Edição 157 • Setembro 2013

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Edição 157 • Setembro 2013
Edição 157 • Setembro 2013
S umário
Foto: Estudio Casa 8
Capa – O desafio de
8 aplicar a jurisprudência
6
Editorial – Liberdade, sim!
Bandidagem, não!
40
Vitaliciedade é garantia da própria
cidadania
14
Considerações sobre o federalismo brasileiro
42
21
O Judiciário e o interesse social na
recuperação das áreas de risco
Limitação temporal dos efeitos penais e
os maus antecedentes
44
24
O STF e a violação aos princípios
constitucionais
Algumas questões acerca do inventário
negativo de bens no Direito brasileiro
50
26
A boa-fé e a tutela da confiança
Jurisdição constitucional como
fundamento para o efetivo acesso à Justiça
30
A cada um, o seu
56
Destituição do poder familiar
34
Segurança jurídica no mercado
de energia elétrica
60
Dom Quixote – Agência de Redes para
Juventude
39
Os tribunais do século XXI
64
Plebiscito seria a solução?
Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF
Foto: Fecomercio
2
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
12
Reformas constitucionais e a
crise do governo
18
Reflexões sobre a Ação Penal 470
Edição 157 • Setembro de 2013 • Capa: Estudio Casa 8
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2013 Setembro | Justiça & Cidadania 5
E ditorial
Foto: Sandra Fado
Liberdade, sim!
Bandidagem, não!
O
“A praça é do povo, como
o céu é do condor”
Castro Alves
6
primado da liberdade, cantado em verso
e prosa em todos os tempos pelo mundo
afora, vem sendo enxovalhado nos últimos
meses por corjas de baderneiros que se desmerecem pelo desmedido abuso das criminosas ações
que praticam sob a égide da liberdade, abusando desse
incontestável privilégio que constitui para a raça humana
um dos mais preciosos dogmas.
Repugna pela hediondez os nefastos e bárbaros atos
de vandalismo, com depredações de fachadas de agencias
bancárias, de lojas e concessionárias de automóveis, lojas
de grifes, shopping centers, sedes de governo e tudo
mais que encontram na sua caminhada de barbárie e de
desordens inomináveis.
Esse movimento arruaceiro e fascista, denominado
Black Bloc, que surgiu, inopinadamente, aproveitandose das grandes passeatas de protestos ocorridos a partir
de junho último, nos quais se infiltraram com objetivos
e diretivas que ainda se desconhecem, tem conseguido,
com os diversos atos praticados, provocar a repressão
policial e criar um clima de baderna contra a ordem
pública.
Os integrantes, que usam máscaras para não serem
identificados e acionados judicialmente por seus atos de
vandalismo, visam – em uma hipótese dedutiva – provocar
um clima para desmoralizar tudo o que simboliza o
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
sistema capitalista, em uma estratégia para enfraquecer
os sistemas político e econômico objetivando vantagens
anárquicas ou fascistas.
Diante dos fatos que ocorrem, torna-se estranhável a
leniência e a omissão das autoridades de segurança pública
ao não agirem com a devida prudência e destreza, além
de não conseguirem, até agora, qualificar e distinguir no
“ronco das ruas” os protestos legítimos dos inconformados
e as indignações procedentes de atos inconsequentes de
terrorismo.
Os inadmissíveis atos de bandidagem protagonizados
acintosamente por mascarados, como vistos constan­
temente na televisão e em fotos nos jornais, refletem essa
inaceitável omissão das autoridades policiais, incompatível
com a obrigação do Estado de Direito que se caracteriza
pela primazia da lei e da segurança jurídica, e cujas
obrigações não abrigam qualquer argumento político
ou ideológico que justifique a impunidade de qualquer
que ameace fisicamente, agrida moralmente, incendeie,
destrua e propague a insegurança, o medo e o terror, como,
lamentavelmente, vem ocorrendo.
Diante do que vem acontecendo, o momento é
propício para a tomada de atitudes rigorosas e soluções
urgentes. A condescendência torna-se criminosa e atenta
contra a ordem pública. Os absurdos fatos ocorridos e
divulgados na imprensa e na televisão, como a imagem
de um bandido mascarado de pé na tribuna do Plenário,
ameaçando publicamente a autoridade do presidente da
Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, obrigando a
suspensão da sessão legislativa, constitui um vergonhoso,
inconcebível e inqualificável opróbio que desmoraliza, de
forma infamante, a Casa Legislativa do Rio de Janeiro.
Neste momento, em que a Nação se defronta com
essas corjas de criminosos e agentes da confusão – sejam
eles fascistas, anarquistas ou o que forem –, na tentativa
infame de se contraporem ao Estado Democrático de
Direito que o Brasil vivencia, a tolerância é zero e todos os
meios de reação do poder público deverão ser dispostos
para reprimir as hordas bárbaras que afrontarem o País.
O preço da liberdade, conquistada com a queda da
ditadura militar, foi alto e demasiado sacrificante para a
sociedade. Por isso, não podemos, em absoluto, permitir
que venhamos a retroceder.
Basta de leniência e omissão !
Orpheu Santos Salles
Editor
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 7
Foto: Estudio Casa 8
C apa, por Ada Caperuto
O desafio de aplicar a
jurisprudência
Este é principal ponto apontado em entrevista por Paulo Dias de Moura quando
questionado sobre como será sua missão como novo ministro do STJ. Ele acaba
de tomar posse no cargo, ao lado de Regina Helena Costa e Rogério Schietti
Cruz. Confira o que ele tem a dizer sobre esse e outros temas.
E
m 28 de agosto, o Superior Tribunal de
Justiça (STJ) oficializou a posse de três novos
ministros. São eles: o desembargador Paulo
Dias de Moura, do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo; a juíza Regina Helena Costa, do
Tribunal Regional Federal da 3a Região, e o procurador
Rogério Schietti Machado Cruz, do Ministério Público
do Distrito Federal. A nomeação, feita pela Presidenta
Dilma Rousseff, foi publicada no Diário Oficial da União
em 30 de julho.
Regina Helena Costa possui mestrado e doutorado
em Direito do Estado, com concentração na área de
Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo (PUC-SP). Possui experiência nas áreas
de Direito Tributário e Direito Administrativo. Por
concurso, tornou-se magistrada federal em 1991 e, em
2003, passou a integrar o TRF da 3a Região, sediado em
São Paulo. Por sua vez, Rogério Schietti Machado Cruz,
do Distrito Federal, é bacharel em Direito pelo Centro de
Ensino Unificado de Brasília, mestre e doutor em Direito
Processual Penal pela Universidade de São Paulo. Atuou
como advogado de 1985 a 1987 e foi promotor de Justiça
no Ministério Público do Distrito Federal, até tomar
posse como procurador, cargo que ocupou de 2003 até a
data de sua posse no STJ.
8
“O principal desafio é manter o
objetivo que gerou a nomeação para
o Superior Tribunal de Justiça, que é
a aplicação da jurisprudência, e isso
implica, naturalmente, em maior
celeridade dos processos, na maior
segurança das questões jurídicas,
o que, em última análise, significa
dizer que nós estamos adimplindo
a dignidade humana, atendendo
à necessidade do jurisdicionado,
daquele que está procurando a
solução da sua demanda.”
Paulo Dias de Moura, ministro do STJ
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 9
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Foto: SCO/STJ
Nesta edição, a revista Justiça & Cidadania destaca
a entrevista com o Ministro Paulo Moura, natural do
município de Santos, no litoral sul paulista, com 60 anos
recém-completados. Nossa reportagem conversou com
o Ministro enquanto ele se preparava para a mudança
para a Capital Federal, exatamente após sua despedida
do TJSP, onde atuava desde 1983, quando, aos 30 anos,
ingressou por meio de concurso na magistratura.
Ocupando a vaga destinada a desembargadores da
Justiça estadual, aberta com a aposentadoria do Ministro
Massami Uyeda, Paulo Moura é graduado pela Faculdade
Católica de Direito de Santos, possui especialização pela
Universidade de Guarulhos, mestrado e doutorado em
Direito pela PUC-SP.
Foi com “uma alegria imensa no coração” que o
novo ministro do STJ disse ter recebido a notícia de
sua indicação, embora afirme que o cargo no Tribunal
Superior não era exatamente um objetivo de vida. “Nunca
pensei que seria indicado, mas também não deixei de
considerar que isso um dia pudesse vir a acontecer,
mesmo não sendo um objetivo de vida”, contou.
Questionado sobre os principais desafios que
deverá enfrentar como ministro do STJ, Paulo Moura
sintetiza: “O principal desafio é manter o objetivo que
gerou a nomeação para o Superior Tribunal de Justiça,
que é a aplicação da jurisprudência, e isso implica,
naturalmente, em maior celeridade dos processos, na
maior segurança das questões jurídicas, o que, em última
análise, significa dizer que nós estamos adimplindo
a dignidade humana, atendendo à necessidade do
jurisdicionado, daquele que está procurando a solução
da sua demanda”, declara.
O Magistrado também se manifestou sobre uma das
questões mais debatidas pela mídia na atualidade: a busca
de soluções, pelo Poder Judiciário, para os potenciais
problemas que desaguam na lentidão da Justiça. Paulo
Moura prefere não se pronunciar sobre o tema de uma
maneira genérica, apontando esta ou aquela questão
estrutural ou de gestão no Judiciário brasileiro. Ao
contrário, prefere, de modo coerente, falar sobre a realidade
que conhece e que vivenciou nos últimos 30 anos. “Eu
respondo pela minha instituição e acho que o anteprojeto
do Código do Processo Civil está trazendo um viés novo de
celeridade processual, que são as hipóteses de conciliação
e mediação, de soluções alternativas ao litígio. Isso vem
ao encontro da resolução no 125 do Conselho Nacional de
Justiça, de 2010. Ou seja, buscar a alternativa pacífica da
lide, e não mais a solução da sentença. O caminho pela
conversa, pelo diálogo. Acho que aí nós temos um grande
caminho a percorrer”, afirma.
Para o Ministro, essa seria a melhor resposta à
complexa problemática que envolve as soluções mais
ágeis para, por exemplo, reduzir os volumes de processos
que, ano após ano, chegam aos tribunais. “Não se deseja
mais a solução adjudicada. Nós sabemos que todo caso
tem um drama dentro dele, outras questões que precisam
ser solucionadas. E é pela conciliação ou pela mediação
que você tem essa amplitude da solução da lide, o que
resolve muito mais do que simplesmente o caso posto.
De outro lado, a gente também não vê descumprimento
de acordo – são raríssimas as hipóteses nesse sentido. Ou
seja, as pessoas se satisfazem com as soluções que elas
mesmas deram para o caso”, avalia Paulo Moura.
Ele também opinou sobre as reformas de seis
Códigos legais brasileiros que tramitam no Congresso
– o Comercial, o Penal, o de Processo Penal, o de
Processo Civil, o de Direito do Consumidor e o
Eleitoral. Questionado sobre a avaliação pessoal acerca
da necessidade de mudanças nesses códigos e qual deles
destacaria como o de maior urgência de atualização, o
Ministro respondeu que é difícil apontar prioridades:
“Todas são urgentes; toda legislação moderna que vem
para ajudar, para melhorar a vida do cidadão, para que ele
possa exercer com amplitude a sua cidadania, é urgente.
Tudo deveria ser para ontem. Talvez o legislador saiba o
momento certo de cada uma, mas eu não sei responder”.
No viés específico da reforma eleitoral, ele também
prefere transferir a responsabilidade para o Legislativo,
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
nesse caso quando a pergunta se refere ao financiamento
público de campanhas. “Vou dizer exatamente o que
respondi na sabatina: algo precisa ser feito, mas nós
não temos o poder de dizer o quê tem de ser feito. Nós
podemos influenciar, mas o foro competente para dizer
sobre isso, o único que existe, é o Legislativo – ele é quem
tem de decidir essa questão”, sintetiza.
Ainda nesse âmbito do conflito entre Judiciário e
Legislativo, recentemente o ministro do Supremo Tribunal
Federal Luis Roberto Barroso afirmou que a “intervenção
do Judiciário no Legislativo deve ser exceção, e não regra”.
Para Paulo Moura, a afirmação do colega do STF é algo
que os representantes do Poder Judiciário vêm repetindo
desde, pelo menos, Aristóteles – o filósofo grego que viveu
por volta de 380 a.C.. “Nós não queremos intervenção, e,
sim, a tripartição dos poderes na sua mais pura exegese,
na sua mais pura interpretação. Não queremos nenhuma
interferência. Eles só se sobrepõem quando alguma
coisa desborda da legalidade, e aí é a hora da atuação do
Judiciário. Fora disso, não”, disse ele, citando exemplos
corriqueiros desse “desborde” nas muitas e muitas questões
tributárias e previdenciárias que estão no dia a dia das
decisões do Judiciário.
Vale mencionar que na sabatina na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, realizada em
25 de junho, com a participação de 16 senadores, o
novo ministro do STJ também falou sobre temas como
a PEC 37 – derrubada no Congresso naquela mesma
noite – e a redução da maioridade penal, sobre o que
se posicionou contrariamente, afirmando que isso
“poderia criar novos problemas”. O magistrado também
respondeu questionamentos sobre a reforma política e
as manifestações populares, então em seu auge: “São
legítimas e fazem parte do regime democrático. O
problema são os atos de vandalismo. Isso, nenhum de
nós quer.”
Advogado militante de 1977 a 1983, Paulo Moura
foi juiz substituto nos municípios paulistas de Franca,
Teodoro Sampaio, Fernandópolis e Santo André até se
tornar juiz titular na Capital. Foi promovido ao cargo
de desembargador do TJSP em 2005, com assento na
11a Câmara de Direito Privado. Ele também atuou na
docência, como professor da Faculdade de Direito
da Universidade Ibirapuera, da Faculdade de Direito
do Instituto Grande ABC de Educação e Ensino, da
Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus,
da Fundação Armando Álvares Penteado, do Centro
Universitário Padre Anchieta, da Universidade de Guarulhos
e da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo. É,
ainda, autor dos livros Inconstitucionalidades da Lei do
Divórcio (Julex, 1982) e Compromisso de compra e venda
(Juarez de Oliveira, 2002).
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Foto: Arquivo pessoal
Reformas constitucionais
e a crise do governo
Membro do Conselho Editorial
Ives Gandra da Silva Martins Professor emérito das Universidades Mackenzie, UNIFMU, UNIFIEO, UNIP e CIEE
H
á cinco reformas necessárias para diminuir o
custo do Brasil e voltar o país a ter competitividade, a saber: a política, a administrativa, a
trabalhista, a previdenciária e a do Judiciário.
Todas as manifestações dos últimos tempos, em que as
pessoas sabem o que não querem, mas não sabem o que
querem, e o que pensam querer, não sabem como fazer,
são a prova inequívoca de que há algo que não vai bem, no
governo e no país.
A maioria do povo que vai às ruas pede transparência,
honestidade no trato da coisa pública e reformas. Abstraio
os vândalos, que deveriam ser detidos, de imediato, sendolhes aplicada a lei penal vigente.
Tanto o governo, como o Congresso, não perceberam
a mensagem ou fingiram não perceber. A Presidente
propôs um plebiscito que o povo não pediu. O Congresso
criou uma Comissão de Reforma Política sem consultar
a sociedade. O resultado esperado foi, nas pesquisas
posteriores a essas iniciativas, o repúdio da opinião
pública, com idênticos índices de repulsa, antes e após a
realização das mesmas.
Haveria necessidade de uma reforma administrativa
para reduzir o peso da adiposa e esclerosada máquina pú­
blica, a começar no âmbito federal. Uma reforma tributária
para eliminar a guerra fiscal de estados e municípios e para
simplificar o sistema tributário também seria imprescin­
dível. A Comissão do Senado de que participei – eram 13
especialistas – propôs 12 anteprojetos de emendas constitu­
cionais, leis complementares, ordinárias e resoluções do
Senado que jazem, em berço esplêndido, nos armários do
Congresso. E, ainda, de rigor uma reforma trabalhista para
nivelar o país às economias mais competitivas do planeta,
assim como a reforma previdenciária – já em andamento –,
12
para equalizar os cidadãos de primeira categoria (aposen­
tadorias integrais – servidores públicos) e de segunda
categoria (cidadãos comuns – dez salários-mínimos no
máximo), em patamar que não viesse a implodir o sistema. A
reforma do Judiciário é outra medida que se impõe, a começar
pela exigência de que todos os assessores de ministros,
que auxiliam na elaboração dos votos, sejam concursados
para essa função, de preferência juízes. Não deveriam ser
escolhidos livremente, algumas vezes sem a qualificação
necessária ou sem independência, por pertencerem à
Procuradoria da Fazenda Nacional e às procuradorias das
Fazendas Estaduais, o que compromete a imparcialidade,
quando União ou estados são partes nos processos.
Quanto à reforma política, na Comissão da
OAB-São Paulo que presido e que é constituída pelos
seguintes juristas: Alberto Rollo, Alexandre de Moraes,
Almino Affonso, André Ramos Tavares, Antonio Carlos
Rodrigues do Amaral, Cláudio Lembo, Dalmo Dallari,
Dirceo Torrecillas, José Afonso da Silva, Maria Garcia,
Ney Prado, Paulo de Barros Carvalho e Samantha Meyer
Pflug, estamos estudando, a curto prazo, questões como o
voto distrital, o financiamento de campanha, a reeleição,
o número de partidos, as coligações e o plebiscito ou
referendo. E, a longo prazo, bicameralismo ou unica­
meralismo, parlamentarismo ou presidencialismo.
Todas essas matérias exigem reflexão de especialistas
e de governantes, e, à evidência, por sua complexidade,
não podem ser objeto de plebiscito, no máximo podendo
aceitar-se um referendo.
O certo, todavia, é que, mais do que as reformas, há
necessidade de mudanças na política econômica do país.
Ninguém discute se a Presidente Dilma é uma mulher
honesta e trabalhadora. Todavia, seu estilo autoritário de
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
conduzir o país torna seu ministério não um conselho,
mas um grupo de ouvintes de suas ordens. Sem nomes
de expressão, como nos ministérios do passado, são
seus colaboradores comportados executores, que jamais
contrariam as determinações da comandante.
Talvez, o fato de ter, no passado, participado da luta
armada, em movimento que, algumas vezes, assumiu
facetas terroristas – com assassinato de inocentes em
atentados a bomba, em shoppings e supermercados –, tenha
incutido, no seu estilo de liderança, essa característica
temperamental, detalhista e impositiva.
Creio que possivelmente, por esse seu passado, é que
a Presidente se sinta tão atraída pelas posturas de seus
colegas bolivarianos: o falecido Chavez, Maduro, Morales,
Corrêa e Cristina, todos aprendizes de ditadores.
Tanto é assim, que permitiu a entrada da Venezuela
no Mercosul – apesar de esse país não ter aceito, à
época, a totalidade do acervo normativo do Tratado –
e excluiu o Paraguai, que, na deposição do Presidente
Lugo, apenas cumpriu o que determinava o artigo 225
de sua Constituição – ou seja, o afastamento por mau
desempenho, em processo límpido, claro, com apoio
popular e sem qualquer uso de força, permitindo,
inclusive, que o deposto, logo em seguida, concorresse
ao Senado. O governo desse país democrático não sofreu,
nas ruas de suas principais cidades, grandes contestações
por parte da sociedade, nem queda de popularidade,
como a Presidente Dilma tem experimentado no Brasil.
No Paraguai, não se controla o Judiciário como na
Venezuela, que não permite sequer recontagem de votos,
em uma eleição em que a ínfima diferença de votos a
favor do candidato bolivariano eleito, justificaria que
fosse feita, como ocorre nas verdadeiras democracias.
O certo é que a Presidente Dilma, em virtude de suas
simpatias bolivarianas, passou a seguir a política de seus
colegas, tornando-se acólita de Cristina, Maduro, Morales e
Corrêa. E começa a colher os mesmos frutos, ou seja, baixo
PIB, alta inflação, descontrole cambial, protestos populares
e perda de competitividade internacional por força da
má condução da economia, amarrada pelo Mercosul,
impedida de fazer acordos internacionais, aceitando todos
os desaforos econômicos de seus parceiros, violadores
permanentes das regras do Tratado de Assunção.
No seu estilo autoritário, investiu no consumo, e não
no desenvolvimento empresarial, gerando inflação de
demanda, no momento em que estimulou a baixa de juros.
Quando Irving Fischer definiu que a teoria do juro
é determinada pela oportunidade de investir contra a
impaciência de gastar, quis mostrar que, quando se baixam
os juros e estimula-se o consumo, a inflação é decorrência.
E o mero consumo, sem investimentos em tecnologia e na
indústria, tem vida curta.
Não sem razão, o retrocesso econômico do Brasil, nestes
dois anos e meio do governo Dilma, foi notório, com a
agravante de, prisioneira de seus colegas bolivarianos, ter
feito o Brasil perder a autonomia e a liberdade na celebração
de acordos bilaterais, que lhe permitiriam melhorar não só
a performance da balança comercial, como, pelo menos,
reduzir o dantesco “déficit” do balanço de pagamentos.
No modelo bolivariano, a máquina governamental
cresce e sufoca o segmento privado, gerando pressão
inflacionária que, segundo Steven Webb, foi o principal
fator da hiperinflação da República de Weimar.
Ora, a única forma de combater a inflação com
redução de juros seria reduzir as despesas de custeio da
máquina administrativa, algo que, no modelo bolivariano,
é impossível e, no governo Dilma, inaceitável. Tanto que
tem 39 ministérios...
Nesse quadro em que o PIB decresce, a inflação
cresce, o câmbio se descontrola, a máquina administrativa
desperdiça, a balança comercial gera déficits e as contas
externas se descompassam, causa espécie que a Presidente
pretenda manter-se fiel aos ideais dos regimes bolivarianos
e continue a não perceber que está levando o país a um
fantástico retrocesso, sendo mais conduzida por seus
parceiros do Mercosul do que pelos interesses do Brasil.
Como cidadão que considera a Presidente Dilma
uma mulher honesta e trabalhadora, gostaria que tivesse
humildade de raciocinar e, analisando o fracasso de
sua política econômica, decidisse, definitivamente,
liberá-la das amarras ideológicas e passasse a cuidar dos
verdadeiros interesses nacionais, que não são, necessaria­
mente, aqueles acalentados pelos seus amigos, aprendizes
de ditadores. E que, para o bem do Brasil, mudasse o
rumo de seu governo.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 13
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Considerações sobre o
federalismo brasileiro
Enrique Ricardo Lewandowski
E
Membro do Conselho Editorial
Ministro do Supremo Tribunal Federal
xistem basicamente duas formas de Estado, do
ponto de vista estrutural: os Estados unitários
e os Estados compostos. Os primeiros apresentam um único centro de impulsão política e
governamental, ou seja, não possuem divisões internas.
As circunscrições territoriais em que se dividem são, no
máximo, dotadas de autonomia administrativa, como na
França, por exemplo. Nesse tipo de Estado, os cidadãos
submetem-se a um só governo e a uma só lei.
Essa estrutura, em geral, é adotada em Estados de
pequenas dimensões – seja do ponto de vista demográfico,
seja do territorial – e, ainda, naqueles que apresentam
uma relativa homogeneidade étnica ou cultural.
Já os Estados compostos – e aqui serão examinados
apenas os federais – subdividem-se em unidades política
e administrativamente autônomas. Eles resultam,
como regra, da união de dois ou mais Estados, ou,
excepcionalmente, do desmembramento de Estados
unitários, como ocorreu no caso brasileiro.
A federação é um fenômeno novo historicamente.
