A FORMAÇÃO DE UM MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA

Transcrição

A FORMAÇÃO DE UM MESTRE DE CAPOEIRA ANGOLA
IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de
Antropólogos do Norte e Nordeste.
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.
GT: Mobilidade e Fronteiras no Mundo
Contemporâneo
A FORMAÇÃO DE UM MESTRE DE
CAPOEIRA ANGOLA CONTEMPORÂNEA:
tensão entre a tradição e o cosmopolitismo.
Celso de Brito ([email protected])
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social - Universidade Federal do
Rio Grande do Sul
1
Introdução
Parto do pressuposto de que uma das principais (senão a principal)
características da Capoeira Angola contemporânea seja a dinâmica globalizada
na qual a imensa maioria dos grupos e mestres se vê enredada. Esta dinâmica
foi empiricamente analisada (BRITO, 2010) e chamada de “sistema de
linhagem transnacional” onde praticantes de Capoeira Angola espalhados pelo
globo são atraídos pela legitimidade e prestígio do pertencimento aos “grupos
tradicionais cujas sedes localizam-se em Salvador-BA”.
Este sistema é formado por unidades sociais englobadas por outras, de modo
que as unidades elementares são chamadas de núcleos que em conjunto
formam grupos que por sua vez estão inseridos em linhagens. Estas também
podem fazer parte de linhagens maiores de acordo como o mestre ou ancestral
tomado como referência.
Atualmente os grupos estão espalhados pelo mundo no molde de “comunidade
imaginadas” (ANDERSON, 2005), no interior dos quais integrantes obedecem a
um mesmo conjunto de regras e partilham do sentimento de pertença, mesmo
sem se conhecerem pessoalmente.
De tempos em tempos o mestre destes grupos percorre os núcleos a fim de
instruir seus discípulos segundo os fundamentos que lhe foram transmitidos
pelo seu mestre e através do convívio. O grande dilema inerente a estes
grupos tradicionais que se tornaram transnacionais é que eles são
considerados a resistência tradicional contra a degradação levada cabo pela
modernidade. Tal resistência é caracterizada, sobretudo, pelo aprendizado
direto entre discípulos e mestres.
O problema ocasionado pelo dilema de manter um grupo transnacional e ao
mesmo tempo zelar pela transmissão de conhecimento tradicional é
minimizado através da constante mobilidade do mestre que viaja durante
muitos meses por ano percorrendo os núcleos de seu grupo localizados em
diferentes cidades e países.
Este é o argumento deste texto, o mestre contemporâneo de Capoeira Angola
parece ser marcado pela mobilidade que o conduz por relações sociais que o
2
forçam ao reconhecimento de alteridades. A trajetória destes mestres indica
para a formação de sujeitos mediadores de culturas diferentes e neste sentido
indica também para um processo de constituição de sujeitos cosmopolitas que
transpassam tanto fronteiras nacionais como sociais e raciais. Tal transposição
de fronteiras, contudo, é tributária da criação da demanda especifica do saber
do mestre de Capoeira Angola junto as camadas sociais formadas por jovens,
brancos, de classe média de regiões sudeste e sul do país por via de uma
“terapêutização” da Capoeira Angola.
Contudo, é certo que não podemos tomar o conjunto de grupos e mestres de
Capoeira Angola como sendo homogêneo, ao contrário, trata-se de um
universo social extremamente diversificado, cujas estratégias de inserção no
mercado nacional e internacional correspondem em complexidade a tal
diversificação.
Assim, concordando com Wodak e Krzyzanowski (2007, apud Serangonha,
2010) sobre a natureza das análises realizadas sobre (e/i) migração, considero
grande o risco de cair em generalizações tomando grupos de imigrantes como
formado por sujeitos e projetos equivalentes. Penso que uma alternativa para
minimizar este risco é considerar os projetos de (e/i) migração como
experiências singulares, subjetivas e únicas. Assim, a análise da trajetória de
vida de um (e/i) migrante pode elucidar com maior riqueza o processo de
transnacionalização e globalização que a (e/i) migração envolve, contribuindo
para o conjunto de reflexões acadêmicas sobre o fenômeno social.
A etnografia de caráter multisituado (MARCUS, 1995) aqui apresentada é
pautada na trajetória de vida de mestre Boca do Rio, fundador do GCAZ
(Grupo de Capoeira Angola Zimba), desde sua infância na periferia de
Salvador-BA até sua instalação na cidade de Santiago de Compostela, na
Espanha.
