Existe uma longa bibliografia sobre as relações

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Existe uma longa bibliografia sobre as relações
A corte do fantasma:
melancolia e identidade na “escola portuguesa” de cinema dos anos oitenta
Tiago Baptista
Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema
Instituto de História Contemporânea, FCSH-UNL
1.
Existe uma extensa bibliografia sobre as relações entre melancolia e cinema. Uma parte
importante desta bibliografia desenvolveu a premissa de que existiria algo no
dispositivo cinematográfico que faria do cinema um medium melancólico por
excelência. Este é o terreno das leituras psicanalíticas que estabelecem uma analogia
entre o ecrã e o espelho lacaniano e que localizam em cada visionamento a repetição
dos mecanismos que subjectivam o espectador enquanto indivíduo autónomo, isto é,
que lhe devolvem uma identidade original entretanto perdida 1.
Mas existe ainda um segundo campo de investigação onde melancolia e cinema se
intersectam. Esse campo é o da identidade nacional. Para Marie-Claude Lambotte, a
melancolia definir-se-ia, justamente, como a “doença da identidade” (Lambotte 1999:
34). Para muitos autores, a melancolia seria um traço comum das cinematografias de
vários pequenos territórios nacionais (os exemplos mais frequentes são o Québec, a
Bélgica, Singapura, Taiwan)2. A “pequenez” destes territórios não tem que ver
necessariamente com a sua extensão geográfica, mas antes com a definição destas
cinematografias como “menores”, para retomar a expressão que Deleuze e Guattari
usaram a propósito da literatura (Deleuze e Guattari 2003: 38-56). Não se trata de um
juízo de valor, mas sim da caracterização de uma cinematografia que encontra os seus
traços comuns na recusa de um cinema “maior”, ou dominante (o cinema de géneros e
estrelas), e na problematização de uma identidade nacional perdida, ou pelo menos
disputada3. A história torna-se, por isso, o principal aliado da melancolia na investigação
de uma identidade acossada, ou que pelo menos se define enquanto tal 4.
A importância do sentimento de perda é, pois, decisiva no encontro da melancolia com
1 Sobre psicanálise e cinema ver, por exemplo, E. Ann Kaplan (ed.), Psychanalysis and cinema (Nova
Iorque e Londres: Routledge, 1990). Sobre as leituras lacanianas, ver Slavoj Žižek, Enjoy your symptom!
Jacques Lacan in Hollywood and out (Nova Iorque e Londres: Routledge, 2008).
2 Serge Cardinal, “La mélancolie du nom. Cinéma et identité nationale”, Cinémas: Révue d’études
cinématographiques, 8 (1-2), 1997: 13-33.
3 Mais concretamente: “As três categorias da literatura menor são a desterritorialização da língua, a
ligação do individual com o imediato político, o agenciamento colectivo da enunciação. O mesmo será
dizer que «menor» já não qualifica certas literaturas, mas condições revolucionárias de qualquer literatura
no seio daquela a que se chama grande (ou estabelecida).” (Deleuze e Guattari 2003: 41-42).
4 Sylvie Rollet, “Theo Angelopoulos, Alexandre Sokourov, Béla Tarr ou la mélancolie de l’Histoire”,
Positif, 556: 96-99.
1
as cinematografias nacionais, isto é, que se debruçam sobre a construção e
desconstrução de uma identidade nacional. Estas cinematografias seriam muitas vezes
melancólicas porque fazem da perda de uma identidade nacional bem definida o seu
tema estrutural e estruturante. Para compreender melhor este encontro, é necessário
ultrapassar o uso corrente do conceito de melancolia enquanto sinónimo de tristeza.
Neste texto, adoptarei as leituras do conceito desenvolvidas por Sigmund Freud (2004
[1915]), Giorgio Agamben (1998) e Slavoj Žižek (2000) que sugerem uma definição
relacional da melancolia em oposição ao luto. Concentrar-me-ei, em particular, na
leitura de Agamben que define a melancolia como o lamento pela perda de um objecto
de desejo que nunca se teve em primeiro lugar, representando antes o único modo de
apropriação de algo que, em rigor, nunca se possuiu5. O que está em causa na
melancolia, como sublinhou Žižek, não é a perda, mas sim a falta6. Esta leitura tem um
paralelismo óbvio com o modo de agir das máquinas identitárias: tal como o indivíduo
melancólico, a máquinas identitária lamenta a perda de algo que nunca possuiu
verdadeiramente porque esteve sempre em falta – neste caso, um conceito estável e
fechado de identidade nacional.
