Comunicação e Cultura

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Comunicação e Cultura
COMUNICAÇÃO E CULTURA
Coordenação: Paula Jung ([email protected]) / Paula Puhl
([email protected])
Mesa 1 – TECNOLOGIAS DE COMUNICAÇÃO E PRÁTICAS CULTURAIS: DEBATE
TEÓRICO-METODOLÓGICO
Coordenação: Paula Puhl
A NARRATIVA BIOGRÁFICA
E OS ESTUDOS CULTURAIS EM PESQUISAS EM
COMUNICAÇÃO/ CIBERCULTURA
Guilherme Mendes Pereira1
RESUMO
A perspectiva dos Estudos Culturais tem sido uma inspiração teórica para se pensar as
práticas sociais cotidianas e suas produções culturais. Todavia, pesquisas orientadas por
este viés geralmente partem dos interesses do pesquisador que define relevâncias e
hipóteses. Nesse sentido, sugerimos que o apoio teórico da pesquisa com narrativas
biográficas pode dar maior amplitude documental, uma vez que preconiza não colonizar
os sistemas de relevância dos indivíduos e suas intenções de sentido.
PALAVRAS-CHAVE
Metodologia da pesquisa em Comunicação Social. Estudos Culturais. Narrativa
Biográfica. Cibercultura.
THE BIOGRAPHICAL NARRATIVE AND CULTURAL STUDIES IN
COMMUNICATION / CYBERCULTURE RESEARCH
ABSTRACT
The prospect of Cultural Studies has been a theoretical inspiration to think about
everyday social practices and their cultural productions. However, research guided by
this bias generally begin by the interests of the researcher who defines relevance and
assumptions. In this sense, we suggest that the theoretical research support with
biographical narratives can give us more documentary range as it advocates not colonize
the systems of importance of individuals and their meaning intentions.
KEYWORDS
Research Methodology in Social Communication. Cultural Studies. Biographical
narrative. Cyberculture.
1
Doutorando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS) e analista (webdesigner) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Contato:
[email protected]
1
1. Introdução
Estudos sobre as implicações das mídias nas relações sociais e produções culturais têm
crescido nos últimos anos.
Destaque para as pesquisas em cibercultura, que têm
ganhado espaço e relevância no contexto acadêmico, principalmente no âmbito da
Comunicação Social.
Com a popularização das redes digitais de comunicação a partir da década de 1990, a
cibercultura, paulatinamente, começou a integrar o cotidiano de muitos. Relações
sociais e práticas culturais passaram a acontecer em um ambiente interligado
globalmente, o chamado ciberespaço, o qual borrou as percepções dos indivíduos e as
fronteiras entre o “real” e o “virtual” e (ROCHA; MONTARDO, 2005).
Em meio a essas transformações e ao surgimento de fenômenos sociais diversos foi
necessária a adaptação de metodologias de pesquisa pré-existentes às novas
especificidades (e até mesmo a criação de novas). Por exemplo: a fenomenologia
(LEMOS, 2010), os Estudos Culturais (WINOCUR, 2009), a etnografia (FRAGOSO;
RECUERO; AMARAL, 2011) e mais recentemente a chamada netnografia (ver
ROCHA; MONTARDO, 2012). Todavia, a aplicação destas (e outras tantas)
metodologias parte, de forma geral, de hipóteses iniciais e ruma para a análise
fundamentada do objeto de pesquisa. Objeto este conformado com base em
documentações amplas e distanciadas. Por exemplo, ao se analisar determinado
comportamento atrelado às redes sociais digitais, observa-se sumariamente o registro
nas redes e associa-se isso a teorias. Os pontos de vista e relatos dos indivíduos que
constituem os fenômenos estudados são normalmente desconsiderados.
Defendemos, nesse sentido, a necessidade e relevância do uso do aporte culturalista –
que é constituído e aberto à interdisciplinaridade teórica e metodológica – aliado a
pesquisa com narrativas biográficas, como uma pertinente ferramenta que pode vir a
enriquecer o entendimento de fenômenos sociais e comunicacionais, pois pode fornecer
ao pesquisador um insumo de análise mais amplo e aproximado das realidades
estudadas, pois conta com o ponto de vista e sentidos informados pelos indivíduos que
participaram e configuraram os fenômenos em questão. Uma pesquisa assim, jamais
partirá de uma certeza, mas será caracterizada pelo imprevisto e pela descoberta de
novas hipóteses ao longo do seu projeto e a partir da construção e análise do corpus.
2. Os Estudos Culturais
2
O campo dos Estudos Culturais (EC) teve início na Inglaterra, no período pós-guerra.
Seu objetivo: apontar os antagonismos entre cultura e democracia. Desde seu início
estes estudos têm mostrado preocupação em analisar artefatos das culturas de massa e
popular e as práticas cotidianas, sem julgá-los em relação às produções culturais
consideradas clássicas ou “canônicas”. Nessa perspectiva, a noção de cultura passa a ser
pensada por meio de uma compreensão antropológica: consideram-se todas as
produções culturais válidas, inclusive as práticas do dia-a-dia e as inúmeras formas de
manifestação das diferentes classes sociais, explica Escosteguy (2010).
Silva (1999b) afirma que dessa forma foi possível que a cultura começasse a ser
percebida como um campo de batalha em torno da significação, no qual grupos sociais
diversos, com modos de vidas e contextos distintos, lutam para estabelecer sentidos.
Para Stuart Hall (1997a), um dos autores precursores dos EC, cultura é entendida um
conjunto de práticas sociais, resultantes dos inúmeros e variados sistemas de
significação e comunicação que os homens se valem para atribuir significados às coisas
e para codificar, instituir e regular suas relações.
Teorizações nesse tom passaram a conferir destaque a questões de identidade, de
gênero, raciais e éticas, para citar alguns exemplos. Silva (1999a) destaca aí o
envolvimento político dos EC que tem por premissa intervir na existência política e
social, opondo-se a imparcialidade em prol da crítica às relações de poder, em benefício
dos grupos marginalizados. Foi desta forma que a cultura passou a assumir uma posição
central em muitas discussões acadêmicas.
Os EC ganham fôlego em uma época a qual muitos rotulam de Pós-modernidade. Peters
(2000) afirma que nesse período passou-se a desconfiar das grandes verdades e
narrativas fundacionais, legitimadas por instituições e que imperavam no paradigma da
modernidade. Para ele, no momento pós-moderno, passou-se a dar maior ênfase à noção
de que o sujeito é social, histórica e discursivamente construído. Ou seja, não há um
núcleo ou essência que permita dizer o que ele é. Daí passa a existir um maior enfoque
nos processos de constituição das identidades e subjetividades.
O pós-estruturalismo enquanto uma importante perspectiva teórica para os Estudos
Culturais, segundo Peters (2000), foi adotado inicialmente nas universidades
estadunidenses para designar correntes teóricas diversas tanto em termos de temáticas
como em focos de análises, mas que partilhavam de inspirações em comum,
configurando uma “atitude pós-estruturalista”. Compete aqui comentar que esta vertente
3
se constituiu a partir do estruturalismo2, no que ficou conhecido como a virada
linguística.
Do ponto de vista pós-estruturalista, entendemos que a linguagem constitui seus
próprios produtos, sendo estes inerentes à malha linguística e discursiva que os define.
O sujeito, por exemplo, seria constituído pela linguagem, não sendo assim a fonte de
sua enunciação. O pós-estruturalismo mantém em comum com o estruturalismo o foco
na linguagem enquanto um sistema de significação. Todavia os processos de produção
de sentido passam a ser entendidos como fluídos, indeterminados, incertos e nunca
definitivamente estabelecidos (SILVA, 1999a).
Ao destacar a ação constitutiva da linguagem além da comunicativa, modificou-se a
compreensão do seu papel na cultura e sociedade, e passou-se a questionar a relação
entre a mesma e o que entendemos por “realidades”. Percebendo que os significados das
coisas não são naturais ou intrínsecos as mesmas, ou seja, eles seriam fruto da forma
como elas são socialmente elaboradas por meio da linguagem, as hipóteses com
sentidos definitivos ou absolutos, tomadas em relação ao que percebemos no mundo ao
nosso entorno se tornam questionáveis. Em meio a estes jogos culturais e de sentido,
acabamos por perceber que os “fatos naturais” são antes acontecimentos discursivos.
Essa atitude estimulou novas reflexões em torno da centralidade que a cultura adquiriu
nas análises socioculturais. Qualquer prática social inclui e depende dos modos como os
significados são estabelecidos (ibid.).
Um dos exemplos de discussões inserida nos EC de inspiração pós-moderna e pósestruturalista, assinalados por Silva (1999a), diz respeito à tentativa de compreensão das
relações de gênero, destacando os aspectos culturalmente fabricados do fenômeno de
diferenciação entre homens e mulheres. Sob a perspectiva teórica dos EC, as
identidades sexuais seriam construídas discursivamente e não determinadas pela
fisiologia dos corpos. A noção de gênero pautada somente nas características biológicas
é deste modo questionável. Com base nisso abre-se margem para debates acerca dos
processos culturais que acabam por produzir desigualdades e jogos de valoração a partir
dos estereótipos marcados para cada gênero. Os estudos com base na teoria Queer3, por
exemplo, partem do argumento de que a identidade não pode ser restrita unicamente à
biologia, e está sujeita a processos históricos e culturais de construção discursiva. Como
2 Corrente teórica que foi idealizada no campo da linguística por Ferdinand de Saussure e Roman Jacobson.
3 Extrapola os questionamentos de identidade construídos pelas teorias feministas e trabalha também os gêneros “estranhos”, como
o gay e a lésbica, por exemplo, que transgridem o que se tem instituído por “normal”, “moral” e “certo”, explicam Silva (1999a) e
Louro (2001).
4
argumentam Silva (ibid.) e Louro (2001) em seus estudos, o gênero e sexualidade são
construídos e reiterados pelas práticas e discursos, elaborados dentro dos inúmeros
grupos socioculturais em um processo que integra um jogo de constantes
transformações e reiterações de significados e valores ao longo dos contextos históricos.
Na atualidade, mais do que nunca, com esses grupos identitários em maior destaque,
torna-se importante percebermos como são articuladas as ditas posições de
“normalidade” e “diferença” e os significados construídos a partir destas.
Disposto esse breve sumário acerca da perspectiva da vertente pós-estruturalista dos EC,
tentamos apresentar na sequência algumas elucubrações gerais sobre a pesquisa
qualitativa nas Ciências Sociais, e, mais especificamente, a metodologia da pesquisa
com narrativa biográfica.
3 A pesquisa com Narrativa Biográfica
Na pesquisa em Comunicação Social, assim como na pesquisa em Ciências Sociais, é
usual o desenvolvimento de estudos de cunho empírico. Esse tipo de pesquisa pode ser
trabalhado por meio de métodos qualitativos ou quantitativos. Rosenthal (2014) em seu
livro Pesquisa Social Interpretativa: uma Introdução articula uma clara distinção entre
estes diferentes métodos, aprofundando o seu estudo no viés teórico-metodológico
qualitativo e interpretativo.
Tomando como base o objeto de investigação, o método qualitativo e interpretativo vai
explorar este para a descoberta de teorias e hipóteses. Ao contrário das pesquisas em
Ciências Exatas (e do que acontece em muitos estudos nos campos das Ciências Sociais
e Humanas), que partem de hipóteses fechadas e concentram os esforços durante a
pesquisa para comprová-las, os métodos qualitativos e interpretativos possuem roteiros
incertos e suscetíveis a mudanças, dado que durante esse tipo de pesquisa os enfoques e
escolhas são norteados pelas particularidades e relevâncias encontradas nos objetos
estudados (leia-se sujeitos integrantes e constituintes dos fenômenos sociais).
Deste modo, nesse tipo de pesquisa é necessário haver uma adequação entre o método
de coleta do corpus, o material documentado e a concatenação entre estes e o viés
teórico, de forma que possibilite a investigação de algo possivelmente inédito e a
reconstrução de sentidos objetivos bem como a percepção de sentidos subjetivos
adjacentes aos mesmos, explica Rosenthal (2014).
O viés interpretativo nas Ciências Sociais incide com o desenvolvimento de tradições
intelectuais
como
a
sociologia
compreensiva
de
orientação
metodológica
5
fenomenológica de Max Weber, que foi aperfeiçoada posteriormente por Alfred Schutz
e que teve derivações importantes como a pesquisa social comunicativa de Fritz Schütze
e a Gounded Theory de Barney Glaser e Anselm Strauss (ibid.).
Conforme Costa (2009), a sociologia compreensiva fundada por Weber, em seu cerne,
se abstém do entendimento da sociedade enquanto um objeto fechado regido por
verdades absolutas. Os interesses nessa perspectiva passam a ser recortes da realidade
histórica-social, visto que os fenômenos socioculturais se transformam a todo momento
em função de diferentes e variáveis facetas oriundas das individualidades (as unidades
que compõem o tecido social). E são essas individualidades que detém significação e
importância para a sociologia compreensiva. O relevante nesse tipo de perspectiva é o
entendimento de particularidades sociais e não a inserção do estudo desenvolvido em
um sistema científico canônico. Empreende-se, assim, a compreensão de ações dos
indivíduos e das consequências destas, e, a partir de interpretações, tenta-se pensar a
construção dos chamados tipos-ideais. É importante salientar que as ações sociais
individuais só fazem sentido para sociologia compreensiva na medida em que estão
orientadas ao comportamento da sociedade.
O autor (ibid.) informa ainda sobre as contribuições de Alfred Schutz para a sociologia
compreensiva em relação à produção de sentido. Para este último, o agente sempre
atribui significado as suas ações. E são estes significados que se propõe compreender
por meio da sociologia compreensiva.
Explicada, de forma breve, a relevância em se tentar compreender as micro-relações
sociais e as individualidades para o entendimento de fenômenos sociais amplos, e com
base nessa orientação teórico-metodológica da sociologia compreensiva, destacamos a
importância de Fritz Schütze (2010), o qual empreendeu esforços na pesquisa biográfica
por meio do método da entrevista narrativa.
Em linhas gerais, esse método, partindo de uma temática ampla, propõe a escolha de
indivíduos (atrelados ao tema em questão) para a elaboração de entrevistas narrativas.
Por exemplo, ao se empreender a compreensão do fenômeno de conformação de
identidades sexuais e a questão do transtorno de gênero, seria relevante trabalhar com
narrativas biográficas de indivíduos transgêneros ou transexuais. Apesar de partir de um
interesse temático, o material coletado (uma documentação histórica abrangente da vida
de alguns indivíduos) resulta, potencialmente, em algo tão amplo que é passível de ser
aproveitado em pesquisas em temáticas variadas.
6
Schütze (2010) orienta que na entrevista narrativa não se deve partir de roteiro algum.
Convida-se o entrevistado/informante, em um primeiro momento, a relatar sua
biografia. Essa história serve como substrato inicial para o entrevistador pontuar
dúvidas ou questões relacionadas à mesma. Após o término da narração, o entrevistador
pode lançar questões pontuais que levem o entrevistado a explicar pontos nebulosos de
sua história, ou a complexificar determinadas situações. A espontaneidade e o
improviso narrativo são cruciais, pois só assim temos uma reconstrução narrativa
sensível de um ser humano que vivenciou e que, agora, lança sua percepção subjetiva a
luz do relato biográfico. Só após o esgotamento da narrativa é que o entrevistador
poderá, digamos assim, minar o fluxo narrativo do informante, esmiuçando a narrativa
por meio de relações exteriores correlatas ao mundo narrado. Pode-se, por exemplo,
lançar questões sobre a teorização do entrevistado. Ao fim, é possível levantar dúvidas
de curiosidade pessoal do entrevistador: como e por que tais eventos aconteceram, o
porquê de o informante ter se comportado de tal forma, etc. Com isso pode-se obter
comentários argumentativos suplementares a narrativa.
Rosenthal (2014), que trabalha com maior rigor metodológico em relação à Schütze, na
pesquisa biográfica com entrevista narrativa, destaca, dentre os fundamentos da
pesquisa social interpretativa, o princípio comunicacional, segundo o qual as sociedades
são interpretadas e constituídas por meio de interação – articula, nesse sentido, teorias
de Alfred Schutz e Erving Goffman –; e destaca o princípio de abertura na
documentação e análise do corpus. Este deverá gerar hipóteses, não o contrário. Ênfase
para a provisoriedade das hipóteses que estarão condicionadas à compreensão do objeto
de análise, ou seja, a compreensão da historicidade do indivíduo objetivamente inserido
na sociedade, e subjetivamente constituído pela mesma.
A autora (ibid.) explica que nesse tipo de estudo o pesquisador acaba tendo que
reconstruir objetivamente e reinterpretar subjetivamente os fenômenos sociais
estudados. Na entrevista narrativa, segundo a socióloga, o objetivo é acessar a visão de
mundo do entrevistado, tornando-a referência no estudo. Isso faz sentido na medida em
que compreendemos que o objeto de estudo em pesquisas sociais é um ser humano
senciente e pensante, historicamente configurado e socialmente atuante. Sob essa
perspectiva refutam-se as hipóteses totalizantes, de uma sociedade coesa e atuante de
forma mais ou menos uniforme e previsível. Com isso, também, passa-se a considerar
todos os indivíduos, suas biografias, e relações como importantes e fundamentais ao
7
curso das sociedades, e, consequentemente, cruciais na conformação dos fenômenos
estudados.
Em relação à análise do conteúdo biográfico, documentado através das entrevistas
narrativas, Rosenthal (2014) explicita a teoria fundamentada (grounded theory).
Conforme este viés busca-se entender uma situação e o motivo de seus participantes
agirem de determinada maneira, bem como saber o porquê de o fenômeno em questão
ter tido tal desfecho. Para isso compara-se, codifica-se e identificam-se pontos em
comum nos materiais documentados. Hipóteses e teorias acabam por emergir dessa
análise sistemática. Ao cabo, os dados terminam por sustentar as teorias e hipóteses
desenvolvidas.
4 Conclusão: uma aproximação entre metodologias
Tendo em vista que o objeto de análise nas Ciências Sociais e Comunicação Social são
compostos pelas relações de indivíduos pensantes, dinâmicos e que, constantemente,
lutam por significação, transformando suas práticas sociais e culturas a todo o
momento, fica evidente a necessidade de romper com o paradigma vigente
institucionalizado: de tratar seu objeto de estudo (os fenômenos sociais) enquanto algo
fixo e uniforme, e que pode, em tese, ser observado de forma genérica e distanciada.
Por meio dos EC, através de análise de produtos culturais, podemos empreender estudos
sobre questões atreladas a vida cotidiana, identidade, relações de poder, produção
cultural e de sentido (HALL, 1997a, 1997b, 1997c; SILVA, 1999a; ESCOSTEGUY,
2010). Todavia, em muitos estudos inspirados por este viés, parece faltar a perspectiva
dos produtores dessas práticas e culturas. Nesse sentido, o aporte teórico-metodológico
da pesquisa biográfica com entrevista narrativa pode vir a complementar de forma
enriquecedora as pesquisas culturalistas. Ao invés de lançar reconstruções
interpretativas atreladas a percepções distanciada do pesquisador, como ocorre
tradicionalmente, pode-se contar com relatos mais fidedignos (obviamente não livres de
subjetividade), que podem colaborar com o entendimento dos significados imanentes as
práticas e produtos culturais estudados.
Trazendo novamente a referência ao fenômeno social do transtorno de gênero e da
percepção do corpo potencializados pelos cibermeios e produções culturais nas redes
digitais, por exemplo, além de podermos analisar, sob o enfoque culturalista, seus
desdobramentos mais aparentes, como, por exemplo, manifestações e interações
registradas em redes sociais, comentários textuais, vídeos e imagens; podemos
acrescentar a isso narrativas biográficas de indivíduos que experenciam e participam do
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contexto estudado. Por meio da análise de algumas narrativas de histórias de vida
podemos ter um respaldo e arcabouço teórico importante para o melhor entendimento
dos produtos culturais e práticas problematizadas.
Evidencia-se, com essa aproximação, a apreensão e compreensão de problemas sociais,
e a partir das análises, possivelmente, pode-se instigar reflexões e ações para promover
mudanças. Consegue-se, com isso, uma aplicação social mais efetiva dos esforços e
recursos empreendidos no desenvolvimento da pesquisa indo além de elucubrações
teóricas mais generalistas e abstratas, usualmente restritas ao ambiente acadêmico.
Procuramos neste breve texto argumentar sobre a relevância da aproximação dos
referidos vieses teórico-metodológicos como uma forma de romper com paradigmas de
pesquisa vigentes no âmbito da Comunicação Social/cibercultura. Sugerimos, em
pesquisa futuras, um aprofundamento mais detalhado acerca da aproximação entre os
EC e a metodologia de pesquisa com narrativa biográfica, bem como a montagem de
um escopo metodológico mais aprofundado para a aplicação em temas e objetos de
pesquisa em Comunicação Social/cibercultura.
Referências
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9
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Autêntica, 1999b.
WINOCUR, Rosalia. Robinson Crusoe ya tiene celular. México: Siglo XXI, 2009.
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Cultura Popular X Redes Sociais: As novas
apropriações da rede
Francinete Louseiro de Almeida4
RESUMO
O artigo estuda as novas apropriações da conversação em rede. O objeto de estudo
escolhido é o facebook do grupo folclórico maranhense, Bumba – boi - de – Morros.