O GCAP: a construção identitária e as primeiras viagens de mestre Boca
do Rio.
O GCAP (Grupo de Capoeira Angola Pelourinho) foi um dos primeiros grupos
(senão o primeiro) a se posicionar politicamente contra o processo de
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“branqueamento” instaurado pela política de nacionalização da Capoeira
iniciado na primeira metade do século XX durante o Estado Novo e fortalecido
pela ditadura militar até os anos de 1980.
Neste período os símbolos relacionados à africanidade foram substituídos por
símbolos relacionados ao nacionalismo (como as cores da bandeira do Brasil)
e à ideia de “democracia racial”. O GCAP, então, surge na década de 1980
arraigado da ideologia do Movimento Negro soteropolitano.
O ambiente do GCAP, liderado por mestre Pedro Moraes Trindade, foi
caracterizado pela extrema rigidez disciplinar quanto aos horários dos
treinamentos e uniformização dos capoeiristas, mas o maior controle referiu-se
ao posicionamento militante em prol da libertação da população negra
associada à verdadeira libertação do negro em relação ao estigma do passado
escravocrata ainda presente na sociedade brasileira.
Neste contexto, Capoeira Angola do GCAP formava “capoeiristas políticos”
através de palestras e seminários que, segundo mestre Boca do Rio
[...] Aproximavam a África do Brasil e ajudavam os
capoeiristas negros e entender a situação em que viviam,
o papel da Igreja Católica teve na destruição da cultura
africana [...] Tudo isso ensinava a gente a gostar mais da
gente mesmo como negros e descendentes de africanos.
Boca do Rio, ou ainda Marcelo Conceição dos Santos, viveu sua infância e
adolescência no bairro soteropolitano chamado Boca do Rio, daí o codinome
pelo qual é conhecido nas rodas de Capoeira Angola de todo o mundo.
Conheceu a Capoeira Angola na praia, enquanto trabalhava em uma barraca
vendendo refrigerante e sanduíche. Lá viu uma garota treinando, se interessou
pelos seus movimentos e perguntou a ela do que se tratava. Esta garota
chama-se Vitória Aranha1 e foi quem o levou até o GCAP na ocasião.
1
Vitória Aranha mora atualmente em Londres e foi uma das pessoas que também ajudou
mestre Boca do Rio durante sua migração internacional, como veremos adiante.
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Neste período, Boca do Rio trabalhou também na casa de sua empregadora
auxiliando-a nas atividades domésticas. Assim que passou a participar do
GCAP e das palestras e seminários lá organizados identificou sua condição de
trabalho às relações de desigualdade e exploração da população afrobrasileira
escravizada no passado. Decidiu abandonar seu trabalho e iniciar um negócio
autônomo de venda de cachorro-quente na praia.
Depois de alguns anos de dedicação à Capoeira Angola no GCAP passou a
viajar com o grupo para a realização de apresentações. A mais significativa
delas foi em 1988 quando o foi convidado a integrar a comitiva que faria uma
apresentação na Nigéria. Lá, mestre Boca do Rio foi reconhecido pelos nativos
como um descendente de hausa2 e desde então mestre Boca do Rio identificase como um membro da etnia Hausa.
Depois desta primeira viagem, outras viagens nacionais aconteceram. Boca do
Rio foi algumas vezes convidado a acompanhar seu mestre em viagens para a
realização de oficinas de Capoeira Angola, assim ele conheceu outros estados
como Pernambuco e Rio de Janeiro.
Uma das atividades políticas do GCAP consistia na revalorização dos antigos
mestres que haviam caído no ostracismo durante os anos anteriores e um
destes mestres foi mestre João Grande. Mestre João Grande acabou por se
instalar nos EUA, na cidade de Nova York onde fundou seu Centre of Capoeira
Angola fo Master João Grande.
Na década de 1990, a Capoeira Angola se tornou uma prática conhecida na
América do Norte e um dos alunos mais velhos do GCAP, mestre Cobrinha,
rompe com este grupo e funda a FICA (Fundação Internacional de Capoeira
Angola).
