VIVER A ESPIRITUALIDADE ESPIRITANA
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VIVER A ESPIRITUALIDADE ESPIRITANA
VIVER A ESPIRITUALIDADE ESPIRITANA P REÂMBULO O Capítulo Geral de 2004, na Torre d’Aguilha, entendeu que era seu objectivo primordial reavivar o dom especial que a Congregação recebeu de Deus, isto é, o nosso carisma. E assim, o documento capitular mais importante, por sinal, o primeiro, trata da nossa renovação espiritual. Este objectivo está subjacente a cada um dos documentos. Na realidade, tal renovação está acontecendo em muitas frentes da Congregação. O presente I/D pretende muito simplesmente ser uma humilde ajuda para fazer avançar tal renovação. O que propomos aqui é um instrumento de reflexão para todos os confrades, tanto a nível pessoal como comunitário. I. PRECISAMOS DE APROFUNDAR A NOSSA ESPIRITUALIDADE ESPIRITANA O Mundo Actual V ivemos num mundo sujeito a enormes desafios. Tal é evidente em relação a vários sectores da vida. Há, por exemplo, um claro crescimento do número de pessoas que visitam lugares de peregrinação religiosa ou monumentos de carácter religioso, embora se fale da notória secularização da sociedade. Este fenómeno das peregrinações, verificável no seio das várias tradições religiosas, evidencia uma profunda sede de Deus, com a consequente procura que caracteriza hoje a humanidade1. 1 Por exemplo, cerca de 5 milhões de pessoas peregrinam até Lourdes todos os anos, e 4 milhões até Fátima, e muitos visitam Roma. O nº de peregrinos V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA A procura de Deus tem sido uma constante religiosa desde que o mundo existe. A antropologia teológica o confirma: fomos criados com uma certa “capacidade para Deus”. O salmista compara esta sede da humanidade por Deus com o desejo irresistível que impele o veado para as águas correntes de um rio (Sl. 4l.1). Fala-se hoje do fenómeno, em crescendo no mundo ocidental, das pessoas que “acreditam sem pertencer”. De facto, constatase que os jovens não procuram tanto uma doutrina, mas muito mais alguma forma de espiritualidade. Nos países economicamente depauperados, o chamado Sul, tornou-se atraente a apresentação de uma “religião da prosperidade”, de tal forma que os respectivos grupos atraem mais aderentes do que as religiões históricas. Nos países do Oriente, onde predominam as grandes religiões do mundo, apesar da influência do materialismo e das campanhas anti-religiosas, continua a crescer a sede de espiritualidade. Não obstante isso e olhando ao conjunto, aí, bastante gente acaba por se refugiar em várias formas de intolerância, de fanatismo, de fundamentalismo ou de espiritualismo, por vezes de consequências desastrosas. Por outro lado, a modernidade com os seus avanços tecnológicos e a revolução digital, veio não só introduzir uma rapidez maior no desempenho das actividades diárias, como facilitar uma subida rápida do nível médio da qualidade de vida. Porém, sentimos vergonha diante da situação de pobreza deprimente que afecta a maior parte da humanidade e da desigualdade assustadora, na ordem social. Vivemos num mundo em que há uma falha enorme de valores profundos, sobretudo aqueles que dizem respeito à solicitude de uns pelos outros e do meio-ambiente em que vivemos. Os dois últimos Capítulos Gerais, em Maynooth e na Torre d’Aguilha, muçulmanos que este ano fizeram a “hajj” a Meca chegou aos 2 milhões. Cada ano, santuários como “Senhora da Aparecida” (Brasil), “Senhora de Guadalupe” (México), Medjugorie, Knock, etc., atraem muitos peregrinos. O mesmo se verifica com santuários diocesanos de peregrinação. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA tornaram-nos crescimento2. mais conscientes destas realidades em A Congregação na Igreja E ste é o contexto da nossa vida religiosa e missionária. Em consequência dos casos de escândalo que aconteceram, algumas pessoas perderam confiança na Igreja e nos seus responsáveis. Alguns dos nossos missionários enfrentam a insegurança pessoal, enquanto outros continuam a realizar o seu ministério em regiões de grande indiferença religiosa. Perdemos confrades que, por decisão própria, abandonaram a Congregação. Esse abandono perturbou-nos, levando-nos a interrogar-nos sobre o que é que não estaremos realizando de maneira justa. No entanto, não nos quedámos em paralisante letargia. Tal como outras famílias religiosas temos procurado reavivar a nossa tradição espiritual, com o intuito de dar resposta às necessidades do tempo actual. Entrámos na onda de renovação iniciada no Vaticano II, com seu programa de aggiornamento! Re-escrevemos a nossa Regra de Vida e publicámos documentos que se referiam expressamente à temática da renovação espiritual3. Insistimos na reflexão sobre a nossa vida de consagração e a nossa missão apostólica, nos seus diversos aspectos. Não deixámos perder a ocasião, no ano do Jubileu Espiritano, de lançar um olhar sobre o nosso passado e a nossa história, com vistas a ganhar inspiração para o futuro. Continuamos a apostar, pessoalmente e em comunidade, em retiros e recolecções. São muitos os confrades que ainda procuram tempos sabáticos, em ordem à sua actualização e renovação pessoal, com o intuito de estarem mais aptos para o seu ministério. Estes, e muitos outros esforços tomados a peito, demonstram que está em curso um Cf. Os Relatórios do Superior Geral, apresentados aos Capítulos Gerais de Maynooth e Torre d’Aguilha. 