2.
Tal como sucede nos estudos sobre outras cinematografias nacionais, uma parte
importante da bibliografia sobre o cinema português inclui uma reflexão sobre a
importância da melancolia na definição daquele cinema em geral, e na definição dos
filmes agrupados sob a categoria da “escola portuguesa” dos anos oitenta em particular.
O que designa o conceito de “escola portuguesa” de cinema? Segundo Jacques Lemière,
refere-se a um conjunto de filmes portugueses dos anos de 1970 e 1980 que se
distinguiriam pela sua “invenção artística”, “resistência a toda a normalização
industrial” (Lemière 2002: 3-4). À cabeça desta escola estavariam os filmes de Manoel
de Oliveira, mas também o trabalho de outros realizadores mais novos como António
Reis ou João Botelho7. Estes filmes afastam-se do cinema de géneros e estrelas
estrangeiro tanto pelas suas opções artísticas e temáticas, como pelo seu modo de
5 Giogio Agamben, Stanze. Parole et fantasme dans la culture occidentale (Paris: Éditions Payot &
Rivages, 1998), 47-48.
6 Slavoj Žižek, “Melancholy and the Act”, Critical Inquiry, 26: 659.
7 Jacques Lemière (2002) identifica oito filmes decisivos para a definição da “escola portuguesa”: TRÁSOS-MONTES (António Reis e Margarida Cordeiro, 1976), AMOR DE PERDIÇÃO (Manoel de Oliveira, 1978),
FRANCISCA (idem, 1981), O MEU CASO (idem, 1986), LE SOULIER DE SATIN (idem, 1985), A ILHA DOS AMORES
(Paulo Rocha, 1982), O DESEJADO (idem, 1987) e UM ADEUS PORTUGUÊS (João Botelho, 1985).
2
produção artesanal, pelo facto de serem subsidiados pelo Estado, e ainda por
frequentarem o circuito de festivais internacionais, lugar da sua valorização crítica e
simbólica. A categoria é, pois, e acima de tudo, uma construção crítica, fruto de um
olhar exterior e consequência da circunstância conjuntural que permitiu, num espaço (a
capital francesa e alguns festivais de cinema europeus) e num tempo concentrados
(entre 1977 e 1987), a produção e exibição internacional de um conjunto limitado de
filmes8. Estes filmes foram valorizados em França como sinal de que o cinema de arte e
autor europeu não tinha desaparecido do continente, “descoberta” tanto mais importante
quanto, nesse mesmo momento, se vaticinava a morte desse cinema dos centros
cinematográficos da Europa. Neste sentido, um filme como TRÁS-OS-MONTES (António
Reis e Margarida Cordeiro, 1977), um dos primeiros a propósito do qual a crítica
internacional falou da existência de uma “escola portuguesa” de cinema, foi tanto mais
apreciado quanto era um filme duplamente periférico: em relação à Europa (porque era
oriundo de um país localizado nas “margens” do continente); e em relação a Portugal
(porque era filmado numa das regiões mais remotas do país) 9. Serge Daney apoiaria
aliás a sua influente crítica do filme na identificação do “afastamento” (éloignement)
como o tema central de TRÁS-OS-MONTES10.
O cinema da “escola portuguesa” foi ainda definido e apreciado, segundo Jacques
Lemière, enquanto “interrogação sobre a questão nacional” (2002: 4) que recusava tanto
as soluções estéticas do cinema estrangeiro dominante, como as imposições de uma
sociedade de consumo vista como alienante da suposta especificidade cultural
portuguesa. A depreciação deste presente “impuro” levou muitos filmes da “escola
portuguesa” a investigar as causas históricas, míticas e psicanalíticas da decadência
constatada pelos realizadores. Muitas interpretações sugeridas nestes filmes parecem
moldadas pelos textos contemporâneos de Eduardo Lourenço, configurando-se como
um «exame de consciência parricida intentado ao “ser nacional”», reflectindo sobre a
perda do império e a reconfiguração da identidade de Portugal como país (apenas)
europeu, e ainda sobre o confronto forçado com a Europa que atirou o país para «transes
8 Jacques Lemière, Le cinéma portugais comme “situation”. À propos de la catégorie de cinéma
portugais et l’énoncé “il y a un cinéma portugais” (Bruxelas: Delegação na Bélgica do Instituto Camões,
2002), 3.