A Capoeira Angola soteropolitana, a FICA e o GCAP passaram a ser muito
procurados por estrangeiros (e por pessoas de outros estados brasileiros) que
buscavam aprender esta manifestação exótica. Assim, os capoeiristas desta
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Etnia da costa oeste da África trazida ao Brasil e responsável por insurreições na Bahia como
a revolução dos Malês. Chamados também de mandinga. Abner Cohen publica em
1921 Custom and politics in urban África onde mostra o ajuste de grupos étnicos a novas
realidades sociais, a partir de trabalho de campo entre os Hausa, comerciantes de longa
distância da África Ocidental.
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época, como Boca do Rio, mantinham contato constante com pessoas e
culturas de muitas partes do mundo. Neste período, Boca do Rio manteve uma
relação afetiva com uma capoeirista sueca e teve um filho com ela3.
Anos mais tarde, Boca do Rio torna-se Contra mestre de Capoeira Angola e
decide migrar para São Paulo em busca de melhores condições de vida. Tinha
a intensão de trabalhar e montar um núcleo do GCAP nesta cidade, mas após
alguns meses, retorna à cidade de Salvador com sua pretensão de ascensão
social frustrada.
Ao chegar à cidade de Salvador, Boca do Rio rompe com o GCAP e, após
algum tempo que permanece longe da Capoeira, é procurado e convidado a
dar aulas de Capoeira Angola para um grupo de jovens em busca da Capoeira
Angola tradicional. O GCAP era um destes grupos tradicionais, mas o duro
regime imposto por mestre Moraes não permitia que contramestres do grupo
assumissem trabalhos independentes. Quando Boca do Rio rompe com o
GCAP torna-se aberto a experiências de trabalho com a Capoeira Angola.
A valoração nacional da Capoeira Angola e mobilidade de mestre Boca do
Rio
Além do trabalho empreendido pelo GCAP para que a Capoeira Angola fosse
libertada do estigma de malandragem e alcançasse o respeito da sociedade
brasileira, houve também um movimento paralelo a este pautado no discurso
de libertação psicológica de pessoas brancas e de classe média, a
Somaterapia. Argumento aqui que a Somaterapia serviu como uma ponte
simbólica entre dois universos distintos e assim contribuiu para a disseminação
da Capoeira Angola pelo Brasil e para a formação de um nicho de trabalho
específico voltado aos mestres de Capoeira o que promoveu a mobilidade
nacional de mestres após a década de 1990.
A Somaterapia é uma terapia corporal idealizada por Roberto Freire entre os
anos de 1960 e 1970. Roberto Freire4 foi um estudante de medicina muito
3
Posteriormente esta relação permite que Boca do Rio consolide seu projeto de imigração
Internacional como veremos adiante.
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ligado à militância política. Tomou parte, inclusive, de algumas ações terroristas
contra a ditadura militar no período acima referido. Além de medicina, estudou
e atuou como psicanalista durante alguns anos até passar a entender que a
psicanálise não era suficientemente coerente com seu ideal político. Foi
quando, em uma de suas viagens à Europa, conheceu um grupo de dança que
fazia exercícios corporais conectados coma “bioenergética” de Wilhelm Reich.
Havia então idealizado uma terapia corporal e em grupo com exercícios que
conhecia das Artes Cênicas.
Em 1966, Roberto Freire foi enviado à Bahia pela revista “Realidade” onde
trabalhava na ocasião, para entrevistar o mestre de Capoeira Angola, mestre
Pastinha (REALIDADE, 1967).
Alguns movimentos da Capoeira foram incorporados à terapia corporal de
Roberto Freira porque, segundo ele, a Capoeira era libertária e anarquista
naturalmente.
Segundo a teoria de Roberto Freire, inspirada nos escritos de Wilhelm Reich, a
neurose seria consequência de uma educação afetivo-familiar característica da
sociedade capitalista e da família nuclear burguesa. O autoritarismo e a
supressão de liberdades se fortaleceriam nestes contextos e seriam
incorporados a partir do afeto.
Mas foi apenas no início dos anos de 1990 que Roberto Freire decide que a
prática da Capoeira Angola seria obrigatória ao método terapêutico da
Somaterapia. O intuito era manter uma prática que fosse parte dos encontros
terapêuticos (que eram mensais, durante aproximadamente um ano), mas
também que fosse paralela à terapia. A Capoeira então deveria manter o corpo
dos sujeitos ativos, além de trazer sempre à consciência e ao corpo a noção de
luta pela liberdade.
