A rosa do povo

Transcrição

A rosa do povo
A rosa do povo
(Carlos Drummond de Andrade)
Manhã, Folha Carioca, Revista Euclides, A Manhã,
Leitura, Tribuna Popular, Políticas e Letras. Em 1940,
volta às páginas do Minas Gerais. Deixa a chefia do
gabinete de Capanema e passa a trabalhar na chefia
da Seção de História da Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Em 1945, empenha-se na campanha pela anistia.
Aposentado desde 1962, dedica-se integralmente ao
trabalho literário.
Carlos Drummond de Andrade falece no dia 17
de agosto de 1987, no Rio de Janeiro, dias após o
falecimento de sua única filha, Maria Julieta.
Poesia: Alguma poesia (1930), Brejo das almas
(1934), Sentimento do mundo (1940), Poesias (1942),
A rosa do povo (1945), Poesia até agora (1948), Claro enigma (1951), Viola de bolso (1952); Fazendeiro
do ar & poesia até agora (1954), Poemas (1959),
Antologia poética (1962), Lição de coisas (1962),
Versiprosa (1967), Boitempo (1968), Reunião (1969),
As impurezas do branco (1973), Menino antigo
(1973), Amor, amores (1975), Discurso da primavera (1977), Esquecer para lembrar (1979), A paixão
medida (1980), Nova reunião (1983), Corpo (1984),
Amar se aprende amando (1985) e Tempo vida poesia (1986), O amor natural (1992), A vida passada a
limpo (1994), Farewell (1996).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1. BIOGRAFIA E BIBLIOGRAFIA
Carlos Drummond de Andrade nasce em Itabira
(MG), em 31 de outubro de 1902. Começa seus estudos no Grupo Escolar Dr. Carvalho Brito; e, mais tarde, como interno no Colégio Arnaldo em Belo
Horizonte. Problemas de saúde fazem-no regressar
para Itabira, onde freqüenta as aulas particulares do
prof. Emílio Magalhães. Em 1918, é matriculado no
Colégio Anchieta da Companhia de Jesus, em Nova
Friburgo (RJ), de onde é expulso por causa de um
incidente com um professor de Português.
Em 1923, matricula-se na Faculdade de Odontologia e Farmácia de Belo Horizonte. Inicia contatos
literários com Manuel Bandeira, Mário de Andrade,
Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e Blaise Cendrars. Corresponde-se com Mário de Andrade, envolve-se na ebulição modernista da década de 20. Funda,
em 1925, A Revista junto com outros companheiros.
Saem apenas três números da revista. No mesmo ano,
casa-se com Dolores Dutra de Morais e conclui o
curso de Farmácia. Desinteressado pela profissão,
torna-se professor de Português e Geografia no Ginásio Sul-Americano de Itabira. Volta a Belo Horizonte e torna-se redator-chefe do Diário de Minas.
Perde o primeiro filho: Carlos Flávio. Em 1928, nasce Maria Julieta. No mesmo ano, a publicação de No
meio do caminho na Revista de Antropofagia causa
enorme polêmica e um verdadeiro escândalo.
Inicia carreira de funcionário público em Minas
Gerais. Transfere-se como jornalista para o Minas Gerais, e torna-se auxiliar de redator; logo depois, redator e cronista. Assina as crônicas sob o pseudônimo de
Antônio Crispim. Em 1930, publica Alguma Poesia.
Torna-se chefe de gabinete do amigo Gustavo
Capanema, que, ao se tornar Ministro da Educação e
Saúde Pública, leva o poeta para o Rio de Janeiro. No
Rio, colabora com a Revista Acadêmica, Correio da
2. INTRODUÇÃO
A rosa do povo consolida o processo de amadurecimento da poética drummondiana, no sentido de cantar em versos a vida presente. É uma obra marcada
pela tensão entre a abertura e o fechamento da linguagem. Seus primeiros poemas afirmam a consciência críticas sobre o fazer poético (metalinguagens
ou meta-poemas). A poesia parece servir como único
artefato de luta do poeta contra as injustiças: Tal uma
lâmina, o povo, meu poema, te atravessa1. O eu lírico
1
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Consideração do poema”, In: A rosa do povo. Carlos Drummond de Andrade – Poesia e prosa,. 5ª
ed. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1979, p. 159.
1
sente-se abafado, o que não significa silenciado, diante de um mundo em conflito. A sua ânsia resulta da
necessidade de encontrar as palavras que desatem o
nó que a angústia do tempo sujo criou.
Os sentimentos incoerentes do indivíduo diante do
impasse que o mundo lhe oferece, fazem com que, ao
mesmo tempo, ele anseie pelas palavras para expressar suas emoções, mas também pareça recusá-las: “Já
não quero palavras / nem delas careço. / Tenho todos
os elementos / ao alcance do braço”2.
A rosa do povo é, ainda, uma obra em que a consciência da participação social do poeta nos destinos
do mundo assume papel acentuado e preponderante
sobre os demais temas reunidos no livro. A obra pode
ser reduzida a dois eixos essenciais: a experimentação e a poesia participante (ou engajada). Alguns poemas denunciam a luta contra o fascismo, a Guerra
Civil Espanhola e a Segunda Guerra Mundial.
A visão social poderia supor o completo abandono dos poemas voltados à temática da memória, o
que não é completamente verdadeiro, ainda que o
poeta esteja mais preso ao seu mundo e ao seu tempo: “Preso à minha classe e a algumas roupas, / vou
de branco pela rua cinzenta”3. Sem dúvida, esse apego ao seu tempo não resulta da busca de uma memória pretérita, mas da necessidade de atualização
temática diante das injustiças do mundo que cerca o
artista: Este é tempo de partido, / tempo de homens
partidos4. Por isso, A rosa do povo é uma obra em
que a consciência da participação social do poeta nos
destinos do mundo assume papel preponderante. O
poeta identifica-se com os outros homens em seus
ideais. As injustiças cometidas em seu país por um
regime ditatorial como o do Estado Novo estão presentes também em outras partes do mundo: a Guerra
Civil Espanhola, a Segunda Guerra Mundial etc.
O seu íntimo também vive o conflito de aceitação
ou recusa do mundo que o cerca: “Devo seguir até o
enjôo? / Posso, sem armas, revoltar-me?”5. Prevalece
a luta entre o Eu e o Mundo diante das feridas desse
tempo. O poeta procura integrar-se aos outros homens,
irmanar-se num ideal de humanitarismo e justiça comuns, mas descobre que “não há mãos dadas no mundo. / Elas agora viajarão sozinhas”6, numa sugestão
oposta ao poema “Mãos dadas”, de Sentimento do
mundo, quando o poeta afirmava: “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”7.
A rosa do povo apresenta 55 poemas, a maioria
breves, o que talvez corresponda ao sentimento de
brevidade da vida diante da Segunda Guerra Mundial e das ditaduras que se instalaram no mundo e no
Brasil. O poeta não consegue se calar diante do medo
que toma conta das pessoas e lança seu grito de dor e
desespero. A rosa do povo é esse grito. As atitudes
mais constantes do livro são a revolta, a angústia, o
medo, a solidariedade, o sofrimento, a esperança e a
desesperança. Sentimentos dúbios e paradoxais que
se misturam em alguns dos principais poemas do livro.
Haroldo de Campos ressaltou com precisão que a
tensão e o risco da poética de Drummond está na dicotomia entre a Poesia Pura e a Poesia Para, a oscilação entre grito e silêncio, entre negação e criação,
abertura e fechamento. O poeta vê-se dividido entre
a palavra pura (poesia metalingüística) e a poesia participante (poesia de enfoque sociopolítico).
AS IMAGENS
Em 24 dos 55 poemas, há imagens aquáticas, o
que pode confirmar a idéia do fluir existencial do eu
lírico.
A imagem da água tem, na verdade, um sentido também ambíguo. Ela não é só destruição. Ela é também fecunda. Esse é o sentido presente nas estórias mitológicas
e folclóricas e restaurado também na poesia. Tal duplicidade
de sentido faz parte do jogo de antíteses presente na obra
deste poeta. Antíteses que podem ser estudadas agora
através de duas outras constantes: o amor e a morte.
Affonso Romano de Sant’Anna. O projeto poético.
A rosa é o principal símbolo polarizador, que representa, inicialmente, a flor do socialismo. Ela simboliza a participação social e política do poeta, a
revolução com esperança de vitória. Mas também,
num sentido mais amplo, a própria poesia (a metalinguagem).
A rosa do povo … é sinônimo de memória poesia. Como
a flor, sua poesia é aquilo que “subitamente vara o bloqueio da terra”, conforme poema “(In)-Memória.” E à semelhança daquela orquídea bloqueada (“Áporo”), que
2
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Idade madura”. Op. cit., p. 212.
