiser, aceita ou não. E eu te aceitava assim, e
pronto.
PACO – Eu também te aceitava. Não eras somente tu que tinhas
que agüentar certas coisas. Eu - com a Ñata -, também falava de
56
ti, e dizia para ela: “olha, eu agüento o Cristo, porque ele é um bom
sujeito, se não...”.
CRISTO – E o que é que tu tinhas que agüentar de mim? Diga-me,
para eu saber.
PACO – Queres que eu diga?
CRISTO – Sim, claro: diga!
PACO – Bom, várias coisas, mas sobretudo a tua fidelidade: isso
eu não comentava com a Ñata, claro. Mas era o que eu mais tinha
que agüentar em ti. Nunca querias sair com nenhuma garota. Eu
sempre tinha que sair sozinho, e se as garotas fossem duas, tinha
que conseguir algum outro candidato, pois tu nunca pulavas a
cerca. Sempre fiel... sempre falando de Julia. Eu ficava louco.
CRISTO (Consigo mesmo) – Dávamo-nos muito bem os quatro.
PACO – Isso sim! Mas era tudo muito familiar! Elas se conheciam
desde crianças, e nós também! A gente se aborrecia! Por isso, que
não fazia mal nenhum, sair de vez em quando, com alguma garota.
(Cristo, nervoso, abandona o jogo e caminha pela sala. Paco
observa-o com curiosidade.).
PACO – O que é que há? Não vais jogar mais?
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CRISTO (Distante) – Às vezes penso... em como passávamos
bem, juntos, os quatro. No clube, no cinema... em qualquer lugar
que fôssemos, nos divertíamos. É uma pena que...
PACO – Estás vendo? Já começaste de novo! (Cristo não o
ouve. Agora, está frente a foto de Ñata. Olha-a, fixamente.).
CRISTO – Eu não tenho nenhuma foto artística de Julia, assim
como esta. A Ñata está linda aqui. Todas as que eu tenho de Julia
são pequenas, dessas 3X4. Tenho uma, em que estão as duas,
quando eram crianças, na casa da Ñata. (Tempo. Mostra a foto.)
Continuas sentindo a falta dela, não?
PACO (Depois de uma pausa. Sincero) – Sim...
CRISTO – Eu sinto muito a falta de Julia.
PACO – Sim. Já sei. Mas vais ou não vais jogar?
CRISTO (De repente) – Sou um desgraçado, Galego!
PACO – Como assim? O que estás dizendo?
CRISTO – Que sou um desgraçado!
PACO – Sim: já ouvi. Mas por que dizes isto, agora? O que foi que
te aconteceu?
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CRISTO – Sabes de uma coisa? (Patético.) Eu também fui infiel a
Julia.
PACO (Gratamente surpreso) – Tu também? Não me digas!
CRISTO (Quase chorando) – Sim, eu também! Sou um
desgraçado! (Desespera-se.).
PACO (Contente, levanta-se e aproxima-se de Cristo) – Espera,
espera um pouco: não fiques assim, que não é para tanto. Contame! Conta-me com quem foi. Eu a conhecia?
CRISTO – Não. Era uma colega do Correio. Eu nunca quis ter
passado por isso, mas estávamos todo o dia juntos, trabalhando. E
foda vai, foda vem...
PACO – Sei. É difícil, estando todo o dia juntos. E mais ainda, se
há foda no meio...
CRISTO – Mas, eu te juro, que não havia me proposto a isto. Julia
não o merecia. Não. A coisa aconteceu de repente, quase sem me
dar conta... Que sei eu! Aconteceu porque tinha que acontecer.
PACO – E então? Foi no escritório mesmo que...
CRISTO – Não! Estás louco? Como íamos fazer no escritório?
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PACO – Achei que fosse! Se bem que, teria sido incômodo
demais, não? E aonde foram?
CRISTO (Com vergonha) – A um hotel!
PACO – Ah... Então não foi tão de repente. Um pouco de
premeditação houve.
CRISTO – Que sei eu. Eu já nem me lembro. A única coisa que sei
é que fui um desgraçado.
PACO – Bom: chega, Cristo! Cada vez que dizes isto, insultas a
mim também. E, afinal de contas, não é para tanto. Tu sempre
foste fiel a Julia. Ela sempre foi a tua esposa. A garota do Correio
era uma garota, mais nada. (Olha-o com curiosidade.) E durou
muito tempo isso?
CRISTO – Não. Estás louco? Foi só esse dia.
PACO (Não acreditando) – Só esse dia? Estás querendo me
dizer que foram ao hotel somente uma vez?
CRISTO – Sim.
PACO (Sem entender) – Mas o que foi que houve? Vocês não
gostaram?
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CRISTO (Desesperado) – Será que tu não entendes? Eu não
podia seguir fazendo isso com a Julia. Dava-me um... dava-me um
não sei o quê.
PACO (Olha-o, desiludido) – Na verdade és mais fiel do que eu
pensava.
CRISTO – Nunca vou esquecer daquela noite, ao chegar em casa.
