o arquétipo de um mago: a ficcional história de são cipriano

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o arquétipo de um mago: a ficcional história de são cipriano
O ARQUÉTIPO DE UM MAGO: A FICCIONAL HISTÓRIA DE
SÃO CIPRIANO
Elisângela Aparecida Zaboroski de Paula*
RESUMO
Nossa abordagem acerca da vida de São Cipriano está baseada na literatura oral popular aliada a erudita, uma vez que grandes escritores se debruçaram sobre a temática
religiosa da vida do mesmo. Vale lembrar que estamos tratando neste trabalho de
histórias ficcionais e que em nenhum momento temos a intenção de provar sua real
existência. Temos como intuito nesta pesquisa um resgate do folclore, da cultura popular do povo ibérico, temos ainda a intenção de demonstrar como, através da difundida literatura oral popular, histórias, narrativas, lendas, mitos, como essa, são contadas e recontadas ao longo dos tempos, de geração em geração, ganhando com isso
cunho universal, pois hoje as várias lendas existentes acerca da vida de Cipriano
fazem parte do folclore mundial.
Palavras-chave: Cipriano. Encantamentos. Magia.
Introdução
O que apresentamos neste artigo são relatos folclóricos acerca da vida de um
santo que teria feito um pacto com o diabo e as principais lendas contadas acerca de
sua vida, a qual é um amalgama do bem e mitologicamente do mal. A importância de
estudar sua história está diretamente relacionada com a difusão da literatura oral popular e do folclore espanhol.
As lendas sobre Cipriano
Afinal, quem foi São Cipriano? Que mistérios envolvem sua vida? E qual é o
motivo de sua associação com a cova de Salamanca, conhecida por se acreditar ser um
lugar de prática de magias. Seu nome está intimamente ligado à fama da cova salmantina. Conta-se que quando jovem Cipriano foi um mago de grande prestígio, e com isso
ganhou fama ao redor do mundo e que, após deixar o paganismo e converter-se a
religião de Cristo recebeu, como um presente dos céus, um verdadeiro símbolo da
bondade divina, o dom de fazer milagres.
* Graduada em Letras – Português/ Inglês pela Faculdade Estadual de Filosofia, Ciências e Letras de União
da Vitória – FAFIUV – Atualmente cursa mestrado em Literatura pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC. E-mail: [email protected].
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Seus nobres e ricos pais, mergulhados em todas as superstições
do gentil, o educaram e instruíram nas ciências dos encantamentos e da magia, na astrologia judiciária e na arte dos sacrifícios:
faculdades para as quais mostrou uma disposição incomum desde seus primeiros ensinamentos. […] Iniciado em todos os mistérios que ambicionada conhecer, chegou a ser o mago mais hábil
que haviam conhecido em todos os séculos, recaindo sobre ele a
tarefa do ensinamento soberano da arte dos demônios. Mas
desesperava-se ao perceber que par os cristãos seus encantos
eram inúteis (GRANADA, 1947, p. 89, tradução nossa).
Sua conversão ocorreu devido ao fato de um dia ele, o senhor dos encantamentos, segundo as lendas, ter permanecido diante da Cruz Bendita dos cristãos para
realizar uma de suas magias, não obtendo resultado satisfatório em um trabalho seu, o
qual consistia em fazer uma bela jovem cristã apaixonar-se por ele, uma vez que ele a
amava, então Cipriano foi ao encontro de seu antigo mestre, o próprio Demônio, com
o qual tinha feito um pacto, para saber a razão pela qual seus encantamentos não
estavam surtindo o efeito desejado.
Segundo conta a história, diz-se que o Demônio respondeu a ele dizendo que:
diante da Cruz de Cristo ele nada poderia fazer. Foi aí que o mago decidiu servir a um
senhor que a tudo pode e para isso se converteu ao Cristianismo. Porém, com um
destino cruel, foi preso, tendo uma morte trágica. Ele teria sido desmembrado ou despedaçado, como nos diz Daniel Granada em sua Reseña Historico-Descriptiva de
Antiguas y Modernas Supersticiones del Rio de la Plata de 1947.
Ele e a moça, Justina, sobre a qual seu encantamento não obteve efeito algum,
são hoje considerados mártires da igreja católica, sendo que ela também foi condenada, em sua época, por eminente santidade, todos a temiam, por acreditarem que ela
também teria aprendido as artes das magias, por isso deveria ser morta.