ANDRADE, Carlos Drummond de. “A flor e a náusea”. Op. cit., p. 161.
4
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Nosso tempo”, Op. cit., p. 165.
5
ANDRADE, Carlos Drummond de. “A flor e a náusea”, Op. cit., p. 161.
6
ANDRADE, Carlos Drummond de., “Mas viveremos”, Op. cit., p.223.
7
ANDRADE, Carlos Drummond de. “Sentimento do mundo”. Op. cit., p. 132.
3
2
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
3. A ESTRUTURA DE
A ROSA DO POVO
vence o enlance da noite e o peso dos minérios, ela se
desata verde para a luz, brotando dos detritos do tempo.
• A terra natal (“uma província, esta”): são
poemas que focalizam Itabira, Minas Gerais ou o
Brasil. Em A rosa do povo talvez só um poema pudesse ser classificado nesse grupo: “Nova canção do
exílio”. Entretanto, os valores de terra natal podem
ser sutilmente percebidos também no poema “América”.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond
de Andrade: Análise da obra. 3. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1980.
A DESTRUIÇÃO
A partir de A rosa do povo, o sentido da destruição torna-se tão patente que 23 poemas tratam do tema
da morte. A destruição e a morte são anotadas inicialmente no próprio corpo do poeta: “Versos à boca
da noite”, “Idade madura”, “Indicações” e “Últimos
dias”. Depois, a destruição estende-se para os edifícios e as cidades: “Edifício São Borja”, “Carta a Stalingrado” e “Com o russo em Berlim”.
4. ANTOLOGIA COMENTADA
Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
8
são puras, largas, autênticas, indevassáveis .
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
OS PRINCIPAIS TEMAS
Os poemas de A rosa do povo podem ser agrupados
de acordo com os temas centrais que se apresentam em
toda a obra de Drummond. Este agrupamento, entretanto, não exclui a possibilidade de um poema apresentar
vários desses temas centrais ao mesmo tempo. De modo
geral, poderíamos pensar nas seguintes divisões:
• A própria poesia (“poesia contemplada”): são
poemas metalingüísticos, ou seja, que falam da própria poesia, tais como “Consideração do poema”;
“Procura da poesia” e “Carrego comigo”.
• O choque social (“a praça de convites”): poemas participantes ou engajados, como “Morte do leiteiro”; “Carta a Stalingrado”; “Com o russo em
Berlim”; “O medo”.
• A família: poemas de recordação de parentes,
como “Nos áureos tempos”; “Desfile”; “Retrato de
família”, “Como um presente”, e “No país dos Andrades”.
• O indivíduo (“um eu todo retorcido”): poemas centralizados no questionamento do próprio ser,
como “A flor e a náusea”; “Rola mundo”; “Anoitecer” e “Os últimos dias”.
• O conhecimento amoroso (“amar-amaro”):
poemas voltados ao lirismo amoroso, como “Caso do
vestido” e “O mito”.
• Cantar de amigos: poemas que homenageiam
amigos ou ídolos, como “Mário de Andrade desce aos
infernos” e “Canto ao homem do povo Charlie Chaplin”.
• Tentativa de exploração e de interpretação do
estar-no-mundo: fechamento do círculo da poesia
drummondiana, esse tema retoma o primeiro, estabelecendo a presença do existencial e do metafísico:
“Versos à boca da noite”, “Morte no avião” e “Os
últimos dias”.
8
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire. Adeus, Maiakóvski.
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
[…]
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel… Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
ANDRADE, Carlos Drummond. Carlos Drummond
de Andrade – Poesia e prosa. 5. ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1979. p. 158-159.
Comentário: O poema é metalingüístico. O eu
lirico exige liberdade para as palavras (ruptura do
formalismo anterior ao Modernismo). O poema todo
funciona como um caminho e parece conter um movimento contínuo que se assemelha à sua própria construção. Há também função lúdica no poema. A viagem
pelo poema parece mortal, porque ele joga toda a sua
vida nele, mas é a única que realiza o poeta. A segunda estrofe retoma de maneira intertextual o poema
“No meio do caminho” e também homenageia poetas que Drummond admira. São exaltadas as elegias
de Vinícius e a poesia visionária de Murilo Mendes.
Entre os poetas de cunho social destacam-se o chile-
Que não se pode devassar (conhecer por completo), observar; privadas.
3
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações
[e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
12
fundem-se no mesmo impasse .
no Pablo Neruda e o russo Maiakóvski, de quem o eu
lírico se despede. A referência a Apollinaire indica a
vocação para a linguagem revolucionária e moderna
de Drummond. A opção pela poesia social pode ser
percebida nos dois últimos versos.
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não
[contam.
Não faças poesia com o corpo,
9
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso
10
[à efusão lírica.
Tua gota de bile11, tua careta de gozo ou de dor no escuro
são indiferentes.
Nem me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem do equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
[…]
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo
[das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas
[ruas junto à linha de espuma.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
[…]
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da
[tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas
[em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o
[ódio.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 159-161.
Comentário: O poema é metalingüístico. O poeta defende o princípio de que a poesia deva ser impessoal, indiferente às realidades individuais e aos
fatos particulares da vida, porque é universal. A poesia não deve ser feita de maneira ingênua, precipitada. A palavra espelho pode significar o tempo
destruidor e sempre presente (Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação).
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 161-162.
Comentário: O poema, destaque dentro da obra
de Drummond, apresenta o tema do “eu todo retorcido”. Nele o poeta funde o tempo existencial e o tempo social. O eu lírico insere-se nos erros do mundo e
acaba sendo levado à náusea, que é reflexo de sua
indignação, de sua necessidade de expelir o mundo
circundante que o incomoda. O poema antecipa o sentido da destruição, que marcará os demais poemas. A
rosa é a própria poesia que nasce contra a vontade do
tempo de misérias e repressões. Símbolo de esperan-
A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
9
Em oposição a; inimigo de; contrário, hostil.
Manifestação expansiva de sentimentos amistosos, de afeto, de alegria.
11
Substância amarelo-esverdeada secretada pelo fígado.
12
Dificuldade insolúvel; beco sem saída. Qualquer fato ou coisa que dificulta ou impede; embaraço, dúvida, empecilho.
13
Entonação afetada ou marcante que se dá para ressaltar alguma palavra ou expressão; destaque, realce marcante ou ostensivo; relevo.
10
4
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas consideradas sem
[ênfase13.
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
ça na poesia e no socialismo, a rosa também é fruto
da necessidade de resistência do homem diante do
tempo sujo.
fundamentais são o medo do obscuro e a morte: o
corpo não pede sono,/ depois de tanto rodar;/ pede
paz-morte-mergulho/ no poço mais ermo e quedo.
Carrego comigo
O medo
Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho.
Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
[…]
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
Vestimos panos de medo.
De medo, vermelhos rios
vadeamos.
[…]
Ai, fardo sutil
que antes me carregas
do que és carregado,
para onde me levas?
[…]
Adeus: vamos para a frente,
recuando de olhos acesos.
Nossos filhos tão felizes…
Fiéis herdeiros do medo.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
[…]
Não estou vazio,
não estou sozinho,
pois anda comigo
algo indescritível.
[…]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 164-165.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 162-163.
Comentário: O tema principal é o medo em amplo sentido, refletindo também a destruição. O eu lírico dá-nos mostra de que somos povoados pelo medo,
que cristaliza os mais velhos e que torna os mais novos seus herdeiros. Esse medo surge de forma contundente, dados os acontecimentos trágicos que
assolavam o mundo à época da publicação de A rosa
do povo. Acontecimentos graves que, inevitavelmente, davam ao poeta uma profunda sensação de impotência diante dos fatos.
Comentário: O poema reflete uma viagem metafísica em busca do caminho do próprio Ser, atendendo ao impulso vital que leva o indivíduo a buscar a
luz diante da mais profunda treva. A solidão toma
conta do eu lírico, mas é dissipada pelo consolo de
carregar um embrulho e não se sentir sozinho. O
embrulho representa um enigma para o eu lírico.
Anoitecer
É a hora que o sino toca,
mas aqui não há sinos;
há somente buzinas
sirenes roucas, apitos
aflitos, pungentes14, trágicos,
uivando escuro segredo;
desta hora tenho medo.
Nosso tempo
I
Este é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
[…]
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Haverá disso no mundo?
É antes a hora dos corvos,
bicando em mim, meu passado,
meu futuro, meu degredo;
desta hora, sim, tenho medo.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 159-161.
