O Cadáver de Traitors Gate

Transcrição

O Cadáver de Traitors Gate
Esse e-book foi traduzido, revisado e formatado pela equipe do
Projeto Democratização da Leitura e Projeto Revisoras Traduções.
Anne Perry
Série Thomas Pitt, Livro 15
O Cadáver de Traitors Gate
Projeto Democratização da Leitura & Projeto Revisoras Traduções
Informações
Autor (a): Anne Perry
Título da Série: Thomas Pitt
Título da Série Traduzido: Thomas Pitt
Livro, Título Traduzido: Livro 15, O Cadáver de Traitors Gate
Título Original: Traitors Gate
Ano: 1995
Sinopse
Uma emocionante trama que fará as delícias dos seguidores do detetive de Londres
vitoriano.
Em plena partilha das apreciadas riquezas do continente africano, uma série de
estranhos assassinatos põem ao inspetor Pitt e a sua infatigável esposa Charlotte sobre a
pista do misterioso Círculo Interior, do qual se está filtrando informação para uma potência
inimiga.
Um carismático ministro, diferentes personagens que estão a favor ou contra a
exploração da África, uma esposa crítica com as idéias colonialistas de seu marido... Em
conjunto, uma emocionante trama que fará as delícias dos seguidores do íntimo e
incansável detetive da Londres vitoriana.
A autora recria como ninguém o ambiente de corrupção e hipocrisia da Inglaterra de
finais do século XIX.
Anne Perry – Thomas Pitt 15 – O Cadáver de Traitors Gate
Projeto Democratização da Leitura & Projeto Revisoras Traduções
Sobre a Autora
Anne Perry nasceu no Blackheath, Inglaterra, em 1938. Sua escolarização foi
interrompida em várias ocasiões pelas frequentes mudanças de domicílio e sucessivas
enfermidades, que a ajudaram a dedicar-se à leitura apaixonadamente. Seu pai trabalhou
como astrônomo, matemático e físico nuclear. Ele foi quem a animou a dedicar-se à
escrita. Demorou vinte anos para publicar seu primeiro livro.
Durante todo este tempo teve diferentes trabalhos para poder viver e dedicar-se ao
que realmente era sua paixão: escrever. Sua primeira novela sobre a série do inspetor Pitt,
editada em 1979, foi Crimes de Cater Street, publicada também nesta coleção. Arme Perry
se consagrou como consumada especialista na recreação dos claros—escuros, contraste
e ambigüidades da sociedade vitoriana. Sua série de novelas protagonizadas pelo inspetor
Pitt e sua perspicaz esposa Charlotte é seguida por milhões de leitores em todo mundo.
Dedicatória
Ao Donald Maas, com meu agradecimento
Anne Perry
Créditos
Disponibilização: PRT
Revisão Inicial: Edith Suli
Revisão Final: PDL
Formatação: PDL
Logo / Arte: Projeto Revisoras Traduções e PDL
Anne Perry – Thomas Pitt 15 – O Cadáver de Traitors Gate
Projeto Democratização da Leitura & Projeto Revisoras Traduções
Capítulo 1
Pitt se acomodou no banco de madeira e se dispôs a contemplar com profundo
prazer como desaparecia o sol atrás da velha macieira que havia no meio do jardim e
como dourava por uns momentos a folhagem da árvore.
Mal estavam na nova casa há algumas semanas, mas com a sensação de
familiaridade que lhes proporcionava, mais parecia que estavam retornando a ela em lugar
de instalar-se pela primeira vez. Eram pequenos detalhes: o reflexo da luz sobre o muro de
pedra que delimitava o jardim, as folhas das árvores e o aroma da erva úmida sob os
ramos.
Começava a anoitecer e havia muitas traças revoando sem rumo naquele entardecer
de começos de maio, com um ar cada vez mais afresco à medida que o sol ia caindo.
Charlotte andava por algum lugar da casa, certamente deitando as crianças no piso de
cima.
Confiava em que ela tivesse pensado já no jantar. Estava faminto, o que não deixou
de lhe produzir certo assombro, sobre tudo tendo em conta que em todo o dia não tinha
feito mais que desfrutar do sábado em casa.
Mas uma das vantagens de ter sido promovido à superintendente depois da
aposentadoria do Micah Drummond era precisamente essa, a de ter mais tempo.
Claro que por outro lado também tinha mais responsabilidades, além de que, por
pouco que gostasse, agora se via com muita freqüência atrás de uma mesa no Bowl Street
em lugar de andar por aí fora investigando.
Acomodou-se um pouco melhor no banco e cruzou as pernas, sem dar-se realmente
conta de que estava sorrindo. Usava roupa velha, mais adequada para os trabalhos do
jardim com os quais andava ocupado todo o dia, embora de forma muito relaxada.
A suas costas, a porta envidraçada que dava ao jardim se abriu e se fechou com um
estalo.
-senhor...
Era Gracie, a jovem criada que haviam trazido com eles e que agora se sentia
importante e cheia de satisfação por ter a suas ordens uma mulher para esfregar e fazer a
lavagem de roupa durante cinco dias à semana e a um menino para trabalhar no jardim
durante três. Não estava mal ter a tanta gente sob seu mando.
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Sua promoção coincidia com a do Pitt, e se sentia muito orgulhosa disso.
—Sim, Gracie?—perguntou Pitt sem levantar-se.
—Há um cavalheiro que quer vê-lo, senhor; um tal Matthew Desmond.
Por um momento, Pitt ficou aturdido, sem mover um só músculo. Logo se levantou e
se voltou para olhá-la.
—Mas disse Matthew Desmond? —repetiu como se não conseguisse acreditar.
—Sim, senhor—respondeu ela surpreendida—. Fiz mal deixando-o entrar?
—Não, é claro que não. Onde está?
—No saguão, senhor. Ofereci-lhe uma xícara de chá, mas recusou. Parece muito
preocupado por algo, senhor.
—Bem—disse distraidamente, enquanto ia a caminho da porta envidraçada, que
depois abriu para acessar à sala de estar. Ali tudo tinha adquirido um curioso tom dourado
pelos últimos raios de sol, apesar de serem os móveis verdes e branco. —Obrigado—
acrescentou dirigindo-se à Gracie por cima do ombro. Foi receber a visita com o coração
acelerado e a boca surpreendentemente seca pela ansiedade e um sentimento não isento
de certa culpa.
Por um momento se sentiu cheio de dúvidas, com uma mescla confusa de
lembranças que emergiam do mais profundo da memória. Pitt tinha crescido no campo, na
propriedade dos Desmond, onde seu pai era o guarda-florestal. Então só era um menino,
assim como o próprio filho de Sir Arthur, um ano menor que ele. Ante a necessidade de
que Matthew Desmond tivesse a alguém com quem brincar naquele enorme e formosa
propriedade, a Sir Arthur pareceu o mais natural do mundo recorrer ao filho do guardaflorestal. E assim foi como os dois forjaram uma boa amizade desde o começo, que com o
tempo se prolongou inclusive à época de estudos.
Sir Arthur decidiu ocupar-se também da educação daquele outro menino para ter com
quem comparar as melhoras de seu próprio filho, compartilhando as mesmas aulas e
competindo com ele.
Inclusive quando o pai do Pitt caiu em desgraça acusado injustamente de caça furtiva
(não nas propriedades de Sir Arthur, mas nas de seu vizinho), a família pôde continuar
vivendo na propriedade, ocupando vários cômodos nas dependências da criadagem e até
permitiram que Pitt continuasse sua educação enquanto sua mãe trabalhava na cozinha.
Mas fazia já quinze anos que Pitt partira e pelo menos dez desde que tinha visto por
última vez à Sir Arthur ou ao Matthew. Ficou por um momento ante a porta do vestíbulo
com a mão na maçaneta; já não era só a culpa o que alimentava sua inquietação, mas um
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mau pressentimento.
Finalmente abriu a porta e entrou.
Matthew se voltou do aparador da lareira, junto à qual ficara esperando. Tinha
mudado pouco: continuava igualmente alto e fraco, quase enxuto, com um rosto alongado,
de feições irregulares e propensas à risada, embora agora não parecesse muito disposto a
ela e apresentava um semblante de olheiras e bastante preocupado.
—Olá, Thomas — disse dissimulando sua impaciência, aproximando-se do Pitt e lhe
estendendo a mão.
Pitt lhe estreitou a mão com força, lhe olhando nos olhos em busca de respostas.
Os rastros da dor eram tão evidentes que seria tão ofensivo como ridículo fingir não
os ter visto.
—O que acontece?—perguntou Pitt pressentindo qual ia ser a resposta por muito que
não gostasse desta.
—É meu pai — sentenciou Matthew laconicamente.—Morreu ontem.
Pitt não estava preparado para sentir aquela dor que agora lhe transbordava. Não
tinha visto Arthur Desmond desde que se casara e tivera crianças. Só lhe tinha escrito para
lhe comunicar todas aquelas coisas e agora se sentia só, como se lhe tivessem arrancado
as raízes de coalho.
Seu passado, aquele que parecia que nunca ia mudar, de repente tinha
desaparecido. E isso que nunca deixou de sonhar com sua volta a ele. Ao princípio, tinha
preferido manter-se afastado de tudo por orgulho.
Só voltaria quando pudesse demonstrar que o filho do guarda-florestal tinha
prosperado na vida com êxito e com honra. É claro, isso lhe levou muito mais tempo do
que em sua ingenuidade tinha imaginado. Os anos foram passando e cada vez se fez mais
difícil cortar essa distância que se impôs. E agora, sem prévio aviso, tudo lhe parecia mais
impossível que nunca.
—Sinto muito—respondeu.
Matthew tentou um sorriso, como querendo lhe agradecer essas palavras, mas mal
pôde esboça-la. Seguia com a angústia desenhada no rosto.
—Obrigado por ter—me dito — continuou Pitt. —Foi uma gentileza de sua parte. —
Também era mais do que merecia, por isso se ruborizou envergonhado.
Matthew fez um dramalhão de rechaço ante aquela reação.
—Morreu — começou a dizer, e depois engoliu em seco e respirou fundo olhando
fixamente ao Pitt—, morreu no clube, aqui em Londres.
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Pitt estava a ponto de voltar a dizer que o sentia muito, mas se deu conta de que era
inútil e preferiu calar.
—De uma overdose de láudano — continuou Matthew, procurando os olhos do Pitt
em busca de compreensão, de alguma resposta que pudesse mitigar aquela dor.
—Láudano? —repetiu Pitt para assegurar-se de que tinha ouvido bem—. Por quê?
Estava doente? Padecia talvez de...?
—Não!—interrompeu-lhe Matthew—. Não estava doente. Tinha setenta anos, mas
gozava de boa saúde e era muito otimista. Não lhe acontecia nada – exclamou como
zangado e ficando à defensiva.
—Então por que tomava láudano? —Como bom polícia, Pitt não se resignou a deixar
de procurar a lógica daquele assunto apesar de seus sentimentos e os do próprio Matthew.
—Não tomava!—disse Matthew em tom desesperado—. Esse é o problema! Agora
todos dizem que já era velho, que estava perdendo suas faculdades e que tomou uma
overdose porque já não sabia o que fazia. —Lançava faíscas pelos olhos e parecia
disposto a saltar sobre o Pitt no caso de que não lhe acreditasse.
Pitt visualizou a figura do Arthur Desmond tal e como o recordava: alto e sempre
elegante, mas dessa maneira tão informal própria de quem está seguro de si mesmo e da
naturalidade que possui, embora dê a sensação de aparente descuido.
A roupa que usava nem sempre combinava como devia; por muito que contasse com
um valete, sempre conseguia escolher algo para que não fosse o que lhe aconselhavam.
Mas aí radicava sua grande dignidade, quão mesmo no bom humor de seu rosto alongado
e vigilante, algo que ninguém percebia já que sob nenhum aspecto queria chamar a
atenção. Tinha sido um homem muito individualista, às vezes inclusive excêntrico, mas
sempre com um sentido comum tão fora do normal, e tão compreensivo com as
debilidades humanas, que teria sido a última pessoa no mundo em recorrer ao láudano.
Claro que, se houvesse feito isso, teria sido perfeitamente capaz de tomar uma dose dupla
por distração.
Mas não teria sido suficiente uma para enviá-lo diretamente para dormir?
Pitt recordava vagamente os largos períodos de insônia que Sir Arthur padecia fazia
já trinta anos, quando Pitt ficava no salão de noite sendo menino. Sir Arthur se levantava
da cama e começava a dar voltas na biblioteca até que achava um livro interessante,
depois se sentava em uma das velhas poltronas de couro até que ficava adormecido com o
livro aberto no regaço.
Matthew esperava uma reação do Pitt e permaneceu olhando-o fixamente com uma
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raiva cada vez maior.
—Mas quem diz isso?—perguntou Pitt.
Matthew ficou desconcertado. Não era precisamente a pergunta que esperava.
—Pois o médico, os sócios do clube.
—Que clube?
—OH, receio que não estou sendo muito claro, não é? O pai morreu no Morton Clube,
a última hora da tarde.
—Pela tarde? E não de noite? —Pitt estava surpreso de verdade e não tinha por que
fingir.
—Não! Esse é o problema, Thomas! —exclamou Matthew com impaciência—. Agora
todos dizem que estava louco e que sofria uma espécie de demência senil. E não é
verdade. É falso! O pai era o homem mais judicioso do mundo. Além disso, que eu saiba
tampouco bebia conhaque. Só muito de vez em quando.
—E o que tem que ver o conhaque com tudo isto?
Matthew afundou os ombros e mostrou expressão de estar esgotado e
completamente aturdido.
-sente-se indicou Pitt—. Já vejo que há mais coisas que ainda não me contou. Quer
comer algo? Não tem bom aspecto.
Matthew esboçou um pálido sorriso.
—Não quero comer nada. E agora, deixa de preocupar-se por mim e me escute.
Pitt obedeceu e se sentou frente a ele.
Matthew se sentou ocupando só a borda da cadeira, inclinado para frente e incapaz
de relaxar.
—Como já lhe disse, o pai morreu ontem. Achava-se no clube, estava quase toda a
tarde ali. Quando o garçom foi dizer lhe à hora para saber se queria jantar algo, acharam—
no em sua poltrona-disse Matthew com uma careta de dor—. Dizem que tinha bebido
muito brandy, talvez muito, e acreditaram que ficara adormecido. Por isso ninguém o tinha
incomodado antes.
Pitt não se atreveu a lhe interromper, mas começou a sentir uma grande tristeza pelo
que já se imaginava que ia seguir.
—Naturalmente, quando quiseram falar com ele já estava morto – sentenciou
Matthew com tom desolador. O esforço que fazia para que não lhe tremesse a voz era tão
evidente, que, se tivesse tratado de outra pessoa, Pitt se teria sentido muito perturbado. E
o que agora escutava era o eco de seus próprios sentimentos.
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Não havia nada que perguntar. Não era um assassinato; nem sequer era um fato que
fosse tão difícil de compreender. Tratava-se simplesmente de uma morte repentina,
possivelmente mais do que costuma ser habitual, e por isso a impressão era mais forte.
Olhando-o com um pouco mais de frieza, não era mais que uma perda dessas que cedo ou
tarde sofre todo mundo.
—Sinto muito—disse Pitt quase em um sussurro.
—Não o entende! —exclamou Matthew com uma expressão que voltava a ser de
raiva, e lhe lançou um olhar acusador. Depois aspirou profundamente e soltou o ar com um
suspiro—. Verá: o pai pertencia a uma espécie de sociedade benéfica, ou pelo menos isso
dizia ele, que leva a cabo muitas obras de caridade — começou a dizer Matthew, mas em
seguida agitou a mão no ar como afastando aquela idéia—. Se lhe for franco, a verdade é
que não sei do que se trata. Nunca me disse.
Pitt sentiu um calafrio, como se lhe tivessem delatado por algo.
—O Círculo Interior — disse com as palavras lhe chiando entre os dentes.
Matthew ficou gelado.
—Sabia! E por que você sabia e eu não?—perguntou ofendido, como assim Pitt
tivesse traído sua confiança.
Procedente do piso de cima, ouviu-se um estrépito seguido de uns passos correndo,
mas nenhum dos dois prestou atenção.
—Só é uma hipótese — respondeu Pitt com um sorriso que acabou em careta—. É
uma organização que conheço um pouco.
Matthew endureceu a expressão do rosto, como se uma porta acabasse de fechar-se
de repente ante sua própria ingenuidade, tornando—o desconfiado e deixando de ser o
amigo, quase o irmão, que até agora tinha sido.
—Você também pertence a ela? Não, perdoa. É uma pergunta estúpida. Embora
assim fosse, não me diria. Por isso sabe o do pai. E levavam todos estes anos sendo
membros dessa organização? por que nunca me disse nada?
—Não, eu não pertenço a ela — respondeu Pitt asperamente—. Conheço—a há
pouco e por motivos de trabalho.
Levei a julgamento alguns de seus membros e detive a outros por estar implicados
em assuntos de fraude, suborno e assassinato.
Provavelmente sei muito mais que você sobre eles, sobretudo como são perigosos.
Charlotte falava no corredor com uma das crianças e deixou de ouvir o ruído de
passos.
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Matthew permaneceu em silêncio, com uma agitação interior que se refletia na
expressão dos olhos e nas feições cansadas e vulneráveis do rosto. Ainda não se tinha
recuperado do golpe; continuava sem acostumar-se à idéia de que seu pai tinha morrido.
Mal podia conter a dor, como a sensação de repentina solidão, de remorso e também
de certa culpa, embora nem ele mesmo fosse consciente disso. Agora pensava em tudo o
que não tinha feito com ele e no que nunca chegou a lhe dizer. Estava esgotado e
retorcido além pela raiva que lhe consumia.
Primeiro se havia sentido decepcionado com respeito ao Pitt, talvez inclusive traído,
para logo passar a um imenso alívio e outra vez à mesma sensação de culpa por ter
duvidado dele.
Não era o momento de pedir desculpas. Matthew estava a ponto de derrubar-se.
Pitt lhe estendeu a mão.
Matthew a estreitou com tal força que os dedos perderam por um instante sua cor.
Pitt deixou que se desafogasse e depois quis voltar para assunto principal.
—Por que mencionou o Círculo Interior?
Matthew fez um esforço e começou a falar com mais tranqüilidade, embora
continuasse inclinado para frente, com os cotovelos nos joelhos e as mãos segurando o
queixo.
—O pai colaborava unicamente para as obras de caridade até recentemente, um ano
ou dois, quando lhe promoveram de cargo na organização. Mais por acaso que por
vontade, suponho.
E começou à saber muitas coisas deles, a que outras atividades se dedicavam e
quem eram alguns de seus membros—disse franzindo o sobrecenho—. Sobre tudo no
concernente a África.
—África?—perguntou Pitt desconcertado.
—Sim, especialmente Zambezia. É uma zona onde agora se está explorando muito.
É uma história muito longa. Sabe algo?
—Não tenho nem a menor ideia.
—Bem, já imaginará que há muito dinheiro no meio e sobre tudo a possibilidade de
fazer-se imensamente rico. Ouro, diamantes e terras, claro. Mas também há outras
questões como a obra missionária, o comércio e a política externa.
—E o que tem que ver o Círculo Interior com tudo isto?
Matthew fez cara triste.
—Com o poder. Sempre tem que ver com o poder e com a partilha das riquezas. Em
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qualquer caso, o pai começou a dar-se conta de como influíam os membros do Círculo
Interior na política do governo, e na Companhia Sul—Africana, sempre em benefício
próprio e sem ter em conta o bem—estar dos africanos, nem o respeito pelos interesses
britânicos. Preocupou-se tanto que começou a falar do tema.
—A outros membros de seu entorno?—perguntou Pitt temendo—o que Matthew
estava a ponto de responder.
—Não... A qualquer um que estivesse disposto a escutá-lo — respondeu erguendo os
olhos como querendo perguntar algo, e viu a resposta desenhada no rosto do Pitt—.
Acredito que o assassinaram — sentenciou em voz baixa.
Fez-se um silêncio tão intenso que até podia ouvir o relógio que havia sobre a cornija
da lareira. Fora, na rua, além das janelas fechadas, alguém gritou e a resposta lhe chegou
desde muito longe, em algum jardim meio iluminado pela luz azulada do crepúsculo.
Pitt não rechaçou a idéia. O Círculo Interior era perfeitamente capaz de fazer algo
assim em caso necessário. Podia duvidar-se de algo menos de sua capacidade e
determinação por pura necessidade.
—O que dizia exatamente sobre eles?
—Então acredita no que estou dizendo?—perguntou Matthew—. Não parece que
surpreenda—o o fato de que alguns membros destacados da aristocracia britânica, quão
mesmos constituem a classe governante, os cavalheiros mais honoráveis do país, estejam
dispostos a cometer um assassinato só porque alguém os critica em público.
—Acredito que já superei a primeira impressão de surpresa e estupor quando
comecei a conhecer o Círculo Interior e seus propósitos e códigos de conduta —
respondeu Pitt—. Tenho certeza de que não demorarei para voltar a sentir a raiva e o
insulto que já conheço, mas de momento prefiro me limitar a compreender os fatos tal
como são. O que é o que dizia Sir Arthur para que o Círculo Interior decidisse arriscar-se a
assassiná-lo?
Pela primeira vez Matthew se reclinou na poltrona cruzando as pernas, embora sem
afastar os olhos do Pitt.
—Criticava sua moral em geral—disse com mais serenidade—. O modo como se
juram ajudar-se uns aos outros em segredo por cima daqueles que não pertençam ao
Círculo, o que inclui a quase todos nós. E o fazem nos negócios, bancos, política e
sociedade, embora este último é o que mais difícil lhes resulta. –E acrescentou torcendo
um sorriso: — Além disso têm umas leis não escritas pelas quais decidem a quem aceitam
e a quem não. E nada pode impedi—lo. A gente pode obrigar a um cavalheiro a ser amável
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porque lhe deve dinheiro, mas não conseguirá que se considere dos seus por muito
elevada que seja essa dívida e embora nisso vá à vida.
—Nem sequer o via como algo curioso, nem tampouco quis procurar as palavras que
definem essa qualidade tão intangível que faz que um cavalheiro se sinta tão seguro de si
mesmo. Nada tinha que ver com a inteligência, nem com o êxito, nem com o dinheiro ou
com um título de nobreza.
A pessoa podia ter todas estas coisas e entretanto não encaixar com esses critérios
tão invisíveis. Matthew tinha nascido precisamente para isso e sabia, mas tomava como
quem sabe montar a cavalo ou cantar sem desafinar: uns podem, e outros não.
—O que inclui a muitos cavalheiros —comentou Pitt em tom áspero, recordando
outros casos nos quais se relacionara muito a seu desgosto com o Círculo.
—Isso é mais ou menos o que dizia o pai—disse Matthew mostrando-se de acordo e
olhando ao Pitt com maior intensidade—. E se referia sobre tudo à África e ao modo em
que estão controlando os bancos, cujos interesses controlam os investimentos dedicados à
exploração e à colonização.
Agora vão da mão políticos que decidem se se empreende uma campanha para
dominar o território desde a Cidade do Cabo até o Cairo ou se fazem concessões aos
alemães para concentrar-se unicamente no sul. —Matthew deu de ombros em um gesto de
aborrecimento—.
Como sempre, o ministro do Exterior anda revoando por toda parte dizendo uma
coisa e ocultando suas verdadeiras intenções. Eu mesmo trabalho no Ministério de
Assuntos Exteriores e lhe asseguro que sigo sem saber o que quer exatamente. Temos o
ministério cheio de missionários, médicos, exploradores, aventureiros, busca vidas e
alemães — disse mordendo o lábio em um gesto de tristeza—. Para não falar dos reis e
príncipes guerreiros nativos a quem ao fim e ao cabo pertence à terra, até que a
arrebatamos com qualquer tratado, claro. E se não o fazemos nós, farão-o os alemães.
—E o Círculo Interior?—perguntou Pitt impaciente.
—Movendo os fios sem que ninguém o veja—replicou Matthew—. Recorrendo a
velhas lealdades em segredo, interferindo com sigilo e levando todos os benefícios.
Isso é o que dizia o pai. —Matthew se reclinou um pouco mais na poltrona e começou
a dar mostras de serenar-se um pouco. Embora talvez já estava tão cansado que não
podia manter-se erguido por mais tempo—. O que mais lhe incomodava era o secretismo
que envolvia tudo. Fazer uma obra de caridade de forma anônima está bem e é algo
perfeitamente honorável.
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Os dois seguiam alheios aos ruídos que vinham do corredor do piso superior.
—A princípio ele acreditou que a missão da sociedade era essa e não outra —
continuou Matthew—. Um punhado de gente se juntava para saber em que lugar se
necessitava ajuda sem procurar nenhum benefício nisso, mas com meios suficientes para
que sua intervenção resultasse mais que significativa.
Orfanatos, hospitais para indigentes, subvenções para investigar segundo que
enfermidades, asilos para velhos soldados, já sabe, coisas assim. E o problema veio
quando recentemente descobriu o que havia detrás de todo isso –disse mordendo outra
vez o lábio como se pedisse desculpas por isso—. Acredito que o pai era um ingênuo.
Você e eu nos teríamos dado conta de todo muito antes, mas está claro que pelo bem de
muita gente julgou oportuno não me dizer nada.
Pitt lembrou-se do que já sabia sobre o Círculo Interior.
—Quer dizer que em nenhum momento lhe advertiram que aqueles comentários não
eram convenientes ou, dito de outra maneira, que não gostavam absolutamente?
—Naturalmente! Claro que sim! Fizeram—no da forma mais cavalheiresca e discreta
do mundo, mas não acredito que conseguisse entender de tudo. Jamais lhe tinha passado
pela cabeça que no fundo fossem a sério—disse Matthew levantando as sobrancelhas e
deixando que seus olhos castanhos parecessem divertidos ante a idéia e ao mesmo tempo
doídos amargamente por ela.
Pitt sentiu de repente um grande respeito por ele e se deu conta do alcance de sua
determinação, não só para limpar o nome de seu pai de qualquer suspeita de corrupção,
mas também possivelmente para vinga-lo.
—Matthew — começou inclinando-se para frente.
-se for me dizer que o deixo correr, será melhor que economize saliva —
interrompeu—o Matthew com decisão.
—Eu... —Isso era precisamente o que Pitt ia pedir lhe. Desconcertou-lhe que
adivinhasse com tanta facilidade suas intenções—. Nem sequer sabe quem são —
indicou—. Pelo menos, antes de fazer algo pense nisso muito bem — aconselhou em um
tom que lhe pareceu pouco convincente e mais que previsível.
Matthew sorriu.
—Pobre Thomas, sempre fazendo de irmão maior. Já não somos crianças, sabe?
Que seja um ano mais velho que eu não lhe dá nenhuma autoridade sobre mim. Nunca a
teve, nem então nem agora. Claro que tomarei cuidado! Sei muito bem que nada posso
fazer contra o Círculo e que é como uma hidra: corta-lhe uma cabeça, e lhe crescem duas
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mais—disse endurecendo a expressão do rosto.
Mas vou demonstrar que o pai estava em seu são julgamento, embora me custe à
vida — sentenciou olhando fixamente ao Pitt sem pestanejar—. Se permitirmos que digam
essas coisas sobre um homem como o pai, se não nos importar que o matem para fazê-lo
calar nem que logo o desacreditem dizendo que estava louco, o que fica? No que nos
convertemos? Que direito teremos a reivindicar nossa honra?
—Nenhum—respondeu Pitt com tristeza—. Mas é preciso algo mais que honra para
ganhar esta batalha; necessitamos uma boa estratégia e armas bem afiadas — e
acrescentou com uma careta: — embora talvez neste caso seria mais apropriada uma
colher longa.
Matthew ergueu as sobrancelhas.
—Para jantar com o diabo? Sim, bem dito. você tem alguma, Thomas? Quer se unir a
mim na batalha?
—É claro que sim—disse quase sem pensar; um instante depois lhe vieram à mente
os perigos e as responsabilidades que aquilo implicava, mas já era muito tarde.
E, embora tivesse pensado bem nisso sopesando cada risco, teria tomado a mesma
decisão. Embora talvez se teria economizado aquela sensação de angústia, ou teria
compreendido melhor o alcance do risco que podiam correr e teria calculado com mais
objetividade a margem de êxito que podiam esperar de sua atuação. Em qualquer caso,
não teria feito mais que perder o tempo.
Matthew por fim se relaxou um pouco, apoiou a cabeça na toalha do espaldar da
poltrona e sorriu. A expressão de cansaço e derrota já não era tão entristecedora. Agora
quase recordava ao jovem que Pitt tinha conhecido tempo atrás, o mesmo com o que tinha
compartilhado sonhos e aventuras.
Os dois tinham compartilhado um espírito rebelde e pletórico de vitalidade, sonhando
com viagens impossíveis ao Amazonas e descobrimentos nas tumbas dos faraós, mas
sempre com essa mansidão infantil apoiada em uma distinção elementar e caseira sobre o
bem e o mal; sendo crianças, a pior maldade que podiam conceber era o roubo ou a
simples violência. Ainda não conheciam a corrupção, a frustração, a manipulação e a
traição. Que inocentes lhes pareciam agora aqueles meninos de então.
—Houve algumas advertências—disse Matthew de repente—. Então não soube
distingui-las, mas agora me dou conta. Sempre que ocorreram, eu me achava em Londres
e o pai me contava isso.
—Mas que tipo de advertências? —quis saber Pitt.
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—Bom, não estou muito seguro da primeira — disse Matthew enrugando o rosto—.
Tal como o pai me contou isso, tudo passou-se quando quis fazer uma viagem na
ferrovia subterrânea. Desceu as escadas que conduziam à plataforma e se dispôs a
esperar a chegada do trem — E aqui Matthew se deteve de repente e perguntou ao Pitt—:
esteve alguma vez em algum desses lugares?
—Claro, vou muito frequentemente. —Pitt reconstruiu em sua mente os corredores
cavernosos, as longas estações onde o túnel se alongava para dar capacidade à
plataforma onde o trem se detinha, o ruído infernal que fazia a máquina saindo da
escuridão do túnel com um rugido até que se detinha na estação. Logo as portas que se
abriam e a multidão saindo como a pressão. E outras pessoas que esperavam para subir
ao trem antes que se fechassem as portas e de que aquele artefato com forma de verme
voltasse a introduzir-se na escuridão.
—Então já conhece o estrondo que há e os empurrões e cotoveladas que se dão as
pessoas—continuou Matthew—. Pois bem, o pai se achava perto da borda da plataforma e
justo quando já se ouvia a chegada do trem, sentiu um empurrão muito forte nas costas
que o impulsionou para frente até quase cair às vias, o que teria ocasionado sua morte. —
A voz do Matthew se tornou mais grave, com um tom de agressividade contida—. Mas
alguém o pegou a tempo e puxou—o para trás quando o trem já estava entrando na
plataforma.
O pai me disse que se voltou para agradecer a quem o tinha ajudado, mas não pôde
identificar à pessoa em questão, a seu salvador, ou quem sabe se seu atacante. Todo
mundo andava muito ocupado em subir ao trem e ninguém lhe prestou atenção.
—Estava certo de que alguém o tinha empurrado?
—Absolutamente—disse Matthew e esperou que Pitt desse alguma amostra de
ceticismo.
Pitt assentiu com a cabeça de uma forma quase imperceptível. Se se tratasse de
outra pessoa, alguém a quem ele conhecesse menos, talvez tivesse duvidado de tudo
aquilo, mas, a não ser que Arthur Desmond tivesse mudado até o extremo de tornar-se
irreconhecível, era certamente a última pessoa do mundo em chegar a acreditar que
alguém estivesse perseguindo—o.
Para ele todo mundo era bom, até que algo lhe obrigasse a pensar o contrário, e
então se sentia surpreso e triste, sempre disposto a duvidar de seu próprio juízo sobre
aquela pessoa e feliz de descobrir que efetivamente se equivocava.
—E a segunda advertência?—perguntou Pitt.
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—A segunda tem que ver com um cavalo — respondeu Matthew—. Nunca me contou
os detalhes — começou a dizer inclinando-se outra vez para frente e enrugando o cenho—
. Tudo o que sei me disse depois o cavalariço, quando voltei para casa. Ao que parece, o
pai se achava montando a cavalo pelo povoado quando um idiota se cruzou inesperada e
rapidamente com a montaria desenfreada, agitando os braços e com o chicote na mão. Ao
cruzarem os cavalos, o pai se viu empurrado contra o muro que rodeia o vicariato e viu
como o outro cavaleiro o dava um terrível golpe com o chicote me seu cavalo.
Com o pobre animal aterrorizado, é claro o pai caiu ao chão. —Matthew suspirou
muito devagar sem afastar o olhar do Pitt—. É possível que fosse um acidente, que aquele
homem estivesse bêbado ou que fosse um completo imbecil, mas o pai não acreditou
assim, nem eu tampouco.
—Não — corroborou Pitt com uma careta—. Nem eu. Era um cavaleiro excelente e
certamente não era capaz de imaginar algo parecido de ninguém.
De repente, Matthew lhe mostrou um sorriso franco e generoso com o qual pareceu
rejuvenescer.
—É o melhor que ouvi dizer dele em várias semanas. Por Deus bendito, tomara lhe
ouvissem seus amigos. Agora ninguém se atreve a falar bem dele, nem sequer a
reconhecer que estava em seu são julgamento, sem lhes importar o fato de que talvez
tivesse razão no que dizia, Thomas—perguntou com uma voz quebrada pela dor—, o pai
não estava louco, verdade que não? Era o homem mais sensato, honrado e bom que
houve no mundo.
—Claro que sim— afirmou Pitt lentamente e com total sinceridade—. Asseguro-lhe
que a loucura nada tem que ver com isto. Sei muito bem que o Círculo Interior castiga a
todo aquele que o traia. Já o vi antes.
Às vezes recorrem ao descrédito social ou à ruína econômica e nem sempre ao
assassinato, embora este último tampouco seja algo estranho para eles. Se não puderam
intimidá—lo, e fica claro que não o conseguiram, não restou outra saída que o assassinato.
Não podiam arruiná—lo economicamente porque seu pai não gostava das apostas nem
tampouco especulava com o dinheiro. Tampouco podiam desacreditá—lo em sociedade
porque não devia nenhum favor a ninguém, jamais procurou um cargo oficial nem
confabulou com outras pessoas e se havia algo que lhe importasse nesta vida, certamente
não era entrar no Tribunal Supremo ou fazer vida social em Londres.
A posição de que gozava no lugar onde vivia era inatacável, inclusive para o Círculo
Interior. De modo que não tinham outra alternativa que matá-lo; era a única forma de ter
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calado para sempre.
—E depois desonram sua memória tirando crédito a tudo o que disse – afirmou
Matthew com raiva e dor lhe escurecendo o rosto—. Não o permitirei, Thomas! Não o
permitirei!
Alguém bateu na porta do salão saguão onde se achavam. Pitt voltou a dar-se conta
de onde estava e de que fora já quase tinha anoitecido. Ainda não tinha jantado e Charlotte
devia estar perguntando-se quem tinha vindo a visita-los e por que se colocaram no salão
saguão com a porta fechada e sem prévia apresentação, ou por que não convidava para
jantar à visita.
Matthew o olhou com expectativa e Pitt se surpreendeu ao ver uma careta de
nervosismo lhe cruzando o rosto, como se não estivesse seguro do que fazer.
—Venha—disse Pitt levantando-se e dispondo-se a abrir a porta. Achou-se ao
Charlotte com rosto de curiosidade e certa inquietação. Tinha terminado de ler um conto às
crianças e pelo ligeiro rubor das faces e a desordem do cabelo, recolhido distraidamente
com um alfinete, Pitt adivinhou que vinha da cozinha.
Já tinha esquecido que tinha fome—. Charlotte, apresento ao Matthew Desmond. –
Era absurdo que não se conhecessem. Com ninguém mais tinha tido uma relação tão
próxima como com o Matthew, excetuando a sua mãe, e às vezes inclusive mais que com
sua mãe. Agora era Charlotte quem mais lhe importava no mundo e ninguém podia
substituí-la.
Jamais a levou ao Brackley para que conhecesse seu antigo lar, nem para lhe
apresentar a aqueles que tinham sido mais que uma família para ele.
Sua mãe tinha morrido quando ele tinha dezoito anos, mas isso não justificava uma
ruptura tão radical.
—Encantada de conhecê-lo, Senhor Desmond — disse Charlotte com uma calma e
uma segurança que Pitt atribuiu a sua educação mais que a qualquer sentimento interior.
Logo adivinhou certa insegurança em seu olhar e compreendeu por que dava um passo e
se aproximava de seu marido.
—É um prazer, senhora Pitt — respondeu Matthew sem poder dissimular sua
surpresa ao ver que ela respondia com desafio a seu olhar. Nesse breve instante, depois
de ter intercambiado simplesmente uma frase e um olhar, os dois souberam exatamente
ante quem estavam, quais eram e que lugar ocupava cada um na sociedade—. Lamento
muitíssimo esta intrusão, senhora Pitt—continuou Matthew—. Foi uma desconsideração
por minha parte. Vim ver o Thomas para lhe comunicar a morte de meu pai e temo que
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esqueci as mais elementares normas de educação. Aceite minhas desculpas, por favor.
Charlotte olhou de esguelha a seu marido entre a surpresa e a compreensão, e
depois se dirigiu ao Matthew:
—Desculpe a mim, senhor Desmond. Deve estar muito afetado. Há algo que
possamos fazer por você? Quer que Thomas lhe acompanhe até o Brackley?
Matthew sorriu.
—Bom, senhora, em realidade vim pedir ao Thomas que averigue o que aconteceu
com meu pai, e me prometeu que fará o que possa.
Charlotte tomou fôlego para dizer algo mais, mas logo se deu conta de que talvez não
ia ser muito oportuna e preferiu calar.
—Quer jantar algo, senhor Desmond? Já suponho que não terá muita fome, mas lhe
convém comer algo ou se sentirá pior.
—Sim—respondeu Matthew, lhe dando a razão—. É verdade.
Ela se fixou na dor e no cansaço que refletiam o rosto do Matthew e hesitou antes de
tomar uma decisão, mas não era próprio dela andar-se com afetação.
—E por que não fica esta noite, Senhor Desmond? Acredite-me se lhe disser que
estaremos encantados. Além disso, seria você o primeiro a passar a noite nesta casa
depois da mudança. Se houver algo que necessite e que não leve consigo, Thomas poderá
prestar-lhe sem problemas.
Matthew não teve que pensar duas vezes.
—Obrigado — respondeu imediatamente—. Prefiro a voltar agora para casa.
—Thomas lhe mostrará seu quarto e fará que Gracie o prepare tudo. O jantar estará
pronto em dez minutos — disse ela, dando meia volta e retirando-se para a cozinha não
sem antes dirigir um rápido olhar a seu marido.
Matthew permaneceu um instante no vestíbulo olhando também ao Pitt.
Em sua expressão podia ler a mescla de sentimentos que lhe passavam pela cabeça:
surpresa, compreensão, lembranças do passado, as longas conversas, todos os sonhos
compartilhados sendo crianças e a brecha que o tempo tinha aberto entre aquela época e
o tempo presente. Não era preciso nenhuma explicação.
O jantar foi leve: frango frio, verdura e de sobremesa um sorvete de fruta. Não é que
tivesse muita importância, mas Pitt agradeceu que a visita do Matthew se produzisse
depois de sua promoção e não antes, quando só teriam podido lhe oferecer o sabido
guisado de cordeiro com batatas, ou peixe, e pão com manteiga.
Falaram pouco e só de temas triviais, como o que tinham pensado fazer no jardim, o
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que iriam plantar, se todas as árvores frutíferas rendiam iguais ou que problemas traziam
se não se podavam. Foi um bate—papo para encher o silêncio, longe de qualquer tento
para fingir que tudo ia bem.
Charlotte sabia tão bem como Pitt que a dor requer seu próprio tempo, que, à força
de querer evita-lo recorrendo a outros temas, o único que se consegue é aumenta-la,
porque parece que lhe tira importância, como se a perda que se sofre não importasse.
Matthew se retirou logo a seu quarto, deixando a Charlotte e ao Pitt na saleta
decorada em tons verdes e brancos. Chamá-la salão teria sido muito pretensioso, mas o
certo é que tinha um encanto tão especial e se respirava tanta tranquilidade que servia
perfeitamente para tal propósito.
—O que aconteceu?—perguntou Charlotte depois de esperar que Matthew tivesse
subido as escadas para que não escutasse nada—. O que tem de estranho na morte de
Sir Arthur?
Pouco a pouco, com mais dificuldade do que tinha imaginado, começou a lhe contar
tudo o que Matthew lhe havia dito sobre Sir Arthur e o Círculo Interior, as advertências que
segundo ele tinha recebido seu pai e por último sua morte por overdose de láudano no
Morton Clube.
Ela escutava sem interrompê-lo e sem deixar tampouco de olhá-lo nos olhos.
Pitt se perguntou se a dor e a sensação de culpa que sentia por dentro se estavam
tornando evidentes nos olhos de sua mulher. Nem sequer estava seguro de querer que ela
soubesse.
Não era fácil sofrer tudo aquilo em silêncio, mas por nada do mundo queria que
Charlotte o visse como ele se estava vendo a si mesmo, como alguém desconsiderado e
insensível, depois de tantos anos de ausência, ao carinho que tinha recebido no passado.
Quão único agora podia fazer era devolver uma parte muito pequena dessa dívida
tratando de restituir o bom nome de Sir Arthur por culpa de uma desonra que certamente
não merecia.
Pode ser que ela notasse algo, mas, em qualquer caso, preferiu não dizer nada.
Charlotte podia ser a pessoa com menos tato do mundo, mas quando se tratava de
alguém a quem de verdade queria, então, por amor era capaz de guardar como ninguém
qualquer segredo e abster-se de emitir julgamentos.
—O do láudano é absurdo, me acredite—disse ele em tom grave—. Mas embora
assim fosse, seja qual for o motivo neste momento o desconhecemos e o que não vou
permitir é que se diga que perdeu o juízo. É... É algo indigno.
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-sei—disse ela tomando a mão—. Não fala dele muito frequentemente, mas sei muito
bem que lhe tinha muito afeto. Seria injusto que agora não o defendesse — disse com um
olhar cheio de preocupação, e de repente não se sentiu muito segura de como devia
reagir—, mas, Thomas...
—O que?
—Não deixe que a emoção...—começou a dizer escolhendo as palavras e omitindo
qualquer referência a aquele sentimento de culpa, embora ele soubesse muito bem que ela
já se dera conta de que assim era como efetivamente se sentia—. Não deixe que a
emoção o cegue para se colocar neste assunto sem a devida prudência e preparação. Não
são inimigos que possa tomar à ligeira nem seus métodos de luta são limpos.
Não lhe darão uma segunda oportunidade por muito aflito que esteja nem por muito
que a lealdade lhe dê coragem nem o motive. Assim que saibam que está disposto a lutar
contra eles, farão todo o possível para que caia nesses mesmos enganos.
Sei que nunca esquecerá a morte de Sir Arthur e que por esta razão, só pensará em
derrota-los, mas tampouco esqueça o modo como acabaram matando—o, como
conseguiram o que se propuseram e com que crueldade.
Charlotte estremeceu e começou a sentir-se cada vez mais preocupada, como se se
tivesse assustado ante suas próprias palavras.
-se forem capazes de fazer isso com um dos seus, pensa no que farão com um
inimigo como você — disse ela, e por um momento pareceu que ia acrescentar algo mais,
talvez uma súplica para que pensasse duas vezes, para que sopesasse as possibilidades
de conseguir algum triunfo, mas preferiu calar, possivelmente porque pensou que naquele
momento não ia servir de nada.
Thomas sabia que ela era incapaz de enganá-la em algo, não tinha caráter nem
temperamento para isso, e o mais certo é que estivesse aprendendo a ter um pouco de
tato.
—Tenho que fazê-lo — disse ele pausadamente, respondendo à pergunta que ela
não se atreveu a formular—. A alternativa é inaceitável.
Ela continuou sem dizer nada, mas agora lhe pegava a mão com mais força e
permaneceu um bom momento sentada junto a ele.
Pela manhã Matthew se levantou tarde, de modo que Charlotte e Thomas já estavam
tomando o café da manhã quando desceu à sala de refeições. Jemima e Daniel já estavam
vestidos e Gracie os tinha levado ao colégio. Era esta uma nova tarefa que a enchia de
satisfação, e caminhava radiante toda ela, com apenas um metro e meio de altura, sorrindo
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com amabilidade às pessoas que já conhecia ou a que tinha desejos de chegar a
conhecer.
Charlotte suspeitava que no caminho de volta se entretivesse um momento com o
ajudante do açougueiro, mas não lhe dava nenhuma importância.
Parecia um bom menino. Charlotte inclusive tinha chegado a passar pelo açougue em
algumas ocasiões para lhe dar uma olhada e averiguar como era.
Matthew parecia mais descansado, mas ainda lhe notavam as olheiras, grandes e
escuras; levava o espesso cabelo castanho com o risco no meio, mas parecia pouco
arrumado e mal talhado, provavelmente como consequência de haver-se penteado com
pressa e despreocupação.
Houve o costumeiro intercâmbio de saudações e Charlotte lhe ofereceu bacon, ovos,
rins e pão torrado com geléia. Depois lhe encheu a taça de chá e Matthew comprovou
como lhe queimava na boca ao bebê—lo, pois ainda estava muito quente.
Ao cabo de um momento de amistoso silêncio, Charlotte se desculpou e se retirou à
cozinha a seus afazeres domésticos. Matthew aproveitou o momento e ergueu o olhar para
o Pitt.
—Há algo mais que deveria lhe contar — disse com a boca cheia.
—O que?
—Corresponde-lhe como funcionário do governo — afirmou, e tomou outro gole de
chá, esta vez com mais cuidado—. E a mim também.
—Refere-se ao Foreign Office?—perguntou Pitt surpreso.
—Sim, trata-se da África — disse franzindo o sobrecenho em um esforço de
concentração—. Não sei se está informado dos tratados que assinamos, Não?
Bom, tampouco importa muito para o que lhe vou dizer. O certo é que chegamos a
um acordo com a Alemanha faz quatro anos, em 1886, e esperamos assinar outro este
mesmo verão. Claro que a situação mudou desde que Bismarck perdeu poder e desde que
o jovem kaiser começou a dominar tudo.
Tem a seu lado a esse miserável do Carl Peters, que é ardiloso como uma raposa.
Enquanto isso, Salisbury continua sem tomar uma decisão sobre o que quer fazer, e isso
não facilita as coisas.
A metade de nós acredita que ainda aspira à dominação britânica de um corredor que
uma Cidade do Cabo com o Cairo. A outra metade acredita que se esquecerá do assunto
por resultar muito caro e complicado.
—Complicado?—perguntou Pitt desconcertado.
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—Sim — respondeu Matthew agarrando outra torrada—. Para começar, recordo-lhe
que entre a colônia da África do Sul e o Egito sob a dominação britânica há quase cinco mil
quilômetros de distância. Isso implica tomar Suam, Equatoria (agora em mãos de um
escorregadio cliente chamado Emín Baixem) e abrir um corredor ao oeste da África
Oriental alemã: algo nada simples tendo em conta como estão as coisas. —Matthew
lançou ao Pitt um severo olhar para comprovar que lhe estava seguindo.
Para ilustrar melhor o que lhe estava contando, começou a riscar linhas com o dedo
sobre a mesa da cozinha—. Toda a zona que há ao norte do Transvaal, e isso inclui
Zambezia e os territórios que há entre Angola e Mozambique, ainda estão em poder dos
chefes nativos.
—Dou—me conta—disse Pitt vagamente—. E que alternativa há?
—Uma rota desde o Cairo até o Calabar—replicou Matthew, mordendo a torrada—,
ou do Níger até o Nilo, como prefere. Isso implica atravessar o lago Chad e subir para o
oeste tocando quase o Senegal, e logo tomar aos franceses Dahomey e Costa de Marfim.
—Uma guerra? —exclamou Pitt entre desconfiado e apavorado.
—Não, não; é claro que não — se apressou a esclarecer Matthew—. Seria em troca
da Gambia.
—Ah, já vejo.
—Não, não vê nada. Ainda não. Ainda fica a questão da África Oriental alemã, onde
agora há muitos problemas com levantamentos e várias matanças, e também Heligoland…
—Como disse? —Agora Pitt estava imerso na confusão total.
—Heligoland —repetiu Matthew com a boca cheia.
—Eu achava que Heligoland estava no mar do Norte. Ainda recordo quando nos
ensinou isso Tarbet. Agora me inteiro de que está em alguma parte da África.
—E efetivamente está no mar do Norte, como nos disse Tarbet. —Tarbet tinha sido o
tutor do Matthew quando era menino, e portanto também o do Pitt—. Trata-se de um lugar
estratégico, ideal para que uma base naval bloqueie os principais portos alemães do Rin—
explicou Matthew—.
Poderíamos ceder Heligoland aos alemães em troca de alguma de suas posses na
África. Acredite-me se te disser que estariam encantados de fazê-lo desde que o
negociarmos bem.
—Mas como se podem ter tantos problemas e tão complicados-disse Pitt sorrindo
com ironia—. E além disso, para que quer que a polícia intervenha nisto? Não temos
nenhuma autoridade na África, nem sequer no Heligoland.
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—Mas sim a têm em Londres. E em Londres está o Ministério de Colônias, e também
a embaixada alemã.
—Vá! —Apesar de si mesmo, agora sim via mais claro e começou a temer o pior.
E também a Companhia da sul—africana do Império Britânico –continuou Matthew—,
e todos os bancos que financiam a exploradores e missionários, para não falar dos
aventureiros, os que procuram aventuras e os que querem dinheiro.
—De acordo — concedeu Pitt—. Mas o que tem isso que ver com o que estamos
falando?
O brilho do olhar risonho do Matthew desapareceu por completo e ficou muito sério.
—Porque há muitas informações do Ministério de Colônias que se estão filtrando à
embaixada alemã, Thomas. Sabemos por que os alemães estão à corrente de todas
nossas intenções, e isso é algo que não deveria estar acontecendo. Às vezes se inteiram
de coisas inclusive antes que as saibamos no Foreign Office.
De momento, não parece que isto tenha provocado nenhum dano, mas poderia
condicionar muito gravemente nossas possibilidades de êxito de cara a qualquer tratado
com eles.
—Está—me dizendo que alguém do Ministério de Colônias está passando informação
à embaixada alemã?
—Não vejo outra explicação possível.
—Mas que tipo de informação? Não é possível que se inteirem por outra fonte? Estou
certo de que terão agentes na África Oriental, não?
-se soubesse algo mais sobre como funcionam os assuntos relacionados com a
África não me faria esta pergunta—disse Matthew dando de ombros—.
Qualquer informe que se recebe é completamente diferente do anterior, e muitas das
informações que contêm são suscetíveis de uma dúzia de interpretações, sobretudo no
que concerne a chefes e príncipes nativos. O que os alemães sabem é precisamente a
versão do Ministério de Colônias.
—Informação sobre o que, por exemplo?
Matthew bebeu o chá que restava na xícara.
—Pelo que sabemos, de momento se trata basicamente de informe sobre depósitos
minerais e sobre tratados de intercâmbio entre diferentes feições e os chefes nativos.
Sobretudo um da Zambezia chamado Lobengula. Fizemos todo o possível para que os
alemães não estejam à corrente das negociações que já iniciamos neste assunto.
—Estão?
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—É difícil saber, mas temo que sim.
Pitt bebeu seu chá, serviu-se de um pouco mais e pegou outra torrada. Adorava a
geléia feita em casa; Charlotte a preparava com uma intensidade tal de sabor que ao tomala parecia que a cabeça se enchia toda dela. Já se tinha dado conta de que ao Matthew
também gostava.
—Então têm um traidor no Ministério de Colônias—disse muito devagar—. Quem
mais está à corrente do que me contou?
—Meu imediato superior e o ministro, Lorde Salisbury.
—Ninguém mais?
Matthew esbugalhou os olhos.
—Pelo amor de Deus! É claro que não. Não nos parece conveniente que todo mundo
se inteire de que no Ministério de Colônias há um espião. Nem tampouco queremos que o
espião em questão saiba que já conhecemos sua existência. Temos que solucionar o
assunto antes que cause um problema grave, e ainda então terá que manter isso em
segredo.
—Eu não posso intervir sem a devida autorização — argumentou Pitt.
Matthew franziu o cenho.
—Eu mesmo lhe darei a autorização por escrito, se assim o quiser. Achava que lhe
tinham promovido a superintendente. Para que quer mais autoridade do que já tem?
—É para o delegado, sobretudo se for interrogar ao pessoal do Ministério de
Colônias—respondeu Pitt.
—Ah, claro; ele a necessitará.
—Acha que tudo isto tem algo que ver com o outro assunto?
Matthew enrugou as sobrancelhas por um momento e logo pareceu compreender a
que se estava referindo.
—Meu Deus, espero que não! O Círculo Interior sempre cai muito baixo, mas nem me
tinha ocorrido que pudesse estar envolvido em um assunto de traição como é o caso que
nos ocupa. Não. Pelo que sei e pelo que o pai me disse, os interesses do Círculo Interior
dependem de que Grã—Bretanha mantenha toda sua riqueza e poder na medida do
possível. Qualquer perda britânica na África supõe também a sua. Uma coisa é que nos
eles roubem, e outra muito distinta que o façam os alemães — disse sorrindo
amargamente ante aquela ironia—. Por que o pergunta? Acha que há membros do Círculo
Interior dentro do Ministério de Colônias?
—Provavelmente; o que lhe asseguro é que estão dentro da polícia, embora não sei
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em que nível.
—Possivelmente ao nível de um delegado?—perguntou Matthew.
Pitt terminou de comer a última torrada com geléia.
—É possível. Mas eu me refiro ao status que possam ocupar dentro do Círculo
Interior. Não há nenhuma relação entre os dois e isso é o que faz que seja tão perigosos.
—Não o compreendo.
—Imagina que essa pessoa ostenta um grande poder político ou econômico —
começou a explicar Pitt—; que é um recém—chegado ao Círculo e que débito certo grau
de obediência a outro membro do Círculo que aparentemente não é nada importante no
mundo. Nunca sabe de onde se exerce o verdadeiro poder.
—Mas então...—começou a dizer Matthew e logo baixou o tom da voz até que se fez
inaudível e lançou a seu amigo um olhar de perplexidade. Isso explicaria muitos dos
estranhos descobrimentos que temos feito — disse retomando a frase—. Uma rede de
lealdades soterradas que funciona ao contrário do que parece, com uma dependência e
uma força que vai além dos membros conhecidos do Círculo. — Matthew empalideceu e
crispou os músculos do rosto—. Meu Deus, é terrível.
Jamais o teria imaginado. Não estranho que o pai estivesse tão angustiado. Sei muito
bem por que estava zangado, mas nunca entendi por que se sentia tão impotente, ou pelo
menos até este extremo. —Aqui se deteve e guardou silêncio, até que de repente decidiu
prosseguir—: Mas por muito difícil que seja, tenho que tenta-lo. Não posso permitir que
tudo fique assim.
Pitt não disse nada.
—Sinto—o—disse Matthew mordendo o lábio—. Não estava tentando me dissuadir,
não é? Estou um pouco assustado de mim mesmo. Em qualquer caso, se ocupará do
assunto das filtrações do Ministério de Colônias, não?
—É claro. Assim que chegue ao Bow Street. Suponho que se encarregará de que o
Foreign Office solicite oficialmente a investigação, não é? Posso usar seu nome?
—Sim, claro — disse Matthew e logo colocou a mão em um bolso e extraiu um
envelope que entregou ao Pitt—. Aqui tem a autorização por escrito. E, Thomas, obrigado.
—Pitt não soube o que dizer. Tirar importância ao gesto podia interpretar-se como
que tampouco lhe importava sua amizade de forma que tudo ficasse em uma simples
amostra de educação.
—O que vai fazer agora?—perguntou Pitt mudando de tema.
Matthew parecia realmente esgotado; a noite anterior, se é que algo tinha
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adormecido, certamente lhe tinha proporcionado um descanso muito superficial. Matthew
deixou o guardanapo a um lado e se levantou.
—Tenho muitos assuntos pendentes. Citaram—me — começou a dizer tomando
fôlego— depois de amanhã para a investigação judicial.
—Estarei ali.
—Obrigado.
—E o enterro?
—Dois dias depois. Em seis. Virá, verdade? Será no Brackley, claro. Enterraremo-lo
no panteão familiar.
—Naturalmente que irei—disse Pitt, e também se levantou—. Aonde vai agora? Volta
para casa?
—Não, não; a citação é aqui em Londres. Ainda tenho coisas que fazer.
—Tem alguém que...? Já sabe que pode voltar aqui quando quiser.
—Matthew sorriu.
—Obrigado, mas o melhor é que vá ver Harriet. Eu — começou a dizer com certo
embaraço. Pitt esperou.
—Acabo de me comprometer em matrimônio — prosseguiu Matthew com um ligeiro
rubor nas faces.
—Parabéns!—disse Pitt sentindo—o de verdade. Teria se alegrado igualmente em
qualquer outro momento, mas agora tinha a sorte de contar com alguém que pudesse
apoiá-lo e com quem compartilhar aqueles momentos tão difíceis—. Claro que tem que ir
vê-la e lhe contar o que passou antes de que se inteire pelos jornais ou de que alguém o
diga.
Matthew o olhou com expressão de recriminação.
—Thomas! Ela não lê os jornais!
Com um dramalhão, Pitt se deu conta de que acabava de dar uma gafe com respeito
a uma convenção social. As mulheres não liam os jornais, excetuando as circulares da
família real e as páginas de moda. Ele se tinha acostumado à Charlotte e a sua irmã,
Emily, quem, desde que abandonou o lar paterno jamais aceitou restrição alguma sobre o
que devia ler ou não. Até o próprio Lorde Ashworth, o primeiro marido de Emily, não teve
mais remédio que ceder ante aquele insólito capricho.
—É claro. O que em realidade queria dizer é que alguém que leia o jornal pode
chegar a comentar o disse desculpando-se—. Não acredito que seja a maneira mais
apropriada de inteirar-se de tudo. Tenho certeza de que fará todo o possível para ajuda-lo
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no que possa.
—Sim, Eu...—começou Matthew dando de ombros—. É uma crueldade que me sinta
tão feliz neste momento.
—Tolices! —cortou-lhe Pitt—. Sir Arthur seria o primeiro em lhe desejar todo o
consolo que possa achar, e toda a felicidade também. Não acredito que seja necessário
que eu lhe recorde isso. Deve sabê-lo por si mesmo, a não ser que tenha esquecido por
completo a classe de homem que era. —Resultava estranho e doloroso falar dele no
passado, e de repente, sem esperar, voltou a sentir-se cheio de dor.
Matthew devia estar sentindo algo parecido porque estava completamente pálido.
-sei. Mas eu... Ainda... Não posso. Em qualquer caso, irei vê-la. É uma mulher
maravilhosa, Thomas. Você gostará. É a filha do Ransley Soames, do Tesouro.
—Outra vez parabéns! —exclamou Pitt lhe estendendo a mão em um gesto
automático.
Matthew a estreitou e esboçou um sorriso.
—E agora será melhor que vamos —sugeriu Pitt—. Eu ao Bowl Street e você ao
Ministério de Colônias.
—De acordo, mas antes queria me despedir da senhora Pitt e lhe agradecer por sua
hospitalidade. Tomara... Tomara a tivesse apresentado ao pai, Thomas. Teria gostado
muito...—disse engolindo em seco e afastando-se ligeiramente para dissimular aquela
repentina perda de autocontrole.
-sei — concedeu Pitt emocionado—. É uma das muitas coisas das que me
arrependo.—Abandonou a sala com discrição para deixar que Matthew se sobrepusesse a
sós e subiu para procurar Charlotte.
Ao chegar à delegacia de polícia do Bowl Street teve a sorte de achar ali ao delegado
Giles Farnsworth. Acudia só de vez em quando por estar ao comando de uma zona
grandemente ampla; em qualquer caso, nunca costumava chegar àquelas horas. Pitt sabia
que só podia chegar a ver-se com ele depois de um considerável esforço.
—Ah, bom dia, Pitt—lhe saudou Farnsworth energicamente. Era um homem bonito e
de uma educação impecável, com o cabelo liso e brilhante, o rosto perfeitamente barbeado
e uns olhos de um cinza azulado pelos quais se adivinhava uma grande equanimidade—.
Chegou você no melhor momento. Mau assunto o roubo de ontem à noite no Great Wild
Street. Levaram os diamantes de Lady Warburton.
Ainda não temos a relação completa das jóias roubadas, mas Sir Robert a terá lista
antes do meio—dia. É um caso muito feio. Você ocupe-se pessoalmente, Sim?
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Prometi a Sir Robert que o poria em mãos de meu melhor homem—disse sem
incomodar-se sequer em esperar a resposta do Pitt. Tratava-se de uma ordem, não de
uma sugestão.
Quando Micah Drummond teve que aposentar-se, recomendou que seu posto o
ocupasse Pitt e o fez com tal ardor que Farnsworth não teve mais remédio que aceita-lo,
embora com muitas reservas. A diferença do Drummond, Pitt não era um cavalheiro, nem
tinha experiência alguma em um posto de mando, nem sequer como oficial no exército,
algo que Drummond, por certo, também tinha feito.
Farnsworth costumava trabalhar com subordinados da mesma posição social do
Drummond no cargo de superintendente. Entendiam-se à perfeição, conheciam as regras
que os homens de categoria inferior desconhecem por completo, e se sentiam muito
cômodos em sua afinidade.
Pitt jamais poderia equiparar-se socialmente com o Farnsworth e nunca existiria algo
parecido à amizade entre os dois. O fato de que Drummond considerasse o Pitt como um
amigo não deixava de ser um desses enganos inexplicáveis que inclusive os cavalheiros
costumam cometer de vez em quando.
Mas sempre que ocorria isto, era porque se tratava de alguém com experiência e
conhecimentos em algo sobre o qual podiam assessorá-los, como a criação de cavalos de
raça, ou o desenho de um enorme jardim com toda classe de plantas e canteiros para
cultivar boj ou lavanda, ou possivelmente algum brilhante mecanismo para construir fontes
e cascatas. Pitt jamais tinha conhecido a alguém com semelhante desajuizado com
respeito a um subordinado mais jovem.
-senhor Farnsworth — disse Pitt quando o outro já estava saindo pela porta.
—Sim? —Farnsworth estava surpreso.
—Naturalmente me ocuparei dos diamantes de Lady Warburton se assim o quiser,
mas preferiria que pusesse ao Tellman em meu lugar para que assim possa me ocupar de
um assunto no Ministério de Colônias, aonde me informaram que alguém está filtrando
informações muito importantes relacionadas com nossos interesses na África.
—Como? —Farnsworth estava consternado. Girou sobre os calcanhares e olhou
fixamente ao Pitt—. Não sei nada disso! Por que não me informou imediatamente? Ontem
estive localizável todo o dia, e anteontem também. Teria me encontrado facilmente se
houvesse tentado. Aqui dispõe de um telefone. Já vai sendo hora de que instale um em
sua própria casa.
Terá que ficar em dia, Pitt. Estes inventos modernos servem para que os usemos
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todos, e não só para que se entretenham um momento quem tem mais dinheiro e
imaginação que bom senso. Mas o que lhe passa? É você muito antiquado. Muito
obstinado!
—Faz só uma hora e meia que o soube — replicou Pitt com satisfação—. Justo antes
de sair de minha casa. Tampouco me parece um assunto muito adequado para tratar por
telefone; em qualquer caso, convém saber que tenho telefone.
—E se não é um assunto muito adequado para tratar por telefone, me diga então
como se inteirou? —quis saber Farnsworth em um tom igualmente satisfeito e irônico—. Se
o que queria era a maior discrição possível, talvez devesse ter ido primeiro ao Ministério de
Colônias para estar mais seguro antes de vir aqui.
Tão convencido está de que essa informação que se filtra é tão importante? Talvez,
levado por um excesso de zelo esqueceu que não tem os suficientes elementos de
julgamento para discernir a gravidade dessa informação tal como sugere. Possivelmente
se trate de um equívoco.
Pitt sorriu e colocou as mãos nos bolsos.
—Um funcionário do Foreign Office veio ver—me—respondeu— seguindo instruções
de Lorde Salisbury, e me pediu oficialmente que investigasse o assunto. A informação de
que estamos falando se filtrou à embaixada alemã, razão pela qual já estão à corrente de
quase tudo. Como vê, não se trata de que uns simples papéis tenham passado de um lado
ao outro.
Farnsworth estava boquiaberto, mas Pitt não lhe permitiu falar.
—Os alemães conhecem perfeitamente muitas de nossas intenções com respeito às
posses da África Oriental, da Zambeze e do possível corredor britânico que una Cairo com
Cidade do Cabo.
Claro que se os diamantes de Lady Warburton são tão importantes...
—Ao diabo com Lady Warburton e seus diamantes! —estalou Farnsworth—. Tellman
se ocupará disso. —E acrescentou com uma expressão de rancor deslocando as
impecáveis feições de seu rosto—: Antes disse que enviaria a meu melhor homem, mas
não hei dito quem. Não vá pensar agora que isso depende do cargo que se tem. Vá
imediatamente ao Ministério de Colônias. Dedique-se a isso em corpo e alma, Pitt. Não
quero que se dedique a nenhum outro assunto até que isto esteja resolvido.
Compreendeu—me? E pelo amor de Deus, homem, seja discreto!
Pitt sorriu.
—Sim, senhor Farnsworth. De fato isso é o que ia fazer até que surgiu o assunto de
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Lady Warburton.
Farnsworth lhe lançou um olhar feroz, mas não respondeu nada.
Pitt abriu a porta. Farnsworth saiu. Pitt o seguiu e chamou o sargento de guarda
ordenando que fossem procurar ao inspetor Tellman.
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Capítulo 2
Pitt pôs-se a caminhar pelo Bowl Street em direção ao Strand, e uma vez ali parou
um cabriolé e deu instruções ao cocheiro para que o levasse ao Ministério de Colônias, na
esquina do Whitehall com o Downing Street.
O cocheiro o olhou ligeiramente surpreso, mas depois de um instante de vacilação,
apressou ao cavalo e se incorporou à maré de trânsito que se movia para o oeste.
Pitt dedicou o trajeto a repassar mentalmente o que lhe tinha contado Matthew e a
pensar na maneira em que ia confrontar o assunto assim que chegasse ao Whitehall.
Já tinha lido a carta de autorização do Matthew e as breves indicações e detalhes que
continha, mas pouco ou nada se deduzia por seu conteúdo da natureza ou grau de
dificuldade que ia achar no momento de solicitar cooperação.
O cabriolé avançava devagar, detendo-se cada vez que se metia na confusão de
carruagens, carruagens, carruagens e ônibus procedentes do Strand e do Wellington
Street onde Pitt o tinha tomado. Pouco a pouco cruzaram Northampton Street, Bedford
Street, King William Street e Duncannon Street até dar com a Charing Cross.
Todo mundo tinha pressa e pedia preferência. Os cocheiros gritavam uns aos outros.
As rodas de um brougham1 e de uma carruagem fúnebre ficaram travadas, provocando
uma obstrução ainda maior. De um carruagem pesado, dois jovens tentavam abrir caminho
a gritos e um vendedor de fruta e verdura estava brigando com outro que vendia bolos.
Passaram quinze minutos até que a carruagem do Pitt pôde por fim virar à esquerda
para entrar pelo Whitehall e dirigir-se até o Downing Street, aonde se deteve. Ali mesmo se
aproximou o policial que montava guarda para lhe perguntar o que queria.
—Sou o superintendente Pitt e vou ao Ministério de Colônias — lhe anunciou
mostrando seu cartão.
O cocheiro abriu os olhos picado pela curiosidade.
—A suas ordens, senhor. —O agente o saudou de forma impecável e ficou firme. —
Não o tinha reconhecido, senhor.
Pitt pagou ao cocheiro e se dirigiu para as escadas plenamente consciente de que
não era uma pessoa da qual pudesse dizer-se que era impecável, sobretudo na maneira
de vestir, a diferença dos funcionários e diplomatas. Estes, com seus elegantes fraques de
1
Brougham: carruagem de duas ou quatro rodas e caixa baixa.
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colarinho de dupla ponta e as calças listadas, iam e vinham passando ante ele com seu
guarda—chuva fechado, por muito que naquele primeiro dia de maio fizesse um tempo
esplêndido.
—Sim, cavalheiro?—perguntou-lhe um jovem no mesmo momento em que entrou no
edifício—.
Posso lhe ajudar em algo?
Pitt voltou a mostrar o cartão que lhe creditava como superintendente, embora ele
mesmo reconhecia que seu aspecto exterior não encaixava muito com o cargo.
Como sempre, levava o cabelo muito longo, de forma que os cachos apareciam sob o
chapéu e caíam em desordem sobre o pescoço. Tinha que reconhecer que a jaqueta era
boa, mas com aquela mania de colocar toda classe de coisas nos bolsos a roupa já se
deformara; além disso, não usava colarinho duro nem de dupla ponta e a gravata mais
parecia um capricho alheio ao traje que outra coisa.
—Sim, por favor — respondeu imediatamente—. Desejaria tratar um assunto muito
confidencial com o funcionário de maior status que haja disponível.
—Concederei-lhe uma entrevista — respondeu o jovem sem alterar-se—. Talvez iria
bem depois de amanhã? Esse dia poderia lhe atender Senhor Aylmer. Além disso, tenho
certeza de que estará encantado de falar com você. É o ajudante do senhor Chancellor. É
um homem muito bem informado.
Pitt já conhecia o nome do Linus Chancellor, Secretário de Estado para os assuntos
coloniais, assim como qualquer outro cidadão de Londres. Era um dos políticos mais
brilhantes e com mais futuro e não eram poucos os que afirmavam que cedo ou tarde
acabaria presidindo o governo.
—Não, impossível — disse sem perder a compostura e olhando ao jovem nos olhos
até ver neles um vislumbre de ofensa e estupefação—. Se trata de um assunto
extremamente urgente que terá que atender o antes possível. Também é confidencial, de
modo que não posso lhe dizer do que se trata. Venho a pedido do Foreign Office. Pode
consultá—lo com Lorde Salisbury se assim o desejar. De momento, prefiro esperar ao
senhor Chancellor.
O jovem engoliu em seco sem saber muito bem o que devia fazer e olhou ao Pitt com
desagrado.
—Sim, senhor, informarei ao escritório do senhor Chancellor e lhe trarei sua resposta.
—Voltou a olhar o cartão do Pitt e desapareceu escada acima.
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O jovem demorou para voltar quase um quarto de hora, espera que Pitt julgou
insultante.
-se tiver a amabilidade de me acompanhar, senhor — disse o jovem friamente.
Girou sobre seus calcanhares e lhe guiou pelas escadas até dar com uma porta de
mogno, a qual bateu com os dedos, e da que logo se afastou para deixá—lo entrar.
Linus Chancellor rondava os quarenta e era um homem dinâmico, com a fronte larga
e o cabelo escuro caindo sobre as sobrancelhas, o nariz proeminente e uma boca grande
que prodigalizava senso de humor, agilidade mental e força de vontade.
Transmitia seu encanto pessoal de forma espontânea, quase sem propor-lhe e sua
facilidade de palavra lhe permitia dizer esse tipo de coisas que outros tentam e nunca
conseguem dizer. Era magro, de estatura considerável e imaculado em sua maneira de
vestir.
—Bom dia, superintendente Pitt — disse levantando-se de uma poltrona situada atrás
de uma magnífica escrivaninha e lhe oferecendo a mão. Pitt a estreitou e sentiu seu
apertão firme e decidido—. Me informou que tem uma mensagem urgente e confidencial —
e dizendo isto, com um movimento da mão convidou—o a sentar-se em outra poltrona
enquanto ele também tomava assento—. Será melhor que comece. Disponho só de dez
minutos até minha próxima entrevista. Temo que não posso lhe dedicar mais tempo. Tenho
que despachar no Número Dez.
Não necessitava mais explicações. Se a entrevista era com o primeiro—ministro, tal
como tinha dado a entender, não podia permitir-se nenhum atraso, por muito importante
que fosse o que Pitt tinha que lhe dizer.
Além disso, tinha servido de contundente afirmação sobre a importância de seu cargo
e de seu próprio tempo. Não estava disposto a que Pitt o subestimasse.
Pitt se sentou na poltrona de madeira esculpida e estofado em couro que lhe tinha
indicado e começou a falar.
—Matthew Desmond, do Foreign Office, informou—me esta manhã que certa
informação concernente às negociações que o Ministério de Colônias está levando a cabo
sobre a exploração e o comércio na África, concretamente na Zambeze, caiu em mãos da
embaixada alemã.
Não era preciso que acrescentasse nada mais. Chancellor lhe estava prestando toda
sua atenção.
—Pelo que sei, só o senhor Desmond, seu imediato superior e Lorde Salisbury estão
à corrente da situação — continuou Pitt—. Devo solicitar sua autorização para poder
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investigar desde este ministério.
—Claro, é claro. Imediatamente. Isto é muito grave — disse abandonando o tom de
amável afetação de antes e falando com uma determinação que não deixava lugar a
equívocos—. E se pode saber a que classe de informação se está referindo? Disse o
senhor Desmond? Está seguro de que realmente sabe do que se trata?
—Desconheço os detalhes—respondeu Pitt—. Suspeito que tem algo que ver com os
direitos de exploração de minerais e com os tratados que fazemos com os chefes nativos.
Chancellor pôs um semblante sombrio e apertou com força os lábios.
—Isto poderia ser muito grave. Nosso futuro na África depende em grande parte
disso. Suponho que já o terá dito o senhor Desmond, não? Claro, como não.
Quero lhe pedir que me tenha informado, Senhor Pitt. Pessoalmente. Também espero
que tenha investigado a possibilidade de que essa informação tenha chegado aos alemães
através de sua própria gente—disse sem abrigar a menor esperança sobre o que acabava
de dizer, só por pura formalidade—. Não esqueça que dispõem de muitos exploradores,
aventureiros e soldados na África Oriental, especialmente ao longo da costa de Zanzíbar.
Não quero aborrecê—lo com os detalhes de seus tratados com o sultão do Zanzíbar,
com levantamentos de povoados inteiros nem com episódios de violência. me acredita se
lhe disser que sua presença na zona é mais que considerável.
—Não pude averiguá—lo por minha conta, mas é o primeiro que perguntei ao Senhor
Desmond — respondeu Pitt—. E me assegurou que não, sobre tudo pelo detalhado da
informação e porque é exatamente a mesma versão que temos nós em umas questões
suscetíveis de muitas interpretações.
—Ah— disse Chancellor assentindo com a cabeça—. Nesse caso, supõe você que se
trata de uma traição, senhor Pitt. E talvez a um nível muito alto. Diga—me então o que se
propõe fazer.
—A única coisa que posso fazer é investigar a todo aquele que tenha tido acesso à
informação que se filtrou. Suponho que não estaremos falando de muitas pessoas.
—Certamente que não. O senhor Thorne é o responsável por assuntos africanos.
Comece com ele. E agora terá que me perdoar, superintendente; chamarei o Fairbrass
para que o acompanhe até a saída.
Às quatro e quinze desta tarde terei um momento livre. Agradeceria-lhe que me
informasse de qualquer avanço que se produziu na investigação ou de sua impressão
pessoal sobre o caso.
—Sim, senhor. —Pitt se levantou e quase ao mesmo tempo o fez Chancellor. Um
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jovem, certamente o tal Fairbrass, apareceu ante a porta e depois de escutar umas breves
instruções por parte do Chancellor, conduziu ao Pitt ao longo de vários corredores
elegantes até chegar a um grande escritório magnificamente mobiliado como aquele do
qual vinha.
Havia uma placa na porta com o nome do Jeremiah Thorne; Fairbrass devia sentir um
temor tão reverencial por Thorne que nem sequer se incomodou em informar ao Pitt de
quem era. Bateu com prudência e esperou para escutar a resposta; só então virou o trinco
e entrou.
-senhor Thorne, tenho aqui a um tal superintendente Pitt, do Bowl Street, acredito. O
senhor Chancellor me pediu que o acompanhasse até seu escritório . —E dito isto, detevese bruscamente, ao dar-se conta de que não sabia nada mais. Retirou-se para trás e
empurrou um pouco mais a porta para que Pitt pudesse entrar.
A primeira vista, Jeremiah Thorne não parecia muito diferente de seu superior
político, embora havia uma diferença no porte que se notava em seguida, embora fosse
igualmente indefinível. Estava sentado atrás de sua escrivaninha, mas também parecia
muito alto. Tinha os olhos separados, o cabelo moreno, espesso e bem penteado, assim
como uma boca ampla e generosa. Era um funcionário do Estado, não um político, apesar
de que a diferença entre uma coisa e outra era muito sutil para tê—la em conta.
O aprumo com o que atuava tinha sua raiz na segurança da qual levava gozando
desde há várias gerações, em sentir-se como o poder oculto detrás dos que pugnavam por
um ministério, e cujo posto dependia da boa opinião de outros.
—Como está você, superintendente?—perguntou em um tom de pretendido
interesse—. Entre, entre. O que posso fazer por você? Possivelmente algum delito colonial
que seja do interesse de nossa polícia metropolitana?—disse sorrindo—. E encargo na
África, suponho, porque se não, não o teriam enviado a este escritório.
—Não, senhor Thorne — disse Pitt entrando na sala e sentando-se na poltrona que
lhe indicava. Esperou que Fairbrass fechasse a porta e se afastasse pelo corredor—.
Receio que o delito se cometeu quase com toda certeza aqui, no Ministério de Colônias —
afirmou respondendo à pergunta—. Se se comprovar que existe o delito, o senhor
Chancellor me autorizou a investigá—lo.
Queria lhe fazer algumas perguntas, senhor. Desculpe-me se lhe roubo seu tempo,
mas é muito importante.
Thorne se reclinou na poltrona e cruzou os braços.
—Nesse caso, comece quando quiser, superintendente. Poderá me dizer de que
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delito se trata?
Pitt não quis responder diretamente. Jeremiah Thorne conhecia pelo privilégio de seu
cargo quase toda a informação concernente ao Ministério de Colônias. Não havia por que
descartar a possibilidade de que ele mesmo fosse o traidor, por muito pouco provável que
parecesse que alguém tão importante pudesse sê—lo. Outra possibilidade era que por
descuido tivesse advertido ao traidor por não acreditá—lo capaz de ser um agente duplo,
ou de que o tivesse alertado por pura inexperiência na hora de suspeitar de um de seus
próprios colegas.
Mas se aquele homem era tão ingênuo para não compreender o propósito do
interrogatório,
então
era
um
incompetente
que
não
merecia
ocupar
tão
alta
responsabilidade.
—Preferiria não dar detalhes até ter certeza de que efetivamente se produziu o
delito—disse Pitt de modo evasivo—. Queria que me dissesse algo de seus principais
colaboradores.
Thorne o olhou desconcertado, mas se notava que o estava tomando com bastante
humor, como querendo dissimular qualquer inquietação, se é que esta existia.
—Para qualquer assunto relacionado com a África sempre informo imediatamente ao
Garston Aylmer, o ajudante do Chancellor—disse com tranqüilidade—. É uma pessoa
excelente e uma mente privilegiada. Saiu de Cambridge com honra, mas já imagino que o
que menos lhe interessa dele é seu expediente acadêmico — disse erguendo um ombro
apenas um centímetro—. Não, claro que não. Veio ao Ministério de Colônias diretamente
da universidade. Fará isso uns quatorze ou quinze anos.
—Então terá já perto de quarenta, não?—interrompeu-lhe Pitt.
—Trinta e seis, acredito. É um homem excepcional, superintendente. Licenciou-se
aos vinte e três—disse, e por um momento pareceu que ia acrescentar algo mais e que
tinha decidido não fazê-lo. Esperou pacientemente a que Pitt continuasse.
—Em que especialidade, senhor?
—Oh, clássicas.
—Já vejo.
—Me parece que não. —Os olhos do Thorne voltavam a sorrir com um brilho que
mais parecia uma risada contida—. É muito bom em sua especialidade e sabe muito de
história. Vive no Newington, em uma casita de sua propriedade.
—Está casado?
—Não, não o está.
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Mas não deixava de ser curioso que vivesse em um lugar como Newington, situado
ao sul do rio, do outro lado da ponte do Westminster e ao leste do Lambeth.
Não estava longe do Whitehall, mas não era muito adequado para um homem com
um cargo tão importante e certamente muito ambicioso. Pitt o tinha imaginado vivendo no
Mayfair ou em Belgrave, ou talvez na Chelsea.
—E que planos tem para seu futuro, senhor Thorne?—perguntou—. É possível que o
promovam? —Agora havia certa malícia na voz do Thomas, embora fosse muito difícil
adivinhar no que pensava.
—Suponho que sim. Com o tempo poderia ocupar meu posto, embora também é
possível que chegue a dirigir qualquer outro departamento do Ministério de Colônias.
Acredito que seu maior interesse está na Índia e o Longínquo Oriente.
—Superintendente, de verdade tem algo que ver isto com esse delito que tanto o
preocupa? Aylmer é um homem honrado do qual jamais ouvi nem a menor inconveniência,
e muito menos algo que lhe desonra. Nem sequer acredito que bebe.
Havia muito mais perguntas que fazer, por exemplo, sobre sua situação econômica
ou sua reputação pessoal, mas Pitt não ia insistir com o Thorne. Aquilo ia ser exatamente
tão difícil como tinha esperado, e não gostava. Mas, por outro lado, Matthew tampouco ia
realizar alguma acusação se não estivesse seguro de sua existência. Alguém da seção
africana do Ministério de Colônias estava filtrando informação à embaixada alemã.
—Quem mais, senhor Thorne?—perguntou em voz bem alta.
—Quem mais? Peter Arundell. Encarrega-se dos assuntos relacionados com o Egito
e o Suam—respondeu Thorne. Logo seguiu uma descrição mais ou menos detalhada e Pitt
esperou que terminasse. Não queria delatar seu interesse específico pela Zambeze.
Gostaria de confiar no Thorne, mas esse era um luxo que não podia permitir-se.
—E? —atalhou Pitt em um momento em que Thorne pareceu hesitar.
Thorne franziu o cenho, mas seguiu com a descrição de outros responsáveis pelas
demais zonas do continente africano, incluindo o Ian Hathaway, ao cargo do Mashonaland
e Matabeleland, duas regiões que, unidas, formavam Zambeze.
—De todos nossos colaboradores, é o que tem mais experiência, embora seja um
homem modesto—disse Thorne com calma, olhando fixamente ao Pitt da mesma cômoda
postura com a que se instalara na poltrona—. Deve ter uns cinqüenta anos. Faz muito
tempo ficou viúvo. Suponho que sua mulher morreu sendo bastante jovem e nunca se
tornou a casar. Tem um filho no exército colonial, em Suam, e outro está em missões, mas
não recordo onde.
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O pai do Hathaway tinha um cargo importante na Igreja; era arquidiácono ou um
pouco parecido. Era do oeste, do Somerset ou Dorset, acredito. Hathaway vive ao sul do
Lambeth, justa em frente da ponte Vauxhall.
Devo reconhecer que sei muito pouco de sua situação econômica. É uma pessoa
muito ciumenta de sua intimidade, muito modesta, mas é simpático e sempre tem uma
palavra amável para todo mundo.
—Bem, obrigado. —Não era um começo muito promissor, mas teria sido esperar
muito ter algum dado decisivo naquela fase da investigação. Agora não estava muito
seguro se perguntava ao Thorne se podia lhe dar detalhes sobre o caminho que seguia a
informação dentro do edifício, ou se talvez devia lhe ocultar a natureza do delito e
investigar primeiro as vidas do Aylmer, Hathaway e Thorne com a esperança de achar
qualquer debilidade ou engano neles de que pudesse extrair-se alguma conseqüência.
—E isso é tudo, superintendente—disse Thorne rompendo o silêncio—. Além dos que
já mencionei, só ficam empregados de escritório, mensageiros e secretários de categoria
inferior. Se não me disser que tipo de infração está investigando, embora só seja uma
indicação de caráter geral, dificilmente poderei lhe ajudar mais. —Não se tratava de uma
queixa, mas sim de uma observação e Thorne seguia com a ligeira careta de ironia no
rosto.
Pitt quis experimentar evitando dar uma resposta clara.
—Ao que parece, há alguma informação que não foi parar a boas mãos e é possível
que tenha saído deste ministério.
—Ah — disse Thorne sem fazer expressão de espanto que tinha posto Chancellor.
Em realidade, nem sequer parecia muito surpreso—. Devo entender que se trata de uma
informação de caráter econômico, ou pelo menos que graças a ela se possa obter um
benefício econômico? Temo que esse risco é inevitável em um lugar de tão grandes
oportunidades como é agora a África.
O continente negro—continuou, torcendo a boca— foi um foco de atração para
oportunistas, mas também para os que querem estabelecer-se, colonizar, explorar, caçar
grandes animais ou salvar as almas dos nativos e estender o cristianismo ali onde reina a
ignorância e impor a lei e a civilização do Império Britânico aos povos pagãos.
A experiência tinha saído mau, mas para Pitt já ia bem que o assunto ficasse
flutuando no ar.
—Em qualquer caso, terá que fazer o possível para impedir – acrescentou muito
sério.
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—É claro — corroborou Thorne—. Conte com toda a colaboração que eu possa lhe
dar, mas temo que não sei nem por onde começar. Seria muito duro acreditar que qualquer
das pessoas que lhe mencionei é capaz de cair tão baixo, mas talvez possam lhe dizer
algo que lhe ajude ou seja quem é o culpado. Já falarei com eles a respeito. —E
acrescentou voltando a inclinar-se—: Obrigado por vir a mim primeiro, superintendente. Foi
muito considerado de sua parte.
—Absolutamente – respondeu Pitt sem lhe dar importância—. Acredito que começarei
por averiguar que caminho segue a informação em geral, embora não seja de tipo
econômico, e assim saberei exatamente quem tem acesso reservado a ela.
—Parece—me excelente — disse Thorne, levantando-se, o qual indicava que dava a
entrevista por terminada—. Incomodaria—o ter a alguém a seu lado para lhe guiar pelos
canais do sistema? Ou prefere fazê-lo só? Receio que ignoro por completo os
procedimentos da polícia.
-se pudesse prescindir de alguém, economizaria—me muitíssimo tempo.
—É claro. —Thorne estendeu a mão e puxou um cordão com luxuosos adornos que
tinha junto à escrivaninha e ao cabo de um instante se apresentou um jovem procedente
do escritório do lado—. OH, Wainwright—disse, como se tivesse aparecido por acaso—.
Este é o superintendente Pitt, da polícia do Bowl Street, e tem que realizar algumas
investigações. Trata-se de algo muito confidencial.
Rogo-lhe que o acompanhe aonde ele o solicite e que lhe mostre o procedimento
habitual que segue a informação que recebemos da África, ou que trate da África, embora
proceda de outra fonte. Ao que parece, produziu-se uma irregularidade –disse pondo uma
delicada ênfase na palavra, mas sem dar nenhuma explicação—. Convém que ninguém
saiba exatamente o que está fazendo você nem quem é o senhor Pitt.
—Sim, senhor — respondeu Wainwright um pouco surpreso, mas como aspirante a
bom funcionário do Estado, nem sequer deixou que seu rosto delatasse a menor reação, e
muito menos se atreveu a dar uma opinião. E dirigindo-se ao Pitt, disse-lhe—: Como está,
senhor? Se tiver a amabilidade de me acompanhar, mostrarei-lhe os diferentes tipos de
informação que recebemos e o que ocorre a partir do momento em que chega.
Pitt agradeceu a Thorne e seguiu ao Wainwright. O resto do dia o passou inteirandose meticulosamente de como se recebia a informação desde todas as fontes possíveis,
quem a enviava, onde se armazenava, como se transmitia e quem tinha acesso reservado
a ela. Por volta das três e meia já tinha comprovado por si mesmo que os detalhes que lhe
tinha dado Matthew Desmond estavam parcialmente ao alcance de muitas pessoas, mas a
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totalidade da mesma passava só pelas mãos de uns poucos: Garston Aylmer, Ian
Hathaway, Peter Arundell, um tal Robert Leicester e o próprio Thorne.
Entretanto, preferiu não informar sobre isto ao Chancellor quando retornou a seu
escritório às quatro e quinze e o achou disponível tal e como lhe tinha prometido.
Simplesmente lhe comunicou que lhe tinham dado toda a ajuda possível e que já
tinha claro por onde começar.
—Mas chegou a alguma conclusão?—apressou-se a perguntar Chancellor, aguçando
o olhar e com o semblante grave—. Continua sem abrigar a menor duvida de que temos
um traidor que está passando informação ao kaiser?
—Essa conclusão não é minha, mas sim do Foreign Office — replicou Pitt—. Mas
parece que é a única possibilidade que pode explicar os fatos.
—Isto é muito desagradável –disse o Chancellor com o olhar perdido além do Pitt,
torcendo a boca e enrugando o cenho—. Não me importa enfrentar qualquer inimigo cara a
cara, mas ser traído por um dos seus é uma das piores experiências que pode suportar um
homem. Detesto aos traidores mais que a qualquer outra coisa no mundo. —E lançou um
rápido olhar ao Pitt, com seus olhos azuis e penetrantes—. Gosta de literatura clássica,
senhor Pitt?
Era uma pergunta de todo absurda, mas Pitt comprovou com agrado que Chancellor
não sabia absolutamente nada de sua educação. Era como se estivesse falando com o
Micah Drummond, ou inclusive com o Farnsworth. Terei que agradecer ao Arthur Desmond
que tivesse ajudado tanto ao filho de seu guarda-florestal para que este engano fosse
possível.
—Não, senhor. Conheço Shakespeare e os grandes poetas, mas não sei nada dos
gregos—respondeu Pitt com toda a dignidade que pôde.
—Eu me referia mais a Dante — disse Chancellor—. Em sua descida aos infernos,
faz uma classificação de todos os pecados segundo sua gravidade. Os traidores ocupam o
último círculo do inferno, mais à frente inclusive que os culpados de cometer violência,
roubo, luxúria ou qualquer outra depravação do corpo ou do espírito. Segundo ele, é o pior
pecado que a humanidade pode conceber, sobretudo porque implica um ultraje à razão e à
consciência, dons que Deus nos outorgou.
Dante condena aos traidores à solidão perpétua, agarrados para sempre a um gelo
eterno.
Terrível castigo, senhor Pitt, não lhe parece? Mas adequado à ofensa.
Pitt sentiu um calafrio e depois uma clareza quase iluminadora.
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—Sim—disse—. Sim, talvez é o pior dos pecados, trair a confiança, e suponho que a
eterna solidão não é tanto um castigo, como a conclusão lógica de quem assim se
comporta. É a pessoa mesmo quem escolhe esse inferno, se assim o preferir.
—Vejo que temos muito em comum, senhor Pitt –disse o Chancellor lhe oferecendo o
melhor de seus sorrisos, em um gesto de afeto e de intensa e quase luminosa candura—.
Talvez não existe nada de importância mais que isso. Terá que solucionar este miserável
assunto. Enquanto não o consigamos, será uma sombra que tudo obscurecerá—
sentenciou mordendo o lábio e sacudindo a cabeça—. O pior é que até que não se
esclareça, este assunto envenenará qualquer relação. A gente acaba suspeitando sem
justificação alguma de outros que são perfeitamente inocentes. Muitas amizades se
rompem por menos. Por minha parte, reconheço que não olharia a uma pessoa da mesma
maneira se chegar a saber que fui capaz de suspeitar algo assim dela. —E acrescentou
olhando fixamente ao Pitt—: Mas é minha obrigação não pôr a ninguém fora de suspeita.
Não posso fazê-lo. É um crime abominável! —Por um momento, esboçou um amargo
sorriso—. Se dá conta do dano que já causou pelo simples fato de existir?
Inclinou-se para frente e adquiriu um semblante grave.
—Olhe, Pitt, não podemos nos permitir o luxo de andar com vaguedades. Queria que
fosse de outra maneira, mas conheço este ministério muito bem para não me dar conta de
que, por desgraça, só pode tratar-se de alguém com uma autoridade considerável, e isso
significa provavelmente Aylmer, Hathaway, Arundell, Leicester ou inclusive, Deus não o
queira, o próprio Thorne.
Será muito difícil que chegue a descobrir quem é removendo papéis por aqui. —
Chancellor começou a
tamborilar os dedos na escrivaninha quase de forma
imperceptível—. Mas não vai ser tão fácil. Terá você que conhecer muito bem a cada um,
estabelecer uma pauta de comportamento, descobrir um defeito, por pequeno que este
seja, uma debilidade. Mas para isso terá que conhecer sua vida privada. —E aqui se
deteve olhando ao Pitt com exasperação—. Vamos, homem, não se surpreenda. Não sou
nenhum idiota!
Pitt notou como lhe avermelhavam as faces. Não tinha tomado ao Chancellor como
tolo, nem por nada parecido, mas não esperava tanta franqueza por sua parte, nem
tampouco aquela percepção das conseqüências que implicava a investigação.
Chancellor se apressou a sorrir.
—Desculpe-me. Fui muito franco. Mas o que digo é verdade. Deve você conhecê-los
todos em sociedade. Quer você vir à recepção que a duquesa do Marlborough dá esta
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noite? Posso lhe conseguir um convite sem nenhum problema.
Pitt hesitou só um instante.
—Já sei que, dito assim, tão de repente, parece absurdo – prosseguiu Chancellor—,
mas a história não espera a ninguém e nosso tratado com a Alemanha está a ponto de
fechar-se.
—É claro —aceitou Pitt. Chancellor tinha razão. Era uma situação ideal para fazer
uma idéia daqueles homens com mais elementos de julgamento—. É uma idéia estupenda.
Muito obrigado por sua ajuda, senhor.
—Irão você e sua mulher? Porque está casado, não é?
—Sim, claro.
—Excelente. Meu criado lhes levará o convite por volta das seis. O endereço?
Pitt o deu, feliz de que fosse o da nova casa, e ao cabo de um momento partiu. Se
devia ir a uma recepção no Marlborough House em umas horas, tinha um montão de
coisas de que ocupar-se, e nem diga Charlotte. Naquele momento, sua irmã Emily, a quem
costumava pedir emprestado algum vestido para os atos sociais, foi outra vez de viagem a
Itália.
A seu marido, Jack, acabavam de nomear membro do Parlamento, e como o
Parlamento fechava no verão, os dois tinham decidido ir de viagem. Isso significava que
não iriam poder lhe pedir nada.
Charlotte teria que tentá—lo com Lady Vespasia Cumming—Gould, tia avó do Emily
por seu primeiro matrimônio com Lorde Ashworth.
—O que?—perguntou Charlotte como se não conseguisse acreditar. — Esta noite?
Impossível! Mas se já são quase cinco! —exclamou na cozinha sustentando uns pratos.
—Já sei que fica pouco tempo, mas—respondeu Pitt. Só então começou a dar-se
conta da confusão em que se colocara.
—Pouco tempo!—disse Charlotte erguendo a voz quase em um grito e deixando os
pratos com certo estrépito—. É preciso uma semana para preparar algo assim. Thomas,
mas você sabe quem é a duquesa do Marlborough? Até é possível que vá alguém da
família real! Ali somente haverá gente importante, muito importante. —E de repente mudou
a rosto de espanto pela de uma irreprimível curiosidade—. Por Deus bendito, de onde tirou
um convite para a recepção da duquesa do Marlborough? Em Londres há gente capaz de
cometer qualquer delito por conseguir algo assim—disse, e acrescentou sem poder
reprimir um sorriso—: Não me diga que alguém o fez.
Thomas também sentiu vontade de pôr-se a rir ante aquele absurdo. Era muito difícil
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de acreditar para ser verdade. Talvez não devesse mencionar-lhe que tratava-se de um
assunto muito confidencial, mas sempre tinha confiado nela, claro que nunca até então se
ocupara de um caso que fosse assunto de estado.
Charlotte se deu conta de sua hesitação.
—Sim! —exclamou ela arregalando os olhos sem saber se soltava ou não uma
gargalhada.
—Não, não—se apressou a esclarecer Pitt—. É algo muito mais sério que isso.
—Mas não estava ocupando-se da morte de Sir Arthur?—perguntou em seguida—.
Que relação há entre isto e a duquesa do Marlborough? E embora a houvesse, ninguém
vai lhe dar um convite por muito que o peça. Nem sequer Tia Vespasia pode fazê-lo. —
tratava-se do mais elevado do poder social.
Vespasia tinha sido a mulher mais bela de seu tempo, não só por seus traços
clássicos e por seu delicioso bom gosto, mas também por sua graça natural, seu engenho
e sua elegância extraordinária.Ainda agora, apesar de ser octogenária, continuava sendo
uma autêntica beleza.
Havia agudizado seu engenho porque estava segura de sua posição social, e lhe
importava muito pouco o que alguém pensasse dela sempre que estivesse tranqüila com
sua própria consciência.
Aderia-se a causas que muito poucos se atreviam a defender, decidia sem olhar
quem ou o que gostava ou desagradava e se entretinha com uns passatempos capazes de
atemorizar até as mais jovens e prudentes das mulheres. Apesar de tudo, nem sequer ela
podia conseguir um convite às recepções da duquesa do Marlborough em tão pouco tempo
e para outra pessoa.
—Sim, estou—me ocupando da morte de Sir Arthur — respondeu Pitt sem faltar
exatamente à verdade. Thomas a seguiu enquanto ela se entregava a uma atividade
frenética, saindo ao corredor e dirigindo-se para as escadas.
Mas também estou trabalhando em outro assunto que Matthew me encarregou esta
manhã e também tem que ver com Sir Arthur—disse Pitt por detrás dela—, e é por isso
que esta noite vamos a casa da duquesa do Marlborough. O convite vem do Linus
Chancellor, do Ministério de Colônias.
Charlotte se deteve no patamar da escada.
—Linus Chancellor? Soa—me algo. Acredito que é um homem encantador e muito
inteligente, ou pelo menos isso dizem. Até é possível que um dia chegue a primeiro—
ministro, não?
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Thomas sorriu, mas não deixou que ela se desse conta enquanto a seguia até o
dormitório. Charlotte já não se movia nos círculos sociais onde as pessoas falavam dos
mais destacados políticos, como costumava fazer antes de surpreender a próprios e
estranhos casando-se com um policial, o qual implicava uma drástica redução de suas
possibilidades econômicas e sociais.
—Ela mudou de expressão.
—Não é assim? Não é um homem encantador?
—Sim, muito e eu diria que muito inteligente também. Mas quem te falou dele?
—Emily — respondeu ela abrindo o armário da roupa de par em par—. Jack
encontrou-se com ele em várias ocasiões. Mas também mamãe — disse, e em seguida
caiu na conta do que podia deduzir-se dessas palavras—. Está bem, só duas pessoas.
Mas você o conheceu hoje, não é? Por que?
Thomas só hesitou um instante.
—É algo muito confidencial. Um assunto de estado. Nem sequer aos que interrogo
dou os detalhes da investigação. Alguém do Ministério de Colônias está passando
informação a quem não deveria.
Charlotte se virou e o olhou fixamente nos olhos.
—Quer dizer que há um traidor no Ministério de Colônias, não? É terrível! E por que
não me diz assim claro em vez de dar tantas voltas? Thomas, está se tornando muito
pomposo.
—Bom, eu...—começou horrorizado. Detestava a pomposidade. Engoliu em seco e
disse—: encontrou algo que pôr ou não?
—É claro que sim—respondeu com os olhos muito abertos, como se aquela fosse a
única resposta possível.
—O que?
Charlotte fechou o armário.
—Ainda não sei. Me deixe pensar um pouco. Emily não está, mas Tia Vespasia sim.
E tem telefone. Talvez posso chamá—la e lhe pedir conselho. Sim, isso é o que farei. —E
sem esperar comentário algum, Charlotte passou por diante dele como uma ventania,
desceu as escadas até chegar ao vestíbulo, onde tinham o telefone, e desprendeu o
aparelho. Estava muito longe de dominar o aparelho, de modo que necessitou vários
minutos até conseguir fazer a chamada. Naturalmente, primeiro falou com a criada e teve
que esperar um pouco.
—Tia Vespasia — disse quase sem fôlego quando por fim ouviu a voz da Vespasia—.
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Thomas está investigando um assunto muito importante do que nada posso te dizer porque
não me disse nada; quão único sei é que de repente nos convidaram esta noite a uma
recepção em casa da duquesa do Marlborough.
Houve um instante de ligeira hesitação e surpresa ao outro lado do telefone, mas Tia
Vespasia era uma mulher muito bem educada para permitir uma reação além da justa e
adequada.
—De verdade? Seria muito grave que a duquesa do Marlborough visse alterados
seus planos. No que posso ajudá—la, querida? Porque para isso me chamou, não é
verdade?
—Sim. —Uma confiança como aquela teria sido pouco menos que desconcertante
em outra pessoa, mas Vespasia e Charlotte tinham uma relação de mútua franqueza à
margem de qualquer tipo de cumprimento—. A verdade é que não sei o que pôr —
confessou Charlotte—. É a primeira vez que vou a um lugar tão... tão formal. E embora
soubesse, já sabe que nenhum de meus vestidos serviria para a ocasião.
Vespasia era mais magra que Charlotte, mas de similar estatura, e tampouco seria a
primeira vez que lhe emprestava um vestido. O salário de qualquer policial com a posição
que Pitt tinha antes de ser promovido não dava para que uma esposa pudesse ter o
vestuário adequado à temporada da alta sociedade londrina, claro que tampouco tinham
por que convidá—la a participar dela.
—Já lhe acharei algo adequado e farei que um criado lhe leve isso a casa—disse
Vespasia com generosidade—. E não se preocupe pela hora. Não é de boa educação
chegar muito cedo. Às dez e meia seria perfeito. Servirão o jantar à meia—noite. Terá que
chegar entre trinta e noventa minutos depois da hora que figura no convite, que, se não me
equivoco, será às onze. É uma recepção de etiqueta — disse, e não acrescentou que a
hora antes se dedicava ao recebimento dos convidados mais íntimos. Esperava que
Charlotte já soubesse.
—Muito obrigada — disse Charlotte. E só depois de pendurar o telefone se deu conta
de que se Vespasia sabia à hora do convite era porque ela mesma tinha um.
Uma vez chegado o vestido, pareceu-lhe o mais bonito que jamais tinha visto. Era de
cor verde azul escuro, longo, com uma manga de gaze transparente e muito finas
miçangas decorando o pescoço e os ombros. As anquinhas eram estreitas e muito
vistosas, recolhidas em um laço de tecido dourado combinada com outra da mesma cor
que o vestido, embora de um tom tão escuro que mais parecia negro.
Com o objeto vinha um par de elegantes sapatos a jogo. Olhando-o, Charlotte não
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podia evitar pensar em mares exóticos, em água profunda e em formosos amanheceres na
praia. Se uma vez posto, aquele vestido lhe sentava a metade de bem de como se sentia,
ia ser a inveja de todas as mulheres.
De fato, quando por fim a pôde ver baixando majestosamente as escadas, muito
tempo depois do que tinha anunciado (porque não achava umas forquilhas para o cabelo
imprescindíveis para lhe dar o toque final), Gracie ficou pasmada. Esbugalhou os olhos e
as crianças ficaram olhando de baixo, sentados em cócoras e também com expressão de
assombro.
Inclusive Pitt ficou um pouco surpreso. Levava tempo passeando pelo hall com
impaciência e assim que ouviu que ela descia, voltou-se e então a viu.
—OH! —exclamou ele sem saber o que dizer. Tinha esquecido quão elegante era sua
mulher, com aquele cabelo castanho avermelhado e aquela pele branca e cálida.
Com a emoção os olhos tinham adquirido tal brilho e cor que a faziam de uma beleza
quase perfeita—. Está...!—disse como voltando a si mas sem querer terminar a frase. Não
era o momento de esbanjar cumprimentos por muito que os merecesse—. Está muito bem
—acabou por dizer, o qual era imensamente menos do que queria expressar. Em realidade
se sentia transbordado ante sua presença física, com uma emoção quase de estranheza,
como se lhe acabassem de apresentar aquela mulher.
Charlotte o olhou com certa indecisão e preferiu não dizer nada.
Ele tinha alugado uma carruagem para a noite. Não era aquele um acontecimento
para chegar em um simples cabriolé. Em primeiro lugar porque em um espaço tão
pequeno se teria amarrotado o vestido do Charlotte, ou para ser mais exatos, o vestido da
Vespasia, e em segundo lugar porque o teria delatado como alguém de condição inferior e
distinta da de outros, o que era muito mais importante.
Na entrada, o bulício de carruagens era considerável, inclusive na rua adjacente,
enquanto dúzias de pessoas chegavam à hora que já Vespasia tinha anunciado como
adequada e conveniente. O casal subiu as escadas quase varrida pela gente que
acessava ao grande vestíbulo do que se acessava ao salão.
Em seguida se viram rodeados por um redemoinho de saias, de risadas nervosas, um
pouco aborrecidas por elevadas, e de vozes que falavam mais alto do que o normal em
uma forçada demonstração de confiança para quem tinham ao lado, fingindo ignorar a
outros.
A luz dos lustres se refletia em diademas, alfinetes, colares, brincos, braceletes e
anéis. Os homens levavam faixas de cor vermelha e púrpura segundo a ordem a que
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pertenciam e no peito luziam medalhas que brilhavam em contraste com o branco e o
negro do traje de gala.
Assim que chegaram em cima e entraram nas salas de recepção, foram anunciados
por um mordomo de expressão imperturbável a quem não parecia importar nem o nome
nem a posição social da pessoa que anunciava.
O fato de não ter ouvido falar nunca do senhor e a senhora Thomas Pitt, não parecia
lhe causar impressão alguma, nem no gesto do rosto, nem no tom de voz nem na mais
mínima piscada.
Pitt estava muito mais nervoso que Charlotte. Tinham educado ela para saber como
comportar-se nesse tipo de reuniões sociais, por muito que a categoria desta fosse
superior a qualquer outra. De repente, Pitt sentiu como se o colarinho duro lhe estivesse
cortando o queixo e nem sequer se atreveu a voltar a cabeça.
Charlotte tinha insistido em que cortasse o cabelo e até ele mesmo reconhecia não
ter passado pelas mãos de um barbeiro digno deste nome desde há muitos anos.
Levava postas botas de grande qualidade, presente do Jack, mas seu traje negro não
podia comparar-se nem de longe com os que via a seu redor, e além disso estava seguro
de que seus interlocutores chegavam à mesma conclusão que ele só olhando-o com um
mínimo de atenção no momento de convidá—lo a seguir uma conversa qualquer.
Os primeiros quinze minutos passaram indo de um grupo a outro, cuidando de ser o
mais superficial possível, sentindo um ridículo cada vez maior e absolutamente
convencidos de que havia outras formas muito melhores de perder o tempo, embora só
fosse na cama e dormindo, preparando-se para as fadigas e obrigações do dia seguinte.
E depois, por fim Pitt viu o Linus Chancellor acompanhado de uma mulher
extraordinariamente bela. Era mais alta do que o normal, quase da mesma estatura que o
próprio Chancellor. Era magra, mas bem proporcionada e com uns ombros e uns braços
muito bonitos, e apesar de sua altura não caminhava encurvada nem parecia disposta a
dissimulá—la. Permanecia com a cabeça erguida e as costas retas. Usava um vestido que
ia da cor nata à rosa, favorecendo sua compleição morena e seu rosto alongado e de
grandes olhos.
—Quem é essa mulher? —murmurou Charlotte—. Que mulher tão interessante,
certamente muito mais que qualquer das que há aqui. Não lhe parece especial?
—Não sei quem é; talvez a esposa do Chancellor—respondeu Pitt em um tom apenas
audível, consciente de que qualquer um podia estar escutando—o.
—OH! Esse que está a seu lado é Linus Chancellor? Que elegante! Não acha?
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Pitt olhou a sua mulher com curiosidade. A verdade é que nem sequer parara para
pensar na possível elegância do Chancellor, nem se era um homem atraente para as
mulheres. Só se fixara no vigor e na originalidade de suas feições, no estranho ângulo que
formavam nariz e mandíbula e na força de vontade que sugeriam, assim como em seus
olhos pequenos e na total segurança de seus gestos. Ele o via como um político e de
repente duvidou sobre sua capacidade para julgar a um homem por seu aspecto.
—Bom, suponho que sim—disse cada vez mais convencido disso.
Charlotte voltou a olhar à mulher e viu como nesse momento ela posava uma mão no
braço do Chancellor, mas sem chegar a ser inoportuna —não era uma afirmação de
propriedade—, discretamente, em um gesto que denotava orgulho e afeto. Era ela quem
se aproximava dele e não o contrário.
-se está casado, deve ser sua mulher—disse Charlotte absolutamente convencida do
que dizia—. Ela jamais faria isso em público se não fosse sua esposa ou não estivesse a
ponto de sê—lo.
—E o que é o que está fazendo?
Charlotte sorriu e fez exatamente o mesmo, deslizando sua mão pelo braço do Pitt e
aproximando-se um pouco mais a ele.
—Ainda está apaixonada por ele—disse em um sussurro.
Pitt sabia que perdera algo, mas também sabia que de uma forma ou outra aquilo
significava um cumprimento.
O tema ficou atrasado ao Charlotte ver aproximar-se um dos homens mais feios que
jamais tinha visto. De todas as descrições possíveis, talvez a mais caridosa houvesse dito
unicamente que não havia rastro de rancor em seu rosto, nem tampouco de mau gênio.
Era mais baixo que ela, embora Charlotte fosse mais alta do normal para uma mulher.
Era de constituição obesa, com os braços e os ombros gordos e uma papada que
dava à rosto uma estranha forma, como se este começasse entre a abundante mata de
cabelo e seguisse com os olhos, de cor castanha, sob umas sobrancelhas nada normais, e
diretamente terminasse nos ombros. Apesar de tudo, não se tratava de um aspecto
desagradável, e além disso falava com uma voz muito bonita e cheia de personalidade.
—Boa noite, senhor Pitt. Que alegria vê-lo por aqui — disse, e esperou amavelmente
que apresentasse à Charlotte.
—Boa noite, Senhor Aylmer — respondeu Pitt e disse voltando-se para Charlotte—:
Te apresento ao senhor Garston Aylmer, do Ministério de Colônias.