3 O I/D nº 40, de Dezembro de 1985, com o título “Em ordem a uma Espiritualidade Missionária para hoje”, é uma fonte abundante e proveitosa para a promoção da Espiritualidade Missionária dos Espiritanos. 2 V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA projecto de renovação espiritual, quer a nível individual, quer a nível das comunidades. Desafios T udo o que foi mencionado acima tem impacto directo numa espiritualidade renovada, com a qual se pretende dar resposta à situação actual. Há que reconhecer, porém, que existe a tendência a salientar demasiado as dificuldades, perante as situações com que estamos confrontados, e dar menos atenção a um aprofundamento da consciência daquilo que somos, bem como ao significado ou alcance dos factos e acontecimentos que temos diante de nós. Dobrados pelo peso do que é negativo na nossa sociedade, facilmente perdemos de vista os apelos que poderão conter sementes portadoras de vida. A voz de Deus chama-nos a um regresso às raízes da nossa fé, à Boa Nova anunciada por Jesus Cristo, bem como também à rica herança dos nossos Fundadores, de modo a reencontrarmos aí sentido, força interior e mútua abertura solidária (I Rs. 19,15). Temos necessidade de re-descobrir o sentido da “Vida Apostólica”, tal como a entendiam os Fundadores. No coração da enorme herança que eles nos legaram, está a entrega ao serviço dos pobres. Nessa linha, vários confrades manifestaram o desejo de que regressemos a uma compreensão mais profunda da nossa consagração e à redescoberta da centralidade da nossa entrega pessoal a Deus, através da vida religiosa vivida segundo o carisma espiritano (T.A. 0.2.2)4. Na Torre d’Aguilha, tentou-se dar relevo a esse recentramento. De vários modos, o Capítulo dedicou tempo a uma reflexão sobre nós próprios e nossa herança espiritual. Assim, em coerência com a tradição vinda dos Fundadores, o Capítulo salientou a importância vital da oração, pessoal e comunitária, se queremos estar em ligação com a actuação de 4 Esta reflexão resulta da leitura das respostas ao Questionário Pré-Capitular que foram recebidas. São elas que estão na origem do Documento “Viver hoje com autenticidade o Carisma Espiritano”, Torre d`Aguilha p. 11. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA Deus no mundo. Foi posto em destaque, igualmente, o equilíbrio a ser procurado num estilo de vida assente em trabalho, oração, reflexão e necessário descanso (T.A. 1.3.7.), sem deixar de lado a abertura para gerir eventuais desacordos e incompreensões na vida de comunidade. Insistindo na importância de tomarmos consciência das nossas capacidades e fraquezas, o Capítulo chamou a atenção para a importância vital de uma boa formação humana e espiritual, ao longo de todas as fases do processo formativo. Particularizando, o Capítulo recordou os valores nucleares que deverão qualificar, na actualidade, a nossa espiritualidade missionária. Mencionou elementos tais como a opção pelos mais pobres (T.A. 1.1.4), o serviço e respeito pelos outros (T.A.1.1.5), uma solidariedade prática com o povo e as pessoas com quem convivemos, a solidariedade entre nós mesmos (T.A. 5.2), a presença em outras culturas, o apelo à igualdade entre todos (T.A. 5.1), e uma como que peregrinação interior que signifique mútuo enriquecimento (T.A. 0.2.1). Sentimos um forte desejo de que este “fogo espiritano” seja reavivado. Existirá uma Espiritualidade Espiritana? O discurso sobre uma espiritualidade propriamente espiritana é, de certo modo, de data recente. Mas já antes havia sobre ela uma afirmação implícita. Até ao Concílio, não era uso, na Congregação, falar-se de “carisma”. Mas, apesar disso, é lícito perguntarmo-nos sobre a existência, em fase anterior, de algo de típico que pudéssemos chamar de espiritualidade espiritana. As duas Congregações que se fundiram em 1848 haviam crescido dentro do coração da Igreja Católica, num tempo em que se estavam desenvolvendo diversas Congregações. É por isso evidente, que várias espiritualidades tiveram influência tanto em Poullart des Places como em Libermann. Como o Vaticano II pediu que os institutos religiosos regressassem às suas raízes, também nós os espiritanos abraçamos a tarefa de lançar os olhos sobre as nossas as nossas V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA origens e as nossas fontes. Ao analisar os escritos dos nossos Fundadores e a nossa resposta dada às situações missionárias ao longo das várias gerações, tomamos consciência que, embora enriquecida pelo contributo vindo de outras fontes, temos uma espiritualidade que pode ser qualificada de “espiritana”. É claro que há um número elevado de Congregações que têm, tal como nós, a “opção pelos pobres”como constitutivo da sua identidade mas, há algo que marca o carisma espiritano e há um jeito de abordagem da missão que nos é próprio. Por vezes, são os próprios leigos que nos ajudam a tomar consciência disso mesmo. Para nós, nossa espiritualidade e carisma estão contidas nas palavras de abertura da nossa Regra de Vida, que cita o Evangelho de Lucas: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu. Enviou-me a anunciar a Boa Nova aos pobres...” (Lc. 4.1). Na nossa consagração, existe, portanto, uma dupla realidade: profunda comunhão com Deus e chamamento ao serviço dos outros, particularmente dos pobres. Quando Deus escolhe alguém, estabelece por esse facto uma relação especial com essa pessoa, mas em função de um objectivo particular. Isso não se deu apenas com os sacerdotes, reis e profetas de tempos antigos, mas acontece também agora em relação a nós. Nisto consiste a nossa consagração. II. “O ESPÍRITO DO SENHOR ESTÁ SOBRE MIM....” O Espiritano Encontra a Sua Força em Deus A história espiritana revela o grande ardor apostólico dos nossos pioneiros, tanto na fundação de Igrejas locais, como na criação de múltiplas obras para benefício das populações. Essa tarefa imensa não foi realizada por missionários de meiastintas. Eles correram o risco, por vezes, de se “atirarem de cabeça”, a ponto de se identificarem totalmente com o “seu trabalho”. Mas tal pode constituir um perigo para qualquer um. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA O próprio Poullart des Places passou por uma experiência semelhante, segundo confessa: “estive fazendo o ponto da situação sobre mim próprio, e tomei consciência de que estava bem longe de chegar aonde devia ter chegado”. E acrescenta com amargura: “enfim, sou mera máscara de devoção, uma sombra do que fui”. E conclui: “que vantagens alcancei com ter feito aquilo que fiz?”. Libermann também revelou certa amargura quando tomou consciência de que alguns confrades estavam deslizando para a perda de temperatura espiritual. Há sempre, na vida de apostolado, um problema de unidade de vida a resolver: como conciliar o duplo desejo de, por um lado, realizar um trabalho missionário eficiente, e por outro manter-se unido à vontade de Deus? O Espiritano não é um monge! Libermann sabia-o bem. Porém, o valor do trabalho missionário não depende primariamente da actividade por si mesma, tal como, no nosso tempo, também não dependerá do número de reuniões marcadas na agenda. Se não houver na vida lugar para Deus, se não é o amor a Deus que alimenta o amor do missionário para com o povo, o missionário acaba por se tornar um mero “címbalo retumbante” (1 Cor. 13.1). Foi para trocar em miúdos esta realidade que Libermann criou a noção de “união prática”. Não será que este conceito revela a sua experiência pessoal de quando, para superar dificuldades de toda a espécie, ele conseguiu manter sólida serenidade, em resultado de uma inabalável confiança em Deus? Qual foi o seu segredo? Abrir-se à graça de Deus e agir apenas sob sua inspiração. Para Libermann, trata-se, essencialmente, de se apoiar totalmente “na fidelidade à graça divina, a qual leva a uma V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA união com Deus no meio e dentro da nossa própria actividade” (E.S., p. 556). De certa maneira, o missionário terá de ser como um peixe na água! O peixe só consegue evoluir harmoniosamente se a água o sustentar. É nela que encontra o essencial para a sua vida. De modo semelhante, aquele que tem o coração posto em Deus, poderá avançar e atravessar as águas, sejam calmas ou tempestuosas. Em qualquer situação, o missionário aprende a viver com Deus. “A alma cheia de Deus saberá como ser paciente à maneira de Deus; não anseia pelo êxito, nem deseja ir mais longe ou mais depressa do que o querer do próprio Deus. Tal alma examina as situações calmamente e em união com o Espírito de Deus; actua em conformidade com as luzes e forças que recebe do alto, e deixa ao cuidado do Divino Mestre a preocupação de tornar frutuoso o trabalho realizado, segundo a medida da Sua divina misericórdia” (N.D. IX, p. 328- 329). A Vida Espiritana é, simultaneamente, Vida de Oração e Serviço Apostólico Q ual o lugar que cabe à oração, na nossa vida? Ter-se-á tornado desnecessária, em virtude da presença divina no coração da nossa actividade? Existe o perigo real de deixar de lado os momentos particularmente dedicados à oração. O Seminário do Espírito Santo viveu desde o princípio ao ritmo do Ofício Divino, encarado como a respiração vital da própria comunidade. É isso mesmo que se encontra na Regra que Libermann escreveu. Para ele, a “união prática” não substitui os tempos de oração. Bem ao contrário, “a oração, aí está o que importa”, escreveu ele ao P. Collin, convidando-o a orar com simplicidade. Descreve-a como “o hábito que tem a alma de se manter na presença de Deus e, no tempo da oração, se manter aparte de tudo o mais, de forma a manifestar ao Senhor que ela lhe pertence” (N.D. VII. p. 37). Deste modo, a vida com Deus tem início na oração e prolongase, de modo natural, no trabalho e na vida fraterna. Quantas vezes não recomendou Libermann que uma questão difícil V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA fosse examinada na presença de Deus? Ele dava este conselho aos outros, porque ele próprio costumava proceder assim. O Espiritano vive em Comunidade a oração que alimenta a vida da comunidade e a missão que lhe foi confiada. Libermann sabia muito bem como era fundamental favorecer a compreensão mútua entre os membros. Para ele, “a vida dos nossos missionários é uma vida em comunidade; nunca devem ficar isolados” (N.D. VI, p. 438). Contudo, ele também tinha consciência das dificuldades provocadas pela diferença de temperamentos. Para que as comunidades se tornem “ cor unum et anima una”, ele viu que era preciso ter um ponto de partida e um ponto de chegada de toda a actividade missionária: o “fermento da oração”. A oração consiste numa inter-acção de Deus comigo, lançandome para Ele, de modo que Ele me leve de