O jogo da Capoeira passa a ser um microcsomos onde a forma com que os
sujeitos atuam corresponde à maneira como eles atuam em suas vidas reais e
cotidianas. Assim se evidenciaria as tensões, os medos e as possibilidades de
seus enfrentamentos ao reconhecer estes elementos durante a roda de
Capoeira Angola.
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Roberto Freire foi um dos muitos exilados políticos entre os anos de 1964 e 1985, sendo que
este também foi um fluxo de emigração voluntária e involuntária que marca a história de
mobilidade internacional do Brasil.
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Um dos grandes parceiros de Roberto Freire foi o curitibano Rui Takeguma
com quem escreveu alguns livros. Rui Takeguma e Roberto Freire idealizaram
a “Casa da Soma” em São Paulo que se tornou a sede da Somaterapia.
Já nos anos 2000, Rui Takeguma diverge da teoria de Roberto Freire e
abandona a Somaterapia fundando primeiro a “Iê Capoeira!” e, em seguida, a
FACA (Federação Anarquista de Capoeira Angola).
A Somaterapia e a Capoeira Angola se disseminam muito, principalmente na
década de 1990. Estamos no período que foi chamado por Russo (1991) de
“‘cultura alternativa’ no Brasil que seria filha direta do movimento da
contracultura”, no qual as terapias corporais substituíam a ortodoxia da
psicanálise freudiana. Aqui, as terapias corporais aparecem como alternativa
às formas do “pensamento ocidental” vinculado à visão cartesiana de mundo,
na qual corpo e mente são considerados instâncias separadas uma da outra.
Em 2008, Roberto Freire falece, mas deixa discípulos que dão continuidade ao
seu trabalho. João da Matta é um deles, psicólogo de formação, fez mestrado e
doutorado na UFRJ e por sua iniciativa a Somaterapia hoje faz parte da
formação em psicologia da UFRJ.
Roberto Freire, Rui Takeguma e João da Mata viajaram por muitos estados
brasileiros promovendo a Somaterapia, principalmente em Universidades
públicas onde conseguiam grande parte de sua clientela.
Entre aqueles que foram tocados pela necessidade de praticar a Capoeira
Angola através da Somaterapia estavam os atuais integrantes do GCAZ que
formaram os núcleos em Curitiba e Porto Alegre.
Mestre Boca do Rio passou a ser convidado esporadicamente a estas cidades
para realizar oficinas de Capoeira Angola a jovens brancos, universitários e de
classe média.
Para Boca do Rio, entretanto, não se tratava de uma situação tranquila, pois
havia naquele período uma forte crítica à Somaterapia advinda dos mestres de
Capoeira Angola que temiam pela descaracterização da Capoeira Angola
devida à sua indevida apropriação por parte dos somaterapeutas.
Boca do Rio relata que no início se tratava exclusivamente de [...] conseguir o
ganha pão. Eu ia, fazia meu trabalho, pegava meu dinheiro e voltava para
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casa. Eu via as coisas que aconteciam e nem ligava, se me pagassem pelo
meu trabalho estava tudo bem.
O que Boca do Rio via nos encontros promovidos pelos somaterapeutas era a
manifestação da liberdade segundo a ótica da Somaterapia. Já os mestres de
Capoeira Angola mais radicais viam tais manifestações como formas
desrespeitosas de lidar com o conhecimento tradicional.
A liberdade da Somaterapia nos momentos da Capoeira Angola se manifestava
na falta de rigor no vestir-se para treinar ou jogar Capoeira Angola. As
dinâmicas corporais que ocorriam fora do contesto da Capoeira Angola, mas
dentro do contexto da Somaterapia eram pautadas em toques físicos e
entendidas como práticas anarquistas avessas ao regime heteronormativo da
sociedade burguesa. Mas para os mestres tradicionais isso era visto como
manifestação de homossexualismo explícito.
Boca do Rio relata que pensava como os mestres tradicionais a principio, mas
que se satisfazia com o respeito com o qual sempre foi tratado nos ambientes
da Somaterapia. Apesar de Boca do Rio manter uma relação de oposição em
relação às formas que muitos somaterapeutas se utilizaram da Capoeira
Angola, gradativamente estabeleceu certa identificação com seus alunos
advindos da Somaterapia por conta de uma leitura libertária quem ambos
faziam acerca da Capoeira Angola.