9 Para uma crítica mais detalhada deste filme, ver Tiago Baptista, A invenção do cinema português
(Lisboa: Tinta-da-china, 2008), 122-123.
10 Serge Daney, “Loin des lois”, Cahiers du Cinéma, 276 (1977): 42-44. Sobre a recepção da crítica
francesa a TRÁS-OS-MONTES ver a antologia de críticas recolhidas em Anabela Moutinho e Maria da Graça
Lobo (org.), António Reis e Margarida Cordeiro: a poesia da terra (Faro: Cineclube de Faro, 1998), 187194.
3
de melancolia cívica e cultural» (Lourenço 2007 [1978]: 30). As páginas sobre o
decadentismo dos intelectuais portugueses do século XIX escritas por Lourenço
poderiam aplicar-se, sem alterações, aos realizadores portugueses dos anos oitenta – é o
caso de Paulo Rocha, autor de A ILHA
DOS
AMORES (1982), reflexão sombria sobre o
exílio auto-imposto de Wenceslau de Morais e Camilo Pessanha e o destroçamento das
fantasias imperiais portuguesas pelo ultimato inglês de 1890 11.
Existem duas contradições inerentes aos filmes da “escola portuguesa” de cinema, uma
genérica, a outra decorrente do emprego concreto dos conceitos de luto e melancolia e
da sua relação com uma visão decadentista da identidade nacional.
A primeira contradição nasce da relação problemática destes filmes com a sua
contemporaneidade. Na década de oitenta, Portugal viveu cumulativamente a adesão à
Comunidade Económica Europeia, um período de crescimento económico, a entrada na
sociedade de consumo e o início do cavaquismo. Datam dos anos oitenta, também,
alguns dos maiores êxitos de bilheteira do cinema português, “franchising” do cinema
de géneros e estrelas americano12. Não é por isso de espantar que os espectadores não
reconhecessem nem apreciassem, nem o país decadente, nem a modernidade
cinematográfica dos filmes da “escola portuguesa”.
Mas existe ainda uma segunda contradição nestes filmes, ou melhor, na interpretação
dominante que deles se fez. Retomando a interpretação lourenciana já testada por
Augusto M. Seabra13, Paulo Filipe Monteiro refere que aqueles filmes fazem o luto de
um país em desaparecimento, mas que são marcados também pela melancolia, isto é,
resistem de algum modo a esse desaparecimento, ou ao que é percepcionado como tal 14.
(Monteiro insiste aliás no conservadorismo e no romantismo desta posição,
11 Veja-se esta passagem, como exemplo indicativo: “O século XIX foi o século em que pela primeira
vez os portugueses (alguns) puseram em causa, sob todos os planos, a sua imagem de povo com vocação
autónoma, tanto no ponto de vista político como cultural. Que tivéssemos merecido ser um povo, e povo
com lugar no tablado universal, não se discutia. Interrogávamo-nos apenas pela boca de Antero e de parte
da sua geração, para saber se éramos ainda viáveis, dada a, para eles, ofuscante decadência.
Curiosamente, o exame de consciência parricida intentado ao «ser nacional» tinha lugar na altura mesma
em que Portugal se religava, com algum êxito, a essa Europa, exemplo de civilização, cuja comparação
connosco nos mergulhava em transes de melancolia cívica e cultural, tais como a obra de Eça os
exemplificará para o nosso sempre.” (Lourenço 2007 [1978]: 30; sublinhados originais).
12 A abrir a década, KILAS, O MAU DA FITA (José Fonseca Costa, 1981) superou os 120.000 espectadores e,
três anos mais tarde, O LUGAR DO MORTO (António-Pedro Vasconcelos, 1984) tornou-se o filme português
mais visto de todos os tempos ao ultrapassar os 270.000 espectadores, número apenas batido, muito
recentemente, por O CRIME DO PADRO AMARO (Carlos Coelho da Silva, 2005), visto por mais de 380.000
pessoas; segundo dados do sítio do Instituto do Cinema e do Audiovisual, disponível em www: <URL:
http//www.icam.pt> (acedido em 30 de Janeiro de 2009).