Comentário: O eu lírico anuncia seu medo do
anoitecer, que pode ser visto como metáfora da morte. Há um conflito entre o mundo de paz desejado e o
mundo agitado das cidades. Cristaliza-se a antítese
entre o desejo e a realidade reiterando o desencanto
do eu lírico diante do mundo em destroços. Os temas
14
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Que afeta e/ou impressiona profundamente o ânimo, os sentimentos, as paixões; muito comovente.
5
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
espalham por todo o mundo. Para que o novo seja
inaugurado, torna-se necessário destruir o espaço dos
valores familiares e materiais que prendem os homens
a uma inconsciência política. O poeta está consciente
das limitações impostas pelo mundo capitalista à existência, daí a atitude de revolta e de repúdio ao mundo, bem como a necessidade de esmagá-lo. A
oralidade, as metáforas vigorosas, as metonímias e
os versos nominais acentuam a ruptura com a linguagem elevada e a busca do coloquial e prosaico.
II
Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Passagem do ano
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
Vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros virão
[…]
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa15, na praia, as palavras.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
[…]
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo16 da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
a pulsação, o ofego17,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
[…]
Todos os sentidos alerta funcionam
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
18
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia .
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 171-172.
[…]
Comentário: O poema mostra uma abertura dos
sentidos para o prosseguir da existência. A esperança
parece fluir, ainda que o eu lírico marque o contraponto por meio da presença da morte quando fala em
vida. O poema é uma antítese entre vida e morte. O
ano-novo representa vida.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta,
um verme.
Passagem da noite
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 165-170.
É noite. Sinto que é noite
não porque a sombra descesse
(bem me importa a face negra)
mas porque dentro de mim,
no fundo de mim, o grito
se calou, fez-se desânimo.
[…]
Comentário: O poema é dividido em oito partes,
que formam um mosaico de fluxo e destruição, no
qual há uma tentativa de reconstituição do mundo
fragmentário que cerca o poeta. Os versos de abertura indicam a estrutura política imposta por Getúlio
Vargas (Este é tempo de partido) e a falta de união
entre os homens (homens partidos, separados). A segunda parte sugere metonimicamente o afastamento,
a divisão, a alienação e a falta de solidariedade ente
os homens. O tempo é de guerra e de ditaduras que se
[…]
Chupar o gosto do dia!
Clara manhã, obrigado,
o essencial é viver!
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 172-173.
15
Dispersa, espalha.
Diz-se de ou qualquer substância ou produto que pode substituir outro por apresentar aprox. as mesmas propriedades; substituto
17
Respiração acelerada e audível; arfagem, arquejo.
18
Feita às ocultas; furtiva, dissimulada, clandestina.
16
6
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
rolam os deuses, os países,
desintegra-te, explode, acaba!.
Comentário: O poema funde noite e dia. A palavra noite representa semanticamente morte, enquanto dia indica vida. O claro e o escuro são empregados
como representações do mesmo fluxo existencial.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 176-177.
Comentário: O poema mostra que o eu lírico penetra de maneira mais aguda nos fatos do mundo, o
que leva a uma consciência dolorosa da realidade e
ao conhecimento da náusea. Está presente o símbolo
de destruição (desintegra-te, explode, acaba!). O enigma do mundo continua indecifrável para o poeta.
Uma hora e mais outra
Há uma hora triste
que tu não conheces.
Não é a da tarde
quando se diria
[…]
pois a hora mais bela
surge da mais triste.
Áporo19
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 173-174.
Comentário: O poema apresenta o tema da hora
da morte, colocando-a como anterior a um momento
de beleza dado, justamente, por uma idéia de transcendência (dois últimos versos). No poema, a hora da morte
pode, talvez, ser tomada como a hora da libertação do
sentimento doloroso em relação ao mundo que marca,
de modo geral, os poemas do livro.
Que fazer, exausto,
e país bloqueado,
enlace20 de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto21 se desata:
Nos áureos tempos
Nos áureos tempos
a rua era tanta.
O lado direito
retinha os jardins.
[…]
Deixará passar
a matéria fosca,
mesmo assim prendendo-a
nos áureos tempos.
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 177.
Comentário: O eu lírico faz-se de inseto para
sugerir a falta de saídas, o labirinto do mundo. Transforma-se em orquídea, mas não decifra o enigma ao
seu redor. A flor e o inseto representam a tentativa de
romper o enigma metafísico e decifrar o problema de
solução difícil. A orquídea vence o enlace da noite e
o peso dos minérios e brota entre os detritos de um
tempo em fragmentação; enfim liberta-se do bloqueio.
O poema é um soneto em versos redondilhos menores (5 sílabas). Está classificado na poesia metafísica
de Drummond. O poema é, também, metalingüístico. Nesse sentido, a orquídea pode ser entendida como
a própria poesia, que nasce, antieuclidiana, para afirmar-se bela, frágil e, paradoxalmente, resistente; ou,
ainda, meio de resistência diante do desencanto do
mundo, como a flor, de “A flor e a náusea”.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 174-175.
Comentário: O poema focaliza as recordações da
própria infância. O eu lírico revela a descoberta dos
primeiros mistérios e revê com saudade o passado; o
tempo da memória (e sua atualização) é importante e
está presente em outros poemas.
Rola mundo
Vi moças gritando
numa tempestade.
O que elas diziam
o vento largava,
logo devolvia.
[…]
Pois deixa o mundo existir!
Irredutível ao canto,
superior à poesia,
rola, mundo, rola, mundo,
rola o drama, rola o corpo,
rola o milhão de palavras
na extrema velocidade,
rola-me, rola meu peito,
O poeta escolhe seu túmulo
Onde foi Tróia
onde foi Helena,
onde a erva cresce,
onde te despi,
onde pastam coelhos
19
Problema cuja solução é considerada impossível; situação em que existe um problema insolúvel; ausência de saída.
Ato ou efeito de enlaçar; enlaçadura, enlaçamento.
21
Com presteza, rapidamente.
20
7
a roer o tempo,
e um rio molha
roupas largadas,
Comentário: O poema indica o domínio ou resgate do passado sobre o presente provocado pela presença absurda de um boi dentro do mundo urbano, o
que sugere evasão, fuga da realidade23. A comparação do corpo do animal com a máquina metaforiza o
mundo urbano mecanizado que cerca o poeta24.
onde houve, não
há mais agora
o ramo inclinado,
eu me sinto bem
e aí me sepulto
para sempre e um dia.
Nova canção do exílio
Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 178.
Comentário: O poeta escolhe, para sepultar-se,
um local bucólico (natural), onde tudo e nada, passado e presente se integram metafisicamente.
Vida menor
A fuga do real
22
ainda mais longe a fuga do feérico
mais longe de tudo, a fuga de si mesmo,
a fuga da fuga, o exílio
sem água e palavra, a perda
voluntária de amor e memória
o eco
[…]
Não o morto nem o eterno o divino,
apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente
e solitário vivo.
Isso eu procuro.
Só, na noite,
seria feliz:
um sabiá,
na palmeira, longe.
Onde é tudo belo
e fantástico,
só, na noite,
seria feliz,
(Um sabiá, na palmeira, longe.)
Ainda um grito de vida e
voltar
para onde é tudo belo
e fantástico:
a palmeira, o sabiá,
o longe.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 178-179.
Comentário: O poema, como alguns dos anteriores,
indica a ausência de limites e divisas para o tempo. Procura mostrar a resolução do conflito entre vida e morte
por meio de uma forma que supere o antes e o depois.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 180.
Episódio
Comentário: O poema é uma paráfrase da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias: denota uma visão nacionalista que respeita o conteúdo do texto
original, porem é marcado por uma contundente nostalgia, acentuada pelos versos curtos, livres e brancos que se contrapõem à forma fixa do poema de
Gonçalves Dias. Isso acentua as idéias de solidão e
desencanto presentes, também, ao longo de todo o
livro.
Manhã cedo passa
à minha porta um boi.
De onde vem ele
se não há fazendas?
Vem cheirando o tempo
entre noite e rosa.
Pára à minha porta
sua lenta máquina.
Alheio à polícia
anterior ao tráfego
ó boi, me conquistas
para outro, teu reino.
Movimento da espada
Estamos quites, irmão vingador.
Desceu a espada
e cortou o braço.
Cá está ele, molhado em rubro.
Dói o ombro, mas sobre o ombro
tua justiça resplandece.
Seguro teus chifres:
eis-me transportado
sonho e compromisso
ao País Profundo.
[…]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 180.
22
Pertencente ao mundo da fantasia; mágico.
Ao mesmo tempo suscita, mais uma vez, a memória: a fazenda do pai de Drummond, onde o poeta passou parte da infância.