Surgiu da união provisória das treze ex-colônias britânicas
na América do Norte, que se transformaram em Estados
soberanos depois de 1776. Após se libertarem do jugo
colonial, elas se associaram definitivamente, mediante a
adição de uma constituição comum, em 1787, momento
em que surgiu um novo Estado, a partir da fusão dos
entes políticos que a subscreveram.
Não se confunde com uma confederação, que é
uma união precária de Estados, para fins econômicos
14
ou militares, e que tem como base jurídica um tratado
de direito internacional. Uma federação (termo que
vem do latim foedus, foederisi) consiste em uma união
permanente e indissolúvel de entes políticos (estados,
províncias, Länder, cantões, etc.), não admite a secessão,
e tem como elo uma constituição comum.
Trata-se de uma forma de Estado que assegura a
seus membros as vantagens da unidade, preservando
os benefícios da diversidade. Tendo em conta tais
características, depois da experiência norte-americana,
vários países adotaram a fórmula federativa. Em geral,
países de grande expressão territorial e demográfica
ou aqueles dotados de considerável diversidade étnica,
cultural, religiosa, etc.
Inicialmente, a estrutura federal foi escolhida como
fórmula para melhor administrar a diversidade, dentro
da unidade. Mas, depois, ela passou a ser adotada como
um instrumento para o aperfeiçoamento da democracia,
ensejando não só a desconcentração do poder político,
como também uma maior proximidade do povo com os
governantes.
Apesar das múltiplas diferenças entre os vários
Estados federais, todos eles asseguram aos entes políticos
que os integram pelo menos quatro prerrogativas básicas:
(i) autonomia política e administrativa; (ii) uma esfera
de competências privativa; (iii) um conjunto de rendas
próprias; e (iv) a participação nas decisões da União
(comumente por meio do Senado). É importante
sublinhar, aqui, que as autonomias política e administrativa
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
e o exercício de competências próprias – na realidade,
encargos – nada significam sem a atribuição de rendas
suficientes.
O Brasil, como já se disse acima, adotou a estrutura
federal na Constituição de 1891, quando se substituiu
a monarquia pela república, inspirando-se os seus
elaboradores no modelo desenvolvido nos Estados
Unidos da América. A federação brasileira, porém,
segundo os especialistas, padece de um “pecado original”:
em vez de ter nascido, como nos EUA, de uma união de
Estados soberanos, surgiu a partir do desmembramento
de um Estado unitário. Com efeito, os atuais estados – na
verdade, antigas províncias imperiais, despidas de poder
político e de autonomia – tiveram de contentar-se, em
1891, com as competências e as rendas que lhes foram
então atribuídas.
Mas é interessante notar que a federação brasileira,
historicamente, passou por um “movimento pendular”.
Passou por momentos de enorme concentração de
competências e rendas ao nível da União e outros de
grande desconcentração de poderes em favor dos estados
e municípios.
De fato, quando se adotou tal modelo em nossa primeira
Constituição republicana, o federalismo brasileiro apresentou tamanho grau de desconcentração que alguns políticos
e intelectuais temeram o esfacelamento do país. Alguns
estados autodenominavam-se “soberanos”, legislavam sobre
comércio interestadual, celebravam tratados internacionais,
mantinham legações diplomáticas, contraíam dívidas externas sem autorização do Congresso Nacional, etc.
Com a Reforma Constitucional de 1926, no entanto,
o pêndulo federativo oscilou no sentido da centralização,
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 15
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
ampliando-se os poderes de intervenção da União nos
estados, para colocar termo aos abusos neles verifi­
cados. E, com a Revolução Modernizadora de 1930,
o federalismo brasileiro aprofundou esse movimento
centrípeto, pois o governo central concentrou todos os
poderes em suas mãos, passando a governar os estados
por meio de interventores federais.
Por força, sobretudo, da Revolução Constitucionalista
de 1932, que eclodiu em São Paulo, promulgou-se a
Constituição de 1934, que retornou, em linhas gerais,
ao regime anterior à 1930 no que tange à autonomia dos
estados. Mas ela subsistiu por apenas três anos, revogada
que foi pela Carta imposta ao povo por Getúlio Vargas
em 1937.
Essa Carta instituiu o denominado “Estado Novo”,
inspirado no fascismo europeu, permitindo que Vargas
governasse mediante decretos e por intermédio de
interventores nomeados para os estados. Esse regime
autoritário durou até 1946, quando se promulgou quiçá
a mais democrática das constituições brasileiras. Ela
não apenas restaurou a autonomia dos entes federados,
como também restabeleceu o equilíbrio entre os poderes
e promoveu a eleição direta para todos os cargos da
república.
16
Com o golpe político-militar de 1964, o pêndulo do
federalismo voltou a oscilar no sentido da centralização.
A Carta de 1967 e a EC no 1/69 levaram a uma
extraordinária centralização, concentrando, na prática,
todos os poderes nas mãos da União. Atribuiu-se a ela
a competência para legislar sobre quase todo o direito
material e adjetivo, inclusive por meio de decretos-leis.
Ademais, governadores, senadores “biônicos”, prefeitos das capitais, de estâncias turísticas e de municípios
considerados de “segurança nacional” eram indicados
indiretamente, por processos espúrios. E, da renda nacional, apenas algumas migalhas eram destinadas aos
estados e municípios, que foram reduzidos à penúria extrema.
Com o processo de redemocratização do país, que
culminou com a adoção da Constituição de 1988, o
movimento pendular moveu-se novamente no sentido da
descentralização. Entre as mudanças mais significativas
por ela introduzidas, figura a ampliação da competência
concorrente dos estados e do Distrito Federal. Outra foi
a elevação do município à categoria de ente federativo
(art. 1o da CF), conferindo-lhe a faculdade para elaborar
a própria Lei Orgânica. Além disso, redistribuiu-se o
“bolo tributário” nacional, incrementando-se as receitas
dos entes federados, quer pela atribuição de novos
impostos, quer pelo aumento de sua fatia nos “fundos de
participação” destinados à partilha de tributos.
A partir do governo Fernando Henrique Cardoso,
contudo, verificou-se um novo movimento de centra­
lização em favor da União, sobretudo com as reformas
previdenciária e administrativa, que retiraram a capa­
cidade dos estados de legislar sobre tais matérias. O
processo continuou no governo Lula, com a reforma
do Judiciário, que criou, entre outras novidades, o
Conselho Nacional da Justiça e as súmulas vinculantes,
e reduziu as competências dos Judiciários estaduais.
Além disso, ampliou-se a competência da União de criar
“contribuições sociais”, cuja receita não é partilhada pelos
entes federados.
O que fazer diante disso? É claro que ninguém vai
imaginar que se possa voltar ao “federalismo dual”
que vigorava no século XVIII, nos Estados Unidos,
caracterizado pela existência de duas esferas estanques
de competências e rendas – uma federal e outra estadual.
É que não se pode ignorar que se instaurou, em todos
os estados federais, o chamado “federalismo cooperativo”
ou de “integração”. Neste, não obstante sejam as
competências e rendas compartilhadas em certa medida
entre a União, os estados e os municípios, o planejamento,
sobretudo no campo da economia e das finanças, opera a
partir do centro, refletindo o crescente intervencionismo
governamental nos mais diversos setores da vida social,
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
imprescindível, hoje, para enfrentar os desafios de um
mundo globalizado e plural.
Mas é evidente que alguma coisa precisa ser feita para
não nos transformarmos em um Estado unitário de fato.
Ou, na melhor das hipóteses, em um Estado Regional – à
semelhança da Itália e da Espanha – no qual se concede
às distintas regiões, subordinadas ao governo central,
uma modestíssima autonomia. Daí os movimentos
separatistas que se registram no norte italiano, cuja
população, economicamente afluente, deseja trilhar
caminhos próprios, e os que se desenvolvem entre os
bascos e catalães, na península ibérica, os quais, ciosos
de suas tradições multisseculares, pretendem alçar voos
independentes.
Vale lembrar que uma das chaves do sucesso da União
Europeia, que caminha, segundo alguns, para um Estado
Federal – não obstante a momentânea crise econômica
por que passa atualmente –, resulta da adoção de dois
princípios fundamentais: o da subsidiariedade e o da
proporcionalidade. Consoante o primeiro, o ente político
maior deve deixar para o menor tudo aquilo que este
puder fazer com maior economia e eficácia. De acordo
com o segundo, é preciso, sempre, respeitar uma rigorosa
adequação entre meios e fins.
Entre nós, o resgate do princípio federativo passa pela
valorização da chamada “competência residual” dos estados,
consagrada no artigo 25, § 1o, da Constituição Federal:
“São reservadas aos Estados as competências que não lhes
sejam vedadas por esta Constituição”. Essa competência
nos vem da tradição norte-americana segundo a qual as
treze ex-colônias britânicas, transformadas em Estados, ao
se unirem, entregaram à União apenas algumas das rendas
e competências que possuíam originalmente, mantendo
as demais. Não se ignora que o rol de competências
enumeradas à União (arts. 21 e 22 da CF) é muito vasto, mas
é preciso descobrir novas searas normativas que possam
ser trilhadas pelos estados.
Depois, cumpre explorar ao máximo as “competências
concorrentes” previstas no art. 24 da Constituição
vigente, impedindo que a União ocupe todos os espaços
legislativos, usurpando a competência dos estados
e do Distrito Federal nesse setor. Afinal, o § 1o do
art. 24 estabelece, com todas as letras, que, “no âmbito da
legislação concorrente, a competência da União limita-se
a estabelecer normas gerais”. E mais: o § 3o consigna que,
“inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados
exercerão a competência legislativa plena, para atender
às suas peculiaridades”.
No Supremo Tribunal Federal, considerada a sua
atual composição, já há uma visível tendência no sentido
do fortalecimento do federalismo, prestigiando-se a
autonomia dos estados e dos municípios, a partir de
“A tarefa de fortalecer o
federalismo brasileiro, todavia,
não é, evidentemente, uma
tarefa restrita à Suprema Corte.
Ela diz respeito, também,
aos Judiciários Estaduais, às
Assembleias Legislativas e
às Câmaras Municipais, bem
assim à sociedade em geral,
que devem resgatar o espaço
perdido nesse campo.”
inúmeras decisões, especialmente nas áreas da saúde, do
meio ambiente e do consumidor.
A tarefa de fortalecer o federalismo brasileiro, todavia,
não é, evidentemente, uma tarefa restrita à Suprema Corte.
Ela diz respeito, também, aos Judiciários Estaduais, às
Assembleias Legislativas e às Câmaras Municipais, bem
assim à sociedade em geral, que devem resgatar o espaço
perdido nesse campo.
Enfim, para recuperar as competências e rendas dos
entes federados, em outras palavras, para resgatar o
prestígio e o poder dos estados e municípios, é preciso
uma grande dose de vontade política e, sobretudo, de
audácia. Sim, porque, como dizia o imortal Goethe:
“Existe gênio, poder e mágica na audácia”.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 17
Reflexões sobre a Ação Penal 470
“Sem reforma política tudo continuará como sempre”
Luís Roberto Barroso
Membro do Conselho Editorial
Ministro do Supremo Tribunal Federal
Introdução ao voto do ministro Luis Roberto
Barroso na Ação Penal 470
O pensamento esposado pelo ministro Luís
Roberto Barroso neste seu didático e bem formulado
artigo, demonstra em síntese as aprimoradas reflexões,
sobre a necessidade premente de urgentes modificações
que terão de surgir para o fortalecimento cívico da
sociedade e das instituições republicanas.
As cotidianas transgressões imorais, anti-éticas
e criminosas praticadas, a miúdo, por políticos
desprovidos de compostura e desavisados da irres­
ponsa­bilidade com que conduzem sua vida pública,
produzem essa fauna nauseabunda que, no caso, derivou para o crime do “Mensalão”.
As palavras de incentivo à moralidade e aos
bons costumes esculpidas no artigo do recém e
benfazejo ministro do STF, refletem os anseios de
todos quantos se preocupam com um futuro melhor
para a Nação, consentâneo com a aspiração, o desejo
e a necessidade que temos de encontrar homens
e mulheres que, no exercício de cargos públicos,
possam transmitir para a sociedade exemplos de
abnegação, civismo, honestidade e bons propósitos.
Oxalá que os resultados punitivos da Ação Penal
470 sirvam de exemplo aos que descuram das obrigações e se aproveitam do múnus público para enriquecer, como profetizou com contundente e pejorativa
prédica, o ministro Ayres Britto, quando do julgamento
da corrupção que condenou o governador de Brasília:
“tem gente que sobe na vida para cometer baixaria”.
18
I Introdução
1. Por se tratar da minha primeira intervenção no
julgamento da Ação Penal 470, sinto-me no dever de
declinar algumas das minha pré-compreensões sobre o
tema. A interpretação e a aplicação do Direito não é uma
atividade mecânica nem comporta precisão matemática.
Como consequência, o ponto de observação do intérprete
e sua visão de mundo fazem diferença na construção dos
seus argumentos e nas escolhas que, com frequência,
precisam ser feitas. Por essa razão, considero um dever de
honestidade intelectual explicitar os fatores que influenciam
o meu modo de ver e pensar o caso em julgamento. E faço,
portanto, algumas breves reflexões institucionais.
Parte I – Algumas reflexões institucionais sobre a
Ação Penal 470
II A Ação Penal 470 e a necessidade de reforma
política
2. A sociedade brasileira está exausta do modo
como se faz política no país. A catarse representada
pelo julgamento da Ação Penal 470 é um dos muitos
sinais visíveis dessa fadiga institucional. Sintonizado
com esse sentimento, o julgamento dessa ação pelo
Supremo Tribunal Federal, mais do que a condenação
de pessoas, significou a condenação de um modelo
político, aí incluídos o sistema eleitoral e o sistema
partidário. A inquietação social pela qual tem passado
o Brasil nos últimos meses se deve, em parte relevante,
à incapacidade da política institucional de vocalizar os
anseios da sociedade.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Foto: Nelson Jr./SCO/STF
Nota do Editor
3. As principais características negativas do modelo
político brasileiro são: (i) o papel central do dinheiro,
como consequência do custo astronômico das campanhas;
(ii) a irrelevância programática dos partidos, que
funcionam como rótulos vazios para candidaturas, bem
como para a obtenção de recursos do fundo partidário e
uso do tempo de televisão; e (iii) um sistema eleitoral e
partidário que dificulta a formação de maiorias políticas
estáveis, impondo negociações caso a caso a cada votação
importante no Congresso Nacional. (Nada do que estou
dizendo é novidade ou desconhecido. Por ocasião da
minha sabatina, tive oportunidade de conversar com
as principais lideranças do Congresso, quando pude
constatar que essa percepção é geral, transpartidária).
4. Tome-se um exemplo emblemático. Uma
campanha para Deputado Federal em alguns estados
custa, em avaliação modesta, quatro milhões de reais.
O limite máximo de remuneração no serviço público é
um pouco inferior a vinte mil reais líquidos. De modo
que, em quatro anos de mandato (48 meses), o máximo
que um Deputado pode ganhar é inferior a um milhão
de reais. Basta fazer a conta para descobrir onde está o
problema. Com esses números, não há como a política
viver, estritamente, sob o signo do interesse público.
Ela se transforma em um negócio, uma busca voraz por
recursos públicos e privados. Nesse ambiente, proliferam
as mazelas do financiamento eleitoral não contabilizado,
as emendas orçamentárias para fins privados, a venda
de facilidades legislativas. Vale dizer: o modelo político
brasileiro produz uma ampla e quase inexorável
criminalização da política.
5. A conclusão a que se chega, inevitavelmente, é que
a imensa energia jurisdicional dispendida no julgamento
da AP 470 terá sido em vão se não forem tomadas
providências urgentes de reforma do modelo político,
tanto do sistema eleitoral quanto do sistema partidário.
Após o início do inquérito que resultou na AP 470 –
com toda a sua divulgação, cobertura e cobrança –, já
tornaram a ocorrer incontáveis casos de criminalidade
associada à maldição do financiamento eleitoral, à farra
das legendas de aluguel e às negociações para formação
de maiorias políticas que assegurem a governabilidade.
6. O país precisa, com urgência desesperada, de uma
reforma política. Não importa se feita pelo Congresso
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 19
Nacional ou se, por deliberação dele, mediante participação
popular direta. Mas é preciso fazê-la, com os propósitos
enunciados: barateamento das eleições, autenticidade
partidária e formação de maiorias políticas consistentes.
Ninguém deve supor que os costumes políticos serão
regenerados com direito penal, repressão e prisões. É
preciso mudar o modelo político, com energia criativa,
visão de futuro e compromissos com o país e sua gente.
7. Minha primeira reflexão: sem reforma política,
tudo continuará como sempre foi. A distinção será apenas
entre os que foram pegos e outros tantos que não foram.
III A Ação Penal 470 e outros casos de corrupção
8. A Ação Penal 470 apurou fatos que teriam custado
ao país, em termos de dinheiro público, cerca de 150
milhões de reais. De parte o custo pecuniário, não se deve
descurar do custo moral e institucional representado por
dinheiros não contabilizados, compra de apoio político
e malfeitos diversos. É impossível exagerar a gravidade
e o caráter pernicioso de tudo o que aconteceu. Porém, a
bem da verdade, é no mínimo questionável a afirmação
de se tratar do maior escândalo político da história do
país. Talvez o que se possa afirmar, sem margem de erro,
é que foi o mais investigado de todos, seja pelo Ministério
Público, pelo Polícia Federal ou pela imprensa. Assim
como foi, também, o que teve a resposta mais contundente
do Poder Judiciário.
9. Deve-se celebrar a resposta institucional dada
ao episódio, como uma reação à aceitação social e à
impunidade de condutas contrárias à ética e à legislação.
Mas não se devem fechar os olhos ao fato de que o
chamado “Mensalão” não constituiu um evento isolado
na vida nacional, quer do ponto de vista quantitativo
(isto é, dos valores envolvidos), quer do ponto de
vista qualitativo (da posição hierárquica das pessoas
envolvidas). Justamente ao contrário, ele se insere em
uma tradição lamentável, que vem de longe. Nos últimos
tempos, com o despertar da cidadania e pela bênção
20
IV A Ação Penal 470 e a necessidade de mudanças
de atitudes privadas
12. Faço uma observação final: a sociedade brasileira
tem cobrado um choque de decência em muitas áreas
da vida pública. É preciso mesmo. Seria bom, por
igual, aproveitar essa energia cívica para a superação
de inúmeras práticas privadas que inibem o avanço
civilizatório. Das pequenas às grandes coisas. Por
exemplo: acabar com a cultura de cobrar preço distinto
com nota ou sem nota; não levar o cachorro para fazer
necessidades na praia, sabendo que pouco depois uma
criança irá brincar na mesma areia; não estacionar o
carro na calçada e obrigar o pedestre a caminhar pela
rua ou ultrapassar pelo acostamento, criando riscos e
obtendo vantagem indevida. Nas licitações, não fazer
combinações ilegítimas com outros participantes ou
fazer oferta de preço abaixo de custo para, em seguida,
exigir adicionais logo após obter o contrato. Para não
mencionar as obviedades: não dirigir embriagado, não
jogar lixo na rua e respeitar a fila. As instituições públicas
são um reflexo da sociedade. Não adianta achar que o
problema está sempre no outro e não viver o que se prega.
13. Uma terceira e última reflexão: cada um deveria
aproveitar este momento, visto como um ponto de inflexão,
e fazer a sua autocrítica, a sua própria reflexão pessoal, e
ver se não é o caso de promover em si a transformação que
deseja para o país e para o mundo.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Foto: Arquivo JC
“Minha primeira reflexão:
sem reforma política, tudo
continuará como sempre foi.
A distinção será apenas entre
os que foram pegos e outros
tantos que não foram.”
que são a liberdade de imprensa e a de expressão, tais
fatos passaram a se tornar conhecidos e repudiados pela
sociedade. E começam a ser punidos.
10. Em ligeiro esforço de memória, remontando
aos últimos vinte anos, é possível desfiar um rosário de
escândalos que custaram caro ao país. Também aqui,
custos pecuniário e moral. Em 1993, veio a público, para
espanto geral, o escândalo dos “Anões do Orçamento”,
que envolveu o desvio bilionário de recursos públicos
via emendas parlamentares à lei orçamentária. Em 1997,
o escândalo dos Títulos Públicos ou dos Precatórios
revelou um esquema que importou em perdas de
alguns bilhões para a Fazenda Pública. O escândalo da
construção do prédio do TRT em São Paulo, que veio
à tona em 1999, implicou em desvio de muitas dezenas
de milhões. O escândalo do Banestado, investigado em
2003, relacionou-se com a remessa fraudulenta para o
exterior de mais de dois bilhões de reais. A lista é longa e
pouco edificante.
11. Uma segunda reflexão: não existe corrupção do
PT, do PSDB ou do PMDB. Existe corrupção. Não há
corrupção melhor ou pior. Dos “nossos” ou dos “deles”.
Não há corrupção do bem. A corrupção é um mal em si e
não deve ser politizada.
O Judiciário e o interesse
social na recuperação das
áreas de risco
Helda Lima Meireles
N
Desembargadora do TJRJ
a defesa de interesses coletivos, existem diversas
ações em curso relativas à recuperação das
encostas situadas nas regiões que põem em
perigo centenas de pessoas em áreas com
risco geológico muito alto, segundo diversos inquéritos
civis instaurados e estudos perpetrados pelos órgãos
competentes.
Os diversos pedidos quanto a essa problemática, a
contrario sensu, não possuem dimensão amplíssima, como
se quer crer, e também não menos uma feição complexa e
genérica, mas, sim, demonstram a necessidade premente
da implementação de medidas reparatórias nas 120 ações
em tramitação e que estão bem delimitadas nos pedidos
até então apresentados pelo Ministério Público.
Aliás, nesses casos, a implantação dos recursos
públicos deve ser perpetrada de forma completa, efetiva,
e não ao bel-prazer dos governantes e governos que, em
omissão desarrazoada, prestigiam as obras de visualização
internacional, em detrimento daquelas que confeririam
aos seus cidadãos o mínimo de dignidade.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 21
Ora, efetivar plano de medidas de engenharia, geotecnia
e intervenção urbanística, nas áreas classificadas sob
ameaça de escorregamentos e deslizamentos, a fim de
reduzir a classificação de risco até o nível baixo; determinar
a obrigação de fazer, consistente na recuperação de toda a
extensão da área desmatada por meio da implementação
de programa de plantio de espécies nativas; determinar que
estado e município cumpram a sua obrigação de implantar
uma rede de saneamento básico nas comunidades, inclusive
evitando novas ocupações irregulares e desmatamento, são
medidas razoáveis, proporcionais e legais, e, sobretudo,
constitucionais. Não se trata de substituir-se o Judiciário ao
administrador na eleição de prioridades, métodos e prazos
para o atingimento dos objetivos públicos, e, sim, fazer
cumprir determinações legais (leis que afinal advêm do
Poder Legislativo, que detém a legitimidade para representar
os titulares do Poder – o povo).
Compete ao poder público instituir política de
desenvol­vimento urbano, voltada à garantia do bem-estar
dos seus habitantes, e não tratar com negligência relevante
problema social, qual seja, o abandono das regiões de baixa
renda. Portanto, não pode servir de justificativa a gestão
temerária da máquina pública para desamparar direitos
basilares do cidadão.
A Constituição de 1988 foi, de todas as Constituições
brasileiras, aquela que mais procurou inovar tecnicamente
em matéria de proteção aos direitos fundamentais e o fez
com um propósito definido, que se infere do conteúdo
de seus princípios e fundamentos, qual seja, a verdadeira
busca em termos definitivos de uma compatibilidade
do Estado social com o Estado de Direito, mediante a
introdução de novas garantias constitucionais, tanto do
campo objetivo como do subjetivo.
