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semeiosis
SEMIÓTICA E TRANSDISCIPLINARIDADE EM REVISTA
transdisciplinary journal of semiotics
O cinema como ferramenta de análise e transformação
cultural: o franquismo em Bigas Luna
MARQUES, Sílvia Cristina Aguetoni. Doutora em Comunicação
e Semiótica pela PUC de São Paulo | [email protected]
resumo
O atual artigo visa apresentar o cinema como ferramenta de análise e
transformação social para dissecar a realidade política/cultural dos mais
variados povos, por meio de sua estética e conteúdos. Será analisado o cinema
do diretor catalão Bigas Luna, mais especificamente a trilogia ibérica. Os filmes
de Luna ilustrarão e exemplificarão a importância do cinema como revelador
e dissecador social. A trilogia ibérica é constituída pelos filmes Jamón jamón
(1992); Ovos de ouro (1993) e A teta e a lua (1994), que remontam três
importantes momentos políticos da Espanha que vão do franquismo até vinte
anos após o seu término. Por meio dos recursos audiovisuais que incluem trilha
sonora, roteiro, interpretação dos atores, fotografia, iluminação e direção, entre
outros, Luna analisa a sociedade franquista, a pós-franquista e as consequências
de 40 anos de ditadura.
palavras-chave: Cinema Espanhol; Cultura espanhola; Séries culturais; Cinema
e Cultura; Linguagem Cinematográfica
abstract
This article aims at presenting the cinema as a tool of analysis and social
transformation, to dissect the political/cultural reality of the most diverse
peoples, through its aesthetic and contents. The movies of the Catalan film
director Bigas Luna will be analyzed, more specifically the Iberian trilogy.
Luna’s films will illustrate and exemplify the importance of cinema as a social
revealing and dissector tool. The Iberian trilogy consists of the films Jamón,
jamón (1992); Huevos de oro (1993) and La teta y la luna (1994), which
relate to three important political moments of Spain that go from Francoism
until twenty years after its end. Through audiovisual resources that include
soundtrack, script, actors’ interpretation, photography, lighting and direction,
among others, Luna analyzes the Francoist society, the post-Franco society and
the consequences of 40 years of dictatorship.
Spanish Cinema; Spanish Culture; Cultural Shows; Cinema and
Culture; Film Language
keywords:
1º semestre / 2013
introdução
O atual artigo visa ressaltar a importância do cinema como ferramenta
de análise e transformação cultural, por meio da trilogia ibérica de Bigas Luna.
É possível compreender melhor os signos da sociedade por meio dos signos
fílmicos, e por meio da compreensão, enxergar o cinema como um importante
instrumento de transformação social, cultural e individual.
Sabe-se que o cinema é arte, meio de comunicação de massa e tecnologia,
simultaneamente. Sabe-se também que é uma importante série cultural, que
interage com as outras séries, por meio de reelaborações mútuas. O cinema
é interdisciplinar e deve ser pensado na interação com as áreas diversas do
conhecimento, como a Antropologia, a Psicanálise, a Semiótica, entre outras.
Como foi afirmado por Graeme Turner, o cinema é um importante instrumento
de reelaboração da cultura.
A cultura foi redefinida como o processo que constrói o modo de vida
de uma sociedade: seus sistemas para produzir significado, sentido ou
consciência, especialmente aqueles sistemas e meios de representação
que dão às imagens sua significação cultural. O cinema, a televisão e a
publicidade tornaram-se assim os principais alvos de pesquisa e análise
“textual”. No âmbito dessa pesquisa, a cultura é vista como sendo
composta de sistemas de significado interligados (TURNER, 1997: 48).
O cinema cumpre diversas funções, entre elas, o entretenimento, a
informação e a educação. Porém, mais do que entreter, informar e educar, o
cinema faz pensar afetivamente pelas catarses despertadas e pelas reflexões
suscitadas.
Ao pensarmos o cinema como objeto totalmente voltado à análise crítica,
corre-se o risco de cair em um terreno estéril. Por outro lado, entender o cinema
como uma forma de extravasar emoções pode gerar o mesmo resultado.
Quando um mesmo filme suscita o pensamento crítico e desperta a
afetividade, a obra cinematográfica tem condições de desencadear uma série de
mudanças internas nos indivíduos, como afirmou Cabrera, ao relacionar cinema
com filosofia.
