Um gênio, uma guitarra de ouro e uma maldição

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Um gênio, uma guitarra de ouro e uma maldição
Estadão/Blogs - SP
17/10/2014 - 11:37
Um gênio, uma guitarra de ouro e uma maldição
Da Redação
Divulgação
Sérgio Dias, dos Mutantes, com a
Régulus, "a melhor guitarra do mundo",
idealizada por seu irmão mais velho,
Cláudio César Dias Baptista.
Em meados dos anos 60, ter uma guitarra de boa
qualidade era quase impossível. Claro, havia as Giannini,
as Del Vecchio, as Rei, as Phelpa, todas elas pioneiras e
hoje consideradas cult. Nenhuma delas, porém, era uma
Fender, uma Gibson, uma Gretsch ou uma Mosrite, que a
garotada dos “conjuntos” via na capa de discos dos
Beach Boys, Gerry and the Pacemakers, dos Animals, dos
Ventures ou em fotos dos Beatles.
O acesso a esses instrumentos de primeira linha era
restrito a poucos, muito poucos. Só os abonados (os ricos,
de acordo com a gíria da época) ou os filhinhos de papai
(esses ainda estão por aí) tinham esse privilégio. Nada, porém, impediu que bons músicos se
formassem e segurassem, com louvor, a bandeira do iê-iê-iê nacional e de uma ainda incipiente
Jovem Guarda. Foi por esse tempo que, em uma daquelas muitas ladeiras da Pompeia, um
garoto genial chamado Cláudio Cesar Dias Baptista, se propôs a criar a melhor guitarra do
mundo, segundo sua própria avaliação, a Régulus Raphael, a guitarra de ouro.
O início - O ano era 1964 ou 1965 e Cláudio, seu irmão Arnaldo Baptista e os amigos Raphael
Vilardi e Roberto Loyola formaram o que na época chamava-se “conjunto”. Por aqui, banda
ainda era aquele aglomerado de músicos com cornetas, tubas e bumbos, que tocavam marchas
marciais ou animavam algum picadeiro.
Nascia os Thunders, que pouco depois virou os Wooden Faces, ambos com um pomposo The
na frente. Talvez não tenham gostado muito desses nomes, tanto que, tempos depois, surgia o
Six Sided Rockers. Six porque o irmão mais novo de Cláudio, Sérgio Baptista, e uma menina
loira de nome gringo, Rita Lee, juntaram-se a eles. Veio , O Konjunto, que virou O’Seis, assim
mesmo, com um sutil sotaque irlandês.
“Crânios” - Mas para se chegar à guitarra de ouro e à maldição citada no título deste texto é
preciso voltar um pouco mais no tempo, aos tempos de escola, ao Instituto de Educação
Caetano de Campos, célebre escola estadual paulistana, antes do sucateamento do ensino
público, que funcionava na Praça da República. Era muito difícil entrar no Caetano de Campos.
Lá estudavam os “crânios” de São Paulo.
Cláudio Cesar estudava lá, afinal, era um “crânio”. Filho da pianista e concertista Clarisse Leite
e do escritor César Dias Baptista, Cláudio aprendeu a tocar piano com a mãe. Além da música,
se punha a estudar obstinadamente desenho, pintura, arquitetura, astronomia e eletrônica. No
Caetano de Campos conheceu Raphael Vilardi, outro apaixonado por astronomia, aviões,
planetas do Sistema Solar e livros de ficção científica. Juntos fizeram um curso de construção
de telescópios e chegaram a dirigir a Associação Amadora de Astronomia de São Paulo. Os
dois “crânios” do Caetano de Campos iriam ainda dar vazão aos seus pendores musicais.
Neste ponto, já é possível retomar a narrativa mais acima, que falava sobre a formação da
banda (ou “conjunto”) que teve vários nomes.
Insatisfeito com a guitarra que havia comprado, Raphael, sabedor das habilidades de Cláudio
César, pediu que ele lhe fizesse a melhor guitarra do mundo. Desafio aceito, já que o objetivo
era obter um som não apenas semelhante, mas superior ao das demais guitarras do planeta,
Cláudio pôs-se a trabalhar.