—Como está, senhora Pitt?—disse Aylmer com uma ligeira inclinação, um gesto de
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distinção que fez com toda a naturalidade do mundo. E ficou olhando com expressão de
interesse—. Espero que desfrutem da noite, embora a verdade é que se alguém ficar mais
tempo do necessário, estas noites acabam fazendo-se bastante tediosas.
Aqui se dizem sempre as mesmas coisas, e me acreditem se lhes disser que muito
poucas vezes significam algo —e acrescentou com um sorriso que lhe iluminou o rosto—:
Mas como é a primeira vez que nos encontramos , talvez encontramos algo novo e
diferente para nos contar e nos divertimos um pouco.
—Eu quero me divertir um pouco — respondeu Charlotte imediatamente—. Assegurolhe que não me interessa absolutamente falar do tempo, nem tampouco mexericar sobre
quem comeu com quem ou a quem viu em companhia de tal ou qual pessoa.
—A mim tampouco —coincidiu Aylmer—. Claro que a semana que vem já será
diferente, e já não digamos a seguinte. Bem, e do que poderíamos falar?
Pitt se alegrou de ficar à margem da conversa. Deu um passo para trás, desculpou-se
em um tom quase inaudível e se dirigiu para onde se achavam Linus Chancellor e a mulher
que o acompanhava.
—Pois não sei. Algo do que não saiba absolutamente nada, por exemplo – disse
Charlotte com um sorriso—. Assim poderá você me dizer o que queira e eu não poderei
discutir nada, pois não saberei se estiver você ou não certo.
—Que idéia tão sensacional! —exclamou seu interlocutor acolhendo a proposta com
entusiasmo—. Vamos ver, me diga que coisas não saiba absolutamente nada, senhora
Pitt—disse a seguir, lhe oferecendo o braço.
—OH, são tantas — respondeu ela aceitando—, claro que a maioria não me
interessam absolutamente, daí que nem sequer me tenha incomodado em saber algo
delas. Mas imagino que também deve haver algumas apaixonantes –acrescentou
enquanto se dirigiam para a escada que levava ao terraço—. Por que não me conta um
pouco da África? Já que trabalha no Ministério de Colônias, tenho certeza que saberá
imensamente mais que eu sobre o tema.
—OH, é claro—respondeu com um amplo sorriso—. Embora já lhe advirto, que só
poderei lhe contar coisas trágicas ou violentas, ou ambas de uma vez se assim o preferir.
—Quando alguém luta por algum motivo sempre há algo que já tem um valor —
argumentou ela—. De outro modo, já não se lutaria. Suponho que tudo deve ser muito
diferente da Inglaterra, não? Vi quadros, gravuras e coisas assim sobre selvas e planícies
intermináveis com todo tipo de animais imagináveis. E também árvores muito curiosas que
parece que tenham sido cortadas por cima, como se tivessem querido igualá—las.
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—São acácias—respondeu—. Sim, sem dúvida é muito diferente da Inglaterra. Odeio
ter que reconhecê-lo, senhora Pitt, porque isso me despoja de qualquer interesse que
possa ter minha conversa, mas a verdade é que nunca estive ali.
Conheço muitas das coisas que ali passam, mas sempre me chegam de segunda
mão. Não lhe parece vergonhoso?
Charlotte o olhou um segundo antes de estar absolutamente convencida de que ia
poder continuar desfrutando da conversa. Dizer que estava paquerando com ela teria sido
um exagero, mas ficava claro que se achava a gosto com as mulheres e que lhe agradava
sua companhia.
—Talvez não haja uma diferença apreciável entre o que vem de segunda ou terceira
mão—respondeu ela enquanto deixavam atrás a um grupo de homens que conversavam
com a maior gravidade do mundo—. Além disso, não tem mais que descrever as coisas; já
lhe disse que não tenho forma de saber se está ou não certo.
Assim conte o que quiser, mas seja muito gráfico, embora tenha que inventar. Me
conte muitas anedotas—lhe desafiou—. Me fale da Zambeze, do ouro e os diamantes, e
também do doutor Livingstone e do senhor Stanley, e dos alemães.
—Por Deus bendito —exclamou ele, alarmado—. De todos eles?
—De todos os que possa —tranqüilizou—o ela.
Nesse momento se aproximou um criado com uma bandeja de prata cheia de taças
de champanha.
—Bom, para começar, que nós saibamos os diamantes estão na África do Sul —
respondeu Aylmer tomando uma taça e oferecendo-lhe a ela e logo outra para ele—, mas
é muito possível que haja grandes quantidades de ouro em Zambeze. Ali restam muitas
ruínas de uma antiga civilização em uma cidade chamada Zimbabue, e só agora
começamos a calcular a enorme fortuna que poderia haver ali.
Não é preciso dizer que isso é precisamente o que interessa aos alemães, e muito
provavelmente a alguém mais. —Aylmer ia olhando—a com seus olhos castanhos,
sabendo que ela não seria capaz de distinguir se o que contava era a sério ou era uma
simples invenção para entretê—la.
—E é propriedade da Grã—Bretanha, não?—perguntou tomando um gole da taça.
—Não—respondeu Aylmer afastando a um passa do criado—. Ainda não.
—Mas o será, não é?
—Ah, essa é uma pergunta muito importante a que de momento não tenho
resposta—disse dirigindo—a para as escadas.
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—Mas se a tivesse, seria uma questão do mais absoluto segredo – acrescentou ela.
—É claro que sim. —Aylmer sorriu e seguiu lhe contando coisas sobre o Cecil
Rhodes e suas aventuras e façanhas na África do Sul, o Rand e JOhannesburgo, e sobre o
descobrimento da mina de diamantes do Kimberley, até que se viu interrompido por um
jovem com o nariz muito largo e uns gestos muito efusivos que não deixou de pedir
desculpas ante um Aylmer visivelmente aborrecido.
Charlotte se viu momentaneamente sozinha.
Passeou o olhar a seu redor para ver quem podia reconhecer das fotografias do
London Ilustrated News. Divisou a um homem de ar majestoso com umas costeletas
exuberantes e barba frisada, com a luz dos lustres brilhando em uma generosa calva e um
olhar triste de sabujo esquadrinhando a sala. Charlotte pensou que talvez se tratava de
Lorde Salisbury, o ministro dos Assuntos Exteriores, mas não estava segura. Não era o
mesmo uma fotografia em tons cinzas que uma pessoa de carne e osso.
Linus Chancellor falava com um homem que não parecia muito diferente dele a
primeira vista, embora sem a mesma ambição de suas feições nem tampouco seu gênio.
Os dois estavam concentrados em sua conversa, quase alheios ao revôo de saias e ao
reflexo das luzes ou ao barulho de vozes que os rodeavam. Junto ao outro homem e de
costas voltadas, como se estivesse esperando—o, havia uma mulher que chamava
poderosamente a atenção pela confiança e a inteligência que irradiava.
Claro que também chamava a atenção como feia. O nariz lhe nascia tão acima, que,
vista de perfil, parecia uma prolongação da fronte. Tinha o queixo um pouco curto, os olhos
muito separados, muito grandes e com a extremidade caindo para baixo. Era um rosto
muito extraordinário, imponente e, por que não dizê—lo, algo aterrador.
Ia magnificamente bem vestida, mas se ficava tão perplexo ante aquele rosto, que o
resto carecia de importância.
Charlotte trocou umas quantas palavras tão amáveis como superficiais com um casal
empenhado em falar com todo mundo. Um homem com o cabelo castanho avermelhado
lhe abordou com efusivas amostras de admiração e ao cabo de um momento voltou a ficar
sozinha, o que não a preocupava absolutamente; não esquecia que Pitt estava ali para
investigar um caso concreto.
Uma mulher de aspecto pálido e delicado que devia ter sua mesma idade permanecia
de pé a uns poucos metros dela, tendo um penteado elaboradíssimo e um vestido de tom
pastel adornado com toda classe de contas e pérolas. Lançou um discreto olhar ao
Charlotte por cima do leque e se voltou para o bonito jovem que tinha ao lado.
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—Deve ser do campo, pobrezinha.
—Ah, sim?—disse o jovem surpreso—. Conhece—a? —E fez gesto de dirigir-se ao
Charlotte com expressão de cordialidade.
A mulher abriu os olhos com exagero.
—É claro que não. Por favor, Gerald! Como vou conhecer uma mulher assim? Só
disse que deve ser do campo. Que cor tão pouco afortunada!—disse retendo o Gerald pelo
braço.
—Pois me parece muito bonito — respondeu detendo-se—. É um mogno muito
diferente.
—Não me refiro ao cabelo. Eu falo da cor do rosto. Está claro que não é uma leiteira,
porque nesse caso não estaria aqui, mas tem aspecto de havê-lo sido.
Quase me atrevo a dizer que trabalha como empregada de cavalariças ou algo
assim—disse enrugando ligeiramente o nariz—. É uma mulher robusta e isso não é nada
elegante. Além disso, estou certa de que nem sequer se deu conta.
Pobrezinha, que mais dá.
—Por que será que sempre anda se compadecendo de outros, querida? –disse
Gerald torcendo a boca em uma careta — essa recriminação é uma de suas grandes
virtudes: a sensibilidade que mostra com o próximo.
A mulher lhe lançou um rápido olhar com a vaga suspeita de que algo havia naquele
homem que não conseguia entender muito bem, e decidiu retirar-se para falar com uma
viscondessa que conhecia.
Gerald olhou ao Charlotte com olhos de aberta admiração por ela e seguiu obediente
a sua companheira.
Charlotte sorriu e foi procurar ao Pitt.
Pelo caminho viu a tia avó Vespasia ao outro lado do salão, com um vestido de cetim
cinza e um ar de grande senhora, com o brilho de seus grandes olhos prateados e o
cabelo branco lhe adornando a cabeça com mais elegância e distinção que muitos dos
diademas que reluziam a seu redor.
Enquanto Charlotte a olhava, Vespasia lhe deu um pestanejo lento e deliberado e
continuou a conversa.
Ainda demorou vários minutos para achar Pitt. Tinha saído do salão principal de
recepções com seus resplandecentes lustres para passar a uma sala mais tranqüila, a que
se acessava por uns degraus, e ali estava conversando com o homem que se parecia com
o Linus Chancellor e com a extraordinária mulher que o acompanhava.
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Charlotte não sabia se aproximava-se ou não por medo a lhes interromper, mas a
mulher ergueu a vista e seus olhos se encontraram com um interesse mútuo e repentino
que quase expressava familiaridade.
O homem seguiu o olhar da mulher e Pitt também se voltou.
-senhor Jeremiah Thorne, do Ministério de Colônias —anunciou Pitt com
tranqüilidade— e senhora Thorne. Queria lhes apresentar minha mulher.
—Como está, senhora Pitt?—disse a senhora Thorne imediatamente—. Interessa-lhe
a África? Espero que não. Não imagina o que me estou aborrecendo. Por favor, me
acompanhe e falemos de outra coisa. Qualquer tema servirá, mas que não seja a Índia,
que vista de longe é quase o mesmo.
—Christabel…—disse Thorne alarmado, mas Charlotte em seguida compreendeu
pelo tom um pouco fingido que talvez já estava acostumado a aquela maneira de
comportar-se e que no fundo tampouco lhe incomodava.
—Sim, querido—respondeu ela distraidamente—. Quero falar com a senhora Pitt. Já
acharemos algum tema que nos distraia, algo tão sério e transcendental como a salvação
do corpo e da alma, ou tão superficial como nos pôr a criticar o que tem vestido todo
mundo e começar a supor que respeitável dama de idade indefinível está procurando a
que desventurado jovem para casá—lo com sua filha.
Thorne tentou queixar-se ao mesmo tempo que esboçava um sorriso, o que não
deixava de ser uma amostra de profundo afeto e em seguida voltou para sua conversa
com Pitt.
Charlotte seguiu ao Christabel Thorne com mais curiosidade que outra coisa; aquilo
prometia uma conversa diferente e nada aborrecida.
-se vier tão freqüentemente como eu a este tipo de festas, não duvido que as achará
tão desesperadamente aborrecidas como eu –sentenciou Christabel com um sorriso. Tinha
uns olhos grandes e penetrantes, por isso Charlotte pensou que ante ela qualquer alma
tímida ficaria paralisada, ou quando muito começaria a gaguejar qualquer incoerência.
—É a primeira vez que venho a uma—se justificou Charlotte. Era a única forma de
defender-se ante a presunção de qualquer um, sobretudo para que não a pusessem em
evidência—. Desde que me casei, não fui a nenhuma reunião social mais que quando foi
estritamente necessário — e aqui se deteve. Não era questão de confessar que só saía
quando Pitt tinha um caso entre mãos. Teria sido muito ingênuo de sua parte inclusive
naquela ocasião.
—Ah, sim? —Christabel levantou as sobrancelhas ainda mais com uma expressão
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que não dissimulava seu interesse. Charlotte seguia indecisa—. Continue, continue —
insistiu Christabel. Não o fazia com malícia, só lhe consumia a curiosidade.
Charlotte se deu por vencida. Compreendeu que sua interlocutora não lhe ia perdoar
uma mentira, por pequena que fosse, e como Thorne já conhecia a profissão do Pitt, deu
por sentado que Christabel também sabia.
—Bom, de vez em quando acompanho a meu marido em seus assuntos – disse por
fim esboçando um sorriso—. Como é policial, pode ir a muitos lugares que....
—É maravilhoso!—interrompeu—a Christabel—. Mas, por favor, querida, não tem que
explicar nada mais. Tudo está muito claro e perfeitamente justificado. Está aqui porque o
convidaram para que investigue esse lamentável assunto sobre a África e as informações
que alguém está filtrando—disse com expressão de satisfação—. As pessoas fazem
coisas muito feias por cobiça, bom pelo menos alguns. —E acrescentou olhando ao
Charlotte—: Não se espante, querida. Acabo de escutar meu marido falando sobre o tema.
Quem não tenha previsto essa possibilidade é um ingênuo. Onde quer que haja uma
fortuna para conseguir, nunca faltará quem recorre à mentira para tirar vantagem. O
estranho é que alguém tenha tido a coragem e a decisão de comunicar à polícia. E isso é
algo que aplaudo. O problema, insisto, é que estas reuniões são muito aborrecidas,
sobretudo porque são muito poucos os que de verdade dizem o que pensam.
Um criado se deteve junto a elas com mais taças de champanha. Christabel rechaçou
o oferecimento com um simples gesto, que Charlotte imitou logo.
-se de verdade quer conhecer alguém interessante—continuou Christabel— e sabe
Deus por que está aqui, me acompanhe e apresentarei ao Nobby Gunne. –E em seguida
se voltou encabeçando a marcha dando por sentado que sua interlocutora aceitava—. É
uma mulher maravilhosa. Esteve no rio Congo a bordo de uma canoa, ou pelo menos em
algo parecido. Ou possivelmente foi no Níger, ou no Limpopo. Tanto dá. Em algum lugar
da África onde ninguém tinha estado antes.
-disse Nobby Gunne?—perguntou Charlotte surpreendida.
—Sim, estranho nome, não é? Acredito que é uma abreviatura da Zenobia, o qual é
quase tão estranho como o outro.
—Conheço—a! —exclamou Charlotte rapidamente—. Tem uns cinqüenta anos, não é
assim? O cabelo escuro e um rosto curioso, e embora não a possa considerar muito
bonita, tem muita personalidade e certamente não é nada desagradável.
Um grupo de jovens passaram ante elas, sufocando um risinho e olhando—as por
cima de seus leques.
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—Sim, efetivamente. Que descrição tão exata!—disse Christabel com expressão de
satisfação—. Algo me diz que gosta muito dela.
—Assim é.
—E se não é uma rabugice de minha parte, posso saber como é que a esposa de um
policial conhece uma exploradora africana como Nobby Gunne?
—É a irmã de minha tia avó por afinidade — começou a dizer Charlotte, e não teve
mais remédio que rir ante a confusão do que acabava de dizer—. A verdade é que quero
muito a minha tia avó Vespasia e vou vê—la sempre que posso.
Achavam-se as duas ao pé da escada, roçando as flores de um vaso de barro.
Christabel recolheu a saia em gesto rápido e automático.
—Vespasia?—perguntou com curiosidade—. Outro nome bem curioso. Sua tia não
será por acaso Lady Vespasia Cumming—Gould, não é?
—Sim, a própria. Também a conhece?
—Por desgraça, só de nome. Mas isso me bastou para sentir por ela um grande
respeito—disse com ar de certa ironia—. Sei que trabalhou muito para levar a cabo
algumas reforma sociais, sobretudo com as leis de assistência pública, e também com as
de educação.
—Sim, recordo—o. Minha irmã a ajudou muito. Fizemos tudo o que pudemos.
—Não me diga que se renderam! —exclamou em um tom que era mais de desafio
que de pergunta.
—Simplesmente mudamos o enfoque da questão—disse Charlotte enfrentando seu
olhar—. Agora, ao marido de Emily acabam de nomeá—lo membro do Parlamento.
Por minha parte, procuro colaborar com meu marido nos casos que investiga contra
qualquer tipo de injustiça, e dos que naturalmente nada posso comentar—disse consciente
de que não podia mencionar ao Círculo Interior por muita confiança que lhe inspirasse uma
pessoa—. Além disso, tia Vespasia continua sua luta contra a injustiça, embora neste
momento não poderia precisar qual.
—Não foi minha intenção ofendê—la-se desculpou Christabel com certa efusividade.
Charlotte sorriu.
—Sim, foi—o. Você dá por sentado que tudo isto é um jogo para mim, algo que me
tem entretida e que além disso me faz sentir bem, para logo abandoná—lo ante o primeiro
fracasso.
—Tem razão—disse Christabel com um deslumbrante sorriso—. Já me diz Jeremiah
que me obcecam as boas causas e que por isso perco o sentido da proporção. Bom, mas
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quer que vamos saudar a Zenobia Gunne? Está aí mesmo, ao final das escadas.
—É claro que sim —aceitou Charlotte e seguiu o olhar do Christabel até localizar a
uma mulher muito morena com um vestido verde que estava de pé frente à saída de um
dos balcões vendo passar às pessoas com cara de muito pouco interesse.
Charlotte a reconheceu em seguida. Conheceram-se na época dos assassinatos da
ponte do Westminster, quando Florence Ivory lutava denodadamente para conseguir o
direito de voto das mulheres. Claro que a possibilidade de que obtivera algum êxito neste
sentido era mais que remota, mas Charlotte simpatizava com aquela causa, sobretudo
depois de ver as piores injustiças que se davam com a lei vigente.
—Juntas
defendemos
o
sufrágio
feminino—acrescentouenquanto
seguia
ao
Christabel escada acima.
—Por Deus bendito! —exclamou Christabel detendo-se e voltando-se para ela—. Que
idéias tão modernas tem você!—acrescentoucom admiração—. E que pouco realistas!
—E você? Há algo que defenda? —desafiou-lhe Charlotte.
Christabel riu, mas não pôde dissimular a emoção de seu rosto.
—Sim, mas é tão pouco realista como a sua-respondeu—. Sabe você o que é uma
"solteirona" na linguagem corrente?
—Algo que não é "habitual", possivelmente?—perguntou Charlotte, conseguir
compreendê—lo muito bem.
—Absolutamente. Cada vez o é mais—disse Christabel sem lhe importar o fato de
que se achavam nas escadas e de que a gente passava junto a elas—. A solteirona é a
mulher que não está casada com nenhum homem, e portanto, é a mulher que sobra, a que
está desamparada porque não tem a um homem a quem cuidar. Bem, pois eu gostaria que
essas "solteironas" fossem capazes de educar-se a si mesmas e de trabalhar em uma
profissão assim como fazem os homens; que pudessem manter-se por sua conta e que
ocupassem o lugar que lhes corresponde na sociedade com dignidade e orgulho.
—Santo céu! —exclamou Charlotte maravilhada ante aquela coragem. Era uma idéia
maravilhosa—. Tem razão!
O rosto de Christabel ficou escurecido por um gesto de mau humor.
—O homem normal e comum não é mais preparado nem mais forte que uma mulher
qualquer, e é claro muito menos valente—sentenciou com autêntica aversão pelo tema—.
Não irá repetir essa idéia de que as mulheres são incapazes de pensar e de ter filhos,
verdade? Essa idéia a inventaram alguns homens que têm medo de que os desafiemos em
seus trabalhos e até de que os superemos. É uma mentira! Uma infâmia e uma estupidez!
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Charlotte não sabia se punha-se a rir ou assustava-se, em qualquer caso a idéia era
emocionante.
—E como vai conseguir isso? —quis saber afastando-se um pouco do meio para que
passasse uma senhora de consideráveis proporções.
—Com a educação—respondeu Christabel com uma contundência que Charlotte
reconheceu como autêntica. Naquele momento se encheu de admiração por ela e sentiu
como despertava seu instinto de amparo ante uma causa tão vulnerável e perdida como
aquela—. Educação para as mulheres, para que adquiram conhecimentos e acreditem em
si mesmas—continuou Christabel—. E educação para os homens, para que saibam dar às
mulheres uma oportunidade. Isso será o mais difícil.
—Para isso será preciso muito dinheiro—disse Charlotte.
Mas não pôde responder porque tinham chegado quase ao mesmo nível da Zenobia
Gunne, quem além disso já as via aproximar-se. Iluminou-se o rosto de satisfação ao ver
Christabel Thorne, e só depois de uma ligeira vacilação reconheceu também ao Charlotte.
Nesse momento também recordou muito divertida que Charlotte nem sempre era tão
sincera como devia com respeito a sua identidade.
No passado, e só por ajudar ao Pitt, fingia não ter nada que ver com a polícia, e
inclusive se fazia chamar por seu nome de solteira.
Nobby se dirigiu ao Christabel.
—Que alegria voltar a vê—la, senhora Thorne! Estou convencida de que conheço
quem a acompanha, mas como passou tanto tempo, não estou muito segura de poder
recordar seu nome. Peço-lhe desculpas.
Charlotte sorriu, mas com sentida cordialidade; Nobby Gunne sempre lhe tinha sido
muito simpática e aquela indireta lhe fez muita graça.
—Charlotte Pitt-respondeu muito afável—. Como se encontra, senhorita Gunne?Vejo
que goza de uma saúde excelente.
—Assim é—respondeu Nobby, e a verdade é que parecia mais feliz e mais jovem que
quando Charlotte a tinha visto anos atrás.
Estiveram conversando um tempo sobre vários temas, tratando por cima alguns
assuntos políticos e sociais de especial interesse. A conversa se viu interrompida quando
de repente um homem jovem e ágil com a pele muito bronzeada topou com as costas do
Nobby em uma tentativa de escapar de uma jovem que ia sufocando um risinho.
Voltou-se para desculpar-se por sua estupidez: tinha o nariz curvo, a boca um pouco
grande e o cabelo loiro em franca retirada, face ao que mostrava um homem imponente e
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muito inteligente.
—Desculpe-me, por favor—disse com rigidez enquanto lhe ruborizavam as faces
ossudas—. Espero não havê—la machucado.
—Absolutamente—respondeu Nobby sorrindo de modo aprazivel. — Além disso,
tendo em conta de quem estava fugindo, sua precipitação é mais que compreensível.
O jovem ainda se ruborizou mais.
—OH, me notou tanto?
—Eu teria feito o mesmo em seu lugar—respondeu ela olhando-o nos olhos.
—Então já temos algo em comum —agradeceu a modo de cumprimento, mas sem
que ficasse claro pelo tom se queria ir mais longe ou só ser amável.
—Meu nome é Zenobia Gunne—disse ela apresentando-se.
Ele esbugalhou os olhos e de repente seu interesse por ela se fez evidente.
—Não será você Nobby Gunne?
—Assim me chamam meus amigos—disse em um tom que deixava bem claro que
ainda não o contava entre eles.
—Sou Peter Kreisler —anunciou, erguido como se fora um soldado—. Eu também
passei muito tempo na África e aprendi a amá—la.
Agora o interesse era mútuo. Apresentou-o a Charlotte e a Christabel por pura
formalidade e reatou a conversa.
—Ah, sim? E em que parte da África esteve? —quis saber ela.
—Em Zanzíbar, Mashonaland, Matabeleland—respondeu ele.
—Eu estive no oeste-respondeu ela—. Sobretudo na região do Congo, embora
também percorri o Níger.
—Nesse caso terá tido que tratar com o Leopoldo rei dos belgas—disse com o rosto
inexpressivo.
Nobby respondeu com a mesma prudência.
—Só por cima. Só porque sou uma mulher me olha de outra maneira, não como ao
senhor Stanley, por exemplo.
Até Charlotte tinha ouvido falar do passeio triunfal do Henry Mirton Stanley por
Londres fazia mais ou menos uma semana, quando em 26 de abril percorreu o caminho
que há entre a estação da Charing Cross e Piccadilly Circus.
A multidão aclamou seu nome até o infinito. Era o explorador que despertava mais
admiração, tinha merecido duas medalhas de ouro da Royal Geographic Society, era
amigo do príncipe de Gales e convidado habitual da própria rainha.
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—Mas isso não é tão mau, me acredite —comentou Kreisler com um sorriso
amargo—. Assim, pelo menos a você não pedirá como tem fez a ele que encabece um
exército de vinte mil canibais congoleses para derrotar ao Mad Mahdi e conquistar o Suam
para a Bélgica.
Nobby não conseguia acreditar Sua expressão era de tal incredulidade que até era
cômica.
Christabel parecia muito surpreendida e Charlotte por uma vez ficou muda.
—Não pode estar falando a sério! —exclamou Nobby quase em um grito.
—Também me parece uma brincadeira—disse Kreisler com uma careta de humor—.
Mas acredito que Leopoldo não opina o mesmo.
Inteirou-se de que os canibais do Congo são excelentes guerreiros, assim não
duvidou em fazer algo que surpreenda ao mundo para que se saiba quem é ele.
—Dessa maneira, certamente vai conseguir —assentiu Nobby—. Não quero imaginar
como seria uma guerra dessas proporções! Vinte mil canibais contra as hordas do Mad
Mahdi. OH, Deus meu, pobre a África—se lamentou deixando ver uma expressão de
verdadeira pena a pesar do tom irônico e de brincadeira com o que falavam. Bastava vê—
la para saber que era perfeitamente consciente da tragédia humana que tudo aquilo
implicava.
Depois da apresentação de rigor, o certo é que Kreisler virtualmente tinha feito caso
omisso do Charlotte e Christabel. De vez em quando olhava—as para não ser mal
educado, mas todo seu interesse estava em Nobby, a quem a via cada vez mais
entusiasmada com seu interlocutor.
—Mas a autêntica tragédia da África não é esta—sentenciou amargamente—.
Leopoldo é um visionário, e eu diria que um lunático também, mas não supõe nenhum
perigo realmente grave. Para começar, é muito pouco provável que convença aos canibais
para que abandonem a selva. Por outro lado, não estranharia que Stanley ficasse na
Europa aconteça o que acontecer.
—Como? Stanley não voltará para a África?—perguntou Nobby surpreendida—. Pelo
que sei, viveu ali estes últimos três anos e depois esteve no Cairo umas três semanas.
Mas eu achava que, depois de descansar um pouco, voltaria. A África é sua vida! Além
disso, acredito que o rei Leopoldo o tratou como a um irmão em sua última visita a
Bruxelas, não é assim?
—OH, sim-respondeu Kreisler rapidamente—. Eu inclusive diria mais. A princípio o rei
o recebeu com certa indiferença e tratava ao Stanley com bastante descortesia, mas agora
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é o herói de todo o mundo, penduram-lhe mais medalhas que espinhos a um ouriço e se
dirigem a ele como se fosse de sangue real.
Todo mundo anda muito agitado com as notícias que chegam da África Central, de
modo que Stanley não tem mais que mostrar a cabeça para que a gente o aclame até ficar
afônica. Agora o rei desfruta com o reflexo de sua glória—disse Kreisler com um brilho
especial em seus olhos azuis, uma mescla de risada e dor ao mesmo tempo.
Nobby voltou para a questão mais importante.
—E por que razão não vai voltar Stanley à África? Já partiu da Bélgica. Agora já não
poderá dizer-se que o rei o retém.
—Não, não é por isso—disse Kreisler—. Se apaixonou pelo Dolly Tennant.
—Dolly Tennant? Disse Dolly Tennant? —Nobby não dava crédito ao que acabava de
ouvir—. A que organiza tantas festas de sociedade? A pintora?
—A própria —confirmou Kreisler—. Ela mudou muito. Já não ri dele. E não só isso,
parece que ela tampouco o olha com maus olhos. Como mudam as coisas.
—Céu santo, sim que mudam! —exclamou ela.
A conversa ficou interrompida porque nesse momento lhes uniram Linus Chancellor e
a mulher alta que Charlotte observara antes. Vista agora de perto, chamava inclusive mais
a atenção. Tinha uma expressão curiosamente vulnerável e sensível, mas não lhe tirava
um ápice da força que transmitia.
Não era, portanto, um sinal de debilidade, mas um indício de que sentia a dor com
mais intensidade do que o habitual. Aquele rosto era o de uma pessoa capaz de entregarse em corpo e alma a todo aquilo que empreendesse. Não havia nenhuma prevenção nela,
nem sinal algum de não estar disposta a correr o risco que fosse.
Fizeram-se as apresentações de rigor e, tal como tinha suposto Charlotte, era a
mulher do Chancellor.
Chancellor e Kreisler pareciam conhecer-se, pelo menos de nome.
—Faz muito que retornou da a África?—perguntou Chancellor amavelmente.
—Faz dois meses—respondeu Kreisler—. Mas antes estive em Bruxelas e Amberes.
—OH. —O rosto do Chancellor se suavizou com um sorriso—. Por causa de Stanley,
talvez?
—Por acaso, sim.
Parecia que aquilo fazia muita graça ao Chancellor. Provavelmente já conhecia as
intenções do rei Leopoldo de conquistar Suam. Sem dúvida seus agentes o tinham tão
bem informado como Kreisler.
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Talvez o próprio Kreisler fosse um deles. Ao Charlotte lhe ocorreu pensar que muito
provavelmente o era.
Christabel Thorne reatou a conversa olhando primeiro ao Kreisler e depois a
Chancellor.
—Comentou—nos o senhor Kreisler que conhece melhor o leste da África que os
novos territórios da Zambeze. E estava a ponto de nos contar por que a verdadeira
tragédia da África não está no oeste, nem em Suam, mas em algum momento mudamos
de tema e não pôde nos dar mais explicações. Tinha algo que ver com as esperanças
pessoais do Stanley.
—Com respeito à África?—perguntou rapidamente Susannah Chancellor—. Achava
que o rei dos belgas estava construindo uma ferrovia.
—E assim é—respondeu Christabel—, mas eu referia a suas intenções amorosas.
—Ah, Dolly Tennant!
—Isso ouvimos.
—Mas não supõe tragédia alguma para a África —murmurou Chancellor—. Antes
será um alívio.
Charlotte pensou que talvez não sabia nada do Leopoldo e os canibais.
Mas à Susannah interessava muito o tema e olhou ao Kreisler com o semblante muito
sério.
—Então, qual é segundo você a tragédia da África, senhor Kreisler? Ainda não nos
disse isso.
Se, como indica a senhorita Gunne, sua preocupação pelo tema é tão grande, é
porque deve ser algo importante.
—Assim é, senhora Chancellor, mas por desgraça isso não me dá nenhum poder
para mudar o curso dos acontecimentos. O que tenha que passar acontecerá por muito
que tente o contrário.
—O que tem que acontecer? —insistiu ela.
—Cecil Rhodes e seus colonos começarão a subir do Cabo até Zambeze—
respondeu olhando—a com intensidade—. E um após o outro, os príncipes nativos
assinarão tratados que não só não compreenderão, mas também tampouco os respeitarão.
Colonizaremos a terra e mataremos a todo aquele que se rebele contra nós, e só Deus
sabe quantas matanças e submissões veremos.
A não ser, claro, que os alemães nos expulsem dali dirigindo-se para o oeste desde
Zanzíbar, em cujo caso o resultado será o mesmo, ou possivelmente pior se nos atermos
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ao que já aconteceu anteriormente.
—Bobagens!—disse Chancellor com bom humor—. Se nos estabelecermos no
Mashonaland e Matabeleland poderemos explorar os recursos naturais em benefício de
todos, de brancos e africanos por igual. Nós lhes levaremos remédios, educação,
comércio, leis civilizadas e um código de sociedade que proteja aos fracos tanto como aos
fortes. Mais que a tragédia da África, eu falaria da construção da África.
Kreisler endureceu o olhar, mas só o dirigiu brevemente ao Chancellor e em seguida
se voltou para Susannah. Ela o tinha estado escutando muito atenta, e embora não
estivesse muito de acordo com o que dizia, sua ansiedade crescia cada vez mais.
—Mas antes não dizia o mesmo—disse ela franzindo o cenho e olhando ao
Chancellor, que lhe deu um sorriso cheio de afeto mas não isento de certa recriminação.
—As pessoas mudam de opinião, querida, e retificar é de sábios—disse dando um
pouco de ombros—. Agora sei muito mais coisas das que sabia faz três ou quatro anos.
Europa inteira vai colonizar a África, tanto se nós o fazemos como se não.
Pelo menos o farão a França, Bélgica e Alemanha. Além disso, o sultão da Turquia é
teoricamente senhor do Khedive do Egito, com tudo o que isso significa para o Nilo, e
portanto também para Suam e Equatoria.
—Isso não significa absolutamente nada—disse Kreisler bruscamente—. O Nilo
segue seu curso em direção norte. Surpreenderia—me que na Equatoria tivessem ouvido
falar alguma vez do Egito.
—Eu penso no futuro, Senhor Kreisler, não no passado—disse Chancellor sem dar
mostras de inquietação alguma—. Quando os grandes rios da África se converterem nas
vias de comunicação comercial do mundo. Chegará o dia em que poderemos levar de
navio o ouro, os diamantes, as madeiras exóticas, o marfim e as peles da África por esses
grandes rios com a mesma facilidade com que transportamos carvão e trigo pelo canal
fluvial do Manchester.
—Ou do Reno—disse Susannah pensativa.
—Como prefiro—concedeu Chancellor—. Ou do Danubio, ou de qualquer outro
grande rio no que possa pensar.
—Mas na Europa sempre estamos metidos em uma guerra—continuou Susannah—.
Por culpa da terra, da religião ou por um montão de coisas mais.
Chancellor a olhou sorrindo.
—Mas, querida, na África se passa exatamente o mesmo. Os chefes das tribos
sempre estão em guerra uns com outros. Essa é uma das razões pelas que sempre
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fracassamos em nosso intento de acabar com a escravidão. Temos muito que ganhar e
muito pouco que perder.
—Nós talvez sim—disse Kreisler agriamente—, mas o que me diz dos africanos?
—Eles também—respondeu Chancellor—. Tiraremos eles das páginas de história e
os poremos em pleno século XIX.
—Nisso estava pensando eu precisamente—respondeu Susannah, não muito
convencida do que havia dito seu marido—. Uma mudança tão brusca como esta não se
consegue sem pagar um preço muito alto.
Alguém pensou em que talvez não gostem de nossa maneira de fazer as coisas?
Estamos obrigando—os sem ter em conta o que eles pensam.
Uma faísca de intensidade e até de emoção brilhou nos olhos do Kreisler por um
instante, até que ele mesmo a ocultou, quase deliberadamente, com a mesma rapidez com
a que tinha aparecido.
—Mas se os africanos nem sequer são capazes de compreender do que estamos
falando—disse Chancellor ironicamente— dificilmente poderão formar uma opinião própria.
—Então estamos decidindo por eles —indicou ela.
—Naturalmente.
—Não tenho muita certeza de que tenhamos direito a fazê-lo.
Chancellor adquiriu um semblante entre surpreso e zombador, mas preferiu morder a
língua.
Por muito comprometedoras que fossem as idéias de sua mulher, por nada do mundo
queria pô—la em evidência em público.
Apesar daquela pequena discussão, ficou claro que sua confiança nela estava acima
de tudo.
Nobby Gunne seguia sem afastar os olhos do Kreisler e Christabel Thorne ia olhando
a todos por turnos.
—O outro dia ouvi o que disse Sir Arthur Desmond—continuou Susannah sacudindo
ligeiramente a cabeça.
Charlotte apertou com tal força a taça de champanha vazia, que pouco faltou para
que lhe quebrasse na mão.
—Desmond?—perguntou Chancellor franzindo o cenho.
—Do Foreign Office—acrescentouela—. Que eu saiba, trabalhava ali, mas não sei se
o deixou. Estava muito preocupado pela exploração da África. Dizia que não íamos ser
capazes de fazê-lo com dignidade.
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Chancellor posou suas mãos sobre as dela com muito tato.
—Querida, lamento ter que lhe dizer isto, mas Sir Arthur Desmond morreu faz um par
de dias, e me parece que por sua própria mão. Não acredito que seja uma fonte muito
confiável—disse convenientemente triste.
—Não foi um suicídio! —explodiu Charlotte antes de pensar se era prudente dizer
aquilo ou, pelo menos, se lhe convinha para seus propósitos. Nesse momento só via o
rosto descomposto do Matthew, sua angústia e o carinho que Pitt tinha demonstrado com
um homem ao qual
o tinha unido uma grande amizade—. Foi um acidente!—
acrescentouem sua defesa.
—Peço-lhe desculpas—disse Chancellor—. Queria dizer que, tanto se foi um
descuido como se foi premeditado, foi ele mesmo quem provocou a fatal situação. Por
desgraça, acredito que estava perdendo suas faculdades mentais —e acrescentou
voltando-se outra vez para sua mulher—: Pensar nos africanos como nobres selvagens e
esperar que o sigam sendo até o fim dos tempos é uma ingenuidade que não nos
podemos permitir.
Sir Arthur era um bom homem, mas também um ingênuo. Será graças a nós, ou
graças a outros, mas a África acabará se abrindo ao mundo, e pelo bem da África e de
Grã—Bretanha, o melhor é que nós sejamos quem o faça.
—Não seria mais conveniente para a África que todos nos puséssemos de acordo
para protegê—la e deixá—la tal qual está?—perguntou Kreisler com uma aparente
inocência desmentida por sua expressão e a dureza da voz.
—Para os caçadores e aventureiros como você?—perguntou Chancellor levantando
as sobrancelhas—. O que você quer é que se converta em uma espécie de enorme pátio
de recreio para exploradores sem o necessário intermédio da lei e civilização.
—Eu não sou um caçador, senhor Chancellor, nem tampouco um aventureiro ao
serviço de alguém—replicou Kreisler—. Sou um explorador, aceito-o, mas quando
abandono um lugar, deixo às pessoas e a sua terra tal qual os encontrei.
Compartilho absolutamente a inquietação da senhora Chancellor. Acaso temos direito
a decidir por outros?
—Não só temos o direito, senhor Kreisler—respondeu Chancellor com toda a
convicção do mundo—, mas também a obrigação de fazê-lo quando esses outros dos
quais você fala carecem do conhecimento e capacidade para fazê-lo por si mesmos.
Kreisler permaneceu em silêncio. Já havia dito o que pensava, de modo que preferiu
olhar ao Susannah com solicitude.
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—Não sei vocês, mas eu tenho vontade de jantar algo—disse Christabel aproveitando
o silêncio que se fizera, e dirigindo-se ao Kreisler, acrescentou—: Senhor Kreisler, como
está você em inferioridade numérica, não tenho mais remédio que lhe pedir que nos
ofereça os dois braços para nos acompanhar abaixo. Senhorita Gunne, importa-lhe que as
duas compartilhemos ao senhor Kreisler?
Só havia uma resposta possível e Nobby a deu com um sorriso cheia de encanto.
—Claro que não. Será um prazer. Senhor Kreisler?
Kreisler ofereceu ambos os braços e acompanhou ao Christabel e Nobby para jantar.
Linus Chancellor fez o mesmo com o Charlotte e Susannah, e juntos desceram pela
grande escadaria, ao pé da qual Charlotte em seguida reconheceu ao Pitt, que estava
conversando com um homem de aspecto muito tranqüilo e sereno, bastante calvo, e de
uns cinqüenta anos.
Tinha os olhos redondos e de uma cor azul céu, o nariz muito largo e um ar aprazível,
como se guardasse algum íntimo segredo que o enchia de satisfação.
Pitt o apresentou como Ian Hathaway, também do Ministério de Colônias, e quando
começou a falar, Charlotte teve a impressão de que já conhecia o timbre daquela voz de
dicção tão impecável.
Charlotte agradeceu ao Linus Chancellor e à Susannah e se viu acompanhada por
dois homens enquanto se aproximava da mesa que continha todos os manjares
imagináveis de um jantar frio: bolos, carne, peixe, caça, conservas de gelatina, massas de
todas classes, e infinidade de gelados, sorvetes, geléias e pasteizinhos , todo isso
repartido entre taças, flores, candelabros e talheres de prata. A conversa se fez mais
esporádica e certamente muito mais trivial.
Vespasia despertou tarde na manhã seguinte, mas estava radiante de felicidade.
Tinha desfrutado da recepção mais que outras vezes. Tinha sido um acontecimento
que havia lhe trazido à memória as boas lembranças de seu esplendor juvenil, quando
despertava a admiração de todos os homens que se cruzavam por seu caminho, quando
podia passar noites inteiras dançando para depois levantar-se muito cedo e montar a
cavalo pelo Rotten Row e voltar para casa com o sangue lhe palpitando nas veias disposta
a enfrentar um novo dia e a todas as causas e intrigas que trazia.
Ainda estava sentada preguiçosamente na cama e tomando o café da manhã, muito
satisfeita de si mesma, quando entrou a criada para lhe anunciar que Eustace March tinha
vindo visitá—la.
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—Por Deus bendito! Mas que horas são?—perguntou.
— Dez e quinze, milady.
—E o que quererá Eustace a estas horas da manhã? Terá perdido o relógio?
Eustace March era seu genro; era viúvo de sua filha caçula, Olivia, que lhe tinha dado
muitos filhos e tinha morrido muito jovem. Aquele matrimônio tinha sido de escolha própria,
algo que Vespasia jamais tinha chegado a compreender, sobretudo porque não conseguia
gostar de Eustace.
Era o mais oposto a ela de todos os pontos de vista. Mas era Olivia quem se casara
com ele, e até onde era possível julgar pelas aparências, aquele homem tinha feito feliz a
sua filha.
—Digo-lhe que espere, milady? Ou lhe anuncio que não estará disponível em todo o
dia e que terá que voltar em outro momento?
—OH, não. Se pode esperar, lhe diga que descerei em meia hora.
—Sim, milady—disse a criada, e se retirou obedientemente para dar o recado à
criada e para que esta o comunicasse ao Eustace.
Vespasia acabou o chá e afastou a bandeja do café da manhã. Necessitava pelo
menos meia hora para preparar-se convenientemente para o dia.
Entrou na sala de estar, de ambiente fresco e espaçoso, e viu o Eustace de pé junto à
janela e olhando o jardim. Era um homem forte e corpulento que acreditava
fervorosamente na saúde como uma virtude fundamental para qualquer cristão, e que
devia ir acompanhada do bom juízo, quer dizer, com o justo equilíbrio em todas as coisas.
Gostava das longas caminhadas ao ar livre, as janelas abertas sem ter em conta o
tempo que podia fazer, os banhos de água fria, comer bem e fazer esporte como qualidade
indispensável em um homem.
Assim que ouviu Vespasia, voltou-se com um sorriso. Tinha o cabelo mais grisalho
que quando o tinha visto a última vez, e com umas entradas cada vez mais visíveis, mas
mostrava como sempre uma boa cor de rosto e um olhar resoluto.
—Bom dia, sogra. Como está? Espero que bem—disse bastante animado e com
expressão de ter muita vontade de lhe contar algo. Transbordava entusiasmo e Vespasia
começou a temer que lhe ia retorcer a mão em um apertão.
—Bom dia, Eustace. Sim, encontro—me muito bem, obrigada.
— Tem certeza? Levantou-se um pouco tarde e já sabe que madrugar é bom. É mais
são para a circulação. Um bom passeio lhe dará forças para algo.
—Sim, para voltar a me colocar na cama—replicou ela com ironia—. Não voltei para
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casa até as três da madrugada. Estive na recepção da duquesa do Marlborough. Passei
isso muito bem—disse, e se sentou em sua poltrona preferida—. E a que devo o prazer de
sua visita, Eustace? Algo me diz que não veio a interessar-se só por minha saúde, não é?
Porque nesse caso, uma carta teria sido suficiente.
Por favor, sente-se. Está um pouco inquieto e até o vejo capaz de sair por essa porta
e ao mesmo tempo me dizer o que veio me contar.
Eustace obedeceu, mas se sentou na beira da poltrona, como se o fato de relaxar
supusera para ele um esforço inconcebível.
—Faz tempo que não vinha vê—la, sogra. Vim, sobretudo, para retificar este
esquecimento e para saber como está. Alegra—me vê—la tão bem.
—Bobagens—disse ela sorrindo—. Quer me dizer algo e o tem na ponta da língua.
Do que se trata?
—De nada em concreto, me acredite —repetiu ele—. Ainda anda metida na defesa de
reformas sociais?—perguntou reclinando-se por fim na poltrona e cruzando as mãos à
altura do estômago.
A Vespasia irritaram suas maneiras, mas talvez se tratava de uma impressão do
passado mais que do presente. Tinha sido aquela arrogância e insensibilidade que tinha
desencadeado em parte a tragédia de toda a família no Cardington Crescent.
Só depois do ocorrido começou a ser consciente de sua responsabilidade, o que fez
que durante um tempo se sentisse aturdido e envergonhado, mas durou pouco e não
demorou para recuperar a exaltação de sempre, assim como a total convicção de ter
sempre razão em suas crenças e opiniões.
Como quase toda a gente que goza de boa saúde e uma intensa energia psíquica,
tinha uma especial capacidade para esquecer o passado e viver o presente.
Apesar de tudo, havia nele certo ar protetor, como o de um benévolo professor de
escola.
—Também gosto sempre de voltar a ver as velhas amizades—respondeu ela
friamente. O que não lhe disse é que entre elas se achava sobretudo Thelonius Quade, juiz
do tribunal supremo e uns vinte anos mais jovem que ela, um de seus mais ardentes
admiradores de tão apaixonado que tinha estado dela no passado.
Aquela amizade, uma vez recuperada, converteu-se em algo cada vez mais precioso.
Mas não era algo que estivesse disposta a compartilhar com o Eustace—.
Também sempre gostei dos casos do Thomas Pitt—acrescentouela com sinceridade,
embora já sabia que isso não iria gostar Eustace. Além de que não era muito aceitável do
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ponto de vista social que ela mesma se relacionasse com a polícia, aquela menção só
servia para que ele recordasse o passado, com um sentimento de angústia e muito
provavelmente até de culpa.
—Não sei se isso é muito conveniente, sogra—sentenciou franzindo o cenho—.
Sobretudo podendo fazer outras coisas muito mais dignas. Nunca me preocuparam
muito suas excentricidades, mas —e aqui se deteve porque Vespasia o estava fulminando
com o olhar e o resto da frase estava morrendo antes de poder pronunciar.
—Você sempre tão amável—disse com tom glacial.
—O que queria dizer é que...
-sei muito bem o que queria dizer, Eustace. Esta conversa é de todo desnecessária.
Sempre sei o que vai dizer e você já conhece qual vai ser minha resposta. Não aprova
minha amizade com o Charlotte e Thomas, e muito menos que os ajude de vez em
quando. Mas não tenho a menor intenção de deixar de fazê-lo e além disso não acredito
que seja um assunto de sua incumbência—disse ela esboçando um sorriso—. O que lhe
parece se mudarmos de assunto? Posso saber que muito digna causa tem em mente que
necessite de minha intervenção?
—Bom, agora que o diz—começou a dizer recuperando a compostura quase
imediatamente. De todas suas qualidades, esta era a que mais admirava nele, mas
também a que mais a incomodava. Era como um desses joão—bobo com que brincam as
crianças: por muito que se golpeiem sempre recuperam a posição vertical.
O rosto do Eustace voltou a iluminar-se de entusiasmo.
—Recentemente me aceitaram como membro de uma organização muito seleta—
disse com impaciência—. É claro seus fins são beneficientes e muito louváveis.
Vespasia esperou, procurando não perder um só detalhe do que ele dizia. Ao fim e ao
cabo, havia centenas de sociedades em Londres, e a maioria com propósitos mais que
plausíveis.
Eustace cruzou as pernas com cara de total satisfação. Tinha os olhos bastante
redondos e de uma cor cinza castanha que brilhavam cheios de entusiasmo.
—Como todos os sócios são gente de muitas posses e em mais de um caso gozam
de um poder muito considerável na comunidade, no mundo das finanças ou do governo,
são muitas as coisas que se podem conseguir. Até trocar as leis, se o propõem—disse
erguendo o tom de voz com o vigor de seu convencimento.
Podem conseguir enormes quantidades de dinheiro para ajudar aos pobres, aos
desprotegidos, aos que sofrem injustiças, enfermidades ou qualquer outro tipo de
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desgraças. É muito emocionante, sogra. É um privilégio que me tenham aceito.
—Felicidades.
—Obrigado.
—Soa muito respeitável. Crie que deveria pertencer a essa sociedade?Poderia me
propor você?
Vespasia observou seu rosto com diversão. Eustace tinha ficado com a boca aberta e
em seus olhos se podia ler a mais absoluta confusão. Ele começou a pensar que talvez
estava sendo vítima de uma brincadeira de muito pouco gosto, claro que nunca tinha
compreendido muito bem o senso de humor da Vespasia.
Ela esperou, olhando-o sem pestanejar.
—Querida sogra, não conheço sociedade alguma digna deste nome que aceite
mulheres. Mas isso certamente já sabe, não é?
—E por que não? —quis saber ela—. Me sobra o dinheiro, não tenho marido a quem
obedecer e sou tão capaz como qualquer outro de fazer o bem.
—Mas não se trata disso! —protestou ele.
—Ah, então do que se trata?
—Como diz?
—Perguntei-lhe do que se trata —repetiu ela.
A casualidade quis que Eustace se salvasse de ter que justificar o que para ele era
uma convicção sobre a natureza do universo fora de toda dúvida e é claro de toda
explicação. A criada acabava de entrar anunciando a chegada da senhora Pitt.
—OH, Meu deus, obrigado, Effie—disse Vespasia com amabilidade—. Não me tinha
dado conta de que era tão tarde. Por favor, lhe diga que entre. — E dirigindo-se ao
Eustace, acrescentou—: Charlotte vai acompanhar-me a dar cartões à duquesa do
Marlborough.
—Charlotte? —exclamou Eustace pasmado—. Com a duquesa do Marlborough? Mas
que disparate, querida sogra! Isso não é para ela! Sabe Deus o que pode chegar a fazer
ou a dizer. Será uma brincadeira, verdade?
—Estou falando muito a sério. Desde a última vez que o viu, Thomas foi promovido.
Agora é superintendente.
—Por mim que seja o inspetor em chefe do Scotland Yard! —exclamou Eustace—.
Como pode permitir que Charlotte a acompanhe a visitar a duquesa do Marlborough?
—Não vamos de visita—replicou Vespasia pacientemente—. Só vamos deixar-lhe
nossos cartões; sabe tão bem como eu que é costume fazê-lo depois de uma festa como a
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de ontem. É assim como devemos lhe mostrar nosso agradecimento.
—Devemos? Não me diga que Charlotte também esteve ali! —exclamou sem sair de
sua perplexidade.
—Sim.
Naquele momento se abriu a porta e entrou Charlotte. Assim que viu o Eustace March
em sua rosto se refletiram toda sorte de sentimentos contrapostos —surpresa, raiva,
acanhamento— mas nenhum tão forte como o de curiosidade.
A reação do Eustace foi muito mais simples. Em seu rosto não havia nada mais que
puro e simples embaraço. Ficou em pé ruborizado.
—É um prazer voltar a vê—la, senhora Pitt. Como se encontra?
—Bom dia, senhor March-disse ela engolindo em seco e dando um passo para
diante.
Vespasia podia imaginar o que estava recordando Charlotte, certamente o ridículo
episódio da cama. A julgar pela cor das faces do Eustace, o mais provável é que ele
também estivesse pensando no mesmo.
—Encontro—me muito bem, obrigado—acrescentouela—. E estou certa de que você
também. —Ao dizer aquilo, o mais seguro é que se estivesse recordando das janelas que
sempre tinha abertas em sua casa do Cardington Crescent, quando, por muito frias que
fossem as manhãs, o vento se metia no salão deixando—o a uma temperatura quase
insuportável e todo mundo, com a única exceção do Eustace, ficava a tiritar de frio ante o
café da manhã.
—Eu sempre, senhora Pitt—disse Eustace com energia—. Tenho essa sorte.
—Eustace me estava contando a sorte que teve ao ingressar em uma sociedade
excelente—disse Vespasia indicando ao Charlotte onde sentar-se.
—Ah… sim—disse Eustace—. Se dedica a obras de caridade e a influir na sociedade
para seu próprio bem.
—Felicidades—disse Charlotte com sinceridade—. Deve se sentir muito satisfeito. A
verdade é que, desgraçadamente, é preciso coisas assim.
—É verdade—disse ele voltando a sentar-se com cara de estar mais tranqüilo.
Agora voltava a tratar um tema que obviamente lhe enchia de satisfação—. É
verdade, senhora Pitt. É muito gratificante sentir que alguém pode unir-se a outros homens
de igual espírito e dedicação com o mesmo propósito e assim poder atuar com verdadeira
força.
—E como se chama esta sociedade? —quis saber Charlotte inocentemente.
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—Ah, querida amiga, receio que não posso dizer mais—disse sacudindo levemente a
cabeça enquanto esboçava um sorriso—. Nossos objetivos e propósitos são de domínio
público, mas a sociedade em si é anônima.
—Quer dizer que é secreta?—perguntou Charlotte abertamente.
—Bom—começou a dizer ele desconcertado ante aquela pergunta—. Não sei se é a
palavra mais adequada. Poderia dar uma idéia equivocada do que realmente é.
Em qualquer caso, é anônima. Ao fim e ao cabo, não é assim como Nosso Senhor
nos pediu que façamos o bem?—disse voltando a sorrir—. "Não deixe que sua mão direita
saiba o que faz a esquerda."
—E está seguro de que o Senhor se referia a uma sociedade secreta? — perguntou
Charlotte muito séria e olhando-o fixamente nos olhos.
Eustace lhe devolveu o olhar como se aquilo o tivesse incomodado. Ele já sabia que
Charlotte não se carcterizava precisamente por seu tato, mas depois de tanto tempo quase
o tinha esquecido.
Não era de boa educação pôr em evidencia a uma pessoa, e ela não desperdiçava
nunca a ocasião de fazê-lo. Poucas mulheres conhecia com aquela falta de luzes da qual
Charlotte costumava fazer demonstração.
—Eu prefiro a palavra "discreta"—sentenciou por fim—. Não vejo nada mau no fato
de que os homens colaborem uns com outros para ajudar aos mais necessitados. Em
realidade, eu diria que é uma causa muito nobre. Que eu saiba, o Senhor nunca elogiou a
incompetência, senhora Pitt.
Charlotte lhe deu um sorriso inesperado e inocente.
—Estou certa de que tem razão, senhor March. Esperar o reconhecimento público por
uma obra de caridade é despojá—la de qualquer sentido de virtude que possa ter.
Inclusive seria melhor que entre vocês só se conhecessem uns poucos, só os membros do
mesmo círculo. Deste modo seriam discretos por partida dupla, não?
—Círculo?—disse ele, empalidecendo por momentos, o qual supôs todo um contraste
tendo em conta quão curtido tinha o rosto, acostumado ao sol e ao vento.
—Não lhe parece apropriada a palavra?—perguntou Charlotte abrindo os olhos.
—Eu, bom...
—Não se preocupe—disse ela sacudindo a mão. Tampouco havia necessidade de
pressioná—lo mais. A resposta estava clara. Eustace tinha ingressado no Círculo Interior
em um gesto de inocência, inclusive de ingenuidade, como já tinham feito tantos outros
antes dele: Micah Drummond e Sir Arthur Desmond, por citar só a dois. Micah Drummond
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o tinha deixado e até agora seguia com vida. Arthur Desmond, em troca, não tinha tido
tanta sorte.
Charlotte dirigiu o olhar para a Vespasia.
Esta tinha o semblante grave e estendeu a mão ao Eustace sem levantar-se.
—Espero que sua ajuda Sirva para fazer o bem, Eustace—disse sem afetação—.
Obrigado por vir contar-nos. Quer esperar um pouco e ficar a almoçar? Charlotte e eu não
demoraremos para voltar.
—Obrigado, querida sogra, mas tenho outras visitas que fazer—respondeu
declinando o oferecimento, ao mesmo tempo que se levantava e lhe dava uma pequena
inclinação que depois repetiu com Charlotte—. Foi um prazer voltar a vê—la, senhora Pitt.
Que passem um bom dia—acrescentou, e sem mais, partiu da sala.
Charlotte olhou a Vespasia e nenhuma das duas quis dizer nada.
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Capítulo 3
A investigação judicial sobre a morte do Arthur Desmond tinha lugar em Londres, pois
era ali onde havia falecido.
Sentado em uma das tribunas da sala de julgamentos, Pitt tinha a triste certeza de
que outra das razões para que se celebrasse ali era que assim o Círculo Interior poderia
exercer um maior controle da vista.
Se tivesse se realizado no Brackley, onde conheciam e respeitavam ao finado e a sua
família desde há três séculos, a especial consideração que tivesse tido o caso talvez teria
superado inclusive ao poder do Círculo.
E nisso pensava sentado junto ao Matthew, que aquela manhã não tinha cara de ter
adormecido muito bem, esperando os dois que se iniciasse a vista entre um murmúrio de
vozes que pediam silêncio de forma antecipada. A sala estava cheia, e o público se ia
amontoando e empurrando para poder cruzar a soleira da estreita porta e atravessar
depois o corredor com arcos para poder acessar a sala principal.
O rumor se ia apagando à medida que a gente se sentava, de frente ao estrado e a
mesa onde um funcionário com uma toga negra devia tomar nota de tudo com uma pena
que já tinha preparada; do outro lado se achava a tribuna de testemunhas.
Pitt tinha uma estranha sensação de irrealidade. Estava muito nervoso para que a
cabeça, funcionasse-lhe com a clareza a que estava acostumado em ocasiões como
aquela. Já tinha perdido a conta da quantidade de vezes que tinha assistido.
Podia contar pelo menos quinze ou vinte homens com um semblante muito grave e
vestidos quase com roupa de luto e sentados um junto a outro esperando que os
chamassem para dar seu testemunho.
A maioria tinha um ar de segurança e confiança próprias de quem goza de uma boa
posição econômica e social. Pensou que talvez eram peritos profissionais de alguma
classe ou possivelmente membros do clube que tinham estado pressentes a tarde da
morte de Sir Arthur. Também havia um homem uns anos mais jovem e bastante nervoso
que não se vestia tão bem e que muito provavelmente era um dos garçons do clube que
lhe tinha servido o conhaque.
O juiz não oferecia um aspecto muito adequado para a função que representava.
Era difícil imaginar alguém mais corpulento e cheio de vitalidade. Era alto, com o
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cabelo de cor loiro avermelhado e um rosto corado e jovial.
—Vejamos—disse em tom animado assim que terminaram os preâmbulos—. Mau
assunto. Quanto o sinto. Agora tentemos esclarecer o antes possível com a maior
diligencia e prontidão. Diligência e prontidão; é o melhor para fazer mais suportável a pena.
Minhas condolências para a família—disse passeando o olhar pela sala até que viu o
Matthew.
Pitt se perguntou se já se conheciam ou se lhe bastava um simples golpe de vista
para reconhecer em seguida a aflição—.
—Começamos? Bem, bem. Escutemos a primeira testemunha deste terrível assunto.
Por favor, meirinho, mande—o chamar.
O meirinho chamou obedientemente ao garçom do clube, quem, tal como tinha
suposto Pitt, era o que levava a jaqueta menos cara e quem dava amostras de maior
inquietação. Parecia transbordado e com medo a cometer um engano e ao igual à roupa e
a voz, também seus gestos eram simples e tímidos.
Estava esmagado ante a majestosidade da lei, inclusive a aquele nível, e sobre tudo
tratando—se de um caso de morte. Subiu à tribuna de testemunhas com os olhos
arregalados e semblante pálido.
—Não tema nada, bom homem—lhe disse o juiz amavelmente—. Não há por que ter
medo. Você não fez nada de mau, não é? Verdade que não matou a pobre vítima?—
perguntou com um sorriso.
O garçom estava apavorado. Durante um breve instante de autêntico pânico, chegou
a pensar que o juiz falava a sério.
—Nãnão, não, senhoria!
—Bem—disse o juiz com satisfação—. Nesse caso tranqüilize-se, nos diga a verdade
e já verá como tudo vai bem. Nos diga como se chama e a que se dedica. O que tem que
dizer sobre o caso que nos ocupa? Fale!
—Chamo—me Horace Guyler, senhoria. Sou garçom no Morton Clube. Fui eu quem
achou ao pobre Sir Arthur. Quero dizer que todos já sabíamos onde estava, mas...
—Entendi—o perfeitamente—disse o juiz para animá—lo. Você descobriu o cadáver.
E não me chame "senhoria". Só sou um juiz de primeira instância. Dirija-se a mim dizendo
"senhor juiz" e será suficiente. Continue. Talvez deveria começar pela chegada de Sir
Arthur ao clube. A que hora foi isso? Quando o viu você? Que aspecto tinha? Como se
comportava? Responda uma a uma a cada pergunta.
Horace Guyler estava confuso. Já tinha esquecido a primeira pergunta, e é claro a
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segunda.
—A chegada de Sir Arthur—lhe recordou o juiz.
—Ah, sim, senhor juiz. Bom, chegou justo depois de comer, como às três e quinze ou
algo assim.
Naquele momento seu aspecto me pareceu perfeitamente normal, claro que agora
me dou conta de que por dentro devia sentir-se muito mal. Refiro—me a que certamente
estava muito deprimido.
—Deve nos dizer o que viu naquele momento, senhor Guyler, não o que agora pense.
Disse-lhe algo Sir Arthur? O que fez? Como se comportou? Você pode recordá—lo? Só
passaram cinco dias.
—Que eu recorde, senhor juiz, simplesmente me deu boa tarde, como sempre.
Era um cavalheiro muito atento comigo. Não como outros. E logo se dirigiu ao salão
verde, sentou-se e ficou a ler o jornal. Acredito que era o Time.
Produziu-se um ligeiro murmúrio de aprovação na sala.
—Pediu-lhe algo de beber, senhor Guyler?
—A princípio não, senhor juiz. Uma meia hora mais tarde me pediu uma taça grande
de conhaque. Do melhor Napoleão, disse—me.
—E você o serviu.
—OH, claro, senhor juiz, claro que o fiz —reconheceu Guyler com tristeza—. Claro
que então eu não sabia que estava deprimido e que não era ele mesmo. Sim me parecia
isso. Estava muito tranqüilo lendo o jornal e comentando em voz alta as notícias que não
gostava.
—Acredita que podia estar zangado ou deprimido por isso?
—Absolutamente —afirmou Guyler negando com a cabeça—. Só lia, assim como
outros muitos cavalheiros do clube. Preocupavam-lhe as notícias, claro, como bom
cavalheiro que era. Quero dizer que quanto mais importante é um cavalheiro, mais se
preocupa com as notícias que lê. Além disso, Sir Arthur teve um cargo no Foreign Office.
O juiz adquiriu um semblante circunspeto.
—Sobre algum tema em particular que você saiba?
—Não, não o conhecia tanto para poder sabê—lo. Além disso, tinha que servir a
outros cavalheiros.
—Claro. E diz você que só tomou um conhaque?
—Não, senhor juiz. Temo que tomou muitos mais. Não recordo exatamente quantos,
mas pelo menos seis ou sete. E algum deles era de meia garrafa. Mas eu não sabia que
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estava mau, se não, não os teria servido! —exclamou com remorsos, como se ele fosse o
responsável pelo acontecido, e embora não fosse mais que um empregado do clube, como
tal tampouco podia negar-se a servir o que um membro pedia.
—E você acha que Sir Arthur se comportou em todo momento como era habitual
nele?—perguntou o juiz franzindo o cenho.
—Sim, senhor juiz, pelo que a mim respeita sim.
—Ah. A que hora lhe serviu a última taça de conhaque? Recorda—o?
—Às seis e meia.
—Recorda—o você muito bem.
—Sim, senhor juiz. Um cavalheiro me pediu que avisasse a essa hora porque tinha
um jantar. Por isso me lembro.
A sala estava em completo silêncio.
—E quando voltou a ver Sir Arthur?
—Bom, como ia e vinha servindo e fazendo recados, passei várias vezes junto a ele,
mas quase nem me chamou a atenção porque parecia adormecido. Não sabe como
lamento não ter feito nada por ele então—disse sentindo—o muito, sem atrever-se a
levantar o olhar e ruborizado pela vergonha.
—Você não é o responsável pelo acontecido—disse o juiz com amabilidade, mas com
o semblante grave—. Embora você se deu conta de que não estava bem e teria chamado
a um médico, certamente ninguém teria podido fazer já nada por ele.
Nesse momento se ouviu um murmúrio generalizado na sala. Junto ao Pitt, Matthew
se revolveu em seu assento.
—Era um homem muito bom—disse o garçom com tristeza e olhando ao juiz com um
brilho de esperança.
—Estou certo disso —comentou o juiz, sem querer aprofundar nessa questão.
— A que hora foi falar com ele e se deu conta de que estava morto?
Guyler respirou fundo.
—Bom, primeiro passei a seu lado e, como já hei dito, pensei que estava dormindo.
Às vezes os cavalheiros bebem muito conhaque em uma tarde e ficam adormecidos e
depois custa um pouco despertá—los.
—Estou certo disso, mas que hora era, senhor Guyler?
-seria às sete e meia. Pensei que se queria jantar, o melhor era lhe reservar uma
mesa.
—E o que fez então?
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Durante o quarto de hora que levava, ninguém se tinha movido e os ruídos tinham
sido apenas perceptíveis, o chiado dos bancos ao trocar de postura ou o ranger das saias
das duas ou três mulheres que se achavam ali. O que agora se ouvia era um suspiro
generalizado.
-disse-lhe algo e não me respondeu—replicou Guyler, com o olhar fixo à frente e
sabendo que todo mundo estava olhando-o. O funcionário do tribunal seguia apontando ao
detalhe tudo o que dizia—. Assim voltei a lhe falar, mais alto, e seguia sem mover-se. Foi
então quando me dei conta de que...—disse tomando fôlego e suspirando depois.
E começou a ficar muito nervoso ante a lembrança daquela morte. Tinha medo.
Aquilo não era algo que alguém esperasse achar em uma situação normal.
O juiz esperava pacientemente. O que Guyler sentia o tinha visto já em centenas de
rostos como a seu.
Pitt continuava olhando com uma sensação de estar alheio a tudo e começou a
sentir-se angustiado e só, como se lhe tivessem arrancado de repente do lugar onde toda
sua vida se sentira seguro.
Era do Arthur Desmond de quem estavam falando com aquela frieza. Era absurdo
pensar que em algo podia lhes importar, que pudessem falar dele com a voz entrecortada
ou emocionada pelo carinho que sentiam, como de fato estava sentindo ele.
Pitt não se atreveu a olhar ao Matthew. Queria que aquilo acabasse quanto antes,
sair a caminhar tão depressa quanto pudesse com a chuva e o vento lhe dando no rosto,
seguro de sentir-se mais acompanhado assim em meio de toda aquela gente.
Mas tinha que ficar. O dever e a compaixão obrigavam a isso.
—Ao final, decidi despertá—lo—continuou Guyler levantando o queixo—. Com
suavidade. Tinha má cara e não o ouvia respirar. Os cavalheiros que ficam adormecidos
depois de tomar muito conhaque geralmente têm uma respiração muito forte.
—Quer dizer que roncam?
—Pois… sim, senhor juiz.
Ouviram-se umas tímidas risadas entre o público que em seguida cessaram.
—Por que não começa com o que de verdade importa? —exclamou Matthew
indignado.
—Já o fará—respondeu Pitt em voz baixa.
—Foi então que me dei conta de que algo ia mal—prosseguiu Guyler, olhando
fixamente à sala, e não por vaidade a não ser para recordar-se a si mesmo onde estava e
para que se dispersassem as imagens da sala do clube e do que ali lhe tinha acontecido.
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—Do que estava doente ou morto? —quis saber o juiz.
—Sim, senhor juiz. Fui procurar ao diretor e ele chamou o médico.
—Obrigado, senhor Guyler. Isso é tudo. Obrigado por sua declaração.
Guyler partiu aliviado e o diretor do clube ocupou em seu lugar a tribuna de
testemunhas. Era um homem grande e corpulento com um rosto simpático e um olho
desviado muito desconcertante, porque era impossível saber se estava olhando alguém ou
não.
Declarou ter sido chamado pelo garçom e que quando viu Sir Arthur, efetivamente já
estava morto. Logo mandou chamar o mesmo médico que sempre vinha quando algum
cavalheiro se achava indisposto, o qual, desgraçadamente, acontecia de vez em quando.
A idade média dos sócios era de pelo menos cinqüenta e cinco anos, mas muitos
deles eram muito mais idosos. O médico confirmou o falecimento sem duvidar.
O juiz lhe agradeceu por sua declaração e o deixou partir.
—É inútil!—disse Matthew entre dentes. inclinou-se para frente e pôs a cabeça entre
as mãos—. Tudo isto não serve de nada! Vai ficar impune, Thomas! Morte por overdose
acidental de um velho que não sabia o que fazia nem o que dizia!
—E o que esperava disto? Algo diferente?—perguntou-lhe Thomas com toda a
tranqüilidade de que era capaz.
—Não—respondeu Matthew em tom de derrota.
Pitt sabia que aquilo ia fazê-lo sofrer , mas não estava preparado para a dor que lhe
produzia ver a angústia do Matthew. Queria consolá—lo e não sabia como.
A seguinte testemunha foi o médico, um homem fleumático e expedito. Talvez fosse
sua maneira de enfrentar casos como aquele de comoção com resultado de morte.
Pitt viu a cara de desagrado que punha Matthew, quem se estava deixando levar
pelos sentimentos, mas não era o momento de tentar explicar-lhe algo tão irrelevante. Não
tinha nada que ver com o que estava sentindo.
O juiz agradeceu ao médico sua colaboração e o despediu para que entrasse em seu
lugar o primeiro dos sócios do clube que tinham estado naquela sala à tarde da morte de
Sir Arthur. tratava-se de um homem de idade considerável, com umas enormes costeletas
brancas e uma generosa e reluzente calva.
—General Anstruther—disse o juiz com a maior seriedade—. Seria amável de nos
contar o que viu exatamente e, se o estimar necessário, poderia nos dar detalhes que
conheça sobre a saúde física e mental de Sir Arthur?
Matthew levantou a vista com expressão de desafio. O juiz o olhou por um instante e
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o rosto do Matthew se contraiu, mas seguiu calado.
O general Anstruther limpou a garganta ruidosamente e começou a falar.
—Bom menino, Arthur Desmond. Sempre o pensei. Estava se fazendo velho, como
todos nós, claro. Começava a esquecer-se das coisas. Mas é normal.
—Naquela tarde, general—lhe insistiu o juiz—. Como qualificaria você seu
comportamento? Lhe via talvez...?—começou a dizer sem achar a palavra— … distraído?
—Né... —Anstruther hesitou e parecia muito incômodo.
Matthew estava rígido, com os olhos cravados no rosto do Anstruther.
—Realmente é necessário tudo isto? —quis saber o general olhando ao juiz com total
reprovação—. Maldita seja! Está morto! Que mais terá que saber? Lhe enterremos e
guardemos uma boa lembrança dele. Era um bom homem.
—Ninguém o duvida, general—disse o juiz com calma—. Mas não estamos falando
disso. O que queremos é averiguar como morreu exatamente. É o que a lei nos pede. As
circunstâncias que rodeiam sua morte não são habituais e o Morton Clube deseja limpar
qualquer dúvida sobre uma possível imprudência ou negligência.
—Por Deus bendito! —exclamou Anstruther indignado—. A quem ocorreu semelhante
tolice? O pobre Desmond não estava bem e só estava um pouco ofuscado. Tomou muito
láudano com o conhaque. Foi um simples acidente. Não há mais que dizer.
Matthew se levantou bruscamente.
—Não estava ofuscado!—disse em voz alta.
Todo mundo o olhou com expressão de surpresa e certa vergonha alheia. Manifestar
esse tipo de emoções em público não era bem visto, e menos em um lugar como aquele.
—Todos compreendemos sua inquietação, Sir Matthew—disse o juiz—. Mas lhe rogo
que se contenha um pouco. Não permitirei nenhuma afirmação que não tenha a devida
justificação nesta sala—sentenciou, e voltando para a testemunha, disse—: E agora,
general Anstruther, nos diga por que razão afirma que Sir Arthur estava ofuscado. Rogolhe que seja o mais concreto possível.
Anstruther franziu os lábios visivelmente aborrecido. Não gostava nada de responder
à pergunta. Dirigiu o olhar ao banco que tinha ante ele e disse:
—Sir Arthur... né... se esquecia do que dizia—respondeu—. Repetia as coisas a si
mesmo, sabe? confundia-se com tudo e dizia coisas absurdas sobre a África. Acredito que
não compreendia muito bem o que lhe dizíamos.
Matthew voltou a levantar-se antes de que Pitt pudesse impedi—lo.
—Diz isso, porque não estava de acordo com você! —exclamou desafiante.
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—Sir Matthew! —advertiu-lhe o juiz—. Não vou permitir mais interrupções. Todos
compreendemos a dor que sente, mas nossa paciência tem um limite.
Esta investigação vai levar se a cabo com a ordem e a correção devidos, respeitando
a verdade e a dignidade que o caso merece. Tenho certeza de que você será o primeiro
interessado em que assim seja.
Matthew fez gesto de dizer algo, possivelmente para pedir desculpas, mas o juiz
ergueu a mão para indicar que calasse.
Matthew voltou a sentar-se para maior alívio do Pitt.
—General, rogo-lhe que seja tão amável de nos explicar exatamente a que se
refere—disse o juiz dirigindo-se ao Anstruther—. É certo que Sir Arthur e você não
estavam de acordo em alguns assuntos? O que lhe faz chegar à conclusão de que seu
raciocínio mental era confuso?
As faces do Anstruther se ruborizaram, e o contraste com as costeletas brancas se
fez ainda maior.
—Dizia coisas absurdas sobre conspirações secretas encaminhadas à conquista da
Equatoria ou algo assim—disse voltando a olhar à frente e logo retirando a vista—. Fazia
umas acusações absolutamente desatinadas.
O pobre se contradizia cada vez que falava. É terrível, começar a perder o sentido
de... Deus sabe, de todas suas convicções, ali onde a gente depositou sua confiança e sua
decência, o que o faz estar entre os seus e onde radicam os valores nos que alguém
acreditou toda sua vida.
—Quer dizer você que Sir Arthur tinha mudado de forma substancial com respeito à
pessoa que era até fazia pouco tempo?
—Rogo-lhe que não me obrigue a dizê—lo! —insistiu Anstruther indignado—.
Enterremo—lo em paz, e com ele, também suas últimas desgraças. Esqueçamos este
disparate e recordemo—lo como era faz mais ou menos um ano.
Matthew soltou um gemido tão alto que não só o ouviu Pitt, mas também o homem
que estava sentado junto a este. O homem lhe dirigiu um olhar de recriminação, ruborizouse ante a inconveniência daquele desafogo e logo olhou a outro lado.
—Obrigado, general—disse o juiz com tranqüilidade—. Acredito que já nos disse o
suficiente para que façamos uma idéia. Pode retirar-se.
Anstruther tirou um lenço branco, soou-se o nariz com violência e abandonou a
tribuna sem olhar a ninguém.
O seguinte era o honorável William Osbome, quem afirmou muitas das coisas que
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havia dito Anstruther, acrescentando só um ou dois exemplos do comportamento estranho
e irracional do Arthur Desmond, mas sem mencionar a África.
Era um homem mais tranqüilo e sereno, e embora utilizasse palavras que
expressavam certo pesar, em sua maneira de falar não havia o menor indício de
sentimentos, salvo o de uma ligeira impaciência.
Matthew o olhava de forma implacável e com profundo desagrado, cada vez mais
perplexo em sua própria dor. Era mais que possível que tanto Anstruther como Osbome
fossem membros do Círculo Interior. Em seu foro interno, Pitt resistia a reconhecê-lo, mas
também era possível que Arthur Desmond se expressasse de forma algo irracional e que
suas opiniões obedecessem mais à paixão que à comprovação dos fatos.
Sempre tinha sido muito individualista, inclusive algo excêntrico. Era possível que
com a idade se foi afastando cada vez mais da realidade.
A seguir subiu à tribuna outro membro do clube, um homem magro e de pele cítrica;
tinha além disso um relógio de ouro com o que seus dedos brincavam sem cessar, como
se aquilo lhe proporcionasse algum alívio.
O homem repetiu exatamente o que já havia dito Osbome, recorrendo de vez em
quando às mesmas expressões para descrever o que segundo ele não podia ser outra
coisa que a perda paulatina de suas faculdades para pensar e raciocinar.
O juiz escutou a declaração sem interrompê—lo e logo decidiu postergar a vista até
depois do almoço. Tinha começado às dez e já eram mais de doze.
Pitt e Matthew saíram juntos a brilhante luz do dia. Matthew caminhou um momento
em silêncio, imerso em seus próprios pensamentos. Um homem lhe deu um empurrão ao
passar a seu lado e ele não se deu conta.
—Suponho que não podia esperar outra coisa—disse por fim ao dobrar a esquina, e
se dispunha a seguir caminhando quando Pitt o pegou pelo braço—. O que acontece?—
perguntou.
—Vamos aí em frente—respondeu Pitt lhe assinalando um pôster onde se anunciava
uma taverna, a do Bull Inn.
—Não tenho fome—replicou Matthew com impaciência.
—Tem que comer algo—lhe ordenou Pitt enquanto descia da calçada procurando
evitar uns excrementos de cavalo. Matthew os pisou distraídamente e soltou um
xingamento.
Em outras circunstâncias, Pitt teria soltado uma gargalhada ao ver o rosto do
Matthew, mas sabia que não era o melhor momento para fazê-lo. Os dois cruzaram a rua e
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Matthew começou a limpar o sapato contra o meio—fio com cara de poucos amigos.
—Mas já ninguém limpa a rua? —exclamou—. Não posso entrar assim.
—Sim pode. Já verá como há um limpador de barro na porta. Vamos.
Matthew seguiu ao Pitt a contra gosto até a entrada e ali se serviu de um raspador de
ferro para limpar meticulosamente a bota, como se aquilo fosse da máxima importância,
depois do que entraram na taverna.
Pitt pediu pelos dois e tomaram assento entre a multidão. As jarras reluziam
penduradas sobre o balcão e a madeira tinha um brilho escuro, havia serragem no chão e
tudo cheirava a uma mescla de cerveja, calor e suor.
—E agora o que vamos fazer?—disse Matthew quando já lhes tinham servido os
pratos: pão rangente, manteiga, queijo em miolos, embutidos e cidra fresca.
Pitt fez um sanduíche com tudo e começou a comê—lo.
—De verdade pensou em algum momento que podemos conseguir algo? —
prosseguiu Matthew sem tocar o prato—. Ou só tenta me tranqüilizar?
—É claro que o pensei de verdade—respondeu Pitt. Ele também estava zangado e
angustiado, mas sabia muito bem quão importante era economizar esforços se tinham que
lutar—. Mas não poderemos demonstrar que mentem até que não saibamos o que
disseram.
—E depois?—perguntou Matthew em tom de incredulidade.
—Depois faremos tudo o que possamos—sentenciou Pitt.
Matthew sorriu.
—Você sempre tão literal e tão exato em tudo. Não mudou, não é, Thomas?
Pitt pensou em desculpar-se, mas logo se deu conta de que não valia a pena.
Pareceu que Matthew estava a ponto de lhe perguntar algo mais, mas decidiu não
fazê-lo, começou a comer o sanduíche com um apetite surpreendente e seguiu calado até
que chegou o momento de partir.
A primeira testemunha da tarde foi o médico legista, que fez sua declaração com toda
sorte de detalhes, mas como já tinha muita experiência naquela ingrata tarefa, evitou os
termos científicos. Era tudo muito simples: Arthur Desmond tinha morrido por uma
overdose de láudano administrado na hora anterior ao falecimento.
Era uma quantidade bastante grande para ter matado a qualquer um, mas também
tinha conhaque no estômago, o qual talvez contribuiu a dissimular o sabor. Em sua
opinião, o láudano era muito forte para não haver-se notado com o conhaque, que, por
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outro lado, parecia excelente, embora isso fosse questão de gosto.
—Encontrou algum outro sintoma de enfermidade ou deterioração física ?—
perguntou o juiz.
O médico legista pôs uma expressão longa.
—Naturalmente que havia sintomas de deterioração. Era um homem de setenta anos!
Mas além disso, gozava de uma saúde excelente. Tomara me encontrasse como ele ao
chegar a essa idade. Mas não havia indícios de nenhuma enfermidade.
—Obrigado, doutor, isso é tudo.
O médico soltou um tímido grunhido e abandonou a tribuna de testemunhas.
Pitt teria jurado que não era membro do Círculo Interior, mas tampouco sabia muito
bem do que ia poder lhe servir aquilo.
A seguinte testemunha foi também um médico, mas era um homem completamente
diferente do anterior. Este se mostrava sério, atento e amável, embora também se via
consciente de sua própria importância. Deu seu nome e título e começou a responder às
perguntas sobre o assunto que se tratava.
—Doutor Murray—começou o juiz—, tenho entendido que era o médico de Sir Arthur,
é correto?
—É.
—Só durante uns anos.
—Os últimos quatorze anos, senhor juiz.
—Então conhecia muito bem seu estado de saúde, tanto físico como mental, não é
certo?
Junto ao Pitt, Matthew estava inclinado para frente, com as mãos fortemente
apertadas e o rosto tenso. Pitt também se notou ansioso por ouvir o que ia dizer.
—Naturalmente—disse Murray—. Embora deva confessar que não tinha nem idéia de
que sua deterioração tinha chegado tão longe, do contrário não lhe receitaria láudano.
Refiro—me, claro está, à deterioração de seu estado de ânimo.
—Talvez poderia explicar-se um pouco, doutor Murray. A que se refere exatamente?
Estava Sir Arthur deprimido, ou preocupado por algum assunto, ou possivelmente padecia
de ansiedade?
Fez-se um silêncio total na sala. Os jornalistas esperavam pacientemente com os
lápis na mão.
—Sim, mas não como você dá a entender, senhor juiz—respondeu Murray com total
segurança em si mesmo—. Tinha maus sonhos, ou pesadelos, se assim o preferir. Pelo
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menos isso me disse quando veio ver—me. Eram sonhos horríveis, mas não sei se me
entende.
Não refiro às imagens desagradáveis que todos sofremos depois de uma comida
excessiva ou de uma má experiência—disse trocando ligeiramente de postura—. Via—o
cada vez mais desorientado e começava a ter graves suspeitas das pessoas em quem
tinha confiado toda a vida.
Devo reconhecer, melhor dizendo, dou por sentado que sofria de demência senil.
Desgraçadamente, é algo que pode acontecer inclusive às pessoas de mais valia.
—É triste, sim—disse o juiz com gravidade.
Matthew não pôde resistir mais e se levantou com todo o ímpeto de que foi capaz.
—Isso é uma absoluta tolice! Achava-se tão lúcido e em plenitude de faculdades
mentais como qualquer outro!
Uma careta de raiva escureceu o rosto do Murray. Não estava acostumado a que o
contradissessem.
O juiz começou a falar com toda a paciência que pôde, mas com uma seriedade que
pareceu encher a sala inteira e todo mundo se virou para olhar ao Matthew.
—Sir Matthew, todos compreendemos a dor que sente e a lógica angustia que
padece pela perda de seu pai, sobretudo tendo em conta as circunstâncias em que esta se
produziu, mas não vou permitir mais interrupções.
E agora, me deixe, por favor, que pergunte ao doutor Murray sobre sua opinião a
respeito. —E dirigindo-se outra vez ao Murray, perguntou-lhe—: Pode nos dar algum
exemplo que ilustre esse estranho comportamento, doutor? Se tão pouco sabia você de
seu estado, surpreende—me que lhe receitasse láudano em quantidade suficiente para
que se desencadeasse o fatal fato que nos trouxe aqui.
Murray não mostrava o menor sinal de arrependimento, e muito menos de culpa.
Assim como Osbome, não fazia mais que desculpar-se, mas, a diferença daquele, seu
rosto permanecia imperturbável, sem fresta algum de dor nem de ironia.
—É algo que lamento profundamente, senhor juiz—disse tranqüilamente e sem
atrever-se a olhar ao Matthew—. Não é fácil fazer públicas as debilidades de um bom
homem, e menos quando têm que ver com as causas de sua morte
Mas sou consciente do dever que me exige e dos motivos que tem para querer saber
tudo. Como já disse, desconhecia seu estado real no momento de lhe receitar o láudano,
de outro modo, como bem diz, jamais o teria feito.
Murray esboçou um tímido sorriso e um dos espectadores que tinha diante assentiu
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com a cabeça.
—Sir Arthur me falou de seus pesadelos e do muito que lhe custava dormir —
continuou Murray—. Sonhava com animais selvagens, selvas, canibais e demais coisas
aterradoras. Parecia sofrer um pânico interior para esse tipo de coisas.
Mas eu então não conhecia sua obsessão pela África—disse sacudindo a cabeça—.
Lhe receitei láudano com o convencimento de que lhe ajudaria a dormir melhor e de que
esses pensamentos deixariam de perturbá—lo tanto. Só depois soube por um de seus
amigos até que ponto ficara sem sua capacidade de raciocínio.
— Mente!—disse Matthew entre dentes e sem olhar ao Pitt, por muito que aquela
expressão fosse dirigida a ele—. Esse porco está mentindo para proteger-se! —E nesse
momento o juiz pareceu ouvi—lo, de modo que Matthew virou rapidamente o corpo em
sinal de desculpa.
—Sim, eu também acredito—respondeu Pitt em voz baixa—. Mas procura estar
calado. Aqui não vai demonstrar nada.
—Mas se o assassinaram! Olha—os! Aí todos juntos, dispostos a manchar seu nome
e a tentar que todo mundo acredite que era um velho senil que tinha perdido de tal maneira
o juízo que se matou por acidente—disse Matthew com um ressentimento que o
transbordava.
O homem que estava sentado ao outro lado parecia incômodo. Pitt pensou que já
teria trocado de lugar se não fosse porque teria chamado muito a atenção.
—Não vai conseguir nada enfrentando a eles cara a cara—disse Pitt muito zangado
e, de repente, com um calafrio no estômago sentiu que eram vítimas de um novo temor:
em realidade não havia forma humana de saber quem estava comprometido, em quem
podiam confiar e em quem não—. Reserva suas forças!
—O que? —exclamou Matthew voltando-se para ele com expressão de estar alheio a
tudo. E por fim compreendeu o que lhe tentava dizer Pitt—. OH, claro. Sinto muito.
Suponho que isso é precisamente o que esperam que faça, não é? Me zangar tanto que
logo seja incapaz de pensar.
—Sim —soltou Pitt contundentemente.
Matthew voltou a sumir-se em seus próprios pensamentos.
O doutor Murray tinha abandonado a tribuna de testemunhas e em seu lugar estava
agora um homem chamado Danforth, vizinho de Sir Arthur.
Naquele momento estava afirmando não sem certa tristeza que efetivamente tinha
notado a Sir Arthur muito distraído e muito diferente de como ele era. Sim, por desgraça
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parecia ter perdido a consciência real das coisas.
—Poderia ser um pouco mais concreto? —rogou-lhe o juiz.
Danforth o olhou diretamente, procurando evitar deliberadamente os bancos do
público e assim não encontrar-se com o olhar do Matthew.
—Bom, lembro por exemplo algo que aconteceu faz uns três meses—respondeu com
tranqüilidade—. A melhor cadela de Sir Arthur teve cachorrinhos e me prometeu que
poderia escolher os que eu quisesse da isca de peixe.
Fui vê-los e me pareceram uns animais magníficos, de modo que escolhi duas com
sua permissão.
—Danforth desceu o olhar e mordeu o lábio como duvidando de algo antes de
continuar—. Nos demos a mão em sinal de mútuo acordo. Quando chegou o momento de
desmamá—los, fui a sua casa a recolhê—los, mas Sir Arthur foi a Londres para algum
recado. Deixei dito que voltaria a semana seguinte, e assim o fiz, mas de novo se foi não
sei aonde, e se por acaso fora pouco já lhe tinha vendido todos os cachorrinhos à
comandante Bridges no Highfield.
A verdade é que isso me incomodou muito—disse franzindo o cenho e olhando ao
juiz. ouviu-se um ligeiro ruído na sala, como se alguém estivesse trocando de posição.
—Quando por fim retornou Sir Arthur, quis discutir com ele sobre o assunto. — Ainda
notava—o muito ressentido na voz e no gesto que fez com os ombros ao agarrar-se com
ambas as mãos ao estrado—. Me havia encantado dos cachorrinhos—seguiu dizendo—.
Mas Arthur parecia completamente ido e afirmou que me tinha ouvido dizer que eu já não
os queria, o que é exatamente o contrário do que pretendia.
E logo começou a dizer um montão de disparates sobre a África—disse sacudindo a
cabeça e fazendo uma careta com os lábios—.
O pior é que ele acreditava mesmo no que dizia. Muito temo que tinha isso que eu
chamo uma obsessão. Segundo ele, havia uma sociedade secreta que o estava
perseguindo. A verdade, senhor juiz, eu... tudo isto é muito embaraçoso para mim.
Danforth se moveu com desconforto e limpou a garganta. Frente a ele, dois ou três
homens assentiam com a cabeça mostrando-se de acordo com o dito.
—Arthur Desmond era uma boa pessoa—disse Danforth em voz alta—. É realmente
necessário que pincemos neste desgraçado assunto? O pobre tomou duas vezes por
acidente o remédio que lhe tinham receitado para dormir e quase me atrevo a dizer que
seu coração não era tão forte como ele achava. Podemos acabar com isto de uma vez?
O juiz hesitou só um momento e finalmente se mostrou de acordo com ele.
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—Sim, senhor Danforth, acredito que podemos. Obrigado por seu testemunho em um
caso que não deve ter sido nada fácil para você —e acrescentou olhando para a sala
enquanto Danforth abandonava o estrado—: Há mais testemunhas? Alguém quer
acrescentar algo mais que considere importante para o caso?
Um homem baixo e rechonchudo se levantou da primeira fileira do público.
-senhor juiz, se for amável, meus colegas e eu queríamos ajudar a limpar qualquer
possível duvida sobre este trágico assunto—disse assinalando aos homens que se
sentavam a ambos os lados dele—. Todos os que nos sentamos nesta primeira fila
estivemos no Morton Clube à tarde em que morreu Sir Arthur.
Queríamos confirmar tudo o que disse o garçom e também o resto de testemunhos
que hoje escutamos, e queríamos aproveitar esta oportunidade para expressar nossos
mais sinceros pêsames a Sir Matthew Desmond—disse dirigindo o olhar para o banco
onde Matthew se sentava curvado para frente e com o rosto pálido—.
Pêsames que fazemos extensivo a todo aquele que tivesse em grande estima a Sir
Arthur, igual a nós. Obrigado, senhor juiz —concluiu tomando assento entre murmúrios de
aprovação. que se sentava a sua direita tocou o ombro em um gesto de apoio e o da
esquerda assentiu energicamente com a cabeça.
—Muito bem—disse o juiz cruzando as mãos—. Escutei suficientes declarações para
ditar meu veredicto, desventurado talvez, mas sem o menor indício de dúvida.
Este tribunal sustenta que Sir Arthur Desmond morreu como conseqüência de uma
overdose de láudano que ele mesmo se administrou em um momento de ofuscação.
Talvez tomou o láudano por engano em lugar de uns pós para a dor de cabeça ou de
qualquer remédio contra a indigestão. Mas isso nunca saberemos. Este tribunal dita morte
por acidente—sentenciou olhando ao Matthew fixamente, como se lhe estivesse advertindo
de algo.
De repente, a sala começou a transbordar de agitação. Os jornalistas se lançaram à
corrida para sair dali entre o bulício do público, que não deixava de fazer comentários e
especulações.
O rosto do Matthew tinha adquirido um tom cinzento e tinha os lábios abertos, como a
ponto de dizer algo.
—Calma! —murmurou Pitt energicamente.
—Não foi um acidente! —exclamou Matthew entre dentes—. Foi um assassinato a
sangue frio! Não irá acreditar nisso?
—Eu não! Mas com as provas que há, podemos nos considerar afortunados de que
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não tenham conseguido um veredicto de suicídio.
Os últimos sinais de cor desapareceram do rosto do Matthew e se voltou para o Pitt.
Ambos sabiam o que significava o suicídio: não se tratava unicamente de uma desonra,
mas sim de um delito contra a Igreja e o estado.
Não teria tido direito a um enterro cristão e lhe teriam considerado um criminoso.
O juiz suspendeu a vista e as pessoas se levantaram e começaram a sair pouco a
pouco para o sol do exterior sem deixar de falar, cada qual com suas dúvidas, suas teorias
e suas explicações.
Matthew caminhava junto ao Pitt entre o pó da rua e ainda passaram vários minutos
até que voltou a falar. Fez—o com a voz rouca, quase paralisado pela dor e confusão que
o consumiam.
—Jamais me havia sentido assim. Custa—me trabalho acreditar que sou capaz de
odiar a alguém desta maneira.
Pitt não disse nada. Nem sequer confiava em suas próprias emoções.
Vespasia dedicou à tarde ao que em outra época tinha sido uma ocupação muito
habitual, mas que agora só praticava muito de vez em quando. Às três menos cinco
mandou preparar sua carruagem e apareceu com um vestido de renda de cor crua e um
chapéu à última moda com a aba subida e toucado com um motivo floral.
E assim, com uma sombrinha com cabo de marfim, desceu as escadas da entrada
principal e a ajudaram a subir à carruagem.
Ordenou ao cocheiro que a levasse primeiro a casa de lady Brabazon, em Park Lane,
onde devia permanecer o tempo exato de quinze minutos, nenhum mais nenhum menos, já
que isso era o que devia durar uma visita vespertina. Menos tempo se teria considerado
uma descortesia, e mais significava um abuso de confiança. Era mais importante saber
quando partir que quando chegar.
Mais tarde mandou que a levassem a casa de lady Kitchener, no Grosvenor Square,
aonde chegou pouco antes das três e meia, ainda dentro da margem permitida para as
visitas cerimoniosas.
Entre quatro e cinco se dedicou às menos formais, e de cinco a seis às que podiam
considerar-se de amizade. Vespasia seguia a estrita observância das convenções. Havia
regras sociais que podiam desobedecer-se, mas também estavam as que eram ineludíveis
e obrigatórias.
O tempo estabelecido para as visitas vespertinas entrava dentro destas últimas.
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O que Vespasia queria era chegar a saber um pouco mais sobre diferentes altos
cargos do Ministério de Colônias do ponto de vista social. Para isso era necessário que
voltasse a fazer a ronda de visitas, já que só assim podia inteirar-se das intrigas
adequadas.
Da casa de lady Kitchener se dirigiu ao norte para o Portman Square, e logo até o
George Street, onde vivia Dolly Wentworth, e ali entregou seu cartão de visita e
imediatamente a convidaram a entrar.
Eram já passadas as quatro, a hora em que devia oferecer o chá a um convidado, de
modo que as visitas podiam durar então algo mais que os preceptivos quinze minutos.
—Que gentileza de sua parte ter vindo para ver—me, Lady Cumming—Gould—disse
a
senhora
Wentworth
com
um
sorriso.
Achavam-se
ali
outras
duas
damas
convenientemente sentadas na beira de suas cadeiras, com as costas bem retas e as
sombrinhas depositadas ao lado. Uma era idosa, com um nariz elegante e gestos
arrogantes.
A outra era pelo menos vinte e cinco anos mais jovem, e pela semelhança da testa e
a cor do cabelo, supôs que eram mãe e filha. Dolly Wentworth tinha um filho ainda por
casar. Vespasia tirou suas próprias conclusões assim que as viu ali e não demorou para
comprovar que tinha razão.
Apresentaram—nas como a honorável senhora Reginald Saxby e a senhorita Violet
Saxby.
A senhora Saxby se levantou em seguida. Era costume que alguém partisse assim
que chegasse outra visita e não se considerava uma descortesia. Violet Saxby a seguiu
visivelmente contrariada.
—Que pena que George tenha tido que ir ao clube—disse a senhora Saxby algo
crítica.
—Estou segura de que se sentirá muito mal quando souber que vieram — murmurou
Dolly—. Às vezes me pergunto o que têm que fazer os homens em seus clubes para que
vão tão freqüentemente. Acredito que há muitos que passam as tardes inteiras ali, e se
não se vão às corridas, ou ao criquet ou a qualquer outra coisa.
—Eu nem sequer sei por que têm seus clubes—disse Violet em tom petulante—. Há
centenas de clubes para homens e apenas meia dúzia para mulheres.
—Isso tem uma explicação muito clara—lhe respondeu sua mãe—. Os homens
necessitam de seus clubes para reunir-se e dizer tolices sobre política, esporte ou coisas
assim, e de vez em quando se contam intrigas ou fazem negócios. É ali onde levam
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principalmente sua vida social.
—E as mulheres por que não? —insistiu Violet.
—Não seja absurda, menina. As mulheres já têm as salas de estar para essas coisas.
—Então, por que existem alguns clubes para mulheres?
—São só para as mulheres que não têm salas de estar, claro—respondeu a senhora
Saxby com impaciência.
—Pois não conheço nenhuma dama digna deste nome que não tenha sua própria
sala de estar.
—É claro que não. Uma dama que não disponha de uma sala de estar própria não é
adequada para a vida em sociedade e, portanto, é como se não existisse — replicou a
senhora Saxby.
E dito isto, parece que a senhorita Saxby se deu por satisfeita.
—OH, querida—lhe disse Dolly quando partiram—. Isto de ser solteiro se está
convertendo em um suplício para o pobre George—sentenciou sem que fosse necessário
dar mais explicações.
—Suponho que o verdadeiro suplício está em que seja tão bom partido—disse
Vespasia sorrindo.
—Tem você toda a razão do mundo, querida. Mas por favor, sente-se—disse Dolly
com um leve gesto da mão que servia para indicar uma das cadeiras de cor azul clara—. A
verdade é que faz séculos que não a vejo em nenhuma das reuniões onde ainda é
possível manter uma conversa sensata.
—Isso é porque já não existam—respondeu Vespasia aceitando o convite a
conversar com ela—. Embora o outro dia desfrutei na recepção da Duquesa do
Marlborough. Vi—a ao longe, claro que nestas ocasiões o mais difícil é encontrar-se, se
não for por acaso.
Conheci Susannah Chancellor. Que mulher tão interessante!
Não sei por que recordou ao Beatrice Darnay. Não será da família dos Darnay do
Worcestershire, não é?
—Não! Absolutamente. Desconheço de onde procede sua família, mas sei que seu
pai era William Dowling, do Coutts Bank.
—Ah. Acredito que não o conheço.
—Nem o conhecerá, querida. Faz vários anos que morreu. Deixou uma fortuna mais
que considerável e soube que Susannah e Maude a herdaram toda a partes iguais.
Não tinha filhos varões. Maude morreu, pobrezinha, e seu marido herdou sua parte
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junto com a principal participação no banco da família. Francis Standish. Conhece—o?
—Acredito que sim—respondeu Vespasia—. Um homem de aspecto muito diferente,
se não recordo mau. Com o cabelo muito fino.
—O próprio. Dirige os negócios do banco. Tem essa aula de poder que sempre dá
aos homens um ar de segurança em si mesmos, o qual não deixa de ser atraente—disse
procurando uma postura mais cômoda na cadeira—. Claro que sua mãe estava
aparentada com os Salisbury, mas não recordo como.
—E também conheci uma mulher de aspecto muito pouco freqüente chamada
Christabel Thorne—seguiu dizendo Vespasia.
—Ah, querida! —exclamou Dolly rindo—. Acredito que pertence a essa corrente da
"nova mulher". Um disparate, é claro, mas não deixa de ter sua graça. É algo que não
passo. Como vou fazê-lo? Como vai fazer alguém com dois dedos de testa? É algo
aterrador.
—É certo isso? —quis saber Vespasia—. Está segura?
Dolly ergueu as sobrancelhas.
—Você não? Se as mulheres começarem a abandonar a família e o lar para realizarse sós em algo completamente diferente, já me dirá você o que vai ser da sociedade. Uma
mulher não pode fazer sempre o que queira. A isso se chama irresponsabilidade.
Viu você essa horrenda peça de teatro do Ibsen? Titula-se Casa de Bonecas ou algo
assim. A protagonista abandona a seu marido e seus filhos e parte de sua casa sem
nenhum motivo.
—Suponho que ela acredita que o tem—disse Vespasia, sabendo que por sua idade
lhe podiam permitir certas liberdades—. Seu marido era muito dominante e a tratava como
a uma menina, sem deixar que ela tomasse suas próprias decisões.
Dolly soltou uma gargalhada.
—Pelo amor de Deus, querida, mas se a maioria dos homens fazem o mesmo.
Só terá que saber como levá—los. Com um pouco de adulação, outro pouco de
sedução e muito tato, alguém pode distrair a atenção de um homem e conseguir algo que
se proponha.
—O que ela não quer é ter que lutar tanto por algo que considera seu por direito
próprio.
—Fala você como se também fosse uma "nova mulher"!
—É claro que não! Já sou muito velha para isso—disse Vespasia, e a seguir quis
trocar de assunto. — E por que Christabel Thorne é tão extremista? Estou certa de que ela
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não abandonou seu lar.
—Muito pior que isso—disse, agora sim, com expressão de absoluto desagrado—.
Tem uma espécie de estabelecimento onde imprime e vende toda classe de livros
que animam às mulheres a formar-se a si mesmos e a dedicar-se a uma profissão.
Imagine! Pelo amor de Deus! Quem vai empregar a uma mulher advogada, ou
arquiteta, ou juiza ou a uma mulher médica? Além disso é de tudo inútil. Os homens nunca
permitirão algo assim. Claro que ela tampouco quer escutar.
—Extraordinário—disse Vespasia tentando dissimular sua surpresa—. Absolutamente
extraordinário.
E não continuaram falando mais do assunto porque nesse momento chegou outra
visita, e embora já fossem passadas as quatro, Vespasia não tinha mais remedio que
partir.
A última visita que realizou foi à casa de Nobby Gunne. Encontrou-a no jardim
olhando fixamente uns lírios com cara de distração. Curiosamente, parecia nervosa, mas
ao mesmo tempo irradiava uma espécie de felicidade pelo que a pele adquiria uma cor
muito viva.
—Que alegria vê—la!—disse, deixando o leito de lírios e dirigindo-se para ela—.
Deve ser a hora do chá. Quer tomar uma xícara? Ficará um momento?
—Claro que sim —aceitou Vespasia.
As duas cruzaram a ampla franja de grama onde algumas folhas mais longas e sem
cortar cediam ao peso de suas saias ao passar. Um besouro voava preguiçosamente de
uma rosa a outra.
—No verão, um jardim inglês é algo muito especial—disse Nobby com tranqüilidade—
, mas não sei por que não deixo de pensar cada vez mais na África.
—Mas não irá voltar agora, não é?—perguntou Vespasia surpreendida. Nobby já
tinha superado essa idade em que uma empresa dessas características é fácil de preparar
e cômoda de realizar. O que aos trinta é uma aventura, pode converter-se em uma penosa
experiência aos cinqüenta e cinco.
—OH, não! Não tenho a menor intenção de fazê-lo—disse Nobby sorrindo—. Bom,
exceto quando sonho acordada. Não sei por que, as coisas sempre são mais belas do que
foram quando se recordam. Não, só estou preocupada, especialmente depois da conversa
da outra noite. Agora há tanto dinheiro no meio, tantos benefícios que se esperam da
colonização e comércio. A época em que se explorava para descobrir um lugar pelo mero
fato de que jamais o tinha pisado o homem branco já é coisa do passado. Agora só se fala
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de tratados, dos direitos das explorações mineiras e de soldados.
Quanto sangue derramado por tudo isso!—disse olhando a madressilva que se
derramava por uma taipa do jardim pela que agora passavam—. Já ninguém fala das
missões. Faz um par de anos que não ouço falar com ninguém do Moffat ou do
Livingstone. Agora só se fala do Stanley e do Cecil Rhodes, e também de dinheiro —
afirmou com o olhar nos olmos cujas folhas brilhavam ao sol e sussurravam com a brisa, e
debaixo deles umas rosas brancas trepadeiras que começavam a abrir-se. Era tudo tão
inglês. África, com o pó, o calor e o sol abrasador, mais parecia um conto de fadas muito
irreal para que lhe importasse algo.
Mas vendo o rosto de Nobby, Vespasia se dava conta da profunda emoção que
sentia e do muito que aquele continente ainda a preocupava.
—Os tempos mudam-disse Vespasia em voz alta—. Temo que depois dos idealistas,
sempre chegam os pragmáticos, os que tiram proveito de tudo.
Sempre foi
assim. Talvez seja
inevitável—sentenciou
enquanto
caminhava
tranqüilamente junto à Nobby até que se deteve junto a um arbusto de lupino com uma
dúzia de brotos de cor rosa que já começavam a aparecer—. Deveria sentir-se agradecida
por ter tido o privilégio de viver a melhor época e de ter feito parte dela.
-se só fosse isso—disse Nobby franzindo o cenho—, se só fosse uma questão
pessoal, esqueceria—me do tema. Mas é algo mais importante, Vespasia—disse olhando
ao redor com seus olhos escuros—.
Se a colonização da África se faz mau, se unicamente semearmos ventos,
passaremos séculos inteiros recolhendo tempestades, prometo. —Falava agora com uma
expressão tão carrancuda e um temor tão evidente, que Vespasia sentiu um calafrio no
meio do jardim, e de repente todas aquelas cascatas de flores lhe pareceram muito
longínquas e até o calor que sentia na pele lhe pareceu muito irreal.
—O que acredita que acontecerá exatamente?—perguntou.
Nobby ficou com o olhar perdido ao longe. Não estava ordenando seus pensamentos;
isso já o tinha feito fazia tempo. Ficou contemplando uma espécie de visão interior, e o que
ali via era aterrador.
-se algum dos planos do Linus Chancellor se leva a cabo com a ajuda de seus
aliados, que são os que estão investindo enormes quantidades de dinheiro para colonizar o
interior… (e refiro ao Mashonaland, Matabeleland, as bordas do Lago Nyasa ou inclusive
Equatoria) e o fazem tal como têm previsto, já que estão seguros de que existe uma
quantidade infinita de ouro ali, o que acontecerá a seguir é que começará a chegar outro
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tipo de gente que não se interessa o mínimo nem pela África, nem seus habitantes, gente
que não quererá cultivar a terra, nem para si mesma nem para seus filhos, e cujo único
objetivo será a rapina de seus minerais. —
E enquanto dizia isto, uma mariposa revoou junto a elas e se posou em uma flor
aberta—. Acudirão especuladores de todas classes, sobretudo estelionatários e vigaristas.
Haverá gente muito violenta com seu exército privado e um após o outro tentarão
ganhar aos chefes nativos de cada tribo. Neste momento a situação com respeito às
guerras tribais já é grave, mas até agora só lutaram com lanças.
Pense no que pode acontecer quando uns tenham armas de fogo e outros não. —E
acrescentou olhando a Vespasia—: E não subestime aos alemães. Sua presença no
Zanzíbar é muito forte e só estão esperando o momento de ganhar espaço terra adentro.
Já se produziu um terrível derramamento de sangue, mas é possível que o pior ainda
esteja por chegar.
Os negociantes árabes de escravos farão todo o possível para proteger seus
interesses pela força. Já se levantaram contra os alemães em uma ocasião.
—Mas certamente o governo é consciente da situação, não?—perguntou Vespasia.
Nobby voltou a dirigir o olhar para o jardim e deu ligeiramente de ombros.
—Não sei se sabem. É tudo tão diferente quando se fala deste tema na Inglaterra,
aparecem tantos nomes nos jornais, há tanta gente que fala de ouvido e está tudo tão
longe. Tudo é muito diferente quando se esteve ali, quando se aprendeu a amá-lo e
conheceu-se a sua gente. Nem todos são nobres selvagens com o olhar limpo e o coração
puro.
De novo voltavam a caminhar muito devagar sobre o canteiro de grama e Nobby
soltou uma risada nervosa.
—Podem chegar a ser tão pérfidos e exploradores como qualquer homem branco, e
igualmente despóticos. Chegam a vender a seus inimigos a qualquer árabe que lhes pague
por eles para vendê—los logo como escravos.
É o que geralmente se faz com os prisioneiros de guerra. Não acredito que a
diferença esteja na moralidade, mas no grau de poder—sentenciou com uma lenta
piscada—. Com nossos modernos inventos, com as armas, o aço e nossa imponente
organização, podemos fazer o bem, mas também o mal. E receio que por culpa da cobiça
e da fome de ampliar um império, o que mais faremos será o mal.
—E se pode fazer algo para evitá—lo?—perguntou Vespasia—. Ou pelo menos para
mitigar esse mau?
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—Isso é o que me preocupa—respondeu Nobby, iniciando outra vez a marcha do
fundo do canteiro de grama até um canto protegido pela sombra de um cedro. As duas se
sentaram em um banco de cor branca—. Nestes momentos me sinto confundida e muito
pouco segura, mas acredito que sim.
Ultimamente falei um pouco com o Kreisler. Não faz muito que retornou dali e tenho
muito respeito por suas opiniões—disse com um ligeiro rubor nas faces e procurando não
olhar a Vespasia—. Ali conheceu o Abushiri, o cabeça da rebelião que houve contra os
alemães no Zanzíbar.
Acredito que tudo começou com um grupo de negociantes de escravos e de marfim
que não podiam exercer sua atividade com normalidade pelas limitações que lhes
impunham, mas a revolta se sufocou com bastante estupidez.
Reconheço que sei muito pouco. Kreisler falou do tema só por cima, mas me deixou
muito intrigada.
Vespasia também estava, mas por outros motivos. Conhecia já a queda do Otto von
Bismarck, o brilhante chanceler da Alemanha e pai da nova unificação do país. O velho
kaiser, que em teoria mandava sobre ele, esteve doente naquela época e morreu pouco
depois por um câncer de garganta.