13 Augusto M. Seabra, “La scène de l’histoire”, Revue Belge de Cinéma, 26 (1989): 1-10
14 Paulo Filipe Monteiro, “O fardo de uma nação”, in Portugal: um retrato cinematográfico (Lisboa:
Número – Arte e Cultura, 2004), 43.
4
relacionando-a com a posição decadentista dos intelectuais portugueses de final do
século XIX15). No entanto, tal como a melancolia – e ainda mais do que ela – a
decadência não implica uma perda. Na perspectiva decadentista, o “bom” país não
desapareceu, mas degradou-se antes num processo contínuo que vem do passado até ao
presente. Alguns filmes, como o já citado A ILHA
DOS
AMORES, investigaram o “ponto
zero” dessa decadência; outros, como O DESEJADO (Paulo Rocha, 1987), fizeram o seu
diagnóstico no presente. A causalidade decadentista é impensável sem uma relação de
continuidade entre o passado e o presente, produzindo assim uma visão não apenas
decadentista, mas também essencialista da identidade nacional. Por tudo isto, os lutos
do país tentados pela “escola portuguesa” são processos que, mais do que inacabados,
são impossíveis mesmo de concluir. Intuindo esta contradição, Monteiro sugere
certeiramente que os filmes da “escola portuguesa” se perdem no luto16. Mas nesse caso,
não deveríamos antes falar de melancolia? A expressão resume de forma exemplar a
segunda contradição no cinema da “escola portuguesa” e que consiste em atribuir
simultaneamente àqueles filmes as tarefas da melancolia e também as do luto, tarefas
essas que, desde Freud, sabemos serem constitutivamente incompatíveis entre si.
3.
A confusão entre os dois conceitos é fruto da estrutura formal dos próprios filmes. Ela
atinge o seu auge em UM ADEUS PORTUGUÊS (João Botelho, 1985), um dos filmes mais
importantes da “escola portuguesa” e o primeiro a abordar a guerra colonial. Dando o
mote para a visão essencialista da identidade nacional que se seguirá, o poema de
Alexandre O’Neill citado no início do filme e que lhe empresta o título parece sugerir a
especificidade de uma suposta “psicologia colectiva dos portugueses”, particularizada
aqui no sentimento de dor (“esta pequena dor à portuguesa/tão mansa quase vegetal” 17).
No seu filme, Botelho parece secundar O’Neill na identificação de uma dor ou pelo
menos um modo de sofrer especificamente português. Esta dor, que é identificada com a
atitude melancólica, seria instalada por um sentimento avassalador de decadência que
15 Ibid., 39-54.
16 “…mais do que fazer o luto para encontrar uma saída para fora da depressão e encarar o futuro, como
a intenção é perder-se (nuns [filmes] de uma forma mais trágica, noutros mais romântica, noutros mais
dandy), se fica no luto.” (Monteiro 2004: 59).
17 “Não podias ficar presa comigo/à pequena dor que cada um de nós /traz docemente pela mão/a esta
pequena dor à portuguesa/tão mansa quase vegetal”, excerto do poema “Um Adeus Português”. Motivado
por um episódio amoroso da biografia de O’Neill (a tentativa frustrada pela PIDE de se reunir a Nora
Mitrani em Paris), o poema viria a ser apropriado pela resistência ao Estado Novo como denúncia da
opressão (ou mais concretamente, do enclausuramento) a que o regime sujeitava o país.
5
caracteriza não só o presente, mas que é inerente a um suposto “ser nacional”. E no
entanto, este é um filme evidente sobre o luto – todas as personagens, e o espectador,
são confrontadas com a morte de um soldado que os obrigará a fazer o luto de um filho,
de um amante, ou do próprio império. Mas este é um “luto paradoxal”, que não se
representa, como notou um crítico escrevendo à época de estreia do filme 18 – um luto
em tudo semelhante à dor mansa, vegetal, dos versos de O’Neill.
