Revista Texturas Famam 2006

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Revista Texturas Famam 2006
FACULDADE MARIA MILZA - FAMAM
REVISTA N.° 02 - OUTUBRO DE 2006
DIRETOR DA FAMAM
Weliton Antonio Bastos de Almeida
DIRETORAS DO CEMAM (Instituição mantenedora da FAMAM)
Jucinalva Bastos de Almeida Costa
Janelara Bastos de Almeida Silva
EDITOR
Maria José Lima Lordelo
CAPA
Nelson Magalhães Filho
DIGITAÇÃO
Patrícia Novaes Sales Leal
CRUZ DAS ALMAS
2006
Gráfica e Editora Nova Civilização Ltda.
Rua J. B. da Fonseca, 280 - 1º Andar - Centro
Tel.: (75) 3621-1031 - E-mail: [email protected]
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CRUZ DAS ALMAS
2006
Conselho Editorial
Edmar José Borges de Santana - FAMAM/UFBA
Elizabete Rodrigues da Silva - FAMAM
José Fernandes de Melo Filho - FAMAM/UFBA
Maria Angélica Pereira de Carvalho Costa - FAMAM/UFBA
Sérgio Roberto Lemos de Carvalho - FAMAM/EBDA
Robson Rui Cotrim Duete - FAMAM/EBDA
Ficha Catalográfica
TEXTUTA. Faculdade Maria Milza. - ano 1, n. 2. (jul. - dez. 2006) - Cruz das
Almas, BA.: Faculdade Maria Milza, 2006.
Semestral
ISSN: 1809-7812
1. Educação
2. Ciências Agrárias
3. Saúde
I. Faculdade Maria Milza
(...) o espírito humano produz um
duplo pensamento, um simbólico /
mitológico / mágico e o outro racional
/ lógico / empírico.
Morin
SUMÁRIO
Apresentação.....................................................................................................09
EDUCAÇÃO
A verdade
Josemar Rodrigues da Silva..............................................................................................11
Recôncavo Fumageiro: Palco de uma fisionomia social e cultural
Elizabete Rodrigues da Silva ............................................................................................23
Bode-Escola: Uma alternativa à política assistencialista
Maria José Lima Lordelo ...................................................................................................41
Cultura, manifestações culturais e espaço urbano na contemporaneidade: uma
breve leitura a partir da configuração espacial e das festas populares.
Jânio Roque Barros de Castro ..........................................................................................51
Uso e ocupação do espaço urbano e impactos ambientais no município de Vitória
da Conquista – BA: O estudo de caso no bairro Santa Cruz.
André Luiz Dantas Estevam; Júlia Gabriela Fernandes Gonsalves; Paulo Henrique
Silveira Lima .....................................................................................................................61
Ciganos: cultura e errância
Márcio Emanoel Dantas Estevam .....................................................................................75
História e Informática: reflexões sobre a prática
Antonio Wellington Melo Souza ........................................................................................87
A prática de atividade física e o desenvolvimento motor do salto vertical.
Roberta Castilhos Detânico; Roberta Gabriela O. Gatti; Sebastião Iberes Lopes Melo ....103
Da igreja católica medieval às desigualdades sociais no Brasil.
Joélio Barros de Oliveira ................................................................................................113
ENSAIOS
Seminários: Toda ação demanda a adoção de um método.
José Carlos de Cerqueira Moraes ...................................................................................125
Avaliação institucional: um novo olhar
Dayse Bastos Pereira de Almeida Brandão; Jucinalva Bastos de Almeida Brandão ........135
CIÊNCIAS AGRÁRIAS E SAÚDE
Utilização de plantas medicinais por acadêmicos da FAMAM
Josiane de Melo G. Santos; Jucimaria Duarte A. da Silva; Robson Rui Cotrim Duete .......141
Interação de fungo micorrízico e Mal-do-Panamá em Banana “maçã”.
Aldo Vilar Trindade; Andréa Jaqueira da S. Borges; Maria de Fátima da S. P. Peixoto ......151
APRESENTAÇÃO
A Textura lança o seu segundo exemplar. Apesar de ter pouco tempo de existência, já se constitui num marco para o Recôncavo.
Esperamos que, no decorrer do tempo, o seu aprimoramento venha acompanhado de uma visão redimensionada dos trabalhos acadêmicos.
Nesse sentido, contamos com a crítica e sugestões do leitor, as quais revigoram as discussões, contribuindo, assim, na tessitura deste periódico.
Os artigos assinados são de total responsabilidade dos respectivos autores. A reprodução dos textos não é proibida desde que haja indicação da fonte.
Weliton Antonio Bastos de Almeida
Diretor da FAMAM
Maria José Lima Lordelo
Editor da Textura
A VERDADE
Josemar Rodrigues da Silva*
RESUMO: O texto tem por objetivo tentar mostrar que a “verdade” ainda é um dos
grandes temas da Filosofia. Os antigos, os medievais, os modernos e os contemporâneos fazem da verdade uma presença relevante em suas filosofias. Este trabalho quer, longe de pretender historiar mais uma vez tais reflexões, apenas insinuar como este tema ainda fermenta e vigora as discussões. Mesmo entre os antimetafísicos, com os quais aqui se dialoga, a Verdade não deixou de ser “o” conceito diferenciador e decisivo; mas eles partem de outro ponto: a “finitude”. Assim,
emergem o “perspectivismo” e o “pragmatismo” como suspeita aos pré-conceitos
metafísicos.
PALAVRAS-CHAVE: Verdade; pragmatismo; perspectivismo.
ABSTRACT: The text has for goal to try to show that the Truth still is one of the great
subjects of the Philosophy. The old ones, the medieval ones, the modern and the
contemporaries make of the Truth an excellent presence in its philosophies. This
study wants, far to intend to history such reflections one more time, but to insinuate
as this subject still it leavens and it invigorates the argument. It even between the
antimetaphysical, with which dialogue here, the Truth didn't leave of being the decisive and differentiator concept; but they leave of another point: the end or limit.
Thus, the perspectivismo and the pragmatismo manifest itself as suspicion of the
metaphysical pay-concepts.
PALAVRAS-CHAVE: Truth; pragmatismo; perspectivismo.
*Professor do Curso e História e Educação Física da Faculdade Maria Milza - FAMAM
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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INTRODUÇÃO
A preocupação da filosofia não está apenas e absolutamente voltada para a
existência em-si, mas voltou-se, também, para as questões do conhecimento e,
portanto, da verdade. Desde a Grécia antiga até à contemporaneidade, a verdade tornou-se um dos grandes e caros temas na história da filosofia. Antigos,
medievais, modernos e contemporâneos, cada um sob seu tempo e seu lugar,
declararam suas perspectivas sobre este tema.
O que interessa são reflexões contemporâneas. Nietzsche e o pragmatismo constituem a delimitação desta discussão. Isso significa, então, que se priorizam as discussões de natureza antimetafísica. Nietzsche, fazendo-se “dinamite”,
traz seu “martelo”¹; o pragmatismo, fazendo-se atento, traz à realidade o seu olhar
observador. O que chama atenção é o fato de Nietzsche e os pragmatistas conceberem a finitude como a expressão única da realidade, e como, curiosamente, as
pretensões de ambos os distinguem².
Através de Nietzsche busca-se, para compreender este objetivo, uma visão
cosmológica, concebendo a natureza como ponto de partida. Quanto ao pragmatismo, busca-se compreender a medida “mais adequada” para as relações entre o
homem e o mundo. É o ponto de partida de ambos – ou seja, a “contingência” –
que ajudará a conceber a unidade entre o nietzschianismo e o pragmatismo.
Nietzsche, em A gaia ciência (2002), declara sua visão cosmológica ao dizer que:
O caráter geral do mundo, no entanto, é caos por toda a eternidade, não no sentido de ausência de necessidade, mas de
ausência de ordem, divisão, forma, beleza, sabedoria e como
quer que se chamem nossos antropomorfismos estéticos. (§
109).
Percebe-se, então, neste fragmento, o caráter antimetafísico da filosofia de
Nietzsche quanto à sua compreensão de mundo. Ele retira do mundo as garantias
com as quais a razão julga dominar a natureza, e assim declarar o caráter antiteleológico da existência. É, pois, dessa compreensão cosmológica que a pesquisa
se apóia para conceber a presença nietzschiana no pragmatismo.
Dessa forma, encontra-se justeza nas palavras dos pragmatistas quando
estes, ao analisarem a relação “homem x mundo” demonstram conceber a contingencialidade dessa relação e dos seus resultados. Tanto Peirce como James e
Dewey e outros tanto quanto importantes declaram a contingencialidade do
conhecimento (do mundo), instalando uma discussão sobre a possibilidade de
¹Essas expressões são usadas pelo próprio Nietzsche, uma delas pode ser encontrada no prefácio de
Crepúsculo dos ídolos (2000).
²Trataremos em especial de Willian James (1842-1910).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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uma epistemologia não-metafísica.³
Os pragmatistas gostariam de destruir a distinção entre 'conhecer' e 'usar' coisas. Partindo da asserção de Bacon de que
conhecimento é poder, prosseguiram para a asserção de que
poder é tudo o que há para o conhecimento – que a pretensão
de conhecer X é uma pretensão de estar apto a fazer algo com
ou a X, pôr X em relação com outra coisa. Para tornar esta pretensão plausível, todavia, eles têm que atacar a noção de que
conhecer X é uma questão de estar relacionado com algo 'intrínseco' a X ao passo que usar X é uma questão de permanecer numa relação 'extrínseca', acidental, com X. (ROTY, 1991,
p. 266).
Trazendo este fragmento de Rorty, vê-se possível verificar as semelhanças
entre Nietzsche e as idéias dos pragmatistas. Essas semelhanças, aqui expressas pelo autor, traduzem a unidade reflexiva entre estes filósofos. O jogo entre a “liberdade” e a “verdade” representa o empenho que estes empreendedores investem numa teoria em que o conhecimento não se constitui (apenas) através de “revelação” ou “representação”, mas que o conhecimento é um instrumento importante para a sobrevivência de uma certa espécie animal.
Destarte, quer-se partir da cosmologia nietzschiana para entender as teorias com que o pragmatismo explica a relação do homem com o mundo. É, pois, da
“vontade de poder” à reflexão sobre a linguagem que a pesquisa se inscreve. Percebe-se, então, que o objetivo desta reflexão se junta à idéia de que no pragmatismo é possível encontrar ressonâncias nietzschianas, mesmo que em alguns
momentos haja sutis divergências interpretativas.
A “VERDADE” ENTRE NIETZSCHE E O PRAGMATISMO
(...) à ausculta dos ídolos, é importante ressaltar que os que
estão em jogo, os que são aqui tocados com o martelo como
com um diapasão, não são os ídolos em voga, mas os 'eternos';
– em última análise, não há de forma alguma ídolos mais antigos, mais convencidos, mais insuflados... Também não há de
forma alguma ídolos mais ocos... Isso não impede, que eles
sejam aqueles em que 'mais se acredita'; diz-se também,
sobretudo no caso mais nobre, que eles não são de forma alguma ídolos... (Nietzsche)
A diferença entre tomar a Verdade como um objetivo, com
³Este termo aqui proposto pelo autor “epistemologia não-metafísica” não pretende estabelecer nenhuma confusão quanto ao entendimento coerente do pragmatismo. Ele quer apenas designar que o pragmatismo teoriza sobre o conhecimento, mas que o caráter dessa teorização não corresponde, em hipótese alguma, às concepções racionalistas ou da filosofia clássica. Diz-se, então, que o pragmatismo
pretende ser genuinamente antimetafísico.
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Sócrates, e tomar a Liberdade como um objetivo, com os pragmatistas, é a diferença entre apontar para alguma coisa nãohumana e apontar para alguma coisa que, se em algum
momento vier a existir, será uma criação inteiramente humana.
(Rorty)
São inúmeros os fragmentos em Nietzsche – senão uma declaração – os
quais demonstram uma concepção da natureza bem distinta das que revelam o
mundo ordenado por princípios e teleologias. Esta concepção da natureza, em
Nietzsche, quer-se designar como reflexão cosmológica. Deleuze (1994), por
exemplo, empreende o termo “teoria das forças”, no qual, assim, clarifica, ao seu
modo, os dizeres do filósofo alemão:
E sabeis também o que 'o mundo' é para mim? (...) Este mundo:
um gigante de força, sem início, sem fim, uma dimensão fixa e
brônzea de forças, que não aumenta nem diminui, que não se
consome, mas apenas se transforma, imutavelmente grande
como um todo, um patrimônio sem gastos nem perdas, mas
igualmente sem aumento, sem entradas, envolto por 'nada'
como por seu limite (...), mas antes como força por toda a parte,
como jogo de forças e de ondas de forças ao mesmo tempo
único e 'múltiplo' (...), um mar de forças que se lançam e fluem
para si mesmas (...) Esse mundo 'dionisíaco' de criar eternamente a si mesmo, de destruir eternamente a si mesmo, esse
mundo de segredos das voluptuosidades duplas, esse meu
mais além do bem e do mal; (...) Quereis um 'nome' para este
mundo? Uma 'solução' para todos os enigmas? (...) 'Este
mundo é a vontade de poder e nada além disso!' E também vós
mesmos sois essa vontade de poder – e nada além disso!
(NIETZSCHE, 2005, 38[12] p. 212)
Desde O nascimento da tragédia até as suas últimas publicações, como
também escritos não publicados, Nietzsche traz à baila suas idéias contundentes
sobre a relação intrínseca do homem com a natureza, demonstrando, ao fim e ao
cabo, que não se trata apenas de uma relação, mas de uma homogeneidade absoluta4. Homem e mundo não estão separados como se apresentassem como de
naturezas distintas, pois mesmo a expressão “homem e mundo” deixa de ter sentido em Nietzsche. Ironizando tal expressão dicotômica, Nietzsche (2002) declara:
“(...) já rimos, ao ver 'homem 'e' mundo' colocados um ao lado do outro, separados
tão-só pela sublime presunção da palavrinha 'e'!” (§ 346).
Identificando-se como “dinamite”, o filósofo de Zaratustra quer e busca destruir
toda teoria maniqueísta, dicotômica ou dialética. Isto traz para ele grandes proble4
A palavra “absoluta” não quer aqui designar nenhum sentido metafísico desta unidade
homem/mundo, apenas quer refletir a unidade representada pela superação metafísica empreendida
por Nietzsche.
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mas e questões que aqui não serão sequer tocados. Porém, esta pretensão
nietzschiana é o cerne para esse entendimento. Essa tentativa de superar tais
dicotomias enriquece sua filosofia, fazendo-a importante marco para a contemporaneidade, e trazendo significativa contribuição ao pragmatismo.
Este fragmento supracitado deixa clara aquela pretensão há pouco mencionada.
Ora, homem e mundo, portanto, são única e mesma coisa e de mesmo caráter.
Relembrando o argumento de que o mundo “é caos por toda a eternidade”, admite-se, de imediato, a idéia de que o homem assim também o seja. Não é clara se
há menção neste fragmento de que o homem seja um caos ou que viva num caos.
Seria preciso tal clarificação, pois, assim sendo, poder-se-ia resolver o problema
entre homem e mundo. Ou seja: se o homem também é caos significa que a razão
(lógica; logos) seria uma mera ficção ou mesmo uma patologia; mas se o homem
vive no caos – sem sê-lo –, significa que é justificável a tentativa de racionalização
da existência e do mundo.
Nesse ponto de vista, Nietzsche traz inúmeros argumentos que confirmam a primeira hipótese, ou seja, de que o homem é também caos e que sua razão não
passa de um desenvolvimento orgânico inacabado. Afirma em A Gaia Ciência
(2002):
A consciência é o ultimo e derradeiro desenvolvimento do orgânico e, por conseguinte, também o que nele é mais inacabado e
menos forte. Do estado consciente vêm inúmeros erros que
fazem um animal, um ser humano, sucumbir antes do que seria
necessário, 'contrariando o destino', como diz Homero. (§ 11).
Onate (2000), comenta:
Subordinando a consciência ao âmbito da vida orgânica, como
seu mais tardio e incompleto desenvolvimento, Nietzsche data
seu surgimento em época recente: longos períodos transcorreram na sua ausência e muito ainda deve suceder para que ela
cumpra integralmente a função para a qual foi forjada. (p. 34).
Vê-se, portanto, que é genuína a unidade homem/mundo. Esta unidade,
em Nietzsche, desautoriza essa mesma expressão “homem/mundo”, permitindo
apenas dizer mundo – se ainda possível for. Mas aqui nasce um outro ponto importante a esta reflexão: o “dizer”, ou seja, a linguagem. Para Nietzsche, é apenas o
dizer – “a presunção da palavrinha 'e'” – que permite a dicotomização não só a que
separa o homem do mundo, mas de toda possibilidade dicotômica do/no pensamento. Willian James (1979), declara em sua Segunda Conferência, a oposição
do pragmatismo à clássica metafísica (da linguagem):
A metafísica tem, comumente, seguido uma trilha muito primitiva de interrogatório. Sabe-se quanto os homens têm suspirado
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por poderes mágicos ilícitos, e se sabe também a grande parte
que as 'palavras' sempre desempenharam na magia. Se temos
o nome ou a fórmula de encantamento que lhe diz respeito,
pode-se controlar o espírito, gênio, entidade ou qualquer que
seja o poder. Salomão sabia os nomes de todos os espíritos, e,
tendo os seus nomes, mantinha-os sujeitos à sua vontade.
Assim, o universo tem sempre aparecido ao espírito natural
como uma espécie de enigma, do qual a chave deve ser procurada na configuração de algum nome ou palavra mágica iluminada. Esta palavra designa o 'princípio' do universo, e possuí-la
é, de certo modo, possuir o próprio universo. 'Deus', 'Matéria',
'Razão', 'Absoluto', 'Energia', são muitos desses nomes encantados. Podemos repousar quando o temos. Chegamos ao fim
de nossa pesquisa metafísica. (p. 20)
É aqui que nasce uma das semelhanças entre Nietzsche e o pragmatismo.
Esclarece Cometti (1995), que:
para Peirce, que pretende ser fiel ao que a ciência lhe parece
ensinar, o pensamento racional concebe-se tendo por base os
efeitos que estão ligados ao que uma 'experiência' permite 'observar'. Por outro lado, para ele, como para James e Dewey, no
que respeita aos desenvolvimentos que trarão ao pragmatismo, os fenômenos cognitivos concebem-se à luz dos processos de adaptação dos organismos vivos. (p. 13).
É justamente esta concepção de que o pensamento racional concebe-se a
partir dos efeitos que une esses filósofos. Em outra passagem, Nietzsche compreende que a “consciência é, na realidade, apenas uma rede de ligação entre as pessoas – apenas como tal ela teve que se desenvolver: um ser solitário e predatório
não necessitaria dela”. (NIETZSCHE, 2002, § 354).
Ora, se o mundo é um caos, se o homem também o é, onde, porventura,
estaria o mérito da consciência, do pensamento ou da razão? Onde, pois, estaria a
grandeza de Kant ao dizer que sua admiração consistia no céu estrelado e na lei
moral dentro do homem? Tanto para Nietzsche como para os pragmatistas a consciência, o pensamento ou a razão estaria, justamente, na interação ou na lida do
homem com o mundo5; seu instrumento (principal).
Ora, se Peirce, pioneiro do pragmatismo, declara que “as crenças são, realmente, regras de ação” (apud JAMES, 1979, p. 18), então significa que não é o
homem legislador da natureza como crer o racionalismo, mas um absorvente, um
ser de interatividade com a mesma.6 Assim, compreende-se aquela sugestão
nietzschiana de que se deve superar a dicotomia “homem x mundo”. A racionalida5
Mundo aqui quer também significar “as coisas” que constituem, estão ou formam o mundo como
totalidade.
6
Cf. Willian James, 1979, p. 08
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de e a consciência não se constituem como dons divinos ou como essências ontológicas da suposta natureza humana, mas mera produção da interação do “homem” com aquilo que lhe constitui: o chamado “mundo”.
Em sua obra intitulada Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral
(2005), Nietzsche apresenta suas contundentes contribuições ao pragmatismo,
mesmo que estas não tenham sido propositadas ou únicas. Nela, o autor traz uma
de suas maiores interpretações sobre a constituição do termo “verdade”, ao
mesmo tempo em que demonstra as produções humanas, demasiadas humanas,
daquela interação supracitada.
Os textos nietzschianos que trazem informações desse gênero parecem, muitas
vezes, que o autor compreende o “humano” como um animal de fato. No início do
texto a pouco mencionado, o autor apresenta a necessidade humana do uso, por
exemplo, de “chifres ou dos dentes afiados” (p. 08). Ora, é evidente a inexistência
desses órgãos nos humanos, porém essa possibilidade poderia ser real. Mas o
que interessa é que, para Nietzsche, nos primórdios, o homem agia unicamente
com seus instintos animalescos. Período propedêutico da razão.
Parece evidente que ao pragmatismo pouco importa as formas com as quais os
homens interagiam com o mundo nos primórdios da existência (humana). Mas é
claro que o entendimento do pragmatismo assemelha-se com o de Nietzsche
quando este apresenta o objetivo ou mesmo destino daquela interatividade primordial: a produção de uma garantia na existência e na relação com os objetos (realidades). Comparam-se os fragmentos seguintes, evidenciando a visão dos filósofos alemão e americano:
Na medida em que o indivíduo se quer conservar relativamente
aos outros indivíduos, este, na maior parte das vezes, utiliza o
intelecto num estado natural das coisas, somente para a dissimulação; mas, como o homem quer existir tanto por necessidade como por tédio, socialmente ou em rebanho, precisa fazer a
paz e aspira a que desapareça do seu mundo pelo menos o
mais brutal bellum omnium contra omnes. Esta paz traz consigo
algo que se parece com o primeiro passo para a obtenção
daquele enigmático impulso para a verdade. Acontece que
agora é fixado aquilo que doravante deve ser a 'verdade', ou
seja, é inventada uma designação das coisas tão válida como
vinculativa e a legislação da língua produz também as primeiras leis da verdade, pois aqui surge pela primeira vez o contraste entre verdade e mentira. O mentiroso utiliza as designações
válidas, as palavras, para fazer com que o irreal pareça real.
(NIETZSCHE, 2005, p.09).
(...) o fato tangível na raiz de todas as nossas distinções de pensamento, embora sutil, é que não há nenhuma que seja tão fina
a ponto de não resultar em alguma coisa que não seja senão
uma diferença possível de prática. Para atingir uma clareza perTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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feita em nossos pensamentos em relação a um objeto, pois, precisamos apenas considerar quais os efeitos concebíveis de
natureza prática que o objeto pode envolver – que sensações
devemos esperar daí, e que reações devemos preparar. Nossa
concepção desses efeitos, seja imediata, seja remota, é, então,
para nós, o todo de nossa concepção do objeto, na medida em
que essa concepção tenha afinal uma significação positiva.
(JAMES, 1979, p. 18).
Surge, então, um dilema sobre as concepções relativas à verdade. Para
Nietzsche, a verdade é produzida como parte de uma estratégia de sobrevivência;
para James ela nasce como produto, ou melhor, como efeito de uma interação
entre o homem e uma outra realidade. O primeiro, realiza uma crítica ferrenha que
demonstra rejeitar qualquer possibilidade qualitativa de utilidade da verdade; o
segundo, parece apenas descrever como as concepções são formadas e críveis
como verdade.
Percebe-se que, nascendo da reflexão antimetafísica, Nietzsche e os pragmatistas rejeitam, de modos diferenciados, a existência de uma natureza essencial
metafísica. Enquanto a verdade para um apresenta-se como artifício para lidar
com as mais simples intempéries da vida natural, para outro, a verdade nasce
como meio pelo qual os indivíduos lidam seguramente, mesmo que provisoriamente,7 com o mundo. Mas é evidente a recusa desses filósofos a qualquer concepção
metafísica de verdade. Assim, “a verdade não é nem um dado nem uma condição
prévia do conhecimento, é sempre um 'resultado'”. (COMETTI, 1995, p. 20).
Para os pragmatistas, a verdade está diretamente contida no âmbito ou no
conjunto dos interesses (humanos). Dessa forma, tudo o que se apresenta como
verídico significa que está no conjunto das coisas “interessantes” e que, por sua
vez, são aceitáveis na ordem do convívio social, este que é estabelecedor do que
é interessante. É claro que traçar a verdade nesse contexto do “interessante” pode
trazer questões à baila no que diz respeito à ética e a outras dimensões da vida
sócio-política. Mas não é conveniente tratar aqui estas questões, mas apenas
mencioná-las.
Mas não só para os pragmatistas. Para Nietzsche o “verdadeiro” também é
fruto do interesse, da convenção, do “acerto de contas”. Talvez surja aqui a razão
das críticas quando estas apontam um Nietzsche “contratualista”. Não se pretende entrar neste mérito. Se a verdade nesses filósofos apresenta-se a partir da convenção, do interesse ou do “acerto de contas”, diz-se, também, que ela se apresenta sob as “perspectivas”. Assim, a reflexão sobre o perspectivismo nietzschia7
Mesmo sendo possível a contradição em termos “seguramente/provisoriamente”, o uso aqui quer
designar que, enquanto “seguramente”, diz-se do uso imediato e de efeito previsto para o resultado
desejado, mas não que esse seguramente signifique algo essencialmente seguro; assim, enquanto
“provisoriamente”, quer mesmo ser coerente com as propostas nietzchiana e pragmatista, quando
dizem ter a crença uma natureza contingente e está diretamente ligada às produções do intelecto, já
que este – o intelecto – é, para Nietzsche, igualmente contingente.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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no, que não se assemelha com o de Kant, traz para este texto indispensável contribuição.
RESSONÂNCIAS DE UM PERSPECTIVISMO
Conceber a idéia de que os efeitos de um objeto produzem no indivíduo
certa crença, é o mesmo que afirmar que a crença imprimida no objeto pelo
indivíduo parte da perspectiva do mesmo, adicionada pelos efeitos que aquele
produz. Concebe-se, também, a presença do perspectivismo nos pragmatistas,
pois, os efeitos causados pelo objeto não são efeitos em-si, pois cada indivíduo
percebe os (mesmos) efeitos diferentemente, fazendo com que as crenças sejam
provisórias, como foi dito anteriormente.
As crenças são contingentes, primeiro porque são crenças, depois porque
são “interpretações” de perspectivas igualmente contingentes. Perspectiva,
crença/interpretação estão no âmbito da finitude, circunscritas na existência,
contrárias à atitude metafísica. Essa contrariedade à metafísica faz afastar do
perspectivismo a herança kantiana, pois não se trata das “condições” do
conhecer, supondo a existência de uma essência eterna que seja suporte das
representações. O perspectivismo nietzschiano, e talvez pragmatista, tem a ver
mesmo com a espacialidade do corpo físico, seu campo perceptivo e possível, sua
mais crua contingencialidade.
Aquela interatividade mencionada (homem x mundo), em Nietzsche, não
passa do jogo conflitivo de ação e reação das forças produtoras de interpretações.
Se o mundo é como se viu no início, “vontade de poder” – e assim também o
homem –, significa que, aquilo que se percebe como real e designa os signos é a
vontade de poder. Esta designação revela-se como o instrumento com o qual se
cria a fixidez, e, portanto, não se percebe a transitoriedade, o devir do mundo e da
existência.
As interpretações, as crenças são, na verdade, forças. Estas representam a
convenção vitoriosa, seja as forças do indivíduo, seja as do grupo. Tanto em um
como no outro caso, são as interpretações-força que estabelecem o 'modo' como
o(s) indivíduo(s) lida(m) com o mundo. Diz Kossovitch (2004):
É por isso que as interpretações são interpretações-força. Não
basta afirmar o perspectivismo que define a singularidade de
cada interpretação; é preciso insistir em sua índole ativa. Com
efeito, a interpretação não é acrescentada à força como algo
que lhe poderia faltar, ao contrário, ela é a própria força inserida
no campo de dominação. (p. 47).
Portanto, este é o cenário que parece compor as idéias dos filósofos aqui
interessados: Nietzsche e os pragmatistas. É claro que eles percorreram métodos
diferentes para expressar suas concepções antimetafísicas. O nietzschianismo e
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o pragmatismo assemelham-se na crença de que a verdade é um instrumento
“agregador” e “útil”, respectivamente. Radical ou tolerante, ambos são claros em
suas posições frente à tradição. A verdade é criação humana e instrumento para
sua sobrevivência e sua relação. Revela Nietzsche em Acerca da verdade e da
mentira no sentido extramoral (2005):
Que é então a verdade? Um exército móvel de metáforas, de
metonímias, de antropomorfismos, numa palavra, uma soma
de relações humanas que, foram poética e retoricamente
intensificadas, transpostas e adornadas e que depois de um
longo uso, parecem a um povo fixas, canônicas e vinculativas:
as verdades são ilusões que foram esquecidas enquanto tais,
metáforas que foram gastas e que ficaram esvaziadas do seu
sentido, moedas que perderam o seu cunho e que agora são
consideradas, não já como moedas, mas como metal. (p. 13)
Revela também James: “a verdade consiste simplesmente no que é
vantajoso para o nosso pensamento, da mesma maneira que 'a justiça' consiste
simplesmente no que é vantajoso para nossa conduta”.(apud. COMETTI, 1995,
p. 28-29).
É, portanto, estas declarações de Nietzsche e de algum dos pragmatistas –
declarações estas que revelam a contingencialidade da “verdade”, tornando-a
não mais eterna ou essencial às coisas, mas instrumento de lida com o mundo –,
que apresentam estes filósofos como filósofos “marginais”, fazendo igualmente
com suas filosofias. Assim, pode-se dizer que tais procedimentos filosóficos
correspondem a uma atitude filosófica, atitude esta que, para nós, constitui-se
como “filosofia da suspeita”. 8
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As considerações que aqui são expressas a respeito da compreensão que
os filósofos expostos têm da “verdade”, ou dela como simples termo, não são
considerações pretensiosas de findar tal discussão. Aqui se pretendeu apenas
uma insinuação parcial de uma pesquisa em desenvolvimento. Esta parte, por sua
vez, da compreensão cosmológica de Nietzsche e tenta, cautelosamente, unir aos
interesses pragmatistas.
Tentou-se mostrar que a reflexão nietzschiana sobre a vontade de poder é
indispensável para compreender a visão que este filósofo alemão tem do mundo e
do homem. A denominada teoria das forças exposta por Deleuze está na base de
toda reflexão. Não por causa deste filósofo francês, claro, mas por este melhor
8
Esta expressão “filosofia da suspeita” está indicada e melhor esclarecida na obra nietzschiana
intitulada Além do Bem e do Mal (2002), no aforismo 12.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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expressar as idéias de Nietzsche no que se refere à vontade de poder. É esta – vontade de poder – que pretende desautorizar o argumento metafísico.
Em Crepúsculo dos Ídolos (200), quando Nietzsche expõe “O problema de
Sócrates”, traz uma informação interessante. Ele mostra que a visão socrática de
que não vale a pena viver, significa, para ele, que isto se deve ao fato de Sócrates
não ser um homem robusto, ou seja, que seu pouco porte físico o conduz a uma
visão pessimista da vida, pois, assim sendo fisicamente, revelava pouca possibilidade de sobrevivência a partir da força; ou seja, era um ser que, não sendo predatório, necessitava da arte da dissimulação. (cf. NIETZSCHE, 2005, p.08). A força,
portanto, era a da dissimulação.
Dessa forma, a concepção socrática de verdade vincula-se, para
Nietzsche, a esse aspecto acidental da existência. Compreender a verdade socraticamente, ou seja, conceber a verdade como algo fora dos ditames da finitude,
para além do mundo, deste mundo, é, ao mesmo tempo, negar a existência como
ela é: “caos por toda a eternidade”; “vontade de potência e nada, além disso”. É
por isso que Nietzsche compreende a verdade como produto de perspectiva, e
estabelecida como crença.
Os pragmatistas, bem próximos do que diz Nietzsche sobre a verdade, também acreditam que a verdade é crença, com a qual se lida com o mundo com certa
garantia. Essa garantia se faz na medida em que, ao corresponder com certos efeitos, torna-se, a crença, um “hábito de ação” – comumente denominado verdade.
Dessa forma, também os pragmatistas circunscrevem a verdade na contingência
e no conjunto das produções humanas. Também aqui, verifica-se o discurso antimetafísico, desautorizando as categorias da razão pura.
Ora, assim colocada a verdade no âmbito da contingência, da finitude,
sobretudo da suspeita, percebe-se a emergência da reflexão sobre o perspectivismo. Não se pretendeu aqui insinuar nenhuma substituição do pragmatismo pelo
perspectivismo e vice-versa. Aspirou-se, no entanto, assemelhar ou aproximar
Nietzsche dos pragmatistas, e, por isso, se trouxe à baila a reflexão perspectivista,
inserindo-a no ambiente pragmatista. É evidente a falta de completude nessa
nossa pretensão, mas também se evidencia a necessidade do prolongamento da
pesquisa para que, futuramente, melhor se possa refletir tais semelhanças.
Relevando as possíveis e evidentes divergências metodológicas, o perspectivismo e o pragmatismo traduzem a filosofia contemporânea. Este empreendimento filosófico, que tenta questionar os preconceitos metafísicos, tem em
muito ainda o que construir, porém suas propostas até aqui formuladas, sejam por
Nietzsche, sejam pelos pragmatistas ou por tantos outros, já se revelam suficientes “suspeitas” para maior desenvolvimento desse empreendimento.
Percebe-se que esta(s) filosofia(s) – perspectivismo e pragmatismo – não pretende mais inserir seus discursos “acerca da verdade e da mentira”, mas pretende
questionar o valor mesmo dessas categorias metafísicas, mostrando-as como
“ídolos” vulneráveis àquela suspeita filosófica, suspeita que traz consigo, se não
uma “dinamite”, um “martelo”.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
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REFERÊNCIAS
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Traduçao de Fernando Martinho. Lisboa: ASA, 1995.
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Lisboa: D. Quixote, 1991.
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São Paulo: Editora Rés, 1994.
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Silva, Pablo Rubén Mariconda. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
KOSSOVITCH, Leon. Signos e poderes em Nietzsche. São Paulo: Azougue
Editorial, 2004.
NIETZSCHE, Wilhelm Friedrich. A gaia ciência. Tradução de Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______. Acerca da verdade e da mentira no sentido extramoral. Tradução de
Heloisa de Graça Burati. 1ª Edição. São Paulo: Rideel, 2005.
______. Além do bem e do mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução
de Paulo César de Souza. 2ª Edição.São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
______. Crepúsculo dos ídolos – ou como filosofar com o Martelo. Tradução
de Marco Antonio Casa Nova. 2ª Edição.Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000.
______. Sabedoria para depois de amanhã. Tradução de Karina Jannini. 1ª
Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
NATE, Alberto Marcos. O crepúsculo do sujeito em Nietzsche – ou como abrirse ao filosofar sem metafísica. São Paulo: Discurso Editorial, 2000.
RORTY, Richard. Nietzsche, Sócrates e o pragmatismo. Cadernos Nietzsche 4.
Tradução de Paulo Ghiraldelli. São Paulo: USP, 1998.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 11-22, Novembro, 2006.
RECÔNCAVO FUMAGEIRO:
PALCO DE UMA FISIONOMIA SOCIAL E CULTURAL
Elizabete Rodrigues da Silva*
RESUMO: Este estudo apresenta um olhar sobre o Recôncavo Baiano, na perspectiva de identificar na região fumageira uma fisionomia social e cultural específica, delineando a formação de uma sociedade característica do Recôncavo Fumageiro e, portanto, das mulheres charuteiras.
PALAVRAS-CHAVE: Recôncavo fumageiro; cultura fumageira; fisionomia social.
ABSTRACT: The present study presents a regard on Recôncavo from Bahia, in the
perspective of identifying in the fumageira area a specific social and cultural
physiognomy, delineating the formation of a characteristic society of Recôncavo
Fumageiro and, therefore, of the charuteira women.
KEYWORDS: Recôncavo fumageiro; fumageira culture; social physiognomy
*Professora do Curso Normal Superior da Faculdade Maria Milza- FAMAM
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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Mas a história do Recôncavo é também a história
das contradições. (M. de A. Brandão)
Chama-se Recôncavo a região que circunda a Bahia de Todos
os Santos, formando o grande anfiteatro no qual, há mais de
quatrocentos anos, se vem desenrolando um dos mais antigos
capítulos da colonização do Brasil, que ali teve o seu começo.
(L. A. Costa Pinto).
A delimitação precisa de uma região é por demais complexa em função dos
vários aspectos que esta incorpora, seja do ponto de vista geográfico, econômico,
político, social, cultural, histórico ou antropológico. Não havendo, dessa forma, um
lugar específico e estático para cada característica que compõe uma região, ela
se completa num todo harmônico, embora distinto, que sofre e gera
transformações no tempo.(OLIVEIRA, 1997).
A região do Recôncavo que se ergueu a partir de uma sociedade ligada à
produção e manufatura do fumo e que ora buscamos entender, antes de ser,
apenas, um espaço geográfico, é o resultado de um processo histórico, cuja
dinâmica da realidade sócio-econômica, num determinado tempo, definiu o
referido espaço, este que foi dirigido e organizado por uma sociedade, mas que
não se reduz somente a uma elite política e econômica local.
Trata-se de parte do Recôncavo, o Recôncavo das charuteiras que também
não apresentou, em sua totalidade, uma área uniforme no que tange aos aspectos
econômico e social e que, como os demais espaços, englobou e ainda engloba em
sua formação variados aspectos. É, portanto, o Recôncavo das charuteiras, uma
área social mais restrita dentro da zona urbana do Recôncavo fumageiro a qual, a
partir da intensa atividade de fabricação de charutos, engendrou novos tipos de
relações sociais, de instituições e de valores e que em congruência com a
produção e reprodução cultural, traduziram o estilo de vida e psicologia social de
sua gente.¹
O campo de observação deste trabalho percorre um período que vai de
1906 quando a documentação disponível fornece o registro das primeiras charuteiras da empresa Suerdieck e, que a partir de então, a indústria de charutos
desenvolveu-se e potencializou econômica e socialmente a área fumageira até
1950 quando se acentuou o processo da crise e declínio da produção na região,
dentro de um complexo contexto de contradições. 2
1
Segundo Milton Santos, é possível se destacar vários Recôncavos: açucareiro, mandioqueiro, de
cerâmica e da pesca. Preferimos falar do “Recôncavo das charuteiras”, que é parte, também, do
Recôncavo Fumageiro, mas acrescentando aí o aspecto social, nosso maior interesse. (1998, pp. 6165).
2
Brandão afirma que é a partir da segunda metade do século XX que a expansão da rede rodoviária
nacional e a integração do mercado interno, dentre outros fatores de ordem história e política, que terminaram por marginalizar os velhos centros de produção regional, deprimindo a imponente rede que
envolve a Baía de Todos os Santos. (1998, pp. 29-42).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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Considerando a especificidade de as charuteiras estarem diretamente ligadas à manipulação do fumo, lançamos um breve olhar sobre este produto e suas
relações com a região e a população que ali viveu, no auge de sua produção e
industrialização, elementos importantes na formação das relações sociais e culturais que envolveram as charuteiras desta região.
A TERRA POR EXCELÊNCIA PRODUTORA DE TABACO
A zona fumageira encontra-se mais recuada em relação ao litoral, constituindo parte do chamado Recôncavo Sul. Segundo o CEI (Centro de Estatística e
Informação – 1940) esta região estendia-se de Maragogipe a Santo Antônio de
Jesus. Nestes limites, destacam-se as cidades de Maragogipe, Cachoeira, São
Félix e Muritiba, interligadas pela antiga estrada BA 02. Seguindo o curso do Rio
Paraguaçu, a sua margem direita é ligada a Cachoeira pela Ponte D. Pedro II, que
encontra do outro lado do rio a cidade de São Félix e, subindo a escarpa da falha,
chega-se a cidade de Muritiba e, a seis quilômetros após, o Distrito de Cabeças
(Governador Mangabeira – município criado em 1962). Nesta porção do Recôncavo Baiano, sob as coordenadas 120 23' a 130 24' latitude sul e 380 30' a 400 10' longitude oeste, (PINTO, 1970, pp. 08-09), centra-se a área que, por muito tempo,
enquadrou-se sob um mesmo gênero de vida a partir da cultura do fumo, envolvendo toda a sua população, de modo particular as charuteiras, direta ou indiretamente na lida deste produto, desde seu auge à crise e decadência.