Julia recebeu-me melhor do que nunca. Senti-me uma porcaria tão
grande que... quase lhe contei tudo.
PACO – Mas não contaste.
CRISTO – Não. Como poderia contar?
PACO – Então não és assim tão fiel.
CRISTO – “Oi, meu huia”, ela me disse quando entrei. Nunca vou
esquecer. Foi a pior coisa que ela poderia ter me dito.
PACO – Meu “o quê” ela te disse?
CRISTO (Reticente) – Meu huia.
PACO - Huia? E o quê é isso? Algum insulto?
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CRISTO – Não. Ao contrário. Os huias eram uns pássaros
extintos, da Nova Zelândia, que viviam em par. Nenhum dos dois
podia viver sem o outro, entendes? Nem o macho e nem a fêmea.
Por isso nós, de brincadeira, nos chamávamos de huias. E logo
nesta noite...
PACO – Perdoa-me, sim, mas estes pássaros eram meio idiotas?
Por que não podiam viver um sem o outro?
CRISTO – Porque um tinha o bico curto, mas forte, para poder
fazer um buraco nas árvores; e, o outro tinha o bico frágil, mas
comprido, para poder enfiá-lo no buraco e tirar a comida. Os dois
se complementavam, entendeste? E um sem o outro...
CRISTO – E o que aconteceu com esses bichos? Porque eu nunca
ouvi falar deles.
CRISTO – Estão extintos: já disse. A espécie se acabou.
PACO – Eram completamente imbecis, então. Em compensação,
tu continuas vivendo, o que quer dizer que não és assim, tão
imbecil.
CRISTO (Revoltado) – Mas por que é que tu tens que fazer
gracinhas com tudo? Sabes como eu me senti naquele dia? E mais
ainda, por estes dias? Porque eu nunca precisei tanto dela como
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agora: nunca... (Pára, como se entendesse que está falando
demais. Disfarça.).
PACO – Por que nunca precisaste tanto dela como agora? O que
é que está acontecendo contigo?
CRISTO – Nada. Deve ser por causa desta valsa, que sempre
dançamos juntos, e que aconteceu de tu colocá-la justamente
hoje... Não sei. (Está confuso.).
PACO (Observando-o) – Ouça-me Cristo: alguma coisa está
acontecendo contigo, estás estranho.
CRISTO (Nervoso) – Não me chames de Cristo, está bem? E já te
disse que se estou assim, é por causa desta valsa! E, por falar
nisso, tu já podias ter comprado um aparelho de K7, ao invés de
andar colocando este disco do tempo do tico... (Ao olhar para o
disco, descobre, ao seu lado, o telefone fora do gancho. Pegao e mostra a Paco.) E isto?
PACO (Disfarça. Pega o telefone e coloca-o no lugar, enquanto
responde somente sobre o disco) – Estás louco? Como vou
jogar fora este disco? Já não vem mais desses, de acetato
autêntico, e de 78rpm: a velocidade que eu gosto. (Afasta-se.).
CRISTO – Eu te perguntei pelo telefone.
PACO (Disfarça) – Ah, eu estava fazendo uma limpeza.
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CRISTO – Escuta: tu estás me escondendo alguma coisa.
PACO (Tempo. Sério) – Está bem. Como te deste conta?
CRISTO – Porque eu te conheço! E por esse telefone desligado!
(Entende tarde, a aparente confissão de Paco.) Então estás
escondendo alguma coisa?
PACO – Sim. A ti eu não posso enganar. Mas tu não vais contar
para ninguém, está bom?
CRISTO – Não. Juro que não.
PACO – Vais guardar segredo?
CRISTO – Sim: estou dizendo que sim.
PACO – Bom. (Faz uma pausa. Cristo espera, angustiado.)
Tenho uma namorada.
CRISTO (Explode) – Ora, vai-te à merda!
PACO – Epa! Tu estás realmente estranho hoje, hein?
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CRISTO – Olha... eu já te disse o que está me acontecendo! E
quem está estranho... e tu sabes porquê... és tu! Assim que, não
me enche mais! (Vai rápido para a mesinha, senta-se e joga.)
Pronto!... Os dois quatro! (Paco aproxima-se.).
PACO – Queres um copo de leite?
CRISTO – Não! Estou até aqui de leite! (Paco senta-se e começa
a rir, baixinho. Cristo olha-o fixamente.) E agora: qual é a
graça?
PACO – Sabes de quem estava me lembrando? (Ri baixinho,
enquanto Cristo segue olhando-o, esperando.) Do turco Alef.
Sabes o quê a mulher dele fez, uma noite, quando descobriu que
ele andava com uma garota? (Continua rindo baixinho, e
jogando, colocando as peças do jogo uma detrás da outra,
como se a conversa não interferisse no jogo.).
CRISTO (Também começa a rir, como na cena anterior) – Não.
O quê foi que ela fez?
PACO (Em meio às risadas) – Esperou por ele, sentadinha - o
mais tranqüila possível -, com um pulverizador de Flit na mão...
Lembras daqueles aparelhinhos que bombeavam inseticidas?