UM ADEUS PORTUGUÊS equilibra duas linhas narrativas. A primeira, na Lisboa dos anos
oitenta, é filmada a cores e representa a visita dos pais (Ruy Furtado e Isabel de Castro)
de um oficial português morto na guerra colonial ao seu filho mais novo
(Alexandre/Fernando Heitor) e à sua nora (Laura/Maria Cabral). A segunda representa a
guerra colonial em África, num país não identificado, acompanhando a patrulha de um
oficial que acabaria por ser morto pelo inimigo. (É um salto de fé admitir que se trata do
mesmo oficial já que, em rigor, nada relaciona claramente as duas personagens a não ser
a sua história comum.) A análise da estrutura do filme – e especificamente do modo
como estas duas linhas narrativas se relacionam – permite ir além de uma “mise en
scène da melancolia” (a representação de personagens melancólicas) para descobrir uma
verdadeira “melancolia da mise en scène” (o agenciamento melancólico dos materiais
fílmicos)19. Jacques Aumont analisou esta oposição através dos filmes de Andrei
Tarkovski e Jean-Luc Godard20, encontrando a segunda sobretudo naqueles filmes onde
reina o enclausuramento das personagens, o seu fechamento num espaço limitado (um
quarto, na maior parte dos exemplos), onde se submetem passivamente ao passado e ao
mundo interior das ideias. O quarto adquire então a mesma função da camera obscura
necessária ao artista para fixar as imagens, configurando-se assim como o espaço da
introjecção melancólica que é a pré-condição indispensável de toda a prática artística 21.
Os quartos abundam, aliás, em UM ADEUS PORTUGUÊS, e as sequências em casa de
Alexandre, o cunhado da viúva, ou da própria Laura, sublinham a melancolia da mise
en scène através do uso da banda sonora e dos movimentos de câmara (destaca-se o
18 Marc Chevrie, “Entre-temps”, Cahiers du Cinéma, 393 (1987): 16-19
19 Jacques Aumont, “Humeurs. Éloge de la mélancolie”, Cinéma, 02 (9) (2005): 72-89
20 ANDREI RUBLIOV (idem, 1966), SOLARIS (Andrei Tarkovski, 1972), STALKER (idem, 1979), NOSTALGHIA
(idem, 1983) e OFFRET (idem, 1985) foram dados como exemplos da primeira; PASSION (idem, 1982),
SOIGNE TA DROITE (Jean-Luc Godard, 1987) e JLG/JLG (idem, 1994), como exemplos da segunda.
21 “Ce qui dit cette méditation d’artiste, c’est qu’il existe des conditions à l’apparition de l’image, et
parmi elles: l’enfermement (sur soi, dans sa chambre mentale), la soumission au passé, à l’écho, à votre
propre voix qui vous revient d’un lointain, si proche soit-il. (…) La mélancolie d’un artiste lui vient de la
contention d’esprit à laquelle il est condamné, s’il veut conserver (préserver) l’image qui l’assaille, et la
faire sortir. Envahi par les images, il ne peut les trahir, et c’est cette mission poétique qui le fait
mélancolique.” (Aumont 2005: 85-86).
6
travelling para a frente em direcção à pequena janela no quarto de Alexandre – que,
justamente, é um escritor –, movimento pontuado pela introdução de um trecho do
“Quarteto para o fim do tempos”, de Olivier Messiaen, usado periodicamente como
indicador da aproximação de uma sequência a preto e branco, ou seja, como indicador
da aproximação do passado). Mas o próprio Aumont admitiu que era possível uma
“melancolia da mise en scène” sem este fechamento e podíamos acrescentar ao seu
exemplo (Terrence Malick22), a Lisboa de UM ADEUS PORTUGUÊS, espaço sem fuga
marcado pela escuta do passado e pelo desalento em relação ao presente. Carolin
Overhof Ferreira (2005) e Marc Chevrie (1987) destacaram, mas com leituras
diferentes, a importância dos primeiros planos do filme (uma sequência da guerra
colonial), onde se mostra os olhos e depois a orelha de um soldado. Esta evocação dos
sentidos instala o espectador numa posição semelhante à do artista melancólico que, no
recolhimento do seu quarto/mente, se predispõe a receber as imagens e os sons do
passado.