Agora o único governante daquele novo estado tão pletórico de forças era o kaiser
Guillermo II, jovem, voluntarioso e muito seguro de si mesmo. As ambições alemãs não
estavam dirigidas precisamente por uma mão prudente e sábia.
—Ainda recordo os primeiros anos do Livingstone—disse Nobby com um tímido
sorriso—. Isso me converte em uma velha, não acha? Naquela época todo mundo estava
emocionado e ninguém falava de ouro nem de marfim.
O importante era descobrir outros povos, achar novas e maravilhosas terras e
grandes cataratas como as de Vitória—disse levantando o olhar por volta do sol através
dos ramos do cedro—. Uma vez conheci alguém que as tinha visto fazia só uns meses.
Lembro que estava no acampamento, era quase de noite e ainda fazia muito, muito calor.
Na Inglaterra não faz um calor como o dali, que se pode tocar e respirar. As acácias
tinham as copas esmagadas como pelo peso de um céu cheio de estrelas, e cheirava a pó
e a erva seca. Só se ouvia o zumbido dos insetos e, de um poço de água, a meio
quilômetro dali, também se ouviu de repente o rugido de uma leoa. Fiquei paralisada, como
se tivesse podido tocar ao animal com apenas estender a mão.
Nobby parecia muito compungida e Vespasia não quis interrompê—la.
—Aquele homem era um explorador que tinha ido em expedição com um grupo.
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Era um homem branco—seguiu contando Nobby com tranqüilidade, como se
estivesse falando só para si mesma—.Quando chegou a nosso acampamento estava
doente, tinha febre e estava tão esgotado que mal podia se ter em pé. Estava tão
consumido que todo ele era um saco de ossos, mas tinha o olhar de um menino e seu
rosto se acendeu de emoção quando começou a falar. Tinha—as visto fazia uns três
meses.
As cataratas maiores do mundo, disse, como se o oceano inteiro se derramasse
pelos penhascos do céu em uma corrente sem fim, caindo estrepitosamente para um
abismo cujo fundo era impossível de ver pela quantidade de espuma que flutuava e pelos
infinitos arco íris que se viam. O rio tinha uma dúzia de braços e cada um deles se
precipitava para essa ravina, enquanto a selva se pegava às bordas e inclusive aparecia
em centenas de lugares diferentes.
Nobby deixou de falar.
—E o que aconteceu com esse homem?—perguntou Vespasia.
Em algum lugar por cima delas, um pássaro ficou a cantar no cedro.
—Morreu de febres dois anos depois—respondeu Nobby—. Queira Deus que essas
cataratas sigam aí até o fim dos tempos—disse. levantou-se e começou a caminhar pela
grama em direção à casa, e Vespasia a seguiu—. O chá já deve estar preparado. Quer
agora uma xícara?
—Sim, por favor—disse Vespasia alcançando—a.
—Kreisler caçava com o Selous, sabia?—seguiu dizendo Nobby.
—E quem é Selous?
—OH, Frederick Courtney Selous, um caçador e explorador maravilhoso—respondeu
Nobby—. Me contou Kreisler que Selous é quem encabeça a coluna do Rhodes que se
dirige para o norte para colonizar Zambeze—disse, outra vez com expressão de tristeza,
embora com um tom especial na voz cada vez que mencionava o nome do Kreisler—.
Sei que Chancellor apóia a campanha do Rhodes, e é claro o banco do Francis
Standish também.
—E isso é algo com o que Kreisler não está de acordo—disse Vespasia em tom de
afirmação mais que de pergunta.
—E temo que razão não lhe falta—respondeu Nobby olhando de repente a
Vespasia—. Sente um amor verdadeiro pela África, não pelo benefício que espera dela,
mas sim por ela mesma, porque é selvagem e estranha, formosa, terrível e muito antiga —
afirmou sem que fosse preciso que dissesse o muito que admirava aquele homem. Lhe
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notava na expressão do rosto e na doçura da voz.
Vespasia sorriu e não disse nada. As duas seguiram caminhando pela grama e a seu
passo suas saias foram como escovando as fibras de erva, subiram as escadas que
conduziam à casa e entraram para tomar o chá.
No dia seguinte se celebrava um bazar com fins beneficientes ao qual Vespasia tinha
prometido comparecer.
Tinha-o organizado uma velha amiga e, por muito que estas coisas a desgostassem,
sentia-se obrigada a apoiar a causa, embora tivesse preferido doar simplesmente o
dinheiro e não ter que ir.
De qualquer maneira, pensou que talvez Charlotte o achasse divertido e mandou que
fossem procurá—la em carruagem se por acaso quisesse ir.
No final, resultou que aquilo não era como tinha esperado; assim que ela e Charlotte
chegaram, deu-se conta de que, além de entretido, daquele bazar podiam conseguir muita
informação.
Sua amiga, Penelope Kennard, tinha esquecido de lhe dizer que era um bazar
inspirado em Shakespeare, de modo que tudo o que tinha participado da organização do
mesmo devia vir disfarçado de algum personagem de uma de suas obras.
Por esta razão, quando chegaram à entrada do jardim foram recebidas por um bonito
Enrique V, que lhes deu as boas—vindas com a voz altissonante. Justo depois de havê-lo
deixado atrás, lhes apareceu um malvado Shylock pedindo dinheiro ou uma libra de carne.
Depois da primeira reação de surpresa, Vespasia lhe pagou encantada uma generosa
quantidade de dinheiro pelas entradas, a dela e a de Charlotte.
—Santo Céu! E agora o que vem? —murmurou baixo enquanto passavam
junto a uma barraca onde uma das organizadoras ia disfarçada da Titania, rainha das
fadas do sonho de uma noite de verão, com o que estava muito atraente. Nem com o mais
atrevido dos vestidos de noite teria mostrado tanto.
Ia envolta em um montão de gaze que deixava ao ar braços, ombros e cintura, para
não falar do que podia adivinhar-se sob as transparências das dobras.
Havia dois jovens cavalheiros brigando pelo preço de uma pomada de lavanda, e
ainda havia vários mais esperando ansiosamente seu turno.
—Que eficácia!—disse Charlotte com admiração não isenta de certo receio.
—Verdade que sim?—respondeu Vespasia com um sorriso—. A última vez que
Penelope organizou um destes bazares se inspirou nos personagens do senhor Dickens e
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a verdade é que não foi tão divertido.
Tinham todos o mesmo aspecto que tenho eu. Olhe! Ali! Vê a Cleopatra vendendo
almofadas?
Charlotte olhou para onde apontava Vespasia e viu uma jovem muito formosa com o
cabelo e os olhos negros, o nariz aquilino, embora com a ponte muito alta para considerála perfeita, e a boca travessa e muito pessoal.
Aquele rosto podia ser perfeitamente de uma mulher acostumada ao poder e a
extraordinária mescla de excesso e moderação. Nesse momento estava oferecendo um
pequena almofada com bordados de renda a um cavalheiro vestido impecavelmente com
um fraque e umas calças de listas. Tinha todo o aspecto de ser um banqueiro ou um
negociante de ações e obrigações.
Um bispo com as tradicionais perneiras ia passeando devagar, sorrindo sem motivo
aparente e saudando com a cabeça a um e outro lado. Seus olhos ficaram fixos durante
um momento na Cleopatra e quase esteve a ponto de parar—e comprar uma almofada,
mas a prudência lhe aconselhou o contrário e seguiu seu caminho para a Titania sem
deixar de sorrir.
Vespasia olhou ao Charlotte; sobravam os comentários.
As duas seguiram caminhando entre barracas onde uns jovens embelezados com
roupagens muito imaginativas vendiam confeitos, flores, ornamentos, fitas, pasteizinhos e
desenhos, enquanto outros ofereciam ao visitante jogos para entreter-se a vários preços.
Depois Charlotte viu outra barraca onde pendiam umas cortinas de tecido escuro com
muitas estrelas presas nelas e uns pôsteres anunciando que por seis pennies as bruxas do
Macbeth podiam ler a sorte e anunciar os grandes triunfos que o futuro podia proporcionar
a uma pessoa.
Havia uma fila de jovenzinhas sufocando seus risinhos esperando sua vez para
entrar, e a seu lado alguns jovens afirmando que estavam ali só para acompanhá-las,
embora se via em seus rostos o interesse que aquilo tinha despertado neles.
Um pouco mais adiante, Charlotte viu a robusta figura do Eustace March, erguido
como uma estátua e falando atentamente com um homem gordo de cabelo branco e
murcho e uma voz ensurdecedora.
Os dois riam a gargalhadas, até que Eustace se despediu dele e se voltou sem dar-se
conta de que ali estava Charlotte. Assim que a viu, fez cara de susto, mas já era muito
tarde para fingir que não a tinha visto.
Endireitou os ombros e se dirigiu a ela.
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—Boa tarde, senhora Pitt. Quanto me alegro de vê—la! Já vejo que apoiando uma
causa nobre, não?—disse rindo com espasmos—. Me parece muito bem. —
Vespasia tinha acabado de falar com uma amiga e Eustace ainda não tinha percebido
sua presença. Hesitou sem saber muito bem o que dizer, esperando cumprir quanto antes
com as normas da boa educação para fugir dali—. Que dia tão bonito. Vale a pena
desfrutá—lo neste precioso jardim, não lhe parece?
—Encantador—respondeu Charlotte—. A senhora Kennard foi muito amável
cedendo—o para o bazar, embora com tanta gente, depois haverá muito que limpar.
Eustace fez uma ligeira careta ante a ingenuidade daquele comentário.
—Tudo seja por uma boa causa, querida amiga. Terá que estar disposto a estes
pequenos sacrifícios. Tudo o que vale, custa algo, já sabe—disse com um sorriso que
deixava ver a dentadura.
—É claro—disse ela—. Suponho que conhecerá muitas das pessoas que vieram,
não?
—Oh, não. Virtualmente a nenhuma. Já não disponho de tanto tempo como antes
para fazer vida social. Há muitas coisas importantes que fazer —afirmou, e pareceu a
ponto de partir para ocupar-se delas imediatamente.
—A verdade é que você me interessa muito, senhor March —soltou ela olhando-o
nos olhos.
Eustace ficou horrorizado. Era a última coisa que queria no mundo. Charlotte o fazia
sentir-se desconfortável. A conversa sempre ia por onde ele menos esperava.
—Bom, querida amiga, asseguro-lhe que eu...
—Não seja modesto, senhor March—disse ela com um sorriso muito encantador.
Eustace se ruborizou. Não se tratava de modéstia, mas sim da imperiosa
necessidade de escapar dali.
—Estive pensando muito no que disse ontem sobre o fato de nos organizar todos
juntos para fazer o bem—disse Charlotte transbordando impaciência—. Acredito que tem
razão. Quando há cooperação, conseguem-se muitas mais coisas. O conhecimento é
poder, não lhe parece? Como vamos lutar com eficácia se não soubermos onde estão as
maiores necessidades? De outro modo, inclusive podemos chegar a causar dano, não
acha?
—Sim, suponho que assim é—disse com muito pouco convencimento—. Não sabe
quanto me alegra que se deu conta de que qualquer julgamento precipitado geralmente é
errôneo. Posso lhe assegurar que a organização a que pertenço é muito respeitável.
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—E modesta também – acrescentou ela sem pestanejar—. Deve ter estado muito
preocupado sabendo o que Sir Arthur Desmond dizia de sua organização antes que o
pobre homem morresse.
Eustace empalideceu, visivelmente incômodo.
—Sim, muito—respondeu ele—. Pobre homem. Já se sabe, a senilidade. Foi muito
triste—disse negando com a cabeça—. O conhaque – acrescentou mordendo o lábio
superior—. Sempre digo o mesmo: terá que tirar de tudo, mas com moderação. Ter a
mente sã e o corpo são. Assim se consegue a virtude e a felicidade. —E acrescentou
depois de respirar fundo—: É claro, procuro evitar o láudano e essas coisas.
Ar fresco, banhos de água fria, muito exercício e uma consciência tranqüila. Não há
razão pela qual um homem não possa dormir bem todas as noites de sua vida. Terá que
esquecer-se dos pós e as poções – disse levantando ligeiramente o queixo e voltando a
sorrir.
Um Ricardo III com semblante ameaçador passou junto a eles caminhando para trás
enquanto duas jovenzinhas riam agradecendo. O jovem mostrou o punho e as outras
entraram no jogo fingindo assustar-se.
—Para ter a consciência tranqüila é necessária uma vida cheia de virtude e procurar,
o arrependimento de forma sentida e habitual, do contrário se chega à insensibilidade—
disse Charlotte em um tom pouco habitual nela e só olhando ao Eustace ao pronunciar a
última palavra.
O outro se ruborizou ainda mais e não se atreveu a dizer nada.
—Por desgraça, não cheguei a conhecer Sir Arthur— continuou ela—, mas ouvi que
era um dos homens melhores e honrados do mundo. Talvez lhe preocupava algo, e por
isso não podia dormir de noite, não? Ou era talvez angústia? Quando se sente certa
responsabilidade com o próximo, a gente acaba preocupando-se muito, não é verdade?
—Sim, sim, claro— respondeu Eustace com um entusiasmo perfeitamente descritível.
Charlotte sabia que o estava obrigando a recordar algo, por muito que lhe desgostasse.
Se Eustace dormia tão bem todas as noites como dizia, ela se convencera de que
não era justo que assim fosse.
—Chegou a conhecê-lo?—seguiu insistindo ela.
—Como? Ao Desmond? É... bom... sim, encontrei-me com ele em várias ocasiões.
Mas não posso dizer que o conhecia, compreende-me?—disse sem atrever-se a olhá-la.
Charlotte se perguntou se não teriam pertencido ao mesmo grupo do Círculo Interior,
mas não tinha a menor idéia de quantas pessoas formavam parte de cada grupo.
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Por isso recordava do que lhe havia dito Pitt, talvez não fossem mais de doze ou algo
assim, mas não estava certa. Para serem efetivos, esses grupos deviam ser mais
numerosos.
Talvez cada grupo tivesse um chefe, que por sua vez se relacionava com outros de
sua mesma posição e assim.
—Quer dizer que talvez se conheceram em alguma reunião social?—perguntou ela
com toda a ingenuidade de que era capaz, embora sentia que ainda podia fazê-lo melhor—
. Talvez em algum baile de gala? Ou em algo relacionado com seu trabalho?
Eustace olhou por cima do ombro esquerdo como se estivesse procurando algo e
seguia com o rubor nas faces.
-seu trabalho?—perguntou inquieto—. Não, não sei muito bem a que se refere. Não
lhe entendo.
Aquilo era suficiente. Ele não tinha deixado de falar do Círculo Interior. Se tratasse de
uma simples reunião social, teria reconhecido sua relação com Sir Arthur sem embaraço
algum, mas algo dizia ao Charlotte que Eustace March não se movia em âmbito algum da
alta sociedade, a da burguesia, a autêntica aristocracia com a que Arthur Desmond
convivia, posto que havia nascido em seu seio.
—Refiro—me ao Foreign Office—disse com um doce sorriso—. Mas já sabia que era
muito pouco provável.
—Claro, claro—respondeu Eustace esboçando um pálido sorriso—. E agora, minha
querida amiga, se me desculpa, devo retornar a minhas obrigações. Tenho muito que
fazer, embora de vez em quando terá que fazer-se ver, sabe? Comprar algumas coisas,
dar muitos ânimos e servir de exemplo— disse, e se afastou a toda pressa sem deixar que
Charlotte lhe respondesse, enquanto saudava com a cabeça tanto às pessoas que
conhecia como às que tivesse gostado de conhecer.
Charlotte ficou pensativa um bom momento, até que deu meia volta e seguiu o
caminho pelo qual se fora Vespasia. Ao cabo de um momento se achou outra vez junto às
almofadas da Cleopatra, olhando o tira e afrouxa entre uma velha dama com expressão de
inveja e desgosto, e uma jovem a ponto de cumprir essa idade em que uma já não é
casadoura, a não ser que seja uma rica herdeira.
Com elas se achava um cavalheiro dos que viravam punhos e colarinhos das
jaquetas para seguir usando as por velhas e usadas que fossem.
Ela mesma o tinha feito já tantas vezes com as do Pitt que as reconhecia em seguida.
Ao cabo de um momento ouviu que alguém se dirigia a Cleopatra como senhorita
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Soames.
É possível que se tratasse do Harriet Soames, a mesma com a que Matthew
Desmond se comprometera em matrimônio?
—Desculpe.
Cleopatra a olhou com amabilidade, mas sem interesse algum por ela. Vista de perto,
era uma mulher ainda mais estranha. Tinha um olhar de certa indiferença, uma boca nada
voluptuosa, com o lábio superior muito fino para o gosto da época, apesar de que em seu
rosto se adivinhava uma profunda sensibilidade interior.
—Quer que lhe mostre algo?—perguntou—. É para você ou é um presente?
—Bom, a verdade é que ouvi como a pessoa que veio antes se dirigiu a você
chamando-a senhorita Soames. Não será você por acaso Harriet Soames?
A outra pareceu desconcertar-se.
—Sim, sou eu. Mas não recordo onde nos conhecemos.
Era uma resposta amável e perfeitamente previsível por parte de uma jovem de boa
educação que não tinha a menor intenção de entabular amizade com alguém aquem não
conhecia e a que nem sequer lhe tinham apresentado.
—Meu nome é Charlotte Pitt— disse sorrindo—. Meu marido é um amigo de infância
de Sir Matthew Desmond.
Queria felicitá—la por seu compromisso matrimonial e lhe expressar meus mais
sentidos pêsames pela morte de Sir Arthur.
Meu marido sente profundamente sua perda. Sei que era um homem pouco comum.
—Oh! —exclamou Harriet Soames. Depois daquela explicação tão satisfatória sua
disposição não podia ser outra que a de franco cordialidade, e suavizou a expressão de
seu rosto com um sorriso encantador—. Que amável é você, senhora Pitt. Sim, realmente
Sir Arthur era uma das melhores pessoas que jamais conheci.
A verdade é que antes de conhecê-lo sentia um temor reverencial por ele, como
passa sempre com um futuro sogro, mas assim que falei com ele me senti completamente
feliz—disse, enquanto a lembrança lhe refletia na rosto com uma mescla de felicidade e
dor.
Charlotte lamentou ainda mais não ter conhecido a Sir Arthur. Haveria sentido mais
pena por sua morte, mas por outro lado também teria podido compartilhar melhor os
sentimentos do Pitt. Conhecia muito bem a dor que sofria seu marido, sobretudo pelo
sentimento de culpa que levava dentro, e no momento ela estava à margem de todo isso e
ninguém podia fazer nada para mudar.
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—Sir Matthew veio nos ver a outra noite— continuou Charlotte com a intenção de
chegar todo o longe que pudesse—. A verdade é que não o conhecia, mas em seguida
gostei muito dele. Espero que os dois sejam muito felizes.
—Obrigado, é muito amável—disse Harriet, e pareceu que estava a ponto de
acrescentar algo mais quando percebeu a chegada de uma jovem cujo rosto era cada vez
mais atraente à medida que alguém se ia fixando nele.
A simples vista a podia considerar de uma beleza discreta, com uns traços muito
comuns e o cabelo da típica cor clara de qualquer mulher inglesa, não muito loiro, mas sim
do tom suave e quente do mel, e com uma cor da pele tão natural que qualquer um teria
considerado pouco elegante.
Mas bastava fixar-se um pouco no rosto para descobrir nela uma mulher inteligente e
com senso de humor, o qual a convertia em uma pessoa muito especial.
Sem dar-se conta de que Charlotte e Harriet estavam falando como amigas, mais que
como vendedora e cliente, não hesitou em interromper a conversa, embora se apressou a
desculpar-se assim que Harriet lhes apresentou. A recém chegada era a senhorita Amanda
Pennecuick.
—OH, de verdade que o sinto— disse Amanda—. Que mal educada sou. Perdoe-me,
senhora Pitt. A verdade é que não tinha nada importante que dizer.
—Eu tampouco —confessou Charlotte—. Só me estava apresentando à senhorita
Soames, já que meu marido é um velho amigo de Sir Matthew Desmond—disse, dando por
sentado que Amanda conhecia o compromisso matrimonial do Harriet, coisa que
efetivamente comprovou pela expressão de normalidade que pôs.
—Estou muito zangada—lhes confiou Amanda—. Gwendoline Otway começou outra
vez com essas detestáveis predições astrológicas, e me prometeu que não o faria. Às
vezes tenho vontade de lhe dar uma boa bofetada, sabem? E além se disso disfarçou-se
de Ana Bolena.
—Com ou sem cabeça?—perguntou Harriet sem poder dissimular a risada.
—Com ela, mas só de momento—respondeu Amanda, muito zangada.
—Não sabia que Ana Bolena fosse um personagem do Shakespeare —soltou Harriet
arqueando as sobrancelhas.
—Adeus… "Assim me demito de toda minha grandeza"— disse uma formosa voz
masculina por detrás da Amanda, e todas viram o rosto radiante, mas bem feio do Garston
Aylmer—. Sou o cardeal Wolsey—disse muito contente e sem deixar de olhar a Amanda—.
Enrique VIII-acrescentou.
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—OH, sim, claro. Boa tarde, senhor Aylmer—respondeu ela sem alterar-se e com
rosto inexpressivo, o qual devia resultar difícil para um rosto com tendência a emocionar-se
facilmente.
—E por que lhe incomoda tanto que brinque um pouco com a astrologia? —quis
saber Charlotte—. Não lhe parece uma maneira muito inofensiva de entreter às pessoas e
de conseguir um pouco de dinheiro para o bazar?
—Amanda detesta a astrologia—disse Harriet com um sorriso—. Embora só seja para
jogar com ela.
—As estrelas não são tão mágicas como acreditam—se apressou a dizer Amanda—.
Pelo menos não como o entendemos sempre. A verdade que há nelas é muito mais
maravilhosa que todos esses jogos tolos sobre heróis clássicos e animais fantásticos.
Se você soubesse a verdadeira magnitude de... —e aqui se deteve, consciente de
que Garston Aylmer não lhe tirava os olhos de cima com uma admiração tão evidente que
qualquer um se dava conta.
—Desculpe-me—disse ao Charlotte—. Não deveria me preocupar tanto por essas
tolices.
Asseguro que Gwendoline está entretendo a gente que não olharia por um telescópio
nem que o pusessem nas mãos— disse rindo com acanhamento—. Acredito que vou
comprar uma almofada. Há uma aqui com uma renda branca muito bonita.
Harriet o mostrou.
—O que lhe parece se a acompanho a tomar um chá, senhorita Pennecuick?
—Vem você, senhora Pitt? —ofereceu Aylmer.
Charlotte sabia muito bem quando devia tirar-se do meio. Ignorava quais eram os
sentimentos da Amanda; os do Aylmer, em troca, estavam bastante claros e além disso
era um homem que lhe era simpático.
—Muito obrigado, mas vim com minha tia avó e queria me reunir com ela antes de
que passe muito tempo—respondeu rechaçando o oferecimento.
Amanda hesitava e lhe via na rosto que estava considerando o assunto, até que
por fim aceitou friamente o convite e se desculpou com o Harriet e Charlotte.
Comprou a almofadinha e partiu junto ao Aylmer, mas sem agarrar do braço que
aquele lhe oferecia. Não faziam muito bom ar. Ela era magra e elegante, e ele era muito
feio, curto de pernas e além disso rechonchudo.
—Deveria tê-la acompanhado—disse Harriet em voz baixa—. Pobre Amanda.
—É verdade que vim com minha tia avó—respondeu Charlotte com um largo
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sorriso—. É absolutamente certo.
—Oh! —exclamou Harriet ruborizando-se—. Desculpe-me! Eu achava que você...—
disse, e soltou uma gargalhada que acabou por contagiar à própria Charlotte.
Quinze minutos depois achou Vespasia e juntas foram até uma loja de campanha que
tinham montado no jardim e onde serviam o chá da tarde. Viram sair dali Aylmer e Amanda
Pennecuick, que continuava falando cordialmente.
—Que casal tão inesperado —observou Vespasia.
-se forem juntos é por ele, não por ela—respondeu Charlotte.
—Claro— disse Vespasia olhando a jovem que se tinha aproximado para lhes
oferecer sanduíches e pasteizinhos adornados e cristalizados com desenhos de toda
classe. As duas escolheram e Vespasia serviu um pouco de chá para ambas. Ainda estava
muito quente para tomar um gole, pensou Charlotte, e de repente se deu conta de que
Susannah Chancellor se achava em outra mesa próxima à sua, meio oculta atrás de um
samovar e um enorme vaso de barro do qual pendia uma etiqueta com o preço.
Assim que Vespasia e ela deixaram de falar, a voz de Susannah se fez perfeitamente
audível. Parecia cordial e animada, mas começava a soar um pouco nervosa.
—Acredito que está chegando a umas conclusões sem conhecer a totalidade dos
fatos, senhor Kreisler. Esses planos se pensaram consciensiosamente e não deixaram de
consultar muita gente que viajou pela África e que conhece os nativos.
—Gente como Cecil Rhodes?—perguntou Kreisler em um tom que raiava à
descortesia, mas sem querer deixar de expressar seu desacordo e seu desagrado por
Cecil Rhodes e suas ações.
—É claro que ele foi um deles—concedeu Susannah—. Mas não foi o único. Há, por
exemplo, o senhor MacKinnon...
—Um homem muito respeitável— disse Kreisler terminando a frase por ela. Ainda
não tinha elevado muito a voz, mas o tom era ligeiramente de brincadeira e com uma
intensidade inconfundível ao ouvido. Charlotte não podia vê-lo, mas podia imaginar o olhar
inquebrável de seus olhos, embora fingisse um sorriso—. Mas com certeza obterá um
benefício. Esse é um negócio e disso depende sua honra e até sua sobrevivência.
—O senhor Rhodes investiu muito dinheiro próprio na empresa – prosseguiu
Susannah—. Se fosse um simples aventureiro sem interesses pessoais, meu marido e
meu cunhado não o estariam apoiando.
—Um aventureiro com muitos interesses pessoais, disse Kreisler esboçando um
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sorriso—. Mas se é um construtor de impérios da maior categoria!
—Diz isso como se não estivesse de acordo, senhor Kreisler. Por que? Se não o
fizermos nós, farão-o outros e talvez teremos perdido a África em benefício da Alemanha.
É isso o que quer? Quer também que continue existindo a escravidão?
—Não, é claro que não, senhora Chancellor. Mas o mal que ali existe tem muitos
séculos de história e faz parte de sua maneira de viver. As mudanças que nós levaremos
não têm por que mudar necessariamente as coisas, e o único que conseguiremos é entrar
em guerra com os árabes, que são os maiores negociantes de escravos, e também com os
comerciantes de marfim e com os portugueses, e é claro com os alemães e com o sultão
do Zanzíbar.
E o pior de tudo, ampliaremos nosso império com a Equatoria e conseguiremos
agarrar de improviso ao Emin Pasha, Lobengula, e à a Kabaka da Buganda e a todos
outros. Os colonos brancos estarão armados e voltarão aos velhos métodos e dentro de
cinqüenta anos os africanos serão um povo submetido em sua própria terra.
—Está exagerando! —exclamou entre a risada e a incredulidade, embora começou a
notar-se na voz uma sombra de dúvida e preocupação—. Há milhões de africanos e nós
somos muito poucos, só umas centenas.
—Quer você dizer hoje?—replicou ele com dureza—. E amanhã? O que acontecerá
quando houver ouro e terra? E quando se acabarem as guerras, o que acontecerá com os
que aqui não são filhos primogênitos e não tem terras e acabem indo até ali em busca de
dinheiro e aventuras? E com os que queiram fugir da Europa por ter feito algo mau? E com
os jovens cujas famílias já não queiram ajudar nem proteger?
—Isso não acontecerá se apressou a dizer ela—. Será como na Índia. Haverá um
exército permanente e uns funcionários encarregados da administração e justiça e...
—Tão convencida está disso?—disse ele em um tom tão baixo que Charlotte teve
que fazer um esforço para ouvir todas as palavras.
—Bom... — hesitou Susannah—. Não exatamente, claro. Levará seu tempo. Mas ao
final, será como digo.
—A Índia é uma cultura e uma civilização milhares de anos mais antiga que a nossa.
Quando ainda nos pintávamos de azul e nos vestíamos com peles de animais, eles já
sabiam ler e escrever, construíam cidades, pintavam grandes obras de arte e sonhavam
com a filosofia—sentenciou ele sem poder dissimular sua satisfação.
—Mas se beneficiaram de nossas leis— replicou ela—. Resolvemos as guerras
internas e os unimos para formar um grande país. É possível que sejamos uns arrivistas
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em certo sentido, mas lhes levamos a paz. E faremos o mesmo na África.
Kreisler não disse nada. Era impossível imaginar que expressão tinha no rosto.
Nem Charlotte nem Vespasia haviam dito uma só palavra desde que ambas tinham
reconhecido a voz de Susannah Chancellor. Seus olhares se cruzaram muitas vezes e
com elas pensamentos que não precisavam manifestar-se.
—Conhecia você a Sir Arthur Desmond?—perguntou Susannah ao cabo de um
momento.
—Não. Por que?
—Por nada, mas com certeza ele teria estado de acordo com você. Também lhe
preocupava muito a África.
—Nesse caso, terei muito gosto em conhecê-lo.
—Temo que isso não será possível. Morreu a semana passada.
Kreisler não respondeu e um instante depois Christabel Thorne mediou entre os dois
e a conversa se fez mais geral, sobre tudo referida ao bazar.
—É um homem de grandes paixões, este Kreisler—disse Vespasia, tomando um
último gole de chá—. É interessante, mas temo que também perigoso.
—Acha que tem razão sobre a África?—perguntou Charlotte.
—Não sei. Talvez sim, pelo menos em parte. O que sei é que ele está convencido
disso. Preferiria que Nobby não se interessasse tanto por ele. Vamos, querida, por hoje já
cumprimos com nossa obrigação. Acredito que podemos ir.
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Capítulo 4
Charlotte e Pitt chegaram à primeira hora ao Brackley para o enterro de Arthur
Desmond e desembarcaram do trem sob um sol radiante.
A pequena estação do povoado tinha unicamente uma plataforma de várias centenas
de metros de comprimento, no meio da qual se situava o edifício que albergava a sala de
espera, o escritório de bilhetes e a casa do chefe de estação.
O resto eram todo campos de trigo já amadurecido e enormes árvores que
transbordavam de cor com o verde das folhas novas.
Por entre as sebes apareciam cachos inteiros de casulos de rosas silvestres, e as
flores de espinheiro, com seu aroma tão doce, já começavam a abrir-se.
Fazia quinze anos que Pitt não voltava para o Brackley, e de repente se sentiu
agasalhado por uma sensação de familiaridade, como se se tivesse partido dali a noite
anterior.
Tudo estava exatamente igual, o ângulo do telhado da estação, a curva que
formavam os trilhos dobrando bruscamente a via em direção ao Tolworth e os enormes
depósitos de carvão para o reabastecimento dos trens. Inclusive chegou a evitar pisar
automaticamente o desnível que havia justo ante a porta da plataforma.
Era menor do que recordava e possivelmente um pouco mais desgastado.
O chefe de estação tinha agora o cabelo grisalho. A última vez que o viu era
castanho. Tinha posto um bracelete negro no braço.
Deu a impressão de que ia pronunciar qualquer fórmula habitual de saudação,
quando se deteve e se fixou melhor no recém—chegado.
—É você o jovem Thomas? É você, não é? É claro que sim! Já o disse ao velho Abe
assim que o vi descer do trem. Hoje é um triste dia para o Brackley. Muito triste, sim.
—Bom dia, senhor Wilkie— respondeu Pitt, pondo o "senhor" por diante de forma
intencional.
Agora era superintendente de polícia em Londres, mas aquele era seu lar e ali
sempre seria o filho do guarda-florestal de Sir Arthur, de forma que o chefe de estação era
seu igual—. Sim, muito triste— disse, e ainda quis acrescentar algo mais, como por
exemplo, por que razão tinha demorado tanto tempo em voltar, mas qualquer desculpa ia
ser inútil e, além disso, ninguém ia se importar em um dia como aquele.
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Estavam muito emocionados, tanto que mal ficava lugar em seus corações para outra
coisa que não fosse à dor por aquela morte que os unia. Pitt apresentou a Charlotte e o
rosto do Wilkie se iluminou. Era uma gentileza que certamente não esperava, mas que lhe
agradou muito.
Estavam a ponto de sair pela porta da estação quando viram chegar outras três
pessoas da plataforma. Estava claro que tinham vindo no mesmo trem. Eram três
cavalheiros de meia idade ou possivelmente um pouco mais e, a julgar por sua roupa, viase que eram gente de posses.
De repente, Pitt recuperou na memória a imagem de um deles pelo menos e o
reconheceu da sessão de investigação judicial, e sentiu tanta raiva que ficou paralisado
enquanto Charlotte seguia o caminho sozinha.
Se não fosse porque teria sido muito ridículo, teria retrocedido para acusar
abertamente aquele homem. Mas o que ia dizer lhe que servisse de algo mais que para
desafogar da dor e a ira que sentia pelo que aquele homem havia dito em público, tanto se
o pensava de verdade ou não. Fosse qual fosse à relação que lhe tinha unido ao Arthur
Desmond, aquilo só podia considerar-se uma traição.
Foi talvez este sentimento de ter sofrido um ultraje o que o deteve, sobretudo porque
teria posto em uma situação muito embaraçosa à Charlotte, embora ela o teria
compreendido depois, para não falar do Wilkie, o chefe de estação.
Além disso, no fundo não podia evitar sentir-se também culpado. Se tivesse visitado
com freqüência à Sir Arthur, talvez tivesse podido rebater as calúnias com conhecimento
de causa e não só movido pela lembrança e o amor.
—Thomas?
A voz do Charlotte interrompeu seus pensamentos e deu meia volta para unir-se a ela
e empreender a marcha pelo caminho que levava ao povoado, meio quilômetro mais ou
menos até chegar à rua principal, e ao fundo, por detrás das últimas casas, à igreja.
—Quem eram? —quis saber ela.
—Estiveram na investigação judicial— respondeu Pitt, sem dizer em qualidade do
que, mas ela tampouco perguntou mais. Pelo tom da voz soube tudo o que tinha que
saber.
Era um passeio curto e não voltaram a falar. Só se ouvia o ruído de seus passos, o
canto dos pássaros e o débil sussurro da brisa indo e vindo entre sebes e arvoredos.
Ouviram o balido de uma ovelha ao longe e a resposta de um cordeiro, com um som mais
agudo, e depois o latido de um cão.
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O povoado também estava imerso em um silêncio pouco habitual. O açougue, a loja
de ferragens e a padaria estavam fechadas com as persianas metálicas jogadas e em
cada porta se viam fitas ou braçadeiras de luto negras. Até a ferraria estava vazia e fria.
Um menino pequeno, de uns quatro ou cinco anos, estava de pé ante a porta de uma das
casas, com rosto de solenidade e os olhos muito abertos. Não havia crianças brincando na
rua e até os patos do lago flutuavam à deriva sem direção alguma.
Pitt olhou ao Charlotte e viu a tristeza e o respeito que sentia por tudo aquilo, por toda
uma comunidade em luto e por um homem ao que nunca chegou a conhecer.
No final da rua principal viram meia dúzia de homens vestidos de negro; Charlotte e
Pitt se aproximaram e todos se voltaram para eles. A princípio só viram o vestido negro de
Charlotte e o bracelete e a gravata negra do Pitt, por isso em seguida sentiram certa
simpatia por volta dos recém chegados. Depois de olhá-los pela segunda vez, um deles
tomou a palavra.
—Você é o jovem Tom, não é?
—Zack, não deveria falar assim!—apressou-se a lhe murmurar sua mulher—. Agora é
um cavalheiro. Olha-o! Sinto muito, jovem Thomas, senhor. Não quis lhe ofender.
Pitt teve que rebuscar entre suas lembranças para reconhecer a aquele homem de
cabelo escuro com franjas cinzas e o rosto curtido pelo sol e o vento.
—Não se preocupe, senhora Burns. Sim, o "jovem Tom" está muito bem, e você?
—Oh, muito bem, senhor, e Mary e Lizzie também. Já saberá que nosso Dick se
alistou no exército.
—Sim, isso ouvi —mentiu Pitt antes de pensar a resposta. Não queria que ela
soubesse até que ponto desconhecia todo o referente à vida do povoado—. É uma boa
carreira— acrescentou, e não se atreveu a dizer nada mais. É possível que Dick estivesse
mutilado ou inclusive morto.
—Que bom que tenha podido vir para o de Sir Arthur— disse Zack sorvendo o nariz—
. Suponho que já é hora de ir. Já se ouça o sino.
E efetivamente o sino da igreja começou a soar com um solene e sonoro toque de
finados que parecia encher os campos e até devia chegar ao povoado mais próximo.
Na mesma rua e um pouco mais longe, ouviu-se o ruído de uma porta que se fechava
e emergiu a figura de um homem vestido de negro que ficou olhando fixamente.
Era um homem muito corpulento e com as pernas arqueadas; era o ferreiro, que
acabava de sair de sua casa. Levava uma tosca jaqueta que apenas se podia abotoar,
mas se via perfeitamente um bracelete negro, limpo e novo.
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Pitt ofereceu o braço à Charlotte e começaram a caminhar devagar em direção à
igreja, separada do povoado por uns trezentos metros. Pouco a pouco começou a chegar
cada vez mais gente: aldeãos, agricultores e arrendatários daquelas terras, o açougueiro
com sua mulher, o padeiro com suas duas filhas, o ferreiro com seu filho e sua nora, o
tonelero, o carreteiro, e até o taberneiro, que naquele dia tinha fechado seu
estabelecimento para ir de rigoroso luto acompanhado de sua mulher e suas filhas.
Do outro lado do caminho apareceu a carruagem fúnebre puxada por quatro cavalos
negros com penachos também negros sobre a cabeça e o lombo, e um cocheiro com capa
negra e cartola.
Depois dele vinha Matthew com a cabeça descoberta e o chapéu na mão, rosto
pálido e com Harriet Soames caminhando a seu lado.
Depois deles havia pelo menos oitenta ou noventa pessoas, todos os criados e
empregados da propriedade de Sir Arthur, mais os camponeses que tinham arrendadas
suas terras e atrás deles todos outros proprietários vizinhos de uns dez quilômetros ao
redor.
Entraram todos em fila na igreja e aqueles que não acharam onde sentar-se
permaneceram ao fundo da mesma, com a cabeça inclinada.
Matthew tinha reservado um espaço no banco da família para Pitt e Charlotte, como
se Pitt fosse um segundo filho. Este se sentia tão embargado pela emoção e por uma
mescla de sentimentos tão intensos de carinho, gratidão e culpa, que lhe encheram os
olhos de lágrimas e não pôde falar. Nem sequer se atreveu a baixar a vista para que não
transbordassem.
No momento em que o sino deixou de soar e apareceu o pastor, tudo aquilo se
converteu na mais pura dor e na dilaceradora sensação de ter perdido algo irrecuperável.
O ofício foi simples, com essas palavras tão antigas e familiares que serviam para
consolar e comover enquanto se repetia por dentro, palavras sobre a brevidade da vida,
efêmera como uma flor. Chegado o momento, tinha que recolher-se essa flor para a
eternidade.
O que mais chamava a atenção naquela cerimônia era a quantidade de pessoas que
tinham acudido, e não porque lhes tivesse obrigado a isso, mas sim por vontade própria.
Pitt fez caso omisso da alta burguesia que tinha vindo de Londres; para ele os mais
importantes eram aqueles aldeãos e camponeses.
Uma vez concluído o ofício, foram todos enterrar ao finado no panteão da família
Desmond, que se achava à sombra de uns ciprestes e em um extremo do campo santo.
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Apesar de que ali havia mais de uma centena de pessoas, reinava um receoso silêncio.
Ninguém se moveu nem falou enquanto introduziam o ataúde no panteão e voltavam a
fechar a porta. O único que se ouvia era o canto de uns pássaros desde uns olmos que
havia no outro extremo.
A seguir veio o longo ritual de agradecimentos, pêsames e condolências.
Pitt olhou para onde estava Matthew, justo no atalho que conduzia à entrada do
cemitério. Estava muito pálido, com o sol refletindo-se nas mechas loiras de seu cabelo.
Harriet Soames permanecia junto a ele e com uma mão lhe agarrando o braço. Ela
tinha um aspecto sombrio, muito apropriado para a ocasião, mas cada vez que olhava ao
Matthew o fazia com muita ternura, como se compreendesse a raiva e a dor que sentia seu
noivo além do que o podia ter pedido.
—Quer ficar um momento com ele? –perguntou-lhe Charlotte em voz baixa.
Apesar de suas dúvidas, naquele momento Pitt sabia muito bem a resposta.
—Não. Sir Arthur era como um pai para mim, mas eu não era seu filho. Este
momento pertence ao Matthew. Ficar agora com ele seria uma intrusão e uma presunção
por minha parte.
—Charlotte não disse nada. Pitt temia que ela se desse conta do que sentia de
verdade. Em certo modo, tinha perdido o direito a ficar agora com ele por sua longa
ausência.
Não era o ressentimento do Matthew que lhe inspirava medo, senão o da gente do
povoado. Não lhes faltava razão para sentirem-se ofendidos com ele. Sua ausência tinha
durado muito tempo.
Esperou um pouco e enquanto seguiu olhando como Matthew falava com todos eles
com muita familiaridade, aceitando as hesitantes, mas, muito sentidas condolências de
todo o mundo. Harriet seguia a seu lado, sorrindo e assentindo com a cabeça.
Um ou dois dos proprietários vizinhos se aproximaram para lhe dar os pêsames, e Pitt
reconheceu entre eles ao Danforth, o mesmo que tinha atestado tão a contragosto na
audiência com o juiz. O rosto do Matthew ficou escurecido por uma estranha combinação
de emoções: ressentimento, prudência, confusão, dor e outra vez ressentimento.
De onde estava, Pitt não pôde ouvir o que se disseram antes que Danforth se
despedisse negando com a cabeça e dirigindo-se logo para a porta de entrada do
cemitério.
A este seguiram outros, todos eles procedentes de Londres. Pareciam todos
deslocados. Era uma diferença sutil, algo que não encaixava na paisagem dos campos que
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se viam ao longe, nem nas grandes árvores que brilhavam sob o sol, nem no modo em que
as estações do ano marcavam a vida de quem ali vivia, nem no enorme esforço físico que
supunha trabalhar a terra para semear e depois colher seus frutos, nem na amável
convivência com os animais.
Tampouco se tratava do contraste que supunha a maneira de vestir daqueles
homens, a não ser talvez algum dos detalhes que ofereciam: uma cabeça muito penteada,
umas botas de solas muito finas, um olhar estendido para o caminho que conduzia para as
propriedades de Sir Arthur, como se de um inimigo se tratasse, uma distância que ninguém
estava disposto a percorrer andando de tão acostumados que estavam as carruagens.
Matthew falou com eles fazendo um grande esforço que nenhum percebeu, salvo Pitt,
que o conhecia desde que eram pequenos e podia ver o menino que havia dentro dele.
Por fim, quando o último deles disse o que se esperava que dissesse e Matthew
respondeu como facilmente pôde, Pitt se dirigiu para ele. Mandaram as carruagens de
volta e empreenderam a pé o caminho que conduzia à casa, com o Matthew e Pitt à frente
e Charlotte e Harriet atrás.
Andaram os primeiros metros em meio de um silêncio tácito e no transcurso do qual
Charlotte chegou a pensar que Harriet tinha muita vontade de lhe contar algo, mas que não
sabia como abordar o tema.
—Acredito que a melhor comemoração que lhe podia dar esteve no fato de que tenha
vindo o povoado inteiro— disse Charlotte enquanto chegavam a um cruzamento de
caminhos e tomavam um mais estreito.
Era a primeira vez que estava ali e desconhecia as dimensões da propriedade, mas
pôde divisar ao longe uns enormes pilares a partir dos quais começava um cercado e que
logicamente não assinalavam outra coisa que a entrada a uma propriedade de
considerável extensão.
Supôs a existência de um jardim e de um passeio que conduziriam a casa.
—Todo mundo o queria muito— respondeu Harriet—. Era um homem muito bom e
sincero. Era a pessoa menos hipócrita do mundo— disse, sem acrescentar nada mais, e
sem saber muito bem por que Charlotte teve a sensação de que Harriet estava a ponto de
continuar com um "mas", e de que não se atrevia por prudência.
—Não cheguei a conhecê-lo— respondeu Charlotte—, mas meu marido lhe queria
muito. Já sei que não se viam desde há muito tempo e que as pessoas às vezes mudam
um pouco.
—Oh, continuava sendo tão honrado e generoso como sempre—se apressou a dizer
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Harriet.
Charlotte a olhou e viu como se ruborizava e girava a cabeça. Quase tinham chegado
à entrada da propriedade.
—Mas possivelmente estava um pouco distraído— disse Charlotte em seu lugar.
Harriet mordeu o lábio.
—Sim, acredito que sim. Matthew não quer aceitá-lo e o entendo. Compreendo-o
muito bem, de verdade. Minha mãe morreu quando eu era muito pequena e também cresci
muito unida a meu pai. Nem Matthew nem eu temos irmãos. Essa é uma das coisas que
mais nos une; os dois sabemos o que significa sentir-se só e muito unido a um pai. Eu não
suportaria que ninguém falasse mal do meu.
Cruzaram a entrada da propriedade e Charlotte ficou muda de surpresa ante a longa
curva daquele passeio franqueado a ambos os lados por uma fileira interminável de olmos,
e a uns trezentos metros dali e ereta sobre uma pequena elevação se via a enorme casa
senhoril. À direita havia uma grande extensão de grama que ia dar a um arroio, e à
esquerda se viam mais árvores, os telhados das garagens e um pouco mais à frente as
quadras.
Tudo era muito formoso à vista, e em harmonia com a natureza, surgindo de entre as
árvores sem nenhum elemento estranho ou molesto, sem que nada perturbasse a
simplicidade da paisagem.
Harriet pareceu não dar-se conta de todo aquilo. Certamente já tinha estado ali antes,
e embora não demorasse para converter-se na proprietária de tudo, não era precisamente
nisso no que ocupava seus pensamentos.
—Sou capaz de defendê-lo com tanta força como se ele fosse meu filho e eu seu
pai—disse Harriet com um sorriso amargo—. Soa absurdo, já sei, mas o coração nem
sempre se move pela lógica. Compreendo muito bem como se sente Matthew.
Caminharam vários passos em silencio até ficar cobertos pela sombra dos olmos.
— Receio muito que Matthew não sairá bem parado nesta cruzada por defender o
bom nome de Sir Arthur. Claro que não está disposto a admitir que seu pai pudesse estar
tão... tão... perturbado para chegar a se convencer de que lhe perseguiam sociedades
secretas e menos para administrar uma overdose de láudano por acidente.
Harriet se deteve e olhou ao Charlotte no rosto.
-se seguir adiante com isso, ao final não terá mais remédio que enfrentar-se à
verdade e então pode ser que seja ainda mais difícil do que já resulta agora. Por não falar
dos inimigos que ganhará. As pessoas sentirão certa pena por ele ao princípio, mas durará
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pouco, sobretudo se começar a fazer acusações como as que está fazendo agora.
Talvez você poderia convencer a seu marido para que falasse com ele. Tem que
deixar de obcecar-se por algo que em realidade é... bom, quero dizer por algo que só lhe
fará mal e com o que só ganhará inimigos, e esse é um luxo que ninguém pode permitir-se.
A paciência se converte logo em risada patética e por fim em ira. E isso é quão último
tivesse querido Sir Arthur, não lhe parece?
Charlotte não sabia muito bem o que dizer. Não lhe teria surpreendido absolutamente
que Harriet ignorasse tudo o referente ao Círculo Interior, nem sequer que fosse capaz de
imaginar que uma sociedade como aquela pudesse existir.
Se houvesse sabido por ela mesma, certamente também lhe teria parecido tudo
absurdo. Quem ia enganar a alguém com a mente perturbada e que além disso inventava
conspirações onde não havia nenhuma?
O pior de tudo, e era uma ofensa aos sentimentos e à razão, é que Harriet
acreditasse de verdade que Sir Arthur padecia demência senil e que, além disso, fosse o
responsável por sua própria morte.
Claro que era muito bom que sua preocupação nascesse de seu amor pelo Matthew,
mas não estava claro até que ponto podia servir a ele de consolo aquele sentimento se
Matthew chegasse a descobrir o que ela pensava de verdade. De momento, a dor pela
morte de seu pai era muito forte para aceitar nada mais.
—Não fale deste tema com o Matthew—se apressou a dizer Charlotte tomando ao
Harriet pelo braço e reatando a marcha para não chamar a atenção—. Temo que neste
momento sua opinião lhe faria muito dano, e inclusive poderia considerá-la como outra
traição.
Harriet ficou muda ante aquelas palavras e só ao cabo de um momento pareceu darse conta do que significavam.
As duas seguiam caminhando muito devagar, com o Pitt e Matthew muito à frente
delas e sem perceber sua distância.
Harriet acelerou o passo para aumentar a distância que as afastava de quem vinha
atrás delas. Não queria que ninguém as ouvisse, e muito menos que Matthew desse meia
volta pensando que algo ia mau.
—Sim. Sim, talvez tenha você razão. Já sei que não soa muito sensato, mas suponho
que me custaria muito tempo chegar a aceitar que meu pai não era como eu imaginava,
que já não era tão... tão admirável, tão forte, tão inteligente –seguiu dizendo ela—.
Talvez não façamos mais que idealizar às pessoas que amamos e quando a verdade
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fica manifesta ante nós, odiamos a quem nos mostrou isso. Não suportaria que Matthew
pensasse algo assim de mim. Embora me dou conta de que isso é precisamente o que
estou pedindo a seu marido, já que lhe estou rogando que diga a Matthew o que não tem
nenhuma vontade de ouvir.
—Acredito que será inútil pedir algo assim ao Thomas—disse Charlotte com
sinceridade enquanto caminhava ao mesmo ritmo—. Ele pensa exatamente o mesmo que
Matthew.
—Que Sir Arthur foi assassinado? —exclamou Harriet boquiaberta—. De verdade?
Mas ele é polícia! Como é possível que chegue a pensar que...? Tem certeza?
—Pois sim. Suponho que já saberá que esse tipo de sociedades existem.
—Oh, vamos, já sei que existem os delinqüentes. Qualquer que viva um pouco no
mundo sabe perfeitamente —protestou Harriet.
Charlotte recordou de repente que quando ela tinha a idade do Harriet, e antes de
conhecer o Pitt, sua concepção do mundo era igualmente inocente. Não só desconhecia o
que era a delinqüência; muito pior que isso, não tinha a menor idéia do que significava a
pobreza, ou o analfabetismo ou as enfermidades endêmicas, ou a desnutrição e suas
conseqüências, como raquitismo, tuberculose, escorbuto e coisas assim.
Imaginava que o delito era exclusivo de gente violenta, falsa e malvada de
nascimento. O mundo se reduzia então a uma simples divisão entre o branco e o negro.
Não ia esperar que Harriet Soames compreendesse a infinidade de tons cinzas, que só a
experiência podia ensinar, nem que conhecesse todo aquilo que ficava excluído de sua
vida e seus limites. Não era justo.
—Mas você não sabe as coisas que Sir Arthur dizia!—continuou Harriet—. E a quem
acusava!
-se ao final resultar que não é verdade— disse Charlotte com tato e procurando
escolher as palavras—, então Thomas terá que dizer ao Matthew, por muito que a este
doa. E só assim Matthew acabará aceitando-o, porque não haverá alternativa alguma.
Além disso, ele sabe que Thomas defende a prudência de Sir Arthur tanto como ele.
Acredito que o melhor é que não digamos nada, não lhe parece?
—Sim, sim; tem você razão—disse Harriet com alívio. Já se aproximavam do último
lance do passeio que conduzia à casa. Tinham deixado atrás a sombra dos olmos e agora
caminhavam a pleno sol. Frente à entrada da casa se viam várias carruagens e os
cavalheiros que tinham chegado nelas estavam entrando para o convite de costume. Era o
momento de unir-se a eles.
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Justo quando Pitt já estava a ponto de partir teve a oportunidade de falar com o
Danforth e de lhe fazer algumas perguntas sobre o acontecido com os cães. Sir Arthur
sempre tinha querido muito a seus animais.
Se o fato de achar dono para os cachorrinhos de sua cadela era algo que tivesse
tomado muito à ligeira, então teria que reconhecer que não era a mesma pessoa que tinha
conhecido. Mas o problema não estava em que tivesse esquecido por completo o
combinado; segundo Danforth, os tinha vendido a outra pessoa.
Tropeçou com o Danforth no vestíbulo, e também a ponto de partir. Ainda parecia um
pouco incômodo, como se não soubesse com certeza se sua presença era adequada ou
não. Certamente sentia algum remorso de consciência pelo que tinha declarado ante o juiz.
Sempre tinha sido um bom vizinho e um bom amigo. Nunca houve más relações
entre as duas propriedades, embora a do Danforth era muito menor.
—Boa tarde, senhor Danforth—disse Pitt dirigindo-se para ele como por acaso—.
Alegra-me vê-lo tão bem.
—É... boa tarde— respondeu Danforth forçando a vista um pouco para identificar a
seu interlocutor. Por seu aspecto, talvez pensou que Pitt vinha de Londres, e entretanto
soube reconhecer nele um ar que lhe resultava familiar.
—Thomas Pitt —ajudou—o Pitt.
—Pitt? Pitt, Ah, claro! O filho do guarda florestal, já me lembro— disse com uma
sombra na expressão do rosto, e de repente, Pitt retornou ao passado e recordou como se
fora ontem a desgraça, o medo e a vergonha que sentiu ao ver como acusavam a seu pai
de caçar furtivamente.
Não tinha sido nas propriedades do Danforth, mas aquilo agora era o de menos. A
pessoa que tinha denunciado a seu pai para que o encerrassem no cárcere, onde
finalmente morreu, pertencia à mesma classe social do Danforth, outro latifundiário como
ele, e os caçadores furtivos eram um inimigo comum.
Pitt sentiu como lhe ardia o rosto ante a lembrança de toda aquela antiga humilhação,
o ressentimento por sentir-se inferior, néscio e ignorante das normas.
Era absurdo, agora era polícia, e dos mais importantes. Ele mesmo tinha detido a
homens melhores que Danforth, mais inteligentes, mais ricos e mais poderosos, homens
de melhor sangue e linhagem.
—Superintendente Pitt, do Bow Street—disse Pitt com frieza embora lhe travasse a
língua.
Danforth ficou surpreso.
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—Por Deus bendito! Espero que não tenha vindo por trabalho. Já saberá que o pobre
homem morreu por...—disse sem acabar a frase e soltando um suspiro—.
Suponho que os superintendentes não investigam os casos de suicídio. Será muito
difícil demonstrá—lo, e certamente não serei eu quem o ajude! —exclamou com o rosto
imperturbável, embora ligeiramente ofendido.
—Vim honrar a memória de um homem a quem queria muito—sentenciou Pitt
apertando os dentes—, e a quem devo, além disso, quase tudo o que tenho. Assim como a
você, minha presença nesta casa nada tem que ver com o trabalho.
—Então nada, homem. Mas por que teve que dizer você que é da polícia? —quis
saber Danforth. Tinha ficado em ridículo e estava aborrecido por isso.
Pitt o tinha feito para lhe deixar bem claro que já não era o filho do guarda-florestal,
mas não podia dizer-lhe.
—Estive na audiência com o juiz—disse desviando o tema—. Ouvi o que disse sobre
os cachorrinhos. Sir Arthur sempre cuidou muito bem de seus cães.
—E de seus cavalos—disse Danforth enrugando o cenho—. Mas foi por isso que me
dei conta de que o pobre velho estava perdendo faculdades. Não só me prometeu que
poderia levar os que eu quisesse da isca de peixe, inclusive me acompanhou para que os
escolhesse. E depois, maldita seja, vai e os vende ao Bridges—disse sacudindo a
cabeça—.
Posso compreender um simples esquecimento, todos acabamos nos esquecendo de
alguma coisa à medida que nos fazemos velhos, mas ele estava convencido de que eu lhe
havia dito que não os queria. Estava seguro disso. Por isso me pareceu tão estranho. É
muito triste, é terrível morrer assim. Mas me alegro de vê-lo por aqui, senhor é...
superintendente.
—Bom dia— respondeu Pitt despedindo-se dele, e, movido por um impulso deu meia
volta e se dirigiu para a cozinha da casa.
Sabia perfeitamente aonde ia. Conhecia tão bem o artesanato das paredes que podia
reconhecer até a mais mínima variação da madeira, que partes eram mais lisas e escuras
pela infinidade de mãos que as haviam tocado, ou pelo roçar que faziam ao passar os
ombros de mordomos e lacaios, ou as saias das criadas, governantas e cozinheiras desde
há gerações.
Ele mesmo tinha deixado seu rastro na época em que sua mãe tinha trabalhado ali,
mas na longa história da casa, era como se tudo aquilo tivesse passado ontem. Ele e
Matthew estavam acostumados a penetrar na cozinha para pedir leite, bolachas e restos
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de pasteizinhos.
Matthew costumava fazer muitas brincadeiras com às criadas e em uma ocasião
colocou uma rã na sala de estar da governanta. A senhora Thayer odiava as rãs. Matthew
e Pitt se retorceram de risada ao ouvir o grito da mulher. Depois os castigaram a comer
pudim de tapioca durante toda uma semana, mas não lhes pareceu um preço muito alto
tendo em conta o muito que tinham desfrutado.
O aroma da madeira encerada, das grandes cortinas e o chão sem tapetes era
indefinível, mas tão penetrante que não se teria surpreendido se ao olhar-se ao espelho
tivesse visto o menino de doze anos, de pernas longas, o olhar firme de seus olhos cinzas
e o cabelo despenteado.
Ao entrar na cozinha, a cozinheira, com seu vestido de bombasí negro coberto por
um avental, lançou-lhe um olhar de recriminação. Não era da época do Pitt, de modo que
para ela, ele era um estranho.
Estava aturdida pela morte do dono da casa; tinham-lhe permitido assistir à
cerimônia, mas também era a responsável por preparar o convite.
—Perdeu-se, senhor? Se der meia volta, voltará para os salões – disse assinalando a
mesma porta pela qual tinha entrado.
—Lizzie, vêem e lhe mostre ao cavalheiro...
—Obrigado, Cook, mas estou procurando o guarda-florestal. Anda o senhor Sturges
por aqui? Tenho que falar com ele sobre os cães de Sir Arthur.
—Não sei nada, senhor, mas hoje é um mau dia para falar disso.
—Meu nome é Thomas Pitt. Eu também vivi aqui.
—Oh, o jovem Tom! Eu não queria,—começou ruborizando-se—. Eu não queria...
—Não se preocupe—disse ele com um gesto complacente—. Só quero falar com o
senhor Sturges. Sir Matthew me pediu que esclarecesse certo assunto e necessito a ajuda
do Sturges.
—Oh, bom. Estava aqui faz uma meia hora e acredito que foi às quadras. Com
enterro ou sem enterro, terá que continuar cuidando de tudo. Certamente o achará ali.
—Obrigado— disse ele passando junto a ela e olhando de esguelha as fileiras de
frigideiras e bules e o enorme fogão de ferro forjado que ainda despedia calor, inclusive
com o forno e as bocas tampados.
Os armários estavam repletos de peças de louça, e a despensa estava fechada,
assim como os recipientes de madeira aonde guardavam a farinha, o açúcar, a aveia e as
lentilhas. As verduras estariam certamente na copa e as carnes estariam penduradas no
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quarto frio. Seguindo pelo corredor e a mão direita se achava o tanque.
Pitt saiu pela porta de trás da cozinha, desceu os degraus e virou para a esquerda de
maneira inconsciente. Teria conhecido o caminho inclusive com os olhos fechados.
Encontrou ao Sturges frente à porta do quarto das maçãs, um lugar ventilado com
muitas prateleiras de madeira aonde se guardavam as maçãs no outono, e, cuidando de
que não se tocassem umas com outras, geralmente se tinham ali todo o inverno e até bem
entrada a primavera.
—Olá, jovem Tom!— disse sem mostrar surpresa alguma—. Alegra-me que tenha
vindo para o enterro – acrescentou lhe olhando nos olhos.
Era uma relação difícil que tinha necessitado muitos anos para chegar ao ponto no
qual se achava. Sturges tinha substituído a seu pai, algo pelo que Pitt ainda não lhe tinha
perdoado. Ele e sua mãe tiveram que abandonar a casa do guarda-florestal e todos seus
pertences ficaram dentro, tudo aquilo com o que se tinham acostumado a viver, coisas
como a mesa e a despensa da cozinha, a lareira, uma poltrona muito cômoda e a banheira
de lata.
Pitt tinha ali seu quarto próprio com uma pequena água-furtada que dava a uma
macieira.
Tiveram que mudar-se às dependências da criadagem dentro da casa senhorial, mas
não era o mesmo. O que era um quarto comparado com uma casa própria, com sua porta
de entrada e sua cozinha?
É claro era plenamente consciente da sorte que tinham tido de que Sir Arthur tivesse
dado refúgio à mulher do guarda-florestal e a seu filho e de que lhes tivesse acolhido tanto
se acreditava na inocência de seu pai como se não. Outros não teriam feito ou mesmo; em
realidade, muitos disseram que estava louco por fazer algo assim.
Mas isso não impediu que Pitt sentisse verdadeiro ódio por Sturges e sua mulher por
ter ocupado a casa do guarda-florestal e que vivessem ali comodamente ao calor da
lareira.
A partir de então, Sturges começou a percorrer os campos e os bosques que tinham
sido o trabalho e também a felicidade de seu pai. O novo guarda-florestal tinha mudado
muito poucas coisas, e isso era talvez o pior de tudo, especialmente se tal mudança tinha
servido para piorar algo.
Mas quando melhorava, então a ofensa era muito pior.
Mas o tempo tinha suavizado bastante as coisas e, além disso, Sturges era um
homem tranqüilo e paciente. Conhecia muito bem os costumes e as normas do lugar.
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Tampouco ele se livrou de exercer de caçador furtivo sendo muito jovem, e sabia
muito bem que tinha sido pela misericórdia de Deus ou pela boa fé do proprietário que não
lhe tivessem pego.
Não emitia nenhum julgamento sobre a inocência ou a culpa de seu pai, só dizia que
no caso de que fosse culpado, era o homem mais idiota do mundo.
E além disso amava os animais. A princípio de forma provisória, e logo como algo
que já se dava por sentado, Sturges deixou que o jovem Thomas o ajudasse em seu
trabalho. A relação começou em meio de um silêncio cheio de receios, mas à medida que
a cooperação se foi fazendo mais necessária entre os dois, o gelo acabou por romper-se.
Foi, sobretudo, a partir do que aconteceu um dia a primeira hora da manhã, por volta
das seis e meia, quando o sol começava a aparecer por entre os campos ainda úmidos
pelo orvalho. Era primavera e as flores silvestres cresciam em abundância entre as sebes
e árvores, os castanheiros tinham já suas novas folhas, enquanto que as haja e os olmos
mostravam uns brotos que floresceriam um pouco mais tarde. Encontraram um mocho
ferido e Sturges o levou a casa. Juntos o estiveram cuidando até que se recuperou e
puderam soltá-lo no bosque.
Depois voltaram a vê-lo mais de uma vez, no verão, sobrevoando a quadra com suas
asas abertas e majestosas, caçando ratos e atravessando a luz do lampião qual mesmo
um fantasma, até que desaparecia de novo.
A partir daquele ano, os dois se mostraram mais compreensivos o um com o outro e
em nenhum momento se reprovaram nada.
—Claro que vim— respondeu Pitt, respirando com dificuldade. O quarto das maçãs
despedia um aroma doce e seco, um pouco rançoso, mas cheio de lembranças—. Sei
muito bem que tinha que ter vindo antes. Não é preciso que me recorde isso.
—Sim, bom, mas isso já sabe—disse Sturges sem afastar os olhos do rosto do Pitt—.
Mas está muito bem. Um pouco estranho com esse traje de cidade. Agora é
superintendente, não é? E te dedica a deter às pessoas, não?
—Só por assassinato e traição— replicou Pitt—. É melhor que essa gente esteja
encerrada, não?
—Oh, sim. A verdade é que eu não poderia assassinar a ninguém, não tenho tempo.
Mas vejo que te foi muito bem, né?
—Sim.
Sturges mordeu o lábio.
—Tem mulher? Ou está tão ocupado melhorando sua posição que ainda não tem
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noiva?
—Sim, tenho mulher e dois filhos; um menino e uma menina— disse sem poder evitar
um certo tom de orgulho em suas palavras.
—De verdade?—perguntou Sturges olhando-o fixamente. Fazia o possível por seguir
com a mesma expressão de severidade, mas em seguida lhe delatou um brilho de
satisfação nos olhos—. E onde estão agora? Em Londres?
—Não, Charlotte está aqui comigo. Trarei-a para que a conheça.
—Só se quiser — disse Sturges, procurando dar a impressão de que não lhe
importava absolutamente. Deu-lhe as costas e começou a ordenar distraidamente um
montão de palha.
—Mas antes, quero que me conte o que aconteceu com o senhor Danforth e os
cães—disse Pitt.
—Não posso fazê-lo, Tom, sinto muito. Danforth nunca me foi muito simpático, mas
que eu saiba sempre foi um bom homem. E muito preparado.
—É certo que escolher dois cachorrinhos?
—Sim, é—o respondeu enquanto reunia um montão de palha—. E ao cabo de duas
semanas enviou a um de seus criados com uma nota dizendo que já não os queria.
E duas semanas depois veio levar os cães e se zangou muito por não poder levá-los.
Disse algumas coisas muito pouco agradáveis sobre Sir Arthur. Teria gostado de lhe dizer
um par de coisas bem grosseiras, mas Sir Arthur não me tinha deixado.
—Viu você mesmo essa nota ou foi Sir Arthur quem te falou dela?
Sturges deixou o montão de palha e olhou fixamente ao Pitt.
—Claro que a vi! Estava dirigida a mim, posto que eu sou o encarregado de cuidar
dos cães; além disso, nesse momento Sir Arthur se achava em Londres.
—Que estranho—disse Pitt com a cabeça cheia de idéias que se atropelavam—. Mas
tem razão. Acredito que alguém não está jogando limpo.
—Jogando ? Para mim, o que passa é que Danforth já está envelhecendo.
—Não necessariamente, embora o pareça. Tem essa nota?
—Por que? Para que ia guardá—la? Já não serve de nada.
-serve para demonstrar que é Danforth quem não disse a verdade, e não Sir Arthur—
respondeu Pitt.
—E por que terá que demonstrar isso? —exclamou Sturges com uma careta—. Como
pode haver alguém capaz de pensar que Sir Arthur não tinha razão?
De repente, Pitt sentiu que o coração lhe enchia de felicidade, e se viu si mesmo
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sorrindo apesar das circunstâncias. Sturges era um homem leal, embora muito ciumento
das coisas que só ele sabia.
—Sturges, sabe algo do acidente que teve Sir Arthur quando se cruzou com outro
cavalo e o cavaleiro o açoitou com o chicote?
-sei algo—disse Sturges com tristeza e enrugando o rosto como desconcertado.
apoiou-se sobre uma das prateleiras cheias de maçãs—. Mas, por que faz tantas
perguntas, Tom? E além disso, quem lhe contou isso? Matthew? –perguntou como se
ainda não se acostumasse à idéia de que Matthew fosse seu amo, o herdeiro do título.
Fora se ouviu o relincho de um cavalo e Pitt reconheceu o som dos cascos sobre o
pavimento da quadra.
—Sim. Segundo ele, é muito provável que não fosse um acidente— disse Pitt
procurando não responder por ele insinuando que talvez se tratara de uma ameaça por
parte de alguém.
—Que não foi um acidente?—perguntou Sturges com rosto de desconcerto, mas sem
que a idéia lhe fosse tão estranha—. Bom, segundo como se olhe, talvez não foi. Veio um
louco como se nunca tivesse subido a um cavalo.
Para mim um acidente é algo que ninguém pode evitar, salvo Deus nosso Senhor.
Com um pouco mais de cuidado, nada teria passado. Chegou galopando rua abaixo como
um novato, dando golpes à direita e esquerda com o chicote. Foi uma sorte que ninguém
mais ficasse ferido, além de Sir Arthur e do cavalo que montava esse dia.
O pobre animal recebeu muitos golpes na cabeça e no lombo. Passaram várias
semanas até que se recuperou. Ainda tem medo da vara e certamente o terá sempre.
—Quem era o cavaleiro?
—Não sei— respondeu Sturges visivelmente contrariado—. Suponho que algum
forasteiro idiota. Ninguém por aqui o conhecia.
—Chegou alguém a saber quem era? Sabe-se agora?—continuou perguntando Pitt.
A cálida luz do sol entrava pela porta do quarto de maçãs. Um cachorro perdigueiro
de cor palha pôs a cabeça dentro e começou a mover a cauda como esperando algo.
—Eu não sei— respondeu Sturges um pouco zangado—. Se chegar a saber quem
foi, lhe teria dado o seu —afirmou desafiante, embora houvesse mais intenção que outra
coisa, mas Pitt sabia que sentia o que dizia.
—Quem mais viu o que aconteceu?—perguntou-lhe Pitt.
O cão entrou no quarto e Sturges o acariciou automaticamente.
—Ninguém, que eu saiba. O carreteiro o viu passar ao galope, e o ferreiro também,
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mas não viram como batia em Sir Arthur. Por que? O que tenta me dizer? Que foi culpa de
Sir Arthur? Que ele se meteu no meio?
—Não— disse Pitt sem sentir-se aborrecido ante sua raiva nem porque ficasse na
defensiva—. Não, o que digo é que talvez não foi um acidente. É possível que aquele
homem esporeasse o cavalo com a única intenção de atacar a Sir Arthur em galope e de
açoitá-lo com o chicote.
Sturges fez cara de surpresa e incredulidade.
—E por que ia alguém fazer isso? Não o entendo. Sir Arthur não tinha inimigos.
Pitt não sabia até que ponto podia contar a verdade ao Sturges. É possível que se
mostrasse ainda mais desconfiado se lhe falava do Círculo Interior.
—E quem não os tem?
—Sir Arthur não tinha inimigos. Pelo menos aqui não—replicou Sturges olhando-o
atentamente.
—Dizia também ele o mesmo?
—O que é o que sabe, Tom? O que tenta me dizer?
—Que Sir Arthur supunha um perigo para certo grupo ao que pertencia, e sobre o que
estava a ponto de descobrir alguns assuntos muito feios.
Sir Arthur se propôs desmascarar essa gente e o acidente não foi mais que uma
advertência para que não rompesse o pacto de silêncio que tinham feito—respondeu Pitt.
—Oh, sim, esse Círculo do que às vezes falava— disse Sturges piscando—. Mas isso
é arriscar-se muito. Poderiam havê-lo matado!
—Ouviste falar do Círculo? —quis saber Pitt surpreso.
—Oh, sim. Já te hei dito que às vezes falava dele. Má gente, dizia; mas estão em
Londres, não?—disse, e acrescentou como duvidando de algo e olhando ao Pitt—. Está
pensando o mesmo que eu, Tom?
—Diria que Sir Arthur não estava bem da cabeça e que imaginava coisas estranhas?
—Claro que não! Preocupado talvez, e bastante zangado pelo que dizia que ia
acontecer no estrangeiro, mas estava tão lúcido como você e como eu—disse sem
afetação alguma, sem tratar de convencer-se a si mesmo de algo que lhe fizesse duvidar
em seu interior.
Tanto pelo convencimento com o que falava, como pelas palavras que tinha
empregado, Pitt ficou convencido de sua sinceridade.
De repente, sentiu-se muito aliviado e quase feliz e se surpreendeu a si mesmo
dando ao Sturges um sorriso.
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—Então lhe direi que sim— respondeu com firmeza—. Acredito que estamos
pensando o mesmo. O do cavalo foi uma advertência que ainda despertou mais a ira de Sir
Arthur, mas sua integridade estava acima de tudo e não quis fazer conta.
Por isso o assassinaram. Ainda não sei como o fizeram nem se há algum modo de
poder demonstrá-lo, mas lhe asseguro que não descansarei até que o consiga.
—Alegra—me ouvir isso, Tom. De verdade que me alegra— disse Sturges com
tranqüilidade inclinando-se um pouco para arranhar a cabeça do cão—. Eu não gosto que
haja gente pensando dele essas coisas sem havê-lo conhecido. Não sou um homem
violento.
Muitas pessoas morrem injustamente, mas queria ver pendurado a quem lhe fez
isso. O povoado inteiro lhe agradecerá se o conseguir, e falo em nome de todos— disse, e
não acrescentou que também todos lhe perdoariam o fato de não ter tornado antes ao
Brackley, mas o disse com a expressão do rosto. Talvez fosse algo muito delicado para
dizer com palavras.
—Farei tudo o que possa— respondeu. Pitt sabia o que fazer uma promessa sem
estar seguro de cumpri-la podia significar uma segunda traição. Sturges não era um
menino a quem tinha que dar umas palavras de consolo em lugar da verdade.
—Sim. Bom, se houver algo que eu ou alguém do povoado possamos fazer, já sabe
onde estamos. E agora será melhor que volte junto aos outros ou começarão a sentir sua
falta.
—Vou trazer lhe Charlotte para que a conheça.
—Isso já o disse antes e ainda não a vi.
Na manhã seguinte, Pitt retornou a seu escritório no Bowl Street.
Mal tinha cruzado a soleira da porta quando viu entrar o inspetor Tellman, com a
mesmo rosto longo e ressentido de sempre. Tellman não tinha mais remedio que lhe
mostrar respeito, tanto na maneira de dirigir-se a ele como interiormente, por sua provada
capacidade no trabalho.
Entretanto, sentia como uma ofensa pessoal que Pitt, a seu julgamento muito pouco
acima dele do ponto de vista social e certamente ao mesmo nível profissional, tivesse
subido a um posto de maior responsabilidade para substituir ao Drummond. Este sim era
um cavalheiro e aí radicava a diferença.
O normal é que os cargos mais importantes os ocupassem os cavalheiros, à margem
de sua capacidade para o trabalho, daí que tomasse como algo pessoal o fato de que
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tivessem promovido Pitt.
—Bom dia, senhor Pitt—disse em tom áspero—. Ontem lhe sentimos falta, senhor.
Há alguns temas pendentes— disse como se tivesse estado toda a noite esperando.
—Bom dia, Tellman. Estive no Hampshire, em um enterro familiar. O que é o que
temos?
Tellman fez uma careta com os lábios e nem sequer se incomodou em lhe dar os
pêsames, mas aquilo era algo que passava com todo mundo. Era um homem que se
emocionava facilmente, mas por nada do mundo teria compartilhado um só sentimento
com o Pitt.
—É sobre aqueles homens que você ordenou que vigiássemos – respondeu
Tellman—. É um pouco difícil quando nem sequer sabemos o que estamos procurando
nem por que razão. São todos uns cavalheiros muito respeitáveis. O que fizeram?
—Isso é precisamente o que quero averiguar— respondeu Pitt com brusquidão.
Não gostava do fato de não poder lhe dizer tudo o que sabia. Seu instinto lhe dizia
que podia confiar no Tellman, mas era um risco muito grande. O Círculo podia estar em
qualquer parte.
—Chantagem—disse Tellman misteriosamente—. Não é fácil, mas a gente pode
chantagear a um homem por uma dúzia de razões, sobre tudo por fraude, roubo ou por
estar fornicando com quem não deve—prosseguiu dizendo sem mudar de expressão,
embora falasse com um desprezo que parecia encher todo o escritório—.
Claro que tratando-se de cavalheiros tão respeitáveis, não é nada simples averiguar
quem é essa mulher com a qual não deve estar e a quem lhe importa.
Há mais de um cavalheiro que troca de mulher e de amante como se de um livro se
tratasse, e tudo vai bem enquanto ninguém o surpreenda lendo—o. Tampouco acontece
nada por muito que sei, saiba. Todo mundo sabe o que faz o príncipe do Gales e a
ninguém importa.
—Poderiam começar investigando a situação econômica de cada um —propôs Pitt,
fazendo caso omisso do que o outro lhe havia dito. Já conhecia sobradamente as opiniões
do Tellman—. Talvez descubramos que alguém vive muito acima do que poderia permitirse segundo seus ganhos.
— Extravio de recursos?—perguntou Tellman surpreso—. E que recursos há no
Ministério de Colônias que se possam extraviar?—disse em um tom muito sarcástico—.
Olhe, senhor alfaiate, sinto-o muito mas este mês não lhe posso pagar como sempre, aqui
tem um par de telegramas procedentes da África e desse você por pago—disse, e de
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repente mudou a expressão do rosto e lhe brilharam os olhos como se acabasse de
descobrir algo—. Um momento! É isso! verdade? Alguém está vendendo informação! O
que você procura é um traidor! Por isso não diz nada.
—E continuo sem dizer nada—disse Pitt, dissimulando sua surpresa ante a intuição
do Tellman e olhando-o fixamente—.
Pode imaginar o que quiser, mas guarde-o para você. O delegado se zangará muito
se chegar a saber que mencionamos sequer tal possibilidade, e me atrevo a dizer que o
primeiro—ministro terá razão em zangar-se ainda mais.
—Mandou-o chamar o primeiro—ministro?—disse Tellman, impressionado ante a
idéia e apesar de sua opinião sobre o Pitt.
—Não. Não falei com o primeiro—ministro e o único lugar do Downing Street no que
estive foi no Ministério de Colônias. Mas ainda não me contou o que têm descoberto.
Tellman o olhou receoso.
—Nada que pareça importante. Jeremiah Thorne é a virtude em pessoa. Parece
muito apaixonado por sua mulher, que por certo é extraordinariamente feia, e gasta muito
dinheiro em uma fundação destinada à formação de mulheres.
Isso é algo que todo mundo rechaça, exceto os mais modernos, claro, mas no pior
dos casos poderia fazer um escândalo se alguém o propusesse. Em qualquer caso, não é
algo ilegal e sua mulher não o faz em segredo.
De fato inclusive o defende publicamente a toda custa. Se a alguém ocorre lhe fazer
chantagem por isso, estou certo de que ela não desperdiçaria a ocasião de ganhar
notoriedade.
Pitt também sabia o que tinha que certo naquelas palavras.
—Que mais?
—Hathaway é um cavalheiro muito normal que vive só e muito tranqüilo, e que toma a
sério seus pequenos prazeres. Lê muito, de vez em quando vai ao teatro e se houver bom
tempo dá largos passeios —recitou Tellman sem entusiasmo, como se o sujeito em
questão fosse tão aborrecido como os detalhes que dele estava dando—.
Conhece muitas pessoas, mas sua relação com elas não deixa de ser de simples
cordialidade. Janta em seu clube uma vez por semana. É viúvo e tem dois filhos já maiores
e tão respeitáveis como ele, um deles trabalha no Serviço de Colônias e o outro pertence à
Igreja. —Tellman desenhou um arco com os lábios—. É um homem de bom gosto e gosta
das coisas de qualidade, mas não muito caras.
Parece que vive em consonância com o que cobra. Além disso, ninguém diz nada
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mau dele.
Pitt suspirou.
—E Aylmer? Também é um modelo de virtude?
—Não muito—disse Tellman com uma sombra de ironia em sua expressão—. Tem
uma cara muito pouco agraciada, mas isso não impede que goste das mulheres. É um
sedutor completamente inofensivo— disse dando de ombros—.
Pelo menos isso me pareceu pelo que pude descobrir até agora. Mas continuo
investigando ao Aylmer. Gasta muito dinheiro, acredito que mais do que se pode permitir
pelo que tem vontade.
—Mais do que ganha no Ministério de Colônias?—perguntou Pitt com repentino
interesse e com uma pontada de remorso.
—Isso parece— respondeu Tellman—. Claro que poderia ter economizado, ou talvez
tem algum negócio privado. Ainda não sabemos.
—Alguma mulher em particular?
—Uma tal Amanda Pennecuick. Uma senhorita muito bonita, por certo, e de bom
berço.
—E mostra ela algum interesse por ele?
—Não muito, mas ainda não o rechaçou—disse como se aquilo lhe fizesse graça—.
Se está pensando você na possibilidade de que ela vá atrás do Aylmer com o único fim de
obter informação dele, então é que a senhorita Pennecuick é muito esperta.
Pelo que pude ver, ela faz todo o possível por evitar ao Aylmer, mas à vista está que
de momento não o conseguiu.
—Talvez isso é o que quer: não consegui—lo, mas que todo mundo veja que o tenta
—indicou Pitt—, sim o que você diz é certo. Investigue também à senhorita Pennecuick.
Saiba quem são suas amigas, seus outros admiradores, de onde vem e que relação pode
ter com...—disse Pitt sem terminar a frase. Devia mencionar aos alemães?
Tellman esperava. Era muito esperto para deixar-se enganar. Sabia muito bem a que
obedecia a vacilação do Pitt e isso o incomodava.
—Com a Alemanha, Bélgica ou África —concluiu Pitt—. Ou com qualquer outra coisa
que chame a atenção.
Tellman colocou as mãos nos bolsos. Não queria ser insolente; era uma reação
instintiva de falta de respeito.
—Esqueceu-se do Peter Arundell e do Robert Leicester—lhe recordou Pitt.
—Nada interessante—respondeu Tellman—. Arundell é um jovem muito bonito de
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boa família. O menor.
O major herdou o título, o segundo comprou um emprego de oficial no exército e o
terceiro trabalha no Ministério de Colônias; este é o nosso. Acredito que herdou um
benefício que a família tem em alguma parte do Wiltshire.
—Um benefício?—perguntou Pitt um pouco confundido.
—A Igreja—disse Tellman sentindo-se satisfeito de ter desconcertado ao Pitt—. As
famílias com dinheiro freqüentemente gozam do benefício de uma bolsa eclesiástica, que
podem ceder a quem querem. Há paróquias que dão muito dinheiro. Pelos dízimos.
Onde eu nasci, o sacerdote tinha três, de modo que alugava os serviços de um
vigário ou de outro cura para cada uma delas. O titular vivia na Itália dos benefícios. Agora
já não se usa, mas antes sim.
Pitt esteve a ponto de dizer que já sabia todo aquilo, mas se conteve. Em qualquer
caso, Tellman não lhe teria acreditado.
—E o que tem sobre Arundell? Que classe de homem é?—perguntou sabendo que
pouco importava. Ele não tinha acesso à informação sobre Zambeze.
—Justo o que você esperava—respondeu Tellman—. Vive em um piso de aluguel em
Belgrave, vai a muitas reuniões sociais, tem roupa cara e gosta de comer bem, embora
esteja acostumado a ser a custa de outros. É solteiro e certamente um bom partido. Todas
as mães com filhas em idade de casar-se andam atrás dele, excetuando, claro, às que
aspiram a algo mais. Mas com certeza não demorará para casar-se —concluiu Tellman
com uma ligeira careta de desagrado.
Detestava aquele mundo da alta sociedade e nunca desperdiçava a ocasião de
manifestá—lo.
—E Leicester?
Tellman grunhiu.
—Mais ou menos o mesmo.
—Nesse caso, será melhor que se ocupe da Amanda Pennecuick —ordenou Pitt—.
E, Tellman, por favor...
—Sim, senhor?—perguntou sem abandonar um certo tom de sarcasmo e com um
olhar muito desafiante.
-seja discreto—disse Pitt aceitando o desafio e olhando ao Tellman nos olhos.
Não foi preciso dizer nada mais. Eram duas pessoas completamente diferentes
quanto a sua procedência e sua escala de valores. Pitt vinha do campo, e tinha um
respeito inato, por não dizer um carinho, pela aristocracia latifundiária que tinha construído
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sua própria vida e a que tanto devia.
Tellman era da cidade e tinha nascido entre a pobreza, e detestava a todo aquele que
tivesse nascido com dinheiro, a quem além disso considerava um folgazão.
Era gente que não tinha criado nada, e que só consumia sem dar nada em troca.
Quão único ele e Pitt tinham em comum era sua dedicação à polícia, mas só isso já
bastava para que pudessem compreender-se, pelo menos a esse nível.
—Sim, senhor Pitt—disse esboçando um sorriso, e dando meia volta partiu.
Meia hora depois, o delegado Farnsworth mandou chamar o Pitt a seu escritório.
A nota estava escrita em tais termos que não deixava lugar a menor demora, de
modo que Pitt saiu do Bow Street e pegou uma carruagem para o Scotland Yard para
apresentar-se a seu superior.
—Ah—disse Farnsworth levantando a vista de sua escrivaninha assim que ouviu
entrar Pitt. Esperou que o recém-chegado fechasse a porta e continuou—. Sobre esse
assunto do Ministério de Colônias, o que descobriu?
Pitt não sabia como lhe dizer que em realidade era muito pouco o que sabia.
—De momento não parece que ninguém tenha feito nada mau—respondeu—, exceto
talvez Garston Aylmer—disse, e viu como Farnsworth fazia expressão de interesse,
embora preferiu não lhe fazer muito caso—. Parece que sente certa debilidade por uma tal
miss Amanda Pennecuick, mas pelo visto o interesse não é mútuo. Ele é bastante feio e
ela extremamente bonita.
—Mas isso é freqüente—disse Farnsworth visivelmente decepcionado—. Não me
parece algo suspeito, Pitt, é um dos muitos desenganos que nos dá a vida. Não ser muito
bonito ou declaradamente feio não é algo que tenha impedido a ninguém apaixonar-se
pelo belo. Pode chegar a ser muito doloroso, inclusive trágico, mas nunca será um delito.
—Muitos delitos se cometem por culpa de uma tragédia como essa—lhe replicou
Pitt—. Todos reagimos de maneiras distintas frente à dor, sobretudo se a dor produz algo
que está fora de nosso alcance.
Farnsworth o olhou com uma mescla de impaciência e desprezo.
—Pode você roubar de um bolo de carne até um colar de diamantes, mas nunca
conseguirá roubar o afeto de uma mulher, Pitt. Além disso, não estamos falando de um
homem capaz de cair tão baixo para cometer um roubo.
—É evidente que algo assim não se pode roubar— replicou Pitt em tom igualmente
irônico—. Mas às vezes se pode comprar, ou pelo menos se pode comprar algo que lhe
pareça o bastante. Não seria o primeiro homem feio em consegui-lo.
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Farnsworth se mostrava resistente a lhe dar a razão, mas não teve mais remédio que
fazê-lo. Tinha vivido muito para discutir um tema como aquele.
—Você acha que vende informação aos alemães em troca de dinheiro para comprar
presentes ou o que seja que ela queira?—perguntou com inapetência—. De acordo.
Investigue—o. Mas, pelo amor de Deus, seja discreto, Pitt. Talvez se trata de um homem
perfeitamente honrado que só se apaixonou por quem não devia.
—De fato, também pensei na possibilidade de que essa tal senhorita Pennecuick
esteja relacionada de algum modo com os alemães; é possível que Aylmer não esteja
vendendo informação por dinheiro, mas sim ela seja quem está surrupiando essa
informação em troca de seu favor pessoal. Já sei que é pouco provável, mas de momento
não temos nada mais.
Farnsworth mordiscou o lábio inferior.
—Tente descobrir tudo o que possa sobre—lhe ordenou—. Quem é, de onde vem e
com quem se relaciona.
—Tellman já o está investigando.
—Esqueça-se do Tellman. Quero que você faça o mesmo— disse Farnsworth
franzindo o cenho—. Como certo, onde esteve ontem, Pitt? Ninguém o viu em todo o dia.
—Estive no Hampshire, em um enterro familiar.
—Mas não tinham morrido seus pais faz tempo?—perguntou Farnsworth em tom
inquisitivo.
—Assim é. O enterro era de um homem que me tratou como a seu próprio filho.
Farnsworth ficou olhando fixamente com seus olhos azul claro.
—Ah, sim?—disse sem perguntar de quem se tratava e sem que Pitt pudesse
adivinhar pela expressão de seu rosto se já sabia.
—Acredito que foi à audiência com o juiz sobre a morte de Sir Arthur Desmond—
prosseguiu—. É certo isso?
—Sim.
—E por que? —quis saber arqueando as sobrancelhas—. Não há nenhum caso que
investigar aí. É uma tragédia que um homem de sua talha acabasse dessa maneira, mas
os anos e a enfermidade não perdoam a ninguém. Deixe-o, Pitt, ou não fará mais que
piorar as coisas.
Pitt o olhou fixamente com uma cara de raiva e surpresa que Farnsworth interpretou
como de incompreensão.
—Quanto menos se saiba deste assunto, menos coisas terão que arejar-se— disse
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um pouco irritado ante a lentidão de reflexos do Pitt—. Não deve permitir que este
lamentável fato acabe afetando a seus sócios e amigos.
Não faça caso da gente. Esqueçamos tudo isto e recordemo-lo como o homem que
sempre foi antes de que começassem suas obsessões.
—Obsessões?—perguntou Pitt como surpreso. Sabia muito bem que nada ia
conseguir discutindo o tema com o Farnsworth, mas tampouco podia evitá-lo.
—Sobre a África—explicou Farnsworth com impaciência—. Sobre conspirações,
tramas secretas e coisas assim. Sir Arthur estava convencido de que o perseguiam.
Já conhecemos todos este tipo de ilusões, mas nem por isso deixa de ser algo triste e
doloroso. Pelo amor de Deus, Pitt, se tanto respeito tem a sua memória, procure que nada
de tudo isto se faça público. E se não, faça-o pelo bom nome de sua família, deixe que
tudo isto siga enterrado com ele.
Pitt o olhou nos olhos.
—Sir Matthew sustenta que seu pai não estava louco, nem era tampouco tão
distraído nem imprudente para ter tomado láudano no meio da tarde, e muito menos em
uma quantidade suficiente para matar-se.
—É lógico que o pense— disse Farnsworth rechaçando a idéia com um ligeiro gesto
da mão que servia, além disso, para mostrar uma esmerada manicura—. Não é fácil
reconhecer que a pessoa a que amamos padece um transtorno mental.
Eu teria pensado o mesmo se tivesse tratado de meu pai. Me acredite se lhe disser
que o entendo perfeitamente, mas isso nada tem que ver com os fatos.
—Mas talvez tem razão—disse Pitt com teima.
Farnsworth esboçou uma careta de desgosto.
—Não a tem, Pitt. Conheço melhor o caso que você. Pitt esteve a ponto de rebatê-lo,
mas em seguida se deu conta de que sua relação com Sir Arthur tinha sido mais que
esporádica nos últimos dez anos, claro que Farnsworth não tinha por que sabê-lo.
Apesar de tudo, não lhe punha na melhor situação para discutir com ele.
Procurou que seu rosto não refletisse o que estava pensando, mas talvez seus
sentimentos eram muito evidentes. Farnsworth o olhava cada vez mais convencido e com
uma espécie de amarga complacência.
—Até que ponto sabe você como se achava Sir Arthur, Pitt?
—Nos últimos anos muito pouco.
—Nesse caso, me acredite. Eu o via com freqüência e lhe asseguro que estava
mentalmente transtornado. Via conspirações e perseguições por toda parte, inclusive entre
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seus próprios amigos. É um homem pelo qual sinto o maior dos respeitos, mas os
sentimentos, por muito profundos e verdadeiros que sejam, não podem mudar a verdade.
Em nome de sua amizade com ele, Pitt, deixe-o descansar em paz e procuremos
prejudicar seu bom nome o menos possível. Tem você a obrigação moral de fazê-lo.
Apesar de tudo, Pitt ainda queria continuar discutindo. De repente, recordou o rosto
curtido do Sturges e se perguntou se talvez sua opinião estava condicionada pela
fidelidade e era realmente incapaz de acreditar que seu amo e senhor tivesse podido
perder o juízo.
—Bem—disse Farnsworth com firmeza—. E agora ocupe-se do que tem entre mãos e
averigúe quem está passando informação do Ministério de Colônias.
Ponha toda sua atenção, Pitt, até que resolva. Compreendeu—me?
—Sim, compreendi-o muito bem—respondeu Pitt sem dar-se por vencido nem
resignar-se a deixar a morte de Sir Arthur como estava, como um assunto fechado.
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Capítulo 5
O mais importante são os tratados— disse Matthew franzindo o cenho e olhando ao
Pitt da mesa de seu escritório no Ministério de Colônias. Parecia menos angustiado que no
dia do enterro no Brackley, mas continuava igualmente pálido e com a mesma sombra de
tristeza no olhar.
Pitt conhecia muito bem ao Matthew para não dar-se conta nem identificar
perfeitamente a tensão com a qual o via. O passado ainda os mantinha muito unidos a
pesar do tempo que tinha transcorrido e dos diferentes caminhos que tinham seguido na
vida.
Se alguém lhe tivesse perguntado por alguma data, o certo é que não teria sabido o
que responder, nem sequer a de algum momento importante da vida de seu amigo.
Mas as lembranças de sua infância compartilhada eram tão fortes que pareciam
recentes: a surpresa, a mútua compreensão, a necessidade de proteger ao outro, a
perplexidade ante o descobrimento da dor.
Pitt recordava perfeitamente a morte de algum animal querido, a emoção e a surpresa
ante o primeiro amor, depois do primeiro desengano, e o temor a que as pessoas e os
lugares que davam forma a suas vidas chegassem a trocar de forma irremediável.
Juntos tinham vivido aquelas coisas, apesar até da diferença de idade, pois Matthew
era um ano mais novo que ele, mas então, quando lhe chegava o momento de
experimentar algo, já o tinha vivido e sentido com toda a intensidade do mundo.
Sabia que Matthew seguia imerso na mais profunda tristeza pela morte de seu pai; só
que agora, à medida que a primeira impressão se ia atenuando, procurava dominar-se um
pouco mais exteriormente.
Agora estavam sentados os dois em seu amplo escritório com móveis de madeira de
carvalho, tapete de cor verde clara e grandes janelas com vistas ao St. James Park.
—Refere aos tratados com os alemães—disse Pitt—, mas o que preciso saber é de
que tipo de informação estamos falando, sempre que me possa dizer isso claro.
É a única maneira de poder averiguar sua procedência e de saber logo por que mãos
passou.
Matthew enrugou o cenho.
—Não é tão simples como parece, mas farei o que puder.
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Pitt esperou. Fora, na rua, ouviu-se o relincho de um cavalo e os gritos de um
homem. O sol atravessava os vidros e desenhava toda classe de reflexos no chão.
—Talvez uma das coisas mais importantes seja o tratado que assinamos faz alguns
anos com o rei Lobengula—disse Matthew, pensativo—. Em setembro de oitenta e oito, a
delegação do Rhodes, encabeçada por um tal Charles Rudd, chegou ao acampamento do
rei no Bulowayo; isso está em Zambeze e som da tribo nadebele— explicou agitando
suavemente os dedos sobre a escrivaninha à medida que falava—. Rudd era um perito na
exploração de recursos minerais, mas era um ignorante com respeito aos chefes nativos e
seus costumes.
Por isso se fez acompanhar de um tipo chamado Thompson, quem falava várias
línguas que também compreendia o rei.
Havia um terceiro homem chamado Rochfort Maguire, um advogado procedente do
All Souls" College de Oxford.
Pitt escutava pacientemente. De momento, nada de tudo aquilo era de ajuda alguma.
Tentou imaginar o calor que fazia nas planícies africanas, assim como a coragem daqueles
homens e a cobiça que os guiava.
—O certo é que também havia outros grupos procurando a concessão de mais
explorações mineiras—prosseguiu Matthew—, mas estivemos a ponto de perdê—las.
—"Estivemos"? Por que te inclui? –interrompeu-lhe Pitt.
—Porque tudo o que faça Cecil Rhodes nos implica de uma forma ou outra —
replicou com uma careta—. Tão então como agora, Rhodes tem a bênção do governo de
sua majestade.
Naqueles dias, ainda estava vigente o Tratado do Moffat, que assinamos com a
Lobengula em fevereiro daquele mesmo ano e no que se dizia que não cederia nenhum de
seus territórios, e cito textualmente, "sem o prévio consentimento" do governo britânico.
—Mas disse que estivemos a ponto de perdê-las, e acrescentou voltando para o tema
que lhe interessava—: Possivelmente porque a informação se filtrou aos alemães?
Matthew abriu os olhos ainda mais.
—É curioso. Certamente foi a embaixada alemã, mas chegamos a pensar que os
belgas também estavam informados de tudo. Toda a África Central é um formigueiro de
aventureiros, caçadores, buscadores de minas e gente com a esperança de converter-se
em intermediários de qualquer negócio— disse inclinando-se um pouco mais sobre a
mesa—. Rudd teve êxito porque contou com a ajuda de Sir Sydney Shippard,
subcomissário do governo para o Bechuanaland.
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Ele mesmo é um grande entusiasta do Cecil Rhodes e acredita firmemente no que
tenta fazer ali, assim como Sir Hercules Robinson na Cidade do Cabo.
—Que informação se sabe que se filtrou com segurança à embaixada alemã do
Ministério de Colônias? —insistiu Pitt—. Mas descarta as suspeitas. Quero a informação e
averiguarei como entrou, bem seja por comunicado verbal, por carta ou telegrama, quem a
recebeu e aonde foi depois.
Matthew estendeu o braço e posou a mão sobre um montão de papéis que havia a
seu lado.
—Aqui tenho algo para você. Mas há algumas coisas que pouco tem que ver com o
Foreign Office; são questões de dinheiro. Quase tudo o que tenho aqui trata sobre dinheiro
– disse olhando ao Pitt para ver se compreendia do que estava falando.
—Dinheiro?—perguntou sem saber a que se referia—. Certamente o dinheiro não
serve para comprar terras aos chefes nativos, não? Ou é o governo quem equipa
convenientemente a exploradores e enviados especiais para que reclamem as terras em
nome da Grã—Bretanha?
—Não! Essa é a questão— disse Matthew com veemência—. Cecil Rhodes corre
com todos os gastos de sua expedição. Neste momento está em marcha e tudo paga ele
mesmo.
—Ele só?—perguntou Pitt sem conseguir acreditar. Não era possível que aquele
homem fosse tão rico.
Matthew sorriu.
—Não entende nada da África, Thomas. Não, ele não põe todo o dinheiro, mas sim
uma grande parte. Há mais de um banco investindo nisto, e algum em Escócia, sobre tudo
o do Francis Standish.
E agora talvez começará a se dar conta de que classe de tesouros estou falando:
diamantes, mais que em qualquer outro lugar do mundo, muito ouro e um continente de
terra cujos habitantes ainda vivem na idade da pedra a julgar pelas armas que têm.
Pitt o olhou fixamente sem saber muito bem o que pensar, tinha imagens imprecisas
na cabeça e não podia esquecer as palavras de Sir Arthur sobre a exploração e o Círculo
Interior.
—Quando homens como Livingstone começaram a ir à África, tudo era diferente—
prosseguiu Matthew com expressão de decepção—. Eles queriam levar a medicina e o
cristianismo, e liberar a essa gente da ignorância, da enfermidade e da escravidão.
É possível que graças a isso mereçam passar à posteridade, mas em nenhum
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momento quiseram enriquecer. O próprio Stanley preferia a glória a qualquer recompensa
material.
—Mas Cecil Rhodes quer terras, dinheiro, poder e mais poder. Necessitamos homens
como ele nesta etapa do desenvolvimento da África, não isso?
O rosto de Matthew se ia escurecendo cada vez mais.
—De momento, acredito que sim. O pai e eu discutíamos muito sobre este tema.
Segundo ele, o governo devia ter uma maior iniciativa em tudo isto e enviar a seus próprios
homens sem ocultá—lo, e ao diabo com o que pudessem pensar o Kaiser e o Rei
Leopoldo.
Claro que Lorde Salisbury se negou a fazê-lo desde o começo. Teria preferido
esquecer-se da África, mas a história e as circunstâncias não o permitiam.
—Quer dizer que Cecil Rhodes atua em nome de Grã—Bretanha, não? — perguntou
Pitt sem conseguir acreditar no que Matthew lhe estava dizendo.
—Mais ou menos— respondeu Matthew—. Mas, além disso, há muito dinheiro no
meio, dinheiro que vem de Londres e Edimburgo. E essa é a informação que se filtrou à
embaixada alemã, pelo menos em parte.
Ouviram passos do outro lado da porta, mas fosse quem fosse, não se deteve.
—Já vejo.
—Não, Thomas, ainda não se dá conta. Há outros muitos fatores atuando: alianças,
disputas, e muitas guerras, tanto novas como já passadas. E não esqueça os bóeres. Paul
Kruger não é alguém que se possa tomar à ligeira. Temos as conseqüências da guerra
com os zulus.
Na Equatoria está o Emin Pascha, no Congo estão os belgas e em quase todas
partes está Carl Peters e a Companhia Alemã da África Oriental—disse, e acrescentou
tocando o montão de papéis que tinha ao lado—: Leia-os, Thomas. Não posso deixar que
leve isso, mas achará o que está procurando.
—Obrigado— respondeu Pitt estendendo o braço para pegá-los, mas Matthew ainda
não quis dar-lhe.
—Thomas...
—Sim?
—E o que tem sobre o pai? Disse que investigaria o do acidente – disse
envergonhado, como se houvesse algo de reprovável na pergunta, mas, por pouco que
gostasse, a necessidade empurrava a isso—. quanto mais tempo o deixe, mais difícil será
depois averiguá—lo.
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A gente se esquece das coisas, ou ao cabo de um tempo começa a ter medo quando
se dão conta de que há gente capaz de... –disse suspirando e procurando o olhar do Pitt.
Tinha os olhos castanhos muito brilhantes, cheios de dor e confusão.
—Já comecei—respondeu Pitt com tranqüilidade—. Falei com o Sturges no Brackley.
Assegura que o dos cachorrinhos foi culpa do Danforth. Este enviou uma carta dizendo
que já não os queria, que tinha mudado de opinião.
Pelo menos parece que a carta a escreveu Danforth, mas tanto se o fez como se não,
Sturges a leu porque ia dirigida a ele. Sir Arthur tinha razão.
—Não está mal para começar—disse Matthew como agarrando-se a isso, mas
continuava com a mesma expressão de ansiedade—. Mas, e o acidente? Foi
premeditado? Foi uma advertência, não é?
—Não sei. Sturges assegura que ninguém o viu, embora tanto o carreteiro como o
ferreiro viram o cavaleiro galopando rua acima como um louco, parece que com o cavalo
fora de controle. Mas todo mundo sabe que até o mais acelerado dos cavalos nunca
carregará contra outro sempre que puder vê-lo, nem tampouco se aproximará tanto para
que o cavaleiro possa atacar com seu chicote.
Acredito que foi premeditado, mas não vejo a maneira de demonstrá—lo. Esse
homem era um forasteiro. Ninguém sabe quem é.
As feições do Matthew se crisparam.
—E suponho que o mesmo pode dizer do incidente do metro. Nunca poderemos
prová—lo.
Que saibamos, ninguém conhecido foi testemunha do que aconteceu –disse baixando
o olhar—. São muito espertos. Preparam tudo de maneira que não possa dizer nada, e se
o faz, soa tão absurdo que a gente mesmo se desqualifica, como se fosse um consumidor
de ópio ou estivesse sempre bêbado. —De repente ergueu os olhos como preso do
pânico—. Começo a me sentir impotente. Já não é ódio o que sinto.
É algo mais parecido ao medo e a um cansaço terrível, como se tudo fosse inútil. Se
não se tratasse do pai, nem sequer o tentaria.
Pitt compreendia aquele temor. Ele mesmo o tinha sentido no passado, só que agora
a causa era real. Também compreendia aquele esgotamento entristecedor, uma vez
passado o primeiro golpe. A raiva é um sentimento que pode com tudo e destrói a força do
corpo e o espírito.
Matthew estava cansado e em pouco tempo estaria renovado, e então voltaria a
sentir-se com raiva, ultrajado, com a necessidade imperiosa de proteger, de fazer justiça e
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de demonstrar a mentira. Esperava que Harriet Soames fosse bastante inteligente e
generosa para cuidar bem dele, para esperar com paciência a que Matthew superasse o
cansaço e a confusão e não lhe pedir nada em troca no momento, além da confiança e a
segurança de que lhe daria tudo o que pudesse.
—Não tente nada sozinho—lhe aconselhou Pitt muito sério.
Matthew arqueou as sobrancelhas em um gesto de surpresa e dúvida, ao que logo
seguiu uma sombra de ironia.
—Não pensará de mim que sou um incompetente, não é, Thomas? Levo quinze anos
no Foreign Office. Sei muito bem como fazer as coisas com diplomacia.
Tinha sido uma estupidez de sua parte não ter pensado um pouco antes de falar, mas
se tinha deixado levar pelo instinto de amparo que sempre tinham compartilhado.
—Me perdoe—se desculpou Pitt—. Queria dizer que poderíamos unir nossas forças e
não perder o tempo levantando suspeitas.
O rosto do Matthew se relaxou com um sorriso.
—Sinto muito, Thomas. Estou muito suscetível. Isto é mais duro do que pensava—
disse, e por fim entregou os papéis ao Pitt—. Dê uma olhada na sala contigua, e me
devolva isso quando tiver terminado.
Pitt se levantou e os pegou.
—Obrigado.
O escritório que lhe tinha indicado era de teto muito alto e tinha uma larga janela que
também dava ao parque e por onde entrava a luz do sol com toda sua intensidade.
Sentou-se em uma das três cadeiras que havia e começou a ler. Em lugar de tomar
notas, preferiu memorizar o mais importante.
Necessitou até o meio—dia para estar seguro de saber com exatidão de que maneira
podia rastrear a informação que já sabia em mãos da embaixada alemã. Depois se
levantou e devolveu os papéis ao Matthew.
—Necessita algo mais?—perguntou Matthew olhando-o de sua escrivaninha.
—De momento não.
Matthew sorriu.
—O que lhe parece se formos comer? Há uma taverna muito boa à volta da esquina,
e a uns duzentos metros daqui há outra inclusive melhor.
—Fico com a melhor— disse Pitt fazendo um esforço por parecer entusiasmado.
Matthew o seguiu até a porta e dali percorreram o corredor e desceram a ampla
escadaria da entrada principal para mesclar-se logo com o bulício da rua.
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Enquanto caminhava se foram dando algum ou outro empurrão com outros
passeantes, homens com fraque e cartola e alguma ou outra mulher vestida à última moda,
levando uma sombrinha e saudando com um sorriso aos conhecidos com os quais se
cruzava.
No meio—fio o trânsito também era abundante. Carros, carruagens, coches simones,
calesas e landaus descobertos que iam e vinham com o trote enérgico dos cavalos, com
os golpes secos e elegantes de suas patas no chão e o tinido dos arreios.
—Eu adoro esta cidade quando faz bom tempo— disse Matthew como se se
estivesse desculpando de algo—. Olhe que vitalidade, que vertigem e que agitação.
—E acrescentou olhando ao Pitt de soslaio: — Necessito a paz do Brackley, a
sensação de permanência que me dá. Fecho os olhos e me sinto como se estivesse ali,
cheirando o ar frio do inverno, com a neve sobre os campos e o rangido da geada sob os
pés.
Posso cheirar perfeitamente o aroma a feno que traz o ar no verão, a luz que
deslumbra, o sol que arde na pele e o sabor de uma boa cidra.
Uma dama muito elegante com um vestido rosa e cinza passou junto a ele e lhe deu
um sorriso cheio de interesse, apesar de que não se conheciam nada, mas Matthew mal
lhe prestou atenção.
—E a primavera, com sua cálida luz e as chuvas repentinas— seguiu dizendo
Matthew—. Na cidade ou chove ou faz sol, mas nada mais. Não se vê o estalo da
natureza, o verde que cobre os campos, os sulcos da terra; na cidade não se sabe nunca
quando troca a estação, nem é consciente desse eterno ciclo que existe desde a criação
do mundo e que sempre existirá.
Uma carruagem passou a toda velocidade muito junto à calçada e Matthew teve que
dar um salto para trás para não receber o golpe dos faróis que se sobressaíam.
—Está louco! —exclamou baixo.
Estavam a uns poucos metros do cruzamento.
—Minha estação favorita foi sempre o outono—disse Pitt com um sorriso evocador—.
Os dias que se vão fazendo mais curtos, a luz dourada do entardecer derramando-se
sobre os campos de restolhos, os montões de tresnales, as noites de céus claros e as
nuvens afastando-se para o oeste, os bagos vermelhos crescendo entre as sebes, as
rosas silvestres, o aroma da madeira queimada e das folhas úmidas, os tons avermelhados
das árvores.—Chegaram ao cruzamento e ambos se detiveram—. Sempre gostoei da
primavera, a vida que renasce, as flores, mas, há algo muito especial no outono, quando
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tudo adquire uma cor dourada e há uma sensação de plenitude.
Matthew o olhou com um intenso e repentino afeto. Era como se tivessem vinte anos
menos e estivessem no Brackley, olhando os campos ou os bosques, em lugar do
Parlament Street, esperando que o trânsito lhes deixasse cruzar a rua.
Por fim viram que tinham via livre e os dois começaram a cruzar. De repente, como
saído de um nada e dobrando a esquina, apareceu uma carruagem puxada por quatro
cavalos correndo a toda velocidade junto ao meio—fio, com os animais acelerados,
assustados e relinchando.
Antes de dar um salto e atirar-se ao chão, Pitt empurrou com todas suas forças ao
Matthew, apesar do que, uma das rodas dianteiras lhe deu um forte golpe e caiu com a
cabeça a poucos centímetros da boca-de-lobo e o meio-fio.
Pitt saiu correndo para ver melhor o carruagem, mas o único que pôde ver foi à parte
traseira do mesmo enquanto se desvanecia na esquina do St. Margaret Street em direção
ao Old Palace Yard.
Matthew estava estendido no chão e não se movia.
Pitt foi a seu lado. Doía-lhe a perna e tinha contundido todo o flanco esquerdo, mas
mal se deu conta disso.
—Matthew! —exclamou ouvindo sua própria voz assustada e sentindo um nó no
estômago—. Matthew! —Não havia sangue. Matthew tinha o pescoço reto, sem torceduras
suspeitas, mas seguia com os olhos fechados e o rosto branco.
Na calçada havia uma mulher soluçando e tampando a boca com ambas as mãos,
como querendo amortecer o som.
Outra mulher, idosa, aproximou-se e se ajoelhou junto ao Matthew.
—Posso lhe ajudar? Meu marido é médico e lhe ajudei em muitas ocasiões — disse
com tranqüilidade olhando ao Matthew e não ao Pitt. E sem esperar que este último
aceitasse, a mulher tirou as luvas, tocou a face do Matthew e logo lhe pôs um dedo no
pescoço.