Para se apropriar de um problema filosófico não é suficiente entendêlo: também é preciso vivê-lo, senti-lo na pele, dramatizá-lo, sofrê-lo,
padecê-lo, sentir-se ameaçado por ele, sentir que nossas bases habituais
de sustentação são afetadas radicalmente. Se não for assim, mesmo
quando “entendemos” plenamente o enunciado objetivo do problema,
não teremos nos apropriado dele e não o teremos realmente entendido
(CABRERA, 2006:16-17).
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Para Cabrera (2006), o cinema concilia as filosofias lógica e pática, que
originam a logopática. Esse tipo de filosofia permite que as pessoas reflitam
afetivamente sobre as grandes questões culturais, sociais e individuais. É mais
simples compreender um drama quando uma emoção é provocada, ao invés
de entendê-lo apenas racionalmente. Por meio dos filmes, compreende-se e
sente-se melhor, por exemplo, o horror de uma ditadura, de uma guerra ou de
um preconceito étnico ou sexual. Em resumo: por meio dos valores-emoção, o
cinema promove mudanças em longo prazo nas maneiras de ser, pensar e agir.
O cinema ofereceria uma linguagem que, entre outras coisas, evitaria a
realização destes experimentos cronenbergianos com a escrita, deixando
de insistir em ‘bater a cabeça contra as paredes da linguagem’, como
diria Wittgenstein. Assim, o cinema não seria uma espécie de claudicação
diante de algo que não tem nenhuma articulação racional e ao qual, por
conseguinte, seria dado um veículo ‘puramente emocional’ (equivalente
a um grito), mas sim outro tipo de articulação racional, que inclui um
componente emocional. O emocional não desaloja o racional: redefine-o
(CABRERA, 2006: 18).
Roberto Machado (2009), baseando-se em Deleuze, afirma que os
grandes cineastas são pensadores como os filósofos. Porém, ao invés de criarem
conceitos, criam e pensam por meio das imagens. Jorge Vasconcelos (2008),
também utilizando o pensamento de Deleuze, afirma que o cinema é campo de
experimentação das ideias, uma extraordinária ferramenta que faz pensar por
imagens e signos.
É na perspectiva de Deleuze que sobressai o caráter afirmativo e
valorativo do interesse de Foucault pelo hiato entre imagem e discurso
em seus aspectos estético-político: esse hiato é a resistência às imagens já
constituídas , preconcebidas , programadas ; esse hiato é o modo de escapar
às formas de assujeitamento em busca da vida criativa, evidenciando a
importância , para nossa atualidade, do pensamento e do fazer artista.
Ao enfatizar a importância dessa disjunção no fazer cinematográfico,
Deleuze pôde afirmar que “Foucault encontra-se singularmente próximo
do cinema contemporâneo” (FRANÇA, 2005: 33).
A trilogia ibérica foi escolhida para ilustrar as ideias defendidas neste artigo
porque, embora a obra de Luna apresente muitas congruências, principalmente
temáticas, com os filmes de diretores consagrados pelo público e pela crítica,
como Luis Buñuel, Pedro Almodóvar e Carlos Saura, sua filmografia ainda é
pouco estudada e valorizada pelo meio acadêmico e pelos espectadores de um
modo geral.
A obra dos quatro cineastas (Buñuel, Almodóvar, Saura e Luna)
reelaboram os mais importantes signos da cultura espanhola, como as touradas;
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os pratos típicos; a dança e música flamenca; a mescla entre elementos sagrados
e profanos; as relações de gênero simbolizando os dramas políticos do país. Por
meio do cinema, a significação das séries culturais é reelaborada.
Os quatro cineastas analisados na presente pesquisa, apesar de possuírem
estéticas aparentemente divergentes, terem nascido em décadas distintas
e pertencerem a regiões diferentes da Espanha, trabalham ou trabalharam
exaustivamente com os grandes signos da cultura espanhola: as touradas,
os pratos típicos, a dança e música flamencas (...) Todos produzem ou
produziram um cinema altamente arraigado à sua cultura. Por meio destes
signos, discorrem sobre os jogos de poder e a questão da hierarquia nas
relações pessoais e políticas (MARQUES, 2009a: 107).
Entende-se por séries culturais os diversos elementos que constituem
a cultura, como a culinária, as artes, as crenças, o idioma, a arquitetura, o
artesanato, entre outros. Como afirma Lotman (1996), a cultura é um conjunto
de textos entrelaçados bastante organizados. Esses textos menores são as séries
culturais que, quando pensadas conjuntamente, remontam o panorama cultural
de um determinado povo ou de um momento histórico específico.