24
A figura do boi surge em mudos poemas.
23
8
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O céu cintila
sobre flores úmidas.
Vozes na mata
e o maior amor.
Sobre minha mesa, sobre minha cova, como brilha o sol!
Obrigado, irmão, pelo sol que me deste,
na aparência roubando-o.
Já não posso classificar os bens preciosos.
Tudo é precioso…
e tranqüilo
como olhos guardados nas pálpebras.
fome de gaia-ciência
São Borja
[…]
A vida povoada
a morte sem aproveitadores
a eternidade afinal expelida
estamos todos presentes
felizes calados
completos
Santo São Borja.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 181-182.
Comentário: O poema sugere o sentimento de
perda e a descoberta de que as coisas simples e naturais são preciosas. Mais uma vez, parece haver uma
tensão entre a vida que se esvai e a morte. Tensão esta
mediada por um tom agudamente melancólico e, por
vezes, irônico: “Obrigado, irmão, pelo sol que me
deste, na aparência reubando-o”.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 184-185.
Comentário: O edifício é uma síntese do mundo,
uma edificação por onde os homens passam e onde
se amontoam. É foco de corrosão, uma estrutura em
decomposição. O poema acumula imagens surrealistas, marcadas pela presença da água.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Assalto
No quarto de hotel
a mala se abre: o tempo
dá-se em fragmentos.
O mito
Sequer conheço Fulana,
vejo Fulana tão curto,
Fulana jamais me vê,
mas como eu amo Fulana.
[…]
jogo tudo fora.
A mala se fecha: o tempo
se retrai, ó concha.
[…]
Já não sofro, já não brilhas,
mas somos a mesma coisa.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 182-183.
(Uma coisa tão diversa
da que pensávamos que fôssemos).
Comentário: Está presente o tema da viagem no
poema. O eu lírico abre a mala/memória que reúne os
objetos que pretende jogar fora. O mundo é representado de forma realista por fragmentos.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 185-187.
Comentário: A mulher amada representa um enigma. Sua idealização demonstra a influência barroca,
que é um substrato cultural típico do poeta mineiro.
O mito é desfeito no final do poema, quando o eu
lírico iguala-se à mulher amada (somos a mesma coisa). A igualdade, entretanto, resulta da diversidade
em relação ao conhecimento anterior de si mesmo. O
eu lírico percebe que é diferente do que acreditava
ser. A ironia perpassa todo o poema e o tema do desencontro amoroso está presente.
Anúncio da rosa
[…]
Autor da rosa, não me revelo, sou eu, quem sou?
[…]
Ó fim do parnasiano, começo da era difícil, a burguesia
[apodrece.
Aproveitem. A última
rosa desfolha-se.
Resíduo
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 1831-184.
De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco26.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.
Comentário: O poema apresenta o tema da destruição. A rosa representa o elemento duradouro e
identifica-se com o próprio poema. O poeta é seu autor
e, por isso, importante elemento de resistência contra
a destruição, mesmo que esta resistência seja permeada por uma sensação de impotência.
[…]
Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
— vazio — de cigarros, ficou um pouco.
Edifício São Borja
Cólica premonitória25
caminho do suicídio
25
26
Que é sintoma de (algo); sintomático.
Aversão natural por tudo o que seja considerado hediondo ou repugnante; nojo, enjôo, náusea.
9
[…]
tornou ao lar, está sempre prestes a chegar (presente)
ou sair (passado). O poema fecha-se em círculo no
mesmo presente dramático em que foi iniciado. A
estrutura do poema é composta em dísticos (estrofes
de dois versos) com versos redondilhos maiores (7
sílabas) brancos (sem rimas).
Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures27?
na consoante?
no poço?
Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.
Mas há também as presas,
Dessa matéria pura
Que não sei figurar.
[…]
[…]
E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.
[…]
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 188-190.
Comentário: Sempre fica um pouco na memória
quando são arrolados os detritos e sobras da vida. No
final, o que resta é um rato-tempo, que rói a si mesmo.
A cola se dissolve
e todo seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.
Caso do vestido
Nossa mãe, o que é aquele
vestido naquele prego?
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 192-193.
Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.
Comentário: O elefante, que pode ser metáfora
da rotina do eu lírico, ou até dele mesmo, anda durante o dia, cruza o mundo de situações patéticas e
banais e volta já tarde da noite. O poeta reconstruirá
o elefante para o dia seguinte (“amanhã recomeço”).
O poema mostra o ciclo de reconstrução da vida: o
recomeço no dia seguinte, sempre tão parecido com
o anterior, e a busca solitária de amigos criam as ilusões utópicas de um mundo melhor, mais poético.
[….]
Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.
[….]
Vosso pai sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.
Morte do leiteiro
[….]
Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 190-192.
Comentário: O poema apresenta uma textura dramática bem acabada e com dois tempos: tem início
no presente, mas revolve o passado por meio da lembrança do vestido. Há, portanto, contraponto entre
presente (momento da conversa entre mãe e filhas) e
passado (momento em que o marido abandonou a
mulher por causa de outra). A figura do pai, que re27
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas,
e seus sapatos de borracha
Em alguma parte, em algum lugar.
10
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
O elefante
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.
É meu último dia: um dia
cortado de nenhum pressentimento.
Tudo funciona como sempre.
Saio para a rua. Vou morrer.
Não morrerei agora. Um dia
inteiro se desata à minha frente.
Um dia como é longo. Quantos passos
na rua que atravesso. E quantas coisas
que há no tempo, acumuladas. Sem reparar,
sigo meu caminho. Muitas faces
comprimem-se no caderno de notas.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
[…]
Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.
[…]
Ó brancura, serenidade sob a violência
da morte sem aviso prévio,
cautelosa, não obstante irreprimível aproximação de um
[perigo atmosférico,
golpe vibrado no ar, lâmina de vento
no pescoço, raio
choque estrondo fulguração
rolamos pulverizados
caio verticalmente e me transformo em notícia.
Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom;
não sei,
é tarde para saber.
[…]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 201-204.
Comentário: O poema retorna aos temas da morte e da destruição (presentes em vários outros poemas) como um processo diário de desgaste. A
consciência trágica da morte leva o eu lírico a preparar-se para ela desde os primeiros versos. A presença
do fantástico pode ser observada pela posição do eu
lírico-narrador no final do poema, que narra os fatos
não mais como um vivo, mas como um morto. Como
observa Francisco Achcar, “o poema é contado não
por um narrador defunto, mas por um defunto narrador, para fazer uso do jogo de palavras machadiano”.
Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue… não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.
Consolo na praia
Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 193-195.
O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.
Comentário: O poema possui caráter narrativo e
cujo clímax será alcançado com a morte do leiteiro.
O tema mais importante está centrado na morte. Apesar da forma narrativa, o final é marcado pelo lirismo
que contagia o leitor: amorosamente se enlaçam, /
formando um terceiro tom / a que chamamos aurora.
À maneira de uma narrativa policial, mas sem se esquecer da visão poética e da linguagem figurada, conta
a morte do leiteiro, baleado por um morador assustado com os ladrões que infestavam o bairro. O tema
do medo é retomado mais uma vez para tornar-se, ele
próprio, o medo, o agressor.
Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.
Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?
Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.
Morte no avião
Acordo para a morte.
Barbeio-me, visto-me, calço-me.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 205.
11
colhendo o mito”, além do próprio título do poema: “Interpretação de dezembro” que sugere o mês do natal.
Comentário: O poema mostra a presença da destruição, do humor-negro e da ironia corrosiva de
Drummond, que apresenta a dissipação do mundo e
a sensação do irrecuperável, em que o humor não é
solução. A praia torna-se o espaço para a constatação de que tudo se perdeu, mas, ao mesmo tempo, o
local no qual se procura consolo e compreensão para
a precariedade da condição humana e para o estado
de abandono do indivíduo diante do mundo. O consolo nada mais é do que uma mera constatação das
coisas imateriais que o interlocutor perdeu: juventude, amor, amizade e justiça. As perdas no mundo
material podem ser supridas pela expectativa de que
algo ainda resta ao interlocutor. O verso final é ambíguo: não indica consolo, mas esquecimento, anulação, evasão ou mesmo morte. A sensação de
inutilidade e vazio é sugerida pelo vocábulo nu, que
indica o despojamento absoluto.
Como um presente
Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.
Escusa de levar-te esta gravata.
Já não tens roupas, nem precisas.
Numa toalha no espaço há o jantar,
mas teu jantar é silêncio, tua fome não come.
[…]
mas não descubro teu segredo.
É talvez um erro amarmos assim nossos parentes.
A identidade do sangue age como cadeia,
fora melhor rompê-la. Procurar meus parentes na Ásia,
onde o pão seja outro e não haja bens de família a
[preservar.