Pitt esperou angustiado.
Ao cabo de um momento, ela ergueu a vista e o olhou com expressão serena.
—O pulso é firme— disse sorrindo—. Quando despertar, terá uma boa dor de cabeça
e algum ou outro machucado um pouco dolorido, mas está bem, o asseguro.
Pitt sentiu um grande alívio. Era como se o sangue voltasse a correr por suas veias e
o coração e a cabeça tivessem voltado para a vida.
—Acredito que necessita você de uma boa taça de conhaque—lhe aconselhou a
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mulher amavelmente—. Recomendo um banho quente e um pouco de arnica para as
contusões. Sentirá-se melhor, me acredite.
—Muito obrigado— disse Pitt como se lhes tivesse salvado a vida.
—Suponho que não saberá você quem era o cocheiro— continuou ela, ainda de
joelhos junto ao Matthew—. Deveriam denunciá-lo à polícia; isso é algo digno de um
criminoso. Já pode dar graças a Deus de que seu amigo não se golpeou contra o meio-fio;
teria quebrado a cabeça e certamente teria morrido.
—Sei— respondeu Pitt engolindo em seco e dando-se conta do que havia de verdade
nessas palavras. Agora que sabia que Matthew estava vivo, via-o com mais clareza e
começou a compreender o que significava tudo aquilo.
A mulher o olhou com curiosidade, enrugando o cenho e intuindo que havia algo mais
atrás do acidente que acabava de presenciar.
Outras pessoas se foram concentrando ao redor, entre elas um homem corpulento
com umas enormes costeletas, que abriu passagem a cotoveladas.
—O que aconteceu?—perguntou—. Necessitam um médico? Querem que chame à
polícia? Chamou alguém à polícia?
—Eu sou a polícia—respondeu Pitt olhando-o do chão—. E sim, necessitamos de um
médico. Estaria muito agradecido se alguém chamasse um.
O homem o olhou com rosto de incredulidade.
—De verdade é policial?
Pitt colocou a mão no bolso para procurar seu cartão e comprovou com desagrado
que lhe tremiam as mãos. Tirou o cartão com dificuldade e a entregou ao homem sem
incomodar-se sequer em esperar sua reação.
Matthew começou a mover-se, emitiu um gemido de dor e abriu os olhos.
—Matthew! —exclamou Pitt muito tenso, inclinando-se para ele e olhando-o
fixamente.
—Estúpido louco!—disse Matthew enfurecido, e voltou a fechar os olhos de dor.
—Não deveria mover-se, jovem— lhe advertiu energicamente a mulher idosa.
—Logo virá o médico. Espere a escutar o que diz antes de tentar levantar-se.
—Thomas?
—Sim, estou aqui.
Matthew voltou a abrir os olhos e tentou esclarecer a imagem imprecisa que tinha do
rosto do Pitt. Depois pareceu que queria dizer algo, mas por algum motivo decidiu não
fazê-lo.
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—Sim, Matthew, é exatamente o que está pensando— disse Pitt com calma.
Matthew suspirou profundamente com um calafrio.
—Não deveria me ter incomodado quando me disse que andasse com cuidado.
Portei—me como um menino; está claro que me equivocava.
Pitt preferiu não responder.
A mulher idosa olhou ao homem das costeletas.
—Sabe você se alguém foi procurar um médico?—perguntou-lhe no mesmo tom que
teria empregado uma boa preceptora com um criado indiferente.
—Não se preocupe, senhora—replicou ele, muito sério, e se afastou, certamente,
para encarregar-se ele mesmo dessa tarefa, pensou Pitt.
—Acredito que com um pouco de ajuda poderei me pôr em pé. Aqui estou obstruindo
a passagem e sou o espetáculo de toda a rua—disse Matthew fazendo um esforço por
incorporar-se e sem que Pitt pudesse fazer nada por impedi—lo, limitou-se a lhe dar o
braço e a segurá—lo enquanto Matthew se balançava e perdia o equilíbrio.
Passaram alguns segundos até que Matthew pôde recompor-se e manter-se erguido
com um esforço de concentração, embora Pitt continuasse segurando—o.
—Talvez será melhor que peçamos uma carruagem e o leve a casa, e que de ali
chamemos a seu médico o antes possível —sugeriu Pitt com decisão.
—Ora, não acredito que é preciso— replicou Matthew, balançando-se ainda um
pouco.—Seria uma imprudência de sua parte que não fizesse caso desse conselho —
disse a mulher idosa em tom de recriminação.
Agora que Pitt e Matthew estavam de pé, a diferença de altura com respeito a ela era
mais que considerável, por isso se via obrigada a olhar para cima para dirigir-se a eles;
entretanto, falava com tal segurança que essa diferença de estatura ficava perfeitamente
compensada. Pitt teve inclusive a sensação de estar falando com a professora do colégio.
Matthew devia sentir o mesmo, porque preferiu não discutir com ela. Pitt deteve uma
carruagem de aluguel, pediu ao cocheiro que se aproximasse e se despediu da dama em
questão lhe agradecendo muito efusivamente, depois subiram ao veículo e partiram dali.
Pitt acompanhou ao Matthew a seus aposentos, assegurou-se de que foram procurar
ao médico e se sentou na pequena sala de estar para meditar sobre os papéis que tinha
lido no Foreign Office, enquanto esperava que chegasse o médico e desse sua opinião
sobre o estado de saúde do Matthew. Este estava mais tranqüilo agora que descansava
em sua própria cama.
—Poderia ter sido muito grave— disse o médico uns cinqüenta minutos mais tarde—.
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Mas felizmente, acredito que só sofreu um golpe sem importância e algum ou outro
molesto machucado.
Informou à polícia sobre o acontecido?
O médico se achava no dormitório do Matthew enquanto este continuava na cama
muito pálido e ainda impressionado. Pitt esperava junto à porta.
—O senhor Pitt é policial— lhe contou Matthew—. Estava comigo quando aconteceu
o acidente. Ele também caiu no chão.
—Ah, sim? Não me havia dito isso — falou o médico olhando-o com expressão de
surpresa—. Necessita você de meus serviços, senhor Pitt?
—Não, obrigado. Só tenho uns machucados— respondeu Pitt—. Mas muito obrigado,
é muito amável.
—Nesse caso, suponho que informará a seus superiores. Conduzir dessa maneira,
ferir dois homens e logo escapar só pode considerar um comportamento criminoso—disse
o médico muito sério.
—Não sabemos quem o fez, nem nós nem a gente que se achava na rua. Não
acredito que possamos fazer nada— disse Pitt.
Matthew esboçou um pálido sorriso.
—Além disso, o superintendente Pitt não tem superiores, só o delegado. Verdade,
Thomas?
O médico se surpreendeu e começou a negar com a cabeça.
—É uma pena. A essa gente se devia prender. Como eu gostaria de ver esse tipo
entre grades, claro que há tantas coisas que eu gostaria de ver e que nunca verei. Enfim—
disse, voltando-se para o Matthew—, descanse alguns dias e me chame se a dor de
cabeça piorar, se enjoar ou se não pode ver bem.
—Obrigado.
—Bom dia, Sir Matthew.
Pitt o acompanhou até a saída e logo retornou ao dormitório do Matthew.
—Obrigado, Thomas—disse Matthew com preocupação—. Se não me tivesse
empurrado, esses cavalos me teriam feito em pedaços. Foi o Círculo Interior, não é? Estão
me ameaçando.
—Talvez se trate de uma ameaça para os dois— respondeu Pitt—. Ou possivelmente
seja alguém que investiu muito dinheiro na África, embora me parece muito pouco
provável. E se fosse só um acidente, sem culpado algum detrás?
—Você acredita?
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—Não.
—Eu tampouco— afirmou Matthew esboçando um sorriso, com seus olhos castanhos
olhando-o de um rosto totalmente pálido, sem vontade de dissimular o medo que sentia.
—Deixa estar um par de dias— lhe aconselhou Pitt com tranqüilidade—. Não acredito
que consigamos nada nos deixando ferir ou matar. Fica em casa. Temos que pensar muito
bem qual será nosso próximo movimento. Terá que tomar cuidado. Nesta batalha não
podemos nos permitir o luxo de atacar sem fazer mal.
—Não posso fazer muito de momento— disse Matthew com uma careta de dor—,
mas lhe asseguro que não vou pensar em outra coisa.
Pitt sorriu e se despediu dele. Agora não podia fazer-se nada mais e Matthew
precisava dormir um pouco. partiu com a cabeça lhe dando voltas e cheia de temores e
escuros pressentimentos.
Eram quase quatro quando chegou ao Downing Street e subiu as escadas do
Ministério de Colônias. Uma vez ali, perguntou pelo Linus Chancellor e lhe disseram que
se pudesse esperar um pouco, não demoraria para recebê-lo.
Tal como lhe tinham anunciado, ao cabo de meia hora de espera pôde entrar no
escritório do Chancellor.
Encontrou-o sentado frente a sua escrivaninha, com o olhar cravado nele e a fronte
enrugada como mostra visível de interesse e ansiedade.
—Boa tarde, Pitt—disse sem levantar-se, e com um movimento da mão lhe indicou
onde sentar-se—. Suponho que terá vindo a informar do que averiguou, não é? Embora
talvez é ainda muito cedo para ter algum suspeito, não? Sim, pela cara que põe, deduzo
que assim é. O que descobriu?—perguntou aguçando o olhar—. Parece você um pouco
incômodo. Possivelmente algo rígido. Dói-lhe algo?
Pitt sorriu com tristeza. O certo é que lhe doía todo o corpo, e muito. Enquanto estava
tão pendente de Matthew, virtualmente nem se acordou de suas próprias lesões, e agora
doíam muito para não lhes fazer caso.
—Faz umas horas, quase me atropela uma carruagem, mas não acredito que tenha
nada que ver com isto.
Chancellor fez expressão de preocupação e certo estupor.
—Por Deus bendito! Não me estará você dizendo que alguém tentou matá—lo, não
é?—perguntou, e logo crispou os músculos do rosto e lhe dirigiu um olhar frio e quase
ameaçador—.
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Claro que não sei por que me surpreendo. Se houver alguém capaz de trair a seu
próprio país, por que vai duvidar em matar a quem tenta desmascará—lo? Acredito que
devo pôr um pouco em dia minha escala de valores.
Reclinou-se na poltrona visivelmente comovido.
—Talvez a violência ofende de tal modo nossa sensibilidade que sempre acabamos
considerando—a muito pior que um ato encoberto de traição, quando este realidade é
imensamente mais grave.
O assassinato se oculta atrás de um rosto que sorri, e quando menos se espera,
chega a punhalada pelas costas –disse fechando o punho como preparado para atirar ele
mesmo o golpe—, e de repente se dá conta de que pôs toda sua confiança em quem não
devia e se vê despojado do mais importante que há na vida: a fé em Deus, o valor da
amizade e a honra.
Sendo assim, por que ia esse homem duvidar de dar um simples empurrão a alguém
entre a multidão? Ninguém estranha que uma pessoa acabe sob as rodas de uma
carruagem em plena rua—disse com uma expressão de preocupação que não dissimulava
a raiva que sentia por dentro—. Viu—o um médico? Sabe se lhe convém andar por aí em
lugar de guardar cama? Tem certeza que não está ferido gravemente?
Pitt sorriu não sem certo esforço.
—Sim, já me viu o médico, obrigado—respondeu sem dizer exatamente a verdade—.
Um amigo que me acompanhava ficou muito mais ferido, mas em uns poucos dias
estaremos os dois perfeitamente. Esta manhã falei com Sir Matthew Desmond e me deu
alguns detalhes sobre o tipo de informação que passou à mãos dos alemães.
Tive ocasião de ler essa informação no Ministério de Exterior, e embora não pude
levar os papéis, já estou à corrente de seu conteúdo, por isso ficaria muito agradecido se
pudesse me proporcionar alguma pista; possivelmente poderíamos começar por excluir de
toda suspeita a quem não tivesse acesso a essa informação.
—É claro. Me diga você o que sabe—disse Chancellor reclinando-se na poltrona e
cruzando os braços em sinal de espera.
Pitt pôs seus cinco sentidos em recordar toda a informação que tinha lido nos papéis
do Matthew, e, um a um, foi expondo cada ponto por ordem de importância.
Assim que terminou, Chancellor ficou olhando com desconcerto e mais inquietação
que antes.
—E então?—perguntou Pitt.
—Há uma parte dessa informação que eu mesmo ignorava—respondeu Chancellor
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com calma—. Não passa pelo Ministério de Colônias –acrescentou depois um longo
silencio e olhando fixamente ao Pitt para averiguar se entendia bem o sentido do que
acabava de dizer.
—Nesse caso, tanto se for intencional como se não, está claro que nosso traidor tem
ajuda—sentenciou Pitt, e então lhe ocorreu outra idéia—. Embora talvez esse é
precisamente seu ponto fraco.
Chancellor em seguida se deu conta do que queria dizer. Esticou o corpo com um
brilho de esperança nos olhos.
—Naturalmente! Pode começar por aí em busca de provas, comunicados ou talvez
inclusive subornos ou chantagens. Algo é possível.
—E por onde começo?
—Como diz?—disse Chancellor desconcertado.
—De que outro lugar pode ter saído essa informação?—explicou-se Pitt—. O que
exatamente não passa por este escritório?
—Ah, já vejo. Assuntos econômicos. Referiu-se você aos diferentes empréstimos e
garantias dados ao MacKinnon e ao Rhodes, entre muitos outros, com o apoio do centro
financeiro de Londres e de alguns banqueiros escoceses.
Qualquer um com um pouco de paciência e umas noções básicas em economia pode
averiguar por si mesmo o marco geral destes empréstimos; agora bem, os prazos, as
condições e as quantidades exatas unicamente podem sair do Tesouro— disse esticando
os lábios.
—Isto parece muito mal, Pitt. Agora resultará que também há um traidor no Tesouro.
Estaremos lhe muito agradecidos se conseguir desmascará—los, mas lhe rogo a
máxima discrição —rogou procurando os olhos do Pitt—. É necessário que lhe advirta do
grave prejuízo que suporia para o governo, não só para os interesses britânicos na África,
se chegasse a saber se publicamente que isto é um formigueiro de espiões?
—Não— se limitou a dizer Pitt enquanto ficava em pé—. Farei todo o possível por
levar o assunto com discrição, e até em segredo se for preciso.
—Bem, bem— respondeu Chancellor procurando uma posição mais cômoda e
comprovando que os traços elegantes e cambiáveis do rosto do Pitt relaxavam por fim um
pouco—. Tenha-me informado de tudo. Sempre posso lhe fazer um espaço durante o dia
para nos ver, e também de noite, se for necessário. Suponho que, ao igual a mim,
tampouco você tem um horário fixo.
—Não, senhor. Assegurarei-me de que esteja à corrente de tudo. Bom dia, senhor
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Chancellor.
Pitt se dirigiu imediatamente ao Tesouro, mas já eram quase cinco, e Ransley
Soames, a pessoa com quem devia entrevistar-se, já tinha partido e não voltaria até o dia
seguinte. Pitt se sentia cansado e lhe doía todo o corpo.
Nem sequer se sentiu culpado frustrando seu zelo investigador quando deteve uma
carruagem no Whitehall para voltar para casa.
Duvidava se contava à Charlotte os detalhes do incidente com a carruagem. A
verdade é que ia ser de todo inútil evitar o tema. Bastava olhá—lo para dar-se conta em
seguida de que estava ferido, embora talvez o melhor era não lhe dar muita importância e
não mencionar que Matthew ainda estava pior que ele, de outro modo só conseguiria
preocupá—la inutilmente.
—O que aconteceu ? —insistiu ela assim que Pitt terminou de lhe dar uma explicação
o mais vaga possível.
Achavam-se na sala de estar tomando um chá bem quente. As crianças, já jantadas,
tinham subido ao piso de cima. Jemima estava fazendo os deveres.
Faltavam quatro anos para que chegassem os exames que deviam decidir seu futuro
educativo. Daniel, dois anos menor que ela, ainda estava isento das exigências do estudo
diário.
Com cinco anos e meio já sabia ler razoavelmente bem, estava aprendendo de cor as
tábuas de multiplicar e lhe obrigavam a aplicar-se em ortografia muito mais do que
gostaria.
Mas a última hora da tarde lhe permitiam que brincasse. Jemima punha todo seu
empenho em aprender a lista completa de todos os reis da Inglaterra desde 1066, com o
Eduardo o Confessor, até 1890, com a atual rainha, o que não era pouco.
Mas quando tivesse que ser examinda, não só teria que saber seus nomes e a ordem
de sucessão, mas as datas de cada um e os acontecimentos mais destacados de seus
respectivos reinados.
—O que aconteceu? —repetiu Charlotte, olhando-o atentamente.
—Uma carruagem com os cavalos acelerados e quase ao galope me roçou em uma
esquina. Caí no chão, mas só tenho uns machucados— disse com um sorriso—. Não é
nada, de verdade.
Estava a ponto de não lhe dizer isso, mas não quero que pense que me estou
convertendo em um aleijado por coisas da idade.
Charlotte nem sequer lhe ofereceu um sorriso por resposta.
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—Thomas, não tem bom aspecto. Deveria verte um médico, embora só seja para...
—Não é necessário.
—Claro que sim! —exclamou ela fazendo gesto de levantar-se.
—Não, não o é!—replicou ele, ouvindo o tom de sua própria voz, mas sem poder
impedi-lo.
Soava cortante e assustado.
Charlotte calou e ficou olhando com uma ruga entre as sobrancelhas.
—Me perdoe. Já me viu um médico— se desculpou ele, e a seguir começou a lhe
contar o acontecido com a mesma isenção que já tinha empregado com o Chancellor—.
Não é nada. Só umas quantas contusões, um pouco de susto e bastante zanga.
—Sim, sim o é. E se não, me diga por que foi ver um médico—perguntou ela lhe
cravando o olhar.
A verdade é que não ia ser fácil lhe contar a verdade, e, além disso, estava muito
cansado. Ele fazia só por protegê—la, mas decidiu por fim contar-lhe tudo.
—Matthew estava comigo. Ele saiu muito pior parado. Por isso veio o médico, mas
logo ficará bem—se apressou a acrescentar—. O que passa é que ficou inconsciente uns
instantes.
Charlotte aguçou ainda mais o olhar de preocupação.
—De verdade foi um acidente, Thomas? Você não acha que o Círculo Interior foi lá
por causa do Matthew, não é verdade?
—Não sei. Duvido—o. Também eu gostaria de pensar que Matthew supõe um perigo
para eles, mas não acredito.
Ela o olhou sem conseguir acreditar nele, mas não insistiu mais. Apressou-se a lhe
preparar um banho quente e lhe buscar um pouco de arnica.
—Bom dia, superintendente —saudou Ransley Soames em um tom que delatava seu
desinteresse pela visita.
Era um homem de aparência agradável, de traços comuns e um cabelo claro,
espesso e ondulado penteado para trás. Tinha o nariz muito reto e uma boca que revelava
certa fraqueza de caráter. Certamente, era graças à força de vontade que corrigia sua
inclinação ao abandono.
Apesar de tudo,
impunha bastante respeito e olhou ao Pitt com certa
condescendência—. Me diga, o que posso fazer por você?
—Bom dia, senhor Soames— respondeu Pitt fechando a porta a suas costas e
aceitando a poltrona que lhe oferecia. Soames estava sentado atrás de uma mesa muito
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alta e finamente esculpida, na qual em um dos extremos podia ver-se uma caixa vermelha
ainda por abrir e com as fitas entrelaçadas—.
Sinto ter que incomodá—lo, senhor, mas o Foreign Office me encarregou de
investigar sobre o muito grave desvio de certa informação. É necessário que saibamos a
fonte dessa informação, assim como o pessoal que teve acesso reservado a ela, com o fim
de desculpar quanto antes o engano.
Soames ficou olhando com o cenho franzido.
—Usa você uma linguagem muito diplomática, superintendente, para não dizer
bastante escura. De que informação está você falando e aonde foi a parar de forma tão
indevida?
—É informação financeira sobre a África e de momento preferiria não dizer em mãos
de quem caiu. O senhor Linus Chancellor me pediu que seja o mais discreto possível.
Espero que o compreenda.
—Claro, claro—disse Soames, embora por sua expressão estava claro que não
gostava de sentir-se excluído—. Em qualquer caso, espero, superintendente, que você
tampouco se incomodará se solicitar a confirmação do que está você dizendo. Só é uma
formalidade.
—Naturalmente— disse Pitt sorrindo e lhe mostrou a autorização que Matthew lhe
tinha dado com a assinatura do ministro de Exterior.
Soames lhe deu uma olhada, reconheceu em seguida a assinatura de Lorde
Salisbury e se endireitou no assento. Pitt percebeu certa tensão nele. Talvez agora
começava a dar-se conta da gravidade do caso.
—Sim, superintendente. O que com exatidão deseja saber de mim? Como pode ver,
por esta mesa passa uma grande quantidade de informação de caráter econômico e a
referida a assuntos africanos não é precisamente pouca.
—Entre outras coisas, interessa-me sobre tudo o financiamento da campanha do
Cecil Rhodes no Matabeleland, que está em pleno desenvolvimento.
—Ah, sim? Mas não sabe já, superintendente, que a maior parte dessa expedição foi
financiada pelo próprio Rhodes com sua Companhia da África do Sul?
—Sim, sei. Mas nem sempre foi assim. Ajudaria—me muito se você me contasse os
antecedentes do financiamento dessa campanha.
—Pelo amor de Deus! Até onde quer você remontar? —exclamou Soames com os
olhos esbugalhados.
Havia uma janela aberta, e entre o rumor do trânsito se ouviu de repente o som de
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um realejo, que em seguida desapareceu.
—Digamos uns dez anos atrás—respondeu Pitt.
—E o que quer saber? Não sei se me lembrarei de tudo, mas vou estar aqui todo o
dia—disse Soames visivelmente surpreso e irritado, como julgando o pedido nada
razoável.
—Só quero saber por mãos de quem passava a informação.
Soames suspirou.
—Ainda assim, está pedindo o impossível. Rhodes quis assegurar-se primeiro
Bechuanaland do Cabo. Em agosto de oitenta e três fez um pedido formal ao Parlamento
do Cabo sobre este tema—começou Soames apoiando as costas na poltrona e cruzando
as mãos à altura do peito—. Era a porta de acesso às extensas planícies férteis do norte,
no Matabeleland e Mashonaland. Mas não parece que ao primeiro—ministro Scanlen lhe
interessasse muito o assunto.
O governo do Cabo estava muito endividado com um plano de ferrovias que subia a
uns quatorze milhões de libras, e além disso acabava de sofrer uma guerra com o
Basutoland, o que supôs um gasto adicional realmente entristecedor.
Foi então que Rhodes começou a procurar financiamento em Londres, e muito a seu
pesar.
Claro que todo isso coincidiu com o governo liberal do Gladstone. O ministro do
Exterior era então Lorde Derby, mas ao igual a Scanlen, seu interesse pelo assunto era
nulo. —Soames cravou o olhar no Pitt, e acrescentou—: Estará você à corrente de tudo
isto, não é, superintendente?
—Pois não. É importante que o esteja?
—Sim, se quer compreender a história do financiamento dessa campanha — disse
Soames, esboçou um sorriso e continuou—. Depois das graves perdas que sofremos em
Majuba, Lorde Derby não quis saber nada do assunto.
Entretanto, no ano seguinte, as coisas mudaram radicalmente, sobre tudo por medo
de que o Transvaal começasse a empurrar para o norte anulando nossos esforços, tão
necessários, pela segurança do Império, com as rotas marítimas do Cabo e todo o resto.
Não podíamos nos permitir o luxo de deixar que os portos do Cabo caíssem em mãos dos
afrikaners. Segue—me?
—Sim.
—Kruger e outros delegados da província do Transvaal acudiram a Londres no ano
seguinte, o oitenta e quatro, para renegociar o Tratado de Pretoria. Não queria lhe
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aborrecer com os detalhes, mas uma parte deste acordo incluía a renúncia do Kruger ao
Bechuanaland.
E agora, os flibusteiros bóeres avançavam para o norte — disse, olhando fixamente
para Pitt para comprovar que entendia tudo—. Kruger traiu ao Rhodes e anexou Goshen à
província do Transvaal, por isso a Alemanha entrou em cena. O assunto se foi
complicando cada vez mais.
Compreende agora que a informação é abundante e que é muito difícil saber quem
estava à corrente do que?
—Dou-me conta— concedeu Pitt—, mas estou seguro de que haverá mais de um
canal oficial através do qual passa toda a informação concernente a Zambeze e Equatoria.
—Naturalmente. Mas e o que tem sobre o Cabo, Bechuanaland, o Congo e Zanzíbar?
Os ruídos que chegavam pela janela aberta pareciam muito longínquos, como se
viessem de outro mundo.
—De momento podemos prescindir de todo isso— sentenciou Pitt.
—Muito bem. Isso facilita as coisas— disse Soames com a mesma expressão de
preocupação e aborrecimento. Continuava com as sobrancelhas enrugadas e o corpo em
tensão—. Somente Thompson, Chetwynd, MacGregor, Cranbourne, Alderley e eu mesmo
estamos à corrente dessas zonas que mencionou.
Custa-me acreditar que algum deles tenha podido cometer algum descuido ou que
tenha passado informação a alguém não autorizado, mas suponho que é possível.
—Obrigado.
—E agora o que vai fazer? —quis saber Soames com o cenho franzido.
—Investigar o assunto— respondeu Pitt com um sorriso evasivo. O primeiro era
encarregar ao Tellman que comprovasse se existia alguma relação entre algum destes
cavalheiros e Amanda Pennecuick, entre outras coisas.
Soames continuava olhando fixamente para Pitt.
—Superintendente, deduzo que o uso indevido dessa informação obedece a algum
motivo de benefício pessoal, de especulação ou algo parecido, não?
Confio em que não comprometerá gravemente nossa posição na África. Dou—me
conta da importância que tem tudo isto—disse, e acrescentou inclinando-se para frente—:
É absolutamente necessário para nós conseguir Zambeze e a rota do Cabo até o Cairo.
Se ambas caírem em mãos das potências equivocadas, só Deus sabe o dano que
poderiam nos causar. Todo o trabalho e a profunda influência de pessoas como
Livingstone e Moffat desaparecerão transbordados pela violência e o fanatismo religioso. A
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África sofrerá um banho de sangue e a civilização cristã poderia desaparecer do
continente— sentenciou com expressão de tristeza e desolação. Estava claro que
acreditava profundamente e sem nenhum gênero de dúvida no que dizia.
De repente, Pitt sentiu certa simpatia por aquele homem. Nada tinha que ver com o
oportunismo e a exploração que tanto temia Sir Arthur. Pelo menos, Ransley Soames
ficava à margem do Círculo Interior e de todas suas maquinações. Só por isso já podia ser
simpático, e sentiu um grande alívio. Ao fim e ao cabo, aquele homem ia ser o sogro de
Matthew.
—Sinto muito. Tomara que o que disse fosse certo— respondeu Pitt com gravidade—
, mas essa informação se filtrou à embaixada alemã.
Soames empalideceu e olhou horrorizado ao Pitt.
—Essa informação? Toda? Tem certeza do que diz?
—Talvez ainda estamos a tempo de evitar um dano irreparável—respondeu Pitt
procurando acalmá—lo.
—Mas quem ia ser capaz de algo assim?—perguntou Soames à beira do
desespero—. Acredita que os alemães pressionarão desde Zanzíbar com seu exército?
Têm tropas, armas e até lanchas cañoneras, sabia? Ali já conhecem o que é uma revolta,
a repressão e o derramamento de sangue!
—Talvez isso impedirá de momento que avancem para o interior—disse Pitt em tom
esperançoso. — Enquanto isso, quero lhe agradecer por esta informação.
Pitt se levantou e justo quando se dirigia para a porta lhe ocorreu uma idéia que não
quis desperdiçar. Ao fim e ao cabo, Harriet Soames era uma jovem que se movia entre a
sociedade—.
—Desculpe-me, por acaso não lhe será familiar o nome da Amanda Pennecuick?
—Sim—respondeu Soames perplexo—. Não sei por que me pergunta isso, mas lhe
asseguro que nada tem que ver com tudo isto. É uma amiga de minha filha. Por que o
pergunta, superintendente?
—Sabe se conhece algum dos cavalheiros que enumerou antes?
—Sim, acredito que sim. Alderley a conheceu em minha casa em uma reunião de
sociedade, disso estou certo. Acredito que sente certa atração por ela, mas é lógico. É
uma jovem extraordinariamente encantadora. O que teria isso que ver com a informação
econômica sobre a África, superintendente?
—Talvez nada. —Pitt sorriu e abriu a porta—. Muito obrigado, senhor. Bom dia.
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O dia seguinte era domingo e Nobby Gunne não recordava um dia tão feliz como
aquele.
Peter Kreisler a tinha convidado a um passeio pelo rio, por isso tinha alugado um
barco para aquela mesma tarde. Depois voltariam de carruagem depois de jantar
desfrutando do longo entardecer primaveril.
E ali estava, sentada na pequena embarcação que flutuava entre os reflexos da água,
com o sol lhe dando no rosto, uma brisa agradável e o som de risadas e vozes animadas
ouvindo-se por todo o rio; mulheres com vestidos de musselina, homens em mangas de
camisa e crianças cheias de entusiasmo apoiadas sobre a amurada de seus barcos de
passeio, ou aparecendo nas pontes ou brincando de qualquer das duas margens.
—Parece que toda Londres veio aqui de excursão— disse ela muito contente
enquanto o barqueiro virava com destreza entre uma barcaça amarrada e um navio de
pesca.
Tinha começado o passeio junto à ponte do Westminster, à sombra do Parlamento, e
agora seguiam corrente abaixo, além do Blackfriars, quase na ponte do Southwark e com a
ponte de Londres ante seus olhos.
—Que dia de maio tão bonito, não é verdade? Suponho que a gente boa e virtuosa
continuará na igreja— disse Kreisler sorrindo. Tinham ouvido o tangido de uns sinos como
deslizando pela água e uma ou duas agulhas do Wren ao longe.
—Eu posso ser igualmente boa e virtuosa aqui,— respondeu ela com uma
sinceridade mais que duvidosa—. E certamente estarei muito mais contente.
Desta vez Kreisler não pôde agüentar a risada.
—Se for tentar me convencer de que é uma mulher muito convencional, parece—me
que chega muito tarde. As mulheres convencionais não remontam o Congo a remo em
canoa.
—Claro que não!—replicou ela muito contente—. Elas se sentam em um barco para
passear pelo Tâmisa e se deixam levar ao Richmond ou ao Kew, ou inclusive a Greenwich
por algum amável cavalheiro que se empreste a isso.
—Talvez tivesse preferido ir ao Kew. Acredito que seu jardim botânico é uma das
maravilhas do mundo.
—Nada disso! Sou muito feliz de ir a Greenwich. Além disso, em um dia como este,
temo que todo filho de vizinho não fará outra coisa que ir ao Kew com sua correspondente
tia.
Kreisler procurou um pouco mais de comodidade em seu assento e se relaxou à luz
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do sol contemplando a enorme quantidade de embarcações abrindo passagem sobre a
água, assim como as carruagens de cavalos correndo ao longo das margens, e os postos
ambulantes nos que se vendiam refrescos de hortelã, bolos, sanduíches, mariscos, globos,
aros, flautas, apitos e toda classe de brinquedos.
Uma menina com um vestido de babados perseguia um menino com um traje com
listas. Um cão de cor branca e negra ladrava e fazia cabriola cheio de entusiasmo.
Também se ouvia um realejo tocando uma melodia muito familiar.
Um navio de recreio passou junto a eles com o convés cheio de gente e dirigindo
saudações para a margem. Havia ali um homem com um lenço vermelho amarrado na
cabeça, como uma mancha de cor entre muitos rostos.
Nobby e Kreisler se olharam. Não era necessário dizer-se nada. Os dois estavam
desfrutando por igual com o mesmo sentimento de ironia com respeito a outros refletindose no rosto.
Tinham passado já sob a ponte do Southward. À esquerda ficava o antigo
embarcadouro do Swan, com a ponte de Londres justo em frente, e mais à frente o mole
das alfândegas.
—Você acha que o rio Congo se converterá com o tempo em uma das vias de
comunicação mais importantes do mundo?—perguntou ela pensativamente—. Por muito
que queira, só posso imaginar o como uma enorme corrente de cor marrom margeada por
uma selva tão imensa que são várias as nações que a percorrem, e só vejo umas quantas
canoas indo povoado em povoado—disse introduzindo a mão suavemente na água
enquanto a brisa lhe acariciava o rosto—.
Que pequeno é o homem, que inútil nossa luta contra a força primitiva da África.
Daqui nos parece que conquistamos tudo e que submetemos tudo a nossa vontade.
—Jamais conquistaremos o Congo— disse ele sem vacilar—. O clima nos impedirá
isso. Essa é uma das poucas coisas que não sabemos dominar nem submeter. Mas não
duvide que acabarão construindo-se cidades, chegarão os navios e se exportará a
madeira, o cobre e algo que possamos vender. Já existe uma ferrovia.
Com o tempo, estou seguro de que construirão outro que vá de Zambeze até o Cabo,
para transportar ouro, marfim e o que seja, com a maior rapidez possível.
—E você não gosta disso—disse ela com tristeza, apagando de seu rosto qualquer
rastro de sorriso.
Kreisler a olhou fixamente.
—Detesto a cobiça e a exploração. Detesto a ambigüidade com a que enganamos
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aos africanos. enganaram e fraudou a Lobengula, o rei dos nadebele do Mashonaland.
Claro que é um analfabeto, mas não é tolo. Acredito que intui muito bem a tragédia que se
aproxima.
A maré baixava e com ela a barco em que navegavam quando passaram sob a ponte
de Londres. Uma menina com um chapéu de aba longa ficou olhando enquanto sorria.
Nobby lhe saudou com a mão e a menina lhe respondeu com o mesmo gesto.
O mole das alfândegas ficava agora a sua esquerda, e mais à frente se via Tower Hill
e a grande torre de Londres com suas ameias e as bandeiras ondeando ao vento. Ali
mesmo e junto à borda se podia ver o degrau da Porta dos Traidores, onde, em outros
tempos chegavam por barco os condenados a morte para sua execução.
—Eu gostaria de saber como era—disse Kreisler quase em voz baixa, como falando
consigo mesmo.
—Quem? —quis saber Nobby, sem saber pela primeira vez a que se referia.
—Guillerme da Normandia—respondeu ele—. O último conquistador que soube
submeter este país e sua gente, levantar fortalezas em todas as colinas e manter a ordem
e tirar proveito da terra com seus soldados. Era sua Torre— disse ao passar ante ela
deslizando-se pela água enquanto falava. O barqueiro mal tinha que esforçar-se para
manter a velocidade.
Ela sabia muito bem no que estava pensando Kreisler. Nada tinha que ver com o
Guillerme da Normandía, nem com a invasão que aconteceu fazia quase oito séculos. Era
de novo a África, e os fuzis e canhões europeus contra as lanças dos guerreiros zulús, ou
dos nadebele, com formações britânicas enchendo as planícies africanas; homens negros
dominados pelos brancos, igual aos saxões em mãos dos normandos.
Só que os normandos eram primos de sangue, unidos pela raça e a religião,
unicamente diferentes pela língua que falavam.
Ambos se olharam fixamente nos olhos. Estavam cruzando agora St. Catherine’s
Dock em direção ao Pool de Londres. De ambos os lados do rio podiam ver-se os moles,
embarcadouros e as escadarias que chegavam até a margem da água.
Havia barcaças amarradas, outras avançavam devagar corrente acima para outros
moles, ou corrente abaixo para a desembocadura do rio e mar. Agora se viam poucos
navios de recreio; aquela era a zona comercial. Dali se negociava com o mundo inteiro.
Kreisler sorriu, como adivinhando os pensamentos dela.
—Navios carregados de seda procedentes da China, especiarias da Burma e a Índia,
teca, marfim e jade—disse, tornando-se um pouco para trás. O sol brilhava em seu rosto
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curtido e iluminava seus cabelos de cor clara, quase branqueados por outra luz muito mais
intensa que a daquela tarde inglesa adornada com os reflexos multicoloridos da água—.
Suponho que também haverá cedros do Líbano e ouro do Ofir.
E não acredito que tarde em chegar ouro do Zimbabue, mogno e peles da Equatoria,
marfim do Zanzíbar e minerais do Congo. E trocaremos todo isso por algodão do
Manchester, e também por armas e homens de meia a Europa. Haverá quem volta a casa,
mas muitos não o conseguirão.
—Viu alguma vez Lobengula em pessoa?—perguntou ela com curiosidade.
Kreisler soltou uma gargalhada e afastou a vista para o céu.
—Sim, Uma vez. É um homem gigantesco, deve pesar uns cento e quarenta quilos e
medirá mais de um metro oitenta de estatura. Não leva nada posto, salvo um aro zulú
sobre a cabeça e uma pequena tanga.
—Céus! Tão grande é?—perguntou ela olhando-o fixamente para saber se estava
zombando, embora soubesse quase com certeza que não.
Kreisler esboçou apenas um sorriso, mas lhe via pelo olhar que aquilo lhe fazia muita
graça.
—Os nadebele não são um povo construtor como os shona, que construíram a cidade
do Zimbabue. Os primeiros vivem de criar e roubar gado, e levantam povoados com
choças cobertas de esterco.
—Conheço—os…—respondeu ela rapidamente, e a lembrança se fez tão vivida que
quase podia cheirar o seco calor africano, em lugar do vaivém da água que agora lhe
rodeava com seus reflexos multicoloridos.
—É claro—se desculpou ele—. Me Perdoe. É—me tão estranho poder falar com
alguém que não necessita explicação alguma para imaginar o que sempre tento descrever.
Lobengula está rodeado de uma corte muito rigorosa.
Para ter audiência com ele, terá que aproximar-se com as mãos e os joelhos no chão,
e permanecer assim todo o tempo—disse com uma careta de desgosto—. Lhe asseguro
que pode ser uma experiência exaustiva, sobre tudo se ao final não se consegue o que
queria dele. Não sabe ler nem escrever, mas tem uma memória prodigiosa para tudo quão
bom acredita que conseguirá negociando com os europeus. Pobre diabo.
Ela esperou em silêncio. Kreisler ficou imerso em seus próprios pensamentos e
Nobby preferiu não incomodá—lo, mas nem por isso se sentiu excluída; ao contrário, era a
companhia perfeita.
A luz, o som da água, os moles e alpendres do Pool de Londres seguiam passando
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junto a eles, com os sonhos que compartilhavam sobre um passado em outra terra, mas
também os temores sobre seu futuro enquanto outra classe de escuridão se abatia sobre
eles.
—Enganaram—no, claro— disse ele ao cabo—. Prometeram que não levariam mais
que dez homens brancos para trabalhar em seu país.
Ela se endireitou quase de um salto com expressão de incredulidade.
—Sim—disse ele olhando—a—. É incrível para você e para mim, mas ele aceitou.
Também lhe disseram que não cavariam perto de nenhuma cidade, que todos eles se
submeteriam às leis dos nadebele e que atuariam como súditos de Lobengula –
acrescentou com um tom amargo.
—E o preço?—perguntou ela.
—Cem libras ao mês, um milhar de fuzis de repedido Martini—Henry, cem mil
cartuchos de munição e um barco cañonera no rio Zambezi.
Nobby não disse nada. A sua esquerda, estavam passando junto ao Wapping Old
Stairs enquanto seguiam rio abaixo. O Pool de Londres era um formigueiro de botes,
barcaças, vapores, rebocadores e navios de arrasto e, aqui e lá, os curiosos navios de
recreio.
É possível que o Congo, aquele rio de águas turvas assediadas pela selva, chegasse
algum dia a ser como aquela paisagem transbordante de civilização e mercadorias
procedentes de todo o mundo, que logo compravam, vendiam e consumiam uns homens e
mulheres que jamais tinham saído de seu país nem de seu próprio condado?
—Rudd partiu a toda velocidade para comunicar a notícia ao Rhodes no Kimberley—
continuou Kreisler—, antes de que o rei se desse conta do engano. O grande idiota quase
morre de sede de tão ansioso que estava por transmitir a mensagem— disse com visível
desagrado, mas sem poder dissimular na expressão uma dor profunda e pessoal.
Mantinha os lábios apertados, como se a intensidade daquele sentimento lhe tivesse
acompanhado sempre, e apesar da magreza de seu corpo e da força que ela sabia
habitava dentro, de repente lhe pareceu vulnerável.
Mas se tratava de uma dor muito íntima. Talvez ela fosse a única pessoa com quem
podia compartilhar esperando em troca um certo grau de compreensão, embora não tanta
para intrometer-se em sua intimidade. Uma parte do bom entendimento que havia entre os
dois se devia à delicadeza com que ambos ficavam às vezes em silêncio.
Tinham passado já o Pool e os Docks e estavam deixando atrás o bairro do
Limehouse. De ambos os lados do rio seguiam as rampas, as escadarias e os enormes
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armazéns com nomes pintados. Por diante tinham os West a Índia Docks, depois
Limehouse Reach e a ilha do Dogs.
Também passaram junto às estacas do velho mole, que apareciam pela maré baixa e
onde antigamente atavam aos piratas, que morriam abafados quando a água voltava a
subir. Os dois as tinham visto, olharam-se o um ao outro e preferiram não dizer nada.
O certo é que era muito cômodo não ter que recorrer à linguagem para entender—se.
Era um luxo ao que não estava acostumada. Quase todas as pessoas que conhecia teriam
considerado o silêncio como uma carência e se teriam sentido na obrigação de dizer algo
para rompê—lo.
Kreisler se sentia absolutamente feliz em apenas olhá—la nos olhos de vez em
quando para saber que também ela estava muito ocupada com o vento, o aroma do sal, e
o bulício que os rodeava, embora ao mesmo tempo se sentiam alheios a tudo isso pela
pequena margem de água que os afastava de todo o mundo. Era como atravessá—lo com
impunidade, para contemplá—lo sem envolver-se nele.
Greenwich era formoso, com o longo promontório verde emergindo do rio, as árvores
em flor e, mais à frente, o parque, com a elegância clássica da arquitetura do Vanburgh
refletindo-se no hospital e nas Reais Academias Navais.
Desceram na margem, subiram a uma carruagem descoberta a caminho do parque e
uma vez ali passearam devagar entre a erva e as flores até deter-se sob umas grandes
árvores a escutar o suave rumor dos ramos movidos pelo vento.
Havia uma enorme magnólia em flor, com suas tulipas como manchas de espuma
branca contra o azul do céu. Havia crianças perseguindo-se e brincando com aros, piões e
cornetas.
Babás com rígidos uniformes caminhando com a cabeça erguida e empurrando
carrinhos. Soldados com jaquetas vermelhas pululando aqui e ali sem afastar a vista das
babás. Casais de noivos, umas jovens e outras nem tanto, passeando agarrados pelo
braço. Jovenzinhas risonhas paquerando com suas sombrinhas. Um cão fazendo
cambalhotas com um pau entre os dentes. E em algum lugar, um realejo tocando uma
bonita melodia.
Tomaram o chá e falaram de nadas, sabendo que os temas mais graves continuavam
ali, só que já os compreendiam e nada tinham a acrescentar sobre eles.
Tinham compartilhado toda a tristeza e o medo que sentiam, de modo que aquela
cálida e aprazível tarde pediu passagem para deixá—los relegados a um segundo plano.
Ao entardecer, com o ar mais fresco e cheio de mariposas noturnas e o aroma da
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terra e folhas separando do caminho, conseguiram a carruagem que tinha que levá—los
em direção oeste para o longo caminho de volta. Kreisler lhe ofereceu a mão para ajudá—
la a subir e uma vez dentro, empreenderam a volta quase sem falar enquanto cada vez se
fazia mais escuro.
A luz lançava brilhos de cor damasco, âmbar e turquesa sobre as águas do rio, e por
um momento todo adquiriu um tintura mágico, como se se tratasse das lagunas de
Veneza, ou do estreito do Bósforo, ali onde a Europa se encontra com a Ásia, em lugar de
achar-se em Londres, o coração do maior império que existiu desde a Roma dos Césares.
Depois a cor se fez prateada, as estrelas começaram a sair pelo sul, longe da
agitação e as luzes artificiais da cidade, e começaram a juntar-se um pouco enquanto o frio
da escuridão enchia tudo. Nobby não recordava um dia tão doce como aquele.
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Capítulo 6
O dia seguinte, segunda—feira, Nobby o dedicou em grande parte a cuidar de seu
próprio jardim. De todas as coisas que gostava da Inglaterra —e se o pensasse um pouco,
a verdade é que não havia muitas—, com os jardins era com o que mais desfrutava. Não
eram estranhas as ocasiões nas quais abominava o clima, quando os intermináveis e
sombrios dias de janeiro e fevereiro a deprimiam e sentia então uma dolorosa nostalgia do
sol africano. A geada se introduzia pelas costuras de qualquer objeto desenhado para
combatê—la.
A água gelada abria passagem pelo pescoço e pulsos, entre as luvas e as mangas,
não havia bota capaz de manter os pés secos e as pregas das saias ficavam empapadas e
sujas. Os fabricantes de roupa não tinham a menor idéia do que supunha andar por aí com
vários quilos de peso de tecido molhado envolvendo o corpo?
E havia dias, às vezes inclusive semanas, em que a névoa apagava o mundo por
completo, uma névoa pegajosa e espessa que se introduzia pela garganta, distorcendo
qualquer som parecido à voz, e que se mesclava com a fumaça e os vapores de cem mil
lareiras para formar uma espécie de sudário, como um tecido frio e úmido que cobria o
rosto.
E o que dizer dos desesperadores dias do verão, quando em lugar de luz e sol, caía
uma chuva pertinaz e tinha que fazer frente ao vento gelado do este que vinha do mar
arrepiando a pele.
Mas também havia dias de glória nos quais o sol brilhava em um céu perfeito, com
árvores gigantescas de trinta e até sessenta metros de altura erguendo-se para o alto entre
o rumor de milhões de folhas; os que mais gostava de eram os olmos, os susurrantes
choupos, os abetos, com seus troncos prateados, e as enormes faias.
E a terra sempre verde, sem secar-se pelo calor do verão nem congelar-se pelo frio
do inverno. A abundância de flores certamente também era única. Nobby era capaz de
nomear uma centena de variedades sem necessidade de consultar um livro.
Assim, enquanto contemplava à luz da tarde seu longo e gentil canteiro de grama que
acabava em um cedro e vários olmos, podia ver a roseira do Albertinas derramando-se
com profusão sobre o velho muro de pedra, com inumeráveis casulos a ponto de abrir-se
em uma explosão de cor rosa e coral.
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E frente a ele, as esporas de cavalheiro em espirais, prontas para mostrar suas flores
de cor anil e azul marinho, e as peonías de vermelho intenso, engordando seus caules
para florescer. O ar se enchia do perfume do espinheiro e dos liláses de cor rosa e
púrpura.
Em um dia como aquele, quem não ia dar as boas—vindas aos construtores de
impérios na África, Índia, Pacífico, ilhas das Especiarias ou inclusive Índias.
—Desculpe-me, senhora.
Nobby se voltou saindo bruscamente de seu ensimesmamento. Sua criada estava
ante ela olhando—a com rosto de surpresa.
—Sim, Martha?
—Desculpe-me. Há uma tal senhora Chancellor que pergunta por você. É a esposa
do Linus Chancellor. É muito...
—Sim?
—Oh, será melhor que venha, senhora. Digo-lhe que em seguida a receberá?
Nobby se agüentou a risada e tratou de dissimular sua surpresa. Que diabos fazia
Susannah Chancellor de visita em sua casa? Nobby não era precisamente de seu círculo
social nem político.
—Sim, sim; lhe diga que entre e acompanhe—a até aqui—respondeu ela.
Martha reagiu com uma torpe reverencia e pôs-se a correr pela erva com muito pouca
dignidade para despachar o recado.
Em um momento Susannah emergiu da porta que dava ao jardim; enquanto isso,
Nobby já estava subindo os pequenos degraus que afastavam o jardim da casa, e ao
passar a saia roçava umas urnas que transbordavam de radiantes capuchinas.
Susannah usava um elegante vestido branco com detalhes de cor rosa e um laço em
tom carmim, renda também brancas na gola e pulsos e uma sombrinha adornada com um
laço e uma rosa. Estava impecável, mas não parecia muito contente.
—Boa tarde, senhora Chancellor —saudou Nobby com certa cerimônia. Uma visita a
aquela hora da tarde exigia todos os cumprimentos do mundo—. Que amável que tenha
vindo ver—me.
—Boa tarde, senhorita Gunne— respondeu Susannah com menos segurança da qual
sempre fazia demonstração, e ergueu a vista como tratando de averiguar se atrás de
Nobby havia alguém mais—. Espero não havê—la interrompido com outra visita — disse
forçando um sorriso.
—Não, estou sozinha—respondeu Nobby perguntando-se o que preocupava tanto a
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aquela mulher—. Só estava desfrutando deste tempo tão bom e pensando que ter um
jardim é uma delícia.
—Sim, sim o é— disse Susannah aproximando-se do jardim e descendo os degraus
que davam à grama—. O seu é especialmente bonito. Seria uma descortesia de minha
parte lhe pedir que déssemos uma volta por ele? Daqui não pode ver-se tudo e parece que
continua além daquele muro de pedra e daquela arcada, não é assim?
—Sim, para mim é uma sorte que seja tão grande. E é claro, será um prazer mostrá—
lo — disse Nobby. Ainda era muito cedo para lhe oferecer um refrigério, e em qualquer
caso, não era costume fazê-lo antes da primeira hora de uma visita. Claro que estas não
deviam durar mais de quinze minutos; tampouco era muito elegante dar uma volta pelo
jardim, o qual, por outro lado, levaria-lhes pelo menos meia hora.
Nobby começou a preocupar-se com o motivo que tinha levado Susannah até sua
casa. Estava absolutamente claro que não se tratava de uma simples visita de cortesia.
Em realidade, o normal, por não dizer o mais adequado, é que tivesse entregue seu cartão
de visita, já que propriamente não podia considerar-se que tivessem relação de tipo algum.
Começaram a passear devagar e Susannah se ia parando de vez em quando para
admirar algo, às vezes sem saber como se chamava, só porque gostava da cor, a forma ou
a posição com que complementava outra coisa. Passaram a carpe sobre os antirrinos e
arrancaram uns quantos brotos largos de erva que tinham crescido entre um montão de
sálvias azuis.
—Claro que vivendo no Westminster— continuou Susannah—, a verdade é que não
temos lugar para um jardim como este. Sempre saímos ao campo quando meu marido
pode, embora isso não ocorre muito freqüentemente. Tem um trabalho muito absorvente.
—Já imagino —murmurou Nobby.
Susannah esboçou um tímido sorriso que em seguida se desvaneceu. E então adotou
uma expressão curiosa, um olhar doce que era ao mesmo tempo de felicidade e dor,
embora a crispação dos lábios delatava uma ansiedade que não a deixava tranqüila.
Tinha pronunciado as palavras "meu marido" com o orgulho de uma mulher
apaixonada, mas suas mãos não deixavam de brincar com os laços da sombrinha, com os
dedos rígidos, como se não lhe preocupasse que se rompessem os fios.
Nobby não podia fazer outra coisa que esperar.
Susannah se voltou então e começou a caminhar para o grande cedro e o banco
branco que estava sob sua sombra. A erva tinha crescido pouco ali onde os ramos
tocavam o chão e depois estava o cerco de terra rodeando o tronco, já que as raízes
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tinham absorvido todo o alimento do chão.
—Deve você de ter visto coisas maravilhosas, senhorita Gunne –disse Susannah sem
olhá—la e dirigindo a vista para a arcada de pedra coberta de rosas—. Às vezes a invejo
por suas viagens, embora geralmente, por não dizer quase sempre, reconheço que me
custaria muito renunciar às comodidades da Inglaterra. —E acrescentou lhe olhando—a
aborreceria muito me contar alguma de suas aventuras?
—Absolutamente, se for o que realmente deseja. Mas, me acredite, não tem por que
escutá—las se só quer ser amável comigo.
—Amável? —exclamou Susannah surpreendida, deixando de caminhar e olhando
para Nobby no rosto. Isso é o que acha?
—Não é a primeira vez que me ocorre— replicou Nobby com certa condescendência
enquanto lhe vinham à cabeça algumas lembranças, nem todas boas, embora absurdas
naquele momento.
—Oh, não; não é isso— lhe assegurou Susannah. Ambas seguiam sob a sombra do
cedro e o ar esfriava cada vez mais. — a África me parece fascinante. É um tema do que
meu marido se ocupa muito, sabe?
—Claro, sei perfeitamente quem é seu marido—respondeu Nobby, sem saber muito
bem o que acrescentar. quanto mais detalhe conhecia sobre o apoio do Linus Chancellor à
campanha do Cecil Rhodes, menos gostava do assunto. A colonização de Zambeze lhe
preocupava desde que tinha conhecido ao Peter Kreisler. A lembrança daquele homem a
fez sorrir apesar da situação e dos problemas.
O tom daquela resposta não passou inadvertido para Susannah, ou pelo menos isso
parecia. Olhou rapidamente a seu redor como se estivesse a ponto de dizer algo, mas logo
pareceu mudar de idéia, como se não quisesse abandonar aquele jardim. Levava dez
minutos de visita e segundo as normas, tinha chegado o momento de começar a despedirse.
—Estou certa de que conhece a África muito bem, não? Refiro a sua gente— disse.
—Só de algumas zonas em concreto, sim— respondeu Nobby com franqueza—.
Mas não se pode imaginar quão grande é aquilo; de fato é muito difícil para um
europeu fazer uma idéia das enormes distancias que há nesse lugar. Seria ridículo por
minha parte dizer que conheço mais que uma pequena parte.
Claro que se tanto lhe interessa há mais de uma pessoa em Londres que sabe muito
mais que eu e que, além disso, acaba de retornar dali. Estou certa de que já teria
conhecido ao senhor Kreisler, para dizer alguém —afirmou com uma estranha sensação
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de encolhimento ao pronunciar seu nome.
Mas que tolice. Mencioná-lo naquele momento era o mais normal do mundo; ela não
era como essas mulheres que se apaixonam e aproveitam qualquer ocasião para falar de
seu homem embora não venha a conto. O lógico era falar dele. O absurdo seria não citá—
lo naquela conversa.
—Sim—respondeu Susannah desviando a vista da arcada e roseira para a erva e a
casa—. Sim, já me apresentaram. É um homem curioso, e muito enérgico em suas
opiniões. O que opina você dele, senhorita Gunne? –disse voltando-se para ela outra vez
com a expressão muito séria—. Não lhe importa que o pergunte, não é? Certamente, de
todas as opiniões possíveis, a sua é a mais autorizada.
—Temo que me super-valoriza — respondeu Nobby, ruborizando-se, o que piorava
ainda mais as coisas—. Mas, é claro, estarei encantada de lhe contar o pouco que sei.
Susannah se mostrou visivelmente aliviada, como se aquele fosse o verdadeiro
propósito de sua visita.
—Obrigado. Por um momento pensei que ia dizer que não.
—O que a preocupa?—perguntou Nobby. A conversa se estava fazendo cada vez
mais incômoda.
Susannah continuava muito nervosa e cada minuto que passava aumentava em
Nobby sua sensação de insegurança. Graças ao amparo dos muros, a tranqüilidade do
jardim era tal que podia ouvir o vento agitando as copas das árvores em um som parecido
ao do mar junto à margem, com a mesma suavidade das ondas na praia.
Uma abelha voava preguiçosamente de flor em flor. O calor da tarde era considerável
e se notava inclusive à sombra do cedro; no ar flutuava um intenso aroma de erva pegada,
a terra úmida sob os sebes e ao perfume adocicado e penetrante dos liláses e as flores de
espinheiro.
—O senhor Kreisler não tem muita consideração pelo Senhor Rhodes – disse por fim
Susannah—. Mas não consigo entender a razão. Você acha que se trata de algo pessoal?
Nobby acreditou perceber certo tom de esperança em sua voz, claro que era lógico
que assim fosse, dada a confiança que Linus Chancellor tinha posto nele. Mas o que tinha
podido dizer Kreisler ao Susannah para lhe provocar aquelas dúvidas e preferir a opinião
de Nobby a de seu próprio marido? Somente isso já era algo extraordinário.
As mulheres compartilhavam a posição social de seus maridos, suas crenças
religiosas, e se tinham idéias políticas, também estas eram as de seus maridos.
—Nem sequer sei se se conhecem pessoalmente—respondeu Nobby devagar,
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dissimulando sua surpresa e medindo as palavras para não deixar-se levar por sua própria
desconfiança sobre os motivos da colonização africana, assim como por seu temor pela
exploração de suas gente—. Claro que ele, assim como eu, sente certa fraqueza pelo
mistério da África tal qual é – acrescentou com um sorriso que tinha um pouco de
desculpa—. Nos dão medo as mudanças, sobre tudo se com eles se perde para sempre
uma parte desse mistério.
Quando uma pessoa sabe que é a primeira pessoa em ver algo e se sente
emocionada, transbordada e comovida por isso, sabe também que ninguém mais o tratará
com o mesmo respeito. E isso faz que alguém sinta medo, talvez injustamente. Mas está
claro que o senhor Kreisler não compartilha absolutamente os sonhos de colonização e
assentamento do senhor Rhodes.
O rosto de Susannah brilhou de repente com um sorriso.
—Dito assim, senhorita Gunne, soa muito comedido. Se o que Kreisler diz é certo,
seu temor é que tudo isto supõe a ruína de Zambeze. Ouvi algum de seus argumentos e o
que eu gostaria de é conhecer sua opinião a respeito.
—Oh!—começou Nobby. Aquilo a pegou de improviso. Era uma pergunta muito direta
para responder sem pensar antes um pouco e sem tratar de dominar seus próprios
sentimentos para não delatar-se ante ninguém, e muito menos ante Susannah Chancellor.
Tinha que sopesar a questão. Sob nenhum conceito, nem sequer por engano, devia trair a
confiança que Kreisler tinha depositado nela lhe confiando inquietações e temores que
talvez não desejava comunicar a ninguém mais.
No passeio de navio pelo Tâmisa fizera confidências que excluíam a todos outros. Ela
se sentiria muito mal se chegasse a inteirar-se de que Kreisler tinha contado a seus
amigos, pela razão que fosse, qualquer das coisas que lhe havia dito aquela tarde.
Nem por um momento lhe ocorreu pensar que Kreisler talvez se envergonhava de
suas próprias idéias. Ao contrário. Mas ninguém tem direito a repetir o que um amigo lhe
conta em uma situação de amizade e confiança.
Apesar de tudo, Nobby seguia dando-se perfeita conta da vulnerabilidade que
demonstrava aquela mulher que agora olhava as flores de tremoceiros de cor rosa,
pêssego, violeta, azul e creme. Seu perfume era quase irresistível. Susannah tinha tantas
dúvidas que tinha sido incapaz de suportá-las em silêncio. Mas por que tanto medo? Pelo
marido que tanto amava? Pelo dinheiro investido por sua sogra? Talvez por uma questão
de consciência?
Além disso, para Nobby, e acima de qualquer daquelas considerações, o importante
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era ser sincera, fiel a sua própria visão da África, de modo que o que já conhecia tão bem
dela formava parte de seu próprio caráter e condicionava necessariamente a compreensão
que tinha do mundo e de todas as coisas. Trair isso, embora fosse movida pela compaixão,
teria significado a destruição total.
Susannah continuava esperando enquanto a olhava no rosto.
—Talvez prefere não responder—disse lentamente—. Significa isso que para você é
o senhor Kreisler quem tem razão e que meu marido se equivoca apoiando ao Cecil
Rhodes? Ou é que talvez sabe você algo sobre o senhor Kreisler que pode desacreditá—lo
e não quer contar-lhe a ninguém?
—Não—replicou Nobby com segurança. —. Absolutamente. Significa só que é uma
pergunta muito importante para respondê—la sem pensar um pouco. Eu não gostaria de
me precipitar. Acredito que o senhor Kreisler acredita firmemente no que diz e que
conhece muito bem o tema. Ele receia que tenham enganado aos reis nativos...
—Já sei que o fizeram — interrompeu—a Susannah—. Até o Linus o reconhece, mas
ele diz que é para conseguir um bem muito maior no futuro; dez anos, segundo ele. A
África será colonizada, sabe? Já não é possível voltar atrás no tempo e fazer como se não
a tivessem descoberto.
A Europa sabe que ali há ouro, diamante e marfim. Só se trata de saber quem será o
primeiro em fazê-lo. Grã—Bretanha? Bélgica? Alemanha? Ou talvez pior, prefere você a
um desses países árabes que ainda praticam a escravidão?
—Então o que é o que realmente lhe incomoda das idéias do senhor Kreisler? —
perguntou Nobby em tom cortante—. Também nós queremos que seja Grã—Bretanha,
mas pensando não só em nosso benefício, que resulta bastante egoísta, mas também de
uma forma mais altruísta, porque estamos convencidos de que o faremos melhor, com um
sistema mais honrado de governo que o que há agora e é claro mais humano que a
escravidão que mencionou.
Susannah a olhou com expressão de inquietação.
—O senhor Kreisler sustenta que acabaremos escravizando aos africanos em sua
própria terra.
Apoiamos ao senhor Rhodes e lhe deixamos pôr quase todo o dinheiro, além do
esforço e risco. Se tiver êxito na empresa, coisa que muito provavelmente conseguirá, não
haverá forma de controlá—lo. Teremos convertido—o em um imperador no meio da África
com todas nossas bênçãos. Mas e se tivesse razão? De verdade sabe tanto e vê tão
claramente as coisas como parece?
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—Eu acredito que sim—respondeu Nobby sorrindo com tristeza—. Acredito que você
mesma acaba de explicar muito bem.
—E acredita que essas idéias talvez deveriam assustar a alguém –disse Susannah
virando uma e outra vez o cabo da sombrinha—. Em realidade, quem melhor se deu conta
de tudo foi Sir Arthur Desmond. Conhecia-o? Morreu faz duas semanas. Era uma das
pessoas mais encantadoras que jamais conheci. Trabalhava no Foreign Office.
—Não, não cheguei a conhecê-lo. Quanto o lamento.
Susannah ficou contemplando o colorido das flores de tremoceiros, sobre as quais
voava um besouro indo de um cacho a outro. Viram o jardineiro em um dos extremos do
jardim com um carrinho de mão cheio de ervas e em seguida desapareceu a caminho da
horta.
—Parece absurdo sentir pena pela morte de alguém a quem mal vi meia dúzia de
vezes no ano—continuou Susannah, suspirando—, mas assim é. Sinto uma tristeza terrível
cada vez que penso que não voltarei a vê-lo.
Era uma dessas pessoas que conseguem que nos sintamos melhor—disse olhando
ao Nobby para assegurar-se de que o entendia—. E não porque transbordasse alegria e
entusiasmo, mas sim porque era uma pessoa fundamentalmente sensata, e isso vale muito
em um mundo com valores freqüentemente tão pobres e com uns argumentos tão
superficiais e cambiantes que não se podem rebater; um mundo que ri dos enganos e
renunciou ao otimismo.
—Certamente, era um grande homem—disse Nobby em tom afetuoso—. Não me
surpreende que lhe doa tanto sua ausência, por muito pouco que o visse. Às vezes o
importante não é o tempo que uma pessoa passa em companhia de alguém, senão o que
acontece nesse espaço de tempo. Há gente a que conheço há muitos anos e, embora
pareça mentira, continuo sem conhecer seu interior.
Em troca, há outros com os que só pude falar uma hora ou duas, e tudo o que nos
havemos dito tinha um significado e uma verdade que durará para sempre— disse sem
que ao princípio estivesse pensando conscientemente em alguém em particular, mas o que
tinha na cabeça era o rosto do Kreisler à luz do sol e navegando rio abaixo.
—Foi... foi tudo muito de repente—disse Susannah acariciando com a ponta dos
dedos uma das rosas temporãs. — Às vezes, as coisas mudam tão depressa, não é
verdade?…
—Verdadeiramente – respondeu Nobby, que estava pensando no mesmo; não são só
as circunstâncias que mudam, também as emoções. No dia anterior o tinha tido tudo muito
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claro, mas agora se via incapaz de impedir a perseguição de certas dúvidas. Era evidente
que Susannah estava angustiada e talvez se debatia entre a fidelidade às idéias de seu
marido e as questões que Kreisler tinha suscitado nela.
Não estava disposta a admitir que Kreisler tinha razão, mas seguia com a mesma
expressão de temor, e pela postura de seu corpo e o modo de segurar a sombrinha, mais
parecia que tinha uma arma nas mãos em lugar de um objeto de adorno.
Mas o que era o que Kreisler lhe havia dito exatamente? E talvez mais importante que
isso, por que razão? Ele não era um inconsciente capaz de falar só porque queria.
Kreisler sabia muito bem com quem falava e conhecia perfeitamente o apoio do Linus
Chancellor à causa de Cecil Rhodes lhe conseguindo mais recursos econômicos e o
espaldar do governo.
Também conhecia a relação entre Susannah e Francis Standish, assim como a
herança dela no negócio dos bancos, por isso devia estar à corrente de muitos detalhes da
operação. Tratou Kreisler de obter informação dela?
Ou talvez pretendia semear a dúvida nela com meias verdades para que as
transmitisse ao Linus Chancellor, ao Ministério de Colônias e finalmente próprio primeiro—
ministro? Kreisler era um sobrenome alemão. E se, apesar de sua aparência totalmente
inglesa, em lugar de defender os interesses britânicos na África, só pensasse nos da
Alemanha?
—E se estivesse utilizando às duas, ao Susannah e ao Nobby?
Aquele pensamento lhe doía no mais profundo, como uma ferida aberta em seu
interior.
Susannah a olhava com os olhos cheios de incerteza e por onde aparecia o começo
de uma grande dor. Havia entre as duas um espírito de mútua compreensão.
Ao Nobby bastou um instante para dar-se conta de que Susannah também enfrentava
uma decepção tão amarga que só o fato de pensar nela a enchia de angústia. Mas uma
vez passado esse instante, outra idéia começou a lhe encher a cabeça. E se Susannah
estivesse também apaixonada pelo Peter Kreisler? Era possível?
E o que significava isso de "também"? Em que diabos estava pensando? Ela só se
sentia atraída por ele, nada mais. Apenas o conhecia. Tinham, sim, algumas coisas em
comum; o mesmo sonho adolescente que lhes tinha levado por separado à mesma grande
aventura naquele escuro continente onde tinham que achar a luz e a maravilha, um lugar
ao que amar profundamente, e ambos tinham retornado a casa com sua magia e sua
emoção para sempre dentro deles. E agora também os dois temiam por seu
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desaparecimento.
Uma tarde no rio, por muito entendimento que houvesse entre os dois, tanto que nem
as palavras eram necessárias, são só umas horas em meio de toda uma vida e não
bastam para considerar amor, só atração. O amor era muito menos efêmero, sem tanta
magia.
—Senhorita Gunne?
—Sim?—respondeu Nobby saindo de suas reflexões e voltando para o jardim e à
companhia de Susannah.
—Você acha que o senhor Rhodes nos está utilizando? Que levantará seu próprio
império na África Central convertendo Zambeze na terra do Cecil Rhodes para logo
zombar de todos nós? Sobraria-lhe o dinheiro para consegui—lo.
É incrível a quantidade de ouro e diamantes que há ali, além de terras, marfim,
madeira e outras muitas coisas. Dizem que está cheio de feras selvagens e de animais de
todas as espécies imagináveis.
—Não sei—respondeu Nobby tiritando sem querer, como se o frio tivesse invadido de
repente o jardim—. Certamente, impossível não é—disse. Era a única resposta que podia
lhe dar. Susannah não merecia uma mentira e, além disso, provavelmente não teria
acreditado nela.
—Diria que está medindo suas palavras—disse Susannah esboçando algo parecido a
um sorriso.
—É algo muito complicado e também arriscado para tomar-lhe à ligeira. Basta olhar
um pouco para trás em nossa história para ver que muitas de nossas maiores e mais
obtidas conquistas estiveram em mãos quase sempre de um só homem — respondeu
Nobby—. Veja senão o caso do Clive e a Índia.
—Sim, isso é verdade—disse Susannah dando—a volta e olhando a longa extensão
de grama que levava a casa—. Mas já estou aqui há quase uma hora. Obrigada por ser tão
generosa—disse sem esclarecer se se sentia melhor ou se tinha espaçado alguma de
suas dúvidas, embora Nobby sabia muito bem que não.
Acompanhou—a até a casa, e não porque esperasse mais visitas, graças a Deus —
tampouco tinha muita vontade delas—, mas sim por certo sentimento de solidariedade em
um impulso quase inútil de proteger a alguém terrivelmente vulnerável.
Para aqueles que desfrutavam da temporada social de Londres, assistir de noite ao
teatro ou à ópera supunha todo um descanso depois de uma frenética jornada montando a
cavalo antes do café da manhã; comprando, escrevendo cartas e indo à costureira ou à
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chapeleira pela manhã; e depois almoçando e dedicando a tarde a fazer ou a receber
visitas, ou visitando exibições caninas ou exposições de arte, festas, lanches, jantares,
conversas, bailes e veladas sociais de qualquer tipo.
O fato de poder sentar-se em um lugar sem ter que travar conversa com alguém e
com a possibilidade de jogar inclusive uma ligeira sesta, mas ao mesmo tempo estando
presente e à vista de todo o mundo, era um luxo que não podia passar-se por alto.
Sem ele, mais de um podia chegar a derrubar-se depois da agitação do dia.
Entretanto, como fazia tempo que Vespasia tinha renunciado ao frenesi da vida
social, o certo é que só ia ao teatro pelo simples prazer de contemplar qualquer função.
Naquele mês de maio, entre as ofertas se incluía uma nova obra intitulada Esther Sandraz
representada pelo Lillie Langtry, mas não gostava de ver a senhora Langtry em nenhum
lugar.
No Savoy, claro, davam a opereta do Gilbert e Sullivan, Os gondoleiros, mas
tampouco tinha muita vontade de vê—la. Antes preferia ver o Henry Irving em uma obra
chamada Os sinos, ou talvez a comédia do Pinero intitulada O gabinete do ministro.
A verdade é que sua opinião sobre os ministros convidava a isso e, além disso,
parecia mais prometedor que a temporada de teatro francês, em francês, claro, que se
estava representando no Teatro de Sua Majestade; embora Sarah Bernhardt fazia-se de
Joana D' Arc e isso resultava tentador.
As óperas eram Carmen, Lohengrin ou Fausto. Ela era uma amante da ópera italiana;
de Wagner, em troca, não gostava apesar do inexplicável êxito que tinha naquele momento
e que ninguém esperara. Se tivesse se tratado de Simão Boccanegra ou Nabucco, teria ido
à ópera embora tivesse tido que estar de pé.
Ao final se decidiu pelo peso do triunfo, do Goldsmith, e ali se achou com uma
considerável quantidade de rostos conhecidos que tinham tomado a mesma decisão.
A pesar do descanso que em muitos sentidos proporcionava o teatro, a ocasião exigia
vestir-se de gala, ao menos durante os três meses que durava a temporada, de maio a
julho. O resto do ano se permitia um traje mais informal.
As saídas ao teatro se organizavam freqüentemente em grupos. A gente de
sociedade raramente fazia nada individualmente ou em casais, e parecia que as dúzias ou
as vintenas se adequavam mais a seus gostos.
Naquela ocasião Vespasia tinha convidado ao Charlotte e Eustace; à primeira pelo
prazer de convidá—la e ao segundo porque não tinha tido mais remédio que fazê-lo.
Eustace estava presente quando Vespasia se decidiu a ir ao teatro; deixou ver um
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interesse tão claro por acompanhá—la que teria sido inoportuno não incluí—lo afinal.
Ao fim e ao cabo, apesar do que chegava a irritá—la de vez em quando, continuava
sendo da família.
Também tinha convidado ao Thomas, claro, mas suas obrigações o impediam.
Teria saído muito tarde do Bowl Street e não era de boa educação entrar no camarote
no meio da função.
Por isso, muito antes de abrir o pano de fundo, Vespasia, Charlotte e Eustace se
entretiveram contemplando de seu camarote a chegada do resto do público.
—Ah! —exclamou Eustace inclinando-se ligeiramente para frente e assinalando a um
cavalheiro de cabelos brancos e de ar diferente que entrava em um camarote a sua
esquerda—. Sir Henry Rattray. Um homem excelente. Um modelo de cortesia e honra.
—Um modelo disse?—perguntou Vespasia algo perplexa.
—Absolutamente—respondeu Eustace, voltando a acomodar-se na cadeira e
olhando—a no rosto enquanto sorria com toda a satisfação do mundo. De fato, parecia tão
contente consigo mesmo que não cabia em si de gozo, com o rosto radiante de
felicidade—. É a personificação de todas as virtudes cavalheirescas: a da coragem ante o
inimigo, a clemência na vitória, a honestidade, a castidade, a delicadeza com as mulheres,
o amparo do fraco.
Tudo o que mais apreciamos em um homem. Assim era um cavalheiro em outros
tempos, e assim é um cavalheiro inglês agora: O melhor de todos, é claro! —exclamou
convencido do que dizia, como se de uma declaração de princípios se tratasse.
—Deve conhecê-lo muito bem para defendê—lo desta maneira—disse Charlotte com
mais dúvidas do que podia expressar.
—Bom, está claro que sabe dele muito mais coisas que eu —comentou Vespasia de
um modo bastante ambíguo.
—Ah, minha querida sogra—começou Eustace como advertindo de algo com o dedo
indicador—, disso se trata precisamente. Sei muitas coisas dele que ninguém sabe. Como
bom cavalheiro cristão, faz todo o bem que pode com a maior discrição do mundo.
Charlotte abriu a boca para dizer algo sobre o roubo, mas a fechou a tempo.
Olhou o rosto sereno do Eustace e sentiu um calafrio. Via—o absolutamente seguro
de si mesmo e convencido de compreender exatamente o que dizia, como se fossem
especiais; eles, os que compartilhavam aqueles brumosos ideais. Tudo digno do rei Artur.
Talvez inclusive se reuniam ao redor de mesas redondas com um vazio para o "assento
perigoso" se por acaso se apresentava algum errante Galahad para uma nova busca do
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Graal. Era tão perfeito que dava medo.
—O melhor cavalheiro—disse Charlotte em voz alta.
—Exato! —exclamou Eustace com seu entusiasmo querida amiga, não podia havê-lo
dito melhor.
—É do mesmo modo que se dizia de Lancelot —indicou Charlotte.
—Claro—disse Eustace assentindo com a cabeça e sorrindo—. O melhor amigo de
Artur, sua mão direita.
—Também o homem que o traiu – acrescentou Charlotte.
—O que? —Eustace virou a cabeça para ela com consternação.
—Com Genevieve—explicou Charlotte—. Ou já o esqueceu? Esse foi o princípio do
fim.
Era claro que Eustace não o recordava e se ruborizou com certo embaraço ante o
pouco decoroso do tema e o atordoamento que lhe produzia ver-se comprometido naquela
comparação tão inadequada.
Para sua própria surpresa, Charlotte sentiu pena dele, mas não estava disposta a
dizer nada que pudesse interpretar-se como um elogio do Círculo Interior, que era do que
tratava no fundo aquela conversa. Eustace era tão ingênuo que às vezes parecia um
menino inocente.
—Apesar de tudo, os ideais da Mesa Redonda eram os melhores—disse ela
amavelmente—. E Galahad estava limpo de tudo pecado, de outro modo não teria podido
contemplar o Santo Graal. Aqui, o importante é que às vezes encontramos juntos ao que é
bom e ao que é mau, ambos professando as mesmas crenças.
Todos temos alguma debilidade e às vezes tendemos a ver em outros aquilo que nos
falta, sobretudo se se trata de alguém a quem admiramos.
Eustace duvidou.
Charlotte o olhou no rosto, nos olhos, e viu por um momento os esforços que fazia
Eustace para compreender o que realmente tinha querido dizer ela, até que se deu por
vencido e resolveu o tema com a resposta mais fácil que podia achar.
—Naturalmente, minha querida amiga, está certa —e voltando-se para a Vespasia,
que tinha estado escutando sem dizer nada, acrescentou—: Quem é aquela mulher tão
singular do camarote que há junto ao de Lorde Riverdale? Jamais tinha visto uns olhos
como esses. Poderiam ser bonitos de tão grandes que são, mas certamente não o são.
Vespasia seguiu seu olhar e viu o Christabel Thorne sentada junto ao Jeremiah e
falando animadamente com ele. Este escutava sem afastar os olhos de seu rosto, e não só
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com amabilidade, mas também com um interesse mais que evidente.
Vespasia contou ao Eustace quem eram e depois indicou ao Harriet Soames em
companhia de seu pai, mostrando também o maior afeto e orgulho do mundo.
Uns segundos depois se produziu um pequeno revôo entre a audiência. Várias
cabeças se viraram e de repente cessou o murmúrio geral da sala ao mesmo tempo que
se comentavam algo uns aos outros.
—O príncipe de Gales?—perguntou-se Eustace com certa emoção na voz.
Estrito que era em questões de moral, se supunha que devia reprovar ao príncipe de
Gales o mesmo comportamento que reprovava em outros. Mas os príncipes eram
diferentes e não deviam ser julgados segundo os critérios pelos que se regia a gente
normal. Pelo menos, não para o Eustace.
—Não—disse Vespasia asperamente. Segundo ela, os critérios morais serviam para
todos por igual; os príncipes não eram uma exceção e além disso sentia um carinho
especial pela princesa—. É o secretário de estado para Assuntos Coloniais, Linus
Chancellor, e sua esposa, e acredito que lhes acompanha o cunhado dela, Francis
Standish.
—Oh—disse Eustace sem saber muito bem se lhe interessava ou não.
Para Charlotte não havia nenhuma dúvida. Desde que ela e Pitt tinham visto
Susannah Chancellor na recepção da duquesa do Marlborough, seu interesse por ela tinha
aumentado, sobretudo depois da conversa que tinha ouvido entre o Kreisler e ela no bazar
dedicado ao Shakespeare. Observou como tomavam assento; ele atento e cortês, mas
com a naturalidade de quem se sente totalmente cômodo em seu matrimônio na medida
em que ainda lhe proporcionava felicidade.
Charlotte sorria enquanto os observava, sabendo muito bem o que sentia Susannah
ao oferecer-se seu marido a colocar bem o xale frente ao assento, ou ao olhá—la com um
sorriso nos lábios ou no momento em que se cruzaram os dois olhares.
As luzes se apagaram e começou a soar o hino nacional, por isso já não havia tempo
de distrair-se.
Tiveram que esperar a que cessassem os aplausos e começasse o primeiro intervalo
da peça.
Eustace se voltou para o Charlotte.
—Como está sua família?—perguntou por educação e para impedir que voltasse a
sair o tema do rei Artur ou de qualquer outra sociedade passada ou presente.
—Todos estão bem, obrigado— respondeu ela.
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—E Emily? — quis saber Eustace.
—No estrangeiro. Suspenderam-se as sessões do Parlamento.
—Claro. E sua mãe?
—Também de viagem— respondeu sem querer lhe dizer que estava em lua de mel.
Teria sido muito para ela. Charlotte viu como Vespasia continha a risada e desviou o
olhar—. A avó se mudou para Ashworth House com o Emily – se apressou a acrescentar—
, claro que de momento só está com os criados, mas não lhe importa.
—Claro— disse Eustace com a sensação de que lhe tinha passado algo por alto, mas
preferiu não investigar. Quer tomar algo? —ofereceu-se amavelmente.
Vespasia aceitou, por isso Charlotte se sentiu livre para fazê-lo também. Eustace se
levantou obedientemente e saiu a procurar o que tinham pedido.
Charlotte e Vespasia se olharam e logo dirigiram seus olhares com a maior discrição
possível para o Linus e Susannah Chancellor.
Francis Standish partira, mas no camarote havia outra pessoa; embora não a viam
bem, era certamente um homem, magro e esbelto, que se erguia com porte militar.
—Kreisler — murmurou Charlotte.
—Acredito que sim— respondeu Vespasia.
Assim que o homem se voltou para falar com Susannah, as duas comprovaram que
não se enganaram.
Era impossível escutar a conversa, mas pela expressão de seus rostos podiam tirarse várias conclusões.
Kreisler se mostrava correto com o Chancellor, mas havia uma evidente frieza de
trato entre os dois, sem dúvida devido a suas diferenças políticas. Chancellor permanecia
junto a sua esposa, como dando assim por sentado que também ela compartilhava as
idéias que ele defendia.
E não é que Kreisler estivesse de costas a eles, mas sim com o ângulo suficiente
para que nem Charlotte nem Vespasia pudessem lhe ver bem o rosto.
Kreisler falava com Susannah com mais atenção da que exigiam as boas maneiras e
parecia que era a ela a quem dirigia seus argumentos mais que ao Chancellor, embora
quase sempre era este último o que respondia.
Em uma ou duas ocasiões, Charlotte percebeu como Susannah começava a falar e
como Chancellor se apressava a responder por ela, cortando—a com um rápido olhar ou
com um gesto da mão.
E então Kreisler voltava à a carga, e sempre dirigindo-se a ela, não a ele.
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Charlotte e Vespasia não se disseram nada, mas quando voltou Eustace, a primeira
já tinha a cabeça cheia de hipóteses. Agradeceu-lhe quase distraidamente e se sentou
com a bebida imersa em seus pensamentos, até que as luzes se apagaram de novo e a
função continuou.
Durante o segundo intervalo, todos abandonaram os camarotes e saíram ao
vestíbulo, e ali se encontrou Vespasia com várias amizades, sobretudo uma vetusta
marquesa vestida com um chamativo vestido de cor verde com a qual esteve falando um
momento.
Charlotte se limitou a seguir desfrutando de suas observações e voltou para a mais
apaixonante por todas, a do Linus e Susannah Chancellor e Francis Standish.
Foi muito interessante ver como Chancellor se distraía uns minutos deixando
Susannah a sós com o Standish e como os dois pareciam estar discutindo sobre algo.
Pela expressão do rosto dela, era claro que não estava disposta a ceder, por isso
Standish dirigiu vários olhares irados para o outro lado do vestíbulo, justo onde se achava
Peter Kreisler.
Em um momento dado, tomou ao Susannah do braço e ela se afastou dele com um
gesto nervoso. Entretanto, quando Chancellor voltou junto a eles, Standish estava radiante
de satisfação por ter ganho a batalha e encabeçou a volta dos três para seu camarote.
Chancellor sorriu ao Susannah com um gesto carinhoso e indulgente e lhe ofereceu o
braço. Susannah se aproximou mais a ele e tomou, mas parecia preocupada com algo;
Charlotte ficou tão impressionada ante aquela expressão de angústia que já não pôde
esquecê—la durante o resto da função.
O dia seguinte foi borrascoso, embora agradável, e um pouco depois de meia
amanhã Vespasia ordenou que dispusessem a carruagem para ir ao Hyde Park. Não era
necessário convir que devia levar-se o perto da esquina do Albert Memorial.
Só cabia escolher entre esse lugar e Marble Arch se a pessoa ia encontrar-se com os
membros da alta sociedade que habitualmente davam— a cavalo ou a pé- seus passeios
matutinos pelo parque. No percurso que ia do Albert ao Grosvenor Gate podia-se achar-se
a quem tinha decidido sair para tomar ar.
Vespasia seria perfeitamente feliz em qualquer lugar, mas tinha vindo expressamente
encontrar-se com Bertie Canning, seu admirador.
Na tarde anterior, no teatro, sua amiga a marquesa tinha mencionado que Bertie
conhecia amplamente a todo mundo, especialmente a aqueles que cimentavam sua fama
e notoriedade em façanhas levadas a cabo no vasto Império e não dentro dos limites da
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Inglaterra.
Se alguém podia lhe dizer o que nesse momento com tanta urgência desejava saber
do Peter Kreisler, esse era ele.
Não desejava passear. Mas então seria fácil que não visse o Canning e não haveria
oportunidade de conversar. Vespasia desceu da carruagem e caminhou devagar e com
suma elegância por volta de um dos muitos bancos que havia no lado norte do Row.
Naturalmente, era a parte de moda; daí, com uma comodidade relativa, seria-lhe dado ver
como o mundo inteiro passava diante dela.
Era um entretenimento que em qualquer outra circunstância a teria divertido —
inclusive quando não era esse seu propósito—, mas agora desejava acalmar quanto antes
a ansiedade que lhe tinha provocado o que a noite passada tinha visto, e o que tinha
ouvido por acaso no bazar.
Ia vestida em tom cinza prateado—seu favorito— com toques de azul piçarra, e
levava um chapéu de ultíssima moda não muito diferente aos de equitação. Era de copa
alta e aba magra e enrolada, e levava uma fita de seda enfaixada.
Favorecia-lhe extraordinariamente e ela se dava conta com complacência de que
chamava a atenção dos que à essa hora costumavam passar em suas carruagens ligeiras;
muitos não estavam seguros de saber quem era, ou se teriam inclinado para saudá—la.
O embaixador espanhol e sua mulher vinham caminhando em direção oposta.
Com a certeza de que tinha que conhecê—la, o embaixador levou a mão ao chapéu;
e se não a conhecia, deveria fazê-lo.
Divertida, Vespasia sorriu quando passou.
Outros veículos transitavam ante ela —tílburis, cadeiras volantes arrastadas por
cavalinhos, tiros de quatro animais—, pequenos, ligeiros e elegantes. Cada um deles
deliciosamente apresentado: o couro limpo e polido, os adornos de latão brilhantes, os
cavalos limpos até a perfeição. E certamente os passageiros e os condutores imaculados;
e os criados, no caso de havê-los pressentes, de libré.
Muitos senhores se ocupavam eles mesmos de conduzir, e manifestavam grande
orgulho de dirigir as rédeas. De uma maneira ou outra, Vespasia sabia quem eram a
maioria. Agora bem, naquela época a alta sociedade era tão reduzida que quase todo
mundo, em maior ou menor grau, tratava-se.
Viu um príncipe europeu que tinha conhecido um pouco melhor uns trinta anos atrás
e, ao passar, trocaram-se um olhar. Ele hesitou. Um brilho de cor em seus olhos, um
sorriso momentâneo, e cordialidade. Mas ia com a princesa, e a mão dela — terminante—
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se impôs sobre o braço do príncipe.
E possivelmente era melhor deixar o passado a resguardo de seu próprio envoltório
de felicidade, e não turvá—lo com a realidade mais presente. Seguiu seu caminho, e
deixou Vespasia sorrindo para si mesma com a luz do sol, amável, que lhe iluminava o
rosto.
Tinham passado perto de três quartos de hora — consumidos de maneira agradável,
embora não útil— antes de que, por fim, visse o Bertie Canning. Vinha só, o que não era
incomum desde que sua mulher tinha perdido o interesse por sair de casa se não fosse em
carruagem, e Canning ainda preferia andar.
Ou ao menos isso era o que pretendia. Dizia que era necessário para sua saúde.
Vespasia sabia perfeitamente bem que ele apreciava a liberdade que isso lhe
proporcionava, e o teria continuado fazendo mesmo se necessitasse de duas muletas para
sustentar-se.
Vespasia pensou que deveria aproximar-se, e o faria com elegância, mas felizmente
não foi necessário.
Quando Canning a viu ela sorriu mais do que requeriam as boas maneiras, e ele
aproveitou a oportunidade e se aproximou aonde estava sentada. Era um homem bonito,
de maneiras cordiais e melífluos, e ela, no passado, tinha sentido carinho por ele. Não era
difícil mostrar sentir prazer ao vê—lo.
—Bom dia, Bertie. Parece muito bem.
De fato, era quase dez anos mais jovem que ela, embora o passar do tempo tivesse
sido menos bondoso com o Canning. Inegavelmente, tinha aumentado de peso, e tinha o
rosto mais avermelhado do que o tinha tido em jovem.
—Minha querida Vespasia. Que delicioso é vê—la! Não mudou o mínimo. Quanto
devem odiá—la suas contemporâneas. Se houver algo que uma mulher formosa não pode
tolerar, é que outra mulher formosa leva muito melhor a passagem dos anos.
—Como sempre, sabe como agradar com cumprimentos curiosos— disse Vespasia
com um sorriso, ao mesmo tempo que fazia o gesto, quase imperceptível, de convidá—lo a
sentar-se a seu lado.
Aceitou imediatamente, e muito provavelmente nem tanto pela companhia quanto por
descansar os pés. Durante um curto lapso de tempo, falaram de conhecidos mútuos e de
trivialidades. Vespasia se divertia verdadeiramente. Nesses minutos breves, a passagem
dos anos não tinha sentido. Poderia ter sido há trinta anos.
Os vestidos eram inapropriados (a saia muito estreita, sem crinolina nem aros), e
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havia muitos meio—burgueses que tinham adotado os costumes da alta sociedade e, em
total, muitas mulheres, mas a predisposição era a mesma, o bulício, a beleza dos cavalos,
a emoção, o sol de maio, o aroma da terra e as copas das grandes árvores que se erguiam
sobre suas cabeças. A sociedade de Londres era exibicionista e se autocomprazia com um
deleite ensimesmado.
Mas Nobby Gunne nem tinha vinte e cinco anos nem remontava o rio Congo em
canoa. Tinha cinqüenta e cinco e aqui em Londres era em excesso vulnerável; apaixonarase por um homem de quem Vespasia sabia muito pouco, e a quem temia muito.
—Bertie.
—Sim, querida?
—Conhece tudo sobre assuntos na África?
—Estava acostumado a conhecer, mas agora há tantas pessoas...—Encolheu os
ombros—. Aparecem debaixo das pedras; todo tipo de indivíduos. A muitos preferiria não
conhecer. Aventureiros sem o mínimo atrativo. Por que? Tem na mente alguém?
Não fez rodeios. Nem havia tempo nem Bertie tinha por que imaginar de quem se
tratava.
—Peter Kreisler.
Um magnata das finanças de meia idade passou conduzindo um tiro de quatro
cavalos. Sua mulher e sua filha a seu lado. Nem Vespasia nem Bertie Canning se deram
conta. Um jovem ambicioso, na garupa de um cavalo baio, tirou o chapéu e lhe devolveram
um sorriso aberto. Outro homem jovem e uma mulher montavam juntos a cavalo. A garota
não teria dissimulado que ia em companhia do jovem se eles não tivessem estado.
—Ao fim comprometido —murmurou Bertie.
Vespasia soube a que se referia.
—E o que me diz do Peter Kreisler? —estimulou Vespasia a memória do Bertie.
—Ah, sim. Sua mãe foi uma das Aberdeenshire Calders, acredito. Uma mulher
estranha, muito estranha. Se não recordo mal, casou-se com um teutão e durante um
tempo viveram na Alemanha. Pontualmente, voltava, acredito. Morreu repentinamente,
pobre mulher.
De súbito, Vespasia se sentiu como se lhe tivesse atirado um jarro de água fria.
Em outras circunstâncias, ser meio alemão seria irrelevante. A família real era mais
que meio alemã. Mas com a situação atual no leste da África, profundamente relacionada
com o assunto, e que Vespasia tinha tão presente, a questão era diferente.
—Entendo. E a que se dedicava seu pai?
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Passou por ali montado a cavalo um popular ator de perfil muito belo. Vespasia
pensou um instante em Caroline, a mãe do Charlotte, que se tinha casado recentemente
com um ator dezessete anos mais jovem que ela. Era menos bonito que esse homem, mas
muito mais atraente. As bodas tinham sido um escândalo e Vespasia desejava com
franqueza que Caroline fosse feliz.
—Nem idéia —confessou Bertie—. Mas era amigo pessoal do antigo chanceler. Isso
eu sei.
—Bismarck?—disse Vespasia com surpresa e desassossego crescente.
Bertie olhou Vespasia de esguelha.
—Naturalmente, Bismarck! Vespasia, o que tem que ver com você? Você não pode
conhecer esse indivíduo. Passa todo seu tempo na África. Embora suponha que poderia
ter voltado. Está brigado com o Cecil Rhodes, o que não é difícil, e missionários que
tentam converter ao cristianismo os indígenas, e que se impõem é verdadeiramente difícil.
—Cristianizar ou mandar?
—Que se tenha brigado com os missionários.
—Resultaria—me muito fácil brigar com alguém que pretenda impor sua vontade —
respondeu Vespasia—; ou que ambicione cristianizar a todas as almas, tanto se quiserem
como se não.
—Então, sem dúvida que você gostará de Kreisler.
Bertie mudou o rosto.
Um membro do Parlamento —dos radicais— passou junto a eles. Mantinha uma
conversa muito profunda com um escritor de êxito.
—Imbecis—disse Bertie com desdém—. O próximo deveria manter-se fiel a seu
passado.
—Como diz?
—Políticos que querem escrever livros e autores que querem sentar-se no
Parlamento—respondeu Bertie.
—Leu seu livro?—perguntou Vespasia.
Bertie ergueu as sobrancelhas.
—Não. Por que?
—Horrível. E John Dacre nos prejudicaria menos se deixasse sua cadeira para
escrever novelas. Pensando-o bem, acredito que seria uma idéia excelente. Não os
desanimemos.
Bertie a olhou fixamente com afeto durante um momento e depois começou a rir.
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—Além disso brigou com o MacKinnon—disse depois de um instante.
—Dacre?—disse ela.
—Não, não; seu amigo K. MacKinnon era seu sócio poderoso. É claro a briga foi
motivada pelo assunto do leste da África e pelo que deveria haver-se feito ali. Ainda não
brigou com o Standish, mas isso provavelmente se deve a sua relação com o Chancellor.
—Bertie, pensativo, franziu o cenho—. Caramba, não é que não se fez nada como ele
disse! Muito questionável o amigo Rhodes. Lisonjeador, mas com olhos de trapaceiro.
Muita fome de poder, para meu gosto. Tudo se tem feito com pressas. Muito rápido. Tudo
muito rápido. Conhece o Arthur Desmond? Pobre infeliz.
Um homem sensato. Decente. Sinto que se foi.
—E Kreisler? —Vespasia ficou em pé ao mesmo tempo que o dizia. Estava
começando a fazer um pouco de frio e preferia caminhar um trecho.
Bertie se levantou e lhe ofereceu o braço.
—Não tenho certeza, sinto muito. Agora não saberia o que lhe dizer. Não tenho claros
seus motivos. Não sei se me entende.
Ela o entendia muito bem.
Um famoso artista de retratos passou por seu lado e tirou o chapéu. Vespasia sorriu
em reconhecimento. Alguém tinha deixado ir à notícia de que o príncipe do Gales e o
duque de Clarence iriam vir e se gerou um murmúrio que denotava interesse.
Mas Vespasia e Bertie tinham vindo bastante freqüentemente ao Hyde Park e a
notícia nunca tinha sido mais que um rumor.
Um homem idoso, de rosto cítrico, aproximou-se e ficou a falar com o Bertie. Foi
apresentado e, quando se fez evidente que pretendia ficar, Vespasia agradeceu ao
Canning e se desculpou. Desejava estar a sós com seus pensamentos. O pouco que tinha
aprendido do Peter Kreisler não a confortava absolutamente.
Quais eram os motivos pelos que perseguia o Susannah Chancellor? Por que
defendia sua postura com tanta veemência? Não seria tão ingênuo para pensar que podia
influenciar ao Chancellor. Publicamente se tinha comprometido já com o Cecil Rhodes.
E onde estava o compromisso do Kreisler? Na África e a auto-determinação da que
falava, ou com os interesses alemães? Tentava Kreisler provocar alguma indiscrição que
lhe levasse a fazer averiguações, ou deixava que se deslizasse sua própria versão dos
fatos para criar desinformação?
E por que fazia a corte ao Nobby Gunne?
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Vespasia teria sido muito mais desventurada se tivesse estado no cabaré e tivesse
visto, juntos em um reservado, Nobby e Kreisler rir dos comediantes, olhar, com a
respiração contida, como o prestidigitador lançava pratos no ar um após o outro, alvoroçarse ante as extraordinárias figuras que conseguia o contorcionista vestido de amarelo, e
sapatear com os pés ao som da música que dançavam as bailarinas.
Definitivamente aquilo era próprio de gente inferior, e se estavam divertindo muito.
Intercambiavam olhares a cada momento, quando uma piada lhes tinha agradado ou
espantado. As piadas de políticos eram ao mesmo tempo picantes e escabrosas.
O último número —momento alto do programa— foi uma soprano irlandesa de voz
rica e potente que meteu ao auditório no bolso. Cantou Fios de prata entre o ouro, Canção
de amor do beduíno, O acorde perdido do Sullivan e, finalmente —com sorrisos e
lágrimas—, Adeus do Tosti.
O auditório aplaudiu pedindo bis, e, então, quando finalmente caiu o pano de fundo,
abandonaram seus assentos e saíram à rua —concorrida e entusiasta— onde ondulavam
os lampiões de gás, as ferraduras dos animais repicavam contra a pavimentação, as
pessoas chamavam ss carruagens de aluguel que passavam, e o ar úmido da noite
açoitava suavemente os rostos com a promessa de chuva.
Nem Nobby nem Kreisler falaram. Já tudo se entendia.
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Capítulo 7
—Nada—disse Tellman, franzindo o lábio—. Nada de interesse, quando menos.
—Tellman se referia à investigação empreendida em torno de Ian Hathaway, do
Ministério de Colônias—. Um homem tranqüilo e sóbrio, de meia idade e aficionado à
leitura. Um homem comum , em muitos sentidos. —Tellman ocupou a cadeira que havia
frente a Pitt sem esperar que o convidassem a isso—. Embora não tão comum para
carecer de caráter— acrescentou. — Hathaway tem suas raridades, seus gostos
particulares.
Por exemplo, gosta de comprar queijos caros. Gasta em queijo o que eu gastaria em
um bom espeto de vitela. Mas detesta o peixe. E nem o prova.
Sentado de costas ao sol, Pitt franziu o cenho.
—Usa camisas ordinárias—prosseguiu Tellman—. Não investe nelas nem um penny
mais do que o necessário. Costuma discutir o preço com seu camiseiro, sempre em tom
correto. Embora possa ser muito insistente! —O rosto do Tellman delatava certa
surpresa—. A princípio tomei por uma espécie de camundongo, um homem sem
estridências, dos que nada têm que dizer. —Tellman abriu muito os olhos—.
Entretanto, descobri que Hathaway é uma pessoa enérgica, quando a coisa lhe
interessa. Sempre tranqüilo, sempre cortês, sem jamais elevar a voz.
Mas deve ter algo em seu interior, pois o alfaiate só discutiu com ele um minuto ou
dois antes de olhá-lo fixamente e bater em retirada; de repente tudo foram "sim, senhor;
não, senhor; como o diz senhor".
—Nosso homem ocupa um cargo de certa importância no Ministério de Colônias —
observou Pitt na hora.
Tellman soltou um grunido sardônico.
—Vi a homens de maior importância que eram brinquedos em mãos de seus
alfaiates! Não, senhor, acredito que nosso Hathaway esconde mais coragem do que
aparenta.
Pitt não respondeu. Mais que nada, tratava-se de uma impressão particular do
Tellman. Tudo estava em função de quão escassa fora a consideração que Hathaway lhe
merecesse desde o começo.
—Usa meias e camisas de gala de muito boa qualidade — acrescentou Tellman—.
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Muito bonitas de verdade. E mais de um lenço de seda.
—Um tanto extravagante em seus gastos? —interessou-se Pitt.
Tellman meneou a cabeça, como se a coisa lhe produzisse pesar.
—Não exatamente. Certamente, nosso homem não se excede em seus gastos.
De vez em quando se permite algum luxo, possivelmente um jantar no clube ou com
os amigos. Algumas tardes sai a passear pelo parque.
—Tem alguma amiga?
Tellman respondeu com sua expressão, sem necessidade de palavras.
—E o que tem sobre seus filhos? Tem outros familiares? Irmãos? Irmãs?
—Pelo que sei, seus filhos se mostram igualmente respeitáveis. Os dois vivem no
estrangeiro, sem que me tenha chegado à menor referência negativa. Que eu saiba, não
há mais familiares. Não escreve nem visita a ninguém.
Pitt se voltou para trás, para o sol.
—Esses amigos com quem janta uma vez por semana, quem são? Têm alguma
conexão com a África ou Alemanha? Com o mundo das finanças?
—Que eu saiba, não. —Tellman parecia ao mesmo tempo contente e aborrecido. De
certo modo, satisfazia—o contribuir com um novo enigma a Pitt, já que lhe decepcionava
seu próprio fracasso. Era um paradoxo que divertia ao Pitt.
—Que opinião lhe merece?—perguntou Pitt com a sombra de um sorriso.
Tellman pareceu surpreender-se. Ao que parecia, não tinha uma questão prevista
assim. De repente se viu obrigado a pensar com rapidez.
—Eu gostaria de dizer que é um homem que oculta mais do que parece. –seu rosto
se tornou sombrio—. Mas acredito que é um homenzinho calvo e muito comum, cuja
existência é tão comum como transparente e muito aborrecida; como a de dezenas de
milhares de londrinos. Não tenho motivo para pensar que seja um espião, ou coisa
semelhante.
Pitt sentia respeito pela opinião do Tellman. Este teria seus preconceitos e seus
ressentimentos, pessoais ou de classe, mas seu julgamento raramente errava quando se
tratava de avaliar o crime ou o potencial delitivo de um indivíduo.
—Obrigado— respondeu Pitt, com uma sinceridade que desarmou ao outro—.
Imagino que terá razão.
Contudo, Pitt procurou desculpa para apresentar-se no Ministério de Colônias e tratar
com o Hathaway em pessoa. Simplesmente queria formar uma impressão, pois carecia
dela por inteiro. O não fazer algo assim constituía uma omissão que não podia permitir-se
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nestes momentos. O escritório do Hathaway resultou menor que o de Chancellor ou o do
Jeremiah Thorne, embora mostrasse dignidade e considerável conforto.
A primeira vista, nada nele parecia novo; tudo mostrava a delicada pátina do tempo e
a qualidade. A madeira reluzia com brilho acumulado durante gerações, o couro lançava
brilhos, o tapete se estendia da porta à escrivaninha. Os livros que havia na prateleira
estavam encadernados em couro esculpido.
Sentado atrás de sua escrivaninha, Hathaway mostrava expressão benigna e cortês.
Quase inteiramente calvo, tão somente ficava algo de um curto cabelo esbranquiçado
sobre as orelhas. Seu barbeado era impecável. Seu nariz era proeminente, e seus olhos,
muito redondos e azuis. Tão somente ao observar os de perto, percebia-se a clareza e
inteligência que emanava deles.
—Bom dia, superintendente— respondeu com calma. Sua voz era agradável, e sua
dicção, perfeita—. No que posso ajudá—lo? Por favor, tome assento.
—bom dia, senhor Hathaway. —Pitt aceitou o convite e se sentou ante sua
escrivaninha. A cadeira era muito cômoda; firme e macia ao mesmo tempo ao sentar-se.
Apesar de sua aparente simplicidade, Hathaway era funcionário de status.
Melhor seria ir direto ao ponto. — Queria falar com você em relação com essas
fastidiosas filtrações—explicou Pitt. Não havia razão para andar-se com evasivas.
Hathaway era muito inteligente para não adivinhar o sentido de sua investigação.
O rosto do Hathaway não registrou a menor transformação.
—Estive pensando nisso, superintendente, mas por desgraça continuo sem explicar o
acontecido. —A sombra de um sorriso apareceu em seus lábios—.
Certamente, não é coisa que alguém possa tomar à ligeira. Quando falamos
anteriormente, não deu você muita importância ao assunto, mas está claro que é questão
de envergadura. Embora não sei com precisão de que informação se trata, nem de quem
foi subministrada, o princípio segue sendo o mesmo.
A próxima vez poderia tratar-se de dados essenciais em relação com nosso país. E é
claro, nem sempre sabemos quem podem ser nossos amigos. Acaso nossos amigos de
hoje não o sejam tão amigos amanhã.
Era um pensamento estremecedor. Por um momento, o aposento espaçoso e bem
iluminado pareceu sublinhar suas implicações. Pitt não sabia se Hathaway se referia aos
inimigos de Grã—Bretanha ou se falava em termos mais gerais. O rosto do Arthur
Desmond veio a sua lembrança. A quantos inimigos teria descoberto? Que surpresas lhe
teriam proporcionado suas pesquisas? Que rostos teriam ido por surpresa a sua própria
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lembrança?
Era a faceta sinistra de uma sociedade secreta, as máscaras cotidianas atrás das
quais se ocultavam rostos tão diversos. O Círculo Interior contava com seus próprios
verdugos, embora "assassinos" era possivelmente palavra mais adequada.
Tratava-se de homens a quem se encomendava a execução do castigo previsto pelo
agrupamento. Às vezes se tratava da ruína pessoal ou financeira, mas no caso do Arthur
Desmond se tratou da morte.
Mas quem eram esses verdugos? Era quase certo que muitos membros do Círculo
não chegavam a sabê—lo, medida necessária para garantir a segurança do verdugo e a
eficiência de seu trabalho.
Assim, o verdugo estava em disposição de saudar sua vítima com um sorriso e um
apertão de mãos antes de atirar o golpe mortal. O pacto de sangue do Círculo Interior
ficava garantido pelo silêncio e o mútuo amparo.
Hathaway tinha o olhar fixo nele, aguardando com paciência. Pitt se obrigou a voltar
para os dados sobre a África.
—É claro, tem você muita razão—acrescentou—. Se trata de uma circunstância muito
desgraçada. investigamos o caminho seguido por essa informação até sua classificação no
Ministério de Colônias. Acredito que conheço o nome de todos que tiveram acesso a ela.
Hathaway esboçou um sorriso sem alegria.
—É claro, trata-se de mais de uma pessoa. Devo me considerar suspeito?
—Você é um dos que teve acesso a esses dados—concedeu Pitt sem comprometerse—. É tudo que posso dizer de você. Conforme soube, tem um filho na África Central.
—Sim, meu filho Robert é missionário. —O rosto do Hathaway mal mostrava
expressão alguma. Era impossível saber se se orgulhava ou não da vocação de seu filho.
O brilho no olhar acaso mostrasse aprovação, amor ou compreensão, mas acaso
simplesmente fora reflexo da luz solar que se filtrava pela janela situada a sua esquerda.
Sua voz tranqüila não mostrava mais que uma cortesia natural não empanada pela
natural ansiedade provocada por uma visita como a do Pitt.
—Onde?—perguntou Pitt.
Nesta ocasião, o rosto do Hathaway estremeceu levíssimamente.
—Perto do Lago Nyasa.
Pitt tinha repassado o atlas. Embora a costa africana aparecia delineada com
bastante precisão, havia vastas zonas do interior nas quais mal apareciam assinaladas
algumas rotas de viagem. A precisão era escassa e as rotas iam de este ao oeste,
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seguindo os rastros dos grandes exploradores: um lago aqui, uma cordilheira lá.
Entretanto, em sua maior parte, tratava-se de regiões sem delimitar, áreas que
nenhum cartógrafo tinha visto ou medido, possivelmente nunca pisadas pelo homem
branco.
Pitt sabia que o lago Nyasa estava perto da zona que Cecil Rhodes pensava
reclamar, onde se supunha a existência do Zimbabue, a legendária cidade do ouro negro.
Hathaway lhe observava com interesse; seus olhos pálidos e redondos não perdiam
detalhe.
—Essa é a região que o ocupa neste caso. —Hathaway expôs tal circunstância com
calma. Sem mover-se, sem que sua expressão mudasse no substancial, seu rosto pareceu
reconcentrar-se—. Superintendente, possivelmente seja melhor que nos deixemos de
florituras.
Me corrija se me equivocar, mas eu diria que você quer saber sobre os interesses
alemães no Mashonaland e Matabeleland.
Sei que estamos negociando um novo tratado sobre as respectivas zonas de
influência, que Heligoland é zona implicada nesse tratado, que a queda do chanceler
Bismarck mudou muito as coisas, e que Carl Peterson e a presença alemã no Zanzíbar
são fatores de crescente importância, como o são a rebelião ali acontecida e o banho de
sangue em que foi afogada.
Outros fatores a considerar são a expedição que Rhodes empreendeu do Cabo,
assim como as negociações cercadas com o Kruger e os bóeres. Nossa posição se veria
escavada se o kaiser chegasse a conhecer os dados com que contamos.
Pitt não respondeu. Nenhum som chegava da janela, que dava a um pátio.
Hathaway sorriu ligeiramente e se reclinou em seu assento.
—Aqui não estamos falando de um mau uso da informação privilegiada a fim de obter
benefício pessoal com o ouro ou os diamantes – acrescentou com gravidade—.
Estamos falando de traição. Toda consideração individual deve passar a segundo
plano a fim de dar com a pessoa responsável. —Embora sua voz não soava mais alta,
percebia-se uma sutil variação no timbre, uma sinceridade apaixonada.
Hathaway não se moveu, mas sua presença pessoal aparecia carregada de energia.
Era inútil negar a verdade. Isso só serviria para ofender a inteligência do homem que
Pitt tinha frente a sim.
—Um dos problemas da traição— respondeu Pitt em tom pausado, escolhendo as
palavras com cuidado—, é que uma vez que se conhece sua existência, todo mundo se
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torna suspeito. Às vezes a suspeita pode resultar quase tão daninha como o fato em si.
Nossos medos podem ser tão perturbadores como a própria verdade.
Hathaway abriu muito os olhos.
—É muito despachado, superintendente. Efetivamente, assim acontece nestes casos.
Mas insinúa você que acaso não exista verdadeira traição, mas apenas um hábil arremedo
desta a fim de que nos excedamos em nossa própria reação? —Sua voz refletia surpresa,
assim como o progressivo encargo de que acaso as coisas fossem assim—. Então quem
pode ter manipulado os dados?
Umas passadas ressoaram no corredor. Depois de um momento de hesitação, os
passos seguiram seu caminho.
Pitt meneou levemente a cabeça.
—Só quero dizer que não terá que piorar a situação, nem fazer o trabalho sujo a
nosso adversário, semeando a suspeita ali onde não há motivo. São poucos quem tem
acesso à informação de terras.
—Entretanto, estamos falando de pessoas que pertencem às altas esferas —deduziu
Hathaway—. Thorne, eu mesmo ou Chancellor! Céus! Se se tratasse do Chancellor, nossa
posição seria desesperada.—seu rosto exibia traços de humor—. Por outra parte, sei que
eu não fui.