Pode-se dizer que são muitos os elementos que formam a cultura, pois
tudo que está presente na vida dos indivíduos é manifestação cultural ou se
origina dela.
Podemos adiantar que uma cultura constitui um corpo complexo de normas,
símbolos, mitos e imagens que penetram o indivíduo em sua intimidade,
estruturam os instintos, orientam as emoções. Esta penetração se efetua
segundo trocas mentais de projeção e de identificação polarizadas nos
símbolos, mitos e imagens da cultura como nas personalidades míticas
ou reais que encontram valores (MORIN, 1997: 17).
Embora a obra de Luna seja considerada por muitos como grotesca, bizarra
e altamente interessada pelo sexo, é possível perceber que o diretor catalão
levantou as mesmas problemáticas apresentadas por cineastas conterrâneos.
É inegável o alto teor erótico da filmografia de Luna, mas reduzi-lo a
um cineasta que se interessa apenas pelo sexo é limitador. È inegável
que o bizarro, o grotesco e a hipérbole fazem parte do seu universo,
mas é importante entender que tais características são traços estéticos
que estão a serviço de algo maior: a imersão e a compreensão da cultura
espanhola. Luna não choca por chocar, não usa o escatológico de forma
irresponsável, o sexo não é simplesmente um fetiche e/ou obsessão. Luna
fala exatamente sobre os mesmos temas e as mesmas questões trabalhadas
anteriormente por Luis Buñuel e Carlos Saura e, contemporaneamente por
Almodóvar (...) O cinema e a cultura espanhola como um todo tendem a
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trabalhar com o surreal e o grotesco, basta relembrar os filmes de Luis
Buñuel, passando por Saura e Almodóvar. È possível também citar a
obra de Goya, com suas imagens assustadoras (MARQUES, 2009b: 2-3).
A trilogia ibérica é constituída pelos filmes Jamón jamón (1992); Ovos
de ouro (1993) e A teta e a lua (1994) e remontam três importantes momentos
políticos da Espanha, que vão do franquismo até vinte anos após o seu término.
Por meio dos recursos audiovisuais que incluem trilha sonora, roteiro, figurino,
cenografia, interpretação dos atores, fotografia, iluminação e direção, entre
outros, Luna analisa a sociedade franquista, a pós-franquista e as consequências
de 40 anos de ditadura. Luna também pensa as condições que possibilitaram
a instauração de um regime ditatorial na Espanha. Hopewell (1989: 423)
comentou que o cinema pós-franquista foi uma das poucas armas para combater
os estereótipos que se formaram sobre os espanhóis durante o regime ditatorial
e desta forma recuperar parcelas da cultura que foram perdidas, deformadas ou
reprimidas durante o franquismo.
o cinema como dissecador cultural
Como foi afirmado, o cinema é arte, comunicação e tecnologia. Sua
análise, tanto temática quanto estética, se relaciona a muitas disciplinas, entre
elas, a Semiótica, a Psicanálise e a Antropologia, conforme exposto por Turner
quando se refere ao cinema como prática social.
Embora os estudos sobre cinema estejam estabelecidos em instituições do
mundo todo, estamos agora numa fase crucial de seu desenvolvimento.
O cinema é revelado não tanto quanto disciplina separada mas como um
conjunto de práticas sociais distintas, um conjunto de linguagens e uma
indústria. As abordagens atuais vêm de um amplo espectro de disciplinas
- linguística, psicologia , antropologia crítica literária e história- e
servem a uma série de posições políticas – marxismo , feminismo e
nacionalismo. Mas ficou claro que a razão pela qual queremos estudar o
cinema é porque se trata de uma fonte de prazer e significado para muita
gente em nossa cultura (...) Os teóricos de estudos culturais , recorrendo
particularmente à semiótica , argumentam que a linguagem é o principal
mecanismo pelo qual a cultura produz e reproduz os significados sociais
(TURNER, 1997:49).
A partir da análise sistemática da trilogia ibérica, é possível remontar três
importantes momentos históricos e políticos da Espanha, porque os filmes são
obras contextualizadas e devem ser entendidos a partir da relação com outros
textos culturais, como comentou Turner.