Apresenta-se uma fundamentação sobre o folclore e, em seguida, o histórico do referido
grupo. É desenhada uma conceituação de alguns termos das novas tecnologias em
comunicação como: cibercultura, convergência, rede social, conversação e apropriação
PALAVRAS – CHAVE: Comunicação Social; Redes Sociais e Conversação em rede
INTRODUÇÃO
O folclore é um tema de enorme abrangência e inesgotável potencial como
objeto de estudo, razão pela qual continua sendo um campo relevante de pesquisa. Não
se pode descartar o fato de que o folclore é a memória viva de um povo, pelo contrário,
é preciso reafirmar cada vez mais essa tradição para que se resgate todo um princípio e
constituição de uma sociedade. Nesse sentido, a comunicação, e em especial falando
agora, as novas tecnologias de comunicação, são de total importância, visto que elas não
somente pensam no tempo presente e criam estratégias para a divulgação dessas
tradições, mas também criam formas e maneiras de fazer com que essas tradições sejam
guardadas e lembradas.
O presente artigo é um recorte da pesquisa que trabalha na perspectiva de
entender, através do olhar de uma administração pública e pelos seus profissionais da
comunicação organizacional, as estratégias de comunicação utilizadas no evento São
João do Maranhão, que identificam e representam um determinado povo, a saber, em
específico, o povo maranhense. Como a pesquisa parte da perspectiva de entender a
comunicação do evento como um todo, neste artigo será estudado apenas as estratégias
de comunicação utilizadas por um grupo que compõe o folclore maranhense. E para o
estudo abordaremos essa comunicação na área digital, as formas e as inovações que são
trazidas por essa área para que os grupos folclóricos possam divulgar os seus trabalhos.
4
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense - UFF; Doutorando em
Comunicação pela Pontifícia Universidade Católica – PUCRS; Professora do Departamento de
Comunicação da Universidade Federal do Maranhão
–
[email protected];
[email protected]
11
O FOLCLORE
Inicia-se esta fundamentação teórica destacando que toda sociedade é
identificada e reconhecida também pelas suas atrações folclóricas. De acordo com a
Carta do Folclore Brasileiro, podemos conceituar o Folclore como:
Folclore é o conjunto das criações culturais de uma
comunidade, baseado nas suas tradições expressas individual
ou coletivamente, representativo de sua identidade social.
Constituem-se fatores de identificação da manifestação
folclórica: aceitação coletiva, tradicionalidade, dinamicidade,
funcionalidade. (COMISSÃO NACIONAL DE FOLCLORE,
1995, p. 01)
Nessa conceituação, nota-se que o folclore é a expressão de tradições, de forma
coletiva ou individual. Essas expressões nos remetem a uma representação de identidade
social, uma identificação do que somos, do que fomos e do que seremos. Assim, por
meio das manifestações folclóricas, percebem-se tradições e construções, origens,
crenças, símbolos, modos e costumes de um povo. No Brasil, a Congada, em Minas Gerais; o Boi – Bumbá no Amazonas; a Farroupilha, no Rio Grande do Sul; o Maracatu,
em Pernambuco; a festa do Sírio de Nazaré, no Pará; as Cavalhadas, no Espírito Santo;
o Carnaval, no Rio de Janeiro e o Bumba – meu - boi no Maranhão, entre tantas outras,
são festas folclóricas representativas da identidade cultural do país, uma tradição que é
cultivada e reconstruída a cada período festivo.
A identidade de um povo é constituída por todo um patrimônio de referências
simbólicas que justificam, reafirmam e alicerçam o seu viver e constituem os cenários
que são formadores dos imaginários sociais. Para Baczko (apud LIMA, 2004, p. 179)
Os imaginários sociais constituem [...] pontos de
referência no vasto sistema simbólico que qualquer
coletividade produz e através do qual [...] ela se percebe,
se divide e elabora os seus próprios objetivos. É assim
que, através dos seus imaginários sociais, uma
coletividade designa a sua identidade; elabora certa
representação de si; estabelece a distribuição dos papéis e
das posições sociais; exprime e impõe crenças comuns;
constrói uma espécie de código de “bom
comportamento”, designadamente através da instalação
de modelos formadores.
Tais concepções levam-nos a afirmar que os imaginários sociais se estabelecem
nos e pelos cenários de representação social, nos quais os indivíduos, além de
designarem a sua própria identidade, constituem ainda as representações de si e do
mundo que os rodeia. Nesse contexto, os processos de comunicação são poderosos
construtores de imaginários sociais, tornando-se fortes construtores da sociabilidade.
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Pelo exposto, pode-se afirmar que o objeto de estudo deste artigo, o Bumba Boi
de Morros, é uma brincadeira do São João do Maranhão e constitui-se num cenário de
representações e imaginários sociais. Neste espaço, criam-se identidades, elaboram-se
representações e impõem-se crenças. É oportuno destacar que, nas sociedades
modernas, a tradição se nutre da contemporaneidade dos meios de comunicação, tendo
em vista que, cada vez mais, as manifestações tradicionais ou folclóricas são também
midiáticas. Nesse contexto, das interações que decorrem do processo que retira a
manifestação folclórica do seu lugar de origem e a reporta ao mundo, estão imbricadas
as dimensões empresariais (o folclore se torna um negócio); as dimensões políticas,
sobretudo pela ingerência do poder público (no caso do Maranhão, o poder executivo
tem participação bastante acentuada nas manifestações culturais), além, claro, da
dimensão sociocultural.
Nessa dimensão sociocultural, e entendendo como a sociedade desenvolveu sua
cultura ao longo do tempo, podemos pensar as novas formas de se comunicar e de criar
as relações sociais. Na atual sociedade novas configurações aparecem e se concretizam.
Com a pós-modernidade, um novo ambiente de comunicação entra em cena, e já se fala
nas novas tecnologias de comunicação.
O que chamamos de novas tecnologias de comunicação e
informação surge a partir de 1975, com a fusão das
telecomunicações analógicas com a informática, possibilitando
a veiculação, sob um mesmo suporte – o computador -, de
diversas formatações de mensagens. (LEMOS, 2010, p.68)
É nesse novo ambiente que este artigo pretende entender as formas utilizadas por
um grupo do folclórico maranhense, o Bumba Boi de Morros, o qual será apresentado
no próximo ponto.
O BUMBA BOI DE MORROS
O Bumba - meu - boi de Morros foi fundado no dia 23 de junho de 1976. O
grupo foi fruto de um trabalho educativo da professora Terezinha Bacelar juntamente
com os professores e amigos: Maria Marlene Ferreira Lobato (principal idealizadora),
Maria Aparecida Ferreira Lobato, Maria do Socorro Araújo Ferreira, José Ribamar
Muniz Lobato e Valter Ferreira, da Escola Normal Monsenhor Bacellar. Esse trabalho
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tinha como objetivo recuperar uma tradição do início do século que estava esquecida na
região do Munim, município de Morros no estado do Maranhão.
O primeiro nome do grupo foi Alegria dos Estudantes e após um período de
paralisação das atividades, Zuza Lobato, organizador de diversos tipos de festejos e
amante do Bumba – meu - boi, juntamente com sua esposa Maria Izabel Muniz Lobato,
fizeram ressurgir o Bumba – meu - boi de Morros, agora com o nome de Sonho
Realizado. Zuza Lobato esteve à frente da brincadeira até o ano de 1981, pois veio a
falecer em 1982, ano em que a brincadeira não se apresentou. Porém em 1983 a
brincadeira retorna tendo como diretores a viúva, dona Maria Izabel Lobato, e o seu
filho, José Carlos Muniz Lobato.
O atual Bumba – boi – de – Morros gravou seu primeiro disco vinil no ano de
seu retorno, em 1983. De lá pra cá, a brincadeira já gravou vários Cd’s e se apresentou
em vários lugares do país e do mundo, inclusive em festivais no Japão e na Alemanha. .
A brincadeira que começou na cidade de Morros, hoje já conta com mais de 160
brincantes e se caracteriza principalmente pelas inovações que são propostas todos os
anos. Essa é uma característica desse grupo folclórico, que sempre tenta inovar e
aprimorar dentro do folclore maranhense, inclusive no que tange às suas formas de
comunicação e divulgação, pois foi um dos primeiros grupos a aderir às novas
tecnologias de comunicação com a criação de seu site e a utilização de redes sociais,
como Twiter e facebook.
AS NOVAS CONFIGURAÇÕES EM COMUNCAÇÃO
Na metade do séc. XX várias modificações foram percebidas na sociedade e isso
afetou diretamente os meios de comunicação. Com o advento da internet a informação é
percebida de forma bidirecional entre grupos e indivíduos. Muitos teóricos discutem o
assunto, pois de certa forma a estrutura de poder midiático massivo convencional é
abalado e considera- se agora a cibercultura.
A cibercultura será uma configuração sociotécnica onde haverá
modelos tribais associados às tecnologias digitais, opondo-se
ao individualismo da cultura do impresso, moderna e
tecnocrática. Com a cibercultura, estamos diante de um
processo de aceleração, realizando a abolição do espaço
homogêneo e delimitando por fronteiras geopolíticas e do
tempo cronológico e linear, dois pilares da modernidade
ocidental. (LEMOS, 2010, p. 72)
14
Entre as principais características da cibercultura encontra-se a descentralização
e a interatividade. Na era da cibercultura espaço e tempo são reconsiderados. A
tendência não será mais da utilização do espaço homogêneo, onde as informações são
veiculadas de forma linear com o objetivo de alcançar o maior número de público. Da
mesma forma, o tempo agora é primordial, pois nessa nova configuração, onde as
telecomunicações se juntaram com a informática, as informações ganham velocidade na
divulgação e tem-se agora o período da instantaneidade.
Com a aceleração da informação, seja através do espaço ou do tempo, os
conteúdos da comunicação são repensados, pois as informações não chegam apenas
através dos meios formais de comunicação, elas se propagam também com a utilização
de computadores interligados em forma de rede pela internet. Esses conteúdos são
replicados por várias plataformas de mídia, pois se chegou a era da convergência.
Por convergência, refiro-me ao fluxo de conteúdos através de
múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos
mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos
públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer
parte em busca das experiências de entretenimento que
desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir
transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e
sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam
estar falando. (JENKINS, 2009, p. 29)
A convergência trouxe uma mudança cultural bem marcada, o consumidor agora
é ativo, ele vai atrás das informações, e para isso, fica à vontade para escolher qual
plataforma mais lhe interessa nesse novo sistema de mídias. Fazendo um paralelo com o
objeto de estudo desse trabalho, nota-se que o Bumba Boi de Morros esta em diferentes
plataformas midiáticas. Eles hoje se utilizam do facebook e do Twitter, além do que,
possuem o seu próprio site. O grupo percebeu a necessidade de alcançar os seus
públicos através desses meios de comunicação, e isso só reafirma o que o autor nos diz,
quando ele afirma sobre um comportamento migratório que vai a busca das experiências
de entretenimento que desejam.
Como o objetivo desse artigo será estudar a utilização das redes sociais por um
grupo da cultura popular e entendendo aqui, que as mudanças que ocorreram na pósmodernidade trouxeram o advento da cibercultura e o fenômeno da convergência
explicando essa busca por terrenos midiáticos diferentes, cabe agora entender as redes
sociais e como acontece a conversação na rede.
Para se conhecer primeiro a rede social utiliza-se os estudos de Recuero: “Uma
rede social é definida como um conjunto de dois elementos: atores (pessoas, instituições
ou grupos; os nós da rede) e suas conexões (interações ou laços sociais)” (RECUERO,
15
2011, p. 24). Importante perceber nesse conceito os dois pontos principais: Pessoas &
Conexões. As redes sociais são constituídas de pessoas e das conexões estabelecidas por
elas. A palavra rede é usada como forma de se entender as conexões que são formadas
e como se torna impossível separar essas conexões. Através da rede percebe-se como se
formam as estruturas sociais, ou seja, as estruturas sociais são formadas pela
comunicação mediada por computadores, que cria através da conversação as relações
entre os indivíduos.
Para definir conversação, utiliza- se aqui o conceito trazido por RECUERO
A conversação é, portanto, um processo organizado, negociado
pelos atores, que segue determinados rituais culturais e que faz
parte dos processos de interação social. Não se trata apenas
daqueles diálogos orais diretos, mas de inúmeros fenômenos
que compreendem os elementos propostos e constituem as
trocas sociais e que são construídos pela negociação, através da
linguagem, de contextos comuns de interpretação pelos atores
sociais. (RECUERO, 2012, p.31)
A conversação da qual o conceito se refere, diz respeito a que acontece na
comunicação mediada por computador. Essa conversação se utiliza de um conjunto de
práticas sociais e de uma linguagem digital capaz de estabelecer as interações. É
somente através da conversação que pode haver as interações e onde se realizam as
relações sociais no ciberespaço. Essa conversação só é possível porque ela em si se
organiza e cria suas estratégias. Só haverá interação se houver comunicação, e não são
apenas diálogos orais, são formas e estratégias de se comunicar que foram criadas e
institucionalizadas no ciberespaço.
É importante que se diferencie conversação de comunicação mediada por
computador. A conversação são apropriações; são formas de utilização das ferramentas
da comunicação mediada por computador. O que se vê hoje nas redes sociais são essas
formas de apropriações, que geram as relações e interações. Lemos define apropriação
como:
...a apropriação como a essência da cibercultura. Para o autor, a
apropriação é o produto do uso da tecnologia pelo homem,
tendo duas dimensões, uma simbólica e uma técnica. É nesse
sentido que também utilizamos o conceito aqui. A apropriação
técnica compreende o aprendizado do uso da ferramenta. A
simbólica compreende a construção de sentido do uso dessa
ferramenta, quase sempre de forma desviante, ou seja, com
práticas que vão sair do espaço de design de uso desta.
(LEMOS apud RECUERO, 2012, p.35)
A partir do conceito de Lemos que se entenderá a utilização do facebook pelo
grupo folclórico Bumba Boi de Morros. As conversações se apropriaram das
ferramentas dessa rede social nos dois sentidos colocados pelo autor, no sentido técnico,
16
porque existe alguém que alimenta a página e compreende o uso da ferramenta, e a
apropriação simbólica, que é bem percebida, pois é dado um sentido para as postagens e
conversações que até então são elaboradas pela brincadeira. A seguir serão apresentadas
as formas e utilizações do facebook do Bumba Boi de Morros.
ANÁLISE DO FACEBOOK DO BUMBA BOI DE MORROS
Num grupo folclórico, como o citado neste artigo, é preciso toda uma estrutura
para que a brincadeira aconteça e essa estrutura não é apenas física, mais
principalmente, humana. Existe um grupo de pessoas envolvidas nesse grupo que já
criam as conexões. Essas conexões, que no caso específico, parte de pessoas reais e se
transfere para as conexões na rede, com pessoas que não possuem proximidade física,
só acontecem porque independente da aproximação, existem laços sociais que dão a liga
nessa conexão e de certa forma criam as interações.
Parte-se desse princípio para que aja um entendimento aqui do que iremos
apresentar. A estratégia do grupo folclórico analisado é justamente criar um clima de
interação perante aqueles que são o seu público, mesmo antes do período de suas
apresentações. Além da divulgação de um trabalho, criam-se várias conexões com
aqueles que admiram a brincadeira, todos se sentem participantes também, pois
acompanham passo a passo as realizações do grupo.
Apesar de que o espaço não nos permitirá apresentar aqui todas as publicações
importantes que relata o que esta sendo dito, será feita uma espécie de linha do tempo
para mostrar um pouco do que foi abordado. Como informação inicial o Facebook do
Boi de Morros possui 4660 amigos
Publicação de 05 de janeiro que apresentou o tema da brincadeira para o ano de 2015.
17
Publicação do dia 20 de janeiro. Não traz nenhuma informação sobre o grupo em si,
mas faz uma homenagem a um personagem do folclore maranhense que veio a falecer
nesse dia.
Publicação do dia 23 de janeiro.Numa tentativa de democratizar o acesso à brincadeira,
o grupo abre inscrições onde podem participar pessoas de todo o estado e não apenas
moradores da cidade de Morros.
Publicação foi do dia 23 de março. Aqui já havia acontecido a seleção de novos
brincantes e estava começando o período dos ensaios.
Publicação feita em maio que divulga a blusa que será vendida para as pessoas que
apreciam a brincadeira.
18
Publicação feita no dia 05 de junho convidando o público para a apresentação da
indumentária de 2015.
Fotos retiradas do Facebook: https://www.facebook.com/boidemorros?fref=ts
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A intenção desse artigo não foi analisar o facebook do referido grupo folclórico
a partir de uma análise quantitativa e nem com relação aos comentários. Nosso pano de
fundo é analisar a apropriação do facebook enquanto espaço de conversação capaz de
criar e fomentar conexões aumentando os laços e as interações sociais. Com relação a
este assunto, o que pode ser percebido é que o referido grupo se utiliza dessa ferramenta
de forma satisfatória, pois ao publicar as informações do grupo que são de interesse do
seu público alvo, ele esta criando interações e aumentando os seus laços sociais.
Para fechar esse artigo é válido fazer uma reflexão. No caso específico dessa
análise, o que vemos são as conversações em rede fomentando e aprimorando os laços
sociais entre os públicos de interesse do grupo estudado. No entanto, todo esse trabalho,
todas as publicações, é uma espécie de preparação para o momento do encontro “real”,
para o momento onde o público poderá ver de perto a sua brincadeira preferida. Pode se concluir então, que as novas tecnologias, e aqui em especial, a rede social, é uma
apropriação tecnológica que facilita e aprimora o relacionamento, seja entre pessoas, ou
entre organizações. Elas não existem para assumir o lugar de..., elas existem para
caminhar junto, aperfeiçoando e melhorando a vida dos seres humanos.
BIBLIOGRAFIA
BERGER, Peter L. A construção social da realidade: tratado de sociologia do
conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1985.
COMISSÃO
NACIONAL
DE
FOLCLORE,
p.
01,
1995
Disponível
em:
<http://www.fundaj.gov.br/geral/folclore/carta.pdf>. Acesso em: 27 jul. 2014.
GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1985.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 6. ed. Rio de Janeiro:
DP&A, 2001.
JENKINS, Henry. Cultura da convergência. 2ed. São Paulo: Aleph, 2009.
LEMOS, André. Cibercultura: tecnologia e vida social na cultura contemporânea. 5 ed.
Porto Alegre, Sulina, 2010.
19
LIMA. Venício A. de. Mídia: crise política e poder no Brasil. São Paulo: Editora
Fundação Perseu Abramo, 2006.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: investigações em psicologia social. 9.
ed. Petropólis: Vozes, 2012.
RECUERO, Raquel. Redes Sociais na Internet. 2ed. Porto Alegre: Sulina, 2011.
_______________. A conversação em rede: comunicação mediada pelo computador e
redes sociais na internet. Porto Alegre: Sulina, 2012.
https://www.facebook.com/boidemorros?fref=ts acessado entre 15 à 19 de junho.
http://www.boidemorros.com/ acessado em 17 de junho.
]
20
Mesa 2 – NARRATIVAS AUDIOVISUAIS
Coordenação Aline Bianchini
O Drama do Tráfico de Pessoas em Salve Jorge: da tela à segunda tela
Denise Avancini Alves5
Fabiane Sgorla6
RESUMO:
O artigo analisa o tráfico de pessoas – considerado um tema da esfera dos direitos
humanos – a partir da dramatização acionada nos produtos digitais da novela Salve
Jorge, exibida pela Rede Globo, em 2013. A telenovela é geradora de visibilidade de
temas sociais e a inclusão de tais conteúdos no melodrama é reconhecida como
merchandising social. Pesquisamos como se efetiva a abordagem do tráfico de pessoas
em Salve Jorge, considerando a projeção do tema nas estratégias transmidiáticas
realizadas no site da emissora.
Palavras-chave: tráfico de pessoas, dramatização, telenovela, transmídia, Salve Jorge
INTRODUÇÃO
O tráfico de pessoas é uma das maiores violações aos direitos humanos na
atualidade. Seduzidas pela promessa de uma vida melhor, pessoas são aliciadas por
redes criminosas responsáveis pelo terceiro comércio ilegal mais lucrativo do mundo,
depois dos tráficos de drogas e armas.
É definido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como “o recrutamento,
o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo-se à
ameaça ou ao uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano,
ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de
pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha
autoridade sobre outra para fins de exploração” (PROTOCOLO DE PALERMO, 2003).
Movimentando, anualmente, mais de 30 bilhões de dólares, é considerado o terceiro7
maior negócio em giro de capital no mundo.
5
Doutora em Comunicação e Informação pela UFRGS e Professora na PUCRS. Contato:
[email protected]
6
Doutora em Comunicação pela Unisinos e Professora na PUCRS. Contato: [email protected]
7
Perde para o tráfico de drogas e comercialização ilegal de armas.
21
Em termos de classificação internacional, existem quatro finalidades de tráfico
reconhecidas pela ONU: para fins de exploração sexual; de remoção de órgãos, tecidos
e partes do corpo humano; de trabalho escravo; de casamento servil.
No Brasil, o tema foi colocado em pauta pelo Governo Federal em 2004, com a
publicação de decretos que promulgam a convenção das Nações Unidas contra o crime
organizado transnacional e protocolos adicionais. Desde então, tem sido discutido na
esfera federal com o lançamento de Planos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(2008 e 2013), bem como a realização de simpósios para discutir o problema de ordem
internacional. Entre 2005 a 2011, as vítimas de tráfico de pessoas para fins de
exploração sexual totalizaram mais de 450 casos mapeados pelo Ministério das
Relações Exteriores, sendo considerado um negócio que apresenta variação conforme a
economia mundial.
