Sub-Relatório Majune_Constatações da

Transcrição

Sub-Relatório Majune_Constatações da
Embassy of Sweden
Maputo
Constatações da Realidade em
Moçambique
- Construindo uma melhor compreensão das dinâmicas da pobreza e bem-estar –
Ano Um, 2011
Sub-Relatório, Distrito do Majune
Em cooperação com:
As ‘Constatações da Realidade em Moçambique’ são
implementadas pela ORGUT Consulting em associação com a
AustralCOWI e o Chr. Michelsen Institute em nome da Embaixada
da Suécia em Maputo.
As Constatações da Realidade são implementadas no período
2011-2016 e em cada ano o trabalho de campo é realizado no
Município de Cuamba, no Distrito do Lago e no Distrito de Majune
na Província do Niassa. Este é o sub-relatório anual do trabalho de
campo numa destas localidades. Além disso, em cada ano será
produzido um Relatório Anual para resumir as constatações e
conclusões.
A equipa de campo para o Distrito do Majune é constituída por:
Minna Tuominen, Rachi Picardo and Teófilo Maguanda.
Este documento foi financiado pela Embaixada da Suécia em
Maputo. A Embaixada não partilha necessariamente os pontos de
vista expressos neste documento. O seu conteúdo é da inteira
responsabilidade do autor.
ORGUT Consulting AB, 2012-01-13
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
ÍNDICE
1.
INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 2
1.1 As Constatações da Realidade .................................................................................... 2
1.2 Distrito de Majune ........................................................................................................ 3
1.3 Primeiras impressões sobre o Distrito .......................................................................... 5
2.
A COMUNIDADE ........................................................................................................... 7
2.1 História da Comunidade............................................................................................... 7
2.2 Organização Sócio-Cultural ......................................................................................... 9
2.3 Panorama institucional ................................................................................................12
2.4 Adaptações económicas .............................................................................................17
2.5 Percepções locais de pobreza ....................................................................................20
3.
RELAÇÕES SOCIAIS DA POBREZA............................................................................25
3.1 Organização da família e do agregado familiar ...........................................................25
3.2 Relações gerais de género .........................................................................................27
3.3 Redes sociais e estratégias de sobrevivência .............................................................29
4.
DINÂMICA DA POBREZA E MOBILIDADE SOCIAL .....................................................33
LISTA DE LITERATURA ......................................................................................................34
ANEXO I DADOS SELECCIONADOS SOBRE AS FAMÍLIAS FOCO ..................................35
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Mapa 1. Constatações da Realidade em Moçambique / Locais do Projecto no Niassa
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Mapa 2. Distrito de Majune
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
1. INTRODUÇÃO
A monitoria da pobreza em Moçambique tem lugar principalmente no quadro da
implementação da Estratégia para Redução da Pobreza em Moçambique PARP/A (GdM
2005; 2011), e é informada por dados quantitativos com origem em diferentes tipos de
estudos nacionais e estudos similares feitos por organizações de ajuda bilaterais e
multilaterais (ver e.g. INE 2010; MPD 2010; Banco Mundial 2007; UNICEF 2011).
Todavia, estes estudos, pela sua natureza quantitativa, não captam todas as dimensões da
pobreza que são relevantes para o desenho de políticas e programas. Enquanto os dados
quantitativos produzem informação valiosa sobre o mapeamento e o perfil da pobreza no
espaço e no tempo, os dados qualitativos são necessários para melhor compreender a
dinâmica da pobreza e as estratégias de sobrevivência dos pobres (ORGUT 2011; Addison
et al. 2009).
1.1 As Constatações da Realidade
Com estes antecedentes, a Embaixada Sueca em Maputo e a Autoridade Sueca para o
Desenvolvimento Internacional (Sida) decidiram ser necessário avaliar o impacto das
políticas de desenvolvimento e redução da pobreza „a partir de baixo‟, e consultar
regularmente as populações locais com o objectivo de entender os processos e relações
locais.
Uma série de cinco “Constatações da Realidade” terá lugar no período 2011-2015 focando a
dinâmica da pobreza e bem-estar com um enfoque particular na boa governação,
agricultura/clima e energia que são sectores chave na cooperação Sueca para o
desenvolvimento com Moçambique (Anexo 1). Cada Constatação da Realidade será
publicada na forma de um Relatório Principal e três Sub-Relatórios de cada um dos três
locais de estudo seleccionados (ver ORGUT 2011 para mais detalhes).
Mais concretamente, espera-se que as “Constatações da Realidade em Moçambique”:
i)
Informem sobre a discussão pública entre os actores de desenvolvimento mais
importantes sobre a redução da pobreza, especialmente na província do Niassa;
ii)
Contribuam para uma melhor compreensão dos métodos de monitoria qualitativa da
pobreza em Moçmbique; e
iii)
Proporcionem à Suécia dados qualitativos relevantes sobre os desenvolvimentos e
resultados da sua acção em Moçambique e apoiem a ulterior implementação do seu
programa no Niassa.
Espera-se que as Constatações da Realidade atinjam estes objectivos aumentando o
conhecimento sobre:
i)
A pobreza (dimensões não tangíveis da pobreza, tais como vulnerabilidade e
impotência; percepções de pobreza das pessoas pobres; processos causais que
sustentam a dinâmica da pobreza: estratégias de luta/sobrevivência adoptadas por
mulheres e homens vivendo na pobreza);
ii)
As relações com o poder local e com as instituições do estado (instituições formais
[i.e. políticas, administrativas] que permitem ou constrangem as pessoas a executar
as suas estratégias; instituições informais [i.e. culturais, sociais, familiares ou
2
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
baseadas no parentesco, etc.] que permitem ou constrangem as pessoas a realizar
as suas estratégias), e;
iii)
As políticas e serviços (acesso a, uso de e procura de serviços públicos, de acordo
com as pessoas que vivem na pobreza; qualidade dos serviços públicos, de acordo
com as pessoas que vivem na pobreza).
A série de estudos foi iniciada por um Relatório Inicial publicado em Agosto de 2011
(ORGUT 2011). Através desse exercício foi decidido que as Constatações da Realidade se
basearão em trabalho de campo em três Distritos/Municípios diferentes na Província do
Niassa que apresentem variações em termos de localização geográfica, acesso a serviços
públicos e níveis de pobreza e bem-estar. As três áreas seleccionadas foram i) O Distrito do
Lago, ii) o Município de Cuamba e iii) o Distrito de Majune (ver o Mapa 1).
O trabalho de campo para a 1ª Constatação da Realidade foi realizado em Setembro de
2011. Metodologicamente, os estudos baseiam-se numa combinação de informação
quantitativa existente, proveniente do Instituto Nacional de Estatística (INE) e das
Autoridades Distritais; um Questionário de Levantamento nos três locais do projecto (em
2011 e 2015); entrevistas a informadores chave na capital provincial Lichinga e nos
Distritos/Municípios seleccionados; um conjunto de metodologias qualitativas/participativas,
incluindo o envolvimento com agregados familiares em diferentes situações sócioeconómicas; e observação participante nas comunidades locais seleccionadas para o
trabalho de campo (ver ORGUT 2011 para mais informação).
Este é o 1º Sub-Relatório do Distrito de Majune. Em Majune, a informação qualitativa foi
recolhida principalmente na comunidade de Malila e na capital distrital Malanga. Para o
estudo, foram entrevistadas 120 famílias nas comunidades de Malanga, Malila, Matucuta,
Mecualo e Simango. Os Sub-Relatórios dos distritos do Lago e do Município de Cuamba
serão publicados separadamente. Os pontos principais de cada sub-relatório serão incluídos
no Relatório Principal da 1ª Constatação da Realidade.
1.2 Distrito de Majune
Majune está situado no coração da província do Niassa. É limitado pelo Distrito de Mavago
no norte, N‟gauma, Mandimba e Maúa no sul, Marrupa a leste e Muembe e Lichinga a oeste.
Apesar da sua localização central, ficou durante muitos anos isolado dos centros urbanos
provinciais, Lichinga e Cuamba, devido às fracas condições rodoviárias. Foi apenas entre
2003 e 2005 que foi reabilitada a estrada nacional 14 (EN14), que liga Lichinga a Majune e
Marrupa, e que terminou o isolamento físico do distrito.
O último censo (2007) estimou a população de Majune em 29.700 pessoas e a densidade
populacional é de 3,28/km2. 1 Majune divide-se em três Postos Administrativos, Malanga,
Nairubi e Muequia, dos quais Malanga, a capital do distrito, é o mais populoso; de acordo
com o Administrador do Distrito, mais de 80% da população do distrito vive em Malanga.
Em Majune, o grupo etno-linguístico dominante é o Yao, que foi o primeiro a fixar-se na
área. De acordo com a história oral local registada durante a actividade do Histograma, os
Yaos pertencem à família do sultão Mataka, um dos maiores líderes tradicionais do Niassa.