Por que ficar neste município, neste sobrenome?
Taras, doenças, dívidas; mal se respira no sótão.
[…]
Retrato de família
Este retrato de família
está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
quanto dinheiro ele ganhou.
[…]
E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.
Realmente não o tinhas, me enganavas?
Então aquele maravilhoso poder de abrir garrafas sem
[saca-rolha,
de desatar nós, atravessar rios a cavalo, assistir, sem
[chorar, morte de filho,
expulsar assombrações apenas com teu passo duro,
o gado que sumia e voltava, embora a peste varresse
[as fazendas,
o domínio total sobre irmãos, tios, primos, camaradas,
[caixeiros, fiscais do governo,
[beatas, padres, médicos, mendigos, loucos mansos,
[loucos agitados, animais, coisas:
então não era segredo?
os parentes mortos e vivos.
Já não distingo os que se foram
dos que restaram. Percebo apenas
a estranha idéia de família
viajando através da carne.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 205-207.
Comentário: O tema da família é recorrente e
neste poema pode-se observar a intenção do poeta de
trazer de volta a memória dos parentes mortos e esquecidos. Isso suprime a relação tempo e espaço. A
força hereditária é transmitida ao eu lírico pela fotografia, porem esta, assim como as pessoas e o espaço, mostra-se desgastada, modificada.
[…]
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.
Interpretação de dezembro
É talvez o menino
suspenso na memória.
Duas velas acesas
no fundo do quarto.
E o rosto judaico
na estampa, talvez.
[…]
Guardavas talvez o amor
em tripla cerca de espinhos.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 208-210.
E o menino em nós
ou fora de nós
recolhendo o mito.
Comentário: O poeta aproveita o dia do aniversário do pai já falecido para conversar com ele. A evocação da figura paterna traz consigo as desavenças
não resolvidas em vida entre pai e filho. O pai é a
representação da velha sociedade patriarcal e de seus
valores, o chefe que exerce domínio completo sobre
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 207.
Comentário: O poema destaca a temática da viagem à própria infância, associando-a, ao que parece, ao
mito do Menino Jesus: “rosto judaico na estampa / re-
12
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Mas teu segredo não descubro.
Não está nos papéis
do cofre. Nem nas casas que habitaste.
No casarão azul
vejo a fieira de quartos sem chave, ouço teu passo
[…]
empreendida pela experiência. O eu lírico aprende a
amar o que perdeu. O envelhecimento serve à reflexão sobre a própria existência.
tudo e todos. Ele é visto, inicialmente, sob o prisma
do conflito com o filho e depois como herói fantástico, que tudo domina a partir da eternidade conquistada pela morte. O início marca a denúncia do poder de
mando, que se ameniza com o transcorrer do poema.
No país dos Andrades
No país dos Andrades, onde o chão
é forrado pelo cobertor vermelho de meu pai,
indago um objeto desaparecido há trinta anos,
que não sei se furtaram, mas só acho formigas.
Rua da madrugada
A chuva pingando
desenterrou meu pai.
Nunca o imaginara
assim sepultado
ao peso dos bondes
em rua de asfalto,
[…]
[…]
Adeus, vermelho
(viajarei) cobertor de meu pai.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 216.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 211.
Comentário: O poema tematiza o conflito entre a
simplicidade de interesses do poeta e o poder econômico da família. O poeta mostra-se merecedor do título de “fazendeiro do ar”, já que não deseja posses
ou bens materiais. O poema insere-se na temática das
viagens em família e sugere a presença de resíduos
do poder patriarcal que ficaram na memória do artista. Os versos finais mostram que “cristaliza-se a relação tensa entre indivíduo e história … e o vermelho
não apenas indicia a cor do objeto que houve mas
apresenta o símbolo do que, para o poeta de então,
representava a possibilidade de redenção social”, con28
forme observa Luiz Costa Lima .
Comentário: O poema é mais uma recordação
da figura paterna e da necessidade de amar e aceitar o pai como ele era. A dificuldade de relacionamento entre Drummond e o pai pode, vez ou outra,
ser observada na obra do poeta, mas a partir de A
rosa do povo percebe-se a necessidade de compreensão do filho em relação ao pai. Em Claro enigma essa reconciliação será mais evidente no poema
“A mesa”.
Idade madura
As lições da infância
desaprendidas na idade madura.
Já não quero palavras
nem delas careço.
Tenho todos os elementos
ao alcance do braço.
[…]
América
Sou apenas um homem.
Um homem pequenino à beira de um rio.
Vejo as águas que passam e não as compreendo.
Sei apenas que é noite porque me chamam de casa.
Vi que amanheceu porque os galos cantaram.
Como poderia compreender-te, América?
É muito difícil.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 212.
Comentário: O tema central do poema é o conhecimento do mundo a partir da experiência da maturidade. O eu lírico sente-se gratificado de conhecer as
regras do jogo que controla o mundo. Está presente a
idéia de viagem, mas em termos de memória, de recordação.
[…]
Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.
Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que
[me criou.
Passa também uma escola — o mapa —, o mundo de
[todas as cores.
Sei que há países roxos, ilhas brancas, promontórios29
[azuis.
A terra é mais colorida do que redonda, os nomes
[gravam-se
em amarelo, em vermelho, em preto, no fundo cinza da
[infância.
América, muitas vezes viajei nas tuas tintas.
Sempre me perdia, não era fácil voltar.
O navio estava na sala.
Como rodava!
Versos à boca da noite
Sinto que o tempo sobre mim abate
sua mão pesada. Rugas, dentes, calva…
Uma aceitação maior de tudo,
e o medo de novas descobertas.
[…]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 214.
Comentário: Tema da dissipação da vida. No poema há identidade semântica entre boca / noite / fim.
A aparente destruição do corpo pela velhice conduz
à construção existencial do Ser por meio da viagem
28
29
LIMA, Luiz Costa. “Drummond: as metamorfoses da corrosão”. A aguarrás do tempo. RJ: Rocco, 1989, p. 296.
Cabos formados por rochas ou penhascos altos.
13
alongai meu sentimento.
O que eu escrevi não conta.
O que desejei é tudo.
Retomai minhas palavras,
meus bens, minha inquietação,
fazei o canto ardoroso,
cheio de antigo mistério
mas límpido e resplendente33.
[…]
território de homens livres
que será nosso país
e será pátria de todos.
[…]
Irmãos, cantai esse mundo
que não verei, mas virá
um dia, dentro em mil anos,
talvez mais… não tenho pressa.
Um mundo enfim ordenado,
uma pátria sem fronteiras,
sem leis e regulamentos,
uma terra sem bandeiras,
[…]
Uma cidade sem portas,
de casas sem armadilha,
um país de riso e glória
como nunca houve nenhum.
Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.
Esta solidão da América… Ermo30 e cidade grande se
[espreitando.
Vozes do tempo colonial irrompem nas modernas canções,
E o barranqueiro do Rio São Francisco
— esse homem silencioso, na última luz da tarde,
[…]
Portanto, é possível distribuir minha solidão, torná-la
[meio de conhecimento.
Portanto, solidão é palavra de amor.
Não é mais um crime, um vício, o desencanto das coisas.
Ela fixa no tempo a memória
ou o pressentimento ou a ânsia
de outros homens que a pé, a cavalo, de avião ou barco
[percorrem seus caminhos, América.
Esses homens estão silenciosos mas sorriem de tanto
[sofrimento dominado.
Sou apenas o sorriso
na face de um homem calado.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 217-220.
Comentário: O poema procura estabelecer uma
ligação entre o mundo exterior (América) e o mundo
interior do poeta (Itabira). Mesmo assim, pode se dizer que o poema é construído do particular ao universal, cria uma síntese espácio-temporal, espécie de
metonímia, e faz alusões às várias culturas que cortam o trajeto da América. Em “América” a província
é lembrada diante do espaço imensurável representado pelo mundo: “Uma rua começa em Itabira, que
vai dar em qualquer ponto da terra”. Sem dúvida, o
mundo está dentro da pequena Itabira, porque é sempre o ponto de partida para o eu lírico, porque ambos,
a cidade do poeta e o mundo, são geografias interiores, que não se esgotam apenas na existência dos
mapas. A província e o poeta são uma unidade indivisível, mesmo diante da grandeza do mundo, que parece não passar de mais uma rua de ferro em Itabira.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 221.
Comentário: Das visões e experiências do poema “América” nasce uma cidade prevista, tirada do
passado e erguida no futuro. O eu lírico procura aconselhar a outros poetas que utilizem a arte na construção de um mundo melhor, ordenado e livre. O poeta
sonha com um mundo em que o homem se livre das
convenções sociais e preserve sua individualidade.