mim para a comunidade, e de mim para a missão que gera comunidade. Na verdade, a evangelização destina-se a criar comunidades cristãs. A comunidade é a nossa maneira de viver a missão. É vivendo em comunidade que damos visibilidade ao objectivo da missão. Uma comunidade cristã é ela própria missão em processo de amadurecimento. Nesse sentido, a comunidade espiritana indica ao povo a direcção para onde queremos que ele caminhe. Mas ninguém tomará um caminho indicado por um guia, se o próprio guia se recusa a segui-lo. Nos começos da Ordem Dominicana, cada comunidade era designada por sacra praedicatio: uma santa pregação. Viver juntos como irmãos, com “um só coração e uma só alma”, era tido como uma forma de pregação, antes de se pronunciar qualquer palavra. É Será que a nossa vida de comunidade inspira as pessoas a quererem construir comunidade? V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA A Espiritualidade Espiritana tem a ver com Contemplação e Acção O autêntico missionário é um contemplativo na acção. Na Torre d’Aguilha, impressionou-nos o relato de um testemunho acerca de certo confrade que, no Brasil, gastou a vida no meio dos pobres, sendo no meio deles que encontrou a Deus5. Como autêntico filho de Libermann, Ângelo van Kempen considerou os pobres como seus mestres, e deles se fez aluno. Vendo as coisas a partir do ponto de vista dos pobres, entendeu que o amor por eles levava a sair da sua situação pessoal, da sua mentalidade de classe, e mesmo da sua mentalidade clerical, afim de poder estar com eles. Ele acolhia da mesma maneira os pobres e os ricos. Mas costumava dizer: “ se tu acolhes a todos do mesmo modo, os ricos sentem-se ofendidos e os pobres não entendem o que está acontecendo”. Quem apresentou este testemunho no Capítulo, acrescentou este comentário: “Contemplação na acção? Se estas palavras fossem usadas na sua presença para descrever o seu estilo de vida, Ângelo teria sorrido diante de termos tão solenes”. Porém, não há dúvida de que ele foi um contemplativo na acção. Encontrou Deus nos pobres; toda a sua vida foi orientada para os pobres. Foram eles a porta estreita por onde, diariamente, Ângelo acedia ao Reino de Deus. A sua experiência com os pobres levou-o a ser uma espécie de contemplativo que se incarna no mundo deles, escutando-os com atenção. O Santo Padre fala da contemplação como base do serviço. Ele cita a Regra Pastoral do papa Gregório Magno: “o bom pastor deve estar radicado na contemplação. De facto, só assim lhe será possível acolher de tal modo, no seu íntimo, as necessidades dos outros, que estas se tornem suas” (Deus Caritas Est, 7). 5 Cf. Uma exposição pormenorizada em “VIDA ESPIRITANA”, nº 15, p. 154. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA III. “.... ELE ENVIOU-ME...” Ser Espiritano é estar Disponível D e modo a poderem testemunhar Cristo, requer-se dos missionários que estejam disponíveis. A disponibilidade tem sido característica da Congregação ao longo da sua história. Para os seus estudantes do Seminário do Espírito Santo, Poullart des Places previa “os lugares mais abandonados, as tarefas que ninguém queria e, por consequência, os postos mais difíceis de preencher”. Libermann, mais tarde, teve igual ideia para o serviço apostólico dos seus missionários (R.V.E. 4 & 12). Na realidade, a nossa família religiosa tem para contar histórias inspiradoras acerca de circunscrições e confrades que incarnaram esta vivência do carisma espiritano na sua vida e trabalho. Individualmente, cada espiritano procura discernir e aproveitar o “momento de Deus”. Longe de arquitectar e realizar projectos pessoais, ele abandona-se ao que Deus lhe pede para realizar, através da Congregação. Cada confrade procura manter o equilíbrio entre os imperativos missionários e o indispensável sentimento de auto-realização. Na prática, disponibilidade para a missão equivale a docilidade ao Espírito Santo. Não surpreende que os Fundadores nos tenham incutido a devoção ao Espírito Santo. “Todos os estudantes terão devoção particular ao Espírito Santo, a quem estão dedicados de modo especial” (Reg. de Poullart des Places, art.1). Século e meio depois, Libermann faz-se eco do mesmo pensamento: “A Congregação está consagrada de modo especial ao Espírito Santo, autor e consumador de toda a santidade, e inspirador de toda a acção apostólica” (Regra de 1849, N.D. X, p. 568). A devoção ao Espírito Santo, na perspectiva de Libermann, é fonte de felicidade e manancial de amor. Escreve ele ao Sr. Douay, em 31.12.1841: “meu caro amigo, que felizes nós somos quando estamos sob o poder do Espírito Divino, sob total influência do Espírito do amor de Jesus. Tudo então dentro de nós se torna amor: todas as nossas acções, até o mais pequeno movimento da alma, as emoções e movimentos mais íntimos, tudo se torna amor”. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA Comentando Jo.3.8, brota-lhe espontâneamente esta oração: “Ó Espírito Divino, perante Vós quero ser leve pena, de modo que o Vosso sopro me possa levar aonde quiser, sem que eu Lhe oponha a mínima resistência”. Abertura, disponibilidade e docilidade ao Espírito Santo, são marcas de identidade da espiritualidade espiritana. Aquele que é enviado não pode fazer o que lhe apetecer! Mas, uma vez que se abandona à presença de Deus e à acção do Espírito Santo, será capaz de discernir, em conjunto com seus irmãos e irmãs e com a ajuda dos Superiores, aonde o Espírito o quer conduzir. A abertura de si próprio ao Espírito Santo gera esperança. Foi expressa esta certeza no Capítulo Geral de 2004, quando se afirmou que, “uma nova vida é sempre possível para quem está aberto ao Espírito Santo” (T.A. 5.4.1). Ser Espiritano é ser Enviado F oi ao longo dos anos que a dedicação à missão forjou a consciência espiritana. Ser Espiritano é ser enviado. Esta convicção está na base da nossa espiritualidade. Enquanto enviado, ninguém se pode considerar dono de si próprio. Em concreto, cabe a cada espiritano acolher um projecto que o ultrapassa: “a nossa Missão é a Sua”, escreve Libermann, referindo-se à missão do próprio Cristo (E.S. p. 374). Após 10 anos de experiência a seguir à fundação da Congregação do Sagrado Coração de Maria, e após ter passado por toda a espécie de dificuldades, o Fundador tem consciência de que se a Congregação tem algum valor, isso provém do seu apego ao Dono da seara, pois é Ele que nos envia em Missão. É esta V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA realidade do envio que nos torna “apóstolos”, cuja vocação só se realizará se tivermos uma vida de santidade. Ninguém nega ser necessário garantirmos alguma eficácia na nossa dedicação apostólica. Mas uma Congregação não procura resultados à maneira das empresas que fazem o cálculo de quanto renderá aquilo que investem.Com efeito, para tornar credível o anúncio da Boa Nova, Libermann propõe uma estratégia: a estratégia da santidade! Escrevia ele em 1851 ao Sr. Lairé: “A vossa principal pregação será uma vida de santidade …. Sede santos, encorajai todos os membros a sê-lo, pois é disso que depende a salvação das almas “ (N.D. XIII, p. 143). A Espiritualidade Espiritana tem a ver com Peregrinação P eregrino é quem se põe a caminho à procura de um bem maior que responda a uma grande necessidade interior. O ponto de partida dessa procura é a consciência da sua própria incapacidade, do vazio ou de certa fome espiritual. O peregrino parte com a convicção de realizar uma jornada de fé, mesmo se tal acontece no meio de duras circunstâncias, procurando obter bens que não perecem. Embora essa jornada implique frequentemente, mas nem sempre, uma deslocação geográfica, ela consiste mais numa viagem espiritual, caminhando por estradas que conduzem ao seu próprio coração. Nós, Espiritanos, empreendemos a nossa própria caminhada, mas ao mesmo tempo acompanhamos a caminhada daqueles a quem somos enviados. Os 300 anos da nossa história evidenciam maravilhosamente as obras do Espírito Santo, realizadas por nosso intermédio. Nesta peregrinação dos nossos empreendimentos missionários, o verdadeiro protagonista é sempre o Espírito Santo. O Capítulo da Torre d’Aguilha sintetizou lindamente o estilo da nossa missão quando deixou escrito o seguinte: “Conscientes de que o Espírito de Cristo já está presente e actua nas culturas a que somos enviados, a missão transforma-se numa peregrinação de mútuo enriquecimento, através da qual identificamos as cadeias que impedem a plena realização do Reino de Deus”. E V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA acrescenta o texto: “esta compreensão actual da missão exige dos missionários uma espiritualidade mais profunda e mais contemplativa” (T.A. 0.2.1). Peregrinos, experimentaremos uma certa Kénosis, um certo auto-esvaziamento, par nos identificarmos com aqueles a quem fomos enviados, e que, muitas vezes, nos mostrarão o caminho a seguir. Libermann recomendava aos seus missionários que “se fizessem negros com os Negros, procurando formá-los de maneira adequada e não à maneira dos europeus, antes deixando neles aquilo que deles é próprio”. Na actualidade, que significará para nós “fazer-se negro com os Negros?” A Espiritualidade Espiritana tem a ver com Diálogo F oi a seguir ao Vaticano II que a Congregação re-descobriu o diálogo inter-religioso como elemento importante da sua missão (R.V.E. 16.3). De certo modo, essa orientação foi confirmada pela iniciativa de João Paulo II em convocar para Assis um encontro de oração com os líderes das grandes religiões. Numa época em que a realidade sócio-cultural conduzia ao conceito de “choque de civilizações”, houve gente que preferiu seguir por outro caminho, dando prioridade ao encontro, ao diálogo, com um convite à colaboração, para a construção de um mundo onde, no mútuo respeito pelas diferenças, não se deixe de lado a dimensão espiritual da humanidade (T.A. p. 107). Os confrades que trabalham em regiões onde a população é maioritariamente islâmica, descobriram que a melhor forma de diálogo é o “diálogo de vida”, realizando conjuntamente tarefas em que todos estão de acordo. Esta forma de presença missionária não assenta em resultados tangíveis, como seja o número de baptismos ou casamentos. Esta presença desenvolve-se a longo termo, pois é essa a única maneira de construir relações duradouras de mútuo respeito. Tal presença missionária junto do povo torna o missionário capaz de estar humildemente ao serviço dele; com o povo, V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA toma consciência, agradecido, de que Deus faz avançar a dinâmica do Reino, mesmo na vida de quem acredita de outra maneira. Tal presença missionária alimenta-se com a oração e a Eucaristia, nas quais o Espiritano encontra o “Deus da Nova Aliança”, que não faz acepção de pessoas (Act. 10.35). Será que temos a paciência necessária para trabalhar e viver no meio de um povo que não partilha a nossa fé, num “diálogo de vida”, a longo termo? IV. “... A ANUNCIAR A BOA NOVA AOS POBRES....” A Espiritualidade Espiritana tem a ver com Serviço O Capítulo da Torre d’Aguilha (1.1.5) insistiu na ideia de que o serviço dos outros é uma dimensão central da vocação espiritana. Ora, o serviço dos outros também implica profundo respeito por eles. Na realidade, o respeito por quem quer que seja é requisito prévio para um serviço genuíno. Assim, Jesus recomenda-nos que haja uma revolução no nosso conceito de poder, erradicando dele todo o aspecto de individualismo, paternalismo e autoritarismo: “Eu estou no meio de vós como Aquele que serve”. A nossa Regra de Vida recordanos também que aquilo que possuímos se destina ao serviço dos outros, pois que está “ao serviço da nossa vida apostólica” (R.V.E. 72). Há que ser cauteloso neste ponto, dado que é fácil cair na justaposição de serviço com poder. As capacidades que a nossa formação e longa experiência de vida desenvolveram em nós podem ser úteis para o nosso trabalho com os pobres, mas podem também cegar-nos. É necessário ter sempre presentes as palavras de Cristo: “somos servos inúteis” (Lc. 17, 10). Trabalhando como missionários em 23 dos 42 países do mundo com maior carga de endividamento internacional, estamos presentes em terras onde abundam pobreza, miséria e doença, etc. Ora, o Papa Bento XVI ainda há pouco recomendou a quem V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA está em condições de ajudar: “tenham consciência de que agimos, não em virtude de uma superioridade ou eficiência pessoal maior , mas porque o Senhor nos concedeu esse dom” (Deus Caritas Est. 35). Como no situamos frente às pessoas a quem servimos? Ser Espiritano é tornar-se Servo dos Pobres e dos que Sofrem A pobreza de largas porções da população mundial é um mal endémico que apresenta muitas e variadas facetas. No passado, tal situação chocou numerosos fundadores de Congregações, levando-os a procurar respostas concretas para esse e outros problemas do seu tempo. O mesmo se diga de Poullart des Places, no início do século XVIII, em relação aos estudantes pobres que ele apoiou, e também do P. Libermann no século XIX, em relação às populações de raça negra. O Bispo Shanahan na Nigéria, o P. Laval na ilha Maurícia e o P. Brottier em Paris, não se escusaram a “ser tudo” para os pobres. Na nossa história, vários outros Espiritanos, por meios variados, se devotaram a aliviar o povo em situações de pobreza. Estavam junto dos pobres, e por isso, tomaram essa tarefa como parte integral do seu ministério pastoral, quer em paróquias, quer em obras de educação; vários confrades lançaram estruturas legalmente reconhecidas, com a única finalidade de dar dignidade, e consciência dela, a gente pobre 6. A experiência desses nossos confrades e de outros grandes servidores dos pobres levou-os, por vezes, a começar por prestar ajuda apenas no plano espiritual, mas bem depressa Temos em mente iniciativas de confrades, tais como CONCERN, SERVOL, WORLD MERCY, CEPAC, Kairos, Spirasi, Notel, Movimento de Defesa dos Favelados (Brasil), etc. Recordamos ainda o envolvimento de Espiritanos em ajuda e apoio a vítimas de situações de guerra (Nigéria na década de 1960, Etiópia e a crise alimentar na década de 1970, etc.). Assim foram salvas milhões de pessoas. Podiam citar-se mais exemplos, nossos e de outras Congregações que se inspiraram no exemplo espiritano. 6 V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA acrescentaram o plano social. Foi assim, de início, com o Orfanato de Auteuil, em Paris, quando o Abbé Roussel se dedicou a preparar órfãos para a 1ª comunhão, o que, nesse tempo, era meio para uma integração ao mesmo tempo eclesial e social. Roussel passou depois, dessa urgência inicial, para uma ajuda no sentido de preparar esses jovens para uma profissão, de forma a lhes assegurar melhores e mais dignas condições de vida mediante um salário, de modo a poderem conseguir uma melhor integração na sociedade. Todos sabemos como o nosso B. Daniel Brottier assumiu e levou avante, de maneira extraordinária, esse duplo objectivo, espiritual e social. Noutros casos, confrades houve que começaram por responder a um problema social dos pobres em necessidade, para depois avançarem também para uma resposta a necessidades de ordem espiritual. Para nós, o serviço dos pobres abraça sempre as duas dimensões. No mundo actual, em que belas e ricas fachadas escondem por vezes refugiados, pessoas desalojadas, pessoas traumatizadas pela guerra, vítimas de Sida, degradação ambiental e crescente desigualdade social e económica, os Espiritanos não podem deixar de sentir profunda compaixão por toda esta gente sofredora. A nossa Regra de Vida recorda-nos, com clareza, que o compromisso com os pobres é “parte constitutiva da nossa missão de evangelização” (R.V.E. 14). Os Fundadores, por outro lado, foram muito explícitos: discursos e homilias não bastam para travar a praga da pobreza e da miséria. Libermann deu orientações aos seus missionários para que procurassem ter, neste campo, respostas concretas: “procurarão obter para eles toda a ajuda e atenção que puderem, sem estarem a examinar se eles merecem ou não tal apoio” (N.D. X. p. 516). Na Regra de 1849, Libermann acrescenta: “... os