(...) os filmes não são eventos culturais autônomos. Entendemos os
filmes em termos de outros filmes, seu universo em termos de outros
universos. “Intertextualidade” é um termo empregado para descrever o
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modo como qualquer texto de um filme será entendido mediante nossa
experiência ou percepção de textos de outros filmes. (...) Os filmes são,
portanto, produzidos e vistos dentro de um contexto social e cultural que
inclui mais do que os textos de outros filmes. O cinema desempenha uma
função cultural, por meio de suas narrativas, que vai além do prazer da
história (TURNER, 1997: 69).
Porém, vale ressaltar que o cinema não é um simples reflexo da realidade
e que os filmes não copiam a vida cultural nem as pessoas fazem exatamente
o que é mostrado ou sugerido neles. O cinema interage com as outras séries
culturais em um processo de reelaborações mútuas, pois como afirmou Turner,
utilizando o pensamento semiótico, nenhuma linguagem rotula a realidade, e
sim a constrói.
O que a linguagem faz é construir, e não rotular, a realidade. Não podemos
pensar sem a linguagem, portanto, é difícil nos imaginar “pensando”
coisas para as quais não temos nenhuma linguagem. Nós nos tornarmos
membros da nossa cultura por meio da linguagem, adquirimos nosso senso
de identidade pessoal com a linguagem, e é graças a ela que internalizamos
os sistemas de valores que estruturam nossa vida. Não podemos sair do
âmbito da linguagem para produzir um conjunto de significados pessoais
totalmente independentes do sistema cultural. É possível, entretanto, usar
nossa linguagem para dizer coisas novas, articular novos conceitos e
incorporar novos objetos (TURNER, 1997: 52).
A câmera de Luna busca planos fechados e intimistas, rodopia, abre
e fecha-se novamente, com o intuito de devassar as relações humanas, que
servirão de parâmetro de comparação com os dramas políticos, vividos por
seu país de 1936 até a década de 1990, quando a Espanha começa a se liberar
das consequências promovidas pelas amarras do franquismo. Evans (2004: 21)
comenta o caráter irônico e crítico do filme Jamón jamón, que volta os olhos
para o passado e repensa as raízes culturais que permitiram o desenvolvimento
do franquismo na Espanha.
O cinema de Luna, por meio dos seus planos mais fechados e
movimentos livres, desnuda uma Espanha hiperbólica, passional, prestes a
romper com um regime opressor e sufocante. Tal necessidade de liberação
política é representada pelas relações de gênero e pelo erotismo exacerbado,
pelo grotesco, pelo surrealismo, pela conexão entre o ato de se alimentar e o
de se relacionar sexualmente: “Provavelmente, o conjunto de práticas mais
complexo na produção cinematográfica envolve o manejo da própria câmera
(...) O posicionamento da câmera é talvez a mais evidente das práticas e das
tecnologias que contribuem para a realização de um filme”(TURNER, 2009:
57).
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O cinema espanhol como um todo, desde Luis Buñuel até cineastas mais
recentes, trabalha com a questão das estruturas de poder, do governo até a esfera
íntima e familiar.
Um grande insight da filosofia de Michel Foucault, em As palavras e as
coisas (1966), é a sua contemplação do quadro espanhol Las Meninas,
como pretexto para discutir o problema da representação. O pensador
lança um olho de águia sobre as identidades e alteridades da cultura, mas,
sobretudo, decifra as formas do poder e sua visibilidade que emanam
a partir da iconografia na grande tela de Velásquez. E justamente
seguindo este fio, que perpassa a filosofia, a ciência, a arte, a tradição,
a modernidade, percebemos como a história do cinema espanhol, desde
Luis Buñuel & Salvador Dalí (Un chien andaluz, A idade do ouro),
passando por Carlos Saura (Ana e os Lobos, Cria Cuervos, Mamãe faz
cem anos), Pedro Almodóvar (A lei do desejo, Fale com Ela, La mala
educación) até os cineastas mais recentes, faz-se marcada por uma
relação muito íntima com a temática do poder, seja em termos da ciência
política tradicional (focalizando o Estado, os “aparelhos ideológicos”
e as instituições dominantes), ou no enfoque de uma “micropolítica”,
exaltando as “minorias ideológicas”, cujas representações no cinema
têm contribuído para o exercício da ética, cidadania e as estratégias de
politização do cotidiano (PAIVA, 2006: 2).