No filme de Botelho, a melancolia da mise en scène reside, mais precisamente, no modo
como a relação com o passado é estabelecida. Ela faz-se através das sequências a preto e
branco, da guerra, à primeira vista semelhantes a um vulgar flashback. Numa análise
mais próxima, porém, notamos que estas sequências não respeitam as convenções
elementares do flashback23. Desde logo, porque não reforçam a posição subjectiva de
nenhuma personagem em particular (não podem ser atribuídos ao oficial morto, nem à
sua viúva, nem a nenhuma das outras personagens; nem sequer é claro, aliás, sobre
quem incidem aqueles flashbacks: o morto não é claramente identificado senão numa
das últimas sequências e também não resulta imediatamente claro que seja dele a voz
off pontual). Em segundo lugar, estas sequências também não se constituem como a
visão didáctica da biografia do morto e muito menos de uma concepção nacionalista da
história de Portugal. Estas sequências não são apresentadas como a causa de um efeito
que já se conhece, no presente, como sucede habitualmente no flashback. E finalmente,
estas sequências não sugerem nenhuma articulação definitiva entre passado e presente.
22 “Il n’est pas non plus indispensable d’emprisonner ses personages entre quatre murs pour figurer la
mélancolie. Un mélancolique pur jus comme Terrence Malick a filmé, dans ses trois long métrages
connus, surtout des espaces ouverts (…)” (Aumont 2005: 86-87). Escrevendo em 2005, Aumont refere-se
a BADLANDS (1974), DAYS OF HEAVEN (1978) e THE THIN RED LINE (1998).
23 Apoio-me na definição avançada por Susan Hayward (2006) e discutida por Carolin Overhoff Ferreira
na sua análise comparada do emprego da técnica do flashback em NON OU A VÃ GLÓRIA DE MANDAR
(Manoel de Oliveira, 1990) e UM ADEUS PORTUGUÊS. Apesar de subscrever uma parte das conclusões de
Ferreira sobre a visão colonialista presente nos dois filmes, a minha interpretação do uso do flashback
diverge da sua porque, e recorrendo justamente à definição proposta por Hayward, não creio que seja
possível identificar a presença daquela técnica nas sequências da guerra colonial em UM ADEUS PORTUGUÊS.
7
Elas instalam o filme “entre o tempo” (Chevrie 1987), impedindo assim o fechamento
do passado necessário ao luto. Retomando a expressão de Monteiro citada acima, UM
ADEUS PORTUGUÊS é um filme “que se perde no luto”, ou seja, que existe afinal no terreno
da melancolia.
Numa das últimas sequências a cores do filme, Laura e o namorado caminham nos
Restauradores lado a lado e fazem o balanço da visita dos sogros dela. A visita terminou
e o casal pode retomar a sua vida a dois. Aos diálogos segue-se um breve travelling para
a frente que, em contra-picado, mostra a copa das árvores da Avenida da Liberdade. Tal
como nas sequências a preto e branco, em África, não estamos perante um plano
subjectivo, isto é, um plano que possa ser atribuído sem hesitação ao ponto de vista de
uma personagem (neste caso, a Laura ou ao seu namorado).
Tal como as sequências da guerra, este plano significa a irrupção não mediada do
passado no presente. Estamos perto das interpretações que defendem a solidariedade
entre a melancolia e o próprio dispositivo cinematográfico, sobretudo graças à relação
do cinema com a história e o passado e a essa capacidade estrutural da imagem
cinematográfica que consiste em fazer presente a ausência 24. Já se viu no dispositivo
cinematográfico o anjo da história comentado por Walter Benjamin, aquele que fixa
melancolicamente o efeito destruidor do tempo, mas que está preso num movimento que
o arrasta inexoravelmente para o futuro25. Não será este movimento, precisamente,
aquilo que o belíssimo plano das copas das árvores de UM ADEUS PORTUGUÊS reproduz?
4.
UM ADEUS PORTUGUÊS reforça a recente valorização da melancolia sobre o luto para a qual
alertou Žižek. Esta valorização fez-se, como notou ainda Žižek, contra Freud. No seu
texto fundador sobre a melancolia e o luto, a primeira era remetida para o terreno das
psicoses e o segundo para a esfera dos comportamentos saudáveis 26. Foi apenas depois
de Freud que se deu a inversão do valor ético atribuído aos dois conceitos: o luto passou
a ser visto como uma forma de traição em relação ao objecto de desejo perdido, e a
melancolia como o meio de fazer perdurar a relação interrompida com o mesmo
objecto27. À luz da leitura de Agamben, Žižek recorda que a melancolia não incide sobre
24 Isabelle McNeill, “Phrases, monuments and ruins: melancholy history in Éloge de l’amour (2001)”,
Studies in French Cinema, 3 (2) (2003): 111-120.