Bom: quando o turco apareceu, feliz que só ele, aí pelas duas
horas da madrugada... sem esperar que ele dissesse “oi”....
Pffffffff”... começou a bombear-lhe, sem dó! Pfffffff! Ah, ele ficou
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nojento, de cima a baixo! Tratou-lhe como se fosse um inseto, sem
dizer uma palavra. Não é uma maravilha? A turca estava um
portento. (Riem, os dois: Paco mais que Cristo. Até que Paco.)
Pelo menos Julia não te esperou com um bodoque. (Ri, enquanto
Cristo fica sério.) Já imaginaste? Toma minha huia! E zás: um
bodocaço! (Ri.) Huia se chamava o passarinho, não é? (Ri.).
CRISTO – Eu não acho a menor graça.
PACO – Hoje, tu não achas graça em nada.
CRISTO – Claro que não, porque eu não posso engolir isso de que
ainda não te tenham dado o resultado! (Enfrenta Paco.) A Ñata
podias enganar, agora a mim, não.
PACO – Bom: chega, não?
CRISTO – Sim! Chega! Isso é o que eu digo!
PACO – Bom: então, chega!
CRISTO – Sim: basta!
PACO – Isso! Basta! (Levanta-se, desgostoso. Faz uma careta
de dor.) Ai!!! Esse idiota do Falquetti! (Caminha à toa, pela sala.).
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CRISTO (Muito chateado) – Eu pensava que eu fosse teu amigo.
Mas parece que...
PACO – Mas, o quê tu estás dizendo, Cristo? Tu és pior que o
Falquetti!
CRISTO – Penso que se tu sabes de alguma coisa... terias de ter
me contado! É isso que eu estou dizendo! Não sei porquê não
queres falar comigo sobre... (Toca o telefone, interrompendo.
Depois de uma certa hesitação, Paco pede a Cristo.).
PACO – Atende, vamos!
CRISTO (Desafiando-o) – Não! Atende tu! Anda, atende!
PACO – Não sejas estúpido: atende! (O telefone segue tocando.
Paco espera a decisão de Cristo.) E então? Vais atender ou
não? (A contragosto, Cristo vai até o telefone. Paco adverte-o,
rapidamente.) E se for Mário diga que eu não estou. Que estás
me esperando... o que quiseres. Mas não estou.
CRISTO (Indo ao telefone) – Olha que eu não sei mentir, hein?
(Atende.) Alô! – Não. Cristóvão! – Ah, o que mandas Mariozinho?
Como vais? – Não, não, ele não está. Parece que ainda... não sei,
não voltou. – Não, Fito tampouco. – Sim, a verdade... não sei
porque o teu pai não me dá a chave de sua casa. Porque aqui, eu
não sou mais que... (Olha para Paco, mas não continua.) - Ahn?
– Não, nada. Eu digo para ele te chamar, então. – Sim, claro, é
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certo que tudo sairá bem. Erva daninha não morre nunca. É. –
Sim. É o que eu sempre digo. Que ele vai me enterrar, primeiro. –
É. Bom. Um de nós vai ter de enterrar o outro, não é? – Bom,
tchau, Mariozinho. – Sim, deve ter ido tomar um café. Olha, não é
para falar mal, não, mas o teu velho é um egoísta de merda...
(Olha para Paco, desafiador.) e pouco lhe importa que nós todos
estejamos esperando. – (Ouve. Surpreso.) Sim! Claro que ele
também é capaz disso! Hoje, casualmente... Bom, tu o conheces,
não? (Paco olha interrogativamente.) – Bom, sim, eu digo para
ele. – Tchau, Mariozinho. (Desliga. Para Paco.) O teu filho te
conhece, hein?
PACO – Por quê? O que foi que ele te disse?
CRISTO – Que certamente tu tinhas saído com alguma garota por
aí.
PACO (Contente) – Ele disse isso? Eta Mariozinho velho, e
cabeludo! Garanto que a ele seria melhor que eu... Bom: e a mim...
nem te conto.
CRISTO – Mas ele também está de acordo que tu és um egoísta
de merda!
PACO – Sim, mas nunca tão egoísta quanto tu, que queres que eu
te enterre primeiro. Cuidado! Que se eu te enterro primeiro, depois
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tu te levantas e enterras a mim. Pacto de sangue? (Estende a
mão fechada com o polegar para cima.).
CRISTO (Olha-o, seduzido. É um velho jogo de quando eram
crianças. Aperta seu polegar contra o de Paco) – Pacto de
sangue.
PACO (Depois de ‘misturar os sangues’, sorrindo, com a mão
dá um soco no punho de Cristo) – Ah, sim, fizemos pacto de
sangue. (Olham-se, carinhosamente.).
CRISTO – Sim. E quase sempre o respeitamos. (Emocionado,
Paco afasta-se. Cristo, imóvel, espera, até que insiste.) Dá-lhe
Pé Grande.
PACO – Dá-lhe o quê?
CRISTO – Então, tu não vais mesmo me contar? (Paco pára.
Pensa. Pausa. Afinal, vai até o casaco e tira o envelope do
bolso. Mostra-o para Cristo. Cristo se surpreende.) O quê?