Numa fase posterior não datada da história, alguns grupos de Macuas deixaram a área de
Maúa, fugindo dos leões, e estabeleceram-se em Majune. A tradição Yao segue o
parentesco matrilinear e muitos deles praticam o Islamismo. Os Macuas partilham a tradição
matrilinear, mas não necessariamente a religião; alguns Macuas converteram-se ao
Cristianismo quando frequentaram as escolas missionárias Católicas.2 Diz-se que os Yaos
não frequentavam as escolas missionárias porque as cozinhas das escolas serviam
regularmente carne de porco. Por isso, dizem as pessoas, os Yaos têm geralmente menos
1
Censo de 2007/2008; Governo do Distrito de Majune, 2007: Plano Estratégico de Desenvolvimento Distrital de Majune.
Horizonte 2007-2011.
2
Entrevista com o Administrador Distrital.
3
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
educação do que os Macuas. De facto, a frequência global da escola primária em Majune é
muito baixa, apenas 55,61% da população entre os 6 e 13 anos mas também a média
provincial no Niassa é apenas de 58,49% (em oposição aos 67,92% a nível nacional). Não
obstante a influência da Igreja Católica, o Censo de 2007 indica que 88% da população de
Majune é Muçulmana.
As oportunidades de emprego formal no Distrito são muito limitadas. A vasta maioria da
população de Majune vive da agricultura (88% ), que é principalmente feita em pequena
escala com instrumentos manuais, sem sistemas mecânicos de irrigação ou o auxílio de
produtos químicos. Mesmo assim, e graças à fertilidade do solo, muitas pessoas cultivam
alimentos e culturas de rendimento como o tabaco e o algodão. Além da agricultura, a pesca
de pequena escala é também comum no Distrito, cruzado por vários rios.
Embora a Província do Niassa, segundo o terceiro Estudo Nacional sobre a Pobreza (IOF
2007/8), assinale uma clara redução da pobreza, muitos dos indicadores relacionados com o
bem-estar material colocam o Distrito de Majune no extremo mais pobre. As casas estão
geralmente construídas com materiais frágeis e os bens duráveis como TVs ou telemóveis
são escassos. De um modo geral, os agregados familiares chefiados por mulheres estão
entre os mais pobres. De acordo com o Censo de 2007, 35,2% dos agregados familiares de
Majune são chefiados por mulheres . A Tabela 1 reúne alguns destes indicadores mais
importantes de Majune como reportados no Censo de 2007. A tabela será actualizada no fim
do período do projecto, quando se espera que estejam disponíveis os dados do novo Censo.
Tabela 1: Indicadores sociais – Distrito de Majune
Indicadores Sociais
População
Proporção de agregados familiares
mulheres
Frequência da escola primária
Habitação com tecto sólido
Electricidade em casa
Posse de TV
Posse de rádio
Posse de telemóvel
Posse de bicicleta
Fonte: INE 2007
chefiados
por
2007
29,702
35,2%
2015
54.3%
0,13%
0,39%
0,8%
49.3%
0.61%
63,1%
A tabela seguinte apresenta alguns dados económicos e sociais de Majune, compilados de
documentos oficiais do Governo Distrital. A tabela será actualizada em cada ano da
Constatação da Realidade, a fim de acompanhar os indicadores gerais de desenvolvimento
do Distrito.
Tabela 2: Indicadores Económicos – Distrito de Majune
Indicadores Económicos
Produção agrícola (1.000 kgs)
Extensionistas agrícolas
Produção de animais domésticos (1.000 kgs)
Energia (número de clientes)
Fontanários públicos
INAS (Número de beneficiários)
Fundo Des. Distrital (Nº de Projectos)
Fundo Des. Distrital (Total, Mt)
Fundo Des. Distrital (Reembolsado, Mt)
Fonte: Governo Distrital de Majune 2010.
2010
31.769 Kgs
4
Sem dados
223
92
648
136
7.517.000 Mt
562.500 Mt
2011
-
2012
-
2013
-
2014
-
4
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
De acordo com os documentos oficiais do
Governo e com os vários informadores chave
(incluindo
funcionários
do
governo,
comerciantes
locais
e
membros
da
comunidade), a redução da pobreza em Majune
e em especial o desenvolvimento do Distrito são
grandemente desafiados por (i) fraca rede de
estradas nas partes interiores do distrito, o que
impede a comercialização dos produtos
agrícolas; (ii) falta de oportunidades de
emprego; (iii) baixo nível educacional da
população que resulta em falta de mão-de-obra
qualificada; e (iv) falta de electricidade.
Caixa 1: Visão do Governo do Distrito de
Majune para o período 2009-2011
Tornar o Distrito de Majune como referência de
desenvolvimento no grupo dos distritos do polo
da Zona Nuclear de Marrupa (Marrupa, Maúa
e Majune) e, que o mesmo seja em beneficio
das comunidades locais garantindo desta
forma, a melhoria de condições de vida através
de uso sustentável de recursos disponíveis.
1.3 Primeiras impressões sobre o Distrito
Tirando a sua estreiteza, a estrada nacional N14 de Lichinga a Majune está num estado
razoavelmente bom, sem grandes buracos. Foi reabilitada há 6 anos e a viagem que
costumava durar entre 2 e 3 dias pode agora ser feita num par de horas.
O Niassa é uma província escassamente povoada e isso torna-se visível quando se viaja
para Majune. Ao longo da estrada passamos por algumas povoações mas entre elas há
quilómetros e quilómetros de terra abundanre sem a presença de qualquer aglomerado
humano. Não admira, por isso, que a vida selvagem tenda a tomar o controlo destas terras.
É meados de Setembro e a
maioria das aldeias está enfeitada
com capulanas coloridas que
ondulam como bandeiras nos
telhados das casas e no alto das
árvores. É um sinal da celebração
do unyago. Nestas casas há
crianças que tiveram ritos de
iniciação e que agora são
esperadas de volta a casa como
membros de pleno direito da
comunidade. O Unyago implica
vários dias a comer, beber e
dançar para celebrar a passagem
das crianças à maioridade.
Antes de se atingir o Rio
Luambala, o condutor abranda a Capulanas levantadas indicando a celebração de ritos de
velocidade, desliga o rádio do iniciação
carro e tira o seu boné. Estamos
a passar pela sepultura da primeira „rainha‟ Bibi Achivanjila, que é vista como a principal
líder espiritual de Majune. A „rainha‟ faleceu no princípio do século XX e para a substituir a
população local designou sucessivamente quatro „rainhas‟ para continuarem o seu legado.
Cada uma delas chama-se Bibi Achivanjila.
A estrada leva-nos até à ponte sobre o rio Luambala; a ponte tem também o nome da muito
respeitada „rainha‟. Antes da sua reabilitação, a estrada era um dos lugares mais perigosos
no caminho para Lichinga, dado que tinha de se atravessar o rio em canoas frágeis e
instáveis. Conta-se que muitas pessoas perderam a vida ao atravessar o rio. Actualmente, a
ponte forte livra-nos de tais perigos e a viagem continua.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Uma das características notáveis durante a nossa viagem é a ausência de comércio à
berma da estrada. Não há bebidas ou frutas disponíveis para os viajantes, nem tomates ou
pequenos biscoitos, nem sequer amendoim, que são alimentos típicos vendidos ao longo da
maioria das estradas principais que atravessam Moçambique. No máximo, pode-se ver às
vezes próximo da estrada grandes plásticos com farinha de milho espalhada, mas até isso
está ali para secar e não para vender. Claramente, a população local ainda não se
apercebeu das oportunidades comerciais abertas pela estrada reabilitada.
O carro aproxima-se de Malanga, a capital do distrito de Majune. Para chegarmos lá temos
de sair da estrada principal e conduzir um quilómetro ao longo de uma estrada de areia. Por
sorte ainda não estamos na época das chuvas e a areia está seca e fácil de passar.
Chegamos ao princípio da noite. Está escuro como breu porque não há electricidade na
capital do distrito. De facto, não há electricidade em todo o distrito. Um par de painéis
solares oferece escassa iluminação às poucas casas à volta da Administração Distrital, mas
o resto do distrito está engolido pela escuridão. Quase não há pessoas nas ruas. Apenas os
grilos cricrilam nesta noite quente e escura. São 7:30 da noite de uma Terça-feira e o distrito
de Majune já está a dormir.