—Há outras possibilidades— respondeu Pitt—. Embora não muitas. Aylmer, por
exemplo. Ou Arundell. Ou Leicester.
—Aylmer. Sim, tinha—me esquecido dele. Um homem relativamente jovem.
Ambicioso. Ainda não alcançou os lucros que sua família espera dele. Esse poderia
ser um incentivo de importância.—seus olhos não se moviam do rosto do Pitt—. À medida
que envelheço, mais agradeço que minha mãe fosse uma mulher tranqüila cujo único
desejo para seus filhos consistia em que se casassem com mulheres de boa disposição,
lucro que tive ocasião de cumprimentar antes de cumprir os trinta anos.
A lembrança o fez sorrir um instante, antes que seus peculiares olhos se cravassem
nos do Pitt com uma franqueza absoluta—. Sei muito bem que se tiver vindo a falar comigo
é para efetuar uma avaliação de meu caráter. Mas, elementalidades à parte, há alguma
outra coisa em que possa ajudá—lo?
Pitt já tinha decidido.
—Sim, senhor Hathaway. Conforme pude saber, você é o primeiro em saber grande
parte da informação que chega ao Chancellor.
—Assim é. Acredito adivinhar o que tem em mente: alterar levemente alguns dados e
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oferecer distintas versões deles ao Chancellor, Aylmer, Thorne, Arundell e Leicester,
preservando o original para o próprio Lorde Salisbury, a fim de evitar a possibilidade de
cometer um sério engano. —Hathaway apertou os lábios—. Terá que pensar bem, teria
que dar com a informação adequada, mas me cuidarei de pôr a coisa em prática.
Hathaway parecia animado, quase aliviado ante a idéia de envolver-se no plano.
Pitt não pôde reprimir um sorriso.
—Acredita que seria possível? Quanto antes o façamos, antes obteremos resultados.
—É claro! Sim, terá que fazê-lo com cuidado, para que não resulte claro. —Hathaway
voltou a reclinar-se em sua cadeira—. A coisa deve encaixar com toda a informação
anterior; ao menos não deve ser contraditória. Manterei—o informado, superintendente.
Hathaway lhe sorriu com franqueza; uma felicidade intensa parecia bulir em seu
interior.
Pitt lhe agradeceu de novo e se levantou para partir. Embora não sabia se se tinha
precipitado ao agir deste modo, tampouco lhe ocorria outra linha de ação.
Ainda não tinha falado com o Matthew ou Farnsworth a respeito.
—Que tem feito o que?—respondeu Farnsworth, com o rosto cinzento—. Por Deus!
Dá-se conta das possíveis implicações de seu... de seu...
—Não—respondeu Pitt com aprumo—. A que implicações se refere?
Farnsworth cravou o olhar nele.
—Para começar, arriscamo—nos a transmitir informação manipulada aos ministros do
governo de Sua Majestade. Não é um risco, é uma certeza!
—Mas só ao Chancellor...
—Só? Só ao Chancellor! —O rosto do Farnsworth se tornou rosa escuro—.
Estamos falando do ministro das Colônias! E o Império britânico se estende pela
quarta parte da superfície terrestre! Se Chancellor contar com dados errôneos, sabe-se lá
o que pode acontecer
—Nada absolutamente—replicou Pitt—. Estamos falando de uma manipulação
corriqueira dos dados. Hathaway sabe a verdade, como saberá o ministro de Exterior. E
não acredito que se tome nenhuma decisão importante sem consultar ao um ou ao outro.
Aos dois, o mais provável.
—Pode ser—disse Farnsworth a contragosto—. Em todo caso, tomou-se você muitas
liberdades, Pitt. Teria que ter falado comigo antes de empreender uma coisa assim. Duvido
que o primeiro—ministro esteja de acordo com semelhante plano.
—Se não provocarmos algo pelo estilo— respondeu Pitt—, duvido que averigüemos
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onde está a filtração antes da assinatura do tratado.
—Não me convence. —Farnsworth mordeu o lábio—. Achava-o com maior
experiência depois de tantos anos de investigação.
Achavam-se no escritório do Farnsworth, que tinha chamado ao Pitt para que o
pusesse à corrente de suas pesquisas. O tempo tinha mudado; uma forte chuva da
primavera açoitava as janelas. Pitt tinha as pernas das calças molhadas, salpicadas pelas
rodas das carruagens. O investigador estava sentado com as pernas cruzadas, em
deliberada atitude relaxada.
Franzindo o sobrecenho, Farnsworth se inclinou sobre a escrivaninha.
—Sabe, Pitt? Cometeu um ou dois enganos de importância, mas ainda não é tarde
para remediá—los.
— Não é tarde? —Por um momento, ao Pitt lhe escapou o significado de suas
palavras.
—Viu-se você obrigado a investigar solitário, rodeado de um entorno suspicaz e
basicamente hostil—explicou Farnsworth, com o olhar fixo no Pitt—. Em certa forma é você
um intruso, um policial isolado entre diplomatas, políticos e funcionários.
Pitt olhou a seu superior, temeroso de estar chegando a conclusões absurdas,
enquanto umas sombras que lhe resultavam familiares começavam a abater-se sobre sua
mente.
—Há pessoas que poderiam lhe ter ajudado! —A voz do Farnsworth se tornou mais
baixa e urgente, vacilando entre a aspereza e a esperança—. Lhe falo de homens que
sabem mais do que você e eu poderíamos aprender em um ano de investigações. Já o
ofereci antes, Pitt. E o volto a oferecer.
O Círculo Interior. Farnsworth estava pressionando-o para que se unisse ao Círculo
Interior, como tinha feito depois que Pitt sucedeu Micah Drummond.
Pitt já tinha recusado então, com a esperança de que a oferta não se repetisse.
Possivelmente teria que havê-lo suposto; sua ligeireza tinha sido imperdoável. A
oferta tinha continuado em pé, para reaparecer no momento adequado.
—Não— respondeu Pitt com calma—. Pelos mesmos motivos. O preço a pagar seria
muito alto.
O rosto do Farnsworth se endureceu.
—É você pouco razoável, Pitt. Ninguém lhe pediria coisa alguma que um patriota
decente não estivesse disposto a realizar. Fecha-se você ao êxito e a promoção
profissional. —Farnsworth aproximou ainda mais seu rosto—. Com um pouquinho de
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ajuda, poderia chegar até onde quisesse. Todas as portas lhe seriam abertas! Chegaria
longe, pois tem a capacidade para isso.
Muito mais longe do que a sociedade permitiria em circunstâncias normais. Tem que
dar-se conta disso! Como pode mostrar-se tão cego? —Farnsworth lhe exigia uma
resposta. Seus olhos azul cinzentos se cravaram nos do Pitt.
Consciente da vontade de ferro oculta atrás da fachada tranqüila, quase afetada, de
seu interlocutor, Pitt percebia agora que estava frente a uma inteligência insuspeitada.
Dava-se conta de que até o momento havia sentido certo desdém por Farnsworth, cujo
cargo atribuía de forma inconsciente ao berço antes que ao mérito pessoal. Até hoje,
certos traços do Farnsworth, certos giros em sua forma de falar, tinham-lhe parecido
sintomáticos de uma mente pouco acordada.
De repente percebia que certamente se tratava de simples racionalidade na
experiência. Farnsworth pertencia ao vasto grupo humano incapaz de ficar no lugar de
outra pessoa, incapaz de compreender matizações de classe, gênero ou emoção.
Um traço que mostra falta de perspectiva ou de sensibilidade, de humanidade
inclusive, mas que não pode ser qualificado de simples estupidez.
—Você me fala de um grupo que só vela por seus interesses— replicou com uma
franqueza que até então não tinha mostrado ao Farnsworth, sabedor de uma vez de que
entrava em terreno perigoso.
A impaciência do Farnsworth mostrava mais matiz de fadiga que de autêntica
irritação. Era possível que não tivesse esperado outra coisa dele.
—Eu admiro aos idealistas, Pitt, mas só até certo ponto. Quando se afasta da
realidade, o idealismo se converte em um espantalho sem a menor aplicação prática. —
Farnsworth meneou a cabeça—. Assim é como funciona o mundo. Se ainda não o
compreendeu, confesso que não sei como chegou a ocupar o lugar que ocupa.
Você trata com o crime todos e cada um dos dias. Viu o pior do ser humano, o que de
feio e fraco há nele. Como pode ser cego a uma motivação superior, indiferente aos
homens que se esforçam em fazer o bem a outros?
Pitt pensou em responder que não achava que os dirigentes do Círculo Interior
guardassem tão angélicas intenções. Possivelmente a princípio fora assim, mas agora se
tratava de sustentar o próprio poder. Entretanto, era consciente de que uma resposta
assim não faria brecha alguma em Farnsworth, que tinha muito clara sua linha de
proceder. A coisa só serviria para aguçar o conflito.
E, contudo, por um instante, um brilho de compreensão cruzou por sua mente.
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Por um momento, pareceu-lhe que podiam chegar a certo acordo. Devia aferrar-se à
possibilidade. Tratava-se de um imperativo, moral e humano.
—Não ponho em dúvida a honra e a justiça desses fins— respondeu em tom
pausado—. Tampouco duvido que seriam muitos quem se beneficiasse deles.
O rosto do Farnsworth se iluminou com um brilho de esperança. Embora esteve a
ponto de interrompê—lo, Farnsworth se controlou e deixou que Pitt prosseguisse com seu
raciocínio.
—O problema estriba em que uns poucos decidam o que é bom para todos, sem
consultar à maioria—seguiu Pitt, escolhendo suas palavras com muito cuidado—.
Além disso, estamos falando de um modo secreto de proceder. Se os fins forem
bons, todos nos beneficiaremos deles, mas se não o são, já é muito tarde para resolvêlo.—Sem dar-se conta, inclinou seu rosto para frente—. Não há forma de evitar nem
possível correção, pois ninguém sabe a quem dirigir-se ou a quem culpar.
Trata-se de uma estratégia que nega toda possibilidade de escolha a quem não
pertence ao Círculo.
Com as sobrancelhas franzidas, Farnsworth mostrava expressão perplexa.
—Mas precisamente lhe falo de introduzir-se no Círculo. É o que lhe estou
oferecendo.
—E o que tem sobre os outros?—disse Pitt—. Que capacidade de decisão têm eles?
Farnsworth abriu muito os olhos.
—Sugere você que outros, a maioria —Farnsworth ergueu as mãos para designar a
quem existia além das paredes de seu escritório — está capacitada para compreender
problemas desta natureza, para tomar uma decisão referente ao que ''e oportuno em um
momento dado ao que pode ser meramente possível? — Seu olhar se fixou no Pitt—. Não,
é claro que não. Temo que se refere você à mesma anarquia. A que cada homem arrume
como pode. Sabe Deus, cada homem, e logo, cada mulher e cada menino...
Até o momento Pitt tinha agido movido por um instinto apaixonado, sem necessidade
de racionalizar seus pensamentos; ninguém o tinha movido a isso.
—Existe uma diferença entre o poder transparente de um governo e o poder secreto
de uma sociedade da qual se ignora o nome de seus membros— respondeu com decisão.
Na hora percebeu uma careta de desdém no rosto do Farnsworth—. É claro, sempre pode
dar-se a opressão, a corrupção, a incompetência, mas quando se conhece quem leva as
rédeas do poder, pelo menos há alguém a quem exigir contas. Pelo menos fica o recurso
de opor-se a essa figura.
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—Fala—me da rebelião—disse Farnsworth em tom direto—. De traição, se é que a
oposição é secreta! É essa sua alternativa?
—Não falo de derrocar governos. —Pitt não se deixou arrastar pelos radicalismos que
lhe sugeria o outro—. Embora não me oponho à queda desses governos, a têm merecida.
Farnsworth arqueou as sobrancelhas.
—Merecida a julgamento de quem? De você?
—A julgamento da maioria.
—E você acha que a maioria tem razão? —Farnsworth olhava—o com os olhos muito
abertos—. Que a maioria está informada? Que é sábia, benévola e disciplinada? Que sabe
ler, inclusive?
—Não, não acredito—interrompeu Pitt—. Mas sim acredito que nunca o será
enquanto seja governada em segredo por quem jamais tem pensado em contar com ela.
Sim acredito que a maioria está composta de pessoas decentes que têm direito, tanto
como possamos o ter você ou eu, a conhecer seu próprio destino e a ter o máximo controle
sobre este.
—Um destino que não deveria pôr em perigo a ordem pública. —Com um sorriso
sardônico nos lábios, Farnsworth se reclinou em sua cadeira—. Nem os direitos e
privilégios de outros. Claro. Nossos objetivos de fundo são os mesmos, Pitt. Nossas
diferenças se concentram nos meios para chegar a esses fins. E me deixe lhe dizer que
sua ingenuidade é incurável. É você um idealista que não percebe as realidades da
natureza humana, da economia ou dos negócios.
Como político, o público o aclamaria, contente de que lhe dissesse o que quer ouvir;
temo, entretanto, que sua posição seria insustentável se chegasse ao poder. —Farnsworth
entrelaçou as mãos e fixou no Pitt um olhar próximo à resignação—. Possivelmente faz
bem em não aceitar a oferta de ingressar no Círculo Interior. Não tem você a coragem nem
a visão necessárias para isso. No fundo, sempre seguirá sendo o mesmo filho do guardaflorestal.
Pitt não soube se tomava-o como um insulto. Se assim o parecia indicar a voz do
Farnsworth, o tom expressava mais decepção que verdadeira ânsia de ofender.
Pitt se levantou da cadeira.
—Suponho que tem razão— respondeu, surpreso pelo pouco que lhe interessava
averiguá—lo—. Mas lhe recordo que o guarda-florestal vive de proteger e preservar quanto
é bom. —Um sorriso apareceu em seu rosto—. Não se referia você a isso, precisamente?
Farnsworth lhe olhou com expressão aniquilada. Embora abrisse a boca para negar
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tal implicação, no momento percebeu a solidez do argumento e guardou silêncio.
—Que tenha um bom dia, senhor— se despediu Pitt da soleira.
Só havia uma coisa que Pitt podia fazer em relação ao Ministério de Colônias.
A investigação rotineira de conhecidos e hábitos pessoais, a busca de pontos fracos,
eram tarefas que Tellman e seus homens podiam atacar tão bem como o próprio Pitt.
Tampouco esperava que dessem com grande coisa. Contudo, a morte do Arthur
Desmond continuava ocupando seus pensamentos e lhe produzindo idêntica tristeza.
Cada vez lhe era mais premente tratar de resolver a questão, em interesse do
Matthew, tanto como em seu próprio interesse. Charlotte mal tinha falado com ele do
acontecido, embora seu silêncio, por pouco habitual, era eloqüente em extremo.
Charlotte se tinha mostrado amável com ele, mais paciente do que nela era habitual,
como se a moça fora sensível ao que sentia. Era algo que Pitt agradecia. Teria lhe doído
seu rechaço, por compreensível. Quando a gente é mais vulnerável, mais difíceis de fechar
resultam as feridas.
Não obstante, Pitt ansiava voltar a desfrutar da franqueza que tinha sido norma entre
eles.
Começou pelo general Anstrusther, a quem seguiu de um clube a outro, até dar com
ele na tranqüila biblioteca de um terceiro. Ou, melhor dizendo, até ser informado pelo
garçom de que o general Anstrusther efetivamente estava ali. Não sendo membro, Pitt não
tinha o acesso permitido ao tão privado santuário do clube.
Seria amável de perguntar ao general se me poderia conceder uns minutos de seu
tempo?—perguntou Pitt cortesmente, ressentido por ter que suplicar. Não gozava de
autoridade alguma neste caso, assim se via obrigado a extremar as formas.
—Agora mesmo o pergunto, senhor—respondeu o garçom em tom inexpressivo—. A
quem devo anunciar?
—Ao superintendente Pitt, da delegacia de polícia do Bowl Street. —Pitt lhe entregou
seu cartão.
—Muito bem, senhor. Vou perguntar lhe. —Enquanto Pitt aguardava no enorme
vestíbulo ornamentado, o garçom enfiou as escadas levando o cartão em uma bandeja de
prata.
Pitt lançou um olhar às paredes adornadas com bustos em mármore de soldados
mortos tempo atrás: Marlborough, Wellington, Moore, Wolfe, Hastings, Clive, Gordon, e
dois rostos mais que não reconheceu.
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Com escassa surpresa, divertiu-lhe comprovar a ausência de Cromwell. Sobre a porta
se erguiam os escudos do Ricardo Coração de Leão e Enrique V. A parede mais afastada
exibia um magnífico e sombrio quadro que representava o enterro do Moore depois da
batalha de La Coruña; frente a ele, outro quadro ilustrava a carga dos reis escoceses no
Waterloo. Do teto pendiam lembranças de batalhas mais recentes: Inkermann, Alma e
Balaclava.
O general Anstrusther desceu pelas escadas. Pálido e de rosto avermelhado, o militar
se movia a passo erguido.
—Bom dia, senhor. No que posso ajudá—lo?—seu tom era quase peremptório—.
Imagino que se tratará de algo urgente para procurar uma pessoa em seu próprio clube.
Do que se trata?
—Possivelmente não seja urgente, general Anstrusther, mas sim acredito que se trata
de coisa de importância—respondeu Pitt em tom resseioso—. A informação que necessito
só posso obtê—la do senhor; por isso me atrevi a me apresentar em seu clube.
—Muito bem! Muito bem. E do que se trata, senhor superintendente? Embora, como
suponho que não será coisa de um minuto, não sei o que fazemos aqui plantados como
um par de mordomos. Me acompanhe à sala das visitas.
O militar fez um gesto com sua mão robusta e nodosa, assinalando uma das portas
de carvalho que se alinhavam no corredor. Pitt seguiu—o obediente.
A sala estava mobiliada de poltronas amplas e cômodas que não conseguiam
encaixar com os quadros e a parafernália bem severa da sala, possivelmente
encaminhada a recordar às visitas que o glorioso passado militar dos sócios do clube
Estava muito acima de quanto um mero convidado civil podia sonhar.
O general Anstrusther indicou uma das poltronas. Pitt tomou assento e o militar fez o
mesmo, cruzando as pernas.
—E bem, superintendente, o que o inquieta?
Pitt tinha pensado bem o que ia dizer.
—Trata-se da morte de Sir Arthur Desmond— respondeu com franqueza. O rosto do
Anstrusther se endureceu, mas Pitt continuou—: Sua morte gerou certas especulações,
cuja refutação requer que me informe perfeitamente a respeito de determinados pontos.
—Quem especulou com o que?—perguntou Anstruther—. Explique-se, senhor.
Surpreende—me você.
—Entendo—o muito bem — concordou Pitt—. Se especulou a respeito da saúde
mental de Sir Arthur. Há quem menciona a possibilidade de suicídio ou, pior ainda,
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assassinato.
—Deus santo! —A surpresa do Anstrusther era genuína. O horror de sua expressão
não era fingido, como não o eram a inicial expressão de pasmo nem o brilho sombrio que
começou a tingir seu olhar—. Mas isso é escandaloso! Quem se atreveu a sugerir algo
assim? Exijo-lhe uma resposta, senhor!
—No momento não se trata mais que de meras suspeitas, general Anstrusther —
respondeu Pitt, não muito fiel à verdade—. E meu desejo é refutá—las de forma decisiva,
antes que cheguem a mais.
—Absurdo! Quem ia querer matar ao Desmond? Em minha vida não conheci homem
mais decente!
—Não duvido que seja assim, até os últimos meses—disse Pitt, com maior segurança
do que sentia. Começava a temer que o escandalizado Anstrusther acabasse expressando
algum protesto que pudesse chegar aos ouvidos do Farnsworth.
Nesse caso, Pitt se veria em apuros seriamente. Era possível que passara dos limites
ao abordar assim ao militar?
Mas já era tarde para voltar atrás.
—Bem,—respondeu Anstrusther sem comprometer-se—. Ah… sim… — Estava claro
que o militar recordava o que tinha declarado durante a investigação—. Sim, de certa
forma tem sentido.
—A isso precisamente me referia. —Pitt teve a impressão de ter ganho um pouco de
terreno. Lhe pareceu errática sua conduta, senhor? Até que ponto? Como é natural,
mostrou-se o senhor muito discreto em suas declarações, coisa natural em um amigo do
finado que se vê obrigado a falar em público.
Mas aqui estamos em privado, e nosso propósito é bastante diferente.
—Bem... A verdade, não sei o que dizer. —Anstrusther parecia confuso.
—Você mencionou que Sir Arthur se mostrava confuso e esquecido —apontou Pitt—.
Poderia me dar algum exemplo?
—Eu... né... São coisas que alguém prefere esquecer, cavalheiro! Por todos os
Santos! A gente prefere esquecer as taras que possa apresentar um bom amigo, em vez
de inscrevê—las na memória.
—Não me poderia proporcionar algum exemplo? —Pitt sentiu uma pontada de
esperança, muito fraca para confiar nela, muito vivida para ignorá—la.
—Bem... né... Se trata mas bem de uma impressão, antes que de um catálogo de
acontecimentos, entende você? —Anstruther mostrava agora uma expressão de desdita
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absoluta.
Pitt teve a impressão repentina e aguçada de que o outro lhe mentia.
Em realidade, não sabia nada. Simplesmente se tinha limitado a repetir o que lhe
haviam dito seus companheiros do Círculo Interior.
—Quando viu Sir Arthur por última vez?—perguntou em tom de compreensão. O
apuro do Anstrusther era evidente. Não tinha sentido fazer um inimigo dele; nesse caso,
não descobriria coisa alguma.
—Ah, —Anstrusther estava vermelho como tomate. — Não saberia lhe dizer.
Aconteceram muitas coisas depois. Lembro ter jantado com ele umas três semanas
antes de sua morte. O pobre. —Sua voz recuperou um pouco de segurança—. Achei—o
bastante mudado. Não deixava de balbuciar sobre a África.
—Balbuciar?—interrompeu Pitt—. Quer dizer que se mostrava incoerente, desconexo
em suas idéias?
—Ah, Eu não diria tanto, senhor. Nada disso. Só quero dizer que não cessava de
voltar para a questão, embora outros estivessem falando de outra coisa.
—Um pouco pesado?
Anstruther abriu muito os olhos.
—Se o preferir assim. Não sabia quando mudar de assunto. Também efetuou
algumas acusações bem desafortunadas. Sem nenhum fundamento.
—Isso lhe parece?
—Claro que sim. —Anstruther olhou—o com assombro—. Falava de um plano
secreto para fazer-se com a África, de coisas pelo estilo. Loucuras sem pés nem cabeça.
—Conhece você bem a África? —Pitt fez quanto pôde por ocultar o menor traço de
sarcasmo em sua voz. Pareceu-lhe havê-lo conseguido.
—Como? —Anstrusther se sobressaltou—. A África? A que vem sua pergunta,
superintendente?
—Por que o vejo convencido de que não existe conspiração alguma em relação com
as finanças que há detrás de seu processo de colonização. Há muito dinheiro em jogo,
fortunas possivelmente, se referirmos a quem obtenha a exploração dos recursos minerais.
—Ah... bem... —A ponto de rechaçar categoricamente as alegações do Pitt,
Anstrusther acabava de dar-se conta de que não tinha no que apoiar-se, por muito
repugnante que lhe parecesse o expresso pelo investigador.
Pitt observou as emoções refletidas em seu rosto e deduziu que sua reação ante as
acusações de Sir Arthur tinham mais que ver com o coração que com a mente, com o
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rechaço que uma mente simples sentia por um mundo de intrigas e corrupções que não
compreendia, ao mesmo tempo que desprezava.
—Eu prefiro acreditar que se trata de rumores infundados — apontou Pitt—.
Embora tampouco pontuaria de demente a quem acreditasse neles. A riqueza
ilimitada costuma atrair a ladrões e aventureiros, tanto como ao homem honrado. Não seria
a primeira vez que a promessa de semelhante poder tenha corrompido ao homem.
Como o político que era, Sir Arthur saberia dos escândalos do passado e não deixaria
de temer pelo que pudesse trazer o futuro.
Anstrusther conteve o fôlego. Seu rosto estava mais avermelhado que nunca. Era
claro que se debatia entre lealdades. Pitt não sabia com certeza se uma delas se devia ao
Círculo Interior, embora suspeitava que assim era. Com quase total segurança, o militar via
o Círculo como Farnsworth o descrevera, como uma associação de homens ilustres e
inteligentes decididos a procurar o melhor para seu país, embora fosse às custas da
maioria ignorante e despreparada. A honra e o sentido do dever ligavam aos membros
desta sociedade.
Sem dúvida o próprio Anstrusther teria feito juramento de lealdade, e ele era homem
para quem a lealdade era tudo. Uma vida transcorrida no exército lhe tinha inculcado o
princípio de que a autoridade não devia ser questionada. A deserção era pecado capital, o
crime mais reprovável que alguém podia conceber.
E ao mesmo tempo se via confrontado com uma verdade que não podia ignorar. Seu
sentido da honra e sua feitura de homem de bem debatiam com o juramento de lealdade
condicionado por uma vida de obediência.
Pitt aguardou que o militar resolvesse seu dilema.
Na rua, um cabriolé se deteve na porta; um homem baixinho vestido de uniforme
desceu da carruagem, pagou ao cocheiro e subiu as escadas do clube. Uma carruagem
puxada por quatro cavalos cruzou a passo ligeiro.
—É possível que você tenha razão— concedeu Anstrusther com dificuldade,
esforçando-se em pronunciar as palavras—. Possivelmente o mais ridículo não fossem as
teorias conspiratórias do pobre Desmond, mas as acusações pessoais que fazia.
Isso, senhor, ia além de qualquer hipótese razoável e comprometia a homens de bem
a quem conheço de toda a vida. —Com o rosto avermelhado, o militar falava com
convicção absoluta—.
Falo de homens que serviram a seu povo, a seu país e a sua rainha sem obter
reconhecimento nem benefício pessoal.
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Mas possivelmente um poder oculto e inquestionado, disse-se Pitt. Possivelmente
esta fosse à recompensa mais embriagadora de todas.
Entretanto, nenhuma palavra aflorou a seus lábios.
—Imagino que suas acusações lhe resultariam ofensivas, meu general – respondeu
por fim.
—Em extremo, senhor —concordou Anstrusther com veemência—. Do mais
desafortunadas. Sempre tive simpatia pelo Desmond. Um indivíduo estupendo. De uma
peça. É uma tragédia que acabasse assim. Uma maldita tragédia. —Por fim satisfeito com
a resolução de seu dilema pessoal, o militar cravou seu olhar no Pitt, com a emoção posta
em suas palavras—. Uma lástima—acrescentou—. Uma pena para a família, maldito seja.
Espero que saiba você levar o caso com discrição. Não há porque arejar o
acontecido. O melhor é esquecer. O melhor para todos. Ninguém prestava atenção às
tolices que Desmond dizia nos últimos tempos. O que importa isso agora?
Pitt se levantou.
—Obrigado por sua amabilidade, general Anstrusther. Me acredite se lhe disser que
aprecio em extremo sua franqueza.
—É o mínimo que alguém pode fazer. A questão é delicada. —O general se levantou
e acompanhou ao Pitt até o vestíbulo—. O melhor é jogar terra sobre este assunto. Que
tenha um bom dia, superintendente.
—Bom dia, general Anstrusther.
Ao pisar na rua iluminada pelo quente sol de maio, Pitt sentiu uma estranha pontada
de irrealidade. Não se fixou nos coches e cavalos que passavam por seu lado, como não
se fixou na mulher vestida a última e roçou seu cotovelo ao cruzar-se com ele. Pitt se
achava muito perto do Piccadilly; uma débil música chegava do Green Park.
Pitt caminhava a toda pressa sem dar-se conta disso. Anstrusther não tinha feito
senão lhe expressar o que esperava fosse certo. Sir Arthur não era um homem irracional;
antes disso, tratava-se de uma personalidade inquietante que levava a uma pessoa a
perguntar-se sobre a verdade de muitas coisas. Anstrusther era um homem de bem
apanhado em uma engrenagem cuja dimensão lhe escapava.
O militar não sabia como tratar com lealdades complexas enfrentadas entre si.
Simplesmente era incapaz de reconsiderar seus valores, suas amizades e sua confiança
posta nos outros sem forçar sua mente de um modo que lhe era impossível de pôr em
prática.
Não havia prova alguma assim acabava de averiguar. Contudo, sua mente e, acaso,
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suas emoções tinham achado certo consolo. Sir Arthur tinha sido reivindicado na medida
do possível até o momento.
A seguir Pitt foi visitar o honorável William Osbome, homem que foi por completo
diferente.
Osbome recebeu a última hora da tarde em sua própria casa de Chelsea. A moradia
era opulenta, próxima ao Tâmisa e emoldurada por um magnífico jardim sombreado, em
uma tranqüila rua arborizada. Osbome saudou o Pitt com gesto impaciente. Estava claro
que tinha planos para a noite e que a visita o contrariava.
—Não tenho idéia no que posso lhe ajudar, senhor Pitt —declarou Osbome, depois
de entrar em sua biblioteca de painéis de carvalho, onde não se sentou nem ofereceu
assento ao Pitt. Estava clara sua intenção de cortar a entrevista ao mínimo—.
Já declarei quanto sei em relação com este desgraçado assunto. Minha declaração
está ao alcance de quem quer lê—la. Não tenho nada que acrescentar a ela, e se o
tivesse, tampouco me sentiria inclinado a voltar outra vez à questão.
—Conforme declarou, Sir Arthur levava algum tempo expressando umas opiniões
bem irracionais—respondeu Pitt, esforçando-se em manter a calma.
—Como acabo de lhe dizer, senhor Pitt, minha declaração é de livre acesso. —De pé
sobre o tapete turco azul, Osbome transparecia impaciência. Ao Pitt fez pensar em uma
versão mal—humorada do Eustace March.
—Poderia me dizer quais eram essas opiniões de Sir Arthur?—perguntou Pitt, fixando
o olhar nele, mas esforçando-se em mostrar-se cortês.
—Preferiria não ter que repeti—las—replicou Osbome—. Se tratava de umas opiniões
absurdas, que não faziam nenhum favor a ninguém.
—Mas que são importantes para mim —insistiu Pitt.
—Por que? —Osbome arqueou as sobrancelhas—. O homem morreu. O que podem
importar as tolices que dissesse em seus últimos meses de vida?
—Agora que está morto— disse Pitt em tom ao mesmo tempo pausado e firme—, Sir
Arthur já não tem ocasião de retratar-se. —O investigador tomou uma decisão drástica. Um
muito leve sorriso apareceu em seus lábios—.
Há homens de posição, homens de honra que preferem guardar o anonimato, cujos
nomes foram caluniados, por implicação se não de forma direta.
—Sei que entende a que me refiro, senhor. Senhor Farnsworth —Pitt pronunciou o
nome com reverência— prometeu apagar toda possível implicação injuriosa... —Pitt deixou
que suas palavras fizessem efeito.
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Osbome cravou seu olhar nele; seus olhos cinza escuro se mostravam tão duros
como impávidos.
—E por que diabos não me disse isso antes? Não há por que andar-se com tanta
onda.
Pitt sentiu um estremecimento. Osbome o tinha compreendido e engoliu a mentira.
Ocorreu-lhe que estava falando com um novo integrante do Círculo Interior.
—Toda precaução me parece pouca —declarou Pitt, sem mentir em demasia—. É um
hábito ao qual me acostumei.
—Não o reprovo—concedeu Osbome—. A coisa é difícil. É claro, nosso finado amigo
não deixava de fazer acusações infundadas. Via—o tudo ao reverso. —Osbome se
mostrava inexpressivo; seus lábios eram apenas uma linha—. Não se dava conta
absolutamente. Um homem decente, mas burguês até a medula.
Sem o menor sentido prático. Um idiota bem—intencionado pode ser mais daninho
que uma turma de canalhas confesos! —Osbome esquadrinhou as feições do Pitt. A
suspeita seguia latente em seu olhar.
A seu juízo, Pitt não tinha maneira de pertencente ao Círculo Interior. Nem era um
cavalheiro nem era um subordinado bastante submisso.
Osbome não se equivocava em nenhuma de suas duas asseverações. Pitt não tinha
vontade de discutir a primeira questão. Mas a segunda era outra coisa.
—Estou de acordo com você— respondeu com honestidade—. Um idiota bem—
intencionado pode ser muito perigoso se se fizer com uma onça de poder. Pode inclusive
provocar a queda de muitas outras pessoas, embora não seja tal sua intenção.
Osbome pareceu surpreender-se. Ao que parecia, não esperava que Pitt se
mostrasse de acordo com ele. Osbome soltou um grunhido.
—Então compreenderá minha posição, senhor. —Osbome se deteve em seco—.
Exatamente, o que quer saber? E quem são esses cavalheiros cujo nome corre risco de
ser arrastado pela lama?
—Preferiria não ter que mencionar nome algum—respondeu Pitt—. E para falar a
verdade, não conheço muitos nomes. Em interesse da discrição, não fui informado disso.
—Entendo —assentiu Osbome. Ao fim e ao cabo, Pitt possivelmente fosse membro
do Círculo, mas não deixava de ser um ajudante—. Sir Arthur segurava que certos
cavalheiros amigos nossos se organizaram em comandita para financiar uma expedição na
África Central, expedição desenhada para explorar às tribos nativas, aproveitando do
espaldar financeiro e moral do governo britânico.
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Conforme apontou, o plano estribava em que, uma vez colonizado o território com
êxito e descobertas suas vastas riquezas naturais, estes cavalheiros tirariam fatia
financeira e política do novo país a estabelecer baixo a nominal soberania britânica mas
autônomo ao fim e ao final.
A fortuna a ganhar ficaria assim sob monopólio, excluindo a possíveis competidores
mediante um sem—fim de arranjos.
O rosto do Osbome expressava irritação. Seu olhar se cravou no Pitt em demanda de
resposta.
—Uns comentários bastante perigosos —apontou Pitt com honestidade, embora os
tinha por certos em sua quase inteira totalidade—. Está claro que Desmond tinha perdido o
sentido da realidade.
—Absolutamente! — concordou Osbome com veemência—. Absurdo por completo! E
irresponsável a mais não poder, maldito seja. Sempre há confiantes a qualquer sandice.
—Não estou tão seguro— respondeu Pitt com uma repentina pontada de amargura—.
Se trata de uma presunção realmente assustadora, para a que muito poucas pessoas
estariam preparadas.
Osbome olhou—o com os olhos entrecerrados, aquilatando possíveis sarcasmos,
mas o olhar do Pitt não expressava o menor rastro de malícia. Vistas as circunstâncias, Pitt
não tinha indigestão em fingir-se quem não era, em mentir se fosse preciso.
Osbome limpou a garganta.
—É tudo que posso lhe dizer, Pitt. Não sei nada mais. Não sou perito em assuntos
africanos.
—Foi—me de muita ajuda. Agradeço-lhe—disse Pitt—. Com um pouco mais de ajuda
por parte de outras pessoas, acredito que chegarei a desembaraçar a verdade. Obrigado
por seu tempo. Bom dia.
—Bom dia.
Osbome conteve o fôlego como se fora a dizer algo mais, mas finalmente mudou de
idéia.
Quando Pitt finalmente deu com o Calvert, o terceiro homem que tinha prestado
declaração, já era tarde e bastante escuro, apesar de que estavam em meados de maio.
Calvert lhe referiu uma história bastante similar, repleta de conversas ouvidas através
de terceiros, acusações repetidas com escândalo e ignorância sobre a África, a quem se
tinha por naturalmente destinada a ser britânica, por direito moral já que não político.
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Pitt estava tão fatigado que lhe doíam os pés, tinha as costas encurvada e a garganta
dolorida. Tudo eram nebulosas e impressões pessoais, encargos nascidos da indignação e
a sensação de acreditar-se traído por alguém em quem tinham confiado. Apesar de tanta
reiterada condolência, o ressentimento estava sempre a flor da pele. Com razão ou sem
ela, Arthur Desmond fazia públicas suas suspeitas de uma corrupção generalizada.
A partir de agora, o respeito devido a tantos homens de posição possivelmente não
fosse já tão unânime. Muitas pessoas que até então nem tinham imaginado a existência do
Círculo Interior começariam a fazer-se perguntas. Esse era o grande pecado do Arthur
Desmond, ter tornada públicas questões que deviam continuar sendo privadas. A roupa
suja era melhor lavá—la em casa. Sua conduta não tinha sido a de um cavalheiro. Se a
gente não podia confiar em um cavalheiro, em quem podia confiar?
Pitt não sabia se o homem era membro do Círculo Interior ou não. Acaso suas
palavras só tinham refletido fidelidade a sua classe social. Acaso se pudesse dizer o
mesmo do Osbome, embora Pitt tinha por quase certa a adesão do Osbome.
Quem mais? Hathaway, Chancellor, Thorne, Ayler? Não havia dúvidas quanto ao
Farnsworth, pessoa a quem não tinha em apreço.
Entretanto, o próprio Arthur Desmond, por quem tanto apreço tinha sentido durante
toda sua vida, era membro do Círculo.
Como o era Micah Drummond, a quem tanto tinha estimado e em quem tinha tido
absoluta confiança. Possivelmente faria bem em falar com ele. Certamente era a única
pessoa que lhe podia ajudar. Tomou a decisão nesse mesmo instante, enquanto
caminhava pela calçada. Veria—o agora mesmo.
Ao próprio Pitt acabavam de lhe oferecer o ingresso no Círculo Interior.
Nem todos seus membros eram cavalheiros de posição. Qualquer um podia ser
membro, qualquer um podia ser o próprio verdugo. Podia ser um garçom do clube, ou o
próprio encarregado. Ou o médico que atendeu a Sir Arthur.
Um cabriolé apareceu pela esquina a muita velocidade. Pitt se viu obrigado a afastarse com rapidez, tropeçando com um homem robusto que caminhava distraído.
—Vá com mais cuidado, amigo!—respondeu com fúria, olhando ao Pitt com olhos
raivosos. Seu punho se fechou sobre a grossa bengala com que caminhava.
—Você vá com cuidado, e assim não haverá problema!—replicou Pitt.
—Como? Velhaco! —O homenzarrão ergueu sua bengala em gesto ameaçador.
— Nem se atreva a me falar assim! Olhe que chamo à polícia! E muito olho, que sei
como me dirigir com a bengala.
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—Eu sou a polícia! Assim deixe a bengala tranqüila, se não quer que o detenha por
agressão a um agente da ordem. E de passagem, deixe as fanfarronices ou detenho—o
por escândalo público.
O homenzarrão ficou estático, com a mão ainda fechada sobre a bengala.
Era possível que tivesse ido muito longe ao interrogar ao Osbome?, perguntou-se
Pitt. Possivelmente Osbome gozasse de uma posição elevada no Círculo Interior que lhe
permitia saber quem era membro e quem não o era. Não era a primeira vez que Pitt se
misturava nos manejos do Círculo. Era ocioso pensar que não sabiam quem era.
Se tinham matado ao Arthur Desmond, o que lhes impedia de desfazer-se do Pitt?
Um assalto guia de ruas, um rápido empurrão sob as rodas de um veículo. Um
desafortunado acidente de rua.
Já tinha acontecido uma vez, no caso do Matthew.
Pitt deu meia volta, afastando-se dali. O homenzarrão seguia plantado no mesmo
lugar, tão furioso como antes.
Tudo isto era absurdo. Tinha que controlar sua imaginação. Via inimigos por toda
parte quando em Londres havia três milhões de habitantes. Sem dúvida os membros do
Círculo Interior não passavam de três milhares. Mas três milhares cujo rosto desconhecia.
Ao voltar a esquina, tomou uma carruagem de aluguel, a cujo cocheiro indicou a
direção do Micah Drummond. Pitt se reclinou no assento, tratando de acalmar-se e pôr em
ordem seus pensamentos. Perguntaria ao Drummond se tinha idéia das verdadeiras
dimensões do Círculo. Embora temesse a resposta, era preciso que soubesse.
Agora que pensava nisso, tinha sido um estúpido ao não ir a ele ao saber da morte de
Sir Arthur. Drummond se tinha mostrado muito ingênuo desde o começo —possivelmente
ainda continuava sendo—, mas era membro do Círculo desde há anos. Possivelmente
recordasse episódios ou rituais que projetassem um pouco de luz sobre seu
funcionamento.
Embora não tivera pistas adicionais, Pitt se sentiria menos só pelo mero fato de falar
com ele.
A carruagem se deteve na direção indicada. Pitt desceu do veículo e pagou ao
cocheiro.
A ansiedade o embargava.
De repente percebeu que não se viam luzes na casa. Não nas janelas que davam à
rua, pelo menos. Embora Drummond e Eleanor tivessem saído, o lógico era que os criados
tivessem deixado alguma luz acesa. Ainda não era hora de deitar-se. A única resposta
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consistia em que estivessem de viagem. A decepção o envolveu em um abraço gélido.
—Espero-lhe, senhor?—perguntou o cocheiro a suas costas. Sem dúvida tinha visto
as luzes apagadas e chegado à mesma conclusão que ele. Possivelmente não partia por
consideração a seu cliente, possivelmente não o fazia ante a perspectiva de uma possível
nova corrida—. Quer que lhe leve a algum outro lugar?
Pitt lhe deu o endereço de seu lar, subiu à carruagem e fechou a porta.
—Tem um aspecto terrível, Thomas—disse Charlotte ao vê-lo. Sua mulher, que trazia
um vestido vermelho escuro, tinha um aspecto radiante.
Ao estreitá—la entre seus braços, Pitt sentiu o aroma da primavera. Do piso de acima
lhe chegou à voz de um de seus filhos que chamava Gracie. Um momento depois, Jemima
apareceu na escada, vestida em sua camisola.
—Papai!
—Como é que não está na cama?—perguntou ele.
—Quero um copo de água—respondeu a pequena.
—Pois não tomará—respondeu Charlotte, afastando-se dele—. Já bebeu água antes
de se deitar. Volte para a cama.
Jemima tentou por outro meio.
—Os lençóis estão muito enrugados. Por que não vem arrumá—los, mamãe?
—Já é bastante grande para os arrumar você sozinha—respondeu Charlotte com
firmeza—. Agora tenho que fazer o jantar ao papai. Boa noite.
—Mas mamãe...
—Boa noite, Jemima!
—Posso dar boa noite ao papai?
Pitt não aguardou ouvir a resposta do Charlotte. Em vez disso, subiu os degraus de
dois em dois e tomou a sua menina nos braços. A pequena era tão frágil e delicada que lhe
surpreendeu o inesperado vigor de seus bracinhos ao rodeá—lo. Jemima cheirava a
algodão limpo e sabão; ainda tinha os cabelos umedecidos.
Por que diabo tinha ele que desafiar o poder do Círculo Interior? A vida era muito
preciosa, muito doce para correr perigos assim. Nunca conseguiria acabar com eles; só
conseguiria machucar-se no intento. E, além disso, a África estava a meio mundo de
distância.
—Boa noite, papai. —Jemima não fez gesto algum por separar-se de seu lado.
—Boa noite, querida. —Pitt a soltou com cuidado, lhe fazendo dar meia volta quando
pisou no chão e lhe dando uma última carícia.
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Jemima aceitou sua derrota e foi dormir sem mais discussão.
Pitt desceu a escada, muito emocionado para pronunciar palavra. Charlotte olhou seu
rosto e se sentiu feliz de tê—lo a seu lado.
Pitt dormiu até entrada a manhã, decidiu não passar-se pelo Bowl Street e se dirigiu
diretamente ao Morton Clube, a fim de falar com o Horace Guyler, o garçom que prestou
declaração durante a investigação do caso.
Quando chegou, era muito cedo. O clube ainda não tinha aberto. Os criados deviam
estar ocupados em limpar os tapetes, tirar o pó e abrilhantar o metal. Teria que havê-lo
imaginado. Depois de passear durante uma hora, deixaram—no entrar para esperar meia
hora mais antes que Guyler recebesse permissão para falar com ele.
—Sim, senhor?—disse Guyler com certa apreensão.
Ambos se achavam no pequeno quarto do garçom, onde poderiam falar a sós.
—Bom dia, senhor Guyler—respondeu Pitt em tom casual—. Me pergunto se poderia
acrescentar alguma coisa mais em relação com o dia da morte de Sir Arthur Desmond aqui
no clube.
Guyler se mostrava desconfortável, embora Pitt estava convencido de que a coisa
tinha que ver menos com uma possível culpa que com um temor à morte quase
supersticioso.
—Não sei que mais posso acrescentar, senhor. —Guyler se movia com inquietação—
. Quando declarei, disse quanto sabia.
Se era membro do Círculo Interior, tratava-se de um ator consumado. Ou acaso seria
um mero instrumento em mãos dos verdugos?
—Você respondeu a todas as perguntas que lhe fizeram. —Pitt sorriu, embora
nenhum sorriso conseguiria tranqüilizar os nervos do garçom—. Mas pensei em algumas
questões que o legista não expôs.
—Como é isso, senhor? Acontece algo?
—Quero me assegurar de que não aconteça nada
ambigüidade—. Nesse dia esteve de serviço na sala principal?
—Sim, senhor.
—A sós?
—Perdão, senhor?
—Era você o único garçom de guarda?
—Oh, não, senhor. Sempre somos dois ou três, no mínimo.
—Sempre? E o que acontece se um fica doente?
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—declarou Pitt com
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—Contratamos a um substituto temporário. A coisa acontece com freqüência. De fato,
nesse mesmo dia trabalhava um substituto.
—Já vejo.
—Entretanto, eu era quem atendia nessa parte da sala, senhor. Eu fui quem serviu a
Sir Arthur, a maioria das vezes pelo menos.
—Então, alguém mais lhe serviu em outro momento? —Embora se esforçasse em
reprimi—la, Pitt percebeu a súbita urgência de sua voz, tanto como a percebeu o garçom—
. Possivelmente um desses garçons substitutos?
—Não tenho certeza, senhor.
—O que quer dizer?
—Bem... A verdade, eu não sei o que fazem outros garçons quando estou ocupado
servindo uma bebida ou anotando uma comanda, senhor. As pessoas entram e saem
constantemente. Os cavalheiros vão ao banho, ou à mesa de bilhar, ou à biblioteca, ou à
sala de escrita.
—Foi Sir Arthur a algum destes lugares?
—Que eu recorde, não, senhor. Mas não saberia lhe dizer com segurança. Não me
atreveria a jurá—lo.
—Não é isso o que quero de você— respondeu Pitt.
A expressão nervosa do Guyler não variou um ápice.
—Disse você que Sir Arthur bebeu muitas taças de brandy esse dia —insistiu Pitt.
—Sim, senhor. Pelo que lembro, um mínimo de cinco ou seis taças —respondeu
Guyler com segurança.
—Quantas taças serviu-lhe você pessoalmente?
—Umas quatro, senhor. Que eu recorde bem.
—Então alguém mais lhe serviu uma ou duas taças?
Guyler percebeu a premente nota de esperança renascida na voz do Pitt.
—Não sei, senhor. Só era uma hipótese— se apressou a responder, mordendo o
lábio.
—Não o entendo —Pitt estava confundido seriamente; não tinha necessidade de
fingir.
—Veja, senhor, se lhe digo que Sir Arthur bebeu cinco ou seis taças de conhaque, é
porque ouvi que outros o diziam.
—Que outros o diziam? —resolveu Pitt na hora. — Quem o dizia? Quantas taças lhe
serve você pessoalmente, Guyler?
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—Uma, senhor. Uma taça de brandy pouco antes do jantar. A última —o garçom
engoliu em seco. — Acredito que foi assim. Mas o juro Por Deus, senhor, que nunca pus
coisa alguma em sua bebida. Só lhe servi o brandy de nossa melhor licoreira. Exatamente
o que me pediu!
—Não o ponho em dúvida—disse Pitt em tom pausado, percebendo o rosto
assustado do Guyler—. Mas me explique de onde saíram essas quatro ou cinco taças
adicionais de conhaque que diz que bebeu Sir Arthur. Se você não as serviu nem viu fazêlo a outros garçons, o que lhe leva a pensar que efetivamente bebeu—as?
—Verá, senhor —Os olhos do Guyler olharam ao Pitt com temor mas sem dobra—.
Recordo que Sir James Duncansby me disse que Sir Arthur queria outra taça, assim que a
servi da garrafa e a entreguei para que a levasse a Sir Arthur. O próprio Sir James se
ofereceu a levá—la, junto com sua própria consumação. E não é nosso costume discutir
com os cavalheiros, senhor.
—É claro, é claro. Essa seria uma taça. O que tem que as demais?
—Bem, né... O senhor William Rodsay se aproximou e pediu uma nova ronda, para
ele e para Sir Arthur. Ele mesmo se encarregou de levá—la.
—Já temos duas taças. Siga.
—Depois veio o senhor Jenkinson e disse que queria convidar a Sir Arthur. Como
outros, ele mesmo levou a taça.
—Três. Ainda faltam uma ou duas taças mais.
—Não sei o que lhe dizer, senhor. —A expressão do Guyler era de desdita—.
Conforme ouvi, o brigadeiro Allsop dizia ter visto como Sir Arthur pedia uma nova taça a
outro garçom. Uma taça, diria eu. Mas não estou seguro. Acaso se tratou de dois.
Pitt sentiu uma curiosa sensação de irrealidade. O garçom tão somente tinha servido
uma taça a Sir Arthur! O resto eram falatórios. Possivelmente essas taças nunca chegaram
à mesa de Sir Arthur.
De repente a confusão e o pesadelo começavam a adquirir certo sentido. A lucidez
voltava a impor-se.
E a lucidez implicava um aspecto mais escuro e desagradável: se esta não era a
verdade, mas uma fabricação, Sir Arthur tinha sido assassinado, tal e como assegurava
Matthew.
E, possivelmente, se Pitt tivesse estado ali, se Sir Arthur tivesse podido lhe confiar
suas terríveis suspeitas sobre o Círculo Interior, acaso Pitt poderia lhe ter avisado a tempo
e agora não estaria morto.
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Pitt agradeceu ao Guyler e abandonou o lugar, mais ansioso e perplexo do que se
sentia ao vir.
O doutor Murray não era homem de trato acessível. Depois que Pitt se visse obrigado
a acudir, sob pagamento, a sua consulta do Wimpole Street, o médico não gostou de saber
que Pitt tinha vindo lhe fazer perguntas.
Decoradas com sobriedade, as salas de sua consulta eram imponentes e exalavam
um ar de majestosa solidez. Pitt se perguntou o que teria levado ao Arthur Desmond a
procurar-se semelhante médico e durante quanto tempo se teria prolongado sua relação.
—Senhor Pitt, o mais amável que posso dizer é que seu pedido me foi um tanto
enganoso. —Posicionado atrás da ampla escrivaninha de nogueira, Murray observava ao
Pitt com desagrado—. Que autoridade tem você para intrometer-se na desafortunada
morte de Sir Arthur Desmond? O legista já disse o que tinha que dizer e deu o caso por
fechado. Não sei que sentido tem voltar outra vez ao mesmo.
Pitt já tinha previsto certa dificuldade. Se, como suspeitava, Murray era membro do
Círculo, o truque empregado com o Osbome não funcionaria pela segunda vez.
Murray mostrava muita segurança em si mesmo para deixar-se enganar assim. Deste
modo lhe parecia provável que seu status fosse muito superior ao do Osbome e que em
conseqüência soubesse quem era Pitt, conhecesse sua antiga inimizade com o Círculo e
estivesse à corrente de sua recente negativa a ingressar nele.
Pitt tratou de afastar de si o pensamento de que Murray acaso fosse o próprio
verdugo da sociedade, concentrando-se no sol radiante que brilhava sobre a rua buliçosa,
do outro lado da janela.
Entretanto, o vidro era tão grosso que nem o menor som se filtrava ao interior da
consulta. Pitt se sentiu preso de uma repentina claustrofobia, qual um recluso em sua cela.
Embora pensasse em mentir a respeito de umas supostas dúvidas do legista,
finalmente pensou melhor. Era possível que o legista mesmo pertencesse ao Círculo
Interior. De fato, quase todo mundo podia pertencer à sociedade, começando por seus
próprios homens. Pitt sempre tinha tido Tellman por homem muito ressentido e mal—
humorado para envolver-se em questões de governo, mas acaso se tratasse de mera
cegueira de sua parte.
—Sou amigo pessoal de Sir Matthew —declarou por fim: Pelo menos, isto era
completamente certo—. Sir Matthew me pediu que investigue alguns pontos escuros.
O pobre não se encontra muito bem. Faz poucos dias que sofreu um acidente em
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plena rua. —Pitt fixou seu olhar no rosto do Murray, cuja expressão não se alterou o
mínimo.
—Sinto—o—disse Murray por fim—. Que má sorte. Espero que não seja coisa séria.
—Parece que não o é, mas se trata de um incidente desafortunado; Sir Matthew
podia ter morrido.
—Temo que é algo que acontece com muita freqüência.
Tratava-se de uma ameaça velada? Ou de uma observação inocente?
—O que quer saber, senhor Pitt? –acrescentou Murray, entrelaçando as mãos sobre
o estômago e olhando ao investigador com gesto grave—. Se for amigo de Sir Matthew,
faria bem em convencê—lo de que possivelmente devia agradecer que a morte de seu pai
chegasse antes que sua enfermidade danificasse ainda mais sua reputação, antes que
sofresse mais ainda em seus ocasionais arrebatamentos de lucidez.
É duro confrontar as coisas como são, mas é mais prático que esquivar-se da
verdade e das desagradáveis conseqüências que esta possa contribuir. —Um sorriso
tilintou em seu rosto e desapareceu imediatamente—. Há muitos homens de bem que
queriam recordar ao Sir Arthur de sempre, sem seguir pinçando na ferida. —Os olhos do
médico não se afastavam do Pitt.
Por um segundo Pitt acreditou que se tratava de uma ameaça: os homens de bem
seriam os membros do Círculo, tão numerosos como ungidos em poder. Uns homens de
bem que não vacilariam em cobrar vingança se Matthew continuasse insistindo.
Entretanto, imediatamente, soube que não contava com prova alguma. Murray só era
um médico que expunha o que era claro. Pitt via perseguições por toda parte, complôs em
qualquer parte que lhe levavam a suspeitar de quanto inocente se cruzasse em seu
caminho.
—Possivelmente me seja mais fácil convencê—lo se conto com fatos concretos para
lhe referir—replicou, sem afastar seu próprio olhar do outro—. Por exemplo, prescreveu
láudano a Sir Arthur com antecedência? Ou lhe parece que essa foi a única vez que o
provou?
—Foi a única vez—respondeu Murray—. Ele mesmo me disse isso. Eu me
encarreguei de lhe explicar as propriedades e os perigos de tal produto. Disse-lhe como
devia administrá—lo e em que medida, para obter um sono de duração e profundidade
normais.
—É claro —concordou Pitt—. Mas em seu estado de confusão, porque se mostrava
confuso, não é assim? Irracional e contraditório muitas vezes?
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—Nunca o observei. —Como Pitt esperava, Murray dizia o que mais lhe convinha
para não ver-se salpicado—. Entretanto, logo soube através de outros que sofria de umas
estranhas obsessões não muito racionais. Possivelmente esqueceu o que lhe disse e se
administrou uma dose mortífera, pensando que era a que necessitava para poder desfrutar
de uma sesta. É impossível saber o que acontecia a mente desse pobre homem.
—Qual era a apresentação do láudano?
—Em pó, como é costume. —Murray sorriu de forma apenas perceptível—. Cada
dose vem em um invólucro individual. Senhor Pitt, seria difícil administrar-se mais de uma
dose, a não ser que se tratasse de um descuido absoluto. Sinto não poder lhe proporcionar
uma explicação mais ajustada a sua teoria, mas é uma precaução que sempre me
encarrego de ter em conta.
—Já vejo. —Pitt não tinha por que acreditar nele. Murray muito bem podia ter
misturado uma dose letal com as demais. Pitt se esforçou em manter uma expressão
neutra em seu rosto—. Quando tratou você com Sir Arthur, doutor Murray?
—A primeira vez que me consultou foi em outono de 1887, em relação com uma
congestão pulmonar. Pude ajudá—lo e se curou por completo. Se se referir a sua última
visita, tenho que ver quando teve lugar. —O médico examinou sua agenda sobre a mesa—
. Em 27 de abril. —Murray esboçou um sorriso—. Às quatro e quarenta da tarde, para ser
preciso.
Esteve aqui uma meia hora ou mais. Sinto dizer que seu estado não era bom. Fiz
quanto pude para lhe tranqüilizar, mas temo que seu mal desta vez ia além de minha
capacidade. Se tiver que ser justo, acredito que seu estado ia além da capacidade de
qualquer médico.
—Preparou você mesmo o láudano, doutor Murray?
—Não, não. Eu não tenho amostras dos remédios que receito a meus pacientes,
senhor Pitt. Dava-lhe uma receita que imagino utilizou em alguma farmácia. Eu lhe
recomendei a regentada pelo senhor Porteous no Jermyn Street.
Um excelente profissional, qualificado e minucioso. Por quanto falamos, sempre
insisto em que o láudano seja medido e dosado em quantidade muito exata, antes de ser
preparado em invólucros individuais.
Sir Arthur já conhecia o senhor Porteous de anteriores ocasiões e me confessou sua
intenção de visitar sua farmácia outra vez.
—Já vejo. Muito obrigado por sua paciência, doutor Murray. —Pitt se levantou.
Embora não tinha averiguado grande coisa, não queria insistir, a fim de não despertar
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a suspeita de estar investigando um assassinato no que possivelmente estivesse
comprometido o Círculo Interno.
Ao sair da consulta, sentiu uma absurda sensação de alívio ao ver-se ao ar livre
enquanto os cascos dos cavalos ressoavam sobre o pavimento das ruas sulcadas de
coches e radiantes de vitalidade.
Pitt se dirigiu ao Jermyn Street, onde deu com a farmácia mencionada pelo médico.
—Sir Arthur Desmond? —O ancião lhe sorriu com benevolência do balcão. —
Um cavalheiro sem mancha. Senti muito sua morte. Uma verdadeira lástima. O que
posso fazer por você, senhor? Tenho quase todo o necessário para mitigar os males do
corpo humano.
Visitou algum médico ou prefere que eu mesmo o aconselhe?
—Não necessito medicina alguma. Desculpe-me se não me expliquei bem.
Simplesmente queria consultar suas lembranças. —Pitt se sentia um pouco culpado
por não adquirir nada, mas não necessitava nenhum remédio—. Quando foi a última vez
que Sir Arthur esteve aqui?
—Sir Arthur? Como é que quer sabê—lo, jovem? —O ancião olhou-o com curiosidade
não incompatível com suas maneiras amáveis.
—Eu quero saber sobre sua morte. Sobre o modo como morreu — respondeu Pitt,
algo confuso. A imagem do farmacêutico lhe recordava um tanto a do próprio Sir Arthur,
um Sir Arthur estranhamente aparecido atrás do balcão do estabelecimento.
—É natural. Eu também tenho curiosidade. É uma lástima. Se se tivesse apresentado
por aqui com a receita do médico, como sempre fazia, teria lhe proporcionado o láudano
em doses individuais, como sempre faço com meus clientes, e esse terrível acidente nunca
teria lugar. —O ancião meneou a cabeça com pena.
—Sir Arthur não veio por aqui?—perguntou Pitt—. Tem certeza?
O ancião arqueou as sobrancelhas.
—Claro que tenho certeza, jovem. Eu sou o único que atende neste balcão, e a Sir
Arthur não servi. A última vez que lhe vi foi o inverno passado. Isso deve ter sido por volta
de janeiro. Um resfriado. Proporcionei-lhe uma infusão de ervas para eliminar a congestão.
Lembro que estivemos falando de cães. Lembro—me muito bem.
—Obrigado. Obrigado, senhor Porteous. Foi—me de grande ajuda, senhor. Bom dia.
—Bom dia, jovem. Embora se eu fosse você, não correria tanto de um lado para
outro. Não é bom para a digestão. Muita excitação nervosa...
Mas Pitt já tinha saído da farmácia e caminhava a toda pressa pelo Jermyn Street.
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Na metade do caminho em direção ao Regent Street percebeu que não sabia aonde
se dirigia. Onde teria obtido o láudano Sir Arthur? Se não o tinha feito no Jermyn Street,
devia ser em outra farmácia. Ou acaso o teria proporcionado o próprio Murray, apesar de
suas palavras? Havia algum modo de prová—lo?
Possivelmente
Matthew
soubesse.
Os
preparados
de
farmácia
geralmente
detalhavam o nome do estabelecimento, como garantia e como forma de publicidade.
Pitt voltou sobre seus passos e subiu a um cabriolé, em direção ao apartamento do
Matthew.
—Do que se trata?—perguntou Matthew. Pitt achou-o sentado na escrivaninha da
pequena sala que lhe servia de sala de jantar e estúdio.
Matthew vestia um roupão e tinha o mesmo aspecto pálido. Seu rosto exibia sombras
sob os olhos, como se umas feridas latentes lutassem por sair à luz.
—Tem mau aspecto —observou Pitt com certa ansiedade—. Não estaria melhor na
cama?
—Uma simples dor de cabeça —resolveu Matthew na hora. — Do que se trata?
Encontrou algo?
Pitt se sentou em uma das cadeiras.
—Falei com várias pessoas. Tenho a impressão de que quanto se disse a respeito da
conduta irracional de Sir Arthur se apóia em testemunhos de ouvidos ou no modo em que
suas opiniões se chocavam com os preconceitos e desejos alheios.
—Já lhe disse isso! —exclamou Matthew em tom triunfal, com o rosto iluminado pela
primeira vez desde que se apresentara em casa do Pitt com a notícia da morte de Sir
Arthur—. Em nenhum momento se mostrava confuso ou caduco. Sabia muito bem o que
dizia. Há algo mais?
Sabe-se algo mais sobre o brandy e o láudano? Conseguiu invalidar de uma vez
essa teoria?—Matthew esboçou um sorriso de desculpa—. Me perdoe. Já vê que continuo
acreditando nos milagres. Foi que grande ajuda, Thomas. Estou-lhe agradecido.
—O do conhaque também é coisa de ouvir. O garçom só lhe serviu uma taça.
As demais foram pedidas por outros, que queriam convidá—lo possivelmente.
Matthew franziu o cenho.
—Possivelmente? O que quer dizer?
Pitt lhe relatou o descrito pelo Guyler.
—Já vejo —comentou Matthew com expressão reflexiva—. Deus, a coisa dá medo. O
Círculo está em todas partes. Mas não acredito que todos com quem falou sejam
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membros, não lhe parece? Ou é sim?—seu rosto empalideceu de novo.
—Não sei —confessou Pitt—. Imagino que o Círculo pode valer-se de quantos
membros sejam precisos para a ocasião. E aqui parece que estejamos falando de uma
emergência. Sir Arthur tinha quebrado seu juramento de confidencialidade para acusá-los
de conspiração tendendo ao engano, de traição, segundo como se olhe.
Sentado em silêncio, Matthew estava enfrascado em suas próprias reflexões.
—Matthew...
Matthew ergueu a cabeça.
—Também falei com o doutor Murray. Conforme diz, aconselhou a Sir Arthur que
procurasse o láudano na farmácia habitual do Jermyn Street. Entretanto, Porteous se
mostra seguro de que Sir Arthur não se apresentou na farmácia. Tem idéia se pôde ter
obtido o láudano em outro lugar?
—Tem importância? Pensa que alguém se pôde equivocar na dose, ou algo assim?
Um farmacêutico, verdugo do Círculo? —Matthew esboçou uma careta de repugnância—.
Que idéia tão assombrosa. Embora tenha sentido.
—Possivelmente se tratou do próprio médico —apontou Pitt—. Tem alguma idéia?
—Não. Embora se déssemos com alguns de seus papéis, possivelmente poderíamos
averiguar. —Matthew ficou em pé—. Talvez encontremos algo entre suas coisas. Venha
comigo. Vamos ver.
Pitt se levantou atrás dele.
—Só pôde ter adquirido o láudano nos dois ou três últimos dias. Sir Arthur foi à
consulta do Murray nos dia vinte e sete.
Matthew se virou de repente para Pitt.
—O 27. Tem certeza?
—Sim. Por que?
—Não me disse nada a respeito. E não pôde ter obtido esse dia porque essa tarde
fomos a Brighton.
—A que hora?
—A que hora saímos para Brighton? Por volta das duas e meia. Por que?
—E a que hora voltaram?
—Não voltamos em todo o dia. Jantamos com uns amigos e retornamos no dia
seguinte.
—Murray diz que Sir Arthur foi a sua consulta nesse dia às quatro e quarenta. Tem
certeza que foram a Brighton esse dia vinte e sete, não um dia antes nem um dia depois?
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—Absolutamente certo. Era o aniversário de minha tia Mary e se celebrava uma
recepção. Todo ano fazemos igual, em 27 de abril.
—Então Murray me mentiu. Jamais chegou a ver Sir Arthur!
Matthew franziu o cenho.
—Possivelmente se equivocou de data?
—Não. Comprovou—a em sua agenda. Eu mesmo estava diante.
—Então o da consulta é mentira —afirmou Matthew em tom curiosamente
melancólico—. E se for assim, de onde saiu o láudano?
—Deus sabe... —murmurou Pitt—. Alguém que estava no clube. Alguém que lhe
levou uma taça de brandy que ele não tinha pedido.
Matthew engoliu em seco e guardou silêncio.
Pitt voltou a tomar assento, sentindo-se curiosamente fraco e assustado. Ao observar
o rosto do Matthew, soube que este se sentia igual a ele.
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Capítulo 8
Pitt foi despertando pouco a pouco, à medida que os golpes que ressoavam em sua
cabeça se faziam mais persistentes e lhe devolviam ao limite da consciência.
Abriu os olhos. Pelas cortinas penetrava uma franja da primeira luz diurna. Charlotte
estava adormecida aninhada a seu lado, cálida e com o cabelo recolhido em tranças soltas
que começavam a desfazer-se.
Os golpes não cessavam. Do exterior não chegava ruído algum, não passavam
calesas, nem carruagens, não se ouvia ruído de passos nem de vozes.
Pitt se voltou e olhou o relógio junto à cama. Eram cinco menos dez.
Os golpes se faziam mais insistentes. Procediam do piso de baixo, da porta principal.
Fez um esforço para endireitar-se e passou os dedos pelo cabelo, vestiu a jaqueta
por cima da camisola de dormir e foi descalço até a janela. Charlotte se agitou na cama
sem chegar a despertar de todo. Ele levantou o marco corrediço da janela e olhou à rua.
Os golpes cessaram e uma figura robusta retrocedeu uns passos da porta e olhou
para cima. Era Tellman. Seu rosto aparecia muito branco à luz primeira da manhã, sem
seu habitual chapéu de feltro. Tinha o cabelo emaranhado e um aspecto alterado.
Pitt lhe indicou que descia em seguida e, depois de fechar a janela, caminhou
fazendo o menor ruído possível para a porta do patamar e desceu a escada até o
vestíbulo. Abriu o ferrolho e abriu a porta.
De perto Tellman oferecia ainda pior aspecto. Tinha o rosto macilento e a escassa
carne que o recobria estava como afundada entre os ossos. Não esperou que Pitt lhe
perguntasse.
—Aconteceu algo terrível— disse ao vê-lo. — Será melhor que venha e veja você
mesmo. Ainda não o disse a ninguém, mas o senhor Farnsworth vai se alterar de verdade
quando se inteirar.
—Entre—lhe ordenou Pitt lhe deixando entrar— Do que se trata? —Em sua mente se
dispararam todo tipo de temores. Supôs que se teria produzido alguma terrível noticia
procedente da embaixada alemã. Embora, como teria aos ouvidos do Tellman? Algum
fugitivo que havia subtraído documentos — Do que se trata? —insistiu com obrigação.
Tellman permanecia no degrau da entrada. Estava tão pálido que parecia que fosse
desmaiar, o que por si só bastava para alarmar ao Pitt. Ele acreditava no Tellman feito a
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tudo.
—A senhora Chancellor—disse Tellman, que tossiu lastimosamente e tragou saliva—.
Acabamos de achar seu cadáver, senhor.
Pitt ficou estupefato. Fez-se um nó em sua garganta e mal pôde murmurar:
—Seu cadáver?
—Sim, senhor. Arrojado à borda do rio, à altura da Torre. —Olhava ao Pitt com olhos
vazios.
—Suicídio? —pronunciou Pitt com lentidão, incapaz de acreditar em tal possibilidade.
—Não. —Tellman permanecia imóvel, salvo por um ligeiro tremor apesar da manhã
ser temperada—. Assassinato. Estrangularam—na e depois a jogaram na água. Deve ter
acontecido esta mesma noite, a julgar por seu aspecto. Mas terá que esperar ao exame
legista para sabê—lo com segurança.
Pitt sentiu uma dor tão intensa que acabou por transformar-se em uma raiva
incontida. Era uma mulher tão formosa e vulnerável, tão cheia de vida, com um espírito tão
elevado e independente. Sua lembrança na recepção da duquesa do Marlborough lhe
manifestou com toda viveza.
Reproduziu mentalmente os traços de seu rosto enquanto Tellman falava.
Acontecia tão poucas vezes que tivesse conhecido à vítima em vida, que o
sentimento de perda era agora algo pessoal, diferente da pena que estava acostumado a
sentir.
—Por que? —exclamou com virulência—. Por que ia alguém querer destruir uma
mulher assim? Não tem sentido.—sem dar-se conta tinha apertado os punhos e retesado
pela raiva os músculos do corpo sob a jaqueta. Nem sequer era consciente de que estava
descalço sobre o degrau da porta e que não pusera as calças.
—Está o assunto da traição no Ministério de Colônias—disse Tellman com voz
aflita—. Possivelmente soubesse algo.
Pitt golpeou o dintel da porta com o punho e deixou escapar um impropério.
—Deveria vestir-se, senhor, e vir comigo—disse Tellman com tranqüilidade—.
Não sabe ninguém, salvo o barqueiro que a achou e o agente que me informou, mas
não poderemos manter a confidencialidade muito tempo. Por muito que lhes diga que
sejam discretos e demais, ao final não pode evitar-se que alguém fale.
—Sabem quem era a vítima?—perguntou Pitt surpreso.
—Sim, senhor. Por isso me avisaram.
Pitt se zangou consigo mesmo. Deveria havê-lo suposto.
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—Como é possível?—perguntou—. Como pode ser que os barqueiros do rio a
conhecessem?
—Eles não, mas os agentes—explicou Tellman com tom paciente—. São os agentes
que sabiam quem era ela.
Em seguida viram que se tratava de uma pessoa distinta, era claro, qualquer idiota o
teria visto, mas, além disso, levava um pequeno pendente de ouro ao redor do pescoço.
Estava fechado e ao abri—lo descobriram um retrato. —Suspirou e em seus olhos se
apreciou por um momento uma sombra de tristeza—. Era do Linus Chancellor, tão claro
como a luz do dia.
Por isso nos avisaram. Quem quer que fosse aquela mulher, sabiam que aquele
retrato só podia significar problemas.
—Já vejo. Onde está o corpo? —Pitt o olhou.
—Continua na Torre, senhor. Ordenei-lhes que a tampassem e a deixassem mais ou
menos como estava para que você pudesse vê—la.
—Agora mesmo desço— disse Pitt, deixando Tellman na entrada. Subiu ao piso de
cima, despojando-se da jaqueta ao chegar ao patamar, e tirou a camisola de dormir ao
cruzar a porta do quarto.
Charlotte havia tornado a dormir e lhe parecia cruel despertá—la, mas bem tinha que
lhe dizer aonde ia. Optou por vestir-se primeiro. Não tinha tempo de barbear-se.
Bastaria uma boa lavagem de água fria da bacia e um bom esfregão com a toalha.
Inclinou-se sobre Charlotte e a tocou com suavidade.
Devia estar algo tenso, ou talvez fossem suas mãos frias depois de haver-se lavado
com a água, o caso é que ela despertou imediatamente.
—O que? Acontece algo? —Abriu os olhos e viu que Pitt estava vestido. Endireitou—
se, meio adormecida—. O que aconteceu?
Pitt não tinha tempo para dizer-lhe com suavidade.
—Tellman veio para me dizer que acharam o cadáver de Susannah Chancellor na
beira do rio.
Charlotte olhava—o sem conseguir compreender o que lhe dizia.
—Tenho que ir. —inclinou-se para lhe dar um beijo.
— Suicidou-se?—perguntou Charlotte sem afastar os olhos dele—. Pobrezinha,
eu...—seu rosto se retorceu em uma careta de dor.
—Não... não. Assassinaram—na.
No rosto do Charlotte se desenhou uma expressão de sobressalto e alívio a mesmo
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tempo.
—Por que pensou que se havia suicidado?—perguntou-lhe Pitt.
—Pois não sei. Parecia tão transtornada.
—Em qualquer caso, pelo que diz Tellman não existem dúvidas.
—Como morreu?
—Primeiro tenho que vê-lo— disse ele, evitando uma resposta. Deu-lhe um ligeiro
beijo na face e se voltou para partir.
—Thomas!
Deteve-se.
—Falou "pelo que diz Tellman". O que lhe disse?
Pitt suspirou devagar.
—Estrangularam—na. Sinto muito. Está embaixo me esperando.
Permaneceu sentada em silêncio, com expressão abatida. Não havia nada que ele
pudesse fazer. Saiu do quarto com um sentimento de tristeza e impotência.
Tellman esperava—o no vestíbulo. Assim que apareceu Pitt, voltou-se e partiu diante
até a rua. Pitt fechou a porta e se apressou para alcançá—lo.
Ao chegar à esquina cruzaram a rua principal e em questão de uns minutos pararam
uma carruagem e Tellman ordenou ao cocheiro que os levasse a Torre de Londres.
Era um longo trajeto desde o Bloomsbury. Dirigiram-se primeiro para o sul, a Oxford
Street, e depois para o este, até virar pelo High Holbom e seguir durante quilômetro e meio
antes de virar mais à direita em direção ao rio, pelo St. Andrews Street, Shoe Lane e St.
Bride Street até o Ludgate Circus.
Tellman ia sentado em silêncio. Não era um homem sociável. Não era dado a
compartilhar seus pensamentos e permanecia quieto em uma atitude incômoda, olhando à
frente.
Em várias ocasiões Pitt esteve a ponto de lhe perguntar algo, mas não lhe ocorria
nada que pudesse ser de utilidade. Tellman já lhe havia dito tudo o que sabia com certeza.
O resto só podiam ser especulações.
Além disso, Pitt não estava de todo certo de querer escutar as idéias que Tellman
pudesse ter a respeito de Susannah Chancellor.
Seu encantador e inteligente rosto com sua capacidade para inspirar dor lhe aparecia
já na mente com o realismo suficiente para saber o que ia achar quando chegassem à
Torre.
Viraram pelo Ludgate Hill e continuaram pelo St. Paul’s Church, com o gigantesco
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corpo da catedral por cima de suas cabeças. Sua cúpula se recortava escura contra o
pálido céu da manhã, sulcado por umas poucas franjas de nuvens que interrompiam
apenas uma cor azul uniformemente limpa.
Havia muito poucas pessoas pela rua. Durante todo o percurso pelo Canon Street
passaram só por meia dúzia de calesas, dois carruagens grandes e uma carreta
recolhedora de esterco. Pelo Canon Street deram ao East Cheap e finalmente ao Great
Tower Street.
Tellman se inclinou e deu um seco e inesperado golpe no teto para avisar ao
cocheiro.
—Vire à direita! —ordenou que—. Siga pelo Water Street até o Lower Thames Street.
—Por aí não se vai a nenhuma parte, só estão as Escadas da Rainha e a Ponte dos
Traidores—replicou o cocheiro—. Se querem ir à Torre, como diziam, é melhor pegar a
Trinity Square, que está à esquerda.
—Você nos deixe nas Escadas da Rainha e logo siga seu caminho – disse Tellman
com tom cortante.
O cocheiro resmungou umas palavras inaudíveis, mas obedeceu.
Avistaram os escritórios do Custom House, para o oeste, que começavam a bulir já
com a agitação dos cidadãos que iam e vinham.
Logo viraram à direita e se acharam de frente com a grande fortificação medieval da
Torre de Londres, autêntica memória de pedra de uma conquista que se retroagia até as
profundidades da Idade Média e de uma história que só se recordava pelos breves
arrebatamentos de iluminação dos escritores, pelas pitorescas obras de arte e as
narrações de sangrentas batalhas e pelos deliciosos remansos de uma cristandade
apaixonada.
A carruagem se deteve nas Escadas da Rainha. Pitt pagou ao cocheiro e este virou à
esquerda, fazendo com que seus cavalos partissem em um brioso trote.
Faltavam dois minutos para as seis. O grande manto prateado do rio aparecia em
calma em sua totalidade. Inclusive as barcaças de carga, escuras contra a brilhante
superfície, mal levantavam uma pequena onda. O ar era fresco e ligeiramente úmido, e
trazia um aroma de sal da maré.
Tellman abriu o passo ao longo da ribeira do rio até chegar às escadas, onde os
esperava um barqueiro. Levantou a vista sem mudar a expressão e manobrou com
destreza o pequeno bote até orientá—lo de forma que pudessem abordá—lo.
Pitt olhou ao Tellman, em espera de sua iniciativa.
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—À Porta dos Traidores—disse este escuetamente, enquanto subia ao bote diante do
Pitt e tomava assento. Não gostava de ir em barco, o que se transparecia em seu rosto.
Pitt seguiu—o com um movimento ágil e agradeceu ao barqueiro enquanto este fazia
partir o bote.
—Encontraram—na na Porta dos Traidores?—perguntou com voz entrecortada.
—A maré a arrastou até ali—respondeu Tellman. A porta estava só alguns metros rio
abaixo. Era à entrada da Torre pela qual, em outro tempo, se levava os condenados a sua
execução, e se abria diretamente sobre as águas.
Pitt viu o pequeno grupo de pessoas que já se formara: um agente de uniforme com
aspecto transido apesar do moderado da manhã, a túnica escarlate de um cavalheiro da
Guarda Real, os tradicionais alabarderos que custodiavam a torre e o outro barqueiro dos
dois que tinham achado o cadáver.
Pitt saltou a terra, tratando de evitar molhar os pés na rampa que emergia da água.
Susannah jazia no lugar em que a tinha deixado a maré alta, com os pés somente por
debaixo da superfície. Formava uma silhueta alongada e esbelta, apenas descomposta,
meio voltada de barriga para cima.
Uma branca mão me sobressaía visivelmente de entre as empapadas roupas de seu
vestido. O cabelo se tinha desprendido dos grampos que o seguravam e lhe tinha aderido
ao redor do pescoço e sobre a pedra do chão como uma meada de algas.
O agente se voltou para o Pitt e, ao reconhecê-lo, afastou-se do corpo.
—Bom dia, senhor. —Tinha um semblante muito pálido.
—Bom dia, agente—respondeu Pitt. Não recordava seu nome, se é que alguma vez o
tinha sabido. Olhou para Susannah—. Que hora era quando a acharam?
—Por volta das três e meia, senhor. A pleamar tinha sido um pouco antes das três,
conforme diz esse barqueiro. Suponho que eles foram os primeiros que passaram por esta
parte do rio depois que a água a jogara na margem, pobre mulher. Não é um suicídio,
senhor. A pobre foi estrangulada, disso não há dúvida. —Falava com aspecto triste e muito
solene para seus vinte e poucos anos.
Tinha a ronda atribuída nas margens do rio e aquele não era o primeiro cadáver que
via, nem a primeira mulher, mas era talvez a primeira que via vestida com roupa tão
elegante e que tinha, como pudera comprovar quando lhe afastaram o cabelo, um rosto tão
apaixonado e vulnerável.
Pitt se ajoelhou para olhá—la com maior atenção. Viu em seu pescoço as
inconfundíveis marcas arroxeadas de uns dedos, mas, a julgar pela falta de machucados e
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de inchaço no rosto, pensou que talvez tivesse morrido pela ruptura do pescoço e não por
asfixia.
Não é que fosse um consolo, absolutamente, mas o fato de não vê—la desfigurada
aliviava a dor.
Possivelmente tinha sofrido breves segundos. Aferraria-se a aquela convicção
enquanto pudesse.
—Não a tocamos, senhor— disse um dos barqueiros com nervosismo—. Só para nos
assegurar de que estava morta e de que não podíamos ajudá—la, pobre criatura. —Tinha
um conhecimento suficiente das circunstâncias que impulsionam às pessoas ao suicídio
para não as julgar.
Por ele as enterraria no cemitério e deixaria a decisão em mãos de Deus. Mas não
era homem que freqüentasse a igreja por convicção. Fazia isso só para agradar a sua
esposa.
—Obrigado—disse Pitt com expressão ausente, sem deixar de olhar para
Susannah—. Em que ponto do rio podem tê—la jogado para que tenha vindo parar aqui?
—Isso depende, senhor. A corrente é muito caprichosa. Sobretudo em um rio como
este, cheio de revoltas e redemoinhos. A maioria das vezes primeiro o corpo afunda,
depois volta para a superfície mais ou menos onde mergulhou. Mas se o atiraram durante
a mudança da maré, à água quero dizer, deslocaria-se mais acima do rio. Isso se a
atiraram de um barco.
Mas se a atiraram da margem, o mais provável é que fosse durante a subida da
maré, e então teria remontado o rio, de mais abaixo. Então dependeria de quando a
atiraram, mais que de onde, segue—me?
—Ou seja, a única coisa que sabemos com segurança é que estava aqui quando a
maré mudou, não?
—Pode ser que tenha razão —concordou o barqueiro—. Quando se joga um corpo à
água, varia muito o tempo que pode permanecer nela. Depende de se passar algo que
produza fluxo, ou de se topar com algo.
Às vezes ficam encalhados, ou são arrastados. Há correntes e redemoinhos com os
quais nem sempre conta. Talvez o doutor poderá dizer quanto tempo faz que está morta, a
pobre. Então poderemos lhe dizer mais ou menos onde a atiraram.
—Obrigado. —Pitt levantou os olhos para o Tellman—. Mandou chamar o carro
fúnebre?
—Sim, senhor. Está esperando no Trinity Square. Não queria despertar mais
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falatórios—respondeu Tellman sem olhar aos barqueiros.
Se não sabiam quem era a vítima, muito melhor. A notícia já se difundiria o bastante
depressa. E para o Chancellor seria uma forma terrível de conhecê—la, ou para quem quer
que lhe tivesse tido afeto.
Pitt se endireitou deixando escapar um suspiro. Ele diria ao Chancellor pessoalmente.
Conhecia-o e Tellman não. Além de que não era um dever que pudesse delegar-se.
—Faça que venha até aqui e que a levem para que lhe façam o exame legista. Tenho
que me informar disto o antes possível.
—Sim, senhor, é claro. —Tellman olhou uma vez mais para Susannah e se voltou
para o barco, com uma careta de desgosto.
Ao cabo de uns minutos Pitt partiu também. Subiu as Escadas da Rainha e caminhou
devagar pelo Great Tower Hill. Viu-se obrigado a chegar até o East Cheap para poder
achar uma carruagem de aluguel.
A manhã começava a nublar-se pelo norte e agora havia mais gente pela rua. Um
moço vendedor de jornais proclamava aos quatro ventos certos problemas do governo. Um
porta—voz tomava seu café da manhã matutino em um posto ambulante enquanto
estudava as notícias do dia e se preparava para compor seus versos.
Dois homens saíram de uma cafeteria encetados em uma animada discussão. Foram
procurando uma calesa, mas Pitt se adiantou ante sua consternação.
—A Berkeley Square, por favor —ordenou ao condutor antes de subir à carruagem. O
cocheiro fez um gesto de assentimento e partiu. Pitt se reclinou no assento e tratou de
formar uma composição mental do que ia dizer.
Era inútil, como esperava. Não havia forma razoável de irromper com uma notícia
como aquela, nem de suprimir a dor que ia produzir, nem sequer de mitigá—la. Só podia
ser simples e inequivocamente uma notícia terrível.
Tentou pensar ao menos que perguntas faria ao Chancellor, mas isso tampouco lhe
serviu de muito.
Fosse o que fosse que decidisse naquele momento, teria que voltar a expor o assunto
uma vez comprovasse qual era o estado de ânimo do Chancellor, até que ponto era capaz
de manter a serenidade suficiente para responder a algum tipo de pergunta. A dor afetava
às pessoas de forma muito diferente.
Em alguns casos a comoção era tão profunda que não se manifestava a princípio.
Eram pessoas que podiam aparecer calmas durante dias, até que a dor podia com elas.
Outras eram presas da histeria, sentiam-se rasgadas por uma raiva impotente, ou
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eram incapazes de fazer outra coisa que chorar sem poder pensar em nada coerente salvo
na perda que acabavam de sofrer.
—Que número, senhor? —o cocheiro interrompeu seus pensamentos.
—O dezessete, acredito.
—A casa do senhor Chancellor?
—Isso.
O cocheiro parecia querer acrescentar algo mais, mas mudou de idéia e fechou a
cobertura do teto.
Ao cabo de um momento Pitt se apeou, pagou-lhe e permaneceu imóvel no degrau
da entrada, estremecendo a pesar do sol da manhã. Eram já mais de sete.
Por toda a praça se viam criadas ocupadas tirando os tapetes para os sacudir e
varrê—los, e moços e lacaios que iam de um lado a outro em cumprimento de seus
encargos.
Também havia alguns distribuidores mais madrugadores com suas carruagens e
vendedores de ruas que entregavam os jornais às moças para que os arrumassem e
pudessem apresentar—los aos senhores da casa durante o café da manhã antes de sair
para atender suas ocupações diárias no centro da cidade.
Pitt tocou à campainha da entrada.
Quase imediatamente lhe abriu um lacaio que pareceu muito surpreso de ver alguém
que batia na porta principal à uma hora tão matutina.
—Sim, senhor?—disse com educação.
—Bom dia. Meu nome é Pitt. —Tirou um cartão de visita—. Preciso ver
imperiosamente ao senhor Chancellor agora mesmo. É por um assunto inadiável. Diga-lhe
assim, por favor.
O lacaio tinha trabalhado durante um tempo para um ministro do gabinete, razão pela
qual não estava desabituado a assuntos de extrema emergência.
—Sim, senhor. Se tiver a amabilidade de esperar na saleta, informarei ao senhor
Chancellor de que está aqui.
Pitt hesitou uns instantes.
—Sim, senhor? —interessou-se o lacaio com educação.
—Sinto ser portador de uma notícia terrivelmente grave. Talvez quisesse avisar
primeiro ao mordomo.
O lacaio empalideceu.
—Como não, senhor, se assim acha necessário.
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—Está o mordomo do senhor Chancellor muito tempo com ele?
—Sim, senhor, uns quinze anos.
—Então, por favor, chame a ele primeiro.
—Sim, senhor.
Ao cabo de uns momentos chegou o mordomo, com aspecto alterado. Fechou a porta
da saleta atrás dele e olhou ao Pitt com o cenho franzido.
—Sou Richards, senhor, o mordomo do senhor Chancellor. Entendo pelo que diz
Albert que aconteceu algo grave. Trata-se de algum dos cavalheiros do Ministério de
Colônias? Ocorreu algum acidente?
—Não, Richards. Temo que é algo muito pior—disse Pitt com calma e com um tom de
aspereza na voz—. Lamento ter que dizer que a senhora Chancellor faleceu de forma
violenta. —Não acrescentou nada mais. O mordomo cambaleou como se fosse desmaiar.
Sua pele perdeu todo rastro de cor.
Pitt se apressou a segurá—lo e o fez retroceder até uma cadeira.
—Sinto muito, senhor —ofegou Richards—. Não sei o que me passou. Eu... —Olhou
ao Pitt com olhos suplicantes—. Tem certeza, senhor? Não terá havido alguma confusão,
um engano de identificação? —Apesar de suas palavras, seu rosto refletia que sabia que
não era assim. Quantas mulheres havia em Londres que pudessem parecer-se com
Susannah Chancellor?
Pitt não respondeu à pergunta. Não havia necessidade.
—Pensei que seria prudente tê—lo convenientemente perto quando der a notícia ao
senhor Chancellor—disse Pitt com amabilidade—. Talvez pudesse ter uma garrafa
preparada de brandy.
E poderia ocupar-se de que não receba visitas e comunicados até que não se sinta
capaz de lhes fazer frente.
—Sim. Sim, é claro. Obrigado, senhor. —E com passo ainda cambaleante e inseguro,
Richards saiu da habitação.
Linus Chancellor chegou ao cabo de uns minutos, com passo impaciente e uma
decisão no olhar que sobressaltou ao Pitt.
Deu-se conta de que Chancellor esperava que lhe traria notícias relacionadas com a
informação que estava sendo subtraída da África. Ao ver o intenso interesse que
expressavam seus olhos se deu conta também, se é que tinha albergado alguma dúvida,
de que Chancellor era inocente de toda cumplicidade.
—Sinto muito, senhor. Trago notícias muito graves— disse antes quase que
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Chancellor tivesse fechado a porta. Não podia suportar que se prolongasse o equívoco.
—Trata-se de algum de meus superiores?—perguntou Chancellor—. Lhe agradeço
que tenha vindo a me dizer isso em pessoa. De quem se trata? Do Aylmer?
Pitt seguia tendo frio apesar do calor da sala e do sol que brilhava já no exterior.
—Não, senhor. Lamento ter que lhe dizer que estou aqui pela senhora Chancellor. —
Viu a surpresa refletir-se no rosto do Chancellor e não esperou mais—.Lamento
profundamente, senhor, mas tenho que lhe comunicar que faleceu.
—Que faleceu? —Chancellor repetiu a palavra como se não conhecesse seu
significado—. Mas se estava perfeitamente ontem à noite. Saiu e voltou e se dirigiu para a
porta—. Richards?
O mordomo apareceu imediatamente, com uma bandeja com uma garrafa de brandy,
uma taça e o rosto branco como o papel.
Chancellor se voltou para o Pitt, e logo depois de novo para o mordomo.
—Viu você à senhora Chancellor esta manhã, Richards?
Richards olhou ao Pitt sem saber o que dizer.
—Senhor Chancellor, não há possibilidade de dúvida— disse Pitt com suavidade. —
Acharam-a na Torre de Londres.
—Na Torre de Londres? —repetiu Chancellor com incredulidade. Abria os olhos com
desmesurado ceticismo e um olhar que parecia próxima à hilaridade, como se aquela idéia
era muito absurda para ser verdadeira.
Pitt tinha enfrentado a comportamentos histéricos em outras ocasiões. Era algo que
cabia dentro do possível.
—Por favor, sente-se, senhor—lhe rogou—. Vai ser duro.
Richards depositou a bandeja e lhe ofereceu uma taça de brandy.
Chancellor a pegou e a bebeu de um gole, depois do qual lhe sobreveio um forte
acesso de tosse que durou uns segundos, até que conseguiu recuperar-se.
—O que foi que aconteceu?—perguntou pronunciando lentamente e com voz
hesitante—.
O que podia estar fazendo na Torre de Londres? Saiu para ir visitar
Christabel Thorne. Sei que Christabel é excêntrica, mas, a Torre de Londres? Pelo amor
de Deus, pode-se entrar nessas horas da noite?
—É possível que ela e a senhora Thorne fossem dar um passeio pelo rio? —
perguntou Pitt, embora fosse um pouco estranho que duas mulheres sós decidissem fazer
algo assim.
Acabariam encontrando também o corpo do Christabel em algum outro lugar da
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ribeira do rio?
—A que se refere? Um acidente em barco?—perguntou Chancellor dúbio—. Sugeriu
isso a senhora Thorne, acaso?
—Ainda não falamos com ela. Não sabíamos que a senhora Chancellor tivesse
estado com ela. Mas não se trata de um acidente, senhor. Sinto—o seriamente, muito
temo que foi assassinada. O único consolo que posso lhe oferecer é que deve ter sido
muito rápido. É improvável que sofresse.
Chancellor ficou olhando-o, imóvel, primeiro lívido, depois vermelho pela congestão.
Parecia a ponto de afogar-se por falta de ar.
Richards lhe ofereceu outra taça de brandy e a bebeu. O rosto foi perdendo a violenta
coloração até adotar um aspecto doentio.
—E Christabel? —sussurrou sem deixar de olhar fixamente ao Pitt.
—Até o momento não sabemos nada dela, mas faremos indagações, claro.
—Onde... onde acharam a minha mulher? —Chancellor tinha dificuldade em achar as
palavras.
—Na Porta dos Traidores. Em uma rampa que desce até a água.
—Já sei, já sei! Conheço o lugar, superintendente. Vi—o muitas vezes. Já sei o que
é. —Engoliu em seco uma vez mais—. Obrigado por vir você mesmo me dizer isso Deve
ser uma de suas tarefas mais desagradáveis. Aprecio que tenha vindo em pessoa.
Suponho que estará encarregado do caso?
E agora, se não se importar, preferiria estar só. Richards, informe por favor ao
Ministério de Colônias de que não irei esta manhã.
Da casa do Linus Chancellor, Pitt se dirigiu caminhando a do Jeremiah Thorne.
Cruzou a praça e percorreu Mount Street até o final, para logo caminhar para o norte
pelo Upper Brook Street. Demorou menos de vinte minutos em chegar à porta principal e
tocar à campainha. O coração lhe pulsava com força como se tivesse percorrido duas
vezes a mesma distância. Notou a língua seca.
Respondeu à chamada um lacaio que lhe perguntou pelo que lhe trazia até ali. Ao lhe
apresentar seu cartão, o criado conduziu—o à biblioteca e pediu que esperasse. Iria
perguntar se a senhora Thorne estava em casa. Àquelas horas da manhã parecia uma
desculpa ridícula.
Dificilmente podia não saber se ela estava em casa, mas tinha sido instruído para
que usasse sempre as mesmas fictícias fórmulas de cortesia antes de deixar entrar
qualquer visita. Se esta era inconveniente, ou se seus senhores não desejavam ver
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ninguém, não podia voltar e dizer-lhe com tal franqueza.
Pitt esperava em tal estado de tensão que foi impossível sentar-se nem ficar sequer
de pé no mesmo lugar. Ficou a caminhar de um lado para outro. Uma das vezes, sem
reparar nos objetos que lhe rodeavam, golpeou-se os dedos ao voltar— se na borda de
uma mesa esculpida.
Deu-se conta de que se fizera mal, mas só vagamente. Aguçava o ouvido à espera
de escutar um som de passos. Ao passar uma das criadas se dirigiu à porta e esteve a
ponto de abri—la de repente, quando percebeu o absurdo de seu comportamento.
Logo ouviu uma risada sufocada e a resposta de uma voz masculina. Era uma
simples cena de paquera doméstica.
Estava ainda perto da porta quando entrou Christabel. Levava um vestido cinza claro
e tinha um aspecto muito saudável, embora seu humor não fosse tão bom. Mas a
curiosidade o mantinha sob controle, ao menos em enquanto não tivesse elucidado a
razão de uma visita àquelas horas.
—Bom dia, superintendente—disse com frieza—. Alarmou a meu lacaio com tanta
insistência por falar comigo. Espero que tenha uma razão que a justifique. É uma hora
realmente inoportuna para fazer uma visita.
Pitt estava muito afetado para responder com rudeza. Tinha acontecido uma tragédia
autêntica. Na mente retinha ainda a imagem do rosto de Susannah enquanto esta jazia no
meio do silêncio da Porta dos Traidores, com a água do rio lhe cobrindo os pés.
—Sinto um enorme alívio de ver que está bem, senhora Thorne.
Houve algo na gravidade de seu rosto que a assustou. Sua atitude mudou de repente
por completo e sua irritação desapareceu.
—Do que se trata, senhor Pitt? aconteceu algo?
—Sim, senhora. Lamento profundamente ter que lhe comunicar a morte da senhora
Chancellor, esta mesma noite. O senhor Chancellor achava que estava com você, por isso
como é natural vim imediatamente para comprovar que não estivesse você...
—Susannah? —Pareceu alterar-se extremamente, enquanto o olhava com seus
enormes olhos, perdida toda arrogância—. Susannah está morta? —Deu um passo atrás,
e logo outro até que tocou a cadeira que tinha detrás e se deixou cair nela—. Como? Se
temia você também por mim é que foi uma morte violenta?
—Sim, senhora Thorne. Receio que a assassinaram.
—Oh, santo Deus! Cobriu o rosto com as mãos e permaneceu sentada sem mover
uns instantes.
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—Posso ir avisar a alguém? —ofereceu-se Pitt.
Ela ergueu a vista.
—O que? Oh… não, não, obrigada. Minha pobre Susannah. Como aconteceu? Pelo
amor de Deus, onde estava para que tenham podido...? A agrediram? Atracaram—na?
—Ainda não sabemos. Encontraram—na no rio, a água a tinha jogado à margem.
—Estava afogada?
—Não. Estrangularam—na, com tanta violência que pode ser que lhe rompessem o
pescoço. Provavelmente foi muito rápido. Sinto muito, senhora Thorne, mas como o senhor
Chancellor achava que tinha vindo visitá—la, devo lhe perguntar se a viu ontem à noite.
—Não. Jantei em casa, mas Susannah não veio aqui. Devem tê—la agredido antes
de que pudesse... —Deixou escapar um suspiro e um ligeiro sorriso, como uma sombra
triste, desenhou-se em seus lábios—. Quer dizer, se é que tinha intenção de vir, claro.
Possivelmente fosse a algum outro lugar. Não acredito que seja lógico supor que
fosse aqui aonde pensasse vir. Embora tampouco, acredito que tivesse uma entrevista.
Estava muito apaixonada pelo Linus para considerar tal coisa provável.
—Não disse "possível", senhora Thorne— se apressou a observar Pitt.
Levantou-se da cadeira e se voltou para olhar pela janela, dando as costas ao Pitt.
—Não. Não há muitas coisas que sejam impossíveis, superintendente. Isso é algo
que alguém aprende quando vai fazendo-se maior.
A união entre pessoas nem sempre é o que se supõe que deveria ser, e mesmo que
ama a uma pessoa, isso não quer dizer necessariamente que tenha que se comportar de
uma maneira que todo mundo vá entender.
—Diz isso em geral, ou tem à senhora Chancellor em mente?—perguntou Pitt com
tranqüilidade.
—A verdade é que não sei. Mas Linus não é um homem fácil. É engenhoso,
encantador, bonito, ambicioso e tem sem dúvida um enorme talento. Mas me perguntei
sempre se era capaz de amá—la tanto como amava a ele.
Já sei que não há muitos matrimônios cujos dois membros se amem o um ao outro na
mesma medida, isso só passa nos contos de fadas.—seguia dando as costas ao Pitt e pelo
tom de voz deixava entender que lhe era indiferente se este a compreendia ou não—. Nem
todo mundo é capaz de dar o mesmo.
Em geral uma das partes tem que transigir e aceitar o que há, e, além disso, não
deixar-se levar pelo ressentimento ou solidão. Isso passa, sobretudo com mulheres
casadas com homens poderosos e ambiciosos.
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Susannah era bastante inteligente para saber esta realidade, e acredito que também
era bastante prudente para não lutar contra isso e perder o que tinha, que acredito que era
muito.
—Mas a você não parece impossível que tivesse encontrado um amigo ou um
admirador.
—Impossível não, superintendente, mas sim improvável. —voltou-se para ele—.
Apreciava muito Susannah, senhor Pitt. Era uma mulher inteligente, valente e muito
íntegra. Amava a seu marido, mas nem por isso deixava de ser capaz de falar e atuar por
si mesma. Não estava dominada.
Tinha caráter, desprendia paixão, sabia rir — de repente os olhos se encheram de
lágrimas, que começaram a cair por suas faces. Ficou imóvel, chorando sem levantar a
vista, imersa em uma dor profunda e dilaceradora.
—Lamento—o muito— disse Pitt antes de dirigir-se para a porta. No vestíbulo se
encontrou com Jeremiah Thorne, com aspecto surpreso e algo nervoso.
—Que demônios está fazendo aqui?—perguntou-lhe.
—A senhora Chancellor foi assassinada—replicou Pitt sem preâmbulos—. Tinha
razões para temer que sua esposa tivesse sofrido também algum dano.
Congratula—me que não seja assim, mas está muito penalizada e necessita afeto. O
senhor Chancellor não irá hoje ao Ministério de Colônias.
Thorne ficou uns segundos olhando-o, compreendendo mal o que acabava de
escutar.
—Sinto muito —repetiu Pitt.
—Susannah? —Thorne parecia agora surpreso. Não cabia engano na realidade de
sua emoção—. Tem certeza? Sinto muito, que pergunta tão absurda. Certamente que o
está, do contrário não teria vindo aqui.
—Mas como? Por que? O que aconteceu? Por que, no nome de Deus, pensou você
que Christabel estava relacionada? —Escrutinou o rosto do Pitt como se tivesse podido ver
nele alguma resposta mais imediata que as palavras.
—O senhor Chancellor achava que sua esposa tinha intenção de visitar ontem à noite
à senhora Thorne— respondeu Pitt—. Mas ao que parece não chegou a vir.
—Não! Não a esperávamos.
—Isso me disse a senhora Thorne.
—Santo céu, é espantoso! Pobre Susannah. Era uma das mulheres mais adoráveis
que conheci, adorável no verdadeiro sentido da palavra, Pitt.
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Não estou pensando em seu rosto, mas no espírito que iluminava seu interior, a
paixão, a coragem, o coração.
Desculpe-me, volte mais tarde e pergunte tudo o que quiser, mas agora devo ir com
minha mulher. Sentia um grande afeto por Susannah —E sem acrescentar nada mais se
voltou para a biblioteca, deixando que Pitt encontrasse ele sozinho a saída.
Era ainda muito cedo para esperar que houvesse alguma informação do legista.
Mal acabaria de receber o cadáver. As provas materiais eram escassas. Tal como
havia dito o barqueiro, era possível que a tivessem jogado à água corrente acima, depois
da maré mudar por volta das duas e meia, e logo se viu arrastada águas abaixo; mas
também era possível que a tivessem atirado mais abaixo, de onde a acharam e que a
enchente da maré a tivesse levada águas acima, até que ao mudar a vazante da maré o
corpo teria ficado onde o acharam.
Mas, igualmente verossímil que qualquer destas duas possibilidades era que a
tivessem atirado virtualmente onde a acharam. Mais abaixo da Torre só havia Wapping,
Rotherhithe, Limehouse, os Surrey Docks e a ilha dos Cães.
Deptford e Greenwich estavam muito longe para que tivesse podido remontar o corpo
no breve lapso de tempo antes da passagem do fluxo à vazante. Que demônios poderia
estar fazendo Susannah Chancellor em quaisquer daqueles lugares?
Rio acima havia lugares mais verossímeis: a Ponte de Londres, Blackfriars, Waterloo;
inclusive Westminster não estava muito longe. Estava falando de vários quilômetros. Claro
que o mais provável é que a atirassem de alguma ponte ou da margem norte, por quanto
era nesse lado onde a tinha jogado a água.
Parecia-lhe impossível por outro lado que o fato tivesse acontecido onde a acharam,
na Torre de Londres. O que podia estar fazendo ela ali? Nem tampouco lhe parecia
provável que tivesse sido nas vizinhanças. Ali só havia o mole do Customs House em uma
margem e St. Catherine"s Docks na outra.
O melhor seria averiguar primeiro a que hora saiu de sua casa em Berkeley Square, e
em que meio de transporte. Ninguém tinha mencionado se tinha utilizado alguma
carruagem própria; deviam ter uma, no mínimo.
Onde a tinha deixado o cocheiro? Era concebível que a tivesse matado algum de
seus próprios criados? Era incapaz de imaginar mas era uma possibilidade que devia
eliminar igual às demais.
Levava já um bom trecho de caminho retrocedido para Berkeley Square e ao cabo de
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uns poucos minutos mais chegou de novo ao número dezessete. Desta vez preferiu ir
pelas escadas de serviço em lugar de incomodá—los batendo na porta principal.
Abriu-lhe um entregador, um moço com o rosto muito branco e assustado.
—Hoje não queremos comprar nada— disse de sopetão—. Volte outro dia. —E fez
gesto de fechar a porta.
—Sou policial— lhe disse Pitt com tranqüilidade—. Necessito que me deixe entrar. Já
sabe o que se passou. Meu dever é descobrir quem o fez, assim tem que me dizer tudo o
que saiba.
—Eu não sei nada!
—Não sabe a que hora saiu a senhora Chancellor de casa?
—Quem é, Tommy? —ouviu-se uma voz masculina às costas do moço.
—É um policial, George.
A porta se abriu de par em par e apareceu um criado com o braço direito em tipóia
que olhou ao Pitt com suspicácia.
Pitt lhe entregou seu cartão de visita.
—Será melhor que entre— disse o homem com reservas—. Embora não sei o que
podemos lhe dizer.
O menino se fez a um lado para deixar passar ao Pitt. A copa estava repleta de
verduras, potes e cestas. Uma criada jovenzinha, com os olhos avermelhados, levava o
avental na mão.
—O senhor Richards está ocupado—continuou o homem, enquanto conduzia ao Pitt
através da cozinha até a despensa do mordomo—. E os lacaios estão no vestíbulo
principal. As criadas estão muito alteradas para atender à porta.
Pitt tinha dado por sentado que aquele criado era um lacaio, mas pelo visto se
equivocara.
—Quem é você?—perguntou.
—George Bragg, o cocheiro.
Pitt lhe olhou o braço.
—Quando se fez isso?
—Ontem à noite. —Sorriu com amargura—. Não tem importância, escaldei—me.
Curará-se logo.
—Então, não levou você à senhora Chancellor quando ela saiu ontem à noite?
—Não, senhor. Pegou uma calesa. O senhor Chancellor a acompanhou a procurá—
la. Ela ia demorar para voltar e o senhor Chancellor tinha idéia de sair também mais tarde,
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com a carruagem.
—Só têm uma carruagem? —surpreendeu-se Pitt. Carros, cavalos e librés e arreios
em geral eram sinal de status social. A maioria da gente procurava manter quantos mais
melhor, e da maior qualidade possível, embora muitas vezes fosse a custa de endividar-se.
—Oh não, senhor—se apressou a dizer Bragg—. Mas a senhora Chancellor não tinha
planejado sair, assim não tínhamos a carruagem grande preparada, e o senhor Chancellor
queria levar o landaou mais tarde. A senhora ia deslocar se pouco mais de um quilômetro,
eu acredito que se tivesse sido de dia teria ido a pé.
—Assim saiu já de noite?
—Oh sim, senhor. Por volta das nove e meia, diria eu. E parecia que fosse chover.
Mas Lily a viu quando partiu, ela o poderá dizer com mais exatidão. Se pode dominar-se,
claro está. Tinha muito carinho à senhora Chancellor, está em um estado lamentável.
—Se pudesse ir procurá—la, por favor —pediu Pitt.
George deixou ao Pitt só para ir fazer o que lhe pediam e esteve ausente quase um
quarto de hora, até que voltou em companhia de uma jovem com o rosto congestionado e
os olhos inchados, que teria uns dezoito anos e que estava visivelmente transtornada.
—Bom dia, Lily —saudou Pitt—. Sente-se, por favor.
Lily estava tão pouco habituada a que lhe pedissem que se sentasse em presença de
superiores, que não compreendeu a ordem.
—Sente-se, Lily. —George a empurrou com suavidade para que se sentasse em uma
cadeira.
—Lily, George diz que você viu à senhora Chancellor ontem à noite quando saiu de
casa—começou Pitt—. É assim?
—Sim, senhor —gemeu ela.
—Pode me dizer que hora era?
—Por volta das nove e meia, senhor. Não sei com exatidão.
—Me conte como foi.
—Eu estava no patamar do primeiro piso, acabava de abrir as camas, e vi a senhora
cruzar o vestíbulo e dirigir-se à porta principal. —Engoliu em seco. Levava a capa azul que
tanto gostava. Vi—a sair pela porta da rua.
Essa é toda a verdade. Juro— o. —ficou a chorar outra vez, em silêncio e com uma
atitude surpreendentemente digna.
—É a hora habitual em que abre as camas, às nove e meia?
—Sim, sim senhor.
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—Obrigado. Não preciso incomodá—la mais. Oh! só outra coisa. Você viu a senhora
Chancellor. E ao senhor Chancellor? Viu—o também?
—Não, senhor. Devia ter ido já.
—Já. Obrigado.
A jovem ficou de pé com uma pequena ajuda por parte do George e saiu da copa,
fechando a porta atrás dela.
—Precisa ver alguém mais, senhor?—perguntou o cocheiro.
—Você disse que o senhor Chancellor saiu mais tarde.
—Sim, senhor.
—Mas não o levou você? —Pitt olhou o braço na tipóia.
—Não, senhor. Machuquei o braço antes de que ele partisse, em realidade acabava
de me machucar. O senhor Chancellor conduziu ele mesmo. Sabe dirigir muito bem um
veículo ligeiro.
Dirige o landau sem nenhum problema, e como tinha pedido que dispuséramos os
arreios, a carruagem estava já preparada.
—Compreendo. Obrigado. Sabe a que hora retornou?
—Não, senhor. Mas volta tarde muitas vezes. As reuniões do gabinete e demais
podem prolongar-se às vezes até altas horas da noite, sobretudo quando há problemas no
governo E quando não os há?
—Certamente. Obrigado, acredito que não preciso lhes perguntar nada mais, ao
menos no momento. A não ser que você tenha algo que me dizer que pense que possa ser
de utilidade.
—Não, senhor. É a coisa mais terrível que jamais ouvi. Não sei o que pôde acontecer.
—Tinha uma expressão penalizada e confusa.
Pitt partiu com a mente cheia de dúvidas e de especulações desagradáveis.
Caminhava pelo Bruton Street imerso em seus pensamentos. Susannah havia dito a
seu marido que ia se ver o Christabel Thorne, mas ao que parecia não era verdade; a não
ser que alguém lhe saísse ao passo no percurso pelo Mount Street, no intervalo dos dez
minutos seguintes depois de sair de sua casa.
Mas por que mentir, a menos que fosse fazer algo que não queria que ele soubesse?
Aonde se propunha ir, e com quem, para sentir-se inclinada a mantê—lo em segredo?
Era possível que soubesse quem era o traidor no Ministério de Colônias? Ou que o
suspeitasse ao menos? Era concebível que fora ela mesma a traidora e que tirasse a
informação ao Chancellor sem seu conhecimento? Trazia—se este documento a casa e
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tinha encontrado ela a forma de vê-los?