Eles te entregaram?
PACO – Sim.
CRISTO – E o que diz?
PACO – Por enquanto não vou abri-lo.
CRISTO – Mas o que estás dizendo?
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PACO – Não entendes? Por enquanto não vou abri-lo.
CRISTO – Mas estás louco? Como não vais abri-lo?
PACO – Por enquanto, não.
CRISTO – Como não? Como não vais inteirar-te desse resultado,
se...(Pára.).
PACO – Se o quê?
CRISTO – Vamos, Paco: sabes o quê está em jogo aí.
PACO – Nada está em jogo. A partida já terminou.
CRISTO – Sim, mas e o resultado?
PACO (Mais forte) – Bom, não enches mais, está bom? O que
queres? Vamos terminá-la de uma vez! (Enfrenta-o, porém sai
rápido do enfrentamento, e vai sentar-se, com raiva, sobre o
baú. Aparece outra careta de dor. Toca no joelho.) Esse idiota
do Falquetti!
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CRISTO (Depois de uma pausa, dolorosamente) – Preferes que
eu me vá, então?
PACO (Com afeto, sem olhá-lo) – Já te disse que a termines.
(Cristo vai sentar-se sobre o outro lado do baú, quase de
costas para Paco. Finalmente, Paco olhando o envelope que
tem à mão.) Não o quero abrir e nem quero deixar de abrir.
CRISTO (Deixando-o falar) – Ah, sim.
PACO – Não estou decidido. Essa é que é a verdade. Que sei eu
se vai servir para alguma coisa saber que me resta um ano... ou
dois... ou cinco. Ou cinqüenta. Essa é que é a verdade.
CRISTO – Ah, sim.
PACO – Olha: (quase desafiante.) não sei se isto que vou te dizer
aparece em algum desses livros geniais que tu lês. Mas todo o
tempo que passou, o que ficou para trás... o tempo que ainda vai
passar, esse que está à frente... e este, este tempo que vivemos
agora... tudo... todos os tempos... (Mais desafiador.) são o
mesmo tempo. (Olha-o e espera.) O que eu quero dizer é que
nenhum vale mais que o outro. Todos são o mesmo, entendes?
(Pausa. Ficam olhando-se. Por fim.) Vamos, discuta, se
quiseres.
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CRISTO (Sem deixar de olhá-lo, interessado) – Não, não quero
discutir. Eu, justamente...
PACO (Interrompendo-o, discutindo, talvez consigo mesmo) –
E mais, ainda! Quem sabe, este minutinho que agora estou
vivendo, aqui, contigo... vale tanto quanto todos os anos e anos
que... Porque, afinal de contas... diga-me: onde estão os anos que
passaram, os anos que já vivemos? Tu, certamente, dirás: “psss!...
se foram!” E foram sim. Por um lado tens razão, se foram. Porém,
por outro lado, não se foram. (Leva a mão à cabeça.) Estão aqui.
E ai, contigo, também. Com os dois. E o tempo que está por vir, se
é que há algum tempo que esteja por vir... também está agora,
aqui, conosco. Muito, pouco... O que for. (Está entusiasmado.
Pára. Observa Cristo.) Que cara é essa? Estás me entendendo,
ou não?
CRISTO (Com certa admiração e temor, ao mesmo tempo) – Tu
me prometes que não vais ficar irritado?
PACO – Sim. Por quê?
CRISTO – Porque isso tem num livro. Não me lembro em qual: “a
eternidade está no minuto em que vivemos”. Ou algo parecido com
isso, dizia. (Olham-se. Tempo.).
PACO (Sorri) – Filosofia.
CRISTO (Concordando) – Sim, sim.
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PACO - Viste? E isso que eu não li quase nada.
CRISTO – E, além disso, dizia algo assim como que a vida era
uma série de eternidades, e que o homem deveria ter...
PACO (Levantando) – Já cagaste tudo.
CRISTO – Por quê?
PACO – Porque estou cagando um monte para esta tal série de
eternidades! A mim, o que importa, é esta eternidade! Esta
eternidade minúscula que estamos vivendo aqui e agora, mais
nada! E, quando acabar... quando esta eternidade minúscula
acabar... (Aproxima-se e pega Cristo pelo peito, divertido e,
talvez, provocativo.) eu não vou me dar conta de que acabou,
entendes? Não vou me dar conta! E fodo todo o mundo. (Vai em
direção à garrafa térmica.) Queres um café?
CRISTO – Claro! O egoísta de sempre! Que te importam os outros,
não é mesmo? Desde que tu não te dês conta... que se fodam os
que ficarem, não é assim?
PACO – Os que ficarem também não vão se dar conta, Cristo!
Uma semana, duas semanas, no máximo. Um mês, digamos. Mas
depois, adeus. Se não se esquecerem, se acostumarão. O que é
73
algo parecido. Afinal, queres um café? (Aproxima-se da garrafa
para servir-se. Cristo fica sozinho, desprotegido. Por fim fala,
sem olhar para Paco, quase que como para si mesmo.).
CRISTO – Não quero que morras antes de mim, Galego.