Cipriano teve uma vida conturbada e dividida entre o paganismo, as artes
mágicas, os encantamentos, as bruxarias, a feitiçaria e a sua conversão ao Cristianismo, ao catolicismo, a uma vida de dedicação ao próximo. Seu dom divino de fazer
milagres geraram e continuam gerando até os dias de hoje muitos questionamentos a
respeito de sua vida e dos mistérios que a envolvem. Hoje ele é um mártir, mas sua
figura inevitavelmente sempre estará ligada à lembrança das artes mágicas. A sacristia
subterrânea da igreja que leva o seu nome, São Cipriano, é conhecida também como a
famosa cova de Salamanca, ou ainda chamada de cova cipriana, até os dias de hoje,
depois de séculos passados destes acontecimentos.
Os fatos, porém, são muito mais complexos do que realmente parecem, gerando
com isso certa confusão com o nome de Cipriano. Seu nome está associado a um lugar
mágico encantado, as criaturas das trevas, ao culto ao Demônio. Mas, o fato é que
existiram dois São Ciprianos, portanto, duas histórias diferentes, duas lendas divergentes.
Sempre há existido uma circunstância tentadora que a igreja
paroquial, na qual se encontrava a Cova de Salamanca, fora
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dedicada a São Cipriano, sabendo que este santo representava,
no âmbito da cultura mediterrânea, a cristianização da antiga
magia e que a devoção por ele estava estendida por toda a Península Ibérica, sobretudo na parte norte e ocidental, muito antes
do século XII, nos tempos do repovoamento das margens do
Tormes, quando aparecem os primeiros testemunhos sobre a
existência da igreja dedicada a seu culto em Salamanca, que provavelmente formaria parte dos restos da cidade visigótica e árabe, que estavam em pé, quando, no início do século, chegaram
os repovoadores de Don Raimundo de Borgoña e tomaram posse daquele território destruído para repartirem as terras (EGIDO, 1994, p. 125, tradução nossa).
O santo, cujo culto data, na Espanha pelo menos, do século VII e cuja fama
havia chegado à Península Ibérica durante sua vida mortal no século III, é um curioso santo que adquire uma importância especial, devido sua ligação com a magia
existente e praticada na cova de Salamanca, com os tradicionais cultos aos seres
fantásticos e as tradições necromânticas da cidade. Ele pode nos ajudar a conhecer
o passado mítico de Salamanca, entre os fracassos do mundo antigo e os primeiros
séculos medievais.
O impasse existente acerca desse fato é que houve dois santos com o mesmo
nome e ambos sempre foram associados aos cultos das magias. “Para complicar mais
as coisas havia dois santos com o mesmo nome e os dois também eram praticantes das
artes das magias” (EGIDO, 1994, p. 126, tradução nossa).
Existiu um São Cipriano de Cartago (África), ao qual é rendido culto, na Espanha, desde muito cedo, bem como houve o São Cipriano de Antioquia (Turquia), que
com uma biografia espetacular, entre santo e pecador, chamou a atenção de todos. Sua
fama levaria, inevitavelmente, sua história a converter-se em lenda, a qual ganhou
espaço, além de ser muito popular entre o povo da época, no cenário teatral. Suas
aventuras de mago erótico e mártir enamorado fizeram muito sucesso dentre o povo da
região, a ponto de ser ele também cultuado e, muitas vezes, confundido com São
Cipriano de Cartago. A evidente confusão entre ambos deve-se ao fato, conforme já
mencionado, de que ambos foram magos, apesar da atribuição ao santo de origem
oriental, maior dedicação profissional à prática da magia.
Sabe-se que São Cipriano de Antioquia desfrutava de uma fama universal,
através da cultura do cristianismo. Sua popularidade foi beneficiada pelas várias lendas contadas sobre sua vida misteriosa, pois corria a história, na Espanha, de que São
Cipriano de Antioquia era um mago apaixonado e que, por esse seu amor à santa
Justina, converteu-se ao cristianismo, tornando-se assim ele o protagonista de uma
história entre o bem e o mal. Portanto, a história acima descrita sobre um mago apaixonado, convertido à religião de Cristo devido seu amor por outra santa nos remete ao
santo do oriente e não ao outro São Cipriano de Cartago, ao qual também era rendido
culto, muito anterior ao culto ao santo de Antioquia.