Pequeno rei - Aos poucos foi construindo duas guitarras simultaneamente: um protótipo e um
instrumento principal. No protótipo, Cláudio César fazia experimentos, testes. Se tudo
funcionasse bem, ele fazia o mesmo na guitarra principal. Depois de um tempo, estava pronta a
Régulus Raphael, entregue a quem a encomendou. Régulus, em latim, significa pequeno rei. É
também uma estrela, a mais brilhante da constelação de Leão, seu coração. Não havia nada
que se parecesse com ela.
Sua construção era revolucionária, sua forma era inspirada nos lendários violinos Stradivarius.
Seus componentes eletrônicos, dos captadores aos efeitos eletrônicos incorporados ao corpo
semi-acústico, era únicos, revolucionários. Seu interior era folheado a ouro para evitar chiados
e ruídos que pudessem poluir sua sonoridade. Seus botões eram banhados a ouro. Era a
guitarra de ouro. Em seu tampo posterior, uma placa banhada a ouro com uma enigmática
inscrição. Uma maldição. Dizia:
“Que todo aquele que desrespeitar a integridade deste instrumento, procurar ou conseguir
possuí-lo ilicitamente, ou que dele fizer comentários difamatórios, construir ou tentar construir
uma cópia sua, não sendo seu legítimo criador, enfim, que não se mantiver na condição de
mero observador submisso em relação ao mesmo, seja perseguido pelas forças do Mal até que
a elas pertença total e eternamente. E que o instrumento retorne intacto a seu legítimo
possuidor, indicado por aquele que o construiu”.
“Serginho” - Nessa época, 1966, o “conjunto” de vários nomes deu lugar à maior banda de rock
do Brasil, os Mutantes. Nas mãos de Sérgio Baptista, o “Serginho dos Mutantes”, a mãe de
todas as guitarras. Não a Régulus Raphael, mas apenas a Régulus ou Régulus Sérgio Dias.
Explico: o protótipo de Cláudio César ficou tão bom quanto o modelo principal, dado a Raphael
Vilardi. Os Mutantes estavam hipnotizando roqueiros e tropicalistas. Acompanharam Gilberto
Gil em Domingo no Parque, no Festival da Música Popular Brasileira, na TV Record, em 1967.
Sérgio precisava de um bom instrumento, o melhor do mundo e, acima de tudo, blindado por
uma maldição. Ganhou a guitarra-protótipo de presente do irmão Cláudio, revestiu-a de ouro e
revolucionou o som da época.
Por uma dessas ironias que cercam o rock, a Régulus de Sérgio Dias foi roubada. Ocorre que a
maldição fez efeito, a ponto de o instrumento ter sido devolvido, de maneira misteriosa, a seu
legítimo dono. Hoje, Sérgio investe musicalmente em uma nova guitarra de ouro, a Kier, com a
qual tem tocado nos concertos da banda. Eventualmente, a Régulus também é utilizada, mas a
velha senhora dourada, já marcada pelo tempo, bem que merece um descanso de rainha.
Depois de deixar de lado a eletrônica e a construção de instrumentos musicais, Cláudio Dias
fixou-se em Rio das Ostras (RJ), onde se dedica exclusivamente a escrever livros e a um
projeto literário, uma saga interplanetária intitulada Géa. Seus preceitos estão disponíveis na
internet.
No vídeo a seguir, um pouco do som dos Mutantes no Midem (Marché International du Disque et
de L’édition Musicale) de 1969, em Cannes, na França. Serginho toca com sua Régulus:
Divulgação
Cláudio (esq.), idealizador e construtor da
"melhor guitarra do mundo" e Sérgio Dias,
seu irmão, em fotos recentes.
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O jovem Cláudio César (acima e abaixo),
na Pompeia, exibe o desenvolvimento de
seu trabalho na construção da Régulus
Raphael e de seu protótipo.
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Arnaldo Baptista (esq.), Rita Lee e
Serginho Dias, com sua guitarra Régulus:
os Mutantes em meados dos anos 60.
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Claúdio César, criador da guitarra de
ouro, vive hoje em Rio das Ostras, no Rio
de Janeiro.
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