PACO – Ah, não? Haha! Queres que quem fique e se foda seja eu,
não é? Muito esperto!
CRISTO (Cada vez mais desprotegido) – Eu não quero ficar
sozinho.
PACO – Vamos, Cristo: deixe de brincadeiras. Como vais ficar
sozinho? Tens tua filha, teu genro... teus netos... O que mais
queres?
CRISTO – Eles se vão.
PACO - Como?
CRISTO – Se vão.
PACO (Surpreso. Larga o café) – Vão aonde?
CRISTO – Há tempos que Luis esperava que saísse um trabalho
no Canadá. E finalmente conseguiu. Ele é um bom técnico, tu
74
sabes, e não vão desperdiçar uma oportunidade dessas, por minha
causa.
PACO – Mas, como? Eles não vão te levar?
CRISTO – Não. Estás louco! Já são cinco. Eles os dois, as
crianças... Não, como é que vão me levar? (Tenta sorrir, mas não
consegue.) Não cabemos todos no Canadá.
PACO – Ah, não. (Continua assombrado.) Claro. Não cabem. E,
então... o que vão fazer contigo? Vão te jogar num terreno baldio?
CRISTO – Eles vão me colocar num desses lugares que... De lá,
com os dólares, eles vão poder pagar, porque eu, aqui, com minha
aposentadoria... (Pára. Tenta sorrir, mas está muito triste. Paco
entendeu e recebe a notícia como se fosse um soco. Não
consegue acreditar.).
PACO – O quê? Uma clínica geriátrica?
CRISTO – É. (Paco não consegue reagir. Apenas repete,
mecanicamente.).
PACO – Clínica geriátrica. (Caminha algum tempo, nervoso,
sem encontrar solução, até que por fim explode.) Como numa
clínica geriátrica? (Enfrenta Cristo, surpreendentemente.) Não
podem fazer isso! Não, senhor! (Acusa-o, enfiando-lhe o dedo
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no peito.) Não podem fazer isso contigo, entendes? Tu trabalhaste
toda a tua vida! Desde garoto, trabalhaste! Como um negro!
Sempre encerrado lá naquele Correio! Todo o dia lá dentro, dá-lhe
que lhe dá, carimbando selos! Sac, sac, sac! O braço ficava duro!
Ou não te lembras? E a luz do sol? Quando vias a luz do sol, hein?
Todo o dia naquele sótão! (Cristo, timidamente, vai falar, porém
Paco continua.) Sim, senhor! Passaste a vida, metido naquele
sótão, não digas que não! (Cristo desiste e Paco continua.) Eu
sei muito bem! Sei muito bem tudo o que trabalhaste! Fui
testemunha de tudo o que te sacrificaste! Sim, senhor! Te
sacrificaste por tua família, pela sociedade, pelo país... pelo
mundo! Por isso, que agora, eles não podem te meter em uma...
Entendes? (Paco está gritando e acusando-o. Cristo recebe o
bombardeio sem saber como reagir. Por fim, Paco chega ao
cúmulo de sua indignação.) Mas tu estás me ouvindo, ou não?
(Quase suplicante.) Eu disse que não podem fazer isso contigo,
Cristo!
CRISTO (Com um fio de voz) – E o que queres que eu faça? Eu...
PACO (Esforçando-se, debilmente) – Como o quê que eu quero?
Quero que não deixes te fazerem isso! O quê és, afinal? Diga-me:
o quê és? (Ficam olhando-se. Por fim, Paco vencido, caminha,
outra vez, nervoso, resmungando.) Hum! Uma clínica geriátrica!
É a única coisa que eles pensam! (Tempo. De repente.) Clinica
geriátrica, um caralho! (Enfrenta Cristo.) Vens viver aqui, comigo,
e está resolvido!
CRISTO – Ora, Paco: aqui, tampouco cabemos todos!
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PACO (Lembrando) – Ah, então foi por isso que hoje perguntavas
e... Mas por quê não me disseste? Não sabes, por acaso, que eu...
Mas como que tu não vais caber aqui? Eu te arranjo um lugar, e
pronto. Esta casa, ainda está no meu nome, assim que tu... Tu vais
dormir na minha cama, e pronto! Do lado esquerdo, está bom? Eu
estava acostumado a dormir, com a Ñata, do lado direito! Vem,
vem que eu te mostro! (Pega-o pelo braço, levanta-o, e quer
levá-lo até o quarto de dormir. Cristo resiste, soltando-se.).
CRISTO – Ora, Galego: sabes que não posso!
PACO – Por quê? És sonâmbulo, por acaso? Falas dormindo?
CRISTO – Sem brincadeiras, Galego! Sabes muito bem que eu
não posso viver aqui, contigo, por mais que isso me agrade! E
fique quieto, por favor, que eu... que eu... Eu vou me embora de
uma vez! (Movimenta-se com intenção de ir embora. Paco
coloca-se à sua frente.).
PACO – Tu não vais coisa nenhuma! (Enfrentam-se. O telefone
toca. Paco está quase indo atender, quando de repente.) E
atende, para mim, o telefone! (Cristo não reage.) Vamos, atenda!