membros... “prestarão aos pobres todo o serviço possível, mesmo se duro e desagradável, e farão isso com amabilidade e do fundo do coração” (ib. p. 516). Por isso mesmo, o sentido de serviço caracteriza todo o agir espiritano. Convidando os seus missionários de Dakar e V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA do Gabão a se comportarem para com a população do modo como os “servos se portam com os respectivos senhores” (N.D. IX, p.330), Libermann esclarece a motivação espiritual de todo e qualquer compromisso missionário. A Regra de 1849 volta a insistir: “consideramo-nos como seus servos, dedicando-lhes toda a nossa vida, em fidelidade aos desígnios do Divino Mestre” (N.D. X, p. 515). Nada disto é possível se não tivermos os “olhos fixos” em Jesus Cristo, fonte de todo o apostolado, Ele que “não veio para ser servido mas para servir” (Mc. 10.45). Será que, de facto, servimos os pobres com respeito, tratando-os como iguais a nós, sem paternalismo condescendente, ou evitamos os pobres porque também vimos de ambientes pobres? Justiça, Paz e Integridade da Criação E spiritanos que somos, cada vez mais nos estamos descobrindo e revendo no dinamismo original da nossa história. Para os seus filhos e filhas, Libermann afirmou: sereis “os advogados, o sustentáculo e os defensores dos fracos e dos pequenos, contra todos aqueles que os oprimem” (Regulamentos de 1849; N.D. X, 517; R.V.E. 14). Esse empenho é parte constitutiva da nossa identidade espiritana. Seria tragicamente incompleta a nossa missão em favor da humanidade sem a “libertação integral” do povo, sem a acção pela Justiça e pela Paz, e sem participação no desenvolvimento (R.V.E. 14). O Capítulo da Torre d’Aguilha afirma que “é a opção pelos pobres que marca a nossa diferença, numa sociedade donde são excluídos largos sectores da população”. (1.1.4). V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA A pobreza ainda é hoje o mais grave problema. Aquilo que mais mata no planeta é a fome. Estatísticas recentes mostram que 860 milhões de crianças vivem numa situação aflitiva, vítimas de uma enorme variedade de tragédias e abusos. Como Congregação, estamos presentes em muitas regiões do mundo que enfrentam enormes desafios. Temos de entrar na mobilização geral de luta contra a pobreza e a fome. A polarização entre o assim chamado Ocidente cristão e o mundo Islâmico, é hoje em dia um problema candente e global. Cabenos igualmente entrar na luta pela erradicação da Sida, colaborar com os promotores da paz e da reconciliação e ajudar a curar as feridas próprias de situações de pós-guerra. Para sermos eficientes, teremos de ser claros quanto às nossas opções e ao que é importante para nós. Sem dúvida, que uma “opção pelos pobres” tem enormes implicações no nosso estilo de vida, no lugar onde vivemos e nos trabalhos que assumimos. Fica sempre em aberto esta pergunta: No mundo actual, qual é o perfil próprio de um Espiritano? Onde está o nosso tesouro e onde está o nosso coração? Torre d’Aguilha recordou que Maynooth pedira a cada circunscrição que elaborasse o seu programa de Justiça e Paz (Maynooth 2.17; T.A. 3.2). Considerando o sem número de injustiças que afligem o mundo, uma acção nossa, global e comunitária, levar-nos-ia a uma maior estima da nossa identidade espiritana. A nível da Congregação, sentimos a necessidade de trabalhar em rede para que possamos melhor intervir ao lado dos sem voz e dos desfavorecidos. É corrente dizer-se que o trabalho de “lobbying”, em favor do bem dos pobres, é não somente um exercício de profecia cristã, como é também um elemento de espiritualidade! Na nossa sociedade sofisticada, todos os nosso esforços serão amplificados se trabalharmos em rede. Agir assim, é mostrar que a união faz a força. O Capítulo da Torre d’Aguilha reconheceu-o, ao dizer que “no nosso trabalho na V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA defesa dos pobres e marginalizados e na promoção dos seus direitos, é fundamental a colaboração com outros grupos e organizações (incluindo grupos eclesiais e ONG`s). É da maior importância o trabalho em rede (networking), o recurso ao “lobbying” e a defesa dos direitos humanos (T.A. 3.4). Foi por esse motivo que em Julho de 2005 nos juntamos a outras seis congregações missionárias, no projecto VIVAT. A partir de agora fazemos parte de uma forte cadeia mundial, que actua junto de governos nacionais, em favor de mudanças estruturais que melhorem a governação mundial e junto de Organizações das Nações Unidas em Nova Iorque e noutros lugares: Comissão dos Direitos Humanos em Genebra, Programa da ONU para a defesa do Ambiente em Nairobi. Como Congregação Missionária, poderemos assim fazer chegar, junto das instâncias onde se elaboram e tomam decisões, problemas experimentados no terreno, situações de injustiça e violação dos direitos humanos, vividos pelas pessoas com quem trabalhamos, dar sugestões, propor assuntos para reflexão, etc. A Espiritualidade Espiritana tem a ver com Solidariedade A solidariedade tem estado no centro da espiritualidade espiritana desde o princípio. Maynooth viu-a como essencial no nosso relacionamento com o povo a quem somos enviados, em especial se pobre, vulnerável ou abandonado; pôla também em relação com o nosso modo de viver o voto de pobreza. “Somos chamados a uma solidariedade activa com as populações entre as quais vivemos, particularmente os