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2. A COMUNIDADE
2.1 História da Comunidade
O nome de Majune deriva do termo local idjune que significa “passarinhos” em Yao. A lenda
local conta que existia uma árvore frondosa no centro onde se localiza actualmente a sede
do distrito (Malanga). Esta árvore era escolhida pelos pássaros da região para colocarem os
seus ninhos. Os residentes na região começaram a chamá-la de tchitela cha winjy idjune,
que significa “árvore de muitos passarinhos” na língua Yao. Os primeiros colonos
Portugueses, ao chegarem à província do Niassa em meados do século XIX, atribuíram à
região o nome pelo qual o
distrito
é
actualmente
conhecido, Majune (GDN
2007).3
A população nativa do
distrito de Majune pertence
à tribo do sultão Mataka,
que é o principal líder
tradicional da Província de
Niassa. 4 De acordo com
um grupo de chefes
tradicionais
que
participaram no exercício
de
histograma
na
comunidade de Malila, há
muitos anos o sultão
Mataka nomeou um dos
membros da sua família,
Matola, como régulo para
supervisar a área de
Membros da comunidade contando-nos a sua história
Majune. Até agora, a mais
alta autoridade tradicional
em Majune é um descendente do primeiro régulo Matola e é também chamado régulo
Matola. Não obstante, como mencionado acima, mais do que o Sultão Matola foi a „rainha‟
Bibi Achivanjila que marcou a história de Majune e que é a indiscutível líder espiritual do
distrito. O nome Achivanjila provém da palavra Kulivanjila, que em língua Yao significa
“conseguiu sozinho”. Este nome foi atribuído há mais de 100 anos a uma mulher que, com a
sua coragem, conseguiu salvar muitos escravos da morte e tornar-se Rainha “sem apoio de
ninguém”, servindo-se apenas da sua coragem e determinação (GDM 2007).
De acordo com a lenda local, tudo isto aconteceu em tempos de guerra e escravatura.
Houve muitas hostilidades entre as tribos e foi nesse contexto que a mulher que mais tarde
se tornou a primeira „rainha‟ foi capturada numa área do Lago Niassa e levada para o
território do Sultão Mataka, onde se estabeleceu entre muitos outros escravos.
Veio depois um tempo em que o Sultão Mataka entrou em conflito com o Rei Makanjila, que
governava uma área que actualmente pertence ao Malawi. Um dia, uma escrava do Lago
Niassa pediu para ver o Sultão Mataka, tendo-se oferecido para moer farinha e preparar
3
Historicamente, o distrito de Majune é conhecido como um dos principais centros dos anteriores campos de reeducação
criados após a independência para albergar prisioneiros políticos e opositores do regime político da Frelimo, estabelecido na
altura. Presos políticos como Uria Simango, Lázaro NKavandame, Padre Mateus Ngwengere, dr. João Unhai, entre outros,
estiveram detidos no campo de reeducação de N‟telela no distrito de Majune (In: Moçambique para Todos, 11.05.2011).
4
O actual régulo Mataka X vive no distrito de Mavago.
7
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
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maquea5 que ajudaria os soldados do Sultão a vencer o Rei Makanjila. O Sultão aceitou mas
disse-lhe que se perdesse um único dos seus soldados cortaria a mulher em pedaços e
servi-la-ia em caril. Enquanto moía a farinha, a mulher ensinou os soldados de Mataka a
cantar uma cantiga que era popular entre o povo do Rei Makanjila.
Na altura em que a escrava deu a maquea como pronta, o Rei Makanjila esperava que o
seu filho regressasse a casa vindo da Tanzania onde estava a estudar. O Sultão Mataka
levou os seus soldados até ao território do Rei Makanjila. Quando estavam a chegar, os
soldados de Mataka começaram a cantar a canção que a mulher lhes tinha ensinado. O Rei
Makanjila pensou que seria o seu amado filho e saiu a correr para a escuridão. Foi então
que os soldados de Mataka atacaram e lhe cortaram a cabeça. Quando regressou a casa,
Mataka chamou a escrava que tinha preparado a maquea e pediu-lhe para se casar com
ele. Ela foi nomeada „rainha‟ e recebeu o nome de Bibi Achivanjila. Deste modo, a líder
espiritual e figura predominante na história de Majune começou a sua vida como escrava e
as suas acções transformaram-na na rainha Bibi Achivanjila.
No princípio do século XX rebentou uma guerra entre os colonialistas Portugueses e
Alemães. Os Portugueses acusaram a „rainha‟ de colaborar com os Alemães e
consequentemente aprisionaram-na na Ilha do Ibo na Província de Cabo Delgado. Na altura
em que foi libertada, o régulo Matola fugira à guerra para a Tanzania. Bibi enviou-lhe uma
mensagem e ele voltou para Moçambique. Diz-se que foi em 1914 que a guerra terminou.
Foi então que a Bibi e o Matola decidiram retirar as suas pessoas das margens do rio
Lugenda e do rio Nhamuzi e levá-las para Luambala, onde Bibi Achivanjila 6 faleceu em
1929. A sua sepultura tornou-se um santuário onde, ainda hoje, muitas pessoas vão pedirlhe ajuda.
Após a morte da primeira Bibi Achivanjila, a comunidade escolheu uma nova „rainha‟. O
processo de sucessão da Rainha nunca obedeceu ao critério da linhagem familiar. Até hoje,
numa situação em que precisam de identificar a sucessora, a comunidade escolhe uma
mulher da povoação, que não seja de uma tribo do distrito, e que tenha coragem,
responsabilidade e conhecimento da realidade da comunidade. A Rainha tem o papel de
aconselhar espiritualmente a comunidade, preparar as cerimónias de pedido de chuva,
produção e bênção da comunidade (maqueas) e estabelecer a comunicação através de
sonhos entre a comunidade e as Rainhas antecessoras.
A Rainha que sucedeu à primeira Bibi ouvia várias queixas das mulheres da comunidade
sobre os maridos que não permaneciam em casa por causa da pesca no rio Luambala. Foi
por isso que em 1930 ela decidiu mudar a comunidade para as terras férteis do monte
Malila. A primeira casa a ser construída nessa nova povoação de Malila foi a da Rainha,
construída pela população. A casa da Rainha é importante para a população da região
porque é nesse lugar onde os antepassados se manifestam, através dos sonhos da Rainha
actual, informando a comunidade sobre como proceder para aumentar a produção ou
afastar os espíritos maus que a atacam. Também o monte Malila é agora um lugar
importante para a população, tendo-se tornado num local de peregrinação e de evocação
dos espíritos dos defuntos.
Durante a guerra de resistência que se seguiu ao período pós independência, a população
de Malila fragmentou-se. Uma parte foi para Lichinga ou países vizinhos, e outra
permaneceu em Malila. A partir de 1992, após a assinatura do acordo geral de paz entre a
Frelimo e a Renamo, a população regressou a Malila. É no povoado de Malila onde o nosso
estudo de Reality Check se centrou.
5
6
Maquea é uma comida que se pensa transmitir poderes sobrenaturais.
A actual Bibi Achivanjila é a 5ª e vive em Malila.
8
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Desenvolvimentos Recentes
Nos últimos vinte anos, a comunidade de Malila esteve virada para a restauração da sua
organização sócio-cultural e para o estabelecimento e consolidação da paz. No entanto,
apesar da paz, a população permaneceu socialmente isolada durante muito tempo. Em
1998 a ponte sobre o Rio Luambala quebrou-se e a ligação para Lichinga ficou cortada.
Apenas se pode atravessar o rio em canoa ou usar uma estrada secundária através do
distrito de N'gauma.7 A maioria das pessoas preferiu permanecer onde estava e evitar a
viagem. Só em 2005 ficou pronta pare ser usada uma nova ponte e reabilitada a estrada
para Lichinga.
O isolamento do distrito tem dificultado que se resolva o conflito homem-fauna bravia, que
ainda hoje é um dos problemas que mais afecta a vida das comunidades do distrito. As
machambas da comunidade de Malila situam-se nas encostas do monte Malila, que possui
terras férteis para agricultura e água abundante para o regadio das culturas. Contudo, esta
região é habitat de porcos selvagens, javalis, elefantes e macacos que invadem as
machambas na altura da colheita estragando todos os produtos. A acção dos animais é
mencionada várias vezes como um dos principais factores que contribuem para a existência
de bolsas de pobreza no distrito.
O isolamento também contribui por
um lado para a falta de emprego, e
por outro lado para a falta de
motivação das crianças e jovens
para estudar. Os jovens que contudo
optam por estudar até à 10ª classe
(a classe mais elevada no distrito)
acabam por migrar para distritos
como Marrupa, Lichinga e Cuamba
onde há maiores oportunidades de
geração de rendimento. A falta de
emprego leva a que a renda das
famílias seja muito baixa e que a
população
viva
sem
muitas
possibilidades de quebrar a barreira
da pobreza criada pela dependência
extrema
da
agricultura
de
subsistência.
A esperança do futuro: ponte sobre o Rio Luchimua
No que se refere às transformações previstas para um futuro próximo, a administração do
distrito de Majune e os residentes da comunidade de Malila referem que a construção da
ponte sobre o rio Luchimua, que separa o distrito de Majune do distrito de Mandimba, será o
grande marco do desenvolvimento do distrito. Para a população de Majune a ligação com
Mandimba terá maior impacto económico e possibilitará um acesso rápido aos mercados do
distrito de Cuamba e do Malawi (que alimentam a cidade de Lichinga) onde os preços dos
produtos são mais competitivos e o acesso mais rápido, do que quando realizado a partir de
Lichinga8.