De fato, surge para os magistrados o dever de tomar
decisões que implementem políticas públicas, visando garantir o mínimo existencial, quando o Executivo se queda
inerte diante de sua função imposta no Estado Democrático de Direito.
Expoente no assunto relativo a políticas públicas e direitos
sociais, Gustavo Binenbojm ensina importante lição quanto à
necessidade de ser abandonada pela cultura jurídica a dicotomia entre atos administrativos vinculados e discricionários,
até mesmo porque atos discricionários não podem importar
em perpétua inércia do poder público na implementação
de políticas preventivas e repressivas, de molde a assegurar
a concretização de direitos difusos, coletivos e individuais
homogêneos garantidos pela Constituição Federal:
A discricionaridade deixa de ser um espaço de livre escolha
do administrador para se convolar em um resíduo de
legitimidade, a ser preenchido por procedimentos técnicos
e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com
vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão
22
administrativa. Com o incremento da incidência direta dos
princípios constitucionais sobre a atividade administrativa
e a entrada no Brasil da teoria dos conceitos jurídicos
indeterminados, abandona-se a tradicional dicotomia
entre ato vinculado e ato discricionário, passando-se a um
sistema de graus de vinculação à juridicidade;
(…) Assim, não há espaço decisório da Administração
que seja externo ao direito, nem tampouco nenhuma
margem decisória totalmente imune à incidência dos
princípios constitucionais (...) (BINENBOJM, Gustavo. A
constitucionalização do Direito Administrativo no Brasil: um
inventário de avanços e retrocessos. Revista Eletrônica sobre
a Reforma do Estado (RERE), Salvador: Instituto Brasileiro
de Direito Público, no 13, mar./abr./maio, 2008. Disponível
em: <http://www.direitodoestado.com/revista/RERE13-MAR%C7O-2007-GUSTAVO-BINENBOJM.PDF>.
Acesso em: 14 out. 2011).
O Judiciário não deve mais eximir-se do controle de
tais atos discricionários. Não se trata apenas de averiguar
formalmente aspectos de legalidade, pois todos os ramos
de direito, inclusive a seara administrativa, devem se
amoldar aos ditames constitucionais. É exatamente nessa
perspectiva que se aborda o princípio da juridicidade em
uma definição muito mais ampla e adequada do que o
conceito de ato administrativo discricionário nele inserido.
Sem dúvidas, o papel do Judiciário no tema não
é simples até para fins de determinar os limites dessa
sindicabilidade judicial em relação à atuação dos demais
poderes da República.
Os casos dessas áreas em situação de risco são apurados
por não poucos laudos produzidos, e todos eles por órgãos
públicos de natureza técnica: GEO-RIO, Defesa Civil,
Empresa Estadual de Obras Públicas, etc.
Não é possível ao administrador público eleger outra
providência que não agir para prevenir novas ocorrências
similares às que assistimos com grande pesar, diante do
risco de renovação de tragédias climáticas.
Na ausência de plano de atuação do poder público,
é forçoso o acolhimento das pretensões de toda uma
comunidade implorando pela solução de questões várias,
com respaldo em diversos pareceres técnicos.
Tanto o estado como o município tentam por meio da
realização de aerolevantamento, implantação de sistemas
de alarme e radar meteorológico, resolver problema de tal
magnitude. Não. Isso é pouco. Muito pouco. O escopo é
maior: obter uma efetiva e direta medida do poder público
perante o direito mais básico do cidadão: a vida.
A omissão do Executivo na condução das obras
mínimas necessárias ao rebaixamento do elevado risco de
escorregamento de terras, comprometendo centenas de
vidas humanas, autoriza a incursão do Poder Judiciário
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
como única possibilidade de salvaguarda da ordem
jurídica, nos seus mais relevantes vértices axiológicos.
Ademais, as intervenções não devem ser de caráter
genérico em todas as áreas de risco do município, mas, sim,
em uma atitude de prudência, elegendo aquelas em que
maiores são as probabilidades de deslizamento de terras.
O aforamento de diversas demandas precedeu-se,
ainda, de reuniões e audiências com as autoridades
públicas, sobretudo as da alçada municipal, o que ainda
mais afasta o caráter de intromissão no juízo discricionário
do administrador público. Ocorre que a municipalidade,
mesmo depois de se comprometer a tomar medidas,
permaneceu inerte, só procedendo ao mínimo dos
mínimos após a interposição de diversas ações.
Necessário que se relembre que foram liberados
para o Estado do Rio e municípios milhões de reais pelo
Ministério da Integração Nacional para a solução dos
problemas apresentados, a fim de que o poder público
local pudesse enfrentar as situações de emergência. Nessas
ações judiciais, normalmente, as alegações são de que
seria necessário dar primazia ao chamado “princípio da
reserva do possível”, porém, os entes públicos não logram,
em nenhum momento do curso processual, demonstrar a
insuficiência orçamentária alegada, inobservando, assim, a
súmula no 241 desta eg. Corte.
Há de se ter em mente que se trata de uma República
Federativa, em que vigora o Federalismo Cooperativo
efetivo entre os entes. O artigo 23, incisos I, VI, IX e
parágrafo único da CR, igualmente não afasta a obrigação
estatal. A missão, de fato, é constitucional.
Até mesmo em sede infraconstitucional, a Lei
no 12.340/10 prevê expressamente o dever do ente público
estatal de promover as obras de contenção necessárias ao
apoio dos cidadãos (art. 3o-A, § 2o, III e § 3o, e art. 3o-B).
E, mais recentemente, a Lei no 12.608/12, em seus artigos
2o, 3o e 4o, e seus incisos.
A mitigação dos riscos não é favor que é prestado pelo
poder público. É dever institucional imposto pela mais alta
norma do nosso país: a Constituição da República.
Há muito que o C. Supremo Tribunal Federal vem
ressaltando que:
O Poder Público – quando se abstém de cumprir total ou
parcialmente o dever de implementar políticas públicas
definidas no próprio texto constitucional – transgride,
com esse comportamento negativo, a própria integridade
da Lei Fundamental, estimulando, no âmbito do Estado,
o preocupante fenômeno da erosão da consciência
constitucional. Precedentes: ADI 1484-DF, Rel. Min.
Celso de Mello (...) A inércia estatal em adimplir as
imposições constitucionais traduz inaceitável gesto de
desprezo pela autoridade da Constituição e configura,
por isso mesmo, comportamento que deve ser evitado. É
“De fato, surge para os magistrados
o dever de tomar decisões que
implementem políticas públicas,
visando garantir o mínimo existencial,
quando o Executivo se queda inerte
diante de sua função imposta no
Estado Democrático de Direito.”
que nada se revela mais nocivo, perigoso, e ilegítimo do
que elaborar uma Constituição sem a vontade de fazê-la
cumprir integralmente, ou, então, de apenas executá-la com
o propósito subalterno de torná-la aplicável somente nos
pontos que se mostrarem ajustados à conveniência e aos
desígnios dos governantes, em detrimento dos interesses
maiores dos cidadãos. (ARE 639.337 AgR/SP, STF).
E, atualmente, outra não tem sido a interpretação dada
pelo órgão máximo de nosso Judiciário, intérprete da
Constituição da República, como se observa, por exemplo,
dos seguintes julgados: AI 835956-AgR, RE 700227-ED,
RE 563144-AgR-DF.
A urgência é premente e não pode ser relevada, sob
pena de continuarmos colocando em risco diversas vidas
humanas, como já dito.
A fixação e o valor das astreintes em caso de descumprimento são de extrema necessidade, claro que sem
excessos, com a determinação de um prazo razoável para
o seu cumprimento.
Não podemos olvidar a visita tão abençoada do Papa
Francisco ao Rio de Janeiro e, em especial, à comunidade
de Varginha, no Complexo de Manguinhos, na qual
ele pediu que as autoridades públicas ficassem mais
comprometidas com a justiça social.
As ruas por onde o Papa passou foram asfaltadas,
deixando o restante da comunidade esquecida.
Não adianta “maquiar” a cidade para eventos como a
Copa e as Olimpíadas se o povo clama pelo atendimento
de suas necessidades básicas.
Ninguém pode permanecer insensível às desigualdades
que ainda existem no mundo – repetindo as palavras do
Sumo Pontífice.
O Poder Judiciário não pode fechar os olhos ao apelo da
sociedade, que busca, na realidade, o direito mais fundamental
do cidadão – a dignidade –, até porque todos os magistrados
devem estar comprometidos com o seu relevante papel – a
busca da mais lídima Justiça e da igualdade social.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 23
Ophir Cavalcante Junior
Advogado
U
ma das matérias mais tormentosas à advocacia é fazer chegar ao Supremo Tribunal Federal recursos extraordinários em que se debate a existência de violação aos princípios da
legalidade, da ampla defesa, do devido processo legal, do
contraditório, dos limites da coisa julgada, da motivação
dos atos decisórios e da prestação jurisdicional por configurarem, via de regra, violações indiretas ou reflexas.1
Com efeito, em que pese reconhecer a dificuldade
da Suprema Corte em processar as centenas de recursos
extraordinários em que os recorrentes alegam a violação
de princípios e, até mesmo, de certo modo, reconhecer
que essa jurisprudência defensiva é correta na maioria
dos casos, creio que não se pode deixar de analisar cada
caso concreto sob pena de se negar a missão do próprio
Tribunal.
Realmente, há questões que apresentam relevância sob
o ponto de vista jurídico, com especial repercussão no
patrimônio daqueles que batem às portas da Corte, onde se
debatem situações que implicam em inequívocas violações
à norma constitucional, dentre as quais se podem destacar
os princípios da legalidade, do devido processo legal e da
segurança jurídica.
Detendo-nos um pouco mais, por exemplo, sobre
a “segurança jurídica”, é imperioso buscar em Gilmar
Mendes a exata dimensão da sua importância para o
próprio Estado de Direito:
Em verdade, a segurança jurídica, como subprincípio do
Estado de Direito, assume valor ímpar no sistema jurídico,
cabendo-lhe papel diferenciado na realização da própria
ideia de justiça material.2
De igual modo, Luís Roberto Barroso, festejado jurista
e agora ministro da Suprema Corte, igualmente defende
24
Foto: Gil Ferreira/SCO/STF
O STF e a violação aos
princípios constitucionais
a importância da segurança jurídica para se alcançar a
justiça material ao estabelecer que o desenvolvimento,
doutrinário e jurisprudencial, da expressão “segurança
jurídica” passou a designar um conjunto abrangente de
ideias e conteúdos, que incluem:
1. a existência de instituições estatais dotadas de poder e
garantias, assim como sujeitas ao princípio da legalidade;
2. a confiança nos atos do Poder Público, que se deverão
reger pela boa-fé e pela razoabilidade;
3. a estabilidade das relações jurídicas, manifestada na
durabilidade das normas, na anterioridade das leis em
relação aos fatos sobre os quais incidem e na conservação
de direitos em face da lei nova;
4. a previsibilidade dos comportamentos, tanto os que
devem ser seguidos como os que devem ser suportados;
5. a igualdade na lei e perante a lei, inclusive com soluções
isonômicas para situações idênticas ou próximas.3
E não para por aí:
Os atos praticados a cada dia pelo Poder Público, e entre
estes os atos jurisdicionais, além dos efeitos específicos
que se destinam a produzir, formam o que é percebido
como o padrão de conduta das autoridades estatais. Procurando adequar-se a esse padrão, os particulares praticam atos que repercutem sobre suas esferas de direitos e
obrigações, fiados na legítima expectativa de que o Estado
se comportará, no presente e no futuro, de forma coerente com sua postura no passado. Note-se, portanto, que o
dever de boa-fé é um limite jurídico à ação discricionária do poder estatal, que não pode simplesmente adotar
qualquer comportamento, encontrando-se vinculado a
agir de maneira uniforme diante de situações idênticas,
não surpreendendo o particular injustificadamente, em
desrespeito à segurança jurídica. (Grifo nosso.)
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
O padrão de conduta do Poder Público gera nos
particulares uma expectativa legítima de que a atuação
estatal não irá surpreendê-los, sendo certo que essa
expectativa não deve ser frustrada pelo Estado.
Reconhecendo a existência de situações específicas
em que não se pode aplicar essa jurisprudência defensiva,
a Suprema Corte vem admitindo o debate em torno da
violação ao artigo 5o, e seus incisos, da Constituição
Federal.4 Das decisões citadas, cabe destacar a ementa do
RE 398.407, da Relatoria do Ministro Marco Aurélio, que
bem sintetiza a mitigação que há de ser feita em cada caso
concreto:
Não se coaduna com a missão precípua do Supremo Tribunal
Federal, de guardião maior da Carta Política da República,
alçar a dogma a assertiva segundo a qual a violência à Lei
Básica, suficiente a impulsionar o extraordinário, há de ser
frontal e direta. Dois princípios dos mais caros na sociedade
democráticas e, por isso mesmo, contemplados pela Carta
de 1988, afastam esse enfoque, no que remetem, sempre, ao
exame do caso concreto, considerada a legislação ordinária
– os princípio da legalidade e do devido processo legal. (RE
398.407, DJ 12/12/2004, Rel. Min. Marco Aurélio).
Como bem sintetiza Teresa Arruda Alvim Wambier,
“há casos em que o excesso de regras em torno da
admissibilidade desses recursos (excepcionais) leva a
contrassensos. Exemplo disso é a regra no sentido de que
só cabe conhecer de ‘ofensa direta’ à Constituição Federal.”
E justifica:
Esta regra, em nosso entendimento, leva a um paradoxo:
a Constituição consagra certo princípio e se, pela sua
relevância, a lei ordinária o repete, por isso, o Tribunal, cuja
função é a de zelar pelo respeito à Constituição Federal,
abdica de examinar a questão.5
Bruno Dantas, doutor em Direito e ex-conselheiro do
CNJ, reconhece que:
(...) a aplicação da doutrina da ofensa direta não pode ser
automática e cega. Antes, o STF deve verificar, caso a caso,
se a gravidade da violação não é tal que acaba por infirmar
o próprio texto constitucional. Nessa linha de raciocínio,
o ponto fulcral, segundo pensamos, deveria residir na
intensidade da ofensa reflexa, inadmitindo-se aqueles
recursos em que se verificasse um baixo grau de intensidade.6
O critério do “grau de intensidade”, proposto por
Bruno Dantas, parece-me extremamente interessante
como standard básico para balizar a análise da violação a
princípios constitucionais, pois se trata de fazer respeitar
postulados essenciais ao Estado de Direito, como a
segurança jurídica, a legalidade e o devido processo legal,
que, quando negados, acabam por infirmar o próprio
texto constitucional, ou seja, se mantiver de forma cega a
jurisprudência defensiva da Corte, todas as vezes em que
for violado um princípio constitucional pela lei ou por
uma decisão judicial, o Supremo Tribunal Federal não
poderá proceder a correção dessa decisão, ficando atado,
como bem referiu o Min. Marco Aurélio no RE 236.233/
DF, a um “dogma sacrossanto dissonante da Constituição e
colocando em plano secundário a violência intermediada
pelo desrespeito a normas estritamente legais.”
Notas
1
“EMENTAS: 1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade.
Alegação de ofensa ao art. 5o, XXXV e LV, da Constituição da
República. Ofensa constitucional indireta. Decisão mantida. Agravo
regimental não provido. As alegações de desrespeito aos postulados da
legalidade, do devido processo legal, do contraditório, dos limites da
coisa julgada e da prestação jurisdicional, se dependentes de reexame
prévio de normas inferiores, podem configurar, quando muito,
situações de ofensa meramente reflexa ao texto da Constituição. 2.
RECURSO. Agravo. Regimental. Jurisprudência assentada sobre a
matéria. Caráter meramente abusivo. Litigância de má-fé. Imposição
de multa. Aplicação do art. 557, § 2o, c.c. arts. 14, II e III, e 17, VII,
do CPC. Quando abusiva a interposição de agravo, manifestamente
inadmissível ou infundado, deve o Tribunal condenar a agravante a
pagar multa ao agravado.” (AI-AgR 548172 PE, Relator: Ministro
Cezar Peluso. Julgamento: 27/11/2007).
No mesmo sentido: AI-AgR 643463 AM, Relator: Ministro Ricardo
Lewandowski. Julgamento: 2/10/2007; AgR-RE-245.580/PR, Relator:
Ministro Carlos Velloso, 2a Turma, in DJ de 8/3/2002).
2
MENDES, Gilmar. Direitos fundamentais e controle de constitucio­
nalidade. Estudos de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2012, p. 212.
3
BARROSO, Luís Roberto. Revista Eletrônica de Direito Processual. vol.
III. p. 2-17. Disponível em: <http://www.redp.com.br>.
4
RE 158.215-4/RS, 154.159/PR, 198.016-8/RJ, 398.407, 231.452/PR,
RE 163.301/AM.
5
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controles das decisões judiciais
por meio de recursos de estrito direito e ação rescisória. São Paulo: RT,
2001, p. 169-171.
6
DANTAS, Bruno. Repercussão geral. 3. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 183.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 25
José Geraldo Antonio
Desembargador do TJRJ
Princípios da boa-fé objetiva e tutela da confiança
na formação dos contratos – Interpretação dos atos
jurídicos sob a ótica do Código Civil vigente – A
cláusula geral do artigo 422 do Código Civil – Deveres
anexos – Preceito de ordem pública
partir da vigência do novo Código Civil, restaram superadas todas as discussões sobre a
imprescindibilidade da observância dos princípios éticos e morais (consubstanciados na
boa-fé objetiva e na confiança) na formação, na execução
e na conclusão dos negócios jurídicos.
Em conjugação aos limites à liberdade de
contratar estabelecidos no artigo 421 do Código Civil,
condicionando-os à função social do contrato, o artigo
422 do mesmo código erige os princípios da boa-fé
objetiva em preceito de ordem pública: “Os contratantes
são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boafé.”
Diante desse novo regramento principiológico do
direito obrigacional e dos contratos, todas as lições
doutrinárias até então ministradas e aceitas passaram a
exigir nova leitura.
A
Os princípios da função social e da boa-fé objetiva,
insculpidos nos artigos 421 e 422 do Código Civil, serão
os dois inexpugnáveis pilares de sustentação da teoria
26
Foto: Flávia Rodrigues/Amaerj
A boa-fé e a tutela da confiança
geral dos contratos, traduzindo necessário temperamento
dos valores clássicos da autonomia da vontade e da força
obrigatória. (SOUZA, Sylvio Capanema de. Comentários ao
novo Código Civil. v. VIII. São Paulo: Forense, 2004, p. XII).
A aplicação da cláusula geral inserida no artigo 422 do
Código Civil, consoante entendimento pací­fico na doutrina
e na jurisprudência, impõe ao juiz, na interpretação das
relações obrigacionais, a obser­vância dos princípios da
boa-fé objetiva, cujos pilares compreendem a lealdade e a
confiança entre os contratantes. Essa função interpretativa
dos contratos é fixada no art. 113 do C. Civil, enquanto
a função limitadora que a boa-fé impõe ao exercício
de um direito encontra abrigo no artigo 187 do mesmo
código. A terceira função exercida pela boa-fé objetiva,
segundo consagrado na doutrina, cuida dos denominados
deveres anexos, ínsitos a qualquer negócio jurídico e que
devem ser observados desde a fase pré-contratual e se
estendem à pós-contratual. Os deveres anexos, por serem
inerentes a todo negócio jurídico, não necessitam previsão
no instrumento negocial e se relacionam à lealdade e à
confiança entre os contratantes.
Tanto nas tratativas como na execução, bem como na
fase posterior de rescaldo do contrato já cumprido
(responsabilidade pós-obrigacional ou pós-contratual),
a boa-fé objetiva é fator basilar de interpretação.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Dessa forma, avalia-se sob a boa-fé objetiva tanto a
responsabilidade pré-contratual, como a responsabilidade
contratual e a pós-contratual. Em todas essas situações,
sobreleva-se a atividade do juiz na aplicação do Direito
ao caso concreto.” (VENOSA, Silvio de Salvo. Teoria geral
das obrigações e teoria geral dos contratos. 9. ed. São Paulo:
Atlas, 2009, p. 368-370).
Ao principio da boa-fé empresta-se, ainda, outro significado.
Para traduzir o interesse social de segurança das relações
jurídicas, diz-se, como está expresso no Código Civil alemão,
que as partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas.
Numa palavra, devem proceder com boa-fé. (...)
Além dos deveres principais, que constituem o núcleo da
relação contratual, há deveres não expressos cuja finalidade
é assegurar o perfeito cumprimento da prestação e a plena
satisfação dos interesses envolvidos no contrato. (...)
A boa-fé, enquanto fonte geradora de deveres, encontrase presente no artigo 422 do Código Civil. Não obstante o
dispositivo mencionar apenas a conclusão e a execução do
contrato, é certo que a boa-fé cria deveres anexos também
na fase pré-contratual.” (GOMES, Orlando. Contratos. 26.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.43-45).
No prisma da confiança, sua quebra caracteriza o
venire contra factum proprium que, segundo a doutrina
(Professor Cristiano Sobral. Princípio da boa-fé objetiva,
p.2), tem como requisitos:
• a existência de uma conduta anterior, relevante e eficaz;
• o exercício de um direito subjetivo pelo mesmo
sujeito que criou a situação litigiosa devido à contradição
existente entre as duas condutas;
• a identidade de sujeitos que se vinculam em ambas
as condutas;
• um dano ou, no mínimo, um potencial de dano a
partir da contradição.
O direito moderno não compactua com o venire contra
factum proprium, que se traduz como exercício de uma
posição jurídica em contradição com o comportamento
assumido anteriormente (MENEZES CORDEIRO, Da
Boa-fé no Direito Civil, 11/742).
Havendo real contradição entre dois comportamentos,
significando o segundo quebra injustificada da confiança
gerada pela prática do primeiro, em prejuízo da contraparte,
não é admissível dar eficácia à conduta posterior. (Resp. n.
95539-SP Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar).
A boa-fé nos negócios jurídicos impõe a aplicação da ideia
de confiança e responsabilidade, pelas quais, se uma das
partes com sua manifestação de vontade suscitou na outra
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 27
parte uma confiança, no sentido objetivamente atribuível à
dita declaração, esta parte não pode impugnar este sentido
e pretender que o negócio jurídico tenha outro sentido,
diverso daquele esperado razoavelmente pelo destinatário
da declaração. Isso quer dizer que as declarações de vontade
devem ser interpretadas conforme a confiança que hajam
suscitado de acordo com a boa-fé. (OLIVEIRA, J. M. Leoni
Lopes de. Novo Código Civil anotado – arts. 1o a 232. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 217-218).
Extrai-se dessas considerações legais, doutrinárias e
jurisprudencial que ao julgador se impõe, na interpretação
de qualquer negócio jurídico, a observância dos princípios
da boa-fé objetiva, neles acoplada a tutela de confiança.
Assim, não pode o julgador, na avaliação da relação
jurídica que lhe é submetida, descaracterizar a natureza
contratual do instrumento a ela correspondente, sem
observar aqueles princípios que alcançam, na função dos
deveres anexos, inclusive, a fase pré-contratual.
Na abordagem do prof. Arnaldo Wald sobre a matéria
na Revista Forense, vol. 386 – “Doutrina” –, o insigne
catedrático da Uerj comenta o princípio da confiança:
8. Na realidade, a boa-fé já era referida no Código Civil
de 1916, mas significava tão somente a ausência de má-fé,
ou seja, de dolo, da intenção de prejudicar. Atualmente, na
acepção que lhe dão o Código de 2002 e a jurisprudência,
constitui um dever de cooperação, de realização de
obrigações secundárias implícitas e, no fundo, de
atendimento à confiança depositada por um contratante
no outro, à expectativa gerada, pelo contrato, para as
partes que o firmaram, ou mesmo independentemente da
existência de convenção.