25 Ibid., 113-114.
26 “Freud opposed normal mourning (the successful acceptance of a loss) to pathological melancholy (the
subject persists in his or her narcissistic identification with the lost subject).” (Žižek 2000: 658).
27 Slavoj Žižek, “Melancholy and the Act”, Critical Inquiry, 26 (2000): 658.
8
uma perda, mas sobre uma falta: “na medida em que o objecto-causa do desejo está, de
um modo constitutivo, em falta, a melancolia interpreta esta falta como uma perda,
como se o objecto em falta tivesse sido outrora possuído e depois perdido. Em resumo,
o que a melancolia ofusca é que o objecto está em falta desde o início, que a sua
aparição coincide com a sua falta, que este objecto não é mais do que a positivização de
um vazio ou perda, uma entidade puramente anamórfica que não existe em si mesma”
(Žižek 2000: 659-660). A melancolia cobre o seu objecto “com as cores sombrias do
luto” para “permitir ao irreal aceder à existência” e “estabelecer uma apropriação que
nenhuma posse poderia igualar e que nenhuma perda poderia comprometer” (Agamben
1998: 49). Apoiando-se nesta leitura, Žižek denuncia a primazia ética e conceptual da
melancolia como uma forma de cinismo. Para ele, a melancolia significa a adopção de
uma dupla posição destinada, como já apontara Agamben, a lamentar uma perda ao
mesmo tempo que se legitima (e goza) um presente liberto dessa perda 28.
O lamento melancólico de um passado perdido legitima, afinal, a situação vivida depois
da (falsa) perda. Creio que esta dupla posição define não só a personagem de Maria
Cabral (a viúva), mas também a própria “escola portuguesa”. Ambas são marcadas por
um afastamento da contemporaneidade em favor do passado ao mesmo tempo que
participam e usufruem totalmente do seu presente. A viúva é obrigada a um simulacro
de luto (isto é, à encenação da derrota do luto pela melancolia), apenas para benefício
dos sogros e para poder legitimar, para ela própria, a sua nova relação amorosa (não lhe
seria possível estar com outro homem se não continuasse a lamentar a perda do marido).
Os realizadores da “escola portuguesa”, por seu lado, lamentam a perda (ou a
dissolução) da identidade nacional pela sociedade de consumo ao mesmo tempo que
beneficiam plenamente das possibilidades abertas pelo capitalismo global para a
circulação e valorização dos seus filmes no estrangeiro.
A ambiguidade do conceito de melancolia fazia parte da definição avançada
originalmente por Freud e é igualmente indispensável para qualquer definição de
cinema moderno29. O cinema da “escola portuguesa” não é excepção. Mas a
ambiguidade melancólica que marca a relação entre o passado e o presente toca não só o
âmago destes filmes, como o de todo o cinema português que fez, para usar a expressão
28 O exemplo oferecido por Žižek é o do sujeito pós-colonial: “what is wrong with the postcolonial
nostalgia is not the utopian dream of a world they never had (such a utopia can be thoroughly liberating)
but the way this dream is used to legitimize the actuality of its very opposite, of the full and unconstrained
participation in global capitalism” (Žižek 2000: 659).
29 Sobre a importância da ambiguidade para uma definição do cinema moderno, ver Bordwell 2002.
9
de Agamben, a “corte do fantasma” – a identidade nacional 30.
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30 “La perte imaginaire qui obsède tant l’intention mélancolique ne porte sur aucun objet réel, parce que
c’est l’impossible captation du fantasme que vise sa funèbre stratégie. L’objet perdu n’est que le
simulacre derrière lequel le désir fait la cour au fantasme; et l’introjection de la libido est simplement l’un
des aspects d’un processus au cours duquel ce qui est reel perd sa réalité afin que ce qui est irréel se
réalise.” (Agamben 1998: 57-58).
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