Prólogo - Café com Whisky

Transcrição

Prólogo - Café com Whisky
Prólogo
Era inevitável não continuar pensando no que acabara de ler. Sentia-se uma pessoa suja e ao
mesmo tempo perdida por conta das palavras que foram impressas a caneta, com o cuidado e
carinho que apenas uma pessoa convicta poderia ter. Convicção. Era isso que lhe faltava agora,
além do ar nos pulmões.
Ouviu-se a chaleira que apitava da cozinha acusando a água já quente para o café. Terminou
o preparo e se serviu de mais uma xícara pensando em que fazer no momento. Lera algo que não lhe
dizia respeito, algo que supostamente não deveria estar em suas mãos, mas já era tarde demais para
pensar em arrependimento, tinha que tomar uma decisão e não podia mais ficar as margens dos
acontecimentos, não mais.
Abriu seu maço de Dunhil e acendeu seu primeiro cigarro em semanas, fumava sem a
sensação de que era uma novata ao fazê-lo, ou que durante os dias que se manteve longe do vicio
fossem de certa forma desacostumar seu corpo com a química daquele pequeno embrulho de papel.
Fitava a janela e a chuva do lado de fora, pensava em como Ele fazia isso e como parecia ser mais
estranho do que qualquer outra pessoa. Não podia deixar de pensar que não mais o veria e que isso
era desesperador.
O telefone toca mas Ela não atende, já sabe quem é. A secretária eletrônica faz seu trabalho,
mas a pessoa desiste. “Tenho mais 30 minutos antes da minha visita chegar aqui” pensou enquanto
terminava a ultima ponta de seu cigarro, abriu um pouco a escotilha da janela apenas para jogar a
guimba de cigarro para a chuva e a Deixou aberta quando foi para o banheiro tomar um rápido
banho.
Enquanto a água quente caia em seus longos cabelos vermelhos tingidos, não conseguiu
conter um riso de canto de boca, no meio daquela tragédia que os fatos tinha limitado a sua vida,
sabia exatamente o que aconteceria nas próximas 24 horas e sabia também a importância que seria
esse dia para Ele. Não podia mais deixar brechas, nenhum sinal de sua existência, e tão pouco do
seu visitante que não tardaria a chegar em seu apartamento. Terminou o banho e ainda nua foi até a
sala para ligar o som estéreo. Parou para admirar novamente as tatuagens que havia feito em todos
esses anos, cada pessoa que entrou em sua vida, cada data significativa, cada lugar, cada emoção.
Em cima do seio direito, ficava sua tatuagem mais marcante, quatro palavras alinhadas para formar
um losango 'Butterfly', 'Order', 'Chaos', e 'typhoon', circundados por uma cobra que mordia a
própria calda. 'Ouroboros' e o 'horizonte de eventos'. Winter de Antônio Vivaldi começou a tocar e
a preencher o vazio que o grande Hall se mostrava sem o restante dos móveis que antes faziam parte
da decoração, enxugou o seu corpo e vestiu sua roupa de couro emborrachado que mais parecia
saída do set de filmagens de algum filme dos irmãos Wachowski, ou de alguma sexy shop voltada ao
público sadomasoquista.
Não se deu o trabalho de secar os cabelos, sabia que seria um ato desnecessário, logo a
chuva estaria molhando forte seu corpo quando o mesmo passasse pela janela em contra partida
com a força da gravidade. Encheu seu copo de café com com uma dose de Bourbon e acendeu mais
um cigarro, bebericando e tragando, aproveitando seus últimos momentos de prazer momentâneos.
Não se sentia triste pelo que ia acontecer, sabia que em algum momento seria inevitável, mesmo
sendo assim tão cedo. Acima de tuto não sentia medo, a morte a atraia mais que a vida, já julgara ter
visto tudo o que precisava ser visto pela pequena porção de consciência na vastidão do universo que
Ela representava, só não queria que fosse tão rápido, queria muito ter a oportunidade de passar o
natal com Ele, queria ter tido mais tempo. Queria intimamente ser outra pessoa.
Olhou para o relógio, ainda faltavam mais 10 minutos. Como sempre havia se adiantado
comparado as pessoas corriqueiras, não aturava saber que seu timming era sempre perfeito e assim
mesmo as coisas não haviam saído como Ela planejara de início, teve que dar seu jeito para que na
última hora nada atrapalhasse. O café, assim como inesperadamente o Bourboun estavam no fim, o
cigarro estava no fim, a vida ali dentro do hall estava no fim. Abriu a mochila que estava disposta
do lado de seu rádio que ainda tocava bem manso em harmonia com a chuva que batia na janela.
Vivaldi. Só mais cinco minutos.
Foi interrompida pelo subido barulho que vinha de alguma ambulância correndo nas ruas lá
embaixo, às vezes esquecia de como era confortante morar no campo, mas estava apaixonada por
São Paulo, era uma cidade suja e barulhenta, com pessoas que nem se olham no decorrer do dia. A
cidade que não para de crescer é a cidade mais dormente do país, lá do lado de fora as pessoas não
percebem umas as outras, passam a existência toda fugindo de si, fugindo da vida. Levantou, fechou
a janela que deixara aberta antes de tomar seu banho, olhou no espelho para conferir novamente a
sua aparência, se sentou no chão, fitou seu lustre que mesmo no escuro, permanecia impecável e
imponente. Sabia que sentiria falta daquele arrojado projeto de iluminação barroco, ou será que era
ele quem sentiria mais falta dela? Resolveu ler mais uma vez a carta que havia roubado a algumas
semanas. E que a essa altura já não tinha o menor arrependimento.
Poe, Querido.
É estranho quando sabemos exatamente o que falar, quando falar, como
falar e para quem falar apenas quando não é mais necessário, sempre
que discutimos com alguém, ou nos entregamos de mais, ou até de
menos, em uma certa altura criamos uma realidade alternativa nas
nossas mentes, onde essas coisas passam a ser apenas sombras de
incertezas, onde façamos tudo aquilo que julgamos ter sido a melhor
opção a ser tomado no momento. Criamos um universo perfeito onde
não somos patéticos, fracos, corruptos, demagogos, prostitutas,
assassinos, estupradores, humanos. Um lugar onde nada dê errado,
onde façamos e digamos tudo o que queríamos, da forma como
queríamos, no tempo que queríamos sem nenhuma frustração ou
tortura. Ainda assim não conseguindo fugir da baboseira que é pensar
dessa forma. Afogados em orgulho e hipocrisia.
Mas nem ao menos consigo falar isso sem parecer apenas palavras
bagunçadas,
palavras
avulsas
de
uma
pessoa
aparentemente
desesperançada e contraditória. Não foque nesse contingente de letras
emaranhadas umas as outras sem muito significado conclusivo para o
momento, o que queria mesmo te contar é que decidi morrer...
Uma chave entrou na porta para destrancá-la, de forma mansa como se a pessoa não
quisesse fazer alarde e não levantar suspeitas de que estava chegando. “Já estava na hora”, disse ao
visitante guardando a carta dentro do seu caderno.