Na trilogia ibérica, os personagens têm sonhos que se assemelham a
pesadelos. Tete, de A teta e a lua, passa o filme sonhando. Apaixonado pelos
seios de Estrellita, imagina vê-la mostrando-os para ele na padaria. Ao mesmo
tempo, outras duas mulheres sorridentes levantam suas blusas, oferecendo a
ele também os seus seios. Para Tete, tomar leite do seio é a realização do amor
materno, que na opinião dele estava perdido desde o nascimento do irmão. O
surrealismo expresso pelo sonho nos filmes de Luna nos remete aos processos
secundários de narração como classificou Marcel Martin (1963). Entre eles
estão o sonho, a imaginação, a vertigem e a alucinação. A partir de pesadelos e
da capacidade de imaginar, os cineastas desnudam o interior dos personagens,
seus medos, desejos e expectativas.
Se Luna, na trilogia ibérica, utilizo-se muito do sonho para falar da mais
pura realidade, com seus dramas políticos e culturais, é porque num cinema
de qualidade, mais importante que aquilo que vemos é o que é sugerido,
interpretado, como comenta Buñuel apud Xavier (2008: 334).
Aos filmes falta, em geral, o mistério, elemento essencial a toda obra
de arte. Autores, diretores e produtores evitam cuidadosamente perturbar
nossa tranquilidade abrindo a janela maravilhosa da tela ao mundo
libertador da poesia; preferem fazê-la refletir temas que poderiam ser
o prolongamento de nossas vidas comuns, repetir mil vezes o mesmo
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drama, fazer-nos esquecer as horas penosas do trabalho cotidiano. E tudo
isso, como é natural, sancionado pela moral vigente.
Como afirmou Dudley (1989: 191), o cinema deve ser entendido a partir de
um contexto, que considera um complexo sistema de pensamento. Em resumo,
a leis do cinema devem ser consideradas a partir das grandes problemáticas e
correntes de pensamento da Humanidade. Porém, além do entendimento com
base em um complexo contexto, devemos compreender que muitas vezes a mais
pura realidade pode ser mostrada e pensada por meio do irracional, do ilógico e
do onírico, como comentou Dudley a respeito do pensamento de críticos como
Ayfre e Agel, adeptos da filosofia de Sartre, Heidegger e Merleau-Ponty, que
defendiam a arte como uma forma de atingir a liberdade.
O benéfico poder da imagem pode funcionar apenas se a esse processo
é permitido fluir até se completar. Há o perigo, em primeiro lugar, de
nossos censores públicos ou nossa ideologia privada nos impedirem
absolutamente de experimentar a imagem bruta. Quando assistimos a um
filme e chamamos seu tema de ridículo, imoral ou irracional, estamos nos
recusando a nos submeter à imaginação de uma outra pessoa (DUDLEY,
1989: 201).
Na trilogia, os movimentos de câmera, a escolha dos planos, a construção
dos diálogos, a mise-en-scène como um todo, incluindo a movimentação da
câmera, estão relacionados a um conteúdo subjacente que diz respeito aos
posicionamentos políticos de seu autor. Entende-se aqui como político não
apenas as questões referentes ao sistema governamental, mas também, e
principalmente, todo e qualquer aspecto da vida cotidiana de um povo ou grupo
social. A sociedade pode ser pensada segundo as relações familiares e pessoais
e por meio de casos particulares, do relacionamento entre pais e filhos, irmãos,
amigos, amantes ou cônjuges, revelar os mecanismos de poder e de opressão
que permeiam de forma subliminar toda a sociedade. Imagina-se que o filme
político por excelência é o que resgata os horrores de uma ditadura militar ou
remonta o contexto da Segunda Guerra Mundial, por exemplo. No entanto,
obras célebres de cineastas consagrados desnudam os mecanismos de poder
instalados nas microestruturas da intimidade e do privado, mediante as relações
de gênero e familiares, como por exemplo, os filmes de Fellini, Bergman e
Buñuel, entre outros.
A investigação antropológica, subjacente às ciências Humanas, conduzida
sob a inspiração hermenêutica, pressupõe que toda a realidade da
existência humana se manifesta expressa sob uma dimensão simbólica. A
realidade humana só se faz conhecer na trama da cultura, malha simbólica
responsável pela especificidade do existir dos homens, tanto individual
quanto coletivamente. E, no âmbito cultural, a linguagem ocupa um
lugar proeminente, uma vez que se trata de um sistema simbólico voltado
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diretamente para essa expressão (SEVERINO, 2009: 115).
a estética indissociada do conteúdo
Como definiu Edgar Morin (1997), a música é uma presença afetiva nos
filmes. Em A teta e a lua, o amor entre Estrellita e Miguel nasce por intermédio
das canções flamencas cantadas pelo jovem andaluz. Quando Maurice, marido
de Estrellita, tenta subjugar o rival, liga o aparelho de som no volume máximo,
em uma famosa música francesa. Porém, essa presença afetiva é uma construção,
como afirmou Turner:
O emprego da música para significar emoção também é uma convenção,
pois não há nenhuma razão real para a orquestra evoluir num crescendo
durante um abraço. As sequências em câmera lenta geralmente são usadas
para estetizar- embelezar e instilar relevância em temas (TURNER, 1997:
55).