Dentro destes limites territoriais, o solo apresenta uma composição natural
adequada à lavoura fumageira por ser sílico-argiloso e rico em húmus, propriedades que, associadas à fertilização com o esterco de gado, prática muito freqüente
em toda a região naquela época, determinavam a boa qualidade e quantidade dos
fumos do Recôncavo, pois, segundo o memorialista Anfilófio de Castro "até seis
meses quando o fumo, com tempo favorável em terreno bom e forte, que dá até
treze cortes, qual vimos no Fumal, nós e o culto cientista bahiano Sr. Dr. Heitor
Fróes" (CASTRO, 1941; LAPA, 1973). Embora, ao longo do tempo, o fumo tenhase alastrado por quase todo o Recôncavo, é nos campos de Cachoeira que ele
deu os primeiros sinais de seu desenvolvimento na região. (VILHENA, Vol. I,
1969).
A cidade de Cachoeira, dentre as demais, representava o centro políticoadministrativo e das relações econômicas na região, devido à sua posição portuária, depois ferroviária que, juntamente com São Félix e Muritiba, esta última um
dos pontos de pouso dos transportadores de mercadorias, tinha a função de sediar o escoamento da produção, inclusive o fumo em grande quantidade, além de
intermediar a capital e o interior mais distante, ou seja, o sertão, ao recambiar uma
série de produtos exportáveis, fato que reproduziu o cenário de tropeiros e vaqueiros a transitar pelas ruas daquelas cidades em direção ao porto. Essa rede de
comunicação solidificou-se em fins do século XIX e no início do século XX, com a
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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abertura de estradas de rodagem e a conseqüente utilização de veículos automotorizados, embora este tenha sido um dos fatores importantes para a progressiva
transferência da importância econômica e política dessa região para outras áreas,
isolando-a do resto do país. (SANTOS, 1988).
Situado nos terraços fluviais da margem esquerda do Paraguaçu, o porto
da Cachoeira tem a sua utilização e considerável importância no Recôncavo datadas desde a colonização e mesmo com a extensão da malha viária já nas décadas
de 40 e 50, grande parte da produção do planalto fumageiro, incluindo a das manufaturas de charutos, ainda era escoada por via flúvio-marítima, elemento muito
importante na estruturação econômica e social da região.(IBGE, 1980).
Este cenário sugere um intenso movimento de entrada e saída de mercadorias na região que caracteriza o tempo de uma economia promissora, embora contrastasse com um quadro social de muita pobreza que ali margeava e para lá se
dirigia em busca de trabalho, inclusive nas fábricas que formavam o parque manufatureiro da região. (PINTO, 1998).
Datada dos tempos da colonização da Bahia, a atividade fumageira desdobrou-se paralelamente à produção do açúcar na região, a partir de uma organização sócio-econômica e cultural diferenciada. 3 Podia o fumo ser produzido em
pequena escala e, seu beneficiamento, além de não exigir alto nível de especialização, era menos dispendioso que o açúcar, tais condições atraíam pequenos
agricultores para aquela atividade. (CASTRO, 1941, pp. 107). O fumo, ainda que
de qualidade inferior, conhecido como fumo-de-corda representou, por muito tempo, uma atividade econômica secundária no comércio colonial do tráfico de
negros com a África. (BORBA, 1975, vol. 2, p. 12). Entretanto, ao longo dos séculos, sem muita modificação em suas técnicas de plantio e beneficiamento, mas já
sendo produzido em forma de rapé e folhas selecionadas para fabricação de charutos foi assumindo uma posição de destaque e estabilidade dentro da pauta de
produtos exportáveis para outras partes do mundo, assim como, aumentou o consumo interno possibilitando a emergência de um mercado consumidor local que
viria a favorecer essa economia e a formação de um quadro social característico.
Anfilófio de Castro informa que "fomos nós que já em 1559, enviamos
sementes de fumo a Portugal", mas, é somente a partir da segunda metade do
século XVII que a cultura do fumo passou a ser uma das principais lavouras típicas
do Recôncavo Sul da Bahia, 4 atendendo ao crescente interesse comercial de Portugal, ao tempo em que este forçava o abrandamento das medidas restritivas à
lavoura em favor de uma certa política protecionista que lhe favorecia no comércio
de escravos com a África e as especiarias no Oriente.
3
Segundo Marisa Corrêa (1982, p. 19), o fumo da Bahia, além de ter sido produzido simultaneamente
ao açúcar, rendeu mais que o ouro das Gerais aos cofres portugueses.
4
Ainda, segundo SCHWART, a produção de fumo para comercialização tem início nesta região por
volta da segunda década do século XVII, quando pequenos agricultores iniciaram em São Pedro do
Monte de Muritiba as primeiras plantações, seguindo-se à Vila de Nossa Senhora do Rosário do Porto
da Cachoeira, onde começou a centralizar a indústria do fumo de rolo.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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Para o século XVIII, segundo Vilhena (1969, p. 199), “há nesta Capitania
diferentes paragens, onde se lavra tabaco; os sítios, porém onde há mais fazendas dele são com preferência a todos do Brasil, os campos da Cachoeira". No final
do século XVIII, só no distrito de Cachoeira havia oito mil plantadores de fumo e na
maioria rendeiros (MATTOSO, 1992. p. 463), criando, a partir de então, uma espécie de tradição em torno dessa atividade e um tecido social territorialmente diferenciado.
Nos últimos anos do século XIX, a lavoura do fumo constituía o principal artigo de exportação e, ao raiar do século XX, já contando com a instalação das fábricas de charutos, continuou contribuindo com as rendas auferidas pela exportação
na economia da Bahia, sendo o Recôncavo o maior fornecedor de fumo e derivados de todo o Estado. Foi assim até mesmo quando já não ocupava lugar de destaque por ocasião das sucessivas crises e dificuldades que a lavoura enfrentava.
(BORBA, 1975, vol. 2, p. 10; ALMEIDA, 1951, n.2. p. 8-9).
A produção e exportação de fumo dos tipos superiores, provenientes do
Recôncavo, favoreceram na Bahia fortes relações comerciais com o estrangeiro,
principalmente com as cidades de Bremen e Hamburgo na Alemanha, que
tinham em 1827 os seus consulados instalados na capital deste Estado. A Alemanha representava o mais importante mercado de fumo de charutos de toda a
América. Bremen chegou ao fim do século XIX com o primeiro lugar na importação
mundial de fumo em folha e, no início do século XX, o fumo da Bahia –como é chamado o fumo do Recôncavo-, ocupou lugar de destaque no comércio de Bremen,
antes dividido somente com os Estados Unidos. (BORBA, 1975, vol. 2 p. 75-78).
O fumo do Recôncavo era exportado tanto para o estrangeiro como para
outras áreas internas do país, assim como mantinha, em grande parte, as indústrias locais. Ao mesmo tempo, a Bahia constituía-se num grande importador de fumo
de várias partes, através de Bremen de onde também, adquiria os charutos alemães. Tais relações comerciais evidenciam o reflexo do controle do mercado do
fumo baiano pela Alemanha, pois, do Recôncavo era exportado o fumo bruto, que
naquele país era beneficiado e reexportado como fumo de alta qualidade para ser
utilizado nas manufaturas do Recôncavo a preços altíssimos. Entretanto, comparado muitas vezes com o fumo de Havana, o fumo do Recôncavo, quando aqui
beneficiado, também era destinado aos charutos de qualidade superior.
(SUERDIECK, 1955).
Cachoeira, São Félix, Muritiba e seus arredores representaram, portanto, o
centro da cultura fumageira na Bahia, desde a colonização até o período de retração econômica, seja pela qualidade do fumo, seja pelos produtos ali produzidos.
Outeiro Redondo, distrito de São Félix, chegou a receber incrementos do governo
pela “produção de safras apreciáveis na balança do Estado”. (AMSF, 1952). O
fumo de São Félix era, de fato, para o exterior, a melhor espécie exportada pelo
Brasil, por corresponder às exigências do mercado na produção de charutos finos.
Porém, num processo de sucessão histórica e ecológica, o pólo fumageiro
foi, gradativamente, sendo transferido para Cruz das Almas e outras áreas, como
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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se pode verificar já através da produção do ano de 1926, quando Cachoeira, São
Félix e Muritiba juntos produziram 1.140.000 quilos de fumo e Cruz das Almas,
sozinho, produziu 1.660.000. (APEB).
Conforme resumo dos trabalhos do ano de 1936, do Instituto Bahiano de
Fumo (APEB), Cruz das Almas tinha cadastrado 1.521 lavradores e rendeiros produtores, Muritiba 1.466, enquanto que Cachoeira e São Félix não aparecem mais
como grandes produtores de fumo. Em meados do século XX, com o evento da
rodovia e do caminhão, que contribuíram diretamente para as transformações
espaciais da indústria fumageira naquela região, Cruz das Almas já representava
o maior produtor de fumo entre aqueles municípios. (SANTOS, 1988, p. 79). Essa
mudança de direção no quadro da importância econômica dos antigos municípios
produtores e beneficiadores de fumo causaram um certo mal-estar. Já em 1941,
sem perceber as mudanças conjunturais oferecidas pelo momento, Anfilófio de
Castro (p. 104) escrevia:
(...) e, de culpa nossa, nos tomou [Cruz das Almas] a vanguarda, desaparecendo assim o nosso nome que, muito acreditado
e conceituado, brilhava nos mercados estrangeiros, onde as
grandes "marcas" atuais, feitas de fumo nosso, em nossos
armazéns, levam chapas dizendo-se de outras procedências,
como se possível noutras partes gênero igual, e operários
aptos e escrupulosos como o muritibano.
O Recôncavo Sul da Bahia passou a ser, então, o principal centro da cultura
fumageira e de sua exportação, representado, embora em períodos diferentes,
pelos municípios de Maragogipe, Cachoeira, São Félix, Muritiba, Cruz das Almas,
São Felipe, Nazaré, Santo Antônio de Jesus e, percorrendo uma grande faixa de
ambos os lados do Rio Paraguaçu, os chamados tabuleiros terciários, sempre
recuados do litoral, formando aí uma zona natural produtora de fumo, de onde procediam várias espécies de fumo apropriadas ao fabrico de charutos pelo tratamento dado às suas folhas. (BORBA, 1975, Vol. 2, p. 19; PINTO, 1998, p. 122;
APEB). 5
Nos anos 30 do século XX, a lavoura do fumo já se havia estendido a outras
áreas do Estado, como por exemplo, Coração de Maria, São Miguel das Matas,
São Gonçalo dos Campos e Castro Alves, chegando a 101 municípios dos 152 na
época, o que caracterizou uma expansão que demonstra sua importância como
produto agrícola de peso na economia baiana, já considerado como aquele que
"tem uma tríplice influencia: é artigo de exportação, é objeto de geral consumo
interno e é fonte fiscal ou de renda". (APEB).
5
Os tipos de fumo são classificados conforme as zonas produtoras: o "mata", fumo suave e fino era procedente de Belém (distrito de Cachoeira), Muritiba, Cruz das Almas, Conceição do Almeida, Maragogipe, São Felipe e Santo Antonio de Jesus; o "Beira-campo", ou seja, fumo forte e fino procedente de São
Gonçalo e Cachoeira; produzindo as outras áreas um fumo mais "ordinário". Cada uma dessas espécies pode ainda apresentar variações secundárias de qualidade.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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Esse processo de evolução da importância econômica do fumo na Bahia,
principalmente, no Recôncavo, é que contribuiu para a instalação e ampliação de
várias empresas de manufaturas deste produto, coincidindo a época da grande
exportação de fumo com o surto manufatureiro, localizado principalmente nas
cidades de Maragogipe, Cachoeira, São Félix e Muritiba, que tiveram seu auge,
considerando os períodos de crise, até a década de 50 quando começa o processo da decadência da manufatura fumageira na região. (BORBA, 1975, p. 18;
SANTOS, 1998. p. 80-87).
Em 1952, ocorreu em Salvador o Congresso Nacional do Fumo voltado
para o estudo de novas técnicas na cultura do fumo, assim como, para a
busca do amparo à lavoura e assistência financeira aos produtores e industriais,
acontecimento que revela a importância do fumo naquele período. Na oportunidade, o Jornal Correio de São Félix dedicou importantes espaços à história do fumo e
das manufaturas naquela região, como a publicação em 26 de abril de 1952, da
palestra "Fábricas de Charutos", proferida pelo Comendador José Ramos de
Almeida Alves, em 09/04/1952 no Rotary Club Cachoeira - São Félix; além de vários artigos publicados no Jornal Correio de São Félix, nos dias 10, 17 e 24 de maio
e 12 de julho de 1952.
A zona fumageira definiu, ao longo do tempo, uma nova hierarquia para as
cidades da região no plano da importância do desenvolvimento econômico e
sócio-espacial, emprestando também a sua população características culturais
diferenciadas das regiões vizinhas ou da mesma região em outros tempos a exemplo da região canavieira. O fumo, portanto, constituiu-se num elemento importante
nesta região, não apenas como produto auxiliar de sua economia, mas como produto econômico primário de uma sociedade, que além de uma paisagem natural,
delineou uma paisagem humana e social característica de suas propriedades,
desde o trato na roça, o uso na fabricação de charutos até o comércio.
OS PLANTADORES DE FUMO - SEU TRABALHO E SEU GANHO
Na porção do Recôncavo aqui abordada, apesar da vasta área dedicada ao
plantio de fumo, predominaram as pequenas propriedades de terras com cerca de
1, até no máximo 10 hectares, administradas inicialmente por homens livres de
poucos recursos, o que explica a condição de não-escravo, tampouco, de latifundiário como o senhor de engenho, mas que também podiam ser donos de terra,
assim como meeiros, nos quais muitos escravos libertos transformaram-se,
fazendo o pagamento da terra utilizada com a metade de tudo o que produziam.
Contudo, a maioria dos plantadores de fumo do Recôncavo era formada de rendeiros que, por um contrato verbal e inviolável, faziam o uso e pagamento da terra ao
seu proprietário. (BORBA, 1975, p. 13-15; PINTO, 1998, p. 124-125; AMSF, nº22,
15/10/1944).
Em relação ao uso desta mão-de-obra, requisitava-se o concurso de toda a
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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família e, até meados do século XIX, também, utilizava-se um pequeno número de
escravos e escravos, tanto para o trabalho da roça quanto para a preparação do
fumo em rolo ou fumo em corda que formava a “bola de fumo”, trabalho pesado realizado nas manufaturas da Vila da Cachoeira. (LAPA, 1941, pp. 171-179;
MATTOSO, 1992. p. 463).
Com a abolição em 1888, essa região passou a contar com o retalhamento
das terras e um contingente maior de mão-de-obra livre e sem trabalho fixo, dificultando o preparo dos rolos de fumo por falta de mão-de-obra escrava nas fazendas.
(SANTOS, 1998, p. 73). Em fins do século XIX e no século XX, com a utilização do
fumo em larga escala na fabricação de charutos e cigarrilhas e, por conseguinte,
maior exigência do mercado interno e externo, predominou um número maior dos
chamados pequenos e médios proprietários, assim como os rendeiros que, com o
trabalho de suas famílias e as práticas de ajuda mútua e adjutório, muito comum
nesta região, dedicaram-se em grande parte ao plantio do fumo, embora também
se ocupassem da economia de subsistência. (MATOSO, 1992, p. 463; BORBA,
1975, p. 13-14). 6
O conjunto dessas pequenas propriedades formava “uma malhada verde
nas épocas de plantação e, no período de secagem enchiam as casas de 'camas
de fumo' e talos secos”, (SILVA, 1998), 7 conduzindo as famílias proprietárias ou
rendeiras ao labor diário dessa atividade, desde a preparação das sementeiras e
do solo, o plantio, o trato com a planta que envolviam etapas muito trabalhosas; a
colheita, ou seja, as etapas do corte, secagem, enfardamento, transporte dos fardos para os armazéns dos centros urbanos mais próximos, e até mesmo no trabalho das manufaturas, que tinham o seu contingente operário maior, exatamente no
período entre safras, quando cessava o trabalho na roça de fumo e se estendia a
labuta com a planta já seca. 8
As ferramentas apropriadas, como o arado e a enxada, insumos como o
adubo – o esterco de gado ou a mamona –,9 as mãos e os aventais das mulheres
sujos de cerol de fumo, o aroma forte da planta verde ou seca, os telhados das
casas e/ou dos galpões cheios de fumo, os fardos sobre os animais transitando
6
Somente após 1959 as categorias de rendeiros, parceiros e meeiros sofrem uma redução acentuada,
conforme SECRETARIA DA AGRICULTURA. Fumo na Bahia: Diagnóstico Preliminar. Salvador: 1980.
7
Sobre o termo “malhada” Joaquim de Amorim Castro (Juiz de Fora e lavrador da vila de Cachoeira –
1788) já utilizou em suas Memórias como “lugar estrumado” apud LAPA, 1973. Completando, LAPA diz
“que hoje pode também significar uma plantação de fumo”. p. 164.
8
Para um estudo minucioso sobre a semeadura e todas as fases de produção do tabaco, a obra que
apresenta maior número de informações detalhadas é a de Antonil, que dedica 12 capítulos, versando
sobre o assunto. Antonil, avalia, ainda, ser o trabalho de lidar com o tabaco tão penoso que excede em
muito o de fazer o açúcar (pp. 149 – 199); (LAPA, op. cit. p. 160-167); e (CASTRO, op. cit. pp. 106-107).
9
Sobre a adubação da terra ver: APEB. Secretaria da Agricultura Indústria e Comércio. Relatório do
IBF.; O adubo químico, resultado do bagaço de caroço da mamona passou a ser utilizado já gado destinado à fertilização da terra para o plantio de tabaco está intimamente relacionado à conexão desta cultura com a pecuária, na mesma região. (LAPA, op. cit. p. 162).no século XX. O estrume do gado destinado à fertilização da terra para o plantio de tabaco está intimamente relacionado à conexão desta cultura com a pecuária, na mesma região. (LAPA, op. cit. p. 162).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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entre as casas e os armazéns são elementos peculiares que definiram e caracterizaram não só a região como as pessoas e os tipos de relações que as mesmas teciam no seu cotidiano.
A organização do trabalho, em todas as etapas de produção, ocorria com a
reunião de todos os membros da família, incluindo os agregados, se os tivessem.
Porém, não havia a presença de um feitor ou mestre, mas estava sob a direção do
chefe da família, que, geralmente, era o homem e que, apesar de representar uma
figura autoritária, não determinava, entre os membros distinção de tarefas diretamente ligadas à roça, todos podiam fazer de tudo. A este cabia-lhe, além de participar do cultivo da lavoura, a organização do transporte e a comercialização do
fumo nos armazéns. A mulher, também estava presente na lida agrícola, além de
já ser responsável por todo o serviço doméstico e o cuidado com as crianças, que
já cresciam na lida, lado a lado, a seus pais. Situações que envolviam relações econômicas, sociais e de gênero e emprestavam àquela gente características singulares ligadas às atividades relacionadas ao fumo. (PINTO, 1998, pp. 129-130).
A zona agrícola do Recôncavo Fumageiro teve sua vida econômica baseada nas pequenas unidades de produção, ao contrário da área contígua açucareira
(APEB, 1940-1947) e, uma vida social organizada em torno da família, pois,
segundo o Relatório do Instituto Bahiano do Fumo, "o pequeno lavrador planta sua
roça e n'ella trabalha com a sua família”, esta que tanto podia ser a sacramentada
pela Igreja Católica quanto a natural, criada pela mera vontade dos parceiros, ou
seja, “a forma costumeira da amigação” e tão comum em toda a Bahia.10
Era o fumo do Recôncavo a “lavoura de pobre”, que também foi chamada
de lavoura de “fundo de quintais” pelo seu caráter democrático de ocupar até os
menores espaços da pequena propriedade, como os jardins e quintais, abarcava
um grande contingente humano dedicado ao seu cultivo. A população, envolvida
com a lida diária do fumo, apresentava uma pobreza bastante acentuada, que
"não resta dúvida de que é aqui, entre as subáreas do Recôncavo, que atraso e
pobreza são mais visíveis e mais chocantes". (PINTO, 1998, p. 122-134).11
A pobreza daquela gente revelava um modo de vida característico da região
do fumo, que estendia-se do campo aos centros urbanos e suas periferias, acompanhando o trajeto do fumo aos armazéns, fábricas de charutos e às residências
onde também a manipulação industrial do fumo era rotina. Sendo o fumo considerado a grande riqueza do Recôncavo Sul, a produção final de toda a região movia
grandes somas de capitais dos comerciantes e do Estado. Mas, considerando a
composição da mesma região como um mosaico de pequenas plantações e raras
10
Os CENSOS de 1940 e 1950, apresentam para o conjunto da população de 15 anos e mais desta
região, um percentual de habitantes casados de relativamente 20% e de solteiro de 76%, ficando os
outros por conta dos viúvos e os que não declararam. Ainda para o caso ver PINTO, op. cit. 1998, pp.
128-129; MATTOSO, op. cit. p. 208; E para a discussão sobre formas de amasiamento ver VAINFAS,
1989; BASTIDE, op. cit. p. 69.
11
Segundo CASTRO, os "lavradores" de fumo eram "geralmente analfabetos e pobres" (op. cit. P.104);
Ainda para “lavoura dos pobres, dentre outros, ver: Correio de São Félix, nº 21, 08/10/1944; ALMEIDA,
op. cit. pp. 8-9; LAPA, op. cit. P. 149; BORBA, op. cit. p.15; RIBEIRO, 1995, pp. 277-279.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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propriedades de maior extensão, o pequeno agricultor e sua família não recebiam
do governo a atenção necessária para a ampliação de sua lavoura. O pequeno produtor ficava “nas mãos” dos trapicheiros, comerciantes – atravessadores, representantes dos vários armazéns de fumo e das exportadoras, que usavam um sistema de financiamento antecipado, ou seja, compravam as safras, antes mesmo
de plantar o fumo, a preços presumidos, que significavam para eles preços baixos
e assim logravam todas as suas possibilidades de lucro, além dos juros extorsivos
praticados neste comércio.
Caso o agricultor fosse um “meeiro” ou “rendeiro”, não sendo proprietário
das terras, a falta de proteção era maior. Não recebia nenhum incremento por
parte do Estado ainda ficava sujeito às condições impostas pelos proprietários das
terras. Era um trabalho coletivo no tocante à força de trabalho dispensada por toda
a família e, sem contar os dias de trabalho que começavam ao raiar do sol e só terminavam ao escurecer; além da lavoura de subsistência que era o que garantia,
de fato, a sobrevivência real do agricultor, e que muito pouco deixava de lucro para
ele e sua família, pois, segundo Borba (pp. 16-19), era destinado apenas para a
compra de roupas e calçados para a família. Anexo ao decreto de criação do Instituto Bahiano de Fumo e seu Regulamento, em 1935, um relatório da Secretaria de
Agricultura Indústria e Comércio (APEB) também identifica que:
A sua safra de fumo dá-lhe o numerário necessário para o vestir
e a sua família. As outras lavouras ou o trabalho a dia dão-lhe a
subsistência. Quase sempre o lucro que dá a venda do fumo ao
pequeno plantador, é destinado a compra de fazendas, roupas
e calçados para a família.
O ganho que percebia o pequeno agricultor de fumo e sua família não era,
portanto, suficiente para uma vida razoavelmente satisfatória, dando lugar a certas práticas, como por exemplo, a de comprar parte dos mantimentos, por um
longo período, no armazém mais próximo e sob o registro de uma caderneta,
pagando a dívida com o próprio fumo ou somente quando vendia a sua produção.
Esta prática implicava, muitas vezes, uma soma elevada referente a sua situação
econômica que pouco lhe restava ao final. (MATTOSO, 1992, p. 518).
Estas e outras situações de precariedade vivenciadas pelo agricultor de
fumo e sua família definem aspectos da vida sócio-econômica da zona tabaqueira
e explicam, portanto, a expressão “lavoura dos pobres”, que representa um paradoxo em relação ao fumo já que este era a riqueza que movia de forma ascendente a economia do Estado, nos períodos em que esteve em ascensão.
Nas pequenas empresas agrícolas, onde a terra e as sementes eram trabalhadas pelas famílias de maneira ainda bastante rudimentar, homem e natureza
não são distantes e a interferência do primeiro elemento sobre o segundo significa
muito mais uma relação de aproximação, apesar das contradições do sistema econômico. O Recôncavo, além de ter sido o maior produtor de fumo na Bahia, foi destacado também, como o principal centro de exportação e das manufaturas de chaTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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rutos e cigarrilhas, onde se desenrolava uma mão-de-obra constituída, na maioria, por mulheres charuteiras que formavam o cenário urbano e social da zona
fumageira.
REFERÊNCIAS DO TIPO HUMANO HISTÓRICO-SOCIAL DOS
FUMAGEIROS
A formação da população do Recôncavo Fumageiro, quanto às características raciais, sociais e culturais, é complexa e exige um estudo minucioso. Porém,
inicialmente, está intimamente ligada a sua história desde o período da colonização quando índios, europeus - principalmente o português - e negros, representaram as matrizes do processo de miscigenação que ofereceram, posteriormente,
também os referenciais de cor desta população.
Esta região foi povoada pelos índios Tupinambás, que somavam ainda no
período dos três governos gerais 47 aldeias. São Félix, por exemplo, constituía-se
numa aldeia de índios com 20 palhoças habitadas por cerca de 200 índios. Com a
instituição do domínio português e a resistência indígena, instalou-se a guerra de
destruição a esses índios que se constituiu em um denominador comum na história de ocupação do Recôncavo, da qual resultou o gradativo despovoamento
desta região. É neste processo de luta de resistência à escravidão e ao poder
sobre o seu território que os índios sobreviveram, em parte, e não resistiram ao cruzamento com o colonizador, permitindo o primeiro passo para o processo de miscigenação do Recôncavo. (MATTOSO, 1992, pp. 69-81; AMSF; AZEVÊDO, 1968,
pp. 3-14; CASTRO, 1941, p. 34).12
Quanto aos negros é sabido que a sua presença esteve relacionada à
escravidão africana e teve no Recôncavo, desde a colonização até o final do século XIX, a maior concentração da Bahia. A sua demanda nesta região vinculou-se
ao crescimento da indústria do açúcar e as plantações de fumo, estas últimas para
sustentar o tráfico de escravos no "comércio triangular". (AZEVEDO, 1968, p. 7).
Cruzando as informações da evolução demográfica do Censo e os números sugeridos por Bastide (1980, p. 68-70), tinha a Bahia já em 1890, uma população de
1.919.802 habitantes e, destes 75,97% eram de negros, relativamente proporcional a estes números também todo o Recôncavo, considerando que era Cachoeira
e São Félix os centros de irradiação negra do Estado.
Porém, esse mesmo Recôncavo se estabeleceu como área de transição,
pela sua comunicação com a Baía de Todos os Santos e o sertão, através dos rios
que nesta baía desembocam e, mais tarde, com as rodovias que contribuíram
para a distribuição da população, seja dos que chegavam ao Recôncavo ou dos
que saíam deste em direção à capital ou ao sertão, mas que cruzavam o mesmo
12
“As margens do Paraguaçú eram da mesma fórma habitadas pela nação de Paraguás
(...)".CASTRO, op. cit. p. 34.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
34
ponto. Neste percurso, o processo de fusão das raças foi redefinindo, ao longo do
tempo, outro quadro, particularmente, para o Recôncavo Fumageiro que se ocupou da manufatura dos charutos. (SCHWARCZ, 1998, vol. 4, p. 193)13.
Uma amostra da população, por cor, das décadas de 40 e 50 do século XX,
oferece informações que apresentam para esta região uma população miscigenada, embora se considere esta miscigenação mais densamente próxima para a cor
escura que para a clara, um tipo que Azevedo chama de "mulato escuro". Em
1940, a população dos municípios de Maragogipe, Cachoeira, São Félix e Muritiba
somava 105.047 habitantes, sendo 34,14% de cor preta e 46,33% de cor parda.
No Censo de 1950, estes municípios somavam uma população de 110.253, sendo
52,75% de cor parda, ou seja, a maioria era uma população não branca, nem
exclusivamente de cor preta. (IBGE, 1958).
Apesar da sobrevivência, em grande parte, nesta região, da herança de elementos da cultura africana, os deslocamentos da população e as interpenetrações sociais e culturais que se processavam em todo o Nordeste facilitaram, particularmente ao Recôncavo, a uma complexa formação étnica resultante da intensa
fusão entre os elementos africano, europeu e ameríndio. (BASTIDE, 1980, p. 6971; MATTOSO, 1992, pp. 69-81).
A instalação das empresas de beneficiamento, exportação e fabricação de
charutos, também impôs a presença na região, já densamente miscigenada, do
elemento estrangeiro. Entre 1880 e 1930, entraram no país cerca de 3,5 milhões
de imigrantes, sendo 112 mil de alemães.(RAGO, 1997, pp. 580). Em 1920, contavam os municípios de Maragogipe, Cachoeira, São Félix, Muritiba e Cruz das
Almas com 174 estrangeiros, sem contar 81 pessoas de nacionalidade não declarada, que podiam ser, tanto brasileiros como estrangeiros e, em 1940, estes municípios contavam com 140 estrangeiros. (IBGE, 1920 e 1940). Há de se reconhecer
que estes números moviam-se constantemente com o trânsito destes indivíduos,
principalmente os alemães, que negociavam com fumo entre as várias regiões do
Brasil com que mantinham negócios, além de seu país de origem, no caso a Alemanha, onde as relações comerciais eram constantes.
Um outro momento que reduz, consideravelmente, estes números é o contexto da Segunda Guerra Mundial, em relação aos alemães no Brasil. Destacando-se neste período, principalmente, o alemão, que apesar de ver o Brasil apenas
como o porto de conquista de fortunas, muitos deles estabeleceram-se na região e
constituíram famílias. Como por exemplo, o Sr. Geraldo Dannemann, alemão de
Bremen, naturalizou-se brasileiro em 1889 e foi o primeiro intendente de São
Félix, casando-se com a operária Aleluia Navarro com quem teve nove filhos;
Gerard Meyer Suerdieck, alemão, casou-se com Tibúrcia Guedes, uma operária
da fábrica de charutos, que anteriormente era pescadora de mariscos em Nagé,
localidade de Maragogipe; Sr. Johann Schinke, alemão, casou-se com Zelinda de
Brito operária da Suerdieck de Maragogipe.(AMSF, 26/04/1952; SUERDIECK S/A
13
Esta autora chega a afirmar que “Era a cultura mestiça que, nos anos 30, despontava como
representação oficial da nação”, p.193.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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CHARUTOS E CIGARRILHAS, 1955). São casos que representam um fragmento
de uma realidade muito mais complexa, em que as relações entre alemães e brasileiros não se reduziam apenas ao trabalho, mas estavam presentes, também,
em outras circunstâncias, configurando uma assimilação que não significou a “passagem” de uma cultura à outra, mas, em certa medida, uma adaptação que gerou
a integração entre grupos sociais diferentes, promovendo ganhos de ambos os
lados. O fluxo da mobilidade social, em âmbito regional e em direção aos centros
urbanos, também colaborou na formação social do Recôncavo.
A composição do quadro social do Recôncavo Fumageiro, na primeira metade do século XX, também apresenta um processo gradativo de alfabetização que,
além de lento, não aparecia como valor, muito menos como valor positivo para as
funções ocupadas no trabalho com o fumo, sendo o número dos que não sabiam
ler e escrever bem significativo.
Assim, a lavoura e "a indústria do fumo é a ocupação de quase a totalidade
do seu povo" [Muritiba], "o qual, embora com qualidades apreciáveis, é pouco instruído e pouco afeiçoado às letras". (CASTRO, p. 05). Esta afirmativa estende-se
nas mesmas proporções para todos os outros municípios da região fumageira,
pois, conforme o Censo de 1940, o total da população de cinco anos e mais de
idade dos municípios de Maragogipe, Cachoeira, São Félix e Muritiba era de
88.275 e destes 65.720, ou seja, 74.45% não sabiam ler e escrever. Em 1950,
segue com pequena diferença, o mesmo ritmo das proporções, uma média de
70.65% de analfabetos para o total da população de cinco anos e mais de idade.
(IBGE, 1950).
As fichas de registro dos trabalhadores da Suerdieck de Maragogipe, no
entanto, oferecem outros percentuais que, proporcionais ao seu montante, permitem concluir, também, que o processo de alfabetização entre os trabalhadores da
indústria do fumo pareceu um pouco mais acelerado, embora considere uma
amostra restrita e dados que são relativos pela flutuação do pessoal, mas que
podem ser considerados como um reflexo da realidade apresentada. De 1906 a
1950, dos 2.852 funcionários fichados, têm-se:
Tabela nº 1 - Instrução
Instrução
N.°
%
Nula
1.125
39,45
Primária (1.º ao 5.º ano)
1.727
60,55
Total
2.852
100,00
FONTE: Documentos da Fábrica Suerdieck. Maragogipe-Bahia
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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O casamento, nos moldes oficiais republicanos, também apresentava
número bastante reduzido, cedendo lugar às uniões livres, ou seja, uniões conjugais extralegais na forma do concubinato, estas que, além de serem aceitas,
representavam também uma forma comum de relacionamento entre homem e
mulher. Da mesma forma, Castro (p. 36) é enfático ao afirmar que "numa população de entre 37 a 40.000 almas, realizando-se apenas, anualmente, 156 casamentos legais, atinge as raias do espanto pela insignificância". Embora, o Censo
informe que em 1940, em Muritiba havia apenas 28.135 habitantes, mas ao tomar
a população dos quatro municípios de quinze anos e mais de idade - 105.047 -, os
números revelam que 80.762 eram solteiros, relativamente 76% da população, ou
seja, embora haja divergências nos números, procede o espanto do observador.
Em 1950, o Censo aponta 72% da população dos cinco municípios, de 15 anos e
mais de idade, composta por solteiros. (IBGE, 1940).
Tabela nº 2 - Estado Civil
Estado Civil
N.°
%
Solteiro
2.333
81,80
Casado
472
16,55
Viúvo
47
1,65
Total
2.852
100,00
FONTE: Documentos da Fábrica Suerdieck. Maragogipe-Bahia
Estes dados, referentes ao tipo humano, instrução e estado civil dos trabalhadores do fumo, são apenas indicativos para uma aproximação do tipo étnico,
cultural e social do homem fumageiro do Recôncavo Sul da Bahia, visando identificar, também, as charuteiras como parte desse cenário, abrigando uma crença subjetiva em uma procedência comum.
A evolução da importância do fumo na região do Recôncavo revela o grau
de envolvimento da população que, ao longo do tempo, dedicou-se ao seu plantio,
beneficiamento e manufatura, delineando, também, uma fisionomia social e cultural específica desta região. O domínio da cultura fumageira representou outra economia, outra vida e outra cultura, refletindo assim, na formação de uma sociedade
característica do Recôncavo Fumageiro, onde se localiza, portanto, as charuteiras.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
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Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 23-39, Novembro, 2006.
BODE-ESCOLA: UMA ALTERNATIVA À POLÍTICA
ASSISTENCIALISTA
Maria José Lordelo*
RESUMO: Neste artigo, apresento os indicadores de dois sistemas: O BolsaEscola e o Bode-Escola. O primeiro caracteriza-se pela política assistencialista
promovida pelo Estado, enquanto o segundo nasce da vontade popular, cuja linha
mestra das fundadoras do Processo é o rompimento das ações contra – hegemônicas.
PALAVRAS-CHAVE: Estado; administração da pobreza; gestão local; política
emancipatória.
ABSTRACT: In this paper I present the indicators of two systems: The school bag
and the school billy-goat. The first is characterized by the assistant politic promoted by the State, while the second is born of the popular will, whose the master line
founders of the process is the breaking of the against-hegemonies actions.
KEY WORDS: State; administration of poverty; local administration; emancipated
politic.
* Professora do curso de Normal Superior, Enfermagem e Administração da Faculdade Maria MilzaFAMAM. E-mail - [email protected]
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
42
INTRODUÇÃO
O Projeto Bolsa-Escola, de iniciativa do Governo Federal, criado em 1997,
apresenta-se como alternativa para interromper o ciclo do trabalho infantil, através
de um sistema pecuniário, para o afastamento das crianças do trabalho na cultura
do sisal e na pedreira, na Bahia. Dentre as ações anunciadas, destaca-se a educação de qualidade, com o pensamento de inverter a situação descrita. Diante de
um Projeto tão significativo, suscitou-me o interesse de fazer uma pesquisa avaliativa para a verificação do cumprimento dos objetivos propostos pelos gestores.
Em Santa Luz, Bahia, área deste estudo, na zona rural, a população não
alfabetizada, dos 7 aos 14 anos, totalizava 8.947, ou seja, 58,2%, dados do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE,1991). Estes indicadores ilustram a presença
do trabalho infantil que caracteriza o sistema de exploração. Nesse sentido, Rizzini (1999) aponta a existência de crianças na lavoura e indústria de sisal no
sertão baiano. Por isso, a Bolsa-Escola ganhou um significado especial, uma vez
que o Nordeste é uma das regiões mais carenciadas. Perante tais dados, não é difícil compreender a importância de projetos que surjam com o propósito de inverter
as condições demonstradas.
A pesquisa foi realizada no período de 2000 a 2002, quando lecionava na
UNEB, Campus XIV, Conceição do Coité. Considerei como objetivos principais:
Estudar o modo e funcionamento do Projeto, nomeadamente no que diz respeito à
forma como as aprendizagens se processavam no âmbito da Bolsa-Escola; verificar se este projeto cumpria as finalidades de combate ao analfabetismo, à pobreza e de promoção das crianças trabalhadoras a uma melhor posição social.
Dentre os objetivos anunciados, o problema que se apresentou foi se a política da Bolsa-Escola conseguia romper o ciclo do trabalho infantil. Para alcançar
tais objetivos, decidi adotar uma metodologia que incluísse vários tipos de recolha
de dados, junto dos vários intervenientes do Programa. A 1ª técnica utilizada consistiu na pesquisa documental. Foram consultados os documentos legais como a
Lei Municipal nº 961(31-01-2000), Secretaria Municipal de Santa Luz e o Decreto
nº 16270(11-01-1995) instituído por Cristovam Buarque.
Na pesquisa de campo, tomei como amostra os pais e os monitores, recorrendo à técnica da observação direta e a da entrevista aberta. Durante a observação, a minha atenção voltou-se para a forma como os monitores desenvolviam as
atividades escolares e para a maneira como os sujeitos da aprendizagem eram
postos frente ao objeto do conhecimento. Nas entrevistas destinadas aos pais,
jovens e monitores desejava saber como o Projeto funcionava. Aos pais, precisamente, o interesse era tomar conhecimento para onde os filhos iriam após a perda
do benefício.
No decorrer deste estudo, deparei-me com outra experiência: O BodeEscola. Indo conversar com o Sindicato Rural de Retirolândia, região onde há também a presença do trabalho infantil, encontrei as fundadoras desse Projeto que
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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me informaram como o mesmo funcionava. Este fato que surgiu como resultado
da própria investigação constituiu um passo decisivo neste artigo. Com esta experiência diferente, percebi de imediato que poderia representar uma alternativa à
Bolsa-Escola. Isso porque o Projeto, por sua natureza, conduzia a outros tipos de
objetivo, vislumbra-se a possibilidade de romper com a política assistencialista.
O Bode-Escola é um Projeto em que cada família, em extrema condição de
pobreza, recebe um bode e três cabras para os filhos saírem do trabalho de exploração e freqüentarem a escola. Foi desse modo que me interessei por tal projeto e
desejei conhecê-lo melhor. Uma comparação entre as duas experiências pode ser
muito interessante na medida em que se pode ilustrar uma política assistencialista
e uma política de auto-sustentabilidade, a qual nasce de micromovimentos populares.
METODOLOGIA
Considerei amostra desta investigação 40 crianças retiradas do sisal, do
garimpo e da pedreira. A faixa etária destas estendia-se dos 7 aos 14 anos. A escolarização que recebem no âmbito da Bolsa-Escola é feita por monitores. Especificamente em Serra Branca, Bahia, todos possuíam curso de 2º grau e recebiam
mensalmente, no ano de 2002, R$132,00. Ao todo, fazem parte desta amostra
seis monitores, destes, dois eram monitores da Jornada Ampliada-UJA¹, zona
rural de Conceição do Coité, estudantes do Curso de Letras da UNEB, CAMPUS
XIV.