E se for o meu filho, diga-lhe que o telefone está com defeito. Que
saco! (Cristo olha-o sem responder. Então, Paco fala com certa
77
delicadeza.) Vamos, queres atender? (Como Cristo não se
decide, Paco pega-o pelo braço.) Atende, anda, pamonha!
(Leva-o até o telefone, que agora, mesmo a contragosto,
Cristo atende.).
CRISTO – Alô. – Ah, como vais? – Cristóvão, sim. – Sim, espera
que eu te passo para ele. (Gesto de surpresa e ameaça de Paco,
porém logo Cristo esclarece.) É Fito, babaca!
PACO – Ah! (Pega o telefone.) Alô. – Fito, o que queres? – Sim,
espera: uma garota te chamou... Olga... E um cabeludo: Goyo. Eu
disse a eles que tu estavas fazendo os trâmites do passaporte. –
Já te entregaram? Que milagre. Eu te felicito. – O meu? Para que
é que eu vou querer um passaporte? – Ah, é? E o que é que eu
vou fazer lá? Tu vais à frente e diz: “o velho, esse que vem atrás, é
o meu carregador de guitarra”? Quando eu tinha a tua idade... uma
vez me meti num casamento... (Paulatinamente, como se
através da lembrança fosse lhe aparecendo uma idéia
importante, sua voz vai se apagando, ao mesmo tempo em
que as palavras surgem cada vez mais lentas.) carregando um
bandoneon, sabes? Era o carregador de bandoneon. Porém,
agora, na Espanha, eu... (Pára. Fica imóvel, pensando em algo
que acaba de elaborar. Olha para Cristo, que está distante,
ocupado com seus pensamentos. Paco começa a aceitar a
idéia que teve. Seus olhos brilham. Esquece o telefone, de
onde por fim, é solicitado.) - Hein? – Sim, estou aqui, estou aqui.
(Mente.) – Não, é que está se ouvindo muito mal, é por isso. –
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Certo, certo. – Queres que te prepare uma tortilha? – Ah, vais
comer com Olga? – Diga-lhe, de minha parte, que... que agora...
Moscou não está coberta de neve. – É, de neve, sim. Ela vai
entender. Não precisa ficar com ciúmes. – Bom, mas à noite vens.
– Bom. Tchau! (Desliga e fica pensativo. Tempo. Medita,
enquanto mais adiante, Cristo está esperando para ir-se
embora, nervoso. Em compensação, Paco, agora sorridente e
pensativo, está saboreando uma decisão, enquanto canta
baixinho.) “E Moscou não está coberta de neve...”.
CRISTO – Bom, Paco, eu...(Faz o movimento para sair.).
PACO – Ainda não.
CRISTO – Sim, Paco. Não estou me sentindo bem, e...
PACO – Não. Digo que Moscou ainda não está coberta de neve.
Há pouco tempo atrás, sim, estava. No inverno, quando aqui era
verão. E, agora, aqui é outono, e lá é primavera. Assim que, por
enquanto, estamos livres do frio. (Caminha eufórico.) Estamos
livres do frio, Cristo! Livres do frio!
CRISTO – Mas do que é que tu estás falando?
PACO (De repente pega Cristo pelo braço) – Te lembras do dia
em que eu voltei do médico? Quando... quando descobriram o que
descobriram?
CRISTO – Como que não vou me lembrar? Lembro sim...
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PACO (Interrompendo) – Bom. Nesse dia... senti o que todos
devem sentir num caso desses: como se o mundo viesse abaixo,
fiquei sem ar, com o coração explodindo... Que sei eu mais lá o
quê. (Tempo. Solta o braço de Cristo, e olha para frente.)
Porém, depois, saí para a rua, e comecei a andar. A rua estava
cheia de gente, a avenida, sabes? E, é claro: comecei a olhá-los,
um por um, como se estivesse despedindo-me. Dentro de pouco
tempo, eu não ia mais estar neste mundo. E eles continuariam
caminhando nele... Mas... (Deixa-se cair, com suavidade, sobre
a poltrona, e Cristo imita-o, sentando ao seu lado.) de repente
– lembro o rosto de uma menina que passava, e que me olhou -...
de repente comecei a ver tudo de outra maneira. Ou seja: a ver
tudo como realmente é. Porque... sabes, Cristo?... comecei a sentir
que cada um deles, essa menina... os rapazes... os meninos... os
velhos... o jornaleiro... o taxista que passava... todos... todos, eles
e eu, éramos companheiros de viagem. E de uma viagem... não
sei como te dizer isso, Cristo... De uma viagem... de uma viagem
fantástica. Daqui a algum tempo, nenhum de nós vai estar aqui,
todos teremos nos ido. Porém todos, sem dar-nos conta, fomos
companheiros de uma mesma viagem. E de uma viagem que...
(Fica olhando fixamente nos olhos de Cristo.) De uma viagem
fenomenal, Cristo. De uma viagem, onde o tempo não tem
nenhuma importância; de uma viagem que tem um minuto, mais
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nada: este, agora. (Pega as mãos de Cristo.) Mas, este minuto...
por dentro... tem todos e tudo. Estás me entendendo, ou não?