Sobre o santo oriental Pedro Calderón de la Barca, compôs seu El mágico
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prodigioso (1637), onde o autor irá discorrer sobre toda a história de Cipriano, sobre
sua vida relacionada com a magia, sobre sua conversão à religião cristã, ainda sobre
seu amor por Justina. Calderón de la Barca:
[...] Aumentam-se as suspeitas sobre a existência de um esconderijo salmantino dedicado a prática da magia, sobre tudo, se
pensarmos que este São Cipriano era professor de retórica e
havia sido estudante da Universidade de Salamanca, o que parece uma prova, fabricada <<a posteriori>>, para justificar sua
implantação em Salamanca, mesmo que seja sob a sombra do
outro Cipriano (EGIDO, 1994, p. 126, tradução nossa).
Teria sido o Cipriano da Antioquia um estudante da cova de Salamanca, ou
ainda um professor de retórica da famosa Universidade salmantina? Ou, como nos
sugere Luciano Gonzaléz Egido (1928) seriam apenas provas meramente figurativas,
apresentadas como forma de introduzi-lo no meio social da vida cotidiana da cidade
espanhola, na qual outro culto a um santo homônimo já era realizado?
O que o teatro de Calderón de la Barca nos apresenta é uma peça na qual ele
conta a história do santo oriental. O autor espanhol se apodera dessas narrações
difundidas pela cultura popular e pela literatura oral e produz a saga de seu mágico
prodigioso. É importante citar que o título da peça de Calderón, El mágico prodigioso, é ambivalente, pois em um primeiro momento o mesmo faz alusão à figura do diabo,
ao poder sobrenatural dele, mas, o desenlace da trama nos mostra que esse mágico
prodigioso é por antonomásia, Deus, que tem poder supremo e por isso derrota o
Demônio. Deus vence batalha entre céu e inferno através do amor, da serenidade,
como já é esperado, pois no momento em que a magia demoníaca é utilizada para
encantar a jovem cristã Justina, ela resiste a tudo, aqueles encantamentos não surtem
efeito algum sobre aquela mulher que adora a Cristo. Sua fé e sua crença a protegem, e
com isso Deus triunfa. Desse modo ressaltamos que o dramaturgo espanhol coloca
Deus na figura do prodigioso, é Ele seu personagem principal, seu ator de destaque,
é Ele quem governa tudo e todos, incluindo o próprio maligno.
A peça espanhola traz inúmeros trechos onde Cipriano e o Demônio dialogam
sobre as ciências ocultas, sobre as magias, bem como toda a trama desenrola-se a
partir do momento em que Cipriano depara-se com o livro Historia Natural de Plínio,
no qual ele encontra uma definição acerca do Criador, que acaba com a visão do
mesmo sobre um Deus único. Aliado a isso está sua paixão por Justina, uma cristã
que rechaça a todos os seus pretendentes incluindo Cipriano. Ele então faz um pacto
com o Demônio para poder conseguir o amor da bela jovem. Cipriano, então transformado em mago pelo diabo, após estudar durante um ano inteiro sobre o poder das
artes das ciências ocultas, vai ao encontro de Justina para, através de seus recursos
mágicos, fazer que ela se apaixone por ele, o que de fato não ocorre. O diabo ao invés
de enviar Justina em pessoa é forçado a contentar-se a enviar um fantasma, um
esqueleto com a aparência da mesma, e quando Cipriano, finalmente tem em seus
braços sua amada, ela é apenas um esqueleto ilusório que desaparece. Cipriano
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então percebe que somente Deus teria o poder sobre tudo, e graças ao amor que
sentia por Justina ele converte-se aos pés de Cristo.
Cipriano. Apenas sobre a terra/ ofensas, pronuncio,/ quando
na ação em que la estava/ Justina, divino assunto/ do meu amor
e do meu desejo.../ Mas para quê procuro/ contarte o que já
sabes?/ Vim, abraçei-a ao ponto/ que a descobri (ai de mim!),/na
sua beleza descubro/ um esqueleto, uma estatua,/ uma imagem/
da morte, que em distintas vozes me disse:/ << Assim Cipriano,
são todas as glórias do mundo>> (DE LA BARCA, 1961, p. 8687, tradução nossa, grifo do autor).