Ou talvez tivesse ele por costume discutir tais assuntos com ela, cuja família era tão
importante no setor dos bancos? Sairia pois ela com intenção de dirigir-se à embaixada
alemã? E nesse caso, quem a tinha abordado? Quem a tinha interceptado entre Berkeley
Square e Upper Brook Street e a tinha levado até a margem do rio para matá—la? Tinha
que ser alguém que estivesse esperando—a, se fosse isso verdade.
Ou tinha que procurar uma explicação mais simples e comum, como uma entrevista
com um amante? Christabel Thorne tinha manifestado suas dúvidas a respeito, mas não o
tinha considerado impossível. Era isso o que havia entre Susannah e Kreisler, e todas as
discussões a respeito da África não tinham senão uma importância secundária, para não
dizer nenhuma? Era o sentimento de culpa a emoção que a atormentava?
Mas por que o condutor da calesa alugada não tinha ido à polícia? Sem dúvida o faria
uma vez saíssem os jornais à rua e difundissem por toda Londres a notícia do
descobrimento do cadáver.
Seria só questão de umas horas. As primeiras edições já a teriam e à hora do
almoço as crianças vendedoras de jornais a proclamariam gritando.
Fazia um dia claro, a gente sorria à luz do sol, viam-se mulheres passeando com
seus vestidos de musselina e renda e os guarda—sóis abertos, e os arreios das
carruagens reluziam, mas Pitt não se dispunha de nada de todo aquilo enquanto
caminhava, com a cabeça encurvada, para Oxford Street.
Era imaginável inclusive que todo aquilo tivesse algo que ver com o Círculo Interior?
Ela conhecia Sir Arthur, por quem parecia haver sentido uma grande admiração.
Era possível que soubesse algo relacionado com a morte deste? Era esse o segredo
que a perturbava, alguma espantosa suspeita finalmente confirmada?
Se fosse assim, de quem se tratava? Do Chancellor não. Pitt estaria disposto a jurar
que Chancellor não era membro. E Thorne? Susannah era amiga íntima do Christabel.
Haveria sentido que estava traindo uma relação muito querida para ela, mas ao
mesmo tempo se haveria sentido igualmente incapaz de guardar silêncio ante um
assassinato.
Não seria estranho em tal caso que Charlotte houvesse dito que Susannah tinha uma
expressão atormentada.
Duas mulheres jovens passaram junto a ele, rindo e lhe roçando os pés com suas
saias. Pareciam sair de outro mundo.
Estava Christabel inteirada de algo? Ou havia dito a verdade ao assegurar que
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Susannah não tinha estado em sua casa? Talvez não tivesse a menor idéia de que o
marido que tão apegado parecia com ela era capaz de matar sua amiga para evitar que
pudesse pôr em perigo ao Círculo.
Como poderia suportá—lo quando se visse obrigada a enfrentar à verdade?
Era Jeremiah Thorne, a sua maneira, outra vítima mais do Círculo Interior, destruído
por um pacto acordado na ignorância, se não na inocência, um homem que não se atrevia
a ser sincero consigo mesmo por medo a perder… o que, a posição, o status social, o
crédito financeiro, a vida?
Em Oxford Street alugou uma calesa e deu ao cocheiro o endereço da delegacia de
polícia do Bowl Street. O legista teria feito ao menos um informe preliminar, com o
momento estimado da morte. Além disto, tinha que ver o Farnsworth.
Empregou o trajeto em considerar quais eram os seguintes passos que devia dar. ia
ser uma investigação difícil. Não é tão fácil indagar a respeito da esposa de um ministro do
gabinete, e um dos mais populares, por certo. As pessoas fariam elucubrações sobre o
que tinha acontecido, a partir de crenças básicas que não quereriam ver questionadas.
As emoções estariam a flor da pele. ia converter se em um alvo fácil, alguém sobre
quem carregar a dor e a ira, e o medo subseqüente.
Se era possível assassinar à esposa de um ministro do gabinete, em uma calesa em
pleno Mayfair, quem estava a salvo?
Quando se apeou no Bowl Street tinham saído já à venda as últimas edições dos
jornais e um moço gritava com voz clara e penetrante:
—Extra! Extra! Crime horrendo! Esposa de ministro! A esposa do Linus Chancellor
assassinada na Torre de Londres! Extra! Extra! —Baixou o tom de voz—. Né, senhor Pitt.
Quer um? Está tudo aqui!
—Não, obrigado —recusou Pitt—. Se sair algo que eu não sei, então é mentira. —E
enquanto o moço ria com um risinho infantil, subiu as escadas e entrou na delegacia de
polícia.
Farnsworth estava já dentro, com rosto tenso e um aspecto menos imaculado que de
costume. Descia as escadas interiores no momento em que Pitt chegava ao pé das
mesmas.
—Ah, Pitt—disse Farnsworth ao vê-lo. — Estava esperando—o. Santo Deus, que
espanto! —mordeu o lábio—. Pobre Chancellor.
O secretário para as colônias mais brilhante que tivemos em muitos anos, quem sabe
se possível primeiro—ministro, e tinha que acontecer a ele. O que averiguou? —Deu meia
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volta e começou a subir as escadas para o escritório do Pitt.
Pitt seguiu—o e fechou a porta antes de responder.
—Saiu de sua casa por volta das nove e meia da noite acompanhada pelo
Chancellor, mas ele só esteve com ela até que alugou a calesa em que ela subiu.
Disse-lhe que ia visitar Christabel Thorne, no Upper Brook Street, a quinze minutos
da casa, no máximo. Mas a senhora Thorne diz que não chegou até ali e que, além disso,
não a esperavam.
—Isso é tudo?—disse Farnsworth com semblante sombrio. Permanecia de pé, de
costas à janela, mas mesmo assim podia ver-se que sua expressão era uma inconfundível
mescla de comoção e desespero angustiado.
—De momento, sim— respondeu Pitt—. Oh, segundo a criada que a viu partir, ao sair
de casa levava posta uma capa de cor azul que não se achou quando encontramos o
corpo.
É provável que a perdesse no rio. Se as águas a jogarem na borda em um lugar
diferente e a encontramos, pode ser que nos dê alguma pista sobre o lugar em que a
atiraram.
Farnsworth ficou uns momentos pensativo. Abriu a boca para dizer algo, mas
certamente adivinhou a resposta e se limitou a grunhir entre dentes.
—Suponho que pôde ser em qualquer lugar, segundo a maré.
—Sim, embora segundo os barqueiros do rio, a maioria das vezes o corpo sai à
superfície mais ou menos no lugar em que mergulhou.
Farnsworth fez uma careta de desagrado.
—O momento da morte pode ser que nos diga algo— prosseguiu Pitt—. Se foi a uma
hora suficientemente cedo, teve que ser bastante antes de que mudasse a maré.
—A que hora muda?
—Por volta das duas e meia.
—Que assunto tão espantoso! Suponho que não terá nenhuma idéia sobre o móvel.
Roubaram—na ou... —Fez um gesto de repulsa e renunciou a dizer com palavras a
segunda possibilidade.
Pitt nem sequer tinha considerado a idéia. Tinha a mente muito ocupada pelos
assuntos de traição, e pela lembrança do assassinato do Arthur Desmond.
—Não sei, senhor —confessou—. O legista nos dirá isso. Ainda não tenho seu
informe. É um pouco cedo.
—Um ataque?—disse Farnsworth com um vislumbre de esperança.
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—Tampouco sei. Quando a acharam levava um pendente com um pequeno estojo ao
redor do pescoço. Graças a isso, reconheceram—na. Não perguntei ao Chancellor se
levava algum outro objeto de valor.
Farnsworth franziu o sobrecenho.
—Não, possivelmente não. Pobre homem. Deve estar desolado. É terrível, Pitt! Por
todo tipo de razões devemos esclarecer este assunto o antes possível. —Avançou uns
passos afastando-se da janela—. Será melhor que deixe o assunto do Ministério de
Colônias em mãos do Tellman. Concentre-se neste. É espantoso. Simplesmente
espantoso. Não recordo um caso tão... tão horripilante desde... —
Guardou silêncio.
Pitt esteve a ponto de apontar: o outono do oitenta e oito e os crimes do Whitechapel,
mas não havia lugar. Não é possível comparar o horror.
—A menos que estejam relacionados —optou por dizer.
Farnsworth fez um gesto brusco com a cabeça.
—Como diz?
—A menos que a morte da senhora Chancellor tenha alguma relação com o assunto
de traição no Ministério de Colônias—se explicou.
Farnsworth olhou—o como se acabasse de proferir uma blasfêmia.
—Não é algo impossível—disse Pitt com tranqüilidade, olhando-o nos olhos—.
A senhora Chancellor poderia ter descoberto algo de forma acidental, sem ter
nenhuma culpa.
Farnsworth relaxou.
—Ou também seria muito possível que estivesse envolvida- acrescentou Pitt.
—Espero que tenha a suficiente inteligência para não dizer nada semelhante fora
daqui—disse Farnsworth com parcimônia—. Nem o menor sinal de havê-lo pensado
sequer.
—Certamente que a tenho.
—Confio em você para este assunto, Pitt. —Era quase uma pergunta e Farnsworth
ficou olhando-o fixamente com expressão suplicante—. Nem sempre aprovo seus
métodos, nem seus julgamentos de valor, mas resolveu você alguns dos casos mais
difíceis de Londres, em diferentes momentos.
Faça tudo o que esteja em sua mão. Não pense em outra coisa até que tudo isto
tenha concluído, compreendeu?
—Sim, é claro. —Não teria pensado em outra coisa, dissesse o que dissesse
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Farnsworth, coisa que certamente este sabia.
A discussão se viu interrompida por uma peremptória batida na porta. Um agente
apareceu no momento em que Farnsworth respondia.
—Sim?—disse Farnsworth com brusquidão.
O agente ficou um pouco confuso.
—Há uma dama que deseja ver o senhor Pitt, senhor.
—Pois lhe diga que espere!—replicou Farnsworth—. Pitt está ocupado.
—Não, senhor. Quero... quero dizer que se trata de uma dama de verdade. —O
agente não se movia—. Não me atreveria a lhe dizer isso, senhor. Não a viu.
—Mas pelo amor de Deus! Tem-lhe medo a uma mulher só porque lhe há dito que é
alguém importante? —uivou Farnsworth—. Vá-se e faça o que lhe disse!
—Mas senhor, eu... —Não pôde acabar a frase. Uma imperiosa voz a suas costas
liberou de seu sobressalto.
—Obrigada, agente. Se este for o escritório do senhor Pitt, eu mesma lhe direi que
estou aqui. —Ao cabo de um segundo a porta se abria de par em par e Vespasia olhava
fixamente ao Farnsworth com olhos cintilantes.
Tinha um aspecto esplêndido com suas sedas e rendas de cor crua, e com as
fabulosas pérolas que caíam sobre seu busto—. Não recordo ter a honra de lhe conhecer,
senhor—disse com frieza—.
Sou lady Vespasia Cumming—Gould.
Farnsworth respirou fundo e engoliu saliva com a desgraça de engasgar-se, o que lhe
provocou um inoportuno acesso de tosse.
Vespasia esperava.
—O subcomissário Farnsworth—disse Pitt por ele, com certa dificuldade por
dissimular tanto seu assombro como seu regozijo.
—Muito prazer, senhor Farnsworth. —Vespasia entrou no escritório passando junto a
ele e se sentou na cadeira que havia frente à escrivaninha do Pitt. Deixou seu guarda—sol,
com a ponta para baixo, sobre o tapete e esperou a que Farnsworth se recuperasse ou
partisse, ou, preferentemente, ambas as coisas.
—Veio para ver—me, tia Vespasia?—perguntou-lhe Pitt.
Olhou—o com frieza.
—Certamente. Por que outro motivo ia vir eu a um lugar tão infausto como este? Não
tenho por costume freqüentar as delegacias de polícia para me divertir, Thomas.
Farnsworth seguia com seus sofrimentos, ofegando em busca de fôlego e saltando-se
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o as lágrimas dos olhos.
—No que posso servi—la?—perguntou— Pitt a Vespasia enquanto tomava assento
atrás de sua escrivaninha, que não era outra que a preciosa escrivaninha de madeira de
carvalho com incrustações de couro verde do Micah Drummond.
Pitt estava muito orgulhoso de havê—la herdado.
—Em nada— respondeu ela, com um vislumbre de ternura em seus prateados
olhos—. Vim com o fim de te ajudar, ou pelo menos de te dar algo mais de informação,
sirva ou não de ajuda.
Farnsworth parecia incapaz de deixar de tossir. Continuava de pé no meio do
escritório, cobrindo seu desconsolado rosto com um lenço.
—Em relação ao que?—perguntou Pitt.
—Pelo amor de Deus, faz algo por este homem antes de que se afogue! —ordenou
Vespasia—. Não tem brandy, ou um pouco de água ao menos?
—Há uma garrafa de cidra no armário do canto —propôs Pitt.
Farnsworth fez uma careta de desgosto. Micah Drummond teria tido brandy. Para Pitt
era muito forte, além de que não gostasse absolutamente.
—Se... queira me desculpar —Farnsworth, entre ofegos, conseguiu por fim sair do
escritório.
—Sim, quero. —Vespasia inclinou a cabeça benévola e tão logo saiu Farnsworth se
voltou de novo para o Pitt—. É em relação com o assassinato de Susannah Chancellor,
claro está. Há alguma outra coisa que possa ocupar sua atenção esta manhã?
—Não. Não tinha pensado que você, naturalmente, teria ouvido já falar disso.
Vespasia não se incomodou em responder à observação.
—Vi—a anteontem à noite—disse com tom grave—. Não consegui escutar o que
dizia, mas estive observando—a e não pude evitar perceber que suas palavras
despertavam as mais vivas emoções.
—Com quem falou?
Olhou ao Pitt como se soubesse exatamente do que tinha ele medo. O rosto da
Vespasia expressava uma profunda lástima.
—Com o Peter Kreisler—respondeu.
—Onde teve lugar essa conversa?
—Em casa de Lady Rattray, no Eaton Square, durante um recital musical. Havia
cinqüenta ou sessenta pessoas, não mais.
—E viu o Kreisler e à senhora Chancellor? —insistiu Pitt com um sentimento de
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desgosto em seu interior—. Poderia me descrever esse encontro, com toda a precisão
possível?
Passou pelo rosto da Vespasia uma sombra de desaprovação, que desapareceu
imediatamente.
—Compreendo muito bem a importância da questão, Thomas. Não tenho intenção de
andar pelos ramos. Eu estava a uns três ou quatro metros deles, escutando só pela
metade a uma insuportável e tediosa conhecida que me falava de sua saúde. O que pouco
gosto. A ninguém interessa saber os detalhes dos achaques de outros.
Primeiro vi a senhora Chancellor. Estava falando muito séria com alguém cujo rosto
me tampava quase por inteiro uma palmeira exuberante plantada em um vaso. Aquele
lugar parecia uma selva, que horror.
Estava todo o momento esperando que me caísse um inseto de alguma árvore e me
penetrasse pelo pescoço. Não invejo nada essas jovenzinhas com seus enormes decotes!
—encolheu-se ligeirissimamente de ombros.
Pitt imaginava perfeitamente, mas não era o momento para esses comentários.
—O rosto de Susannah expressava uma profunda preocupação, quase angústiacontinuou Vespasia—. Compreendi que estava à beira de uma briga. Troquei de lugar para
poder ver com quem falava. Ele parecia lhe suplicar algo, mas ao mesmo tempo se
mostrava inflexível em sua postura. O curso da discussão se alterou e então parecia que
era ela a que adotava uma atitude suplicante.
Havia algo em seus gestos que denotava desespero. Mas a julgar por sua expressão,
não parecia capaz de abrandar a ele. Ao cabo de uns quinze minutos partiram. Ele parecia
agradado com o resultado da discussão. Ela estava desolada.
—Mas não tem alguma idéia de qual podia ser o objeto da conversa? — perguntou
Pitt, embora já soubesse qual ia ser a resposta.
—Nem a mais remota, e me nego a fazer especulações.
—Essa foi à última vez que viu a senhora Chancellor?
—Sim. E também a última que vi o senhor Kreisler— disse com desgosto. Sua
tristeza perturbou ao Pitt.
—Há algo que lhe dá medo? O que é?—perguntou-lhe com franqueza. As sutilezas
ou as evasivas não eram boas táticas para ter êxito com a Vespasia. Ela era capaz de ler
seu pensamento com notável exatidão.
—Dá—me medo a paixão do senhor Kreisler pela África. Nele, o que lhe parece bom
para sua amada África pesa muito mais que qualquer outra consideração e está por cima
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de qualquer outra coisa pela qual pudesse sentir fidelidade.
Não é uma qualidade que para Nobby Gunne deixasse ilesa. Conheci vários homens
em minha vida cuja devoção a uma causa podia justificar qualquer tipo de trato a outros
homens, pois tinham a firme convicção de que seu ideal era mais nobre que qualquer
indivíduo e estava acima destes. —Deixou escapar um suspiro e apoiou o guarda—sol em
sua saia—.
Todos esses homens tinham uma intensa vitalidade, um encanto que emanava da
fogosidade e o jogo de sua natureza. E tinham também uma grande habilidade para tratar
com outros, ao menos durante breve tempo, como se todo o ardor de seu espírito
estivesse ao alcance dos outros, do amor dos outros, se quiser.
Fui descobrindo invariavelmente que em seu coração havia uma grande frieza, uma
obsessão que se alimentava a si mesmo e que exigia sacrifícios sem devolução. Isso é o
que me dá medo, Thomas, não por mim, mas sim por Nobby. É uma grande pessoa, pela
qual sinto um grande afeto.
Não havia nada que dizer, honestamente não se podia fazer nenhuma recriminação.
—Espero que se engane. —Sorriu-lhe com afabilidade—. Mas lhe agradeço muito
que tenha vindo me contar isso. — Ofereceu-lhe a mão, mas ela se levantou sem aceitá—
la. Partiu com as costas reta e a cabeça erguida para a porta, que lhe abriu, e a
acompanhou pela escada até a rua, onde a ajudou a subir à carruagem que a esperava.
—Antes de cair à água, sem dúvida nenhuma— disse o legista tirando o lábio inferior
para fora e respirando profundamente. Elevou os olhos para o Pitt à espera de alguma
objeção. Era um homem de traços alongados e severos que tomava muito a sério as
tragédias de sua profissão—. Em favor do canalha que a assassinou terá que dizer que o
fez rápido. Há sinais de dois golpes muito fortes.
—Eu não as vejo!—interrompeu-lhe Pitt.
—Porque as tem na parte lateral da cabeça, tampadas pelo cabelo. Logo a
estrangulou com tal violência que lhe rompeu o osso— se tocou seu próprio pescoço—.
Morreu quase no ato. Duvido que sentisse nada mais que o primeiro dos golpes, e
possivelmente um instante de asfixia antes de que tudo tivesse acabado.
Embora continuassem estrangulando—a, ela já estava morta.
Pitt olhou—o com uma sensação de calafrio.
—Empregaram— muita violência, então?
—Com efeito. O assassino, ou tinha intenção de matá—la, ou estava em tal estado
de furor que não mediu sua própria força. O homem ao que busca é muito perigoso, Pitt.
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Ou está completamente desesperado e mata para roubar, até sem necessidade, já
que poderia ter evitado que gritasse sem lhe fazer o que lhe fez, ou é alguém que encerra
tanto ódio que este se manifesta de súbito em uma forma próxima à loucura, para não
dizer em loucura pura.
—Sofreu algum tipo de abuso?
—Céu santo, pois claro que sofreu um abuso! Como chama você a isso? —
Assinalou com a cabeça o corpo estendido sobre a mesa e coberto com um lençol—.
Se o que quer dizer é que se a violaram, não seja tão condenadamente pacato. Por
Deus, não suporto os eufemismos! Seja honesto com a vítima e chame o crime por seu
verdadeiro e horrendo nome. Não, não a violaram.
Pitt deixou escapar um suspiro de alívio. Até aquele momento não se dera conta de
que isso lhe importasse tanto. Sentiu como lhe relaxavam um pouco os músculos dos
ombros e como diminuía parte de sua aflição interna.
—A que hora morreu? Pode precisá—lo?
—Não tanto para que possa lhe servir de muita ajuda— respondeu o legista soprando
pelo nariz—. Entre as oito e às doze da noite, diria eu.
O fato de que a jogassem no rio supõe uma dificuldade acrescentada. A água está
muito fria, até nesta época do ano. O frio se confunde com o rigor mortis. Se por acaso
fosse pouco!
Porque há outra coisa mais — Franziu o cenho e olhou ao Pitt com expressão de
perplexidade—. Encontrei umas estranhas marcas em seu corpo, muito tênues, ao redor
dos ombros. Ou para ser mais exato, as marcas estão por debaixo dos braços e lhe
chegam até a parte posterior do pescoço. Arrastaram—na um bom trecho uma vez na
água. Poderia ser que lhe enganchasse a roupa com algo. A que hora a encontraram?
—Por volta das três e meia.
—E quando a viram com vida por última vez?
—Às nove e meia.
—Pois já o tem então. Você mesmo pode tirar conclusões, com quase tanto acerto
como eu. Anda atrás de um homem muito perigoso, desejo-lhe boa sorte.
Necessitará—a. Uma mulher muito bonita, que triste. —E sem esperar resposta se
voltou para o corpo que estava examinando.
—Poderia calcular quanto tempo esteve na água?—perguntou Pitt.
—Não muito melhor do que pode você conjeturar por si mesmo. Eu diria que mais de
meia hora e menos de três. Sinto muito.
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—Mataram—na com as mãos?
—Como? Oh, sim. O assassino a matou com suas mãos nuas, não utilizou corda
alguma, só seus dedos ao redor do pescoço. Como já lhe disse, trata-se de um homem
muito forte, ou movido por uma paixão que eu não queria ter que ver jamais. Não lhe invejo
seu trabalho, Pitt.
—Nem eu o seu—disse Pitt com sinceridade.
O legista soltou uma risada.
—Quando eu intervenho, tudo acabou já. Já não há dor, nem violência, nem ódio, só
paz e silêncio. O resto depende de Deus, se algo lhe importar.
—Sim me importa— disse Pitt entre dentes—. E Deus tem que ser melhor que eu.
O legista riu de novo, desta vez com um tom mais suave. Mas não disse nada.
O
tempo
transcorrido
entre
as nove
e
meia
e
às
doze
da
noite foi
surpreendentemente largo. Não havia muitas pessoas dispostas a explicar seus
movimentos durante aquelas duas horas e meia, salvo a gastos de uma possível
discussão.
Pitt tomou dois homens destinados a outros casos, enquanto deixou que Tellman se
ocupasse do assunto do Ministério de Colônias. Dividiu seu tempo entre interrogatórios e
averiguações, mas não achou provas concludentes sobre nada.
Linus Chancellor lhe disse que tinha saído e que, devido ao percalço do cocheiro,
tinha conduzido ele mesmo sua carruagem. Tinha ido entregar um pacote de vital
importância ao Garston Aylmer, quem ao que parecia se achava ausente quando ele
chegou.
Sentiu-se muito contrariado, mas deixou o pacote ao lacaio do Aylmer, quem, ao ser
interrogado, confirmou que Chancellor se havia estado na casa pouco antes das onze.
Os criados do Chancellor não o ouviram quando este retornou a casa, mas ele lhes
tinha dado instruções para que não o esperassem.
A criada de Susannah, naturalmente, tinha estado esperando a sua senhora, como
era seu dever, para ajudá—la a despir-se quando voltasse e lhe pendurar a roupa.
Ficou adormecida na cadeira por volta das três e meia e só percebeu que Susannah
não havia voltado quando despertou pela manhã. Não quis dizer nada a respeito, nem
explicar por que não tinha dado antes a voz de alarme.
Pitt interpretou que a criada tinha dado por sentado que sua senhora tinha ido a uma
entrevista e que, embora o desaprovasse totalmente, era muito fiel para traí-la. Nenhuma
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pressão por parte do Pitt, ou do mordomo, fariam mudar sua relação dos fatos.
Pitt foi ver o Peter Kreisler para lhe pedir que lhe explicasse seus movimentos, mas
quando se apresentou nos aposentos do Kreisler lhe informaram que este tinha saído e
que não esperavam que voltasse durante várias horas.
Veria-se obrigado a esperar para obter uma resposta de sua parte.
Aylmer lhe disse que tinha saído a observar as estrelas. Era uma entusiasta da
astronomia. Ninguém pôde confirmá—lo. Não era uma afeição multitudinária, assim podia
se entregar-se a ela em magnífica solidão.
Levou consigo um pequeno telescópio com tripé até o Herne Hill, um lugar afastado
das luzes da cidade. Deslocou-se até ali, só, em um calesin de sua propriedade que
reservava a tais fins e não tinha visto nenhum conhecido. Se aquela história era certa,
resultava na verdade inesperada para um homem como ele.
Não devia haver muitos cavalheiros do Ministério de Colônias ou do Foreign Office
que se dedicassem a passear-se pelo Herne Hill a altas horas da madrugada.
Jeremiah e Christabel Thorne tinham passado a noite em casa. Ela se tinha retirado
logo. Ele tinha ficado levantado até passada a meia—noite lendo documentos oficiais.
Os criados confirmaram aquela versão. Também confirmaram que em caso de que o
senhor ou a senhora Thorne tivessem saído de casa pela porta da sala de jantar que dava
ao jardim, não se teriam informado, uma vez que eles se retiraram depois de recolher o
jantar à ala de serviço que estava ao outro lado da porta estofada.
Não havia nenhuma lareira acesa que manter, nem visitas que acompanhar, e o
senhor Thorne lhes havia dito que ele mesmo correria as cortinas e fecharia as portas.
Ian Hathaway tinha jantado em seu clube e partira às onze e meia. Disse que foi
direto a casa, mas como vivia só e que não tinha pedido aos criados que o esperassem,
não havia ninguém que pudesse corroborar sua palavra. Facilmente teria podido voltar a
sair, se tivesse optado por isso.
Como parte do curso das diligências, Francis Standish, cunhado de Susannah, foi
também informado de sua morte. Ao pedir-se podia explicar onde tinha passado a noite,
respondeu que havia voltado logo a casa, trocara-se e foi ao teatro só. Não, não havia
ninguém que pudesse confirmá—lo.
O que tinha ido ver?
Esther Sandraz. Podia descrever a obra em termos muito gerais, mas isso não
significava nada. Uma resenha em um jornal podia lhe haver facilitado a informação.
Como é natural todos os esforços se concentraram em achar ao condutor da calesa
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que tinha recolhido ao Susannah Chancellor em Berkeley Square.
Era a única pessoa que sabia o que lhe tinha acontecido antes do encontro com seu
assassino.
O agente atribuído pelo Pitt empregou toda a tarde e as primeiras horas da noite em
buscá—la, mas não teve êxito.
No dia seguinte Pitt afastou ao Tellman do caso do Ministério de Colônias e lhe
encomendou a missão. Seus esforços foram igualmente em vão.
—Não seria uma calesa camuflada?—disse Tellman com amargura—. Talvez fosse o
assassino vestido de cocheiro?
A idéia já tinha ocorrido ao Pitt.
—Então averigúe de onde tirou a calesa—lhe encarregou—. Se tal fosse o caso, as
possibilidades ficariam reduzidas pela questão tempo. Sabemos que a maioria das
pessoas das quais suspeitamos em relação com o assunto do Ministério de Colônias
podem explicar onde estavam às nove e meia.
Tellman soprou.
—De verdade acredita que foi um deles?—disse rechaçando a idéia—. Por que? Por
que ia algum deles querer matar à senhora Chancellor?
—Por que iria alguém querer matá—la?—replicou Pitt.
—Para roubá—la. Diz Bailey que sentiram falta de dois anéis. Comprovou—o com a
criada.
—E o pendente? Por que não o levaram então? —insistiu Pitt—. E a criada assegura
que levava os anéis postos essa noite?
—Como?
—A criada assegura que saiu essa noite com os anéis postos? —repetiu Pitt com
paciência—. As senhoras perdem as jóias às vezes, mesmo que se trate de peças de
valor, ou as empenham, ou as vendem, ou as dão de presente.
—Não acredito que ele o perguntasse. —Tellman se mostrou contrariado por não
haver lhe ocorrido—. Direi que volte para perguntar-lhe.
—Vá melhor você. Mas não deixe de procurar o condutor da calesa.
A última pessoa a que Pitt achou foi Peter Kreisler. No dia anterior tinha tentado vê-lo
três vezes, mas em todas elas estava ausente e seu criado não sabia se voltaria em toda a
jornada.
Em sua segunda visita o lacaio do Kreisler havia dito que seu senhor tinha ficado
muito afetado pela notícia da morte da senhora
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Chancellor e que partira quase imediatamente, sem deixar indicação do que lhe
requeria nem de quando pensava retornar.
Quando Pitt voltou uma vez mais aquela tarde, depois da infrutífera busca do Tellman
atrás do cocheiro da calesa, Kreisler estava em casa e recebeu ao Pitt em seguida e com
certa ansiedade.
Seu rosto denotava cansaço, como se tivesse dormido pouco, e desprendia uma
intensa energia nervosa, embora mantivesse um perfeito controle de sua aflição, fosse
qual fosse a profundidade ou o alcance da mesma.
Mas Pitt imaginou que Kreisler era um homem que sabia dissimular suas emoções
em todo tempo e que estava habituado tanto ao triunfo como à tragédia.
—Entre,
superintendente—disse
enquanto
acompanhava
a
uma
sala
que
surpreendeu ao Pitt por seu encanto, com o chão de madeira encerada e delicados relevos
africanos no suporte da lareira.
Não havia peles nem chifres de animais, só uma formosa pintura de um leopardo.
Assinalou-lhe uma das cadeiras—. Dobson, traga de beber ao superintendente. Do que
gosta, cerveja, chá, algo mais forte?
—Tem cidra?
—Como não. Dobson, cidra para o superintendente Pitt. Eu também tomarei um
pouco. —Assinalou-lhe de novo a cadeira e ele se sentou em frente, com o corpo inclinado
para o Pitt e o semblante sério—. averiguou algo importante? Eu estive estudando as
marés do rio para ver onde puderam atirá—la.
Poderia servir para descobrir onde a mataram, e portanto aonde partiu de Berkeley
Square, de onde saiu sozinha, conforme soube, a primeiras horas da noite. —Falava com
as mãos entrelaçadas diante dele—. Quer dizer, só a partir de que Chancellor lhe alugou
uma calesa e a viu subir a ela.
Se tomou rumo ao Upper Brook Street, deveram abordá—la quase em seguida.
Pensa você que poderia tratar-se de um seqüestro que saiu mau?
Era na verdade uma idéia que ao Pitt não lhe tinha ocorrido e que certamente tinha
reflexos de verossimilhança.
—Em troca de um resgate?—perguntou, consciente do matiz de surpresa que havia
em sua voz.
—Por que não? —observou Kreisler—. Me parece que tem mais sentido isso que não
que queriam matá—la, pobre mulher. Chancellor tem ambas as coisas, dinheiro e poder.
Como também seu cunhado, Standish.
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É muito possível que tivessem intenção de procurar algum modo de o coagir. Uma
idéia horrível em grau supremo, mas não impossível.
—Não, certamente —concordou Pitt a seu pesar—. Embora as coisas tiveram que
tomar um giro muito inesperado para acabar como acabaram. É certo que não a mataram
de forma acidental.
—Por que? —Kreisler lhe olhava intensamente, com o rosto tenso pela emoção.
—Por que diz isso, superintendente?
—Assim o dá a entender o modo em que morreu— respondeu Pitt. Não desejava
seguir discutindo aquele ponto com o Kreisler, que era em muitos sentidos um suspeito a
ter em conta.
—Tem certeza? —insistiu Kreisler—. A que fim podia servir sua morte? Com certeza
seria...-Sua voz se extinguiu.
—Se soubesse a que fim podia servir, senhor Kreisler, teria avançado muito para o
descobrimento de seu assassino—respondeu Pitt—.
Parece profundamente afetado pelo assunto. Conhecia—a melhor do que supunha?
—Observava ao Kreisler com atenção, a palidez de sua pele, o brilho de seus olhos, os
diminutos músculos que lhe tremiam na mandíbula.
—Tinha—a visto várias vezes e me parecia uma mulher encantadora e inteligente,
com uma grande sensibilidade e um grande sentido da honra—respondeu ele com um tom
de voz elevado pela tensão—. Não é essa uma razão suficiente para estar horrorizado por
sua morte e para desejar com ardor que se encontre a seu assassino?
—Certamente que o é— disse Pitt com muita calma—. Mas a maioria das pessoas,
por fundos que sejam seus sentimentos, conformam-se deixando que a polícia se
encarregue disso.
—Bem, pois eu não —declarou Kreisler com veemência—. Penso fazer tudo o que
esteja em meu poder por descobrir quem foi e por me assegurar de que o mundo também
saiba.
E, com franqueza, superintendente, não me importa se gosta ou não.
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Capítulo 9
Pitt chegou a casa depois de um dia que, tanto física como emocionalmente, tinha
sido exaustivo. Tinha vontade de deixar todo aquele assunto a um lado por um momento e
sentar-se na sala de estar com os pés apoiados e as portas do jardim abertas para que
entrasse o ar primaveril das últimas horas da tarde.
Era suave e fragrante, como o desses dias em que os aromas da terra parecem
atrasar-se entre as ruas e chegar, além das paredes dos jardins, até a consciência de uma
cidade poderosa.
Quem o sente só deseja pensar em flores, plataformas de grama recém talhada,
árvores umbrosos e mariposas vespertinas revoando ociosamente na quietude.
Tão logo entrou no vestíbulo compreendeu que todo aquilo não ia ser possível.
Charlotte saiu da sala de estar a seu encontro com semblante grave e um vislumbre
de alarme no olhar.
—O que aconteceu?—disse Pitt com apreensão.
—Matthew veio vê-lo — respondeu ela com suavidade, pois a porta da saleta estava
aberta—. Parece muito preocupado, mas não me disse do que se trata.
—Perguntou?
—Não, claro que não. Mas lhe lancei algumas indiretas.
Pitt não pôde menos que sorrir, até a seu pesar, e ao passar junto a ela para a saleta
a tocou com doçura.
Matthew estava sentado na poltrona preferida do Pitt, frente à porta envidraçada, com
o olhar fixo na macieira que havia ao fundo da grama.
Assim que percebeu a presença do Pitt na sala, apesar de que este não tinha feito o
menor ruído, voltou-se para ele e ficou em pé. Estava pálido e se viam marcados círculos
de sombra ao redor dos olhos.
Tinha um aspecto como se tivesse sofrido uma longa enfermidade da qual estivesse
recuperado só o suficiente para levantar-se da cama.
—O que aconteceu?—perguntou Pitt, fechando a porta.
Matthew pareceu algo confuso, como surpreso de que lhe fizessem a pergunta de
forma tão direta.
—Nada, nada novo, pelo menos. Eu me perguntava se teria podido averiguar alguma
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coisa mais a respeito da morte de meu pai. —Arqueou as sobrancelhas e olhou ao Pitt com
expressão interrogativa.
Pitt se sentiu culpado, mesmo que tivesse tido todas as razões do mundo para ter
sido incapaz de pensar sequer no assunto.
—Não, eu temo que não. O subcomissário me atribuiu o caso do assassinato de
Susannah Chancellor, e me teve ocupado.
—Compreendo, compreendo, não era preciso mais — interrompeu—o Matthew—.
Não tem por que me dar explicações, Thomas. Não sou nenhum menino. —Caminhou
para a porta envidraçada como se tivesse intenção de sair fora, tomar o ar vespertino—. É
só que me tinha perguntado isso.
—Esse é o motivo de sua visita?—perguntou Pitt com suspicácia. Foi até a porta
envidraçada, junto ao Matthew.
—Sim, naturalmente. —Matthew cruzou a soleira e saiu ao terraço empedrado.
Pitt lhe seguiu e juntos caminharam muito devagar sobre a erva em direção à
macieira e à zona sombreada da parede. As pedras estavam cobertas por uma espessa
capa de musgo verde como veludo.
Ao pé da parede, quase tocando o chão, crescia uma planta trepadeira que dava
umas florzinhas amarelas em forma de estrela.
— Aconteceu algo mais? —insistiu Pitt—. Parece abatido.
—Golpeei—me na cabeça. —Matthew fez uma careta de dor e entrecerrou os
olhos—. Você estava comigo.
—Piorou? Teve que voltar a chamar o médico?
—Não, não, está melhor. Só que é lento. É horrível o da mulher do Chancellor. —
Franziu o cenho e avançou um passo mais sobre a suave erva. Era muito entupida na
zona que ficava sob a sombra da árvore e macia ao pisar. A branca eclosão da floração da
macieira impregnava o ar de uma tênue doçura, um aroma limpo mas não enjoativo—.
Tem alguma idéia do que pôde acontecer?
—Ainda não. Por que? Sabe algo?
—Eu? — Desta vez Matthew parecia surpreso de verdade—. Nada de nada. O único
é que penso que terá sido um golpe da fortuna espantoso para um homem tão brilhante e
cuja vida pessoal era tão não usualmente feliz.
Há muitos políticos que se perdessem suas esposas sofreriam uma aflição mínima,
mas esse não é o caso do Chancellor.
Pitt lhe olhava fixamente. Aquela observação lhe pareceu curiosa em Matthew, pouco
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característica dele, como se falasse um pouco com a ligeira ou distraído por outras
preocupações.
Pitt se convencia cada vez mais de que havia algo que lhe perturbava o espírito.
—Conhecia bem ao Chancellor?—perguntou-lhe erguendo o tom de voz.
—Mais ou menos— respondeu Matthew reemprendendo à marcha e sem olhar ao
Pitt—. Dos homens de alto status que conheço é um dos mais acessíveis.
Tem uma conversa agradável. Procede de uma família muito comum, galesa,
acredito, ao menos de origem.
Devem ter se estabelecido faz algum tempo nos condados dos arredores. Não foi um
crime político, não é? —voltou-se para o Pitt com expressão de curiosidade e confusão—.
Quero dizer que como encaixaria.
—Não sei—respondeu Pitt com simplicidade—. No momento não tenho nenhuma
idéia confiável.
—Nenhuma?
—No que pensava ao perguntá—lo?
—Não jogue comigo, Thomas—disse Matthew com certa irritação—. Eu não sou
nenhum de seus malditos suspeitos! —Ao cabo de um segundo se mostrou arrependido
pelo que havia dito—. Sinto muito. Não sei muito bem o que quero dizer.
Ainda continuo sob a comoção da morte de meu pai. Há algo dentro de mim que me
diz que morreu assassinado, e estou convencido que o fez o Círculo Interior, tanto para
evitar que seguisse falando deles, para advertir a qualquer outro possível traidor aos
juramentos.
A lealdade é algo diabólico, Thomas. Até onde pode exigir lealdade a outra pessoa?
Por minha parte, nem sequer estou seguro de saber o que é a lealdade. Se me tivessem
perguntado há isso um ano, ou há seis meses, teria me parecido uma pergunta
simplesmente estúpida, a que não valia a pena responder por sua obviedade. Agora não
poderia respondê—la. —Permanecia imóvel sobre a erva, com uma expressão de total
confusão.
Procurou o Pitt com o olhar—. E você? Poderia?
Pitt refletiu antes de responder, mas mesmo que o fez, foi sem convicção.
—Suponho que a lealdade é fazer honra as promessas feitas – disse
pausadamente—. Mas também às obrigações, até no caso de não mediar promessas
concretas.
—Exato —concordou Matthew—. Mas quem determina quais são essas obrigações, e
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a quem lhe devem? A quem procede reclamar primeiro? O que acontece quando outros
pressupõem que você tem obrigação determinada para eles e você não a assume? Isso
acontece às vezes, você sabe.
—Refere a Sir Arthur e ao Círculo Interior?
Matthew se encolheu de ombros em um gesto de vago assentimento.
—Refiro a qualquer tipo de situação similar. Às vezes damos coisas por supostas e
imaginamos que outros também e talvez não seja assim. O que quero dizer é que até que
ponto nos conhecemos uns aos outros?
Até onde nos conhecemos a nós mesmos, em tão não nos põem a prova? Alguém
se imagina que se tivesse que enfrentar a uma opção determinada reagiria de certa forma,
e logo resulta que a oportunidade se apresenta e descobre que não age como pensava.
Pitt se convenceu ainda mais de que Matthew dizia todo aquilo por algo concreto.
Falava com voz muito apaixonada para estar filosofando. Mas não era menos claro
que ainda não se via si mesmo preparado para falar abertamente do assunto que o
envenenava. Pitt não sabia tampouco se tinha algo que ver com Sir Arthur ou se só o tinha
mencionado por começar a falar de algo que ambos conhecessem.
—Refere a alguma situação de dupla lealdade?
Matthew se afastou um passo dele. Pitt compreendeu que havia tocado uma fibra
sensível e que o tinha feito muito cedo.
Matthew esperou um momento antes de responder. O jardim estava em silêncio.
Um cão disparou ao outro lado do sebe. Um gato com a pele irisada caminhou por
cima do muro e se deixou cair sem ruído na horta.
—Alguns dos homens que levam a investigação têm o sincero sentimento de ter
traído a confiança de alguém—disse por fim Matthew—. Ou a lealdade a sua sociedade
secreta, ou possivelmente como se tivessem faltado a um certo dever de fidelidade de
classe.
Há alguém no Ministério de Colônias que está traindo a seu país, mas talvez eles não
o vejam assim. —Aspirou profundamente enquanto olhava como a brisa agitava as folhas
da macieira—. A meu pai parecia que guardar silêncio sobre o Círculo Interior era trair o
que para ele era o mais importante na vida, embora jamais tivesse sido capaz de chamá—
lo com um nome.
Eu mesmo não estou seguro de que eu goste de dar nomes a certas coisas. Parecelhe que isso é esconder a cabeça sob a asa? Uma vez dá um nome às coisas e promete
fidelidade, renuncia a uma parte de si mesmo. Eu não estou preparado para isso. —Olhou
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ao Pitt com cenho—. Pode entender o que estou dizendo, Thomas?
—A maioria das coisas da vida não exigem uma fidelidade sem limites — observou
Esse Pitt é o engano do Círculo Interior. Exige de seus homens uma promessa de lealdade
por antecipado, antes de saber o que lhes vai pedir.
—Meu pai chamava a isso sacrifício de consciência.
—Então já respondeu a sua própria pergunta —indicou Pitt—. Não me precisava
perguntar isso, nem deveria preocupar-se tanto qual poderia ser minha resposta.
Matthew olhou—o com um sorriso tão esplêndido como inesperado.
—Não, não me preocupa —confessou, metendo—as mãos nos bolsos.
—Então, o que o envenena?—perguntou Pitt, pois via ainda sombras e tensão em
seu rosto, depois que seu sorriso se desvanecera tão rapidamente como tinha surgido.
Matthew deixou escapar um suspiro, enquanto girava ao chegar à parede da horta e
ficava a caminhar lentamente ao longo da mesma.
—Sim, você e eu podemos dizer isso sem reparos porque vemos as coisas de um
modo similar, sem nada que nos separe. Mas como se sentiria se o curso da vida me
levasse a fazer algo pelo qual você se sentisse traído? Odiaria—me por isso?
—Fala—me em termos teóricos, Matthew, ou há algo concreto que quer me dizer e
não sabe como? —Pitt caminhou junto a ele.
Matthew afastou o olhar, dirigindo—o para a casa.
—Não me ocorre nada em que pudesse pensar de uma forma diferente a você.
—Estava pensando em meu pai e em seus amigos do Círculo Interior. —Olhou de
soslaio ao Pitt—. Porque alguns deles eram amigos seus, sabe? Por isso lhe era tão difícil.
Nada do que dizia Matthew era falso, mas Pitt continuava tendo a sensação de que,
de uma forma ou outra, não dizia a verdade. Retrocederam o caminho sobre a erva em
direção à casa sem voltar a tocar o tema.
Charlotte convidou ao Matthew para que ficasse para jantar com eles, mas ele
declinou o oferecimento e optou por partir, com o rosto sempre sombrio e tenso. Ao ver irse, ao Pitt invadiu uma tristeza da que não se pôde libertar em toda a noite.
Charlotte olhou ao Pitt com olhos inquisitivos uma vez que Matthew partiu.
—Está bem? Parecia... —Tratou de achar uma palavra.
—Oprimido— a facilitou Pitt, enquanto se sentava em sua poltrona e se recostava
nela estirando-se comedidamente—. Sim, estou quase certo de que queria dizer algo, mas
que não foi capaz.
—Algo como o que? —Olhava-lhe nervosa. Pitt não estava certo de se ela estava
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inquieta pelo Matthew ou pelos dois. Via em seus olhos que ela sabia que seu pesar se
sobrepunha ao sentimento de perda do Matthew.
Pitt afastou o olhar.
—Não sei, algo relacionado com a lealdade.
Charlotte tomou ar como se fosse dizer algo, mas calou por prudência, algo que ao
Pitt pareceu tão extraordinário que quase teve vontade de rir. Uma risada sem alegria que
facilmente podia mudar em pranto.
—Suponho que deve ser algo relacionado com o Círculo— disse por fim, embora não
tivesse certeza de que isso fosse o que apressara tão penosamente Matthew.
Em qualquer caso, aquela noite não queria continuar pensando mais sobre o assunto.
— O que há para jantar?
—Não é muito— disse Farnsworth com severidade quando Pitt lhe comunicou o
seguinte informe—. A esse tipo não pode tê—lo tragado a terra—. Se referia ao condutor
da calesa que tinha recolhido ao Susannah Chancellor em Berkeley Square—. A quem me
disse que tinha atribuído a tarefa?
Estavam no Bowl Street, mas no escritório do Farnsworth, em lugar de no do Pitt.
O subcomissário permanecia de pé junto à janela, olhando para a terraplanagem do
rio, enquanto, Pitt estava sentado em uma cadeira frente a ele.
Farnsworth lhe tinha devotado assento ao entrar, mas ao cabo de uns segundos ele
tinha preferido ficar de pé. Parecia sentir-se mais cômodo com aquela pequena vantagem
física.
—A Tellman— respondeu Pitt, recostando-se um pouco mais na cadeira. Não lhe
importava o mais mínimo ter que levantar o olhar—. Mas eu também o tentei por minha
conta.
Sei muito bem que esse homem pode nos dar uma pista vital, mas até o momento
não encontramos nem rastro dele, o que me faz pensar que...
—Se for me dizer que Chancellor mente, está você louco— interrompeu—o
Farnsworth com visível irritação—. Quero acreditar que não é você capaz do desatino de
imaginar que Chancellor poderia ter...
—Isso está totalmente descartado — interrompeu—o Pitt por sua vez—. Chancellor
voltou para casa imediatamente, viram—no apenas dez minutos depois de ter
acompanhado a sua esposa a procurar a calesa.
Isso sei porque o perguntei à criadagem. Não suspeito dele. Só é uma mera questão
de formalismo o comprovar onde estava cada qual no momento crítico.
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Farnsworth não objetou nada a respeito.
—O que me faz pensar, dizia —concluiu Pitt a frase que Farnsworth tinha
interrompido—, que o condutor deve estar comprometido de alguma forma. É provável que
não fosse um cocheiro autêntico, mas alguém disfarçado.
—Então de onde tirou a calesa?—perguntou Farnsworth—. Chancellor disse que
alugou uma calesa. Não é possível que não conheça a diferença entre uma carruagem de
aluguel e uma carruagem particular.
—Isso é o que está investigando Tellman agora. Ainda não sabemos nada, mas sua
procedência pode ser muito aleatória, pode ser que a alugassem por sua vez, ou que a
roubassem. Tellman está perguntando em todas as companhias de carruagens de aluguel.
—Bem, bem. Essa pode ser a chave que necessitamos.
—Kreisler pensa que pôde tratar-se de uma tentativa de seqüestro, cujo resultado se
torceu —sugeriu Pitt.
Farnsworth ficou perplexo, ao mesmo tempo que um vislumbre de irritação se
desenhava em seu semblante.
—Como diz? Quem demônios é esse Kreisler?
—Peter Kreisler. Algo assim como um perito em temas africanos. —Pitt falava com
tom meditabundo—. Parece muito afetado pelo caso. Inclusive empregou um montão de
tempo em fazer suas próprias averiguações.
—Por que?—perguntou Farnsworth, enquanto voltava para sua escrivaninha e se
sentava em frente do Pitt—. Conhecia Susannah Chancellor?
—Sim.
—Pois então é um suspeito, maldito seja! —apertou os punhos com força—. Dou por
sentado que estará investigando—o de perto!
—Sim, certamente que sim. —Pitt tinha elevado o tom de voz apesar de seus
esforços por mantê—la inalterável—. Diz que a noite do crime a passou em casa, mas não
pode prová—lo. Seu criado tinha a noite livre.
Farnsworth relaxou a tensão.
—Vá! Pode ser que tudo seja isso! Algo tão simples e simples como um homem
ciumento. Nada de seqüestros nem crimes políticos. Um homem engraçado por uma
mulher e rechaçado por esta. —Sua voz denotava satisfação. Essa podia ser uma solução
ideal.
—É possível —admitiu Pitt—. Lady Vespasia Cumming—Gould viu a ambos na noite
anterior a do crime, encetados em uma acalorada discussão. Mas daí a provar que Kreisler
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é um homem tão violento e instável para havê—la matado só porque lhe rechaçou há uma
grande diferença.
—Pois isso é o que terá que provar!—disse Farnsworth cortante—. Investigue seu
passado. Escreva a quem se relacionou com ele na África, se for necessário.
Com certeza houve outras mulheres pelas quais se sentiu atraído. Comprove qual foi
então sua conduta.
Averigue—o tudo sobre ele, o que desperta sua paixão, ou seu ódio, se teve disputas
importantes, ou dívidas, quais são suas ambições, tudo o que deve se saber dele! Não
estou disposto a permitir que o assassinato da esposa de um ministro do gabinete se
converta em um caso sem resolver nem você tampouco!
Aquelas palavras soavam a despedida. Pitt ficou em pé.
—E o assunto do Ministério de Colônias? –acrescentou Farnsworth—. Que
progressos tem feito? Lorde Salisbury me perguntava ontem mesmo se tivemos
averiguado algo.—seu rosto se esticou de novo—. Não lhe informei de suas maquinações
para introduzir as diferentes versões de cifras falsas. Sabe Deus o que haveria dito a isso.
Suponho que se não me notificou você nada é que não resolveu nada em relação com a
trama?
—Ainda é cedo—respondeu Pitt—. E sem o Chancellor ali, o Ministério de Colônias
deve estar vivendo pouco menos que um terremoto.
—Quando espera que seu pequeno engano dê frutos?—perguntou Farnsworth, não
sem sarcasmo.
—Nos próximos três ou quatro dias no máximo— respondeu Pitt.
Farnsworth franziu o cenho.
—Bem, espero que esteja certo. Pessoalmente, parece—me você um pouco otimista.
O que pensa fazer se fracassar seu estratagema?
Pitt não tinha exposto ainda. Tinha a mente posta no assassinato de Susannah
Chancellor e, em um segundo plano, sempre a ponto de irromper em seus pensamentos,
estava à morte de Lorde Arthur Desmond, sobre a qual, desde que tinha visto o doutor
Murray, tinha virtualmente a certeza de que se tratava de um crime cometido pelo Círculo
Interior.
Crime que se propunha demonstrar, logo que a urgência do caso Chancellor o
permitisse.
—Não me ocorreu nada ainda —admitiu—. Além de prosseguir com a rotina policial
habitual, averiguar todo o possível sobre qualquer provável suspeito, com a esperança de
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que haja algum fato, ou alguma mentira, que delate ao culpado, tanto no Ministério de
Colônias como no Tesouro. Se se revelasse alguma conexão desconhecida até o
momento poderia ser um indício.
—Isso não é muito satisfatório, Pitt. O que me diz dessa mulher, Pennecuick? —
Voltou a levantar-se da cadeira e caminhou inquieto para a janela—. Eu continuo
pensando que Aylmer poderia ser seu homem.
—É possível.
Farnsworth meteu as mãos nos bolsos com ar pensativo.
—Disse você que Aylmer não pôde provar onde tinha estado aquela noite. Não
poderia ser que a senhora Chancellor tivesse descoberto de alguma forma que ele era o
culpado e que este soubesse e a matasse para proteger-se? E que tivesse além disso, por
exemplo, alguma relação com Kreisler?
—Não sei— começou Pitt.
—Pois averigue—o, homem! Com certeza não é algo que esteja acima de seu
talento. —Olhou ao Pitt com frieza, e com certa má vontade.
Pitt estava seguro de que Farnsworth pensava no Círculo Interior, e no muito que
seriam mais fáciis as investigações com a ajuda de uma rede encoberta introduzida no
mesmo.
Mas quem podia saber, em meio de todas aquelas alianças e obrigações mútuas, de
toda aquela hierarquia de fidelidades devidas, quem estava ligado a quem, que mentiras
ou silêncios se prometeram uns aos outros? Ou que oficiais do corpo de polícia estavam
envolvidos, um pensamento particularmente aterrador. Olhou ao Farnsworth com
expressão de suave negativa.
Farnsworth resmungou e afastou o olhar.
—Então será melhor que esteja sobre isso— disse, antes de voltar-se de novo para o
rio e a brilhante luz que se refletia em suas águas.
—Há outra possibilidade— disse Pitt com calma.
Farnsworth permaneceu imóvel, dando as costas a ele e à sala.
—Qual?
—Que Susannah Chancellor visitasse sim a casa dos Thorne— respondeu Pitt—.
Ainda não encontramos sua capa. Levava—a ao sair de casa, mas não quando acharam
seu corpo. Se a acharmos, pode ser que nos diga algo.
—Depende de onde a encontrem, suponho —admitiu Farnsworth—. De acordo,
continue. Que conclusão tira se de verdade visitou os Thorne?
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Farnsworth esticou os ombros.
—Que ou Thorne a matou—respondeu Pitt—, ou o fizeram ele e sua mulher juntos,
embora este último me parece mais difícil de acreditar. Quando falei com ela, a senhora
Thorne me pareceu sinceramente afetada e surpreendida.
—E por que diabos ia Thorne querer matar à senhora Chancellor? Não pretenderá
sugerir que havia algo entre eles, não é ? — Desta vez se notava um claro tom de
brincadeira na voz do Farnsworth.
—Não. —Pitt não se incomodou em acrescentar quão inverossímil isso lhe parecia.
Farnsworth se voltou para olhá—lo.
—Então? —arqueou as sobrancelhas—. Insinúa que ele poderia ser o traidor do
Ministério de Colônias? Thorne?
—Poderia ser. Mas ainda há outra explicação possível, que poderia ter relação.
—O que quer dizer que poderia ter relação? —Farnsworth franziu o sobrecenho—.
Explique-se, Pitt. Está—fazendo muitas voltas. Acredita que ambos os casos estão
relacionados, ou não?
Pitt fez chiar os dentes.
—Acredito que a morte do Arthur Desmond poderia estar relacionada com suas
crenças.
Não continuou. O rosto do Farnsworth se escureceu e seus olhos se entreabriram.
—Eu achava que isso já tínhamos descartado. Arthur Desmond era um bom homem
que, por desgraça, de uma forma trágica se você quiser, ao chegar ao final de sua vida se
tornou senil e sofria de uma grande desorientação.
O mais amável que podemos supor é que, por acidente, tomou uma overdose de
sonífero. —Apertou os lábios—. E sendo menos bondosos, podemos chegar à conclusão
de que se deu conta de que estava perdendo a razão e de que tinha comprometido
seriamente sua reputação e tinha difamado a muitos de seus antigos amigos, e que em um
momento de lucidez a respeito do que estava lhe acontecendo optou por acabar com sua
vida.
—Engoliu em seco. — E possivelmente eu inclusive não diria que seja uma solução
pouco nobre. Pensando melhor, foi um ato de honra, muito próprio dele. –seu olhar se
cruzou com o de Pitt por um momento—. Sim, estou certo de que isso encaixa com o Sir
Arthur que você conhecia também.
Fazer isso requer uma coragem considerável. Se tanta for à consideração que lhe
professa, deixe as coisas como estão e permita que descanse em paz.
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Se continua pinçando na ferida quão único conseguirá será alongar a dor de sua
família e lhes fazer um fraco favor.
Não me ocorre outra forma mais séria de adverti—lo do grave engano que comete.
Expressei—me com clareza?
—Certamente —admitiu Pitt, lhe devolvendo o olhar. Percebia o poder de sua
determinação, mas estava disposto a ignorá—la—. Entretanto, nada disso tem que ver
com o que a senhora Chancellor podia pensar, que é o que nos preocupa em realidade.
—Não me dirá que falou de todos estes embrulhos com a senhora Chancellor, pelo
amor de Deus! —Farnsworth estava aniquilado. Continuava de pé, de costas à janela, com
as linhas e planos do rosto fortemente marcados pelas sombras que ele mesmo projetava
ao dificultar a luz solar.
—Não, não o fiz—replicou Pitt—. Mas sei com certeza que a senhora Chancellor
conhecia Sir Arthur e que lhe tinha em alto conceito. E que ele costumava falar com ela de
suas opiniões sobre a África. Há—me isso dito Lady Vespasia Cumming—Gould.
Farnsworth fez uma careta ante a nova menção do nome da Vespasia.
Começava a sentir uma viva aversão por ela.
—E, como sabe ela tudo isso, pergunto? Suponho que está à corrente de todo o
relacionado com a senhora Chancellor. me parece que é uma simples intrometida e que
não há por que tomá—la a sério. —arrependeu-se imediatamente de havê-lo dito.
Sabia que era um engano, não só pela expressão do Pitt, mas também por seu
próprio conhecimento da vida social, suficiente para ter ouvido aquele nome antes e para
ser capaz de reconhecer a um verdadeiro aristocrata quando o apresentavam.
Seu caráter se antepôs a seu intelecto.
Pitt se limitou a sorrir, o que bastava para demonstrar condescendência. Deixar—se
levar ele também por seu temperamento teria sido ficar a mesma altura. Deste modo se
mostrava superior.
—E bem?—replicou Farnsworth—. Está disposto a levar sua hipótese até o final, a
manter que a senhora Chancellor achava que Thorne assassinou ao Desmond, e que
assim foi, e que Thorne se viu impulsionado a matá—la para que não falasse? Não teria
sido mais efetivo por parte do Thorne, e, sobretudo, menos problemático, negá—lo
simplesmente? —Sua voz se tornou sarcástica.
Expresso em termos tão planos soava na verdade absurdo. Pitt se sentiu ruborizar-se
e viu refletir a satisfação no rosto do Farnsworth. Os ombros deste se relaxaram e se
voltou uma vez mais para a janela.
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—Está perdendo pé, Pitt. Essa idéia não é digna de você.
—Sugeriu—a você, não eu —objetou Pitt—. O que eu digo é que é provável que Sir
Arthur soubesse algo a respeito da informação subtraída do Ministério de Colônias.
Ao fim e ao cabo freqüentava com assiduidade o Foreign Office, com o que
continuava mantendo estreitos contatos no momento de sua morte.
É possível que ele não compreendesse toda a importância que tinha o que sabia,
mas se o mencionou à Susannah Chancellor, e esta sim o compreendeu, pelo Standish e
pelo passado de sua família em assuntos financeiros na África, e pelo que sabia seu
marido por seu posto no Ministério de Colônias, e por sua amizade com a senhora Thorne,
então...
—Atou fios e enfrentou o Thorne? —Farnsworth lhe olhava com interesse
crescente—. E se Thorne acabasse resultando o traidor… sim, é uma possibilidade! —
Elevou um pouco a voz—. Insista por aí, Pitt, mas faça—o com muito tato.
Seja discreto, pelo que mais queira, tanto para não ofender ao Thorne se for inocente,
como o que é mais importante, para não o pôr de sobreaviso se for culpado.
Fez um esforço de vontade.
—Expresso-lhe minhas desculpas, Pitt. Não deveria ter tirado conclusões tão
precipitadas a respeito do que me dizia. A verdade é que tem sentido. Será melhor que
fique sobre isso imediatamente.
Vá falar com o pessoal de serviço dos Thorne. Mas siga procurando o cocheiro. Se a
deixou ali, o pobre diabo não tem nada que temer, não será mais que uma testemunha da
ruína do Thorne.
—Sim, senhor. —E Pitt se levantou da cadeira para ir fazer o que lhe diziam. Que era
o que de qualquer forma tinha intenção de fazer.
Os criados dos Thorne não puderam lhe dizer nada interessante. Interrogou a todos
eles, mas nenhum tinha visto nem ouvido Susannah Chancellor na noite de sua morte. Pitt
insistiu sobre a possibilidade de que ela tivesse estado ali sem que eles se inteirassem.
Mas supunha um alarde de imaginação pensar que isso poderia acontecer assim, a
não ser que ela apeara expressamente a breve distancia da casa e não entrara pela porta
principal, mas sim dera um rodeio pelo jardim e entrado pela porta detrás, para cruzar o
terreno de grama até a porta envidraçada do estúdio e introduzira-se por ali. Em tal caso
alguém devia sabê—lo e teria estado esperando—a.
Certamente tudo isso era perfeitamente possível, mas a pergunta era: por que? Se
alguém lhe tinha pedido que fosse em segredo e sem que a visse nenhum dos criados,
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que explicação podia ter uma proposta tão extraordinária? O tinha pedido Thorne, ou
Christabel, ou ambos?
Se de verdade tinham algo que ver com o crime, parecia muito mais lógico que um
deles tivesse saído à rua a seu encontro e a levasse até o lugar dos fatos, e depois
retornasse a casa pela porta lateral.
Mas vendo os claros e grandes olhos de Christabel Thorne, cheios de inteligência,
raiva e dor, não podia imaginar que tivesse feito parte de uma farsa tão enorme.
Claro que, se ela amava a seu marido, talvez ele a tivesse persuadido da
necessidade do crime, fosse em altares de um bem político ou moralmente maior, ou
simplesmente para evitar que o descobrissem e caísse na ruína.
—Lamento muito não poder servir de mais ajuda, superintendente— disse ela com
seriedade. Estavam no estúdio, através de cujas portas ao jardim podia ver, de onde
estava sentado, os arbustos em flor por detrás dela—. Acredite—me – continuou
Christabel—, espremi o cérebro tratando de achar algo que pudesse ser importante.
Esteve aqui o senhor Kreisler, sabe? E me fez as mesmas perguntas que me faz você
agora, mas tampouco pude lhe dizer nada.
—Kreisler esteve aqui?—disse Pitt em seguida.
Ela arqueou as sobrancelhas.
—Não sabia? Parece muito preocupado por descobrir a verdade. Devo lhe confessar
que não sabia que se interessasse tanto por Susannah. —Sua expressão era difícil de
definir: apreciava-se nela confusão, surpresa, tristeza, inclusive um leve matiz de comedia
irônica e dolorida.
Pitt não pensava exatamente o mesmo. Começava a perguntar-se que motivos se
escondiam atrás das pesquisas do Kreisler.
Movia-lhe um desejo veemente de vingar Susannah, fosse colaborando com a polícia
ou a título privado? Ou o fazia com o fim de comprovar o que sabiam os Thorne e poder
assim proteger-se a ele ou a alguma outra pessoa? Ou pretendia difundir informação falsa
para desviar a atenção e criar maior confusão? Quanto mais sabia do Kreisler, menos
seguro estava dele.
—Não—disse Pitt—. Acredito que ainda faltam muitas coisas por saber sobre este
assunto.
Olhou—o como se algo acabasse de despertar um repentino interesse.
—Suspeita dele, superintendente?
—É claro, senhora Thorne.
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Desta vez seu rosto mostrou sem dissimulação uma expressão divertida.
—Oh, não— respondeu ela—. Não quero que minhas palavras possam dar lugar a
nenhum tipo de especulação. Pode imaginar quanto queira. Eu adoro a conversa frívola,
mas não quando pode afetar a coisas importantes, isso é algo que aborreço.
—São coisas importantes para você as relacionadas com o senhor Kreisler?
Ela arqueou as sobrancelhas.
—O mínimo, superintendente. Mas sim o é uma acusação de cumplicidade em um
assassinato.—seu rosto se escureceu—. E a mim Susannah me importava muito. Tinhalhe um profundo afeto. A amizade é uma coisa importante, quase tanto como a honra.
Falava com uma grande seriedade. Com a mesma lhe respondeu ele.
—E quando ambas as coisas entram em conflito, senhora Thorne?
—Então nos encontramos ante uma das tragédias da vida— replicou ela sem
titubear—. Mas por fortuna eu não me vejo ante uma situação similar. Não conheço nada
de Susannah que pudesse desonrá—la.
Nem do Linus tampouco, por certo. É um homem de profundas convicções que
sempre proclamou aberta e sinceramente possuir tanto a vontade de cumpri—las como os
meios necessários para isso.
E me crie, superintendente, jamais mostrou a menor intenção inapropriada por outra
mulher. —Era uma declaração simples e bastante óbvia, uma afirmação que qualquer
amiga poderia fazer em circunstâncias similares, e que muitas vezes se fazia.
Era algo que podia soar vulgar, um mero exercício de lealdade, mas ao ver o rosto de
Christabel, com sua feroz inteligência e seu orgulho quase desdenhoso, foi incapaz de
passar a por alto tão à ligeira.
Não havia em suas palavras o menor sentimentalismo, não era uma resposta
emocional, senão uma manifestação nascida da observação e do convencimento.
Nenhum dos dois reparava na quietude da sala, nem no jardim banhado pela luz do
sol, nem sequer no vento que movia as folhas e jogava passageiras sombras sobre os
vidros.
—E o senhor Kreisler?—perguntou Pitt.
—Não tenho uma idéia formada sobre ele. Um homem controvertido –disse depois de
uns segundos de reflexão—. Eu achava que se sentia atraído pela senhorita Gunne, o que
teria sido mais compreensível.
Mas sem dúvida pretendia também ao Susannah, e apesar de sua indubitável
arrogância, custa—me lhe acreditar incapaz de enganar-se a si mesmo até o ponto de
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pensar que podia chegar a algo de natureza romântica com ela.
Pitt não estava tão certo. Por muito que Susannah houvesse seguido estando
apaixonada por seu marido, as pessoas são capazes de todo tipo de atos insuspeitados
quando entram em jogo a paixão, a solidão e a necessidade física.
E Susannah tinha chegado sem dúvida a uma situação da qual tinha preferido não
dar conta a ninguém.
—O que me diz então?—perguntou Pitt, escrutinando seu semblante enquanto ela
procurava uma resposta.
Seus pensamentos pareceram cobrir-se de novo com um véu. Seus olhos eram
brilhantes e diretos, mas não revelavam já nada dela mesma que pudesse não ser
prudente.
—Que seu trabalho é descobri—lo, superintendente. Não sei nada que possa lhe
servir de ajuda, do contrário já o haveria dito.
E Pitt tampouco obteve nada do Thorne quando foi vê-lo no Ministério de Colônias.
Garston Aylmer se mostrou mais comunicativo.
—Absolutamente espantoso —exclamou com profunda emoção quando Pitt lhe disse
que estava ali em relação com o assassinato de Susannah—. Para mim é a coisa mais
horrenda de quantas ouvi em minha vida.
E parecia na verdade horrorizado. Ao ver seu pálido semblante e seus olhos
ligeiramente afundados, embora de olhar firme ante o de Pitt, parecia difícil imaginar que
estivesse fingindo, ou que fosse em realidade resultado de um sentimento de culpa.
—Conhecia—a bastante bem, certamente—continuou Aylmer, enquanto brincava
ausente com uma pena da escrivaninha entre seus nodosos dedos—. Uma das mulheres
mais encantadoras que existiam, e com uma integridade fora do comum. — Levantou a
vista com semblante grave, ficando a pena imobilizada no ar—. Era dotada de uma
honestidade interior que ainda a fazia mais formosa e que às vezes desconcertava. Estou
profundamente penalizado por sua morte, superintendente.
Pitt acreditou nele sem reparos, embora ao mesmo tempo se sentiu ingênuo.
—O que pode me dizer da relação entre ela e a senhora Thorne? –perguntou Pitt.
Aylmer sorriu.
—Ah... Christabel. Um tipo de mulher muito estranha para uma dama, por sorte! Uma
vintena de mulheres como ela e revolucionariam e reformariam de cima abaixo todos os
aspectos da vida londrina, até o canto mais escondido. — deu de ombros com toda a
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robustez de suas costas—.
Bom, superintendente, talvez não haja para tanto, não é muito amável de minha
parte. Christabel pode ser uma mulher encantadora às vezes, e interessante sempre. Mas
as mulheres com tanta força e tanto empenho por melhorar as coisas me aterrorizam.
Sinto—me um pouco como se me encontrasse no meio da passagem de um tornado.
—Os tornados são forças destrutivas —particularizou Pitt, escrutinando o rosto do
Aylmer para ver se a analogia era premeditada.
—Só para a própria paz espiritual. —Aylmer esboçou um doloroso sorriso—. Ao
menos no que diz respeito ao Christabel. Sente uma paixão por educar às mulheres que é
muito perturbadora. É algo que assusta de verdade a muitíssimas pessoas. E se a
conhece você minimamente, saberá que é incapaz de fazer nada de forma comedida.
—Que coisas são essas que tanto deseja reformar?
Aylmer abriu as mãos em um gesto de rendição.
—Tudo. Atitudes, crenças, o papel da mulher no mundo, o que é claro afeta também
ao do homem. —Sorriu—. Quer que concretize? Melhorar radicalmente o papel das
mulheres independentes.
—As mulheres independentes? —Pitt não entendia nada—. A que mulheres
independentes se refere?
O sorriso do Aylmer se fez mais amplo.
—A todas as que são independentes. Meu querido amigo, as mulheres
independentes são todas aquelas que não são "dependentes", quer dizer, que não estão
casadas.
As mulheres, das quais cada vez há maior número, que não dependem de nenhum
homem que as sustente economicamente, que não têm a nenhum homem que as faça
socialmente respeitáveis e lhes facilite uma ocupação, isto é, cuidar dele e dos filhos que
possam ter.
—E que demônios se propõe fazer com elas?
—Mas como? Educá—las! Obter que se integrem nas profissões, na arte, na ciência,
o que queiram, segundo onde as conduzam suas capacidades ou seus desejos.
Se Christabel tiver êxito, a próxima vez que você necessite um dentista, um
encanador, um banqueiro ou um arquiteto, pode ser que se encontre com uma mulher.
Deus nos proteja quando for o caso do médico ou do sacerdote!
Pitt estava mudo de assombro.
—Nem mais nem menos —concordou Aylmer—. Para não falar da total incapacidade
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das mulheres, tão emocional como intelectualmente, não digamos já fisicamente, para tais
tarefas, que deixariam, além disso, milhares de homens sem trabalho. Digo—o, é uma
revolucionária.
—E as pessoas o permitem? —Pitt estava atônito.
—Não, é claro que não. Mas tratou você alguma vez de impedir algo a uma mulher
que tomou uma determinação de verdade? E não falo do Christabel Thorne, mas sim de
qualquer mulher.
Pitt imaginou tratando de impedir algo a Vespasia e compreendeu exatamente o que
Aylmer queria dizer.
—Já vejo—disse em voz alta.
—Duvido—o. —Aylmer moveu a cabeça com gesto de negação—. Para compreender
a enormidade do assunto deveria conhecer Christabel. Tem um arrojo incrível, sabe? Não
lhe importa o mínimo o escândalo.
—A senhora Chancellor estava também envolvida em todo isso?—perguntou Pitt.
—Santo céu, que idéia tão espantosa! Não sei. Não acredito. Não. À Susannah
interessavam as coisas que tinham que ver com sua família, os bancos, os investimentos,
as finanças, etc. Se albergava algum tipo de idéia radical, seria em torno deste tipo de
coisas.
Mas era muito mais convencional, graças a Deus. — Franziu de repente o cenho.
Isso era pelo que brigava com Kreisler, pelo que eu recordo. Que homem tão curioso.
Esteve aqui, sabia? Me perguntando coisas sobre ela. De fato, superintendente, foi
bastante mais insistente que você!
Pitt se ergueu um pouco em seu assento.
—Em torno da morte da senhora Chancellor?
—Sim, sim, parecia muito interessado. Não pude lhe dizer mais do que lhe disse a
você, que é virtualmente nada. Perguntou—me também coisas a respeito dos Thorne. —
Riu com certo acanhamento—. E a respeito de mim. Não estou certo se suspeitava que eu
podia ter alguma relação com o crime, ou se o fazia por mero desespero para não deixar
de lado qualquer possibilidade.
Pitt se perguntava o mesmo, tanto do Aylmer como do Kreisler. Que este tivesse ido
ver Aylmer lhe era muito inquietante.
E ainda se inquietou mais quando foi ver o Ian Hathaway, com a evidente intenção de
perguntar se tinha havido algum progresso com o assunto das cifras falsificadas, mas
também para ver se podia inteirar-se de algo mais sobre os Thorne e sua possível relação
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com Susannah ou com o Arthur Desmond.
Hathaway parecia muito surpreso. Encontrou—o sentado em seu tranqüilo e discreto
escritório, mobiliado com móveis sólidos e de um bom gosto um tanto antiquado.
—Não, superintendente. Isso é o que me é tão curioso e, devo admiti—lo, tão
incompreensível a meu entender.
Eu mesmo lhe teria chamado esta mesma tarde, se não tivesse vindo aqui.
Recebemos notícias da embaixada alemã.
Pitt conteve a respiração de forma involuntária, enquanto sentia como o coração lhe
pulsava mais depressa, apesar de seus esforços por manter uma compostura perfeita.
Hathaway se deu conta e sorriu, sem afastar seus pequenos e claros olhos azuis
dele.
—O comunicado fala de umas cifras com toda clareza, mas isso é o que é tão
incompreensível. Não são nenhuma das que eu distribuí, nem são quão autênticas retive e
que passei a Lorde Salisbury.
—Como? —Pitt mal podia acreditar no que acabava de escutar. Não tinha o menor
sentido—. Perdão, como disse?
— Com efeito —concordou Hathaway—. Eu tampouco lhe vejo nenhum sentido. Por
isso deixava passar um pouco de tempo antes de lhe comunicar algo. —Permanecia
imóvel em sua cadeira. Inclusive suas mãos descansavam completamente quietas sobre a
escrivaninha—. Me assegurei por duas vezes de ter recebido corretamente o comunicado.
O primeiro que pensei foi que tinham confundido umas cifras por outras, ou que eu
não o tinha entendido, mas não era assim. O comunicado era claro e correto, as cifras são
diferentes, suscetíveis de levar a grave confusão.
Não tenho o menor desejo de tirar a embaixada alemã de seu engano. Por minha
parte, tampouco eu compreendo neste momento o que aconteceu. Tomei a liberdade de
informar a Lorde Salisbury do assunto, para me certificar de que ele tinha as cifras
autênticas.
Acredito que não é necessário dizer que assim era.
Pitt permanecia sentado em silêncio, assimilando o que Hathaway lhe dizia e tratando
de achar alguma explicação. Não lhe ocorreu nenhuma possível.
—Fracassamos, superintendente, e lhe confesso, além disso, minha total confusão —
disse Hathaway com pesar, enquanto se recostava de novo em sua cadeira e olhava ao
Pitt com fixidez—. Estou disposto a tentá—lo uma vez mais, se você considerar que tem
algum sentido.
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Pitt estava mais decepcionado do que se atrevia a admitir. Tinha contado que tudo
aquilo daria algum resultado, por pequeno ou difícil de seguir que fosse.
Não tinha a menor idéia de por onde continuar, e temia confessar ao Farnsworth que
o que parecia um plano excelente tinha fracassado de forma tão estrepitosa. Podia
imaginar já sua resposta e o desdém com que a pronunciaria.
—Quanto à morte da senhora Chancellor—disse Hathaway com tranqüilidade—,
temo que tampouco posso lhe ser de grande ajuda. Desejaria saber algo que pudesse lhe
servir, mas parece uma tragédia tão absurda. —Parecia falar com total sinceridade, como
um homem respeitável que expressa um profundo sentimento de pesar.
Ao Pitt pareceu perceber, além disso, um esforço racionalizador na mente do
Hathaway que supria à emoção. Pretendia distinguir as tragédias absurdas de outras
supostamente necessárias, que pudessem ter algum sentido?
— Escutou—a mencionar alguma vez o nome de Sir Arthur Desmond, senhor
Hathaway?—perguntou Pitt.
Nem a menor duvida apareceu no rosto do Hathaway.
—Sir Arthur Desmond? —repetiu.
—Sim. Freqüentava o Foreign Office. Morreu recentemente em seu clube.
—Sim, sim, sei de quem me fala. —relaxou tão ligeiramente que mal foi perceptível, a
não ser por um leve movimento nos músculos dos ombros—. Uma verdadeira desgraça.
Suponho que são coisas que acontecem de vez em quando, quando a velhice alcança aos
membros de um clube.
Não, não recordo que ela mencionasse seu nome alguma vez. Por que? Não me
parece possível que esse homem tivesse algo que ver com o assunto que nos ocupa. Teve
uma morte desafortunada, mas por desgraça, comum.
Eu estava precisamente no clube aquela mesma tarde, no salão escritório, com um
sócio de negócios.
Deixou escapar o ar em forma de muito ligeiro suspiro.
—Pelo que tenho lido nos jornais, a senhora Chancellor foi assaltada de forma muito
violenta, presumivelmente quando viajava em uma calesa de aluguel, e depois a jogaram
no rio. Foi assim?
—Sim, assim foi —admitiu Pitt—. É só que Sir Arthur se mostrava resolutamente
contrário ao desenvolvimento da África Central tal como foi planejado pelo Rhodes, igual a
Kreisler, quem —Guardou silêncio. O rosto do Hathaway tinha mudado de expressão.
—Kreisler?—disse Hathaway de forma pausada, sem deixar de observar ao Pitt com
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atenção—. Sabe que veio ver—me? Também queria falar da morte da senhora Chancellor,
embora não foi essa a razão que aduziu.
Urdiu não sei que história de direitos e arrendamentos de minas, mas era a senhora
Chancellor e suas opiniões o que parecia preocupá—lo. Um homem muito singular. Um
homem de paixões e convicções poderosas.
Tinha um curioso costume de permanecer imóvel que transmitia uma intensa
concentração.
—Suponho que, naturalmente, considerará-lhe entre os possíveis suspeitos, não é,
superintendente? Não pretendo lhe ensinar seu trabalho, mas qualquer um que faz tantas
perguntas e com tanto detalhe como Kreisler é que tem algum interesse no resultado do
assunto algo mais que passageiro.
—Sim, senhor Hathaway, já pensei nele—respondeu Pitt com emoção—. E de modo
algum descartei a possibilidade de que discutissem, fosse a respeito da África e o apoio do
Chancellor ao Rhodes, ou a respeito de qualquer outro assunto, possivelmente mais
pessoal, e que a discussão se convertesse em algo muito mais violento do que nenhum
dos dois tinha pretendido. Imagino ao Kreisler perfeitamente capaz tanto de atacar como
de defender-se se a situação o requer.
É possível que o faça além de forma instintiva, sobretudo se acordada nele uma fúria
incontrolada, e que, arrastado por esta, só muito tarde se dê conta de que cometeu um
assassinato.
O rosto do Hathaway se deformou em uma careta de aflição e desgosto.
—Que forma de comportar-se tão grave e pouco civilizada. Um temperamento tão
violento e falto de controle mal parece o de um ser humano, muito menos o de um homem
honorável ou inteligente. Que triste despojo. Espero que suas conjeturas não sejam
acertadas, superintendente. Kreisler tem reais possibilidades de alcançar metas mais altas
que essas.
Seguiram falando um pouco mais, mas ao cabo de dez minutos Pitt se levantou para
partir, sem ter conseguido saber nada novo a respeito de Susannah Chancellor e com um
estado de confusão acrescentado pela informação procedente da embaixada alemã.
—E o que tem isso que ver com algo?
Charlotte estava de visita para cumprimentar, na casa de sua avó, que, agora que a
mãe de Charlotte acabava de voltar a casar-se (coisa que a avó desaprovava com um
arrebatamento próximo à apoplexia), via-se obrigada a viver com a irmã de Charlotte e seu
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marido.
Para Emily e Jack não era um acerto agradável, a velha dama tinha um caráter
extremamente difícil. Mas tampouco podia continuar por mais tempo em Cater Street com
Caroline e Joshua.
De fato se negou categoricamente a isso, e não é que alguém lhe tivesse dado tal
oportunidade. E certamente em casa do Charlotte não havia nenhum aposento disponível,
embora também se negara a considerar sequer aquela possibilidade.
Não podia imaginar sequer viver na mesma casa que um membro da polícia, mesmo
que tivesse sido recentemente promovido e estivesse agora às portas da respeitabilidade.
No fim de contas e sob todos os pontos de vista, ser polícia, só em parte era melhor que
ser um membro da farândula! Jamais em toda a história da família Ellison nenhum de seus
membros se uniu em matrimônio com um ator até que Caroline tinha perdido o juízo e se
casara com um.
Claro está que Caroline era uma Ellison só por matrimônio. Sobre o que haveria dito
ao respeito o pobre Edward, o pai de Charlotte, só cabiam hipóteses. Era uma graça de
Deus que estivesse em sua tumba.
Charlotte tinha objetado que se não estivesse, a questão de se Caroline voltava a
casar-se com quem quisesse não se teria suscitado sequer. Sua avó lhe disse que não
fosse impertinente.
E agora que Emily e Jack estavam de férias na Itália e que a avó estava pois sozinha,
à margem dos criados, Charlotte se sentia obrigada pelo dever de visitá—la ao menos uma
vez cada quinze dias.
Mas uma vez cumprido aquele dever, pensava permitir um pequeno luxo: tinha ficado
com o Harriet Soames para ir visitar a feira de flores.
A avó estava ansiosa por escutar todos os falatórios que Charlotte pudesse lhe
contar. De fato, com o Caroline vivendo no Cater Street e as escassas visitas que recebia
de sua parte (pois como recém casada estava muito ocupada com seu marido) e com o
Emily e Jack no estrangeiro, morria por ter algo de que falar.
Charlotte tinha tirado distraidamente o tema da Amanda Pennecuick e o interesse do
Garston Aylmer por ela, e lhe tinha comentado o fato incomum de que Aylmer se tornara
um homem tão simples.
—É um fato muito revelador, para uma mulher que pensasse casar-se com ele —
disse Charlotte com franqueza.
Estavam acomodadas na saleta de visitas do Emily, grande, espaçosa e bastante
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ornamentada. Havia retratos de antepassados dos Ashworth em todas as paredes e um
tapete Aubusson confeccionado expressamente para aquela estadia.
—Frescuras!—replicou a velha dama—. Uma amostra mais de quão ligeira é! A
aparência de um homem é o que menos importa. —Olhou fixamente ao Charlotte—. Além
disso, se tanto te importasse, por que se casou com o Thomas? Não é um homem
precisamente bonito, nem especialmente bonito.
Em minha vida nunca vi um homem vestir-se pior! Se chegasse a ficar alguma vez,
seria capaz de obter que o melhor traje do Saville Row parecesse os farrapos de um
mendigo.
Traz o cabelo muito longo, e os bolsos tão cheios de coisas que parece uma loja de
curiosidades ambulante. E não lhe vi com a gravata bem posta desde o primeiro dia em
que o vi.
—Isso não é o mesmo que eu entendo por ser simples! —argüiu Charlotte.
—Pois eu gostaria de saber qual é a diferença— replicou a avó—. À margem, claro
está, de que um homem não pode fazer nada por melhorar seus traços físicos, mas
certamente sua indumentária. Vestir de forma suja é sintoma de uma mente descuidada,
como eu digo sempre.
—Pois eu nunca a tinha ouvido dizê—lo antes.
—Em todo caso seria por não ferir seus sentimentos, mas já que falou do assunto,
você mesma me pôs isso na bandeja. Quem é essa Amanda Xelins, ou Seispenis, ou
como quer que se chame?
—Pennecuick.
—Não seja engraçada. Isso não é uma resposta. Quem é essa mulher? — perguntou
a velha dama.
—Não sei, mas é realmente linda.
—Isso também é uma qualidade imaterial. Quem é sua família? Procede de bom
berço? Tem maneiras, dinheiro? Sabe comportar-se? Está bem relacionada, tem amigos
que a respaldem?
—Não sei, não acredito que ao senhor Aylmer lhe importe todo isso. Ele está
apaixonado por ela, não por seus parentes —particularizou Charlotte—. Já se encarregará
ele de ganhar o dinheiro suficiente. Ocupa um alto cargo no Ministério de Colônias, e
despertou grandes expectativas.
—Pois então você mesma acaba de responder a sua própria pergunta, garotinha tola.
Que diabo importa seu aspecto exterior? Tem boa educação e excelentes perspectivas de
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futuro, assim é uma boa presa para essa moça dos pennies, a qual não lhe faltou bom
senso para dar-se conta. É um homem de caráter agradável?—seus negros e pequenos
olhos brilhavam ao fazer a pergunta—. Bebe em excesso? Freqüenta más companhias?
—Parece muito agradável, e não tenho nem idéia se bebe ou não.
—Pois do momento em que tem superadas estas duas provas, é digno de
consideração—disse a modo de conclusão—. Não sei por que trouxe o assunto. Não tem
nada de particular.
Charlotte tentou de novo.
—Lhe interessa a astronomia.
—O que? Por que não fala claro? Diz umas coisas muito estranhas ultimamente.
Fala muito pior desde que te casou e te partiu de casa. Deve ser que te relaciona com
pobres diabos. A forma de falar sempre delata a educação de uma pessoa.
—O que acaba de dizer é uma contradição —observou Charlotte, em referência ao
fato de que a velha dama era sua antepassada direta.
—Não seja insolente!—disse a anciã, expedita, embora pelo rubor de desconforto em
seu rosto Charlotte se deu conta de que tinha captado o sarcasmo—. Todas as famílias
têm sua ovelha negra –acrescentou com perverso olhar—. Até nossa pobre e querida
rainha tem seus problemas. Olhe esse duque do Clarence, por exemplo. Não é capaz de
escolher uma mulher de bom berço nem sequer quando busca suas amantes, conforme
ouvi dizer.
E agora vem você e se põe a murmurar de não sei o que desgraçada, uma
jovenzinha que não é ninguém e que quer casar com um homem bem nascido, que
desfruta de uma excelente posição e até das melhores perspectivas de futuro. E só porque
é o bastante desventurado para ser bem simples. O que pretende com tudo isto?
—Ela não vai casar se com ele.
A velha dama soprou com ferocidade.
—Pois então é uma idiota, é o único que se pode dizer dela! E agora, por que não me
fala de algo sensato? Quase nem me perguntou como estou. Sabia que essa condenada
cozinheira do Emily me deu ontem à noite para jantar galinha fervida? E a noite anterior
cavala ao forno? E sem acompanhamento nenhum, e sem logo que veio. Sabia a peixe e
pouco mais. Com o que eu gostaria de uma lagosta ao forno, como quando Emily está em
casa.
—Talvez as que havia no mercado não lhe pareceram de boa qualidade —sugeriu
Charlotte.
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—Não me diga que nem sequer o tentou, porque não penso acreditar em você. Teria
preferido um pouco de lebre guisada. Sou muito partidária do guisado de lebre quando
está bem feito.
—Não é época —indicou Charlotte—. A vedação da lebre não se abre até setembro.
A velha dama a olhou com marcada displicência e trocou de tema, voltando de a
Amanda Pennecuick.
—O que te faz supor que essa tal Dinheiro Rápido é uma idiota?
—Foi você quem disse que é uma idiota, não eu.
—Você disse que não queria casar-se com esse homem porque o achava muito
simples, apesar de ser, em tudo e por tudo, uma boa presa. Isso quer dizer que é uma
idiota, segundo sua própria descrição. Como sabe que não quer casar-se com ele? Se ela
disse sim ou não, isso não vem ao caso.
O que eu pergunto é o que outras coisas diz! Como vai dizer que quer casar-se, isso
seria prematuro e vulgar. E a vulgaridade é algo imperdoável acima de tudo. E em extremo
imprudente.
—Imprudente? —objetou Charlotte.
A velha dama a olhou com franco desgosto.
—Pois claro que seria imprudente, garotinha tola. Ela não quererá que ele tome à
ligeira. —Deixou escapar um sonoro suspiro de impaciência—. Se permitir que ele a
menospreze desde o princípio, terá estabelecido o modelo de conduta para o resto de suas
vidas.
Dê-lhe a entender que pensa isso. Faz com que a corteje com tal diligência que
quando ao final te obtenha sinta que conseguiu uma grande vitória, e não que se levou
algo que ninguém mais quereria nem ver.
"De verdade, Charlotte, há vezes que me desespera. É muito inteligente para ler
livros, mas do que serve isso a uma mulher? Sua carreira está em seu lar, casada com o
melhor homem que tenha podido achar disposto a ficar com você.
Tem que lhe fazer feliz e procurar que suba tão alto na profissão que escolheu com
suas capacidades, e as tuas, permitam-lhe. Ou se for bastante inteligente para se casar
com um aristocrata, então procura que suba na sociedade e não contraia dívidas.
Grunhiu e trocou de postura com um frufrú da saia e um rangido do espartilho.
—Não estranho que tivesse que se conformar com um policial. Uma moça tão pouco
inteligente por natureza como você já teve bastante sorte encontrando alguém. Sua irmã
Emily, em troca, tem cérebro pelas duas. Saiu a seu pai, pobre homem. E você à louca de
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sua mãe.
—Já que é tão inteligente, avó, é uma autêntica desgraça que não tenhamos um
título, um imóvel no campo e uma fortuna, como corresponderia— disse Charlotte mordaz.
A velha dama a olhou com malicioso deleite.
—Eu não tenho a vantagem de sua boa aparência.
Era o primeiro elogio que Charlotte recordava ter recebido jamais da velha dama,
sobre tudo pelo que fazia a esse tema. Deixou—a sem réplica, apesar de que, como se
deu conta ao cabo de um segundo, sua intenção era haver-lhe dado.
Não obstante, depois de deixá—la e enquanto viajava em uma calesa em direção a
casa do Harriet Soames para ir juntas à feira de flores, perguntou-se se na verdade
Amanda Pennecuick não estaria fazendo em realidade o que sugeria a velha dama, e sua
autêntica intenção não seria a de aceitar, ao seu devido tempo as atenções do senhor
Aylmer.
Assim o comentou ao Harriet, enquanto ambas admiravam umas esplêndidas flores
primerizas dispostas em um jarro de cristal.
Harriet pareceu surpreendida a princípio, mas, logo, à medida que aquele
pensamento cobrava firmeza em sua mente, sua atitude mudou.
—Sabe?—disse com voz pausada—. Sabe que não é tão absurdo como parece?
Percebi na Amanda uma certa inconsistência em seu rechaço às atenções do Aylmer.
Ela diz que não tem nada em comum com ele salvo seu interesse pelas estrelas. Mas
jamais teria suspeitado que esse interesse era tão poderoso para levá—la a aceitar a
companhia de uma pessoa que de verdade lhe desagradasse. —
Soltou um risinho—. Que idéia tão deliciosa. A Bela e a Besta. Sim, acredito que pode
ser que tenha razão. De fato, assim o espero. —Estava exultante de prazer enquanto
passavam a admirar uma vasilha com chamativas tulipas, cujas pétalas se abriam como
lírios de brilhantes cores escarlate, laranja e amarelo fogo.
Pitt chegou a casa tarde e cansado, para encontrar Matthew Desmond que o estava
esperando, pálido, com o cabelo, marcado com risca, caindo sobre a testa como se tivesse
estado passando —os dedos por ele com gesto nervoso e distraído.
Em lugar de aceitar o oferecimento do Charlotte de sentar-se com ela no salão, tinhalhe rogado que lhe deixasse caminhar só pelo jardim. Ela, ao ver a confusão tão
claramente refletida em seu rosto, não tinha tratado de convencê—lo.
Era evidente que não era momento para o usual rigor da cortesia.
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—Está aqui há quase uma hora—disse ela com tranqüilidade enquanto Pitt olhava do
salão através da porta envidraçada a encurvada figura do Matthew perambular sob a
macieira. Era claro que não tinha percebido a chegada do Pitt.
—Disse-lhe se lhe aconteceu algo?—perguntou Pitt. Via de forma papável que havia
algo que causava ao Matthew uma intensa tortura mental. Se tratasse de uma aflição
normal teria esperado sentado no salão, compartilhando-a provavelmente com Charlotte,
pois sabia que Pitt o contaria a ela mais tarde de qualquer forma.
Conhecia o Matthew o suficiente para estar seguro de que não podia tratar-se já da
indecisão que tinha mostrado lhe afetar em sua última visita, mas sim de algo mais grave,
e até o momento não resolvido.
—Não— respondeu Charlotte com semblante preocupado, provavelmente pelo
Matthew, mas também pelo Pitt. Com olhos cheios de ternura, pareceu a ponto de dizer
algo, mas se deu conta de que não serviria de ajuda.
Fosse qual fosse o problema, era algo que não podia evitar-se por mais tempo, e
qualquer hipótese que se dissesse em voz alta não faria senão fazê-lo mais difícil, não
mais fácil.
Ele a tocou com gesto de silencioso reconhecimento e logo saiu pela porta ao jardim.
A suave erva camuflava seus passos, de modo que Matthew não se dispôs de sua
presença até que esteve apenas a três metros dele.
Matthew se voltou com gesto brusco. Por um instante em seu rosto se desenhou uma
expressão muito próxima ao terror, mas em seguida dissimulou seus sentimentos e tratou
de adotar uma compostura mais de acordo com sua habitual cortesia.
—Não, Matthew—disse Pitt com tranqüilidade.
—O que?
—Não trate de continuar fingindo. Há um grave problema que o envenena. Me diga o
que é.
—Oh! Eu... —Matthew fez um esforço por sorrir e logo fechou os olhos. Seu rosto se
sumiu na dor.
Pitt ficou impotente, cheio de apreensão e de um sentimento de ânsias de amparo,
como o que alguém só experimenta ante uma pessoa mais jovem e vulnerável a que viu e
conhecido durante uma longa série de anos.
Juntos ali debaixo da macieira, parecia-lhe como se todo o tempo transcorrido se
evaporara e lhes houvesse retroagido um quarto de século atrás, a uma época em que o
ano de mais que tinha era tão importante.
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Ansiava fazer algo, embora só fosse um ato tão elementar como segurá—lo entre
seus braços como se ainda fossem crianças.
Mas haviam muitos anos no meio e compreendia que isso era algo inaceitável.
Só podia esperar.
—O Ministério de Colônias— disse por fim Matthew—. Ainda não sabe quem é, não é
verdade?
—Não.
—Mas parte da informação procede de... —Voltou a guardar silêncio como se ainda
vacilasse ante a borda daquilo que se via impulsionado a dizer, mas que não podia
suportar.
Pitt esperava. Um pássaro gorjeava na macieira. Do outro lado da parede do jardim
relinchou um cavalo.
—Procede do Tesouro — concluiu Matthew.
—Sim —admitiu Pitt. Esteve a ponto de acrescentar os nomes das pessoas as quais
Ransley Soames tinha reduzido as possibilidades, mas se deu conta de que isso teria
suposto uma intrusão e que tampouco teria servido de ajuda. Optou por deixar que
Matthew dissesse o que fosse sem mais interrupções.
Matthew contemplava um raminho com flores da macieira que tinha caído sobre a
erva, emio de costas a Pitt.
—Há dois dias, Harriet me disse que tinha escutado sem pretendê—lo uma conversa
privada de seu pai, Ransley Soames. Dirigia-se a seu estúdio para falar com ele, sem
saber que ele estava falando por telefone. —Matthew calou de novo.
Pitt não disse nada.
Matthew respirou fundo e prosseguiu com voz pausada e rouca, como se tivesse a
garganta tão tensa que lhe custasse emitir as palavras através dela.
—Falava com alguém a respeito do financiamento do governo destinada à exploração
e colonização de Zambeze. Tal como Harriet me contou isso, havia vários aspectos
implicados.
Referiu-se ao Cecil Rhodes, ao MacKinnon, ao Emin Pasha, às possibilidades que se
ofereciam do Cabo até o Cairo, e à importância de uma base naval no Simonstown. Ao que
custaria aos britânicos se perdêssemos tudo isso.
Até aí, referido—o pelo Matthew não era mais que o que podia esperar-se que
Soames estivesse dizendo a um colega. Nada destacável em si mesmo, pelo resto.
Matthew continuava observando o raminho de macieira sobre a erva.
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—E depois disse: "A partir de agora não poderei voltar a falar com você de tudo isto.
Esteve aqui esse Pitt, o policial, assim não me atrevo a seguir adiante. Terá que se
arrumar-se com o que tem para fazer tudo o que possa. Sinto muito." E então, conforme
parece, pendurou o aparelho. Ela não compreendia o que estava me dizendo, mas eu sim.
—Matthew se voltou por fim para o Pitt, com olhos angustiados, como se esperasse que
algo o esmagasse de um momento a outro.
Agora a razão estava mais que clara. Ransley Soames era o traidor no Departamento
do Tesouro. Sua filha, inconscientemente, tinha—traído—o contando a Matthew. E este,
depois de atormentar-se com a indecisão, tinha acudido ao Pitt.
Só que ele não o tinha feito com ignorância. Ele sabia tudo o que isso significava e
via quais seriam as conseqüências de sua ação, mas mesmo assim, não tinha sido capaz
de atuar de outro modo.
Pitt não dizia nada. Não era necessário dizer em voz alta que seu dever era fazer uso
da informação que acabava de conhecer. Matthew já sabia desde o momento em que tinha
ido a sua casa.
Como tampouco podia lhe dizer que manteria o nome do Matthew, ou o do Harriet, à
margem do assunto, pois Matthew sabia que isso era impossível. Nem sequer cabia um
som amistoso que deixasse entender que tinha compreendido.
Sabia o que tudo aquilo significava. O que Matthew sentisse, ou o que fosse lhe
custar, ninguém podia sabê—lo além de meras conjeturas.
Limitou-se a lhe oferecer a mão com camaradagem de irmão, e em sinal de
admiração por um homem cuja integridade estava acima de qualquer outra consideração
mais acomodatícia para seu coração.
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Capítulo 10
Pitt não podia dormir. Primeiro permaneceu na cama em silêncio, sem saber se
Charlotte também estava acordada, mas por fim decidiu que estava adormecida e que não
se daria conta se se levantasse e saísse do quarto.
Pitt desceu ao primeiro piso e ficou de pé no salão, contemplando o jardim iluminado
pela débil luz do quarto crescente. Via apenas a pálida silhueta da macieira em flor e a
negra sombra que a árvore projetava sobre a erva.
No céu, retalhos de nuvem cobriam várias estrelas. Outras eram visíveis como
diminutos pontos de luz. O ar da noite era quente.
Em poucas semanas se achariam em pleno verão e apenas se viam fogos acesos no
milhão de casas; tão somente se via o brilho de algumas cozinhas econômicas, a fábrica
de gás e várias lareiras de fábrica.
Inclusive o vento, ligeiro, cheirava a limpo.
É claro, não era o mesmo que em Brackley, onde uma só baforada de ar trazia
consigo o aroma do feno e das folhas, dos úmidos bosques e da terra revolta.
Mas era melhor que o habitual, e se dava uma placidez que deveria contribuir com
sensação de calma. Em outras circunstâncias o teria feito.
Mas amanhã tinha que ir falar com o Ransley Soames. Não ficava outra alternativa.
Pitt sabia qual era a informação que tinha sido filtrada do Tesouro.
Matthew a tinha proporcionado em pessoa. E Soames tinha estado à corrente desde
o começo. Como o tinham estado muitos outros, mas Pitt recordava com precisão o que
lhe tinha ouvido dizer, em referência específica ao Simonstown e os bóeres, inclusive as
palavras concretas com que se referiu ao próprio Pitt.
A cena seria feia; era inevitável. Amanhã era sábado. Pitt o acharia em casa, o que
era quase o único detalhe positivo em todo o assunto. Soames poderia ser detido com
discrição, sem que seus colegas de trabalho tivessem por que inteirar-se do que lhe
acusava.
Por certo, a coisa seria quase insuportável para o Harriet. Mas estava claro que a
queda de um sempre implicava outros.
Sempre havia uma esposa, um filho ou um pai, um candidato a horrorizar-se,
desiludir-se e ver-se atormentado pela dor e vergonha.
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A gente só podia deixar que a coisa lhe afetasse até certo ponto, ou se acharia tão
afetado pela lástima que lhe resultaria impossível funcionar.
Pitt se apresentou na porta do Ransley Soames pouco depois das nove da manhã. O
mordomo olhou—o com curiosidade.
—Receio que se trata de um assunto que não pode esperar —declarou Pitt em tom
grave. Embora tinha feito que Tellman lhe acompanhasse, se por acaso a cena fosse muito
feia para enfrentar sozinho, Pitt tinha preferido deixá—lo na rua; só o chamaria se seu
concurso fora inevitável.
—Verei se o senhor Soames está em disposição de lhe receber— respondeu o
mordomo. Não era o eufemismo que estava acostumado a empregar-se nestes casos, mas
a finalidade era a mesma.
O mordomo se ausentou uns instantes e reapareceu com o rosto inexpressivo.
—Se for amável de me acompanhar, o senhor Soames o receberá em seu estúdio.
Em realidade tiveram que passar dez minutos antes que Soames aparecesse.
Pitt o esperou na tranqüila estadia pintada de verde claro e decorada com um
mobiliário recarregado, muitos quadros e fotografias, e uma planta cujo vaso tinha sido
regado em excesso. Em outras circunstâncias Pitt teria aproveitado para examinar as
prateleiras da estante.
Estas costumavam dar boa medida do caráter e as inquietações de uma pessoa. Mas
hoje não podia concentrar sua mente em outra coisa que o futuro imediato.
Contudo, observou alguns livros nos quais a África aparecia enfocada de uma
perspectiva bem idealista. Uma era uma novela do H. Rider Haggard, o outro as cartas de
um missionário.
A porta se abriu e Soames entrou, fechando—a atrás de si. Sua expressão era a de
quem está ligeiramente irritado, antes que inquieto.
—No que posso lhe ajudar, senhor Pitt?—disse em tom seco—. Imagino que se
tratará de algo urgente, ou não se teria apresentado em minha casa um sábado pela
manhã.
—Sim, senhor Soames, o é —reconheceu Pitt—. Como se trata de uma questão que
não admite delicadezas, direi diretamente. Senhor, tenho razões para saber que é quem
esteve filtrando dados financeiros do Tesouro a uma pessoa do Ministério de Colônias,
dados que terminaram em poder da embaixada alemã.
O sangue se amontoou no rosto do Soames até torná—lo escarlate; depois de um
momento de terrível silêncio, o sangue se esfumou, lhe deixando o rosto de um branco
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pastoso. Soames abriu a boca para dizer algo, para negar possivelmente, mas as palavras
morreram em sua língua. Era possível que intuira a culpa pintado em seu rosto e soubesse
do fútil, ridículo inclusive, de toda negativa.
—Não... Não é... —balbuciou—. Não o entende você— disse com acento
desventurado—. Não é...
—Não —coincidiu Pitt—. Não o entendo.
—Esses dados nunca foram autênticos! —Soames parecia que ia desmaiar a
qualquer momento, tão branca se via sua pele e tal era o suor gelado que ornava seu lábio
e seu cenho—. Se tratava de desinformar aos alemães!
Por um segundo, Pitt se sentiu tentado de acreditar nele. Entretanto, na hora
percebeu quão fácil era uma resposta assim, tão fácil como improvável.
—Já vejo—respondeu com frieza—. Nesse caso, possivelmente você possa me dar o
nome dos ministros do governo que estão ao corrente da armadilha. Temo que entre eles
não se incluem os do ministro de Exterior, o ministro das Colônias, nem o primeiro—
ministro.
—A coisa não... não se expôs desse modo. —Atormentado, Soames tinha o
desespero pintado nos olhos. E, entretanto, se apreciava uma fibra de honestidade neles.
Tratava-se acaso de uma última, apavorada tentativa por convencer-se a si mesmo?
—Nesse caso, faria bem em explicar o modo exato em que se expôs e quem mais
está à corrente —sugeriu Pitt.
—Mas se você já sabe... —Soames fixou o olhar nele, percebendo pela primeira vez
que não sabia o que Pitt conhecia, e que este ainda não lhe havia dito como tinha chegado
a inteirar do assunto.
—Senhor Soames, se não se tratar do que eu penso, terá que me dizer exatamente
do que se trata—disse Pitt, apressando-se a restabelecer sua posição. —me parece um
simples caso de traição, a transmissão de informação confidencial procedente do governo
a quem você sabia que acabaria entregando—a aos inimigos, rivais, se quiser, da Grã—
Bretanha.
O benefício extraído por você é coisa que ainda fica por esclarecer.
—Nenhum benefício! —Soames se mostrava indignado—. Por Deus que o expõe
você de forma odiosa! Eu transmiti essa informação a um homem capacitado e inteligente
que estava em disposição de distorcê—la—o justo para que resultasse enganosa e ao
mesmo tempo acreditável.
Se o fiz, não foi contra os interesses britânicos, mas sim para sua fiança na África
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Central e Oriental, e também no mar do Norte. Não espero que você entenda.
—Heligoland—respondeu Pitt com secura.
A surpresa do Soames foi transparente.
—Sim. Sim, isso mesmo.
—Passou você a informação a esse homem a fim de que a distorcesse?
—Precisamente.
Pitt suspirou.
—E como sabe que o fez?
—O que?
—Como sabe que efetivamente a distorceu antes de transmiti—la por sua vez?
—Deu—me sua palavra... —Soames se deteve; seu olhar refletiu instantânea
compreensão—. Você não me acredita...
—Senhor Soames, o melhor que se pode dizer em seu favor—disse Pitt em tom
fatigado— é que é muito ingênuo.
Soames desabou sobre a cadeira que tinha a suas costas.
—Quem é esse homem?—perguntou Pitt.
—Eu Não posso acreditar. —Soames fez um último esforço para aferrar-se a sua
inocência—. Ele, ele foi tão...
— Convincente — concluiu Pitt por ele—. Mas me parece difícil de acreditar que o
pudesse enganar com essa facilidade. —Ao dizê—lo, disse uma mentira. Bastava— ver o
rosto do Soames, cinzento e atormentado, para acreditar que o outro era efetivamente uma
pessoa muito ingênua.
—Seus argumentos foram tão...— começou Soames de novo, negando-se a renderse—. Seus raciocínios soavam tão lógicos. Os alemães não são tolos. — Soames passou
a mão pelo lábio suarento—. A informação devia ser quase exatamente certa. As mentiras
fantásticas eram demais.
—Isso posso aceitar — lembrou Pitt—. Inclusive a necessidade de oferecer
desinformação me é compreensível.
Os alemães estão muito interessados na África Oriental, em Zambeze e Zanzíbar
especialmente, e sei que estamos negociando um tratado de importância com eles.
O rosto do Soames se iluminou um pouco.
—Mas já temos um serviço secreto que se ocupa dessas coisas –acrescentou Pitt.
—Serviço que está subordinado aos ministérios de Colônias e Exterior! — Soames se
ergueu na cadeira, com um novo brilho no olhar—. A verdade, superintendente, parece—
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me que está levando mal este assunto.
—Nada disso, senhor Soames—respondeu Pitt na hora. — Se lhe tivessem pedido
esse tipo de dados para o fim que mencionamos, os teria pedido o senhor Chancellor ou o
mesmo Lorde Salisbury.
Ninguém lhe teria pedido que transmitisse a informação às escondidas, do mesmo
modo que lhe teriam assegurado não ter nada que temer de minha investigação.
De fato, eu não estaria levando investigação alguma, pois esta foi empreendida por
iniciativa do Foreign Office, secundado, como sabe você, pelo Ministério de Colônias.
Em ambos os ministérios estende a preocupação pela informação transmitida aos
alemães, informação que eles têm por muito exata.
Soames se sentou na beira da cadeira com o corpo enfraquecido por um desespero
momentâneo. De repente ergueu o corpo e ficou em pé de um salto, aproximando-se do
telefone, que desprendeu fixando um olhar desafiante no Pitt.
—Posso explicar tudo!
Soames falou com a operadora e pediu conexão com a residência de Lorde
Salisbury, cujo número lhe proporcionou. Seus olhos não abandonaram ao Pitt por um
instante.
Em parte, Pitt sentia lástima por ele. Soames seria tão arrogante como confiante, mas
não era traidor sabendo.
A linha telefônica crepitou em seu outro extremo.
Soames conteve o fôlego para dizer algo, mas de repente se deu conta da futilidade
do esforço.
Com lentidão, pendurou o aparelho.
Pitt não precisou fazer comentário algum. Parecia como se ao Soames fossem falhar
os joelhos em qualquer instante.
—A quem entregou você esses dados? —voltou a perguntar Pitt.
—Ao Jeremiah Thorne— respondeu Soames com os lábios rígidos—. Os entreguei
ao Jeremiah Thorne.
Antes que Pitt pudesse efetuar comentário algum, antes inclusive que pudesse
perguntar-se se o outro lhe havia dito a verdade, a porta se abriu e Harriet Soames
apareceu na soleira com o rosto pálido e os olhos muito abertos e dispostos à acusação.
Harriet olhou a seu pai e percebeu sua extrema agitação, próxima ao colapso total;
seus olhos se voltaram para o Pitt com indignação.
—Papai, parece doente. O que aconteceu? Senhor Pitt, o que faz você aqui a esta
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hora do dia? Sua visita não terá que ver com o falecimento da senhora Chancellor? —
Harriet deu um passo à frente e fechou a porta.
—Não, senhorita Soames—respondeu Pitt—. Pelo que sei, a questão que me traz
aqui não guarda relação com o falecimento. Mas acredito que seria melhor que nos
deixasse concluir nossa conversa a sós.
Depois, o senhor Soames a poderá pôr à corrente do modo que achar oportuno.
Harriet se aproximou de seu pai, com os olhos relampejando apesar do alarme que
sentia em seu interior, alarme que cada vez estava mais próxima ao medo.
—Não. Não irei saber o que acontece aqui. Papai, que problema há? —O medo a
levava a elevar a voz. Seu pai mostrava um aspecto tão desesperado, tão desprovido da
confiança e o otimismo que exibisse somente uma hora antes. Parecia como se a
vitalidade lhe tivesse escapado pelos poros.
—Querida... eu... —Soames tentou elaborar uma explicação, mas o esforço lhe foi
excessivo. A verdade era muito esmagadora para andar com circunlóquios—. Cometi um
terrível engano. —Soames o tentou de novo—. Me deixei manipular por alguém que soube
me proporcionar uma mentira plausível, um homem cuja honra jamais pus em dúvida.