Foram incluídas na amostra, pais e alunos que haviam deixado o programa.
Para isso, visitei outras localidades onde moravam os que perderam o benefício
em virtude de já terem completado a idade limite para a permanência no programa.
Procedimentos: Para a realização das entrevistas e a observação direta,
conectava com a Secretaria Municipal de Educação que me encaminhava para a
coordenação do Projeto.
As entrevistas com os monitores foram realizadas, no ambiente escolar,
com a duração, aproximadamente, de 50 minutos. Com a permissão da coordenação, assisti a uma reunião de planejamento. Nesta, observei como se desenvolviam as atividades e o que priorizavam. Os pais e ex-bolsistas foram conectados em
visita domiciliar cujas indicações dos endereços foram fornecidas pelos coordenadores da Bolsa-Escola. Em nenhum momento, utilizou-se o gravador, todas as respostas iam sendo anotadas.
1
O que se denomina de Jornada Ampliada (UJA) é um segundo turno escolar, como estratégia de
intervenção para suprir as deficiências da aprendizagem. Neste espaço são colocadas crianças de
todas as faixas etárias e séries, da 1ª do Ensino Fundamental à 8ª.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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O Bode-Escola, como já afirmei antes, embora não fizesse parte dos meus
objetivos iniciais, este sistema suscitou imediatamente o meu interesse. Assim,
apesar de não ser, no âmbito do projeto inicial, um estudo exaustivo do BodeEscola, é importante que se conheça os seus fundadores, bem como a linha de
pensamento emancipatório que conduz estas ações contra-hegemônicas. Com
esse objetivo, como não havia literatura específica, a maioria dos dados foi recolhida na pesquisa de campo, salvo as informações obtidas na Folha do Sisal (fevereiro-2002), jornal criado pela Associação de Pequenos Produtores do Estado da
Bahia (APAEB), município de Valente.
Constituíram amostra deste estudo as fundadoras do Projeto, Zenira e Percília da Silva, ambas trabalhadoras do sisal, zona rural de Retirolândia. As técnicas utilizadas para esta análise foram as entrevistas e observações diretas, mas
não houve nenhum planejamento prévio, porque me dirigi ao Sindicato Rural para
colher informações sobre o funcionamento do Bolsa-Escola.
A BOLSA-ESCOLA E A ADMINISTRAÇÃO DA POBREZA.
A Bolsa-Escola, “criança cidadã” surgiu no Brasil, em janeiro de 1995, idealizada pelo governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque e vem sendo mantida pelo governo brasileiro.
O custeio da Bolsa para a educação concedida a cada família é feito com
recursos oriundos de dotações orçamentárias do Distrito Federal e da União e doações casualmente obtidas de organismos e instituições ou entidades interessadas
na ajuda e apoio à infância e adolescência.
O recebimento do benefício condiciona-se à obrigação de os pais manterem os filhos na escola. Para isso, recebem cinqüenta reais, mas 50% deste valor
é administrado pela Prefeitura de cada município, sob a alegação de que a quantia
retida será aplicada na melhoria do ensino dos bolsistas. O limite para a permanência no Programa era até 14 anos. Em junho de 2002, estendeu-se aos dezesseis. No sertão da Bahia, foram beneficiados cerca de 18.000 crianças e adolescentes.2
A responsabilidade do projeto de intervenção é do Ministério da Previdência
e Assistência Social. Mas estas entidades governamentais contam com o apoio
também de organizações internacionais, sindicatos e fundações privadas. Esse
apoio tem como causa o combate ao trabalho infantil proibido pelo Estatuto do
Menor e do Adolescente (ECA), lei nº 8069(13-07-90).
Este estatuto reformula a função do Estado no tocante à oferta de serviços
públicos. Assim, as suas ações limitam-se à fiscalização e orientação dos projetos
2
Dados fornecidos pela Secretaria do Trabalho e Bem Estar Social – SETRAS, na Secretaria Municipal
de Educação de Conceição do Coité e de Santa Luz, como também pelo Sindicato Rural de
Retirolândia, pelo Movimento de Organização Comunitária – MOC, confirmados pelos coordenadores
municipais do Projeto (2002).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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sociais. Logo, redefine-se o papel do Estado que transfere grande parte de suas
responsabilidades para organizações não governamentais. Dessa maneira,
nasce uma nova administração da pobreza, cujos serviços têm como finalidade a
sobrevivência.
Por isso, reintroduzem-se as políticas compensatórias como alternativas
amenizadoras da situação de pobreza e exclusão social. É nesse sentido que se
implantou o sistema da Bolsa-Escola. O primeiro critério para a implantação do
Projeto na região foi um estudo sócio-econômico das famílias pauperizadas. Essa
radiografia é uma das condições para a concessão da bolsa.
Então, a particularidade tática da política assistencialista é suprir as
necessidades elementares destas famílias. A Bolsa-Escola Criança Cidadã tem
esta conotação. Através de um sistema pecuniário, afasta as crianças e adolescentes do trabalho infantil até completarem a idade estabelecida pelo Estatuto do
Menor e do Adolescente que os protege do trabalho pesado.
Nas entrevistas realizadas, os pais declararam que, depois do Projeto, os
filhos se recusam a trabalhar na agricultura familiar, alegando que o governo proíbe o trabalho infantil. Outros pensam em ter mais filhos para aumentar a renda.
Estes depoimentos revelam que o Estado estimula a relação de dependência já
que a política da caridade é provisória por não promover alternativas que possibilitem a auto-sustentação das classes empobrecidas.
Um outro dado relevante é a qualidade de educação oferecida aos egressos do trabalho infantil. A forma como se processavam as aprendizagens, nomeadamente o ensino da leitura, não possibilitava o atendimento de qualquer demanda. A escola denominada de Jornada Ampliada, configura-se um sistema multisseriado , onde há 40 crianças, em uma sala de aula, da 1ª à 8ª série do ensino fundamental. De acordo com o objetivo do Projeto, o 2º turno foi criado para suprir as
deficiências dos egressos do trabalho infantil.
Durante o período de observação (2002), percebi que esse espaço intitulado de Jornada Ampliada contribui apenas para prender os alunos, com intento
de impedi-los de retornar ao trabalho. Os exercícios de matemática cumpriam só
um ritual, ao invés de uma atividade pedagógica. A educação, nesse sistema, legitima a exclusão social. Esse entendimento pode ser confirmado nos depoimentos
de dois monitores universitários ao declararem que a escola continua repetindo “o
modelo arcaico” que considera o professor como “sabe tudo”. Acrescentaram que
os bolsistas já apresentavam uma tendência à cópia e dependiam exclusivamente
do livro didático que devia ser visto como suporte. E concluíram que naquelas circunstâncias era impossível que os monitores, mesmo com formação diferenciada,
realizassem um trabalho favorável à aprendizagem:
Este procedimento é perigoso na busca do conhecimento. Os
alunos não precisam deixar a escola para trabalhar, mas a permanência, deles na sala de aula o dia todo é vista como obrigação e não algo que é feito por prazer. (SARA,2002)
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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As monitoras, ao se referirem ao ensino da leitura, manifestaram igualmente o seu descontentamento porque os alunos limitam-se a decodificar as palavras.
Dessa forma, os egressos do trabalho infantil, ao saírem da escola, não têm condições de continuar aprendendo sozinhos. O que significa dizer que, não adquirindo
o desenvolvimento da habilidade para ler e escrever não há como continuar progredindo, já que o tempo dessas crianças na escola é bastante curto.
O tipo de educação que o Projeto Bolsa-Escola oferece é análogo ao oferecido às crianças operárias da escola de fábrica na Inglaterra, século XIX. A referência a esse tipo de educação é apresentado por Maria Alice Nogueira (1993) ao
analisar os escritos de Marx e Engels. A similaridade, entre as escolas de fábrica
na Europa, século XIX e o Bolsa-Escola no Brasil, aproxima-se até na terminologia
das palavras. Os professores eram denominados de monitores, na sua maioria,
com baixo nível de qualificação. Uma outra característica da Escola da Inglaterra
era a imposição da permanência da criança na escola quando a lei 1843 obrigou a
presença dos pequenos trabalhadores na escola. Ainda, de acordo com essa
autora, a educação naquela época era quase nula, via de regra, as pessoas contratadas não eram qualificadas.
Nessa perspectiva, o Estado mantém a função paliativa de ofertar serviços
supletivos aos segmentos mais pobres da sociedade que recebe políticas públicas assistencialistas que não promovem a ascensão das classes pauperizadas.
Bresser Pereira (1999), ao definir o papel do Estado neoliberal, diz que a premissa
desta política é a de reduzir o seu papel que caberá apenas garantir os direitos
mínimos da população. Passetti (1999) diz que a sociedade assistencialista sempre existiu, desde os anos 20. Estas ações hoje reaparecem e ocupam o lugar da
história da caridade, antes praticadas pelas instituições religiosas.
No depoimento de alguns pais, a Bolsa-Escola é uma contribuição para o
sustento da família, mas não têm muita esperança na melhoria de vida com aquela
escola. Este pensamento é reforçado por uma mãe que afirmou ser melhor o filho
ficar debulhando feijão em casa que ir estudar. Sem sombra de dúvidas, o depoimento da informante denota o descrédito no sistema educacional como agente
que contribui para a transformação sócio-econômica. A atividade de debulhar feijão gira em torno de um trabalho produtivo de subsistência, o qual vislumbra horizontes de ganhos financeiros.
Como a escola não realiza uma proposta pedagógica que permita a transição dos adolescentes para um saber fazer ligado à cultura da região, a escola
perde a credibilidade aos olhos da população. Essa realidade evidencia o distanciamento entre o que o Projeto propõe e o que se constatou na pesquisa de campo.
As crianças e adolescentes, provisoriamente, foram impedidas de voltar ao trabalho. Portanto, a intenção do governo é atender ao Estatuto do Menor e do Adolescente. Ao lado disso, existe uma pressão internacional com a mão-de-obra infantil.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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O BODE-ESCOLA
O Projeto Bode-Escola é o 1º empreendimento em defesa da educação na
Bahia. Famílias em extrema condição de pobreza, no município de Retirolândia,
recebem um bode e três cabras para o afastamento das crianças do trabalho e freqüentarem a escola. Após dois anos, com a multiplicação do rebanho, dois animais são repassados para a próxima família e assim sucessivamente.
Todavia, essa política de ação participativa da comunidade não pode ser
compreendida sem a desvinculação de outros movimentos de organização popular. Esta organização civil é uma reação às ações contra-hegemônicas, cuja intenção do povo é o reconhecimento dos seus direitos de cidadão. Nesse processo de
construção de uma administração democrática, as classes populares organizamse para buscar condições de sobrevivência digna, que julgam possível em seu território, gerindo as suas ações. Sob esse ponto de vista, diz SANTOS:
Os processos hegemônicos de globalização têm provocado,
em todo o mundo, a intensificação da exclusão social. Esses
processos estão sendo enfrentados por resistências, iniciativas
de base, inovações comunitárias e movimentos populares (...)
abrindo espaços para a edificação da comunidade, para alternativas às formas dominantes (...) (2002,p.13)
Nessas circunstâncias, nasceu a experiência do Bode-Escola. A proposta
tem como fundamento ético o direito de tomar decisões não só individuais como
coletivas. Estes princípios foram manifestados nas reuniões com as camponesas
para a discussão do Estatuto do Menor e do Adolescente. A partir do entendimento
dos direitos assegurados, as mulheres idealizaram o Projeto. A idéia foi apresentada em Brasília, na 1ª Conferência Internacional do Direito da Criança e do Adolescente. Nessa conferência, as trabalhadoras do sisal demonstraram a sua preocupação com os seus filhos que não podiam estudar. Então, a organização Internacional do Trabalho (OIT) financiou o Projeto. Na entrevista, diz a informante:
O Bode-Escola deu certo porque partiu do povo. A base do projeto não foi só melhorar a renda. Foi muito mais que isso, foi
mostrar à população que a criação de caprinos era possível.
Antes aqui não se criava cabras. O Projeto também oferece cursos sobre os caprinos. Os técnicos em agro-pecuária dão curso
para as famílias, dão orientações sobre os cuidados que a
gente deve ter com os animais. (ZENIRA,2002)
O pronunciamento da informante revela dois pontos bastante significativos:
cobrar às autoridades estatais a sua incapacidade de promover políticas públicas
que satisfaçam as necessidades do povo. Noutro sentido, chama a atenção para o
fato de que as crianças adquirem conhecimento no processo produtivo. Há, porTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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tanto, uma adaptação a novas situações e formas de sobrevivência, de acordo
com a sua cultura: “É na cultura que nos educamos e desenvolvemos as organizações. A identidade, individualidade é algo que só se adquire e expressa em cultura, e pela cultura as sociedades avançam autonomamente.” (SANTOS, 1996,
p.12). Desse ponto de vista, os movimentos sociais surgem como uma forma de
reclamar a sua inclusão dentro do Estado Nação.
Em contrapartida, o Sistema Bolsa-Escola retira as crianças de sua cultura
oral e aprisionam-na em salas sem condições de oferecer uma educação que possibilite inverter a situação de exclusão a que estão submetidas. O Bode-Escola permite a integração dos adolescentes ao processo produtivo da economia doméstica. O envolvimento com o trabalho dá-se de forma prazerosa, sem estar desvinculado da instrução. Essa satisfação é apontada por Rizzini (1999), citando uma
entrevista com uma das crianças que cuidam dos animais desse Projeto, as quais
declararam que trocaram os espinhos do sisal pelo leite bom das cabras.
No Bolsa-Escola, as crianças e adolescentes continuam dependendo da
política assistencialista e não há perspectivas de rompimento do ciclo do trabalho
infantil. Por isso, permanece a cultura do favor, enraizada para a prática da manipulação política. Esta é quem desencadeia todas as formas de dominação.
Assim, constata-se que o resultado da pesquisa de campo demonstrou que
o Projeto Bolsa-Escola interrompe o trabalho infantil temporariamente. Em visita
domiciliar aos jovens que perderam o benefício por terem completado 16 anos,
constatei que dos 160 alunos que deixaram o Programa, 155 retornaram ao trabalho de origem.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O insucesso do sistema Bolsa-Escola decorre de dois fatores básicos: a
política assistencialista e a qualidade de educação oferecida aos bolsistas. O primeiro aspecto, o de política assistencialista, é a garantia de um rendimento mínimo até os dezesseis anos. Pelo caráter de reversibilidade da bolsa, os beneficiados retornam ao mesmo tipo de trabalho. Uma das particularidades dessa linha
política é promover ações paliativas que obscurecem o empobrecimento da população.
O Bode-escola adensa pressões para a autonomia dos sujeitos e rompe
com a cultura da tutela dos pobres. Hoje, já se vislumbram novos investimentos
como a fabricação de queijo e doce de leite. Há também o pensamento de futuros
projetos para a comercialização de carne de caprino pelo baixo teor de colesterol.
Com muita dignidade, camponeses tem encontrado apoio na Associação dos
Pequenos Agricultores do Estado da Bahia, Entidade que se tornou destaque no
exterior pela qualidade dos tapetes do sisal. Enfim, os indicadores do Sistema
Bode-Escola demonstram que a gestão local nas mãos do povo é uma forma alternativa para inverter a exclusão social.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
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REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 961 de 31 de Janeiro de 2000. Edição municipal, Santa Luz, BA:
2000,
BRASIL. Decreto nº 16270 de 11 de Janeiro de 1995. Edição Federal, Brasil, DF, V.
170º da República e 35º de Brasília, 1995.
CURY, Meenwr et al. Estatuto do Menor e do Adolescente comentado. São
Paulo: Malheiros Editores, LTDA. 1994
NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber e produção em Marx e Engels. São
Paulo: Cortez,1993.
PASSETI, Edson. Políticas públicas e crianças carentes. In: Del Preore, Mary.
História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1999, p. inicial 346 a 375.
PEREIRA, Bresser. Reforma do Estado e administração pública gerencial.
São Paulo: Editora Fundação Getúlio Vargas (FGV),1999.
RIZZINI, Irmã. Pequenos trabalhadores do Brasil (ORG).Mary Del Priore.
Editora São Paulo: Contexto,1999, 444p.
SANTOS, Boaventura. Introdução geral à coleção. In: Santos Boaventura.
Democratizar a democracia – Os caminhos da democracia participativa. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 13 a 25,2002.
SANTOS, dos Eduardo João. A orientação vocacional dos jovens, ou uma
psicologia cultural do trabalho. In: Conferência O papel da orientação para a
educação e a formação ao longo da vida. Porto, Portugal: Editora Actas, p. 1 a
17, 1996.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 41-49, Novembro, 2006.
CULTURA, MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E ESPAÇO
URBANO NA CONTEMPORANEIDADE: UMA BREVE LEITURA
A PARTIR DA CONFIGURAÇÃO ESPACIAL E DAS FESTAS
POPULARES.
Janio Roque Barros de Castro*
RESUMO: As cidades na contemporaneidade concentram não só as principais atividades econômicas da sociedade como grande parte das manifestações culturais. A morfologia urbana do presente é um produto histórico da dinâmica sóciocultural de um povo revelada através da materialidade. Neste trabalho, faz-se uma
breve análise acerca do espaço urbano tanto como arena de deflagração e espetacularização de importantes manifestações culturais como as festas populares
como materialidade produzida em um determinado contexto sócio-cultural. Busca-se portanto entender a relação entre cultura e espaço urbano a partir da contribuição de pensadores contemporâneos e de exemplos verificados no território baiano.
PALAVRAS-CHAVES: Espaço urbano; cultura; cidades; manifestações culturais;
festas.
ABSTRACT: The cities at the contemporary time concentrate not only the main
economic activities of the society, but also greatly part of cultural manifestations.
The urban morphology of the present is a historical product of a socio-cultural
dynamism of people, revealed through the materiality. This work aims to make a
short analysis on the urban space, considered here as an arena of important
cultural manifestations, such as popular fests, as well as a materiality produced in
a determined socio-cultural context. Thus, this article focus on the comprehension
of the relation between culture and urban space, based on the contribution of some
contemporary scholars and examples verified on the Bahia's territory.
KEY-WORDS: Urban space; culture; cities; cultural manifestations; fests.
* Professor da Universidade do Estado da Bahia – Campus V Santo Antônio de Jesus. [email protected]
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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INTRODUÇÃO
A partir sobretudo do pós segunda guerra mundial, o processo de urbanização intensificou-se nos países periféricos promovendo a cooptação / concentração de atividades econômicas e culturais no espaço urbano. As cidades, sobretudo aquelas que receberam um grande afluxo de imigrantes, passaram a apresentar uma maior diversidade cultural verificada tanto do ponto de vista material
quanto imaterial.
Segundo Corrêa (1989), do ponto de vista da sua materialidade, o espaço
urbano constitui-se a partir de um conjunto de pontos, linhas e áreas. O desenho
estético desse espaço forma-se a partir da dinâmica dos elementos culturais que
se materializam em praças e monumentos ou como práticas religiosas e festas
populares que representam o patrimônio cultural imaterial.
No presente trabalho, faz-se uma breve análise da relação entre cultura e
espaço urbano, fundamentando-se nas contribuições de pensadores contemporâneos e apresentando alguns exemplos de manifestações culturais do Estado da
Bahia com destaque para o carnaval e as festas juninas.
A CONCEPÇÃO DE ESPAÇO URBANO
Para a geógrafa Maria Adélia de Souza, a cidade é uma obra humana, constituída de objetos, produzida segundo procedimentos, determinados por materialidades e regidos por intencionalidades precisas. A concepção de urbano nesta
perspectiva reveste-se de intencionalidades, ou seja, a casa, a rua, a cidade, formam-se a partir de ações pensadas e desejadas pelo homem, contrapondo-se
àquela de Park da Escola Sociológica de Chigago para o qual a cidade era um produto não intencional do trabalho de sucessivas gerações.
A cidade, segundo Carlos (2001), como materialidade, é um produto social
histórico concebido no decurso do processo civilizatório que contempla um mundo
objetivo que só tem existência e sentido a partir e pelo sujeito. As formas de produção e de apropriação da cidade apresentam-se não só do ponto de vista das classes sociais como também da dimensão cultural dos grupos sociais. Corrêa destaca que:
Fragmentada, articulada, reflexo e condicionante social, a cidade é também o lugar onde as diversas classes sociais vivem e
se reproduzem. Isto envolve o quotidiano e o futuro próximo,
bem como as crenças, valores e mitos criados no bojo da sociedade de classes e, em parte, projetados nas formas espaciais:
monumentos, lugares sagrados, uma rua especial... (1989,
P.09)
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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A leitura da cidade como espaço socialmente produzido, fragmentado e contraditório não exclui o viés simbólico, cultural uma vez que nas manifestações culturais, a exemplo das festas populares, notam-se aspectos da fragmentação e das
contradições do espaço urbano o que será abordado posteriormente.
O ESPAÇO URBANO COMO PRODUTO DO CONTEXTO SÓCIOCULTURAL
A cidade é uma produção coletiva de múltiplos agentes sociais e de diferentes técnicas ao longo do tempo. Desta forma, o desenho urbano é um reflexo não
só da dinâmica política e sócio-econômica como também é produto e reproduz o
contexto cultural no qual está inserido.
Sob a ótica da configuração espacial, as cidades pequenas do Brasil apresentam uma morfologia que se repete: uma imponente igreja católica no centro
situada geralmente na praça principal, uma área predominantemente comercial
entornada por pequenas casas residenciais. Esta configuração reflete o papel
hegemônico do catolicismo no Brasil ao longo do tempo. Segundo Santos (1988),
cada lugar combina variáveis de tempos diferentes. Para este autor, o arranjo de
um lugar, através da aceitação ou rejeição do novo, vai depender da ação de fatores ali existentes como o espaço, o local e o cultural. Em cidades históricas do interior baiano como Cachoeira e Santo Amaro no Recôncavo, por exemplo, pode-se
notar a inserção do novo, verificado com a presença de novas edificações e do
velho com os antigos sobrados que revelam as formas de se construir e ornamentar as residências no passado. A morfologia urbana como conjunto e as formas
espaciais individualizadas (a exemplo das residências) revelam aspectos da cultura de um povo em uma determinada época.
Não só as formas espaciais revelam as práticas culturais como também os
aspectos imateriais ou mesmo o nome de uma região ou cidade. Segundo Corrêa
(2003), a toponímia constitui-se em relevante marca cultural e expressa uma efetiva apropriação do espaço por um dado grupo cultural. Um exemplo citado por Corrêa é a cidade de Tel Rabia que passou a se chamar Tel Aviv na década de 1940
como estratégia de hebraicização e afirmação identitária de Israel. O topônimo
revela tanto elementos culturais de um povo quanto relações de poder e dominação. O nome da cidade desta forma não representa apenas uma identificação do
lugar a partir de critérios estatísticos-administrativos; o topônimo pode representar estratégias de consolidação de um determinado grupo hegemônico sobre
outro.
No Brasil, centenas de cidades recebem o nome de santos cultuados tanto
pelo catolicismo oficial romanizado quanto pelos cultos populares. Se por um lado
esta prática de se homenagear os santos explicita a forte religiosidade do brasileiro, por outro, revela relações de poder e hegemonia da Igreja Católica que está presente no território brasileiro desde o início do processo de colonização. Muitas
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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cidades brasileiras apresentam denominações de matrizes indígenas, por outro
lado, surge uma questão: Quantas cidades no Brasil apresentam na sua denominação uma homenagem a cultos de matriz afro-brasileiras? Os cultos candomblecistas foram perseguidos ao longo da história do Brasil tanto por governantes
como por segmentos tradicionais do Catolicismo romanizado, produzindo assim o
temor e o desdém pela cultura negra de raízes africanas que se arraigaram no imaginário coletivo. Quanto à cultura indígena pode-se falar mais em desconhecimento, falta de visibilidade e de valorização do que em um processo de perseguição ou
discriminação sistematizado como ocorrera com os cultos afros. Do ponto de vista
da materialidade, pode-se citar o exemplo da praça do Campo Grande em Salvador que tem ao centro uma grande estátua de um índio representando o Caboclo
em um espaço de grande visibilidade da capital baiana. Por outro lado, se a estátua do caboclo apresenta-se como estratégia de rememoração de eventos do passado, por outro, nota-se a falta de visibilidade midiática para tradicionais blocos de
índios que desfilam no carnaval de Salvador como os Apaches do Tororó. A seletividade imagética faz com que apareça na tela das grandes emissoras de TV o carnaval espetáculo dos grandes blocos puxados pelos cantores de axé music. O
mesmo se aplica aos blocos afros como Ilê-aiyê, Male de Balê, Muzenza e outros
que têm pouca visibilidade midiática mesmo em âmbito estadual. O aeroporto
Internacional Zumbi dos Palmares em Maceió, capital de Alagoas, é uma das
raras edificações de grande visibilidade pública que homenageia um herói negro
em um país onde, desde criança, aprende-se nas telas das TVs que os heróis são
brancos europeus ou americanos. O reconhecimento e respeito à cultura negra e
indígena devem passar tanto pela valorização da forma (monumentos, praças)
como também das práticas e manifestações culturais do povo brasileiro que representam o seu patrimônio imaterial.
Além dos nomes de cidades, as denominações de algumas regiões também podem ser portadoras tanto de carga ideológica como de elementos das
matrizes culturais de um povo. A idéia de região sob o viés político-administrativo
ou turístico fundamentada nas especificidades culturais locais / regionais também
pode de ser uma estratégia arbitrária. Em uma proposta de regionalização do
governo do estado da Bahia bastante conhecida pelas suas reiteradas inserções
na mídia em função da atividade turística, aparecem regiões denominadas de
Costa do Coqueiro, Costa do Dendê, Costa do Descobrimento entre outras denominações que procuram fazer associações entre elementos da natureza e as atividades econômicas de uma determinada porção territorial do estado. A construção
de alguns condomínios fechados, edificados após a destruição de matas nativas e
o aterro ou desvio de micro-bacias, ironicamente, recebe denominações que procuram fazer uma ponte entre o topônimo anterior do local e os elementos da natureza, como se pode verificar em denominações como horto florestal, bosque das
orquídeas, condomínio Costa do Sauípe entre outros. Sobre este tipo de relação
do homem com a natureza Baudrillard destaca que:
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Na personalização existe efeito semelhante ao da naturalização com que se depara em toda parte no meio ambiente, e que
consiste em restituir a natureza como signo depois de a ter liquidado na realidade. Assim, por exemplo, abate-se uma floresta
para no mesmo sítio construir um sítio batizado de cidade verde
e onde se tornarão a plantar algumas árvores, que darão uma
sugestão de natureza. (BAUDRILLARD, 1995, p. 89).
Naturaliza-se a segregação sócio-espacial e o impacto abrupto no meio
ambiente assim como se procura naturalizar as fronteiras ao demarcar os limites
entre países através de rios como o Grande ou Bravo Del Norte que separa os
Estados Unidos do México. È importante ressaltar que parte do território estadunidense já pertenceu ao México.
Na dimensão do espaço intra-urbano podem-se notar algumas denominações arbitrárias e verticais que denunciam influências eurocêntricas ou mesmo
relações de poder e dominação traçadas in loco pelo clientelismo coronelista. É
importante enfatizar, no entanto, a falta de receptividade de algumas comunidades urbanas em aceitar um topônimo imposto nos escritórios de políticos que, em
alguns casos, nem conhecem a comunidade que desejam denominar. Este tipo de
situação, às vezes, faz com que, em muitos casos, uma localidade seja desconhecida pelo seu nome oficial e notabilizada pelo nome popular, consolidado pelas tradições do lugar. Em meados de 1980, o bairro do Beiru, na periferia de Salvador,
passou a se chamar Tancredo Neves em homenagem ao então recém eleito presidente da República que morreu antes de tomar posse. Alguns moradores preferiam Beiru que é uma expressão de matriz afro-brasileira que, segundo alguns pesquisadores, dava nome a um antigo quilombo situado naquelas imediações. No
entanto, outros residentes resistiam ao associar esta denominação a aspectos
pejorativos. Uma empresa de ônibus que circula deste bairro para a Barra e o centro comercial, para evitar problemas, optou por constar as duas denominações. O
que é importante salientar é que Tancredo Neves é o nome de uma cidade da
Bahia, do aeroporto de Belo Horizonte, de avenidas, etc. Beiru, no entanto, é um
topônimo que reflete elementos das especificidades sócio-culturais, históricas,
identitárias daquela porção territorial de Salvador e é uma expressão que remete a
aspectos da memória coletiva verificados apenas naquelas imediações da capital
baiana.
As práticas culturais de um povo são reveladas na sua forma de produzir, de
organizar, de transformar seu espaço de vivência / apropriação. A morfologia urbana e as formas espaciais denunciam uma visão de mundo e elementos das especificidades do lugar. A construção de casas populares pelos governos federal ou
estadual muitas vezes não leva em conta as peculiaridades da arquitetura local /
regional. Muitas vezes, edificam-se unidades habitacionais quentes em pleno
semi-árido ou com um desenho e estética que não agradam ao usuário. O uso da
madeira na construção de casas na Região Sul e o costume de se cortar a porta da
frente ao meio no sentido horizontal para que esta porta eventualmente seja utiliTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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zada também como janela no Sertão nordestino, não representa apenas uma
estratégia para se proteger das baixas temperaturas, no caso das casas de madeira ou para promover uma maior circulação do ar dentro das casas no caso das unidades habitacionais de alguns sertanejos. A forma de produção, apropriação,
adaptação e morfologia do habitar são reflexos de um determinado contexto cultural construído historicamente. A racionalidade arquitetônica, muitas vezes, de
maneira vertical e abrupta, rompe com práticas culturais que foram construídas ao
longo do tempo por pessoas simples de um determinado lugar. O comodismo dos
projetos pré-concebidos em gabinetes se sobrepõe a uma eventual tarefa mais trabalhosa que seria uma leitura respeitosa das práticas culturais de uma determinada comunidade.
Desta forma, entende-se que, por trás do nome de uma cidade, de um monumento, de uma forma espacial ou em ritual festivo podem estar velados interesses
políticos, ideológicos e culturais de determinados grupos sociais hegemônicos ou
hegemonizados..
AS FESTAS POPULARES ESPETACULARIZADAS NO ESPAÇO
URBANO
Segundo Lefebvre (1991), a cidade teve uma origem histórica enquanto
lugar da festa, lugar do encontro, lugar da obra, da criação. O capitalismo, no
entanto, transformou a cidade em espaço da produção e do consumo de mercadorias. Daí, segundo o referido autor, a festa e o lúdico terem sido “empurrados” para
os interstícios da sociedade. Lefebvre destaca que a cidade historicamente formada não vive mais, não é mais apreendida praticamente. Não é mais do que
um objeto de consumo cultural para os turistas e para o estetismo, ávidos de
espetáculos pitorescos (1991 p. 104). O referido autor destaca que o uso principal da cidade é a festa que a consome improdutivamente para promover o prazer,
consumindo enormes riquezas em objetos e em dinheiro. Desta forma, o consumo
de espetáculos festivos na cidade estimula o consumo de outros produtos através
da imagem projetada pela publicidade.
No contexto atual, no qual se intensifica a utilização expressões como marketing urbano, a cultura urbana tem maior projeção e visibilidade, sendo mercantilizada através dos seus objetos fixos (áreas tombadas como patrimônio histórico e
que passaram por processos de revitalização) ou pelos atributos culturais cíclicos
espetacularizados em eventos que produzem novas formas e dinâmicas espaciais como as festas juninas urbanas no Recôncavo, o carnaval em Salvador ou a
micareta de Feira de Santana. Ao se colocar a “cidade a venda” como escreve Vainer (2000), vende-se a cultura local embebida em um sincretismo e hibridismo
como imposição mercadológica. As festas juninas em Cachoeira, Cruz das Almas,
Amargosa, Senhor do Bomfim, Jequié e outras cidades baianas se transformaram
em um evento espetacularizado para atrair turistas. È a cultura urbana como negóTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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cio pulverizado de forma difusa em várias unidades urbanas do interior da Bahia.
No carnaval mercantilizado de Salvador, podem-se notar claramente as gritantes desigualdades sociais do Brasil. O território altamente seletivo dos camarotes e o território móvel de auto-segregação dos abadás em meio à multidão de
foliões de baixa renda os quais se acotovelam nos espaço públicos (chamados de
pipocas) revelam o caráter excludente e elitista do carnaval espetáculo soteropolitano. São as contradições e conflitos sociais explicitados nos mega-eventos festivos da contemporaneidade.
As manifestações culturais, a exemplo das festas populares da Região Nordeste, são inventadas e recriadas ao longo do tempo. Hobsbawn e Ranger (1997)
definem tradição inventada como um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas, sendo de natureza ritual ou simbólica, a qual visa inculcar certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica automaticamente uma continuidade em relação ao passado. Os referidos autores salientam, no entanto, que o termo tradição inventada
é utilizado num sentido amplo, entretanto nunca indefinido, incluindo tanto as tradições realmente inventadas, construídas informalmente, institucionalizadas,
quanto as que surgiram espontaneamente de maneira difícil de localizar num
período determinado de tempo.
Segundo Albuquerque Júnior (2001), o próprio Nordeste e os nordestinos
são invenções de relações de poder e de saber. Este autor questiona: Existe realmente este nós, esta identidade nordestina? Em uma perspectiva DeleuzeGuatariniana é mais adequado falar-se em multiplicidade do que em identidade.
Esse viés multidentitário da atualidade faz com que a idéia de unidade cultural seja
vista como uma acepção tradicional e obsoleta para alguns estudiosos contemporâneos como Stuart Hall. Para Albuquerque Júnior, o “Nordeste não é recortado só
como unidade econômica, política ou geográfica, mas, primordialmente, como um
campo de estudos e produção cultural, baseado numa pseudo-unidade cultural,
geográfica e étnica”. (Albuquerque Júnior, 2001, p.23).
Desta forma, entende-se que tanto do ponto de vista geográfico como
sócio-cultural, não existe um Nordeste singular e sim vários Nordestes com inúmeras singularidades e uma rica diversidade cultural que se reflete na pluralidade
das suas manifestações festivas. Segundo Albuquerque Júnior, o Nordeste é considerado uma invenção pela repetição regular de determinados enunciados que
são tidos como definidores da região e de seu povo. Esse autor se contrapõe a concepção de Região como sendo um produto eterno, imutável e destaca que o Nordeste está sujeito ao movimento pendular de destruição / construção, contrariando a imagem de eternidade que sempre se associa ao espaço.
Essa leitura permite compreender melhor as mudanças e reinvenções de
importantes manifestações culturais nordestinas a exemplo das festas juninas e
do carnaval de Salvador, uma vez que, não só a materialidade no / do espaço
sofrem alterações ao longo do tempo como também as práticas dos povos uma
vez como salienta Albuquerque Júnior, o espaço não preexiste a uma sociedade
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 51-59, Novembro, 2006.
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que o encarna. Desta forma, a perspectiva nostálgica que busca resgatar uma
suposta identidade cultural das festas do passado é inconsistente.
REFLEXÕES FINAIS
As cidades atuais concentram maior parte da população brasileira e grande
parte das atividades econômicas e culturais que foram recriadas no espaço urbano. Com o processo de globalização, intensificam-se os contatos entre os lugares
o que torna a cultura urbana, tanto do ponto de vista da materialidade como da imaterialidade, mais complexa.
O bairro da Liberdade em São Paulo representa a maior concentração urbana de japoneses e descendentes do Brasil. Para qualquer lugar que se olhe, notase a presença forte da cultura japonesa tanto no aspecto material como no caso de
algumas edificações quanto nas manifestações festivas e religiosas. No entanto,
o bairro da Liberdade não é um pedaço do Japão, uma vez que o contato desta cultura com elementos da cultura brasileira em uma grande metrópole sul americana
produz na morfologia e nas práticas do povo uma forma de cultura urbana híbrida,
complexa. O mesmo pode-se aplicar ao entendimento a imigração nordestina em
São Paulo. Apesar de muitas manifestações culturais nordestinas terem sido levadas por imigrantes nordestinos, muitas outras continuarão existir apenas na
memória desse povo. Neste contexto, mesclam-se elementos da cultura nordestina com a cultura urbana da grande metrópole paulistana.
Os estudos clássicos de Park na Escola de Chicago destacaram o isolamento dos imigrantes nas primeiras décadas do século XX. Os avanços nos meios
de comunicação e o aumento da mobilidade da população notadamente nos grandes centros urbanos contribuíram para a diminuição desse isolamento. Mesmo
que ocorra uma segregação ou uma auto-segregação física, haverá contatos e
conexões em rede através da internet que se constitui em um importante meio de
comunicação. As transformações e o hibridismo cultural, notadamente na arena
urbana, tendem a intensificar-se.
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USO E OCUPAÇÃO DO ESPAÇO URBANO E IMPACTOS
AMBIENTAIS NO MUNICÍPIO DE VITÓRIA DA CONQUISTA-BA:
O ESTUDO DE CASO NO BAIRRO SANTA CRUZ
Júlia Gabriela Fernandes Gonsalves *
Paulo Henrique Silveira Lima**
André Luiz Dantas Estevam***
RESUMO: A presente pesquisa analisa o processo de ocupação e a degradação
sócio-ambiental no Bairro Santa Cruz, no município de Vitória da Conquista-Ba.
Os procedimentos metodológicos seguiram a seguinte ordem: a) levantamento
histórico, junto a PMVC; b) investigação in locus; c) aplicação de questionários; d)
análise de fotografias aéreas em escala 1:10000. Em síntese, obteve-se como
resultados que o Bairro surgiu a partir de uma ocupação ilegal de terras; que o aterramento parcial da Lagoa das Bateias está compactando os solos e alterando o sistema hidrológico local; e que há grande segregação sócio-espacial interna e externa ao Bairro. Na Conclusão, constatou-se que o processo de ocupação ilegal de
terras acentua o desequilíbrio entre a preservação ambiental e o crescimento urbano e que a segregação sócio-espacial reflete na paisagem do Bairro. Constatouse ainda que o poder público, ou em última análise o PDU, é co-responsável por
não democratizar os recursos e não manejar de forma eficiente os diversos espaços urbanos.
PALAVRAS-CHAVE: Ocupação ilegal; degradação ambiental; segregação sócioespacial.
ABSTRACT: The present research analyzes the process of occupation and the
social environmental degradation on Santa Cruz district in Vitória da Conquista –
BA city. The methodologycs procedures the following order: a) historical survey in
association with P.M.V.C.; b) investigation in locus; c) questionnaires application;
d) analysis of photography aerial in scale 1:10000. In synthesis it obtained as result
that the district appeared from an illegal occupation of lands; that the partial of
lands from Lagoa das Bateias is compacting the soils and alteration from the local
hydrologic system and there is a large segregation social space inside and
outside on the district. In short it noticed that the process of illegal
occupation of lands emphasize the unbalance between environmental
* Graduanda do Curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia.
**Graduando do Curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
*** Professor Assitente da Universidade do Estado da Bahia. UNEB.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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preservation and urban growth and the segregation social space reflects on the
landscape of the District. It noticed still that the public power or the last analysis
from P.D.U. is co-responsible for not democratic the resources and not handle in a
efficient way the various urban spaces.
KEYWORDS: Illegal occupation; ambient degradation; socio-spatial segregation.
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INTRODUÇÃO
A problemática da moradia no Brasil, sobretudo nas médias e grandes cidades, tornou-se um grande problema a partir do acelerado processo de industrialização/urbanização brasileira em meados do século XX. Este processo vem, de
forma cumulativa, restringindo às pessoas de maior poder aquisitivo o acesso ao
mercado legal de terras, não deixando às populações de poder aquisitivo baixo a
muito baixo outra opção senão a de ocuparem, de forma ilegal, as áreas de risco.
Dessa forma, por estabelecimento do extremamente exagerado valor de troca do
solo urbano, ou pela qualificação de legal e ilegal, é negada à maioria das populações o “Direito à Cidade”, consolidando a segregação, criando e alimentando um
problema sócio-espacial de muito difícil solução.