Para mestre Boca do Rio e para os integrantes da Somaterapia, a Capoeira
Angola era uma forma de libertação em relação à opressão do sistema social
vigente.
Por meio de uma concepção libertária da Capoeira Angola algumas fronteiras
entre sujeitos pertencentes a seguimentos sociais distintos tornaram-se
permeáveis.
As relações entre Capoeira Angola e Somaterapia que eram estabelecidas na
forma de troca mercantil tornaram-se relação de reciprocidade e amizade: Boca
do Rio ensinava Capoeira Angola, ao passo que também se abria a outras
perspectivas acerca do mundo, outros valores e condutas. Familiarizava-se
com os discursos terapêutico e anarquista acerca da Capoeira Angola,
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familiarizava-se assim com os valores de uma camada social de onde sairiam
os novos consumidores da Capoeira Angola contemporânea.
Com o passar do tempo, os capoeiristas abandonaram a Somaterapia e
aderiram à Capoeira Angola de Boca do Rio, da mesma forma que mestre
Boca do Rio passa a compreender melhor algumas posições divergentes no
interior de seu grupo.
Assim, Boca do Rio constrói relações sociais pautadas no reconhecimento da
alteridade e aprende a conjugar os valores tradicionais, nos quais foi formado,
com valores menos rígidos, iniciando um processo de subjetivação no qual se
abria gradativamente a experiências cosmopolitas.
A mobilidade internacional: peregrinação pela Europa
Depois da fundação do GCAZ (Grupo de Capoeira Angola Zimba), mestre
Cobrinha convida Boca do Rio para realizar uma oficina nos EUA. Com isso, a
reputação internacional de Boca do Rio aumenta e com ele cresce também o
número de convites para a realização de oficinas em outras partes do mundo.
Mestre Cobrinha reconhecendo o trabalho e a dedicação de Boca do Rio para
com a Capoeira Angola, assim como a considerável reputação internacional
que ele havia conquistado, realiza um evento, em 2007, onde Boca do Rio
finalmente torna-se mestre de Capoeira Angola5.
Neste mesmo ano, mestre Boca do Rio passa pelas cidades onde existem
núcleos do GCAZ (Curitiba e Porto Alegre) e realiza oficinas para conseguir
dinheiro visando realizar seu projeto de migração internacional. De Porto
Alegre ruma para Buenos Aires onde realiza mais um evento seguido de outro
em Montevidéu onde consegue reunir dinheiro suficiente para as passagens
dele e de sua família para Santiago de Compostela. A chegada em Santiago de
Compostela deu-se por intermédio da companheira de mestre Boca do Rio,
5
Este evento chamou-se Malungos que significa “companheiros de viagem” em Bantu. Neste
encontro mestre Valmir, mestre Poloca, mestra Janja e mestra Paulinha, além de mestre Boca
do Rio (todos dissidentes do GCAP) foram reconhecidos como mestres de Capoeira Angola.
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Cristina, uma argentina que conhece algumas pessoas que migraram para
Santiago de Compostela e que se disponibilizaram a ajudá-los na chegada.
Uma vez em Santiago de Compostela, Mestre Boca do Rio busca ver seu filho
sueco e, conversando com sua ex-namorada, ambos decidem dar entrada ao
visto europeu através da paternidade de um cidadão europeu.
Durante os três primeiros meses em que mestre Boca do Rio estava na
Espanha aproveitou a validade de seu visto de turista e foi visitar sua amiga
Vitória Aranha em Londres. Ela por sua vez, organizou uma pequena oficina de
Capoeira Angola com mestre Boca do Rio para tornar público à comunidade
europeia de Capoeira Angola a sua nova residência.
Depois deste evento muitos foram os convites para viagens, porém os ávidos
capoeiristas europeus tiveram que aguardar a regularização da documentação
de mestre Boca do Rio para que fosse possível a peregrinação pela Europa
(nas palavras de mestre Boca do Rio) iniciar.
Neste interim, mestre Boca do Rio aceitou trabalhar na colheita de maças e
uvas informalmente, pois ainda não tinha sua condição legalizada. Porém um
mal-entendido linguístico quase pôs tudo a perder.
Mestre Boca do Rio estava satisfeito em seu emprego até ocorrer um
desentendimento com um dos homens que fiscalizava seu trabalho. O
problema se deu quando mestre Boca do Rio ouviu que este homem era
chamado de “capataz”.