—Quem? —A voz do Harriet raiava o pânico—. Quem o manipulou? Não entendo a
que se refere. O que faz o senhor Pitt aqui? Por que chamou à polícia? Se alguém o
enganou, que ajuda lhe pode oferecer o senhor Pitt? Não seria melhor...não sei, arrumar a
questão em privado?—seu olhar passou de seu pai ao Pitt, para voltar a concentrar-se em
seu pai—. Foi muito dinheiro?
Soames parecia incapaz de oferecer uma explicação coerente. Pitt não podia
suportar seus sofrimentos por mais tempo.
A contemplação de seu desespero e sua luta interior constituía uma intrusão por
completo desnecessária na vergonha que disparava flechas a aquele homem. Um golpe
limpo e certeiro seria mais justo.
—O senhor Soames esteve transmitindo informação reservada a um espião —
explicou ao Harriet—. Seu pai achava que esse homem faria uso dela para reforçar os
interesses britânicos na África, manipulando esses dados antes de pô—los a
conhecimento da Alemanha.
Entretanto, esta iniciativa nunca foi passada pelos ministérios de Colônias ou Exterior.
Pelo contrário, a instâncias deles recebi a ordem de investigar de onde procedia a filtração.
Harriet olhou—o com incredulidade.
—Não pode ser! Tem que ser um engano! —Harriet se jogou sobre seu pai, com a
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boca aberta, em demanda de uma explicação; nesse momento percebeu a profundidade
de sua angústia e, de modo terrível, compreendeu que a acusação não era vã.
Harriet se voltou para o Pitt—. Muito bem. Seja o que for—disse em tom furioso—, é
possível que meu pai tenha sido manipulado, mas isso não lhe autoriza a duvidar de sua
venerabilidade. —A voz lhe tremeu ao aproximar-se ainda mais ao Soames, como se este
precisasse de um amparo físico que ela estava disposta a lhe oferecer.
—Em nenhum momento pus em dúvida sua venerabilidade, senhorita Soames —
respondeu Pitt em tom conciliador—. Não no que a seu pai se refere.
—Então, o que faz você aqui? Faria melhor em perseguir a quem tem enganado a
meu pai e irradiado essa informação.
—Só soube o nome dessa pessoa quando seu pai me disse.
Harriet ergueu o queixo.
—Se não sabia seu nome, como podia saber que o assunto tinha que ver com meu
pai?
Possivelmente não tenha nada que ver. Pensou nisso, senhor superintendente?
—Pensei, senhorita Soames. Mas não é o caso.
—Demonstre—o —desafiou ela, olhando ao Pitt com os olhos brilhantes, o rosto
imóvel, o queixo crispado, o diferente perfil tão rígido como se tivesse sido esculpido em
pedra clara.
—Deixa—o, Harriet—lhe interrompeu Soames por fim—. O senhor superintendente
ouviu minhas próprias palavras no momento de transmitir esses dados.
Não sei como o fez, mas agora mesmo me acaba isso de demonstrar.
Harriet continuava imóvel, como petrificada.
—Que conversa? Com quem?
Soames olhou ao Pitt, com a pergunta nos olhos.
Pitt negou com a cabeça.
—Com o homem do Ministério de Colônias—respondeu Soames, evitando fazer
menção de seu nome.
—Que conversa? —A voz soou abafada na garganta de Harriet—. Quando?
—Na quarta—feira à tarde. por que o pergunta? O que importa isso agora?
Harriet se voltou com lentidão para olhar ao Pitt. O horror pintado em seus olhos e o
desgosto tão absoluto e terrível expresso em seu rosto enfeiavam suas feições.
—Matthew —murmurou—. Matthew o disse, verdade?
Pitt não soube o que dizer. Não podia negá—lo, e tampouco lhe era possível
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confirmar que sua acusação era certa.
Seria tão néscio como incrível sugerir que Matthew possivelmente não tinha
entendido bem o alcance do expresso, ou o que derivava de suas palavras.
—Não o nega porque não pode negá—lo! —acusou Harriet.
—Harriet —atravessou Soames.
Harriet se voltou para ele.
—Matthew o enganou, papai. Como me enganou . Enganou a ambos por razão de
seu precioso Ministério de Colônias. A coisa lhe valerá uma promoção, mas lhe custará a
ruína. —Havia um soluço em sua voz.
Harriet estava a um passo das lágrimas, de perder o controle sobre si mesma.
Pitt pensou defender ao Matthew, em falar em seu favor inclusive, mas a expressão
no rosto do Harriet lhe fez compreender que isso seria inútil e, em todo caso, Matthew
tinha direito a explicar-se por si mesmo.
Pitt não tinha por que antecipar-se o por muito tentado que estivesse de fazê-lo. Seu
olhar se cruzou com os olhos de Harriet, marcados por uma dor tão insuportável como
furiosa era sua confusão e o anseio de proteger a seu pai.
Pitt a compreendia muito além do que a razão ou as palavras pudessem expressar.
O superintendente queria proteger ao Matthew da dor que sabia inevitável; ao mesmo
tempo, o mesmo feroz instinto lhe empurrava a proteger a faceta débil e vulnerável que
ardia no interior da moça.
Mas nenhum dos dois podia fazer nada.
—É... é desprezível—disse ela, recuperando o fôlego, sufocada—. Como se pode ser
tão... tão rasteiro?
—A quem se refere, senhorita Soames? A quem revela os segredos que sua pátria
lhe confiou, ou a quem descobre essa traição às autoridades? —apontou Pitt com calma.
Harriet tinha perdido a cor nos lábios.
—Não, não é um caso de traição. —A moça tinha dificuldade em pronunciar a
palavra. — Enganaram—no. Este não é um caso de traição, E... e não tente desculpar ao
Matthew, isso jamais!
Soames ficou em pé com dificuldade.
—Está claro que devo me demitir.
Pitt preferiu evitar que apenas restava outra opção.
—Sim, senhor — concordou—. Enquanto isso, acredito que o melhor seria que me
acompanhasse à delegacia de polícia do Bowl Street e prestasse uma declaração em
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relação com o que acaba de me dizer.
—Suponho que não há outro remédio —concordou Soames a contragosto—. Eu me
apresentarei na segunda—feira na delegacia de polícia.
—Não, senhor Soames. Terá que vir agora mesmo —resolveu Pitt com firmeza.
Soames lhe olhou sobressaltado.
Harriet se aproximou de seu pai e lhe rodeou um braço com o seu.
—Já o ouviu, senhor superintendente. Meu pai se apresentará na segunda—feira! Já
conseguiu você o que queria. Que mais quer agora? Meu pai está na ruína! Parece-lhe
pouco?
—Não sou eu quem tem que estar satisfeito, senhorita Soames—respondeu Pitt com
toda a paciência que pôde solicitar.
Não tinha certeza de que Harriet fosse tão ingênua como aparentava—. Seu pai não
é o único nesta tragédia. Há outras pessoas que devem ser presas.
—Pois vá e prenda—os! Cumpra com sua obrigação! Não sei o que lhe retém aqui!
—O telefone. —Pitt voltou o olhar para o aparelho.
—O que acontece com o telefone? —Harriet contemplou o aparelho com infinito
desgosto—. Se quer fazer uma chamada, pode fazê—la!
—Como também podem fazê—la vocês —indicou Pitt—. A fim de avisar a outros,
para que se esfumem antes de que eu apareça. Parece—me evidente a necessidade de
agir agora mesmo, sem deixar para segunda—feira.
—Oh!
—Senhor Soames? —Pitt estava à espera, cada vez mais impaciente.
—Sim, Eu... —Soames se mostrava confundido, enfraquecido inclusive. Por um
momento, Pitt sentiu quase tanta pena por ele como a que pudesse sentir Harriet.
Ao mesmo tempo, exasperava-lhe sua própria negligência.
Tinha sido bastante arrogante para acreditar-se mais preparado que seus colegas,
empurrado sem dúvida por um indício de vaidade ante o conhecimento de segredos que
não estavam em poder de todo o mundo.
Tratava-se de um pecado comum, que agora lhe custaria um preço exorbitante.
Pitt abriu a porta para que saísse Soames.
—Eu vou com ele! —anunciou Harriet em tom desafiante.
—Não. Nada disso—respondeu Pitt.
—Eu...
—Por favor! —Soames voltou o rosto para ela—. Por favor, me deixe um pouco de
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dignidade, querida. É melhor passar por este transe a sós.
Harriet deu um passo atrás enquanto as lágrimas se derramavam por suas faces. Pitt
saiu com o Soames, deixando—a na porta, com o rosto sulcado por uma indignação e uma
dor insuportáveis.
Pitt levou Soames a Bowl Street, onde lhe deixou com o Tellman, a quem ordenou
que lhe extraísse os detalhes precisos sobre a informação transmitida ao Thorne, o como e
o quando. Pitt tinha hesitado em levá—lo diretamente à delegacia de polícia; a questão era
delicada e a ordem de investigá—la tinha provindo das altas esferas.
Entretanto, dada a relação existente entre ambos, não podia levá—lo ante Matthew, a
pessoa que a princípio tinha originado a investigação.
Tampouco podia levá—lo ante Linus Chancellor, que se acharia em casa a esta hora
do sábado, e em um ânimo que não era o mais adequado para tratar um assunto assim.
E tampouco tinha plena confiança nas demais pessoas envolvidas no caso, nem
estava certo de achá—las no Ministério de Colônias, caso a tivesse tido.
Não tinha o poder para acudir diretamente a Lorde Salisbury, e menos ainda ao
primeiro—ministro. O que faria seria deter o Thorne, e elaborar para o Farnsworth um
informe completo do acontecido.
Pitt levou a dois agentes consigo, se por acaso Thorne ficasse violento. O que não
era descartável.
Além disso, teriam que efetuar uma revista de seu lar e evitar a possível destruição
de provas adicionais que sem dúvida seriam úteis em caso de julgamento. Também era
possível que o governo preferisse resolver a questão de forma discreta para não revelar o
vulnerável de sua posição e o engano cometido em primeira instância.
Pitt chegou de carruagem de cavalos com os agentes, e situou a um deles junto à
porta traseira se por acaso Thorne tentasse fugir. Uma tentativa assim seria tão indigna
como absurda, mas não estava fora do possível. Todo mundo pode ser presa do pânico,
inclusive quem menos se imagina.
Um mordomo abriu a porta. Seu aspecto era inexpressivo em extremo; de fato, a
palidez de seu rosto sugeria que alguma circunstância acabava de comocioná—lo, sem
que ainda pudesse se recuperar de tudo.
—Senhor?—perguntou sem expressão.
—Quero ver o senhor Thorne. —Pitt preferiu deixar de cortesias e ir ao ponto.
—Sinto muito, senhor, o senhor não está em casa—respondeu o mordomo, sem que
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nenhuma emoção aflorasse ainda a seu rosto.
—Quando se espera sua volta? —Pitt sentia uma surpreendente frustração,
provavelmente porque Thorne e Christabel lhe tinham sido simpáticos, e detestava a
missão que se encomendara. Os atrasos faziam que o gole fosse pior, por prolongado.
—Temo que nunca, senhor. —O mordomo parecia confuso e inquieto; seus olhos se
cruzaram com os do Pitt pela primeira vez.
—O que quer dizer? —saltou Pitt—. Quer dizer que a nenhuma hora em particular? E
a senhora Thorne? Está ela em casa?
—Não, senhor. O senhor e a senhora Thorne saíram para o Portugal ontem de noite,
e soube que não pensam voltar para a Inglaterra.
—Que não... pensam voltar? —Pitt não conseguia acreditar.
—Não, senhor, temo que não. Os criados da casa foram despedidos. Só ficamos o
mordomo e eu, unicamente para nos ocupar de tudo até que o procurador do senhor
Thorne disponha o que fazer com a casa e o que há nela.
Pitt ficou estático. Thorne tinha fugido. E se Thorne partira a noite anterior, não era ao
Soames a quem cabia culpar. De fato, Thorne tinha escapado sem avisar ao Soames,
coisa que tinha tido ocasião de fazer.
—Quem esteve aqui ontem? —demandou em tom cominativo—. Me diga exatamente
quem veio de visita ontem.
—O senhor Aylmer, senhor. Apresentou-se pela tarde, pouco depois que o senhor
Thorne voltara do Ministério de Colônias, por volta das quatro, e meia hora depois se
apresentou um certo senhor Kreisler.
—Kreisler? —Pitt interrompeu—o no ato.
—Sim, senhor. Esteve aqui por espaço de uma meia hora, senhor.
Pitt resmungou uma imprecação.
—E a que hora lhe informou o senhor Thorne de sua viagem a Portugal? A que hora
fez os preparativos para sua marcha?
Uma carruagem de partilha estralou pela rua, passando junto a eles; cinqüenta
metros mais abaixo, uma criada desceu da escada de sua casa com um colchão que
começou a sacudir.
—Não sei a que hora fez os preparativos, senhor—respondeu o mordomo—.
Mas partiu coisa de uma hora depois, um pouco antes inclusive.
—Mas a que hora fez a bagagem? Quando avisou aos criados de sua marcha?
—Só levaram duas malas grandes consigo, senhor, e que eu saiba, estas foram
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dispostas justo depois da chegada do senhor Kreisler. O senhor Thorne nos avisou nesse
momento, senhor. O aviso nos pilhou de surpresa e...
—A noite passada?—interrompeu Pitt—. Avisou—os a noite passada? Mas é
impossível que outros criados partissem ontem mesmo de noite. Onde teriam podido ir?
—Não, senhor. —O mordomo denegou com a cabeça—. Uma das criadas do
primeiro piso se achava já em casa de sua irmã; parece que se produziu uma morte na
família. Assim a outra criada também partiu com ela esta manhã; as duas são irmãs, sabe
você?
A criada da senhora Thorne estava de férias. —O mordomo pareceu surpreender-se
ao dizê—lo; os criados não tinham férias—. E a cozinheira parte esta tarde. É uma
cozinheira excelente, que muitos lares disputavam. —O mordomo expressou certa
satisfação ao descrevê—la—. Lady Brompton estará encantada de contar com ela. Leva
anos perseguindo—a.
Por outra parte, os vizinhos do lado precisam dos serviços de um encarregado do
vestuário, e a senhora Thorne já se encarregou de procurar novos empregadores para a
criada.
Então a fuga não tinha sido por completo repentina! Os Thorne já se prepararam para
tal eventualidade. Kreisler se tinha limitado a lhes anunciar que tinha chegado o momento
de escapar.
Mas por que? Por que Kreisler os tinha avisado, em vez de deixar que fossem
apanhados? O papel jogado pelo Kreisler neste assunto era cada vez menos claro, como o
era sua relação com a morte do Susannah Chancellor.
O mordomo tinha o olhar fixo nele.
—Desculpe-me, senhor, mas é você o superintendente Pitt, certo?
—Sim.
—Nesse caso, senhor, o senhor Thorne deixou uma carta para você. Está sobre o
aparador da lareira, na biblioteca. Se for amável de aguardar um momento, agora mesmo
a trago.
—Não é preciso—disse Pitt—. Receio que estou obrigado a revistar a casa.
—Revistar a casa? —O mordomo estava atônito—. Para que? Não sei se posso
permitir algo assim A não ser que —O mordomo se deteve, sem saber bem o que dizer.
Agora que seu senhor partira, ao que parecia para não voltar jamais, seu emprego
tinha os dias contados, por muito que tivesse recebido uma generosa quitação e uma
excelente carta de recomendação. E Pitt era da polícia.
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—Sábia decisão—disse Pitt, lendo suas feições. Voltando-se para agente situado ao
pé dos degraus, ordenou que—: Traga o Hammond da parte traseira e revistem a casa. Eu
estarei na biblioteca.
—O que há sobre o senhor Thorne, senhor?
Pitt sorriu com malícia.
—Receio que o senhor e a senhora Thorne partiram ao Portugal ontem de noite. E
não se espera que retornem.
O agente ficou com a boca aberta. Embora fez gesto de acrescentar alguma coisa, na
hora mudou de opinião.
—Sim, senhor. Agora mesmo vou atrás de Hammond, senhor.
—Obrigado. —Pitt entrou no saguão e seguiu ao mordomo até a biblioteca.
A estadia era sóbria e agradável, com cortinas verde escuro e claras paredes de
damasco. Os quadros apareciam dispostos de maneira um tanto curiosa; depois de um
momento de observação, compreendeu que era assim porque três ou quatro deles tinham
sido tirados das paredes.
Sem dúvida se tratava dos mais valiosos ou os de maior valor sentimental. Os móveis
eram velhos; a biblioteca de mogno reluzia com brilho de gerações e exibia um cristal
gretado. As cadeiras apareciam ligeiramente desgastadas, como se tivessem sido
ocupadas durante noites inteiras junto à lareira.
O guarda—fogo da lareira mostrava uma pequena amolgadura e se via um diminuto
ponto marrom no tapete, ali onde tinha saltado uma faísca. Um vaso de tulipas tardias,
abertas e chamativas como lírios contribuíam uma nota de perfume e calor à sala.
Um gatinho de pelagem alaranjada jazia enroscado sobre uma almofada, ao que
parecia profundamente adormecido.
Outro gatinho, igualmente pequeno, possivelmente não maior de nove ou dez
semanas descansava sobre uma cadeira, mas esta era de cor cinza escura, mostrando
ainda as franjas sombreadas da infância. O gatinho não estava enroscado sobre si mesmo,
mas sim jazia completamente estirado, tão adormecido como seu companheiro.
O olhar do Pitt detectou a carta imediatamente. A missiva estava apoiada em cima da
cornija, com seu nome escrito na capa.
Pitt pegou a carta, que abriu e começou a ler.
Estimado senhor Pitt:
Quando ler estas linhas, Christabel e eu estaremos navegando pelo canal da Mancha
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em direção a Portugal. O que é claro significa que já teria adivinhado que fui eu quem
esteve proporcionando informação proveniente do Ministério de Colônias e do Tesouro à
embaixada da Alemanha.
O que você não sabe são meus motivos para agir assim.
Tampouco acredito que saiba que essa informação foi falsa quase em sua totalidade.
Naturalmente, a princípio tive que oferecer dados verdadeiros; mais tarde, quando ganhei
sua confiança, os dados foram falsos em muito pequena medida, o suficiente para que não
fossem de nenhuma utilidade.
Nunca estive na África pessoalmente, mas sei muito sobre ela graças aos anos
vividos no Ministério de Colônias. Através de cartas e informe, sei mais do que você pode
imaginar a respeito das atrocidades cometidas pelo homem branco em nome da
civilização.
Não estou falando de mortes ocasionais, nem sequer de matanças ocasionais. Estas
se deram através de toda a história, e possivelmente continuarão acontecendo.
Certamente, o negro é tão capaz de cometer atrocidades como o resto dos homens.
Refiro—me à cobiça e a estupidez, a espoliação da terra e a submissão —a destruição
inclusive— de uma nação humana, da perda de sua cultura e suas crenças, da
degradação de uma raça.
Não tenho grandes esperanças em que a Grã—Bretanha mostre uma atitude mais
justa ou sábia. Estou certo de que não será assim. Entretanto, entre nós há quem acredita
na necessidade de agir, quem conservo certa humanidade, certas normas de conduta e
honra tendentes a mitigar os piores efeitos da colonização.
Se, por outro lado, a Alemanha se faz com a África Oriental, Zanzíbar e o resto dessa
costa —o que são muito capazes de fazer, vista nossa atual indecisão—, é inevitável a
guerra entre os ingleses estacionados na África Central e os alemães ao oeste. No oeste,
a Bélgica se verá arrastada ao conflito, como o será o que fica dos velhos Sultanatos
Árabes.
O que uma vez foram escaramuças tribais dirimidas com lanças e azagayas se
converterá em uma guerra total lutada com canhões e metralhadoras, pois a Europa
banhará a África em sangue a fim de dirimir suas velhas rivalidades e suas mais recentes
cobiças.
A hegemonia de uma só potência européia constitui melhor alternativa; naturalmente,
eu prefiro que essa potência seja Grã—Bretanha, por razões de índole moral e política.
A tal fim, estive proporcionando à embaixada alemã informação distorcida relativa a
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jazidas de mineral, diferentes enfermidades endêmicas e sua extensão em distintas áreas,
o custo de determinadas expedições, suas perdas, o entusiasmo ou retraimento de quem
as tem financiado. Acredito que agora entenderá meu propósito.
É necessário que lhe explique por que não agi através dos canais oficiais do
Ministério de Colônias? Certamente que não! Além da razão óbvia de que quantos mais se
inteirem de uma operação, mais improvável se faz conservar o segredo e garantir o êxito
da iniciativa, estou convencido de que Linus Chancellor jamais teria autorizado um plano
assim.
Já me encarreguei de sondá—lo, com muito tato.
Em adição e como você sabe, Lorde Salisbury mostra uma atitude muito ambivalente
em relação com a África, e não se pode confiar em que seu atual entusiasmo seja muito
duradouro.
O pobre Ransley Soames é muito confiante, uma das pessoas mais fáceis de
enganar que conheci. Mas seu único pecado é uma vaidade superior a suas forças.
Não seja muito duro com ele. O ter sido o idiota é suficiente castigo para ele. É um
golpe do qual nunca se recuperará.
Não tenho idéia de quem assassinou a pobre Susannah, nem por que. Se tivesse
sido eu, não duvide que o diria nesta carta.
Tome cuidado com o Círculo Interior. Seu poder é maior do que você pensa, e sua
fome é insaciável. Acima de tudo, são de quem nunca perdoa. O pobre Arthur Desmond
teve ocasião se soubesse, como suponho que não esquecerá.
Desmond traiu seus segredos, e o pagou com a vida.
Por certo, isto é algo que deduzi depois que Desmond me falou de suas convicções
íntimas; conheço o bastante do Círculo para saber que sua morte não foi acidental.
Desmond sabia que estava em perigo.
Já o tinham ameaçado antes, mas achava que o jogo era muito importante para
abandoná—lo. Desmond era um dos melhores; nunca o esquecerei. Não sei quem
idealizou sua morte, nem como foi executada esta, mas sim sei o porquê.
Dei aviso aos criados; todos receberão um mês de salário e boas referências. Meu
procurador se encarregará de todo o relacionado com minha casa e meus pertences; o
resultante será entregue à instituição de caridade de Christabel.
Esse dinheiro cairá como água chovida do céu. Já que não está você em disposição
de acusar a de traição, imagino que se absterá de interferir no disposto.
Meus criados são boas pessoas, mas imagino que se sentirão tão confusos como
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alarmados. Por isso queria lhe pedir um favor pessoal.
Os dois gatinhos do Christabel, Angus e Archie, tiveram que ser deixados atrás. Faria
você o favor de levar-lhe e olhar que fossem adotados em alguma boa casa juntos, se for
possível?
Os dois são inseparáveis. Archie é o alaranjado, Angus o negro.
Agradeço de antemão.
Finalizar com um "seu" possivelmente pareça absurdo, quando está claro que não o
sou.
Mas lhe escrevo com franqueza: sou homem de princípios, como acredito que o é
você.
JEREMIAH THORNE.
Pitt ficou plantado com o papel entre as mãos, como se mal pudesse compreender o
que estava escrito nele.
E, entretanto, quanto mais refletia, mais sentido tinha tudo. Não podia perdoar o que
tinha feito Thorne, como não podia condenar por inteiro os meios de que se valera.
Sua batalha era uma batalha contra o Círculo Interior tanto como contra Alemanha,
entretanto aí se achava desamparado.
Tudo que podia fazer era efetuar uma advertência o mais explícita possível.
Tinha conhecido a Sir Arthur. Se tivesse ficado o menor vestígio de dúvida, isso teria
bastado para dissipá—la.
E contudo, continuava pensando que a África estava melhor em mãos britânicas que
alemãs, que isso era inclusive preferível a uma nação dividida. O que dizia a respeito da
guerra era certo de modo quase seguro, o que supunha um desastre de proporções
inabarcáveis.
Como era que Kreisler lhe tinha avisado? Seus princípios não eram os mesmos.
Ou acaso não tinha sido deliberado? Era possível que Kreisler lhe tivesse feito
perguntas e que Thorne tivesse adivinhado o que se escondia atrás destas?
A estas alturas, tratava-se de conjeturas acadêmicas. Embora assim se explicava
como era que nenhum dos dados do Hathaway tinham chegado à embaixada alemã.
Thorne se tinha encarregado de alterá—los.
Pitt lançou um olhar à sala cômoda e agradável: o relógio de similor que tictaqueava
sobre a cornija da lareira onde tinha encontrado a carta, os quadros das paredes, em sua
maioria sombrias cenas holandesas, paisagens com água e animais.
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Pitt nunca tinha apreciado antes a beleza que podiam ter vacas, como um corpo com
tantos ossos protuberantes podia exibir semelhante ar de paz.
Na cadeira que havia sob seu cotovelo, Archie, o gatinho alaranjado, estendeu uma
pata sedosa de garras estendidas, soltou um pequeno miado de satisfação e ficou a
ronronar.
—Que diabos vou fazer com você?—perguntou Pitt, admirando por forma
inconsciente a perfeição do animal. O gatinho tinha uma cara em forma de estrela, com
reluzentes olhos azulverdosos e orelhas enormes. O gatinho o observava com curiosidade,
sem mostrar o mínimo temor.
Pitt estendeu a mão e tocou a campainha. O mordomo se apresentou imediatamente.
Sem dúvida tinha estado esperando no saguão.
—O senhor Thorne me pede que leve estes gatos— disse Pitt, franzindo o cenho.
—Oh, me alegro—respondeu o mordomo com alívio—. Temia que não houvesse
mais remédio que desfazer-se deles. Isso seria terrível. São dois pequeninos muito
simpáticos. Agora mesmo lhe trago uma cesta, senhor. Estou certo que haverá alguma que
lhe sirva.
—Obrigado.
—Não mereço. Agora mesmo vou procurá-la.
Pitt levou os gatinhos, pois não tinha outra alternativa. Além disso, queria falar com
Charlotte de Soames, e sabia que o acontecido faria racho no Matthew.
A noite passada não havia dito nada ao Charlotte, aferrando-se à remota
possibilidade de que tudo fosse um engano, por muito que soubesse que algo não
encaixava em todo o assunto.
Matthew tinha saído sem esperar para comer, ou a falar com ambos, e Charlotte lhe
tinha observado partir com ansiedade no rosto e inquietação nos olhos.
O primeiro que fez foi lhe mostrar os gatinhos. Ambos mostravam igual irritação por
achar-se na cesta, desejosos de sair dali quanto antes, coisa que precedia às demais
considerações.
—Que bonitos são! —exclamou ela com delícia, deixando a cesta no chão da
cozinha—. Oh, Thomas, são uma preciosidade! De onde diabo os tirou? Sempre quis ter
um gato, desde que nos mudamos, mas não conheço ninguém que tenha tido gatinhos. —
Charlotte ergueu o olhar e lhe contemplou com a alegria pintada no rosto, antes de
devolver sua atenção à cesta.
Archie brincava com seu dedo enquanto Angus a olhava com seus dourados olhos
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redondos.
—Tenho que pensar em uns nomes para eles.
—Já têm nome—se apressou a informar ele—. Estes gatinhos eram de Christabel
Thorne.
—Eram? —Sobressaltada, Charlotte levantou a cabeça para ele—. Por que diz isso?
O que lhe aconteceu? Disse—me que se achava bem!
—E espero que continue assim. Jeremiah Thorne era o traidor oculto no Ministério de
Colônias, se "traidor" for a palavra adequada, coisa que não saberia lhe dizer.
—Jeremiah Thorne? —Charlotte parecia aniquilada, com uma súbita tristeza pintada
no rosto. Os gatinhos passaram a segundo plano, apesar de que Archie se entretinha em
mordiscar e lamber seu dedo, que segurava entre suas patinhas—.
Imagino que estará seguro do que diz. Detiveste—o?
—Não. Os dois partiram para Portugal. Foram-se ontem de noite. Suspeito que as
contínuas perguntas do Kreisler terminaram por avisá—los.
—Partiram? —A expressão de Charlotte se tornou sóbria—. Oh. Sinto muito. Eu...
Pitt sorriu.
—Não terá que desculpar-se por sentir alívio. Eu mesmo o sinto, por muitas razões, a
primeira delas, que lhes tinha muito apreço.
O rosto dela expressava uma mescla de curiosidade, confusão e sentimento de culpa.
—A que se refere? Acaso sua fuga não o prejudica, como também prejudica a
Inglaterra?
—A mim, possivelmente sim. Farnsworth o pode levar a mal, mas também pode ser
que compreenda que, se os tivesse apanhado, não seria fácil decidir o que fazer com eles.
—Julgá—los— respondeu ela imediatamente—. Por traição!
—E expor assim nossa própria debilidade?
—Oh. Já entendo. Não seria muito conveniente, em um momento em que estamos
negociando tratados. O assunto nos faria aparecer como incompetentes, certo?
—Muito. E, além disso, terá que ter em conta que a informação transmitida pelo
Thorne era inexata.
—Fez isso de propósito? Ou também ele foi incompetente? —Charlotte se sentou
frente a ele, deixando que os gatos começassem a explorar seu novo lar com entusiasmo.
—Oh, não, fez isso de propósito—respondeu ele—. Por isso, se fosse levado a
julgamento, teria que defender-se fazendo—o constar, o que arruinaria todo seu trabalho e,
a nós, faria-nos ficar como uns néscios.
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Não, considerando—o bem, eu acredito que o melhor é que foi para Portugal. Por
certo que partiu sem seus gatinhos, e me pediu se me podia confiar isso para que os
criados não tenham que desfazer-se deles. Seus nomes são Archie e Angus. Archie é
este, que tenta escorrer dentro da lata de farinha.
As feições do Charlotte voltaram a derreter-se de puro prazer ao contemplar ao
animalzinho e seu companheiro, cuja cara negra e suave exibia uns olhos muito abertos e
plenos de curiosidade.
O cara de jogo clandestino deu um passo para ela, freou-se de repente e deu outro
passo em sua direção com a cauda em alto.
Não era fácil danificar um momento assim.
— Acho que esta tarde irei ver Matthew—começou Pitt.
Charlotte ficou paralisada, com os dedos imóveis sobre o animal; por fim, ergueu o
olhar, à espera de suas palavras.
—Soames era o traidor oculto no Tesouro —declarou ele—. E Matthew sabia.
O rosto de sua mulher se contraiu de dor.
—Oh, Thomas! Isso é horrível! Pobre Harriet. Como o tomou? Teve que prendê—lo?
Poderá estar com ela? Não seria melhor se... se não fosse? —Charlotte se inclinou sobre a
mesa e pôs sua mão sobre a sua. — Sinto muito, querido, mas não acredito que lhe seja
fácil aceitar que tivesse que deter o Soames.
Com o tempo, espero que se dê conta do Charlotte se deteve, compreendendo pela
expressão de seu rosto que havia algo Mais do que se trata? O que é?
—Foi Matthew quem me disse—respondeu ele com suavidade—. Sem dar-se conta,
Harriet Soames lhe falou de certa conversa que tinha ouvido seu pai sustentar por telefone,
conversa que não tinha entendido e que Matthew se sentiu obrigado a me repetir.
Temo que Harriet não vai perdoar se. A seus olhos, Matthew traiu tanto a seu pai
como a ela mesma.
—Não é justo! —saltou Charlotte; na hora fechou os olhos e meneou a cabeça com
suavidade—. Compreendo o que deve sentir, mas não é justo. Que outra coisa podia fazer
Matthew? Não pretenderá que Matthew jogue por terra seu trabalho e seus princípios para
envolver-se na traição do Soames! Matthew seria incapaz de algo assim!
—Sei—respondeu ele com calma—. E é possível que Harriet também o intua assim,
mas as coisas estão como estão. A vida de seu pai está arruinada para sempre.
O Ministério de Colônias e o Tesouro preferirão jogar terra sobre o assunto afim de
evitar o escândalo, mas a coisa terminará por saber-se.
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Charlotte ergueu a vista.
—O que será dele?—seu rosto se escureceu sob uma tristeza gélida e vazia—. O
suicídio? —murmurou.
—Não é impossível, mas espero que não.
—Pobre Harriet! Ontem tinha tudo e o futuro se apresentava radiante. Hoje não fica
nada: nem matrimônio, nem pai, nem amigos, nem um lugar na sociedade, tão somente os
poucos amigos que tenham a coragem de continuar a seu lado, não fica nenhuma
esperança.
Thomas, é muito triste; assusta o pensá—lo. Claro que entendo que não perdoe ao
Matthew; essa será uma ferida que nunca se fechará, para nenhum dos dois.
Sim, vá ver Matthew; agora te necessitará mais que nunca.
Pitt passou pelo escritório do Matthew, a quem achou mortalmente pálido, com
olheiras e mal capaz de concentrar-se em sua tarefa.
Matthew já tinha intuído a possibilidade do rechaço ao ir ver o Pitt, mas parte dele
continuou aferrando à esperança de que as coisas não tinham por que ser assim, que de
algum modo Harriet, desesperada e envergonhada, voltaria-se para ele apesar do que
tinha feito, pelo que se havia sentido obrigado a fazer.
Seu sentido da honra não lhe tinha deixado outra saída.
Quando começou a expressar algo disso ao Pitt, este o compreendeu sem
necessidade de palavras. Ao cabo de um momento, Matthew já não tratou de explicar-se
mais, e simplesmente deixou que a questão se evaporasse no ar.
Durante um momento continuaram sentados, fazendo menção ocasional a fatos do
passado, um tempo mais simples e feliz que ambos recordavam com agrado. Por fim, Pitt
se levantou para partir e Matthew voltou para enfrascar-se em seus papéis, cartas e
chamadas.
Pitt tomou uma carruagem de cavalos e se dirigiu ao escritório do Farnsworth no
Embankment.
—Soames?—disse Farnsworth enquanto a confusão, a fúria e o desconcerto se
mesclavam em seu rosto. — Nunca vi ocorrência mais estúpida! Certamente, esse homem
é um néscio. Como lhe pôde ocorrer semelhante... semelhante estupidez? Um cretino, isso
é o que é.
—Mas o curioso —atravessou Pitt em tom neutro—, é que em grande parte nos disse
a verdade.
—O que? —Farnsworth se virou, dando as costas à estante, com a indignação
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inscrita nos olhos muito abertos—. Aonde quer ir parar, Pitt? Essa história é absurda.
A coisa não enganaria a um menino.
—Provavelmente não, mas um menino tampouco teria a capacidade para...
—Capacidade! —Farnsworth esboçou uma careta de desgosto—. Soames tem a
mesma capacidade que meu engraxate. Nem este mesmo acreditaria em semelhantes
patranhas, e só tem quatorze anos.
—Para deixar-se enganar por elucubrações sobre os resultados de um choque entre
potências européias na África, e a necessidade de evitar essa colisão por motivos éticos
em geral e por nosso próprio futuro comum —concluiu Pitt, como se nunca lhe tivessem
interrompido.
—Tenta desculpá—lo?—Farnsworth abriu ainda mais os olhos—. Se for assim, está
perdendo o tempo. O que pensa fazer com o Soames? Onde se encontra esse tipo?
—No Bowl Street—respondeu Pitt—. Suponho que os seus já se encarregarão dele.
Isso já não é minha coisa.
—Os seus? A quem se refere? Ao Tesouro?
—Ao governo—respondeu Pitt—. Está claro que são eles quem tem que decidir o que
fazer com ele.
Farnsworth suspirou e mordeu o lábio.
— Receio que não farão nada de nada—respondeu com amargura—. Não quererão
admitir que foi sua própria incompetência que levou a esta situação. Conclusão que me
parece clara em relação com este assunto. A quem transmitiu Soames esses dados?
Ainda não me disse qual é o nome deste filantrópico traidor?
—Thorne.
Farnsworth esbugalhou os olhos.
—Jeremiah Thorne? Céu santo. Eu pensaria que era Aylmer. Já sabia que não podia
ser Hathaway, apesar desse plano demencial de filtrar dados manipulados a todos os
suspeitos.
Um plano que nunca teve o menor êxito!
—Sim, teve, de forma indireta.
—O que quer dizer? Teve—o ou não o teve?
—De forma indireta —repetiu Pitt—. Quando conseguimos descobrir que dados
estavam em poder da embaixada alemã, descobrimos que estes não tinham nada que ver
com a informação proporcionada pelo Hathaway, coisa que confirma o que Soames nos
disse de Thorne.
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Thorne não fez senão lhes desinformar em todo tempo.
—É possível, mas queria ter provas antes de engolir esta história. Thorne também
está no Bowl Street?
—Não, a estas alturas deve achar-se em Lisboa.
—Lisboa? —Um leque de emoções se pintou nas feições do Farnsworth. A fúria e o
desprezo pugnavam com a certeza de que eram numerosos os problemas evitados pelo
fato de que Thorne não pudesse ser levado a julgamento.
—Thorne partiu ontem à noite—acrescentouPitt.
—Avisado pelo Soames?
—Não. Se alguém avisou—o, só pôde tratar-se do Kreisler.
Farnsworth soltou uma imprecação.
—Embora imagine que o aviso não deve ter sido intencional— continuou Pitt—. Eu
acredito que Kreisler estava mais interessado em descobrir quem é o assassino de
Susannah Chancellor.
—Ou em descobrir quanto sabia você sobre o fato de que foi ele quem acabou com
ela —cortou Farnsworth—. Muito bem. Pelo menos resolveu você a questão do traidor.
Embora não de forma muito satisfatória, se tiver que ser sincero, mas algo é melhor
que nada. E imagino que a coisa poderia ter ficado muito feia se chegasse a deter o
Thorne. Merece você certo reconhecimento.
Farnsworth suspirou e se dirigiu para sua escrivaninha.
—E agora faria bem em voltar para a tragédia acontecida à senhora Farnsworth.
O governo, para não falar da imprensa, exige uma elucidação deste caso.—
Farnsworth ergueu a vista—. Tem alguma pista? O que há sobre o cocheiro? Apanhou—o
já? Sabe já em que parte do rio a deixaram? Achou já sua capa? Sabe já onde a mataram?
Imagino que o assassino deve ser Thorne, depois que ela descobriu seu segredo.
—Thorne afirma não saber nada da questão.
—Afirma? Mas se me acaba de dizer que ontem à noite saiu para Portugal!
—Thorne me deixou uma carta.
—Onde está? Dê—me isso agora mesmo! —exigiu Farnsworth.
Pitt a entregou ao Farnsworth, quem a leu com atenção.
—Tolices!—disse por fim, deixando a missiva sobre sua escrivaninha—. Imagino que
acreditará você o que diz sobre a senhora Chancellor.
—Sim, acredito.
Farnsworth mordeu o lábio.
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—A verdade é que eu também me inclino a acreditar. Procure o Kreisler, Pitt.
Há muitas coisas que não encaixam com esse personagem. É um sujeito de
temperamento explosivo, propenso à violência. Investigue a respeito da reputação que
deixou atrás na África; ninguém sabe qual é seu papel neste assunto nem quais são suas
lealdades.
Eu mesmo tampouco as sei. —Farnsworth fez um gesto cortante com a mão—.
Esqueça-se da conexão com o Arthur Desmond. Isso não são mais que tolices, desde o
primeiro momento. Sei que lhe resulta difícil aceitar sua velhice, mas é um fato
incontrovertível. Sinto muito. Os fatos falam por si só.
Fez-se convidar de brandy por todo com quem se cruzou, e quando esteve bastante
alterado para pensar com um mínimo de clareza, serviu-se de uma overdose de láudano,
provavelmente por acidente, possivelmente para procurar uma saída honorável a seu
crescente descontrole.
O fato de que antes de morrer soltasse uma calúnia indefensável não altera as
coisas.
Pitt se paralisou. Farnsworth havia dito que Sir Arthur "se fez convidar". Como podia
saber que Sir Arthur não tinha pedido seu brandy diretamente ao garçom, como sempre
fazia? Havia uma resposta: porque sabia o que seriamente aconteceu essa noite no
Morton Clube.
Não tinha estado ali. O detalhe não tinha aparecido durante a investigação. De fato,
as testemunhas haviam dito o contrário, que Sir Arthur tinha pedido suas próprias bebidas.
Pitt abriu a boca para perguntar ao Farnsworth se tinha falado com o Guyler, mas no
último segundo, quando já tinha as palavras na língua, deu-se conta de que se não era
assim, Farnsworth só podia estar à corrente por uma razão: porque pertencia à mesma
facção do Círculo Interior que tinha decretado a morte de Sir Arthur.
—Sim?—disse Farnsworth em tom impaciente, com seus olhos cinza azulados fixos
no Pitt.
Farnsworth dava a impressão de falar com impulsos, mas sob a superfície emotiva, a
fachada que Pitt via —e que tinha chegado a ver com os olhos fechados, assim como
estava familiarizado com ela—, entreviu por um instante uma mente mais fria e ardilosa,
precavida em extremo, à espera de que fosse o próprio Pitt quem se traísse.
Se Pitt fizesse a perguntar, Farnsworth saberia na hora de suas suspeitas, até onde
tinha chegado. Saberia que Pitt estava procurando o verdugo, como saberia que tinha o
Farnsworth por integrante de tal facção.
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Pitt adotou um véu em seu olhar e mentiu, enquanto o medo lhe impregnava a pele
de um suor frio. Nada mais fácil que ser empurrado sob as rodas de uma carruagem ou
passar a mão sobre a jarra de cidra na taverna, procurando a fatal dose de veneno.
—E então?—disse Farnsworth, com algo similar a um sorriso.
Pitt sabia que se rendia com muita facilidade, Farnsworth leria através de suas
palavras e adivinharia que tinha compreendido.
De repente lhe assaltou a intuição de que acaso Farnsworth era muito mais ardiloso
do que tinha pensado. Nunca tinha se destacado como um policial convencional; era muito
arrogante para agüentar o desgaste do ofício.
Mas sabia como valer-se dos homens com capacidade: Tellman, Pitt, inclusive Micah
Drummond em sua época. E a quantos deles teria incorporado às filas do Círculo? Quem
seriam estes? O mais provável era que Pitt nunca chegasse a saber; inclusive, quando já
fosse muito tarde, não chegaria a saber quem descarregou o golpe fatal.
Farnsworth estava à espera. A luz da tarde atravessava as janelas e iluminava seus
cabelos claros.
—Seriamente pensa que se tratou de um suicídio? —apontou Pitt, como se a idéia
ainda lhe fosse muito difícil de digerir—. A morte antes que a desonra, que a desonra para
a gente mesmo, quero dizer.
—Assim o vê você? —atravessou Farnsworth.
—Vê-lo, não é a questão. —Pitt se forçou a dizer as palavras, a jogar o papel,
acreditar nelas, inclusive enquanto as pronunciava. Sentia-se frio por dentro—. Mas
possivelmente seja mais simples ajustado aos fatos que conhecemos.
—Fatos? —Farnsworth seguia com o olhar cravado nele.
—Sim —Pitt engoliu em seco. — Sobre a circunstância de consumir láudano no
próprio clube. A pessoa deveria estar muito desconectada interiormente para fazê-lo por
acidente. Não, não é o que se espera de um cavalheiro. Por isso possivelmente o suicídio
seja mais compreensível. Sir Arthur não quereria cometê—lo em seu próprio lar. —Pitt era
consciente de que divagava, dizia muito.
Sentia-se um pouco enjoado; o escritório se tornou enorme. Tinha que andar com
cuidado—. Em seu lar, onde a criadagem seria a primeira em achá—lo- prosseguiu—.
Possivelmente impedindo—o de terminar em paz. Talvez fosse uma criada quem o
encontrasse... É possível que então se desse conta de quão vergonhosa tinha sido sua
atitude.
—Eu tendo a pensar como você —acordou Farnsworth. Seu corpo se relaxou de um
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modo indefinível.
De novo, voltou a adotar o mesmo aspecto irritável e impaciente—. Sim, eu diria que
o tem, Pitt.
Bem, o melhor é esquecer-se dele. Volte a dedicar-se ao caso Chancellor. Essa é sua
prioridade absoluta agora mesmo. Entendeu—me bem?
—Sim, senhor. É claro.
Ao levantar-se, Pitt descobriu que os joelhos lhe tremiam. Teve que permanecer
quieto uns segundos antes de refazer-se e sair do escritório, fechando a porta atrás de si e
descendo as escadas bem agarrado ao corrimão.
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Capítulo 11
Nobby Gunne estava muito afetada pela morte de Susannah Chancellor, não já
porque a tivesse achado uma pessoa única e encantadora, mas também porque sentia um
intenso sentimento de culpa, aterrada ante a perspectiva de que Peter Kreisler tivesse tido
que ver com o crime.
Nos piores momentos inclusive se tomava por diretamente responsável pelo
acontecido.
Nobby não soube de Kreisler durante mais de três dias, coisa que não fez se não
aumentar sua inquietação e as tenebrosas idéias que dançavam em sua mente.
Sua presença acaso a teria tranqüilizado um pouco.
Nobby poderia olhá—lo no rosto e ver a lucidez que se escondia nele para saber que
seus medos eram tão feios como injustos.
Nobby poderia falar com ele e saber da dor que lhe produzia a morte de Susannah.
Talvez Kreisler até poderia lhe dizer onde tinha estado essa noite, demonstrando assim
sua inocência.
Mas tudo que recebeu dele foi uma breve nota em que expressava sua dor, e que
certos assuntos relacionados com o caso o mantinham tremendamente ocupado, com
exclusão de todo o resto.
Nobby não imaginava que assuntos podiam ter relação com a morte de Susannah;
talvez tivessem que ver com o dinheiro da África e as operações bancárias a que se
entregava sua família.
Quando o viu, foi depois que Kreisler a chamasse de tarde. Era algo muito pouco
convencional, mas nem ele nem ela se ajustavam muito às convenções.
Kreisler a achou no jardim, ocupada em cortar umas rosas prematuras. A maioria
estava ainda em seu casulo, mas havia uma ou duas abertas.
Nobby também tinha selecionado as folhas de uma faia bronze que exibiam um
intenso tom avermelhado que acompanhava às pétalas de rosa como nenhuma folha verde
comum o faria.
Kreisler se apresentou no jardim sem chamar, coisa sobre a qual depois Nobby teve
algumas palavras com sua criada.
Mas nesse momento só pôde pensar no prazer que lhe proporcionava sua presença,
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e na ansiedade soterrada que acelerava os batimentos de seu coração e fazia um nó na
garganta.
Kreisler não se preocupou de saudar com formalidade, interessar-se por sua saúde
ou comentar as bondades do tempo. Detendo-se frente a ela, seu olhar franco aparecia um
pouco inquieto, mas a alegria que sentia ao ver Nobby era evidente.
Por um segundo, os temores do Nobby se viram engolidos pelo torvelinho de
felicidade que lhe produzia ver seu rosto e confiar outra vez nele, coisa que já quase tinha
esquecido.
—Sinto me apresentar assim, sem ser chamado— disse ele, erguendo as palmas das
mãos.
Nobby pôs suas palmas contra as dele e sentiu a calidez de seus dedos contra os
seus.
Por um instante se esqueceu de seus temores. Estes eram absurdos. Kreisler nunca
faria algo tão aberrante.
Se tinha alguma relação com o acontecido, sem dúvida existia uma explicação
inocente a respeito, confessasse—a ou não.
Nobby preferiu evitar a gasta resposta que teria esgrimido ante outro interlocutor.
—Como está? —Nobby escrutinou seu rosto—. Tem aspecto de cansado.
Kreisler soltou suas mãos e ficou a caminhar a seu lado, a passos medidos junto à
erva.
—Suponho que estou cansado —admitiu—. Acredito que dormi muito pouco nos
últimos dias, desde a morte da senhora Chancellor.
Embora a questão continuasse presidindo sua mente, Nobby se sobressaltou ao ouvir
trazida a luz tão de improviso, antes que ela pudesse pensar o que lhe dizer, e desde o
acontecido, passara todas e cada uma das horas do dia dando voltas à questão.
Nobby desviou o olhar, como se repassasse o extremo do jardim, embora ali não
houvesse mais que um passarinho que saltava de um ramo a outro.
—Nunca pensei que lhe tivesse tanto apreço. —Nobby se deteve, temerosa de que
Kreisler a tivesse por petulante e a entendesse mal.
Seriamente se tratava de um mal—entendido? Não seriam simples ciúmes? Que
absurdo; que feio, ao mesmo tempo. — Certamente, era uma mulher encantadora. —O
elogio lhe soou chato e forçado—. E tão cheia de vida. Custa—me acostumar à idéia de
seu desaparecimento. Agora eu gostaria de tê—la conhecido muito melhor.
—Eu gostava dela— respondeu ele, fixando o olhar nas agulhas dos delfinios, ainda
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em flor, mas bastante crescidos para saber quais eram azul escuro, quais azul claro e
quais brancos ou rosados—. Havia uma honestidade nela que é muito pouco freqüente.
Mas essa não é a razão que me impede de dormir quando penso em sua morte. —
Kreisler franziu o cenho e voltou o rosto para ela—. Coisa que achava que já sabia.
Nobby, é menos direta do que diria sua inteligência. É algo que deverei ter em conta.
Trata-se de algo muito feminino. Acredito que eu gosto.
Nobby se sentiu inteiramente confundida, sentindo que o rubor aflorava a suas faces.
Seus olhos evitaram cruzar-se com os dele.
—Não tenho certeza do que quer dizer. Por que se preocupa com sua morte, se não
for indiscrição? Não me parece que sofra pelo Linus Chancellor.
Sempre tive a impressão de que a esse homem você não gostava muito.
—Certo —acordou ele—. Contudo, não tenho nada contra ele, pessoalmente.
De fato, admiro-lhe por muitas razões. Chancellor tem energia, talento e a vontade
para concentrar estas qualidades em um objetivo, coisa que é chave.
Muitos homens têm as qualidades necessárias para triunfar, à exceção dessa,
precisamente. —Kreisler caminhou uns passos mais antes de acrescentar, com as mãos
nos bolsos.
Entretanto, estou em completo desacordo com seus planos e propósitos em relação
com a África. Mas isso já sabe.
—Então por que está tão inquieto?—perguntou ela.
—Porque tive uma discussão com a senhora Chancellor à noite antes de sua morte.
Nobby ficou estática. Nunca tinha pensado que Kreisler fosse homem com tão
sensível consciência, sensibilidade que parecia chegar à superstição.
A coisa não encaixava com quanto sabia dele. É claro, as incongruências abundavam
em toda personalidade, repentinos traços de caráter que pilhavam por surpresa, mas agora
Kreisler lhe tinha deixado completamente surpreendida.
—Tolices—disse ela com um sorriso—. Duvido que se mostrasse tão desagradável
para sentir remorsos. Tinham suas diferenças— sobre a colonização de Zambeze, isso é
tudo. Estou certa de que ela não...
—Por todos os Santos!—interrompeu—a ele com uma risada desdenhosa—. Eu só
tenho uma palavra! E me lembro perfeitamente do que disse à Susannah Chancellor!
Falamos em um lugar público, e estou bem seguro de que fui observado e que a
informação passou à mãos da polícia.
Seu diligente amigo Pitt já deve andar sobre o assunto. De fato, já veio ver—me.
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O homem se mostrou cortês, é claro, mas sob suas boas maneiras se via que
suspeitava de mim. Há muitos a quem conviria que eu fosse acusado de assassinato. É
algo que... —Kreisler se deteve, ao perceber o alarme refletido no rosto de Nobby.
Kreisler esboçou um sorriso torcido.
—Por favor, Nobby. Não finja que não sabe. Quanto antes resolva o caso, melhor
para a polícia. Assim a imprensa a deixará em paz e não haverá necessidade de investigar
a fundo na vida da pobre Susannah.
Embora esteja seguro de que sua vida não foi menos pura que a da maioria das
pessoas, sempre é incômodo esquadrinhar sob o tapete. Incômodo para a polícia, e
incômodo para quem tratou com Susannah, cujas vidas por acaso não sejam tão
honoráveis.
—Que não sejam honoráveis? —Nobby estava surpreendida e não muito certa do
que Kreisler queria dizer.
Um sorriso travesso se pintou no rosto do Kreisler.
—Minha própria vida, para começar —confessou—. Nossa discussão foi bastante
inocente no fundo. Sem entrar em personalismos, discutimos por questões de princípio.
Entretanto, quem nos viu não tinha por que sabê—lo; é possível que eles fizessem
outra opinião. Não duvido de que não sou o único a quem incomodam as opiniões alheias
quando estas são mal—intencionadas.
Não lhe aconteceu? Cometer uma tolice que preferiria que não fosse conhecida por
outros? Dizer uma palavra ou ter um gesto apressado, mais feio do que teria desejado?
—Sim, é claro. —Nobby não precisou acrescentar mais. A compreensão entre ambos
era completa sem necessidade de mais palavras.
Caminharam uns passos mais antes de dar meia volta e entrar no caminho que
ladeava o muro de pedra e as rosas prematuras que se derramavam sobre este.
O arco da entrada aparecia silueteado pela luz da tarde, que realçava a plana
superfície de cada pedra, assim como os brotos diminutos encaixados entre os interstícios,
ali onde havia umidade, musgos e samambaias cujas flores semelhavam a estrelas em
miniatura. Sobre suas cabeças se escutava o leve ondular das folhas dos olmos movidas
pela brisa carregada de aroma de erva e folhas.
Nobby olhou—o no rosto e soube que estava pensando no prazer de ver-se outra vez
na Inglaterra, no encanto intemporal dos velhos jardins. África, com sua selvageria, sua
vegetação gritã e manchada pelo sol implacável e sua exuberante vida animal, parecia
uma irrealidade em comparação com a venerável certeza que os envolvia, onde as
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estações passavam brindando seu fruto durante cem gerações.
Mas não podia evitar a morte de Susannah. A lei também era uma certeza no lugar
onde se achavam, e Nobby conhecia o Pitt o bastante bem para saber que não duvidaria
em procurar o criminoso até o final, fossem quais fossem as conseqüências.
Pitt não se dobrava ante a coação, a conveniência ou o dano emocional.
Nobby não sabia dizer se Pitt se atreveria a fazer pública toda à evidência se a
verdade fosse intoleravelmente feia.
Se a resposta fosse trágica e desesperada, se era capaz de arruinar as vidas de
outros sem causa que o justificasse, se o motivo do crime tocava uma fibra especialmente
sensível em seu interior, era possível que então Pitt cedesse um tanto.
Embora Nobby não pudesse imaginar razão alguma que pudesse mitigar a morte de
uma pessoa como Susannah.
Mas o argumento não tinha sentido. Não era ao Pitt a quem temia, nem à justiça, era
à verdade. Existisse acusação formal ou não, para ela seria igualmente terrível descobrir
que Kreisler era culpado.
Mas o que a levava a pensar coisas assim? Era terrível, entristecedor! Nobby se
envergonhava até de pensá—lo, por muito que a idéia insistisse em fixar-se a sua mente.
Como se lesse seus pensamentos ou visse a confusão refletida em sua face, Kreisler
se deteve junto ao arco do pequeno jardim à sombra com seus lunárias e prímulas, com
seu selo do Salomão.
—O que acontece, Nobby?
Nobby lutou por dar com uma resposta que nem fosse mentira nem muito dolorosa
para os dois.
—Soube algo? —Por fim, decidiu procurar uma pergunta útil para romper o silêncio.
—Sobre a morte de Susannah? Não muitas. Parece que o crime teve lugar de noite,
quando ela estava a sós em uma carruagem de aluguel, ninguém sabe em que lugar.
Susannah disse que ia visitar os Thorne, mas, pelo que se sabe, nunca chegou a
apresentar-se ali. A não ser, claro está, que os Thorne mintam.
—O que poderiam ter os Thorne contra ela?
—A coisa poderia ter relação com a morte de Sir Arthur Desmond; isso sugere Pitt,
pelo menos. Não me parece que tenha muito sentido.
A imobilidade de ambos era tal que um passarinho marrom voou de sua árvore e se
plantou no atalho, observando—os com os olhos brilhantes e curiosos a menos de um
metro de distância.
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—Por que, então?—perguntou ela, com o medo ainda aninhando em seu interior.
Sabia muito sobre os homens que se transladavam às regiões mais remotas do globo
para compreender que precisavam de certa força interior para sobreviver, a capacidade de
atacar quando era preciso defender-se, a resolução de acabar com uma vida alheia se a
própria estivesse em jogo, uma firmeza de caráter para que não existia obstáculo.
Os temperamentos mais amáveis e circunspetos, mais civilizados no fundo, com
freqüência se viam esmagados pela ferocidade de uma natureza desumana.
Kreisler a observava com atenção, quase tratando de ler seus pensamentos.
Lentamente, a felicidade e o consolo que sentia em seu interior se viram substituídos
pela dor.
—Não consegue se convencer de que eu não seja culpado, certo, Nobby? —apontou
com um tremor na voz—. Pensa que eu pude ter assassinado a essa magnífica mulher.
Que a pude ter assassinado porque...
Kreisler se deteve. O sentimento de culpa empalidecia suas feições.
—Não—respondeu ela em tom neutro; as palavras não lhe saíam—. Não a teria
matado porque tivessem distinta opinião sobre a colonização na África, é claro que não.
Ambos sabemos que isso seria absurdo. Se a tivesse matado, seria pelas ações que tinha
em um dos principais bancos, pela influência que pudesse exercer sobre o Francis
Standish, e, é claro, por ser seu marido quem é. Sempre lhe apoiou, o que equivale a dizer
que era seu inimigo.
Kreisler estava muito pálido, com as feições torcidas pela dor.
—Por Deus santo, Nobby! De que me teria servido matá—la?
—Assim teria um adversário menos —Nobby não acabou a frase, afastando o olhar
dele—. Não penso que você a matasse, só digo o que pode pensar a polícia. Tenho medo
do que lhe possa acontecer. —Era verdade, mas não toda a verdade—. E é certo que você
estava furioso com ela.
—Se tivesse matado a todos com quem estive furioso, minha carreira estaria
semeada de cadáveres—respondeu ele com calma. Por seu tom, Nobby compreendeu que
tinha sabido extrair a verdade de suas palavras, deixando à parte mentiras e omissões.
O passarinho continuava no atalho, a poucos passos deles, com a cabeça inclinada.
Kreisler pegou Nobby pelos braços. Nobby sentiu a calidez de suas mãos através das
finas mangas do vestido.
—Nobby, quero que saiba como é a África, tal como eu a conheço. Na África, os
homens se tornam violentos para sobreviver em uma terra tão violenta como imprevisível,
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onde muitos perigos continuam sendo desconhecidos e onde não há outra lei que a da
sobrevivência.
Entretanto, nem por isso deixei de entender a diferença que existe entre a África e
Inglaterra. O que chamamos moral, o conhecimento assumido do que está bem e está
mau, é a mesma em todas partes. Uma pessoa não mata às outras porque se interponham
em seu caminho ou tenham distinta opinião de um assunto, por importante que seja este.
Embora tenha discutido com Susannah, nunca lhe fiz mal algum nem lhe busquei
nenhum mal. É injusta comigo se não me acredita e me causa muita dor. Suponho que não
tenho que lhe explicar isso Ou já não nos entendemos sem necessidade de discursos e
declarações?
—Sim. —Nobby respondeu de coração, ignorando o que lhe dizia a mente, silenciada
esta por uma certeza mais profunda e insistente—. Sim, claro que sim. — Deveria
desculpar-se por sequer ter pensado? Era necessário que o fizesse?
Como se lesse em seus olhos, Kreisler acrescentou, com um leve sorriso:
—Bem. E deixemos a questão de uma vez. Não é preciso que voltemos a ela.
Entendo que queria estar segura a respeito de uma idéia que passou por sua mente.
Não permitamos que exista desonestidade entre nós, que ocultemos nosso medo à
verdade atrás do engano e da formalidade.
—Não —coincidiu ela com um ridículo sorriso apesar do que pudesse lhe dizer o bom
senso. — Não, é claro que não.
Kreisler se inclinou e a beijou com uma delicadeza que surpreendeu ao Nobby, como
um apontamento de felicidade absoluta.
Pitt estava sentado à mesa do café da manhã, concentrado em sua torrada com
geléia. A torrada estava rangente e a manteiga um ponto salgada. O bocado merecia ser
saboreado até o último miolo.
Além disso, na noite anterior Pitt tinha estado fora de casa até quase a meia—noite,
de modo que o possível atraso ao chegar ao Bowl Street estava mais que justificado.
As crianças foram para a escola e Gracie estava ocupada trabalhando no piso de
cima. A mulher das tarefas estava esfregando os degraus da parte traseira antes de limpar
a cozinha econômica a fundo, tarefa a que Gracie escapava com regozijo.
Charlotte estava ocupada em elaborar a lista da compra.
—Hoje também chegará tarde?—perguntou, fixando o olhar nele.
—Duvido— respondeu ele, com a boca cheia. — Embora ainda não encontramos ao
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cocheiro do cabriolé.
—Então ele também está comprometido —afirmou ela com segurança—.
Se fosse inocente, já se teria apresentado à polícia. Mas se não quer ser encontrado,
como pensa dar com ele?
Pitt acabou o que ficava de seu chá.
—Mediante o longo e complicado método de interrogar a todos os cocheiros que há
em Londres—lhe assegurou—. E mediante a investigação se nesse dia realmente estavam
onde digam estar. Com um pouco de sorte, acaso recebamos alguma confidência. Mas
ainda não sabemos onde foi jogada na água.
Pode ter sido na parte alta do rio, ou na baixa. Tudo que sabemos é que parece que
suas roupas se engancharam a algo que arrastou seu corpo durante certa distância. —O
rosto do Charlotte se sobressaltou—. Sinto muito—se desculpou ele.
—Encontrou sua capa?—perguntou ela.
—Não, ainda não.
Pitt comeu o resto de sua torrada com gosto.
—Thomas...
Pitt empurrou a cadeira para trás e se levantou.
—Sim?
—É normal que um corpo humano apareça flutuando no Traitors Gate?
—Não. Por quê?
Charlotte tomou ar e o soltou:
—Parece-lhe possível que o assassino tivesse a intenção de que aparecesse ali?
A idéia era intrigante; Pitt não tinha pensado nela.
—Precisamente no Traitors Gate? Parece—me duvidoso. Para que? Parece—me
mais lógico que se ocupasse de escolher bem o lugar onde soltou seu corpo, perto de
onde cometeu o crime e onde não pudesse ser visto.
Suponho que se o corpo apareceu no degrau da Torre foi por acaso, de acordo com
as correntes e a maré. E, é claro, com o que arrastasse o corpo para essa zona.
—Mas e se não fosse casualidade? —insistiu ela—. E se tivesse sido intencional?
—Na verdade, não acredito que existisse grande diferença, exceto o assassino teria
que ter dado com o lugar oportuno para soltar seu corpo, o que acaso implicasse um
traslado do cadáver.
Mas por que quereria alguém assumir tais riscos?
—Não sei —confessou sua mulher—. Possivelmente porque Susannah traiu alguém.
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—A quem? Não a seu marido. Sempre foi fiel, não por convenção, mas sim porque
realmente o amava. Você mesma me disse isso.
—Sim, sim —concordou ela—. Não referia a essa classe de traição. Mas pensava em
uma possível relação com o Círculo Interior.
—O Círculo não admite mulheres entre seus membros, e estou convencido de que
Chancellor não pertence ao Círculo.
—Mas o que tem sobre seu cunhado, Francis Standish? —insistiu ela—. É possível
que ele estivesse comprometido de algum modo na morte de Sir Arthur, e que ela o tivesse
averiguado?
Susannah queria muito à Sir Arthur. Em um caso assim, não teria ficado calada, nem
para proteger-se a si mesma. Possivelmente isso fosse o que a tinha tão preocupada.
—Lealdade familiar e traição na família —murmurou Pitt com lentidão, dando voltas à
idéia.
Seu olhar interior se concentrou no Harriet Soames e a apaixonada defesa que fez de
seu pai, sabendo inclusive da culpa deste—. Tudo é possível.
—Serve—te de algo a idéia?
Pitt olhou a sua mulher.
—Não muito. De forma intencional ou não, o mais lógico é que o corpo fosse jogado
no mesmo lugar. —Pitt retirou sua cadeira e beijou ao Charlotte antes de sair para a porta.
Seu chapéu pendia do cabide no saguão—.
É algo no que hoje vou concentrar-me. Acredito que é boa idéia esquecer do cocheiro
e concentrar-se na busca de uma testemunha que visse como a jogavam na água.
—Nada que não se soubesse já —declarou Tellman com desgosto quando Pitt lhe
pediu informação sobre a marcha de sua investigação.
Os dois homens se achavam no escritório do Pitt, a primeira hora da manhã, onde o
ruído da rua subia através da janela entreaberta.
Tellman se mostrava tão fatigado como frustrado.
—Ninguém viu esse maldito cabriolé, nem em Berkeley Square, nem no Mount Street,
nem em nenhum outro lugar—continuou—. Pelo menos, ninguém que queira nos informar.
É claro, Londres inteira está cheio de cabriolés, e a senhora Chancellor pôde ter
subido a qualquer deles. —Tellman se apoiou na biblioteca que havia a suas costas—.
Dois cabriolés foram vistos no Mount Street à hora aproximada, mas ambos foram
investigados já.
Em um deles ia um tal Garney, que se dirigia para jantar com sua mãe. A história foi
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corroborada sem dúvida nenhuma por seus criados e os dela. No outro ia um certo tenente
Salsby e uma certa senhorita Latten, de caminho para jantar ao West End. Isso disseram,
pelo menos.
—Não acredita neles? —Pitt se sentou atrás de sua escrivaninha.
—Claro que não acredito neles! —Tellman sorriu—. Se tivesse visto o rosto desse
tipo, você tampouco teria acreditado nele. E se tivesse visto a dela, já suporia aonde
foram! Embora essa mulher é uma qualquer, não me parece cúmplice no rapto da mulher
de um ministro.
—Conhece—a?
O rosto do Tellman respondeu com eloqüência.
—Algo mais?—perguntou Pitt.
—Eu já não sei que mais procurar. —Tellman deu de ombros—.
Levamos dias tentando averiguar onde foi jogada na água. O mais provável é que
fosse no Limehouse. A zona é mais discreta que a parte alta do rio. O assassino deve tê—
la joado à água por volta das onze, mais ou menos.
Umas quatro horas antes que o cadáver fosse descoberto. Realmente, dá igual se a
maré arrastou o corpo até o degrau ou se a corrente o empurrou até mais à frente. O que
está claro é que o cadáver chegou do sul. —Tellman respirou com aborrecimento e fez
uma careta—.
Estamos falando de um lance muito longo do rio, com mais de uma dúzia de
embarcadouros e degraus, e quase tantas ruas que desembocam ali. E não se pode
confiar no que diz a gente da zona. Quem ronda por ali não são muito amigos de falar com
a polícia. Antes cortarão o pescoço a uma pessoa, para não perder a prática.
—Já sei, Tellman. você tem uma idéia melhor?
—Não. Já o tentei tudo e não há nada que funcione, mas o problema é que sou bem
conhecido por ali. Antes trabalhei na delegacia de polícia do bairro.
Possivelmente você tenha mais sorte.—seu tom e sua expressão desmentiam que
acreditasse assim.
Pitt distava de estar satisfeito. De acordo com a polícia fluvial, se o corpo tinha sido
deixado na água na hora seguinte, mais ou menos, de haver-se cometido o crime,
momento que o legista tinha opinado como anterior às onze ou onze e meia quando muito,
nesse caso a maré só poderia havê—la trazido da zona do Limehouse, como muito longe.
O mais provável é que tivesse sido de um ponto mais próximo, que só podia ser
Wapping, no Pool londrino.
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Tellman já tinha falado com a polícia do Tâmisa, cuja delegacia de polícia se achava
justo na ribeira do rio. A polícia fluvial se mostrara muito disposta a cooperar, com
resultados paradoxalmente negativos. O sistema de patrulhas da polícia fluvial era
excelente.
Era um corpo que conhecia os moles de Londres como a palma de sua mão. Como
disseram, estavam certos de que nenhuma mulher coincidente com a descrição do
Susannah Chancellor tinha sido jogada na água essa noite.
Tratava-se de um encargo um tanto extravagante, mas Pitt se inclinava a acreditar
neles. O porto de Londres sempre estava em plena atividade, inclusive a meia— noite.
Quem quereria correr semelhante risco?
Coisa que o levava outra vez à mesma pergunta de sempre: que sentido tinha o
assassinato de uma pessoa como Susannah Chancellor? Tratava-se acaso de um rapto
que tinha saído mal, com trágicas conseqüências?
Tratava-se de uma simples questão de cobiça, apoiada na hipótese de que
Chancellor pagaria o resgate que fosse exigido? Ou o motivo era político o que voltava a
apontar ao Peter Kreisler?
Tellman já tinha rastreado Limehouse em vão, sem dar com a menor pista. Se
alguém tinha visto como jogavam um corpo à água, ninguém queria dizê—lo. Se alguém
tinha visto um cabriolé com uma mulher em seu interior, ninguém queria comprometer-se.
Em suas pesquisas, Tellman tinha chegado muito mais ao sul, até o Rotherhithe, sem
mais conclusão, exceto que não era impossível que alguém se fizera com um pequeno
bote, em algum das centenas de embarcadouros e degraus, para transportar o corpo nele.
Pitt tinha chegado a perguntar-se se Tellman poderia formar parte da conspiração
como membro ardiloso e avantajado do Círculo Interior.
Entretanto, a irritação que expressava o rosto do Tellman e o matiz exasperado de
sua voz impediam—no de assumir que as coisas tivessem chegado a semelhante ponto.
—E agora o que?—disse Tellman com sarcasmo, interrompendo os pensamentos do
Pitt—. Quer que me aproxime pelos moles do Surrey?
—Não. Não vale a pena. —Na mente do Pitt, uma idéia começava a formar-se em
relação com o que Charlotte dissera sobre as traições e Traitors Gate—. Vá ver o que
pode averiguar sobre o cunhado da senhora Chancellor.
Tellman arqueou as sobrancelhas.
—O cunhado dela? Francis Standish? Como é isso? Que demônio de interesse podia
ter ele em assassiná—la? Eu continuo pensando que Kreisler é culpado.
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—É possível. Mas investigue ao Standish.
—Sim, senhor. E o que vai fazer você, enquanto isso?
—Investigarei pela parte alta do rio, possivelmente entre o Westminster e Southwark.
—Mas isso significaria que, depois de acabar com ela, o assassino levou tempo antes
de jogá—la no rio —apontou Tellman com incredulidade—. Que sentido teria agir assim?
Para que assumir semelhante risco?
—Se esperasse até a meia—noite para desfazer do corpo, menos gente haveria
pelos arredores —sugeriu Pitt.
Tellman olhou—o com absoluto desdém.
—No rio, há gente à todas as horas. Inclusive várias horas depois da meia—noite.
Muito melhor seria livrar-se dela quanto antes. Além disso, é mais fácil mover-se em
cabriolé quando as ruas estão cheias deles – acrescentou em tom razoável—. Quem ia se
fixar? Mais provável resulta que alguém se fixe à uma da noite.
A essa hora, já é muito tarde para ir ou vir do teatro. E quem vai a festas e recepções
tardias já dispõem de sua própria carruagem de cavalos.
Pitt não sabia se lhe confiava o sugerido pelo Charlotte. Se ao princípio a coisa lhe
tinha parecido absurda, quanto mais pensava nela, mais possível lhe parecia.
—E se o assassino tivesse previsto que o corpo aparecesse na Porta dos Traidores?
Tellman cravou seu olhar nele.
—Como advertência dirigida a quem pudesse pensar em trair ao Círculo? — apontou
com um brilho de fogo no olhar—. Possivelmente. Mas me parece muito trabalhoso. O
assassino não podia estar seguro de que o corpo aparecesse ali.
O mais freqüente é que um corpo não apareça em nenhuma parte. Assumindo que o
assassino conhecesse as marés, o que teria feito seria arrastar o cadáver.
Claro! Logo esperaria à vazante da maré, para assegurar-se de que o corpo ficasse
na margem. —A voz do Tellman ia cobrando entusiasmo—. Então esperaria a deixar o
corpo na maré alta, para certificar-se de que não era devolvido ao rio.
Seu rosto se escureceu de repente.
—Mas não há forma possível, até se deixou o corpo justo em cima da torre, de que
este tocasse terra justamente ali. O corpo muito bem poderia ser carregado até a a grande
curva seguinte do rio e acabar no Wapping ou, inclusive, nos moles do Surrey. —Tellman
denegou com a cabeça—. O próprio assassino se veria obrigado a depositar o corpo na
mesma margem, certamente depois de tê—lo transportado em bote—. Mas só um louco se
atreveria a deixar o corpo nos mesmos Queen’s Steps, seguindo a mesma rota que
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seguimos nós para recuperá—lo.
—Não acredito que o assassino viesse da margem norte do rio —pensou Pitt em voz
alta—. Aí está o mole de Alfândegas, e a fatia de peixe do Billingsgate. Alguém o teria visto
por ali.
—Do outro lado do rio— disse Tellman na hora, ficando em pé com o magro corpo
em tensão—. Horsley Down! Ali nunca há ninguém! O assassino pôde colocar o corpo em
um bote e transportá—lo à outra margem. Sem dúvida o deixou mais ou menos onde o
encontramos. A ressaca do rio não o arrastaria daí.
—Saio para a margem sul —anunciou Pitt com decisão, ficando em pé e afastandose da escrivaninha.
Tellman olhou—o com indecisão.
—Ainda me parece muito complicado, para não dizer perigoso, simplesmente para
que o corpo aparecesse junto à Torre. Não consigo ver claro.
—Vale a pena tentá—lo—disse Pitt, impertérrito.
—O legista disse que o corpo tinha sido arrastado —indicou Tellman, ainda sem
deixar-se convencer de todo—. As roupas estavam rasgadas! O assassino não pôde
deixar o corpo ali, sem mais.
—Se o transportou da outra margem, possivelmente o fez arrastando—o —
respondeu Pitt—. Da popa do bote, para que o cadáver aparecesse com sinais de ter
permanecido um tempo na água.
—Ah, caramba ! —Tellman aspirou entre dentes—. Nesse caso estamos tratando
com um louco! —Ao ver a expressão do Pitt, matizou—.De acordo, alguém mais louco
ainda do que pensávamos.
Pitt tomou um cabriolé. O trajeto era longo. A carruagem se dirigiu ao sudeste,
seguindo o curso do rio, cruzou a Ponte de Londres e depois voltou a virar ao este para
desembocar no Tooley Street.
—O que procura você exatamente?—perguntou-lhe o cocheiro, não sem certa
hesitação. Não é que pusesse objeções a uma corrida de várias horas, cujo preço incluía o
tempo que estivesse parado; o que acontecia era que tinha curiosidade por saber o que
era o que se queria dele, e isto era uma viagem bem peculiar.
—Estou procurando um lugar no que alguém pudesse esperar de carruagem até uma
hora tranqüila, depois que a maré mudasse, para depois transportar um cadáver num bote
até o degrau que há ao pé do Traitors Gate— respondeu Pitt.
O cocheiro resmungou um juramento de incredulidade.
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—Me perdoe, chefe—se desculpou na hora. — Mas convirá em que a coisa tem sua
dificuldade. —O cocheiro jogou um nervoso olhar em redor, à margem tranqüila e o
deserto lance de rio iluminado pelo sol.
Pitt sorriu com tristeza.
—Trata-se do assassinato da esposa do senhor Chancellor— explicou, mostrando
seus créditos ao cocheiro.
—Ah! Ah, vá! Essa pobre mulher! É terrível! —O homem abriu muito os olhos—. E
pensa você que foi assassinada por aqui, e que a levaram a outro lado?
—Não. Acredito que a trouxeram aqui em carruagem de cavalos, que alguém esperou
que mudasse a maré, e que depois a levou num bote ao degrau que há sob a Torre.
—E para que? Isso não tem pés nem cabeça! Melhor jogá—la à água e sair por
pernas antes que alguém o descubra! Que importa onde saia depois o corpo?
—Eu acredito que o assassino não pensava igual.
—E para que esperar que mude a maré? Eu em seu lugar, tirava—me isso de cima o
antes possível e saía voando antes que me pegassem. —O cocheiro estremeceu. —
Procura você um louco?
—Possivelmente a um homem possuído por um ódio insano, mas não a um louco no
sentido comum da palavra.
—Então, o que faria esse pássaro seria ir aos degraus do Horsley e remar
aproveitando a maré alta para deixá—la onde ele queria— disse o cocheiro com decisão—
. Então remaria até o Little Bridge, mais acima, para seguir indo com a maré, em vez de
remar contra ela. —Parecia satisfeito com sua resposta.
—Mas se o assassino tivesse deixado o corpo enquanto subia a maré — raciocinou
Pitt—, esta teria podido devolver o corpo à água e fazê-lo encalhar em qualquer outro
ponto.
—É possível —admitiu o cocheiro—. Mas eu em seu lugar o teria tentado.
—Possivelmente. Mas agora quero averiguar se alguém viu um cabriolé parado
nessa noite. Entre os degraus do Horsley Down e os do Little Bridge, disse—me você?
—Isso mesmo, chefe. Quer que vamos para lá?
—Exato.
—Mas isso fica muito longe!
—Não duvido—respondeu Pitt com um meio sorriso—. Não se preocupe, que já pago
eu o almoço. Conhece algum bom pub por aqui perto?
Iluminou-se o rosto do cocheiro.
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—E como! Já estive antes por aqui. Vamos ver. Está o Black Bull, pela ponte de
Londres, um pouco do outro lado.
Ou o Triplo Plea, descendo Queen Elizabeth Street por lá. —O cocheiro indicou com
uma mão retorcida—. Ou podemos seguir as vias do trem —o homem indicou em uma
direção mais longínqua—, e nos colocar no Bermondsey, se por acaso encontramos um
lugar de seu gosto.
—Comeremos no Triplo Plea —prometeu Pitt—. Mas primeiro visitaremos os degraus
do Horsley Down.
—A suas ordens, chefe. Tocando! —O cocheiro fustigou a seu cavalo com algo
parecido ao entusiasmo.
Desceram pelo Tooley Street a passo rápido até que a artéria se converteu no Queen
Elizabeth Street, ponto em que o cabriolé virou para o rio. No lado direito da rua havia um
grande edifício com aspecto de escola.
A rua tinha o extravagante nome do Potter´s Field2. Pitt se perguntou se este não
estaria em consonância com o macabro senso de humor do cocheiro.
Seguiram uns cem metros por essa rua até chegar a seu fim, onde se convertia em
um caminho, pouco mais que um atalho, paralelo à margem do rio. Tão somente um
pequeno aterro se interpunha entre eles e a água.
O lugar estava deserto, inclusive a essa hora do dia. Depois de cruzar dois caminhos
mais que davam ao Queen Elizabeth Street, chegaram aos degraus do Horsley, lugar onde
seria simples embarcar em um bote de remos.
No final do Freeman"s Lane chegaram a um pequeno solar espaçoso, pouco menos
que uma praça, onde um par de homens matavam o momento contemplando quanto
passava pelas cercanias, o tráfico fluvial principalmente.
Pitt desceu do cabriolé e se aproximou deles. Lhe ocorreram várias possibilidades de
manobras de aproximação; a revelação de sua identidade era certamente a menos
adequada.
Era um desses momentos nos quais seu reputado desalinho no vestir constituía uma
vantagem.
—Onde poderia achar um bote por aqui perto?—perguntou de forma abrupta.
—Que tipo de bote?—perguntou um dos dois homens, tirando—a pipa de argila dos
dentes.
2
Potter’s Field: fossa comum, cemitério de pobres.
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—Um pequeno, para cruzar o rio nada mais—respondeu Pitt.
—Mas se a Ponte de Londres está aí mesmo. —O homem indicou com sua pipa—.
Por que não vai a pé?
Seu companheiro pôs-se a rir.
—Porque igualmente me encontro com alguém a quem não quero ver—respondeu
Pitt sem o menor traço de ironia—. É possível que também leve alguma coisa comigo—
acrescentou, no caso.
—Já vejo. —O primeiro dos dois homens se mostrava interessado—. Bom, se for
assim, talvez eu mesmo poderia lhe alugar um bote.
—Com certeza já o terá feito antes —observou Pitt em tom casual.
—E a você o que lhe importa?
—Nada, na verdade. —Fingindo indiferença, Pitt fez esboço de virar-se para partir.
—Se quiser um bote, eu sei como conseguir! —exclamou o homem antes que se
afastasse.
Pitt se deteve.
—Conhecerá as marés, suponho —apontou.
—Conhecer as marés! Pois claro. Por algo vivo aqui!
—Qual é a melhor hora para chegar à Torre?
—Ah caramba! Mas quer roubar a Torre? Não andará você atrás das jóias da coroa?
De novo, seu companheiro voltou a rir a gargalhadas.
—Quero transportar algo ali, não trazê—lo até aqui—respondeu Pitt, confiando em
não levar a coisa muito longe.
—Melhor fazê-lo quando a água está mansa— respondeu o primeiro homem, lhe
escrutinando com atenção—. Melhor assim. Não há corrente que nos empurre.
—É muito forte a corrente?
—Pois claro! É um rio com maré, demônio! De onde sai você? Não rege, ou o que?
—Se viesse por aqui antes da travessia, onde poderia esperar? —Pitt ignorou o
insulto.
—Aqui não, se não quiser que o vejam, isso está claro—respondeu o homem com
secura, encaixando de novo a pipa entre seus dentes.
—E quem poderia ver—me?
—Eu mesmo, para começar!
—Mas as águas não se amansam até a noite —argüiu Pitt.
—Eu sei bem quando a água está mansa! Estive muitas noites por aqui para não
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sabê—lo.
—Como é isso?
—Por aqui a coisa está tranqüila, mas se atirar você cem metros para lá —o homem
indicou um ponto na margem — achará dúzias de embarcadouros: Baker´s Wharf,
Sufferance, Bovel and Son, Landells, West Wharf, Coal Wharf, e um montão de degraus. E
isso antes de chegar ao mole do Saint Saviour. Aí sempre achará algo.
—No meio da noite?
—Pois claro. Olhe, chefe, se o que quer é passar um pouco de contrabando ao outro
lado do rio, aqui não o tem muito bem. Se o que quer é ir à Torre, suba rio acima e procure
os degraus do Little Bridge.
Aquilo é mais tranqüilo e certamente achará algum bote amarrado que pode pegar
livremente, desde que o devolva a sua amarração.
Não há coisa mais fácil. Estranho que não o visse você da Ponte de Londres, se é
que veio por ali. Está a coisa de meio quilômetro. Logo observe, para ver se há algum
bote.
—Obrigado— disse Pitt, mal reprimindo um tremor na voz—. Um conselho excelente.
—Pitt rebuscou no bolso até dar com um xelim—. Bebam uma dose a minha saúde.
Agradeço-lhes.
—Agradecido, chefe. —O homem tomou o xelim, que desapareceu em seu bolso.
Quando Pitt se voltou, o homem meneou a cabeça—. Como um doido — disse para
si—. Como um doido.
—Vamos para os degraus do Little Bridge—disse Pitt ao cocheiro.
—Tocando!
Depois de voltar para o Tooley Street, tomaram pelo Mill Lane em direção ao rio. Aqui
não havia atalho algum junto à água.
Mill Lane morria de forma abrupta na borda, junto aos degraus do Little Bridge. Uns
metros rio acima havia um pequeno embarcadouro, e nada mais, além da água e da
margem. Pitt desceu da carruagem.
O cocheiro passou a mão pelo nariz e fixou um olhar espectador nele.
Pitt olhou ao redor antes de fixar os olhos no chão. Ninguém passaria por aqui se não
tinha intenção de descer os degraus que davam à água. Um coche podia aguardar durante
horas neste lugar sem chamar a atenção.
—Quem utiliza estes degraus?
O cocheiro olhou—o como se lhe tivesse feito uma ofensa.
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—Pergunta—me isso ?Como demônio vou saber? Não me venha com essas, chefe.
Aqui uma pessoa não tem nada que cortar.
—Me perdoe—se desculpou Pitt—. Melhor vamos almoçar no pub mais próximo;
igualmente ali nos podem dizer.
—Isso me parece melhor idéia—respondeu o cocheiro com presteza—. Justo acabo
de ver um na esquina, o Three Ferrets por nome, e a verdade, não tinha má pinta.
O pub foi melhor do que o esperado e, depois de um almoço de dobradinha com
cebola, seguido de pudim de frutos secos cozido ao vapor e regado com um copo de cidra,
voltaram para os degraus providos de mais informação do que Pitt se atreveu a supor.
Ao que parecia, eram muito poucos que se valiam dos degraus, embora certo
Frederick Lê tinha passado pelo local na noite em questão, comentando ter visto ali
plantado uma carruagem de cavalos pouco antes da meia—noite, com as portas fechadas
e o cocheiro fumando um charuto na boléia. De retorno a casa, mais de uma hora depois,
o tal Lê havia tornado a observar o coche.
Embora lhe tivesse parecido estranho, não era assunto seu, e o cocheiro era um tipo
grande e robusto. Lê não se metia onde não o chamavam e acreditava nas virtudes da
discrição.
Se havia algo que não suportava, era meter-se nos assuntos de outros, coisa incivil e
anti—higiênica onde as houvesse.
Pitt lhe tinha agradecido de coração, convidando—o a um copo de cidra antes de
abandonar o estabelecimento.
Ao chegar ao fino extremo do Mill Lane, justo em cima da água e degraus, Pitt
percorreu o terreno com meticulosidade, fixando os olhos no chão em busca de algum
sinal que delatasse a presença de uma carruagem ali enquanto a maré chegava a seu
ponto auge para amansar-se e principiar sua ressaca.
Não se via rastro algum no caminho de pedra com pequenos sulcos em seus lados.
Entretanto era verão. Na última semana mal tinha chovido um pouco um ou dois dias,
não o bastante para arrastar qualquer resto deixado ali.
Pitt caminhou lentamente ao longo de um lado do caminho; a meio caminho pelo
outro lado, quando estava a uns vinte metros da água, seu olhar se fixou em uma bituca de
charuto puro, logo em outra.
Pitt se agachou e as recolheu, segurando—as na palma de sua mão.
Ambas pareciam meio soltas no extremo chamuscado, ali onde a folha estava meio
solta e fibrosa.
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Com cuidado, Pitt se aproximou o charuto ao nariz.
Este era aromático, de um aroma peculiar; certamente não era o tipo de charuto que
fumaria um cocheiro ou trabalhador dos moles. Pitt deu a volta ao charuto com cuidado,
para examinar seu outro extremo.
A ponta aparecia cortada de forma curiosa, não a faca, mas com um corta—charuto
cujas folhas se achavam de forma simétrica. Via-se um ligeiro rasgo na ponta, assim como
a marca de um dente frontal irregular que parecia ter mordido em um momento de tensão
emocional.
Pitt tirou seu lenço e envolveu ambas as bitucas com cuidado antes de levá—las ao
bolso e continuar com sua exploração.
Entretanto, não achou nada mais de interesse, assim voltou para o cabriolé, onde o
cocheiro não tinha deixado de observá—lo de sua boléia.
—Viu algo, chefe?—perguntou com expectativa, desejoso do que tinha descoberto, e
que significado tinha.
—Acredito que sim—respondeu Pitt.
—E então? —O homem não queria dar seu braço a torcer.
—Uma bituca de charuto puro—respondeu Pitt com um sorriso—. De charuto puro
dos caros.
—Deus —O cocheiro exalou um suspiro—. Assim o assassino deu de fumar seu
charuto ao lado do cadáver, para matar o tempo antes de cruzar o rio. Esse filho de uma
mãe estava tão tranqüilo!
—Duvido. —Pitt subiu ao cabriolé—. Mas penso que nesse momento se via
apanhado por uma paixão superior a quanto tivesse conhecido na vida.
Me leve a Belgrave, por favor, ao Ebury Street.
—A Belgrave! Não pensará que esse pássaro vive em Belgrave?
—Sim que o—penso. E agora, em marcha!
O trajeto de volta lhes levou bastante tempo. Depois de cruzar o rio e dirigir-se ao
oeste, o tráfico resultou espesso em vários pontos. Pitt teve muito tempo para pensar.
Se o assassino de Susannah a tinha tido por uma traidora, encargo que lhe tinha
cegado até o ponto de provocar sua morte, só podia tratar-se de alguém a quem ela em
princípio devesse firme lealdade.
Isso significava alguém de sua família, fosse Francis Standish ou fosse seu marido.
Que tipo de traição? Era possível que Susannah tivesse terminado acreditando nas
palavras do Arthur Desmond e Peter Kreisler, depois de tudo? Teria posto em questão o
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investimento que Standish tinha efetuado junto ao Cecil Rhodes, o modo em que o Círculo
Interior se envolveu no assunto?
Se Standish era membro do Círculo, membro proeminente possivelmente, era
possível que ele mesmo tivesse se exercido de verdugo? Teria se informado Susannah? O
teria adivinhado? Era essa a razão pela qual tinha sido sentenciada, em razão do que
sabia e em razão de que estava decidida a arejá—lo, antes que a permanecer fiel a sua
família, a sua classe e a seus interesses?
A coisa tinha sentido. Um sentido horrível. Standish pôde ter se encontrado com ela
no Mount Street. É possível que Susannah tivesse esperado uma discussão, súplicas
possivelmente, mas nunca a violência.
Certamente não temia outra coisa que alguma palavra mais alta que a outra quando
subiu ao carruagem do Standish sem que este tivesse que insistir muito. A explicação
respondia a tudo que Pitt tinha averiguado.
Só não explicava o desaparecimento de sua capa.
Agora que estava seguro de que Susannah não tinha sido jogada no rio, mas sim seu
corpo tinha sido disposto de modo que parecesse casualmente abandonado pela maré
alta, já não era razoável assumir que a capa se perdera por efeito dos giros que a corrente
tivesse podido imprimir sobre o corpo.
Acaso o assassino tinha atirado a capa ao rio com tal fim? Para que? A coisa não
demonstrava nada absolutamente.
E se a tinha atirado, como é que não tinha aparecido em alguma margem ou se
enganchara a algum remo ou leme? A capa não podia ter afundado sozinha, sem um
corpo que a arrastasse ao fundo.
Em todo caso, tratava-se de um gesto estúpido por parte do assassino;
simplesmente, a polícia tinha uma coisa mais que procurar, sem que isso tivesse o menor
significado em nenhum sentido.
A não ser, é claro, que a capa tivesse algum significado! Acaso haveria nela alguma
marca ou sinal que pudesse incriminar ao Standish?
Pitt não tinha resposta. Ninguém tinha fingido que se tratasse de suicídio ou acidente.
O método e os meios empregados estavam claros, como inclusive o estava o móvel
do crime.
O assassino mesmo se encarregara de assinalá—lo, em um desafio desnecessário!
Quanto mais pensava nisso, mais sentido tinha. Sentado no cabriolé, apesar da
agradável temperatura, estremeceu ao sentir que o poder do Círculo Interior envolvia—o
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em qualquer parte, não já com ameaças de ruína financeira e política, mas assassinando a
sangue frio a quem se atrevesse a traí—los, uma mulher inclusive.
—Ebury Street, chefe! —avisou o cocheiro—. A que número vamos?
—Doze—respondeu Pitt, um pouco sobressaltado.
—Tocando para os doze! Quer que o espere na porta?
—Não, obrigado— respondeu Pitt, descendo do cabriole e fechando a porta—. Pode
ser que o assunto me ocupe algum tempo. —Rebuscou em seu bolso até dar com a muito
elevada soma a abonar depois de ter disposto do cabriolé a maior parte do dia.
O cocheiro tomou o dinheiro e o contou.
—Espero que não se incomode, chefe—se desculpou-se antes de levá—lo ao
bolso—. Já sei a hora que é, mas não importa.
A verdade, eu gostaria de ficar para ver como acaba a coisa. Se você não se
importar, claro.
—Faça como quiser. —Pitt lhe dedicou um leve sorriso antes de voltar-se e subir os
degraus da casa.
Vestido de libré, um mordomo de grande estatura lhe abriu a porta.
—Sim, senhor?
—Sou o superintendente Pitt, da delegacia de polícia do Bowl Street. Está o senhor
Standish em casa?
—Sim, senhor, mas está com um cavalheiro. Se preferir esperar, avisarei-lhe de sua
chegada. —O mordomo se fez a um lado em deferência ao Pitt, a quem a seguir mostrou o
estúdio. Ao que parecia, Standish e seu visitante se achavam na biblioteca.
O estúdio era pequeno para o costume da Belgrave, embora de proporções formosas
e mobiliado em nogueira, com um tapete turco da mesma cor vermelha que as cortinas,
cuja tonalidade contribuía com calidez ao conjunto.
Era claro que se tratava de um aposento de trabalho. A escrivaninha era funcional,
amém de bonita; sobre ela se alinhavam tinteiros, penas, canivete, pós secantes e selos,
todos dispostos com ordem, dispostos para o uso. Também se viam umas resmas de
papel desalinhadas, como se alguém tivesse estado ocupado em escrever recentemente.
Possivelmente Standish se viu interrompido pela chegada de seu visitante. Um
grande cinzeiro de jaspe vermelho presidia um canto da escrivaninha; em seu centro se
levantava um montoncito de cinza, flanqueado por uma ponta de charuto puro, consumida
até pouco mais de um centímetro de seu extremo.
Sem vacilar, Pitt pegou a bituca e a levou a seu nariz.
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O tabaco era muito diferente ao achado nos degraus do Little Bridge, tanto em aroma
como em textura. Inclusive a ponta era distinta —tinha sido cerceada a faca—, enquanto
que as fracas marcas de dentes eram regulares em extremo.
Pitt puxou o cordão da campainha.
O mordomo apareceu no estúdio, com expressão de certo assombro ao ver-se
chamado por um convidado que sabia não ser mais que um simples policial.
—Sim, senhor?
—Sabe se o senhor Standish tem outros charutos que não sejam desta marca?—
perguntou Pitt, erguendo a bituca para que o outro a visse.
O mordomo se esforçou por ocultar seu desagrado ante semelhantes maneiras;
contudo, em seus olhos se lia uma sombra de recriminação.
—Sim, senhor, acredito que tem outros charutos, que reserva aos convidados. Se
deseja fumar um, olharei para achar-lhe.
—Sim, obrigado.
Com as sobrancelhas arqueadas, o mordomo se aproximou de uma gaveta da
escrivaninha, abriu—o e tirou uma caixa de charutos, que ofereceu ao Pitt.
Pitt escolheu um dos charutos, embora, antes inclusive de cheirar soube que não
pertencia à mesma marca que a bituca que tinha no bolso.
Este charuto era mais escuro e magro, de aroma pouco diferente.
—Obrigado. —Pitt devolveu o charuto a sua caixa—. Poderia me dizer se o senhor
Standish conduz sua própria carruagem de cavalos?
O criado arqueava as sobrancelhas de tal forma que o cenho lhe enrugava.
—Não, senhor. O senhor Standish sofre de um leve reumatismo nas mãos, por isso o
manejo dos cavalos lhe é muito incômodo, além de perigoso.
—Ah. Quais são os sintomas desse reumatismo?
—Acredito que ele mesmo o poderia dizer melhor que eu, senhor. E não acredito que
sua visita lhe leve muito mais de uma hora.
—Quais são esses sintomas? —insistiu Pitt, com tal urgência na voz que o mordomo
ficou atônito—. Se me pode dizer isso, possivelmente não tenha que incomodar ao senhor
Standish.
—Senhor, acredito que seria melhor que consultasse a um médico.
—Não quero uma resposta em termos gerais —cortou Pitt—. O que quero saber é
como afeta o reumatismo ao senhor Standish. Me pode dizer isso ou não?
—Sim, senhor. —O criado deu um passo atrás. Seu olhar escrutinou ao Pitt com
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visível apreensão—. O reumatismo se mostra com uma dor aguda e repentina nos
polegares, assim como em uma súbita perda da força da mão.
—Suficiente para que não possa segurar segundo que coisas, por exemplo as rédeas
de sua carruagem?
—Precisamente. Por isso o senhor Standish nunca conduz. Pensei que o tinha
explicado já, senhor.
—E o tem feito, certamente que o tem feito. —Pitt voltou seu olhar à porta—. Já não é
preciso que incomode ao senhor Standish. Se considerar necessário informá—lo de minha
visita, lhe diga que você mesmo se encarregou de responder a minhas perguntas. E que
não há motivo de alarme.
—Alarme?
—Isso mesmo. Não há motivo nenhum—respondeu Pitt, passando frente a ele,
caminhando em direção ao saguão e a porta da casa.
Standish não tinha sido. Tampouco achava que se tratasse do Kreisler —este não
tinha razão para ofuscar-se dessa maneira—, mas o melhor seria assegurar-se de uma
vez.
Na porta se achou com o cocheiro, quem se surpreendeu de o ver sair tão logo. Pitt
não lhe ofereceu explicação alguma.
Em vez disso, deu-lhe o endereço do Kreisler e lhe urgiu a dar-se pressa.
—O senhor Kreisler saiu —informou o criado.
—O senhor Kreisler tem charutos?—perguntou Pitt.
—Perdão, senhor?
—Tem charutos —repetiu Pitt em tom cortante—. A pergunta me parece clara.
Seu interlocutor adotou uma expressão de rigidez.
—Não, senhor. O senhor Kreisler não fuma. Ao senhor Kreisler desgosta a fumaça do
tabaco.
—Está bem certo do que diz?
—É claro que estou certo. Estou há muitos anos trabalhando para o senhor Kreisler,
aqui e na África.
—Obrigado, isso será tudo. Que tenha um bom dia.
O criado murmurou uma vaga despedida entre dentes, não tão cortês como seria
previsível.
Começava a entardecer. Pitt subiu ao cabriolé.
—A Berkeley Square —ordenou.
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—Tocando, chefe!
O trajeto não era longo. Pitt o passou imerso em seus pensamentos. Havia uma coisa
mais que queria saber, e se esta resultava como supunha, já só podia dar uma conclusão
que encaixasse com quanto sabia, com todas as provas materiais.
Uma conclusão que constituía uma tragédia de proporções entristecedoras em
relação com tudo que tivesse podido imaginar.
O pensamento o entristeceu, levando-o inclusive a um escuro medo da mente, a uma
confusão de idéias e crenças, assim como a uma imediata apreensão a respeito de seus
próprios atos e o curso que cabia continuar a seguir.
O cocheiro pôs seu rosto pelo interior do cabriolé.
—Que número, chefe?
—A nenhum número. Melhor pare-se na primeira boca de boca—de—lobo que veja.
—Como diz? Não o ouço bem. Para mim que disse não sei o que sobre uma boca—
de—lobo.
—Isso mesmo. Pare-se na primeira boca de boca—de—lobo—disse Pitt.
O cocheiro avançou trinta ou quarenta metros mais antes de deter-se.
—Obrigado. —Pitt desceu do cabriolé e olhou ao cocheiro—. Desta vez sim lhe
pedirei que me espere. Pode ser que a coisa me ocupe certo tempo.
—A estas alturas, não iria nem que me pagasse por isso— respondeu o cocheiro com
veemência—. Nunca na vida tinha tido um dia assim! Quando o contar, me vão estar
convidando a comidas o ano inteiro.
Quer uma luz, chefe? —O cocheiro se agachou e desajustou uma das lanternas de
sua carruagem, que entregou ao Pitt.
Pitt a pegou, lhe agradecendo, abriu a tampa da boca—de—lobo e, com muito
cuidado, desceu os degraus até chegar às tripas do esgoto. A luz do dia se converteu em
um diminuto buraco redondo sobre sua cabeça.
Pitt agradeceu por contar com o resplendor da lanterna e entrou no curvo túnel de
tijolo.
A umidade gotejava pelo caminho, com um som inquietante ao cair sobre o rançoso
canal de água. O túnel o levou a mais túneis, a degraus, quebradas e represas. O som da
água era tão ubiquo como o azedo aroma de porcaria.
—Compadre! —gritou, e sua voz se difundiu em todas direções. Pitt guardou silêncio;
não se ouvia mais que o gotejar da água, acompanhado pelo ocasional chiado dos ratos.
Pitt caminhou uma dúzia de metros mais antes de gritar outra vez. "Compadre" era o
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nome em jargão que se dedicavam quem trabalhava nos esgotos. Pitt se achou perto de
uma grande represa de uns três metros e meio de altura. Sem deixar de avançar, chamou
pela terceira vez:
—Sim?
A voz soou tão próxima e áspera que Pitt se sobressaltou, detendo-se em seco e
quase caindo no canal.
Quase ao lado de seu cotovelo, um homem vestido com botas de borracha que lhe
cobriam a coxa apareceu por um túnel lateral. O homem tinha o rosto sujo; o cabelo lhe
caía de qualquer maneira sobre a fronte.
—É este o lance onde trabalha? —Pitt indicou com o braço ao caminho por onde
tinha vindo.
—E como! O que pensa que faço aqui? Procurar as fontes do Nilo?—disse o homem
com desdém—. Se busca um lance de seu agrado, esqueça-se deste. Não está à venda.
—Polícia — anunciou Pitt em tom direto—. Bowl Street.
—Surpresas que tem a vida — observou o homem com secura—. E o que anda
procurando por aqui?
—Uma capa azul de mulher, possivelmente jogada em uma boca—de—lobo fará
pouco menos de uma semana.
Na escuridão, o rosto do pocero exibiu uma expressão alerta, carente de surpresa.
Pitt compreendeu que tinha encontrado a capa; de repente se sentiu sem fôlego ao
confirmar sua suspeita.
—É possível —apontou o homem com precaução—. Por que a busca?Por que tanto
interesse?
—Não se faça de distraído, se não querer ser acusado de cumplicidade em um
assassinato —advertiu Pitt—. Onde a tem?
O homem conteve o fôlego, assobiando ligeiramente entre dentes, observando o
rosto do Pitt por um instante antes de decidir-se a esquecer as evasivas.
—A capa estava como nova. Nem sequer estava molhada —esclareceu em tom
arrependido—. A dei de presente a minha mulher.
—Leve-a à delegacia de polícia do Bowl Street. Se tiver sorte, a devolverão depois do
julgamento. Agora seu testemunho é fundamental. Onde a achou, e quando?
—Na terça—feira. A primeira hora da manhã.
Estava pendendo dos degraus que há sob Berkeley Square. Alguém deve tê—la
jogado pela boca—de—lobo sem incomodar-se em comprovar que caía ao fundo do
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esgoto. Embora não sei por que fariam algo assim.
—À delegacia de polícia do Bowl Street —repetiu Pitt, voltando-se por onde tinha
vindo. Um rato passou entre suas pernas e mergulhou no canal—.
E não o esqueça— acrescentou—. A cumplicidade em assassinato se castiga com
vários anos à sombra. Em troca, a cooperação com a justiça lhe valerá uma vida próspera
e tranqüila durante muito tempo.
O homem suspirou e cuspiu no piso, resmungando algo entre dentes.
Pitt voltou sobre seus passos até chegar aos degraus e a luz do dia. O cocheiro o
esperava com uma ardente curiosidade no olhar.
—E então?—perguntou.
Pitt devolveu a lanterna a seu colchete.
—Me espere na porta do número quatorze— respondeu, respirando com fadiga e
procurando seu lenço para assoar o nariz.
Pitt pôs-se a caminhar com decisão através da praça, até chegar à casa do
Chancellor, subiu as escadas e bateu na porta.
O faroleiro se trabalhava em excesso em seu trabalho no extremo da rua.
Uma carruagem passou com rapidez, entre o musical tinido de seus arnês.
O mordomo o recebeu com a surpresa e o desagrado pintados na expressão, não já
por sua aparência, mas sim pelo penetrante aroma que o envolvia.
—Boa tarde, superintendente. —O criado terminou de abrir a porta, e Pitt passou ao
interior.
O senhor Chancellor justo acaba de voltar do Ministério de Colônias. Agora mesmo
lhe anunciarei sua chegada.
Me permita acrescentar que tomara tenhamos já uma boa notícia. —O mordomo
parecia não ter lido o sombrio cenho do Pitt.
—Há muitas novidades —reconheceu Pitt—. É preciso que fale com o senhor
Chancellor. Mas, possivelmente, antes de lhe incomodar, eu gostaria de falar com essa
criada, Lily acredito recordar, a mesma que viu partir à senhora Chancellor.
—Sim, senhor, como quiser. —O criado vacilou por um segundo—.
Superintendente, parece-lhe... lhe parece que o senhor Richards esteja presente
nesta ocasião?—depois de tudo, era possível que o mordomo tivesse percebido a emoção
que embargava ao Pitt com tal intensidade, a tristeza, a compreensão de achar-se ante
uma violenta tragédia marcada pelas paixões desatadas.
—Acredito que não. Mas obrigado pela sugestão.
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O homem estava há quinze anos ao serviço do Chancellor. Era inevitável que a
confusão lhe levasse a sentir-se horrorizado e apanhado em um conflito de lealdades.
Não havia razão para submetê—lo ao que se preparava. Sua presença, além disso,
tampouco seria de especial utilidade.
—Muito bem, senhor. Agora mesmo vou buscar Lily. Quer vê—la no salão dos
criados?
—Não, obrigado, prefiro falar com ela no saguão.
O mordomo se voltou para partir e se deteve um momento, vacilante, possivelmente
perguntando-se se deveria oferecer ao Pitt ocasião de lavar-se e inclusive de trocar de
roupa.
Por fim, sua expressão deu a entender que o momento lhe parecia muito grave para
semelhantes ninharias.
—Oh! —apontou Pitt de repente.
—Sim, senhor?
—Poderia—me dizer o que aconteceu ao Bragg no braço ?
—A nosso cocheiro, senhor?
—Sim.
—Caiu-lhe líquido fervendo. Um acidente, é claro.
—Como aconteceu exatamente? Estava ali?
—Não, senhor, mas cheguei um momento depois. De fato, todos corremos a
atendê—lo. A coisa foi bastante desagradável.
—Desagradável? Lhe caiu algo em cima?
—Não exatamente. A coisa caiu ao senhor Chancellor. Parece que lhe escorregou
das mãos, conforme disse Cook.
—Que coisa era?
—Uma taça de cacau quente. O leite fervendo produz umas queimaduras terríveis. O
pobre George o passou muito mal.
—Onde ocorreu o acidente?
—Na biblioteca. O senhor Chancellor tinha ordenado ao George que arnesara o cupé
e fosse avisá—lo na biblioteca quando estivesse preparado.
O senhor Chancellor queria lhe perguntar algo sobre um dos cavalos, e por isso
queria falar com ele pessoalmente. Nesse momento se dispunha a beber uma taça de
cacau e...
—Faz um pouco de calor para tomar cacau, não lhe parece?
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—Sim, na verdade. Eu preferiria beber uma limonada — concordou o mordomo.
Embora seu rosto expressasse certa surpresa, esforçava-se em responder a cada
pergunta.
—Gosta muito de cacau o senhor Chancellor?
—Nunca me pareceu isso. E depois dessa tarde, não acredito que fiquem muitas
vontade de voltar a prová—lo, tenho certeza. Eu mesmo vi como estava o pobre George.
Conforme parece, o senhor Chancellor tropeçou, ou algo assim, George se
aproximou para ajudá—lo, e nesse momento se produziu a queimadura. O senhor
Chancellor tocou a campainha imediatamente.
O senhor Richards foi o primeiro em apresentar-se e ver o acontecido.
Depois, antes que alguém pudesse dar-se conta, encontramo—nos todos na cozinha,
tratando de ajudar ao pobre George, lhe tirando a jaqueta, rasgando as mangas da camisa,
pondo isto e aquilo no braço.
Cook e a governanta não faziam senão discutir se era melhor aplicar farinha ou
manteiga, as garotas da cozinha não paravam de gritar e o senhor Richards insistia em
que chamássemos um médico.
Às criadas, que estão no piso de cima, ninguém lhes disse nada, nem que
descessem para limpar o desastre.
Além de tudo isto, o senhor Chancellor tinha que sair.
—Assim teria que conduzir o carruagem ele mesmo.
—Exato.
—A que hora voltou para casa?
—Não sei, senhor. Tarde, porque nos deitamos pouco antes da meia—noite. O pobre
George parecia uma pena, e a senhora ainda não tinha voltado para casa. —
Seu rosto se desabou ao recordar quanto aprendera a partir dessa noite de pânico.
—Onde estava Lily enquanto atendiam ao cocheiro?
—Na cozinha, com o resto de nós, até que o senhor Chancellor lhe ordenou subir ao
patamar da escada, a procurar lençóis velhos que pudessem ser rasgados para fazer uma
atadura ao George.
—Já vejo. Obrigado.
—Quer que vá procurar ao Lily, senhor?
—Sim, por favor.
Pitt aguardou de pé no magnífico saguão, olhando em torno dele, embora não aos
quadros das paredes nem ao parquet reluzente, a não ser à escada e o patamar que havia
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no meio dela, ao candelabro de uma dúzia de luzes que pendia do teto.
Lily apareceu pela porta de pano verde. Sua expressão era de ansiedade; era
evidente que ainda estava muito alterada.
—Que... quer você ver—me, senhor? Já disse tudo, juro. Não sei aonde foi à
senhora: não me disse isso. Nem sequer sabia que pensava sair!
—Sei, Lily—disse Pitt no tom mais amável que pôde achar—. Só a chamei para que
faça um pouco de memória. Lembra-se de onde estava você quando a viu partir? Me diga
exatamente o que viu, tudo o que viu, exatamente.
Lily fixou seu olhar nele.
—Justo saí ao patamar dos dormitórios e olhei para baixo, ao saguão.
—Por que?
—Perdão, senhor?
—Por que olhou para baixo?
—Não sei, Suponho que porque vi que alguém se movia para a porta.
—E o que viu exatamente?
—À senhora Chancellor, que partia para a porta, como já disse.
—Falou ela com você?
—Oh, não senhor. A senhora partia.
—Não lhe deu boa noite, nem disse a que hora pensava voltar? Isso teria sido o mais
lógico, pois você tinha que esperar a sua volta.
—Não, senhor, é que ela não me viu, porque não se voltou. Eu só a vi de costas
enquanto saía.
—Mas estava segura de que era ela?
—Claro que sim, senhor. Levava posta sua melhor capa, de cor azul escuro e forro de
seda.
Uma capa linda— Lily se deteve, com os olhos alagados em lágrimas. Respirando
com força, apontou—: Essa capa nem sequer apareceu, não é verdade?
—Sim. Sim, apareceu—respondeu Pitt, quase em um murmúrio. Nunca em sua vida
havia sentido tão completa mescla de dor e indignação, em nenhum dos casos em que
tinha tomado parte.
Lily fixou seu olhar nele.
—Onde a acharam?