Carta a Stalingrado
Stalingrado…
Depois de Madri e de Londres, ainda há grandes cidades!
O mundo não acabou, pois que entre as ruínas
outros homens surgem, a face negra de pó e de pólvora,
e o hálito selvagem da liberdade
dilata os seus peitos, Stalingrado,
seus peitos que estalam e caem,
enquanto outros, vingadores, se elevam.
A poesia fugiu dos livros, agora está nos jornais.
Os telegramas de Moscou repetem Homero.34
Mas Homero é velho. Os telegramas cantam um mundo
[novo
que nós, na escuridão, ignorávamos.
[…]
Cidade prevista
Guardei-me para a epopéia
que jamais escreverei.
Poetas de Minas Gerais
31
e bardos do Alto-Araguaia,
vagos cantores tupis,
recolhei meu pobre acervo32,
30
Diz-se de ou lugar desabitado, deserto.
Poetas.
32
Conjunto de bens que integram o patrimônio de um indivíduo.
33
Resplandecente, brilhante.
34
Referência ao poeta Homero, rapsodo grego que teria nascido por volta de 850 a. C., e a quem é atribuída a autoria das epopéias Ilíada
e da Odisséia.
31
14
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer
[ponto da terra.
Nessa rua passam chineses, índios, negros, mexicanos,
[turcos, uruguaios.
[…]
A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços
[sangrentos,
apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,
caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos
[soltas e relógios partidos,
sinto-te como uma criatura humana, e que és tu,
[Stalingrado, senão isto?
Uma criatura que não quer morrer e combate,
contra o céu, a água, o metal, a criatura combate,
contra milhões de braços e engenhos mecânicos a
[criatura combate,
contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura
[combate,
e vence.
As cidades podem vencer, Stalingrado!
Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas
35
[uma fumaça subindo do Volga .
Penso no colar de cidades, que se amarão e se defenderão
[contra tudo.
Em teu chão calcinado onde apodrecem cadáveres,
a grande Cidade de amanhã erguerá a sua Ordem.
Comentário: O poema “Telegrama de Moscou”
dá continuidade à “Carta a Stalingrado”. O eu lírico
sugere a reconstrução da cidade como resultado da
solidariedade entre os homens. Os versos finais imortalizam a cidade e sugerem uma visão otimista que
não permitirá que se esqueçam as atrocidades cometidas pelos nazistas.
Mas viveremos
Já não há mãos dadas no mundo
Elas agora viajarão sozinhas
Sem o fogo dos velhos contatos
Que ardia por dentro e dava coragem.
[…]
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 223.
Comentário: Retoma-se aqui o tema da viagem
pelo mundo em busca do aprendizado e da experiência. Predomina a idéia de solidão e descrença na solidariedade humana (“Já não há mãos dadas no
mundo”). O poema sugere uma intertextualidade com
“Mãos dadas”, de Sentimento do mundo, mas às avessas. O eu lírico já não consegue unir-se aos outros
homens e ao mundo (“Já não sei vossos nomes nem
vos olho / na boca, onde a palavra se calou.”). O pessimismo, acentuado pela trágica Segunda Guerra
Mundial, permite que apenas a sobrevivência seja o
resultado positivo diante da indiferença do eu lírico
(“Pouco importa que dedos se desliguem”).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 221-223.
Comentário: O poema é uma exaltação de Stalingrado, que é vista como “símbolo de êxito do homem dentro da guerra que lhe movem os outros
homens e o próprio tempo”. A cidade transcende o
mapa e torna-se um interlocutor humanizado. O texto denota a participação social do poeta. Em “Carta a
Stalingrado”, a cidade representa um hino de resistência do mundo contra a violência e destruição da
guerra e serve de testemunho de que “o mundo não
acabou”. A sobrevivência da cidade diante do ataque
nazista foi exemplo da resistência dos russos diante
de seus inimigos e o poder de união das massas para
defender a cidade e o mundo. O eu lírico coloca-se
dentro da cidade em lugar do poeta que nunca a conheceu: “caminho solitariamente em tuas ruas onde
há mãos soltas e relógios partidos / sinto-te como uma
criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?”
Com o russo em Berlim
Esperei (tanta espera), mas agora,
nem cansaço nem dor. Estou tranqüilo.
Um dia chegarei, ponta de lança,
com o russo em Berlim.
O tempo que esperei não foi em vão.
Na rua, no telhado. Espera em casa.
No curral; na oficina: um dia entrar
com o russo em Berlim.
Telegrama de Moscou
Pedra por pedra reconstruiremos a cidade.
Casa e mais casa se cobrirá o chão.
Rua e mais rua o trânsito ressurgirá.
Começaremos pela estação da estrada de ferro
e pela usina de energia elétrica.
Outros homens, em outras casas,
continuarão a mesma certeza.
Sobraram apenas algumas árvores
com cicatrizes, como soldados.
A neve baixou, cobrindo as feridas.
O vento varreu a dura lembrança.
Mas o assombro, a fábula
gravam no ar o fantasma da antiga cidade
que penetrará o corpo da nova.
Aqui se chamava
e se chamará sempre Stalingrado.
— Stalingrado: o tempo responde.
Minha boca fechada se crispava.
Ai tempo de ódio e mãos descompassadas.
Como lutar, sem armas, penetrando
com o russo em Berlim?
[…]
Essa cidade oculta em mil cidades,
trabalhadores do mundo, reuni-vos
para esmagá-la, vós que penetrais
com o russo em Berlim.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 228-230.
Comentário: O poeta sugere uma visão triste da
cidade de Berlim, símbolo do mal e da destruição. A
cidade simboliza a necessidade de vitória no presen-
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 223.
35
O rio Volga é o mais extenso da Europa, nasce no norte da Rússia e desemboca no mar Cáspio.
15
contra a morte, tenta atrasar sua chegada, aproveitando-se de qualquer chance para enganá-la. O poema
apresenta a forma de elegia36. A processo de destruição do indivíduo é tratado com intimidade: o poeta
tem consciência de que a batalha terá, como final, a
vitória da morte, mas procura adiar esse resultado.
te. O poeta conclama os trabalhadores do mundo para
a destruição do que Berlim simboliza, numa clara alusão ao Manifesto comunista, de Max e Engels (“Trabalhadores do mundo: uni-vos”).
Os últimos dias
Que a terra há de comer,
Mas não coma já.
Mário de Andrade desce aos infernos
Daqui a vinte anos farei teu poema
e te cantarei com tal suspiro
que as flores pasmarão, e as abelhas,
confundidas, esvairão seu mel.
Porém, a urgência da dor o impele à escrita:
Daqui a vinte anos: poderei
tanto esperar o preço da poesia?
É preciso tirar da boca urgente
o canto rápido, ziguezagueante, rouco,
feita da impureza do minuto
e de vozes em febre, que golpeiam
esta viola desatinada
no chão, no chão.
E veja alguns sítios
antigos, outros inéditos.
Sinta frio, calor, cansaço:
para um momento; continue.
Descubra em seu movimento
forças não sabidas, contatos.
O prazer de estender-se; o de
enrolar-se, ficar inerte.
IV
[…]
A rosa do povo despetala-se,37
ou ainda conserva o pudor da alva?
É um anúncio, um chamado, uma esperança embora
[frágil, pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
[…]
E cada instante é diferente, e cada
homem é diferente, e somos todos iguais.
No mesmo ventre o escuro inicial, na mesma terra
o silêncio global, mas não seja logo.
[…]
Súbito a barba deixou de crescer. Telegramas
irrompem. Telefones
retinem. Silêncio
em Lopes Chaves.
O tempo de despedir-me e contar
que não espero outra luz além da que nos envolveu
dia após dia, noite em seguida a noite, fraco pavio,
pequena ampola fulgurante, facho lanterna, faísca,
estrelas reunidas, fogo na mata, sol no mar,
mas que essa luz basta, a vida é bastante, que o tempo
é boa medida, irmãos, vivamos o tempo.
[…]
Mas tua sombra robusta desprende-se e avança.
Desce o rio, penetra os túneis seculares
onde o amigo marcou seus traços funerários,
desliza na água salobra, e ficam tuas palavras
(superamos a morte, e a palma triunfa)
38
tuas palavras carbúnculo e carinhosos diamantes.
A doença não me intimide, que ela não possa
chegar até aquele ponto do homem onde tudo se explica.
Uma parte de mim sofre, outra pede amor,
outra viaja, outra discute, uma última trabalha,
sou todas as comunicações, como posso ser triste?
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 237-240.