Pela semiótica, toda a significação cultural é construída e esta convenção
inclui o cinema. Todos os elementos que compõe a cena, entre eles, figurino,
cenário, objetos, interpretação dos atores, formam a mise-en-scène; assim,
a significação fílmica é constituída basicamente pela edição e pela mise-enscène. A trilogia ibérica de Bigas Luna conta com uma mise-en-scène bastante
elaborada para remontar três importantes momentos históricos da Espanha.
No cinema, a construção de um universo social é autenticado pelos detalhes
da mise-en-scène Além do mais, a narrativa avança por intermédio do
arranjo de elementos no quadro; personagens podem se revelar para nós
sem se revelar para outras personagens, assim complicando e dando
seguimento à história (TURNER, 1997: 66).
Em Jamón jamón, primeiro filme da trilogia ibérica, Luna parece
simbolizar a Espanha franquista, em que a liberdade sexual é punida e onde
aparece uma grande figura de autoridade: Conchita, a mãe de José Luís. Conchita
é o apelido de quem se chama Concepción e ao mesmo tempo é o diminutivo
de concha, termo popular para designar o genital feminino. Conchita, que traz
um nome ambíguo, também apresenta uma atitude ambígua: reprime o filho
em relação à namorada, por ser filha de uma prostituta, mas comete adultério.
Como comentou Evans (2004: 14), a trilogia ibérica de Bigas Luna se centra no
ser espanhol, nos ritos e símbolos que caracterizam a cultura espanhola.
Em mais de um momento em Jamón jamón aparecem insetos. Numa
cena, um inseto sai do olho perfurado de uma boneca que se assemelha a um
cadáver e nos remete a ideia de necrofilia, tão trabalhada pelo surrealismo. Em
outra, enquanto a protagonista dorme, um inseto a incomoda. Esse, associado
ao sonho, reforça a ideia do surrealismo. Numa das cenas finais, o pai de José
Luís beija Sílvia, namorada de seu filho. Um inseto pousa sobre seu rosto sem
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que ele se incomode. Mais uma vez, parece que a sociedade burguesa, hipócrita,
atada por convenções e máscaras, tão explicitada em Buñuel, explode em Jamón
jamón. A mosca sobre seu rosto tranquilo assemelha-se a um inseto sobre um
cadáver.
Por representar a Espanha franquista que anseia em se libertar, mas que
ainda não tem forças para isso, em Jamón jamón aparecem relações amorosas
impregnadas de simbologia incestuosa. José Luís tem relações sexuais com a
mãe da sua namorada. No final do filme é Sandra, mãe de Sílvia, que abraça o
cadáver de José Luís. O pai do rapaz beija Sílvia, namorada do seu filho. Em
Jamón jamón, os personagens circulam livremente pelo terreno da sexualidade,
no entanto, o final é trágico.
Ovos de ouro, segundo filme da trilogia ibérica, é o mais abertamente
erótico, o que mais choca com simbologias claras de uma sensualidade
exacerbada e muitos objetos que nos remetem à imagens fálicas. A teta e a lua,
o filme que fecha a trilogia ibérica, é o mais poético e apresenta um desfecho
ameno e conciliador.
Jamón jamón se assemelha a um retrato da sociedade franquista.
A sexualidade vivida com liberdade conduz à tragédia. O ex-namorado da
protagonista, inconformado por perdê-la para outro homem, tenta matar o seu
rival. Entretanto, quem morre é ele, a golpes de presunto. O triângulo amoroso
formado por Sílvia, José Luís e Raul termina em tragédia.
Em Ovos de ouro, é desenhada a representação do período que veio logo
após o fim do franquismo: uma histeria gerada pelo excesso de liberdade. A
sexualidade apresentada neste filme é muito explícita não apenas no que diz
respeito às cenas de sexo, como também nos vários símbolos usados para
representar o pênis, entre eles, pedaços de chouriço, banana à milanesa, torres,
prédios altos e portentosos, uma flor com aspecto fálico. O pênis e a sexualidade
são reverenciados nesta obra que já apresenta os genitais masculinos no título.