—No momento, não é preciso que o diga, Lily. —por que feri—la sem necessidade?
Lily tinha amado a sua senhora, tinha cuidado dela dia a dia, tinha compartilhado sua
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intimidade com ela.
Por que lhe dizer então que a capa tinha sido jogada nos esgotos soterrados sob a
cidade?
Lily parecia entender suas razões; pelo menos, aceitou a resposta.
—Assim, viu você às costas da senhora Chancellor, envolta em sua capa, enquanto
cruzava o saguão para a porta. Observou se usava seu vestido de noite sob a capa?
—Não, senhor, e o teria visto. Esse vestido chega até o chão.
—Só podia ver a rosto da senhora Chancellor?
—Sim.
—Entretanto, lhe dava as costas.
—Se está pensando que não era ela, temo que está equivocado, senhor. Não há
muitas mulheres de sua altura! E em casa não havia nenhuma outra senhora, nunca.
O senhor Chancellor não é desses. Sempre foi um marido exemplar, o pobre.
—Não, não estava pensando nisso, Lily.
—Melhor.
Lily parecia desconfortável. Certamente estava pensando no Peter Kreisler, e na feia
suspeita que tinham albergado em relação com Susannah.
—Obrigado, Lily. Isso é tudo.
—Sim, senhor.
Sem mais Lily foi embora. O mordomo apareceu junto às escadas. Sem dúvida tinha
estado esperando que Pitt terminasse, para acompanhá—lo ante seu senhor.
—O senhor Chancellor me pediu que o acompanhe ao estúdio, superintendente —
indicou ao Pitt, precedendo—o através de uma grande porta de carvalho, por um corredor
que dava a outra ala da casa, onde bateu numa segunda porta.
Quando responderam do interior, fez-se a um lado para que Pitt pudesse entrar.
A estadia era muito distinta aos formais saguões onde Chancellor se vira com o Pitt
anteriormente. As cortinas estavam corridas nas janelas.
A sala estava decorada em tons creme e amarelo, com toques de madeira escura, e
exibia um ar entre elegante e funcional.
Três das paredes estavam cobertas de livros; no centro havia uma escrivaninha de
mogno com uma grande cadeira atrás. Imediatamente, os olhos do Pitt se fixaram na
charuteira que havia sobre a escrivaninha.
Chancellor parecia tenso e fatigado. Tinha bolsas sob os olhos e seu cabelo não
mostrava o aspecto imaculado que tinha quando Pitt o conheceu pela primeira vez.
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Contudo, sua compostura continuava sendo perfeita.
—Alguma novidade, senhor Pitt?—perguntou, erguendo as sobrancelhas. Seus olhos
se posaram brevemente nas imundas roupas do Pitt, sem que fizesse o menor comentário
sobre o aroma que emanava delas—. Soube que a coisa está mais ou menos resolvida.
Thorne escapou do país, o que possivelmente não seja tão má coisa como parece.
Ao menos, agora o governo se economiza de decidir o que fazer com ele. —Chancellor
esboçou um sorriso levemente torcido—. Imagino que não haverá outros implicados. Além
do Soames, claro está.
—Não, ninguém mais—respondeu Pitt. Detestava o que tinha que fazer. Ia ser o jogo
do gato com o camundongo, mas não ficava outra alternativa. Contudo, não o desfrutava,
não sentia a menor sensação de triunfo.
—Do que se trata então, meu amigo? —Chancellor franziu o cenho—. Se lhe tiver
que ser sincero, não estou de humor para embarcar em longas conversas. Por isso,
rogaria-lhe que fosse diligente. Então, há algo mais?
—Sim, senhor Chancellor, sim que o há. Disponho de novos dados sobre a morte de
sua esposa.
Chancellor não pestanejou. Seus olhos pareciam mais azuis do que Pitt recordava.
—Seriamente? —Sua voz mostrava uma ligeira insegurança, mas isso era natural.
Pitt respirou com força. Sua própria voz lhe soou estranha ao falar, quase irreal.
O tictac do relógio que havia sobre a mesita Pembroke, junto à parede, ressoava com
tal força que o aposento parecia devolver seu som. As cortinas fechadas apagavam todo
som proveniente do jardim ou a rua adjacente.
—Sua esposa não foi jogada no rio. Tampouco foi arrastada pela maré até o Traitors
Gate.
Chancellor não disse nada, mas seus olhos seguiam fixos no Pitt.
—Sua mulher foi assassinada antes, a primeira hora da noite— prosseguiu Pitt,
medindo suas palavras e a ordem de exposição dos fatos—. Depois, seu corpo foi levado
de carruagem de cavalos ao outro lado do rio, a uns degraus que há junto ao Little Bridge,
não longe da Ponte de Londres.
A mão do Chancellor se fechou com força sobre a borda da escrivaninha ante a que
se sentava. Pitt seguia de pé frente a ele.
—O assassino permaneceu nesse lugar com o corpo— continuou Pitt—, durante
bastante tempo, de fato até as duas e meia da madrugada, à espera de que mudassse a
maré.
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A seguir colocou o corpo no pequeno bote que costuma ficar junto aos degraus, bote
que já tinha visto o cruzar a Ponte de Londres, a umas centenas de metros do lugar.
Chancellor observava—o com o rosto curiosamente desprovido de expressão, como
se sua mente se achasse no próprio bordo de um abismo tenebroso.
—Depois de remar umas braçadas— prosseguiu Pitt—, o assassino pôs o corpo atrás
da popa, amarrado com uma corda pelas costas e sob os braços, arrastando—o durante o
resto da travessia para que mais tarde parecesse ter estado muito tempo na água.
Quando o assassino por fim chegou à outra margem, deixou o cadáver no degrau do
Traitors Gate, no lugar preciso em que queria que fosse achado.
Chancellor abriu os olhos de modo apenas perceptível; poderia ter sido um mero
reflexo da iluminação.
—Como é que sabe tudo isso? Tem já ao assassino?
—Sim, tenho—o—respondeu Pitt com calma—. Mas sei tudo isto porque alguém viu
a carruagem de cavalos.
Chancellor nem se moveu.
—Durante sua longa espera, o assassino teve tempo de fumar ao menos dois
charutos puros—continuou Pitt, desviando a vista por um instante a charuteira situada a
poucos centímetros da mão do Chancellor—. Uns charutos pouco comuns, de aroma
peculiar.
Chancellor tossiu e recuperou o fôlego.
—Tudo isto, adivinhou você por sua conta?
—Com certa dificuldade.
—Ela —Chancellor observava ao Pitt com extrema atenção, tomando a medida— foi
assassinada na carruagem de aluguel? Seriamente partiu a ver o Christabel Thorne?
—Não, nunca foi ver Christabel Thorne—respondeu Pitt—. Quanto a carruagem de
aluguel, esta nunca existiu. Sua mulher foi assassinada nesta casa.
O rosto do Chancellor se crispou. Imóvel em seu assento, Chancellor abria e fechava
a mão sobre a escrivaninha, embora sem tocar a caixa de charutos.
—A criada a viu sair —argüiu, respirando com dificuldade.
—Não, senhor Chancellor, a quem viu foi a você, vestido com a capa da senhora
Chancellor —corrigiu Pitt—. Sua esposa era uma mulher muito alta, tanto como você.
O que fez você então foi caminhar até a boca de boca—de—lobo que há em uma
esquina da praça, cuja tampa abriu e a cujo fundo arrojou a capa.
Então voltou aqui e subiu ao piso de cima, onde comentou que acabava de deixar a
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sua mulher em uma carruagem de aluguel.
Depois tocou a campainha e ordenou que dispusessem sua própria carruagem de
cavalos. Pouco depois arrumou as coisas para provocar um acidente no qual seu cocheiro
sofreu queimaduras no braço.
Enquanto os criados todos atendiam ao pobre cocheiro, aproveitou para descer o
corpo da senhora Chancellor, que pôs em sua própria carruagem de cavalos.
Depois conduziu a carruagem em direção sudeste até cruzar o rio, como já descrevi,
e esperou à mudança da maré, a fim de deixar o cadáver na Traitors Gate com a
segurança de que a maré não o devolveria ao rio.
Pitt se inclinou e abriu a charuteira, da qual tirou um dos lustrosos charutos. Seu
aroma lhe foi familiar de um modo nauseabundo. Pitt o segurou contra o nariz enquanto
seu olhar continuava fixo no Chancellor.
De repente, o fingimento terminou. O rosto do Chancellor se viu inundado por uma
paixão selvagem e violenta que alterou por completo seu caráter.
A urbanidade, a segurança em si mesmo, evaporaram-se por completo.
Os lábios franzidos revelavam seus dentes, suas faces estavam brancas, seus olhos
exibiam um incendiário brilho de raiva.
—Susannah me traiu —declarou em tom áspero, com uma nota aguda em que ainda
soava a incredulidade—. Eu a amava de um modo absoluto. Fomos tudo um para o outro.
Susannah era mais que minha esposa; ela era minha companheira, a amiga com
quem compartilhava meus sonhos.
Ela era parte de tudo que eu fazia, tudo que eu admirava.
Sempre pensava exatamente o mesmo que eu. Ela sabia compreender e então me
traiu! Esse é o pior pecado de todos, Pitt, trair o amor, trair a confiança! Susannah se
afastou de meu lado, deixou de confiar em meu critério.
Umas poucas conversas, infestadas de vaguedades e inexatidões, histéricas, com o
Arthur Desmond, e começou a duvidar de mim. Duvidar de mim!
Como se eu não soubesse mais da África que ela, que todos eles! —Sua voz se
erguia com a fúria que o consumia, até quase converter-se em um grito.
Pitt deu um passo para ele, mas Chancellor ignorou—o. A ferida em seu interior era
tal que, para ele, Pitt era pouco mais que uma audiência inanimada.
—Depois de tudo o que lhe havia dito, depois de tudo o que lhe tinha explicado—
continuou, ficando em pé atrás da escrivaninha, com o olhar cravado no Pitt—.
Deixou de confiar em mim. Dedicou-se a escutar ao Kreisler. Peter Kreisler! Um mero
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aventureiro! Bastou que Kreisler semeasse nela a semente da dúvida para que Susannah
perdesse sua fé em mim! Conforme me disse, pensava falar com o Standish para que
deixasse de financiar a empresa de Rhodes. Em si, isso não tinha tanta importância.
Chancellor soltou uma risada selvagem, permeada por uma crescente nota de
histeria.
—Mas quando as pessoas soubessem de que minha própria esposa tinha deixado de
confiar em mim! Seriam dúzias os que se retirariam, centenas! Rapidamente, todos teriam
dúvidas.
Salisbury só necessita uma desculpa.
Teria me convertido no bobo da cidade, traído por minha própria esposa!
Chancellor se apoiou no espaldar de sua cadeira e abriu a gaveta da escrivaninha,
sem deixar de olhar ao Pitt.
—Nunca pensei que descobriria! Gostava de Susannah. Você a admirava! Nunca
pensei que imaginasse traindo a seu próprio marido, a quanto ambos acreditávamos em
comum. Por isso a deixei no Traitors Gate. Era o que merecia!
Pitt esteve a ponto de dizer que esse tinha sido o detalhe que o tinha levado a
descobrir a verdade, mas se conteve a tempo. Não tinha sentido revelá—lo.
—Linus Chancellor.
Chancellor tirou a mão da gaveta. O punho se fechava em torno de uma pistola negra
e pequena. Chancellor voltou o canhão contra si mesmo e apertou o gatilho. O disparo
ressou como uma chicotada na habitação e estalou em sua cabeça, semeando tudo de
sangue e fragmentos de osso.
Pitt estava paralisado pelo horror. A estadia se estremeceu ante seus olhos como um
navio em alto mar; a luz do candelabro pareceu quebrar-se. Um aroma terrível impregnava
o ar. Pitt se sentiu doente.
Nesse momento escutou rápidas passadas no exterior. Um criado abriu a porta de
repente e alguém gritou, embora Pitt não soube se se tratava de um homem ou uma
mulher.
Pitt cambaleou sobre a outra cadeira, machucando-se com violência enquanto saía a
toda pressa da sala.
Ao pedir ajuda, sua voz lhe soou como a de um estranho.
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Capítulo 12
—Por que?
De pé na sala de Charlotte, Nobby Gunne tinha o rosto contraído pela ansiedade.
Como era de esperar, os jornais tinham chamado a atenção sobre o trágico final do
Linus Chancellor.
Apesar da compaixão e discrição, tinha sido impossível ocultar o fato de que se tirou
a vida repentina e violentamente em presença de um superintendente da polícia.
Os eufemismos empregados em relação com sua morte não teriam satisfeito à
pessoa mais ingênua.
Adivinhava-se que a polícia devia haver-se apresentado com uma notícia tal,
insuportável e inclusive ameaçadora, que o tinha levado a procurar uma drástica resposta
imediata.
Se tivesse se tratado de uma tragédia mais comum, de uma solução à morte de sua
esposa que tivesse destruído quanta fé ainda conservava nela, ou tivesse apontado a
ulteriores desastres, era possível que Chancellor não tivesse encontrado outra alternativa
que o suicídio; mas o lógico teria sido levá—lo a cabo mais tarde, depois de profunda
reflexão, sem mais companhia que a sua própria, de noite possivelmente.
Não o teria feito em presença do superintendente da polícia a não ser que este lhe
tivesse vindo, não já com uma revelação estremecedora, a não ser esgrimindo a detenção
iminente que faria impossível outra via de escape.
Possivelmente existissem outras respostas, mas ninguém foi mais à frente do
assassinato de Susannah, da qual o próprio Chancellor devia ser culpado.
—Por quê? —repetiu Nobby, fixando o olhar em Charlotte com urgência e inquietação
crescentes—. O que fez ela que ele não pudesse lhe perdoar? Eu teria jurado que ele
estava profundamente apaixonado por ela.
Tratou-se acaso— Nobby tragou com dificuldade, como se algo lhe bloqueasse a
garganta—de outro homem?
Sabedora de quais eram os temores do Nobby, Charlotte desejou com intensidade
estar em disposição de oferecer uma resposta que não fosse dolorosa. Mas as mentiras
seriam inúteis.
—Não—respondeu com rapidez—. Não, não se tratou de outro homem. Estou de
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acordo com você em que ambos se amavam, cada um a seu modo. Por favor — Charlotte
indicou a cadeira mais próxima—. Parece...
—Sim?
—Só ia dizer que parece tão frio e formal estar de pé sobre o tapete enquanto
falamos de uma coisa tão importante.
—É... é importante?—perguntou Nobby.
—Os sentimentos humanos sempre o são.
Não com muito gosto, Nobby se sentou, acomodando-se na própria beira da cadeira.
Charlotte se sentou na outra cadeira, embora de forma menos incômoda, reclinandose no espaldar.
—Você conhece o porquê, verdade? —insistiu Nobby—. O superintendente Pitt o terá
dito. Sei que sempre vivia muito de perto suas investigações na época em que...
—Sim, meu marido me disse isso.
—Então, rogo, é algo da maior importância para mim. Por que o senhor Chancellor
matou a Susannah?
Ao observar o ansioso rosto do Nobby, Charlotte teve a certeza de que, embora sua
resposta não ia ser a que Nobby mais temia, lhe seria igualmente dolorosa de aceitar.
—Matou—a porque pensou que lhe tinha traído— respondeu em tom grave—. Mas
não com outro homem! Pelo menos não no sentido convencional. Digamos que lhe traiu
indo-se com as idéias de outro homem.
Coisa que ao senhor Chancellor lhe resultou intolerável. O assunto se fez público,
pois Susannah tinha intenção de lhe retirar seu apoio, e o da parte da empresa bancária de
sua família sobre a qual ela exercia controle.
Uma medida assim não podia ficar em privado. —Charlotte olhou o pálido rosto do
Nobby—. Susannah sempre tinha sido um apoio e uma admiradora fervente do senhor
Chancellor. Se agora lhe retirava seu apoio, a coisa se saberia, e todo mundo falaria.
—Mas se ela o via de outra forma —Nobby tentou articular seus pensamentos, mas
estes morreram antes que pudesse expressá—los em palavras.
Era algo indefinível, algo que ninguém se ocupou de expressar porque se dava por
certo. As mulheres deviam a seus maridos a lealdade, não só de apoiá—los em suas
aspirações, mas também, algo mais sutil e que aprofundava mais na relação entre homem
e mulher, de confiar em seu julgamento sobre todas as questões da esfera masculina:
questões de pensamento, filosofia, política e finanças.
Dava-se é claro que as mulheres casadas não precisavam do voto, pois seus maridos
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representavam—nas já. Era algo que não se questionava, nem no âmbito privado do lar. O
público desafio constituía uma traição a tantos acordos não escritos que todos assumiam,
nos matrimônios onde não existia o amor e, é claro, naqueles onde o amor seguia presente
com intensidade e com o passar do tempo.
—Para ela se tratava de uma questão de consciência— acrescentouCharlotte—.
Não é que Susannah fosse desleal de um modo consciente. Inclusive uma vez a vi
tentando convencer a seu marido.
Mas ele simplesmente não a escutava, pois a idéia de que ela pensasse de outra
forma lhe era inconcebível.
O céu sabe quantas vezes Susannah deve ter tentado convencê—lo.
Nobby parecia estar de luto ela mesma. Parecia aniquilada, com os olhos distantes, a
atenção concentrada em sua própria mente. Ao levantar-se da cadeira, cambaleou
ligeiramente.
—Sim, sim, claro. Sabia que Susannah não podia ter agido com perfídia, ou sem
pensar. Obrigada. Foi muito generosa. E agora, se me desculpar temo que tenho uma
visita mais a fazer.
Charlotte hesitou um instante, sem atrever-se a lhe perguntar se se achava bem.
Entretanto, sabia que a ferida era de ordem emocional e precisava tempo para cicatrizar.
Ninguém podia ajudá—la. Charlotte murmurou uma vaga despedida e contemplou
Nobby sair pela porta da casa, caminhando muito erguida e como a provas.
Nobby voltava para casa sem mal saber aonde se dirigia. Parte de sua consciência
insistia que visitasse Kreisler, falasse com ele alimentando a muito leve esperança de que
existisse outra resposta.
Entretanto, outra parte bastante maior sabia que tal conversa carecia de sentido,
além de ser absurda. Só serviria para pô—los em um embaraço mútuo.
Uma mulher não se apresentava em casa de um homem simplesmente para lhe
comunicar sua desilusão? Desengano? Para lhe dizer que o amava, questão que nunca
tinha sido explicitada, mas que não podia lhe perdoar o que tinha feito.
Ele não o tinha pedido.
Nobby voltou para casa, imersa na tristeza. Depois, a última hora da tarde, depois
das visitas de cortesia, a criada se aproximou para lhe informar que Kreisler estava na
porta.
Nobby pensou em recebê-lo na biblioteca. O jardim era muito doloroso, por prenhe de
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lembranças de muito distinta natureza, a cercania e uma hora de esperança e intimidade.
E, entretanto, a biblioteca —e qualquer aposento da casa era muito pequeno.
Estariam muito perto um do outro.
—Receberei—o no jardim—respondeu por fim, saindo rapidamente pela porta, como
se esta, antes ainda da entrada do Kreisler, oferecesse-lhe certa via de fuga.
Nobby estava junto ao canteiro, cujas rosas começavam a florescer, quando Kreisler
se aproximou a seu lado. Kreisler não andou com preâmbulos. Nem ela nem ele tinham
por costume trocar trivialidades.
—Imagino que terá ouvido falar do Linus Chancellor—disse ele com calma—.
Toda Londres conhece seu nome. Eu gostaria de pensar que o acontecido redundará
em algum tipo de pausa para a África, mas o certo é que o tratado segue adiante. E temo
que Rhodes se encontre já no Mashonaland.
Nobby seguia com o rosto fixo na grama, sem voltar-se para ele.
—Por isso o fez?
—O que fiz? —Sua voz parecia expressar uma surpresa sincera. Não havia nela
fingimento nem evasão.
Nobby tinha esperado soar queixosa, chorosa inclusive, mas sua pergunta brotou em
tom moderado, mas forte:
—Levar ao Susannah por onde queria.
Kreisler ficou estático. O silêncio se fez por um momento. Nobby sentiu muito próxima
sua presença física.
—Eu não fiz nada disso! —defendeu-se, visivelmente assombrado—. Só, só me
limitei a defender minha postura!
—Sim fez o que lhe disse — replicou ela—. Não deixou de envenená—la, apagando
de sua mente quanto Chancellor lhe havia dito, lhe pintando uma África explorada e em
ruínas, a imoral destruição de uma raça humana.
—Isso é certo! —desafiou ele—. Isso é exatamente o que acontecerá. Você, melhor
que ninguém, sabe tão bem como eu o que será dos mashonas e os matabeles quando
Rhodes ditar sua lei. Nunca aceitarão o disposto pelo Lobengula! É risível se não fosse
uma maldita tragédia.
—Sim, sei, mas essa não é a questão!
—Ah, não? Pois eu acredito que sim o é!
Nobby o olhou.
—Não me estou colocando com suas idéias. Não me colocaria com elas embora não
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as compartilhasse. Tem você direito a acreditar no que lhe pareça...
Kreisler ergueu as sobrancelhas e abriu muito os olhos, coisa que Nobby preferiu
ignorar. O sarcasmo estava fora da paixão e a gravidade do que se debatia.
—Estou falando dos métodos dos que se valeu: atacar ao Chancellor aí onde era
mais vulnerável.
—É claro—respondeu ele com surpresa—. O que queria que fizesse, atacá—lo onde
era invulnerável? Me portar como um cavalheiro e lhe pedir que disparasse primeiro? Isto
não é um jogo no que se percam ou ganhem fichas.
Estamos falando da vida. E o preço da derrota é o horror e a destruição.
Entretanto, Nobby estava segura do que queria dizer. Sem pestanejar, fixou seu rosto
no Kreisler.
—E o que tem a destruição de Susannah, jogando com seu coração e suas lealdades
até que estas se quebraram, quebrando—a a ela por sua vez? Parece-lhe isso mais justo?
—Por Deus santo, Nobby! Eu não sabia que ele acabaria matando—a! —protestou
Kreisler, com o rosto cinzento—. Sabe muito bem que não podia sabê—lo. Conhece— me
muito para isso.
—Não imagino que soubesse —insistiu ela. Em seu interior, a dor se via suplantado
pela certeza—. Mas penso que não lhe importava muito o que pudesse acontecer.
—É claro que me importava! —Kreisler tinha o rosto branco como o papel—. Se
tivesse sabido o desenlace, jamais teria intervindo. Mas essa opção não existia então.
—Mas você não tinha por que pressionar a desse modo, até que não tivesse mais
saída que escolher entre a própria integridade e o marido a quem amava.
—Todo isso é muito bonito, mas a aposta é muito forte.
—A África Central, contra a tortura interior e a morte de uma mulher.
—Sim, se o prefere assim. Dez milhões de pessoas contra uma só.
—Não o prefiro. E o que me diz de cinco milhões contra vinte?
—Sim, é claro. —Os olhos do Kreisler não pestanejaram.
—Um milhão contra cem? Meio milhão contra mil?
—Não seja absurda!
—Quando se igualam os termos, Peter? Quando chega o momento em que a coisa
não vale a pena? Quando os números se igualam? Quem decide? Quem leva a conta?
—Deixe—o já, Nobby! Não seja ridícula! —Kreisler agora se mostrava furioso. Sua
voz não exibia matiz de desculpa nem justificação—. Estamos falando de uma pessoa e de
uma raça humana. Não há contas que valham. Além disso, você deseja o mesmo que eu
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para a África.
Por que temos que discutir? —Kreisler ergueu as mãos como se quisesse tocá—la.
Nobby deu um passo atrás.
—Não sabe você, verdade?—disse ela com crescente compreensão, e uma tristeza
que mordia suas emoções e prestava a sua razão condição de farol reluzente e solitário—.
Não lhe reprovo suas idéias.
O que não posso tolerar é os meios que está disposto a empregar para alcançar seus
fins, e o que esses meios fazem de você.
Você me fala como se o fim e os meios fossem coisas distintas. Mas não o são.
—Eu a amo, Nobby.
—Eu também o amo, Peter.
Kreisler voltou a fazer gesto de aproximar-se. De novo ela deu um passo atrás,
apenas uns centímetros, mas que não deixavam lugar a dúvidas.
—Existe um abismo entre o que você e eu consideramos aceitável, e se trata de um
abismo que eu não posso cruzar.
—Mas ambos nos queremos —objetou ele, com o rosto marcado pelo apresso e a
incompreensão—. É suficiente.
—Não o é. —A voz do Nobby soou cortante, um ponto irônica inclusive.
Você contava com que a integridade e a honra do Susannah fossem maiores que o
amor que sentia pelo Chancellor… e tinha razão. Como é que não imagina que me possa
acontecer o mesmo?
—Não é que o duvide. É que...
Nobby soltou uma risada que soou curiosa e entrecortada, dando-se conta da ironia.
—É que, ao igual a Linus Chancellor, nunca lhe ocorreu que eu pudesse pensar algo
diferente a você. Pois bem, sim posso. E nunca saberá até que ponto desejaria não poder.
Kreisler reteve o fôlego para responder, para fazer uma nova objeção, mas nesse
momento os olhos de Nobby lhe revelaram a futilidade do intento.
Ao compreender, preferiu economizar a indignidade de insistir e lhe economizar o dor
adicional de ver—se obrigada a lhe rechaçar outra vez.
Kreisler mordeu o lábio.
—Este é um preço que nunca pensei que teria que pagar. E não é fácil.
De repente Nobby se sentiu incapaz de olhá—lo.
A humildade era quão último esperava. Nobby voltou o rosto para as rosas antes de
encaminhar-se à macieira, para que Kreisler não visse as lágrimas que sulcavam suas
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feições.
—Adeus, Nobby— disse ele com suavidade, com a voz surda, como se ele mesmo se
encontrasse exposto a uma emoção impossível de suportar.
Nobby ouviu o som de seus passos ao afastar-se, apenas um débil sussurro sobre a
erva.
Charlotte se preocupava com Matthew Desmond e a terrível, devoradora solidão a
que se via exposto depois que Harriet não lhe perdoasse ter repetido a conversa
Telefónica que ouvira por acaso. Harriet se negava inclusive a recebê-lo em casa.
Matthew não tinha modo de lhe oferecer uma explicação, nem de tratar de confortá—
la. Harriet se tinha encerrado em si mesma, a sós com sua vergonha, sua fúria e sua
convicção de ter sido traída de uma forma imperdoável.
Charlotte dava voltas e mais voltas ao assunto; nem por um segundo duvidou de que
Matthew fizesse o corrente.
Possivelmente tinha perdido ao Harriet pela decisão que tinha tomado, mas, se
agisse de outro modo, o silêncio pesaria para sempre como uma laje em sua consciência.
Matthew teria perdido então o que era melhor nele, esse núcleo de verdade que ao
final resulta chave em toda decisão, em todos os valores, na própria essência da
identidade.
A negação do que alguém sabe justo não é coisa que alguém se perdoe com
facilidade. Com o tempo, isso teria destruído o amor que se professavam.
A tudo isto, Charlotte seguia com seus diários afazeres, simples ou complicados,
amassando pão ou cortando a massa de um bolo, olhando Gracie cortar as verduras,
inspecionando o estado dos lençóis e costurando os desfiados punhos das camisas do Pitt,
procurando botões para substituir aos que se perderam, ao mesmo tempo sem deixar de
pensar, cada vez que sua mente achava um momento para abstrair-se, na dor que sentia
Matthew, em sua solidão e profunda melancolia.
Inclusive os joguinhos a que Archie e Angus se entregavam no chão da cozinha
apenas devolviam um breve sorriso a seu rosto.
As poucas noites que passavam juntos se dedicava a observar o rosto do Pitt em
repouso, e percebia a tensão que não lhe abandonava nos últimos tempos, inclusive
depois de resolver o assassinato de Susannah, sabedora da pena que aninhava nele e dos
retalhos de culpa que seguiam sombreando sua lembrança de Arthur Desmond.
Charlotte ansiava poder lhe oferecer ajuda, mas o fato de lhe rodear com seus braços
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e lhe murmurar seu amor ao ouvido não era mais que um paliativo superficial que, sabia
bem, não chegava ali onde mais ferroava a dor.
No mesmo dia que Nobby a visitou, quando compreendeu o que seriamente lhe tinha
doído e o que pensava fazer a seguir, Charlotte se decidiu visitar pessoalmente ao Harriet.
Fosse qual fosse o resultado de sua visita, as coisas não estariam pior que agora, e
Harriet, assim como Matthew, merecia conhecer a verdade.
A felicidade de Harriet, na medida em que era possível —e sua chegada podia
demorar muito tempo—, dependia em grande parte da decisão que agora adotasse.
Harriet podia escolher entre a coragem, a compreensão e o perdão, ou podia
defender-se atrás da culpa alheia, consumir-se de indignação e converter-se em uma
mulher amargurada e solitária, sem amor que oferecer nem tomar.
Em todo caso, Harriet tinha direito a que sua decisão se apoiasse na realidade, não
em fáceis palavras de uma comodidade enganosa.
Para a ocasião, Charlotte pôs um simples, mas favorecedor vestido verde escuro com
adornos azuis. O vestido era um tanto escuro para o verão, coisa que o fazia um ponto
chamativo.
Charlotte tomou uma carruagem de aluguel até a casa do Matthew, cujo endereço
tinha encontrado na escrivaninha do Pitt. Uma vez ali, pediu ao cocheiro que a esperasse
fora.
Matthew ficou estático ao vê—la, mas a fez entrar com amabilidade. Seu aspecto
continuava sendo de tristeza e profunda infelicidade.
Charlotte lhe pôs à corrente de seu plano em poucas palavras e lhe pediu que a
acompanhasse, não já a casa do Harriet, a não ser até sua rua, pelo menos.
—Oh, não! —Matthew rechaçou seu plano imediatamente, com a dor e a derrota
pintados na expressão.
—Se não puder convencê—la, ela nunca chegará a saber que esteve ali — apontou
Charlotte.
—Nunca o conseguirá—disse Matthew sinceramente—. Harriet nunca me perdoará.
—É que você fez mau? —desafiou Charlotte.
—Não sei.
—Sim sabe! Você fez a única coisa que era honorável dadas as circunstâncias, e
faria bem em não esquecê—lo nunca. Pense na alternativa. Qual era? Mentir por omissão
para encobrir a traição do Soames, não porque esta lhe parecesse bem, mas sim por
medo a buscar o rechaço de Harriet.
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Imagina viver com algo assim em sua consciência? Poderia continuar amando ao
Harriet depois de ter pago semelhante preço?
—Não.
—Então venha comigo e tentêmo—lo. Ou acaso tem muito claro que Harriet é muito
superficial para compreendê—lo?
Matthew sorriu com brevidade e pegou sua jaqueta. Não havia por que dizer mais.
Charlotte saiu primeiro e deu ao cocheiro o endereço de Harriet Soames. Ao chegar,
Charlotte apertou levemente a mão do Matthew e desceu da carruagem, deixando—o a
sós em seu interior enquanto subia os degraus da casa.
Estava decidida a que a deixassem entrar como é; só a deteria a possibilidade de
montar uma cena.
Charlotte bateu na porta; quando a porta se abriu, cravou seu olhar nos olhos da
criada e lhe informou que tinha algo importante que tratar com a senhorita Soames, e que
estaria muito agradecida se a senhorita Soames consentisse em recebê—la.
A criada desapareceu por espaço bastante prolongado, uns cinco minutos, antes de
voltar para lhe informar de que, por desgraça, hoje a senhorita Soames não se achava
bem e não estava em disposição de receber a ninguém.
Se a senhora Pitt queria deixar uma nota, ela mesma se encarregaria de entregar-lhe
à senhorita.
—Não, obrigado—respondeu Charlotte na hora, forçando um sorriso—. A questão é
pessoal e muito delicada.
Tenho intenção de vir uma e outra vez, até que a senhorita Soames se recupere e
esteja em condições de me receber. O que tenho que falar com ela não pode passar pelo
filtro de terceiras pessoas nem pode ser levado no papel.
Seria amável de dizer-lhe. Estou segura de que a senhorita Soames é uma dama
valente.
Tão formosa como é, não pode se esconder do mundo para sempre.
E que eu saiba, não tem motivo algum para envergonhar-se. A própria vergonha e o
desejo de escapar de outros não são motivo suficiente.
A criada empalideceu.
—Eu não posso lhe dizer isso, senhora.
—Já sei que não pode. —Charlotte acentuou seu sorriso—. Mas sim pode lhe contar
que eu o disse. E se sentir consideração por ela, coisa da que estou segura, gostará de
vê—la refeita e disposta a enfrentar-se outra vez ao mundo. É algo que toda pessoa bem
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nascida saberá apreciar.
Como você não ignora, outros muitas vezes nos julgam conforme estimamos a nós
mesmos.
Se uma acredita ser indigna, o mais provável é que outros se convençam de que
ninguém sabe melhor que ela própria e que, portanto, é efetivamente indigna.
Quando uma pessoa anda com a cabeça bem alta e olhe direto nos olhos, a não ser
que as provas em contra sejam irregováies, todos assumirão que alguém é tão inocente
como aparenta. E agora, por favor, vá e lhe diga quanto acabo de lhe dizer.
—Sim, senhora. Agora mesmo, senhora. —A criada se afastou a toda pressa, com os
saltos repicando sobre o chão encerado.
Charlotte soltou um momentâneo suspiro de alívio. O discurso tinha sido digno de sua
tia avó Vespasia! Embora achava assim que acabava de dizer, tinha falado com uma
confiança e uma arrogância que estava longe de sentir.
Charlotte permaneceu na soleira, sob o sol, sem sentar-se no formoso saguão onde
abundavam as cadeiras. A criada voltou depois do que pareceram horas embora
provavelmente não foram mais de dez minutos.
—Sim, senhora—disse a criada, voltando quase para trote, com o rosto rosado e
considerável respeito em seu olhar—. A senhorita Soames diz que fará o esforço de
recebê—la. Por aqui, por favor.
Charlotte a seguiu a uma pequena sala de estar ao final da casa, onde Harriet
descansava sobre uma chaise longue de veludo dourado, pálida em extremo em seu
vestido de musselina branca e com o negro cabelo revolto sobre os ombros. A imagem
seria menos inquietante se sua pele exibisse um pouco de cor, e não esse tom amarelado
que falava de uma doença nada imaginária, embora nascida no desespero.
Harriet ergueu seu olhar para o Charlotte e a convidou a tomar assento enquanto
fazia sair à criada. Em nenhum momento lhe ofereceu refresco algum.
—Sua mensagem foi sincera até roçar a ofensa, senhora Pitt. Parece—me
surpreendente que acredite ter direito a insistir em ver—me. Mal nos conhecemos; apenas
um par de saudações não lhe permite perturbar minha dor com ameaças de me perseguir
ou insultos nos que me tacha de covarde.
O que quer me dizer que lhe parece que justifica tudo isso? Não posso imaginar do
que se trata.
Charlotte tinha pensado longo tempo no que ia dizer, mas agora que o momento tinha
chegado, a coisa era muito mais difícil de imaginado.
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—Tem você uma decisão muito importante que tomar— começou, adotando um tom
suave e repousado—. Uma decisão que marcará o resto de sua vida.
—Não tenho nenhuma decisão que tomar —negou Harriet com firmeza—. Matthew
Desmond me deixou sem decisão. Só fica um caminho a seguir.
Mas isso não é assunto seu, senhora Pitt.
Suponho que não posso culpar a seu marido do acontecido. Ao fim e ao cabo, é
polícia e cumpre com seu dever.
Contudo, depois do acontecido, não posso admirá—lo, como não a admiro a você,
por ser sua mulher. Já que quer que falemos claro, vou ser o mais clara possível.
—A questão é muito importante para que não o façamos —concordou Charlotte,
esboçando em sua mente o que ia dizer a seguir—. Mas se acreditar que estou de acordo
com os atos de meu marido por simples lealdade conjugal, está você equivocada.
Há certas coisas que alguém deve acreditar por si mesma, sem importar o que
pensarem outros, sejam estes pais, maridos, líderes políticos ou homens da Igreja.
Há algo no interior de todos nós, uma alma se quiser, que deve responder ante Deus
ou, se não você crie nele, ante a história, a vida ou, simplesmente, ante si mesma; e a
fidelidade a este núcleo interior de cada pessoa deve prevalecer sobre todas as demais
lealdades.
Uma vez vista, a luz da verdade não pode ser negada, por muito que os em que pese
a outros.
—Na verdade, senhora Pitt, é você...
—Parece-lhe extremo o que digo? —cortou Charlotte—. É claro, há formas de fazer
as coisas. Se uma pessoa tiver que negar as crenças ou demolir os ídolos de outra
pessoa, é melhor que o faça de forma aberta e honorável, na cara, e não pelas costas. E
ninguém tem o direito a lhe pedir uma lealdade superior a que deve a sua própria
consciência.
—Não, claro que não, mas —Harriet se deteve, insegura de onde ia parar.
—Na escola aprendi um poema escrito na época da Guerra Civil –continuou
Charlotte—. O poema é do Richard Lovelace e se chama "A Lucasta, de caminho à
guerra". Há um verso que diz: Poderia não te amar muito, querida / Apaixonado, já não
tenho honra. Então o poema me fazia rir. Minha irmã e eu estávamos acostumados a fazer
brincadeiras a respeito.
Mas agora começo a entender seu significado; pelo menos, em meus momentos mais
lúcidos, compreendo retalhos do que encerram esses versos.
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Harriet franziu o cenho, mas continuou escutando.
—Quanto melhor é uma pessoa—continuou Charlotte—, mais integridade, compaixão
e valor demonstra, mais profundo é o amor que pode oferecer; mais profundo e mais
delicado, acrescentaria.
Um navio de pouco calado guarda menos tesouros em seus porões e continua sendo
superficial, por muito imponente que seja sua coberta.
Os olhos do Harriet não se moveram do rosto do Charlotte.
—O que quer me dizer, senhora Pitt?
—Admira você a um homem que faz o que considera justo, o que sabe que é justo,
unicamente quando sabe que isso não lhe vai prejudicar?
—É claro que não—respondeu Harriet na hora. Isso é algo que está ao alcance de
todo mundo. A maior parte da gente se comporta assim. É normal que as pessoas
procurem o próprio interesse. A honra e a nobreza se demonstram quando há um custo no
meio.
—Nesse caso, sua resposta verbal difere bastante da resposta em seus atos —
indicou Charlotte, em tom amável e com uma expressão de tristeza que desmentia toda
crítica.
—Não a entendo—disse Harriet, embora seu ar vacilante indicava que possivelmente
começava a compreender.
—Seriamente? Preferiria que Matthew se prestasse ao que ele sabia indigno a fim de
agradá—la? Teria admirado-o, teria amado-o por isso? Se tivesse sido capaz de fazer algo
assim, trair a confiança de seu país e a honra de seus colegas de trabalho a fim de
agradá—la, que mais trairia, para economizar-se desdita ou solidão, se a ocasião se
apresentasse?
O rosto do Harriet mostrava a pontada da angústia e um terrível conflito de decisão.
—Chegaria a lhe mentir—continuou Charlotte—para evitar sua cólera ou seu
rechaço? Onde se deteria? Que verdades ou promessas resultariam sagradas? Ou tudo
poderia ser quebrado se a dor que causasse fosse excessiva?
—Não continue! —exclamou Harriet—. Não é preciso que continue. Entendo o que
quer me dizer. —Harriet respirou com força, retorcendo os dedos sobre seu regaço.
Quer me dizer que me equivoco ao culpar ao Matthew quando não fez a não ser o
que achava justo.
—A você não parece justo também? —insistiu Charlotte.
Harriet guardou silêncio durante longo tempo.
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—Sim—respondeu por fim. Charlotte adivinhou o muito que lhe custava fazê— lo. Em
certo sentido, Harriet estava dando as costas a seu pai, admitindo o equívoco que tinha
cometido.
Entretanto, ao mesmo tempo se tratava de uma espécie de liberação do esforço que
supunha manter uma ficção que afastava a sua razão de suas emoções, em um conflito
que seguiria erodindo—a durante tanto tempo como se prolongasse—. Sim, sim, tem você
razão. —Harriet a observou com um cenho de ansiedade—. Pensa que Matthew saberá
perdoar meu julgamento precipitado e minha cólera?
Charlotte sorriu com certeza absoluta.
—Pergunte-lhe a ele—respondeu.
—Eu... eu... —gaguejou Harriet
—Matthew está aí fora. —Charlotte sorriu, a seu pesar—. Quer que o faça entrar? —
Ao dizê—lo, já se encaminhava para a porta. Mal esperou para ouvir o rouco assentimento
do Harriet.
Matthew estava sentado cabisbaixo no interior da carruagem, lançando nervosos
olhares ao exterior, com o rosto descomposto.
Ao ver a expressão do Charlotte, seus olhos refletiram a luta que o anseia e a
esperança estabeleciam com a razão.
Charlotte se deteve a seu lado.
—Harriet lhe pede que entre —indicou—. E, Matthew, ela... ela se deu conta de seu
engano. Acredito que quanto menos se fale disso, mais fácil será esquecer.
—Sim. Sim, por certo. Eu... —Matthew engoliu em seco. — Obrigado!
A seguir se esqueceu do Charlotte e correu para a porta do Harriet, que cruzou sem
incomodar-se em chamar ou esperar aviso adicional.
Charlotte pôs-se a caminhar pela calçada. Sem incomodar-se em dissimular, lançou
um olhar pela janela, onde reconheceu duas silhuetas frente a frente; no momento
seguinte, as silhuetas se aproximaram de tal modo que pareceram converter-se em uma
só, indivisível para sempre.
De volta à casa depois de estar com Harriet Soames e Matthew, Charlotte se sentiu
de um humor esplêndido, satisfeita porque tudo tivesse acabado tão bem.
Entretanto, existiam outros aspectos a considerar, sobre os que distava de estar tão
segura. Tudo tinha começado com a morte do Arthur Desmond.
O assassinato de Susannah era uma tragédia que sentia no mais fundo depois de
tê—la conhecido pessoalmente, mas a morte de Sir Arthur era a que verdadeiramente doía
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ao Pitt, cuja dor era lacerante, pois formava parte de sua própria vida e nunca poderia ser
esquecida.
E Charlotte sabia, lendo através dos silêncios de seu marido, que o sentimento de
culpa fazia parte dessa dor.
Charlotte tinha o esboço de um plano na mente, mas necessitava a ajuda de alguém
com acesso ao Morton Clube, de uma pessoa a quem não se relacionasse com a polícia e
que pudesse aproximar-se por ali como um membro inocente mais.
É claro, essa pessoa, além disso, devia estar disposta a prestar-se à indagação.
A única pessoa a quem conhecia que respondia parcialmente a esse perfil era
Eustace March. Charlotte tinha muitas dúvidas sobre a possibilidade de que Eustace se
deixasse persuadir para satisfazer o último requisito. Contudo, só havia uma forma que
soubesse.
Charlotte se sentou para escrever uma carta.
"Querido", vacilou entre dirigir-se a ele como "Tio Eustace" ou como "Senhor March".
O primeiro tratamento soava muito familiar, o segundo muito rígido.
A relação entre ambos era única, mescla de parentesco distante, embaraço e sentido
da culpa extremos, e, por último, antagonismo em relação com as tragédias acontecidas
no Cardington Crescent.
Agora se dava entre ambos uma espécie de trégua, nervosa e extremamente
cautelosa por parte do Eustace.
Charlotte precisava de sua ajuda. O conceito de si mesmo que tinha Eustace era tal
que se apressaria a socorrer a uma mulher em apuros. A coisa encaixava em sua
concepção do que eram um homem e uma mulher, e sua imagem do que era um autêntico
cristão e um cavalheiro benevolente.
"Querido senhor March —escreveu—: Desculpe-me por meu atrevimento ao lhe
abordar de forma tão direta e sem nenhum preâmbulo, mas necessito ajuda em uma
questão da maior gravidade moral. —Charlotte sorriu ao prosseguir—. Não posso pensar
em outro homem a quem acudir tão segura de sua capacidade para ajudar a outros e de
sua disposição a fazê-lo assim com o valor e o tato extremo que se necessitam.
Preciso contar com uma pessoa de julgamento rápido, grande percepção dos
homens, honestidade absoluta e, inclusive, certa presença e autoridade física."
Se estas linhas não lhe chegavam ao mais fundo, nada o faria! Charlotte esperava
não haver-se excedido na apresentação do caso. Pitt suspeitaria imediatamente de uma
carta escrita nesses termos. Mas Pitt tinha senso de humor, coisa da qual Eustace carecia.
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Eu gostaria de visitá—lo esta noite—continuou— para lhe explicar com precisão a
natureza do problema e como acredito que este pode ser transformado em interesse da
honra e a justiça.
Disponho de um telefone, cujo número aparece na parte superior desta folha. Confio
que será amável de me fazer saber se minha visita seria conveniente, isto é, se estiver
disposto a vir em minha ajuda.
Sua, com afeto e esperança, Charlotte Pitt."
Fechou e selou a missiva, que entregou ao Gracie para que depositasse no correio.
Eustace a receberia essa mesma tarde.
Charlotte recebeu a resposta por telefone, em forma de afirmação entusiasta,
expressa com gravidade e considerável segurança —por não dizer satisfação— em si
mesmo.
—Minha querida amiga—lhe saudou ele quando Charlotte se apresentou em sua
biblioteca do Cardington Crescent—. No que posso lhe ser útil? —Eustace estava de pé
ante a lareira, embora nenhum fogo ardia na morna noite de verão.
Tratava-se de simples questão de hábito, prerrogativa do senhor da casa,
acostumado a esquentar-se ali durante todo o inverno—. Possivelmente seria melhor que
me referisse a natureza exata do problema.
Charlotte se sentou na cadeira oferecida por ele, tratando de não pensar nas
passadas associações do lugar, nas lembranças da tragédia.
—O assunto tem que ver com uma morte terrível —declarou, olhando-o nos olhos
com franqueza para ganhar sua atenção sem fazer uso de flerte nenhum.
—Se trata de uma questão que a polícia, por causa de sua posição, ou falta de
posição, na sociedade, não está em condições de resolver.
Thomas tem muitos dados sobre o acontecido, mas a resposta final está fora de seu
alcance, pois só tem acesso ao lugar dos fatos em sua condição expressa de polícia.
Naturalmente, a observação debaixo destas condições é inútil, pois todo mundo está
em guarda. —Charlotte esboçou um mínimo sorriso—. Além disso, há pessoas que
precisam achar-se frente à autoridade e o status natural de um cavalheiro para responder
com a verdade.
Entende o que quero dizer, senhor March?
—É claro, minha querida senhora—respondeu ele em cima. — São os problemas que
se derivam de pertencer à classe... —Eustace se deteve a tempo para não mostrar-se
ofensivo; o dilema se fez patente em seu rosto— ocupada — concluiu, saudando com
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gesto florido sua afortunada resolução da frase—. Ao inteirar-se de sua ocupação, serão
muitos os que se mostrem precavidos —acrescentou, se por acaso não tinha ficado
claro—. A que lugar ao que tenho acesso se referia você em concreto?
—Ao Morton Clube— respondeu ela com doçura—. Sei que você é sócio, pois uma
vez o ouvi dizer. Além disso, todos sabemos que se trata do clube mais distinto de
Londres, de modo que sem dúvida seria você bem—vindo de todo modo, até sem gozar da
condição de sócio.
Ninguém questionaria sua presença ou o acharia fora de seu âmbito. Além disso, não
conheço outra pessoa que possa fazer o que peço e que tenha, me perdoe, não sei como
expressá—lo sem parecer exagerada.
—Por favor, rogo-lhe que seja sincera comigo —urgiu ele—. Prometo não criticar o
que tiver que me dizer nem as palavras que utilize. Se estivermos ante uma questão da
importância que insinua, não é momento para deter-se em ninharias.
—Obrigada. É muito compreensivo. Como dizia, necessito a um homem que tenha
amor à justiça e uma coragem que antepor esse amor à comodidade e a conveniência. Os
homens assim não são precisamente comuns.
—Quanta razão tem —observou ele com tristeza—. Se trata de um mórbido aviso dos
tempos em que vivemos. Mas, exatamente, o que é o que quer que faça?
—Descobrir o que aconteceu a Sir Arthur Desmond a tarde de sua morte.
—Mas sem dúvida sua morte foi por acidente ou suicídio. —Eustace torceu o gesto
levissimamente—. Tirar a própria vida não é ato cristão ou de cavalheiros, exceto quando
há dívidas de jogo por meio ou se cometeu uma grave indignidade.
—Não, não, senhor March! Aí está a questão. Sem dúvida se tratou de um
assassinato cometido por razões que não quero detalhar agora. —Charlotte projetou o
rosto para frente, observando—o com intensidade—. Esse crime guarda certa relação com
a morte da senhora Chancellor. —Charlotte ignorou a expressão atônita de seu
interlocutor—. O crime também tem que ver com alguns membros do Ministério de
Colônias cujo nome não posso divulgar.
De fato, só sei quanto ouvi de passagem, mas a questão tem que ver com os
interesses da Inglaterra e o Império, que possivelmente estejam em interdição. —Eustace
a escutava com a boca e os olhos muito abertos—. Sir Arthur foi assassinado por ter
chamado a atenção sobre questões que expunham a certas pessoas à suspeita e, com o
tempo, à ignomínia —terminou Charlotte.
—Céu santo! Não posso acreditar! —Eustace respirou com força. Minha querida
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senhora, está completamente segura do que diz? Parece como se...
—A senhora Chancellor morreu. E também o senhor Chancellor. Acaso pode duvidar
da importância do assunto?
—Não. Não, é claro que não. Mas que conexão?
—A coisa tem que ver com a África. Posso contar com sua ajuda?
Eustace só vacilou um instante. Como podia recusar e negar-se a si mesmo a
oportunidade de mostrar sua galanteria, jogar um papel nobre na questão, e assegurar-se,
possivelmente, um pequeno lugar na história?
—Pois claro— respondeu ele com entusiasmo—. Quando nos poremos em marcha?
—Amanhã para a hora do almoço? —sugeriu ela—. Naturalmente, eu não estou
autorizada a entrar no clube.
—Deus santo, claro que não! —concordou ele com expressão alarmada. Uma coisa
assim equivaleria a um sacrilégio.
—Nesse caso, esperarei—o na rua—respondeu Charlotte, com muita dificuldade
tratando de ocultar sua irritação. A coisa era absurda.
Por que os homens se empenhavam em escandalizar-se ante a idéia de que uma
mulher pudesse visitar um clube? Nem que lhes desse de passear nus! A imagem a
divertiu de tal modo que teve que reprimir a risada com dificuldade.
Ao perceber sua expressão, Eustace esboçou um gesto de alarme.
—Espero que não estará pensando...
—Não!—respondeu ela imediatamente—. Não, é claro que não. Prometo lhe esperar
na rua. Se não conseguir me acreditar, recorde que Thomas foi recém promovido.
Sou a primeira interessada em mostrar o maior decoro para não interferir em sua
carreira. —Charlotte contorcionava um tanto os dados, mas Eustace parecia acreditar nela.
—É claro, é claro. —Eustace assentiu com gesto que se quis sagaz—. Lhe peço
desculpas por ter duvidado de você. E agora, me diga, que informação é a que deseja
obter?
—Para começar, quero saber precisamente quem se achava ali a tarde de sua morte,
e onde estavam sentados, ou de pé, ou como estão os cavalheiros em seus clubes.
—Uma pergunta muito simples. Sem dúvida Thomas terá sabido a resposta graças
aos garçons —apontou ele em tom satisfeito.
—Não, ao que parece, os garçons estão tão ocupados que não se deram conta —
respondeu ela—. Além disso, se tiverem ocasião, as pessoas fogem de falar com a polícia,
especialmente quando albergam o temor de comprometer sem motivo a seus amigos.
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—Entendo —Eustace mostrava certa expressão cética.
—Mas você não falará com a polícia; tão somente responderá ante mim —especificou
ela.
Charlotte considerou se devia mencionar que Farnsworth se havia oposto a que
Thomas investigasse o caso; por fim, o risco lhe pareceu excessivo.
Eustace era homem que sentia respeito reverencial pela autoridade.
Além disso, não era descartavel que pertencesse ao mesmo ramo do Círculo Interior,
o que alteraria por completo sua disposição.
—Muito bem —concordou Eustace, aparentemente tranqüilizado pelo último detalhe.
Depois de tudo, quem era ela para que outros se fixassem—. De acordo. —Eustace
esfregou as mãos—. Então podem pôr mãos à obra amanhã mesmo. O que lhe parece se
encontramos às onze da manhã na porta do Morton Clube?
Charlotte se levantou de sua cadeira.
—Sinto que tenho uma enorme dívida com você, senhor March. Muito obrigada.
Tomei—me a liberdade de redigir uma breve descrição dos principais suspeitos —
acrescentou com rapidez, lhe passando um papel—. Estou segura de que lhe será útil.
Muito obrigada.
—Não se merecem, minha querida amiga, não se merecem —assegurou ele—. De
fato, ardo em desejos de entrar em ação.
Eustace já não estava tão seguro às onze e dez da manhã seguinte, quando entrou
na sala principal do Morton Clube, procurando um lugar onde sentar-se enquanto se
perguntava como raios ia levar a cabo seu trabalho.
Para começar, à fria luz do recinto público, dava-se conta de que sua missão era de
um mau gosto extraordinário.
A pessoa jamais perguntava por suas ações a um sócio do mesmo clube. Era algo
que não se fazia.
A mesma essência de contar com um clube radicava em gozar do anonimato e a
tranqüilidade, em desfrutar de companhia enquanto se estava em privado, em rodear-se de
pessoas como a gente mesmo, pessoas que sabiam como comportar-se.
Seguindo as indicações de Charlotte, sentou-se no lugar onde Sir Arthur tinha
morrido. Nesse momento se sentiu completamente estúpido, seguro de que tinha o rosto
como tomate, apesar de que ninguém reparou nele absolutamente. Coisa, por outra parte,
que era de rigor em todo clube decente.
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Não teria que haver-se metido nisto, por muito que Charlotte Pitt tivesse insistido!
Teria que ter declinado com gesto amável, assinalando a impossibilidade de sua tarefa, e
tê—la feito sair de sua casa.
Mas agora já era tarde. Tinha dado sua palavra! Eustace não tinha maneira de
cavalheiro andante. E já postos, Charlotte não era sua idéia de uma rapariga em apuros.
Era muito esperta para ser satisfatória, muito rápida com a língua.
—Bom dia, senhor. Quererá tomar algo?—perguntou uma voz discreta à altura de
seu cotovelo.
Eustace deu um pulo antes de fixar-se no rosto do garçom.
—Oh, sim, uma dose de uísque não iria mau, né...
—Sim, senhor?
—Desculpe. Estava tratando de recordar seu nome. Parece—me que nos vimos
antes.
—Guyler, senhor.
—Guyler. Isso mesmo. Eu, né... —Eustace se sentia o centro dos olhares, um asno
absoluto, mas tinha que cumprir o prometido. Não podia voltar junto à Charlotte e lhe dizer
que tinha fracassado, que nem sequer se atreveu a tentá—lo.
Nenhuma vergonha podia ser superior a essa. A confissão de semelhante covardia a
uma mulher seria angustiante; no caso do Charlotte, simplesmente seria intolerável.
—Sim, senhor?—respondeu Guyler com impaciência.
Eustace respirou fundo.
—A última vez que estive aqui, o último dia de abril, estive falando com um cavalheiro
muito interessante, um homem que tinha viajado muito, por terras africanas sobre tudo.
Parecia saber tudo sobre a colonização da África.
O que acontece é que não recordo seu nome. Não acredito que me dissesse isso. Às
vezes, alguém se esquece de mencioná—lo, não lhe parece?
—Com efeito, senhor—respondeu Guyler—. Queria você saber o nome desse
cavalheiro?
—Exatamente—respondeu Eustace com um alívio infinito—. Me entendeu você bem.
—Sim, senhor. Onde se sentou nesse dia, senhor? O dado possivelmente me ajude a
recordar. E, possivelmente, se pudesse me descrever um pouco a esse cavalheiro... Era
homem de idade? Loiro ou moreno? De estatura ou mas bem baixo?
—Né... —Eustace espremeu os miolos pensando em como Charlotte havia descrito
os principais suspeitos. Por desgraça, estes guardavam pouca semelhança entre si.
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De repente lhe ocorreu uma brilhante ideia—. Bem, o cavalheiro em questão era bem
calvo, de nariz poderoso e olhos azuis muito claros —descreveu com repentina
convicção—. Me lembro bem de seus olhos, muito chamativos.
—Esse cavalheiro tinha estado na África, senhor?—perguntou Guyler.
—Exato. Sabe a quem me refiro?
—Achava-se você na biblioteca, senhor?
—Sim, sim, é possível —Eustace se esforçou em mostrar-se pouco seguro.
—Então, o mais provável é que se tratasse do senhor Hathaway, senhor.
—Estava aqui nesse dia?
—Sim, senhor. Embora não por muito tempo. —O rosto do Guyler se escureceu—.
Segundo lembro, achou-se indisposto. O senhor Hathaway foi ao banho, e acredito
recordar que logo partiu a casa sem voltar para a biblioteca.
De fato, não chegou a pisar nesta sala. Sinto muito. Não me parece que fosse ele,
senhor.
Falou você longo momento com esse cavalheiro, quem sabia tanto sobre a África?
—Eu diria que sim —Eustace deixou voar sua imaginação. Era a primeira vez que
dizia uma mentira. Tinham-lhe educado para dizer sempre e em todo momento a verdade,
por muito desagradável ou fastidiosa que fosse.
A consciente fabricação de mentiras sabia doce como o fruto proibido. A coisa
resultava bastante divertida! —Agora que o penso, acredito que havia outro cavalheiro que
também estava bem informado.
De fato, este mal acabava de chegar de viagem. Ainda tinha o rosto queimado pelo
sol. Loiro e curtido, esse aspecto tinha. Um cavalheiro alto e magro, de porte quase militar.
Se não recordar mau, tinha um sobrenome alemão ou holandês.
Um sobrenome estrangeiro, em todo caso. Embora o cavalheiro fosse inglês a por
suposição.
—Não seria o senhor Kreisler, senhor? Há—o descrito você muito bem. E nesse dia
estava aqui. Lembro—me bem porque esse foi o dia em que morreu o pobre Sir Arthur
Desmond, aqui mesmo, na mesma poltrona que ocupa você. Uma grande perda.
—Sem dúvida —concordou Eustace com certo alarme—. E, sim, acredito que esse
era o sobrenome ao que me referia. Não seria esse cavalheiro amigo de Sir Arthur?
—Não acredito, senhor. Sir Arthur não se moveu desta sala, e, que eu recorde, o
senhor Kreisler não chegou a sair da biblioteca. De fato, passou bastante tempo nela. Veio
encontrar-se com alguém, e não saiu até depois de almoçar.
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—E não chegou a entrar aqui?—perguntou Eustace—. Está você seguro?
—Por completo, senhor—respondeu Guyler com convicção—. Como tampouco
entrou o senhor Hathaway, assim não acredito que se tratasse de nenhum desses dois
cavalheiros.
Temo que não lhe estou sendo muito útil, senhor. Peço-lhe minhas desculpas.
—Oh, não se renda tão logo—se apressou a dizer Eustace—. Havia por aqui um ou
dois cavalheiros mais que possivelmente o conheçam.
A gente era homem muito lido, se lembro bem, capaz de recordar qualquer entrevista
literária, mas de aspecto comum, baixo, robusto, com a cabeça quase pega aos ombros.
—Eustace se valia das palavras de Charlotte, que lhe soavam artificiais; ele teria descrito
de outro modo—. Olhos redondos, mãos grosas, cabelo sedoso—se atropelou Eustace,
com as faces avermelhadas—. Também tinha a voz muito agradável.
Guyler lhe olhou com curiosidade.
—Sua descrição coincide com a do senhor Aylmer, senhor. Um cavalheiro que
conhece a África bem, pois está empregado no Ministério de Colônias.
—Tem que ser ele! —exclamou Eustace—. Sim, soa exatamente igual a ele.
—Bem, o senhor Aylmer esteve aqui nesse dia —apontou Guyler em tom pensativo—
. Mas acredito recordar que entrou um momento e saiu quase imediatamente.
—A que hora devia ser isso? —inquiriu Eustace.
—Por volta de... por volta de meio—dia, senhor. É possível que se dele trate?
Eustace começava a desfrutar. A verdade era que o estava fazendo muito bem.
Cada vez tinha mais dados.
De fato, parecia gozar de um talento especial para o embrulho. Pena que de
momento só tinha podido solicitar dados negativos.
—Agora que me lembro, havia um cavalheiro mais—acrescentou, olhando ao Guyler
com olhos muito abertos e inocentes—. Ao falar com você, recordei—me que ele.
Lhe parecia um pouco: alto, de cabelo escuro e ondulado, com aspecto diferente.
Com algumas cãs:—Eustace se tocou suas próprias têmporas, algo cinzas já—. A
verdade é que não recordo seu nome.
—Sinto muito, senhor, mas temos muitos sócios que encaixam nessa descrição—
disse Guyler com voz compungida.
—Chamava-se... —Eustace franziu as sobrancelhas, como se se esforçasse em
recordar. Não queria que Guyler descobrisse seu jogo. Mentir seria pecado, mas a
invenção resultava divertida—. Um nome que tinha que ver com os pés, parece—me.
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—Feet, senhor? —Guyler parecia confuso.
—Não, não era Feet3 —precisou Eustace—, mas um nome que levava a pensar nos
pés. Entende—me?
Guyler parecia confuso em extremo.
—Não sei se me explico. —Eustace fingiu dar mais voltas—. Como os pés, como de
pé.
—Standish! —exclamou Guyler com excitação, em voz tão alta que vários dos
sonolentos cavalheiros sentados na vizinhança elevaram a cabeça e fixaram seus olhares
nele. Guyler avermelhou.
—Incrível! —aprovou Eustace com admiração—. Pelo Júpiter que deu você com o
nome! —As adulações constituíam outro pecado, mas eram muito úteis para ganhar às
pessoas.
Às mulheres, sobretudo, que eram escravas da lisonja. Bastava adular um pouco a
uma mulher para conseguir dela o que se quisesse—. Standish era seu nome. Sem dúvida
nenhuma.
—Bem, o senhor Standish não deixou de entrar e sair esse dia—disse Guyler,
ruborizado por tanto louvor—. Não acredito lhe ter visto depois.
Mas se quiser você que o encontre, estou certo de que o senhor Hathaway se
encontra no clube hoje.
Ele vem ocasionalmente a almoçar.
—Né... —Eustace ficou em branco por um instante—. Bem— Sua mente procurou
uma saída—. antes de o incomodar, possivelmente fosse melhor saber se o senhor
Standish se achava nesta sala nesse dia, não lhe parece?
Guyler vacilou um momento.
—Sei que não é pergunta fácil—se desculpou Eustace—. Passou bastante tempo
após. Tampouco quero lhe entreter muito.
—Não há problema, senhor—respondeu Guyler na hora. A capacidade de recordar o
rosto dos cavalheiros fazia parte de seu ofício—. Esse dia resulta difícil de esquecer,
senhor. Por causa da morte de Sir Arthur. Eu mesmo fui quem o encontrei. Uma
experiência que não recomendo a ninguém.
—Sem dúvida —compreendeu Eustace—. Imagino que lhe transtornaria um pouco os
nervos. É surpreendente que se recuperou com tal rapidez.
3
Feet: pés, em inglês.
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—Obrigado, senhor. —Guyler endireitou os ombros.
—Então, estava ele aqui? O senhor Standish, quero dizer? —insistiu Eustace.
—Não, senhor, mas penso que estava jogando bilhar com o senhor Rowntree, e que
depois partiu do clube para jantar em seu lar —expôs Guyler, reconcentrado.
—Mas se achava aqui pela tarde? —Eustace tratou de refrear o entusiasmo de sua
voz; algo lhe disse que não terminava de consegui—lo.
—Sim, senhor, recordo—o por causa do acontecido ao pobre Sir Arthur.
O senhor Standish estava aqui nesse momento. Vi—o no vestíbulo, quando se
dispunha a partir, justo quando chegava o doutor. Agora que o menciona, lembro—me
perfeitamente.
—Mas não chegou a entrar na sala? —Eustace estava decepcionado. Por um
momento pensou ter dado com a resposta que procurava.
—Não, senhor—respondeu Guyler, cada vez mais seguro—. O senhor Standish não
chegou a entrar. Temo que devia ter falado com o senhor Hathaway, e que possivelmente
logo pensou que tinham falado em outro lugar, se me permite dizer-lhe senhor.
Na sala verde temos um lugar muito parecido a este, onde as cadeiras estão
dispostas quase igual. É possível que fosse ali onde manteve esse bate—papo?
—Bem... —Eustace não queria fechar nenhuma porta—. É possível que tenha razão.
Já o pensarei melhor. Muito obrigado por sua ajuda. —Eustace rebuscou até dar com uma
coroa, que entregou a um contente Guyler.
—E seu uísque, senhor? Agora mesmo o trago —prometeu Guyler.
—Ah, sim, Obrigado. —Eustace não tinha mais opção que esperar a chegada do
uísque, que se veria obrigado a beber sem cair em numa pressa inapropriada.
Do contrário, outros o olhariam como um homem sem gosto nem educação, um
homem que não merecia estar entre eles. E isso era algo que não poderia suportar.
Ao mesmo tempo, ansiava sair e referir ao Charlotte o que tinha descoberto em tão
pouco tempo. Eustace se sentia contente consigo mesmo. Tinha conseguido o que queria
com rapidez e sem despertar a menor suspeita.
Eustace acabou seu uísque, levantou-se e se dirigiu à porta.
Charlotte se achava nos degraus, sob o sol e uma brisa algo aguda.
—E então?—perguntou quando Eustace saiu pela porta, antes ainda que chegasse à
rua—. Descobriu algo?
—Muitas coisas.
Eustace tomou-a pelo braço e pôs-se a caminhar junto a ela pela calçada, de modo
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que o observador não avisado tomasse por um casal respeitável que dava seu passeio.
Não havia motivo para dar nenhum espetáculo. Ao fim e ao cabo, continuava sendo
sócio do Morton Clube, aonde quereria voltar algum dia.
—O que soube? —urgiu Charlotte, fazendo gesto de deter-se.
—Siga caminhando, minha querida senhora —insistiu ele, falando pela comissura dos
lábios—. Não é conveniente que chamemos a atenção.
Para sua própria surpresa, a argumentação pareceu convencer ao Charlotte, que
ajustou seus passos aos dele.
—E bem? —murmurou ela.
Em vista da expressão de seu rosto, Eustace optou por ser breve.
—O senhor Standish esteve no clube essa tarde, à hora aproximada. Mas o garçom
tem certeza de que não entrou na sala onde estava Sir Arthur.
—Tem certeza de que se tratava do Standish?
—Não há nenhuma dúvida. Kreisler também estava no clube, mas partiu muito logo,
assim como Aylmer.
O casal se cruzou com um homem vestido com traje de listra e guarda— chuva,
apesar de que o dia fosse formoso.
—Contudo – acrescentou Eustace—, Hathaway também estava presente, embora
não na mesma sala.
Ao parecer ficou doente e teve que ir ao banho, de onde chamou para que pedissem
uma carruagem de aluguel, a qual tiveram que lhe ajudar a subir.
Em nenhum momento se aproximou da sala onde se achava Sir Arthur. Temo que
nenhum dos suspeitos poderia ser o culpado, sinto muito. — Eustace o sentia seriamente,
nem tanto por ela, mas sim porque, por favorável que fora, a resposta continuava
constituindo um anticlímax.
—Mas tem que haver um culpado —protestou ela, erguendo a voz sobre o ruído do
tráfego.
—Nesse caso, não se trata de nenhum deles. Quem mais poderia ser? — perguntou
ele.
—Não sei. Qualquer um. —Charlotte se deteve, o que a sua vez deteve em seco ao
Eustace, ainda pego de seu braço.
Uma senhora de meia idade que caminhava agarrada ao braço de um homem mais
idoso olhou—os com suspeita e desaprovação.
Em sua expressão se lia que intuía alguma questão doméstica que nenhuma esposa
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como era devido permitira em público.
—Cuidado! —sussurrou Eustace—. Estas não são maneiras. Todo mundo se fixa em
nós por sua culpa.
Charlotte teve que conter-se para silenciar a resposta que ia a seus lábios.
—Sinto muito. —Charlotte seguiu caminhando—. Teremos que voltar e tentá—lo
outra vez.
—Tentar outra vez o que?—respondeu ele com indignação—. Nenhuma das pessoas
que me disse puderam aproximar-se de Sir Arthur para lhe pôr láudano no brandy.
Nenhum deles chegou a estar na mesma sala que ele.
—E de onde veio o brandy? —Charlotte não tinha a menor intenção de ceder—.
Talvez puseram o láudano antes que a taça chegasse à sala.
—Para envenená—lo assim? —Eustace tinha os olhos muito abertos pela
incredulidade—. E como? Deslizando o láudano na taça quando esta se achasse na
bandeja do garçom? Parece—me uma idéia ridícula. Nenhum garçom o permitiria; além
disso, logo se teria recordado de denunciá—lo à polícia.
Além disso, como podiam saber que essa seria precisamente a taça do Arthur
Desmond? —Eustace enrijeceu as costas e ergueu ligeiramente o queixo. — Temo que a
lógica não seja seu forte, querida.
Uma fraqueza típica nas mulheres, já se sabe. Mas a verdade é que sua hipótese não
têm a menor praticidade.
O rosto de Charlotte estava acalorado em extremo. Eustace pensou por um instante
se não estaria reprimindo um arrebatamento temperamental.
O temperamento era má coisa em uma mulher, embora mais freqüente do que ele
teria preferido.
—Não —acordou ela com recato, fixando o olhar na calçada—. Não saberia o que
fazer sem sua ajuda.
Se houver um enguiço em minha argumentação, sei que será o primeiro em
descobri—la, como se se trata de uma mentira no testemunho de outros.
Verdade que voltará para o clube? Diga que sim? Não podemos permitir que a
injustiça triunfe.
—Mas é que já não sei o que mais posso descobrir —protestou ele.
—O acontecido exatamente, com maior exatidão inclusive que o que já sabemos.
Não sabe quanto o agradecerei. —Sua voz vibrou levemente, como presa de uma
intensa emoção.
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Eustace não estava seguro do que se tratava, mas o certo era que se tratava de uma
mulher muito formosa. Nada seria mais satisfatório que ficar a bem com ela.
Então poderia olhá—la sem sentir o opressivo, quase intolerável embaraço que o
embargava neste momento. Assim, ao menos poderia apagar a horrenda lembrança da
cena acontecida sob a cama!
—Muito bem— concedeu, gentil—. Se lhe parece que vale a pena tentá—lo.
—Oh, sim, tenho certeza! —assegurou ela, detendo-se e virando sobre seus
calcanhares, disposta a voltar por onde tinham vindo—. Não sei como agradecer-lhe...
—Sempre a suas ordens, senhora— respondeu Eustace com considerável
complacência.
Uma vez voltando a estar dentro do Morton Clube, de novo sentiu uma dúvida
extrema. A impressão de estar fazendo-se de idiota se acentuou ao aproximar-se outra vez
ao Guyler.
—Sim, senhor?—disse Guyler com amabilidade.
—Terá que me desculpar—começou Eustace, sentindo que o rubor subia a suas
faces. Na verdade, Charlotte tinha passado dos limites. E ele tinha sido um idiota ao
comprometer—. Receio que lhe vou ser um pouco pesado.
—Absolutamente, senhor. No que posso lhe ajudar?
—Depois de quanto falamos antes, não lhe parece possível que o senhor Standish
chegasse a entrar nesta sala?
—Se o desejar, posso perguntá—lo, senhor, mas me parece muito pouco provável.
Os cavalheiros não costumam deixar pela metade uma partida de bilhar. Não está
bem visto deixar esperando ao oponente.
—Sim, sim, claro. Já sei! —correu a dizer Eustace—. Por favor, não é preciso que
faça nenhuma pergunta.
Não quero que o senhor Standish imaginasse que tomo por uma pessoa descortês.
—Não, senhor.
—E, né —Eustace esteve tentado de resmungar uma imprecação contra Charlotte,
mas se conteve por causa do garçom. Não tinha escapatória. A coisa era vergonhosa—. O
senhor, né... Hathaway.
Disse—me você que se sentiu indisposto. Uma circunstância desgraçada. A que hora
aconteceu isso? Não recordo esse episódio.
—Oh, eu me lembro bem, senhor. Desculpe-me, senhor, mas não se confundiu de
data? Não viria você um dia antes ou um dia depois? Isso explicaria muitas coisas.
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—Não, não, foi nesse mesmo dia. Lembro—me bem porque foi o dia que morreu Sir
Arthur, como você mesmo o recorda —apontou Eustace na hora. — O que me dizia sobre
a indisposição do senhor Hathaway?
—O senhor Hathaway se achou um pouco mal e se dirigiu ao banho. Ali mesmo
decidiu partir para casa.
Esteve um momento no banheiro, sem dúvida pensando que logo se acharia melhor,
mas parece que não foi assim, pobre cavalheiro, assim tocou a campainha para que
viessem a lhe assistir, coisa que fez um dos garçons.
Quando pediu uma carruagem, o mesmo encarregado do banho se ocupou de pedirlhe e ajudá—lo a sair ao vestíbulo, descendo—o pela escada até a porta do carruagem. O
senhor Hathaway não voltou a entrar em nenhuma das salas do clube, senhor, isso me
parece claro.
—Já vejo. Sim. Esse garçom que lhe assistiu, não seria você por acaso?
—Não, senhor. Para falar a verdade, não sei quem foi. Vi—o sair com ele, mas pela
extremidade do olho, por assim dizer, de modo que não o reconheci. Pode ser que fosse
Jones; tinha seu aspecto, robusto e sem muito cabelo. Sim, parece—me que devia ser
Jones.
—Obrigado, suponho que tem razão. Muito obrigado. —Eustace queria pôr ponto final
a esta conversa que não levava a nenhuma parte. Charlotte teria que descobrir o
significado de toda essa confusão, se é que existia significado algum.
Ele já não podia averiguar mais. Tinha que ir-se dali. A situação era cada vez pior.
—O senhor Hathaway está aqui esta tarde, senhor —insistiu o garçom—. Se o
desejar, posso acompanhá—lo a seu lado, senhor.
—Não... Não, obrigado—respondeu Eustace com veemência—. Eu acredito que irei
um momento ao banho, se me desculpar. Sim, isso mesmo. Muito obrigado por tudo.
—Não é preciso, senhor. —Guyler se encolheu de ombros e se preparou para
continuar com seu trabalho.
Eustace procurou refúgio no banheiro. O lugar era seriamente confortável,
adequadamente masculino, dotado de todas as comodidades: lavatórios com profusão de
água quente, toalhas limpas, espelhos, navalhas de barbear e suavizadores de couro,
sabão de barbear de duas ou três marcas diferentes, loções, azeite de Macassar para o
cabelo, trapos limpos e graxa para o calçado se por acaso a pessoa queria polir as botas,
e escovas de várias classes, tudo isso presidido por um agradável aroma a sândalo.
Eustace não tinha necessidade de ir ao banheiro, assim se sentou em um dos bancos
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de madeira similares a estilizadas banquetas de igreja. Tão somente tinha estado duas
vezes ali com antecedência, mas o lugar lhe era familiar de um modo agradável.
Hathaway devia haver-se sentado aí mesmo, sentindo-se doente e perguntando-se
se poderia voltar para casa sem ajuda. Eustace deu um olhar em torno. Junto à porta havia
o ornado cordão de uma campainha.
Embora não se via placa alguma junto ao cordão, seu propósito era evidente. Sem
pensar, Eustace se levantou, deu um par de passos e puxou o cordão.
Quase na hora, apareceu um homem idoso vestido em um uniforme que não chegava
às pretensões de libré mas que delatava categoria superior a de garçom.
—Sim, senhor?—respondeu com calma—. Posso lhe ajudar em algo?
Eustace ficou sem saber o que dizer. Não necessitava nada absolutamente.
Nesse momento se lembrou do Hathaway.
—É você garçom? Leva um uniforme diferente.
—Sim, senhor —concordou o homem—. Sou o encarregado do banho.
Se deseja os serviços de um garçom, agora mesmo faço vir a um. Embora
possivelmente eu mesmo possa ajudá—lo, senhor. É o habitual. Os garçons costumam
ocupar-se das salas, das bibliotecas e demais dependências.
Eustace estava surpreso.
—Então esta campainha não soa na sala dos garçons, na copa?
—Não, senhor, só soa em meu quarto, que está bastante afastado dali. Posso lhe
ajudar em algo? Não se achará você mau?
—O que? Oh, sim, estou perfeitamente, obrigado. Nunca me ponho doente. —A
mente do Eustace se revolucionou. Acaso estava a ponto de descobrir algo—. É só que
meu amigo, um conhecido, em realidade, disse—me que certo dia que se havia sentido
indisposto aqui no banheiro chamou um garçom de sala que lhe procurou uma carruagem
de aluguel.
—Não, senhor—respondeu o encarregado com paciência. Isso é impossível, senhor.
A campainha do banho não soa na copa. Só se ouve em meu quarto, em nenhum lugar
mais.
—Então, era mentira! —exclamou Eustace com acento triunfal.
O encarregado lhe olhou com todo o assombro que lhe permitiam seu emprego e sua
função, não tão atônito ante a conclusão —que era lógica—, como pelo júbilo expresso
pelo Eustace.
—Possivelmente é você um pouco cortante, senhor. Embora estou de acordo em que
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seu amigo se confundiu.
—Foi Hathaway—disse Eustace, aventurando-se ali onde não tinha sonhado há um
momento. — No dia que morreu Sir Arthur Desmond, chamou você uma carruagem para o
senhor Hathaway?
—Sim, senhor. Um dos garçons temporários me disse que estava indisposto, embora
não sei como chegaria a inteirar-se.
—Refere-se a algum outro assistente do banho? Alguém a suas ordens?
—Não, senhor, refiro a um garçom temporário, empregado em alguma das salas.
Embora, agora que o penso, não sei como se inteirou, pois o senhor Hathaway
estava aqui. — O encarregado meneou a cabeça, tratando de negar o impossível.
—Obrigado. Muito obrigado! Não sabe como o agradeço! —Eustace rebuscou em seu
bolso até extrair um xelim. A gorjeta era excessiva, mas seria de miseráveis devolver a
moeda ao bolso e trocá—la por três peniques. Além disso, sentia-se muito generoso. Sem
vacilar, entregou a moeda ao encarregado.
—Obrigado, senhor. —Tratando de ocultar sua surpresa, o encarregado pegou a
moeda antes que Eustace pudesse mudar de opinião—. Se lhe posso ajudar em algo mais,
por favor faça—me saber.
—Sim, sim, é claro.—sem mal lhe dedicar outro olhar, Eustace saiu a toda pressa ao
vestíbulo, onde ganhou os degraus que davam à rua.
Charlotte estava a poucos metros. Pelo que parecia, fazia tempo passeando acima e
abaixo, certamente movida pela impaciência, possivelmente a fim de mascarar o claro de
sua espera.
Ao ver a expressão de júbilo pintado no rosto do Eustace, saiu correndo para ele.
—Sim? O que é o que achou?—perguntou.
—Algo bem extraordinário —declarou, enquanto a excitação lutava contra seu natural
aspecto reservado e a condescendência que considerava adequada para as mulheres—. A
campainha do banho não soa na copa nem em nenhum outro lugar do clube.
Charlotte se mostrou confusa.
—E o que?
—Não o vê? —Eustace a puxou pelo braço e pôs-se a caminhar—. Hathaway disse
ter chamado ao garçom do banho, para que lhe procurasse uma carruagem de aluguel.
O garçom da sala assim me contou. Ele mesmo viu sair ao garçom. Mas isso é
impossível, pois a campainha do banho não soa ali. —Eustace não deixava de agarrar seu
braço com força enquanto seguiam caminhando pela calçada—. O encarregado do banho
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me comentou que um garçom de sala lhe disse que Hathaway estava doente e precisava
de uma carruagem. Hathaway mentiu!—sem dar-se conta, Eustace a sacudiu ligeiramente
pelo braço—. Não o vê? Hathaway disse não ter retornado à sala.
Ou ao menos, isso disse o garçom, mas teve que fazê-lo, para que outro dos garçons
fosse lhe buscar uma carruagem. —Eustace se deteve em seco; o brilho de satisfação
perdeu intensidade em seu olhar—. Embora não estou muito seguro do que ganhamos
com isso.
—E se —Charlotte se deteve.
Uma mulher armada de guarda—sol passou junto a eles, fingindo não vê-los, com o
sorriso no rosto.
—Sim? —urgiu Eustace.
—Não sei. Me deixe pensar. E por favor, não me puxe tão forte. Está me fazendo mal
no braço.
—Oh! Desculpe-me. —Eustace avermelhou enquanto a soltava do braço.
—Um garçom temporário —meditou ela.
—Isso. Parece que de vez em quando contratam um ou dois garçons adicionais.
Suponho que quando há alguma baixa por enfermidade.
—E nesse dia havia um? Tem certeza?
—Sim. O garçom com quem falei me disse que havia um.
—Que aspecto tinha? —Charlotte ignorou a presença de duas mulheres que
passaram conversando entre elas, com caixas de chapéu na mão.
—Que aspecto? —repetiu Eustace.
—Sim! Que aspecto tinha? —A voz de Charlotte encerrava uma nota de urgência.
—Né... Um pouco idoso, robusto, com pouco cabelo, por que?
—Hathaway! —exclamou ela.
—O que? —Eustace ignorou ao passeante que justamente apertou o passo a seu
lado, dedicando-lhes um sobressaltado olhar de reprovação.
—Hathaway! —repetiu Charlotte, lhe agarrando o braço por sua vez—. O que
aconteceria se o garçom temporário fosse Hathaway? O método perfeito para cometer um
assassinato! Como garçom, seria virtualmente invisível.
Como Hathaway, entra no banheiro, alegando não achar-se bem. Uma vez ali, vestese com uma jaqueta de garçom. Depois se dirige a copa, toma uma bandeja e uma taça de
brandy em que verte o láudano, serve—a a Sir Arthur, a quem comenta que se trata de um
convite de outra pessoa.
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A seguir comenta que Hathaway está indisposto no banheiro, estabelecendo assim
que Hathaway está no momento encerrado nele banho. —Charlotte erguia a voz por efeito
da excitação—.
Sai dali, volta a trocar-se de roupa e, para que não fiquem dúvidas, sai diretamente
do banho. Chama ao encarregado e lhe pede que procure uma carruagem de aluguel.
O encarregado o encontra e lhe ajuda a subir a ela. Hathaway estabeleceu seu álibi,
com muitas testemunhas, depois de servir uma dose fatal de láudano a Sir Arthur sem que
ninguém se dê conta. Tio Eustace, é você brilhante! Resolveu o enigma!
—Obrigado. —Eustace avermelhou de prazer até a raiz do cabelo—. Obrigado,
querida. —Por uma vez fez caso omisso dos risinhos que lhe dedicava um grupo de
mulheres que passava em um landau descapotado.
De improviso, o brilho de seu sorriso perdeu em intensidade—. Mas, por que? Que
razão tinha Hathaway, eminente funcionário do Ministério de Colônias, para envenenar a
Sir Arthur Desmond, antigo eminente funcionário de Exterior?
—Oh! —Charlotte conteve o fôlego—. A explicação é simples. Podemos supor que
Hathaway oficia como verdugo do Círculo Interior.
Eustace ficou boquiaberto.
—O que? A que diabos se refere você, minha querida senhora?
O rosto de Charlotte mudou de expressão. O triunfo se desvaneceu dele, substituído
pela fúria e uma sensação de perda. Eustace se alarmou ao perceber a ferocidade de suas
emoções.
—O verdugo do Círculo Interior —repetiu ela—. Ou um dos verdugos, pelo menos.
Sua missão era acabar com Sir Arthur porque...
—Ah! Uma tolice! —Eustace estava mais que assombrado—. O Círculo Interior, nome
que você não deveria nem conhecer, não é mais que uma associação de cavalheiros
concentrada no bem da comunidade, na defesa dos valores ligados à honra e no governo
benéfico, e no bem—estar de todos os cidadãos.
—Fofocas! —cortou ela com veemência. Isso dizem aos novos associados, que não
duvido são assim enganados. Enganaram—no, como foi com Micah Drummond até que se
fez muito tarde.
Entretanto o núcleo dessa sociedade persegue a consecução do poder a fim de
preservar seus próprios interesses.
—Minha querida Charlotte —Eustace tratou de interrompê—la, mas ela não estava
disposta a calar.
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—Sir Arthur revelou parte de seu jogo pouco antes de morrer.
—E o que sabia ele? —protestou Eustace—. Certamente se tratava de imaginações
suas.
—Sir Arthur era membro do Círculo!
—Sério? Né... —Eustace estava confuso. A semente da dúvida tinha sido semeada
em sua mente.
—Sim. Sir Arthur descobriu que o Círculo tinha previsto valer do plano de colonização
da África esboçado pelo Cecil Rhodes para enriquecer a seus membros de forma
fantástica.
Quando tentou trazer este plano à luz, ninguém lhe emprestou atenção, pois não
dispunha de provas.
E antes que pudesse revelar novos dados, foi assassinado. Assim fazem com os
membros que traem o pacto de silêncio. Ou não sabia você?
Em um repentino, doentio, acesso de cor, Eustace recordou as normas que se
obrigou a respeitar, os juramentos de lealdade aos quais tinha prometido obediência.
Então a coisa lhe tinha parecido divertida, uma espécie de aventura similar à vigília
de Sir Galahad antes de receber suas esporas, o entrecruzamento do bem e do mal
escapado do âmbito da novela romântica, heroísmos desenhados para quem ousava
confrontar a aventura.
Mas e se todos esses juramentos fossem verdadeiros? E se não tivessem falado em
vão quando estabeleceram que o Círculo se antepunha à mãe e ao pai, à esposa, ao irmão
ou ao filho? E se seriamente se comprometeu a anular sua vontade, sou pena de um
castigo terrível?
Charlotte deve ter percebido o medo em seus olhos.
De repente sua indignação se viu matizada pela ternura e, quase, a pena. Nenhum
parecia dar-se conta de quanto os envolvia, dos pedestres que passavam por seu lado,
das carruagens que circulavam pelo meio—fio.
—O Círculo conta com o silêncio de seus membros para proteger-se — acrescentou
Charlotte com voz suave—. Contam com que seus membros não romperão sua promessa,
inclusive quando esta foi dada sem consciência do que vinha depois, inclusive quando se
comprometia a honra e as crenças mais íntimas. — Sua expressão se endureceu; o
desprezo e a cólera voltaram às suas feições—. E, é claro, o Círculo também conta com o
medo.
—Pois eu não tenho medo! —exclamou ele com fúria, voltando-se para os degraus
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da entrada do clube. Estava muito furioso para sentir medo. Tinham-lhe tomado por um
idiota, e, o que era pior, tinham traído a confiança que tinha depositado neles.
Tinham fingido abraçar os valores que ele mais venerava, a honra e a franqueza, a
sinceridade, o valor estendido a um propósito nobre, a coragem de defender ao fraco, o
melhor do espírito de liderança que constituía a herança da Inglaterra para o mundo.
Tinham-lhe mostrado uma visão artúrica, lhe levando a acreditar em si mesmo, para depois
pervertê—la, transformando—a em algo sujo, feio e perigoso. Era um insulto imperdoável,
ante o que não pensava ficar de braços cruzados!
Eustace subiu os degraus com decisão, apenas consciente da presença de Charlotte
a suas costas, abriu as portas de repente e irrompeu no vestíbulo sem saudar o porteiro.
Depois de procurar em várias salas, por fim deu com um garçom.
—Onde está o senhor Hathaway? Sei que anda por aqui, assim não me venha com
rodeios. Onde está?
—Se... senhor, eu...
—Não me venha com desculpas, meu amigo —resmungou Eustace—.Diga onde
está!
O garçom contemplou os olhos inexoráveis e as faces avermelhadas do Eustace,
decidindo na hora que a discrição nos atos era preferível aos alardes de valentia.
—Está na sala azul, senhor.
—Obrigado. —Na hora Eustace virou sobre seus passos e retornou ao vestíbulo.
Uma vez ali, descobriu que não estava seguro da localização exata da sala azul.
—A sala azul?—perguntou a um garçom que apareceu bandeja em alto.
—A sua direita, senhor—respondeu o garçom com surpresa.
—Muito bem.
Eustace alcançou a porta em meia dúzia de passos e a abriu de repente.
A sala azul possivelmente teria sido dessa cor tempo hatrás, mas agora mais
desbotara até alcançar um cinza pérola enquanto as pesadas cortinas continuavam sendo
azuis unicamente naquelas dobras não alcançadas pela luz que se filtrava pelas quatro
enormes janelas que davam à rua.
O sol deste modo levava décadas efetuando seu trabalho sobre o tapete, descolorida
até adotar tons rosa dos e cinzas, assim como um verde tão pálido que mais parecia a
ausência de cor.
As paredes da sala estavam decoradas com retratos de antigos sócios proeminentes
em discretos tons sépia e sombreado; muitos dos retratados datavam dos séculos XVII e
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XVIII. Em alguns casos, uma peruca empoeirada constituía a única referência do
personagem.
Era a primeira vez que Eustace entrava ali. Era uma estadia reservada aos sócios
veteranos, categoria que ainda distava de alcançar.
Sentado em uma grande poltrona de couro, Hathaway lia o Time.
Eustace estava muito furioso para considerar por um momento o inapropriado de sua
conduta. Maiores escândalos se viram. Não ia permitir que ninguém se escondesse atrás
das convenções de um clube de cavalheiros.
Detendo-se ante a cadeira do Hathaway, levou suas mãos ao Time e rasgou o jornal
em dois antes de jogá—lo em um lado.
Todos os rostos que havia na sala se voltaram para ali. Um bigodudo general do
exército deu um pulo de desagrado. Um banqueiro pigarreou de forma ostentosa.
Um surpreso membro da Câmara dos Lordes (cuja visita não era muito freqüente)
deixou sua taça sobre a mesa. Um bispo deixou cair seu charuto.
Hathaway olhou ao Eustace com surpresa mais que considerável.
—Como cidadão deste país, disponho—me a efetuar uma detenção —anunciou
Eustace em tom sombrio.
—Realmente, a gente não sabe o que dizer —apontou o banqueiro.
—Alguém o roubou, jovem?—perguntou o bispo em tom untuoso—. Lhe roubaram a
carteira, possivelmente? Ou lhe cortaram a correia da bolsa?
—Um tanto atrevido, isso de lhe arrancar o jornal a um sócio —atravessou o
aristocrata, observando ao Eustace com desagrado.
Hathaway não parecia alterado o mínimo. Sentado em sua poltrona, nem parecia ter
notado o destroço causado a seu jornal.
—O que lhe incomoda tanto, meu querido amigo?—respondeu com lentidão. Em
outro momento Eustace não se teria fixado na qualidade pétrea e inamovível de seu olhar,
mas agora a raiva aguçava seus sentidos.
Intuindo que possivelmente Hathaway se dispunha a responder com a violência física,
seu corpo se preparou a ela, quase celebrando a ocasião.
—Sim, roubaram—me! —declarou em tom feroz—. Me roubaram minha boa fé,
meu... —Eustace não sabia como expressar a sensação que lhe embargava de ter sido
manipulado e insultado, até que de repente as palavras foram a sua boca como uma
corrente semeada de dor—.
Me roubaram a confiança em outros, a confiança em quem eu admirava e venerava,
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em quem eu esperava poder imitar algum dia! Isso é o que me roubou. Destruiu—o você,
valendo-se da traição.
—Meu querido amigo! —protestou o banqueiro, levantando-se de sua poltrona—.
Está você muito excitado. Sente-se e acalme-se um pouco. Está cometendo um
engano.
—E armando um forró de mil demônios, de passagem! —trovejou o general, com os
bigodes trêmulos—. Isto já passa dos limites! —O militar desdobrou seu diário de uma
sacudida e afundou sua cabeça nele.
—Vamos, vamos, amigo —interveio o banqueiro, dando um novo passo para o
Eustace com as Palmas elevadas em sinal de paz—. Um pouco de água fria, e verá como
se sente melhor.
—Em minha vida nunca estive mais sóbrio que hoje —resmungou Eustace entre
dentes—. E não me toque, senhor. Se se atreve, juro que o derrubo aqui mesmo.
Este homem—seguia com o olhar cravado no Hathaway— cometeu um assassinato.
E não falo em sentido figurado.
A sangue frio, de modo traidor, matou a outro homem valendo-se do veneno.
Ninguém o interrompeu desta vez. Hathaway continuava sentado, esboçando apenas
um sorriso formal e tolerante.
—Este homem verteu veneno em sua taça de brandy, aqui mesmo, no clube.
—Por favor —atravessou o bispo—. É algo...
Eustace olhou—o com fúria. O bispo emudeceu.
—Você foi o verdugo! —acusou Eustace, voltando-se para o Hathaway—. E sei como
o fez! Disfarçando-se de garçom no banheiro, para depois servir a taça envenenada ao
pobre Sir Arthur.
Depois voltou outra vez ao banho— se deteve. A repentina palidez aparecida no rosto
do Hathaway revelava que este já não as tinha todas consigo. Sua agitação era evidente;
pela primeira vez, tinha medo.
O segredo que tinha jurado proteger tinha deixado de ser secreto. Eustace viu o
medo em seu olhar, e atrás dele, a violência. A máscara se evaporou.
—Fica detido pelo assassinato do Arthur Desmond.
—Isto não tem nenhum sentido—interrompeu o aristocrata com calma—. Senhor,
deve estar bêbado. Arthur Desmond se tirou a vida ele mesmo, pobre diabo.
O melhor será correr um denso véu sobre o modo absurdo em que se comportou.
Parta de uma vez e peça baixa no clube.
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Eustace se voltou para ele, reconhecendo no Lorde a outro membro do Círculo, por
seu tom já que não por seu rosto.
—Se isso for o que deseja, senhor— respondeu, sem ceder uma polegada de
terreno—, será porque é você cúmplice do Hathaway.
Perverteram vocês seu poder, senhor, traindo aquilo que é o melhor da Inglaterra, às
pessoas que puseram sua confiança em vocês e cujos esforços e entusiasmo lhe
outorgaram essa mesma posição que se encarrega de manchar.
Levantando da poltrona, Hathaway tratou de esquivar ao Eustace. Ao mesmo tempo,
o Lorde aferrou o braço deste, lhe afastando a um lado.
Dotado de um bom físico e amante do exercício, Eustace se enfureceu de repente.
Na hora, seu punho se estrelou com violência contra o próprio queixo do aristocrata, que
saiu despedido contra uma das poltronas.
Pugnando por escapar, Hathaway chutou com força a tíbia do Eustace.
Estremecido de dor, Eustace se revolveu, jogando-se sobre seu rival em um tackle
que houvesse lhe valido aplausos em seus anos de jogador de rugby.
Os dois homens caíram ao chão, enrolando uma mesita no caminho, e catapultando
pelos ares uma bandeja cujas taças e pires de porcelana se fizeram em pedacinhos sobre
o tapete.
A porta se abriu de repente. Um garçom observou com horror infinito a silhueta do
Lorde derrubado sobre a poltrona e a imagem que ofereciam Eustace e Hathaway,
empenhados em desesperada luta sobre o piso, entre grunhidos e ofegos, chutando e
golpeando ali onde podiam.
O garçom jamais tinha visto coisa igual. Sem saber o que fazer, continuou plantado
na soleira, mortificado pela indecisão.
O general uivava ordens que ninguém obedecia. O bispo emitia ruiditos de
desaprovação, fazendo menções à paz e o bom julgamento sem que ninguém lhe
prestasse a menor atenção.
No corredor, um juiz exigiu saber o que acontecia, mas ninguém lhe respondeu.
Alguém mandou chamar o gerente. Outra pessoa pediu a presença de um médico,
acreditando que algum sócio tinha sofrido um colapso nervoso e se viam obrigados a
segurá—lo com dificuldade.
Um partidário da abstinência começou com seu monólogo; a seu lado, um garçom
rezava em voz alta.
—Polícia! —gritou Eustace a pleno pulmão—. Chame à polícia agora mesmo,
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estúpido! Ao inspetor Pitt da delegacia de polícia do Bow Street. —Ao dizê—lo, seu punho
se estrelou com todas suas forças contra o queixo do Hathaway.
Desequilibrado pelo golpe, enganchou seu pé na mesita, que saiu disparada contra o
carrinho da baixela. Uma licoreira de brandy saltou pelos ares, estrelando-se em mil
pedaços junto a meia dúzia de copos contra o chão de madeira, a um palmo do tapete.
Hathaway ficou inconsciente, com os olhos fechados e o corpo inerte. Eustace não
conseguia confiar.
—Chamem à polícia —ordenou de novo, ficando em pé com dificuldade e sentandose sobre o peito do Hathaway.
O garçom que havia na porta correu a cumprir o encargo. Ao menos, aquela era uma
ordem clara, terminante e simples de compreender.
Fosse qual fosse à natureza do acontecido, estava claro que a polícia devia ser
alertada, embora só fosse para levar Eustace dali.
De repente o garçom se tropeçou com o impossível, com o pior de tudo.
Da soleira uma mulher observava o destroço causado na sala azul.
A mulher era jovem, de cabelo castanho e bonita figura.
Embora seus olhos estivessem abertos com assombro, sua expressão era a de quem
está a ponto de pôr-se a rir.
—Senhora! —exclamou o bispo com horror—. Estamos em um clube de cavalheiros!
Não pode estar aqui. Por favor, senhora, observe as normas do decoro e parta.
Charlotte contemplou a porcelana e o cristal feitos em pedacinhos, o café e o brandy
derramados, o mobiliário estilhaçado, a cadeira derrubada, o aristocrata de torcido
colarinho de camisa, cuja face exibia um machucado cada vez mais torcido, ao Eustace
sentado escarranchado sobre o desvanecido Hathaway.
—Sempre tive curiosidade por saber o que se cozia aqui dentro— respondeu
Charlotte em tom ligeiro, embora sua voz ameaçava romper em gargalhadas—. É
realmente extraordinário —murmurou.
O bispo proferiu um epíteto muito pouco evangélico.
Eustace parecia não dar-se conta do escândalo. Seu rosto estava avermelhado pela
vitória, moral e física.
—Chamaram já à polícia? —exigiu, olhando em torno.
—Sim, senhor— respondeu um dos garçons—. Há telefone no clube. Agora mesmo
vem alguém do Bowl Street.
Charlotte teve que ser persuadida com insistência para que se dignasse aguardar no
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saguão. A sala azul era de acesso restringido. Restringido inclusive entre os sócios do
clube!
Eustace se negou a soltar ao Hathaway, sobretudo depois de que este recuperara a
consciência (embora com uma intensa dor de cabeça).
O prisioneiro guardou silêncio, sem defender-se ou fazer protestos de inocência.
Ao chegar, Pitt tropeçou com Charlotte, quem lhe anunciou que Eustace havia
resolvido o caso, acrescentando com modéstia que lhe tinha sido de alguma ajuda.
Conforme acrescentou, o próprio Eustace tinha prendido ao assassino.
—Ah —murmurou Pitt com certa incredulidade, mas quando lhe explicou em detalhe
o acontecido, não regulou elogios ao trabalho efetuado por Charlotte e Eustace.
Uns quinze minutos mais tarde, Hathaway, algemado e sobre detenção, era
introduzido em uma carruagem de aluguel com destino à delegacia de polícia do Bowl
Street.
Pitt se sentou a seu lado. Apesar de estar imobilizado, Hathaway seguia irradiando
um aura de poderio através de seu rosto inexpressivo de olhos redondos e nariz magro e
pequeno.
Embora estivesse assustado —pois não era tolo—, sua expressão não mostrava
debilidade alguma, nenhum indício de estar disposto a quebrar os juramentos que o
ligavam ao Círculo Interior.
Este era o homem que tinha assassinado ao Arthur Desmond.
Foi Hathaway quem verteu o láudano em seu conhaque, que lhe serviu, para logo
desaparecer com discrição, sabendo do que aconteceria.
Entretanto, os verdadeiros responsáveis pelo crime se achavam entre a hierarquia
interna da organização. Hathaway tinha cumprido a sentença. Mas de quem tinha partido o
veredicto final?
Esse era o homem a quem Pitt queria apanhar.
Essa era a justiça que devia fazer-se ao Matthew, a mesma, mais importante ainda,
que era necessária para neutralizar o sentimento de culpa que o seguia embargando e
pô—lo em repouso para sempre, junto à lembrança de Sir Arthur.
Pitt achava saber quem era esse homem, mas a certeza era inútil sem provas
concludentes.
Pitt olhou de esguelha ao silencioso, quase imóvel Hathaway.
Os diminutos olhos azuis lhe devolveram o olhar com um mordaz brilho de
inteligência e um humor sardônico. Pitt soube nesse momento que, por muito medo que
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tivesse Hathaway, por muito que lhe aterrasse a perspectiva da morte e o que se escondia
atrás desta, a lealdade ao Círculo Interno era mais forte e jamais seria quebrada.
Pitt estremeceu ao pensar no poder dos juramentos que ligavam a essa sociedade,
juramentos que iam muito além do previsível em qualquer clube ou associação.
Tratava-se de uma ligação mística, quase religiosa, em que a traição se castigava de
forma desumana. Hathaway preferia pendurar na forca antes que dizer uma palavra
demais.
Ou acaso imaginava que algum outro membro da sociedade, um juiz possivelmente,
arrumaria para que escapasse da corda?
Até aí chegava o poder do Círculo?
Não devia permiti—lo, embora só fosse em atenção à memória do Arthur Desmond.
Pitt olhou outra vez ao detido; seus olhos se cruzaram em uma duradoura apreciação
sem pestanejos. Nenhum dos dois disse uma palavra. Pitt não procurava palavras e
argumentos; o que queria eram emoções e crenças.
Impertérrito, Hathaway seguiu com o olhar fixo nele. Ao cabo de uns segundos, as
comissuras de seus lábios se torceram em um minúsculo sorriso.
Nesse momento Pitt compreendeu o que tinha que fazer.
Chegaram à delegacia de polícia e desceram da carruagem. Pitt pagou ao cocheiro e,
com o Hathaway ainda algemado, entrou no edifício, passando frente ao sargento de
guarda. Boquiaberto, o sargento se preparou para levantar-se.
—Veio já Farnsworth?—perguntou Pitt.
—Sim, senhor. Deixei-lhe o recado que me ordenou, senhor, que tinha saído para
deter o assassino de Sir Arthur Desmond.
—O senhor Farnsworth veio imediatamente, senhor. Não levará dez minutos na
delegacia de polícia. O senhor Tellman também veio, senhor, tal como você indicou.
—Está Farnsworth em meu escritório?
—Sim, senhor. Encontrará ao senhor Tellman em seu escritório.
—Obrigado. —Pitt sentiu uma repentina pontada de excitação, uma vez que o medo o
oprimia como se uma mão se fechasse sobre seu coração.
Dando meia volta, subiu escada acima, quase empurrando ao Hathaway por diante.
Ao chegar ao piso superior, abriu a porta de seu escritório de repente.
Farnsworth deu meia volta, dando as costas à janela pela qual observava.
Sua expressão não variou ao ver o Hathaway, embora o sangue pareceu escapar de
sua pele, que se tornou salpicada em emplastros e de um branco cinzento em torno dos
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olhos e a boca.
Farnsworth abriu os lábios como se quisesse dizer algo, mas pensou melhor.
—Bom dia, senhor —saudou Pitt com calma, como se não tivesse observado nada—.
Temos ao assassino de Sir Arthur Desmond. —Com um sorriso, inclinou a cabeça em
direção ao detido.
Farnsworth arqueou as sobrancelhas.
— É este? —Farnsworth deixou que sua surpresa beirasse a incredulidade—.Tem
certeza?
—Absolutamente—respondeu Pitt—. Sabemos o modo preciso em que cometeu o
crime, e contamos com toda classe de testemunhas.
Trata-se de unir as peças do quebra—cabeças. Muito ardiloso e muito efetivo.
—Você? —apontou Farnsworth com frieza.
—Não, senhor. Refiro—me ao método e os meios empregados pelo Hathaway. —Pitt
se permitiu esboçar um sorriso—. Só lhe apanhamos graças a uma observação casual em
relação com uma campainha para garçons. Coisa que é suficiente. —Olhou ao Farnsworth
com ar inocente.
Farnsworth se aproximou e tomou ao Pitt pelo braço, guiando—o até a porta.
—Quero falar com você em privado, Pitt —declarou em tom tenso—. Chame um
agente para que vigie ao detido.
—É claro. Agora mesmo chamo o Tellman. —Era o que queria fazer desde o primeiro
momento, embora Farnsworth não lhe tivesse devotado à ocasião—. Sim, senhor? —
perguntou quando se acharam em um escritório adjacente, enquanto Tellman vigiava
Hathaway.
—Pitt, tem certeza de ter apanhado ao verdadeiro culpado? –perguntou Farnsworth
com voz seria—. Quero dizer que Hathaway é um funcionário muito respeitado no
Ministério de Colônias, um homem sem mancha, de pai eclesiástico.
Seu filho também o é. Por que diabos ia querer matar ao Desmond? Nem sequer o
conhecia; tão somente de vê-lo no clube. Possivelmente você haja dado com o método e
os meios do crime, mas, também com o verdadeiro culpado?
—Sim, senhor. E é irrelevante que Hathaway mal conhecesse de vista a Sir Arthur.
Este crime não teve um móvel de índole pessoal.
—Que demônios...? —Farnsworth não acabou a frase. Seus olhos seguiram fixos nos
do Pitt.
—A explicação é simples. —Pitt olhou—o com ingenuidade. Era preciso que
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nenhuma fibra de suspeita atravessasse a mente do Farnsworth—. Sir Arthur foi
assassinado por ter quebrado o voto de silêncio do Círculo Interior. Como traidor, em
suma.
Farnsworth abriu os olhos de modo quase imperceptível.
—Hathaway foi o verdugo encarregado de executar a tarefa –acrescentou Pitt, coisa
que fez a sangue frio e com precisão.
—Um assassinato! —Farnsworth ergueu a voz com incredulidade.
Uma nota pétrea se escondia atrás dela—. Mas o Círculo Interior não comete
assassinatos! Se Hathaway seriamente o matou, deve ter sido por outra razão.
—Não, senhor. Como você mesmo acaba de indicar, nem sequer tinha tratado com
ele pessoalmente. Foi uma execução, e podemos demonstrá—lo. —Pitt hesitou por um
breve instante.
Deus quisesse que pudesse confiar em Tellman. Mas se havia um homem no corpo
de polícia de que estava seguro que não pertencia ao Círculo Interior, esse era Tellman.
Voltando-se para olhar de frente a Farnsworth, decidiu assumir o risco—. Mas tudo
isso já se verá no julgamento.
—Se essa sociedade for o que você assegura que é, então Hathaway preferirá partir
à forca sem dizer uma palavra —observou Farnsworth com segurança marcada por um
tom zombador.
—Oh, não acredito que Hathaway confesse nada —admitiu Pitt com a sombra de um
sorriso—. Estou certo de que você tem razão. Hathaway subirá ao patíbulo sem trair seus
acólitos.
É possível que nunca cheguemos a saber quem são estes—respondeu com
morosidade, fixando seus olhos nos do Farnsworth—. Mas todo londrino capaz de ler um
jornal terminará por compreender o acontecido. É algo que demonstraremos no
julgamento.
—Já vejo. —Farnsworth respirou com agravo e exalou um suspiro. Seus olhos
olharam ao Pitt com surpresa, como se este tivesse estado acima do esperado—. Eu
gostaria de falar um momento a sós com ele, se não se importar. —Apesar do tom cortês,
tratava-se de uma ordem—. Tudo isto me parece angustiante, difícil de acreditar.
—Sim, senhor. É natural. Bem, eu tenho que voltar para o Morton Clube para amarrar
o testemunho do garçom e ver quem mais esteve pressente no dia do crime.
—Adiante, vá agora mesmo. Sem esperar mais, Farnsworth saiu do quarto do
Tellman, caminhou pelo corredor e entrou no escritório do Pitt.
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Um momento depois, Tellman saiu ao corredor e olhou ao Pitt com interrogação.
Pitt levou o indicador aos lábios, desceu meia dúzia de degraus ruidosamente pela
escada e subiu em silencio para esconder-se junto ao Tellman.
Esperaram durante o que pareceram cinco minutos intermináveis, com os ouvidos
aguçados e os corações pulsando com tal violência que Pitt podia sentir os tremores de
seu corpo.
De repente o leve murmúrio de vozes se deteve o outro lado da porta. Um som surdo
e apenas perceptível chegou dali.
Pitt abriu a porta de repente, com o Tellman lhe seguindo um passo atrás.
Farnsworth se abatia, quase escarranchado, sobre o corpo desabado do Hathaway.
O abrecartas que Pitt tinha em sua escrivaninha me sobressaía do peito do
Hathaway, justo em cima de suas mãos algemadas.
Entretanto, eram os dedos do Farnsworth os que se fechavam sobre o abrecartas,
pondo todo seu peso nele.
Tellman ficou petrificado.
Farnsworth ergueu o olhar, com o rosto deslocado por uma incredulidade seguida do
horror.
—Ele pegou o abrecartas— começou a defender-se—. Tratei de o deter, mas
Pitt deu um passo à frente.
—Você foi quem o matou! —exclamou Tellman com raiva tinta de incredulidade. A
coisa está muito clara!
Farnsworth fixou seu olhar no Pitt e Tellman, reconhecendo na hora o furioso brilho
incorruptível em seus olhares. Farnsworth deixou que seu olhar descansasse no Pitt.
—Giles Farnsworth—disse Pitt, com uma satisfação que tinha conhecido em muito
poucos casos anteriores—, fica detido pelo assassinato do Ian Hathaway.
Tudo que declare poderá ser utilizado em um tribunal de justiça E eu mesmo me
encarregarei de que viva o suficiente para ser submetido a julgamento, embora só seja em
lembrança de Sir Arthur Desmond.
Fim
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Notas
1
O sobrenome da Amanda, Pennecuick, soaria em inglês a algo assim
como "penny veloz", daí as brincadeiras da avó do Charlotte, que joga além disso
com outros sobrenomes possíveis em inglês.
2
Standish: sobrenome de certo parecido com o verbo to stand, estar de
pé.
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