Mestre Boca do Rio ficou irritado e acabou iniciando uma discussão.
[...] Coisas que eu tinha escutado em história de
escravidão estava acontecendo comigo. Eu falei mesmo
pra ele, falei alto, cara: “eu não tenho capataz e não vou
ter nunca, senão eu caio fora!” Ah rapaz, eu não
aguentei. No Brasil as coisas não são fáceis, mas eu tive
que sair de lá e viver aqui [Santiago de Compostela] para
sentir o que é ser um escravo! Aí eles riram de mim e eu
pirei. Me sentia o escravo negro sendo chicoteado pelo
capataz branco, sabe? Meu rosto fervia de raiva.
Mestre Boca do Rio conta que conversaram muito sobre o sentido da palavra
“capataz”, e os espanhóis riram de sua conduta, o que lhe fez perder o controle
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e explodir gritando. Deste momento em diante, o tal “capataz” fazia com que
mestre Boca do Rio se sentisse vigiado e torturado.
Rapaz, ele sabia que eu estava ilegal. Ele sabia que eu
poderia ser deportado e que por isso eu tinha medo da
polícia. Aí, quando ele ia me levar para a plantação, se
ele via uma viatura da polícia ele chegava bem pertinho e
ficava só me olhando de canto de olho, o cara era cruel.
Toda a história da escravidão foi vivenciada para Boca do Rio na experiência
de imigração. Depois de uma semana do ocorrido, mestre Boca do Rio decide
procurar a Cruz Vermelha, organização que oferece assistência social aos
sem-documentos. Durante a conversa, mestre Boca do Rio acabou contando o
acontecido e, então, passou a ser acompanhado por um psicólogo, mas
mesmo assim não conseguiu voltar a plantação.
Uma nova experiência foi lida segundo a formação política advinda da
Capoeira Angola que acabou por instaurar uma barreira intransponível entre
mestre Boca do Rio e os empregadores das colheitas. Neste episódio, os
valores localizados no GCAP da década de 1980 superaram a compreensão da
diferença e a abertura para um ambiente intercultural.
Tempos depois com a documentação legalizada, mestre Boca do Rio passou a
viajar pela Europa: França, Polônia, Inglaterra, Itália, Portugal, Alemanha,
Noruega, etc.
Na França conheceu um capoeirista que buscava em mestre Boca do Rio
alguém para seguir. Ele é psicólogo e me contou que havia feito uma
monografia de fim de curso sobre a potencialidade da Capoeira Angola na
comunicação corporal enter terapeuta e crianças autistas. Para ele a Capoeira
Angola era também uma prática terapêutica. Claude me mostrou o
documentário sobre a Somaterapia intitulado “SOMA - An Anarchist Therapy”
produzido nos EUA, em 2006, no qual mestre Boca do Rio comenta o potencial
terapêutico da Capoeira Angola.
Este fato demonstra que a Somaterapia proporcionou ao mestre Boca do Rio
mais do que a mobilidade nacional, mas também contatos e renome
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internacionais. Mestre Boca do Rio passou a ministra oficinas na França quatro
ou cinco vezes por ano nos últimos três anos.
Em meio às viagens de mestre Boca do Rio pela Europa, ele também
consegue oferecer aulas de Capoeira Angola na própria cidade de Santiago de
Compostela. Um dos espaços onde ocorrem as aulas é chamado de Gentalha
do Pichel. Trata-se de um espaço organizado por um grupo de ativistas próindependência da Galícia que buscam usar atividades culturais para manifestar
seu posicionamento político. Não é por acaso que mestre Boca do Rio
identificou-se com o local e com seus dirigentes. Alguns paralelos entre eles
tornaram-se evidentes durante o trabalho e campo.
Um dos praticantes de Capoeira Angola de Santiago de Compostela é branco
com cabelos estilo rastafari e é estudante de Arqueologia da USC
(Universidade de Santiago de Compostela). Ela acredita que a monarquia
apenas destrói a riqueza cultural da Espanha ao tentar unificá-la e extirpar as
diferenças internas.
Durante uma conversa, ele me contou que Santiago de Compostela foi palco
de rituais pagãos romanos e que a história do apostolo e Santo Tiago (ou
Jacob) é na verdade uma apropriação das lendas e dos comportamentos
pagãos.
Ele e seus amigos apresentam uma visão mística, exotérica de Santiago de
Compostela relegando à Igreja Católica o papel de usurpadora de riquezas
materiais e imateriais.