2.2 Organização Sócio-Cultural
A construção cultural das comunidades do distrito de Majune está ligada aos hábitos e
costumes do grupo Yao. Ao mesmo tempo as pessoas em Majune são fundamentalmente
7
Jornal Notícias: Rainha Achivanjila: O „simbolo‟ de Majune. Publicado em 11.10.2011.
De acordo com o director interino dos Serviços Distritais de Infra-Estruturas, a inauguração da ponte sobre o rio Luchimua
estava marcada para Novembro de 2011. Entretanto, a nossa equipa deslocou-se ao local da obra e verificou que há poucas
possibilidades que a inauguração decorra no período indicado.
8
9
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
religiosas, de tal forma que raramente alguém questiona os dogmas das religiões e uma
grande proporção da população pratica a sua fé indo regularmente às mesquitas ou igrejas.
De acordo com os dados do INE, em 2007 a religião predominante do distrito de Majune era
a muçulmana com 87.9% de praticantes, seguida da religião católica com 11% de
praticantes, sendo que as outras religiões cristãs tinham 1.1% de praticantes. Os dados do
inquérito realizado no âmbito da presente pesquisa, que decorreu no Posto Administrativo
de Malanga, localidades de Mecualo e Malanga-Sede, indicam que 90.8% da população
inquirida é praticante do islão e 9.2% pratica a religião católica.
Apesar de coabitarem no mesmo distrito, há uma grande distinção em termos de núcleos
populacionais (povoações ou bairros) e de hábitos culturais entre os descendentes do grupo
Yao e os do grupo Macua, no distrito de Majune. Os Yao são tidos como povos muito
fechados sem muito contacto com outras regiões da província e com raízes tradicionais e
espirituais orientadas pela Rainha e pelo régulo Matola. As comunidades Macuas são
habitadas por pessoas naturais e exteriores ao distrito, e há uma mistura de praticantes de
religiões cristãs, islâmica e animista. Contudo, não há nenhuma hostilidade entre estes dois
grupos. As diferenças são respeitadas e actualmente verificam-se vários casos de união
matrimonial entre membros dos dois grupos.
As autoridades tradicionais têm um papel central na vida das comunidades da província do
Niassa no geral e do distrito de Majune em particular. Apesar da legitimidade das
autoridades tradicionais em muitas comunidades ser transmitida por herança, ela deve ser
reconhecida e aprovada pelas comunidades controladas por estes líderes tradicionais. Este
processo é orientado por hierarquias e linhagens de poder previamente estabelecidas.
Porém, em muitas outras comunidades, a eleição dos membros ocorre através de uma
votação secreta, ou aberta, em que todos os habitantes no território de chefatura em
questão participam (Akesson & Nilsson 2006).
O sistema de lideranças comunitárias no distrito de Majune assenta na coexistência de três
estruturas de poder definidas localmente: (i) a estrutura tradicional formal constituída pela
Rainha, Régulos do primeiro, segundo e terceiro escalão, N‟dunas e Apuiamwene (chefes
de famílias); (ii) a estrutura do partido Frelimo constituída pelos secretários dos bairros,
chefes de células do partido e chefes de quarteirão; e (iii) a estrutura religiosa. De facto, a
estrutura de liderança tradicional não é entendida como uma forma de liderança em si,
porém é reconhecida como sendo de grande importância para as comunidades do distrito de
Majune.
Liderança tradicional
A Rainha, o régulo Matola e o régulo Niputa (representante do grupo Macua) fazem parte da
liderança tradicional do primeiro escalão por serem representantes de dois povos, Yao e
Macua. Os régulos do segundo escalão são os indicados pelo régulo Matola para o
auxiliarem na gestão do distrito. Os régulos do terceiro escalão são por sua vez indicados
pelos régulos do segundo escalão para auxiliar na gestão da comunidade. Contudo, estes
últimos devem ser aprovados pelo régulo Matola. O sistema de transferências de poder ou
herança do regulado é feito entre os descendentes da linhagem do régulo, ou seja, em caso
de morte o régulo sucessor deve ser o sobrinho materno, ou paterno do régulo anterior, a
transferência nunca é feita para os descendentes directos (filhos ou irmãos).
Para os Yao, a Rainha e o régulo Matola são instituições fundamentais para a manutenção
dos hábitos e costumes do povo. Entretanto, as figuras da Rainha e do régulo Matola actual
não são de consenso e têm perdido legitimidade entre os membros da comunidade,
alegadamente porque eles são casados de facto. Segundo a visão histórica e cultural dos
Yao, a Rainha é esposa espiritual do Rei Mataka, sobrinho e soberano do régulo Matola.
Neste sentido, ao contraírem matrimónio, a Rainha e o régulo Matola estão a “corromper” os
hábitos do grupo Yao.
10
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
A perda da legitimidade destas importantes figuras tradicionais do distrito de Majune
contribui para a falência de um dos mecanismos indispensáveis de apoio aos membros mais
carenciados da comunidade. No passado os régulos tinham o poder de exigir às famílias
que tivessem excedentes que ajudassem as famílias ou membros mais pobres da
comunidade. Actualmente, o apoio aos mais pobres depende da vontade individual dos
membros da comunidade que possuam excedentes e nem a Rainha ou régulo parecem ter
poder de exigir que os membros da comunidade apoiem os mais pobres.
Liderança política
Uma outra forma de liderança comunitária comum no distrito de Majune é composta pela
estrutura política do partido Frelimo. A estrutura de liderança do partido Frelimo coexiste
com a estrutura de liderança tradicional, sendo que, na maioria dos casos, as duas se
confundem. Esta aparente confusão surge no âmbito da atribuição de tarefas administrativas
aos líderes tradicionais e do pagamento pela administração distrital de um subsídio à Rainha
e aos régulos do primeiro e segundo escalões. Segundo alguns pesquisadores, isto pode
ser entendido como uma tendência do estado em “capturar” o apoio dos líderes tradicionais
para a manutenção do status quo político (Akesson & Nilsson 2006).
Os líderes tradicionais que não sejam membros ou simpatizantes do partido Frelimo não
beneficiam deste subsídio e, para além de serem afastados do normal convívio social da
sua comunidade, sofrem represálias por parte da comunidade local, sendo constantemente
acusados de traição, inimigos da comunidade e de criminosos. O régulo Njaco,
representante do MDM (Movimento Democrático de Moçambique)9 no distrito de Majune,
refere ter sido “isolado” da comunidade e aconselhado a renunciar ao posto de régulo da
sua comunidade. Apesar deste régulo ainda não ter sido beneficiado do subsídio que o
governo do distrito oferece aos líderes tradicionais, ele é sempre convocado pela
administração distrital para participar nas reuniões para a discussão de questões ligadas ao
desenvolvimento do distrito. Entretanto, na área do régulo Njaco, o secretário do partido
Frelimo parece ter mais poder, legitimidade e respeito da comunidade local.
Liderança religiosa
Adicionalmente, existe a estrutura religiosa composta pelo Chehé e pelo padre/animador
católico, para os muçulmanos e os cristãos, respectivamente. O Chehé tem o papel de
orientador das orações na mesquita e estabelece contacto com Allah. Além disso, ele tem o
papel de educador através da madrassa (escola islâmica) onde algumas crianças da
comunidade aprendem o alcorão. Entretanto, apesar do islão ser praticado pela maioria da
população do distrito, não foram feitas referências às madrassas durante o trabalho de
campo. O padre/animador católico tem importância educativa tendo contribuído para a
alfabetização dos residentes da comunidade de Malila através da missão católica do distrito.
Para os residentes da comunidade de Malila, apesar do poder do distrito estar repartido
entre as estruturas de liderança tradicional, política e religiosa, os curandeiros são uma fonte
importante de poder, principalmente em casos de doenças ou de problemas espirituais que
a comunidade não consegue resolver por si mesma. Porém, os preços cobrados por estes
são elevados e a maioria da população não consegue pagar.
9
O MDM é um partido político da oposição em Moçambique, criado em 2009 e conseguiu eleger oito deputados para a
Assembleia Geral da República de Moçambique no mesmo ano.
11
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
2.3 Panorama institucional
A identificação das instituições e pessoas importantes ou influentes no distrito de Majune
baseou-se na construção do diagrama de Venn, 10 a partir do qual os membros das
comunidades indicaram quais instituições e prestadores de serviço são importantes ou
influentes no dia-a-dia da comunidade e o grau de acesso a elas. Neste sentido, a discussão
que se segue refere-se aos resultados da aplicação do diagrama de Venn na comunidade
de Malila.
No distrito de Majune, a
distribuição
das
instituições
governamentais
e
nãogovernamentais circunscreve-se
sobretudo à sede, Malanga. Nas
comunidades mais distantes da
sede não existe nenhuma
instituição administrativa formal,
e desta forma os membros
destas comunidades não têm
muita informação sobre as
instituições e sobre o tipo de
serviços a que poderiam aceder
na sede do distrito.