A cenografia neste filme é um elemento de vital importância, já que é por meio
dela que a liberalização sexual é mais representada, embora em qualquer filme
a cenografia e o figurino não sejam elementos meramente decorativos, como
comentou Turner:
Para estudiosos como Roland Barthes (1973) “linguagem” inclui todos
aqueles sistemas dos quais se podem selecionar e combinar elementos
para comunicar algo. Assim, o vestuário pode ser uma linguagem;
mudando nosso modo de vestir (escolhendo e combinando roupas e
com isso os significados que a cultura atribui a elas) podemos mudar o
que nossos trajes “dizem” sobre nós e nosso lugar na cultura (TURNER,
1997:51).
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Em Ovos de ouro, a extravagância de Benito se reflete nos cenários. Ele
simboliza o espanhol que enterra o franquismo e se entrega a uma liberdade
excessiva nos mais variados âmbitos. A teta e a lua e Jamón jamón decorrem
a maior parte do tempo em espaços abertos: ruas, estradas, descampados. No
entanto, em Jamón jamón o cenário é desolador porque a sexualidade vivida
com liberdade é punida no desfecho da trama.
Em uma cena de Ovos de ouro, por exemplo, quando o personagem
de Javier Bardem, Benito, deseja ter dois pênis para penetrar simultaneamente
a esposa e a amante, ambas começam a se beijar, uma fascinada pela outra,
e tudo que resta a Benito, o protótipo do “machão” latino, é observar. Em
diversos momentos do filme Ovos de ouro o falo é quebrado. Benito realiza
muitas conquistas na vida por meio de seus “ovos de ouro”, de sua habilidade
e potência sexual. No universo de Luna e da Espanha pós-franquista, o falo
dominador e patriarcal é constantemente quebrado, por conta do papel mais
ativo que a mulher assumiu.
Benito, com suas roupas extravagantes, traz à tona o protótipo do latin
lover, do amante espanhol que se impõe pela sexualidade aflorada. Benito
serve de ícone de uma sociedade que estoura garrafas de champanhe após o
falecimento de Franco, como afirmou o cineasta Carlos Saura no documentário
Os herdeiros de Buñuel, de David Le Glanic (2000).
Já A teta e a lua apresenta a sexualidade de uma forma terna e poética.
A história é narrada por um garoto, o que torna a linguagem desse filme mais
suave. Tete, um menino enciumado pelo nascimento do irmão, apaixona-se por
Estrellita, uma bailarina portuguesa casada com um francês. Miguel, um jovem
da Andaluzia, também se apaixona por Estrellita e a moça se torna sua amante,
embora ame o marido. A jovem bailarina, o marido e o amante partem juntos
fazendo apresentações artísticas. Na cena final, Estrellita canta uma música
francesa entre os dois que a acompanham. Ela olha ternamente para ambos e os
três parecem felizes.
A Espanha de A bela da tarde era ainda a Espanha franquista e por
isso foi preciso que o amante da protagonista morresse e que ela fosse
castigada pelo adultério por meio da doença do marido. Em A teta e a lua
não há punições para as personagens que se amam e se perdoam porque
entendem a fragilidade das relações amorosas. Se, por um lado, Estrellita
vive o amor físico com um homem e o espiritual com o outro, apesar da
dissociação, o conflito é muito menor do que o apresentado em A bela da
tarde, porque tal ambiguidade é melhor assimilada (MARQUES, 2009:
100).
Por meio da análise conjunta da estética e do conteúdo e da filosofia lógica
e pática, é possível entender e sentir o cinema como uma ferramenta de análise e
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transformação cultural, de suma importância para combater os efeitos colaterais
oriundos de toda e qualquer estrutura injusta e/ou opressora da sociedade. Neste
artigo, apresentou-se a questão do franquismo e suas consequências na vida
cotidiana exibidas pelo cinema.
Em resumo, o cinema contribui para a transformação cultural, social
e individual. Por tal razão, seu estudo sistemático se faz tão relevante para
usufruirmos todo o seu potencial revolucionário e libertador, expresso por meio
dos seus signos, imagens e narrativas, de forma contextualizada.
metodologia e pressupostos teóricos
O interesse em utilizar a trilogia ibérica de Bigas Luna para mostrar
o cinema como ferramenta de análise e transformação cultural surgiu com a
detecção da escassez bibliográfica sobre o autor e sua filmografia. Pouco foi
produzido sobre os filmes de Bigas Luna no meio acadêmico.