Assim como nos demais municípios brasileiros, em Vitória da Conquista,
município com população de 285.927.000 habitantes, segundo projeção do (IBGE
2005), são vários os problemas relacionados ao uso e ocupação do solo urbano. O
objetivo deste artigo é analisar a degradação ambiental do Bairro Santa Cruz, dentro do contexto urbano local, abordando desde a sua ocupação no início da década de 1980 até o momento atual, em que o evolutivo processo de degradação
sócio-ambiental está tornando este bairro impróprio para a habitação humana.
Por isso, serão avaliados os processos das autoconstruções, comuns no Bairro, e
os fatores que vêm provocando os desequilíbrios ambientais, sobretudo aqueles
relacionados às atividades humanas. Para melhor se analisar a segregação
sócio-espacial, dividiu-se o Bairro em área I – cujas residências estão localizadas
próximas ao Bairro Brasil e ao Conjunto Habitacional (Urbis II e III) e área II – referente às residências localizadas em torno da Lagoa das Bateias. Após o cruzamento de dados, teóricos e empíricos, elaborar-se-á um diagnóstico sócioeconômico e ambiental do Bairro.
O uso inadequado do solo, especialmente do solo urbano, tem provocado
muitos problemas sócio-ambientais em grandes escalas. As degradações, por
serem as mais facilmente detectáveis, são mais sentidas e percebidas. Para evitar
esses e outros tipos de problemas com o uso do solo, é necessário um conhecimento prévio de sua formação, estruturação e possibilidades, para se sistematizar
ocupações e usos adequados, ou seja, determinando, de forma planejada, os
tipos de atividades que cada solo suporta, conforme as especificidades de cada
área. No Bairro Santa Cruz, as residências eram construídas em volta da Lagoa
das Bateias, hoje já se constrói dentro da Lagoa. Assim os moradores do Bairro
que sempre foram segregados (sócio-espacialmente), estão permanentemente
expostos aos riscos das epidemias e das catástrofes desencadeadas pela interrelação das ações naturais e antrópicas. Por isso, neste artigo, abordar-se-á contextualmente a questão da interação sociedade-natureza no processo do uso e
ocupação do solo urbano, antes de se especificar o caso do Bairro Santa Cruz.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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A INTERAÇÃO SOCIEDADE-NATUREZA NO PROCESSO DE USO E
OCUPAÇÃO DO SOLO URBANO
Fundamentação Teórica
A busca do equilíbrio entre preservação ambiental e necessidade humana
tem levado muitos pesquisadores a repensarem o papel das ciências e a importância do inter-relacionamento sociedade-natureza, uma vez que se admite que a
ação antrópica tem provocado a degradação dos sistemas naturais e que o resultado desta degradação tem sido a degenerescência da vida humana em sociedade. Não há ser humano a-espacial ou a-natural, ou seja, vivendo fora do ambiente
natural. Assim sendo, ser humano e natureza são indissociáveis, portanto cabe à
Geografia analisar a relação sociedade-natureza conjuntamente. É postulado da
Geográfica a busca de explicações para os efeitos originados da interação do ser
humano com o ambiente. Para Mendonça “a Geografia é a [...] única ciência que
desde sua formação se propôs ao estudo entre os seres humanos e o meio natural
do planeta – o meio ambiente atualmente em voga [...] engloba o meio natural e o
social”. (2004, p.22-23)
Existe, todavia, uma corrente filosófica adotada por alguns geógrafos “físicos” que negam a intrínseca inter-relação ser humano-natureza e insistem, sustentando-se no Método Positivista, na defesa da dicotomia entre a Geografia Física e a Geografia Humana, separando respectivamente o ser humano da natureza.
Estes geógrafos, todavia, quando buscam entender a relação existente entre os
fenômenos naturais inserem a ação antrópica no contexto, inclusive a ação do próprio pesquisador que não é “a-natural”, ou ainda, quando recorrem ao método
geossistêmico para analisar os problemas dos espaços urbanos, relacionam o
uso e ocupação do solo aos aspectos “físico-humanos”.
O Método Geossistêmico foi sistematizado a partir do conceito
de Geossistema usado pelo soviético Sotchava, em 1962. para
Mendonça (1996 p.32) “geossistema é a expressão dos fenômenos naturais, ou seja, o potencial ecológico de determinado
espaço no qual há uma exploração biológica, podendo influir
fatores sociais [...] na estrutura e expressão espacial”. Partindo
deste pressuposto pode-se afirmar que a materialização humana faz parte e altera a dinâmica natural.
Monteiro destaca que: “a modelização dos geossistemas à base de sua
dinâmica espontânea e antropogênica e do regime natural a elas correspondente
visa [...] promover uma maior integração entre o natural e o humano [...]”(2000, p.
32). É notória a interferência humana no equilíbrio natural de um determinado
ambiente, devido à necessidade que se tem de se apropriar dos espaços geográficos, destacadamente do espaço urbano.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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Para Spósito (2003), a cidade é o resultado maior da capacidade social de
transformar o espaço natural, por isso deixa de ser parte desse espaço e de se submeter às dinâmicas e aos processos relacionados à natureza. Contudo, estudar a
cidade requer, entre outros fatores, a interpretação da forma pela qual a ação
antrópica, através das manifestações espaço-temporais, a produz e a transforma,
pois o espaço urbano é um espaço afeiçoado pelo ser humano, além de ser o resultado de ações que, após serem acumuladas através do tempo, materializam-se.
O espaço é um produto material em relação com outros elementos materiais – entre outros, os homens, que entram também em relações sociais determinadas, que dão ao espaço,
uma forma, uma função, uma significação social. Portanto, ele
não é uma pura ocasião de desdobramento da estrutura social,
mas a expressão concreta de cada conjunto histórico, no qual
uma sociedade se especifica. (CASTELLS 2000, p. 119)
Partindo do princípio da inter-relação sociedade-natureza, a análise do
espaço geográfico, especialmente do espaço urbano, deve ser guiada pelo método Geossistêmico.
Considerações Teóricas sobre o surgimento Bairro Santa Cruz
O valor de troca do solo urbano dinamizou, de forma extraordinária, o mercado legal das terras urbanas. Assim, os preços dos imóveis urbanos passaram a
determinar o direito de se habitar em espaços privilegiados ou em espaços impróprios, rejeitados produzindo um sistema extremamente segregatório, desumano,
pois a opção dos moradores excluídos do mercado legal das terras urbanas é a
periferia rejeitada, desestruturada e imprópria para a habitação humana.
A cidade aparece como produto apropriado diferencialmente
pelos cidadãos. Essa apropriação se refere às formas mais
amplas da vida na cidade; e nesse contexto se coloca a cidade
como o palco privilegiado das lutas de classes, pois o motor do
processo é determinado pelo conflito decorrente das contradições inerentes às diferentes necessidades e pontos de vistas
de uma sociedade de classes. (CARLOS 2003, p. 23).
A ocupação ilegal do espaço, do solo urbano, que deu origem ao Bairro
Santa Cruz, na Zona Oeste de Vitória da Conquista, ocorreu na década de 1980,
época em que grande parte da população da cidade já residia na Zona Oeste.
Segundo o assessor de gabinete da Secretaria de Serviços Públicos de Vitória da Conquista, ex-Presidente da Associação de Moradores do Bairro, oficialmente, a ocupação do Santa Cruz se deu em 1982. A área ocupada pelo Bairro
fazia parte das Bateias – Bateias é um bairro, mas é tido como uma espécie de
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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zona da cidade, formada por oito bairros. Atualmente, segundo informações da
Prefeitura Municipal de Vitória da Conquista, o Bairro Santa Cruz possui aproximadamente 7.000 habitantes.
Segundo relato de antigos moradores, participantes do processo de “invasão” Santa Cruz, a ocupação do Bairro foi motivada, aliás determinada, pelas disparidades entre as condições sócio-econômicas dos moradores e os elevados preços dos imóveis e dos respectivos aluguéis em seus locais de origem. Como todos
estes antigos moradores estavam inadimplentes, e sabiam da existência de uma
grande área desocupada em torno da Lagoa das Bateias, mobilizaram-se, e as
reuniões sucederam-se, envolvendo, naquela época, um número grande de famílias que já não podiam pagar seus aluguéis. Na madrugada de fevereiro de 1982, a
ocupação foi efetivada através de um grande acampamento montado em torno da
Lagoa.
Os primeiros quinze dias de ocupação, segundo os próprios moradores,
foram de extremo sofrimento, tanto pelas condições de moradia como pelas fortes
pressões impostas pelo Poder Público Municipal, que foi “vencido pelo cansaço”.
Passado o tumulto dos destes primeiros dias, cerca de trinta dias depois de montado o acampamento, iniciou-se a abertura de lotes nas imediações do Bairro Brasil e pouco tempo depois às margens Lagoa. Nesta época, “havia uma demanda
muito grande por lotes, e a invasão estava à vista, estava havendo invasão em
outras partes do país (...), a situação era de tal ordem que se não tem lotes para
disposição haveria invasões, haveria invasões” (...) (FERRAZ 2001, p. 157).
Portanto, as ocupações urbanas, como no caso do Santa Cruz, que se dão através de invasões, espontâneas ou organizadas, são as alternativas habitacionais
que têm a classe pobre dentro da seletiva estrutura urbana brasileira.
a existência dos chamados 'loteamentos populares' em Vitória
da Conquista é responsável pela inexistência de 'favelas' na
cidade. [...] deve-se lembrar que, mesmo sem o fenômeno do
loteamento, em sentido técnico-jurídico, isto é, do loteamento
propriamente dito [...] não foi impedido o parcelamento da terra
não loteada e conseqüentemente a venda e preço relativamente acessível. (MEDEIROS 1978 APUD GONSALVES 2005, P.
3789)
Portanto, o uso e a ocupação ilegal do solo urbano entrava a administração
e o próprio ordenamento urbano, pois não há, perante a lei, como o poder público
direcionar recursos e ações para áreas inseridas na ilegalidade. Se por um lado as
ocupações ilegais de terras desestruturam a configuração urbana, por outro estas
ocupações são incontroláveis pela aplicação da lei, pois as pessoas simplesmente precisam de um espaço mínimo para viver, direito assegurado pela Constituição
Federal. Portanto não basta tipificar, conforme Lei de Nº 6.766/79, do Parcelamento do Solo Urbano, Artigo 50, que constitui crime contra o poder público municipal:
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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I - dar início de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do
solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente [...].
II - dar início de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do
solo para fins urbanos sem observâncias das determinações constantes do ato
administrativo de licença.
III - fazer, ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao
público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamentos
ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente
fato a ele relativo.
Portanto, conforme as determinações da Lei 6.766/79, o processo de ocupação e apropriação do Bairro Santa Cruz foi “criminoso”, disto tomaram ciência
os moradores, mas não respeitaram o que acharam uma determinação ilegítima.
Para tornar, perante esta Lei, ainda mais graves os crimes daquela ocupação, os
lotes ocupados foram vendidos e revendidos, estabelecendo um mercado natural
e “clandestino” das terras “ilegalmente” apropriadas.
Embora afirme o assessor de gabinete da Secretaria de Serviços Públicos
Municipais que
em 1992, na gestão do Prefeito Murilo
Mármore
(1989–1992), se reconheceu, em sessão realizada na Câmera Municipal de Vereadores, o direito de uso das propriedades do Bairro Santa Cruz, nenhuma forma
legal, nenhum documento foi formalizado garantindo aos moradores do Bairro a
propriedade de seus imóveis.
A construção clandestina não pode ter a documentação da propriedade
legalizada - a escritura definitiva – mesmo tendo pago pela terra. É verdade que
os moradores destes loteamentos têm-se organizado e lutado por seus direitos, e
inclusive, consideram-se que a Lei [...], tenha sido, em parte, resultado do movimento dos moradores destes loteamentos. (RODRIGUES 2001, p.27).
Foi por este procedimento, luta organizada de moradores “clandestinos”,
por seus direitos, que os moradores do Santa Cruz conseguiram suas permanências e até um mínimo de infra-estrutura, como rede elétrica, coleta de lixo, pavimentação de algumas ruas, além da oficialização da Associação de Moradores do
Bairro, conforme Lei Nº675/92.
METODOLOGIA
O método Geossistêmico, por tratar da interação entre os fenômenos naturais e sociais, materializados no espaço geográfico, foi usado para traçar as metas
fundamentais e se chegar ao objetivo geral da pesquisa: a análise dos impactos
ambientais decorrentes do uso e ocupação do solo urbano. Na escolha desse
método levou-se em consideração a sua aplicação nos trabalhos desenvolvidos
por Monteiro (2000) e Mendonça (1996). Assim, através da análise guiada por
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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este método pôde-se melhor entender a interdependência entre os aspectos ambientais e as atividades antrópicas na organização sistêmica do meio de forma
geral, e do Bairro Santa Cruz, de forma particular.
O segundo passo metodológico para se obter eficácia na pesquisa foi dividir
a área de estudo em duas zonas diagnóstico: Área I – (situada próximo ao conjunto habitacional Urbis II e III) e Área II – (situada em torno da Lagoa das Bateias).
Trabalho de Gabinete
Realizou-se um levantamento bibliográfico para se fundamentar a pesquisa, como também investigaram-se documentos concedidos por órgãos públicos,
como a Secretaria de Obras e Urbanismo da Prefeitura Municipal de Vitória da
Conquista, o Acervo Público Municipal e a Secretaria de Serviços Públicos. Estes
documentos foram importantes para o questionamento a respeito do processo histórico-social do Bairro Santa Cruz, desde seu início em 1982, passando pela fase
na qual o Bairro foi levado em consideração em tênues projetos do Plano Diretor
Urbano (2004), até os problemáticos dias atuais. Cumprida esta etapa, elaboraram-se, conforme pressupostos estatísticos, gráficos e tabelas para representar,
de forma sintética e de fácil assimilação, os dados coletados e analisados.
Trabalho de Campo
Procedeu-se a uma pesquisa empírica, com várias saídas a campo para
ver, ouvir, sentir, anotar e refletir sobre o espaço e suas respectivas dinâmicas
sócio-ambientais e territoriais. Para legitimar as investigações no Bairro foram aplicados cinqüenta questionários, os quais foram prontamente respondidos, atendendo às expectativas. Pelo lado do poder público, foram entrevistados o assessor do secretário municipal de serviços públicos e o secretário de habitação de
Vitória da Conquista.
Trabalho de Laboratório
Através dos pressupostos cartográficos e sobre uma base cartográfica na
escala 1:8000 delimitou-se a área do Bairro, utilizou-se ainda dos recursos laboratoriais para digitalizar e copiar plantas urbanas de Vitória da Conquista da década
de 1970 a 2000, para se analisar a evolução do Bairro. Concluída esta etapa, e de
posse das devidas informações, utilizou-se de uma carta planimétrica (SEI-BA,
2000), de Vitória da Conquista, de junho/2004, produzida por Altemar Amaral
Rocha, para, finalmente, elaborar uma carta específica do Bairro Santa Cruz.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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RESULTADOS E DISCUSSÕES
Contatou-se, através da pesquisa de campo, que as residências construídas na área I do Bairro, mais diretamente beneficiada pelo Decreto Público Municipal de 1992, apresentam estrutura física bem melhor do que àquelas da área II,
em torno da Lagoa das Bateias, o que demonstra que há segregação sócioespacial interna no Bairro, já segregado no contexto urbano da cidade.
Também se constatou que o preço dos lotes foi determinante no desenvolvimento do Bairro. Assim a dinâmica sócio-espacial mais positiva ocorreu e ocorre
nas áreas onde se adquiriram lotes por preços razoavelmente baratos – o que
parece irreal em uma cidade onde o valor extremamente alto dos imóveis determina o “desenvolvimento” e a dinamização dos espaços privilegiados. Há ainda a história dos moradores que levaram anos para concluir suas construções em solo de
difícil edificação, em torno da Lagoa e que, por estarem em área de extremo risco,
podem perdê-las a qualquer momento, por inundação ou por qualquer outro contratempo na pluviometria ou na drenagem local, pois a maioria dessas casas é
autoconstruções ou casas construídas em mutirões. Nestes dois casos, o aproveitamento de materiais baratos ou rejeitados e a solidariedade substituem os procedimentos econômico-financeiros, legais e técnicos.
A autoconstrução reproduz – ao produzir casas em lugares sem
infra-estrutura e com um sobre-salário individual – as condições gerais de reprodução urbana. Onde é possível morar, de
que modo é possível morar, definindo e redefinindo o lugar de
cada um na cidade. (RORIGUES 2001, p. 34)
Finalmente constatou-se que o perfil sócio-econômico dos moradores da
área II, enquadra-se na análise de Rodrigues (2001), diferentemente do perfil
sócio-econômico dos moradores da área I, conforme mostra a tabela abaixo.
Tabela 01 – Renda Familiar
Área I
Área II
Sem renda fixa
16%
76%
Até 1 salário mínimo
4%
20%
Mais de 1 salário mínimo
80%
4%
Fonte: Pesquisa de campo. Outubro de 2005.
A partir dos dados apresentados na tabela 1 acima, pode-se observar a
nítida diferença, quanto ao aspecto econômico, entre os moradores das duas
áreas do Bairro. Enquanto que na área I apenas 16% dos moradores não têm
renda fixa, na área II, esse percentual é de 76%, o que é uma diferença
considerável.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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Tabela 02 - Número de cômodos por residência
Área I
Área II
Até 05 Cômodos
16%
76%
De 06 a 10 Cômodos
72%
24%
Acima de 10 Cômodos
12%
0%
Fonte: Pesquisa de campo.Outubro de 2005.
A tabela 2, acima, mostra que há maior número de residências com no máximo cinco cômodos localizadas na área II, 76%. Já na área I predominam as residências com maior número de cômodos, entre seis e dez, enquanto nenhuma das
residências da área II há mais de dez cômodos. Na área I, há 12% das residências
nestas condições. Este resultado mostra a grande diferença sócio-econômica
entre os moradores da área I e da área II do Bairro. Por outro lado, é na área II que
se verifica maior degradação ambiental, o que é explicado, em parte, pela dinâmica das construções em volta da Lagoa das Bateias.
- Situação Topográfica: é uma área ladeada por rampas coluvionares e rebaixada de cabeceiras de drenagem, que contribui
para o surgimento de áreas de nascentes e do afloramento do
nível freático;
-A Lagoa das Bateias recebe efluentes de esgoto e suas margens são aterradas e ocupadas [...]. (PDU, de 2004)
Partindo das descrições contidas no PDU1, a área II não é apropriada para
moradia, todavia, em Vitória da Conquista, assim como na maioria das cidades
brasileiras, não restando outras alternativas, para a maioria pobre, ser legal ou ilegal, ter ou não ter riscos tornou-se irrelevante. Isto ficou bastante claro durante a
pesquisa de campo quando os moradores do Bairro, principalmente da área II, disseram que sabiam e sabem dos riscos e dos problemas legais, mas justificam que
não têm outra saída, precisam de um lugar para morar.
Na tentativa de se deter e prevenir problemas de inundação, entre outros,
os moradores do Santa Cruz vêm, ao longo dos anos, despejando entulhos na
lagoa. Os materiais utilizados, pedras, terra, tijolos, entre outros, impermeabilizam
o solo e dispersa a drenagem, causando novos problemas em escala ainda maiores, como é o caso do desvio do fluxo d'água e de esgoto da lagoa para outras
áreas do Bairro.
1
Plano de Desenvolvimento Urbano
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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DESTINO DO ESCOADOURO DOS BANHEIROS - ÁREA I
Fossa séptica
Vala
12%
88%
Fonte: Pesquisa de Campo, Agosto de 2005
Gráfico 01 – Destino do escoamento dos banheiros da área I
Conforme o gráfico 01 acima, 12% das residências da área I lançam os
dejetos dos banheiros nas valas canalizadas para a Lagoa das Bateias e 88% das
residências desta área têm fossa séptica. Na área II, ocorre exatamente o oposto,
12% das residências têm fossa séptica, enquanto que 88% lançam os dejetos nas
valas.
Os diagnósticos da pesquisa apontam que 44% da área I está exposta aos
riscos de inundação, enquanto na área II este risco se eleva para 96%. Esta
diferença é explicada pela localização das residências da área II, próximas à
Lagoa das Bateias que recebe a drenagem de parte da bacia do Rio Verruga e dos
esgotos do próprio Bairro, o que gera graves problemas sócio-ambientais.
CONCLUSÃO
Portanto, analisou-se a forma como procedeu à ocupação e ao uso do solo
urbano no Bairro Santa Cruz, na periferia “deprimida” do município de Vitória da
Conquista.
Ao se dividir o Bairro em área I e II e fazer-se uma análise comparativa
constatou-se que há significativas desigualdades sócio-ambientais, sócioespaciais, além das segregações internas. Constatou-se ainda que o locus da
ocupação do Santa Cruz foi a área I, cujos moradores lotearam e venderam,
clandestinamente, os lotes que inicialmente formaram a área II, segundo a Lei nº
6.766/79, cometendo duplo crime, de ocupação e venda ilegais. O poder público
não aplica a lei contra os moradores do Bairro por ser contraditória, pois contraria
a Constituição Federal, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a
sociedade local. Por conseguinte, é preciso rever o conceito e os agentes dos
crimes sociais, antes de tipificá-los e quantifica-los geometricamente.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
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A degradação sócio-ambiental do Bairro Santa Cruz, desencadeada a partir
de sua ocupação “ilegal”, sobretudo na área II, acentua-se com o aterramento de
parte da Lagoa das Bateias. Porém, se este aterramento fosse feito pelo poder
público, de forma planejada, respeitando as peculiaridades dos solos,
preservando a vegetação ciliar, respeitando a capacidade de escoamento e de
drenagem, levando em conta os fluxos, o gradiente altimétrico e a hierarquia do
escoamento da bacia hidrográfica em que se insere o Bairro e a cidade, dispensarse-ia as falácias de crime contra uma população à qual se nega direitos
elementares e vitais.
Ao terminar estas conclusões chega a notícia, prontamente verificada in
lócus, de uma forte inundação da área II do Bairro. Deslizamentos e aterramentos
forçaram moradores a abandonarem suas residências. O Programa Municipal de
Habitação Popular assumiu a responsabilidade e está amenizando, “maquiando”
o problema, relocando as famílias atingidas para outros espaços melhores
estruturados.
Entende-se, finalmente, que o que seria conveniente e legal seria o poder
público, em seus projetos urbanos, direcionasse os recursos públicos aos
espaços realmente carentes, e não àqueles espaços permanentemente
privilegiados, que ofuscam os olhos dos segregados e contemplam os dos que
não querem compreender que a miséria deve ser eliminada, que é possível fazê-lo
e que ainda dá tempo. Mas isto requer a atuação de toda a sociedade, pública e
civil, pois a pobreza e a miséria geram epidemias, desconfortos, sofrimentos e
muitas mortes. Dizem que a questão da moradia é assunto para muita discussão,
ousa-se aqui negar esta subjetividade; a questão da moradia é questão de direito,
portanto, mais do que discussão, reivindica-se ação.
REFERÊNCIAS
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CASTELLS, Manoel. A questão urbana. Tradução Arlete Caetano. São Paulo:
Paz e Terra, 2000.
MARICATO, Ermínia. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 2º Ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.
MENDONÇA, Francisco de Assis. Geografia Física: Ciência Humana? São
Paulo: Contexto, 1991.
MENDONÇA, Francisco de Assis. Geografia e meio ambiente. 7º Ed. São Paulo:
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
73
Contexto, 2004.
MONTEIRO, Carlos Augusto Figueiredo de. Geossistemas: a história de uma
procura. São Paulo: Contexto, 2000.
RODRIGUES, Arlete Moysés. Moradia nas cidades brasileiras. 9º Ed. São
Paulo: Contexto, 2001.
SPÓSITO, Maria Encarnação Beltrão. IN CARLOS, Ana Fani Alessandri (org.)
Dilemas Urbanos: Novas abordagens sobre a cidade. São Paulo: Contexto,
2003.
DOCUMENTAÇÃO
Lei Nº 6.766/79, do Parcelamento do Solo Urbano.
Plano Diretor Urbano (2004) de Vitória da Conquista – em fase de aprovação.
Disponível em: < 1 Cd-Rom>
ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA (X EGAL). USP. São
Paulo. 2005. Disponível em < 1 Cd-Rom>.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA-IBGE. Disponível
em < http://www.ibge.gov.br/cidadesat/default.php> Acessado em 25 mar. 2005;
23:42:00.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 61-73, Novembro, 2006.
CIGANOS: CULTURA E ERRÂNCIA
Márcio Emanoel Dantas Estevam*
RESUMO: Os ciganos fazem parte de um grupo étnico que se encontra em quase
todas as partes do mundo, porém sua origem para muitos é cercada de mistérios e
incoerências. O objetivo deste artigo é trazer à tona um debate sobre os ciganos,
enquanto um grupo étnico que se naturalizou nas diversas sociedades por onde
passou ou está instalado. Aqui, o propósito é mostrar suas origens até a sua chegada ao contexto regional mais próximo, o Recôncavo baiano.
PALAVRAS - CHAVE: Ciganos; cultura; origem; mundo; Brasil; Bahia.
ABSTRACT: The gypsies are part of an ethnic group that meets in almost whole the
parts of the world, even so, its origin for many is surrounded of mysteries and
incoherences. The objective of this article is to bring up a debate about the gypsies,
while an ethnic group that was naturalized in the several societies through where it
passed or it is installed. Here, the purpose is to show its until its arrival to the closer
regional context, the Bahia's Recôncavo.
KEY-WORDS: Gypsies; culture; origin; world; Brazil; Bahia.
* Professor do Curso de Licenciatura em Geografia da Faculdade Maria Milza-FAMAM. E-mail:
[email protected]
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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Cigano que morre:
Incêndio de uma biblioteca
Que nunca mais se repete (MOTA,1998, p.11)
Este artigo é baseado em parte do trabalho de pesquisa realizado pelo
autor no programa de Pós-graduação em Geografia da Universidade Federal da
Bahia e tem como objetivo lastrear estudos referentes à etnia cigana desde o seu
contexto mais geral chegando até a escala regional.
Várias informações sobre as origens dos ciganos foram obtidas através de
estudos lingüísticos feitos a partir do século passado. A comparação entre os vários dialetos, que constituem a língua cigana, chamada romaní ou romanês, e algumas línguas indianas, como o sânscrito, o prâncrito, o maharate, permitiu que se
estabelecesse com certeza a origem indiana dos ciganos. A razão pela qual abandonaram as terras nativas da Índia permanece ainda envolvida em mistério. Parece que eram originariamente sedentários e que motivados por situações adversas, tiveram que viver como nômades. Segundo outra lenda, narrada pelo poeta
persa Firdausi no século V d.C. um rei persa mandou vir da Índia dez mil Louros,
nome atribuído aos ciganos, para entreter o seu povo com música. É provável também:
(...) que a corrente migratória tenha passado na Pérsia, mas em
data mais recente, entre os séculos IX e X. Vários grupos penetraram no Ocidente, seja pelo Egito, seja pela via dos peregrinos, isto é, Creta e o Peloponeso. O caráter misterioso dos ciganos deixou uma profunda impressão na sociedade medieval.
Mas a curiosidade se transformou em hostilidade, devido aos
hábitos de vida muito diferentes daqueles que tinham as populações sedentárias. (ROSSO 1995, p.67).
A presença de bandos de ex-militares e de mendigos entre os ciganos contribuiu para piorar sua imagem. Além disso, as possibilidades de assentamento
eram escassas, porque a única forma de sobrevivência consistia em viver às margens das sociedades. Os preconceitos já existentes eram reforçados pelo convencimento difundido na Europa que a pele escura via-se como sinal de inferioridade e de malvadeza.
Os ciganos eram facilmente identificados com os turcos porque indiretamente e em parte eram provenientes das terras dos “infiéis”, assim eram considerados inimigos da igreja, que condenava as práticas ligadas ao sobrenatural,
como a cartomancia e a leitura das mãos que os ciganos costumavam exercer.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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Figura 1
Fonte: (Fonseca, 1996), Cartaz
alemão de protesto contra os ciganos,
cerca de 1715. a inscrição diz:
Punição para[...] libertinos e
ciganos[...]
A falta de uma ligação histórica precisa a uma pátria definida ou a uma origem segura não permitia o reconhecimento como grupo étnico bem individualizado, ainda que por longo tempo houvessem sido qualificados como egípcios. A oposição aos ciganos delineou-se também nas corporações, que tendiam a excluir
concorrentes no artesanato, sobretudo no âmbito do trabalho com metais. O clima
de suspeitas e preconceito percebe-se na criação de lendas e provérbios tendendo a pôr os ciganos sob mau conceito, a ponto de se recorrer à Bíblia para considerá-los descendentes de Caim, e, portanto, malditos (Gênesis 9:25), (fig. 1). Difundiu-se também a lenda de que eles teriam fabricado os pregos que serviram para
crucificar Cristo (ou, segundo outra versão, que eles teriam roubado o quarto prego, tornando assim mais dolorosa a crucificação do Senhor), como nos mostra
Campos (1994).
Dos preconceitos à discriminação, até chegar às perseguições, na Sérvia e
na Romênia, os ciganos foram mantidos em estado de escravidão por um certo
tempo; a caça ao cigano aconteceu com muita crueldade e com bárbaros tratamentos, (fig. 2). Deportações, torturas e matanças foram praticadas em vários
estados, especialmente com a consolidação dos estados nacionais.
Já sob o regime nazista, os ciganos tiveram um tratamento igual ao dos judeus: muitos deles foram enviados aos campos de concentração, onde foram submetidos a experiências de esterilização, usados como cobaias humanas. Calculase que meio milhão de ciganos tenham sido eliminados durante o regime nazista.
Porém na bibliografia especializada sobre o Holocausto, há apenas a predominância da figura do judeu enquanto se observa uma necessidade maior de contextualizar os ciganos neste momento da história, pois estes também foram vitimas
do regime nazista.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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Figura 2
Fonte: (Fonseca, 1996) Cartaz anuncia leilão de escravos na
Valáquia: À VENDA excelente lote de ESCRAVOS CIGANOS a
serem vendidos em leilão no mosteiro de St. Elias, 9 de maio de
1852, composto de 18 homens, 10 meninos, 7 mulheres e 3
meninas, em bom estado.
Nas primeiras leis nazistas, os ciganos eram enquadrados como transviados sociais, incluídos nas leis criadas para os anormais e deficientes mentais
internados em instituições. Em 1933, surgiu a Lei de Prevenção de Descendentes
Portadora de Doenças Hereditárias e no mesmo ano é criado o Regulamento para
Segurança e Reforma de Criminosos Contumazes e Transviados Sociais. Através
destas medidas, os ciganos eram esterelizados sem direito de escolha. Mais duas
leis criadas em 1935 proibiam o sexo entre alemães e não-europeus(ciganos e
judeus) para não ocorrer “uma sujeira na raça limpa alemã”.(FONSECA:1996). A
política nazista contra os ciganos tem sua próxima versão nas Leis contra o Crime:
Eles [ciganos] são contados entre aqueles que por comportamento anti-social, mesmo não havendo cometido crime,
demonstram que não desejam enquadrar-se na sociedade:
mendigos, vagabundos (ciganos), prostitutas pessoas com
doenças contagiosas que não se tratam. Em legislação posterior são inseridos os judeus, ciganos e poloneses. (p.286)
Uma discussão sempre perpassou as questões que envolviam os ciganos e
os judeus, quais seriam os critérios para defini-los, os raciais ou os culturais. Os
nazistas usavam as duas categorias, tendo, no final, o prevalecimento das questões biológicas para justificar a cultura e o comportamento (a criminalidade e o desvio sexual para os ciganos, e venalidade e fome de poder entre os judeus), desde
o inicio das deportações e prisões e mais tarde o extermínio, têm, como fator motivante, as questões étnicas transformadas em biológicas.
Os ciganos foram cobaias para as mais diversas experiências como mencionado anteriormente. Para tanto, havia o Departamento de Higiene Racial e biologia Populacional do Departamento de Saúde do Reich, onde o higienista racial Dr.
Robert Ritter, pesquisou dez gerações de ciganos em busca da explicação para o
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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comportamento criminoso e anti-social dos ciganos neste momento ainda fora dos
campos e posteriormente neles, segundo Fonseca, (1996), uma das metodologias da pesquisa pautava-se em entrevistas com famílias de ciganos, mas após as
mesmas, eles eram imediatamente enviados aos campos de concentração, (fig.
3). Para muitos, esta pode ser uma das explicações para a desconfiança nas
entrevistas principalmente quando referentes a parentesco.
Figura 3
Fonte: (Fonseca, 1996) As barracas dos ciganos no campo de Auschwitz eram
identificadas como BIIe, atrás das quais ficava o hospital para prisioneiros, o crematório
e a câmara de gás. Entre fevereiro de 1943 e agosto de 1944, 21mil ciganos foram
mortos em Auschwitz.
O conhecido médico nazista Josef Mengele também se interessou pelos
ciganos, uma vez que, assim, ele podia disseminar doenças e testar “tratamentos”
Uma outra questão era o interesse genético pela raça dos ciganos, pelo fato de
serem eles, os nazistas, considerados “raça pura”. Nos experimentos do médico,
os ciganos eram contaminados com sarna, e o tratamento consistia em transferir o
doente de uma para outra banheira cheia de uma solução de sal e ácido. Quando
ocorriam as mortes, a autopsia podia ser feita na hora, sem contar com o bloco
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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especial onde ele possuía anões, gigantes, pessoas com um olho azul e outro castanho e gêmeos e ainda mantinha amostras de cabelos, olhos (dos gêmeos) e às
vezes a cabeça inteira. As crianças gêmeas interessavam-nas em especial nas
suas pesquisas sobre hereditariedade, certa (...) “Mengele em pessoa injetou clorofórmio no coração de quatorze crianças gêmeas perfeitamente saudáveis para
poder realizar a dissecação de seus cadáveres.” (FONSECA, 1996, p.299)
Quando ele recebeu as ordens para o extermínio em massa dos ciganos,
ficou contrário, pois os ciganos eram as cobaias preferidas para os seus experimentos, mas mesmo assim obedeceu às ordens e:
Andou pelo campo inteiro esse dia, localizando cada criança
escondida. As que haviam escapado do transporte na noite
anterior ele colocou em seu próprio carro e levou pessoalmente
as câmaras de gás. As crianças ciganas iam de boa vontade,
pois aquele homem tinha lhes demonstrado afeto e lhes dado
doces, eles o adoravam confiavam em Mengele, e corriam
atrás dele gritando: Tio Pepi! Tio Pepi! (P.298)1
O ser cigano para os nazistas, envolvia a mesma questão dos deficientes
físicos ou pessoas com doenças hereditárias. O cigano era como uma doença que
deveria ser exterminada se alastrava rápido e de acordo aos médicos nazistas
uma das suas características hereditárias que justificaria isto seria a criminalidade
inata dessa raça.
Atualmente, os ciganos estão presentes em todos os países europeus, nas
regiões asiáticas por eles atravessadas, nos países do oriente médio e do norte da
África. Na Índia, existem grupos que conservam os traços exteriores das populações ciganas: trata-se dos Lambadi ou Banjara, populações semi-nômades que
os “ciganólogos” definem como “Ciganos que permaneceram na pátria”. Nas
Américas e na Austrália, eles chegaram acompanhando deportados e colonos. Sucessivamente estabeleceram fluxos migratórios para aquelas regiões.
Recentes estimativas sobre a consistência da população cigana indicam uma cifra
ao redor de 12 milhões de indivíduos (Fonseca,1996).2
A origem indiana dos ciganos é hoje admitida por todos os estudiosos. População
indo-européia, mais especialmente indo-iraniana: não há dúvidas quanto ao que
diz respeito à língua e à cultura. Os indianistas modernos, no entanto, têm tendência a não considerá-lo um grupo homogêneo, mas um povo viajante muito antigo,
composto de elementos diversos, alguns dos quais poderiam vir do sudeste da
Índia.
A maior parte dos indianistas, porém, fixa a pátria dos ciganos no noroeste
da Índia. A maioria, igualmente, liga-se à casta dos párias. Isso em parte por causa
1
Citação referente à obra de FONSECA, Isabel. Enterrem-me em pé: os ciganos e sua jornada. Ver
bibliografia.
2
Números exatos sobre a população cigana são imprecisos devido a grande dificuldade de contabilizalos, outros dados podem ser encontrados sobre esta questão.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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de seu aspecto miserável, que não se deve a séculos de perseguição, pois foi descrito bem antes da era das perseguições. Também por causa dos empregos subalternos e das profissões geralmente desprezadas na Índia contemporânea pelos
indianos que lhes parecem estreitamente aparentados.
O cigano designa a si próprio como Rom, pelo menos na Europa (Lom, na
Armênia; Dom, na Pérsia; Dom ou Dum, Síria) ou então como Manuche. Todos
esses vocábulos são de origem indiana (manuche, ou manus, deriva diretamente
do sânscrito) e significam “homem”, principalmente homem livre. “Rom” e “Manuche” aplicam-se a dois dos principais grupos ciganos da Europa Ocidental
CIGANOS NO BRASIL
Os ciganos fazem parte de uma etnia de cultura própria, rica, já que por variadas razões encontram-se dispersos por todo o mundo, tendo passado, em suas
“andanças”, por diferentes países, levando e enriquecendo a sua cultura. Uma
pequena parcela, hoje em dia, ainda é nômade, mas a maioria, como no caso dos
ciganos do Rio de Janeiro, é seminômade e sedentária.
Segundo Ivatts apud Liechocki(1999), a concentração maior desse povo
fica na Europa, ou seja, da população mundial cigana, mais ou menos a metade é
residente na Europa, sendo que dois terços na Europa Oriental e parte ainda reside no norte e no sul da África, no Egito, na Argélia e no Sudão. Nas Américas, o contingente está distribuído dos Estados Unidos à Argentina, tendo uma maior concentração no território brasileiro.
Devido ao modo de vida cigano, é difícil calcular o número exato deles, mas,
segundo Ivatts in Rosso (1985), em 1975, sem contar com a Índia e o sudeste asiático, os ciganos eram, em média, cerca de sete a oito milhões em todo o mundo, já
para (Maia:1993), como mencionado anteriormente este número esta próximo
aos 12 milhões.
Deve-se esclarecer que o termo cigano é genérico, assim como índio, ou
seja, dentro dessa etnia existem subdivisões e, nelas, existem famílias que fazem
das tradições uma cultura própria de acordo com o subgrupo ao qual pertencem.
No Brasil, mais particularmente no Rio de Janeiro, existem dois grandes grupos de
ciganos: o Rom e o Calom.
Os nomes dos subgrupos são apresentados por força de uma profissão própria e predominante na família através dos tempos, como os kalderashès (ferreiros, caldeireiros, produtores de panelas, parafusos, utensílios, chaves, pregos, ferramentas, selas, cintos e outros objetos de couro). Alguns são exibidores de feras
amestradas, os circenses (lovares e manushes). Outros ainda, que eram antigos
traficantes de cavalos, atualmente, negociam com carros, sendo também exímios
comerciantes, mecânicos e lanterneiros, como os ciganos do grupo Calom. Há
também os que vendem ouro, jóias, roupas, tapetes, que são os mercadores
ambulantes ou feirantes.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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Os ciganos do grupo Calom situam-se na Espanha - particularmente em
Andaluzia, onde existe a maior concentração de calons. Em Portugal, na África do
Norte e no sul da França, são chamados “ciganos Ibéricos”. Há muitos anos,
alguns desse grupo foram deportados ou emigraram para as Américas, existindo,
assim, uma grande parte desses ciganos no Brasil. Diferenciam-se dos rons pelo
aspecto físico, dialeto e costumes. Em sua maioria, são nômades, principalmente
no Norte e Nordeste, mas uma grande parte já está totalmente sedentarizada, principalmente no Rio de Janeiro.
É importante ainda mencionar que o termo rom significa cigano para qualquer cigano, enquanto calom, como são conhecidos os ciganos Ibéricos, é o dialeto utilizado por estes desde a época da repressão na Espanha e em Portugal. O
Romanês ou Romani, língua mundial cigana, traz a palavra rom significando
homem, cigano e marido.