9. Verifica-se, assim, que ao dever de atuar de boa-fé que
se impõe a cada pessoa corresponde o direito de outrem
de ver realizada a sua expectativa, ou seja, de não ser
frustrada a confiança que depositou no co-contratante ou
em terceiro.
10. A inclusão da confiança entre os valores jurídicos
legalmente protegidos é fato relativamente novo, sendo
relevante especialmente no direito comercial e no direito
administrativo.
12. No Superior Tribunal de Justiça, a matéria foi tratada
várias vezes, em importantes acórdãos, especialmente a
partir de 1990, invocando-se tanto o respeito ao princípio
da confiança quanto ao devido processo legal substantivo,
ou, ainda, a vedação de “venire contra factum proprium”
como princípio geral do direito. Todos os casos tratam, na
realidade, do que se poderia denominar, com o prof. Atílio
Alterini, de “responsabilidade objetiva derivada da geração
de confiança”.
35. Pode-se afirmar assim que “a confiança exprime a
situação em que uma pessoa adere, em termos de atividade
28
ou de crença, a certas representações passadas, presentes
ou futuras, que tenha por efetivas”. A confiança contém,
evidentemente, um elemento ético da maior relevância,
podendo até afirmar-se que a recente jurisprudência
incorporou ao direito um valor que anteriormente era
simplesmente moral e não jurídico. Tanto assim que
se conclui que a confiança é protegida quando, da sua
preterição, resulte atentado ao dever de atuar de boa-fé ou
se concretize um abuso de direito.
36. A confiança legítima é também considerada criadora de
um direito subjetivo, fazendo prevalecer, em determinados
casos, a vontade declarada sobre a vontade real.
37. O que pode parecer estranho na responsabilidade
decorrente da frustração da confiança depositada numa
pessoa é que, em determinados casos, ela não pretendeu
obrigar-se, nem cometeu alguma falta, não tendo
necessariamente agido com culpa ou dolo, mas, não
obstante, tornou-se devedora ou responsável perante a
quem nela confiou. Há, todavia, uma condição básica e que
consiste no fato de ter o prejuízo decorrido da confiança
que inspirou o responsável, criando-se uma expectativa em
favor de outrem, que assim se torna credor no momento da
frustração que passa a sofrer.
38. É com base na confiança depositada em outrem que, em
certos casos, se valoriza a declaração unilateral de vontade,
que se justificam os efeitos do mandato aparente e que se
admite a revisão do contrato.
39. Na realidade, desloca-se, com essa nova fonte das
obrigações, o foco que o direito tinha em relação à própria
responsabilidade, vinculando-a tradicionalmente ao
comportamento do responsável, ou seja, do devedor. Já, no
caso de aplicação do princípio da confiança, enfatiza-se o
direito do credor à segurança, ou seja, ao cumprimento das
promessas por ele deduzidas do comportamento alheio em
virtude da relação de confiança.
40. Como bem afirma Jean Calais-Auloy, a proteção do
devedor não é esquecida, mas, no caso, passa após a do
credor. É aliás uma das tendências da evolução mais recente
da responsabilidade civil, a que nela vislumbra um dever de
garantir a segurança de pessoas ou bens.
41. Assim, ainda em meados do século passado, Georges
Ripert caracterizava a evolução da responsabilidade
civil como tendo ocorrido mediante uma mudança de
prisma. No capítulo intitulado “A distribuição dos riscos”
do seu livro sobre o regime democrático e o direito civil,
examinava a evolução que tinha ocorrido, partindo do
conceito de responsabilidade para chegar ao de reparação
e afirmando que:
O direito contemporâneo, por todas essas razões,
olha o lado da vítima e não o do autor. É a razão pela
qual o nosso direito atual tende a substituir a ideia de
responsabilidade pela reparação do dano.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Essas preleções sintetizam o pensamento doutrinário
moderno sobre a boa-fé e a tutela da confiança nas
relações obrigacionais. E diferente não é o entendimento
pretoriano sobre a questão aqui abordada, como o
demonstram os Enunciados do Centro de Estudos
Jurídicos do Conselho Nacional de Justiça:
– Enunciado 24: “Em virtude do princípio da boa-fé,
positivado no art. 422 do novo Código Civil, a violação
dos deveres anexos constitui espécie de inadimplemento,
independentemente de culpa.”
– Enunciado 25: “O art. 422 do Código Civil não inviabiliza
a aplicação, pelo julgador, do princípio da boa-fé nas fases
pré e pós-contratual.”
– Enunciado 26: “A cláusula geral contida no art. 422 do
novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando
necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé
objetiva, entendida como a exigência de comportamento
leal dos contratantes.”
– Enunciado 27: “Na interpretação da cláusula geral da
boa-fé, deve-se levar em conta o sistema do Código Civil e
as conexões sistemáticas com outros estatutos normativos e
fatores metajurídicos.”
– Enunciado 363: “Os princípios da probidade e da
confiança são de ordem pública, estando a parte lesada
somente obrigada a demonstrar a existência da violação.”
Conclusão
A nova ordem jurídica implantada com o vigente
Código Civil inseriu no direito das obrigações a eticidade
comportamental, estabelecendo os princípios da boa-fé
objetiva e da confiança como preceito de ordem pública,
vinculando-os ao poder de interpretação do julgador.
Tem-se, pois, mitigada a autonomia da vontade na formação
dos contratos e, via de consequência, a cláusula pacta sunt
servanda perde sua amplitude, por força da limitação da
liberdade de contratar submetida à função social estatuída
no artigo 421 e dos princípios éticos e morais consagrados
no artigo 422, ambos do vigente Código Civil brasileiro.
Destarte, à luz da nova ordem jurídica, tornou-se pacífico na doutrina e na jurisprudência que a boa-fé objetiva deve estar presente em todos os negócios jurídicos, e o
comportamento de lealdade e confiança exigido das partes
alcança a fase pré-contratual e se estende à pós-contratual.
De consequência, a violação desses princípios, insculpidos
no artigo 422 do Código Civil, obriga a parte inadimplente
a reparar patrimonialmente a parte prejudicada.
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Setembro | Justiça & Cidadania
29
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A cada um, o seu
José Geraldo da Fonseca
Membro do Conselho Editorial
Desembargador do TRT-1ª Região
ontrato de trabalho é um acordo tácito ou
escrito que corresponde à relação de emprego
e une o empregado (pessoa física) ao patrão
(pessoa física ou jurídica) em uma única relação
jurídica. Relação de emprego é uma relação de fato no qual
uma das partes (o patrão) está na posição jurídica de poder
exigir, e a outra (o empregado), na situação jurídica de ter
de obedecer. Esse contrato não tem conteúdo específico e
resume uma obrigação de fazer: prestar trabalho a outrem
sob subordinação e mediante salário.
Como todos os demais tipos de contrato, o
contrato de trabalho contém um feixe de atribuições
ligadas diretamente à atividade principal para a qual
o empregado é contratado e outro feixe de atividades
correlatas que complementam essa obrigação principal.
A doutrina costuma dizer que essas obrigações principais
constituem o “núcleo do contrato”; as correlatas ou
acessórias compõem as suas “obrigações periféricas”.
Em princípio — e porque o contrato de trabalho não
tem conteúdo específico —, o empregado se obriga a
prestar em favor do patrão as obrigações principais, que
estão no núcleo do seu contrato, e as correlatas, que estão
ao seu alcance e o completam1. Nem o empregado pode
se recusar a cumpri-las nem o patrão pode exigir dele
o cumprimento de funções que não estejam no rol de
atividades complementares ou acessórias das obrigações
principais.
Se, por exemplo, uma pessoa é contratada para
trabalhar em uma casa de família como babá, no núcleo
30
Foto: Rafaela Fnseca
C
do seu contrato de trabalho está a obrigação de zelar
pela criança, mas está também no rol de suas ocupações
correlatas ou acessórias arrumar o quarto do bebê, dar-lhe
refeições ou remédios, ou arrumar os brinquedos no
lugar próprio enquanto o bebê dorme. Deve ocupar-se de
todas as demais tarefas que complementem a principal,
que é cuidar do bem-estar da criança, mas não tem
nenhuma obrigação de preparar a comida dos viventes
da casa, lavar ou passar o enxoval da família, ou cuidar
da piscina, por exemplo. Essas atividades domésticas
não são correlatas às de babá e não complementam a
obrigação principal que constitui o núcleo desse contrato
de trabalho doméstico. Integram um novo núcleo de
atividades que seriam próprias de um outro tipo de
trabalho doméstico que não pode ser executado na
mesma jornada de trabalho da babá.
Dou outro exemplo: não constitui infração ao
contrato de trabalho o fato de uma empresa de ônibus
exigir dos seus motoristas que abasteçam o veículo
e calibrem os pneus antes de sair, ou que controlem a
lotação dos veículos e efetuem a cobrança dos bilhetes
de viagem dos passageiros que embarcam fora do ponto
inicial. Todas essas atividades são periféricas àquela que
constitui o núcleo da obrigação do motorista – a direção
do veículo.
Tanto no caso da doméstica quanto no do motorista,
não há fundamento legal para que se obrigue o patrão a
pagar aos empregados dois salários, isto é, o de babá e de
arrumadeira para o caso da doméstica, ou de motorista e
de cobrador para o caso dos motoristas de ônibus.
A lei não proíbe que patrões e empregados domésticos
combinem pagamento extra para uma ou outra função
que não esteja no núcleo do contrato doméstico, assim
como não veda que empresas de ônibus e motoristas
ajustem pagamento de comissão sobre o total das
passagens vendidas no percurso ou salário acima do piso
normativo para compensar o trabalho extra. Mas, se as
tarefas são correlatas à obrigação que está no núcleo do
contrato de trabalho, e devem ser cumpridas na mesma
jornada de trabalho, somente haverá direito a dois
salários quando houver previsão expressa nas normas
coletivas da categoria ou nos regulamentos da empresa,
ou resultar de costume ou de acordo escrito ou tácito
entre os empregados e os patrões.
A lei trabalhista é omissa2.
Notas
1
2
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
CLT, art. 456.
E. no 129/TST.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 31
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Distante apenas 39km da capital do Rio de Janeiro, Itaboraí
é hoje a grande oportunidade de excelentes negócios para
empresas de diversos setores. Sede do Comperj - Complexo
Petroquímico do Rio de Janeiro, e com uma Base Industrial e
Tecnológica sendo implantada, o município terá em 10 anos, o
seu PIB estimado em R$17 bilhões e sua população chegará
a 1 milhão de habitantes nesse período.
Itaboraí
Esses empreendimentos estão
atraindo empresas de diversos
segmentos, pois hoje com a nova
administração municipal, Itaboraí
mostra um cenário de progresso
e de modernização da cidade.
Seu território faz divisa com Tanguá
e Maricá, municípios que serão beneficiados
pelo Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma via
de escoamento que integrará uma importante região do
estado que compreende de Itaguaí à Itaboraí, promovendo o
desenvolvimento integrado de toda essa região.
32
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Justiça & Cidadania | Setembro 2013
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 33
Rogério Medeiros Garcia de Lima
Desembargador do TJMG
P
Setor Elétrico
articipei, com enorme proveito, do 2º Curso sobre
o Setor Elétrico Brasileiro para a Magistratura,
promovido pela Escola Nacional da MagistraturaENM e Câmara de Comercialização de Energia
Elétrica – CCEE (Brasília-DF, 22 a 24 de maio de 2013).
A regulação no setor elétrico é conhecida por poucos
e precisa ser difundida (Fábio Amorim da Rocha, Temas
relevantes no direito da energia elétrica, Rio de Janeiro,
Synergia, 2012, apresentação). Com efeito, “o direito da
energia é um processo de construção de um conhecimento
jurídico pragmático: um ‘knowledge building’, diriam
alguns. Uma obra ainda e sempre aberta” (ob. cit., prefácio
de Joaquim Falcão).
A importância da participação no curso sobre setor
elétrico – sobretudo para um magistrado estadual, pouco
afeito às questões jurídicas atinentes a esse importante
campo da infraestrutura nacional – reside em apreender
as características do novo modelo de comercialização de
energia no Brasil, adotado a partir da edição da Lei Federal
no 10.848, de 15.3.2004.
consumidor, confiabilidade do suprimento, universalização
do serviço, redução dos custos de transação durante a fase
de implantação do NMSE e gradualismo na implementação
das medidas requeridas”.
Durante o curso, foi destacada a imprescindível
estabilidade do marco institucional do setor. Conforme
Julião Coelho, diretor da Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL, o órgão regulador deve criar ambiente
propício para investimentos, com estabilidade do marco
regulatório.
Antonio Claudio Macedo da Silva, juiz titular da 8a
Vara Federal da Justiça Federal, em Brasília, assinalou a
impropriedade da interferência do Poder Judiciário em
políticas públicas. Só pode intervir de modo pontual,
para corrigir eventuais distorções. Em regra, o Judiciário
não deverá interferir na discricionariedade do agente
regulador.
Recordei a sempre festejada doutrina de Marçal Justen
Filho (Curso de Direito Administrativo, São Paulo, Saraiva,
2005, pp. 464-467):
Marco regulatório
O marco regulatório do Novo Modelo do Sistema Elétrico
(NMSE) foi proposto logo após a crise de racionamento
de energia, no Brasil, em 2001. O texto legal foi aprovado
com os seguintes pilares (Maurício T. Tolmasquim: o
marco regulatório do novo modelo do sistema elétrico: um
balanço positivo, in Temas relevantes no Direito da Energia
Llétrica. cit., pp. 2-3): “Respeito aos contratos existentes,
minimização de pressões tarifárias adicionais para o
A adoção de um modelo regulatório de Estado conduz à
fragmentação das competências normativas e decisórias
estatais. Surgem entidades administrativas encarregadas da
gestão setorial. Alguns afirmam que se produz o surgimento
de um Estado “policêntrico”, cuja configuração pode ser
mais bem representada como uma “rede governativa”.
Substitui-se, assim, o modelo piramidal, de influência
napoleônica (confira-se em “L’État post-moderne”, Paris:
LGDJ, 2004, P. 76-7). Nesse cenário, uma instituição
fundamental consiste na agência reguladora. (...)
34
Foto: Arquivo pessoal
Segurança jurídica no mercado
de energia elétrica
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Agência reguladora independente é uma autarquia especial,
sujeita a regime jurídico que assegure sua autonomia em
face da Administração direta e investida de competência
para a regulação setorial. (...)
A agência reguladora independente é titular da competência
regulatória setorial. Isso significa o poder de editar normas
abstratas infralegais, adotar decisões discricionárias e
compor conflitos num setor econômico. Esse setor pode
abranger serviços públicos e (ou) atividades econômicas
propriamente ditas. E as decisões adotadas são vinculantes
para os diversos setores estatais e não estatais, ressalvada a
revisão jurisdicional.
A propósito, abalizada jurisprudência consagra a
autonomia técnica das agências reguladoras:
ADMINISTRATIVO. INFRAÇÕES À ORDEM ECONÔ­
MICA. FORMAÇÃO DE CARTEL E DUMPING. AÇÃO
CIVIL PÚBLICA. CADE. PEDIDO FORMULADO
NO SENTIDO DE QUE ESTA AUTARQUIA, DIANTE
DA HIPÓTESE FÁTICA, EXERCESSE SEU MISTER
INSTITUCIONAL. (...) Violaria a autonomia técnica do
Conselho, como entidade reguladora da concorrência e da
ordem econômica, forçá-lo a atuar administrativamente
(lembre-se, o pedido inicial busca forçar o Cade a cumprir
seu mister institucional) quando, de início, não vislumbra
“Não há falar em ilegalidade
na cobrança da taxa de
abertura de crédito, pois esta
visa exatamente a remunerar
a instituição financeira pelo
serviço prestado na concessão
do crédito, podendo
ser cobrada desde que
contratualmente prevista.”
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 35
ele próprio competência nem motivos para tanto, afinal o
próprio Cade pode entender, por exemplo, que a conduta
narrada pelo MPF é legal. (...)
Pacífico nesta Corte Superior que a revisão dos requisitos
ensejadores do deferimento da tutela antecipada esbarra
no óbice de sua Súmula n. 7. Além disso, importa salientar
que a distância desta Corte Superior dos fatos e das
provas impede a correta valoração do fumus boni iuris e
do periculum in mora. 14. Recurso especial parcialmente
conhecido e, nesta parte, não provido. (Superior Tribunal
de Justiça, Recurso Especial no 650.892-PR, min. Mauro
Campbell Marques, DJe 13.11.2009, grifos nossos).
Contratos e segurança jurídica. Segundo Arnoldo
Wald, os contratos possuem grande relevância no mundo
contemporâneo (in Vera Helena de Mello Franco, Teoria
Geral do Contrato: Confronto com o Direito Europeu
Futuro, São Paulo, Editora RT, 2011, p. 9):
Não há assunto mais atual e relevante do que o contrato
que, paradoxalmente, se torna cada dia mais importante e
de maior utilidade, ao mesmo tempo que sofre, em certo
sentido, uma perda de densidade. Efetivamente, reconhecese que o seu conceito clássico está superado. Já se afirmou
até que o contrato se tornou “mais ou menos obrigatório,
mais ou menos oponível a terceiros, mais ou menos
sinalagmático, ou mais ou menos aleatório, conforme
o caso, a sua nulidade ou resolução pode ser mais ou
menos extensa”. Em compensação, o contrato adquiriu
uma flexibilidade extraordinária e um dinamismo que
lhe permite resistir às modificações das circunstâncias.
Seu campo de ação deixou de ser exclusivamente o direito
privado para abranger parte do direito administrativo e do
direito internacional. (...)
O respeito dos contratos, além de ser determinação
constitucional, em nosso país, tornou-se um imperativo
do Estado de Direito e um valor cultural e ético em
todo o mundo ocidental. Chegou-se a afirmar que uma
sociedade que não respeita os contratos se caracteriza pela
deslealdade e é desmoralizada. Nem mesmo democracia
pode haver nos países nos quais não é possível exigir e
obter o cumprimento dos contratos.
Aqui, pois, urge destacar a segurança jurídica, com
a prestigiada pena de Eros Roberto Grau, no ensaio
Princípios, a (in)segurança jurídica e o magistrado
(revista Amagis Jurídica, Belo Horizonte, Associação dos
Magistrados Mineiros, no 7, jan-jun 2012, p. 1):
Max Weber ensinou-nos que as exigências de
calculabilidade e confiança no funcionamento da ordem
jurídica e na administração constituem uma exigência
vital do capitalismo racional; o capitalismo industrial
depende da possibilidade de previsões seguras – deve
36
poder contar com estabilidade, segurança e objetividade
no funcionamento da ordem jurídica e no caráter racional
e em princípio previsível das leis e da administração.
O cumprimento dos contratos não podia ser assegurado
sob a equidade, incompatível com a calculabilidade,
requisito do direito moderno. Era necessário transformarse a equidade em um sistema rígido de normas, a fim
de que fosse assegurada a calculabilidade exigida pelas
transações econômicas. (grifos no original).
Boa-fé objetiva. Ainda em matéria contratual, exaltase o princípio da boa-fé objetiva:
Na linha do Código Civil alemão (BGB, §157) o nosso
Código Civil de 2002 acatou na sua norma do art. 113 o
princípio da boa-fé objetiva, ordenando que os contratos
sejam interpretados de acordo com o princípio da boa-fé e
os usos locais usuais naquela prática de negócio. (...)
Entende-se por boa-fé objetiva a recíproca lealdade
das partes, afastada a ignorância de certas situações
como forma de macular esta lealdade e este princípio
exerce função dominante no campo da interpretação
dos contratos, constituindo o ponto de união entre os
dois momentos lógicos da interpretação (interpretação
subjeitva e objetiva). (...)
Sua aplicação exige que o juiz pressuponha, no caso
concreto, que as partes tenham observado o princípio
durante a preparação e a conclusão do contrato, atuando,
igualmente, conforme por ele determinado.
De qualquer forma, o princípio não pode ser aplicado de
modo a modificar a determinação da intenção comum ou
atribuir-lhe um significado diverso daquele que resulte da
declaração do proponente. (Vera Helena de Mello Franco,
ob. cit, pp. 201-202).
Para o saudoso Miguel Reale, a boa-fé o “artigochave” do Novo Código Civil (Estudos Preliminares do
Código Civil, São Paulo, Editora RT, 2003, pp. 75 e 77):
Em todo ordenamento jurídico há artigos-chave, isto é,
normas fundantes que dão sentido às demais, sintetizando
diretrizes válidas “para todo o sistema”.
Nessa ordem de ideias, nenhum dos artigos do novo
Código Civil me parece tão rico de consequência como o
art. 113, segundo o qual “os negócios jurídicos devem ser
interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua
celebração.” (...)
Boa-fé é, assim, uma das condições essenciais da atividade
ética, nela incluída a jurídica, caracterizando-se pela
sinceridade e probidade dos que dela participam, em
virtude do que se pode esperar que será cumprido e
pactuado sem distorções ou tergiversações, máxime se
dolosas, tendo-se sempre em vista o adimplemento do fim
visado ou declarado como tal pelas partes .
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Impacto macroeconômico das decisões judiciais. O
eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais, reportando-se
ao impacto macroeconômico das decisões judiciais no
mundo globalizado, assentou:
APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE
CLÁU­
SULAS CONTRATUAIS – JUROS – NÃO
LIMITAÇÃO – ENUNCIADO DA SÚMULA 596 DO
STF - CAPITALIZAÇÃO MENSAL – POSSIBILIDADE
– CUMU­LAÇÃO DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA
COM A MULTA MORATÓRIA – IMPOSSIBILIDADE
– COBRANÇA DA TAXA DE ABERTURA DE
CRÉDITO – LEGALIDADE – TAXA DE SERVIÇOS
DE TERCEIRO – ABUSIVIDADE – DEVOLUÇÃO EM
DOBRO INDEVIDA. A legislação pertinente ao Sistema
Financeiro Nacional não sujeita as instituições, que o
integram, às limitações da Lei de Usura, a teor do que
vem assentando a jurisprudência pátria. “As disposições
do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e
aos outros encargos cobrados nas operações realizadas
por instituições públicas ou privadas que integram o
sistema financeiro nacional” (enunciado da súmula
no 596 do Supremo Tribunal Federal). Em contratos
celebrados a partir de 30 de março de 2000, vale o artigo
5o da Medida Provisória no 2.170-36/2001, a qual afasta a
imposição do limite anual à capitalização de juros. É ilegal
a cobrança da comissão de permanência com a multa
moratória, conforme entendimento do Superior Tribunal
de Justiça. Não há falar em ilegalidade na cobrança da
taxa de abertura de crédito, pois esta visa exatamente a
remunerar a instituição financeira pelo serviço prestado
na concessão do crédito, podendo ser cobrada desde que
contratualmente prevista. É abusiva a cobrança da taxa
de serviços de terceiros porque o custo de tais serviços
é inerente à atividade exercida pela instituição financeira
(art. 51 , IV, do Código de Defesa do Consumidor), não
sendo possível o repasse ao consumidor por onerá-lo
demasiadamente e por infringir o disposto no artigo 6o,
III do CDC. A restituição em dobro de quantia cobrada
indevidamente só é admitida quando pressupõe a
ocorrência de pagamento efetuado por erro decorrente
de dolo ou culpa do credor, sendo este o entendimento
majoritário da doutrina e da jurisprudência, de forma que
incabível in casu. O julgador não pode desprezar o impacto
macroeconômico das suas decisões. Em tempos de
globalização econômica, aos agentes de poder é incumbida
a tarefa de recriar, em nível global, as tradicionais garantias
de segurança jurídica própria do direito privado nacional
(Edoardo Greblo, Globalización, Democracia, Derechos).