A Capoeira Angola para eles significa uma continuidade deste posicionamento,
no sentido de ser uma oposição à Igreja Católica e se assemelhar aos rituais
pagãos.
Um brasileiro que mora em Vigo (cidade vizinha a Santiago de Compostela) há
alguns anos diz que a Igreja Católica teria se apropriado da imagem do
“peregrino” como sendo equivalente àquela dos apóstolos evangelistas.
Segundo sua versão, a Igreja teria se apropriado de três símbolos do andarilho
para caracterizar o Caminho de Santiago de Compostela: a vieira que é um tipo
de concha, o cajado e a cabaça.
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Os antigos peregrinos andariam sempre com o cajado e a cabaça pendurada
em uma de suas pontas, o que se assemelha segundo sua comparação a um
berimbau.
Mestre Boca do Rio sempre faz oficinas de berimbaus com seus alunos de
tempos em tempos. Todos angoleiros devem ter o seu berimbau e traze-los
aos encontros. Durante um dos encontros promovidos pelo mestre em
Santiago de Compostela víamos um grupo de angoleiros se aproximar para a
aula de instrumentos, todos com seus berimbaus desamarrados e com a
cabaça pendurada na parte superior da madeira. Ele olhou e me perguntou em
tom de jocosidade: são angoleiros ou peregrinos? E eu respondi: talvez os
dois. E ele replicou: também acho!
O grupo que chagava vinha de muitas partes da Europa, havia inclusive uma
garota da Tailândia.
A semelhança entre o cajado com a cabaça e o berimbau era um argumento
para aproximar a Capoeira Angola de uma tradição antiga da Galícia e toda
como alvo da ambição destruidora da Igreja Católica.
Estátua de bronze El Peregrino, em Santiago de Compostela (esq.) e mestre Bimba em Salvador na
década de 1960 (dir.)
Mestre Boca do Rio sempre profere discursos onde a Igreja Cristã seria
parcialmente responsável por parte dos sofrimento causado aos negros
candomblecistas do Brasil. Sempre diz que a Capoeira Angola é uma
manifestação de resistência cultural e política a estes males.
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Conclusão
A trajetória de vida de mestre Boca do Rio parece indicar que a formação de
um
mestre
de
Capoeira
Angola
no
mundo
contemporâneo
passa
necessariamente por um processo subjetivo de articulação entre valores
tradicionais e valores presentes em contextos cosmopolitas. A configuração
transnacional e a disseminação planetária dos grupos de Capoeira Angola
associados à necessidade “tradicional” do aprendizado presencial através do
convívio entre mestre e alunos exigem do mestre de Capoeira Angola
contemporâneo uma constante mobilidade internacional e uma consequente
abertura à alteridade. Contudo, tal exigência não significa em absoluto que tal
articulação ocorre sem conflitos.
Ao contrário, trata-se de um dilema, uma vez que aquilo que se torna mais
valorizado na Capoeira Angola globalizada é justamente o que ela possui de
“tradicional”, ou seja, valores ancorados em uma localidade e temporalidade
específicas: Salvador-BA, da década de 1980.
Referências Bibliográficas
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões Sobre a Origem
e a Expansão do Nacionalismo. Lisboa: Edições 70, 2005.
BRITO, Celso de. A roda do Mundo: fundamentos da Capoeira Angola
“glocalizada”. Dissertação de mestrado em, Antropologia Social da UFPR,
2010.
FREIRE, Roberto. “É luta, é dança, é Capoeira”. In: Revista Realidade, São
Paulo: Ed. Abril. Ano I, número 11, Fevereiro de 1967.
KRZYZANOWSKI, M. e WODAK, R. Multiple Identities, Migration, and
Belonging: Voices of Migrants. Em: CALDAS-COULTHARD, C. e IEDEMA, R.
(eds.) Identity Troubles. Palgrave MacMillan, Basingstoke, pp. 95-119, 2007.
MARCUS, G. E. Ethnography in/of the world system: The emergence of multisited ethnography. Annual Review of Anthropology, 24, pp. 95–117, 1995.
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RUSSO, Jane Araújo. O corpo contra a palavra: as terapias corporais no
campo psicológico dos anos 80. Tese de doutorado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em Antropologia Social da UFRJ. Rio de Janeiro, 1991.
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