CIGANOS NA BAHIA
A contextualização cigana na Bahia mostrou-se uma tarefa complexa pela
falta de produção historiográfica e fontes documentais sobre tal grupo étnico,
representando talvez mais uma vez a naturalidade com que o cigano adquiriu, no
cotidiano das pessoas, não sendo elemento merecedor de maior atenção científica. Porém, em uma obra recente produzida pelo antropólogo Ronaldo Senna, chamada “A seda esgarçada” (2005), revelando-se na atualidade como uma importante contribuição a ciganologia na Bahia, conseguiu-se garimpar, com o auxilio
indispensável do prefácio da obra mencionada anteriormente, construído pelo historiador Erivaldo Neves, informações importantes que apontam algumas direções
para o inicio da trajetória cigana na Bahia.
As grandes dificuldades nas pesquisas sobre ciganos não se baseiam apenas na falta de documentos, mas também em uma característica cultural de tal grupo, o fato de sua língua, “o romaní”, não ter uma forma escrita, ou seja, ser ágrafa,
desta forma sem uma produção histórica escrita, mas memorial. Assim, diz o poeta, um dos maiores ciganólogos do Brasil: “Cigano que morre: Incêndio de uma
biblioteca/ Que nunca mais se repete”.(MOTA, 1998, p.11). O cigano na verdade
traz consigo sua historia.
A chegada dos ciganos ao Brasil e à Bahia ocorreu a partir do século XVI
durante o período de colonização com as degredações imputadas pela coroa portuguesa como pena aos furtos realizados na metrópole e ao seu comportamento
“não civil”. O degredo colonial também se dava em virtude das denúncias à inquisição. Como se sabe, até hoje características místicas da cultura cigana são tidas
como demoníacas, como exemplo tem-se a prática de ler a sorte – buena dicha, os
ciganos durante o período colonial e imperial dedicaram-se ao comércio de escravos e cavalos. Embora os que conseguiam acumular alguma riqueza, passavam a
atuar no mercado imobiliário, agropecuário e agiotagem. Os que não conseguiam
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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continuavam a comercializar animais de montaria e a pequenos utensílios domésticos artesanais.
As fontes documentais não permitem um aprofundamento às questões históricas
envolvidas, mas apenas identificar os ciganos como um grupo social especifico,
cabendo a antropologia a tarefa de a partir do mundo cigano, oral e ágrafo, traçar
uma linha de estudos sobre a ciganologia.
Mesmo tendo em vista tais dificuldades (Neves apud Senna: 2005), aponta com o
auxilio de uma documentação histórica escassa algumas questões que envolviam
o universo cigano no período colonial e imperial na Bahia. Como os documentos
do Santo Ofício em visita à colônia, entre 1591 e 1595, onde o visitador da inquisição colhia os depoimentos dos ciganos e ciganas e lhes impunha as devidas penitencias fruto das blasfêmias proclamadas por eles, as acusações partiam principalmente da renegação a Deus, como mostra:
O depoimento da viúva de Francisco Fernandes, ferreiro, cigano que viera degradado do reino por furto de burros, confessou
que dois meses antes, “por agastamento” e “por se ver em trabalhos de passar umas ribeiras de água e se molhar disse que
arrenegava a Deus. (NEVES apud SENNA,2005: Prefácio) 3
Vários são os depoimentos que se seguem.
Quanto ao processo de degredo iniciado na colônia junto aos ciganos começava a delimitar-se quanto a um problema para a colônia, devido à rápida reprodução dos ciganos e dos problemas que estes criavam, assim :
Os oficiais da Câmara da Cidade da Bahia denunciaram a Dom
José I, em 1755, que os ciganos degredados do Brasil multiplicavam-se, vivendo “a sua vontade” praticando o que lhes impunham as leis, falando “geringonças”, andando vagabundos,
com ranchos de famílias inteiras” comprando e vendendo cavalos, sem que se visse punido ciganos pelas proibições respectivas a esta maligna nação. 4
Dessa forma, um conjunto de medidas foram sendo estipuladas para o controle do problema, desde a separação das famílias ou o envio de jovens casais
para Angola sem os filhos pequenos (nova degregação aos já degredados). Aos
homens mais maduros, era-lhes obrigado a trabalhar em obras públicas e as
mulheres em lugar “certo” e público. Estas eram as estratégias de extinção dos
ciganos, transformar as suas práticas em praticas ”civis”, delimitadas pelo Reino
de Portugal. Porém, percebe-se que, apesar de todas essas interferências na vida
cigana, não conseguiram extingui-los, muito em função da sua cultura que, ao
3
Erivaldo Neves in prefácio. A seda esgarçada: configuração sócio-cultural dos ciganos de Utinga, de
Ronaldo Sena. Ver bibliografia.
4
Idem, Ibidem.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
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encontrar os obstáculos, utilizam-nos como forma de reprodução da mesma.
Em Portugal e no Brasil, ciganos integravam se a vida civil, miscigenando-se e abandonado a cultura original, tanto em conseqüência de recursos políticos governamentais como em decorrência de fatos inerentes ao convívio social sem promover
impactos à integridade étnica e nem pratica de seus usos e costumes multisseculares. 5
Caso exemplar da miscigenação da cultural cigana com outros segmentos
éticos e mais particularmente na Bahia com o candomblé, está o terreiro Ogum de
Cariri-Kilumbu Kayá, no bairro da Barra em Salvador, dirigido por uma mulher que
seria neta de ciganos, a ialorixá Mãe Dadá, já falecida. Outro exemplo de descendentes de ciganos é o poeta Castro Alves, cigano pelo lado paterno dos Alves e
mais recentemente o ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek, entre outras
figuras da história.
A problemática cigana crescia em conjunto com a sua população, e os espaços ocupados por eles, como a antiga Rua das Palmas, por isso chamada hoje de
Mouraria, não mais lhes interessavam, em função também das perseguições
sofridas. Assim, partindo daí para ocupar partes de Santo Antonio Além do Carmo
e do Recôncavo, provavelmente iniciaram a sua chegada à cidade de Cachoeira
que viria mais tarde ser desmenbrada em vários municípios como Cruz das Almas
entre outros. Propiciando a partir daí as primeiras presenças de ciganos neste
contexto regional.
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5
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Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 75-85, Novembro, 2006.
HISTÓRIA E INFORMÁTICA: REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA
Antonio Wellington Melo Souza*
RESUMO: Neste artigo, descreve-se uma experiência no âmbito de ensino e
aprendizagem da Educação Básica e analisa as interações realizadas na disciplina de História na perspectiva de Piaget e suas relações com novas práticas educacionais, em especial, com relação às Tecnologias da Informação e Comunicação. A análise dos dados realizou-se em dois níveis: apropriação do computador e
do uso da rede Internet (como fonte de pesquisa e troca de informações), e dinâmica de desenvolvimento da disciplina (discussão, reconstrução, problematização, produção, coletividade).
PALAVRAS CHAVES: Ensino aprendizagem; história; problematização, tecnologias da informação e comunicação – TIC; internet, colaboração e interação.
ABSTRACT: In this paper, is described an experience in the teaching-learning's
ambit of the Basic Education and are analyzed the interactions accomplished in
the discipline of History, in the Piaget's perspective and its relationships with new
educational practices, especially, in relation to the Technologies of Information and
Communication. The analysis of the data took place in two levels: appropriation of
the computer in the Internet's use (as research source and change of information)
and the development's dynamics of the discipline (discussion, reconstruction, the
problematic, production, community)
KEY-WORDS: Teaching-learning; history, the problematic; technology of the
information and communication -TIC/ICT; internet, collaboration and interaction.
* Professor do curso de História e Normal Superior da Faculdade Maria Milza-FAMAM
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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Existem laboratórios de informática em número significativo de escolas
públicas de todo Brasil, por meio do PROINFO/MEC1 e de outras iniciativas, mas
as escolas, na sua maioria, não mudaram o jeito de ensinar e aprender. Daí pergunto: quais as novas formas de ensinar e aprender para otimizar a construção
do conhecimento que inclua as tecnologias da informação e comunicação - TICs
como ferramentas nesse processo? É preciso desaprender para aprender novamente? Como é possível construir um processo de ensino e aprendizagem de História que desperte o interesse do aluno?
Com essas questões e diante da falta de uso adequado dos computadores
na Educação, surgiu a proposta de experimentar uma metodologia de ensino de
História que articulasse as Tecnologias da Comunicação e Informação com base
em uma perspectiva construtivista, fundamentada na teoria de Piaget, segundo a
qual, os conhecimentos são construídos através da interação entre sujeito e objeto de aprendizagem. Toda construção implica reconstrução. Já que a aprendizagem não é um processo passivo, é preciso buscar meios de despertar o interesse
dos alunos e dar -lhes um papel mais ativo.
Para que a investigação de fato acontecesse, fazia-se necessário encontrar uma escola com laboratório de informática em atividade e professores de História atuando com seus alunos, fazendo uso das TICs de maneira a atender a seus
objetivos pedagógicos.
Como de fato sabia que no município desta pesquisa, a cidade de Santo
Antonio de Jesus não encontraria uma escola com esse perfil, veio a necessidade
de conquistar (atrair) professores parceiros para atuarem como sujeitos desse processo e, assim, poder efetuar o estudo pretendido.
A busca pelos professores deu-se na própria escola. Visitei uma escola
dotada de dois laboratórios de informática totalizando 27 (vinte e sete) computadores, diversas vezes e em horários alternados, de intervalo e de atividade complementar na busca de professores parceiros para desenvolver o projeto.
A proposta foi discutida à priori com a direção da escola, que aceitou o
desenvolvimento do trabalho. Também foi discutida com alguns professores da
área e, por fim, foi aceita por uma professora de História, que apesar de solitária,
atendia às exigências.
No bojo da proposta de trabalho, estavam contemplados os encontros
semanais com a professora a fim de discutirmos avanços e retrocessos do grupo e
as dificuldades encontradas e aprofundarmos melhor na teoria construtivista por
meio de grupos de estudos.
Os primeiros encontros aconteceram com o propósito de determinar com
que turmas atuaríamos. Depois das discussões, combinamos que trabalharíamos
apenas com uma turma, em um projeto piloto, cujo perfil era: 2ª série do Ensino
1
ProInfo é um programa educacional criado em 9 de abril de 1997 pelo Ministério da Educação por
meio da portaria 522, para promover o uso da Telemática como ferramenta de enriquecimento pedagógico no ensino público fundamental e médio. Suas estratégias de implementação constam do documento Diretrizes do Programa Nacional de Informática na Educação.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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Normal (Magistério), composta por 25 alunos, na sua maioria meninas (22), de idades variadas (de 16 a 45 anos), muitos deles provenientes da zona rural, que,
segundo a professora, não tinham muito interesse pela disciplina de História:
Quando fui convidada pelo professor Antonio Wellington para
realizar o projeto, percebi que a proposta era muito interessante, e começamos a discutir como seria desenvolvido o projeto. A
escolha do 2º ano do Ensino Normal consistiu no fato de a
turma ser considerada por alguns professores como alunos
que não gostavam da disciplina de História e que não se mostravam muito interessados nas aulas. Era meu primeiro ano
com a turma. (Professora da turma)
Combinamos então que discutiríamos o projeto com os alunos e que contemplaríamos a opinião deles a respeito da proposta de uso das TICs com fins de
dinamizar o processo de ensino e aprendizagem de História. A recepção foi calorosa, olhares atentos, rostos expressivos deslumbrados com a possibilidade de
manusear um computador.
No primeiro momento com a turma, foi apresentado o projeto de trabalho,
esclarecidas as dúvidas e estabelecida a parceria com os alunos. O estudo contemplava o acesso ao laboratório de informática do Núcleo de Tecnologia Educacional - NTE nas segundas e sextas-feiras com o propósito de familiarizar os alunos com a informática e proporcionar-lhes livre acesso à Internet, solucionando,
assim, naquele momento, o problema da falta de conexão na escola.
Como alguns alunos afirmaram não saber “nem como ligar o computador”,
entendi que o aprendizado no manuseio da máquina poderia acontecer no processo; os alunos, por sua vez, solicitaram uma ajuda, pois estavam preocupados em
não “dar conta daquela nova aprendizagem”. Assim, para atender ao propósito de
familiarizar os alunos com a máquina, um multiplicador do NTE, nesse grupo de
estudo, que se dispôs a colaborar com os alunos na lógica e dinâmica de uso dos
programas básicos de processador de textos, webdesigner (através do FrontPage
Express) e navegação e pesquisa na Internet.
Também no primeiro contato, foi aplicado à turma um questionário investigativo para compreendermos melhor o perfil da turma e a relação dos alunos com
as TICs e o ensino de História. Com o resultado desse questionário, pudemos ter
uma visão mais aprofundada do grupo. Um grande número de alunos da turma
nunca havia tido contato com um computador e todos sabiam da existência do
laboratório da escola, mas nunca o usaram, mesmo para outros fins que não pedagógicos.
Um dos motivos que nos impulsionou ainda mais a levar adiante o Projeto
com o grupo foi o relato de alguns alunos que diziam não gostar de estudar História. Consideravam a disciplina chata, repetitiva e sem muita utilidade no seu dia-adia.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
90
História é insuportável, os assuntos são muitos repetitivos, tudo
de antigamente. A professora chega na sala, passa uma apostila, a gente lê, lê aquilo e decora.
História é muito cansativo e repetitivo, a pessoa fica com dificuldade de assimilar porque fica ouvindo coisa do passado. (C.S
aluna)
A professora tomou isso como um desafio, e, para os alunos, parecia nascer naquele momento uma nova perspectiva de ensino, baseada na discussão, na
interação, na negociação, em que todos participavam do mesmo processo. Como
podemos perceber em seu depoimento:
É esse o grande desafio, por isso mesmo nós queremos repensar a prática pedagógica. É essa idéia que os alunos constroem... que História é algo do passado, morto, que não é divertido, que é chato. E a idéia que nós queremos trazer, de fato, é
buscar com que os alunos possam descobrir quais as mudanças e permanências na História, de que forma eles são agentes
e como nós, enquanto seres humanos, participamos do processo histórico. (...) Sentia que seria um desafio e uma oportunidade de um fazer pedagógico diferente. Ouvi de alguns alunos
que não gostavam de História porque as aulas eram chatas.
Por esse motivo, lançamos a proposta para a classe, que a acolheu com motivação e expectativa. Ficamos com a sensação de
que as aulas de História seriam diferentes, e essa era a proposta: torná-las mais prazerosas, menos chatas. (Professora da
Turma)
Partimos dessa constatação em direção a novas formas de ensinoaprendizagem que possibilitassem uma (re) significação da disciplina de História.
O projeto foi iniciado quando a professora fez a apresentação do conteúdo
programático a ser estudado na unidade. Logo em seguida, discutiu-se com os alunos a seleção dos temas, fazendo-se um levantamento daqueles assuntos de que
eles mais gostariam de aprofundar. A professora solicitou que os alunos formassem as duplas e trios de trabalho e, democraticamente, reestruturou junto com o
grupo a forma de organização do trabalho.
A turma, dividida em dois grupos, pesquisava os temas na Internet, em dias
diferentes, e no turno oposto ao de aula no Núcleo de Tecnologia Educacional NTE, onde também adquiriam conhecimentos práticos e básicos de informática.
Em frente ao computador e navegando na Internet, os alunos tinham um
problema para resolver: pesquisar e encontrar respostas para assuntos históricos abordados e levantados por eles em discussão com a professora. As TICs se
constituíam como alternativa de colaborar no processo de ensino e aprendizagem de História, desencadeando a dinâmica do projeto.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
91
Com relação ao uso das TICs, Papert (1994) diz que o computador pode
basicamente ser usado para ensinar algo aos alunos, para ensinar informática ou
como ferramenta para que os alunos desenvolvam projetos em diferentes áreas
do conhecimento. A primeira forma de uso traz consigo uma idéia de educação
como transmissão de conhecimentos. A segunda reduz o computador a um recurso profissionalizante e não muda qualquer prática escolar, apenas acrescenta
informática ao currículo. Já a terceira pode efetivamente mudar a forma como os
professores compreendem ensino e aprendizagem e usar o computador para criar
ambientes de aprendizagem ricos. O enfoque da terceira maneira de usar o computador citada por Papert foi a inspiração encontrada para dar início à experiência
numa concepção de que o computador pode ser “estruturante de uma nova forma
de pensar e agir”.
Inicialmente, o computador causou euforia na maioria dos alunos, em especial naqueles que não conheciam as possibilidades que a máquina oferecia ao
homem. Foi preciso deixar extravasar essas emoções, principalmente no que diz
respeito à navegação na Internet, pois muitos queriam conhecer sites como os do
seriado de televisão Malhação, de novelas, do programa de Raul Gil, etc. e entrar
em bate-papos, no que foram atendidos, pois compreendíamos que era um
momento deles e que o computador e a Internet têm esse poder de fascínio. Mas,
passado algum tempo, a intervenção do professor foi importante para que o trabalho fosse retomado.
O trabalho no laboratório foi acompanhado de perto pela professora, que
conduzia a pesquisa orientando os alunos na busca das respostas aos problemas
levantados. Os alunos partiram à procura de conteúdos mais significativos e contaram com o suporte deste investigador na qualidade de colaborador, ou melhor,
instrutor de informática, para as noções iniciais e as dúvidas dos alunos com relação ao uso do computador.
A opção por desenvolver todo o trabalho de pesquisa em dupla ou trio contemplou dois pontos positivos: favoreceu o atendimento de maior número de alunos da mesma vez no laboratório (que possuía apenas dez máquinas) e promoveu a interação social e a cooperação nos trabalhos escolares. Com relação ao trabalho em grupo, Piaget (1969), diz que a cooperação entre as crianças é tão
importante para o progresso como a ação dos adultos e as discussões entre os
pares, por permitir um verdadeiro intercâmbio como meio de incentivar a formação do espírito crítico e de um pensamento cada vez mais objetivo . Dentro desse
mesmo contexto, escreve:
Portanto, se tivéssemos que escolher entre o conjunto de sistemas pedagógicos atuais aqueles que correspondem melhor
aos nossos resultados psicológicos, tentaríamos orientar o
nosso método àquilo que foi denominado “trabalho em grupos”
[...] [Na] escola tradicional [...] a classe escuta em conjunto,
porém cada escolar escuta suas lições para si mesmo. Esse
procedimento [...] é contrário às exigências mais claras do
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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desenvolvimento intelectual e moral. O método de trabalho em
grupo reage contra esse estado de coisas: a cooperação elevase à categoria de fator essencial do progresso intelectual
(PIAGET, 1974 apud LERNER 2002, p.101).
Piaget refere-se ao papel do intercâmbio social como favorecedor do pensamento, na medida em que supõe reciprocidade e coordenação de diferentes
pontos de vista. A respeito disso, diz:
Na ordem da inteligência, a cooperação significa a discussão
dirigida objetivamente (de onde a discussão interiorizada que é
a deliberada ou a reflexão), colaboração no trabalho, a troca de
idéias, o controle mútuo... (PIAGET, 1967,p.208-209).
E os estudantes confirmam que o trabalho em duplas e a interação e cooperação entre os grupos contribuiu na aprendizagem, como mostram as falas a
seguir:
Com a responsabilidade pela construção do nosso conhecimento para ampliar os nossos termos abordados, o nosso
aprendizado tornou-se bem mais fácil, e com a ajuda da Internet a nossa aprendizagem tornou-se muito mais fácil ainda. O
nosso trabalho em dupla também ajudou muito, pois nos estimulou a querer buscar mais conhecimento e conhecer mais coisas. A colaboração do grupo foi muito importante também, pois
no laboratório de informática todos se ajudaram, com isso
fazendo com que o grupo ficasse mais unido.
Depois desse projeto, as aulas de História ficaram muito mais
interessantes, pois o projeto também ajudou a sala a se motivar
mais nas aulas de História. O projeto em dupla facilitou o trabalho, pois a motivação foi em alta. (C.A e C.G alunas)
Na fala dos alunos, está intrínseca a idéia da lógica do pensamento que se
tornou um princípio nas atitudes e nas relações interpessoais, possibilitando aos
estudantes organizarem-se a partir da troca de idéias e defendê-las pela argumentação e contra-argumentação.
Paralelamente às pesquisas que eram realizadas no laboratório de informática e às atividades sistematizadas para melhor compreensão e análise crítica
dos sites visitados, os alunos continuavam tendo as aulas de História em seus
horários normais. A base curricular não foi modificada em função do projeto; em
sala de aula, a professora trabalhava diretamente com os grupos, debatendo, discutindo os textos pesquisados e sugerindo novas leituras.
Segundo Coll (1998), para a concepção construtivista, aprendemos quando somos capazes de elaborar uma representação pessoal sobre o objeto da realidade ou conteúdo que se pretende aprender. Essa elaboração implica aproxiTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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mar-se de tal objeto ou conteúdo com a finalidade de aprendê-lo. Não se trata de
uma aproximação vazia, a partir do nada, mas a partir das experiências, interesses e conhecimentos prévios que, possivelmente, possam dar conta da novidade.
No decorrer do projeto, os alunos foram orientados pela professora para
que, a partir dos textos pesquisados, fossem selecionados os conteúdos mais
significativos e relevantes ao tema estudado, alertando sempre para anotar a
fonte de onde o material fora retirado. Outro cuidado que a professora demonstrou
ter foi o de despertar no aluno a crítica com relação à confiabilidade da fonte pesquisada, no sentido de demonstrar que nem tudo que está na rede mundial dos
computadores é de qualidade e confiável e que a Internet também possui muito
“lixo virtual.”
Sempre observo que na Internet tem muitos sites com dados
desatualizados, e outros com informações mais significativas,
e sites com informações descontextualizadas, equivocadas.
Acho que isso não pode passar despercebido pelos alunos; por
isso a Internet não pode ser usada de outra maneira senão crítica. Estou procurando passar sempre isso para meus alunos.
(Professora da Turma).
Uma outra preocupação da professora foi oferecer aos alunos uma relação
de sites que tratassem de assuntos correlacionados aos conteúdos trabalhados
para que os estudantes não ficassem perdidos em frente ao computador. Para
isso, passou algum tempo frente ao computador navegando e analisando alguns
sites e montando uma lista destes para os estudantes. Uma ficha de análise de
sites também acompanhou o trabalho de pesquisa no laboratório; era uma ficha
simples em que o aluno anotava o endereço do site e fazia uma breve descrição e
análise do conteúdo nele apresentado. Um dos objetivos dessa atividade era fazer
com que os estudantes explorassem ao máximo um determinado site e construíssem um olhar crítico sobre ele.
Os sites de busca constituíram uma poderosa ferramenta de pesquisa, porque muitas vezes os alunos diziam não encontrar na lista de sites disponibilizada
pela professora respostas para suas indagações. Quando isso acontecia, para
nossa surpresa, eles não ficavam parados esperando pela professora e tratavam
logo de acessar um site de busca ou, como eles falavam, no “gol olé”, referindo-se
à busca google. (www.google.com.br)
Durante o processo no laboratório, os alunos criaram e-mails pessoais gratuitamente no site yahoo (www.yahoo.com.br) e trocaram informações entre si. A
princípio, apenas para conhecer melhor a ferramenta, mas, com o tempo, esse serviço se configurou em um espaço de troca de informações dinâmica entre o grupo.
Muitas vezes, os alunos encontravam sites contendo assuntos relacionados aos temas pesquisados pelos seus colegas da outra parte da turma que não
estava presente no laboratório por não ser o seu dia de pesquisa. Com o clima de
cooperação instaurou-se no ambiente, eles pediam ajuda para passar, via e-mail,
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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o endereço ou o conteúdo do site encontrado para o interessado.
Enviar mensagens para os colegas constituía-se uma novidade e um instrumento útil para os alunos, principalmente quando eles estavam colaborando com
o trabalho do outro. Percebemos, então, a importância do e-mail para o ensino,
pois encurta distâncias, estabelece a comunicação e ainda favorece a troca de
informações.
Piaget (1975 apud LERNER, 2002) ressalta que, em qualquer meio social,
os indivíduos trocam informações, discutem idéias, chegam (ou não) a acordos, e
que esse processo de colaboração intelectual intervém durante todo o desenvolvimento. O autor conclui:
Por isso, mesmo se chegássemos a encontrar nossos estágios
e nossos resultados em toda sociedade estudada, nem assim
ficaria provado que os desenvolvimentos convergentes são de
natureza estritamente individual: como é evidente que em toda
parte a criança se beneficia com contatos sociais desde tenra
idade, isso também demonstraria que existem certos processos que interagem com o processo de equilíbrio examinado
anteriormente. (PIAGET, 1975 apud LERNER, 2002, p. 101).
A troca de informações entre integrantes de um mesmo grupo, entre os grupos e com o professor incentivou o espírito de cooperação, a representação de
idéias e resultados de suas descobertas através da combinação de diferentes
sites, links e textos informativos, mensagens recebidas através do correio eletrônico, imagens, sons, gráficos, etc.
Como forma de organizar as pesquisas e produções dos estudantes, foi
recomendado pela professora que eles fossem montando seus próprios portifólios,2 o que permitiu o registro da trajetória da aprendizagem, através da seleção,
ordenação de documentos por eles produzidos ou de documentos externos, como
fotos, reportagens, textos, endereços de sites significativos que, de algum modo,
contribuíram com o percurso de sua aprendizagem, colocando em evidência seu
patamar de desempenho, as hipóteses que levantaram e se os fins alcançados
foram realmente os propostos no início do trabalho.
O memorial de desempenho possibilitou, ainda, à professora e aos alunos
traçarem um retrato dos passos percorridos na construção das aprendizagens.
Essa forma de registrar a caminhada dos alunos teve o objetivo de mostrar a
importância de cada passo como uma situação de aprendizagem.
Somaram-se à pesquisa virtual, outros recursos como livros didáticos, jor2
Portfólio também conhecido como memorial de desempenho e para Hernández, “ um instrumento em
que se reúnem amostras, dados, elementos, anotações pessoais sobre atividades de aula, registros
finais de tarefas e outros destaques de materiais... que reflitam a trajetória de aprendizagem de cada
estudante, de maneira que, além de evidenciar seu percurso e refletir sobre ele, possam contrastá-lo
com as finalidades de seu processo e as intenções educativas e formativas dos docentes.”
(HERNÁNDEZ, 1998, p. 99).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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nais e revistas, que vieram compor o material necessário para que, de forma gradativa, os alunos fossem realizando suas leituras para as discussões em sala de
aula e as produções textuais.
É importante frisar que o conteúdo curricular não foi abandonado, deixado
de lado. A professora selecionou os conteúdos mais significativos para serem abordados com os alunos, atentando sempre para os programas oficiais previstos e, é
claro, para que a estrutura central da disciplina não fosse descaracterizada.
A respeito dos conteúdos curriculares, Moll e Barbosa (1999), fazem uma referência a Piaget dizendo que:
O interesse de Piaget sobre os conhecimentos científicos é
imenso. Toda a sua produção sobre a construção do conhecimento foi formulada a partir da observação clínica da relação
entre sujeito e o mundo que o cerca, em trabalhos interdisciplinares com intelectuais de todo o mundo. Para Piaget, não há
conhecimento sem conteúdo, pois as estruturas cognitivas se
constroem a partir de conteúdos. (1999, p.113).
Durante as aulas, a professora interagiu com os diversos grupos de alunos,
nos diversos estágios em que se encontravam, orientando-os no sentido de favorecer a busca e o entendimento dos conteúdos abordados. O que redunda na
importância da presença do professor nos diversos momentos da aprendizagem.
No relato da professora:
Pude, portanto, perceber que os diferentes momentos da experiência sinalizavam as várias possibilidades de buscar novas
formas de ensinar História. Nesse sentido, as novas tecnologias devem, sim, ser utilizadas no processo de ensinoaprendizagem de História. (Professora da Turma).
A professora analisou e refletiu junto com os alunos como se processa o
ensino-aprendizagem com pesquisa. Buscou sempre envolver os estudantes
para que eles estivessem atentos aos aspectos sociais, históricos, econômicos e
outros referentes à problemática pesquisada. Havia uma preocupação da professora no sentido de que os alunos percebessem que os temas pesquisados e as
problemáticas levantadas advinham de um contexto maior, apesar de, naquele
momento, se apresentarem daquela maneira simples, e que observassem que as
repostas encontradas não poderiam ser tomadas como incontestáveis e acabadas.
O diálogo, a intervenção e a problematização dos conteúdos históricos abordados com os estudantes durante a organização das pesquisas proporcionaram,
dentre outras coisas, o início da quebra de um modelo educacional que ainda hoje,
na sua maioria, está fixado em transmissão de informações.
Durante as produções textuais e as discussões em sala de aula, a professoTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
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ra buscava sempre levantar hipóteses e questionamentos com o intuito de desequilibrar os alunos e levá-los a perceber que as suas conclusões não se constituíam uma verdade absoluta e que o conhecimento pode ser ressignificado a todo
momento.
Para Vasconcelos (1996), a criança é um pesquisador em potencial. Levantando hipóteses sobre o mundo, ela constrói e amplia seu conhecimento. Nesse
processo, o professor tem papel fundamental. Basear-se em uma teoria construtivista não é deixar o aluno livre, acreditando que evoluirá sozinho. O professor precisa proporcionar um conflito cognitivo para que novos conhecimentos sejam produzidos.
Durante o processo, a professora da turma buscou desequilibrar os estudantes, criando situações desafiadoras, apontando uma dificuldade entre a proposição e a meta, atentando para as diferentes situações e grupos, já que muitas
vezes percebemos que uma mesma situação representava um desafio para uma
dupla, enquanto, para outra, era facilmente resolvida ou mesmo não existia, uma
vez que eles não estavam interessados naquele problema.
A todo tempo a professora buscava ativar nos alunos os conhecimentos prévios, como forma de iniciar a questão. A problematização dos conteúdos associados aos conhecimentos prévios dos estudantes mostrou-se, neste estudo, como
uma maneira eficaz de motivar os alunos na busca do conhecimento histórico.
Para que a compreensão acontecesse, havia a necessidade de assimilação de
uma nova informação em esquemas de conhecimentos já disponíveis. Segundo
Coll:
Para a concepção construtivista, aprendemos quando somos
capazes de elaborar uma representação pessoal sobre o objeto da realidade ou conteúdo que pretendemos aprender. Essa
elaboração implica aproximar-se de tal objeto ou conteúdo com
a finalidade de aprendê-lo, não se trata de uma aproximação
vazia, a partir do nada, mas a partir das experiências, interesses e conhecimentos prévios que, possivelmente, possam dar
conta da novidade. (COLL, 1998, p.19).
É o que podemos perceber na fala da professora, mesmo que indiretamente:
Acho que nesse processo de ensino e aprendizagem, o aluno
está sempre em processo de construção de conhecimento e
precisa estar sendo orientado para não “copiar e reproduzir” o
que está na tela do computador (...), devendo o professor ser
um mediador do conhecimento, fazendo com que o aluno perceba que tem que filtrar as informações e construir seu conhecimento a partir da comparação, observação e, acima de tudo,
com uma consciência crítica do seu papel enquanto sujeito histórico. (Professora da Turma).
A problematização constitui um dos pontos-chave do processo de ensinoTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
97
aprendizagem com a utilização dos recursos tecnológicos. Piaget fala que “o
conhecimento surge da ação. Mas não só da ação, como sempre constituirá numa
ação. Ação esta que é, de fato, a interação. [...] se o conhecimento se produz na
interação [...] a prática pedagógica será basicamente relacional, tornando-se o professor um problematizador da ação conhecedora do aluno” (FRANCO, 1998,
p.54).
Nesse processo de “pesquisa virtual”, cada grupo, foi orientado por um conjunto de hipóteses levantadas conjuntamente com a professora a respeito da
Colonização do Brasil, e cada dupla, com suas hipóteses e com seus temas específicos, optou por um ponto de partida para seus estudos e pelo modo de conduzilos, de acordo com seus interesses, suas dúvidas e motivação.
De posse do material pesquisado, os alunos discutiam entre si, com orientação da professora sobre os materiais encontrados se eram de maior relevância
e credibilidade para ajudar a compor sua produção textual. Logo após essa triagem, os alunos faziam leitura dos textos e produziam seus próprios textos e discutidos com a professora. Esta, então, problematizava as questões, criando novas
hipóteses e fazendo novas perguntas relacionadas ao tema abordado pelos estudantes. Com isso, os estudantes refletiam um pouco mais sobre as suas construções e colaboravam também com as dos colegas. Num segundo momento, os alunos foram levantando espontaneamente suas próprias hipóteses, pesquisando a
respeito das suas investigações e melhorando significativamente suas produções
a partir da (re)construção de seu conhecimento.
Com base na epistemologia genética de Piaget, podemos dizer que esses
estudantes, a partir da interação, estavam “tomando algo do meio e transformando-o em algo construtivo do pensamento” (FRANCO, 1998, p. 34), ou seja, estavam assimilando o conteúdo, “modificando o objeto para conhecê-lo”.
Ainda de acordo com Franco (1998), esquematicamente, poderíamos
representar esse processo de assimilação e acomodação tal como acontece para
esses alunos ao discutirem suas produções, criarem e recriarem hipóteses da
seguinte maneira:
S
0
S’
0’
S”
0”
Fonte: FRANCO, 1998, p.35.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
98
O sujeito (estudante) S interagiu com o objeto 0 (no nosso estudo, os conteúdos ou assuntos de suas pesquisas). Essa interação provocou a assimilação e
uma acomodação em S, de forma que, após esse contato, S já está modificado;
portanto não é mais exatamente S, mas agora S'. Quando S' for novamente interagir com o mesmo objeto (assunto) não mais procederá de maneira igual à da primeira vez. Portanto, o objeto não será mais 0 e sim 0'. “E assim por diante: S”, 0”,
S'”, etc. [...] este processo é interminável, e ainda gerador de desenvolvimento”.
(FRANCO, 1998, p.35).
Os estudantes interagindo com o conhecimento, construindo-o e revisando-o, conseguem fazer uma interpretação própria e dar maior significado aos fatos
históricos estudados, o que pode ser o diferencial para uma postura crítica diante
dos conhecimentos históricos, porquanto a compreensão do que é estudado é
base para um processo de ensino e aprendizagem bem-sucedido.
Freqüentemente, os alunos reclamavam dizendo para a professora que
esta nunca estava satisfeita com as suas produções. Era muito comum ouvir falas:
Ai, meu Deus! Será que agora meu texto está bom? Essa professora é muito exigente, se escrevo pouco, ela fala; se escrevo
muito, diz que eu sou repetitiva. Eu não sei o que ela quer.
A professora quer matar com a gente. Sempre ela tem uma pergunta na ponta da língua, e, quando a gente vai ver, aquilo não
está lá no nosso texto.
Eu gosto que ela seja assim, pelo menos a gente aprende, eu
escrevo mais em História que em Português. A. e J. (alunos)
Continuando o pensamento de Piaget, o desenvolvimento cognitivo se dá
pela assimilação do objeto de conhecimento em estruturas anteriores presentes
no sujeito e pela acomodação dessas estruturas em função do que vai ser assimilado. Para esse autor, a criança apodera-se de um conhecimento se agir sobre
ele. Logo, aprender é modificar, descobrir, inventar e reinventar. Nesse enfoque, a
função do professor é propiciar situações para que os estudantes construam seu
sistema de significação, o qual, uma vez organizado na mente, será estruturado e
exteriorizado posteriormente.
A problematização do ensino-aprendizagem constituiu um passo importante do projeto. Ao serem criadas as hipóteses, os alunos tinham um roteiro de pesquisa e partiam para a busca; encontradas as repostas, novas perguntas surgiam
com os questionamentos precisos da professora, que intencionalmente desestruturava os alunos para que questionassem suas conclusões. Assim, os estudantes
retomavam a pesquisa à procura de possíveis respostas para as hipóteses levantadas, em um ciclo de construção e reconstrução do conhecimento.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
99
CONCLUSÕES
No Projeto, verificamos que, ao trabalhar com as TICs em um processo de
problematização dos conteúdos, o grupo assumiu uma postura ativa e passou a
exercer o papel de pesquisador. A assimilação processou-se de forma contínua,
ativa e questionadora. Os estudantes deixaram de ser meros reprodutores (sujeitos passivos) e passaram a ser construtores do seu conhecimento (sujeitos ativos), agindo diretamente sobre o seu objeto de estudo.
Ao pesquisar na Internet, os alunos tiveram maior interesse em buscar os
assuntos correlacionados com o seu tema e foram muito além da pesquisa proposta pela professora. Contudo, foi preciso habilidade para que os alunos não se
dispersassem e desviassem do objetivo inicial. Foi preciso “esgotar” os anseios da
navegação. Foi necessário conscientizar os estudantes a todo momento do objetivo maior do trabalho: a aprendizagem significativa, com aprofundamento dos
temas pesquisados.
A aprendizagem aconteceu a partir do interesse e da motivação da turma,
com colaboração da professora, na interação com o seu objeto de conhecimento,
na discussão em sala de aula e na (re)construção do conhecimento. Foi preciso
desestruturar os alunos para que eles buscassem construir seus processos cognitivos e conceitos próprios.
As TICs deram o impulso necessário para que a interação e a colaboração
acontecessem. Entretanto, as TICs e os alunos sozinhos não produzem conhecimento, pelo fato de os alunos ainda não terem maturidade suficiente para isso,
fato que justifica a importância da professora. Esta, ao problematizar o processo,
tornou-se fundamental colaboradora dos estudantes.
A postura da professora da turma sofreu alterações. Agiu muito mais como
problematizadora dos conteúdos estudados do que como expositora, apesar de,
em alguns momentos, ter sido necessário expor algumas situações e conscientizar o grupo para o seu compromisso com a sua aprendizagem. A auto-estima da
turma melhorou, e os alunos passaram a ler mais, a discutir com seu colega e com
o grupo, a armazenar as informações e ressignificá-las, transformando-as em conceitos e passando a ter opiniões próprias a respeito de determinados conhecimentos históricos.
O estudo mostra claramente que o computador e a pesquisa na Internet ajudam os alunos na aprendizagem dos conhecimentos históricos. O computador,
como meio, a Internet, como fonte “inesgotável” de informação que precisa ser “filtrada” e questionada, comparada e avaliada para transformar-se numa possibilidade didática que represente construção de conhecimento para os alunos.
De nada adiantaria o aparato tecnológico se não fosse a atuação da professora. Ela foi a responsável por provocar nos alunos situações que favoreceram a
aprendizagem. Por sua vez, ela também aprendeu com os alunos a investigar,
questionar, estimular, organizar, sistematizar e apresentar resultados.
O uso das TICs, associado à postura de um professor que problematiza
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 87-102, Novembro, 2006.
100
suas aulas e deixa de ser o centro do processo, pode proporcionar uma mudança
significativa no sentido de evoluir de um modelo pedagógico baseado na memorização para um processo de construção de ensino e aprendizagem que desperte o
interesse, o senso crítico e a criatividade dos estudantes.
Os resultados deste estudo mostram que um processo de construção baseado na problematização do ensino por parte do professor e na colaboração e interação por parte dos estudantes apontam para um ambiente favorável de aprendizagem baseado na (re)construção do conhecimento, assim como para a criação
de práticas pedagógicas inovadoras que facilitam o processo de ensino e aprendizagem.
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A PRÁTICA DE ATIVIDADE FÍSICA E O DESENVOLVIMENTO
MOTOR DO SALTO VERTICAL
Roberta Gabriela Oliveira Gatti*
Roberta Castilhos Detânico**
Sebastião Iberes Lopes Melo***
RESUMO: O objetivo do estudo foi verificar os tipos de atividades físicas realizadas e a influência dessas sobre o desenvolvimento motor do salto vertical de crianças, classificadas de acordo com o modelo de desenvolvimento de Gallahue
(1989). Participaram 59 estudantes da rede pública de Florianópolis-SC, selecionados de forma aleatória simples. Neste, se utilizou uma câmera filmadora, a
matriz analítica de Gallahue (1989) e um questionário misto. As respostas dos
questionários foram categorizadas e os dados tabulados por freqüência simples.
Constatou-se que todas as crianças praticam educação física escolar e 89,83%
delas praticam atividade física extra-curricular. Apesar disso, encontram-se algumas crianças em estágios anteriores ao correspondente à sua idade cronológica e
mais, as atividades físicas extra-classe parecem influenciar sobre o estágio de
desenvolvimento motor do salto vertical. Contudo, fazem-se necessárias maiores
investigações sobre como essas atividades são desenvolvidas para poder afirmar
quais os aspectos que realmente interferem na classificação dos estágios motores.