Historicamente, dividem-se os ordenamentos jurídicos de
tradição romanística (nações latinas e germânicas) e de
tradição anglo-americana (common law). Contudo, essas
expressões culturais diversas passaram a se influenciar
“O juiz não deve julgar
contrariamente ao que, em
lides semelhantes, decide o
Supremo Tribunal Federal,
porque criaria esperanças
infundadas para as partes.”
reciprocamente. Enquanto as normas legais ganham cada
vez mais importância no regime do common law, por
sua vez, os precedentes judiciais desempenham papel
sempre mais relevante no Direito de tradição romanística.
A influência recíproca tende a se intensificar na esteira
do fenômeno globalização. O juiz não deve julgar
contrariamente ao que, em lides semelhantes, decide o
Supremo Tribunal Federal, porque criaria esperanças
infundadas para as partes.” (Tribunal de Justiça de Minas
Gerais, Apelação Cível no 1.0090.10.002579-1/002, des.
Rogério Medeiros, julg. 5.7.2012, grifos nossos).
Decisões judiciais e segurança jurídica no setor
elétrico. Solange David, gerente jurídica da Câmara de
Comercialização de Energia Elétrica – CCEE, lembrou
que os agentes aderentes ao sistema assinam um “termo
de conhecimento”, onde declaram expressamente ter
ciência prévia de todas as regras de operação do setor.
É contrato de risco a longo prazo. A CCEE, previamente
à abertura dos leilões, realiza detalhados estudos para
avaliar custos, preços, margens de lucros etc.
Nesse contexto, os agentes aderentes, enquanto lucram, estão saciados. No entanto, quando, por alguma
vicissitude (v.g., falta de chuvas, alta de preços de combustíveis etc.), começam a ter prejuízos, “judicializam” os
contratos. Pedem sua revisão, à luz da teoria da imprevi­
são (cláusula rebus sic stantibus).
Também costumam questionar os “encargos de segurança” (v.g., investimentos em segurança na transmissão
de energia). Todavia, no momento em que apresentaram
sua proposta de preços nos leilões, sabiam de antemão os
custos dos referidos encargos.
Solange David citou algumas decisões de tribunais
brasileiros, exemplificativamente: a) denegação de liminar
a agente contratante, pois a liquidação mensal de créditos/
débitos é matéria complexa, não pode ser examinada sem
o crivo dos princípios processuais do devido processo
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 37
legal, contraditório e ampla defesa; b) a comercialização de
energia elétrica opera-se dentro de um sistema, o qual não
pode ser desestabilizado; e c) havendo débito, é legítima
a inclusão do nome do agente em cadastros de devedores
inadimplentes.
Fábio Medina Osório, discorrendo sobre sanções
administrativas, em situação análoga a aqui versada,
apontou o despreparo dos magistrados para lidar
com questões técnicas de alta complexidade (Direito
Administrativo Sancionador, São Paulo, Editora Revista
dos Tribunais, 2000, pp. 50-51):
Nesse quadro, exige-se redobrada cautela dos
julgadores para examinar pedidos de antecipação de
tutela ou liminares, em medidas cautelares, decorrentes
de contratos de comercialização de energia elétrica.
Vêm a talho decisões de nossos tribunais:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. POÇO ARTESIANO.
ANTECIPAÇÃO DE TUTELA. DILAÇÃO PROBATÓRIA. A concessão da tutela antecipada exige a prova inequívoca da verossimilhança da alegação e do fundado receio
de dano irreparável ou de difícil reparação. Hipótese em
que os Agravantes não lograram comprovar, liminarmente, quaisquer dos requisitos para o deferimento da medida.
Negado seguimento ao recurso por ato do Relator. Art. 557
do Código de Processo Civil. (Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul, Agravo de Instrumento no 70023189517,
Desª Maria Isabel de Azevedo Souza, julg. 21.2.2008).
As medidas cautelares devem ser utilizadas como instru­
mento para obviar lesão irreversível, não é lícita sua
utilização para causar dano à parte contrária. (Superior
Tribunal de Justiça, Medida Cautelar no 594-SP, min.
Humberto Gomes de Barros, DJU 29.6.1998).
O processo cautelar não se presta para obter a pretensão
definitiva objeto do processo principal. (Superior Tribunal
de Justiça, Recurso Especial no 130.880-CE, min. Felix
Fischer, DJU 3.8.1998).
38
Conclusão. À guisa de conclusão, deve-se salientar
que, no mundo globalizado contemporâneo cabe aos
magistrados analisar cada caso e suas circunstâncias
peculiares. Não podem desprezar o impacto macroeco­
nômico das suas decisões. O economista Armando Castelar,
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA),
sustenta que abalam o mercado de crédito a ineficiência
do Poder Judiciário e as decisões judiciais causadoras
de insegurança jurídica (Folha de São Paulo, 19.2.2003).
Igualmente, argumentou Fábio Ulhoa Coelho (Os Valores
do Direito Comercial e a Autonomia do Judiciário, Brasília,
Revista da Escola Nacional da Magistratura, no 2, outubro
de 2006, p. 86):
A instabilidade do marco institucional manifesta-se por
vários modos. Um deles é a jurisprudência desconforme ao
texto legal. Se a lei diz “x”, mas sua aplicação pelo Judiciário
implica “não-x”, os investimentos se retraem. O investidor
busca outros lugares para empregar seu dinheiro; lugares
em que ele tem certeza das regras do jogo e pode calcular
o tamanho do risco (que sempre existe em qualquer
empreitada econômica). Numa economia globalizada, ele
os encontra com facilidade. Tanto o investidor estrangeiro
começa a evitar o país com marco institucional instável,
como o nacional passa a considerar outros países como
alternativa melhor para seus investimentos.
A magistratura brasileira tem se confrontado com
a tensão entre a justiça e a segurança jurídica ou a
estabilidade econômica. O ministro Luiz Fux, do Supremo
Tribunal Federal, refletiu (Impacto das Decisões Judiciais
na Concessão de Transportes, Brasília, Revista da Escola
Nacional da Magistratura, no 5, maio de 2008, p. 12):
Se nós oferecemos uma justiça caridosa, se nós oferecemos
uma justiça paternalista, se nós oferecemos uma justiça
surpreendente que se contrapõe à segurança jurídica prometida pela Constituição Federal, evidentemente que isso
afasta o capital estrangeiro, como afasta o capital das grandes corporações. É o que sucede com o não-cumprimento
de tratados, o não-cumprimento de laudos arbitrais convencionados previamente... Isso, segundo a Corte Especial,
aumenta o que se denomina “Risco Brasil”.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Os tribunais do século XXI
Reis Friede
Desembargador do TRF - 2a Região
Foto: Arquivo pessoal
Talvez um exemplo da insuficiência do Direito
Administrativo se perceba no controle das privatizações
em cenários terceiro-mundistas, em que as instituições
jurídicas são chamadas a decidir praticamente todo o
complexo pleito, com todas suas repercussões econômicas,
sociais, seus reflexos no bem-estar da coletividade, em um
juízo liminar. (...)
Nenhum juiz parece estar preparado para controlar litígios
que envolvem temas multidisciplinares, v.g., economia, sociologia, moral, em prazo fixado em semanas ou, no máximo,
meses. Esses controles judiciários têm se revelado claramente
insuficientes, incapazes de inibir abusos que implicam o atropelamento de fórmulas legais ou mesmo constitucionais.
MEDIDA CAUTELAR. REQUISITOS. PRESENÇA.
LIMINAR. CONCESSÃO. ADENTRAMENTO NO
MÉRITO DO PEDIDO PRINCIPAL. DESCABIMENTO.
Em sede de medida cautelar não cabe ao Juiz adentrar
no mérito do pedido principal, competindo a ele,
ao conceder a liminar, verificar se estão presentes os
requisitos autorizativos, quais sejam: o fumus boni juris e
o periculum in mora. (Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
Agravo de Instrumento no 62.279/5, Des. Isalino Lisbôa,
Diário do Judiciário-MG, 28.10.1997).
C
ontinuamos a discutir, com notável persistência
– e agora sob a égide da eminente aprovação
de Projeto de Lei que amplia a composição
dos cinco Tribunais Regionais Federais (TRFs)
em mais 137 juízes (mais do que dobrando, portanto,
o quantitativo nacional de julgadores), além da recente
aprovação de um PEC que cria mais quatro TRFs com o
consequente aumento (inclusive redundante) de juízes –, a
premente questão relativa à notória ineficiência da Justiça
Federal sem, no entanto, mais uma vez, data maxima
venia, adentrar nas verdadeiras razões da inconteste
morosidade da prestação jurisdicional, apontando, como
causa fundamental, em evidente e persistente equívoco, o
excessivo número de processos em tramitação vis-à-vis com
a presumível carência de magistrados.
Não há, todavia, em efetiva contrariedade à irrefletida
tese reinante, um quantitativo verdadeiramente exagerado
de processos em tramitação. Muito pelo contrário, o
número de temas julgados é relativamente pequeno em
comparação com a agigantada dimensão da estrutura
da Justiça Federal, sendo certo que o que há, em última
análise, é um absurdo e inconcebível número de processos
absolutamente idênticos que, por mais espantoso que
pareça, têm de ser julgados, por imperativo legal, caso a
caso. À guisa de exemplo, deve ser consignado que a Justiça
Federal julgou, nos últimos dez anos, mais de três milhões
de ações, versando sobre FGTS, exatamente iguais, o que
obrigou a um dispêndio de recursos humanos e materiais
de enorme monta para, após pacificada a questão no
âmbito do egrégio Supremo Tribunal Federal e do colendo
Superior Tribunal de Justiça, estabelecer, finalmente, uma
uniformidade decisória que – apesar de tudo – ainda é, por
mais inacreditável que pareça, contestada, em parte, não
só pelos jurisdicionados, mas também por alguns juízes
que insistem em julgar as mesmas questões já pacificadas
de forma diversa.
Portanto, ampliar constantemente o quantitativo de
juízes de 1o grau (como vem sendo feito, sistematicamente,
sem qualquer resultado prático há mais de vinte anos)
– ou mesmo de desembargadores federais – não irá
certamente resolver o problema, pois acaba por atacar os
seus efeitos, e não propriamente as causas motivacionais
da morosidade da prestação jurisdicional que somente
pode ser combatida, neste especial, por meio de novos
instrumentos processuais que impeçam, de forma
sinérgica, o constante rejulgamento de questões idênticas.
No que concerne, em particular, à ampliação do quanti­
tativo de tribunais, a proposta, não obstante aprovada,
desconsidera, por absurdo, que os tribunais do século XXI não
se constituem mais de simples instalações físicas, posto que
as novas tecnologias (processo eletrônico, videoconferência,
etc.) tornam completamente ultrapassados os antigos (e
repetidos) argumentos geográficos e dimensionais em favor
da construção de novos, suntuosos e caríssimos prédios
(e, consequentemente, a ampliação da estrutura de juízes
e funcionários) para prover a reclamada eficiência da
prestação jurisdicional. Muito pelo contrário, os tribunais
do novo século, vale consignar, caracterizam-se muito
mais pela eficiência operacional por meio, sobretudo, da
virtualidade instrumental, ou, em outras palavras, pela
absoluta ausência de volumosos processos de papel (que,
desta feita, dispensa o correspondente espaço de construção
civil), bem como dispensam a presença física das partes e
dos advogados, substituída por modernas tecnologias de
imagem de alta definição em tempo real.
Por efeito consequente, precisamos, com a máxima
urgência, estabelecer uma necessária e profunda reflexão,
buscando, em última análise, uma solução derradeira que
resolva definitivamente a ineficiência da Justiça Federal,
atacando as causas da morosidade da prestação jurisdicional,
e não apenas seus visíveis e condenáveis efeitos.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 39
Vitaliciedade é garantia
da própria cidadania
Nelson Missias de Morais
Desembargador do TJMG
Foto: Ascom/amagispg
O
s movimentos sociais têm alcance importante
para o revigoramento das instituições e do
próprio Estado de Direito, pois é nessa hora
que se confirmam as forças da democracia e
da participação popular, para a correção de rumos, quando
algo está fora do eixo.
Nas recentes manifestações, que se iniciaram em
razão das majorações de passagens de ônibus em São
Paulo, percebidas em outras partes do Brasil, houve uma
mobilização popular, convocada pelas redes sociais, com
uma velocidade como nunca se viu.
Foi um movimento sem liderança que não foi
conduzido a uma pauta mínima, que pudesse repor no
eixo o que eventualmente estivesse fora e até mesmo para
dar sequência às reivindicações.
De uma hora para outra, o que se viu foi o Governo
central produzindo uma agenda de ocasião, que passou
a ser denominada de “positiva”, com trapalhadas de
toda natureza, pois não conseguiu atingir o foco nem
sensibilizar ninguém, chegando ao disparate de propor
uma assembleia constituinte para tratar de um tema
específico, ou seja, a reforma política – como se viu,
fulminada de inconstitucionalidade.
O eco das ruas não estava nessa direção, embora
relevante para a democracia e merecedora de uma
discussão mais aprofundada e com seriedade, sem o
40
ranço da resposta imediata para fenecer o incômodo que
provoca uma mobilização popular.
A partir daí, o Congresso Nacional também passou a
produzir a chamada “agenda positiva” legislativa.
Não se pode olvidar que toda legislação casuística –
para dar resposta imediatista à sociedade – traz, em si, o
perigo de atingir direitos caros à cidadania e à sociedade,
conquistados por gerações, com prejuízo à liberdade e à
própria vida de muitos. É lamentável, mas, no apagar das
luzes do semestre legislativo do Congresso Nacional, o
predicamento da vitaliciedade do magistrado brasileiro
quase foi extinto.
A sociedade não percebeu nem foi informada do alcance
da medida, que seria um prejuízo irreparável para a cidadania.
Juízes independentes, livres de pressão de poder
político, econômico ou de qualquer outra natureza, são
necessários aos cidadãos na busca de um direito ou na
reparação de um que lhe foi subtraído.
As causas que aportam no Judiciário, muitas vezes
por aqueles menos aquinhoados, como as do cidadão,
já fragilizado, quando busca um medicamento não
fornecido pelo governo ou um atendimento médico de
emergência através da via judicial, precisam de resposta
rápida e sem interferência dos poderosos.
O magistrado livre das amarras do poder político,
econômico ou de criminosos, no qual o fraco e o forte
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
se equivalem, foi uma conquista da cidadania e a ela se
destina. O predicamento da vitaliciedade é a dimensão
necessária do juiz independente, sem assombros na
carreira em razão das suas decisões.
O que não está bem explicado é que o juiz pode
perder o cargo, sim, através de sentença condenatória
com o trânsito em julgado.
Seria um caos social e traria insegurança jurídica
para a sociedade a possibilidade de o juiz, com base em
decisões políticas ou por retaliação em razão do exercício
da sua função judicante, ser demitido ou afastado.
Os juízes, no exercício da sua função, têm
peculiaridades que os diferenciam e impedem a perda do
cargo por decisão administrativa. São agentes políticos
– processam e julgam causas de interesses políticos,
econômicos e criminosos vultosos.
As PECs 53 e 505 – a primeira, no Senado Federal,
e, a segunda, na Câmara dos Deputados – relativizam a
vitaliciedade do juiz brasileiro, facilitando sua remoção,
seu afastamento das funções e sua demissão, por mera
decisão administrativa, o que o torna vulnerável em sua
independência para o enfrentamento das pressões a que
está sujeito no exercício das funções.
Esse é um grave prenúncio.
Aliás, as garantias da magistratura, insculpidas na
Constituição cidadã, art. 95, incisos I, II e III, devem
passar indenes ao poder constituinte derivado por
se encontrarem no âmbito das chamadas limitações
materiais implícitas a ele, com status de cláusula pétrea.
No ordenamento jurídico pátrio, existem normas
que garantem a perda do cargo do juiz que o ocupa
com indignidade, sem se resvalar, contudo, na garantia
constitucional da vitaliciedade.
Esse desvario legislativo para atingir garantias de
independência do juiz brasileiro só pode ser creditado
à necessidade de se desviar a atenção da sociedade,
que está focada em temas que exigem a mudança de
comportamento de governantes e legisladores.
A sociedade e a mídia têm um papel relevante na
compreensão do alcance da garantia da vitaliciedade do
juiz.
As Associações de Juízes, que são o braço político
da magistratura, têm proeminência para a manutenção
dessa garantia da sociedade e até aqui se fizeram ouvir.
Nesse sentido, a Associação dos Magistrados Mineiros,
através de seu presidente, Herbert Carneiro, a quem tive
o privilégio de acompanhar em Brasília, em contato com
os parlamentares, contribuiu significativamente para
evitar esse retrocesso.
Acreditar que essa é uma defesa corporativista é a
mais forte expressão da incompreensão dos valores que
devem pautar o Estado de Direito.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 41
Limitação temporal dos efeitos
penais e os maus antecedentes
Doorgal Andrada
Desembargador do TJMG
Foto: Arquivo pessoal
P
or imperativo constitucional, a Carta Magna
veda expressamente penas de caráter perpétuo,
conforme disposto no art. 5o, XLVII, “b”.
Essa garantia constitucional é basilar na
atual sistemática do Estado Democrático de Direito.
Nessa acepção, tratando-se de garantia constitucional
de caráter fundamental, em uma interpretação extensiva
visando tutelar direitos humanos, extrai-se desta norma
que, por consequência lógica, os efeitos e decorrências
das sanções penais não podem prevalecer sem limites no
tempo. Ora, seria absolutamente sem razoabilidade se,
embora não perpétuas, as penas gerassem repercussões
42
perenes na vida do indivíduo, assumindo um caráter
sancionatório eterno (inconstitucional), o que é vedado
à própria pena principal assumir.
Assim, tem-se que Constituição Federal, no já citado
art. 5o, XLVII, alínea “b”, veda terminantemente a pena de
caráter perpétuo, donde decorre que se a pena principal
não pode ter perpetuidade, muito menos os efeitos da
condenação que a originou podem perdurar eternamente
(maus antecedentes).
Desse modo, valendo-se de uma condenação antiga
não se pode valorar negativamente de modo eterno e
permanente a circunstância judicial da má-antecedência,
dando perpetuidade aos efeitos de uma condenação
(art. 59 do CP) mesmo após cinco anos decorridos da
extinção da punibilidade, o que fere evidentemente os
direitos e garantias fundamentais conferidas ao cidadão,
preconizadas na Carta Magna do país, sustentáculo de
uma nação guiada por preceitos acauteladores dos Direitos
Humanos.
Coaduna com esse entendimento o aclamado doutri­
nador argentino Eugenio Raúl Zaffaroni, juntamente com
o não menos renomado José Henrique Pierangeli:
A exclusão da pena perpétua de prisão importa que, como
lógica consequência, não haja delitos que possam ter penas
ou consequências penais perpétuas. Se a pena de prisão não
pode ser perpétua, é lógico que tampouco pode ser ela a
consequência mais branda do delito.1
Nessa esteira, em consonância com a norma
constitucional em análise, há no art. 64, I, do Código
Penal, expressa limitação do tempo em que advirão
consequências em função da reincidência, evitando, por
conseguinte, repercussões intermináveis em função de
fatos passados há vários anos.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
No entanto, o mesmo não se vislumbra, na prática,
em relação aos maus antecedentes, que, através de
uma duvidosa interpretação sistemática, conduz ao
absurdo de estigmatizar o réu ad eternum. Tal contexto
se revela de gravidade extrema e intenso vilipêndio aos
Direitos Fundamentais, haja vista que acarreta situações
demasiadamente desfavoráveis aos réus, já que se torna
possível a elevação da pena base de novo delito cometido,
durante toda a vida do réu, em razão até de um crime
perpetrado há décadas, em outro tempo da vida do
indivíduo. Cria-se uma consequência penal perpétua, que
é contrária à Constituição Federal.
Noutro giro, a eternização de consequências jurídicas
propiciada por construção jurisprudencial fere de morte
a Dignidade Humana, já que atribui uma estigmatização
insuperável à pessoa submetida a uma sentença penal
condenatória.
Destarte, vive-se num contexto no qual produziríamos empiricamente “marginais perpétuos” em série, já
que além de contarmos com uma das maiores populações
carcerárias do mundo, atribuímos aos milhares e irrevogavelmente a subqualificação de marginal (criminoso),
impedindo-os de superar os danos oriundos de uma
conduta típica passada (distante) e de se restabelecer
enquanto cidadão pleno.
Impõe-se uma delimitação temporal para a vigência
de consequências oriundas dos antecedentes criminais do
sujeito, sob pena de mantença de um instituto claramente
inconstitucional e desumano.
Em uma análise sistemática da ordem jurídica, denotase que é possível estipular um prazo razoável, utilizandose de analogia em relação ao único lapso fixado para
um dispositivo semelhante aos antecedentes, qual seja,
a reincidência. Sugere-se, por conseguinte, que, por
interpretação analógica in bonam partem, utilize-se o
prazo de 5 (cinco) anos previsto no art. 64, inciso I, do
Código Penal, para a limitação temporal de resultados
provenientes dos maus antecedentes.
Nesse sentido, também é o entendimento de Saulo de
Carvalho:
Note-se que os antecedentes, além de fornecer uma
graduação à pena decorrente do histórico de vida do
acusado, representam um gravame penalógico eternizado,
em total afronta aos princípios constitucionais referidos
(princípio da racionalidade e da humanidade das penas).
Assim, cremos urgente instituir sua temporalidade,
fixando um prazo determinado para a produção dos efeitos
impostos pela lei penal. O recurso à analogia permite-nos
limitar o prazo de incidência dos antecedentes no marco
dos cinco anos – delimitação temporal da reincidência –,
visto ser a única orientação permitida pela sistemática do
Código Penal.2
Os julgados que adotam entendimento contrário, ou
seja, que se posicionaram a favor da consideração perene
dos antecedentes, se mostram insuficientes num contexto
em que as garantias constitucionais devem ser tomadas
como diretrizes precípuas de aplicação normativa, além
de não apresentarem fundamentação teórica suficiente.
Senão vejamos excerto do RHC 106.814/MS:
Guilherme de Souza Nucci1, ao discorrer sobre a definição
de maus antecedentes anota que a corrente mais acertada,
à qual me filio, é a de que devem ser consideradas como
antecedentes, para fins de fixação da pena, “apenas as
condenações com trânsito em julgado que não são aptas a
gerar reincidência”.
Nessa esteira, o que se vê é que, mediante sustentação
doutrinária, adotou-se uma argumentação extremamente
expansiva que desconsidera as limitações que devem
incidir sobre o Direito Penal. Ora, considerar como
maus antecedentes tudo o que não é mais abarcado pela
reincidência, de maneira abrangente, é fugir às estreitas
fronteiras traçadas pela Carta Magna, ressaltando-se
que a interpretação em relação à punibilidade deve ser
sempre restritiva.
Ademais, a hermenêutica da aplicação dos antecedentes
de forma ilimitada não apresenta um mínimo de
razoabilidade, já que esta deve ser realizada se atentando
valores constitucionais vigentes, sobretudo àquele já
citado, de que as penas não devem ter caráter perpétuo.
Se a própria reincidência que se baseia em condenações
transitadas em julgado antes da perpetração do delito,
portanto, dotadas de segurança jurídica, apresenta
limitações temporárias expressas, não se vislumbra o
porquê de se conceder jurisprudencialmente tamanhas
irrestrições aos antecedentes.