Na apropriação midiática pelo viés do entretenimento, a telenovela assume esse
assunto como elemento central. O tráfico de pessoas foi abordado em Salve Jorge,
escrita por Gloria Perez e exibida pela Rede Globo entre 22 de outubro de 2012 e 17 de
maio de 2013. A inclusão de temas sociais nas tramas das telenovelas é reconhecida
como uma estratégia de merchandising social e é neste espaço midiático privilegiado da
ficção que também se constitui a narrativa de um problema social.
Além da veiculação tradicional da novela pela televisão, a Rede Globo tem
investido em produção de conteúdo para a web, tendo em vista a “penetração e o
crescimento sustentado da internet na Ibero-América e o acelerado uso das redes sociais
virtuais na região” (LOPES; OROZCO, 2014, p.55). Nessa tendência, a emissora tem
disponibilizado no portal na internet (GShow) os capítulos da telenovela, bem como
conteúdos exclusivos como materiais complementares à trama, o que amplia a oferta do
tema e extrapola o horário televisivo.
Nesse sentido, o presente estudo se propõe a questionar como o tráfico humano tema social do campo dos direitos humanos - foi tratado em Salve Jorge, considerando o
tratamento do drama na segunda tela. Entre os materiais, situamos para essa pesquisa a
História em Quadrinhos e o Dossiê do Tráfico que remetem às narrativas
transmidiáticas à medida que expandem o universo do ficcional em outro ambiente
televisivo para o digital.
Para realizar esse percurso, utilizamos como metodologia a pesquisa
bibliográfica, a pesquisa documental e análise dos discursos na ordem de observar as
relações de poder e a análise do contexto, promovendo reflexões sobre a realidade social
22
produzida. A abordagem teórica privilegia os conceitos relacionados à comunicação de
temas sociais e o merchandising social na telenovela.
REDE GLOBO E MERCHANDISING SOCIAL EM TELENOVELA
A Rede Globo é a maior emissora do Brasil, equilibrando o que é considerado
sucesso comercial com a qualidade artística. Segundo dados do OBITEL (Observatório
Ibero-Americano de Ficção Televisiva), no Brasil, existem seis redes nacionais de
televisão aberta, sendo cinco privadas – Globo, SBT, Record, Band e Rede TV! – e uma
pública, TV Brasil. Em 2012, com exceção de duas (TV Brasil e Rede TV!), todas
produziram e exibiram ficção televisiva (OBITEL, 2013).
No que se refere à audiência individual, a Globo permanece na liderança com
40,7% da TV aberta. A emissora é considerada a maior produtora de ficção televisiva no
país, tendo sido responsável por 31 das 41 produções nacionais inéditas. São cerca de
2.500 horas anuais de novelas e programas e 1.800 horas anuais de telejornalismo.
No ano de 2012, entre os televisores sintonizados exclusivamente em canais de
televisão, a Globo obteve 44,7% de share. A emissora também confirmou sua
hegemonia na programação, sendo que os 47 programas mais vistos em 2012 foram da
Globo (OBITEL, 2013). Além disso, mais de 80% das horas de ficção produzidas e
exibidas em 2013 foram de telenovela, reforçando seu peso na composição da grade de
programação da televisão brasileira.
As temáticas dominantes nas principais ficções de 2012 referem-se aos seguintes
contextos: “relações familiares, vingança, ambições, adultério, revelações de identidade,
disputas entre classes sociais, preconceitos raciais, de classe e de gênero, abandono de
menores, corrupção” (OBITEL, 2013, p. 148-149). A inserção de tais temas nos enredos
de produtos televisivos é cunhada por merchandising social, sendo, portanto, a
“veiculação de mensagens educativas, reais ou ficcionais, nos enredos ou tramas das
telenovelas, minisséries ou outros programas de entretenimento” (COMUNICARTE,
2006).
Assim, o merchandising social se caracteriza pelas inserções planejadas e
sistemáticas, com objetivos definidos, utilizando mensagens socioeducativas. Segundo
Schiavo (2002), merchandising social consiste na inserção intencional e motivada por
estímulos externos, de questões sociais nas tramas das telenovelas.
23
Através do merchandising social, criam-se oportunidades para
interagir com as telenovelas, compondo momentos da vida dos
personagens e fazendo com que eles atuem como formadores
de opinião e/ou como introdutores de inovações sociais.
Enquanto estratégia de mudança de atitudes e adoção de novos
comportamentos, o merchandising social é instrumento dos
mais eficientes, tanto pelo elevado número de pessoas que
atinge quanto pela forma como demonstra a efetividade do que
é promovido (SCHIAVO, 2002, p.2).
A seguir, é possível observar a quantidade de cenas produzidas pela Rede Globo
em telenovelas ao longo do período de 2000 a 2012, conferindo uma média de 840
inserções ao ano.
Quadro 1. Número de cenas de merchandising social na teledramaturgia da TV
Globo por ano
Ano
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Total
Cenas de merchandising social
580
483
1.138
1.188
1.008
1.551
925
792
613
858
837
452
500
10.925
Fonte: JESUS, Silvia Terezinha Torreglossa.(2103, p.27)
Em Salve Jorge, produzida pela Rede Globo, o merchandising social se
localizou no tema do tráfico de pessoas, sendo apresentado na trama veiculada nos
capítulos na TV aberta bem como nos materiais de apoio produzidos para o portal
GShow, detalhados adiante.
SALVE JORGE E O TRÁFICO DE PESSOAS
Salve Jorge, escrita por Glória Perez, estreou no horário nobre na TV Globo, no
dia 22 de outubro de 2012, encerrando sua exibição em 17 de maio de 2013 (reprise do
24
último capítulo no dia 18 de maio). Com 179 capítulos, a média de audiência da
telenovela foi de 33,6. O tema Tráfico de Pessoas é o cerne social do enredo, abrindo o
primeiro capítulo da novela com cenas de um leilão da protagonista na Turquia (paíscenário onde a exploração sexual é praticada, tendo como aliciadas personagens que
moram no Rio de Janeiro). As vítimas do tráfico para fins de exploração sexual são
exploradas por uma quadrilha com a ‘justificativa’ de dívida adquirida pela viagem,
ameaça familiar e restrição de acesso aos documentos, configurando-as como
imigrantes ilegais naquele país.
A novela inicia seus primeiros 30 segundos retratando imagens da Turquia
(ambientada em trilha). As cenas apresentam uma plástica colorida, com imagens que
representam espaços turísticos do país, especialmente as cidades de Capadócia (balões)
e de Istambul (Bósforo, mesquitas). Na sequência, apresenta o leilão da uma mulher,
que se reconhece em seguida como a protagonista da trama, numa projeção temporal de
8 meses da narrativa.
A cena é filmada no interior de uma mansão, numa sala, e ao centro, numa
espécie de tablado, está a personagem traficada – Morena, mãe solteira, que vive com a
mãe e cria sozinha um filho, compõe o núcleo central da trama. No episódio, ela se
apresenta bem maquiada, vestida com adereços elegantes e com roupa sensual. Ao
redor, homens de diversas nacionalidades (idiomas sobrepostos fazem a vez do off da
cena), vestindo ternos, fumando charuto, bebendo e conversando, admirando sua beleza,
mas principalmente o produto que ela representa. Na sequência, um homem interessado
se levanta e vai tocar e cheirar a jovem. Esse mesmo homem faz a proposta e sai com a
traficada que, por sua vez, apresenta repulsa e angústia na cena. A mercadoria se
estabelece. Logo após, entra mais uma jovem, quase como uma linha produtiva.
Figura 1. Frames do primeiro capítulo da novela Salve Jorge
Fonte: Rede Globo, 2013
Salienta-se que conteúdos contextuais foram explorados em Salve Jorge,
especialmente para trazer a perspectiva multicultural Turquia-Brasil, típica das novelas
25
de Glória Perez. Tais conteúdos também foram explorados no âmbito digital, como
vídeos com curiosidades sobre a Mesquita Azul (atrações de Istambul), por exemplo, e
elementos que marcam a cultura daquele país. As extensões transmídia8 também deram
conta dos significados de expressões usadas na novela, com a produção de um
dicionário9 interativo trazendo definição e pronúncia de palavras comumente citadas em
Salve Jorge.
Nesse contexto vale reforçar o olhar de Fechine et al. (2013), que indica que os
“broadcasters também já operam com o conceito de ‘segunda tela’, uma expressão que
designa a oferta de conteúdos interativos complementares, e preferencialmente
sincronizados, com a programação por meio de aplicativos desenvolvidos para tablets e
smartphones, por exemplo” (2013, p.21). Tais dispositivos podem ser utilizados ara
ampliar o conteúdo referente ao programa, tendo como ênfase a articulação da TV com
as redes sociais. A autora reforça que “todas essas novas experiências com a televisão
estão associadas a novas formas de produção e distribuição dos conteúdos televisivos”
(p.21), cunhada como transmídia.
Nesse sentido, a Rede Globo vem investindo em produção de conteúdo para a
web, disponibilizando, além dos capítulos das novelas, materiais complementares no
site, com conteúdo exclusivo. Em Salve Jorge, diversos materiais foram produzidos.
Dentre os observados, destaca-se a composição de uma história em quadrinhos (HQ)
elaborada com o percurso de uma personagem que não apresentou um final feliz
esperado no melodrama. Trata-se da traficada Jéssica que desempenhou um papel
relevante para a discussão sobre o tema Tráfico de Pessoas, mas sua história não teve
sequência até o final da trama, sendo assassinada ao logo da veiculação de Salve Jorge.
Para manter viva na memória a personagem e ampliando as possibilidades de
dinâmicas de interação com a ficção, a Rede Globo publicou no site da novela a história
estilizada num formato HQ (Figura 2), contendo os seguintes título e linha de apoio: “O
Para apresentar uma narrativa transmidiática “é necessário que haja uma expansão do universo
ficcional em diferentes plataformas, sendo fundamental que cada um dos conteúdos dispersos seja
autônomo e independente entre si. Na forma ideal de narrativa transmidiática, cada meio faz o que
faz de melhor – a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, ser expandida pela
televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games, ou experimentado
como atração de um parque de diversão”. Já, crossmídia refere-se ao “cruzamento de diversos
meios com a mesma narrativa, portanto sem autonomia de conteúdo em cada plataforma”. (JACKS,
N. e OIKAWA, E., 2013, p.182).
9
Disponível
em
<http://gshow.globo.com/novelas/salve-jorge/Fique-por-dentro/noticia/2012/11/
dicionario-turco-conheca-o-significado-e-a-pronuncia-das-palavras-de-salve-jorge.html>. Acesso em 19
de abril de 2014.
8
26
Drama de Jéssica: reveja a história da traficada em quadrinhos”. “Loira lutou muito ao
lado de Morena e terminou assassinada por Lívia”10.
Figura 2. HQ: “O Drama de Jéssica”
Fonte: Rede Globo, 2013
A história em quadrinhos resume a trajetória da personagem que, por ter sido
inspirada em um caso real, assume um novo espaço midiático. Neste caso, a Rede
Globo reproduziu algumas cenas e desenvolveu uma arte sobre os frames,
transformando a narrativa da serialização numa edição localizada em uma personagem.
10
Disponível em http://gshow.globo.com/novelas/salve-jorge/Fique-por-dentro/noticia/2013/01/o-dramade-jessica-reveja-a-historia-da-traficada-em-quadrinhos.html. Acesso em 19 de abril de 2014.
27
O investimento em conteúdos mais visuais tende a contribuir para que as informações
possam ser assimiladas mais facilmente pelos internautas.
O material produzido pela Rede Globo apresenta um resumo da trajetória da
traficada Jéssica (vivida por Carolina Dieckman) e, ao selecioná-la, oferece à
personagem um protagonismo paralelo, evidenciado através de um discurso de
retomada contextual através do recurso de um narrador que traduz as cenas mais
emblemáticas por ela vivida na trama.
Ao transpor o texto narrativo em HQ somente de uma personagem, a emissora
oferece a ela um grau de relevância, provavelmente pelo fato de ser uma atriz
consagrada, associada ao elemento de inspiração da história de vida de Kelly, aliciada e
morta por uma quadrilha em Israel. Portanto, ao emprestar uma nova forma de tradução
do texto narrativo em HQ, pode transformar a personagem Jéssica em uma superheroína, comumente observado em produções desse gênero. Além disso, em HQs com
super-heróis tem-se o recurso de um disfarce para ocultar a identidade do protagonista.
Nesse caso, o disfarce é o próprio silêncio do crime.
Outro conteúdo oferecido de forma transmídia, encontra-se no Dossiê do
Tráfico11 (Figura 3), que se refere a um material disponibilizado no site da novela que
resume o que seria a documentação dos personagens envolvidos na trama pelo Tráfico
de Pessoas.
Segundo a produção do conteúdo, existem três categorias de vínculo: traficadas,
traficantes e vítimas.
O site apresenta um breve resumo sobre o perfil de cada
personagem envolvido no tráfico, bem como complementa o conteúdo com fotografias e
vídeos, simulando um conjunto de arquivos que reúne informações sobre as traficadas,
os traficantes e as vítimas da operação retratada na novela.
Figura 3. Dossiê do Tráfico
11
Disponível em: <http://especiaiss3.tvg.globo.com/novelas/salve-jorge/dossie-do-trafico/>. Acesso em
19 de abril de 2014.
28
Fonte: Rede Globo, 2013
A estrutura do dossiê faz alusão a uma estética visual de relatório policial, com
ficha técnica dos personagens, símbolos e ícones que remetem a elementos acionados
pela esfera legal, como carimbos e algemas.
Nesse sentido, para a análise dos discursos utiliza-se como referência a
perspectiva de Fairclough (2001), que nomina Análise Crítica do Discurso (ACD) uma
abordagem da Teoria Social do Discurso, entendendo o evento discursivo num quadro
tridimensional: texto, prática discursiva e prática social.
O autor indica que a prática discursiva é mediada por texto e prática social,
sendo constituída tanto de maneira convencional como criativa. Ou seja, a prática
discursiva é determinada pela prática social, mas também pode transformá-la em uma
relação dialética de poder. A prática discursiva contribui para reproduzir a sociedade
(identidades sociais, relações sociais, sistemas de conhecimento e crença) e para
transformá-la, e se manifesta na forma linguística, com o uso de textos ou imagens.
Fairclough (2001, p.113) afirma que “um texto só faz sentido para alguém que nele vê
sentido, alguém que é capaz de inferir essas relações de sentido na ausência de
marcadores explícitos”.
Ao incorporar essa linha de análise para a presente estudo, localiza-se o Quadro
2, com a seguinte composição tridimensional.
Quadro 2. ACD dos produtos digitais de Salve Jorge
História em Quadrinhos
Texto
Há uma inovação no formato (arquitetura
do texto) com uso de recursos visuais,
onde há uma apresentação da situação
geográfica (fundo amarelo) e a descrição
Dossiê do Tráfico
Texto
Apresenta uma estética visual associada à
de um relatório policial imagético, com
símbolos e ícones presentes na dimensão
policial.
29
da cena (fundo branco), quando a história
é narrada por terceiros
Prática discursiva
Há uma busca do conteúdo via web, com
distribuição
simples,
porém
com
necessidade de ativação pelo internauta.
Há o protagonismo paralelo e a rotina de
produção se dá de forma única, sem a
serialidade característica da novela.
Prática social
Há uma reprodução de linguagem (HQ)
que promove identidade.
Prática discursiva
Percebe-se a coerência, no contexto do
‘fichamento’ dos personagens que
promove a localização deles nos seus
núcleos narrativos, oferecendo à audiência
uma complementação de conteúdo. A
busca do conteúdo é via web, com
distribuição simples e ativada pelo
internauta. Percebe-se um protagonismo
reforçado, além de uma rotina de
produção única e de reprodução, pois há
um aproveitamento de vídeos veiculados
na TV.
Prática social
Há a reproduz um código que transmite
um sentido de verdade e de justiça
Fonte: as autoras
Portanto, percebe-se que nos produtos digitais derivados da novela tem-se um
discurso híbrido, pois apresenta como fonte principal a própria trama do produto (Salve
Jorge) e uma possível mescla de sons, tratamento de imagens e amplitude de
abordagens em outros produtos midiáticos. Desse modo, há a presença de um discurso
heterogêneo, sendo possível localizar o debate do tráfico de pessoas como um possível
espaço de transformação social.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Salve Jorge produziu iniciativas que promovessem a ressignificação do que foi
abordado e exibido na TV, promovendo reenquadramentos dos fatos tratados na trama,
porém resultando em materiais exclusivos em termos estéticos e de linguagem para a
segunda tela. Tal situação promove uma dimensão relacional com o receptor,
aproximando o tema duro e criminoso que é o tráfico de pessoas ao internauta. Por
outro lado, tanto a história em quadrinhos quanto ao dossiê, fantasiam o problema,
fazendo da vítima a heroína. No caso da HQ, transforma um problema real em gibi, em
personagem onde o mal vence, quebrando a lógica esperada na dramaturgia.
Com base na dramatização do tráfico de pessoas observada nas produções
digitais de Salve Jorge, é possível corroborar que a Rede Globo, nas suas derivações do
melodrama, se torna um elemento importante na construção de significações do tema
junto à sociedade, sendo responsável por dar luz e voz ao tráfico de pessoas,
30
promovendo a sua manutenção conforme o seu interesse mercadológico e reconstruindo
e reconfigurando identidades sociais.
Nesse sentido, o merchandising social em telenovelas é eficaz na promoção e na
visibilidade do tema que o próprio debate público, pois atinge o emocional, o lúdico. O
tema é transformado em mercadoria em situações que extrapolam a veiculação, através
dos produtos da emissora disponibilizados em plataformas digitais, como na História
em Quadrinhos de Jéssica ou no Dossiê do Tráfico. Portanto, o tráfico de pessoas é
reificado pela emissora, dramatizado na telenovela e nos produtos dela derivados.
REFERÊNCIAS
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monitorados. Population Media Center, 2006.
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Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
JACKS, N. e OIKAWA, E. Passione e Avenida Brasil: produção crossmídia e recepção
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organizado por Maria Immacolata Vassallo de Lopes. Porto Alegre: Sulina, 2013.
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SCHIAVO, Marcio Ruiz. Merchandising social: as telenovelas e a construção da
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COMUNICAÇÃO, 25., Salvador, 2002. Anais eletrônicos... Salvador, Sociedade
31
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2002. Disponível em:
<http://www.intercom.org.br/papers/nacionais/2002/
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SOUZA, Maria Carmen Jacob de; BORELLI, Sílvia; COCO, Pina; BARRETO,
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WEBER, Maria Helena: SOUZA, Carmen Jacob de. Dramatizações da Política na
Telenovela Brasileira. In: GOMES, I. M. M. (Org.). Televisão e Realidade. Salvador:
Edufba, 2009, p. 141-172.
32
Bebeto Alves “não é bom”:
o filme Mais Uma Canção e a sociedade do espetáculo
João Vicente Ribas – Doutorando PUCRS
[email protected]
Resumo
Proponho relacionar o filme Mais uma Canção (Rene Goya Filho e Alexandre Derlam,
2012), biografia do músico Bebeto Alves, ao pensamento sobre a sociedade do
espetáculo de Guy Debord. Tal reflexão teórica visa desenvolver elementos para a
interpretação dos discursos dos cancionistas do Rio Grande do Sul, tanto em produtos
midiáticos, quanto nas entrevistas que realizarei, conforme meu cronograma de pesquisa
de doutorado. Corrobora-se assim para o entendimento da trajetória deste grupo de
músicos e de suas relações com a mídia.
Palavras-chave
Comunicação. Sociedade do Espetáculo. Documentário. MPB.
Texto integral
Na sociedade do espetáculo, “o que aparece é bom, o que é bom aparece”
(Debord, 1997, pp.16-17). Portanto, esta “enorme positividade, indiscutível e
inacessível” exclui todo o resto. E serve de argumento contra reclamações dos
preteridos. Por exemplo, o discurso do compositor gaúcho Bebeto Alves, ao receber o
prêmio Açorianos de Música em 2009 pelos quase 40 anos de carreira, quando citou
ironicamente as rádios Atlântida, Ipanema e Pop Rock, “rádios que não tocam a música
da gente”. Nesta lógica, Bebeto Alves não é bom (nem quem ele incluiu em sua fala
quando disse “da gente”).
Como pode então sobreviver enquanto músico sem “aparecer” nas programações
radiofônicas? Sem aderir à atitude que por princípio o espetáculo exige: da aceitação
passiva, sem réplica, ao monopólio da aparência?
Para Guy Debord, o espetáculo é uma visão de mundo. Cria estrutura social em
que alguns vivem por procuração (separação entre palco e plateia). O que era vivido
plenamente é vivido por representação. E quanto aos que almejam estar no palco? Há
sempre esta separação?
Estas provocações visam relacionar o discurso do filme Mais uma Canção,
documentário biográfico de Bebeto Alves, ao pensamento sobre a sociedade do
espetáculo do francês Guy Debord. O objetivo é desenvolver elementos para a
33
interpretação dos discursos dos cancionistas de MPB do Rio Grande do Sul, tanto em
produtos midiáticos, a exemplo do filme aqui a ser analisado, quanto nas entrevistas em
profundidade que realizarei conforme o cronograma de pesquisa de minha tese de
doutorado12.