mais pobres, os mais fracos, os excluídos da sociedade” (Maynooth 2.2). Descrevemos o desenvolvimento do conceito e da prática da solidariedade sem o fechar em normas legislativas7. O Capítulo da Torre d`Aguilha aprofundou toda esta reflexão e foi mais longe ao afirmar que a solidariedade não é somente pôr-se ao lado dos pobres que sofrem, mas também estar ao lado dos nossos confrades. Qual o sentido de optar por um 7 Cf. Documento “Solidariedade e Autonomia”, Maynooth, 130, 138 V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA aspecto e negligenciar o outro? É chegado o tempo de uma maior solidariedade no interior da nossa “Grande Família”8. Quando o espírito de solidariedade é posto em prática na vida comunitária, torna-se normal a escuta, o trabalho em equipa, assim como as reuniões de coordenação, planificação, avaliação e discernimento. Sem solidariedade fraterna, corremos o risco do individualismo, do autoritarismo e do paternalismo na nossa acção pastoral (T.A. 1.1.5). A colaboração, sendo uma forma de encarar o nosso trabalho missionário, constitui simultaneamente uma fonte de alegria e uma grande oportunidade9. A actual realidade demográfica da nossa Congregação, com um número crescente de comunidades internacionais e inter-culturais, mostra bem que a solidariedade constitui, para cada um dos espiritanos, um grande desafio. Será que, nas nossas comunidades, a solidariedade fraterna é bloqueada pelo individualismo? V. O ESPIRITANO VIVE UNIDO NUM SÓ CORAÇÃO COM MARIA, MÃE DE JESUS (ACT. 1,14) V amos imaginar uma foto-montagem em vários planos. Na parte de trás, vemos a comunidade de Jerusalém, em oração, com Maria, todos esperando o dom do Espírito Santo (Act. 1.14). No plano da frente, estão doze homens – 11 estudantes e mais Poullart des Places, reunidos no domingo de Pentecostes de 1703 - ajoelhados aos pés da imagem de Nossa Senhora do Bom Sucesso (a chamada “Virgem Negra”, “Notre Dame de La Bonne Délivrance”). Nestes dois relatos, o dos Actos dos Apóstolos e o da fundação do Seminário do Espírito Santo, Nossa Senhora desempenha uma espécie de função catalizadora. É ela quem orienta o coração de todos na direcção Cf. Documento “Uma Grande Família ”, Torre d`Aguilha, 9 Cf. Documento “As Circunscrições mais Antigas: Alegrias e Desafios”, Torre d`Aguilha, 5.2 8 9 V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA do Espírito Santo, que, por sua vez inspira oração, conduz à acção e unifica a comunidade. A espiritualidade espiritana vê-se a si mesma neste elo que o Novo Testamento estabelece entre Maria e o Espírito Santo. Libermann prosseguirá neste caminho aberto por Poullart des Places. Na Regra de 1849, ele explica, com clareza, de que modo Maria é inspiradora da vida missionária: O Coração de Maria “é um modelo perfeito de fidelidade a todas as santas inspirações do Espírito Divino, tal como da prática interior das virtudes próprias da Vida Religiosa Apostólica” (N.D. X, p. 568). O que Libermann propõe é que o exemplo de Maria seja seguido pelos Espiritanos. Será que faltava a Libermann a experiência da presença benéfica e reconfortante de Maria? Em qualquer situação, das mais simples às mais complicadas, ele voltou-se sempre para Nossa Senhora: com Ela, tudo se tornava fácil. VI. A TRANSMISSÃO DO CARISMA ESPIRITANO O Capítulo da Torre d’Aguilha recordou-nos que, tanto na Congregação como na Igreja, o grande desafio da actualidade é a renovação do missionário. Pensamos não estar exagerando, ao afirmar que, presentemente, dentro da nossa Família Religiosa, existe uma grande sede por aquilo que nos faz ser Espiritanos. Os delegados ao Capítulo foram claramente sensíveis a esta necessidade, experimentada por muitos. Como Congregação, procurámos responder a esse desejo e necessidade com a criação, na Universidade Duquesne, de um Centro de Estudos Espiritanos. O Centro está nos seus inícios, mas tem dentro de si sementes que potenciam muitas possibilidades10. Chegou o momento de prepararmos uma nova geração de especialistas em Espiritualidade Espiritana. Precisamos de identificar confrades que se sintam atraídos pela mística dos Fundadores, apaixonados pelas nossas Fontes e pela Espiritualidade da Congregação, e que estejam dispostos a 10 Cf. o nº 141 de “Breves Notícias”, de Janeiro 2006. V IV ER A ESP IRITUAL IDADE ESP IRITANA investir tempo e energias para se especializarem neste campo. Estamos perante um desafio evidente: só poderemos partilhar e transmitir nosso legado espiritual, com a condição de haver quem o esteja incarnando no seu estilo de vida e de missão. Mas como poderá alguém incarná-lo, se não houver, em especial nas casas de Formação, quem esteja apto a apresentálo? A existência e preparação de tais especialistas recai sob a responsabilidade de todas e cada uma das Circunscrições. O compromisso e o investimento progressivo no desenvolvimento e transmissão efectiva da nossa herança espiritual aos Espiritanos e a outras pessoas interessadas é óbvio, se tivermos em conta a existência de alguns centros, já criados ou em perspectiva, voltados para a espiritualidade espiritana. Podemos citar: Ilha Maurícia, Brazzaville, Bagamoyo (Tanzânia), SIST (Nigéria), “Centre Libermann” em Saverne (França) e o CESM na Silva (Portugal). Estaremos de facto investindo no estudo da nossa herança espiritana e na sua transmissão, ao nível da nossa Comunidade e /ou Circunscrição?