Comentário: O poema resulta da comoção de
Drummond diante da morte prematura de Mário de
Andrade, amigo com quem se correspondia havia muitos anos e que foi seu mestre desde os primeiros contatos com o Modernismo. Ainda que anuncie que só
fará o poema daí a vinte anos, Drummond realiza essa
elegia inconformada com o destino trágico do amigo.
A casa do grande poeta morto (na rua Lopes Chaves,
o
n 546) torna-se um navio que recolhe os amigos
mortos de vários estados (“navio de São Paulo no céu
nacional”). Ligado ao tema do “Cantar de amigos”, o
[…]
E a matéria se veja acabar: adeus composição
que um dia se chamou Carlos Drummond de Andrade.
Adeus, minha presença, meu olhar e minhas veias grossas,
meus sulcos no travesseiro, minha sombra no muro,
sinal meu no rosto, olhos míopes, objetos de uso pessoal,
[idéia de justiça, revolta e sono, adeus,
vida aos outros legada.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 234-237.
Comentário: O poema estabelece um jogo com
os elementos negativos da vida. O próprio poeta luta
36
Poema lírico de tom geralmente lamentoso e triste.
Observe-se a intratextualidade no diálogo com a própria obra do autor.
38
Tipo de minério muito parecido com o rubi.
37
16
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
I
Ainda se mova,
para o ofício e a posse.
IV
poema pode ser considerado uma elegia por causa de
seu conteúdo fúnebre, acumulando imagens marinhas
na tentativa de sugerir a ação do tempo.
[…]
Ser tão sozinho em meio a tantos ombros,
andar aos mil num corpo só, franzino44,
e ter braços enormes sobre as casas,
ter um pé em Guerrero e outro no Texas,
falar assim a chinês a maranhense,
a russo, a negro: ser um só, de todos,
sem palavra, sem filtro,
sem opala:
há uma cidade em ti, que não sabemos.
Canto ao homem do povo Charlie Chaplin
Era preciso que um poeta brasileiro,
39
não dos maiores, porém dos mais expostos à galhofa ,
girando um pouco em tua atmosfera ou nela aspirando
[a viver
como na poética e essencial atmosfera dos sonhos
40
[lúcidos ,
era preciso que esse pequeno cantor teimoso,
de ritmos elementares, vindo da cidadezinha do interior
onde nem sempre se usa gravatas mas todos são
[extremamente polidos
e a opressão é detestada, se bem que o heroísmo se
[banhe em ironia,
VI
[…]
45
E nada dizias. E um bolo, um engulho
formando-se. E as palavras subindo.
Ó palavras desmoralizadas, entretanto salvas, ditas de novo.
Poder da voz humana inventando novos vocábulos e
[dando sopros exaustos.
Dignidade da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
46
crispação do ser humano, árvore irritada,
contra a miséria e a fúria dos ditadores,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
era preciso que um antigo rapaz de vinte anos,
41
preso à tua pantomima por filamentos de ternura e
[riso dispersos no tempo,
viesse recompô-los e, homem maduro, te visitasse
para dizer-te algumas coisas, sobcolor de poema.
ó Carlito, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode
caminham numa estrada de pó e de esperança.
Para dizer-te como os brasileiros te amam
e que nisso, como em tudo mais, nossa gente se parece
com qualquer gente do mundo — inclusive os peque
[nos judeus
de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos
[melancólicos,
ANDRADE, Carlos Drummond de. Op. cit., p. 240-246.
Comentário: O poema é uma ode, uma exaltação
eufórica e entusiasta ao grande ator Charlie Chaplin,
representado na figura de Carlitos, que representa o
gauche por excelência, ou seja, o errado, o torto, o
esquerdo, o estranho, aquele que obedece aos seus
impulsos e desejos, como o Carlos do “Poema de sete
47
faces ”. Drummond projeta em Carlitos a sua própria figura, aquele que é contrário ou avesso às convenções da sociedade. A aproximação entre Carlos e
Carlitos fica evidente até mesmo pelos nomes, sendo
Carlitos um diminutivo de Carlos. Assim, Carlitos
representa uma espécie de alter-ego do próprio poeta, que também se mostra como um errante, o sem
destino por natureza, o que trocou “gado, terras e
ouro” pela poesia: uma arte nem sempre vista com
bons olhos pelas pessoas. Fundem-se nessa semelhança cômica a ironia drummondiana e o bom humor
que não é comum em A rosa do povo. O poema está
ligado ao tema do “Cantar de amigos”. O eu lírico
refere-se a vários trechos de filmes de Chaplin, cujas
personagens ou passagens podem ser reconhecidas
no poema. Os versos finais sugerem a esperança,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Bar[beiro, Polícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo
[caído na rua.
42
burguês, não te
[envaidece,
e costumas dormir enquanto os veementes inauguram
[estátua,
e entre tantas palavras que como carros percorrem as ruas,
só as mais humildes, de xingamento ou beijo, te penetram.
Bem sei que o discurso, acalanto
[…]
II
A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
43
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas.
[…]
39
Zombaria explícita e veemente; deboche, escárnio.
Com clareza na expressão das idéias; bem expresso e bem formulado; coerente, preciso, relevante.
41
A arte de representar exclusivamente através de movimentos corporais.
42
Qualquer cantiga usada para embalar criança.
43
Peça fixa ou removível do vestuário que se assenta sobre o peito.
44
Que tem o talhe fino, miúdo, frágil.
45
Sensação de enjôo, náusea; ânsia de vômito; sentimento de asco, de repugnância; desprazer.
46
Ato ou efeito de encolher(-se), contrair(-se) espasmodicamente.
47
Quando nasci, um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
40
17
mensagem final de A rosa do povo, depois de tanta
dor, tristeza e pessimismo anunciados ou constatados pelo poeta.
conseguiu casar as conquistas da fase combativa de 22
às novas perspectivas do período construtivo de 1930.
Todavia, Drummond não se deixou guiar pelo espírito
de destruição, caracterizador momentâneo da revolução
literária de 1922. Ele é da chamada geração de 30, cujas
armas já se forjavam em outra filosofia.
Ainda quando seus versos revelem autêntica identidade com os modernistas da 1ª arrancada, nem por isso ele
configuraria um digno representante do “desvairismo”.
5. ESTILO DE ÉPOCA
A rosa do povo está inserida na segunda fase do
Modernismo, ou seja, enquadra-se nas perspectivas
da geração de 30. A obra, publicada em 1945, representa um marco divisório entre a segunda e a terceira
fase moderna. Drummond demonstra nessa obra sua
aversão e perplexidade diante da violência das guerras, do desamor entre os homens, de um mundo marcado pela destruição e fragmentação. Assim, Carlos
Drummond une sua inventividade agressiva de modernista ao tom de denúncia social para compor um
belo e comovente livro.
São traços de modernidade em A rosa do povo:
1. O emprego de uma linguagem coloquial marcada pela simplicidade vocabular: “quede” ou “evém”.
2. O emprego de versos livres (versilibrismo) e
brancos.
3. A presença da temática social e da poesia engajada.
4. O uso de versos nominais (sem verbos).
5. O emprego de substantivos isentos de qualificativos.
6. O lirismo sem confidência personalíssima:
Drummond emprega um processo de transferência do
tom confessional para o leitor. Assim, ele sugere ao
leitor que este pode se ver como um ser múltiplo e
dividido.
7. O questionamento existencial: questionamento de si mesmo e do mundo diante da miséria coletiva
e do absurdo das guerras e ditaduras que dividem
homens e nações.
8. O questionamento metafísico: tomada de consciência e descoberta da morte e da velhice.
9. O psicologismo: associação simbólica com
imagens vertidas do subconsciente, tal como a água
(vida ou morte).
10. O emprego da metalinguagem: discurso poético voltado ao seu próprio fazer.
11. A ruptura com as formas tradicionais da poesia do passado, quebrando normas rítmicas, melódicas, sintáticas e rímicas.
A técnica da repetição, surgida em sua obra desde
“No meio do caminho”, torna-se outra constante estilística. “O poeta sabe que a vida não se repete (ou
não passa tudo de repetição, na velha forma de Eclesiastes), e que a arte deve ser compreendida como
uma mimese [imitação] progressiva, porquanto o artista está sempre deformando o real…” (TELES, Gilberto Mendonça. Drummond — A estilística da
repetição.)
A repetição é um processo expressivo que constitui uma das formas mais eficazes de intensificação
da linguagem. Ela apresenta, na obra, várias formas
básicas. Veja:
1. Repetição binária: “Um inseto cava / cava sem
alarme”.
2. Repetição ternária: “Caem partículas de comida de um garfo hesitante / as coisas caem, caem,
caem, / o chão está limpo, é liso”.