Lançado em 2012, o filme Mais uma Canção, (direção de Rene Goya Filho e
Alexandre Derlam) é biográfico. O roteiro exalta uma trajetória de sucesso de Bebeto
Alves no Estado, principalmente nas décadas de 1970 e 1980. Destarte, quando o artista
reclamou em 2009 da falta de visibilidade, referia-se a outra época, mais recente.
Mas esta reclamação por mais espaço na mídia não diz respeito apenas ao
âmbito local. É central no roteiro a problematização de sua relação com o mainstream
nacional. O tema tangencia os 96 minutos de filme, dedicados também a caracterizar
Bebeto Alves como síntese de culturas da fronteira Brasil e Argentina, onde nasceu. A
sinopse oficial contém outra informação, de que o artista “encontra um conceito na
milonga – um gênero musical que elimina os limites geográficos ao sul do nosso país”.
Esse conceito teria a função de traduzi-lo e enriquecê-lo enquanto artista.
O documentário inicia com entrevistas e imagens de arquivo. Costura
depoimentos de representantes da indústria fonográfica brasileira e de colegas músicos.
Na última terça parte, mostra uma viagem de descobrimento pela Península Ibérica e
pelo norte da África, filmada em 2010, para que o músico entrasse em contato com as
raízes da milonga. Desta forma, sua identidade musical vai sendo mostrada como uma
explicação para o tensionamento com a indústria fonográfica. Fica evidente a tese de
que sua pretensa liberdade artística impediria seu enquadramento nos padrões
midiáticos. Logo nos primeiros minutos, Bebeto se apresenta e afirma que “nunca quis
ser outro cara”, no sentido de se espelhar em alguém, e que sua identidade sempre
esteve em deslocamento, pois era preciso transformações para poder se “sentir vivo”. E
no final da película, irá reafirmar seu desejo de liberdade “para poder criar de qualquer
forma”.
Voltemos à teoria de Debord. Lançado em 1967 na França, seu texto teria
influenciado as manifestações de maio de 1968, que marcariam uma geração13. Pode-se
Meu projeto de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS
tem o objetivo de trabalhar com o circuito da cultura que envolve meios de comunicação do
Rio Grande do Sul e os compositores locais de Música Popular Brasileira (MPB).
13
A partir dos anos 1950, com o desenvolvimento material, a juventude tenderia ao
comportamento transitório e efêmero. Já a insurgência em que se inseria Debord propunha
aos jovens “criatividade pura”, “subversão”, “liberdade de escolha”, “aventura”. “Debord e a
12
34
afirmar que traduz o espírito de uma época, ao menos no que diz respeito a intelectuais
e artistas de esquerda no Ocidente. Será que o discurso de Bebeto Alves é consoante a
esta visão crítica da sociedade do espetáculo?
Contextualizando historicamente, vamos aqui pontuar a síntese de Júlio
Medaglia sobre o final dos anos 1960 na música brasileira. Para ele, foi um período
excitante que provocou no país um surto criador de elevado nível, semelhante ao que
ocorreu na mesma época internacionalmente, quando grandes transformações
comportamentais, artísticas e sociais impulsionadas pela guitarra em riste, tendo como
munição o rock, abalaram o mundo. “Aqui também através da cultura popular, mais
precisamente via música, é que as provocações vieram a ocorrer” (2003, p.183). O
principal resultado desse movimento teria sido o Tropicalismo, mesmo que críticos
como Roberto Schwartz (1978) apontem a ambivalência dos tropicalistas, reconhecendo
que eles também estavam integrados à sociedade de consumo.
O músico Vitor Ramil nos dá uma pista em depoimento no filme, quando afirma
que Bebeto é da geração dos seus irmãos, Kleiton e Kledir14, meio pós-tropicalista. Não
há da parte de Bebeto Alves nenhuma opinião explícita no documentário, mas se formos
resgatar uma entrevista que ele concedeu ao pesquisador Felipe Azevedo, veremos que
ele admite que o Tropicalismo teria influenciado sua forma de pensar música. O
cancionista afirmou que nos anos 60, rock and roll, cultura pop e Tropicália, “era isso
que a gente ouvia e curtia em Uruguaiana. Não tinha outra coisa (apud Azevedo, 2010).
Vale observar que quando o músico fala “outra coisa”, refere-se ao Nativismo15,
à milonga, que o influenciariam depois. Segundo ele, o único regionalismo que tocava
no rádio era dos trovadores e músicos populares, como Teixeirinha, os quais ele
conhecia como “música de grosso”.
Este período de sua biografia é retratado no documentário com um registro atual
de reencontros na cidade natal Uruguaiana. Uma sequência de cenas das ruas da cidade,
incluindo a ponte que atravessa a fronteira com a Argentina, é mostrada sob a trilha da
composição “Que se pasa?”, gravada em 1978, com versos em português e espanhol.
Internacional Situacionista transformam a problemática da juventude de um assunto
socioeconômico em um assunto político” (TACUSSEL, In.: GUTFREIND; SILVA, 2003, p. 24).
14
Kleiton e Kledir formaram em 1975 o grupo Os Almôndegas, que para o pesquisador
Arthur de Faria Silva (2012) foi responsável pela criação de um sistema da moderna canção
popular urbana porto-alegrense.
15
Em Mídia Nativa (2003), Nilda Jacks relaciona a indústria cultural ao regionalismo
latente nos anos 1980, denominado movimento Nativista, quando houve um boom de criação
de Centros de Tradições Gaúchas e de festivais de música em diversas cidades do Estado.
35
A seguir, participa de um programa na Rádio Charrua, onde começou a cantar
aos 9 anos. Sobre o mesmo meio de comunicação, o artista revela em depoimento que
ouvia nele muitas bandas argentinas, a exemplo de Los Gatos, sucesso no país vizinho,
pois sintonizava as estações “do lado de lá da fronteira”. Certo dia também teria
assistido ao grupo ao vivo no auditório da mesma rádio Charrua em Uruguaiana.
Por trucagem cronológica no roteiro, a posterior mudança de Bebeto para a
capital do Estado já havia sido abordada na primeira cena do filme. Trata da fundação
de sua banda Utopia, e da participação em shows coletivos, as Rodas de Som no Teatro
de Arena. Sobre este local, o artista fala que “de longe parece nada”, mas que
“historicamente ele é um monumento”. Diz que nos anos 1970 aquele lugar “se tornou
maldito, no sentido de alternativo, de uma postura artística diferente, mais criativa, num
paralelo a este sistema”. O que ele quer dizer com paralelo a este sistema? À sociedade
do espetáculo? À ditadura?
Fato é que aquela efervescência cultural ganhou mídia. Em 1974 a rádio
Continental passou a gravar os jovens músicos da cidade em seu estúdio e a tocar suas
músicas na programação, ao lado de fonogramas nacionais e internacionais. A presença
dos músicos na emissora faz parte de uma sequência de acontecimentos, incluindo a
realização de festivais, como o Musipuc, o surgimento de grupos como Os Almôndegas
que faria sucesso no país, e o estouro do programa de Julio Fürst, no papel de Mr. Lee.
De acordo com Lucio Haeser, “o fenômeno é apontado como o responsável pela criação
do que mais tarde se convencionou chamar de MPG, a Música Popular Gaúcha” (2007,
p.185). Em Mais uma Canção a abordagem daqueles anos se baseia em imagens de
arquivo, incluindo uma passagem de Julio Fürst em meio a um show. O radialista
afirma que “os concertos de Mr. Lee visam a valorização total da nossa música”.
A seguir, o jornalista Juarez Fonseca conta que a música de Porto Alegre não
tocava no rádio, até aquela iniciativa. Teve muito impacto, “surgindo uma nova música
e um novo público”. Entre as revelações de 1975 estava o grupo Utopia, de Bebeto, que
num artigo de jornal destacado no documentário, foi qualificado com os adjetivos:
inquieto, rebelde e criativo.
No entanto, é necessário refletir aqui o quanto esta relação midiática não teria
significado uma adesão ao espetáculo, visto que além do rádio, havia festivais e
concertos que atraíam milhares de pessoas. Haeser conclui que naquele momento “a
rádio vive e faz a efervescência musical da cidade, facilitando o caminho. O músicos
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não precisavam gravar um disco de sucesso para rodar na programação. E a rádio valiase de um diferencial: identificação com a cidade.
Voltando a Debord, vamos ler a tese de que “o espetáculo apresenta-se ao
mesmo tempo como a própria sociedade, como uma parte da sociedade e como
instrumento de unificação” (1997, p.14). Assim, “o espetáculo não é um conjunto de
imagens, mas uma relação social entre pessoas mediatizada por imagens” (entende-se
aqui imagem num sentido mais amplo, abarcando manifestações sonoras).
Mas talvez houvesse, ao menos por parte de Bebeto Alves, uma visão mais
política e menos espetacular na época. No livro de Haeser, constam depoimentos dos
músicos que participaram da programação da Continental, narrando a primeira vez em
que ouviram suas músicas tocarem na rádio. Bebeto afirma que teria sido uma “coisa
incrível”, porque se vivia “num período complicado e difícil”. Este “período”
provavelmente seja referência à ditadura militar. Contudo, ele acredita que estava
“buscando uma verdade e exteriorizando isso”, criando e se expressando, passando uma
mensagem pras pessoas. Fazer isto naquele período para ele dava “uma sensação de
êxtase” (apud Haeser, 2007, p.192).
Esta visão mais engajada também pode ser percebida na crítica de Ney Gastal no
jornal Correio do Povo, sobre o concerto Vivendo a Vida de Lee, realizado em agosto
de 1975 e transmitido pela rádio Continental:
...estamos nos momentos iniciais de uma explosão musical que pode
ser importante para a música popular brasileira como foi a dos baianos
na época do Tropicalismo; o que não significa necessariamente que vá
ser. […] Resta agora saber quantos por aí terão capacidade de superar
as limitações que lhes foram impostas por anos de esvaziamento
cultural. Pois o magrinho, consumidor do vazio, este ser translúcido e
gelatinoso, fruto do processo em que estivemos mergulhados, começa
a desaparecer, se assim quiser a sorte, para todo o sempre (apud
Haeser, 2007, p.197)
Esta crítica faz pensar na tese de Debord de que o espetáculo “é uma visão de
mundo que se objetivou”. Ao citar os “magrinhos”, Gastal remete a teses debordianas
como “um modelo atual da vida dominante na sociedade” ou à “afirmação onipresente
da escolha já feita na produção, e o consumo que decorre dessa escolha” (DEBORD,
2007, pp.14-15). Pois em contraposição aos músicos locais tendo atenção da mídia, só
poderia estar do outro lado a produção mundial escolhida para ser “massificada” mundo
afora, pelo “consumidor do vazio” (conforme o crítico do jornal).
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Este discurso vai ao encontro da tese de Debord sobre “a evidente perda da
qualidade, em todos os níveis, dos objetos que a linguagem espetacular utiliza e das
atitudes que ela ordena” (2007, p.28). A “forma-mercadoria” seria a categoria do
quantitativo. A sociedade moderna estaria dominada mundialmente por um movimento
de banalização, “sob a diversão furta-cor do espetáculo”.
Nos depoimentos do filme também percebemos um discurso que se opõe a um
“modelo dominante”, ou “forma-mercadoria”, ou “esvaziamento cultural”. Por exemplo,
quando o assunto é o lançamento do disco coletivo Paralelo 30 (ISAEC, 1978), do qual
Bebeto participou, Juarez Fonseca, produtor e idealizador do projeto, afirma que o
objetivo de lançar aquele produto era “a criação de uma identidade musical no Rio
Grande do Sul”. Para Nelson Coelho de Castro, “fazer cultura naquela idade do tempo
de Porto Alegre era uma irresponsabilidade”. Ele revela que aquela geração de músicos
queria viver da música, não apenas por ter uma atitude, ou se tornar conhecido, mas por
uma “vontade de fazer cultura”.
A nossa geração não ficou na janela. A gente não suportou ficar na
janela e foi pra rua, e fez, realizou. A gente nunca suportou a ideia de
ser feliz sozinho […] a gente teve vários momentos disso, celebrando
não apenas nós no palco, celebrando com a plateia, lá de cima, com
seis mil pessoas, que estavam presenciando a si próprios, a sua
geração estava celebrando o seu futuro, como produtores de saudade
(Mais uma Canção, 2012)
Este depoimento de Castro faz crer que a geração de Bebeto Alves queria
romper com a lógica do homem moderno ser demasiado espectador, numa separação
estanque entre palco e plateia. Debord desenvolve esta ideia identificando uma
proliferação de “pseudo-acontecimentos” pré-fabricados, que “decorre do simples fato
de os homens, na realidade maciça da vida social atual, não viverem acontecimentos”.
Assim, surge uma pseudo-história construída em todos os níveis do consumo da vida,
para preservar o equilíbrio ameaçado de um “atual tempo congelado” (1997, p.130).
Portanto, mais um rompimento com a sociedade do espetáculo e a unilateralidade de sua
comunicação, manifesto nos discursos do filme.
Considerando como realidade a carreira de 40 anos do artista Bebeto Alves, que
durante este tempo não parou de compor novas canções, gravar discos e apresentar
shows em cidades do Rio Grande do Sul e do Brasil, o fato de ele não se sentir
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representado atualmente no espetáculo das rádios o exclui da sociedade moderna? Já
que, conforme Debord, “a realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real”.
Mas o real só pode estar no espetáculo? Na linha debordiana, o espetáculo é ao
mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. “Não é um
suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do
irrealismo da sociedade real”.
No início dos anos 80, Bebeto Alves foi para o Rio de Janeiro. Podemos dizer
que foi em busca de estar no espetáculo, no centro de produção da indústria
fonográfica? Buscava existir? Em depoimento, Carlos Alberto Sion (produtor da
CBS/Sony Music) diz que as gravadoras estavam abertas à moderna música popular
brasileira e a regionalismos. Então propôs ao compositor gaúcho uma fusão das suas
raízes culturais da fronteira com a energia pop. Foi o primeiro disco solo dele, que na
visão do executivo não teve o tempo adequado para “se desenvolver no mercado”. Sion
avalia que precisaria de um a dois anos para que o mercado recebesse, absorvesse e ele
entrasse “dentro da programação da mídia”. Mas observou que um aspecto permanente
na indústria é o imediatismo. “Eles achavam que o disco tinha que acontecer sempre nos
primeiros três, quatro meses”.
Depreende-se do filme que, na sequência discográfica, André Midani (executivo
da Warner) empolgou-se com o álbum Notícia Urgente, gravado ao vivo por Bebeto
Alves. Mas a fala do artista, relatando aquele tempo, indica que algo diferente da
empolgação viria a ocorrer. Após uma pausa, declara: “Só que nesse período estoura o
rock brasileiro”. Para o músico, então, houve uma diferença, uma mudança no
tratamento. “A gravadora começou a ficar atenta àquilo que tava vendendo”.
Midani reitera que tinha uma ideia de cena nacional de músicos do sul, após a da
Bahia, que revelou Caetano Veloso, Gilberto Gil, e toda a Tropicália. Mas ressalva:
Quando eu escuto música do sul, por mais que eu adore ela, eu me
sinto muito mais transportado para o Uruguai e Argentina do que pra
Bahia, Rio de Janeiro ou São Paulo. Então é possível que este seja um
dos motivos. Por outro lado, Porto Alegre ficou como um centro de
comunicação, tô falando de televisão e coisas assim. Então o que se
faz em Porto Alegre é para Porto Alegre (André Midani, Mais uma
Canção, 2012)
Outro executivo do eixo Rio-São Paulo, Sérgio Carvalho, relata no
documentário seu trabalho com Bebeto Alves na gravação do álbum Novo País pela
Som Livre, bem pop, new wave, de acordo com a moda dos anos 1980. O fato de a
39
gravadora pertencer às organizações Globo gerou uma expectativa, mas, nas palavras do
produtor, o disco “não aconteceu”. “Se tivesse entrado uma música em uma trilha de
novela, teria feito muita diferença, naquele disco”, acredita.
Estes depoimentos de executivos de gravadoras nacionais ajudam a compor a
lógica da produção capitalista, guiada, conforme Debord, pela acumulação de
mercadorias produzidas em série para o espaço abstrato do mercado, rompendo
barreiras regionais. Ou seja, neste meio de produção, um músico só pode produzir de
forma homogênea para um mercado nacional de larga escala de consumidores. Os
regionalismos devem ser “trabalhados” para se adequar às vendas por todo o país.
Após estas explicações sobre o que seria um “fracasso” de Bebeto no Rio, nos
anos 80, o filme registra o retorno do compositor pro Rio Grande do Sul. Segundo o
roteiro, houve então um “novo boom da música local”, com shows lotados no auditório
Araújo Vianna.
As idas e vindas do artista são ora criticadas, ora justificadas em argumentos do
roteiro. Quando visita a fronteiriça Uruguaiana, Bebeto Alves declara que estar no
limite de um país, ao lado de outro país, “onde os limites da realidade se perdem, se
confundem”. Nesta condição, conclui perceber que o mundo é bem maior: “Não existe
limite nenhum pra tu poder criar, viajar, pensar o mundo”. A seguir, Felipe Azevedo,
músico e pesquisador, depõe que “sem a noção de nomadismo e o conceito de fronteira,
muito particular que ele tem, não se consegue entender o Bebeto”.
A noção de nomadismo encontrada na Sociedade do Espetáculo opõe-se a um
presente perpétuo e a uma sociedade estática, ou um tempo cíclico. Mas Debord,
ressalva que o tempo cíclico também domina a experiência dos povos nômades, porque
as mesmas condições se apresentam a eles a cada momento de sua passagem. A errância
dos nômades seria apenas formal, por estar limitada a espaços uniformes. Na tese 129,
professa que “o tempo cíclico é, em si, o tempo sem conflito” (1997, p.90), pois a
estruturação definitiva excluiu a mudança. E vamos obter mais um depoimento no filme
que contrasta com a lógica espetacular: “Uma vez o Juarez Fonseca escreveu um
negócio que me marcou: o Bebeto Alves é um cara que muda sempre pra se manter fiel
a ele mesmo”.
Sérgio Carvalho também caracteriza Bebeto como alguém que não consegue
ficar parado, comentando que o artista foi para os Estados Unidos após o disco da Som
Livre. As idas e vindas, de acordo com André Midani, poderiam ser a causa dele não ter
conseguido se estabilizar na indústria fonográfica. Já, Zuza Homem de Mello, crítico
40
musical, depõe sobre uma guinada radical no trabalho de Bebeto, na qual ele não teria
“sido muito feliz”. “Ele virou o timão de uma maneira muito forte, isso pode deixar a
cabeça das pessoas sem rumo”. Então, na cena seguinte, entra um arquivo do programa
Palcos da Vida (TVE/RS, 1989), em que o músico declara:
Todo trabalho que eu faço, por mais comercial que seja, e eu
considero que meu trabalho seja um trabalho comercial e gosto disso,
ele sempre tem uma parte mais conceitual, que são as armadilhas que
eu armo sempre no meu próprio trabalho. Sempre tem alguma
encrenca. As coisas não são tão fáceis assim (Mais uma Canção,
2012)
Neste depoimento, o cancionista vai novamente na contramão do espetáculo.
Pois o “fim da história da cultura manifesta-se por dois lados opostos: o projeto de sua
superação na história total e sua manutenção organizada como objeto morto, na
contemplação espetacular” (Debord, 1997, p.121).
Em outro depoimento de arquivo, um Bebeto Alves jovem revela que sua música
Depois da Chuva interpreta bem seu sentimento de resistência: “Sempre tem alguém
querendo dizer assim: não, você já era. O sistema tentando te eliminar, quando você tem
capacidade pra lutar. Isso é uma mentira, e a gente tem que sobreviver, a gente tem que
reagir”. Nada mais debordiano. Segundo o teórico francês, para destruir de fato a
sociedade do espetáculo, é preciso que homens ponham em ação uma força prática. “A
teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da
negação da sociedade” (1997, p.132).
E vamos retomar em detalhes a declaração mais contundente do filme acerca da
mídia, na edição em sequência dos discursos de Bebeto ao receber duas condecorações
em Porto Alegre. Ao receber o Troféu Guri, conferido pelo Grupo RBS de
Comunicação, em 2010, o compositor agradece e dedica a sua geração. Na sequência do
filme, voltando ao ano anterior, na homenagem do Prêmio Açorianos:
Eu sou um pouco avesso a homenagens. Nunca recebi uma
homenagem assim tão importante na minha vida como está sendo
essa. Eu espero que seja importante pra cada um de nós. Porque o que
isso significa é o reconhecimento do trabalho, da nossa música.
Sempre fui avesso a comemorar, por exemplo, 25 anos do primeiro
show, 35 anos de briga com o Tadeu Malta, com a rádio Atlântida, 35
anos de briga com a rádio Ipanema, com a Pop Rock, com essas rádios
que não tocam a música da gente (Bebeto Alves, Mais uma Canção,
2012)
41
Ainda apoiando-se no pensamento de Debord, podemos imprimir uma visão e
um questionamento crítico não só sobre a sociedade do espetáculo, mas também sobre a
atitude queixosa do artista. Pois o francês já alertava para a possibilidade de, à aceitação
dócil do que existe, poder “juntar-se a revolta puramente espetacular” (1997, pp.39-40).