CRISTO – Não sei. Acho que sim.
PACO – E sabes onde vamos ir, neste minuto? Mesmo que não
me entendas?
CRISTO - Aonde?
PACO (Sorri. Levanta-se.) – Vamos encontrar com o Fito.
CRISTO – Por quê? Onde ele está?
PACO – Onde ele “vai estar”.
CRISTO (Olha-o, apavorado) - Onde?
PACO (Toureando) – Olé! Na Espanha! É primavera, lá.
CRISTO (Recebe a novidade com impacto) – Tu não tens
remédio. (Levanta-se.).
PACO (Toca no bolso, onde guarda o envelope) – Quem sabe
se aqui diz a mesma coisa? Ou quem sabe não? Quem é que vai
saber.
CRISTO – Vamos, Paco! Esfria a cabeça, por favor!
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PACO (Totalmente tranqüilo) – Para quê?
CRISTO (Desesperado) – Mas tu não te dás conta de que...(Não
consegue continuar.).
PACO – Não me dou conta de quê?
CRISTO (Não sabe o que responder. Vacila) – Bom... de...
Vamos, Galego! Tu não estás falando sério, estás?
PACO – Sim.
CRISTO – Mas como vais ir para a Espanha? Como?...
PACO (Interrompe, fazendo um gesto que imita o vôo de um
avião, e, com a boca, o som do motor) – Pppprrrrrrrrr... De
avião.
CRISTO – Ora, deixa de te fazer de bobo, Paco! Como é que tu
vais ir a Espanha?
PACO – Já te disse como: de avião. E não somente eu. Os dois: tu
e eu.
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CRISTO (Não sabe mais o que fazer) – Ah, é? E quem paga a
viagem? Vamos ver?
PACO – Eu. Ou tu pensas que eu ia deixar tudo para o Mário, sem
guardar nada para mim? Como tu és ingênuo! E o que eu guardei,
é o suficiente para uma viagem de, pelo menos... uma eternidade.
Sim, porque não vai ser somente a Espanha. A Espanha primeiro.
Lá assistimos aos Cabeludos, visitamos a cidade dos meus velhos
– assim cumpro a promessa que havia feito quando Franco me
fodeu a viagem de 36... e depois, continuamos. Ao redor do
mundo. O que quiseres: França... Itália... as Dolomitas... (Sorri.)
Até Moscou. Isso sim. Antes da neve, porque lá, os lobos uivam de
fome. E isso não é para mim. (Olha para Cristo, sorrindo, que
não sabe o que dizer.).
CRISTO (Finalmente) – Quer dizer que a Espanha... as
Dolomitas... Moscou...
PACO – Sim.
CRISTO – Com certeza?
PACO – Com certeza.
CRISTO – Muitas vezes tu estiveste demasiado seguro sobre
demasiadas coisas.
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PACO – Sim. Foi um dos meus defeitos. Porém, para o futuro,
penso em corrigir-me.
CRISTO (Sem saber o que fazer com a sua vida) – Galego, por
que não vais à merda? Queres deixar de brincar, por favor? (Foi
quase uma súplica. Afasta-se. Não pode e nem quer acreditar.
Vai até a mesinha, senta-se frente a ela e constrói casinhas
com as peças do dominó, de costas para Paco, enquanto
segue resmungando em voz baixa.).
PACO (Depois de observá-lo, decide) – Está bem. Vou sozinho.
(Canta.) “No cantes hermano, no cantes, que Moscú no está
cubierta de nieve...”. (Segue cantando. Em algum lugar, em
cena, há uma taça de metal, troféu ganho por Paco em jogos
passados. Sem parar de cantar, ele pega o troféu e coloca-o
bem à vista. Tira o envelope do bolso, e começa a queimá-lo,
enquanto deixa-o cair dentro da taça. Ao final, pára de
cantarolar.) Total... alguma velhinha eu hei de encontrar por lá.
Sabes como aguardam na Suécia, um “latin lover” maduro, não é?
CRISTO (Vira a cabeça e vê Paco jogando o papel em chamas
dentro da taça. Levanta-se, desesperado) – Mas o que estás
fazendo? Paquito... eu... (Não consegue compreender.
Aproxima-se rapidamente de Paco.).
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PACO (Cantarola, enquanto levanta a taça com o papel em
chamas) – “... No cantes, hermano, no cantes... que Moscú no
está cubierta de nieve...”.
CRISTO (Tenta apagar o fogo. Gira, desesperado, ao redor de
Paco, que lhe dá, constantemente, as costas, enquanto
reclama, apenas com um fio de voz) – Mas Paco... não... como
podes...
PACO (Não para de cantarolar) – “No cantes que Olga no viene...
y los lobos aúllan de...”. (Pára.) Não. Os lobos não. Não gosto
deles. (O fogo já se apagou.) Feito! (Levanta a taça bem no alto,
como em um ritual.).