PALAVRAS-CHAVE: Habilidade motor; crianças; exercício físico.
ABSTRACT: The objective of this study was to verify the types of physical activities
realized and the influence of this on motor development of verticl jump of children,
classified by motor period according to Gallahue development model (1989). This
study had paticipated of 59 students of the public net of Florianópolis-SC, chosen
of simple random way. In this study it was used a video camera, the analitycal
source of Gallahue (1989) and mixing questionnaire. The answers of the
questionnaires had been categorized and the tabulated using it the simple
frequency. One evidenced that all the children practiced pertaining school phisical
education and 89,83% of them practiced phisical activity extra-curricular. Despite
* Professora do Curso de Educação Física da Faculdade Maria Milza- FAMAM
** Professora de Educação Física
*** Professor da Universidade do Estado de Santa Catarina
activity extra-classroom seem to influence on motor development period of vertical jump. However,
necessary more investigations on on as these activities are developed to can affirm whicht are the
aspects that really influence at classification of the motor period.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
104
this, some children in previous motor periods for their cronological age for vertical
jump had been found and more, the phisical.
WORD-KEY: Motor ability; Children; Physical exercise.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
105
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento humano pode ser estudado a partir de diversas abordagens conceituais que apontam tendências distintas para os modelos estudados,
os quais têm implicações para o desenvolvimento motor. Os recentes estudos na
área de desenvolvimento motor têm sido influenciados pela perspectiva ambiental, principalmente, após as teorias de Vygotsky e Bronfenbrenner que englobam a
área da psicologia e do desenvolvimento humano. Essa percepção moderna propõe definir o desenvolvimento motor como “a alteração contínua no comportamento motor ao longo da vida, realizada pela interação entre as exigências da tarefa e a biologia do indivíduo e as condições do ambiente” (GALLAHUE e OZMUN,
2003, p.28).
Assim, as condições ambientais específicas do espaço vital da criança respondem por grande parte da variação individual entre as crianças. E, a teoria dos
sistemas ecológicos de Urie Bronfenbrenner enfatiza fatores do meio ambiente
como fatores-chave para o desenvolvimento (GALLAHUE e OZMUN, 2003). Sua
teoria ecológica baseia-se na premissa de que “não é o ambiente comportamental, em si, que prediz o comportamento, mas a interpretação do indivíduo sobre o
ambiente, tanto no tempo como no espaço” (GALLAHUE e OZMUN, 2003. p. 41).
Dentro desse contexto, Ferreira Neto (1995) afirma que em certos períodos
da vida se o indivíduo não for sujeito a estímulos através de variadas formas de atividade ele pode não atingir o aperfeiçoamento de suas capacidades motoras. Portanto, a criança, física e cognitivamente normal, progride de um estágio a outro,
influenciada pela maturação e pela experiência.
As mudanças observadas nos estágios motores, conforme afirmam Gallahue e Ozmun (2003) serão estabelecidas como um refinamento das habilidades
básicas e, melhor eficiência em sua combinação, o que irá marcar a passagem
para a fase seguinte. E mais, a seqüência de progressão ao longo dos estágios,
seja inicial, elementar ou maduro, é a mesma para a maioria das crianças, porém,
o ritmo em que as mudanças ocorrem varia entre as crianças devido à influência
ambiental e a oportunização à prática.
Em adição, Calomarde, Calomarde e Asensio (2003) afirmam que a evolução do salto vertical ocorre aproximadamente dos 4 aos 11 anos e acrescentam
colocando que é preciso explorar todas as possibilidades de movimento dentro do
processo de desenvolvimento motor. Sendo assim, a melhor fase para o aprendizado e desenvolvimento motor ocorre na infância.
Considerando tais afirmações e tendo o conhecimento de que o salto vertical é considerado uma habilidade de padrão motor complexo, este estudo justifica-se e torna-se pertinente por ter como objetivo identificar os tipos de atividades
físicas realizadas pelas crianças e o estágio motor em que se encontram para o
salto vertical e, principalmente, verificar se a atividade física influencia o desenvolvimento motor de crianças com idade entre 4 e 12 anos na tarefa motora do salto
em estudo.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
106
MATERIAIS E MÉTODOS
Após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa voltada para Seres
Humanos da UDESC, este estudo foi desenvolvido no Laboratório de Biomecânica do Centro de Educação Física, Fisioterapia e Desportos da Universidade do
Estado de Santa Catarina (CEFID/UDESC), Florianópolis, SC, Brasil. O estudo foi
caracterizado como descritivo com o intuito de identificar as atividades físicas, formais e não-formais, realizadas por crianças com idade entre 4 e 12 anos, identificando-se o estágio motor maturacional das mesmas na realização da tarefa motora salto vertical.
Primeiramente, fez-se o contato com as escolas e a partir da autorização da
escola para a realização do estudo contactou-se com os responsáveis pelas crianças. A amostra foi composta por 59 crianças pertencentes à rede de ensino público
da cidade de Florianópolis-SC, com média de idade de 10,07±0,92 anos de ambos
os sexos, selecionadas de forma aleatória simples, a partir de listagem fornecida
pela escola.
Após a autorização dos pais e o preenchimento do consentimento livre e
esclarecido, fez-se o agendamento prévio das coletas. No dia das coletas de
dados cinemáticos as crianças foram encaminhadas, pelos pesquisadores responsáveis, ao Laboratório, onde se adotou a seguinte seqüência de procedimentos: a) preenchimento da ficha de identificação pessoal e atribuição de código de
identificação; b) período de adaptação com o ambiente, com os equipamentos e
com os pesquisadores; c) instruções para a realização do salto vertical, o qual
deveria ser executado utilizando a flexão dos joelhos para impulsionarem-se com
auxílio dos braços visando atingir a maior altura possível; d) posicionamento da criança ao local adequado para realizar a filmagem do salto vertical; e) aquisição das
imagens. Cada criança executou 3 saltos, sendo considerado como válidos os saltos que representassem gestos condizentes a um salto vertical conforme instruções anteriormente dadas.
Os instrumentos utilizados foram: uma câmera de vídeo (HSC-180) da
Peak Performance System para a aquisição das imagens, a uma freqüência de
aquisição de 60 Hz, a matriz analítica para a classificação do salto vertical proposta por Gallahue (1989) e um questionário sobre a realização de atividades extraclasse formal ou não-formal. O questionário foi previamente preenchido pelos pais
e entregue no dia da coleta dos dados cinemáticos.
Através da observação das imagens adquiridas com a filmagem, as crianças foram classificadas conforme matriz proposta por Gallahue (1989) em estágio
inicial, elementar e maduro de desenvolvimento motor para a tarefa motora do
salto vertical, conforme pode ser melhor visualizado na Figura 1.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
107
a)
c)
b)
Figura 1: Desenho representativo dos três estágios de maturação para o salto
vertical: a) estágio inicial, b) estágio elementar e c) estágio maduro.
Os resultados foram apresentados de forma descritiva. As respostas dos
questionários, conforme Bardin (1977) foram categorizadas através da técnica de
Análise de Conteúdo, em atividades formais – ou orientadas por profissional – e
informais – ou não-orientadas por profissionais. Os dados foram tabulados em
tabelas de freqüência.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
O objetivo do estudo foi identificar o quanto a atividade física, seja esta praticada de forma orientada ou não orientada, faz parte do cotidiano de crianças de
ensino da rede pública de Florianópolis e em que estágio motor se enquadra cada
criança. Para identificar o estágio motor das crianças avaliadas, escolheu-se a atividade salto vertical por ser uma atividade presente no cotidiano das crianças,
sendo em uma simples brincadeira, em jogos pré-desportivos ou especificamente
em atividades esportivas. Desta forma, foram observados os saltos verticais de 59
crianças e, as informações coletadas estão expostas no Quadro 1.
Quadro 1: Caracterização da amostra e das atividades.
Estágio
Motor
Inicial
Elementar
Maduro
Total
N
Faixa
Etária
Ed. Física
Escolar
16
29
14
59
4–9
6 – 13
9 – 12
4 – 13
16
29
14
59
Atividade
Física Extra
Orientada
0
8
6
14
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
Atividade Física
Extra
Não-orientada
15
26
12
53
Nenhuma
Atividade
Física Extra
1
3
2
6
108
Observou-se no Quadro 1 que dentre as 59 crianças foram classificadas 16
delas no estágio inicial, 29 no estágio elementar e 14 no estágio maduro,
constatando que todas as crianças praticam educação física escolar orientada e
53 delas praticam atividade física extra não orientada (não-formal), sendo que 14
delas, além da prática extra não orientada também se submetem à prática de
atividade física orientada (formal) e apenas 6 crianças não praticam atividade
alguma extra-classe.
A Figura 2 ilustra os dados apresentados no Quadro 1, facilitando a
identificação do nível de atividade física dessas crianças, lembrando que,
conforme o exposto, 100% das crianças praticam a educação física escolar.
Percentagem de participação para a pratica de
atividade física extra-classe
Atividade Física
Extra-classe Orientada
Atividade Física
Extra-classe não Orientada
Não faz Atividade
Física Extra- classe
Figura 2: Representação gráfica do percentual de crianças praticantes de
atividade física extra-classe.
Com referência às crianças que não praticam atividade extra-curricular,
verificou-se que uma está classificada no estágio inicial e tem 6 anos, três no
elementar, sendo duas de 7 e uma de 10 anos, e duas no maduro, sendo uma de 9
e outra de 11 anos. Diante dessas observações observa-se, para algumas
crianças, atraso motor para a tarefa motora do salto vertical. Percebe-se que são
poucas as crianças que não praticam atividade física a não ser aquela oferecida
dentro da escola, e, conhecendo-se a importância da prática dessas, pode-se
explicar o porquê de existirem crianças de 9 anos, por exemplo, classificadas
algumas no estágio inicial e outras no elementar ou mesmo no maduro.
Indo ao encontro de Eckert (1993), que ressalta que a aprendizagem das
habilidades motoras, especialmente na segunda infância (dos 6 aos 12 anos),
guarda uma forte relação com a estimulação e encorajamento por parte dos
professores no ambiente escolar, pode-se inferir que este atraso motor para a
tarefa motora em questão deve-se ou à pouca experiência motora ou à qualidade
da atividade física vivenciada. Ou seja, como afirma Valentini (2002), deve-se criar
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
109
um ambiente propício ao aprendizado e desenvolvimento motor.
Nos Quadros 2 e 3 são apresentadas as atividades extra-classes orientada
e não orientadas, respectivamente, realizadas por esse grupo de crianças.
Quadro 2: Caracterização das atividades físicas orientadas
.
Estágio Motor
Inicial
Elementar
Maduro
Voleibol
--x
x
Basquetebol
--x
---
Atividade Física Orientada
Futebol Atletismo Natação
------x
x
x
x
x
---
Capoeira
--x
x
Karatê
--x
---
Quadro 3: Caracterização das atividades físicas não orientadas.
Estágio Motor
Inicial
Elementar
Maduro
Subir em árvores
x
x
x
Atividade Física Não Orientada
Roller, skate,
Brincadeira de rua Bicicleta Outras
patins
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
Optou-se por não quantificar as atividades mencionadas pelo fato de uma
mesma criança realizar duas atividades distintas ou mais, mas é possível identificar que as crianças do estágio elementar praticam mais modalidades que as crianças do estágio maduro. Pode-se afirmar que das 29 crianças do estágio elementar apenas 27,59% delas praticam atividade extra-classe com orientação e
das 14 do estágio maduro 42,86% delas realizam a prática de atividade física
extra-classe orientada. E, dentre as modalidades realizadas pelas crianças do
estágio elementar, as mais praticadas são o basquetebol e o karatê, enquanto que
para o estágio maduro o futebol teve mais adeptos.
De modo geral verificou-se que das 59 crianças do estudo apenas 10,17%
não praticam atividade não-formal. A Figura 3 ilustra o percentual relativo de praticantes em cada atividade não-formal para cada estágio motor.
Figura 3: Representação do percentual relativo dos praticantes das atividades
não orientadas: a) do estágio inicial, b) do estágio elementar e c) estágio maduro.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
110
Pensa-se que essas atividades informais auxiliam no conhecimento das
variadas manifestações corporais, portanto, deve-se proporcionar mais desses
estímulos às crianças. Observa-se ainda que as crianças de todos os estágios
motores praticam atividade física sem orientação profissional, as quais também
são muito importantes para o aprendizado e aperfeiçoamento motor. Dentre as atividades informais levantadas constatou-se um fato bastante interessante, o qual
revela preferências de atividades informais iguais, independente do estágio motor
das crianças. Assim, pela ordem de preferência das crianças as brincadeiras de
rua foram as mais cotadas, seguida pelo uso da bicicleta, pelo subir em árvores,
pelo uso de roller, skate ou patins e por fim as outras atividades não especificadas.
A Figura 4 apresenta a distribuição das crianças de cada estágio motor praticam atividade física formal ou não formal, onde foi constatada uma maior adesão
das crianças para a prática de atividades físicas não formais.
Número de Crianças
Quantidade de crianças praticantes da
atividade física por estágio motor
30
25
20
15
10
5
0
AT F Orientada
At F não Orientada
incial
elementar
maduro
Estágio Motor
Figura 4: Representação gráfica da distribuição de crianças que praticam
atividade física orientada e não orientada de cada estágio motor.
Entre os estágios, são as crianças do estágio inicial que mais praticam atividades sem orientação (93,75%), seguidas pelas dos estágios elementar (89,65%)
e maduro (85,71%). Nenhuma criança do inicial e 27,59% do elementar praticavam atividade extra orientada, entretanto, no maduro 42,86% das crianças praticavam alguma atividade formal. Infere-se de acordo com esses dados que, à medida que as crianças passam a praticar atividades físicas extra-classe orientadas
atingem estágios motores mais avançados.
Tais informações confirmam a teoria ecológica no que se refere à importância de se conhecer os produtos do desenvolvimento em termos de como as pessoas são, tipicamente, em estágios e fases particulares, mas também saber o que
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
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faz com que essas alterações aconteçam (GALLAHUE e OZMUN, 2003;
HAYWOOD e GETCHELL, 2003).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando-se os resultados encontrados nesse estudo e o referencial
teórico utilizado, acredita-se que, apesar desse estudo ser apenas descritivo, as
crianças analisadas apresentaram um bom nível de atividade física.
Em complemento, o fato de se ter analisado a habilidade motora do salto
vertical, que constitui um movimento complexo, pode ter influenciado os dados
encontrados no estudo, pois muitas crianças foram classificadas em estágios
maturacionais anteriores ao correspondente às suas idades cronológicas. Tal situação pode ser explicada pelo baixo nível de participação e interesse nas aulas de
educação física e em outras atividades físicas orientadas, já que constituem ambientes propícios à prática. Entretanto, deve-se considerar também os aspectos biológicos e a individualidade das crianças.
Quanto às atividades físicas informais, realizadas sem orientação profissional, pode-se dizer que exercem importante papel na complementação e vivência
das atividades orientadas, pois oportunizam às crianças novas experiências motoras, bem como o aprimoramento das já aprendidas.
No que diz respeito aos estágios motores pode-se verificar que as atividades físicas extra-classe parecem exercer influência sobre o estágio de desenvolvimento motor para a habilidade motora avaliada, visto que a grande maioria das crianças que praticavam atividade extra orientada encontrava-se no estágio maduro
para o salto vertical.
Nesse contexto, acredita-se que tais informações poderão auxiliar o profissional de educação física a identificar e avaliar as dificuldades motoras de seus alunos para então oportunizar um ambiente que proporcione a experimentação das
mais variados movimentos e exercícios, benéficos para o bom desenvolvimento
da coordenação motora na prática de diferentes tarefas. Entretanto, fazem-se
necessárias maiores investigações sobre como essas atividades são desenvolvidas para que se possa afirmar com certeza quais são os aspectos que realmente
interferem na classificação dos estágios motores maturacionais.
REFERÊNCIAS
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Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
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<http://www.ul.ie/~pess/research/motordev/vertical%20jump.htm.> Acesso em:
05 setembro 2003.
ECKERT, Helen. M. Desenvolvimento motor. São Paulo: Manole, 1993. 490p.
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GALLAHUE, D. e OZMUN, J. C. Compreendendo o desenvolvimento motor:
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HAYWOOD, K. M. e GETCHELL, N. Desenvolvimento motor ao longo da vida.
3.ed. Porto Alegre: Artmed, 2003. 547p.
VALENTINI, Nádia C. A influência de uma intervenção motora no
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Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 103-112, Novembro, 2006.
DA IGREJA CATÓLICA MEDIEVAL ÀS DESIGUALDADES
SOCIAIS NO BRASIL
Joélio Barros de Oliveira*
RESUMO: A Igreja Católica Apostólica Romana, exerceu ao longo da sociedade
feudal, o papel centralizador, com poderes políticos e econômicos sobre toda a
sociedade ocidental. Esse papel é demonstrado ao estabelecer padrões de conduta, comportamentos e valores de acordo com os dogmas cristãos professados.
A desagregação do sistema feudal aliado à atividade comercial e ao movimento
das grandes navegações trouxeram a Igreja Católica para o novo mundo nos séculos XIV e XV. No Brasil, através dos jesuítas, a Igreja Católica também exerceu
poder especialmente sobre as mulheres, responsáveis pela criação de seus
filhos e pela preservação dos valores e moral da sociedade, estabelecendo um
papel de subordinação social. Com o passar do tempo, as mulheres avançaram
podendo constituir sua própria identidade, fugindo do papel de subordinação em
que se encontravam. Apesar desse avanço, a situação da mulher na sociedade
brasileira continua com sérios problemas a serem resolvidos no que concerne à
questão salarial, à informalidade, à precariedade de emprego, à escolaridade, o
desemprego feminino, a evasão escolar feminina. Analisando essa diferença
baseadas no salário, no nível educacional e no gênero, nota-se a presença da discriminação por gênero e raça, o que atinge com maior rigor as mulheres negras. A
perspectiva intelectual é consciente de que nessas relações existem não só diferenças como também dignidade, conflitos, assimetrias e questões de poder.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja Católica; mulheres; subordinação; identidade cultural;
multiculturalismo.
ABSTRACT: The Church Catholic Apostolic Roman exercised, along the feudal
society, the centralizing paper, with political and economic powers on the whole
western society. That paper is demonstrated when establishing patterns of
conduct, behaviors and values in agreement with the Christian dogmas for it
professed. The disaggregation of the system feudal ally to the commercial activity
and the movement of the great sailings brought the Catholic Church for the new
world in the centuries XIV and XV. In Brazil, through the Jesuits, the Catholic
Church also exercised power especially on the women responsible for the
children's creation and for the preservation of the values and moral of the society,
* Professor de Licenciatura em Geografia e História e do Curso Normal Superior da Faculdade Maria
Milza- FAMAM
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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establishing a paper of social subordination. With passing of the time, the women
moved forward could constitute their own identity, escaping from the paper of total
subordination in that met. In spite of that progress, woman's situation in the
Brazilian society continues with serious problems to be resolved in what it
concerns to the salary subject, to the informality, to the precariousness of
employments, the school income. These differences are analyzed based in the
wage, in the educational level and in the gender. It is noticed the presence of the
Brazilian society in the discrimination for gender and race, what reaches with larger
rigidity the black women. The intellectual perspective is conscious that in those
relationships exist not only differences as well as dignity, conflicts, asymmetries
and subjects of power.
KEY-WORDS: Catholic Church; women; subordination; cultural identity;
multiculturalismo.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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A HISTÓRIA, A DESIGUALDADE SOCIAL E O CONTEXTO
FEMININO
É sabido que, ao longo do século V d.C., o Império Romano do Ocidente
sofreu ataques constantes dos povos bárbaros. Do confronto desses povos invasores com a civilização romana decadente, desenvolveu-se uma nova estruturação européia de vida social, política e econômica que corresponde ao período
medieval. É sabido ainda que em meio ao esfacelamento do Império Romano,
decorrente, em grande parte, das invasões germânicas, a Igreja Católica conseguiu manter-se como instituição social mais organizada. Ela consolidou sua estrutura religiosa e difundiu o cristianismo entre os povos bárbaros, preservando muitos elementos da cultura pagã greco-romana.
Isso é importante porque, apoiada em sua crescente influência religiosa, a
Igreja Católica passou a exercer importante papel político na sociedade medieval.
Desempenhou, por exemplo, a função de órgão supranacional, conciliador das elites dominantes, contornando os problemas da fragmentação política e das rivalidades internas da nobreza feudal. Conquistou, também, vasta riqueza material:
tornou-se dona de aproximadamente um terço das áreas cultiváveis da Europa
Ocidental, numa época em que a terra era a principal base de riqueza. Com isso,
pode estender seu manto de poder “universalista” sobre diferentes regiões européias.
As mulheres constituem o grupo social mais amplo da sociedade, nele não
há qualquer homogeneidade interna: divisões de classe social, de etnia, de origem regional, de “status” dentro de grupos, de divisão sexual do trabalho e de
gênero e de confissões religiosas, tanto a Igreja Católica, amplamente majoritária,
quanto as confissões protestantes, desde as tradicionais até as fundamentalistas,
dão mulher um claro papel subordinado, cujo problema mais exuberante é a interdição de serem administradoras dos cultos: já as religiões de origem africana dão
à mulher o mais destacado papel na administração dos cultos.
Em vista disso, parece temerário tratar das mulheres como um grupo coeso, não fragmentado, salvo pelo olhar do outro: verbi gratiae pelo olhar da sociedade, e particularmente pelo olhar do homem. Constata-se que é também o grupo
que mais avançou na construção de sua própria identidade. Constata-se ainda
que nas últimas décadas, os temas relativos aos direitos da mulher tiveram um
grande avanço desde a liberação sexual até o reconhecimento, na última conferência de Cairo, dos direitos reprodutivos, ou seja, a liberdade em relação ao próprio corpo, o direito de ser tratado como um ser único e não uma parte do homem,
desfazendo o mito da costela de Adão, talvez o referencial da mais antiga forma de
opressão.
E importante destacar que o movimento feminista tirou as mulheres do
papel de subordinação em que eram colocadas, nas diversas identidades assumidas. De acordo com Oliveira (1996), outro dado notável de tal movimento é o de ter
dado e estar continuando a dar a própria democratização da sociedade e a tomaTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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da de consciência do Estado sobre seus deveres. Uma democratização que se dá
ao nível do cotidiano e, que, portanto tem tudo para ser de uma radicalidade numa
sociedade tão desigual, que os mais otimistas não são capazes de suspeitar.
Não obstante, com todo esse avanço, a situação da mulher na sociedade
brasileira continua com sérios problemas a serem resolvidos. Pensar estes problemas como oriundos de uma sociedade machista, embora sejam verdadeiros, é
tornar simples as questões relativas a tal questão. No que concerne à questão
salarial, mesmo nos empregos ditos domésticos, em que o predomínio é de
mulheres, há uma desigualdade de valores por gênero mesmo nos países ditos
desenvolvidos. Em poucas palavras, a situação da mulher na sociedade brasileira
continua com sérios problemas a serem resolvidos.
Isso é importante porque é no mercado de trabalho em que a diferença e o
lugar subalterno da mulher na sociedade aparece de forma mais clara. Como se
pode ver, a reestruturação do emprego nos Estados Unidos, como no Brasil,
combina-se com uma feminização da força de trabalho — o que não implica,
obviamente, igualdade no trabalho tal como se verifica através da inserção feminina em áreas onde dominam formas de emprego atípicas, de meio-expediente ou
de trabalho temporário.
É fato que as mulheres menos escolarizadas foram as que menos cresceram no mercado de trabalho. O número de mulheres chefes de família aumentou
significativamente. Houve uma verdadeira revolução no mercado de força de trabalho. Isto demonstra tanto a modificação do mercado de força de trabalho, com a
conseqüente mudança na composição da família, quanto àquela subordinação/discriminação praticada contra as mulheres. A partir de 1990, houve um
aumento substancial da taxa de desemprego feminino, interpretado por Lavinas
(1997), como decorrência das mudanças no emprego industrial, que se reduz
levando ao aumento da taxa de desemprego masculino e à migração setorial dos
trabalhadores homens para ramos de atividade ocupados por mulheres.
De acordo com Aguiar (1997), apesar de o crescimento da atividade econômica ter sido maior para as mulheres que para os homens, os diferenciais de participação entre homens e mulheres são ainda significativas. Também se constatou
que,quanto mais alto for o nível educacional das mulheres maior é o incremento
de sua parcela. Nos níveis educacionais mais baixos destaca-se o crescimento
das mulheres - cônjuge e nos níveis altos das mulheres-chefe. A desocupação
observada a partir da década de 90 indica que há mais mulheres (5,1%) que
homens (4,3%) e mais brancos (4,9% para homens brancos e 5,5% para mulheres
brancas) que negros (3,4% para homens negros e 4,6% para mulheres negras)
sem atividade econômica, incluindo-se nesse contingente os que estão procurando trabalho.
Diz Flacso (1993), que o desemprego feminino aparece neste cenário com
outra configuração do ano de 1983 a 1990: mulheres com 2° grau completo têm
taxa de desemprego superior às de 1°grau, quadro que apresenta mudanças a partir de 1993, graças ao aumento de exigências na competição por postos de trabaTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
117
lho — o que fortalece as mulheres com nível superior (que, mesmo assim, apresentam índice de desemprego duas vezes maior que as masculinas). É importante destacar que, no contexto da educação, as análises existentes apontam para a
constituição de urna estrutura educacional piramidal no Brasil, com uma imensa
base formada pelos 83% que não haviam superado o nível de ensino primário,
sobre a qual se agregava um estreito tronco formado pelos 11% que tinham alcançado o nível médio e os 5% com nível de ensino superior.
No que se refere à problemática do analfabetismo, estudos regionais para o
Rio de Janeiro, realizados por Aguiar (1994), indicam que o encolhimento do analfabetismo ocorre principalmente entre as pessoas mais moças — as mulheres
jovens reduziram ainda mais que os homens jovens seu analfabetismo. As mulheres mais velhas, porém, apresentam uma situação mais desfavorável que a dos
homens mais velhos em termos de analfabetismo. Para o Rio de Janeiro, diferenciando a população por gênero, raça e anos de estudo observa-se, através da
PNAD 1(1988) que entre aqueles em idade escolar, a maioria tem até três anos de
escolaridade, seguindo-se o contingente de pessoas que tem de cinco a sete anos
de estudo. O desempenho escolar não é usualmente aferido pelas PNADs, mas o
suplemento de 1982 aferiu esse item. Examinando as chances de aprovação, verifica-se que estas são sistematicamente superiores para as mulheres que para os
homens — exceção feita às séries terminais dos dois ciclos em que os homens
parecem ter uma ligeira vantagem. Em síntese, as diferenças na aprovação em
favor das mulheres são particularmente acentuadas nas três primeiras séries do
primeiro grau.
Em vista do exposto, o autor supracitado constata que a evasão escolar de
meninas nas quatro primeiras séries do primeiro grau no Rio de Janeiro é superior
à dos meninos, justamente nas séries em que suas chances de aprovação são
maiores para os meninos. É a partir da 5ª série que se instala um maior nível de
evasão, conectada a uma necessidade de exercer um trabalho remunerado. As
matrículas das mulheres para o ensino primário correspondem quase a metade do
total, e para o ensino médio correspondem para o ano de 1988, 54%. Com relação
ao ensino superior, registra-se no começo da década de 90 um número de matrículas femininas superiores às masculinas (representando 52%).
Nas escolhas de carreira universitária, verifica-se a reedição da segmentação por sexo encontrada ao nível médio: são elas, em 1988, 85% das matrículas
das ciências pedagógicas e 15% dos engenheiros. O magistério avulta como carreira mista, com maior número de professores — a preponderância masculina
ocorre no nível superior, e a feminina no primário. Metade dos homens e mulheres
que trabalham no setor agrícola aparece, na PNAD 1988, como não tendo instrução. No emprego doméstico, 40% das domésticas possuem primário completo,
cifra equivalente a dos vendedores ambulantes e nível educacional atingido pela
maioria dos biscateiros e dos trabalhadores manuais por conta própria.
1
Todos os dados são referentes ao PNAD-IBGE(1988) Pesquisa por Amostra de Domicílio.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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No setor formal tradicional, há mais mulheres com o segundo grau que
homens; no setor formal moderno, a maior parte dos homens tem o primário completo, e a metade das poucas mulheres nesse setor possuem de um a três anos de
estudo. Nas categorias de trabalhadores de escritório, administradores e supervisores, técnicos e artistas, bem como dirigentes, os brancos com nível superior de
instrução aparecem em maior número. Indubitavelmente, a escolaridade afeta a
probabilidade de ingresso na força de trabalho. Mais de metade das mulheres analfabetas e (15% das que possuíam escolaridade universitária) estava fora da força
de trabalho. A partir dos 8 anos de estudo, é que a participação exclusiva nos afazeres domésticos começa a decair, sendo notório seu declínio entre a nova geração.
Em resumo, analisando as diferenças salariais por nível educacional e
gênero, nota-se a presença de discriminação por gênero e raça, não sendo os princípios de remuneração realmente universalistas: na faixa dos que têm até um ano
de instrução, as mulheres atingem no máximo até 2 salários mínimos, enquanto
parcela bem maior de homens alcança a faixa de 3 a 5 salários. De modo geral,
quanto mais alta é a escolaridade maior é a renda, enquanto os homens sempre
alcançam faixas salariais mais elevadas.
É fato que a maioria dos homens brancos com 12 anos ou mais de educação ganha mais de dez salários mínimos, enquanto 35% dos negros, 23% das
mulheres brancas e 14% das negras auferem tal renda. Cotejando-se a razão
entre os salários de homens brancos e mulheres brancas observa-se que estas
recebem em média 56% dos salários masculinos e que o aumento da escolaridade, embora signifique dentro de cada grupo uma elevação de renda, mantém as
diferenças salariais entre homens e mulheres em quase todas as faixas de educação.
Com isso, a condição educacional das mulheres, a partir dos anos 70,
alcançou a situação em igualdade à dos homens, em todos os níveis de ensino. Ao
final dos anos 80, a matrícula das mulheres nos mais distintos níveis do ensino formal era semalhante à dos homens. Por outra parte, estudos sobre as vidas femininas foram-se tornando cada vez mais complexos, passando a exigir mais que descrições minunciosas. O referencial teórico como base para tais estudos era a teoria Marxista, para alguns. Outros fundamentavam-se na psicanálise. Havia também pensamentos que se sustentavam em teorias estritamente femininas.
Em cada forma de referendar o conhecimento, buscou-se o caminho para a
emancipação da mulher, cujas desigualdades sociais justificavam-se pelas características biológicas. Contrapondo-se, a essa argumentação, fez-se necessário
observar que a forma como essas características são representadas ou valorizadas, aquilo que se diz ou se pensa sobre elas vai constituir, o que é feminino ou
masculino em uma dada sociedade e em um dado momento histórico (Louro,
1997). Desta forma, o debate se construiu, então, através de uma nova linguagem, na qual gênero foi um conceito fundamental.
De outra parte, não nega a biologia, mas enfatiza a construção social e hisTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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tórica produzida sobre as características biológicas “No gênero, à pratica social se
dirige aos corpos”(Connell apud Louro, 1997). Tal conceito, refere-se ao modo
como as características sexuais são representadas, ou como são trazidas para a
prática social e tornadas parte do processo histórico. Recolocou-se, assim, o debate no campo social, pois é nele que se reproduzem as relações desiguais entre os
sujeitos. Com isso, as desigualdades sociais devem ser analisadas não só nas
diferenças biológicas, mas também nos arranjos sociais, na história, nas condições de acesso aos recursos da sociedade, nas formas de representação.
Em vista do exposto, afastaram-se as proposições essencialistas sobre os
gêneros, o foco ficou centrado para a construção e não para algo já determinado, o
pensar é agora de modo plural, assim como os projetos de homens e mulheres
são diversos. As questões de gênero passaram a focar e a considerar diversos grupos (étnicos, religiosos, raciais, de classe). Assim sendo, no Brasil nos anos 80, de
início com vagar e depois, mais sistematicamente, as feministas começaram a utilizar o termo “gênero”. Neste momento, focar gênero significa focar o constituinte
da identidade dos sujeitos. Identidade, como conceito também complexo, que
pode ser visto sobre diferentes perspectivas. Os sujeitos como tendo identidades
plurais, múltiplas, que se transformam, porque não são fixas e até contraditórias, o
que leva o sentido de pertencimento a diferentes grupos.
É neste contexto que Joan Scott (1995), historiadora norte-americana, diz
que é preciso desconstruir o “caráter permanente da oposição binária” masculino
feminino, e o que observa é que na análise das sociedades sempre se concebem
Homem e Mulher como pólos apostos que se relacionam dentro de uma ótica de
dominação e submissão, negando todos os sujeitos sociais que não se enquadram em uma dessas formas. Isso significa que desconstruir a polarização rígida
dos gêneros implica observar que cada pólo contém o outro e cada um é internamente fragmentado e dividido. “a construção do gênero também se faz por meio
de sua desconstrução” (Lauretis apud Louro, 1997).
Diferenças e desigualdades são instituídas e nomeadas no interior das
redes de poder. São marcadores sociais: classe, gênero, sexualidade, etnia (Britzman apud Louro, 1997). Scott lembra que as lutas iniciais eram pela igualdade
entre os gêneros, para num segundo momento valorizar positivamente, a diferença entre homens e mulheres, mas a diferença está sempre implicada em relações
de poder; a diferença é nomeada a partir de um determinado lugar que se coloca
como referência.
Considerando-se o exposto, a exclamação “viva a diferença!” é também problemática, pois a partir desta afirmativa deve-se aprofundar a questão nos diversos discursos que a produzem. Numa primeira referência, encontra-se a diferença
entre gêneros, mas num segundo momento verifica-se sua amplitude para a discussão sobre a diferença entre mulheres. A maneira como se entrelaçaram as diferentes formas de opressão, não é, pois, uma equação que possa, ser resolvida de
forma simples. “Relações de gênero radicalizadas”, “etnicidades generificadas”
são apenas algumas das “combinações” que vêm ocupando estudiosos e estudioTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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sas e cujos resultados estão longe de ser previsíveis.
Estas diferentes “estruturas” — classe, raça, gênero, sexualidade não podem ser tratadas como variáveis independentes,
porque a opressão de cada uma está inscrita no interior da
outra — é constituída pela outra e constituinte da outra. (BRAH
apud Louro, 1997).
De outro modo, Azevedo (1994), analisa por que em um país racista e desigual como o Brasil tão pouco se discute a questão racial, seja em trabalhos teóricos ou em práticos, Nesta sociedade, devido à hegemonia branca, masculina,
heterossexual e cristã têm sido nomeados e nomeadas diferentes aqueles e aquelas que não compartilham tais atributos. Como compreendem Hasenbalg e Silva
(1988), sexismo e racismo têm como conseqüência que mulheres e negros obtenham retornos a seus investimentos educacionais, em termos de remuneração,
proporcionalmente menores do que a dos homens brancos. Tudo isto é importante
porque as desigualdades raciais não constituem um fato inegável na sociedade
brasileira podendo ser observado tanto na vida cotidiana quanto nas estatísticas
oficiais. No cotidiano, pode transparecer tanto em manifestações explícitas de
racismo bem como na relação inequívoca existente entre a cor do indivíduo e a
posição social por ele ocupada.
Na IV Conferência Mundial da Mulher (1995), em Pequim, estiveram presentes 46.000 mil mulheres. A multiplicidade de raças, ideologias, religiões e
diversidade sexual ficou expressa em inúmeras manifestações político-culturais,
demonstrando as imensas possibilidades de inaugurar-se o século XXI com relações mais humanas e afetuosas entre homens e mulheres, em que as diferenças
possam servir como inspiração à democracia. Enfatizam Hasenbalg e Silva
(1988) que as desigualdades por gênero fizeram com que a estrutura de emprego
feminina se caracterizasse por uma maior concentração de mulheres, seja em
alguns poucos setores econômicos — atividades sociais e prestação de serviços
— seja em ocupações específicas — secretárias, datilógrafas, telefonistas, professoras de primeiro e segundo grau, enfermeiras e empregadas domésticas,
Constata-se, portanto, que os estudos que analisaram as conseqüências da conjunção das variáveis de gênero e de raça demonstram a condição particular ocupada pela mulher negra no mercado de trabalho e na sociedade brasileira. A conjugação destas variáveis reserva a este grupo os estratos sociais inferiores, bem
como significa menores rendimentos e baixo retorno ao investimento em educação. Na prestação de serviços, por exemplo, há uma maior concentração de
mulheres nos empregos domésticos, principalmente de mulheres negras.
Em Conteúdos e Metodologia do Ensino de História cabe o seguinte questionamento: Estará assim a educação atenta à urgência de tais questionamentos,
ou teima em manter os velhos discursos dicotômicos de um masculino/feminino
construídos preconceituosamente?
Do ponto de vista de Gonçalves (2000), a escola produz diferenças, distinTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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ções, desigualdades. Como instituição incumbiu-se de separar os que a ela
tinham acesso e os que a ela não pertenciam. Porém os que nela se inseriam também eram divididos, por múltiplos mecanismos de classificação, ordenamento,
hierarquização. A escola que foi construída pela sociedade moderna ocidental
começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes e também se
fez diferentes para ricos e pobres e separou também meninos de meninas.
Segundo Silva (1996), a escola que inicialmente era para alguns foi sendo
requisitada pelos outros e esses novos grupos foram trazendo transformações à
instituição, ela precisou ser diversa e passou a produzir as diferenças entre os sujeitos. A escola delimita espaços, ela separa e institui. Registra, na prática escolar,
os modos e as maneiras que são internalizados para este ou aquele grupo. “gestos, movimentos, sentidos são produzidos no espaço escolar e incorporados por
meninos e meninas, tornam-se parte de seus corpos. Para Louro (1997), todas
essas lições são atravessadas pelas diferenças, elas confirmam e também as produzem. O processo de “fabricação” dos sujeitos é continuado e por vezes muito
sutil. Antes de se verificar a leitura de leis e decretos, deve-se perceber práticas
cotidianas que envolvem os sujeitos.
De acordo com DilIon, apud Martinez (1999), esta instituição que separa até
o campo do conhecimento, a história é ensinada nas escolas sem se mergulhar na
historia das mulheres, na qual não se conta com registros escritos nem com documentos. A mulher é a grande ausente nos textos escolares de história. Sua ausência se faz patente tanto nas descrições das façanhas bélicas quanto nos escassos
momentos nos quais se fala da organização social. Como compreende Moreno,
apud Martinez (1999), tudo isso indica que foi muito maltratada ao longo da historia e que os livros de texto continuam maltratando-a numa desesperada tentativa
de deter o passo do tempo.
Scott (1995), propõe a construção de uma nova história, que abra a possibilidade para a reflexão sobre as estratégicas políticas atuais, colocando as mulheres visíveis como participantes ativas e como sujeitos históricos. É de se esperar
uma aptidão diferenciada por gênero nas diferentes disciplinas? Sendo assim,
teria que se avaliar esses alunos por critérios diferentes? Apesar de nos últimos
anos as mulheres terem cursado carreiras consideradas historicamente masculinas - como matemática, engenharia ou química, estas conquistas não ecoam na
instituição escolar, onde se continua pensando e agindo que a mulher não é boa
para matemática.
Como diz Salomé, apud Martinez (1999), o sexismo na sala de aula é uma
das funções do currículo oculto. Como é conhecido, o currículo oculto faz referências aos resultados “não programados” no currículo oficial, aos aprendizados que
não foram planejados, que não se dão no plano consciente. Faz referência aos
conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que se adquirem no dia-a-dia da
sala de aula, mas que nunca chegaram a explicitar-se como metas intencionais.Neste sentido, considera-se necessário introduzir a discussão das questões de
gênero na formação de professores, na possibilidade de formar profissionais refleTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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xivos que possam pensar e repensar sua prática, reconhecendo a importância
crescente que se encontra na linguagem, na formação das identidades de gênero
e na transmissão —ou não- dos estereótipos sexuais.
