o sono e o sonho - Projeto Andar de Novo

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o sono e o sonho - Projeto Andar de Novo
São Paulo, domingo, 06 de novembro de 2005
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O SONO E O SONHO
DO COLUNISTA DA FOLHA
Não foi à toa que "Piloto" terminou escolhido como nome de
batismo de Sidarta Tollendal Gomes Ribeiro, 34, na roda de
capoeira que se reúne aos sábados em Durham, Carolina do
Norte. Todos os movimentos de seu corpo são intensos e
calculados, frutos de concentração e determinação. O
gingado pode resultar um pouco rígido, mas as qualidades
vêm a calhar para um neurocientista prestes a abandonar o
porto seguro da Universidade Duke, uma das melhores em
pesquisa biomédica dos Estados Unidos, pelas águas incertas
de Natal (RN).
Ribeiro se instala em praias nordestinas, na primeira semana
de dezembro, para comandar o futuro Instituto Internacional
de Neurociência de Natal (IINN). É um sonho de três
neurocientistas expatriados que nasceu com a eleição de Lula
e que, como as esperanças de muitos em seu governo, vem
sendo sucessivamente adiado. Deveria ter aberto as portas
num prédio provisório em agosto, depois ficou para outubro,
agora deve sair só em 2006.
Nada parece capaz, porém, de desviar Piloto do curso que
traçou para voltar ao Brasil, após uma década de pesquisa
nos Estados Unidos. Nem mesmo a recente rejeição de um
projeto do Instituto do Milênio pelo CNPq (Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico).
Ainda que com R$ 1 milhão a menos no orçamento do IINN,
o biólogo brasiliense já está procurando casa na capital
potiguar, onde pretende passar 80% de seu tempo (o restante
fica para viagens à Carolina do Norte, onde a mulher,
Janaina Hernandez Pantoja, completa em maio seu
doutorado pela Duke).
"Não saí do Brasil para fazer carreira aqui", resume o
pesquisador da Duke. "Na minha área eu sou competitivo, e
quero continuar assim. Competir mano a mano com os caras
[pesquisadores de países ricos]." Ele se diz convencido de
que isso é possível em poucos campos, como a neurociência,
"onde o jogo ainda não está jogado". O mesmo não valeria
para áreas como a genômica, em que agências de fomento
brasileiras têm despejado milhões: "Um tiro no pé", diz,
embora reconheça a importância de criar competência em
biologia molecular no país.
Foi com esse espírito pioneiro que Ribeiro aceitou pilotar o
projeto posto em pé por seu chefe na Duke, Miguel
Nicolelis, que ele prefere chamar de "líder". Embora a idéia
de criar um laboratório de ponta num lugar paradisíaco como o Laboratório de Cold Spring Harbor, em Long Island
(EUA)- tenha surgido em conversas de Piloto com seu antigo
orientador de doutorado na Universidade Rockefeller,
Claudio Mello, foi com a adesão de Nicolelis que o sonho de
repatriação científica começou a ganhar corpo. E que corpo:
só as obras civis do IINN estão orçadas em cerca de US$ 20
milhões.
Ribeiro se contagiou com o espírito "meio bandeirante" do
paulista Nicolelis. "Eu sou o capitão-do-mato do Miguel no
"rat lab" da Duke." É assim que ele resume sua condição de
braço-direito no laboratório de roedores, um dos dois com
que Nicolelis fez fama por conseguir amostrar sinais
elétricos de dezenas e centenas de neurônios individuais dos
bichos, simultaneamente, e com eles controlar movimentos
de braços robóticos. No segundo, o "monkey lab", onde
atuam os chamados macacos-ciborgues, manda outro
Miguel, o russo Mikhail Lebedev.
Foram as cores verde e amarela que levaram Ribeiro de
Nova York, sede da Rockefeller, para a pacata Durham, onde
faz desde 2000 um pós-doutorado com Nicolelis. Eles se
conheceram em 1998, na Alemanha, durante um congresso
de neurociência realizado na época da Copa do Mundo da
França. Alertado por uma conhecida, o estudante foi assistir
a uma palestra do pesquisador paulista, que se apresentou
com a camisa da Seleção Brasileira. "Ele me ganhou na
hora", conta Ribeiro.
Os microeletrodos do laboratório de Nicolelis também
ajudaram. De início Ribeiro encarou com algum ceticismo
sua capacidade de registrar, na época, os disparos individuais
de 30 neurônios, ao mesmo tempo. Foi ver e saiu
convencido: "É o melhor laboratório de eletrofisiologia do
mundo em neurociência". Hoje a equipe consegue amostrar
mais de cem células neurais juntas.
Piloto não hesitou diante da nova rota que se abria, a chance
de usar uma ferramenta de alta resolução espacial para
investigar o cérebro durante as várias fases do sono. Com
ressonância magnética nuclear, a alternativa, não poderia
obter informações sobre neurônios isolados, por exemplo.
Sob sua supervisão, outros estudantes e pesquisadores
examinam a atividade neuronal na realização de outras
funções, como fome/saciedade e memória.
A relação entre sonhos e formação de memórias, de resto,
ocupa o centro das atenções de Ribeiro desde o doutorado.
No modelo que vem desenvolvendo, a fase do sono em que
ocorrem os sonhos é o estágio final de marés sucessivas de
reverberação dos vestígios do dia pelo cérebro. "O sono está
para a memória assim como a digestão está para o alimento",
resume. O processo começa pelo hipocampo e termina no
córtex cerebral. Noutra metáfora, bem brasileira: "Entra tudo
pelo Rio de Janeiro e vai parar no Alto Juruá", diz. "O córtex
é um "Grande Sertão Veredas"."
Sertão, mar, tanto faz. Para o bom piloto, qualquer caminho
é caminho, desde que seja procurado e encontrado. (ML)
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