Data venia, no Brasil, as consequências primárias
e secundárias da pena não podem ter efeitos perpétuos,
tendo em vista determinação e análise ampla do art. 5o,
XLVII, alínea “b”, da Constituição Federal. Ademais, o
direito penal brasileiro sempre prestigiou os institutos de
limitação no tempo, como a decadência, a prescrição, a
reabilitação, a perempção, a conciliação civil nos Juizados
Especiais, a improrrogabilidade dos prazos, etc., além de
valorizar, a cada dia, todas as formas de ressociabilização e
recuperação do condenado.
Notas
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Manual de direito penal brasileiro,
volume 1: parte geral / José Henrique Pierangeli. 8. ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2009, p. 673.
2
CARVALHO, Amilton Bueno de, Carvalho, Saulo de. Aplicação da
Pena e Garantismo. 2.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 52.
1
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 43
Júlio César Ballerini Silva
C
Juiz de Direito do TJSP
omo cediço, o Direito brasileiro se revela
avesso à ideia de um patrimônio (entendido
pela generalidade dos autores, a partir de
postulados ponteanos, como um conjunto
de posições jurídicas ativas e passivas, suscetíveis de
avaliação econômica e consequente expressão monetária)
sem um titular determinado, o que, em se tratando de
pessoas existentes (naturais ou jurídicas), resolve-se em
termos de tradição e transcrição enquanto meios de
aquisição da propriedade inter vivos.
Mas, desde há muitos, encontra-se superada a ideia
dos romanos, que, com seu singular pragmatismo,
asseveravam no sentido de que mors omnia solvit, ou
seja, em tradução literal, uma ideia de que a morte tudo
resolve, de sorte tal que, ao menos hipoteticamente, com
o falecimento do de cujus sucessiones agitur, os problemas
estariam acabados, tudo estaria resolvido (não obstante
os romanos acolhessem a ideia de morte em uma acepção
mais ampla que a do Direito atual – aceitava-se, por
exemplo, o conceito de morte civil1).
Isso porque no Direito romano bastaria que se
morresse com um herdeiro homem, que seria responsável
pelo culto dos antepassados (deuses lares – vindo daí
a expressão “lar” para significar o local do fogo sagrado
dentro de uma casa – simbolizando os parentes mortos),
para que se impedisse que os mortos de dada estirpe
familiar passassem por necessidades no mundo espiritual,
com libações anuais nas sepulturas desses entes queridos
falecidos (acreditava-se que a vida seguia no túmulo,
geralmente localizado nas casas ou nos lares)2.
Aí, diga-se en passant, pode-se perceber a gênese dos rituais que empregamos atualmente no dia dos mortos, quando
são levadas flores aos jazigos dos entes queridos falecidos.
44
Foto: Arquivo pessoal
Algumas questões acerca do
inventário negativo de bens
no Direito brasileiro
E, da mesma forma, verifica-se a gênese da proteção
ao imóvel de família (no Direito romano, a propriedade
tinha esse caráter sagrado e não era alienada nem para o
pagamento de dívidas do pater familias, que seria vendido
como escravo se a dívida não fosse paga para que os demais
membros da família conservassem o local sagrado)3.
No entanto, como sabido, as coisas nem sempre se
dão desse modo, eis que, com a morte do indivíduo, um
sem número de problemas pode ser destacado, tendo
o legislador criado tantas situações polêmicas (basta
ver, por exemplo, discussões acerca da concorrência,
ou não, do cônjuge com descendentes nos vários
regimes matrimoniais ou as dificuldades da sucessão do
companheiro com filiação híbrida), que hoje não se tem
como incomum encontrar-se autores que defendam a
necessidade de um verdadeiro planejamento sucessório
prévio enquanto conjunto de medidas para a preservação
patrimonial e da autonomia da vontade4.
Poder-se-ia ter a falsa ideia de que esses problemas
surgiriam apenas quando houvesse um patrimônio a ser
herdado, ou seja, enquanto o referido conjunto de posições
jurídicas do falecido titular tivesse que ser passado a algum
herdeiro ou conjunto de herdeiros, ou mesmo legatários.
Assim, sempre se pensa no inventário positivo de bens
necessário à liquidação patrimonial do extinto para que
se afira o quanto cada herdeiro receberia (como ainda
se aplica no Direito pátrio o princípio da saisine, com a
própria abertura de sucessão, o patrimônio já passaria ao
domínio – não mais posse, como estabelecia o CC/1916
– dos herdeiros – nesse sentido é a disposição contida no
artigo 1.784 do Código Civil vigente).
Realmente, pode ser que o extinto não estivesse na
posse direta dos bens no momento do falecimento,
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
impedindo a imediata transmissão da posse aos herdeiros
por força desse princípio de saisine.5
Por força dessa saisine, com essa ideia de transmissão
automática do domínio, seria de se questionar a respeito da
efetiva necessidade de um processo de inventário de bens,
eis que, em um primeiro momento, sob a perspectiva da
lógica, parece não haver necessidade de um procedimento
judicial que se destine a garantir essa transmissão.
E, de fato, essa não seria a justificativa para a ação de
inventário de bens. Nesse sentido, a clássica definição de
De Plácido e Silva:
(...) derivado do latim inventarium, de invenire (agenciar,
diligenciar, promover), em sentido amplo, quer significar o
processo, ou a série de atos praticados com o objetivo de ser
apurada a situação econômica de uma pessoa ou de uma
instituição, pelo relacionamento de todos os seus bens e direitos,
ao lado de um rol de todas as suas obrigações e encargos (...).6
De modo mais sucinto, aponta Roberto Senise Lisboa
no sentido de que “inventário é o procedimento por meio
do qual são oficialmente relacionados os bens encontrados
em nome do de cujus”.7 Observa-se nesse tipo de definição
uma correlação necessária entre inventário e bens do extinto.
Por essa perspectiva, antes de se falar em transmissão
propriamente dita, pela referida incidência da saisine, sob o
prisma lógico, mister se faz aferir se existe algo a ser transmitido
e em que medida (será a oportunidade, por exemplo, de se
separar eventual meação que é direito de terceiro e não se
confunde com herança – artigo 1.023 do CPC). E essa será,
justamente, a justificativa existencial da ação de inventário.
E não se esqueça de que, muitas vezes, no inventário
serão disciplinados direitos de natureza indisponível, como
se dá em relação aos bens dos incapazes, havendo relevância
na previsão de um procedimento especial judicial para
regular tais verificações, além da existência de questões
fiscais a serem resolvidas.8
Mas nada impede, no entanto, que essas questões
fiscais sejam resolvidas em procedimentos não judiciais,
como se autoriza no inventário extrajudicial, disciplinado
pelo advento da Lei no 11.441/07, cabendo essa função
ao tabelião respectivo, devendo haver obtenção da
documentação fiscal pertinente, o que, no caso do Estado
de São Paulo, se encontra disciplinado nos termos da
Portaria CAT-9/2007 da Secretaria de Estado da Fazenda.
Do mesmo modo, impende ponderar no sentido de
que não serão tratadas no processo de inventário questões
referentes a direitos que surjam em decorrência da morte
do extinto, mas que não integraram seu patrimônio.
Seria o caso de se exemplificar pela situação da
indenização securitária pela morte do de cujus que irá para
o beneficiário apontado em contrato e não integra seu
patrimônio pessoal, eis que somente será paga após sua
morte (assim, em sede de planejamento sucessório, nada
impediria que se deixasse esse tipo de indenização para
um(a) concubino(a), resolvendo-se tormentosa questão a
esse respeito, ou como disciplina do que modernamente se
vem chamando família paralela ou uniões pluriafetivas –
nas quais, não obstante exista afeto, o preconceito impeça
o reconhecimento de alguns direitos).
O próprio artigo 794 do Código Civil já assevera que o
capital estipulado não se considera herança, para os fins de
direito, no contrato de seguro.
Isso (indenização securitária), obviamente, não se
transmite aos herdeiros pela saisine. O mesmo se daria
mutatis mutandi em relação ao advento do direito de
perceber pensão por morte, o que se admite em sede de
exemplificação acerca do tema.
Sobre a questão da indenização securitária, pertinente
à referência ao seguinte aresto do Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:
Agravo de Instrumento. Inventário negativo. Pleito dos
agravantes quanto à obtenção de informações referentes à
eventual contratação de seguro de vida pelo de cujus. Inviabilidade. Artigo 794 do Código Civil. Decisão mantida.
Recurso desprovido. Agravo de Instrumento no 005831082.2012.8.26.0000, da Comarca de São José do Rio Preto, Rel.
Cesar Ciampolini.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 45
E se direitos que nascem da morte não devem figurar
em inventário, o mesmo pode ser dito em relação a deveres
que morrem com o devedor. Nesse sentido, oriundo do
Tribunal de Justiça de São Paulo, impenderia destacar:
Locação de Imóvel, despejo por falta de pagamento c/c
cobrança. Segundo previsão do artigo 836 do Código
Civil, a responsabilidade da fiança se limita ao tempo
decorrido até a morte do fiador. Se o débito é posterior ao
óbito, a responsabilidade não se transfere ao espólio nem
aos herdeiros.
De igual sorte impende ponderar no sentido de que
nem sempre a existência de bens a serem partilhados
conduzirá, necessariamente, à situação de propositura
de uma ação de inventário em uma acepção técnica (rito
mais complexo e extenso que, de todo modo, não admite
discussão de matérias de alta indagação – nos termos do
artigo 984 do Código de Processo Civil –, o que às vezes
leva à necessidade de propositura de outras ações para a
discussão de questões prejudiciais ao inventário).
Tal se dá na medida em que, por vezes, nos termos do
advento das normas contidas nos artigos 1.031 e 1.036 e
seus consectários do Código de Processo Civil, em casos
de bens de pequena monta ou adjudicação de bens a um
único herdeiro, restará autorizada a propositura de ação de
ritos mais simplificados, qual seja, o arrolamento de bens
(refere-se a ritos simplificados eis que se tem o arrolamento
comum e o arrolamento sumário).
Ainda mais seria de se observar que existem casos em
que sequer se cogitaria de inventário ou arrolamento,
mesmo havendo bens a partilhar.
Referida situação se encontra disciplinada no advento
das normas contidas nos artigos 1.037 CPC, 2o da Lei no
6.858/80, e 112 da Lei no 8.213/91.
São os casos de propositura de simples pedido de alvará
(hipóteses de levantamento de valores não recebidos em
vida pelo finado no que se refere a saldos salariais ou de
benefícios previdenciários, ou ainda valores de FGTS, PIS/
Pasep, desde que inexistentes outros bens a inventariar).
Quanto ao FGTS, inclusive, não se pode esquecer das
orientações contidas nas Súmulas 82 e 161 do Superior
Tribunal de Justiça que permitem a conclusão no sentido
de que, não obstante a natureza institucional do fundo
gestor desses recursos, os pedidos de alvará que possam
ser caracterizados como causa mortis serão processados e
julgados pela Justiça Estadual (competente para as ações de
inventário), e não pela Justiça Federal.
Aclarada a questão, nesses termos, seria de se afastar
outra ideia enganosa (além daquela no sentido de que
inventário exista para transmissão de bens), qual seja, a de
que exista associação direta e necessária entre inventário e
existência de bens a serem partilhados.
46
Isso porque, sob o prisma prático, muitas vezes surge
a necessidade de disciplina dessas relações entre de cujus
sucessiones agitur e seus herdeiros, mesmo não havendo
patrimônio a ser partilhado, não podendo o Direito
permanecer alheio a tais situações, ainda mais porque o
advento da norma contida no artigo 5o, inciso XXXV da
Constituição Federal, permite a qualquer pessoa residente
ou domiciliada no território nacional demandar, em casos
de lesão ou ameaça de lesão, seus direitos.
Não se nega que a grande maioria das situações
vivenciadas no dia a dia recomende o inventário para
situações em que exista a necessidade de se aferir a extensão
de um patrimônio efetivamente existente.
Mas podem surgir situações em que exista um peculiar
interesse jurídico no reconhecimento da situação jurídica
da inexistência de bens, autorizando, sob tal perspectiva,
o manejo de uma ação declaratória negativa que doutrina
e jurisprudência convencionaram denominar inventário
negativo de bens.
Nesse sentido, a ideia de que inventário negativo seja
“o procedimento por meio do qual se pretende demonstrar
que não há herança a ser atribuída em favor dos herdeiros
do de cujus (...) tem como objetivo principal demonstrar a
inexistência da confusão patrimonial.”9
Nesse sentido, é de se apontar o quanto vem sendo
decidido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo acerca da
questão:
Inventário Negativo. Ausência de transmissão de bens impossibilita a responsabilidade dos herdeiros pelas dívidas – art. 1.792
do CC. Decisão reformada. Agravo de instrumento provido.
Agravo de Instrumento no 0023512-95.2012.8.26.0000. Rel.
Piva Rodrigues.
No mesmo sentido, do mesmo areópago (TJSP), o
quanto asseverado no sentido de que o herdeiro deve
demonstrar a inexistência da herança para não se
responsabilizar pelo quinhão do preço devido pelo de
cujus em dado negócio jurídico. Orientação firmada no
julgamento da AC 9183425-33.2007.8.26.0000, Rel. Mello
Pinto, ou ainda, na AC 9199220-45.2008.8.26.0000, Rel.
João Camilo de Almeida Prado Costa.
Com igual teor, entendendo, no entanto, cuidar-se
de providência necessária, ainda do mesmo Tribunal
(TJSP), de se pedir vênia para destacar:
Alegação de que o pai não deixou bens. Cabiam aos
herdeiros provar o excesso, através do modo judicial do
inventário negativo, para dar maior robustez para neutralizar
a responsabilidade dos sucessores pelo cumprimento das
obrigações do primitivo devedor. Como assim não fizeram,
respondem com seus quinhões até o limite da fiança. Recurso
desprovido. Apelação n° 992.06.067592-5, da Comarca de
Sorocaba, Rel. Júlio Vidal.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Impende ponderar no sentido de que, nesse caso em
especial, existe referência a quinhões de herdeiros, o que,
sob tal perspectiva, pressupõe, do ponto de vista lógico,
que houve ativo patrimonial, ideia que implicaria na
inviabilidade da propositura de inventário negativo de bens.
Igualmente adequada a referência ao seguinte aresto
do mesmo TJSP a disciplinar as hipóteses de cabimento
do inventário negativo:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Inventário. Decisão que
determinou a apresentação do esboço de partilha antes
da alienação de qualquer bem do espólio. Alegação de
desnecessidade do esboço de partilha, por se tratar de
inventário negativo. Descabimento. Hipótese em que o plano
deverá demonstrar que todos os bens serão consumidos
pelas dívidas deixadas pelo de cujus e que nenhum quinhão
hereditário será transmitido. Aplicação do artigo 1.023 do
CPC. Necessidade de apresentação também para proteção
da menor herdeira. Esboço que, se apresentado, não causará
nenhum dano às partes. Recurso não provido. Agravo de
Instrumento nº 0177343-66.2012.8.26.0000, da Comarca de
São Paulo, Rel. Walter Barone.
Nesses termos, sem um interesse de agir efetivamente
demonstrado, a justificar a movimentação da máquina
judiciária estatal, não se tem admitido sucesso nesse tipo
de demanda.
Ainda pedindo licença para transcrições, seria de se
destacar do mesmo Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo a seguinte orientação jurisprudencial:
INVENTÁRIO NEGATIVO. Autora não demonstrou o
interesse processual no ajuizamento do inventário negativo.
Herdeiros podem pleitear a habilitação na demanda
trabalhista. SENTENÇA DE EXTINÇÃO, com fulcro
no artigo 267, inciso VI (falta de interesse processual),
do Código de Processo Civil. RECURSO DA AUTORA
IMPROVIDO. Apelação no 0035588-17.2012.8.26.0562, da
Comarca de Santos. Rel. Flavio Abramovici.
Neste caso em especial, seria de se apontar sutil
diferença, eis que se cuidava de situação em que o de cujus
sucessiones agitur já havia intentado a ação trabalhista, de
modo que, nessas condições, a situação seria de simples
sucessão no polo (malgrado a má redação do artigo 43
CPC, com equivocada menção à substituição).
Realmente, com ação já em curso, ocorrendo o fale­
cimento, já prevê a legislação processual outros tipos de
providência diversos do inventário negativo (a suspensão
– art. 265 CPC – até habilitação do primeiro pelo espólio
ou, já estando este encerrado, pelos herdeiros).
Diversa, no entanto, seria a solução acaso a reclamação
trabalhista ainda não houvesse sido intentada quando da
morte do extinto.
Aí, haveria situação de falta de capacidade de
exercício para mover a demanda (com a morte,
extinguiu-se a capacidade do finado, conforme é cediço).
De tal sorte, seria o caso de se formalizar pedido pelo seu
espólio, representado pelo inventariante (art. 12 e seus
consectários do Código de Processo Civil).
Contudo, se o morto não deixou bens a inventariar, não
haveria tecnicamente um espólio (o crédito trabalhista ainda
não foi reconhecido, havendo a necessidade de propositura
da reclamação respectiva), de sorte tal que, nessas condições,
seria o caso de se intentar ação de inventário negativo, possibilitando a indicação de inventariante que teria capacidade de
representação dos interesses do falecido no juízo trabalhista.
Reconhecendo que em tal situação o inventário
negativo se prestaria a esclarecer fatos e a dar certeza
e segurança jurídica a certas situações, devendo-se no
caso de ausência de patrimônio aceitar como necessária
a nomeação de viúva como inventariante para promover
reclamação trabalhista, interessante precedente também
do tribunal bandeirante, no julgamento da AC 000150911.2011.8.26.0606, Rel. Jesus Lofrano.
O critério diferencial será, portanto, a existência de
necessidade ou utilidade no processamento do inventário
negativo. Sobre o tema, também do tribunal paulista:
INVENTÁRIO NEGATIVO. Ausência de bens a inventariar.
Situação excepcional que visa esclarecer situação pessoal ou
patrimonial do viúvo ou de terceiro. Autores que insistem
na necessidade da certidão de nomeação de inventariante
para darem baixa na CTPS do falecido junto à empresa em
que trabalhava. Obrigação da empregadora de fazer constar,
no Termo de Rescisão de Contrato de Trabalho – TRCT o
motivo “falecimento”. Obrigatória a indicação do código de
movimentação do FGTS no referido Termo, que será firmado
pelo beneficiário do falecido. Hipótese, todavia, em que os
herdeiros lograram levantar o FGTS, demonstrando que as
providências já foram tomadas pela empresa. Regularidade
junto à previdência. Falta de interesse de agir. Extinção mantida.
Recurso improvido. Apelação no 0345766- 91.2009.8.26.0000,
da Comarca de Atibaia, Luiz Ambra.
Ainda em pertinência com tudo quanto asseverado nas linhas acima, o seguinte julgado, versando sobre nova situação
fática (erro na certidão de óbito a autorizar o reconhecimento
de interesse de agir para o inventário negativo):
AGRAVO DE INSTRUMENTO. Decisão que determinou aos
agravantes emendarem a inicial para converter pedido de alvará em inventário negativo. Crédito trabalhista não recebido
em vida pelo seu titular. Hipótese em que, a despeito da norma
prevista no art. 1o da Lei no 6.858/80, é necessário o inventário
negativo, porquanto consta da certidão de óbito do de cujus
que ele deixou bens a inventariar e a dispensa do processamento do inventário somente se aplica quando o falecido não
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 47
possuir outros bens. Recurso desprovido. Agravo de Instrumento no 0265187-54.2012.8.26.0000, Rel. Milton Carvalho.
Ainda sobre a necessidade de inventário negativo para
corrigir situações quanto a erros verificados na certidão
de óbito acerca da existência de bens, de se destacar do
mesmo TJSP:
Inventário negativo. Possibilidade. Existência de credo­
res. Assento de óbito do qual constou a existência de
bens. Interesse de agir caracterizado. Extinção afastada.
Sentença anulada. Recurso provido. Apelação no 000399135.2009.8.26.0077, da Comarca de Birigui, Claudio Godoy.
Mas, dentro do escopo preconizado por meio do
presente artigo, o que se pondera é no sentido de que
ainda haveria diversas hipóteses práticas da necessidade
de propositura de inventários negativos (e ao se referir
à necessidade, pelo óbvio, se está referindo à existência
concreta do interesse de agir para tanto, enquanto
condição do exercício do direito de ação).
Ora, o escopo visado, nesses casos, para justificar a movimentação da máquina judiciária estatal será, justamente,
a obtenção de uma declaração de que o extinto não deixou
patrimônio a ser transmitido a qualquer herdeiro.
Ou seja, satisfaz-se o requisito de reconhecimento de
uma tutela meramente declaratória, qual seja tutela que
não possui senão o elemento declaração10.
Basta, portanto, que se demonstre a necessidade e a
utilidade de se obter essa declaração negativa para que o
inventário negativo se consubstancie na tutela adequada
para tal finalidade. As hipóteses, portanto, não seriam de
interpretação em numerus clausus (restritivas), mas, ao
revés, seriam de interpretação em numerus apertus.
Veja-se a seguinte orientação no sentido de reconhecerse inventário negativo de bens como modo de se evitar a
caracterização de situação de herança jacente, formada no
Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em precedente
muito interessante, em cujos trechos principais pede-se
vênia para continuar a transcrever neste singelo artigo:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – Inventário –
Imóveis prometidos à venda – Prova da quitação do
preço, ausência de outros bens a serem inventariados,
configuração de inventário negativo e não herança
jacente, alvarás podem ser outorgados aos adquirentes.
Recurso provido. (...) 2 imóveis que foram objeto de
compromisso de compra e venda firmado e quitado
anteriormente à morte da de cujus. Portanto, presente
caso é simplesmente de deferimento de expedição
de alvarás judiciais para cumprimento de obrigação
assumida em vida pela falecida. Agravo de Instrumento
no 0032903-74.2012.8.26.0000, da Comarca de São
Paulo, Rel. Moreira Viegas.
48
Não menos importante é a situação referente ao
reconhecimento da possibilidade de propositura de
inventário negativo de bens para efeitos de caracterização
dos requisitos necessários à configuração da usucapião
constitucional urbano (como sabido, para a sua
caracterização mister se fará a inexistência de outros
bens pelo possuidor).
E isso veio a ser reconhecido pelo tribunal paulista
no julgamento da AC 994.09.287247-1, Comarca de
Socorro, Rel. Ênio Santarelli Zuliani.
Referências Bibliográficas
CARVALHO NETO, Inácio. Direito das sucessões. São Paulo:
Saraiva, 2008.
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de Processo Civil. 3.v. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
Notas
1
Nesse sentido, interessantes ponderações históricas apontadas por
Thomas Marky em célebre obra acerca de Direito romano, mencionada
nas referências do presente texto, às páginas 35 e seguintes.
2
Fustel de Colanges. A cidade antiga, como mencionado nas referências
ao final deste texto.
3
Com narrativa acerca desta correlação entre propriedade e o seu
caráter sagrado no Direito romano e seu reflexo nos dias atuais, em
obra mencionada nas referências deste texto, o entendimento de Silvia
C. B. Opitz e Oswaldo Opitz, à fl. 65.
4
À guisa de exemplificação, nesse sentido, destaca-se a opinião de
Maria Berenice Dias em obra mencionada nas referências deste texto,
p. 367.
5
Nesse sentido, Inácio de Carvalho Neto, em obra mencionada nas
referências bibliográficas deste texto à página 38.
6
No seu famoso Vocabulário jurídico, como destacado nas referências
bibliográficas deste texto, p. 515.
7
Obra mencionada nas referências da presente análise, à p. 422.
8
Quanto a isso, remete-se o leitor ao conceituado Curso avançado
de Processo Civil, de Luiz Rodrigues Wambier e Eduardo Talamini,
às páginas 312-313, em detalhes nas referências bibliográficas do
presente estudo.