A comunidade de Malila é até
certo ponto favorecida no
contacto com as instituições
Resultado da actividade do diagrama de Venn.
públicas, por se encontrar
próxima da sede do distrito (à
distância de 2.5 km). Não obstante, os residentes de Malila revelaram durante as
entrevistas, que não têm muita informação sobre as instituições existentes no distrito, nem
sobre os serviços que cada uma das instituições oferece. Neste sentido, desenharemos
nesta secção um panorama sobre as diferentes instituições públicas, privadas e não
governamentais que operam no Distrito de Majune, assim como as instituições ou pessoas
que os membros da comunidade de Malila identificaram como importantes durante o
exercício do diagrama de Venn.
Serviços governamentais
O Governo Distrital de Majune é composto de (i) Gabinete do Administrador Distrital, (ii)
Secretaria Distrital, (iii) Serviço Distrital de Planeamento e Infra-estruturas, (iv) Serviços
Distritais de Actividades Económicas, (v) Serviços Distritais de Saúde, Mulher e Acção
Social e (vi) Serviços Distritais de Educação, Juventude e Tecnologia.
Apesar da presença nominal no distrito destas instituições, a verdadeira prestação de
serviços públicos é bastante limitada devido principalmente aos recursos humanos e
materiais inadequados.11 O Serviço de Planeamento e Infra-estruturas está actualmente sem
um Director e, nesta altura, funciona a tempo parcial com um técnico da Secretaria Distrital.
Os serviços económicos são tratados por quatro extensionistas agrícolas (um para a capital
distrital Malanga, um para Rubi, um para Lugenda e outro para Malila), que promovem
práticas sustentáveis de agricultura e armazenamento. Considerando que 88% da
população adulta (ou 9.830 pessoas) em Majune são agricultores, o rácio de extensionistas
10
Este é um dos métodos participativos usados no âmbito da pesquisa, para a identificação das instituições e pessoas
importantes no distrito.
11
Um exemplo da escassez de recursos materiais é o facto de o governo do distrito apenas possuir um carro, que serve de
veículo oficial do Administrador e como carro para transportar os técnicos que necessitam de executar trabalho de campo.
12
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
está longe de ser suficiente. Além disso, há um extensionista no distrito para a área de
Silvicultura.
Os serviços de segurança social/protecção estão ao cuidado de um Técnico de Acção
Social que tem de identificar as pessoas mais vulneráveis e colocá-las em contacto com o
INAS12 (i.e. a entidade governamental que verdadeiramente põe em prática e providencia
apoio social às pessoas vulneráveis). Todavia, a delegação do INAS mais próxima está
situada no distrito vizinho de Marrupa e é a partir daí que são tratadas as pessoas mais
vulneráveis de Majune, Maúa e Nipepe, além de Marrupa. Compreensivelmente, os
processos movem-se com lentidão e os subsídios financeiros são muitas vezes atrasados.
Em Majune, o Técnico de Acção Social só pode emitir certificados de pobreza13 às pessoas
com maior necessidade para facilitar o seu acesso a serviços sociais gratuitos do sector
público. No entanto, a procura de certificados é baixa dado que muitas pessoas
desconhecem tal possibilidade.
A saúde e a educação são os únicos sectores públicos que estão mais adequadamente
providos de pessoal e equipamento. Ainda bem que assim é, considerando que estes são os
serviços sociais mais essenciais que definem a capacidade global de desenvolvimento
social e que têm um efeito directo sobre o bem-estar geral. Abaixo, discutimos portanto mais
detalhadamente estas duas áreas de prestação de serviços públicos.
Serviços de saúde: O sector saúde em Majune consiste em 11 centros de saúde - 8
unidades públicas e 3 privadas – dirigidos pela igreja Católica. Há um médico e dois
técnicos de medicina no distrito. No total, o sector conta com 38 funcionários especializados.
De acordo com o Director Distrital de Saúde, Mulher e Acção Social, os problemas de saúde
mais comuns no distrito incluem a malária e a diarreia, ou doenças relacionadas com a água
em geral, já que é limitado o abastecimento de água potável. Além do mais, a malnutrição
infantil é um problema, embora o Director não seja capaz de quantificar a extensão do
problema.
O maior centro de saúde em Malanga foi, há
dois anos, reabilitado e alargado. O velho
Anteriores serviços de saúde na capital do
distrito
edifício
principal
foi
transformado
em
maternidade e foram construídos novos edifícios
Os participantes dos grupos focais realizados
para internamento, morgue e armazém de
com mulheres e homens da povoação,
medicamentos e artigos médicos. Há painéis
referem que o grande acontecimento dos
últimos anos é a reabilitação do centro de
solares de geração de energia para o centro e
saúde da localidade sede (Malanga). Antes da
um fontanário no pátio. As redondezas estão
reabilitação do centro de saúde, as mulheres
limpas e não cheiram. O centro tem 13 camas,
parturientes dividiam a maternidade com os
cada uma equipada com uma rede mosquiteira.
doentes das outras consultas, homens e
Havia uma fila de 25 pessoas à espera de
mulheres. A falta de uma maternidade e a
grande exposição que as mulheres grávidas
atendimento quando nos deslocámos ao centro
tinham na hora do parto contribuía para que a
na manhã de Quinta-feira. Uma hora mais tarde,
maioria delas preferisse fazer os partos em
quando terminámos a nossa volta pelo centro,
casa, sozinhas ou com ajuda das parteiras
só 4 pessoas aguardavam ainda na fila. O
tradicionais, contribuindo assim para o
aumento do risco de óbitos nas crianças entre
centro de saúde de Malanga parece ser um
0-5 anos.
caso modelo de serviços de saúde rurais bem
dirigidos. Contudo, o centro não tem pessoal ou
equipamento cirúrgico e, por exemplo, casos obstétricos de emergência têm de ser levados
para Lichinga. Afortunadamente, o distrito obteve, há um ano, uma nova ambulância.
12
O nome anterior do INAS era GAPVU (Gabinete de Apoio à População Vulnerável). Algumas pessoas em Majune ainda
referem o GAPVU quando falam sobre o INAS.
13
O certificado de pobreza é um documento fornecido pelo INAS (Instituto Nacional para a Acção Social) que permite às
pessoas pobres terem acesso aos principais serviços e instituições sociais públicos, relacionados principalmente com saúde,
educação, transporte e, em alguns casos , acesso a cestos de comida fornecidos pelo governo sem qualquer espécie de
pagamento. Nos municípios este certificado é fornecido pelo Conselho Municipal.
13
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
O Director Distrital de Saúde, Mulher e Acção Social contou-nos que uma consulta normal
numa unidade de saúde pública custa 1 Mt (USD 0,04) e a medicamentação custa 5 Mt
(USD 0,19). Para aumentar o uso do serviço de saúde e melhorar a saúde pública em geral,
o sector saúde está instruído para fornecer serviços gratuítos a todas as crianças, pessoas
inválidas, pessoas com doenças crónicas e todos os doentes com malária. Durante o estudo
de base que levámos a efeito no distrito de Majune, foi pedido aos agregados familiares
entrevistados que indicassem quais os serviços públicos a que tinham acesso. Além disso,
foi-lhes também solicitado que classificassem a qualidade desses serviços usando uma
escala de 1 a 5 (sendo 1 muito mau e 5 muito bom). Como resultado, mais de três quartos
(76%) dos agregados familiares estudados tinham usado, nos últimos 6 meses, um centro
de saúde público. A maior parte deles classificou os serviços como muito bons ou bons.
Serviços de educação: O sector de educação em Majune compreende 31 escolas. Destas,
18 cobrem o primeiro ciclo da instrução primária (da 1ª à 5ª classe), 11 cobrem a totalidade
do ensino primário (da 1ª à 7ª classe) e apenas 2 abrangem o nível de educação
secundária. Cinco escolas são geridas pela Igreja Católica e as restantes são instituições do
estado. Em 2010, havia no distrito 232 professores para um total de 8.738 estudantes
matriculados14, i.e. significando que há em média um professor para cada 38 alunos, o que
representa um rácio consideravelmente melhor do que a média nacional (1:58).15
Segundo o relatório de 2010 do Governo Distrital, havia menos 88 estudantes do que no ano
anterior.
De acordo com o Chefe do Departamento de Educação Básica dos Serviços Distritais de
Educação, Juventude e Tecnologia, o ensino primário até à 7ª Classe é actualmente
totalmente gratuito. Não há propinas escolares e os livros e material são fornecidos
gratuitamente. Deste modo, os agregados familiares não têm quaisquer implicações
financeiras por mandarem as suas crianças para a escola. No entanto, para as crianças se
matricularem necessitam de apresentar um certificado de nascimento. Em geral, a prática de
registo dos nascimentos é baixa no país (31% de crianças com menos de 5 anos têm registo
de nascimento) e na província do Niassa é particularmente baixa; só 15% das crianças com
menos de 5 anos foram registadas.16 A fim de impulsionar o nível de registo das crianças, o
Governo começou a oferecer nas escolas serviços de registo gratuítos no início do ano
escolar. Dos 120 agregados familiares estudados, mais de dois terços (67%) classificam os
serviços de instrução primária no distrito como
A educação em Malila
muito bons ou bons.