Assim, a própria insatisfação tornar-se-ia mercadoria. Não é o que defende o filme Mais
uma Canção. Pelo contrário, seu discurso faz crer que a música de Bebeto Alves, por
mais que contenha um caráter de mercadoria pelo fato de ser um produto vendável, é
antes de tudo um produto de sua criatividade.
Acredito que com esta compreensão crítica da sociedade do espetáculo, poderei
interpretar o posicionamento destes artistas no relacionamento com a mídia. A flexão da
lógica espetacular, verificada neste ensaio, pela posição nômade e resistente de Bebeto
Alves, deverá ser verificada caso a caso. Mas desde já, observa-se que há muitas
semelhanças nas trajetórias dos músicos que estou estudando, como o fato de eles
estarem em constante tensão entre a indústria fonográfica nacional e a cena cultural
independente. Também o diálogo estético que propõem com as culturas local e mundial.
Trazendo este contexto para o âmbito dos Estudos Culturais, em Media
Spectacle (2003), Douglas Kellner atualiza a questão das indústrias culturais, que nas
últimas décadas teriam multiplicado-se em espetáculos midiáticos. Segundo ele, o
“espetáculo vem se tornando um dos princípios da economia, política, sociedade e vida
cotidiana” (KELLNER, 2003, p.1). Com a intensificação do espetáculo da cultura da
mídia, o entretenimento veio a ser um dos principais eixos. Hoje, o desenvolvimento de
tecnologias multimídia e os tecno-espetáculos são decisivos para moldar a cultura da
sociedade contemporânea. O pesquisador norte-americano também revê a teoria de Guy
Debord, identificando uma noção abstrata e generalizante de espetáculo. Então propõe
pesquisar exemplos específicos de mídia espetáculo, para compreender como a
experiência e a vida cotidiana são moldadas e mediadas pelos espetáculos da cultura da
mídia e da sociedade do consumo.
Kellner observa que “desde que Debord teorizou sobre a sociedade do
espetáculo nos anos 60 e 70, a cultura do espetáculo expandiu-se para todas as áreas da
vida” (tradução do autor, 2003, p.3). Uma característica que se desenvolveu muito
desde então foi a promoção. Em um mercado global ultracompetitivo as corporações
reforçam sua imagem e sua marca, com propaganda, estratégias de marketing e relações
públicas como partes essenciais do espetáculo e de suas commodities. A questão das
celebridades também ganhou importância.
42
Os filmes configuram-se como terreno fértil para o espetáculo, através da
conotação hollywoodiana de glamour, moda, publicidade e excesso. Incorporam
mecânicas do espetáculo em sua forma, estilo e efeitos. E tratando de filmes, vale
refletir que o documentário sobre Bebeto Alves não adere a este estilo padrão. Mais
uma Canção está mais ligado ao jornalismo e à arte, do que ao entretenimento.
Na música popular, Kellner (Ibid., p.8) pontua a vinculação à mídia espetáculo
de artistas superstars que investem em videoclipes, concertos extravagantes,
performance da vida pessoal, como Madonna.
Concluindo, ao invés de entender a sociedade do espetáculo como um nexo de
dominação quase totalitário, Kellner (Ibid. p.11) prefere perceber a pluralidade e a
heterogeneidade dos espetáculos contemporâneos, e compreender como um terreno de
disputa, entre dominação e resistência (dialética do presente). Assim, não podemos
excluir Bebeto Alves totalmente da sociedade do espetáculo, porque ele age neste
terreno, tentando ora incluir-se, ora resistir. Talvez possamos entender que na instância
da produção (criação), o artista gaúcho defenda sua liberdade perante as regras da
sociedade do espetáculo. Mas no campo da promoção, tente adaptar-se para conseguir
reconhecimento e retorno financeiro para o seu trabalho.
Referências
AZEVEDO, Luiz Felipe Cardoso. A (des)fronteirização cultural na obra do músico Bebeto
Alves: um estudo de caso. Trabalho de conclusão de curso (Especialização em Pedagogia da
Arte). Monografia. Programa de Pós-Graduação em Educação, UFRGS, 2010.
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UFRGS, 2003.
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Augusto; GONZAGA, Sergius. Nós, os gaúchos 2. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS,
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MAIS uma canção. Direção: Alexandre Derlam; René Goya Filho. [S.l.]: Estação Filmes, 2012.
1 DVD (96 min), NTSC, color.
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43
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Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1978. pp. 61-92.
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moderna canção urbana porto-alegrense. Dissertação. Programa de Pós-Graduação em Letras,
UFRGS, 2012.
TACUSSEL, Patrick. Perfil de uma lenda moderna. In.: GUTFREIND, Cristiane Freitas e
SILVA, Juremir Machado. Guy Debord: Antes e depois do espetáculo. Porto Alegre: Edipucrs,
2007. pp.11-30.
44
Mesa 3 – CONSUMO, TRANSMÍDIA, PUBLICIDADE E ENTRETENIMENTO
Coordenação Paula Jung
Juventude, gênero e consumo midiático: distinções no cenário brasileiro
Daniela Maria Schmitz
Pós-doutoranda em comunicação/ bolsista PNPD-Capes
PPGCOM UFRGS
[email protected]
Resumo
O artigo discute algumas distinções e regularidades encontradas nas práticas de
consumo midiático juvenil, sob um recorte de gênero. Os dados fazem parte de uma
pesquisa nacional comparativa da Rede Brasil Conectado que se propõe a investigar o
consumo midiático juvenil no atual contexto de convergência tecnológica, cultural e
midiática.
Palavras-chave: juventude, consumo midiático, gênero.
Introdução
A Rede Brasil Conectado16 desenvolveu nos últimos três anos uma investigação
nacional comparativa sobre o consumo midiático juvenil no atual contexto de
convergência tecnológica, cultural e midiática. O trabalho de campo se deu em três
etapas: a primeira buscou os dados contextuais (históricos, econômicos, demográficos,
culturais, midiáticos, etc.) dos estados e suas respectivas capitais, incluindo o Distrito
Federal. A segunda fase esteve focada nos jovens das capitais e regiões metropolitanas e
combinou um estudo piloto (aplicação presencial de um questionário com 168 perguntas
para 10 jovens de cada estado), com uma pesquisa exploratória (observação de uma
semana de perfis no Facebook de outros 10 jovens de cada estado)17. Os procedimentos
visavam mapear o consumo cultural e midiático de universitários entre 18 e 24 anos, de
classes populares. Já a terceira etapa consistiu na aplicação de um questionário online,
orientado pelos dados construídos nas etapas anteriores, buscando aprofundar questões e
insights, bem como explorar importantes eixos da pesquisa. Este questionário era
16
A rede é coordenada pela Dr.ª Nilda Jacks e conta com pesquisadores nos 26 Estados brasileiros mais o
DF.
17
Nos dois procedimentos buscou-se trabalhar com cinco garotas e cinco garotos.
45
composto por 31 perguntas e foi respondido integralmente por 6.471 jovens entre 18 e
24 anos de todo Brasil.
Os dados aqui tratados referem-se a este último procedimento, que permaneceu
online por sete semanas entre os meses de agosto e setembro de 2014. A intenção é
apresentar algumas singularidades mais proeminentes encontradas nos dados
construídos no questionário online, ambos sob um recorte de gênero.
A noção de juventude
Entende-se a juventude como um conceito plural (Feixa, 2004; Groppo 2000;
Margulis e Urresti, 2008), condicionado e atravessado por vários aspectos que
possibilitam diferentes formas de ser jovem. O gênero, a situação social e cultural historicamente constituídas – as temporalidades, as nacionalidades e as etnias interferem
e participam desta construção. Esta pluralidade de formas de experienciar e as
imprecisões acerca do que se caracteriza como jovem, assim como as ambigüidades
encontradas na regulação e legitimação do que é ser um sujeito jovem levam a ser mais
conveniente, nas palavras de Margulis e Uresti (2008), a “falar de juventudes ou de
grupos juvenis antes que a juventude”18 (2008, p. 14) (traduz-se).
Aqui parte-se do princípio de que a juventude pode ser tomada como uma
categoria social (Groppo, 2000) e, assim, ultrapassa uma delimitação marcada apenas
pela faixa etária, sendo também uma representação simbólica e uma situação social.
Porém, na argumentação do mesmo autor, não é possível desconsiderar por completo o
critério idade, uma vez que ele acompanha – expresso ou subjacente – as definições
sobre o período juvenil. E é por isso que, na construção do grupo pesquisado, acabou-se
por definir um critério de idade (18 a 24 anos), embora se entenda que a juventude é
muito mais do que um intervalo etário que antecede o que se convencionou chamar de
fase adulta.
Interessa para o presente artigo, focar-se nas diferenças inscritas nas relações de
gênero que contribuem com a diversidade inscrita na cultura juvenil. Alguns
pesquisadores e, principalmente pesquisadoras, têm criticado o fato de que as
investigações que enfocam o período juvenil têm se debruçado mais largamente sobre
meninos e, mais exclusivamente aos garotos pertencentes às classes baixas, minorias e
No original: “hablar de juventudes o de grupos juveniles antes que la juventud” (MARGULIS &
URRESTI, 2008, p. 14).
18
46
marginalizados. Feixa (1998) aponta para as críticas que já eram proferidas por
membros da Escola de Birmingham sobre os estudos realizados justamente pelos
pesquisadores a ela relacionados, e cita um artigo de Garber y McRobie de 1983 que já
indicava deficiências no olhar sobre a juventude feminina. Um artigo mais recente, da
pesquisadora da área da educação, Wivian Weller (2006), continua apontando para a
invisibilidade das meninas nas culturas juvenis, desde os primeiros estudos sobre
juventude da Escola de Chicago e também da Escola de Birmingham, até investigações
mais recentes realizadas na Alemanha, Portugal e Brasil. Além de operarem com o
conceito de juventude como uma só categoria, as “análises sobre a estética corporal,
modos de se vestir, preferências por estilos musicais e visões de mundo desses jovens,
entre outros aspectos, foram em grande parte realizadas com base na observação
participante e em entrevistas com sujeitos do sexo masculino”. (WELLER, 2006,
p.112). A autora ainda acrescenta que em muitos destes estudos também está impresso o
olhar masculino do próprio pesquisador. No referido artigo, Weller questiona se a
invisibilidade feminina nas pesquisas não diria respeito a uma noção muito comum nas
pesquisas sobre juventude em que a cultura juvenil é relacionada a protestos e
resistência e estes aspectos não seriam tão expressivos nas práticas das meninas.
No contexto brasileiro, a produção discente na pós-graduação em Comunicação
na primeira década dos anos 2000 corrobora a ideia de que a juventude feminina não é
enfocada em suas singularidades. Schmitz (2014) identificou que 43 trabalhos focados
de recepção dos meios dedicam-se exclusivamente ao consumo do público jovem19. E,
neste corpus, apenas uma dissertação trabalha somente com jovens do sexo feminino e
discute questões de gênero. Ademais, mesmo que o grupo investigado seja composto
pelos dois sexos, não há análises comparativas que ajudem a indicar especificidades nas
práticas juvenis femininas.
Ainda no âmbito da pós-graduação, o trabalho coordenado por Marilia Pontes
Sposito (2009) debruça-se sobre a produção nas áreas de Educação, Ciências Sociais e
Serviço Social. No período entre 1999 e 2006, foram identificadas 1.427 teses e
dissertações sobre a temática da juventude. Deste total, 133 estudam jovens, sexualidade
e/ou relações de gênero (Carvalho, Souza e Oliveira, 2009), sendo que as autoras
declaram não haver um campo de estudos em “juventude, sexualidade e gênero”, mas
um conjunto disperso e heterogêneo de investigações que tratam da temática, sendo que
19
A obra organizada por Jacks (2014) identifica, entre 5.715 teses e dissertações defendidas na área da
Comunicação, apenas 209 pesquisas empíricas de recepção na referida década.
47
19 abordam apenas jovens do sexo feminino. Do apanhado realizado por Carvalho,
Souza e Oliveira (2009) pode-se dizer que há pouca discussão teórica sobre a questão de
gênero feminino e juventude, no entanto, as autoras declaram que os dados empíricos
sobre ser moça ou rapaz revelam uma grande diversidade no Brasil urbano atual.
Consumo midiático juvenil
Neste ponto, pretende-se apresentar e discutir alguns dados sobre o consumo
midiático juvenil a fim de apontar distinções nas práticas, orientadas pelas relações de
gênero. Longe de esgotar os dados que foram produzidos em campo, este texto é apenas
um pequeno recorte em que se pode ver algumas distinções entre o universo juvenil
feminino e masculino.
O entendimento que se tem do consumo midiático toma por base a
argumentação de García Canclini (2006) e sua proposta de análise sociocultural do
consumo. O autor não caracteriza o consumo midiático como uma modalidade
específica, pois integra-o ao consumo cultural: “Os produtos denominados culturais têm
valor de uso e troca, contribuem para a reprodução da sociedade e às vezes para a
expansão de capital, porém neles os valores simbólicos prevalecem sobre os utilitários e
mercantis” (GARCIA CANCLINI, 2006, p. 88) (traduz-se).
Contudo, na mesma discussão, destaca algumas especificidades do consumo de
meios, pois os produtos midiáticos possuem uma determinada autonomia que diz
respeito à dinâmica própria de produção, estilo, circulação e consumo. Portanto, a
contextualização de Canclini (2006) sobre consumo cultural permite pensar sobre o
consumo midiático como uma vertente dele, pois o autor deixa esse entendimento muito
claro quando se refere aos meios de comunicação, nomeando-os e fazendo uma
diferenciação a respeito da maior implicação econômica na produção cultural midiática.
Toaldo e Jacks (2013) ponderam que se trata tanto do consumo acerca do que a
mídia oferece nos grandes meios (televisão, rádio, jornal, revista, internet, sites, blogs,
celulares, tablets, outdoors etc.), quanto dos produtos/conteúdos oferecidos por esses
meios (novelas, filmes, notícias, informações, entretenimentos, relacionamentos, moda,
shows, espetáculos, publicidade, entre outros). Nesse contexto, afirmam as autoras, “a
48
oferta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo, que se dá tanto através
da oferta de bens (por meio do comércio eletrônico e da publicidade), quanto no que se
refere a tendências, comportamentos, novidades, identidades, fantasias, desejos...”
(TOALDO; JACKS, 2013, pp. 6-7).
Em função dos limites deste artigo, não serão apresentados todos os dados
quantitativos, mas algumass tabelas que apontam distinções encontradas nas práticas
dos dois gêneros. E também algumas inferências com base nos dados produzidos em
campo.
Metodologicamente, foram feitos cruzamentos nos quais a variável independente
é o gênero do respondente e as variáveis dependentes são aquelas relacionadas a seu
consumo midiático. Para inferir a validade estatística das diferenças ou semelhanças
encontradas, valeu-se do teste do quiquadrado (BARBETTA, 2007), um teste não
paramétrico (ou seja que não necessita de dados distribuídos em curva normal) utilizado
para identificar possíveis relações causais entre variáveis qualitativas nominais ou
ordinais. O resultado é significativo quando são encontradas diferenças, com menos de
5% de probabilidade20 de serem frutos de flutuações aleatórias, entre os valores
observados e aqueles que seriam esperados caso não houvesse relação entre as
variáveis. Além disso, foi feita uma análise de residuais padronizados de forma a
identificar aqueles hábitos de consumo midiático de homens e mulheres que, de fato,
parecem ter relação com o gênero, permitindo verificar o quanto homens e mulheres se
afastam da média em relação a determinado hábito21.
Sobre o perfil da amostra, elas são maioria, 53% dos respondentes são mulheres.
No entanto, não há significativas distinções na renda familiar ou na escolaridade de
garotos e garotas, mas sim, nas questões relativas ao trabalho ou à formação.
Gráfico 1
20
Em estatística convenciona-se que resultados podem ser considerados estatisticamente significativos
quando tem uma probabilidade menor do que 5% (p>0,05) de resultarem de flutuações derivadas do
tamanho da amostra ou outras perturbações aleatórias.
21
Em um nível de confiança de 95%, são considerados significativas diferenças maiores do que 1,96 ou
menores do que -1,96 desvios-padrão da média geral.
49
A primeira diferença significativa no perfil da amostra é relativa ao aspecto
laboral. Enquanto as jovens se dividem praticamente meio a meio entre aquelas que
trabalham e as que não os fazem, uma leve maioria de homens trabalha. Dentre outras
coisas, isso pode denotar maior auxílio financeiro das famílias com os homens, maiores
expectativas sociais em relação aos homens e o mercado de trabalho ou mesmo uma
maior necessidade social de autonomia financeira – afinal, o padrão hegemônico coloca
a autonomia financeira como uma das características mais prezadas da masculinidade.
Entre aqueles que cursam (ou já concluíram) os estudos de nível superior, há
uma predominância na área de ciências sociais aplicadas, como administração e
comunicação22. Entre as áreas, há diferenças dignas de nota entre os gêneros: há um
predomínio masculino nas engenharias e ciências exatas e da terra, enquanto mulheres
predominam largamente nas ciências da saúde. Mais uma vez, aqui aparece a clássica
diferença entre os gêneros e as carreiras de nível superior: homens lidam com “coisas”,
enquanto mulheres lidam com outras pessoas.
Especificamente sobre as práticas de consumo concomitante de meios, tem-se o
seguinte panorama. Em atividades que requerem atenção dividida, os dados indicam que
as garotas consomem mais meios ao mesmo tempo do que os homens. Duas questões
exploraram este tipo de prática: uma em relação ao uso do computador associado a
outro meio, e outra o consumo de televisão conjuntamente com outro meio de
comunicação.
Em relação às práticas de uso do computador associado a outro meio, essa
diferença fica mais proeminente23 no caso dos livros (32,2% das mulheres associam o
22
Por tratar-se de uma rede de pesquisadores da área da comunicação, é importante demarcar que o link
para o questionário circulou amplamente entre redes de relacionamento que incluem alunos dos cursos
desta área.
23
Aqui são listados os meios que obtiverem mais de 1,96 de diferença no quiquadrado.
50
uso do computador à leitura de livros, contra 24,8% dos homens) e da televisão (57,8%
das mulheres, versus 50,5% dos homens). Embora, com diferenças percentuais bem
menores em relação aos gêneros, o celular e a televisão online também são mais usados
pelas mulheres junto ao computador. Já em relação ao rádio, tablet, jornal e revista
impressa, os homens têm mais respostas positivas em relação a esse compartilhamento,
contudo, quase o dobro de garotos indica utilizar unicamente o computador (8,3%) em
relação às respostas femininas (4,3%).
No caso do consumo televisivo associado a outro meio, além de as garotas serem
maiores consumidoras (92,9%) de TV do que os jovens (88,1%), elas apresentam
significativa predominância na associação de TV aos livros (19,2% das mulheres o
fazem contra 11,5% dos homens), celular (67,4% das mulheres versus 59,2% dos
homens) e computador em atividades online (57,2% contra 51,1% dos garotos).
Todavia, mesmo que com percentuais bem menores nas distinções, as mulheres também
associam mais a prática de assistência ao uso do computador em atividades off-line, no
uso do tablet (tanto atividades online quanto off-line) e revista impressa. Já os garotos
só estão um pouco à frente no que tange ao consumo de rádio e jornal impresso, mas
quando a televisão é consumida isoladamente a diferença é maior entre os dois grupos:
7,4% dos garotos dizem só assistir a televisão, enquanto no lado feminino o índice
atinge 5,3%.
Gráfico 2
51
No gráfico 2, embora os números indiquem que os homens preferem mais
acessar a internet em casa ou na faculdade, essa diferença fica significativa (com base
nos testes do quiquadrado) no trabalho, onde 14% das mulheres indicam acessar, em
comparação aos 11,6% de garotos. Importante destacar que embora o número de
homens que tenha indicado que trabalha seja maior do que o de mulheres, elas preferem
esse ambiente para o acesso mais do que os jovens.
Gráfico 324
No gráfico 3 é possível perceber uma predileção masculina no uso do
computador de mesa e notebook, elas indicam mais o uso de dispositivos móveis, como
celular com acesso à internet, tablet e smartphone. Contudo, a diferença na posse de
smartphones é significativa, com os garotos à frente, como mostra a tabela 1.
Tabela 1: Posse de dispositivos
Celular com acesso à
internet
24
Masculin
o
Feminin
o
p
27,7%
37,1%
0
O ambiente no caso refere-se à pergunta anterior: qual o principal ambiente de acesso à internet.
52
Residuais
padronizados25
Smartphone
Residuais
padronizados
Tablet
Residuais
padronizados
Notebook/netbook
Residuais
padronizados
Desktop
Residuais
padronizados
-5,0
3,9
66,7%
60,5%
2,4
-1,9
16,1%
19%
-2,1
1,6
69,4%
74,9%
-2,0
1,5
33,1%
27,2%
3,4
-2,6
0
0
0
0
Pela tabela é possível perceber uma preferência (ou condição de posse, embora a
renda familiar não seja tão distinta entre garotos e garotas) feminina pelo celular com
acesso à internet, tablet, notebook/netbook, enquanto os garotos estão na frente na posse
de smartphone e desktop. Os três dispositivos de maior uso das jovens oferecem
mobilidade, enquanto os meninos indicam um móvel e outro não.