Podemos dizer que essa peça se encaixa no gênero da comédia sobre santos,
as chamadas comédias religiosas, mesmo com a morte dos dois protagonistas, Cipriano e Justina ao final da história. Não podemos classificar a mesma como uma tragédia,
pois ambos encontram seu fim com extrema felicidade e serenidade no caminho para o
encontro com Deus, e ao diabo restou apenas a vergonha da confissão, lembrando
que o mesmo aparece revelando toda a verdade, toda sua culpa, dizendo que ele era o
manipulador, e que Cipriano fora seu escravo, mas que quebrara o pacto feito com ele:
Ouçam mortais, ouçam/o que me mandam os céus/ que em defesa de Justina/ a todos manifesto./ Eu fui quem, por difamar/ sua
virtude, com fingimento/ sua casa escalei, e entrei/ até seu próprio quarto;/ e para que nunca seja posta em dúvida/ sua honesta fama,/ para restituir sua honra/ desta maneira venho/ Cipriano, que com ela/ passou um momento feliz, foi meu escravo;
mas borrando/ com o sangue de seu pescoço/ a cédula que me
daste,/ deixou em branco o tecido;/ e os dois, a minha dor,/as
esferas subindo/ do sagrado solo de Deus,/vivem em melhor
império./ Essa é a verdade, e eu/ a digo, porque Deus mesmo/ me
força, que eu a diga/ mesmo que seja tão difícil fazê-lo (DE LA
BARCA, 1961, p. 101, tradução nossa).
A peça de Calderón é uma das mais conhecidas sobre tema de São Cipriano de
Antioquia, lembrando que no início da peça do espanhol, seu personagem faz uma
alusão explícita ao seu local de origem, portanto, não há confusão identitária na peça.
A ambigüidade existente acerca dos santos de Cartago e Antioquia está diretamente
ligada às inúmeras histórias contadas pelo povo sobre os cultos aos dois, que além de
santos eram também magos.
Um autor que se debruçou sobre o tema dos pactos com o Demônio, e que foi
fundamental para que Calderón de la Barca produzisse seu mágico prodigioso, foi o
poeta e dramaturgo espanhol, do período de ouro da literatura hispânica, Antonio
Mira de Amescua (1574?-1644). Ele escreveu a peça intitulada El esclavo del demonio,
publicado em 1612, mas escrito muito tempo antes, a qual tem como tema principal o
mito de Fausto, do homem que vende sua alma, que faz um pacto com o diabo para em
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troca receber algo muito almejado. Esta obra foi publicada juntamente com as comédias de Félix Lope de Vega y Carpio, mais conhecidas sob o título: Tercera parte de las
comedias de Lope de Veja y otros autores.
Inúmeras histórias já foram contadas a respeito da vida do santo que teria feito
um pacto com o Demônio. Elas percorreram a literatura oral, transpassaram-se para a
cultura erudita e com isso ganharam público, que deram a elas, além de seu caráter
folclórico, uma certa veracidade, uma vez que muitas pessoas acreditam realmente em
um pacto feito por São Cipriano de Antioquia com o Demônio. Mas evidenciamos que
o que apresentamos aqui são apenas histórias contadas, difundidas e propagadas
pela literatura oral, que ganharam cunho erudito através dos literatos que se interessaram por tais lendas, por esses contos que não têm ligação com a verdade, com os fatos
históricos, ressaltamos que estávamos trabalhando com lendas, com o folclore, e que
é por meio dele que queremos ligar a Espanha com o Brasil, a cova de Salamanca com
o cerro do Jarau.
O fato é que com essa ligação entre São Cipriano e o diabo, o mago logo foi
associado às lendas contadas acerca da cova de Salamanca, na Espanha. Já conhecemos a história de que essa cova seria um lugar encantado onde o diabo disfarçado de
sacristão ensinava as artes das magias, e já sabemos também que a cova encantada,
aquele lugar sombrio e habitado por seres das trevas era apenas a sacristia subterrânea de uma antiga igreja que levava o nome do santo. Mas aqui temos outra ambiguidade, uma vez que a igreja a quem é rendido culto é ao santo cartaginês e não ao
oriental, do qual são contadas todas as lendas sobre pacto com o diabo.