Compreende-se, portanto, que estas interrogações indicam que curriculos,
normas, procedimentos de ensino, são seguramente “Ioci” das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe e assim são constituídos por estes quesitos e, ao
mesmo tempo, seus produtores. Dos muitos espaços produtores de distinções, a
linguagem é talvez o campo mais forte e persistente de tal prática, por atravessar
todo o tempo e parecer sempre “natural”. No entanto, a linguagem não só expressa relações, poderes, lugares, mas os institui; ela não apenas veicula, mas produz
e pretende fixar diferenças.
Isto é importante porque discutir como tudo se organiza na instituição escolar, que é um campo político e como se produzem sujeitos, produzem identidades
étnicas, de gênero, de classe, e se essas identidades são produzidas através de
relações de desigualdade. Por isso, deve-se procurar interferir na continuidade
dessas desigualdades. Concomitantemente, para que se possa pensar em qualquer estratégia de intervenção, é necessário reconhecer as formas de instituição
das desigualdades sociais. Com isto, as políticas de ação afirmativa, voltadas
para as mulheres, para a população indígena, para a população afro-descendente
ou para outros grupos excluídos ou objeto de discriminação na sociedade brasileira, são uma estratégia utilizada para a afirmação de políticas de identidade e para
favorecer uma verdadeira igualdade de oportunidades em sociedades acentuadamente desiguais como o Brasil.
Assim, conclui-se que a educação é fundamental, bem como os meios de
comunicação. Trabalhar a questão do imaginário coletivo, das representações
das identidades culturais presentes nas diferentes sociedades latino-americanas
é muito importante e, nesta perspectiva, estas mediações são muito importantes.
O multiculturalismo é um dado da realidade. Portanto, a sociedade é multicultural.
Pode haver várias maneiras de se lidar com esta variável, uma delas é a perspectiva intercultural consciente de que nessas relações não existem só diferenças,
como também desigualdades, conflitos, assimetrias, questões de poder.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
123
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Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 113-123, Novembro, 2006.
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SEMINÁRIOS: TODA AÇÃO DEMANDA A ADOÇÃO DE UM
MÉTODO
José Carlos de Cerqueira Moraes*
RESUMO: Este estudo pretende mostrar e discutir os equívocos cometidos pelos
acadêmicos em relação à técnica para apresentação de seminários, decorrentes
do desconhecimento da mesma, bem como dos recursos pedagógicos a ela inerentes. Assim, a discussão e análise dessas dificuldades buscam esclarecer os
principais pontos na prática da socialização do conhecimento, no tocante à integração à técnica e ao conteúdo.
PALAVRAS-CHAVE – Seminário; apresentação; técnica.
ABSTRACT: This study intends to show and disscus the misundersdings made by
the academics in relation to technique for presentation of seminars, current of the
ignorance of the same, as the pedagogic resources and it inherent. Thus, the
discussion and analisys of those difficulties. The main point in the practice of the
distribution of the knowledge, concerning the integration to the technique and the
content.
KEY WORDS: Seminar; presentation; technique
* Professor do Curso Normal Superior da Faculdade Maria Milza- FAMAM
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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A Comunicação é técnica e apresenta princípios a serem seguidos, então
para o comunicador exercê-la na sua plenitude e, assim, ser bem entendido,
necessário se faz a observância dos mesmos, inerentes a esta arte.
As novas tecnologias, bem como as formas de expressão e distribuição do
conhecimento exigem uma reformulação dos antigos paradigmas, devendo-se
repensar tais formas no dia-a-dia. Sêneca afirma que “Nenhum vento sopra a
favor de quem sabe para onde ir”. Convém lembrar que, na opinião de Newton,
não se inventam Hipóteses. O mesmo raciocínio estende-se a todos os setores do
cotidiano, onde, mesmo de forma involuntária, adota-se um método para encaminhamento das ações.
“A comunicação acadêmica de alta qualidade tem como atributos, dentre
outros, a clareza e a precisão, garantias de que a compreensão instantânea ou imediata será facilitada no processo de difusão dos saberes e técnicas”. (ALMEIDA
FILHO, N. IN LUBISCO, 2003, P. 1). Claro se torna que os atributos clareza e precisão pressupõem um mínimo de conteúdo e, mais notadamente as formas de exposição desses conteúdos. O aspecto pedagógico ganha, assim, uma vultosa forma,
capaz de veicular a mensagem no formato adequado a quem a recebe.
Por isto, este trabalho tem a pretensão de auxiliar o acadêmico em uma
perspectiva mais geral da técnica aplicada à preparação e condução de seminários, desde a oratória e impostação da voz, aos materiais, disciplina e persuasão do
público-alvo.
“Como poderei entender o que leio se alguém não me explicar?”, diz o relato
bíblico (Atos 8:31), destacando a importância não apenas da comunicação, mas
também da pedagogia na socialização do conhecimento, quando registra um diálogo mantido entre um alto oficial etíope e Felipe (seguidor de Jesus). Da mesma
maneira, as chamadas para a comunicação no tocante ao testemunho, principalmente no Novo Testamento, se colocam tanto em termos individuais como das
massas, Opus citatum, passim.
Percebe-se, assim, a importância da comunicação na transmissão da informação, já que a mesma é um poderoso veículo de difusão de idéias e que, segundo o lingüista Hjelmslev apud Chauí (1994), através da linguagem, pode-se influenciar e ser influenciado.
De acordo com Aristóteles, somente o homem é dotado de linguagem e,
possuindo a palavra, torna-se social e político. (...).“A linguagem tem, assim, um
poder encantatório , isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano (...)
(CHAUÍ, 1994). O poder encantatório citado é usado como forma de persuadir pessoas, grupos e até mesmo grandes massas. Nesta perspectiva, vale a seguinte
citação:
A deusa da persuasão chamava-se Pitho, era mulher de fisionomia feliz, filha da deusa Vênus, deidade dos prazeres e da
beleza era considerada a personificação do amor sexual. Diziase que, sob os seus passos, as flores germinavam.(...) Por que
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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uma mulher e não um homem simboliza esta arte? Talvez porque a mulher busca mais o encanto que o arroubo da força
bruta e, nessa senda, o persuasor deve imitá-la. Sabemos que
a mulher é graciosa, gentil, suave e doce, que utiliza mais o
encanto, ardil e a habilidade sem nunca usar da violência.
(BARROSO, 2005)
Assim, o comunicador deve ser o mais verdadeiro possível, sob pena de
levar a pecha de “vendedor de ilusões, podendo fazê-lo perder a credibilidade. A
necessidade da adoção um método, relata Nunes (1998) faz as pessoas, conscientemente ou não, fazê-lo no dia-a-dia, como, "para levantar ou deitar na cama,
para calçar os sapatos ou por um automóvel em movimento é necessário executarmos um conjunto de operações cuja seqüência não pode ser alterada sob pena
de não alcançarmos o resultado final desejado".
Claro que qualquer alteração nessa seqüência poderá não se atingir o objetivo pretendido, sob pena de travar o processo, frustrando esta pretensão. Da
mesma forma, guardadas as devidas proporções, a arte da comunicação não
pode perder os seus encantos por pura imperícia do comunicador:
Por método entendo regras certas e fáceis, graças às quais
todos os que as observem exatamente jamais tomarão como
verdadeiro aquilo que é falso e chegarão, sem se cansar com
esforços inúteis e aumentando progressivamente a sua ciência, ao conhecimento verdadeiro de tudo o que lhes é possível
esperar. (NUNES, 1998)
A adoção de um método exige o planejamento inteligente das ações, de tal
maneira que a exposição de um tema tenha poder persuasivo. A assertiva supracitada é corroborada por Behe (1997), que garante que planejamento é tão
somente o arranjo intencional de partes, em que se pode desenhar ou formatar
uma palestra.
Existe uma ordem a ser seguida durante a execução desta tarefa, visando a
grande eficiência e eficácia na transmissão da informação. Atualmente, alguns
comunicadores têm-se aventurado na prática desta alteração (método), mas de
forma discreta, sem prejuízo da apresentação, haja vista não haver alteração na
essência do conteúdo, mas sim, melhorando a beleza da forma. Neste trabalho,
será dada ênfase maior à comunicação de grupos de pessoas, cujas técnicas exigidas buscam persuadi-las a uma só vez, na perspectiva da eficiência, sem perda
da eficácia. A voz é um poderoso recurso da persuasão, devendo ser utilizada
para o propósito pretendido e da melhor maneira possível.
Portanto, há que se cuidar do recurso vocal, de maneira que a voz fique
bem limpa, com boa entonação e harmoniosa. Uma boa impostação vocal consegue manter atenta a platéia.
Barroso (2005), afirma que a persuasão procura atrair a platéia utilizando
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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como meio a fala. As palavras do orador devem ser bem soletradas sem, contudo,
comprometer o bom encaminhamento da palestra. O controle da respiração fa-loá utilizar satisfatoriamente o ar armazenado nos pulmões, já que, a depender de
quão longa seja a frase, exigirá mais (ou menos) do aparelho fonador, e a frase
não poderá ser interrompida. Uma boa impostação da voz passa segurança e credibilidade para a assistência, o que, sem dúvida, permitirá que se tenha sucesso
na apresentação. A organização do evento deverá providenciar água de beber,
para que o palestrante possa manter a sua garganta em boas condições de uso,
bem como para poder recuperar o fôlego da empreitada. Desta maneira, a voz se
constitui num poderoso recurso da persuasão que, sendo bem utilizada, conduzirá o público pelos caminhos desejados pelo persuasor, atingindo os seus objetivos.
Todavia, a voz por si mesma e dissociada de outros valores importantes,
não poderá trazer bons resultados aos que se permitem ingressar neste tipo de atividade interativa. Há, portanto, que se utilizar o recurso vocal, mas com boa
expressão dos gestos e olhar firme para toda a platéia. A não observância de
quaisquer desses recursos poderá comprometer a apresentação, já que tais itens
funcionam como importantes correias de transmissão, sendo muito oportunos do
ponto de vista da difusão da mensagem.
As repetições desnecessárias de palavras tendem a entediar a platéia, bem
como a pobreza gramatical, criando um clima geral de desconfiança, por melhor
que seja o conteúdo. Neste caso, a linguagem bem aplicada também será bem
entendida. Não se trata do uso de uma linguagem rebuscada, mas do uso de termos apropriados e de fácil compreensão. Se o apresentador tem dificuldade em
fazer as colocações lingüísticas corretas, melhor que faça o bom uso de palavras
mais simples e de uso corrente.
Do ponto de vista conteudístico, porém, há que se ter bastante cuidado, já
que um público mais exigente apresenta certo acúmulo de informações, sendo
também um bom formador de opinião. Trata-se de um público mais crítico e que
costuma deleitar-se com informações mais novas, entediando-se com a repetição
do que já se sabe. Convém lembrar que um conteúdo satisfatório e bem trabalhado, ou seja, bem combinado com os recursos da voz, microfone, materiais áudiovisuais e uma boa seqüência de idéias trará maior tranqüilidade ao apresentador e
grande satisfação ao público.
O mau uso do microfone costuma desagradar aos ouvintes. Mantendo-se
este equipamento a uma boa distância da boca, já que muito distante e muito próximo podem comprometer a audição do que se fala, promoverá um som bem agradável. Existe um consenso entre os que trabalham com locução de que a respiração é algo que precisa ser controlado, com o propósito de se manter o fôlego e de
se evitar que a respiração seja amplificada junto com a voz. Da mesma maneira,
na importante tarefa de se transmitir mensagens, deve-se evitar pigarrear e tossir
ao microfone, já que compromete a fala e provoca um desagradável ruído.
A oração feita de forma prolixa o fará embaraçar-se na exposição das idéiTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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as, fazendo-o dar voltas e mais voltas, perdendo a objetividade e gastando tempo
desnecessariamente. A recomendação que se faz é que o palestrante faça um
bom exercício antes do evento, para que não se perca do objeto principal, mas só
se comente sobre os pontos-chave do tema em apresentação.
Ao se receber um convite para expor um tema, deve-se perguntar a si
mesmo sobre o tipo de colaboração que pode ser dada tanto do ponto de vista conteudístico como na forma da veiculação desse conteúdo. Trata-se de uma autocrítica, buscando a preservação de uma imagem e de um bom aproveitamento por
parte do público-alvo. O fato de alguém tê-lo convidado deixa-o envaidecido e honrado, o que é muito natural. Entretanto, é prudente fazer-se um exame de consciência antes da aceitação da proposta, haja vista que ninguém pode dominar
todo e qualquer tema. É de Schwantes (ca.1975) a afirmação de que "O lamentável é que tantas pessoas talentosas embarcam, por um capricho da vontade, em
empresas para as quais não estão absolutamente talhadas", entretanto, compreende-se que não se pode, neste caso, fazer generalizações, já que todos, indistintamente, devem comunicar-se, e da melhor maneira possível.
Alexis Carrel, “coloca a audácia ao lado do senso moral e da inteligência
como um dos apanágios do homem integral, denotando fé operante no domínio do
imprevisível”. (CARREL, A. apud SCHWANTES, ca. 1975, 450 p.)
Nunes (1998), aconselha que “o pesquisador deve considerar seriamente
suas limitações materiais e, sobretudo, intelectuais antes de se definir por um
assunto ou tema”. Além disso, convém se conhecer o tipo de público, o seu nível e
cultura, se as instalações são adequadas à sua apresentação, se a organização
do evento dispõe de recursos áudio-visuais, telas para projeção, quadro de giz e
outros de finalidade pedagógica. De posse dessas informações, concluir-se-á
sobre a aceitação ou não do convite para se expor o tema proposto. Mesmo que se
decida pela aceitação do convite, o íten materiais didáticos e instalações físicas
dar-lhe-ão idéia de como proceder na operacionalização para a efetivação do
intento.
Satisfeita esta exigência inicial, deve-se tomar as medidas de cunho operacional/organizacional, como a data, o local e o horário estabelecidos. Chegado o
momento do evento, pressupõe-se já tomadas as providências de ordem preparatória, como um descanso providencial, checagem do equipamento de projeção,
cuidados com a voz, que deve estar limpa e reverberante, o telefone celular desligado, relógio sobre uma mesa ou local estratégico para se evitar a suspensão freqüente do braço para ver as horas... Aliás, olhar com freqüência para o relógio, em
meio a uma apresentação de trabalho causa grande má impressão ao público, significando para todos que o apresentador está apressado ou que está louco para
sair dali.
Ainda que tudo pareça ter sido providenciado, sempre haverá algo de que
só se lembrará minutos antes do começo da palestra. As surpresas surgem como
desafio aos promotores do evento, já que, “embora haja energia elétrica no local e
uma parede ideal para projeção, a tomada mais próxima dista vinte metros deste
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
130
local ideal”, por exemplo. Claro que uma extensão resolveria o problema, mas
somente o dia-a-dia será capaz de municiar a todos de uma bagagem suficiente
para minimizar tais surpresas.
Alguém da organização do evento fará a sua apresentação à platéia, após a
qual se inicia as saudações de praxe, cujo tipo dependerá do público e serve de
“aquecimento” para a apresentação do conteúdo. Nada como uma calorosa saudação ao público presente, expressando o seu contentamento por estar naquele
local e com pessoas tão educadas e acolhedoras. A depender do público presente, pode-se usar um respeitoso “Senhoras e Senhores”, um “boa noite a todos”,
um “jovens da minha terra”, ou “Boa noite, meus ilustres concidadãos”. A saudação inicial ajuda-lo-á a iniciar muito bem o tema, diminuindo o nervosismo e quebrando “gelo” inicial, próprio do momento.
Modernamente, alguns têm optado por inverter um pouco esta seqüência,
apenas saudando o público após contar uma piada, ou mesmo citando o que será
visto naquele momento. De qualquer maneira, não se deve perder a oportunidade
de se mostrar gentil para com a platéia, demonstrando sentir-se à vontade para tratar daquele assunto, registrando gostar e já estar familiarizado com o mesmo. Convém não esquecer ou errar o nome da localidade ou instituição onde se dá a palestra, já que o registro da satisfação por estar ali valoriza o lugar e as pessoas. O contrário causa uma má impressão, além do que o público sente-se desprestigiado
(i.g. como se sente quando alguém esquece o seu nome?).
Começa-se, então, a discorrer sobre o assunto de forma firme, olhando
para toda a platéia e gesticulando sempre na altura da cintura, mas evitando pôr
as mãos nos bolsos, ou para trás, denotando posição defensiva. Convém lembrar
que a persuasão objetiva atrair pessoas para a sua exposição, mas nunca deverá
repeli-las.
O apresentador deve ser capaz de pronunciar bem as palavras, sem gritar,
mas com um tom audível e utilizando recursos áudio-visuais. Deve-se lançar mão
do uso do quadro de giz, caso se faça necessário. A técnica pedagógica indica,
caso o faça, apagá-lo na direção vertical e de cima para baixo, assim a poeira cairá
na calha coletora e não incomodará a platéia. O conhecido apontador a laser deve
ser desligado após o seu uso, já que se trata de um equipamento que provoca
certo pavor à assistência quando ligado. A luz emitida por este equipamento intraqüiliza a platéia, que busca esquivar-se sempre que a mesma é direcionada para
ela.
Convém evitar-se a repetição desenfreada de palavras e a colocação de
transparências envelhecidas e com dados muito antigos. No momento da troca
das transparências, convém se falar algo, pois isto manterá a platéia atenta. Tais
transparências atualizadas devem ser numeradas, já que em caso de uma eventual alteração da ordem o apresentador não perderá a seqüência das mesmas. Os
dados recentes supracitados, por certo, dará credibilidade a apresentação, principalmente em se tratando de público mais exigente e de nível de informação e crítica maiores.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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É lógico que se deve posicionar-se na lateral do retroprojetor, desligando-o
sempre que já tiver projetado algo, pois a luz projeta um retângulo luminoso na
parede, desviando a atenção da assistência. Nada deve impedi-lo de aplicar os
recursos da melhor maneira possível, sob pena de comprometer a exposição, por
se ter demandado um tempo considerável na preparação de tão importante
momento. A sua locomoção à frente da platéia deve ser comedida e sem gestos
espalhafatosos, embora alguns advoguem a idéia de que, tratando-se de apresentadora, um discreto toque no cabelo à altura do ombro torna a apresentação
mais interessante.
Tratando-se do desenvolvimento da apresentação, todo e qualquer exagero deve ser contido, desde as roupas muito coloridas e transparentes à maquiagem muito carregada. È um momento especial, de cunho informacional, social e
educativo, em que o mais importante é o tema em explanação. Neste sentido, ressalta-se que o vocabulário utilizado deve ser o mais adequado possível, podendo
haver uma flexibilização, dependente do tema, da cultura, nível e idade da platéia.
Em geral, o uso de gírias banaliza a apresentação, por isso, o tão falado “tá ligado?” Deve ser substituído por um “entenderam?.”
Atitudes exageradas, a exemplo de piadas ousadas, expressões depreciativas e ar arrogante podem, eventualmente, provocar alguma reação negativa da
assistência. Uma vez que o público presente, no aguardo da mensagem, alimenta
grandes expectativas, o mesmo deve ser valorizado, devendo-se evitar o confronto com o mesmo. Aliás, o contrário deve ser cultivado, de maneira que a interação
produza os melhores efeitos e o clima de harmonia prevaleça. Neste aspecto,
todas as perguntas feitas pela assistência devem ser respeitadas e estimuladas,
mesmo porque os questionamentos e a apresentação de novas idéias enriquecem o debate e promovem a pessoa humana.
Um público aparentemente hostil não poderá intimidá-lo, sendo recomendado, neste caso, a presença de espírito. Este procedimento não é simples, já que
exige uma boa prática nesta atividade, além de inspiração. Assim, Barroso, narra:
O grande advogado Tobias Barreto, professor na Universidade
de Recife era, segundo a história, muito exigente. Seus alunos
um dia resolveram pregar-lhe uma peça, fazendo um burro
adentrar a sua sala de aulas antes do seu início. O professor ao
entrar naquele recinto ficou surpreso, pois os alunos não estavam, e sim, o enorme quadrúpede. O Doutor Tobias, então, sentou-se e pôs-se a abrir o seu livro de Códigos, ministrando a
aula para o burro que ali estava. Ao final da aula, o ilustre professor fechou o seu livro, dando a aula por encerrada, dizendo
ao animal: a classe está encerrada e, por favor, diga aos seus
colegas que teremos prova amanhã com o assunto da aula de
hoje. BARROSO (2005, 37 p).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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A presença de espírito ajuda a arrefecer os ânimos e criar um clima descontraído. Sempre haverá uma pergunta que incomoda ao apresentador, e muitas
vezes, fora do contexto da apresentação. As chamadas “saias-justas” são comuns
nos debates travados em público, então deve-se recorrer à humildade e ao famoso “jogo de cintura”. Pode-se evitar situações embaraçosas, por exemplo, afirmando que “aquilo que fora perguntado representou uma limitação daquele trabalho, mas que deverá ser contemplado nos trabalhos futuros, ou que o presente trabalho é não-conclusivo, podendo contemplar aquilo que foi perguntado posteriormente.”
Ainda que se possa pensar na presença de espírito como "fuga" ou engodo,
é preciso que se compreenda o verdadeiro significado deste antigo artifício, já que
não se trata de acovardar-se, mas, na visão de Schwantes (ca.1975), de refugiarse em um abrigo que lhe parece mais familiar. Em uma visão mais ética, seria o último recurso a ser utilizado, mesmo porque alguns, exagerada e irresponsavelmente, lançam mão de mentiras, refugiando-se na fraude.
Tampouco devem aparecer, ao lado da "fuga", outras formas apelativas, a
exemplo de atalhos e desvios que guardam uma impressão ruim, figurando, na
visão geral e comum como conduta questionável do apresentador, mesmo porque, além da irresponsabilidade consigo mesmo, frusta o público, maculando uma
reputação. Se possível, deve-se esmerar-se ao máximo, fazendo as vezes dos
"homens da segunda milha", caminhando um pouco mais.
Mas, para se ter sucesso neste campo é preciso que haja segurança, experiência e bom estado emocional do apresentador. Todavia, platéias aparentemente calmas e indiferentes podem reservar surpresas, pelo menos aos menos avisados. Trata-se de um procedimento muito antigo, já que há registros dessas passagens em escritos bem remotos. Jesus, de acordo com o relato Bíblico, ao ser questionado por fariseus e escribas, sobre o por quê dos seus discípulos não lavarem
as mãos para comer, conforme a tradição dos anciãos, prontamente respondeu:
“por que transgredis vós também o mandamento de Deus, por causa da vossa tradição?” (MATEUS 15:2 e 3)
Com freqüência, têm-se observado registros históricos, de diálogos mantidos por personagens que se utilizaram da não resposta direta, mas de uma outra
pergunta como resposta àquela indagação. Note-se que se trata de procedimento
que requer habilidade, já que coloca o primeiro questionador em situação embaraçosa. Existem situações em que a resposta direta, pura e simples irá demandar
muito tempo, não satisfazendo a quem indaga. A resposta dada por Jesus foi bem
simples e didática, daquelas que cala e leva a quem inquire evadir-se. Então, é preciso que a preparação da apresentação seja a melhor possível, independente do
tipo de público.
Não se recomenda apontar pessoas na platéia ou fazer perguntas dirigidas,
pois as pessoas da assistência ficam constrangidas e deixam de interagir. No máximo, a recomendação que se faz é que, em se fazendo perguntas, não dirigi-las,
mas deixar que um voluntário responda. Em geral, as pessoas da assistência perTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
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guntam ou comentam algo em baixo volume, então deve ser solicitado que falem
mais alto para que todos possam ouvi-las. Mas, se isto não for possível, convém
que o apresentador repita a indagação feita de forma audível. Aconselha-se que,
na medida do possível, se socialize a pergunta, pois, assim, a comunicação efetivar-se-á, alcançando a todos.
Sendo a técnica utilizada na comunicação tão importante quanto a própria
arte da comunicação, todo empenho se faz necessário ao longo da explanação.Como de praxe, ao final, se expõe de forma resumida os tópicos abordados,
fazendo-se uma retrospectiva do que fora visto na explanação, passando uma
visão melhorada do todo, relacionando as partes vistas. Assim, abre-se, em seguida, o espaço para perguntas e comentários. Para tanto, o apresentador deverá
estimular o debate, deixando as pessoas à vontade para fazê-lo.
Caso o tempo destinado ao debate tenha ficado restrito, o palestrante pode
optar por responder às perguntas em bloco, para evitar que as respostas sejam
repetidas. Neste caso, aconselha-se anotar em papel as perguntas, já que serão
várias em bloco.
Esse instante é especial, já que vários pontos de vista deverão ser manifestados e, muitas vezes, algo importante que deixou de ser dito pelo apresentador
vem à tona, clareando as idéias e enriquecendo o debate. Todavia, como a palavra
está franqueada, não é incomum haver exaltação da platéia, o que poderá levar ao
atrito as pessoas, que desejam impor as suas verdades. Então, o apresentador
fará também o papel de mediador (caso não haja) do debate, organizando-o e acalmando os ânimos dos mais inflamados. É um momento em que a serenidade e a firmeza devem imperar, e o medo deve ser afastado. Neste sentido, Schwantes
(ca.1975) assegura que “Ou nos dominamos pela aplicação dos controles interiores, ou seremos dominados pelas circunstâncias”.
Geisler & Bocchino (2001), garantem que “Devemos procurar responder ao
que parece uma pergunta insincera da maneira mais amável e verdadeira, pois
mesmo se não satisfizermos o proponente da pergunta, poderemos influenciar os
que estão em torno esperando a nossa resposta”.
Tais circunstâncias são desfavoráveis para aqueles mais atemorizados, já
que o momento deixa de ser um monólogo para transformar-se em debate. Portanto, fazendo valer o slogan “Sê perfeito em tudo que fizeres”, até se deixar o
local do evento deverá haver um sentimento de dever cumprido. Neste sentido,
convém lembrar que se deve afastar o medo sempre que se apresentar um seminário. Inúmeras pessoas perderam grandes oportunidades de iniciar no processo
da oratória por questões de timidez, insegurança, etc. A timidez, aliada ao medo
tem impedido ou atrasado muitos no exercício da comunicação. Por isso, o restrito
mundo dos bons oradores pertence àqueles que, embora sem auxílio técnico inicial, tiveram coragem de enfrentar desafios.
No final da explanação, ao término do debate, para o encerramento da fala,
recomenda-se resumir rapidamente os principais pontos abordados, relacionando-os e desenhando um “todo”, compreensível, dando sentido lógico ao que fora
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discutido nos momentos de exposição. Fecha-se a palestra, então, com um pensamento de alguém consagrado ou versículo bíblico, desde que tenha relação
com o assunto tratado na explanação. Os agradecimentos ao público presente
são altamente necessários, não se admitindo o contrário. Na conclusão do fechamento, deixa-se clara a grande satisfação por estar interagindo naquele local e
com aquelas pessoas.
Recomenda-se ao palestrante colocar-se sempre à disposição de todos
daquele lugar ou instituição para outras explanações, bem como para dirimir qualquer dúvida em outro local e em outro momento, principalmente para aqueles que
se intimidaram em usar a palavra.
Portanto, pelo exposto, ao que parecia inexpressivo e desprovido de efeito
social, em verdade demanda muita técnica e disciplina aos que se propõem ao
exercício da comunicação como meio persuasivo, para atingir a função da linguagem. Neste ponto de vista, é premente a necessidade do conhecimento dessas
técnicas, pois, através delas, se potencializará o intento do comunicador, permitindo uma interação entre o sujeito da enunciação e os receptores, ampliando as possibilidades de se alcançar o fim desejado.
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Ed. Nova Vida. 2001. 437 p.
6. NUNES, R.P. Métodos para a Pesquisa Agronômica. Ed. I. Ceará,
Universidade Federal do Ceará. 1998. 564 p.
7. SCHUANTES, J. Colunas do Caráter. Ed. I. São Paulo, Casa Publicadora
Brasileira. (ca. 1975). 450 p.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 125-134, Novembro, 2006.
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL: UM NOVO OLHAR
Dayse Bastos Pereira de Almeida Brandão *
Jucinalva Bastos de Almeida Brandão**
RESUMO: Discutimos, neste trabalho, o tema Avaliação da Instituição de Ensino
Superior (IES), do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP)
cujos procedimentos legais fundamentam-se na Lei de Diretrizes e Bases nº
9394/96 e no art. 1º da Lei 10861/2004, que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINES). Com o propósito de ampliar a discussão
sobre o enfoque proposto, faremos uma análise sobre os elementos constitutivos
desse novo sistema.
PALAVRA-CHAVE; Avaliação; educação superior; graduação.
ABSTRACT: We discussed in this work the theme Evaluation of the Higher
Education Institution (IES) and of the National Institute of Studies and Researches
(INEP), whose legal procedures are based in LDB (Law of Guidelines and Base)
nº. 9394/96 and in the article I of the Law 10861/2004, that instituted the National
System of the Superior Education (SINES). With the purpose of enlarging the
discussion on the focus, we will make an analysis on the constituent elements of
that system.
KEY-WORDS: Evaluation; superior education; graduation.
* Vice-Diretora do Centro Educacional Maria Milza .E-mail: [email protected]
**Diretora do Centro Educacional Maria Milza e da Faculdade Maria Milza. E-mail:
[email protected]
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 135-139, Novembro, 2006.
136
AVALIAÇÃO INSTITUCIONAL
Avaliação da Educação Superior tem por finalidade a melhoria da qualidade
da educação superior e o aumento permanente da sua eficácia institucional e efetividade acadêmica e social dos compromissos e responsabilidades sociais das
instituições de educação superior.
Tais determinações estão implícitas na legislação atual do próprio Ministério de Educação, responsável pela implementação dessa política, não só do Ensino Superior como também da Educação Básica, conforme a Lei nº 9.131 de 1995.
Nesta, está explícita a responsabilidade do Ministério da Educação que
assume a responsabilidade de realizar avaliações periódicas das instituições e
dos cursos de nível superior, cuja finalidade é avaliar a qualidade e o desempenho
das atividades de ensino, pesquisa e extensão, dentre outros aspectos.
Entretanto, é preciso cuidado na prática avaliativa, já que esta implica a
emissão de um valor. A própria etimologia do termo, ou seja, avaliação significa atribuir valor a alguma coisa, dar valia e, por isso mesmo, não é uma atitude neutra.
Este fato não pode ser ignorado, em virtude disso, o que interessa na avaliação é o
compromisso com o questionamento, com a revisão e o repensar das ações, atitudes e valores.
É importante dizer que além da avaliação do projeto pedagógico e do seu
corpo social, integrado por docentes, discentes, egressos e funcionários técnicoadministrativos, considera-se como parte integrante desse processo, a estrutura
física e administrativa. Dessa forma, avaliar não deve ser visto como algo simples,
mas complexo. Esta complexidade advém das contradições sociais do próprio
contexto histórico-social de produção e superação de tais conflitos.
Assim, desenvolver um processo de avaliação institucional é assumir como
princípio a democracia institucional, a ética no fazer, estabelecer a relação dialógica entre qualidade e quantidade, e, ainda, a sensibilidade institucional para
mudança, tendo como princípios norteadores, os seguintes:
1) Globalidade, ou seja, avaliação de todos os elementos que compõem a instituição de ensino;
2) Comparabilidade, a busca de padronização de conceitos e indicadores;
3) Respeito à identidade dos Institutos de Educação Superior – IES.
4) Legitimidade, isto é, a adoção de metodologias e construção de indicadores
capazes de conferir significado às informações, que devem ser fidedignas.
5) Reconhecimento, por todos os agentes, da legitimidade do processo avaliativo,
seus princípios norteadores e seus critérios.
O processo de avaliação proposto adota um modelo que contempla, de
forma equilibrada, as abordagens quantitativa e qualitativa nas diferentes perspectivas avaliativas. Os instrumentos de avaliação foram concebidos de modo a
possibilitar, de forma orgânica, a construção de correlações entre meios e fins.
Eles contemplam a coleta de dados sobre a gestão, o ensino de graduação, as atiTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 135-139, Novembro, 2006.
137
vidades de pesquisa e iniciação científica, a pós-graduação, os cursos seqüenciais, a extensão, as relações institucionais, em algumas de suas múltiplas facetas, o corpo social e a infra-estrutura física. Proporcionando, assim, a obtenção de
informações de caráter quantitativo e qualitativo, que deverão, juntamente com os
dados coletados na avaliação in loco, possibilitar uma posterior e necessária análise de mérito. O processo de Avaliação Institucional compreende:
a) A Auto-avaliação, coordenada pela Comissão Própria de Avaliação – CPA, cujo
modelo deve pautar-se nas orientações gerais elaboradas a partir de diretrizes
estabelecidas pela CONAES;
b) A Avaliação Externa in loco, realizada por Comissão Externa de Avaliação Institucional designada pelo INEP, examinará as seguintes informações e documentos:
1. Dados gerais e específicos da IES constantes do Censo da Educação Superior
e do Cadastro de Instituições de Educação Superior;
2. Dados sobre o desempenho dos estudantes da IES no ENADE, disponíveis no
momento da avaliação;
3. Relatórios de avaliação dos cursos de graduação da IES, produzidos pelas
Comissões Externas de Avaliação de Cursos, disponíveis no momento da avaliação;
4. Dados do questionário sócio-econômico dos estudantes, coletados na aplicação do ENADE;
5. Relatório da Comissão de Acompanhamento do Protocolo de Compromisso,
quando for o caso;
6. Relatórios e conceitos da CAPES para os Cursos de Pós-graduação da IES,
quando houver;
7. Documentos sobre o credenciamento da IES e seu último recredenciamento,
quando for o caso.
Qualquer processo de avaliação pressupõe o uso de fontes de informação
apropriadas que fornecem um conjunto de dados e referências descritivas úteis
para caracterizar os indicadores de qualidade. Um dos princípios básicos da avaliação estabelece que um indicador de qualidade possa estar associado, simultaneamente, a vários aspectos institucionais.
As avaliações das Instituições de Ensino Superior têm sido tema de inúmeros estudos, seminários e debates ocorridos na última década. A Comissão Especial de Avaliação da Educação Superior, apresentada pelo MEC(2005), assim define: se a avaliação é um processo que busca melhorar a qualidade, aumentar a rentabilidade do serviço público educacional e elevar a eficácia institucional, a conscientização dos agentes e a efetividade acadêmica e social, então, implementar a
cultura da avaliação é uma exigência ética.
O processo de avaliação nas instituições de ensino superior brasileiro
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 135-139, Novembro, 2006.
138
encontra-se em fase de implantação e experimentação, uma vez que não existe
um modelo de avaliação único capaz de atender a todos os anseios provenientes
daquelas organizações que pretendem auto-conhecer-se e auto-regular-se. No
meio acadêmico, no entanto, evidencia-se cada vez mais a necessidade dessa
avaliação.
Belloni(1998), referindo-se às universidades, considera que “a avaliação
sistemática pode ser um instrumento que estimule o aprimoramento da qualidade
das atividades e contribua para que se verifique, sistematicamente, o atendimento
aos objetivos e finalidades da Instituição. Por isso, o processo de avaliação não
deve ser entendido somente como mecanismo para detectar as falhas, mas também como instrumento revelador dos acertos. Nesse sentido, pode-se verificar a
qualidade e desempenho das instituições.
Indo ao encontro desse entendimento, Dias(1996) evidencia que, no Brasil,
a avaliação das universidades vem sendo definida como instrumento necessário
para promover a melhoria do ensino, desenvolver a produção científica e aprimorar as atividades administrativas.
Como a avaliação institucional é uma prática nova, ainda está em fase de
uma criação de cultura, de busca contínua de atualização e de auto-superação
pelos atores-sujeitos e de auto-regulação institucional, ao nível das estruturas de
poder e do sistema, assegurando, assim, sintonia com as mudanças operadas no
entorno, na economia, na ciência e tecnologia. Pressupõe o envolvimento e a disposição de cada ator-sujeito do processo universitário em buscar patamares superiores de qualidade e de relevância de seu fazer. Provavelmente, este é o caminho
mais seguro para a construção da autonomia universitária. Trata-se de um processo de mudança e de melhoria lento, gradual, com avanços e retrocessos, de não
acomodação, de compromisso com o futuro. É relevante distinguir-se estes dois
níveis da avaliação institucional, que devem ser, todavia, necessariamente conjugados. Da mesma forma, é relevante distinguir também em que nível está-se operando, em sentido amplo, uma vez que tudo pode ou não se constituir ema avaliação institucional, dependendo do enfoque e enquadramento teórico, e, em sentido
estrito, de avaliação institucional propriamente dita.
No plano dos atores-sujeitos, a mudança está na busca de atualização, de
aprimoramento profissional, de maior qualificação do fazer. Poderia ser traduzida
na reconstrução do projeto profissional, pedagógico e, com repercussões no projeto de vida de cada um. No plano das estruturas de poder e do sistema, a mudança traduz-se no funcionamento eficiente e eficaz, nos planos operacionais, no
plano institucional de desenvolvimento, no funcionamento de mecanismos de
auto-regulação. Quanto mais os projetos de vida e profissionais e os planos operacionais e estratégicos forem expressões da avaliação institucional, mais a cultura de avaliação terá conseguido enraizar-se e consolidar-se. Para isso acontecer,
primeiramente será preciso dar tempo ao amadurecimento do processo. Será preciso que este não remeta nem à premiação e nem à punição no plano de atoressujeitos. Todavia, será necessário que não seja neutro, que não deixe ninguém
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 135-139, Novembro, 2006.
139
indiferente e nem fora do mesmo, incidindo sobre os aspectos e dimensões cruciais da vida e do fazer universitário.
A título de curiosidade, após o recebimento dos resultados da avaliação de
serviços terceirizados, como cantinas, reprografia e transporte coletivo, empresas
desses segmentos visitaram a Comissão, para conhecer a metodologia e justificar
os resultados. O propósito da Comissão é que cada professor, cada estudante e
cada servidor, no plano dos atores-sujeitos e de cada dirigente, no plano das
estruturas de poder, perceba a avaliação e aplique as mudanças em função de
seus resultados, não por imposições externas, mas por decisões autônomas,
livres e amadurecidas. E quanto mais isso ocorrer, mais se estará, seguramente,
numa cultura de avaliação.
Enfim, a avaliação Institucional está em fase de iniciação. Há muito ainda a
ser melhorado, redefinido e redirecionado. Seu olhar está no futuro, no projeto que
pretende construir. É por pensar que há muito o que aprender que se submeteu à
avaliação por pares e dela se pretende tirar proveito ao máximo. Será preciso conjugar mais e melhor avaliação e mudança, avaliação e autonomia. Será preciso
passar, também, de uma avaliação em sentido amplo, rica em dados que sinalizam para o conjunto para uma avaliação em sentido restrito, focando o institucional, definindo indicadores, valendo-se, todavia, de todas as contribuições, de
todas as pesquisas e de todas as fontes de informação.
REFERÊNCIAS
BELLONI, Isaura. A função social da avaliação institucional. Avaliação,
Campinas, v.3, nº34, 1998.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Lei nº 10.861, de 14 de abril de 2004. Institui o Sistema Nacional de
Avaliação da Educação Superior – SINAES e dá outras providências.
Disponível em: http://www.mec.gov.br/legis/default.shtm>. Acesso em: 20 abr.
2006.
DIAS SOBRINHO, José. Avaliação institucional: marco teórico e campo
político. Avaliação, Campinas, Ano 1, nº 1, 1996.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 135-139, Novembro, 2006.
UTILIZAÇÃO DE PLANTAS MEDICINAIS POR ACADÊMICOS
DA FAMAM
Josiane de Melo Gonçalves Santos*
Jucimaria Duarte Araújo da Silva**
Robson Rui Cotrim Duete***
RESUMO: O presente estudo objetivou resgatar a cultura popular referente à utilização de plantas medicinais, por parte dos estudantes da Faculdade Maria Milza.
Para isso foi utilizada a técnica da observação direta extensiva, realizada através
da aplicação de questionário constituído por seis perguntas (quatro fechadas e
duas abertas); foram selecionados para tal atividade 190 discentes de Enfermagem (2004.I e II, 2005.I e II) e de Geografia (2004.I e II, 2005.I e II). As informações
obtidas foram tabuladas, analisadas estatisticamente (utilizando-se os métodos
da Estatística Descritiva) e interpretados, o que permitiu chegar à seguinte conclusão: O consumo de plantas medicinais é alto, para tratar ou prevenir a diversidade
de afecções, utilizando-se, mais freqüentemente, as folhas, preferencialmente na
forma de chás.