Algumas poucas considerações
O extenso banco de dados construído na pesquisa empreendida pelas 27 equipes
da Rede Brasil Conectado possibilita uma variada gama de cruzamentos e aqui tentouse, ainda que preliminarmente e de forma bem pontual, indicar algumas distinções entre
práticas de consumo midiático juvenil femininas e masculinas.
Em primeiro lugar, demarca-se que no geral dos dados que já foram analisados
não há grandes distinções entre as preferências femininas e masculinas, mas sim
nuances que delimitam algumas tendências de gostos, práticas e rituais. Aqui
apresentou-se dados que demonstram que: a) as garotas experienciam mais a
convergência midiática do que os garotos, já que elas consomem/usam ao mesmo tempo
25
Os residuais padronizados indicam quando a variável possui relevância pois a diferença esta acima de
1,96 ou menor do que -1,96 desvios-padrão da média geral.
53
mais de um meio de comunicação, enquanto os garotos indicam focar sua atenção em
apenas um meio muito mais do que as jovens; b) as jovens dão preferência ao uso de
dispositivos móveis, ainda que eles possuam mais smartphone que elas; c) eles estão
mais inseridos no mundo do trabalho, mas elas acessam mais do que eles a internet no
ambiente laboral.
Mas, para além do que foi apontado nos dados aqui apresentados, as análises já
empreendidas indicam que as jovens utilizam mais dispositivos e meios que as colocam
em conexão com outras pessoas, além de serem mais afeitas ao uso do celular para
ligações, envio de SMS e uso de whatsapp do que os garotos. Já eles são maiores
usuários de Facebook e Youtube, com bastante ênfase à assistência de tutoriais neste
útimo. No geral, o consumo de televisão é baixo entre os respondentes, sendo que os
garotos ainda assistem menos TV do que as mulheres. Enfim, ainda há muito a ser
explorado nos dados produzidos em campo até que o panorama das distinções esteja
completo.
REFERÊNCIAS
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Nilda Jacks. (Org.). Meios e audiências II: a consolidação dos estudos de recepção no Brasil.
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TOALDO, Mariângela; JACKS, Nilda. Consumo midiático: uma especificidade do consumo
cultural, uma antessala para os estudos de recepção. 2013, Salvador. In: XXII Encontro da
Compós. Salvador/BA, 2013.
54
WELLER, Wivian. A invisibilidade feminina nas (sub)culturas juvenis. In: COSTA, Márcia
Regina; SILVA, Elisabeth M. da. Sociabilidade juvenil e cultura urbana. São Paulo: Educ, 2006.
55
Produção de sentido de gênero na transmidiação de Katniss Everdeen
Julherme José Pires26
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Resumo
A partir da queda no número de protagonistas mulheres nas maiores bilheterias do
cinema comercial dos Estados Unidos, este trabalho investiga, pelo viés da
recepção transmidiática, a contribuição de um dos exemplos mais populares das
mídias na atualidade, Katniss Everdeen de Jogos Vorazes, na produção de sentidos
de gênero. Propõe-se aqui, uma análise das respostas de sujeitos comunicantes,
num questionário distribuído no Facebook, que mantêm ou mantiveram contato
com JV. A partir daí, é possível entender como se dá a produção de sentido na curva
transmidiática, como eles se alteram e como a transmidiação em si se oferece para
reflexão no campo da comunicação.
Palavras-chave: sentido; sujeito comunicante; transmidiação; gênero.
Introdução
Em 1973, estreava na rede de cinemas comerciais do mundo todo, a história
de uma menina que estava possuída pelo diabo. O Exorcista foi a maior bilheteria
nos cinemas dos Estados Unidos naquele ano. Nos 39 anos seguintes, os filmes que
estiveram no topo desse ranking, foram todos protagonizados por homens. Em
2013, a história de uma menina que se rebelava contra um sistema opressor em
seu país, se tornaria a maior bilheteria em território estadunidense. Jogos Vorazes:
Em Chamas quebrou com uma sequência histórica de supremacia masculina e
trouxe à tona algumas problemáticas da relação comunicação e gênero.
A participação das mulheres como protagonistas em filmes é muito baixa.
“Protagonistas mulheres figuram em 12% entre os 100 filmes de maior bilheteria
em 2014” (LAUZEN, 2015, tradução nossa) – na rede de cinemas comerciais dos
Estados Unidos. Esse percentual representa uma queda de 3% em relação a 2013 e
4% se comparado com 2002. Ou seja, além de o quadro ser baixo, nos últimos anos
houve um retrocesso. Os dados apresentados pela pesquisa de Lauzen (2015)
ainda apresentam outros agravantes. No total de participação de mulheres como
protagonistas, as de raça ou cor Branca representam 74% do total. Há registros de
26
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos. E-mail:
[email protected].
56
outras raças ou cores: Negra (11%), Latina (4%), Asiática (4%), de outras
nacionalidades (3%) e outras (4%).
Se por um lado JV quebrou com um dos aspectos hegemônicos do cinema,
apresenta um contexto complexo. Enquanto Suzanne Collins dá vida a Katniss nos
livros num corpo “cor de oliva”, cabelo “liso escuro” e “olhos cinzentos”, a produção
do filme demandou uma atriz branca, “naturalmente bonita, sob um aspecto
atlético masculino”27. Jennifer Lawrence, a atriz escolhida, está dentro dos padrões
estéticos femininos universais da comunicação, bem diferente da descrição da
escritora.
Nesse sentido, podemos observar que alguma coisa está acontecendo entre
a produção e o consumo midiáticos. A questão que levantamos para análise não é
se JV é um exemplo positivo ou negativo de protagonismo feminino, mas como esse
protagonismo se apresenta, quais são seus sentidos, e mais propriamente como um
problema do campo científico da comunicação, como se dá a produção de sentido de
gênero na transmidiação? Esta pergunta está no centro do entendimento dessa
forma cada vez mais presente na vida humana, que não está presa a aspectos
técnicos ou a uma passividade alienante, mas que está cada vez mais presente,
dinâmica e com poder de moldar identidades.
1. A recepção transmidiática e o sujeito comunicante
Star Wars28 foi um marco importante para um novo modelo comercial de
comunicação de massa. A franquia não ficou limitada a exibição dos filmes, mas
difundiu narrativas de seu universo em diversos outros produtos, como revista em
quadrinhos, jogos e brinquedos. Mesmo antes da popularização da Internet, esta
foi a primeira franquia cinematográfica a estender seus braços para outras
operações de mídia, propondo novos capítulos e histórias inteiras longe da telona.
A transmidiação é entendida aqui em acordo com o conceito proposto por
Fechine et al. (2013, p.26), “[...] um modelo de produção orientado pela
distribuição em distintas mídias e plataformas tecnológicas de conteúdos
27
JURGENSEN, John. The Newcomers. The Wall Street Journal; 25 fev. 2011. Disponível em:
<http://www.wsj.com/articles/SB10001424052748703529004576160782323146532>. Acesso em 09 ago.
2015.
28
Aqui tratamos da “série antiga”, dirigida por George Lucas: Star Wars (1977); O Império Contra-Ataca
(1980); e O Retorno de Jedi (1983).
57
associados entre si e cuja articulação está ancorada em estratégias e práticas
interacionais propiciadas pela cultura participativa”. Para os autores supracitados,
a transmidiação é estimulada pelo ambiente da convergência (JENKINS, 2009).
“Bem-vindo à cultura da convergência, onde as velhas e as novas mídias colidem,
onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor
de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis” (Ibidem,
p. 29).
Nosso foco de pesquisa é na recepção transmidiática de JV. Nesse ambiente
transmidiático a recepção perde sua característica implícita na nomenclatura de
recebimento do conteúdo e fim de história. Na transmídia, a circulação e a quebra
de barreiras técnicas intensificam esse processo de comunicação entre as mídias e
os sujeitos comunicantes. Para Lopes (2011, p. 411), “[...] talvez nunca tenhamos
acompanhado tamanho fluxo de conteúdos que perpassem as diversas mídias e,
reinventando-se a partir de cada uma delas, [...] tal como observamos no momento
atual”. Isso significa uma ampliação na “fluidez e a possibilidade de caminhos de
múltiplas direções” (Ibidem).
JV aparece em 2015, na era da Internet, como uma das franquias mais
transmidiáticas da história. Sua linha de artefatos narrativos e produtos de
consumo provavelmente ultrapassa qualquer aspiração inicial de George Lucas,
mentor de Star Wars. Um breve mapeamento nos deu a ver produtos das mais
diversas linhas: 1) narrativos – livros, filmes, jogos; 2) vestíveis – maquiagem,
pulseiras, pingentes e broches; 3) colecionáveis – bonecos, bonecas e moedas. Mas
há ainda milhares de outros tipos de produtos ofertados em lojas online,
atravessando todas as linhas do consumo. Cada um desses produtos possui seus
impactos nos sujeitos comunicantes29. Dos produtos narrativos, por acrescentar na
história; dos vestíveis, por fazer com que os sujeitos se sintam parte da história; e
dos colecionáveis por aumentar a estima e os sentimentos de afeto ou orgulho que
alimentados pela franquia.
A produção de fãs também faz parte do jogo transmidiático. Aqui
mobilizamos o conceito de Cultura da Participação, de Shirky (2011). Na lógica das
mídias tradicionais, não havia possibilidades técnicas de uma comunicação de
29
Na perspectiva de Maldonado (2014, p. 26), as pessoas não são meras receptoras em seu sentido
passivo do conceito, são “sujeitos comunicantes, cidadãos que têm questões importantes para falar,
ensinar, aprender, questionar e produzir”.
58
muitos para muitos, e sim de um para muitos. Para o autor, “a lógica da mídia
digital, [...] permite que pessoas antes conhecidas como espectadora agreguem
valor umas às outras” (SHIRKY, 2011, p. 41). Essa qualidade proporcionada pela
lógica digital abre novas fronteiras na produção de sentido, ampliando o fluxo
comunicacional.
A transmídia, portanto, é própria do ambiente da convergência das mídias e
da cultura da participação. Ambas, possibilidades tecnológicas e as condições
sociais, resultam no sucesso da transmídia como lógica natural da expressão
(comunicação e sociabilidade) humana.
2. Jogos Vorazes na transmídia
Este capítulo trata-se de uma análise da pesquisa exploratória desenvolvida
em julho de 2015, com o objetivo de coletar pistas, vestígios e informações
relevantes para encontrar possíveis caminhos de pesquisa. O corpus aqui se
constitui de 95 respostas a um questionário30 distribuído em dois espaços online
principais: o perfil do pesquisador no Facebook e o grupo Jogos Vorazes 74ª Edição
- Curtidores'31, também no Facebook. É importante salientar que a participação
desses sujeitos corresponde a uma das realidades de pesquisa possíveis e que as
informações trazidas a seguir servem como pistas e vestígios sobre a comunicação
transmidiática.
Entre os respondentes, 62% têm entre 11 e 17 anos, 37,8% têm entre 18 e
27 anos e 2,2% têm mais de 30 anos. Do gênero: feminino 74,7% e masculino
25,3%. Da cor ou raça: branca 63,8%, parda 24,5%, preta 8,5% e indígena 3,2%. Da
escolaridade: educação básica 60%, graduação 21,1%, pós-graduação 10,5% e
outros 8,4%.
A primeira constatação que fazemos é sobre a recepção transmidiática.
Como mostra a Figura 1, os sujeitos mantêm contato com a oferta transmidiática da
série. Apenas duas pessoas que responderam o questionário não assistiram ao
filme Jogos Vorazes (2012). 93% assistiram ao segundo filme e 90% assistiu ao
terceiro. Observamos que a média de leitura dos livros ficou em 73% do público
30
31
http://bit.ly/PesquisaJogosVorazes
Disponível em: <https://www.facebook.com/groups/520336598082472/>. Acesso em 14 nov. 2015.
59
respondente, variando de 4 pontos percentuais entre o mais lido (o último livro) e
o menos lido (o segundo). Aqui é importante pontuar, que algumas pessoas
preferiram ler apenas o último livro, acreditamos que isso se deve ao contato com
as duas primeiras narrativas por meio do cinema.
Figura 1 – Recepção transmidiática de JV.
Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google
Drive.
Neste primeiro gráfico notamos a importância do Facebook como
plataforma de vinculação dos sujeitos com a série. O grupo em que lançamos o
questionário tem cerca de 10.500 membros e a página oficial dos filmes32 tem
22.490.018 curtidores. Em seguida, a comunicação através de notícias mostra como
elas são importantes na formação transmídia da série. Elas não são caracterizadas
por conteúdo oficial (apesar de os relises pautarem muitas das notícias) e nem por
conteúdo de fãs, sendo problematizações jornalísticas e críticas da série. Youtube,
Fanfic e Twitter vêm logo em seguida.
O Youtube, acredito, por ser o meio em que as pessoas encontram trailers,
cenas, bastidores, entrevistas, vlogs (com críticas e tutoriais) e fanvids, dando a ver
o conteúdo audiovisual, focado especialmente nos filmes. Fanfictions, histórias
ficcionais criadas a partir da narrativa de JV, é a parte literária, própria da
produção de fãs. No site fanfic.net, JV aparece como a quinta franquia literária com
maior número de fanfics, com 43.500 publicações. E a relevância do Twitter, assim
32
https://www.facebook.com/JogosVorazesOFilme/
60
como do Facebook e do Whatsapp, propõem uma conexão entre os próprios
sujeitos, gerando conversas sobre a série, em espaços autônomos e privados.
Uma minoria acessa jogos (em geral) e Role-Playing Games (RPGs). Esse
tipo de interação com a série, talvez, esteja entre as mais íntimas, junto com seguir
tutoriais de, por exemplo, como fazer a trança de Katniss e o uso de roupas e
acessórios da personagem. Apesar de serem coisas de naturezas diferentes, elas
têm algo em comum: a série como ação. Transcende o nível primário (assistir e ler)
e o secundário (produzir novas narrativas), chegando ao terceiro (a ação e
expressão técnica nos perímetros e na transformação da ficção).
A transmídia de JV, portanto, se mostra de altíssima relevância numa
pesquisa sobre sua recepção, e pode influir, sob diversos níveis, na produção de
sentido sobre suas narrativas.
3. Curva transmidiática em Jogos Vorazes
Na trama de JV, Katniss Everdeen é uma jovem de 16 anos que mora com a
mãe e a irmã mais nova. O pai morreu num acidente na mina de carvão, principal
campo de trabalho no Distrito 12, onde moram. Esse é o lugar mais afastado da
Capital, onde fica a sede do governo de Panem, o país ficcional. A história se passa
num futuro distópico em que o país fora arrasado por uma tentativa de revolução
popular contra as estruturas governamentais. Um regime totalitário se constituiu
após este evento, formando um rígido controle das atividades de toda a população,
que vive na miséria. Enquanto isso, os moradores da Capital desfrutam da riqueza
e do luxo, sustentados pelos distritos. Katniss se desafia a participar do rito anual
chamado “Jogos Vorazes” e a partir daí começa a chamar à atenção de toda a nação.
Passando pelo processo de negação, Katniss aceita o desafio de liderar
simbolicamente um levante contra tudo o que ali está posto.
Em análises
anteriores,
constatamos uma
produção
de
sentidos
amplamente favorável a personagem. Há discussões intensas sobre as relações de
gênero que Katniss apresenta – inclui-se aí o feminismo. O esforço a partir daqui é
entender como as produções de sentido dos sujeitos comunicantes alteram-se
quando se tem diferentes consumos de mídia na transmidiação. A curva
transmidiática na recepção, em outros termos, representa aqui a medição dos
61
contatos com as narrativas ao longo das diferentes mídias e dos sentidos
produzidos através dele.
É claro que as produções de sentido derivam de uma série de outras
dimensões (MALDONADO, 2014), especialmente da história de vida e da
subjetividade de cada sujeito. O objetivo aqui, portanto, é de examinar como as
narrativas e outros valores simbólicos relacionados à transmidiação representam
mudanças na produção de sentido dos sujeitos.
3.1 Favoritismo
Katniss Everdeen é a personagem favorita do maior número de sujeitos
(42,1%), seguida de Peeta (23,2%). Nota-se que Katniss é a favorita de menos da
metade dos sujeitos, e que o favoritismo se distribui por diversos outros
personagens. Mas para os respondentes que não leram os livros, Katniss é a
favorita de 86,7%. Entre os respondentes que leram todos os livros, Katniss é a
favorita de 36,4%. E entre os sujeitos mais conectados com a série, que declararam
manter contato por meio de 4 ou mais canais, Katniss é a favorita de 34,6%.
Constata-se aqui duas coisas. 1) os sujeitos mais envolvidos transmidaticamente
com a trama, em sua maioria, leram todos os livros; 2) a hipótese de que a Katniss
dos livros tem dimensões negativas não presentes no cinema ou porque
simplesmente outros personagens cativam o gosto dos leitores. Ou seja, percebe-se
uma alteração nos sentidos de favoritismo de forma drástica durante a curva
transmidiática.
3.2 Identificação
Figura 2: identificação dos sujeitos com Katniss, 1 “Nem um pouco” e 5
Muito”.
Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google
Drive.
62
Aqui verificamos um equilíbrio pendendo para um resultado positivo sobre
a identificação dos sujeitos com Katniss. Mas na curva transmidiática, há uma
pequena alteração nos dados relativos ao envolvimento dos sujeitos com a série.
Aqueles que mantêm contato com 4 ou mais canais, declararam identificar-se mais
com a personagem do que aqueles que mantêm menos contato. Atribui-se a isso, a
condição narrativa mais aprofundada, que dá a ver a complexidade da personagem
e a possibilidade de identificar essa qualidade em si. No entanto, se considerarmos
os leitores de todos os livros, o índice na escala permanece similar ao geral. Isso
pode nos dizer que a identificação não passa ou se deve pouco em relação a
transmídia, mas tem a ver com outras dimensões da recepção.
4. Katniss enquanto mulher
Até aqui, constatamos que a transmídia é uma dimensão importante, mas
não decisiva, nas pesquisas de recepção. Esse processo comunicacional, no
ambiente da convergência e da cultura da participação, gera novos sentidos e torna
a performance de identidade (ECOSTEGUY, 2001) ainda mais complexa. O objetivo
agora é entender o processo de produção de sentido de gênero de Katniss, mais
precisamente, através da pergunta no questionário: “Você acredita que há
mulheres como Katniss no mundo real?”.
Figura 3: produção de sentido de gênero sobre Katniss Everdeen.
Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google
Drive.
Figura 4: nuvem de palavras e a frequência com que elas aparecem nas respostas.
63
Fonte: tagcrowd.com
A maioria acredita que há sim mulheres como Katniss na vida real. Na figura
4, podemos ver que os sujeitos vinculam a personagem e as mulheres do mundo
real a conceitos como coragem e luta, que amam e prezam por suas famílias. Mas o
gênero não foi necessariamente considerado ou problematizado nas respostas,
principalmente quando o termo “pessoas” veio à tona. Não há relações intuitivas
de gênero nas respostas, o que nos diz sobre as percepções espontâneas dos
entrevistados.
Nos casos em que a resposta foi “não”, a questão de gênero apareceu apenas
uma vez, em que a resposta não é compreensível, mas diz algo sobre mulheres não
se importarem com a justiça. Em alguns casos, a respostas ganhas uma
complementaridade na segunda pergunta depois dela, “o que você pensa sobre
Katniss?”. Em um dos casos “não”, o respondente diz que ela é única e na outra
considera Katniss como “uma mulher corajosa que arriscou sua vida por salvar sua
irmã caçula e mudou o mundo”.
Entre os sujeitos que leram todos os livros, o percentual de “sim” foi um
pouco maior, de 93,9%, enquanto os mais conectados com a série, 4 ou mais
canais, ficaram no mesmo percentual de entendimento sobre as mulheres.
“Corajosa” foi a característica mais citada nas respostas para as duas perguntas
supracitadas. Uma resposta que representa a maioria delas é esta:
Katniss é uma garota que teve que passar por muitas coisas ela era
aparentemente ninguém. Mas se mostrou forte, inteligente, corajosa. Fez
o que ninguém teve coragem de fazer, enfrentou a Capital, é claro ela não
é perfeita, teve seus momentos egoístas. E sim a mulheres como a
Katniss, corajosas, fortes e inteligentes que dariam tudo para salvar a
quem ama (DHS, 15 anos, gênero feminino).
64
As questões de gênero não apareceram na maioria das respostas, e agora
precisamos pensar por quê. Outras dimensões da subjetividade dos sujeitos estão
muito mais ligadas as suas opiniões objetivas do que os meios em si. É possível que
se compararmos Katniss com outras personagens, as respostas de gênero sejam
mais proeminentes. As questões de gênero também podem estar mais
consolidadas e naturalizadas entre esse público de JV. Outro apontamento que fica
é que os próximos questionários e entrevistas precisam estar mais claros em
relação ao ponto que se quer chegar, ao abrir um canal transparente e focado com
os sujeitos respondentes. Entender se Katniss participou de um processo de
mudança, nesse sentido, continua sendo o desafio de pesquisa.
Considerações finais
A diferença de sentidos conforme a curva transmidiática aponta para
construções narrativas diferentes nas diferentes mídias e apropriações dos
sujeitos também se manifestam de maneiras distintas. A inserção dos sujeitos em
outros espaços e o acréscimo de narrativas, refletiu na diferença de alguns
aspectos importantes. Mas, a transmidiação ainda está longe de ser uma das
maiores dimensões mediadoras na produção de sentido. Os sujeitos comunicantes,
no exemplo da produção de sentido de gênero, não sofreram grandes mudanças de
sentido, partindo das referências de primeiro grau (livro e filme) a outras
dimensões de intimidade, interação e contato.