Na verdade, o que ocorreu foi que aquele povo simples, supersticioso, da
época, ouvia e recontava inúmeras histórias de pactos com o maligno, de seres das
trevas que habitavam lugares encantados onde rituais satânicos aconteciam, junte-se
a isso a magia que a noite traz, noite escura, de trevas, de rituais, de atos condenados
e então teremos uma bela lenda para ser contada e difundida através da oralidade. Com
a proliferação crescente das histórias sobre magias, surgiram também as lendas sobre
São Cipriano de Antioquia, mas, em Salamanca já era rendido culto a um São Cipriano,
o cartaginês. Com isso, as lendas contadas sobre um santo conchavado com os rituais
das trevas passaram a ser associadas à cova de Salamanca, ou seja, à sacristia subterrânea da igreja que levava o nome do santo, considerado pelo povo, infiel.
O conflito existente era que a igreja salmantina rendia culto ao santo de Cartago, que, ao que tudo indica, mesmo tendo ele conhecido as artes da magia, nunca teria
feita nenhum pacto com o diabo e, portanto, segundo as lendas, não teria nenhuma
ligação com as trevas. O povo associou a história de São Cipriano à cova de Salamanca, mas não percebeu que o santo cultuado em Salamanca era o cartaginês e que o
pacto com o diabo fora feito pelo santo oriental.
As conexões da Cova de Salamanca, por um lado, com o São
Cipriano cartaginês e por outro, com o tema do Fausto, que é o
tema da cultura problemática, enriquecem as perspectivas hermenêuticas do significado de São Cipriano e o introduzem no
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profundo e primitivo estrato mitológico europeu, o que explicaria sua feliz expansão literária por todo o continente (EGIDO,
1994, p. 127, tradução nossa).
Para o folclore, o culto ao santo cartaginês está na origem do culto aos outros
santos homônimos, cabendo ao santo de Antioquia as origens mágicas dos mesmos,
e sendo ele o responsável pela confusão gerada entre todos os santos que levam o
mesmo nome em diferentes regiões. Sabe-se que existem inúmeros santos que levam o
nome de Cipriano, fato que certamente auxiliou na proliferação, não somente do culto,
mas também de sua fama. A propagação dos santos homônimos ocorreu com maior
afinco na região da Galícia, na Espanha, onde as artes mágicas têm um forte poder de
atração entre as pessoas. A Galícia é considerada a terra da magia, e essa propagação
do culto ao santo, com fama de mago, pode ter sido favorecida em terras galegas,
devido a uma convivência do povo da região com os primitivos cultos celtas, com seus
idólatras mágicos.
No fundo o que vem a confirmar este testemunho é o velho
culto a São Cipriano na região da Galícia, confirmado pela toponímia e sua dessacralização folclórica, para injetar-se em crenças da magia e da bruxaria pré-existentes, que se perpetuaram
em uma larga série de feitiços, encantamentos, etc. (EGIDO,
1994, p. 131, tradução nossa).
Mas coube aos repovoadores do século XII, que vinham do norte e do oeste
peninsular, os galegos, os bragancianos e aos castelhanos dos primeiros textos forenses, a introdução do culto de São Cipriano na Salamanca medieval, pois nas regiões
dos mesmos o culto ao santo já estaria arraigado a muito tempo. Encontramos “no
subsolo salmantino um farto terreno para sua instalação na nova terra” (EGIDO, 1994,
p. 134, tradução nossa). Se isso realmente ocorreu, pode-se pensar que onde foi levantada o templo dedicado a São Cipriano, em Salamanca, havia um lugar de culto pagão,
dos antigos rituais célticos.
Apesar de não podermos datar ao certo quando se instaurou o culto ao santo
em Salamanca, mesmo que a construção de seu templo remeta-se ao século XII, há a
possibilidade de existência de um culto ao santo que remonte à época dos visigodos,
povo que emergiu, ao que tudo indica, no século III, uma vez que é desta época a
conquista da Dácia, província romana situada na Europa, por eles. Também devemos
levar em conta a hipótese de que os visigodos deixaram na Espanha inúmeros registros de sua civilização, pois entre seus vestígios mais relevantes estão as suas igrejas.
A complexa religiosidade da Península, com seu variado politeísmo, que tem
sua origem com os povos primitivos, adoradores do sol, dos elementos da natureza,
entre outros, torna difícil o trabalho de estabelecer uma síntese entre todas essas
crenças, uma vez que elas estão espalhadas por diversas localizações em períodos de
tempos diferentes. “Não obstante, a divinização dos astros e das forças da natureza,
parecem comum aos habitantes da Península Ibérica, como aos de outras regiões”
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(EGIDO, 1994, p. 136, tradução nossa). E mesmo após o surgimento do cristianismo na
Espanha, em especial em Salamanca, mesmo sob o domínio árabe, os cultos pagãos
ainda continuaram sendo realizados.