O facto de haver apenas duas escolas
secundárias em todo o distrito coloca grandes
limitações às ambições educacionais da
população local. Não admira portanto que
apenas 5% dos jovens entre os 13 e os 17
anos frequentem a escola secundária de
Majune.
O abandono escolar é um grande problema no
distrito. Diferentes fontes de informação
indicam que as principais causas de abandono
incluem tarefas domésticas (incluindo a
agricultura, pesca e caça), envolvimento das
crianças no comércio informal e casamentos
de adolescentes. Também a tradição do
unyago (ritos de iniciação), que normalmente
têm lugar entre Julho e Setembro, interfere
Em Malila, há uma escola primária da 1ª à 7ª
Classe. Em 2010 a escola tinha 993 estudantes
matriculados, dos quais 466 (ou 47%) eram
raparigas. Há apenas 6 salas de aula e, a fim de
poder cumprir o curriculum, a escola trabalha em
três turnos começando o primeiro às 6 horas da
manhã, o segundo às 9:45 e o terceiro às 13
horas. Devido à falta de electricidade não é
possível organizar turnos para mais tarde.
Segundo o Director da escola, o número global
de estudantes matriculados é o mais alto no que
respeita à 1ª Classe, mas reduz gradualmente à
medida que as crianças vão crescendo. Refere
que o abandono escolar é comum sobretudo
porque muitos pais não estão conscientes das
vantagens da educação. “As crianças não
gostam de ir à escola e os pais não insistem que
elas voltem à escola […],” explica.
14
Governo Distrital de Majune: Relatório Balanço do Governo Distrital de Majune 2010.
Banco de dados do Banco Mundial com indicadores sócio-económicos em
http://data.worldbank.org/indicator/SE.PRM.ENRL.TC.ZS (consultado em 27.10.2011)
16
INE 2009: Relatório Preliminar do Inquérito sobre Indicadores Múltiplos, 2008.
15
14
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
seriamente no ano escolar. É precisamente por esta razão que o governo distrital ordenou
este ano que este ritual tradicional deve ser realizado durante as férias anuais de Dezembro
a Fevereiro. Muitas povoações desrespeitaram a ordem do governo, mas em Malila a
comunidade adiou o unyago até ao fim do ano.17
Outros serviços públicos
Conselho consultivo: No contexto de descentralização das diferentes estruturas de
governação, Moçambique introduziu o mecanismo de Conselhos Consultivos, que deve
promover a participação popular na governação pública. De acordo com a Lei 8/2003 de 19
de Maio que cria os Órgão Locais do Estado (LOLE), a estrutura dos Conselhos Consultivos
deve ser alargada até ao nível de povoação. Em princípio, os Conselhos Consultivos devem
servir de plataforma para a comunicação entre grupos da população e o governo local. Mais
especificamente, os Conselhos Consultivos devem aumentar a consciencialização ao nível
local sobre as leis nacionais e assegurar a participação dos membros da comunidade na
elaboração dos planos estratégicos locais. Até agora, porém, em toda a província do Niassa
o foco principal dos Conselhos Consultivos locais tem sido a distribuição do Fundo de
Desenvolvimento Local (FDL, ou 7 milhões).
Os Conselhos Consultivos devem reunir-se duas vezes por ano, ou com mais frequência se
houver necessidade. Os Conselhos devem incluir representantes da sociedade civil/sector
privado e representantes da comunidade local que sejam propositadamente eleitos para
essa tarefa. Podem ser incluídos representantes do governo como participantes convidados.
Em Majune, há actualmente Conselhos Consultivos ao nível de distrito (1), de Posto
Administrativo (3), localidade (7) e povoação (27). A expansão dos Conselhos Consultivos
aos níveis locais é um fenómeno bastante recente. Por exemplo, em Malila o Conselho
Consultivo só foi criado em 2009. De acordo com as entrevistas aí feitas a membros da
comunidade, só poucas pessoas têm conhecimento do Conselho Consultivo local. A
existência deste mecanismo de participação local só é do conhecimento dos membros da
estrutura política e dos líderes comunitários.
A ONG dinamarquesa IBIS através do seu programa “Construindo Cidadania em
Moçambique” capacita os membros da comunidade em Majune na monitoria da governação
local, definição de agenda de debate político, capacidade crítica através da advocacia e
monitoria das actividades dos Conselhos Consultivos Locais. O resultado destas formações
é a criação dos “Agentes de Mudança Comunitária” que têm o papel de informar outros
membros da comunidade sobre as principais decisões de interesse local e difundir
instrumentos de monitoria de governação como é o caso da LOLE. Entretanto, à
semelhança dos conselhos consultivos locais, os agentes de mudança também são
desconhecidos, provavelmente por acumularem várias funções na comunidade e
pertencerem a várias organizações em simultâneo, incluindo os partidos políticos.
Tribunal comunitário: De acordo com os membros da comunidade entrevistados em
Malila, o tribunal Comunitário é uma das instituições mais importantes na vida da
comunidade, tendo sido classificado como mais importante do que a „rainha‟ ou o Secretário
do Partido Frelimo. O tribunal comunitário é a instituição onde são tomadas as principais
decisões em relação aos problemas na comunidade. Neste tribunal, para além dos membros
mais velhos da comunidade e dos representantes das famílias alargadas apuiamwenes,
participam também o secretário do partido no bairro e outros membros influentes como o
presidente do conselho consultivo local. O facto do secretário do partido ser membro do
tribunal comunitário reflecte a falta de clareza na definição dos papéis de cada uma das
17
De acordo com a tradição Yao, a circuncisão masculina é uma parte essencial dos ritos de iniciação dos rapazes. A
operação é geralmente feita no mato com equipamento rudimentar. A estação fria (Junho-Agosto) é a ideal para a circuncisão,
dado que o risco de infecção é naturalmente mais baixo. Se o ritual for transferido para a estação quente (DezembroFevereiro), é provável que aumente o número de complicações relacionadas com a circuncisão. No entanto, nem os
funcionários do governo nem mesmo os funcionários da saúde tomaram qualquer posição sobre esta matéria.
15
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
instituições. De forma notável, o tribunal Comunitário não inclui quaisquer membros
femininos. Segundo um informador chave de Malila, as mulheres „não têm a coragem‟ de
participar na tomada de decisões ao nível exigido pelos tribunais Comunitários.
Partidos políticos: Em Majune, a Frelimo é o partido político dominante. Geralmente, os
membros do Frelimo são agentes influentes na comunidade e são consultados pelos
membros da comunidade para as questões de interesse comum. De acordo com o
Administrador Distrital, há também no distrito alguns simpatizantes da Renamo mas o
partido mais antigo da oposição não tem aqui um escritório. Em contraste, o partido mais
novo da oposição, o MDM, estabeleceu há dois anos uma sede local em Majune. O
presidente do partido, Daviz Simango, visitou o distrito um par de vezes e concedeu algum
apoio financeiro à secção local do partido. Tirando isso, o MDM não recebe qualquer
financiamento externo.
Segundo o Administrador Distrital, o Governo local tenta mobilizar o MDM para tomar parte
em diferentes eventos de governação local, mas os membros do partido da oposição não
respondem activamente aos convites. Uma curta entrevista com o representante local do
MDM revela que houve alguns casos de ataques violentos contra membros do MDM, o que
faz com que os membros deste partido oposicionista se sintam intimidados pela maioria da
população. Na realidade, o representante local do MDM é um líder comunitário (régulo) do
Bairro Malanga mas, desde que declarou a sua filiação política, perdeu o respeito dos
membros da sua comunidade.
Instituições e serviços privados
Organizações religiosas: Há algumas comunidades religiosas que fornecem alguns
serviços sociais. A maior delas é a comunidade Muçulmana que está representada por três
mesquitas em Malila. Mas muitas pessoas dizem que a mesquita não faz nada para ajudar
os pobres. Em contraste, a igreja Católica, através das suas Dioceses, dirige diversas
escolas e postos de saúde em Malila. A igreja Católica opera através de animadores que
são membros da comunidade local e que servem de mediadores entre a igreja e a
comunidade. Os animadores foram votados pelos membros da comunidade consultados
como algumas das pessoas mais importantes da comunidade, que são também muito
facilmente abordáveis. Vários dos nossos entrevistados referiram a ajuda prestada pela
igreja Católica, mas os padres que actualmente estão em Majune revelaram que a igreja
está a sentir dificuldades financeiras. Assim, a igreja teve de fechar a única escola préprimária que há em Majune devido à insuficiência de recursos financeiros.