3. Repetição do primeiro verso mais ou menos
modificado nas estrofes seguintes:
É a hora em que o sino toca,
[…]
É a hora em que o pássaro volta
[…]
É a hora do descanso,
[…]
Hora de delicadeza,
gasalho, sombra, silêncio.
Uso de anáfora (repetições no início de cada verso):
O recurso de se embriagar,
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
todos eles… e nenhum resolve.
Outros recursos são empregados, como a repetição sistemática de uma frase, o uso de refrão e paralelismo.
4. O emprego de antíteses é outra marca inerente ao estilo drummondiano e pode ser bem percebido
se levarmos em conta uma certa influência barroca
nos autores mineiros.
Ex.: “O mundo é grande e pequeno”. (“Caso do
vestido”).
6.ESTILO INDIVIDUAL
A poesia de Drummond representa a completa
maturação do Modernismo brasileiro, uma vez que
18
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
MORAES, Emanuel de. Carlos Drummond
de Andrade — poesia e prosa.
O ritmo dramático de alguns poemas é outro aspecto do estilo inconfundível de Drummond. O procedimento rítmico aproxima os poemas “Caso do
vestido”, “A morte do leiteiro” e “Morte no avião”
do gênero dramático.
Destacam-se ainda o humor e a ironia presentes
em A rosa do povo, que se casam tão bem com a visão cética e agnóstica que Carlos Drummond de Andrade tem do mundo.
ANDRADE, Carlos Drummond. Reunião. 10 livros
de Poesia. 4. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1977.
ANDRADE, Carlos Drummond. Carlos Drummond
de Andrade — Poesia e prosa. 5ª ed. Rio de Janeiro:
Nova Aguilar, 1979.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38. edição. São Paulo: Cultrix, 2001.
CAMILO, Vagner. Drummond — Da rosa do povo à
rosa das trevas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond
de Andrade. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1981.
LIMA, Luiz Costa. Drummond: as metamorfoses da
corrosão. In: A aguarrás do tempo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1989.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Carlos Drummond de Andrade: Análise da obra. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.
TELES, Gilberto Mendonça. Drummond — A estilística da repetição. 2. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio,
1976.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
7. PROBLEMÁTICA
E PRINCIPAIS TEMAS
A rosa do povo é um livro que reflete, entre outros
aspectos, o que os acontecimentos sombrios do período entre 1930 e 1945 provocaram no poeta Carlos
Drummond de Andrade. Drummond consegue conciliar a técnica de linguagem poética mais apurada
com o compromisso de denúncia social e política do
homem do povo engajado numa “ideologia revolucionária anticapitalista, de inspiração socialista” (Achcar). O poeta indigna-se diante das injustiças do
mundo, abre-se para as misérias coletivas que se espalham por todas as partes e que causam reflexões
existenciais e angústias no artista. Por mais que procure identificar-se completamente com esses muitos
milhares de submissos ao poder arbitrário, aos revolucionários capazes de morrer por uma causa, o poeta não consegue anular sua identidade e prefere
reencontrar-se no gauche Carlitos. A solidariedade e
a união com os outros homens não são completas,
porque ao poeta resta a náusea, reflexo existencial do
qual não consegue se furtar.
Que saída resta ao poeta? A mesma do “áporo”, a
própria poesia. Eis a flor, a rosa que não sucumbe aos
obstáculos da realidade social e, mesmo feia, sem
pétalas, rompe o silêncio e a noite e atinge seu esplendor nas páginas de A rosa do povo, que não é um
livro de veleidade ou sugestões pitorescas, mas um
livro que tematiza a morte, a fragmentação, a busca
de liberdade num mundo opressivo. Nas palavras do
próprio poeta, a sua poesia é feia. Mas é uma flor.
Texto para a questão 1.
Procura da poesia
Não faças versos sobre acontecimentos,
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais
não contam.
[…]
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
[…]
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível, que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Carlos Drummond de Andrade
(Vunesp) O poema de Drummond, do qual foram extraídos esses trechos, é uma espécie de profissão de fé poética.
a) Que idéia de poesia é possível observar desses fragmentos?
b) Que sentido é possível atribuir aos versos “Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra”?
8. BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
Texto para a questões 2 e 3.
ACHCAR, Francisco. Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: PubliFolha, 2000.
AMZALAK, José Luiz. De Minas ao mundo vasto
mundo (do provinciano ao universal na poética de
Carlos Drummond de Andrade). Série Ensaios. São
Paulo: Navegar, 2003.
Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
19
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
e) O fato de a flor vencer todas as condições adversas e
romper o asfalto pode simbolizar a esperança.
Que palavra do texto pode ser tomada como uma metáfora da própria poesia?
Assinale a alternativa incorreta sobre o trecho transcrito de Consideração do poema, de Carlos Drummond de
Andrade:
a) O trecho indica a presença da metalinguagem.
b) Os quatro primeiros versos teorizam sobre a liberdade
de rimas.
c) Os versos seguintes defendem a idéia de uma poesia
intimista e subjetiva.
d) Os quatro últimos versos falam da liberdade de associação entre as palavras.
e) O último termo mostra a dificuldade de penetrar no
significado das palavras.
Assinale a alternativa que apresente metalinguagem
em Carlos Drummond:
a) Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
Assinale a alternativa incorreta sobre o excerto.
a) O trecho transcrito é claramente metalingüístico.
b) O poema refere-se à liberdade de combinação das palavras na composição poética.
c) A partir do quinto verso defende-se a idéia de uma poesia intimista e subjetiva.
d) Os quatro últimos versos referem-se à liberdade e à
dificuldade do trabalho com as palavras.
e) O último adjetivo do texto qualifica as palavras como
impenetráveis, ou seja, difíceis de explorar, de conhecer “por dentro”, por completo.
c) Em verdade temos medo.
Nascemos escuro.
[…]
E fomos educados para o medo.
Cheiramos flores de medo.
d) Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Leia o poema a seguir e responda às questões 4 e 5.
e) Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
A flor e a náusea
Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
[…]
Uma flor nasceu na rua!
[…]
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
[…]
É feia. Mas é uma flor.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Que fazer, exausto,
e país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Assinale a alternativa que não contenha a poesia participante ou social de Carlos Drummond de Andrade.
a) Este é tempo partido,
tempo de homens partidos.
[...]
Este é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
[...]
Carlos Drummond de Andrade
Assinale a alternativa incorreta sobre A flor e a náusea:
a) O início do poema refere-se à liberdade controlada do
poeta que, ainda que siga de branco, ou seja, puro, pela
“rua cinzenta”, está preso ao seu grupo social e a uns
poucos aspectos materiais, representados aqui pela
“classe” e por “algumas roupas”, respectivamente.
b) Sua temática é social e, ao mesmo tempo, existencial e
pessoal, como indica a menção à “náusea”.
c) A flor pode ser tomada aqui como metáfora de algo
que se opõe ao estado “nojento” do mundo, como a
própria poesia.
d) O poeta mostra seu conformismo diante de um quadro
de catástrofe social.
b) O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
[...]
20
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
b) Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
c) Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.
d) [Este país não é meu
nem vosso ainda, poetas.
Mas ele será um dia
o país de todo homem.]
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
[...]
2.
3.
4.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
e) Um sabiá
na palmeira, longe.
Estas aves cantam
um outro canto.
5.
6.
7.
Respostas
1. a) Drummond estabelece nesse meta poema o que não deve
fazer parte da poesia. Segundo o autor, a poesia não está
21
presente nos fatos da vida, porque não faz parte do indivíduo nem das coisas, mas das palavras, que devem ser decifradas pelo poeta. A visão drummondiana se contrapõe
ao conceito da poesia-inspiração defendida pelos estilos
voltados aos sentimentos e também à visão realista de uma
poética baseada na mera recriação dos fatos do mundo.
b) O sentido dos versos é indicar que cabe ao poeta conhecer
profundamente os vários sentidos e significações (“mil
faces secretas”) que as palavras oferecem (“Trouxeste a
chave?”). A “face neutra” sugere a palavra-estanque, em
estado de dicionário.
c.
O trecho transcrito do poema não defende a poesia intimista
e subjetiva, mas sugere a liberdade e autonomia das palavras.
c
d.
O poeta não se mostra conformado diante da tragédia social
que se abate sobre o seu mundo e o seu tempo.
A palavra “flor” pode ser tomada como metáfora da própria
poesia, porque simboliza a forma de reação diante de um tempo de proibições e censura.
a
e.
Todos os poemas apresentam tendência social, exceto o poema da alternativa e, que é uma paráfrase de Canção do exílio,
de Gonçalves Dias.

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