Essa continuidade das crenças ancestrais, mesmo sob o cristianismo oficial dos últimos visigodos, favorece a hipótese da possível existência de um culto para as divindades primitivas e suas
superstições no cerro das Catedrais de Salamanca e sua provável conversão cristã, constituída pelo culto a São Cipriano, cuja
extensão pela Espanha visigótica e a consagração das igrejas
com seu nome, continuavam confirmadas através da informação
de que em Córdoba os árabes tinham seis templos, um dos quais
estava consagrado para São Cipriano; isto vem a confirmar dois
fatos: que o culto ao Santo mago era anterior a chegada dos
árabes e que se manteve mesmo sob seu domínio político, apesar de ser Córdoba um lugar fortemente arabizado, o que nos faz
pensar, com mais ênfase, que em Salamanca pode ter havido
algo semelhante (EGIDO, 1994, p. 139, tradução nossa).
O culto a Cipriano, suas ligações com a magia da cova de Salamanca, nos fazem
refletir mais uma vez acerca do profano e do sagrado, que novamente são atraídos para
juntos completarem a mística acerca desse assunto, pois, seriam, o santo e a cova de
origem pagã? Seriam eles sagrados, uma vez que falamos de um santo e de uma sacristia católica?
O fato é que, mesmo existindo uma infinidade de cultos a São Cipriano e aos
diversos santos homônimos na Península Ibérica, as lendas que surgiram sobre sua
existência e sobre a cova cipriana fazem parte do universo popular da vida cotidiana da
cidade de Salamanca, da Espanha e da própria Península como um todo. O que um dia
foi profano, hoje é sagrado, um antigo lugar de ritos pagãos transformou-se em uma
bela igreja, como é o caso da cova salmantina, da cova de Toledo, (ambas localizadas
na Espanha, na qual, segundo as lendas, a cova, que também tinha fama de ser um local
das práticas da magia, e principalmente da necromancia era apenas uma antiga cripta
de um templo romano) e de tantas outras ao redor do mundo, como também podemos
citar a de São Patrício, na Irlanda, a de Trofônio, na Grécia, entre tantas outras.
Sua fama de bruxo necromântico atravessou as civilizações, os séculos e os
oceanos, fez sua história ser exaustivamente contada e recontada ao longo dos anos,
deixando transparecer que sua vida de magia sempre chamou mais a atenção do povo
do que sua vida clerical. Paradoxalmente é chamado de santo e associado ao Demônio,
o santo que fez um pacto diabólico.
Essa é a história de um santo que, supostamente, esteve diante do diabo, que
se converteu à Cruz de Belém, ao qual era rendido um culto pagão e sob o nome do qual
está fundada uma igreja em Salamanca. Para o folclore, não importa se ele de fato
existiu, pois ele se manterá vivo, eternizado, como todo bom santo, na crença do povo
ibérico e ao redor do mundo como um todo. E essa é a sua importância.
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ABSTRACT
THE ARCHTYPE OFA WIZARD: THE FICTIONAL STORY OF SAINT CIPRIAN
Our approach on the life of Ciprian is based on the oral popular literature combined
with the erudite, once that great writers studied a lot about the religious issue matter of
his life. It is worth to remember that, in this work, we are dealing with fictional stories
and at any moment we have the intention to prove its real existence. We have as aim,
in this research, a recover of the folklore, the culture of Iberian people. We still intend
to demonstrate how, through the widespread oral popular literature, stories, narratives,
legends, myths, like this one, are told and retold through time, from generation to
generation, being spread universally, as today the several existent legends about the
life of Cyprian are part of the world folklore.
Keywords: Ciprian. Enchantments. Magic.
REFERÊNCIAS
DE LA BARCA, C. El mágico prodigioso. In: ______. El mágico prodigioso/ Casa
con dos puertas mala es de guardar. 4. ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1961.
EGIDO, L. G. La cueva de Salamanca. Salamanca: Ayuntamiento de Salamanca, 1994.
GRANADA, D. Resenã historico-descriptiva de antiguas y modernas
supersticiones del Rio de la Plata. 2. ed. Buenos Aires: Kraft, 1947.
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