É importante notar que a maior curva da recepção transmidiática se dá
entre os leitores e espectadores e os espectadores. Nossa hipótese é de que isso tem
a ver mais com as diferenças narrativas, estéticas e técnicas das duas mídias. No
entanto, um dos aspectos sentidos nesta pesquisa, em movimentos de investigação
anteriores, é a importância do fator Jennifer Lawrence. A identificação e a
aprovação da atriz (Figura 5) chegam a ser superior do que a própria personagem
em si.
Figura 5: Identificação e aprovação de JL como Katniss, 1 “nem um pouco” e 5
“muito”.
65
Fonte: gráfico gerado automaticamente pela plataforma de formulários Google
Drive.
Neste artigo, articulamos conceitos para entender a transmidiação ofertada
na convergência e construída por sujeitos no contexto da cultura da participação, e
experimentamos observar a curva transmidiática, enquanto desestabilizadora de
sentidos. Observamos, que no final das contas, mesmo na observação da
transmidiação, há a exigência de abordagens multifocais e olhares contínuos para
novas angulações, dimensões e mediações (MARTÍN-BARBERO, 2008) do objeto. A
transmidiação mostra-se como uma dimensão rica de pesquisa, que atravessada
por outras, pode ser muito produtiva para a pesquisa em comunicação.
Referências
ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Cartografias dos estudos culturais: uma versão
latino-americana. Belo Horizonte: Autentica, 2001.
FECHINE, Yvana et. al. Como pensar os conteúdos transmídia na teledramaturgia
brasileira? Uma proposta de abordagem a partir das telenovelas da Globo. In:
LOPES, M. I. V. (Org.) Estratégias de transmidiação na ficção televisiva
brasileira. Porto Alegre: Sulina, 2013.
JENKINS, H. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de
comunicação. São Paulo: Aleph, 2009.
LAUZEN, Martha M. It’s a Man’s (Celluloid) World: On-Screen Representations of
Female Characters in the Top 100 Films of 2014. San Diego: Center for the Study of
Women in Television and Film, San Diego State University, 2015.
LOPES, Maria Immacolata Vassallo de. Uma agenda metodológica presente para a
pesquisa de recepção na América Latina. In: Jacks, Nilda (coord/ed). (Org.).
Análisis de recepcíon en América Latina. Quito: Editorial Quipus, 2011.
MALDONADO, Alberto Efendy (Org.). Panorâmica da investigação em
comunicação no Brasil. 1 ed. Salamanca Espanha: Comunicación Social Ediciones
y Publicaciones, 2014.
66
MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. Rio de Janeiro: UERJ, 2008.
SHIRKY, C. A Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo
conectado. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
67
O CIBERESPAÇO E A ORIGEM DE NOVOS FENÔMENOS CULTURAIS: DA
HALLYU 2.0 À CULTURA NOBROW
Janaína Quintas Antunes
Doutoranda em Comunicação e Semiótica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
[email protected]
Quiona Norberto Santos
Mestranda em Comunicação e Semiótica
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
[email protected]
Resumo:
A comunicação tomou novos rumos na sociedade hipermidiática contemporânea e, em
especial com a introdução do ciberespaço, deu origem a novos fenômenos culturais. O
fluxo de influências culturais, antes determinado territorial e temporalmente, passa a
ganhar uma multidimensionalidade ao tornar possível a internacionalização de todas
culturas. A ilustração de dado momento histórico se dará com exemplos de fenômenos
culturais enraizados nos novos meios comunicacionais, da Hallyu 2.0 à cultura Nobrow.
Palavras-chave: Fluxo Cultural; Consumo Cultural; Cultura Participativa; Ciberespaço;
Cibercultura; Sociedade Hipermidiática; Hallyu 2.0; Nobrow.
Resumo expandido:
A comunicação tomou novos rumos na sociedade hipermidiática contemporânea e, em
especial com a introdução do ciberespaço, se tornou o berço de novos fenômenos
culturais característicos da cibercultura, impossíveis de terem sido desenvolvidos se não
no advento desta. O fluxo de influências culturais, antes determinado territorial e
temporalmente pelos meios de comunicação tradicionais, os supera na glocalidade do
ciberespaço, e passa a ganhar uma multidimensionalidade ao tornar possível que
pessoas do mundo todo fossem influenciadas por culturas de todo o globo e de todas as
épocas simultaneamente e fora de uma ordem lógica definida. A ilustração de dado
momento da história da comunicação se dará com exemplos de fenômenos culturais
profundamente enraizados nos novos meios comunicacionais, em específico, no
ciberespaço. Estes exemplos incluem a Hallyu 2.0, isto é, a “segunda onda” de
popularização internacional da cultura sul-coreana via internet a partir de 2007. Por
meio das interações em rede entre jovens mundiais é possível entender a disseminação
global de produtos culturais locais e o desenvolvimento de estéticas híbridas, reflexos
da própria “cultura de participação” característica das redes digitais. Dessas estéticas
híbridas se chega ao exemplo final da cultura Nobrow, a evolução do hibridismo para
além deste, já que a influência cultural atemporal e a geográfica do ciberespaço produz
objetos culturais únicos, “além-híbridos”, inclassificáveis.
68
Introdução
A contemporaneidade e seus novos padrões comunicacionais hipermidiáticos
nos convidam a pensar sobre as transformações na cultura humana que são
consequência direta desses. As grandes inovações tecnológicas, com especial ênfase
neste presente artigo para o ciberespaço, nos trouxeram novos hábitos e novos processos
comunicativos que reinventam a cultura hoje, assim como seu fluxo e produção.
Dessa maneira, vivemos um momento extremamente propício para a reflexão
sobre as implicações do ambiente sobre o ser humano, e vice-versa. O ambiente físico
em que um indivíduo se encontra sempre foi a sua grande fonte de influência cultural, e
o fluxo cultural se dava temporalmente no espaço físico. Contudo, no ciberespaço
tempo e espaço se perdem e uma nova cultura mundializada de circulação instantânea
emerge; fazendo o território físico gradativamente dar lugar ao virtual. Com a
disseminação universal da cibercultura, cada indivíduo sofre influência cultural de
conteúdos do ciberespaço, e mesmo as pessoas que não têm acesso a ele sofrem essa
influência de forma indireta. O ciberespaço nos trouxe a possibilidade de sermos
influenciados por diversas culturas de diferentes lugares e tempos; sendo o ambiente no
qual ocorre a internacionalização de culturas, ele possibilita sintetizar o produto criativo
da confluência de características culturais de todo planeta.
Essa influência global atemporal e ageográfica traz como consequência novos
produtos, ou novos bens culturais, novos fluxos e modos de circulação da cultura. Tratase de um fenômeno de articulação cultural simultaneamente local e global, assim
profundamente mergulhado no conceito tipicamente cibercultural de Glocalidade:
O glocal [...] é, antes de tudo, a invenção tecnocultural precípua e não
raro olvidada [...] de um estirão social-histórico distinguido desde o final
do século XIX por avanços sociotécnicos sem par no âmbito das
telecomunicações e que acabou por condicionar a expansão [...] do modo
de produção capitalista industrial para o universo sociomediático das
ondas eletromagnéticas, em coincidência histórica provável com sinais
evidentes de esgotamento material e presencial dessa formação social.
[...] Numa palavra, uma invenção transepocal, cuja materialidade
multitecnológica, na forma dos variados dispositivos de interconexão em
tempo real [...] está incrustada em todos os domínios sociais.
(TRIVINHO, 2012, p. 23-24).
69
Glocalidade
Glocal é o sítio no qual estamos quando não nos encontramos nem no local nem
no global. Quando, por exemplo, visitamos um museu virtual, não estamos literalmente
na cidade, na localização desse museu; porém também não nos encontramos na cidade
onde nosso corpo físico se encontra, pois não estamos vivenciando o ambiente desta
localidade, mas sim o ambiente glocal da localização do museu que nos recebe pelo
virtual, aquele que se apresenta por meios virtuais que foi teletransportado pela
tecnologia.
A Glocalidade é um fenômeno mundial que atinge todas as pessoas do mundo
através do ciberespaço e atinge até mesmo as pessoas sem acesso à internet, que são
influenciados de forma indireta, pois elas sofrem essa influência ao entrar em contato,
por mais esporádico que este seja, com um individuo que tem influência direta do
ciberespaço. A cibercultura sofre uma disseminação universal proporcionada por todos
os indivíduos que têm contato com o ciberespaço.
Na Glocalidade estamos isolados, tanto no Glocal Lato Sensu quanto no Glocal
Stricto Sensu, pois no primeiro estamos isolados por falta de acesso à internet, no
segundo estamos isolados do mundo territorial ao nosso redor protegidos por um
Bunker Glocal, isto é, nossos infinitos gadgets que nos separam do ambiente físico em
que nosso corpo se encontra. Estamos isolados territorialmente, mas unidos ao mundo
todo pelo Ciberespaço. Um indivíduo pode se isolar da tecnologia, mas jamais pode
fugir do processo irreversível da Glocalidade.
O processo de Glocalização significa ainda, desenvolvimento cultural, na
medida em que permite uma miscigenação no campo cultural, uma hibridação de
conteúdos na rede sem fronteiras.
Fluxo Cultural na Cibercultura
As influências culturais que dão origem às novas formas de cultura e que se
mostram apoiadas nos subsídios que o ambiente dispõe superaram o limite da
materialidade com o ciberespaço e passaram a se expressar por meio de extensões da
realidade; o modelo de pensamento cultural sofreu inovações transcendendo o espaço
geográfico e o tempo cronológico, dando origem e desenvolvendo toda uma nova
cultura e um novo modo de circulação, repercussão e fluxo desta.
70
Anteriormente éramos influenciados culturalmente pelo o que estava próximo de
nós, nossas fontes de cultura eram aquelas que estavam visíveis e acessíveis
territorialmente e temporalmente. Não tínhamos grandes possibilidades de influências
de culturas longínquas no espaço e no tempo, ao mesmo tempo havia pouco contato
com registros históricos da nossa história humana. A nova condição de Glocalidade
impõe uma restrição, a de que não é mais possível separar conteúdos que são circulantes
internacionalmente, ou nacionalmente ou localmente, ou ainda, em termos do lugar que
você ocupa e do lugar em que está seu corpo.
A evolução e o claro delineamento linear temporal da cultura deixam de existir
no advento da cibercultura, pois a Glocalidade torna possível que um indivíduo seja
influenciado por culturas e movimentos culturais que na nova ordem de conectividade
encontram-se “fora” de uma determinada ordem temporal ou geográfica.
Um artista (ou qualquer pessoa, em seu papel de produtor de cultura)
pode ser, por exemplo, conjuntamente influenciado por um artista
neolítico asiático e por um expressionista africano.
O ciberespaço nos trouxe um enorme número de possibilidades de
influências vindas de diversas culturas, de diferentes épocas e
localizações. Somos imersos em um mar de influências infinitas, muitas
vezes não sendo pessoalmente capazes de reconhecer quais são elas ou
suas origens, consequentemente enfrentando uma grande dificuldade em
nomear ou nos integrarmos a um movimento cultural singular, já que
hoje somos completamente atemporais e ageográficos. (ANTUNES,
2015, p. 5).
Os novos fenômenos culturais resultantes dessa influência em amplitude
mundial são fruto da multidimensionalidade de todos os processos de produção e da
influência cultural multiaspectal.
Novos fenômenos Culturais: Hallyu Wave 2.0
Hallyu denota a popularização internacional da cultura sul-coreana, em uma
primeira instância no continente asiático na década de 1990, devido à proximidade
cultural, e, subsequentemente no Oriente Médio e norte da África, na América e Europa,
a partir de 2007, impulsionada pelas redes sociais. O termo foi empregado
pioneiramente pelos meios de comunicação chineses para descrever o crescimento do
entretenimento coreano no país via mídia televisiva. Quanto ao conteúdo, basicamente
71
constituía-se por dramas românticos e épicos, por programas de variedades e, em menor
proporção, por animações. Os principais expectadores eram mulheres de meia-idade e
apenas no final da década, despontou-se o interesse dos jovens. Gradativamente, essa
coqueluche cultural contagiou Japão, Taiwan, Hong Kong e Vietnã (JIN, 2012).
Na década seguinte, o investimento governamental coreano em democratizar o
acesso à internet e aos smartphones desencadeou o crescimento e adesão às mídias
sociais como o extinto Cyworld, bem como a popularização de jogos online,
nomeadamente o Lineage e o Aion, que se foram fundamentais no desenvolvimento da
“segunda onda”. Esta foi designada em alusão à “Web 2.0” estruturada para a criação e
a troca de conteúdos gerados pelo usuário e se apoia amplamente em plataformas de
interação social, códigos de software livres e licenças Creative Commons33 (JIN, 2012).
Nesse contexto, o processo que antes se restringia em interações entre jovens coreanos
para o mundo, torna-se do mundo para o mundo mediante YouTube, Vikki,
Dailymotion, fóruns, sites de fãs e blogs. O principal expoente transforma-se no K-Pop,
Korean Pop, sonoridade juvenil que inclui dança, Electropop, Hip Hop e R&B. Nesse
contexto, letras e melodias são tão importantes quanto o elemento visual.
Graças ao estado de convergência midiática, ou seja, conteúdos de diversas
mídias incorporados pela rede e vice-e-versa, o que é transmitido pelas emissoras
também é passível de ser visto. A televisão é essencial no funcionamento da “onda”, já
que os ídolos K-Pop aparecem proliferamente em talk shows, programas de variedades e
em K-Dramas34. Os fãs iniciam com o K-Pop e passam subsequentemente a assistir aos
programas de variedade e dramas, visto que os cantores estão massivamente presente,
dada à ligação estreita entre música e televisão no país (JIN, 2012).
É extremamente curioso pensar que o interesse pela cultura coreana apareceu
mais fortemente apenas no ano de 2009, posto que o Brasil possua a particularidade da
abundância de povos em seu cerne e dentre eles, os oriundos da Coréia do Sul, presentes
no país desde 1923. Observa-se que muitos adolescentes brasileiros depararam-se com a
Hallyu devido afinidades com a cultura Japonesa e o hábito de procurar novidades
online sobre o assunto. Ao tornarem-se fãs de K-Pop, intensificam sua participação,
procurando, recebendo, processando, criando e disseminando informações sobre o
assunto. Por meio de suas diversas interações em rede, majoritariamente com pessoas
do convívio face-a-face de idades semelhantes ou com “estranhos” por quem têm
33
34
Implica na liberação indiscriminada do uso, da edição e da divulgação de algo.
Corresponde às novelas sul-coreanas.
72
alguma afinidade ou admiração35, esses jovens líderes de opinião passam a influenciar
outros membros de seus grupos a também apreciarem os conteúdos da Hallyu e, por
conseguinte, um indivíduo que foi influenciado, pode ser influenciador em outros
grupos, tal qual como narra a teoria Multi-Step Flow36. No Brasil, sites de fãs como o
SarangInGayo
e o KPop Station, e os mashups37 criados desde 2005 por Carlos
Henrique Brandão, o DJ Maza, foram e são essenciais na difusão nacional da Hallyu.
A uma fascinação pela cultura Pop contemporânea do país, também despertou
fascínio pelos aspectos “tradicionais”, culminando no acordo entre embaixadas para a
criação de centros culturais — equipados com bibliotecas especializadas, onde ensinam
o Hangul, o idioma coreano, a culinária, a arte marcial tae-kwon-do, e músicas e
coreografias K-Pop —, e atraindo público para estudos graduados, como de Língua e
Literatura Coreana da USP, em grandes núcleos metropolitanos brasileiros como
Curitiba e São Paulo.
No que tange as práticas culturais híbridas desencadeadas pela Hallyu no Brasil,
destacam-se dois fatos: a criação do B-Pop e o caso do jovem gaúcho Max. O primeiro
acontecimento descreve a demanda insistente de e-mails torrenciais para empresas de
entretenimento a fim de promover audições em busca de talentos brasileiros. Apoiados
pela JS Entertainment, cinco jovens integrantes de várias regiões brasileiras formaram o
grupo Champs e anunciaram a fundação do B-Pop, (Brazilian Pop), ou pop brasileiro
cantado em português e em inglês. Como já constatado no primeiro single “we’re the
champs”, lançado em 2014, desejando combinar K-Pop, rap norte americano e
brasileiro, funk carioca e “ostentação”, MPB, J-Pop (Japanese Pop), entre outros. A
iniciativa incentivou outros grupos como o quarteto feminino independente Queens a
aderir a um esquema criativo parecido (VICE, 2014).
O segundo caso obteve fortes repercussões nas mídias nacional e internacional.
Max, um adolescente brasileiro descendente de alemães, passou por 10 procedimentos
estéticos com o propósito de parecer um coreano “nativo” e expressar sua afeição ao KPop e a K-Dramas. O “Gaúcho Oriental”38 afirma que sua aparência modificada não o
35
Como é o caso da relação de vloggers/bloggers com seus seguidores.
Teoria baseada no postulado Two-Step Flow de Lazarsfeld e Katz, que demonstra a influência social na
difusão de informação, e atualizada, abarcando a realidade Glocal.
37
Músicas originadas da mistura e união de outras músicas. O DJ Maza mescla J-Pop, K-Pop, Pop norteamericano, Funk e Axé Brasileiros. Sua sonoridade o transformou em referência mundial à cultura
popular coreana, até mesmo nos países asiáticos.
38
Referência ao pseudônimo online do rapaz.
36
73
faz se sentir menos brasileiro, visto que a miscigenação é uma característica nacional
(METRO, 2014).
Novos fenômenos Culturais: Nobrow
Nobrow é o conceito para denominar este produto cultural que é influenciado em
amplitude mundial, de natureza inclassificável porque é fruto da multidimensionalidade
de todos os processos de produção e da influência cultural multiaspectal; distribuído de
algum modo por qualquer meio, seja pela internet, pela televisão, por diversas mídias.
Esta nova realidade redefiniu a cultura, fazendo-a deixar de ser apenas uma
soma de fatores culturais que resulta no hibridismo e tornando-a algo novo, único e
inclassificável; isto é, um resultado no qual não é possível reverter a operação
matemática do ciclo de influências culturais para revelar seus componentes incógnitos.
O termo Nobrow foi proposto pelo jornalista e crítico cultural John Seabrook em
2000 e utilizado academicamente pela primeira vez pelo professor Peter Swirski em seu
livro de 2005 para caracterizar essa nova tendência da cultura; foi baseado nos conceitos
de Highbrow e Lowbrow:
A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma
denominação de cultura, artes e literatura, que as caracteriza como
“intelectuais, de alta qualidade”), e à expressão lowbrow (expressão que
caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem conexão ou interesse
em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o
conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem
um direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à
determinada área do conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem
erudita; nem de certo estilo, ou de outro; uma cultura não categorizada.
(ANTUNES, 2015, p.1)
A expressão Nobrow faz referência à expressão highbrow (uma denominação de
cultura, artes e literatura, que as caracteriza como “intelectuais, de alta qualidade”), e à
expressão lowbrow (expressão que caracteriza a cultura, a literatura e a arte como sem
conexão ou interesse em ideias culturais sérias/intelectuais), de maneira a representar o
conceito de cultura sem uma qualificação de lowbrow ou highbrow, sem um
direcionamento específico a determinado tipo de público, ou à determinada área do
conhecimento. Tal cultura não é nem popular, nem erudita; nem de certo estilo, ou de
outro; uma cultura não categorizada. (ANTUNES, 2015, p.1)
74
Nobrow é a evolução do hibridismo, vinda da interatividade típica da
cibercultura (caracterizada como uma cultura interativa digital em tempo real), para
além do hibridismo. É a consequência do diálogo entre culturas e da troca de tradições
culturais plenamente universalizados pelo Ciberespaço, é o surgimento de uma
Criatividade independente de herança cultural local e/ou temporal. Nobrow é o
inclassificável na era da cibercultura, consequência da interatividade mundial.
Além de um novo conceito, Nobrow é também um novo processo
comunicacional, uma nova estética, uma nova perspectiva de contemplar o processo
criativo. É um novo fenômeno na história cultural que caracteriza o século XXI; ele está
surgindo como a cultura do século XXI, nascida sob condições tecnológicas e culturais
específicas da contemporaneidade. Nobrow é a articulação do mundo, é a
internacionalização de culturas de todos os lugares por meio da comunicação
proporcionada pela tecnologia; é um fenômeno glocal.
Enquanto bens culturais híbridos têm características de diversas tendências
juntas em um único trabalho, e enquanto elas podem ou não estar ligadas à cibercultura,
os bens culturais Nobrow são únicos: suas origens e influências podem ser várias e é
impossível reconhecê-las ou traçá-las, tornando sua classificação impossível. Os objetos
culturais Nobrow não são necessariamente vinculados ao digital e ao interativo; eles não
estão obrigatoriamente no Ciberespaço. Contudo, cada obra Nobrow foi influenciada
pelos traços da cibercultura; cada uma recebeu influências diretas ou indiretas de outras
produções e seus produtores do mundo inteiro pelo ciberespaço, ou como mencionado
anteriormente, são fruto do Glocal Lato Sensu; ainda que muitas obras Nobrow sejam
fruto do Glocal Stricto Sensu. É pela articulação social no ciberespaço que a estética da
cultura Nobrow e seus bens culturais são internacionalmente estabelecidos.