9
Com propriedade, essa é a opinião de Roberto Senise Lisboa, em
conhecido manual, p. 434, devidamente identificado nas referências
bibliográficas deste texto.
10
Na feliz acepção de João Batista Lopes em conhecida obra
mencionada nas referências do presente texto, à página 38.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Márcia Michele Garcia Duarte
Coordenadora do NPIC
Professora das Faculdades São José e da Ucam
T
Relatório
rata-se de situação concreta em que determinado candidato ao cargo de Professor no Magistério Superior Federal submeteu-se a concurso
público de provas e títulos.
O candidato foi o único a ter inscrição deferida para
participar do certame que ofertava duas vagas, sendo
aprovado com excelente nota na prova de conteúdo, de
cunho eliminatório, obteve êxito na prova didática e
recebeu notas baixas na prova de títulos. Considerando a
extração da média ponderada, o candidato foi reprovado,
embora não fossem eliminatórias as etapas seguintes à
prova de conhecimento.
Não obstante o caráter eliminatório indevidamente
conferido à fase de prova de títulos, a Banca Examinadora
composta por cinco membros, conferiu notas heterogêneas
ao mesmo lote de títulos apresentados e, sendo assim,
constataram-se valorações subjetivas e individuais feitas
por cada um dos examinadores, uma vez que não havia
tabela (barema) única e previamente divulgada a orientar
a distribuição das notas aos títulos.
Este artigo traz como ponto nodal a aplicação das
decisões paradigmas prolatadas no AI 194188 e no MS
31176 MC / DF, ambas do Supremo Tribunal Federal.
Fundamentação Jurídica:
A situação narrada é de alta indagação jurídica e de
grande complexidade, visto que presentes violações aos
preceitos constitucionais e infraconstitucionais com efeitos
extremante nocivos ao administrado e ao interesse público.
50
Foto: 2A Fotografia
Jurisdição constitucional como
fundamento para o efetivo
acesso à Justiça
O caso permite a intervenção do Poder Judiciário como
forma de correção do desvio ocorrido na realização do
certame de modo a torná-lo válido em sua integralidade
com base na Constituição Federal, notadamente em seu
art. 37, II, a respectiva orientação doutrinária reiterada e
pacífica interpretação desse dispositivo pelo STF.
No curso de nossa pesquisa encontramos que a
discussão acerca do caráter meramente classificatório
da prova de títulos em concurso público fora levada
ao Supremo Tribunal Federal e decidida em 1997 (AI
194188), oportunidade em que brilhantemente o Ministro
Marco Aurélio entendeu que se coaduna com o princípio
da razoabilidade constitucional que a pontuação na prova
de títulos sirva apenas à classificação dos candidatos e
“JAMAIS definindo aprovação ou reprovação”.
Entendeu ainda que constituiria verdadeiro paradoxo
o fato de candidato ser aprovado em provas escritas e orais,
mas declarado reprovado como consequência das notas
atribuídas na prova de títulos.
A Egrégia Corte renovou o sólido posicionamento
ao julgar o Agravo Reg. em Agravo de Instrumento
n. 1994.188-8-RS e, em decisão recente, o Excelentíssimo
Ministro Luiz Fux, asseverou que esse permanece sendo o
entendimento do Pretório Excelsior, destacando o currículo
expresso em caráter meramente presumido a habilitação
e o conhecimento do candidato, posto que esses não são
testados, e que, portanto, essa seria a razão para não existir
concurso de títulos, e, sim, concurso de provas ou provas
e títulos.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Nesse contexto, lembremos que o edital é a lei do
concurso público, vinculando administrador e adminis­
trado. Outrossim, temos que a administração deve agir
em virtude de lei, concluindo-se que somente poderá fazer
aquilo que estiver descrito na ferramenta editalícia. O
particular, por outro turno, encontra guarida no próprio
texto constituinte para que se exima daquilo que não
se encontra previsto em lei, na forma do art. 5o, II, que
estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar
de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
O certame deve observar os princípios da vinculação
do instrumento convocatório e do julgamento objetivo nas
situações paralelas nos atos convocatórios, impedindose a ocorrência do desvio de finalidade, a inobservância
da teoria dos motivos determinantes e a violação aos
princípios da administração previstos no caput do art.
37 da Carta Maior, sob pena de os atos da administração
restarem maculados.
Na hipótese narrada, faltou autorização legal no edital
e na Resolução para que as etapas de prova didática ou
prova de títulos tivessem caráter eliminatório. Assim, não
pode imperar a vontade e a suposta discricionariedade
do administrador sob pena de infringir neste e noutros
elementos que igualmente devem nortear os atos da
Administração Pública, tais como os princípios da
moralidade e da impessoalidade, e consequentemente, o
princípio da probidade administrativa.
Do mesmo modo, o princípio da vinculação evita que
brechas sejam oportunidades para a violação dos deveres
do administrador de probidade e impessoalidade. Tal
princípio é tão essencial que a sua inobservância pode
gerar a nulidade do ato, devendo, pois, ser cumpridas as
normas e condições estritamente vinculadas pelo edital.
Além disso, a falta de barema prévio e público
comprometeu a lisura e transparência do certame, posto
que viabilizou que critérios subjetivos orientassem a
distribuição de pontos. Isso restou evidente pelas notas
heterogêneas atribuídas ao mesmo lote de documentos
apresentados pelo candidato na prova de títulos.
Ante tantos vícios apontados, não resta outra
possibilidade de correção do desvio senão pela via do
Poder Judiciário no uso da Jurisdição Constitucional.
Para Lenio Streck: “O Direito que imediatamente
conhecemos e aplicamos, posto pelo Estado, dele dizemos
ser ‘posto’ pelo Estado não apenas porque são escritos
pelo Legislativo, mas também porque suas normas são
produzidas pelo Judiciário”1
O Estado é detentor do monopólio de “dizer o direito”,
o que se realiza pelos diversos campos de atuação que
vão desde a concepção da norma até a sua applicatio
concreta, sempre à luz da Constituição. Para HansGeorg Gadamer2 a tarefa de interpretação consiste na
concretização da lei em cada caso concreto, e para Paulo
Bonavides, a interpretação conforme a Constituição é
“um princípio da interpretação da lei ordinária de acordo
com a Constituição”.3
Sabemos que o Poder Judiciário não deve intervir
na esfera do mérito administrativo, mas destacamos a
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 51
evidência de que o Estado é um Poder Uníssono com tarefas
desempenhadas pelos Três Poderes sem que isso implique
em isolamento e imunidade absoluta entre um e os outros.
Quem corrige a desvirtuação de um ato da
administração não é o Judiciário em sentido estrito, mas
sim o Estado analisando-o conforme a legalidade imposta
pelo próprio Estado. A tarefa de dizer o Direito é do
Estado que estabeleceu o contrato social, interpretando e
aplicando a jurisdição frente a cada desafio posto em juízo.
O ordenamento jurídico contemporâneo deve
dizer o direito interpretando as normas e aplicando-as
caso a caso, sempre pautado no texto constituinte e no
anseio de melhor interesse social. A função do Direito é
transformadora na condução da guarda da materialidade
dos textos constitucionais, despindo-se de formalidades
que bloqueiem a análise concreta e segura do caso concreto.
Vivemos num novo cenário de intensa potencialidade
das normas à luz do princípio democrático, e o ativismo
judicial aclara bem a nova postura que superou a
jurisprudência mecânica e bouche de la loi paralisados
por um sistema limitador da atividade judicante, ante aos
interesses sociais e políticos daquela época.
Na nova dimensão imposta ao Direito, as minorias não
mais são massacradas e não se sujeitam ao despotismo
e arbitrariedade do Governo. Ainda assim convivemos
com algumas “regalias” mantidas para o Poder Público
em Juízo e outros privilégios gerais inerentes à atividade
administrativa, mas isso não é um permissivo a que
elementos como discricionariedade sejam utilizados como
ferramenta lícita, mas para fim moralmente inadmitido.
Frente aos riscos que os administrados ainda se
encontram, a tarefa do sistema jurídico é corrigir qualquer
irregularidade voluntária ou não de atos que violem
direitos e garantias fundamentais dos administrados.
No concurso público o mesmo deve imperar. Por isso,
dissemos que há um novo paradigma de legitimidade
do direito constitucional a ser utilizado sumariamente
quando da ocorrência de qualquer violação por meio de
conduta abusiva de entes públicos.
Para Lenio Streck4 existe especial relevância da jurisdição
constitucional a partir da positivação dos direitos sociaisfundamentais, e o Poder Judiciário passou a ter um papel
primoroso na garantia da realização desses. Isso é parte das
“promessas da modernidade incumpridas”, afirma.
Critérios discriminatórios violam o princípio da
isonomia. No ingresso em concurso público o seletor
é a própria administração, que tem dever moral e ético
de observar as regras da sociedade contemporânea,
exercendo, inclusive, a autotutela como forma de corrigir
erros que tenha praticado.
Existe, claro, o minimalismo constitucional, estampado
pelo formalismo que deve caracterizar as decisões dos
52
Tribunais, mas, explica Cláudio Pereira de Souza Neto5,
a atividade judicial construtiva será atingida por meio da
hermenêutica constitucional pautada no enraizamento
em razões de cunho filosófico-político e que, a partir
disso, o movimento contemporâneo de ideias tenderia a
reinserir a razão prática da metodologia jurídica gerando
“a possibilidade de se validar essas razões como argumento
de fundamentação das decisões judiciais”.
Sendo assim, por outro lado, a máxima efetividade
da Constituição Federal permite uma postura ativista
do Poder Judiciário como decorrência dos princípios do
Estado Democrático de Direito, explica Cláudio Pereira, e o
Poder Judiciário aplicando a fundamentalidade material da
Constituição Federal é indispensável à efetividade da norma.
A Concepção do Estado Democrático de Direito
pressupõe que a jurisdição exerça a tarefa de guardiã dos
valores materiais positivados na Constituição, explica
Lenio Streck.6
Havemos de destacar que o mérito administrativo é
blindado à interferência do Poder Judiciário, salvo quando
se tratar de violação ao princípio da legalidade, violação à
teoria dos motivos determinantes, o desvio de finalidade e
violação aos princípios da administração em sentido amplo.
Retomando a análise do concurso público, esse tem
por escopo escolher os melhores candidatos para ocupar
os cargos e empregos públicos, e devem ser realizados
em consonância com os princípios da impessoalidade,
legalidade, eficiência e moralidade.
De certo, o Poder Judiciário não tem ingerência sobre
esses aspectos peculiares de cada concurso público que
melhor será examinado por seus organizadores sempre
orientados pelos princípios e necessidades especificadas
de cada cargo ou emprego público. Daí a impossibilidade
de o Poder Judiciário se imiscuir no mérito administrativo,
o que é razoável.
Igualmente não compete ao Poder Judiciário
substituir-se à Banca Examinadora, como já é pacífico na
jurisprudência, limitando-se à análise da legalidade do
certame e cumprimento dos dispositivos constitucionais.
Por outro lado, o preceito constitucional esculpido no
art. 5o, XXXV, informa que não será afastada da apreciação
pelo Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça à direito,
bem como violação da ordem justa deve ser corrigida de
pronto pelo Estado-Juiz sob pena de se infringir o Estado
Democrático enquanto ordem social contemporânea.
Esses elementos dão subsídio suficiente à intervenção
do Judiciário na esfera da Administração Pública sem
que isso implique em violação à separação de Poderes
ou intromissão no mérito administrativo, sob pena de o
concurso público incorrer em forma de escolha livre de
pessoal simpático à Banca Examinadora e que não cumpra
com os elementos mínimos ao ingresso na carreira pública.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
“A observância do princípio da impessoalidade é o instrumento hábil a
impedir que o administrador público, de alguma, forma favoreça ou persiga
administrados ao conferir-lhes tratamento desigual. A atuação pública deve
se pautar segundo a lei, ou haverá desvio ou abuso de poder.”
O controle jurisdicional se justifica não para ingressar
no mérito administrativo, mas como forma de adequar o
certame aos preceitos constitucionais e à ordem jurídica,
bem como sanar os vícios do ato praticado, isso porque: “Por
outro lado, ao Judiciário cabe manifestar-se sobre os aspectos
de legalidade e verificar se a administração não ultrapassou
os limites da discricionariedade, cometendo arbitrariedade”7.
No caso em análise, não só a ilegalidade e consequente
inconstitucionalidade da reprovação na prova de títulos é
questionada, mas também a própria ausência da valoração
prévia dos títulos, que deveria ter sido apresentada no
edital e assim ter atendido ao princípio da motivação dos
atos administrativos ao vincular publicamente os termos
da análise do curriculum vitae.
A observância do princípio da impessoalidade é o
instrumento hábil a impedir que o administrador público
de alguma forma favoreça ou persiga administrados ao
conferir-lhes tratamento desigual. A atuação pública deve
se pautar segundo a lei ou haverá desvio ou abuso de
poder. Somente quando observados os deveres restritivos
da administração: “o administrado estará imune a atos
administrativos que não possuam motivação ou que sejam
baixados com falsa motivação”.8
A moralidade é indispensável à validade do ato
administrativo que deve obedecer à lei jurídica e à lei
ética e moral que impõem ao agente público o dever de
condutas interna e externas que sirvam ao bem comum.
Em perfeita sintonia devem ser observados os princípios
da finalidade e da impessoalidade para que o administrador
público pratique atos observando sua finalidade legal, ou seja,
aquela que o Direito indica como o objetivo do ato.
Por fim, temos que o reconhecimento de invalidade de
ato administrativo que importou em “ofensa ao direito” é
corrigível em sede de Jurisdição Constitucional pela via
da “supressão de um ato administrativo ou da relação
jurídica dele nascida, por haverem sido produzidos em
desconformidade com a ordem jurídica”, ensina Bandeira
de Mello.9
Também entende dessa forma Diógenes Gaspariri
ao observar que o que motiva a invalidade do ato
administrativo é a sua “imprestabilidade jurídica”. Quanto
ao seu conteúdo, o “desfazimento do ato inválido” deve ser
imposto e cabe ao Poder Judiciário valer-se da sua própria
razão de ser e dizer o direito em cada caso concreto.10
No que toca ao concurso público em especial, os agentes
devem se orientar pela transparência e publicidade, como
formas de se possibilitar a averiguação quanto à presença
dos critérios de eficácia e lisura, sob pena de se mutilar a
essência do certame.
Reiteramos que, embora seja vedado ao Poder Judiciário
substituir o papel das Bancas Examinadoras, na tarefa de
controle jurisdicional do ato administrativo, pode, sim, se
imiscuir na esfera da Administração Pública de modo a
prover o atendimento aos preceitos legais axiológicos que
devem nortear os atos dos órgãos integrantes dessa última.
No caso em exame, verifica-se a insurgência de
elementos teratológicos nas leis do certame e no ato que
gerou a reprovação do candidato na prova de títulos, o
que justifica a intervenção da atividade jurisdicional como
forma de correção de irregularidades do ato a fim de
atender ao melhor interesse público.
Conclusão
Concluímos que as regras editalícias decorrem do
uso da discricionariedade da Administração Pública
o que não isenta ou imuniza a apreciação ou qualquer
intervenção perpetrada pelo Poder Judiciário que tem o
papel de socorrer os administrados em caso de ilegalidade
e consequente inconstitucionalidade ofuscados pelo dito
uso de oportunidade e conveniência.
Para corrigir erro evidente entendemos que o Poder
Judiciário poderá intervir de modo a reconhecer e declarar
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 53
a invalidade do ato da administração e anular a inabilitação
do candidato reprovado em concurso público na fase de
prova de títulos sem que isso implique em interferência no
mérito administrativo.
Ademais, estamos diante de necessária jurisdição
constitucional a fim de ser aplicada em absoluto a
interpretação uníssona que o STF conferiu ao inciso II
do art. 37 da CF/88, segundo a qual a prova de títulos em
concurso público tem caráter meramente classificatório
e “jamais” eliminatório, conforme precedentes recentes
invocados como decisões paradigmas.
Na sequência, entendemos que o Poder Judiciário poderá
reconhecer e declarar a habilitação do candidato no certame,
uma vez que esse obteve êxito na prova de conhecimento
(eliminatória) e cumpriu todas as formalidades das etapas
seguintes, no tempo e modo exigidos nas regras editalícias
(prova didática, habilitatória; prova de título, classificatória),
bem como determinar que a Administração proceda com
os meios necessários à investidura do particular no cargo de
Professor de Ensino Superior.
A nosso ver, somente pela via da jurisdição constitucional e do ativismo judicial o candidato que teve seu direito
violado encontrará em sua plenitude o legítimo e efetivo
acesso à Justiça, que se realizará por meio do processo justo
e da prestação jurisdicional que entregue a tutela tempestiva
e gravada pela mais lídima expressão da Justiça.
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Notas
“Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Lócus
da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 04.
2
GADAMER, Hans-Georg Verdad y Método. Vol. I. Tradujeron Ana Agud Aparicio y Rafael de Agapito. 11a. ed. Salamanca: Ediciones Sígueme,
2005, p. 489.
3
BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 432.
4
E mais: “Dito de outro modo, descumprir os dispositivos que consubstanciam o núcleo básico da Constituição, isto é, aqueles que
estabelecem os fins do Estado (o que implica trabalhar com a noção de “meios” aptos para a consecução dos fins), representa solapar o próprio
contrato social (do qual a Constituição é o elo conteudístico que liga o político e o jurídico da sociedade). O texto constitucional, fruto desse
processo de repactuação social, não pode ser transformado em um latifúndio improdutivo. Não pode, pois, ser deslegitimado”. (Itálico
original. Grifos nossos). “Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A
Constituição como Lócus da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 03-41.
5
“Fundamentação e Normatividade dos Direitos Fundamentais: Uma reconstrução Teórica à Luz do Princípio Democrático” In A Nova
Interpretação Constitucional. BARROSO, Luís Roberto (org). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 299.
6
“Hermenêutica e Concretização dos Direitos Fundamentais-Sociais no Brasil”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Lócus
da Hermenêutica Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 03-41.
7
TRF 2. Apelação Cível. - Processo: 200651020011817. Sexta Turma Especializada.
8
ALMEIDA FILHO, Agostinho Teixeira de; PEDRAS JÚNIOR, Gabriel Luiz Junqueira; LOYOLA, Bernardo Guimarães; VIANNA, Roberto
Vieira. “O Princípio Constitucional da Impessoalidade”. In A Constitucionalização do Direito: A Constituição como Locus da Hermenêutica
Jurídica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, pp. 81-94.
9
Curso de Direito Administrativo. 27ª ed, rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 462/4.
10
Direito Administrativo. 15ª ed. atualizada por Fabrício Motta. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 165/6.
1
54
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 55
Relevantes aspectos jurídicos a serem considerados
Alexandre Guimarães Gavião Pinto
S
Juiz de Direito do TJRJ
abe-se que os genitores devem, por ditame legal,
lutar pelo bem-estar de sua prole, zelando pela
saúde e pelas integridades física e mental de seus
filhos, e que os direitos das crianças e dos adolescentes desafiam uma proteção especial, visando o pleno
desenvolvimento dos aludidos menores, que possuem a
prerrogativa inafastável de evoluir em paz e segurança.
Tal afirmação implica na inevitável dedução, de
que não deve o poder público admitir que menores
permaneçam em inadequadas condições sociais,
sujeitos a situações calamitosas, fome, qualquer tipo de
exploração ou opressão, condenados ao analfabetismo
ou mesmo ao abandono daqueles a quem, por força de
lei, incumbe a responsabilidade de criá-los e suprir-lhes
as latentes necessidades, o que abrange, principalmente,
os pais.
Nessa linha de raciocínio, forçoso convir que não
pode, qualquer dos genitores, agir em descompasso com o
poder familiar que exerce em favor de seus filhos menores,
negligenciando cuidados básicos ou atuando de forma
omissa, de maneira reprovável e imoral.
Necessário se faz, a fim de garantir os direitos
constitucionais dos menores, que o Poder Público, em
especial o Judiciário, na seara jurisdicional, combata, com
firmeza, não só ações reprováveis, como omissões dos
pais na nobre tarefa de proteger os filhos e de zelar pelo
seu bem-estar físico e mental, o que enseja o acolhimento
de eventuais pretensões de destituição do poder familiar,
na hipótese de comprovada ocorrência de graves fatos
configuradores do descaso dos genitores com o exercício
do poder familiar.
56
Foto: Arquivo pessoal
Destituição do poder familiar
Tais situações de negligência, desde que demonstradas,
à saciedade, nos autos, por meio de elementos probatórios
seguros e idôneos, devem ser imediatamente cessadas,
afastando-se, destarte, o menor de qualquer situação de
risco.
Vale lembrar que, de acordo com o artigo 1.634 do
Código Civil, compete aos pais, quanto à pessoa dos
filhos menores, dirigir-lhes a criação e a educação, e têlos em suas companhia e educação, sendo certo que, na
forma do artigo 1637, do mesmo diploma legal, se o pai
ou a mãe abusar de sua autoridade, faltando aos deveres
a eles inerentes ou arruinando os bens dos filhos, cabe ao
magistrado, requerendo algum parente, ou o Ministério
Público, adotar todas as medidas que lhe pareçam
reclamadas pela segurança do menor e de seus haveres,
até suspendendo o poder familiar, quando convenha.
Ressalte-se que o artigo 1.638 do Código Civil determina
que perderá, por ato judicial, o poder familiar, o pai ou a
mãe que castigar imoderadamente o filho, deixar o filho
em abandono, praticar atos contrários à moral e aos bons
costumes ou incidir, reiteradamente, nas faltas previstas
no artigo antecedente.
A Lei no 8.069/90 dispõe, em seu artigo 22, que, aos
pais, incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos
filhos menores, cabendo-lhes, ainda, no interesse destes,
a obrigação de cumprir e fazer cumprir as determinações
judiciais, salientando-se que o artigo 33 prescreve que a
guarda obriga à prestação de assistência material, moral
e educacional à criança ou ao adolescente, conferindo a
seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive os
próprios pais.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
Vê-se, assim, que os direitos fundamentais dos menores,
lastreados na dignidade e no valor da pessoa humana,
exigem que se estabeleça, urgentemente, em favor dos
mesmos, que podem eventualmente estar em situações de
risco, melhores condições de vida, tendo a infância o direito
a uma assistência e a um auxílio mais intenso e eficaz.
A ação de destituição do poder familiar almeja
justamente comprovar a violação efetiva, por parte de
qualquer dos genitores, ou mesmo de ambos, das regras
atinentes ao poder familiar, o que, desde que demonstrado
de forma segura, autoriza a incidência das sanções
previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente e no
Código Civil.
A família é um elemento fundamental da sociedade,
constituindo um meio natural para o crescimento e
o bem-estar de todos os seus membros, o que atinge,
particularmente, as crianças e os adolescentes, que devem,
por isso, receber a proteção e a assistência necessárias para
desempenhar relevantes papéis no seio social.
Ora, se a prova dos autos revelar que um dos pais ou
ambos não ostentam condições de proteger o filho menor
e de desempenhar o poder familiar de forma responsável,
por deixar de garantir à criança ou ao adolescente um
desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições
dignas de existência, a destituição do poder familiar é
medida que se impõe, sendo perfeitamente possível, e
até mesmo recomendável, o deferimento de liminar para
a suspensão do seu exercício, o que pode viabilizar a
inclusão do menor na lista de crianças disponíveis para
a adoção.