Organizações não governamentais: Há também algumas organizações não
governamentais estabelecidas em Majune, incluindo o Conselho Cristão de Moçambique, o
Mundukide, a Ibis, a Concern Universal e a União de Camponeses. A maioria trabalha na
área da boa governação e desenvolvimento da capacidade dos cidadãos de monitorar o
desempenho do governo local. Nesse sentido, as ONGs têm sido importantes para que as
pessoas em Majune abram os olhos e têm sido bem sucedidas em incitar discussões sobre
democracia e participação dos cidadãos na governação local. Além disso, essas
organizações oferecem apoio na construção de furos e poços de abastecimento de água, no
fomento de novas técnicas de cultivo, na defesa dos direitos dos camponeses, entre outros
sectores.
A IBIS e a Concern Universal são as ONGs mais antigas no distrito e actualmente não têm
um representante local (no distrito), sendo que todas as actividades são coordenadas a
partir da sede em Lichinga. As duas ONGs actuam na capacitação de organizações de base
comunitária na advocacia e governação local, com maior enfoque nos conselhos consultivos
locais e na interpretação da LOLE, Lei dos Órgãos Locais do Estado, ao nível das
comunidades. O Conselho Cristão tem um único técnico no distrito, a implementar projectos
ligados ao abastecimento de água, saneamento, alfabetização de adultos, boa governação e
transformação de armas por enxadas. A Mundokide é uma ONG de origem Espanhola que
16
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
trabalha no distrito de Majune desde 2009, está virada para a introdução do cultivo de
hortícolas no distrito e o micro crédito a pequenos produtores para o aumento e
diversificação da produção agrícola.
Empresas privadas: No distrito estão também activas empresas do sector agrícola e do
sector de caça, como são os casos da Mozambique Leaf Tobacco (MLT), vocacionada no
fomento da cultura do tabaco, Luambala Jatropha, vocacionada na produção de jatropha,
Majune Safari, na promoção de turismo e caça no distrito, e a Tenga Lda. na produção de
macadamia. Apesar destas empresas empregarem a mão-de-obra local, ainda há uma
grande maioria da força de trabalho local que permanece desocupada ou circunscrita à
agricultura familiar.
2.4 Adaptações económicas
Actividades geradoras de rendimento
O distrito de Majune é economicamente dependente da agricultura de subsistência praticada
pela maioria dos agregados familiares. Dos 120 agregados familiares inquiridos no âmbito
do nosso inquérito de base, 88% possuem machamba.18 A maioria dos agregados familiares
do distrito (81%) possui apenas uma machamba. As culturas alimentares mais produzidas
são milho, mapira, mexoeira, arroz, feijões de vária natureza, amendoim, batata reno,
batata-doce, mandioca e hortícolas, cujos excedentes são comercializados nos mercados
locais e em outros distritos da província (MAE 2005 & GdM 2007). De acordo com o nosso
estudo de base, 51% dos que cultivam uma machamba venderam alguns dos seus
produtos. Contudo, a comercialização agrícola é desafiada grandemente pelas condições
fracas de vias de acesso. Ouvimos várias histórias de grupos populacionais cuja colheita
acaba apodrecendo no celeiro porque não conseguem transportar os produtos para os
mercados. Isto pode explicar a razão porque a maioria (61%) dos agregados familiares no
nosso estudo que venderam uma parte dos seus produtos, ganhou menos de 1.000 Mt
(USD 37).
A
principal
cultura
de
rendimento do sector familiar
é o tabaco, fomentado
anteriormente pelo Grupo
João Ferreira dos Santos e
actualmente
pela
MLT
(Mozambique Leaf Tobacco).
Entretanto, há um grande
descontentamento
dos
camponeses do distrito em
relação à introdução pela
MLT da nova variedade de
tabaco
denominada
“Virgínia”, cujas técnicas de
cultivo são difíceis e não são
dominadas pela maioria dos
camponeses. “Na campanha
agrícola 2009/2010 quando a
MLT introduziu o tabaco
Mercado central em Malanga
Virgínia fomos apanhados de
surpresa, principalmente porque ninguém conhecia esta cultura e a MLT não ensina as
técnicas de cultivo,” explicou o Presidente do Conselho Consultivo do Povoado de Malila,
18
De acordo com os dados do Censo de 2008, 91% dos agregados familiares de Majune tinham uma machamba.
Considerando a pequena amostra do nosso estudo de base e o intervalo de confiança do censo nacional, os resultados podem
considerar-se congruentes.
17
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
que também é agricultor. A qualidade do tabaco produzido não satisfaz o fomentador e este
tem recusado comprar a produção. “Perdemos uma campanha inteira a trabalhar o tabaco
para não ganhar nada,” lamentou o Presidente do Conselho Consultivo. A situação tem
afectado muito negativamente a economia das famílias que se serviam do tabaco como a
principal fonte de rendimento, e vários são os produtores que abandonaram o cultivo desta
cultura no último ano.
No passado cultivou-se também algodão em Majune mas, dado que o tabaco tem sido a
cultura mais rentável, a produção de algodão não tem aumentado consideravelmente.
Entretanto, actualmente o grupo João Ferreira dos Santos está reintroduzindo o fomento do
cultivo do algodão, porém esta iniciativa ainda não constitui uma alternativa ao rendimento
dos agregados familiares.
A par da agricultura, as comunidades do distrito praticam a pesca nos vários rios. 26% dos
agregados familiares estudados afirmaram praticar a pesca. Mas as possibilidades de
conservação do peixe são limitadas (sal) e por isso não há uma comercialização do peixe
em grande escala. Em consequência, a pesca continua a ser uma actividade de pequena
escala que oferece alguma variedade ao regime alimentar dos agregados familiares rurais
mas que não aumenta significativamente o seu rendimento. A população local também
pratica caça mas, à semelhança da pesca, a caça não se tornou um motor económico.
De acordo com os resultados do inquérito de base realizado no âmbito desta primeira
Avaliação Qualitativa de Pobreza (Constatação da Realidade), a grande maioria dos
agregados familiares das comunidades pesquisadas em Majune (61%) tem a agricultura
familiar como a principal ocupação. Ora isto não significa que esta população apenas obtém
rendimento através da prática desta actividade. A maioria dos chefes dos agregados que
não estão empregados na agricultura familiar são funcionários públicos e todos residem na
vila de Malanga, trabalhando nas várias instituições públicas ali presentes. Adicionalmente
quase 10% dos chefes dos agregados são reformados, na sua maioria ex-funcionários do
exército moçambicano.
Tabela 3: Ocupação principal dos chefes de agregados familiares em Majune
Ocupação principal dos chefes de agregados
familiares
Funcionário no sector público
Empregado no sector privado
Agricultor
Pescador
Trabalhador por conta própria, com pessoal
Trabalhador por conta própria, sem pessoal
Ocupado em actividades ocasionais ou sazonais
Reformado
Total
Chefes
masculinos de
agregados
familiares (%)
13,1
7,1
51,2
4,8
1,2
Chefes
femininos de
agregados
familiares (%)
13,9
2,8
83,3
0,0
0,0
8,3
1,2
13,1
100,0
0,0
0,0
0,0
100,0
Total
(%)
13,3
5,8
60,8
3,3
0,8
5,8
0,8
9,2
100,0
Os resultados do nosso inquérito indicam que no distrito de Majune existem poucos
camponeses com capacidade de empregar mão-de-obra local que cultive nas suas
machambas; ao mesmo tempo, há poucos agentes económicos que desenvolvam os seus
negócios usando a força de trabalho local.
A economia na capital distrital de Malanga e no povoado de Malila é muito pequena, e é
caracterizada por uma circulação reduzida de dinheiro e de produtos, dominada por alguns
vendedores informais maioritariamente concentrados nos mercados locais. Por conseguinte,
na comunidade de Malila prevalece ainda a economia baseada em trocas, i.e. as famílias
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
trocam produtos excedentes da machamba por outros produtos ou bens. Na vila de
Malanga, por ser relativamente mais urbanizada que a comunidade de Malila e por ser
habitada por funcionários públicos, há alguma circulação de dinheiro, porém há poucos
produtos – agrícolas e industriais/processados – disponíveis para compra no mercado local.
De acordo com os resultados do inquérito por nós realizado, 30% dos agregados indicou
não ter ganho nenhum dinheiro para além das actividades agrícolas no mês que antecedeu
a pesquisa. Dos agregados familiares que tiveram outras fontes de rendimento adicionais à
actividade agrícola, 21% teve rendimentos inferiores a Mt 1,000, 28% teve rendimentos
entre Mt 1,000 e 2,500 e 18% dos agregados tiveram rendimentos a situarem-se entre Mt
2500 e 5000 no mês anterior ao nosso estudo. Apenas 3% dos agregados entrevistados
teve rendimentos superiores a Mt 5,000, no mesmo período do ano. Estes agregados
residem na sua maioria na vila de Malanga, trabalham nas instituições públicas e privadas
que ali existem, ou combinam a venda dos produtos excedentes da machamba com a
prática do comércio informal de pequena escala nos mercados locais.
