03/06/2014 - A nobre missão de tocar violão

Transcrição

03/06/2014 - A nobre missão de tocar violão
A nobre missão de tocar violão
Por Jocenildo Cavalcante de Carvalho - Delegado de Polícia Federal
Um homem nasceu destro. Logo, o cérebro deu à sua mão direita a nobre missão de tocar violão.
Esse homem, é claro, tinha somente uma mão direita, mas tocar violão não era a única tarefa que o
cérebro tinha determinado para ele fazer. Existiam várias outras tarefas que cabiam às outras partes
do corpo executar.
No entanto, a missão principal da mão direita (tocar violão) era uma das que mais chamava a
atenção das outras partes do corpo, porque todos sabiam que o cérebro, o grande coordenador das
atividades e distribuidor dos recursos, gostava de boa música e que isso proporcionava um
reconhecimento especial à mão direita. E elas sabiam também que esse reconhecimento vinha, não
só do cérebro, pois eram comuns os aplausos entusiasmados, vindos de fora, toda vez que a mão
direita tocava uma bela música com a maestria que lhe era peculiar.
Então a mão esquerda, que também tinha a sua missão já definida, mas que morria de inveja da mão
direita, mesmo sem a permissão do cérebro, começou também a tocar violão, esperando, com isso,
obter mais reconhecimento do que ela já tinha. No começo, ela não tocava assim tão bem, mas, com
o passar do tempo, ela foi se aperfeiçoando cada vez mais e, assim, foi ganhando certo
reconhecimento do cérebro e das demais partes do corpo.
Isso chegou a um ponto em que parecia que apenas a mão direita, que - a essa altura já estava meio
cansada daquela situação - é que se importava com o fato de a mão esquerda estar fazendo uma
tarefa que originalmente era só sua. Some-se a isso o fato de que a mão direita tinha que dar conta
de muitas outras tarefas, além de tocar violão, que, constantemente, lhes eram impostas pelo
cérebro.
O cérebro, nem vinha percebendo, ou fazia de conta que não percebia, o que estava acontecendo.
Ele tinha tantas outras atividades para coordenar que nem havia prestado atenção ao fato de que a
mão esquerda vinha dedicando uma boa parte de seu tempo, de seus recursos e de suas habilidades
para fazer coisas totalmente diferentes daquelas que lhes haviam sido confiadas inicialmente. Talvez
o cérebro estivesse pensando algo assim: Está tudo bem - o que importa é que o violão está sendo
tocado e eu gosto da música que estou ouvindo.
O que o cérebro não percebia é que essa sua negligência havia desencadeado uma perigosa aventura
das outras partes do corpo, que deixaram de lado as suas tarefas principais e estavam agora
dedicando grande parte de seus recursos para executarem outras atividades que, de certa forma, lhes
traziam reconhecimento. Em pouco tempo, cada membro do corpo foi ficando fraco naquilo que era
sua tarefa específica e, aparentemente, forte na tarefa que aprendeu, mas que cabia a outras partes.
Em pouco tempo, começou uma verdadeira guerra entre as várias partes do corpo, pois nenhuma
gostava de ver a outra fazendo aquilo que era sua tarefa original, principalmente porque isso rendia
reconhecimento para esse outra parte e enfraquecia aquela a quem cabia originalmente realizar a
tarefa.
Não demorou e o cérebro começou a perceber que tinha perdido o controle da situação e que já não
mais obtinha os resultados que esperava das várias partes do corpo, pois os comandos que ele
enviava para a mão esquerda, por exemplo, já não surtiam mais o efeito desejado. A mão esquerda
se julgava no direito de fazer o que bem quisesse e, pior, do jeito que quisesse, sem ter que obedecer
ao cérebro ou mesmo ter que se submeter a qualquer tipo de controle. O cérebro não sabendo o que
fazer para retomar o controle, preferiu lavar as mãos e ficava, equivocadamente, esperando que a
situação se resolvesse sozinha.
A mão direita, por sua vez, estava muito enfraquecida com aquela situação e, sem poder contar com
o cérebro, que tinha lavado as mãos, mal conseguia cumprir, minimamente, a sua missão original.
E a mão direita estava assim, porque os recursos que deveriam servir para a realização da sua
missão principal estavam agora sendo divididos com outras partes do corpo e o pouco que lhe cabia
era empregado também em muitas tarefas secundárias, o que fazia com que a música tocada pela
mão direita não fosse mais aquela de antes - a mão direita ainda tocava o violão, mas já não era com
a qualidade de antes. A mão direita tentava explicar o porquê da sua aparente incompetência, mas o
cérebro não queria nem ouvir suas explicações - ele queria era que ela, de um jeito ou de outro,
tocasse o violão com maestria, o que já não era mais possível ante aquela situação.
Nesses momentos, a mão esquerda, espertamente e como quem não quer nada, aparecia tocando
violão, com certa maestria, e o cérebro e as outras partes do corpo gostavam daquilo que ouviam,
deixando a mão direita cada vez mais desprestigiada. Mas, se perguntassem à mão esquerda sobre
como estava a sua tarefa original, talvez ela não tivesse uma boa resposta, revelando o absurdo que
tudo aquilo tinha gerado.
Eis que a mão direita, então, teve uma ideia brilhante. Finalmente, ela percebeu que a sua música
tinha diminuído na qualidade não porque a mão esquerda havia começado a tocar violão também,
mas sim porque ela própria estava dedicando grande parte do seu tempo para apontar o que a mão
esquerda estava fazendo de errado e, assim, tinha esquecido de que ela mesma deveria assumir
100% da responsabilidade pelo seu resultado e focar a sua atenção no que ela poderia fazer bem
feito para cumprir a sua missão.
Então, dessa forma reassumiu o controle da situação e iniciou uma nova jornada em sua existência.
A mão direita pensou: A partir de hoje vou voltar a visualizar claramente a minha missão e que se
dane a mão esquerda, se ela quiser continuar a fazer o que está fazendo, se quiser continuar
gastando seus recursos em tarefas que originalmente não são suas, que continue. Isso é problema
dela e de quem tem a função de comandá-la e não meu. E a mão direita continuou pensando: Se o
cérebro está pensando que eu vou ficar me lamentando pelos cantos, ele está muito enganado. Eu
vou livrar-me de todo peso desnecessário que até hoje tenho carregado e vou especializar-me cada
vez mais na minha missão principal, sem esquecer as tarefas secundárias, para poder mostrar a mim
mesmo e a todos que sou capaz de cumpri-las e que podem contar comigo para sempre.
Com essa nova forma de pensar, agora muito clara em sua mente, a mão direita, visando a se
especializar cada vez mais na sua missão original, convocou todos os cinco dedos e resolveu se
reorganizar internamente, prestigiando ao máximo o que cada um podia fazer de melhor, sem
concorrerem entre si. E isso fez com que, em pouquíssimo tempo, a mão direita voltasse a
desempenhar bem a sua função original, chamando a atenção do cérebro, das demais partes do
corpo e também de fora, resgatando e aumentando o desejado reconhecimento, já que, agora, voltou
a tocar o violão com a tão necessária maestria.
Estranhamente um fenômeno parecido com o de antes voltou a acontecer. A mão esquerda, vendo
que a mão direita ganhava reconhecimento por fazer bem feito apenas a sua própria missão, enfim,
percebeu que seria melhor para ela também investir seus recursos na sua própria missão.
E assim a harmonia voltou a reinar naquele corpo.

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