Porém, a obra de Luna, principalmente a trilogia ibérica, apresenta
elementos congruentes com a filmografia dos cineastas Luis Buñuel, Pedro
Almodóvar e Carlos Saura, conhecidos e reconhecidos pelo público e pela
crítica.
Embora os diretores em questão pertençam a épocas e províncias distintas
e apresentem estilos diferentes, a obra dos quatro está ligada pelos grandes
signos da cultura espanhola, como as touradas; a tortilla, a paella, o jamón; a
dança e música flamenca; o conflito entre o sagrado e o profano; a necessidade
de denunciar um regime ditatorial que oprimiu e sufocou importantes parcelas
da cultura espanhola.
Por meio da análise conjunta da estética e das temáticas, este artigo tentou
provar que a obra de Luna, mais especificamente a trilogia ibérica, merece um
olhar atento e cuidadoso dos pesquisadores de cinema, que têm deixado em
segundo plano um diretor relevante sob o viés cultural e estético.
O artigo defende a ideia de que o cinema, por meio de seus signos e
possibilidades desconhecidas, pode despertar simultaneamente o senso crítico
e a afetividade de seus espectadores, estimulando-os a entender e a sentir as
grandes questões da realidade a partir dos filmes.
A pesquisa foi fundamentada por autores adeptos à filosofia deleuziana,
que conciliam as filosofias lógica e pática, como Julio Cabrera, Roberto
Machado, Jorge Vasconcelos e Andrea França.
O cinema, neste artigo, também foi defendido como prática social, por
meio de Graeme Turner. Ou seja, mais que arte e estética a ser apreciada, o
cinema cumpre um importante papel social que inclui o entretenimento e a
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releitura dos signos da sociedade e da cultura por meio dos signos fílmicos.
A narrativa vai além do prazer da apreciação da história, estabelecendo um
diálogo entre diretor e espectador.
Mais do que ler o material acadêmico produzido sobre Bigas Luna (Peter
Evans), foi necessário pesquisar sobre a obra de Buñuel, Saura e Almodóvar
(Hopewell, Marques e Paiva) e mediante o cruzamento de dados, foi possível
identificar que Luna revelou em seus filmes as mesmas preocupações e interesses
dos outros diretores.
considerações finais
O cinema, como os outros meios de comunicação de massa e
manifestações artísticas, serve de ferramenta para analisar os contextos culturais
de seu tempo e em longo prazo promover mudanças, tanto no âmbito individual
como no coletivo. Este artigo, para provar suas ideias, jogou luz sobre o cinema
de Bigas Luna, mais especificamente sobre a trilogia ibérica, por se tratar de
filmes realmente relevantes no sentido cultural que, diferentemente de outras
obras produzidas por artistas conterrâneos, foram subvalorizadas pela crítica e
negligenciadas pelas pesquisas acadêmicas.
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Mathilda May, Gerard Darmon, Miguel Poveda, Biel Duran e outros. Roteiristas:
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35 mm.
JAMÓN JAMÓN. Direção: Bigas Luna. Produção: Andrés Vicente, Manuel
Lombardero e Pepo Sol. Intérpretes: Penélope Cruz, Javier Bardem e outros.
Roteiristas: Cuca Canals, Bigas Luna e Quim Monzó. Lolafilms, Ovídeo TV
S.A e Sogepaq. 1992. 1 bobina cinematográfica (95 min), son, color, 35 mm.
OVOS DE OURO. Direção Bigas Luna. Produção: Andrés Vicente, Manuel
Lombardero e Pepo Sol. Intérpretes: Javier Bardem, Maria de Medeiros,
Maribel Verdú e outros. Roteiristas: Cuca Canals e Bigas Luna. 3 Televisión,
Filmauro S.r.l, Hugo Films S.A, Lolafilms, Lumière, Ovídeo TV S.A. 1993. 1
bobina cinematográfica (95 min), son, color, 35 mm.
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como citar este artigo
MARQUES, Sílvia Cristina Aguetoni. O cinema como ferramenta de análise e
transformação cultural: o franquismo em Bigas Luna. Semeiosis: semiótica e
transdisciplinaridade em revista. [suporte eletrônico] Disponível em: <http://
www.semeiosis.com.br/u/64>. Acesso em dia/mês/ano.
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