CRISTO (Sem entender) – Mas, estás louco, Galego! Como
queimaste isso? Como?...
PACO (Com a taça no alto, caminha, tirando as cinzas e
esparramando-as pelo espaço, enquanto inventa e cantarola a
confusa letra de um tango antigo) – “Las cenizas de los años...
que blanquearon mis cabellos... ahora sólo son cenizas... en mi
pobre corazón...”. (As cinzas voam por todo o espaço. Paco
repete os dois versos, até que a taça esteja vazia. Cristo olha
hipnotizado, para as cinzas que Paco esparrama, e, por fim,
fala.).
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CRISTO (Segurando Paco pelos braços) – Ouça-me, Galego,
por favor! (Paco escuta-o, obediente. Tempo. Cristo está
ficando já sem vontade. Afinal, quase em lágrimas, fala.) Digame... como vais a?... E, depois, como vais fazer depois, hein?
PACO (Tranqüilo. Quase sorrindo) – De que depois estás me
falando? (Ficam olhando-se. Pareceria que Cristo por fim
tivesse entendido, e tivesse vontade de juntar-se a Paco.
Porém, após algum tempo, quase com raiva.).
CRISTO – Sabes de uma coisa, Pé Grande?
PACO – O quê?
CRISTO – Tu és um degenerado.
PACO (Sorri) – Ah, é?
CRISTO – E mais uma coisa.
PACO - Qual?
CRISTO – Sabes por que nunca fui a um aeroporto?
PACO – Não. Por quê?
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CRISTO (Está por revelar-se) – Porque eu ficava puto em pensar
que estava lá, e... (Revela-se.) Pé Grande: tu sabes muito bem o
desejo que eu sempre tive em viajar de avião...
PACO (Pega-o e lhe dá uma palmada) – Cristo, velho barbudo!
Assim é que eu gosto! (Mostra-lhe o polegar.) Pacto de sangue,
então?
CRISTO (Devolve os golpes. Eufórico) – Pé Grande, caralho,
pacto de sangue, sim! Hip, hip, hurra! (Os dois brincam, trocando
seu entusiasmo.).
PACO – Sim, hip hip hurra! Mas, dá-lhe, vamos, apura! Não
percamos mais tempo, anda! (Daqui para diante, tudo é nervoso,
veloz.).
CRISTO – Por quê? Aonde tenho que ir?
PACO – A tua casa, buscar teus documentos. Depois, Fito vem e
vamos pedir-lhe que nos ajude.
CRISTO (Meio tonto) – Ah, é? (Vai e vem, de um lado para o
outro.) Bom. Mas... (Vacila.) Tens certeza? Assim tão... tão
rápido?
PACO – Claro. Vamos, apura! Anda, anda!
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CRISTO (Caminha. Pára) – Ei... Diga-me, Pé Grande... Como
será isso de... (Faz com a mão o gesto de avião voando, e
aponta para cima.) estar lá em cima e... hein?
PACO – O quê? Está te dando um cagaço agora, é?
CRISTO (Rápido, antes que seja tarde) – Não, não. Deus me
livre. Estava somente pensando, pensando, mais nada! (Imita um
avião.) Prrrrrrrrrr! Hein?
PACO – Sim, bom, mas apura, então. Anda.
CRISTO (Confuso) – Sim. Vou... vou... tchau. (Afasta-se, gira,
tropeça numa cadeira, ri, está no céu.) Tchau!...
PACO – Apura, anda!
CRISTO – Sim, sim, tchau. Tchau. (Já na saída, tropeça, outra
vez, ao girar. Não pára mais de rir.) Ouça-me... O que eu não
tenho é... certificado de vacina... de boa conduta... essas coisas.
Tenho que me vacinar?
PACO – Não perca mais tempo, Cristo. Depois a gente vê isso.
Agora, anda. Vá, e traga tudo o que tiveres. (Cristo sai
rapidamente. Paco gira e fica sozinho no meio da cena. Olha
as cinzas no chão, avança até a mesinha do dominó, e ali
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deixa, como num cerimonial, o troféu que ainda tem nas mãos.
Em seguida Cristo reaparece, e, de onde está, sussurra.)
CRISTO – Galego... (Paco gira e olha para ele. Começa a ouvirse, como que chegando de muito longe, magicamente, a valsa
“El Aeroplano”. Cristo vai até Paco. Paco também avança para
Cristo. Apertam-se num forte abraço. A valsa agora é ouvida
bem forte. Os dois, então, começam a mover-se, ao compasso
da valsa. Quase dançam. Depois de alguns compassos,
lentamente, seus corpos começam a separar-se, embora eles
ainda continuem unidos pelas mãos. Agora dançam
naturalmente. A música transporta-os por todo o espaço.
Rejuvenescem. São dois homens jovens, sem limites, que
dançam a valsa com alegria. Até que soltam as mãos, sem
deixar de dançar. Separam-se. E seus braços, agora abertos,
estendidos nas laterais dos seus corpos, imitam as asas de
um avião. Agora dançam “El Aeroplano” por todo o espaço.
Como dois jovenzinhos. Como dois aviões novos.).
FIM

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