Em reiterados julgados de nossos tribunais pátrios,
depreende-se que, se os genitores não apresentam as
mínimas condições psicológicas, emocionais, sociais
e econômicas de amparar os filhos, outra alternativa,
muitas vezes, não resta a não ser a procedência do
pedido formulado na inicial da ação de destituição do
poder familiar, que, comumente, é ajuizada pelo próprio
Ministério Público no intuito precípuo de defender os
interesses violados dos menores, que carecem de peculiar
proteção.
Em razão de falta de maturidade física e intelectual, os
menores precisam de cuidados especiais, além de proteção
jurídica adequada, sem discriminação alguma, devendo
ser adotadas todas as medidas oportunas para garantirlhes o bem-estar, tendo em conta os deveres dos pais, que
devem assegurar aos filhos, de maneira compatível com o
desenvolvimento de suas plenas capacidades, a orientação
e os conselhos próprios ao exercício dos direitos que lhes
são reconhecidos pela Constituição da República e pelas
leis infraconstitucionais.
Possuem os pais a obrigação de conferir aos
filhos condições indispensáveis para permitir os seus
desenvolvimento físicos, mental, espiritual, moral e social,
legitimamente esperados.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 57
O que é preciso se ter em mente é que a grave violação
dos deveres do poder familiar desprestigia flagrantemente
os interesses dos menores, que não podem ficar sujeitos
a nenhuma situação de abandono, negligência ou risco,
até mesmo pelo fato de que os filhos, para o harmonioso
desenvolvimento de suas personalidades e potencialidades,
devem crescer em um ambiente familiar saudável e honesto,
em clima de amor, tolerância, liberdade e solidariedade,
o que, em última análise, contribui para se alcançar a
felicidade tão almejada por qualquer ser humano.
A procedência da pretensão de destituição do poder
familiar exige, contudo, que as circunstâncias dos autos
evidenciem, indubitavelmente, a absoluta inaptidão
dos pais em zelar pela guarda, pela educação e pelos
cuidados mínimos exigidos por uma criança, bem como
a demonstração da existência de riscos manifestos às suas
saúde e integridades física e mental, o que implica no
reconhecimento de que a decretação da perda do poder
familiar se mostra como medida de proteção, socorrendo
aos superiores interesses do menor, por possibilitar o
seu pleno e saudável desenvolvimento, o que pode vir a
ocorrer até em família substituta, diante da inaptidão da
família natural para o cumprimento de tal mister.
O abandono dos pais aos filhos também autoriza o
drástico, porém necessário, acolhimento do pleito de
destituição, eis que o referido abandono possui inegável
relevância jurídica, tanto na esfera cível como na penal.
Na realidade, o abandono tratado pela lei não é tão
somente o ato de deixar o filho sem assistência material,
fora do lar, mas também a indiferença intencional pelas
suas educação, criação e moralidade.
Com efeito, vislumbra-se, no abandono do filho, ato
reprovável que implica no não atendimento direto do
dever de guarda, vigilância, criação e educação, a revelar
a inequívoca falta de aptidão para o exercício do poder
familiar, o que justifica plenamente a privação.
Releva notar que situações de desídia colocam os
menores em grave perigo, seja quanto à segurança e à
integridade pessoal, seja quanto à saúde e à moralidade,
afrontando um dos direitos mais relevantes dos filhos,
que é justamente o de estar sob os adequados cuidados e a
vigilância de seus pais, em estado de segurança.
A hipótese de abandono traduz-se na falta de cuidado
e atenção, e autoriza a perda do poder familiar, já que não
se permite que qualquer dos pais deixe o filho à mercê da
própria sorte.
Foto: © Syda Productions - Fotolia.com
O direito dos filhos está intimamente ligado aos deveres
dos pais, salientando-se que o posicionamento vigente é o
da proteção integral da criança e do adolescente, com a
afirmação de todos os direitos inerentes, que devem ser
respeitados, rotineiramente, pela família, pela sociedade e
pelo próprio Estado.
Entre os direitos fundamentais dos menores, explicita­
dos, não apenas no Estatuto da Criança e do Adolescente,
mas também – e principalmente – na Constituição da
República, encontra-se a necessidade de se garantir o
desenvolvimento sadio e harmonioso dos mesmos, que
devem ser criados e educados em ambiente favorável à sua
formação moral, o que indica que o interesse dos filhos
menores deve prevalecer em eventuais situações de conflito
e, em todos os casos, deve se sobrepor a qualquer outro bem
ou interesse juridicamente albergado, levando-se em conta
não só o fato de ser a Lei no 8.069/90 uma lei de função social,
com normas de ordem pública, nitidamente prioritárias,
que possuem assento constitucional, sendo inafastáveis
pela vontade das partes, mas também o fato de que deve ser
respeitada a condição peculiar da criança e do adolescente
como pessoas em pleno e permanente desenvolvimento.
As funções paterna e materna são essenciais e se
complementam, possuindo impressionante impacto no
sadio desenvolvimento da descendência.
Tal assertiva revela que, entre as incontáveis obrigações
decorrentes do poder familiar, se identifica a necessidade
de que os pais tenham a companhia de seus filhos,
dando-lhes direção, criação e educação, o que mostra
que a educação não abrange somente a escolaridade, mas
também a convivência familiar permanente, o afeto, o amor
e o carinho, indispensáveis para o pleno estabelecimento
das condições de desenvolvimento da criança, em perfeita
segurança.
“O direito de criar um filho se relaciona
principalmente com a necessidade de
que seja assegurado ao mesmo todos os
direitos fundamentais à pessoa humana,
garantindo-lhe o bem-estar físico e
mental, o que alcança, tanto o sustento
alimentar, como o zelo com a saúde e
a higiene, e todas as outras medidas
pertinentes para a sobrevivência digna
e a justa evolução da prole.”
58
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
O direito de criar um filho se relaciona principalmente
com a necessidade de que seja assegurado ao mesmo todos
os direitos fundamentais à pessoa humana, garantindo-lhe
o bem-estar físico e mental, o que alcança tanto o sustento
alimentar, como o zelo com a saúde e a higiene, e todas as
outras medidas pertinentes para a sobrevivência digna e a
justa evolução da prole.
Ter o filho em companhia dos pais é, na realidade, função
essencial ao poder familiar, não significando apenas residir
junto, mas também instaurar uma convivência contínua e
permanente, tatuada, de maneira indelével, pela constante
troca de sadias e proveitosas experiências, por aconselhamentos oportunos e orientações probas, o que contribui para o
desenvolvimento sólido da personalidade do infante.
Os menores não devem ser separados de seus pais
contra a vontade destes, em regra, salvo se, em uma
ação judicial regularmente instaurada, com o respeito ao
contraditório e à ampla defesa, for demonstrado que tal
separação é realmente necessária no interesse superior da
criança ou do adolescente.
O poder familiar constitui função típica dos pais,
que perdura por toda a menoridade, sendo certo que,
sempre que for constatada a existência de um fato grave
e reprovável, incompatível com o justo exercício do
poder familiar, materializa-se a possibilidade não só de
suspensão, como, até mesmo, de perda do poder familiar,
indevida e inconvenientemente exercido pelos pais.
Não se pode perder de vista, entretanto, que a perda do
poder familiar é realmente uma medida marcantemente
excepcional. Pode e deve ser decretada judicialmente,
em procedimento contraditório, em prol dos inafastáveis
interesses do menor, quando ficarem demonstradas, desde
que suficientemente, situações graves, que configurem, na
forma do artigo 1.638, do Código Civil, falta aos deveres
dos pais para com os filhos.
A adoção da doutrina da proteção integral pela Lei
Menorista e pela jurisprudência vigilante de nossos
tribunais fortaleceu consideravelmente o princípio do
melhor interesse da criança, que deve ser observado em
quaisquer circunstâncias, inclusive nas relações familiares,
e nos casos relacionados à filiação.
A medida drástica, porém muitas vezes imprescindível,
de destituição do poder familiar objetiva assegurar os
superiores interesses do menor, que não pode permanecer
em situação de flagrante abandono, seja por ação ou
omissão de seus genitores, sob pena de se violarem as
prerrogativas constitucionais desses importantes seres
em desenvolvimento, bem como os mais comezinhos
cuidados necessários à prole, sendo profundamente injusto
e inaceitável pretender que continue vivendo em situação
irregular, de total insegurança jurídica, na mera expectativa
de vir um dia a estar bem-assistido pelos próprios pais.
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 59
Foto: Renato Stockler
D om Quixote, por Ada Caperuto
Agência de Redes para
Juventude
Desenvolvida pelo cineasta e escritor Marcus Faustini, a iniciativa é um
modelo inovador de ação sociocultural, que promove a formação e
incentiva a mobilização cidadã de jovens moradores de comunidades
pacificadas. Patrocinada pela Petrobras, a Agência também premia
os melhores projetos elaborados em benefício dos moradores das
localidades onde ocorrem as oficinas.
C
riada em 2011 pelo escritor e cineasta Marcus
Vinícius Faustini, a Agência de Redes para
Juventude está mudando a realidade de
centenas de pessoas que vivem nas comu­
nidades pacifi­
cadas da capital do Rio de Janeiro. No
momento, a iniciativa de cunho sociocultural funciona em
sete centros de apoio, localizados na Rocinha, no Borel, no
Batan, na Cidade de Deus, no Cantagalo, na Providência
e na Lapa, sendo o último um “ponto de encontro” para
outras comunidades ocupadas, que não tenham um
núcleo em sua região. A iniciativa, que une a arte às ações
de responsabilidade social, oferece aos jovens dessas
localidades as conexões e as ferramentas para que eles
possam ir além de seu cotidiano, ampliando horizontes
sem sair da própria comunidade, seu próprio território.
Patrocinada pela Petrobras, a Agência de Redes
para Juventude atende jovens de 15 a 29 anos, contando
com o apoio de parcerias estabelecidas com ONGs
e grupos locais, que cedem o espaço para as aulas. Os
alunos recebem bolsa-auxílio mensal, material didático
“A ideia é oferecer repertórios para
o jovem criar seu próprio caminho
de conexões para sua vida na
cidade. Ao mesmo tempo, ele é
encorajado a pensar o seu próprio
território como lugar de criação.”
Lançamento do projeto “Com Estilo”
Fotos: Agência Redes para Juventude
Festa nordestina no
lançamento do jornal
Fala Roça, o primeiro
periódico impresso
sobre a cultura do
nordeste na Rocinha
60
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 61
Fotos: Agência Redes para Juventude
Páscoa no Chapéu Mangueira, um evento da Maneh Produções, projeto premiado. As crianças passaram a tarde se divertindo e
se deliciando com a distribuição de chocolates
Metodologia premiada, projetos idem
Até hoje, já foram realizados sessenta projetos e
outros 41 estão em andamento. Somados os três ciclos
de oficinas que já ocorreram, a Agência reuniu um
total de 710 jovens que participaram das ações, mas o
número de inscritos já ultrapassa dois mil. Os números
impressionam e o trabalho foi merecedor de um impor­
tante prêmio. Em 2012, o programa foi premiado e
escolhido pela Fundação Calouste Gulbenkian para ser
implantado em Londres e Manchester, na Inglaterra, em
parceria com People’s Palace Project (PPP), Battersea Art
Centre (BAC) e Contact Theatre.
Já entre os projetos das comunidades que se
destacaram estão os seguintes: Borel – Reci-Criando (cria
instrumentos musicais a partir de material reciclável) e
Nós Com Todos (oficinas de música e dança); Providência
– Providenciando a Favor da Vida (assistência a mães
de primeira viagem) e Clube da Luta (academia de
artes marciais); Batan – Oi, Galera! Oficina de Cultura,
Arte e Som (oficina de instrumentos musicais) e CAB –
Conscientização Arte Batan (oficinas de arte, reciclagem
e conscientização); Chapéu/Babilônia – Coletivo Fitando
Arte (oficina de moda e decoração para mulheres)
Inauguração do projeto Estação Rociclagem, na Rocinha
62
e almoço, para que possam participar das oficinas. As
aulas abrangem artes plásticas, vídeo de comunicação,
formação em cultura digital, cidadania e mobilização.
Ao final de dez meses, todos os participantes recebem
certificados de especialização da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ).
O que sobressai no modelo da Agência é o fato de que
os alunos também desenvolvem projetos de uma atividade,
ação cultural ou produto que beneficie a sua comunidade.
Todos eles são apresentados em um evento realizado
em cada território, ao final das jornadas. Além disso, os
cinco melhores projetos de cada comunidade recebem,
cada um, uma determinada quantia em dinheiro para
serem desenvolvidos e implantados. “A ideia é oferecer
repertórios para o jovem criar seu próprio caminho de
conexões para sua vida na cidade. Ao mesmo tempo, ele é
encorajado a pensar o seu próprio território como lugar de
criação”, diz Faustini.
A Agência de Redes para Juventude também conta
com um portal, no qual os jovens podem postar detalhes
sobre seus projetos em diferentes blogs. O portal é um
espaço de troca entre os jovens e profissionais – designers,
jornalistas, artistas, professores –, que poderão comentar
as postagens e recomendar caminhos para a execução
dos projetos. No endereço eletrônico, os jovens também
podem mapear o espaço físico da comunidade e iniciar
um processo de demarcação do território, com a criação
de um novo mapa.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
e Maneh Produções (produtora de eventos locais);
Cantagalo – Boca de Lixeira (conscientização sobre
reciclagem com criação de coleta seletiva) e Workshop de
Dança (aulas teóricas e praticas de hip-hop); Cidade de
Deus – CDD na Tela (montagem de um site audiovisual)
e Conexão Vivarte (evento “mistureba” composto por
artistas da CDD).
Uma pesquisa recente mostrou que 90% dos projetos
contemplados das duas últimas edições continuam
em pleno funcionamento. Um saldo comemorado
por Faustini: “Esse número confirma que basta uma
oportunidade para que esses jovens mostrem seu
potencial de criação e realização”.
Faustini, no Batan, durante o 1o Ciclo da Agência de Redes para Juventude
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 63
Luiz Gonzaga Bertelli
Presidente Executivo do Ciee
A
presidente Dilma tem reiterado à Nação o
seu obstinado intuito de convocar um plebiscito popular, estimado em meio bilhão de
reais, com a finalidade de analisar a possibilidade de uma reforma política. Segundo ela, seria “imprescindível” para responder aos anseios da população.
Os legisladores da base governamental e da oposição do
Executivo já haviam descartado a iniciativa de fazer um
plebiscito.
Reforma política feita por meio de um plebiscito é
temerária e de difícil consecução, sentenciam jurisconsultos
famosos, entre eles Miguel Reale e Meirelles Teixeira.
Em 1963, eleitores votaram no plebiscito. Onze
milhões sufragaram de um eleitorado de dezoito milhões.
O resultado determinou a volta do presidencialismo.
No ano de 1993, o governo indagou da população
brasileira se desejava uma monarquia ou uma república
e sobre o sistema de governo: presidencialismo versus
parlamentarismo. As decisões eram dicotômicas. Houve
o pouco interesse da população e o baixo nível de
mobilização no que concerne à consulta. Em decorrência,
perto de 50% do eleitorado absteve-se de votar.
Desta feita, o questionamento é de difícil entendimento
para a maioria da população brasileira, constituída,
tristemente, de analfabetos puros ou funcionais. Daí, a
imprescindibilidade, preliminarmente, de longo e didático
esclarecimento ao povo a fim de resultar em efetivos
benefícios. A informação poderá ser obscura, e há dúvidas
de que os eleitores a consigam distinguir, como afirma um
64
Foto: Arquivo CIEE
Plebiscito seria a solução?
“Na legislação maior
brasileira, o termo
plebiscito foi introduzido
na Constituição de 1937, o
que confirma a inspiração
autoritária do instituto.
A constituição de 1946,
igualmente, contemplou a
consulta plebiscitária, e a
Emenda Constitucional no 4,
de 1961, instituiu o regime
parlamentarista de governo.”
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
ministro do STF. Haverá um catálogo de questões de difícil
escolha. Existe vasta literatura sobre o plebiscito e diversos
livros de cunho jornalístico.
Consultar a população por plebiscito significa ouvir a
opinião do povo, por “sim” ou “não”, sobre a proposta que
lhe seja formulada.
À época que se estudava Direito romano nas escolas
jurídicas do país, aprendemos com o professor Alexandre
Correia que o plebiscito constitui uma das modalidades
das leges rogatae, ou leis votadas pelo povo reunido em
comício por proposta de magistrados, que se tornam
obrigatórias para todos após a ratificação pelo senado.
Modernamente, o plebiscito é instituto presente na
consulta ao povo acerca de uma decisão a ser tomada. No
plano do Direito internacional, o plebiscito é empregado
a fim de obter a manifestação de uma comunidade
a propósito da independência nacional ou de sua
vinculação a este ou àquele Estado. A partir dos tratados
que juridicamente puseram termo à I Guerra Mundial,
sua utilização tem sido frequente.
Para os constitucionalistas mais conceituados, o
emprego do plebiscito enseja séria controvérsia e tem
sido utilizado, em diversas ocasiões, de forma distorcida,
a fim de reforçar predominantemente o poder de
autocratas. Daí, a assertiva de Louise Michel, em 1905:
“Todo plebiscito, graças à intimidação, à ignorância, dá
sempre a maioria contra o Direito, quer dizer ao governo
que o invoca.”
Não obstante, alguns o consideram um instrumento
útil para trazer à democracia a intervenção direta do
povo. Corresponderia a um remédio capaz de impedir
que a soberania popular não se degenere em mera
soberania dos parlamentares, conforme a advertência de
Rousseau.
Entre outros insignes mestres do Direito públi­
co,
Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece a imprescin­
dibi­lidade de distinguir o plebiscito do referendum. O
segundo, sim, mereceria acolhida como um instituto
que atenuaria o caráter indireto da democracia represen­
tativa. Mas as duas instituições têm de comum o chamar
os interessados, os cidadãos, a se pronunciarem sobre
assuntos da política. É certo que essa distinção é antes
de caráter político que jurídico. E nem sempre é possível
discernir, nos casos concretos, entre as consultas a que
importa e a que não importa em uma manifestação de
confiança em um homem. Por outro lado, em muitos
Estados, como na Suíça, consideram-se sinônimos os
termos referendum e plebiscito. Portanto, este se trata de
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 65
colher a vontade a priori sobre um determinado assunto,
enquanto o referendum normalmente ocorre para aprovar
ou rejeitar uma lei, uma Constituição ou, até mesmo, um
ato normativo. Contudo, são diferenças que não resistem
a uma análise absoluta; é sempre possível encontrar
exemplos históricos da palavra “referendo” significando
plebiscito, e vice-versa.
Quanto ao plebiscito, serviria, apenas, para
disfarçar o poder de um dirigente. Não passaria de um
mero instrumento do cesarismo, na sustentação de
Duverger. O referendum é procedimento usual dentro
da estrutura do poder constituído, enquanto o plebiscito
é um procedimento excepcional, destinado a produzir
modificações profundas de diversas naturezas: política,
social, territorial, etc.
Na doutrina moderna, o termo referendum significa
a consulta legítima ao povo, e o plebiscito, a consulta
abusiva, usando-a para vestir de democracia um poder
autocrático. É muito difícil, talvez mesmo impossível,
fixar de maneira rigorosa as diferenças entre um e outro.
O plebiscito, no ensinamento do saudoso Celso Bastos,
volta-se mais para a consulta ao povo antes que haja um
ato já praticado, enquanto o referendum, normalmente,
ocorre para aprovar ou rejeitar uma lei, uma constituição
ou, até mesmo, um ato normativo. Trata-se de instituto
cujas raízes se encontram na concepção de que o povo é
a fonte do poder, cabendo-lhe, por isso mesmo, decidir
diretamente sobre as normas reguladoras da vida da
coletividade. Nesse sentido, e segundo Rousseau (17121778), “toda lei que o povo diretamente não ratificou é
nula; não é lei”.
Historicamente, Bonaparte usou do plebiscito para
alcançar o consulado vitalício, em 1802 e, em 1804, a
dignidade imperial. O seu sobrinho, Luís Napoleão, em
1851, realizou o plebiscito com o escopo de obter a aprovação popular de consulta, que lhe concedeu o poder imperial. Os suíços e os americanos do norte construíram
diversas modalidades de referendos com sucesso. A experiência mostra que, na maior parte das vezes, o povo
responde afirmativamente à consulta que lhe é feita. Daí
a possibilidade de utilizá-la para vestir de democracia um
poder autocrático.
Na legislação maior brasileira, o termo plebiscito foi
introduzido na Constituição de 1937, o que confirma a
inspiração autoritária do instituto. A constituição de
1946, igualmente, contemplou a consulta plebiscitária, e
a Emenda Constitucional no 4, de 1961, instituiu o regime
parlamentarista de governo.
Em 1962, o general de Gaulle, na França, convocou
o plebiscito para aprovar a eleição direta do presidente
da República. Apesar dos protestos, ganhou com
ampla maioria. No ano de 1968, sentiu-se novamente
66
pressionado e propôs novo plebiscito sobre a reforma
constitucional, mas foi derrotado.
Em janeiro de 1963, o parlamentarismo foi repelido
no Brasil, com o retorno do presidencialismo.
Alguns eminentes historiadores asseveram que a
consulta plebiscitária referia-se muito mais à aprovação
ou à repulsa da figura de João Goulart do que à opinião
sobre os benefícios ou o repúdio ao parlamentarismo.
A Constituição de 1967, bem como a emenda no 1,
de 1969, não manteve a obrigatoriedade do plebiscito
para a subdivisão, a anexação ou o desmembramento dos
Estados.
Contudo, previu a consulta prévia às populações
para a criação de municípios na forma de um plebiscito.
A Constituição brasileira de 1988 prevê a utilização do
plebiscito como forma de consulta prévia às populações
diretamente interessadas, de estados-membros da federação, com vistas à incorporação entre si, à subdivisão e
ao desmembramento.
A oposição governamental repudia a proposta da
Presidente Dilma, classificando-a como divisionista.
No ver dos partidos, o melhor seria a adoção de
uma ampla consulta popular, mas não sob a forma
plebiscitaria do “sim” ou do “não”. A legislação complexa,
como a da desejada reforma política brasileira, ensejaria
maior discernimento, o que só um referendum poderia
proporcionar, proclamam.
Entretanto, caberá exclusivamente ao Congresso
Nacional convocar o pretendido plebiscito ou referendum
em 2014. O órgão legislativo ao qual se apresentará o
pretendido é a Câmara dos Deputados. O plebiscito
sempre contou com as preferências dos ditadores,
especialmente os modernos, por lhes permitir obter a
unção popular de seu poder. Partindo do princípio de
que “todo poder emana povo”, a democracia plebiscitária
se vê amparada em sólida base dogmática. Não faltam
meios à propaganda enganosa para viabilizar esse
dogma, ao preparar a “vontade geral” favorável a um
homem forte, cujo surgimento e prestígio se devem, em
grande parte, a generalizado horror à anarquia gerada
quase sempre pelo facciosismo, pela paixão partidária.
Nos regimes totalitários, é frequente o recurso ao
plebiscito.
Em face da complexidade das manifestações de rua,
toda a sociedade civil e os setores que têm responsabilidade social teriam que ser ouvidos.
A juventude deixou claro que não aceita mais a sua
representação pelos atuais governantes e políticos.
O momento é histórico e devemos, dessa forma,
aproveitar a oportunidade a fim de enfrentar com isenção,
severidade e urgência, desmandos, corrupção, privilégios
e poderes encastelados.
Justiça & Cidadania | Setembro 2013
2013 Setembro | Justiça & Cidadania 67
GONÇALVES COELHO
ADVOCACIA
SÃO PAULO
Avenida Brigadeiro Faria Lima, 1478/1201 – Jardim Paulistano – (55) 11 3815 9475
68
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