PALAVRAS-CHAVE: plantas medicinais; afecções; etnobotânica; medicina popular; espécies utilizadas.
ABSTRACT: The present study it has as its objective to redeem the knowledge, by
the Maria Milza Faculty students, upon medicinals plants. For that was used the
technique da observation direct extensive, using questionary formed for six
questions (four subjective and two objective); interviews was conducted in a
probability sample of 190 students of Nursing (2004.I and II, 2005.I and II) and
Geography (2004.I and II, 2005.I and II). Statistical analysis was descriptiva
comprising frequency distributions. The consumption of medicinals plants is high,
to treat or prevent the diversity of disease, utility, more frequently, the leaf, priority
share in the form of tea.
KEY WORDS: medicinals plants; disease; ethnobotany; popular medicine; most
used species.
*Acadêmica de Bacharelado em Enfermagem (2004.1) – Bolsista do Proinc; Jô[email protected]
**Acadêmica de Bacharelado em Enfermagem (2004.1) – Pesquisadora Voluntária;
***Professor do curso Bacharelado em Enfermagem e Licenciatura em Geografia da Faculdade Maria
Milza - FAMAM – [email protected]
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
142
INTRODUÇÃO E REVISÃO DE LITERATURA
Fitoterapia e dietoterapia foram as primeiras práticas médicas. No século
VI, antes de Cristo, Hipocrates dizia “que seu alimento seja seu medicamento e
que seu medicamento seja seu alimento”. Nessa época, as prescrições médicas
eram feitas com a utilização de plantas medicinais.
Pinheiro (1999), relatou que as ervas medicinais eram utilizadas pelos chineses desde o ano 3.700 antes de Cristo e, ainda hoje, constitui-se um instrumento de muitas famílias contra doenças, constituindo-se em práticas populares de
saúde, e os conhecimentos sobre elas passam geralmente de pais para filhos.
Embora tenham propriedades terapêuticas comprovadas, as ervas exigem,
porém, cuidados específicos e, muitas produzem efeitos colaterais se não utilizadas da maneira adequada, afirma Panizza citado por Pinheiro (1999). Segundo
Soares (1999), inúmeros trabalhos científicos têm relatado efeitos tóxicos, principalmente sobre o fígado, e, em escala menor sobre os rins, o sangue, a pele, o sistema nervoso e cardiovascular, bem como efeitos mutagênicos e carcinogênicos.
Grandes dificuldades inerentes à fitoterapia advêm do fato de que cada
espécie vegetal (planta) é uma mistura complexa de milhares de substâncias químicas, e, em geral, fica difícil identificar, separar e concentrar os componentes farmacológicos úteis (princípios ativos), complicando muito a padronização da dosagem desses produtos. Além disso, a produção e comercialização dos fitoterápicos
não estão sujeitas ao mesmo código de normas rígidas que os medicamentos alopatas.
Segundo Soares (1999), o consenso atual da comunidade científica é que
cada vegetal é um caso específico a ter suas propriedades farmacológicas e suas
seguranças exaustivamente estudadas. É necessário realizar estudos completos
e sofisticados com cada produto, pois cada um deles pode ter uma ação no laboratório (“in vitro”) e outra diferente no organismo humano (“in vivo”).
Para escolha de espécies a serem estudadas na área de farmacologia, torna-se necessário, previamente, a identificação de plantas medicinais que, segundo David e David (2002), guiam as pesquisas com produtos naturais, e podem contribuir sobremaneira para a descoberta de drogas, porque proporcionam o conhecimento de novas estruturas químicas e/ou mecanismos de ação; por exemplo: o
capim-favorito (Rynchelytrum repens) contém, segundo pesquisadores do Instituto de Botânica de São Paulo e da Universidade Federal de Lavras, dois tipos de
açúcar (betaglucano e o arabinoxilano) que parecem baixar em até 50% a taxa de
glicose no sangue durante 24 horas (LOPES, 2006). Ainda, segundo aqueles autores, fármacos derivados de plantas e fitoterápicos têm valor fármaco-econômico,
mostrando-se importantes para o desenvolvimento de novos fármacos sintéticos.
Trabalhos que objetivaram resgatar o conhecimento das populações no
que diz respeito ao uso de plantas medicinais, foram desenvolvidos por Amorozo e
Gély (1988), Amorozo (1993, 1997), Rodrigues (2001), Rodrigues e Carvalho
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
143
(2001), Costa (2002), Geovanini (2004) e Motomiya et al. (2004).
As plantas, além de seu uso na medicina popular com finalidades terapêuticas, têm contribuído, ao longo dos anos, para a obtenção de vários fármacos, até
hoje amplamente utilizados na clínica. Como exemplo, pode-se citar a morfina, a
emetina, a vincristina, a colchichina, a rutina, etc. (CECHINEL FILHO e YUNES,
1998).
Entre os diversos exemplos de substâncias oriundas de plantas e de importância atualmente, pode-se mencionar a forscolina, obtida de Coleus barbatus,
que apresenta promissores efeitos contra hipertensão, glaucoma, asma e certos
tumores (DE SOUZA, 1993), a artemisinina, presente em Artemísia annua, que
exerce potente atividade antimalárica (KAMCHONWONGPAISON e MESHNICK,
1996), e o diterpeno anticancerígeno taxol, isolado de plantas do gênero Taxus,
que após sua síntese em escala industrial, já se encontra disponível no mercado
farmacêutico, constituindo-se numa grande esperança para pessoas portadoras
de câncer nos ovários e pulmões (KINGSTON, 1991; HORWITZ, 1994;
FITOTERAPIA, 1995; CORRÊA, 1995).
Para Vasconcelos (1996), os Serviços de Atenção Primária à Saúde possibilitam a aproximação entre os hospitais e ambulatórios centrais e o cotidiano da
vida popular detentora dos saberes e práticas populares de saúde. Por isso, Klein
(2003) desenvolveu, no interior da Amazônia, um programa de educação popular
em saúde, quando foi construído um novo saber unindo os conhecimentos sistematizados ao saber tradicional ( uso de plantas medicinais, o respeito aos rezadores, às parteiras tradicionais e outras práticas comunitárias).
Em razão do crescente reconhecimento social que vem alcançando muitas
das chamadas medicinas alternativas que funcionam segundo modelos explicativos fora da lógica científica da nossa medicina, propõe-se o presente estudo para
conhecer as plantas medicinais mais conhecidas e utilizadas por acadêmicos (as)
da Faculdade Maria Milza, bem como as partes mais utilizadas e o modo de preparo, mais freqüentemente utilizado, para o consumo
MATERIAIS E MÉTODOS
Selecionaram-se para o estudo 190 discentes de Enfermagem (2004.I e
II, 2005.I e II) e de Geografia (2004.I e II, 2005.I e II), da Faculdade Maria Milza, situada em Cruz das Almas, Bahia. A amostra escolhida foi ao acaso.
Para a coleta de dados aplicou-se a técnica da observação direta extensiva
e utilizou-se como instrumento um questionário, constituído por seis perguntas
(quatro fechadas e duas abertas).
As variáveis do questionário selecionadas para este estudo foram: utilização de plantas medicinais; origem do hábito de utilização; tipos de doenças; tipos
de ervas medicinais mais utilizadas; partes dessas plantas utilizadas para consumo; forma de preparo para o consumo.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
144
Os questionários foram aplicados após autorização da diretoria, na presença do professor, com garantia de confidencialidade.
O protocolo não foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa, pois ainda
não existe na referida Instituição, e considerando a natureza do estudo, que se
restringiu à aplicação de um questionário anônimo.
Desenho de estudo: estudo de corte transversal de caráter exploratório.
Análise estatística: após a coleta dos dados, os mesmos foram tabulados
utilizando-se para isso os métodos da Estatística Descritiva, quando as informações foram expressas através de distribuição de freqüências, tendo sido apresentadas nas formas gráficas e tabulares.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A prática generalizada do uso de plantas medicinais por parte dos estudantes da FAMAM fica evidente ao se constatar que 87,3% dos respondentes optam
por este hábito. Este resultado encontra respaldo na estimativa da Organização
Mundial de Saúde (OMS) segundo a qual 80% da população mundial fazem uso
de algum tipo de erva para o alívio e cura de doenças ( DAVID e DAVID, 2002 ).
Segundo esses autores, nas últimas três décadas, 25% de todas as prescrições
fornecidas pelos farmacêuticos nos Estados Unidos da América foram constituídos de princípios ativos que ainda são extraídos de plantas superiores. Acrescentam ainda que, aproximadamente 119 substâncias químicas extraídas de cerca de
90 espécies de plantas superiores são usadas na medicina no mundo, e 77% destas são derivados de plantas usadas na medicina tradicional.
Brandão Neto et al. (2004), observaram que 60% das 240 famílias entrevistadas em seis municípios baianos (quatro situados no Recôncavo Baiano e dois
na região Paraguaçu ), preferem utilizar remédios homeopáticos.
Quanto à origem das informações sobre as plantas medicinais, pode-se
observar no quadro 1, que familiares foram o principal meio de difusão de tais
conhecimentos, o que já era presumível, pois, segundo Costa (2002) e Geovanini
(2004), tais conhecimentos são transferidos pelos antepassados através de gerações de forma oral, sem registros literários. Motomiya et al. (2004) também observaram que a principal forma de obtenção de informações sobre plantas medicinais
foi através dos pais (42,6%) ou avós (27,9%).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
145
Quadro 1 – Origem das informações estimuladoras do hábito de utilização de
plantas medicinais, por parte dos acadêmicos da FAMAM, em 2005.
ORIGEM DAS INFORMAÇÔES
FREQÜÊNCIA (%)
FAMILIARES
77,5
AMIGOS
10,5
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
6,2
BENZEDEIRAS
2,5
PROFISSIONAIS HOMEOPATAS
3,3
FACULDADE
0,0
Rodrigues (2001), encontrou que 62,7% dos questionados tiveram acesso
aos conhecimentos sobre plantas medicinais por meio da transferência de receitas através das gerações e a troca com os vizinhos não deixaram de lado a sabedoria de seus antepassados, predominando a transferência de receitas através
das gerações. Ainda, segundo essa autora, “alguns moradores do Povoado Sapucaia (Cruz das Almas – BA.), obtiveram conhecimento através de outros meios, ou
seja, há algum tempo atrás, foi dado um curso para leigos, sobre usos de plantas
para fins medicinais, por médicos na cidade. Isso demonstra já a preocupação em
cuidar melhor da população, pois o uso empírico de plantas já é muito difundido.”.
No levantamento etnobotânico de plantas medicinais no Domínio do Cerrado na Região do Alto Rio Grande (MG), Rodrigues e Carvalho (2001), entrevistaram raizeiros, descendentes de avós indígenas, africanos ou ambos, e de faixa
etária entre 56-72 anos, cujo papel de hoje, em alguns aspectos, se assemelha
aos dos curandeiros antecedentes, ou seja, indivíduos que dentro das suas comunidades detêm a sabedoria passada por seus ancestrais de preservar e utilizar as
plantas do meio ambiente onde vivem. Segundo a maioria dos raizeiros, eles eram
muito procurados em décadas passadas para a cura de doenças utilizando-se
plantas medicinais; ocorreu um declínio na procura entre as décadas de 70 – 80,
retomou por volta de 1985 e intensificou-se cada vez mais até os dias de hoje.
Observa-se que as plantas mais citadas são aquelas utilizadas no tratamento de doenças do estômago, intestino, cefaléia, doenças das mulheres e doenças respiratórias, como gripe, bronquite e tosse. Motomiya et al. (2004), também
fizeram observações semelhantes.
Embora muitos trabalhos realizados relatem utilizações de plantas medicinais para o tratamento de diversas doenças, apenas algumas literaturas da medicina tradicional citam determinadas plantas que são utilizadas na preparação de
fitoterápicos, à exemplo da obra de David e David (2002), que citam que a atividade antiinflamatória de Atricaria recutita L. (camomila) é devida à presença de terpenóides (camazuleno, á-bisabolol) e flavonas (apigenina).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
146
Cechinel Filho e Yunes (1998), demonstraram que os extratos brutos de
diferentes espécies de Phyllanthus, conhecidas como “quebra pedra” exercem
potentes efeitos analgésicos com potência muito maior do que algumas drogas utilizadas na clínica, como a aspirina e o acetaminofeno. À partir de P. sellowianus
obtiveram dois fitoesteróides muito comuns em plantas, estigmasterol e âsitoesterol, que apresentam uma ação equipotente à aspirina; além desses foram
isolados vários compostos ativos como os taninos furosina e geranina com resultados farmacológicos bastante promissores; e, flavonóides quercetina e rutina,
que apresentaram relevante ação analgésica.
DeBusk (2005), relata que o cardo mariano (Silybum marianum) é conhecido como uma erva do fígado, por suas aparentes características hepatoprotetoras. Os usos adjuvantes da silimarina (constituinte ativo do cardo mariano), aprovados pela Comissão E alemã, incluem o tratamento de dano hepático inflamatório secundário à cirrose, hepatite ou infiltração gordurosa causada por álcool ou
outras toxinas.
O capim-favorito ( Rynchelytrum repens ) contém, segundo pesquisadores
do Instituto de Botânica de São Paulo e da Universidade Federal de Lavras, dois
tipos de açúcar (betaglucano e o arabinoxilano) que parecem baixar em até 50% a
taxa de glicose no sangue durante 24 horas (LOPES, 2006).
As plantas mais citadas e utilizadas pelos Acadêmicos se encontram na
Figura 1. Além dessas, Carqueja, Mastruz, Eucalipto, Tapete-de-oxalá, Manjerona, Espinho-cheiroso, Poejo, Goiabeira, Eucalipto, Algodoeiro, Fedegoso, Sabugueiro, Alfazema, Bem-me-quer, Mirra, Maria-milagrosa, Velaminho-verdadeiro,
Mentrasto, Pinha, Abacateiro, Folha-da-costa, São Gonçalinho, Manjericão, Mangueira, Arruda, Água-da-levante, Cebola, Confrei, Vassourinha-de-relógio, Cristade-galo e Erva-de-mocó, foram mencionadas apenas uma vez.
20
15
10
5
Novalgina
Hortelã
Aroeira-branca
Agrião
Eucalipto
Picão
Quebra-pedra
Sene
Novalgina
Espinheira-santa
Quioiô
Mastruz
Alumã
Aroeira
Tapete-de-oxalá
Alho
Limão
Romã
Pitanga
Camomila
Erva-doce
Boldo
Capim-santo
0
Erva-cidreira
Número de vezes em que
foram citadas
25
Plantas
Figura 1 – Plantas medicinais citadas pelos Acadêmicos da FAMAM.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
147
As substâncias ativas das plantas medicinais são de dois tipos: os produtos
do metabolismo primário (essencialmente sacarídeos), substâncias indispensáveis à vida da planta que se formam em todas as partes verdes graças à fotossíntese; o segundo tipo de substâncias é oriundo do metabolismo secundário, aparentemente sem atividade na planta, possui efeitos terapêuticos notáveis. Tais
substâncias, denominadas princípios ativos ou compostos secundários, são os
óleos essenciais (ou essências naturais), resinas, alcalóides, flavonóides, taninos, princípios amargos, entre outros (DI STASI, 1996).
Como a constituição química, na maioria dos casos, difere significativamente em relação às distintas partes da planta (TORTORIELLO et al., 1995;
KLINAR et al., 1995; BASHIR et al., 1992; CECHINEL FILHO et al., 1995), parece
mais viável estudar inicialmente aquela empregada na medicina popular e posteriormente as outras partes da planta, que também podem conter princípios ativos.
No presente estudo, observou-se que 65% dos Acadêmicos utilizam as
folhas das plantas para o consumo; raízes, frutos, flores, caules e talos são utilizadas por 11%, 10%, 5% e 9% dos respondentes, respectivamente. o que também
foi observado por Motomiya et al. (2004) que também encontraram predominância
da utilização das folhas.
Considerando o preparo com o objetivo de se obter um melhor resultado
terapêutico dessas plantas, constatou-se que 74,6% dos informantes utilizam-nas
na forma de chá, 30% deles como infusão, 10% como alimento, 1% na forma de
cataplasma, 1% como pomada e 1% in-natura. A preferência pela forma de chá
também foi observada por Motomiya et al. (2004) e por Rodrigues e Carvalho
(2001).
CONCLUSÕES
a)
b)
c)
d)
e)
Com base no estudo realizado pode-se concluir que:
A utilização de plantas medicinais para tratar ou prevenir a diversidade de
afecções, é feita por 87,3% dos Acadêmicos;
A maioria dos estudantes (77,5%) adquiriu os conhecimentos sobre plantas
medicinais através dos familiares;
Foram levantadas 55 espécies vegetais;
A parte da planta preferencialmente utilizada é a folha, conforme respostas
de 65% dos Indivíduos;
A forma de preparo predominante é o chá, conforme 74,6% dos Acadêmicos.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 141-150, Novembro, 2006.
148
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INTERAÇÃO DE FUNGO MICORRÍZICO E MAL-DO-PANAMÁ
EM BANANA 'MAÇÃ'
Andréa Jaqueira da Silva Borges*
Aldo Vilar Trindade**
Maria de Fáfima da Silva P. Peixoto***
RESUMO- A cultura da banana, variedade 'Maçã', enfrenta como principal problema fitossanitário, a murcha de fusarium da bananeira, causada pelo fungo oxysporum f. sp. cubense (FOC). Neste sentido, o biocontrole do patógeno, através
da associação micorrízica, representa um potencial a ser explorado no sentido de
um cultivo menos agressivo e mais sustentável. Com o objetivo de estudar o efeito
da inoculação do fungo micorrízico arbuscular (FMA), Gigaspora margarita, na
incidência e efeitos do Fusarium oxysporum f. sp. cubense na cultura da banana,
variedade 'Maçã', experimentos foram realizados em condição de casa de vegetação da Embrapa Mandioca e Fruticultura, Cruz das Almas, Bahia. O experimento
foi realizado em três etapas; na primeira fez-se um teste de ajuste para determinação das doses de inoculo do FMA, na segunda, produziram-se mudas de banana
inoculadas com G. margarita e na terceira a inoculação do FOC. Os resultados permitem concluir que o fungo micorrízico apresenta eficiência simbiótica para o
desenvolvimento das mudas de bananeira, variedade 'Maçã', cuja inoculação prévia do FMA promove redução no índice de doença causado por Fusarium oxysporum f. sp. cubense até determinado limite da dose de inoculo do fungo, cujo uso de
maior concentração do FOC causa redução na colonização micorrízica.
PALAVRAS-CHAVE: Banana; murcha de fusarium; biocontrole; micorriza.
ABSTRACT- The main fitossanitary problem of 'Maçã' variety of banana is the
fusarium wilt, also known as mal-do-Panamá, caused by Fusarium oxysporum f.
sp. cubense (FOC). This desease is widespread in all production regions of
banana in the world. It is highly destructive and has its control based ou use of
tolerants/ resistents cultivars. Biocontrol of the pathogen with mycorrhizal
association represents a potential to be explored to meet a cultive system less
agressive and more sustainable. We conducted experiments at National Cassava
& Fruit Reseach Center, Cruz das Almas, Bahia, Brazil, to study the influence of
inoculation of mycorrizal arbuscular fungi Gigaspora margarita on incidence
and effects of Fusarium oxysporum f. sp. cubense on 'Maçã' variety of banana. The
* Professora do Curso de Licenciatura em Geografia da FAMAM. E-mail: [email protected]
** EMBRAPA*** UFBA
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experiment was done in three stages: first we proceeded a test to adjust levels of
inoculum of MAF to be set on the experiment; than plantlets of banana were
inoculated with G. margarita and after 60 days, inoculated with FOC. We
conclused that G. margarita had mycorrizal eficiency for development of banana
plantlets of 'Maçã' variety; previus inoculation of MAF reduced desease index
caused by Fusarium oxysporum f. sp. cubense, depending on level of inoculum of
MAF; high inoculum of FOC reduced mycorrizal colonization.
KEY WORDS: Musa sp., fusarium wilt, biocontrol, mycorrhizae
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INTRODUÇÃO
A bananicultura assume uma importância mundial, por ser a banana e o “platano” cultivados em quase toda a faixa intertropical do globo terrestre e nas regiões
subtropicais onde há possibilidade de seu cultivo (MOREIRA, 1987). Com abertura de novos mercados, aumento do consumo mundial e maior exigência dos consumidores, surge a necessidade de novos rumos a serem tomados pela bananicultura nacional como a busca de alta qualidade genética e fitossanitária. Dentre
os principais problemas fitossanitários da bananeira, está o mal-do-Panamá ou
murcha de fusarium, causado pelo fungo de solo Fusarium oxysporum Schlechtend: Fr. f. sp. Cubense pertencente à classe dos Deuteromicetos ou fungos imperfeitos (KIMATI & GALLI, 1980; PEREIRA et al., 1999). O FOC está amplamente distribuído no mundo, infectando grande número de cultivares de bananeira e causando sérios problemas econômicos para os bananicultores, devido ao seu grande potencial destrutivo e à dificuldade de aplicação de medidas de controle. Kimati
& Galli (1980) consideram que o melhor método de controle do mal-do-Panamá,
consiste na utilização de cultivares tolerantes/resistentes, como as pertencentes
ao subgrupo Cavendish resistentes às raças 1 e 2 do patógeno. Mais recentemente, vem-se buscando usar o potencial de equilíbrio biológico do solo.
A pesquisa no controle biológico de patógenos de plantas tem recebido
muita atenção nos últimos anos como um meio de aumentar a produtividade das
culturas, desenvolvendo-se práticas compatíveis com a agricultura sustentável e
evitando-se problemas relacionados ao controle químico tais como poluição ambiental, desenvolvimento de resistência dos patógenos aos produtos utilizados,
entre outros.
Dentre os componentes da microbiota do solo encontram-se os fungos
micorrízicos arbusculares (FMAs), que formam associações simbióticas estáveis
com as plantas. Entre os benefícios dessa associação para as plantas pode-se
citar: incremento da nutrição da planta; melhoria nas relações hídricas e equilíbrio
hormonal; além de os FMAs poderem aumentar a capacidade de tolerância/resistência das culturas a fungos fitopatogênicos.
Os FMAs podem influenciar na bioproteção de fungos patogênicos como
Fusarium e Phytophthora, por meio de mudanças na anatomia ou morfologia no
sistema radicular, na população da rizosfera microbiana e nos mecanismos de
defesa da planta. A ocorrência dessa associação micorrízica é muito comum na
bananeira, assim a interação entre FMA e FOC pode ocorrer representando um
grande potencial a ser explorado no biocontrole do mal-do-Panamá, o que proporcionará um cultivo menos agressivo e mais sustentável.
A produção de mudas de banana via micropropagação vem aumentando
significativamente e representa uma forma mais segura de obtenção de material
propagativo livre de doenças, pelo menos nas fases iniciais de desenvolvimento
das plantas. Também é um sistema que permite a introdução de organismos benéficos selecionados, como os FMAs.
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No presente trabalho objetivou-se avaliar o efeito da inoculação do FMA,
Gigaspora margarita, na incidência e efeitos do Fusarium oxysporum f.sp. cubense na cultura da banana, variedade 'Maçã', na fase inicial de desenvolvimento
vegetativo.
MATERIAL E MÉTODOS
O experimento foi conduzido em casa de vegetação, da Embrapa Mandioca
e Fruticultura, em Cruz das Almas, BA, no período de novembro 2001 a maio de
2002. Utilizaram-se mudas micropropagadas de bananeira, produzidas pela
Empresa CAMPO – CPA /Embrapa.
Foram realizados dois experimentos. No primeiro, fez-se um teste de ajuste
das doses de inóculo do FMA. No segundo, avaliou-se a interação FMA x FOC,
sendo realizado em duas etapas onde na primeira inoculou-se o FMA e na segunda o FOC, nas masmas plantas.
Teste de dosagem de FMA
Inicialmente, foi feito um teste de ajuste para escolha das doses do FMA
que seriam utilizadas na interação com o FOC. Utilizaram-se cinco doses de inóculo do FMA (0, 5, 10, 20 e 30g por planta contendo 4 esporos g-1) com cinco repetições, no delineamento de blocos casualizados. Cada parcela foi constituída por
um vaso plástico com capacidade de 1,3 dm3 contendo uma muda de banana, variedade 'Maçã', produzidas por micropropagação e apresentando altura média de
10,7 cm.
O substrato foi composto pela mistura turfa/vermiculita média (3:1,v:v) adicionado de 5 % de esterco bovino, previamente fumigado com 394 ml m-3 de brometo de metila para eliminação dos FMAs nativos e incubados nos vasos, irrigando-se por 10 dias com água destilada. O fungo micorrízico utilizado foi o Gigaspora margarita que se mostrou eficiente para a bananeira em testes anteriores
(LINS, 1999). A inoculação foi feita no ato da repicagem, dispondo-se o inóculo (solo, raízes, esporos e hifas) em torno das raízes da plântula. No tratamento não inoculado, fez-se aplicação de um filtrado obtido pela passagem do inóculo em peneira com malha de abertura de 0,037 mm (400 “mesh”).
Após 45 dias de cultivo, coletou-se a parte aérea para determinação do
peso de matéria seca sistema radicular para determinação da taxa de colonização
micorrízica.
Experimento da interação FMA x FOC
Utilizou-se o delineamento experimental em blocos ao acaso em esquema
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-1
fatorial 5 x 4, sendo cinco doses de inóculo do FMA (0, 1, 3, 8 e 15 g planta ) e quatro doses de inóculo de FOC (0, 102, 103, 104 conídios mL-1) com cinco repetições.
O experimento constou de duas etapas em que se fez na primeira a inoculação do Gigaspora margarita.
Produção de inóculo
O inóculo do FMA Gigaspora margarita foi obtido da coleção do Laboratório
de Microbiologia do Solo da Embrapa Mandioca e Fruticultura, previamente multiplicado na cultura do sorgo (Sorghum bicolor), contendo 148 esporos em 30 g de
inóculo, crescido em mistura de turfa e vermiculita na proporção 3:1, adicionada
de 5 % de esterco.
O isolado do FOC (TOMBO 095) foi obtido da coleção do Laboratório de
Fitopatologia da Embrapa Mandioca e Fruticultura. Para a produção do inóculo o
isolado, foi repicado para cultivo em placas de petri de 100 mm x 20 mm, contendo
meio batata-dextrose-ágar (BDA), e posteriormente colocadas em câmara de crescimento por 10 dias a 25oC. Utilizou-se o meio Rosa de Bengala para cultivo do
patógeno, com vista a reduzir a taxa de contaminação bacteriana. Após a purificação do FOC, os conídios foram coletados, utilizando-se 10mL de água destilada
estéril esfregando-se levemente um pincel sobre as colônias e submetendo-se a
suspensão a uma agitação para a liberação dos mesmos. Da suspensão conidial
obtida, determinou-se sua concentração em Câmara de Newbauer ajustando-se
as suspensões de trabalho utilizadas nas inoculações das plântulas. A suspensão
do inóculo apresentava 1,3 x 107 conídios mL-1, sendo diluída em água destilada
para as dosagens 102, 103, 104 conídios mL-1.
Produção de mudas “in vitro”
A variedade Maçã foi escolhida em função da alta susceptibilidade ao agente causal do mal-do-Panamá. As mudas foram obtidas através de cultura de meristema a partir de plantas matrizes da Embrapa Mandioca e Fruticultura. As plântulas encontravam-se no segundo sub-cultivo, tendo sido multiplicadas em meio de
MS (MURASHIGE & SKOOG, 1962) suplementado com 3 mgL-1 de 6benzilaminopurine, 30 g L-1 de sacarose, 2 gL-1 de fitagel. Para o enraizamento, utilizou-se o meio de MS com 0,25 mg.L-1 de ácido naftaleno acético, 30 gL-1 de sacarose e 6 gL-1 de ágar. Para o início do experimento as plântulas apresentavam em
média 10,3 cm de altura (medida do colo até o final da última folha), 5 folhas, 10 raízes e a maior delas com aproximadamente 8,9 cm de comprimento.
Instalação do Experimento
Cada parcela correspondeu a um vaso com capacidade de 1 dm3 contendo
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uma muda.
O substrato foi o mesmo utilizado no teste de ajuste e na produção de inóculo.
Inoculação do FMA
Durante o transplantio, cada grupo de 25 plântulas foi inoculado com o FMA
Gigaspora margarita, nas diferentes doses já citadas anteriormente, no momento
do transplantio para os vasos, dispondo-se o inóculo (solo e esporos) em torno
das raízes da plântula. No tratamento não inoculado, fez-se aplicação de um filtrado obtido por passagem em peneira com malha de abertura de 0,037 mm (400
“mesh”), visando recompor a microbiota do inóculo sem propágulos de FMAs.
A irrigação foi feita com água destilada de acordo com a necessidade da
planta, utilizando-se regador manual. A cada 20 dias,após o transplantio, as plantas receberam 10 mL de uma suspensão contendo 10 mg de N planta-1 na forma de
sulfato de amônio e 10 mL de uma solução nutritiva contendo: 6g L-1 de
MgSO4.7H2O, 3g L-1 MnSO4 .H20, 3 g L-1 de ZnSO4.7H20, 1,5 g L-1 de CuSO4.5H20,
0,24 g L-1 de H3BO3 e 0,09 g L-1 de NaMoO4.2H2O, para complementação do fornecimento de nutrientes. As mudas foram aclimatadas por sessenta dias.
Vinte e cinco plantas foram coletadas para avaliações do peso da matéria
seca da parte aérea, teores de P e K e percentual de colonização micorrízico.
Inoculação do FOC
As plantas restantes foram inoculadas com o FOC nas doses 0, 102 , 103 e
10 conídios mL-1. Para isto, retirou-se as plantas do substrato de cultivo e suas raízes foram imersas em suspensão, por 20 minutos, contendo as diferentes concentrações do FOC. Em seguida, foram transplantadas para vasos com capacidade
para 5 L, contendo solo (Tabela 2) previamente autoclavado, com pH corrigido
pela adição de CaCO3 e MgCO3, ambos P.A., em dosagem equivalente a 1,5 t ha-1
de P e K e incubado por uma semana no telado.
As mudas foram levadas para casa de vegetação e a cada 20 dias as plantas receberam solução nutritiva contendo N e micronutrientes, nas mesmas dosagens usadas na etapa anterior, regadas com água destilada de acordo a necessidade da planta. Após 45 dias de cultivo, procedeu-se à coleta para avaliações.
4
Avaliação
Na primeira etapa do experimento, após 60 dias do transplantio, foram
colhidas vinte e cinco plantas para obtenção do peso de matéria seca da parte
aérea e teores de P e K (Malavolta et al., 1989). Do sistema radicular, avaliou-se o
percentual de colonização micorrízica (Phillips Hayman, 1970).
Na segunda etapa do experimento, avaliou-se a matéria seca da parte
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aérea, altura da planta, análise foliar (teores de P e K) (MALAVOLTA et al., 1989).
O sistema radicular foi separado em raízes e radicelas, medindo-se o comprimento das raízes pelo método direto, com auxílio de régua e as radicelas pelo método
da placa reticulada (NEWMAN, 1966). As radicelas foram utilizadas, posteriormente, para avaliação do percentual de colonização. Para tal, procedeu-se à despigmentação das mesmas com KOH 10 % em chapa aquecida a 90ºC durante 30
min. Após resfriamento, retirou-se o KOH lavando-se em água corrente. As raízes
foram cobertas com HCl 1% por 4 min, e logo após coloridas pela imersão no
corante Azul de trypano 0,05%. Após 24h em temperatura ambiente, as amostras
foram retiradas do corante e cobertas com Ác. Lático + Glicerina para conservação. A avaliação da colonização micorrízica foi realizada em placa graduada, utilizando-se lupa e contador eletrônico (PHILLIPS HAYMAN, 1970).
O índice de infecção por Fusarium foi calculado de acordo com a fórmula
abaixo, proposta por Cirulli & Alexander (1966), atribuindo-se notas de 0 a 6 conforme escala proposta por Ordeja (1993), para avaliação de sintomas.
(nota x nº de mudas)
S
ID= nota máxima x nº de repetições
x 100
Os dados obtidos foram submetidos à análise de variância, segundo o delineamento em blocos casualizados, analisados pelo programa SISVAR – Sistema
de Análise de Variância, desenvolvido por Ferreira (2000). Foram ajustadas equação de regressão para as doses de inóculo de FMA e FOC.
RESULTADOS
Teste de dosagem de FMA
A introdução do FMA Gigaspora margarita promoveu taxas de colonização
crescentes até doses em torno de 20 g planta-1 de inoculo. Neste ponto a colonização estimada foi de 90,3 % (Figura 1). A maior dose testada promoveu elevada
colonização mas, inferior àquelas obtidas em doses menores.
A produção de matéria seca da parte aérea foi influenciada pela inoculação
do fungo G. margarita (Figura 2). Observa-se na Figura 5 um aumento crescente
até a dosagem de 18 g planta-1 do inóculo do FMA. A partir daí, houve um pequeno
decréscimo.
Com base neste teste, passou-se a usar, no experimento da interação FMA x FOC, doses diferentes buscando-se atingir o pico de colonização. A
resposta foi crescente até a dose de 8 g planta-1, tendendo a estabilização em
doses maiores.
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Interação FMA x FOC
Inoculação com FMA
A inoculação do fungo micorrízico em doses ascendentes resultou em percentagem de colonização crescente, atingindo ponto máximo acima de 90% (Fig. 1).
A produção de matéria seca da parte aérea das mudas de banana “Maçã” foi
influenciada pelo aumento das doses de inóculo do G. margarita. A resposta foi
crescente até a dose de 8 g planta-1 tendendo ao declínio em doses maiores(Fig. 2).
A inoculação do FMA em doses crescentes de inóculo promoveu aumento
significativo nos teores de P na planta. Esse aumento seguiu o padrão observado
na colonização onde a dose maior 15 g não correspondeu à maior resposta da
planta, (Fig. 6).
Para o teor de potássio na parte aérea, elemento de grande exigência pela
bananeira, a análise de regressão não revelou significância para o efeito de inóculo do FMA.
Inoculação com FOC e efeito da interação com FMA
O uso de doses crescentes de inóculo de FMA ainda resultou em aumentos
na taxa de colonização ao final do experimento, mas esta foi influenciada pela inoculação do FOC (Fig. 1). O uso da maior concentração de FOC causou redução na
colonização micorrízica, principalmente na menor dose de inóculo de FMA, o que
pode ser visualizado também, na Fig. 1.
A altura das mudas de bananeira foi influenciada pelos efeitos principais de
FMA e de FOC, não havendo interação entre eles. Verifica-se que houve pequeno
incremento na altura da planta em função das doses crescentes do inóculo de
FMA. A inoculação com 8 g foi a que proporcionou melhor resposta ao crescimento
da planta (Fig. 4).
Com a introdução do FOC, as plantas tiveram redução de crescimento em
altura já a partir da menor dose do patógeno (Fig. 5).
A inoculação prévia do FMA resultou no maior acúmulo de matéria seca da
parte aérea das mudas de banana 'Maçã' em relação à planta-controle (Fig. 2).
A presença do FOC em qualquer das doses aplicadas (102, 103 e 104), reduziu o crescimento das plantas (Fig. 5).
Verificou-se, um aumento crescente da matéria seca das radicelas das plantas de banana 'Maçã' quando utilizou-se doses de inóculo de FMA até 8 g planta-1 .
A partir daí, o efeito não foi positivo.
A absorção de fósforo pela planta foi maior quando inoculou-se o fungo G.
margarita na dosagem de 3 g planta-1 . Mesmo havendo um decréscimo nas
doses de 8 e 15 g planta-1 , estas foram superiores ao tratamento controle (Fig. 6).
Com a introdução das concentrações crescente do FOC (Fig. 7) observouTextura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 151-162, Novembro, 2006.
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se que os teores de fósforo na planta aumentaram em relação ao tratamento controle.
A introdução do FOC pelo método utilizado resultou em índice de doença de
até 70%, aumentando com a dose do patógeno e sendo influenciado pela presença do fungo micorrízico (Fig. 8). As plantas inoculadas com concentração do FOC
mais baixa (102 cn mL-1) desenvolveram índice de doença também baixo, independente da presença do fungo micorrízico. Nas maiores doses de FOC, a micorrização prévia de plântulas de banana “Maçã” com Gigaspora margarita reduziu a
infecção das mesmas, sendo este efeito significativo em concentrações do FOC
de 103 cn mL-1, quando a inoculação do FMA reduziu o índice de doença de 43%
para até 7%. . Esta redução foi obtida com o uso de 3g planta-1 de inóculo de FMA.
Assim, o uso de quantidades de inóculo de FMA acima dessa dose não resultou
em maiores benefícios para a planta quanto ao índice de doença. Isso mostra que
a dose de inóculo de FMA é importante quando a taxa de colonização é limitante.
No caso Gigaspora margarita coloniza bem mesmo com baixas doses (potencial
de inóculo).
CONCLUSÕES
1. A inoculação prévia do FMA promove redução no índice de doença e nos danos
causado por Fusarium oxysporum f.sp. cubense até determinado limite da dose
do fungo;
2. O uso de maior concentração de FOC causa redução na colonização micorrízica principalmente na maior dose de inóculo de FMA.
3. O fungo micorrízico arbuscular G. margarita apresenta eficiência simbiótica
para o desenvolvimento das mudas de bananeira variedade 'Maçã'.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 151-162, Novembro, 2006.
160
Taxa de Colonização micorrízica
(%)
ANEXO
100
90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
cn planta -1
1
cn planta -
FOC 0 2
FOC 10 3
FOC 10
4
FOC 10
0
5
10
15
cn planta -1
cn planta -1
20
Inóculo de FMA (g planta -1)
Fig. 1. Taxa de colonização micorrízica de raízes de banana 'Maçã', submetidas a
diferentes doses de inóculo de G. margarita em diferentes concentrações de FOC.
12
Ma té ria s e c a d a p a rte a é re a (g )
Ma té ria s e c a d a p a rte a é re a (g )
12
10
8
6
4
2
0
10
8
6
4
2
0
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 11 12 13 14 15
0
1
2
-1
Fig. 2. Matéria seca da parte aérea
de plantas de Banana 'Maçã' submetidas a diferentes doses de inóculo de G.
margarita.
3
4
5
6
7
8
9
10 11 12 13 14 15
Inóculo de FMA (g planta
Inóculo de FMA (g planta )
-1
)
Fig. 3. Matéria seca da parte aérea de
plantas de banana “Maçã”
submetidas a diferentes a
concentrações de FOC.
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 151-162, Novembro, 2006.
Altura de plantas de banana "Maçã"
(cm)
161
40
35
30
25
20
15
y = -0,4544Ln(x) + 32,422
R2 = 0,8927
10
5
0
0
2000
4000
6000
8000
10000
-1
conídios mL
Fig. 4. Altura de plantas de banana
'Maçã', submetidas a diferentes doses
de inóculo de G. margarita).
Fig. 5. Altura de plantas de banana
'Maçã', submetidas a diferentes concentrações de FOC.
Teores de fósforo
(g Kg-1)
2,9
2,8
2,7
2,6
y = 0,0282Ln(x) + 2,5112
R2 = 0,8883
2,5
2,4
2,3
0
2000
4000
6000
8000
10000
conídios mL-1
Fig.6. Teores de P em plantas de banana 'Maçã' submetidas a diferentes
doses de inóculo de G. margarita.
Fig.7. Teores de P em plantas de banana 'Maçã' submetidas a diferentes concentrações de (FOC).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 151-162, Novembro, 2006.
162
Fig. 8. Índice de doença em plantas de banana 'Maçã', submetidas a diferentes
doses de inóculo de FMA (Gigaspora margarita) em diferentes concentrações de
Fusarium oxysporum f.sp. cubense (FOC).
Textura, Cruz das Almas-BA, ano 1, n.º 2, p. 151-162, Novembro, 2006.
163
REFERÊNCIAS
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4.0. In: REUNIÃO ANUAL DA REGIÃO BRASILEIRA DA SOCIEDADE
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Fitopatologia: doenças das plantas cultivadas. São Paulo: Agronômica Ceres,
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Dissertação (Mestrado em Ciências Agrárias). Escola de Agronomia,
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