Breve Conclusão
A cibercultura e o ciberespaço nos permitem um enorme número de
possibilidades de interação e produção de influências infinitas vindas de diversas
culturas, de diferentes épocas e localizações, exponenciando o fluxo e a produção
cultural.
A atualidade reflete não apenas capacidades inesperadas de sínteses inovadoras
do ser humano, mas também dá acesso ao entendimento de fenômenos humanos de
maior complexidade e magnitude interacional a partir das fronteiras expandidas da
sociedade e de seus novos produtos culturais. Através da Glocalidade, subproduto da
75
cibercultura, da qual todas pessoas do mundo têm acesso direto ou indireto; tivemos a
internacionalização de culturas acessível à todos. Assim, glocalização automaticamente
subentende uma maior circulação e desenvolvimento cultural.
De tal modo, com a influência cultural se dando de maneira mundializada,
atemporal e ageográfica; naturalmente surgem novos produtos culturais. E resultado
direto desse desenvolvimento cultural foram a Hallyu 2.0 e o Nobrow: o processo de
glocalização pode criar inúmeras subculturas como a Hallyu 2.0; ao mesmo tempo em
que redefine todos os parâmetros da nossa sociedade contemporânea com a cultura
Nobrow, que abrange todas as novas subculturas. A Glocalidade implica e significa
infinitas possibilidades para o desenvolvimento cultural humano.
Referências
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Cultura Nobrow. In: Simpósio Nacional de História Cultural, VII, 2014, São Paulo.
Anais do VII Simpósio Nacional de História Cultural - Escrita, circulação, leituras e
recepções. São Paulo, Edição 1, 2015, p. 1 – 8.
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JOURNAL Fall, University of Michigan, 2012.
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em:
http://metro.co.uk/2014/06/02/brazilian-man-has-10-operations-so-he-can-lookasian-4747511/. <Acesso em 20 de novembro de 2014.
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em tempo real. São Paulo: AnnaBlume, 2012.
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http://noisey.vice.com/pt_br/read/o-champs-quer-criar-o-b-pop.<Acesso em 20 de
novembro de 2014.
76
Mesa 4 – CULTURA, MEMÓRIA E IDENTIDADES
Coordenação Ana Carolina Escosteguy
Eventos, memória, história e educomunicação – a FENADOCE em Pelotas
Cristina Geraldes da Porciúncula - - Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, RS39
Margareth de Oliveira Michel - Universidade Católica de Pelotas, Pelotas, RS40
Jerusa de Oliveira MICHEL- Universidade de Federal de Pelotas, Pelotas, RS41
Resumo
O trabalho é resultado de pesquisa desenvolvida em duas etapas: levantamento bibliográfico e
pesquisa de campo realizada que analisou diferentes aspectos da Fenadoce em Pelotas e sua
relação com áreas como memória, história e educomunicação. O evento
apresenta
características relevantes: lembra a história dos doces pelotenses mesclada com a história dos
grupos étnicos que compuseram a cidade e desenvolve projetos educacionais vinculados à
temática.
Palavras-chave: Eventos, memória, história, educomunicação
Os eventos Corporativos
Os eventos corporativos tem se mostrado eficazes tanto no campo institucional, quanto
promocional e mercadológico, e podem se desenvolver nas mais diversas áreas, trazendo
expressivo retorno, expresso pelo valor agregado à sua imagem, pela adesão massiva dos
públicos, pela aceitação e cobertura da mídia, e pelo retorno de vendas. O crescimento do
setor mobilizou e aqueceu vários setores da economia e representa uma parcela respeitável
do PIB, motivando a competitividade, a qualificação dos profissionais envolvidos, em
função dos investimentos realizados. São fatores que intervem na realidade social,
construindo redes de relacionamentos, gerando sentidos para suas experiências e mostrando
entendimento e compromisso com os públicos, gerando postos de trabalho diretos e
indiretos, e desenvolvendo atitudes de cidadania empresarial e responsabilidade social.
Os eventos tornaram-se um segmento em expansão no mundo todo e o Brasil tem se
destacado neste cenário. Stefano42 em artigo publicado pela Revista dos Eventos, diz que
Mestre em Comunicação Social pela PUC-RS. Professora do curso de Comunicação Social da
UCPEL, Pelotas, Coordenadora da Habilitação em Publicidade e Propaganda e Mestre em
Comunicação Social pela PUC-RS, email: [email protected]
40 Professora do curso de Comunicação Social da UCPEL, Pelotas/RS, Mestre em Desenvolvimento
Econômico e Social e Mestre em Lingüística Aplicada pela UCPEL, email:
[email protected]
41 3Doutoranda e Mestre em Memoria Socia le Patreimônio Cultural. Relações Públicas da
Universidade Federal de Pelotas, Mestre em Memória e Patrimônio pela UFPEL, email:
[email protected]
42 www.revistadoseventos.com.br/acesso
39
77
graças ao trabalho desenvolvido na área está ocorrendo só em São Paulo, por exemplo, “a
mais surpreendente avalanche de convenções, feiras e congressos de sua história,
alavancando 56 setores da economia local e convertendo-se em uma meca do turismo de
negócios. Tal constatção também foi feita pela ABEOC43 na pesquisa II
Dimensionamento Econômico da Indústria de Eventos no Brasil. Há um consenso no
mercado de que os eventos são o caminho mais curto para a aproximação com o
mercado, os clientes, fornecedores e com o próprio público interno das organizações.
Os eventos são um instrumento importante de comunicação de massa, e
geralmente utilizam veículos especiais, para chamar atenção e produzir no público uma
impressão favorável. Eles tem sido utilizados com a maior eficácia em todos os setores
da Comunicação Empresarial/Organizacional: relação com acionistas, com a
comunidade em geral, com fornecedores, consumidores, funcionários, distribuidores e
representantes, no posicionamento cidadão e nas ações sociais etc. São muitos os tipos
de eventos que podem ser desenvolvidos como simpósios, seminários, congressos,
conferências, mostras, exposições, feiras, e muitos outros. Nesse trabalho será abordado
o conteúdo relativo às feiras.
De acordo com a UBRAFE44 (União Brasileira dos Promotores de Feiras),
acontecem todos os anos cerca de 150 grandes feiras nacionais e internacionais de
negócios em mais de 20 cidades brasileiras. Também ocorrem centenas de feiras e
exposições menores, de caráter regional e local, realizadas em inúmeras cidades de
todos os estados do País, tornando as feiras as maiores vitrines do setor produtivo
nacional. Nelas são exibidos os mais modernos e eficazes produtos, serviços,
equipamentos, tecnologia e maquinaria; oferecem ainda grandes oportunidades de
atualização profissional em congressos, seminários e outros eventos de disseminação e
debate de idéias, tematizam atividades, produtos, regiões. Combinadas ao turismo,
movimentam o setor de serviços das cidades, gerando empregos antes, durante e depois
de sua realização, em dezenas de atividades dentro e fora dos pavilhões.
A Memória e a História
43
http://www.abeoc.org.br/2014/10/ii-dimensionamento-economico-da-industria-de-eventos-no-brasil/II
Dimensionamento Econômico da Indústria de Eventos no Brasil – 2013” teve como objetivo quantificar a
participação da indústria de eventos no PIB do Brasil, avaliar a sua contribuição no processo de geração
de emprego, renda e impostos, além de inventariar os espaços de eventos no País, suas características,
localização e dinâmica de funcionamento.
44
http://www.ubrafe.org.br/upload/guia_cor.pdf
78
Memória é um tema que está presente em várias áreas de estudo no mundo
contemporâneo e é vista a partir de diferentes olhares. Do ponto de vista biológico,
memória refere-se a tudo que envolve os processos mentais e as muitas informações no
cérebro, tais como idéias, imagens e diferentes dados, tudo que por diferentes motivos
se destaque entre os registros de acontecimentos passados. “Sem memória não há vida.
É possível, inclusive, dizer que a vida é uma sequência de memórias”45.
A memória é importante para a vida dos grupos sociais porque
é o
armazenamento e lembrança daquilo que é adquirido por meio da experiência, dessa
forma
a aquisição de memórias é aprendizado.(IZQUIERDO, 1989). O autor cita
Marshall (1988) afirmando que há 2.000 anos atrás, Aristóteles já dizia que tudo que
está no intelecto esteve antes nos sentidos, e considera que não há memória sem
aprendizado nem aprendizado sem experiências.
É através da experiência socialmente compartilhada que ocorre transmissão da
tradição, ancorada nas lembranças e aprendizados passados que se alojam na memória
individual e coletiva, “o que possibilita a produção dos sentidos que são
compartilhados, como um processo ativo e dinâmico, fruto das relações de poderes já
instituídos que constrói aquilo que reconhecemos como parte da cultura humana.”
(BARRETO, 2007, p.164)
Segundo Pollak (1992), a memória social é um fenômeno coletivo e social,
construído coletivamente e submetido a transformações constantes e que transmite a
cultura local herdada, sendo constituída por acontecimentos vividos socialmente. Desse
ponto de vista, servem de apoio à memória três elementos: os acontecimentos vividos,
as pessoas e os lugares, elementos responsáveis pelo estabelecimento dos laços afetivos
entre as pessoas. ‘A memória costura, tece o passado no presente, compondo tramas e
enlaçando-se em novas possibilidades existenciais.’
Para Gondar (2005), a memória pode ancorar-se em diferentes suportes como o
texto, a imagem, nos sons e na comunicação oral, etc. Para o autor, a memória é seletiva
pois os indivíduos só tem recordações dos momentos a que dão importância e que
ficaram marcados subjetivamente. Ele afirma, ainda, que parte das lembranças pode ser
herdada dos acontecimentos relacionados aos seus antepassados, podendo-se inferir que
IZQUIERDO, Ivan.“A vida é uma sequência de memórias” Revista Instituto Humanitas UNISINOS - IHU On-Line, N°
454 – Ano XIV, 15.09. 2014,
http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=5689&secao=454
45
79
os ritos, rituais e celebrações dos grupos sociais são elementos que constituem e
propagam memórias.
Constata-se, a partir das falas dos autores que a memória é uma construção
social, que é produzida a partir das relações das pessoas, de seus valores e experiências
vividas. É dinâmica pois se modifica com o tempo, porque na medida em que ele vai
passando, a história vai mudando e tomando novos rumos. Portanto, a memória não é
somente o registro histórico dos fatos, é uma combinação de construções sociais
passadas e presentes, estando em permanente reconstrução.
A memória, quem a produz é um grupo social, a história utiliza-se da
memória para seu trabalho sobre reconstituição de uma época e lugar.A
memória trabalha sobre o tempo, porém sobre um tempo experenciado pela
cultura. Nela, o tempo passado é reconstruído e revivenciado, o que traz um
efeito restaurador, uma vez que permite a ressignificação do sentido
existencial, atualizando conteúdos experimentados. A memória costura, tece
o passado no presente, compondo tramas e enlaçando-se em novas
possibilidades existenciais.(BARRETO, 2007, p.4)
A memória é importante para os grupos sociais pelo armazenamento e lembrança
daquilo que é adquirido por meio da experiência, porque “a aquisição de memórias é
aprendizado (IZQUIERDO, 1989)”, e porque é essencial para a construção tanto das
identidades pessoais quanto coletivas. “Nossa identidade, tenha ela a forma que tiver, é uma
história sobre nós mesmos, ou em última análise, uma ‘narrativa do eu’” (HALL, 2005,
p.12), por certo construída com a ajuda de nossa memória, por meio da nossa história de
vida.
História, do grego antigo historie (que significa testemunho - no sentido daquele
que vê) é a ciência que estuda o Homem e sua ação no tempo e no espaço, concomitante
à análise de processos e eventos ocorridos no passado, que é contada de acordo com a
subjetividade de cada indivíduo, mas que no seu registro deve conter valores básicos
como a veracidade e a objetividade dos fatos.
A História busca também reconstruir uma trajetória sócio-existencial
decorrida nos tempos e nos lugares, só que a partir de uma reconstrução
lógica “entendida como o trabalho que cada época realiza o que já existia
anteriormente, mas que não se podia incluir num sistema de imagens”(
SCHIMIDT & MAHFOUD, 1993, p.293).
Silva e Silva (2006) afirmam que a memória está ‘nos próprios alicerces da
História’ mas somente no final da década de 1970 ela tornou-se objeto de reflexão da
historiografia.
Ao conceituarem memória, o fazem a partir de Jacques Le Goff,
afirmando que memória é a propriedade de conservar certas informações, referindo-se a
80
um conjunto de funções psíquicas que dá ao indivíduo a possibilidade de atualizar
impressões ou informações passadas (ou reinterpretadas como passadas), constituindose a memória social um dos meios fundamentais para se abordar os problemas do tempo
e da História.
As fontes da História podem ser orais (contos, narrativas, “causos”, cantigas,
expressões,etc.), escrita (livros, cartas, documentos oficiais, inscrições, etc.),
iconográfica (imagens, gravuras, fotos, pinturas, cinema, etc.), e de cultura material
(ruínas, artefatos, objetos, etc), entre outros.
A Educomunicação
É um conceito formulado a partir da observação do agir de grupos da sociedade
civil, ao longo da segunda metade do século XX, que se caracteriza por sua ênfase
prática e pela revisão das práticas educativas à luz da realidade representada pela
presença das tecnologias da informação e da comunicação. Menezes (2013) relata que
foram registradas ao longo da história experiências de educomunicação no ambiente
escolar, por meio do cinema, televisão, jornais impressos e até mesmo do rádio. Essas
experiências foram articuladas aos movimentos populares, no período de 1945 a 1964,
“fundamentadas na pedagogia de Paulo Freire [...]algumas experiências que envolviam
a Comunicação e a Educação: Centros Populares de Cultura (CPCs), os Movimentos de
Cultura Popular (MCPs) e o Movimento de Educação de Base (MEB)”.(MENEZES,
2013, p.5)
Assim, ao longo do tempo, e de diferentes formas, essa proposta de aliar
educação e comunicação foi tendo diferentes bordagens e desenvolvimento.
Quando falamos em Educomunicação, estamos nos referindo a um campo de
pesquisa, de reflexão e de intervenção social, cujos objetivos, conteúdos e
metodologia são essencialmente diferentes tanto da Educação Escolar
quanto da Comunicação Social. Investigar os fundamentos desse campo,
discutir as inter-relações dos vários tipos de saberes que se fundem na
Educação e na Comunicação constitui os principais objetivos teóricos desse
novo campo. O que sentem e pensam as pessoas de si mesmas, dos outros e
do mundo que as rodeia, não importando idade, sexo, credo ou condição
social, por sua vez, são os conteúdos trabalhados na Educomunicação.
(SOARES, S. Paulo, 200646)
46
http://www.portalgens.com.br/baixararquivos/textos/educomunicacao_o_que_e_isto.pdf. Acesso em
15/10/2015.
81
A educomunicação, portanto, se caracteriza como um campo de pesquisa e ação
comprometido com outras perspectivas de aquisição de conhecimento e se apresenta
como forma de intervenção social. Ao elaborarem e realizarem um novo discurso, os
participantes do processo,
experimentam enquanto grupo uma outra forma de
convivência social, pautada no respeito a cada um dos seus integrantes. Inicialmente
proposta como uma interação entre a Educação e a Comunicação (com seus meios),
atualmente a educomunicação pode ser pensada de forma mais ampla. “Na atualidade, o
estudo da construção do conhecimento por meio das interações sociais tem obtido
destaque em diferentes campos da Educação”.(VALADÃO, 2009, p.95) A autora
amplia o entendimento acerca da educomunicação afirmando:
Educomunicação – entendida aqui como um campo emergente de
intervenção social, que promove o planejamento, a implementação e a
avaliação de processos e produtos, criando e fortalecendo ecossistemas
comunicativos abertos, democráticos e participativos em espaços educativos,
presenciais ou mesmo virtuais, tendo como conseqüência a melhoria do
coeficiente comunicativo das ações educativas, incluindo nesse contexto, as
relacionadas com o uso dos recursos da informação nos processos de
aprendizagem. (VALADÃO, 2009, p.95)
A comunicação e a educação, instituições produtoras de bens simbólicos,
quando ‘alinhadas’ e trabalhando em sintonia, permitem importantes abordagens no
contexto das ações coletivas dos grupos sociais. Esses grupos sociais envolvidos,
mobilizados e unidos pela força da solidariedade, construída sobre a cultura e um
referencial de valores compartilhados pelo grupo, apresentam-se com valores, interesses
e ideais em comum, nos quais a abordagem da educomunicação relacionada aos
movimentos sociais torna-se relevante.
Acredita-se que por meio de produtos comunicacionais voltados para uma
perspectiva educacional, é possível não só informar os movimentos sociais,
mas também, e, principalmente, permitir-lhe a reflexão sobre a própria
estrutura da ação coletiva, a sua força política e o fortalecimento dos seus
direitos políticos e sociais.Mesmo porque, suas características fundamentais
são a de planejar e fornecer subsídios para o processo dialogal, bidirecional
e participativo. (MENEZES, 2013, p.10)
Tal afirmativa encontra eco em Beltrán:
O autor ressalta quatro dimensões dessa participação: educacional,
comunicacional, social e política que têm uma clara direção convergente: a
democratização. “Esta nova concepção da comunicação educativa,
participatória e associada à organização popular propõem-se contribuir para
democratizar, ao mesmo tempo, a educação, a comunicação e o conjunto das
relações sociais.” (Beltrán,1981, p. 34).
82
De acordo com os autores referidos é possível afirmar que a proposta da
educomunicação, seja a partir da proposta inicial de realização através dos meios de
comunicação, ou de propostas mais amplas baseadas na pedagogia de Freire que
propunha experiências que envolviam Centros e Movimentos de Cultua Popular, é
uma metodologia que alcança sucesso por diversos fatores, sejam a forma de ensino
diferencida das chamadas ‘tradicionais’, a ludicidade envolvida, ou a integração da
educação a outros fatores, como o social cultural e político, as quais motivam os alunos
a experiências enriquecedoras, atraindo sua atenção.
O objeto de estudo – a FENADOCE
A Feira Nacional do Doce – Fenadoce – é um evento anual realizado para promover
a cultura doceira da cidade de Pelotas-RS, difundindo o trajeto histórico dos doces, que
resultam da integração de dezenas de etnias e misturam visões de mundo tanto ocidentais
quanto orientais, para todo Brasil e exterior.
O evento surgiu como ‘Festival do Doce e do Vinho’ promovido pelo Senal
Pelotas, a exemplo do “Festival do Queijo e do Vinho’ realizado pelo Senac Caxias do
Sul. Promovidos dentro de uma política nacional de valorização de atividades do
mercado informal de trabalho cada unidade Senac escolhia uma atividade que
caracterizasse sua região para buscar desenvolvê-la. Assim, em 1982 foi realizado o
primeiro Festival do Doce em Pelotas, visando destacar o doce artesanal, típico da
região47. O evento foi um sucesso e passou a realizar-se de dois em dois anos. Na sua
terceira edição, em 1986, o então prefeito Bernardo de Souza ao visistar o Festival
resolveu torná-lo público, quando passou a chamar-se FENADOCE. Posteriormente o
evento foi assumido pela Câmara de Dirigentes Lojistas de Pelotas – CDL –em 1995.
Nas primeiras edições, acontecia a cada dois anos, sempre em um local diferente da
cidade. A partir de 1990, a feira tornou-se anual e ganhou endereço fixo: o Centro de
Eventos Fenadoce.
Desde então consagrou-se como a principal atração turística da zona sul do Rio
Grande do Sul, com uma mistura de gastronomia, shows, lazer e turismo, entre outras
atividades. Pelotas recebe uma grande parcela de turistas durante a realização do evento,
vindos das mais diversas localidades do país.
47
Entrevista com Samir Curi, representante de órgãos de turismoe hotelaria locais e de servidores do
Senac Pelotas à época.
83
A Feira possui diferentes espaços e ambientes como a Cidade do Doce (remete à
Pelotas histórica dos séculos XIX e XX), a Estância Princesa do Sul (destinado à
demonstrações tipicamente gaúchas de grupos de CTG da região e do estado), o Parque
de diversões, e a Praça de Alimentação. Vários eventos ocorrem ao mesmo tempo no
espaço da feira: Fenashow (eventos musicais jovens), atividades educacionais com as
escolas do miunicípio e da região, e outras atrações paralelas na cidade de Pelotas. É
possível sempre perceber uma interação da cidade com a Feira do Doce, com vários
eventos realizados no Centro Histórico e nos bairros em comemoração ao evento, a fim
de demonstrar o potencial turístico, artístico e gastronômico da cidade.
No caso da Fenadoce, a feira mostra um legado histórico e cultural transmitido pelas
doceiras tradicionais através da história oral e escrita, constituindo a memória coletiva desse
grupo social. A memória, como fato social, abriga uma dimensão simbólica que é
apreendida pelas empresas que participam do evento em foco, retendo, do passado, o que
dele ainda é vivo ou capaz de viver, na consciência do grupo. Os doces artesanais que, por
meio de um projeto de Identificação e Procedência dos doces de Pelotas, possuem Selo de
Autenticidade que é uma forma de proteger a tradição e a cultura pelotense, preservam a
memória e história do povo pelotense. Por meio de diferentes ações e projetos integrados
ocorre processo educativo que utiliza práticas comunicativas em estruturas educadoras
formais e/ou informais que ocorrem por meio de educomunicação.
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