A fraca circulação de dinheiro entre os agregados das localidades pesquisadas no âmbito da
presente pesquisa contribui para que as despesas semanais dos agregados familiares
sejam na sua maioria inferiores aos 250 meticais, ou seja, menos de 25 meticais dia. Há um
grupo de agregados familiares (22%) que teve despesas equivalentes a 251-500 meticais na
semana que antecedeu a pesquisa. Estas despesas referem-se na sua maioria à compra de
produtos alimentares e de limpeza das casas. A nossa equipa esteve no distrito de Majune
na segunda semana do mês e a maioria dos agregados familiares já havia realizado as suas
despesas, o que geralmente ocorre entre a última e a primeira semana do mês quando as
famílias ainda têm dinheiro resultante das várias fontes de rendimento de que dispõem.
Adicionalmente, 11% dos agregados familiares do distrito gastaram menos – entre Mt 501 e
750 – na aquisição de vários produtos para o consumo da família. Entretanto houve um
grupo de agregados, 28%, que teve despesas acima dos 1.000 meticais na semana que
antecedeu o estudo. Este último grupo apresenta valores de despesa mais consistentes com
a média de despesa mensal da província do Niassa, que de acordo com os dados do último
IOF está fixada em Mt 3,926, o equivalente a Mt 981 por semana. (INE 2010).
A recém reabilitada estrada nacional EN 14, para além de reduzir a distância entre a sede
do distrito, a cidade de Lichinga e o distrito de Marrupa, parece não afectar de forma
significativa o desenvolvimento das actividades económicas formais ou informais do distrito,
pois não se verificam grandes actividades de comercialização de produtos locais ao longo
da estrada. Entendemos que no período anterior à reabilitação da estrada o distrito esteve
bastante isolado das restantes regiões da província; neste sentido, o impacto económico da
reabilitação da estrada é lento e visível apenas para os que conheceram o isolamento e a a
escassez do passado.
Compreensivelmente, as oportunidades de emprego em Majune são escassas. Há apenas
alguns agricultores comerciais que cultivam principalmente jatropha e nozes de macadamia
para os mercados de exportação. Estas explorações agrícolas são tratadas mecanicamente
e portanto não são de mão-de-obra intensiva. Há também algumas reservas privadas que
promovem safaris e turismo de caça e empregam algum pessoal local. Além disso, há
algumas oportunidades de emprego sazonal dadas pela Administração Nacional de
Estradas (ANE), que todos os anos reabilita algumas estradas secundárias e terciárias com
trabalhadores contratados localmente. O trabalho é fisicamente extenuante mas proporciona
um pagamento mensal igual ao salário mínimo. Dado o carácter do trabalho de reabilitação
de estradas (fisicamente exigente, implica uma longa estadia em campos de trabalho), é
quase exclusivamente feito por homens.
Serviços financeiros
O acesso aos serviços financeiros é limitado no distrito de Majune, o que por sua vez pode
dificultar o aumento de rendimento do agregado familiar. Apesar disso, os agregados
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
familiares que foram indicados durante o nosso estudo como estando em melhor situação
produziram o seu rendimento sem terem qualquer apoio financeiro de serviços financeiros
formais. Desde 2006, o Fundo de Desenvolvimento Local (FDL, ou 7 milhões, distribuído
entre as localidades e povoações dos distritos) trouxe algumas oportunidades de crédito às
populações rurais, mas o acesso a este financiamento é difícil, por um lado devido aos
procedimentos burocráticos e pouco claros, e por outro devido às excessivas hierarquias
decisórias associadas a este fundo.
No âmbito do Fundo de Desenvolvimento Local, os projectos devem passar pela aprovação
de Conselhos Consultivos de Povoação, Conselhos de Localidade e por fim pelo Conselho
Consultivo Distrital, dependendo do nível da administração do estado em que o proponente
do projecto resida. Neste sentido, cabe ao Conselho Consultivo Distrital a decisão final
sobre a aprovação, porém este conselho geralmente decide em função do parecer dos
Conselhos Consultivos dos níveis mais baixos da administração do estado, porque estes
últimos conhecem melhor a capacidade financeira dos candidatos aos fundos.
A monitoria dos projectos aprovados deve ser feita pela administração do distrito.
Entretanto, a administração distrital de Majune não possui meios de transporte para
percorrer todas as povoações do distrito, e assim sendo não tem realizado as actividades de
monitoria. Isto contribui para que, por um lado, sejam aprovados projectos pouco
sustentáveis economicamente e sem possibilidade de retorno do investimento do dinheiro
do estado. Por outro lado, há casos em que o montante financiado é muito inferior ao valor
requerido sem que nenhuma explicação para isso seja dada pelos membros do conselho
consultivo que tomaram a decisão de aprovação do projecto. A título de exemplo, um dos
Wakupatha Panandis (ver mais abaixo) que possui um carro de 32 lugares para transporte
de passageiros, solicitou um empréstimo de Mt 350,000 para a aquisição de mais uma
viatura para aumentar a sua frota e melhorar o acesso ao transporte no distrito. Foi-lhe
oferecido um financiamento de Mt 80,000 sem nenhuma explicação para a redução. O
wakupatha panandi acabou por rejeitar a oportunidade. “Recusei este dinheiro porque não
dava para nada. Assim continuo com o meu único carro até poder comprar outro,” explicou
ele.
Para além deste financiamento do governo, uma ONG espanhola, Mundokide, concede
micro-crédito para a produção de horticulturas no distrito. Porém este é um projecto a título
experimental, que abrange apenas 160 agricultores que beneficiam de créditos entre Mt 600
e 2.400. Os valores são devolvidos em 6 meses a uma taxa de juro de 1-2%. A Mundokide
tem conseguido manter a taxa de retorno de empréstimo acima de 90% (94% em 2010),
mas a sua iniciativa ainda é recente e não está muito difundida entre os agricultores do
distrito.
2.5 Percepções locais de pobreza
Quando uma pessoa estranha chega à povoação de Malila, facilmente classificaria a
comunidade de “muito pobre”. Quase todas as casas são construídas em tijolo de barro e os
telhados são feitos de capim. Quase todas as casas têm no quintal um celeiro em mau
estado feito de varas e capim para armazenar a colheita – é claramente uma povoação
agrária. Não há ruas além de vias estreitas e enlameadas que estabelecem uma rede
sinuosa de caminhos através da povoação. A maioria das pessoas – tanto as crianças como
os adultos – anda descalça e as suas roupas têm um aspecto velho. Não há água corrente
na povoação e muito menos electricidade. Aos olhos de um estranho, em Malila a pobreza
parece estar em toda a parte.
Todavia, a fim de sabermos os pontos de vista locais sobre a pobreza e bem-estar,
discutimos com um grupo de membros comunitários sobre a existência de diferentes grupos
sócio-económicos na sua comunidade. O grupo reconheceu quatro categorias sócioeconómicas diferentes que são apresentadas abaixo. Além disso pedimos aos membros da
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
comunidade para identificarem algumas famílias que representassem cada uma das
categorias sócio-económicas. Mais tarde, durante a semana, contactámos estas famílias e
convidámo-las a tomar parte no estudo. No total envolvemos sete famílias: uma da „classe‟
mais próspera e duas de cada uma das outras. O plano é fazer estudos de caso com estas
famílias seguindo-as ao longo dos próximos cinco anos, e aprender com elas sobre a
dinâmica da pobreza e bem-estar. O Anexo III deste relatório compila alguma informação
básica sobre estas sete famílias foco.
Wakupatha – é o grupo de pessoas mais rico, “que vive numa casa com mobília” e
que “tem um carro ou uma motocicleta”. Os Wakupathas “têm muitas coisas” e não
precisam de fazer agricultura, dado que “têm possibilidades de comprar milho.”
Segundo as pessoas com quem discutimos, não há actualmente wakupathas a viver
em Malila.
O único wakupatha identificado, o senhor Fernando, vive em Malanga sede, i.e. no
centro da capital do Distrito, onde desenvolve vários negócios diferentes, incluindo
uma loja/bar, uma pensão, uma empresa de construção e serviços de transporte.
Tem vários carros e duas casas: uma em Malanga sede e outra em Lichinga. Ao
contrário da grande maioria da população local, o senhor Fernando não pratica
nenhuma actividade agrícola.
Wakupatha panandi – Esta é a segunda categoria mais rica, que inclui pessoas que
“vivem da sua machamba” mas que também possuem vários bens importantes como
uma bicicleta ou até um carro.
Ambas as famílias que a comunidade identificou como wakupatha panandi, têm um
carro e vivem do negócio de transportes. Ambas vivem numa casa construída com
tijolos de cimento e coberta por chapas de zinco. As suas casas têm vários quartos e
uma casa de banho interior. Além disso, ambas têm um gerador, uma TV e um rádio.
Nenhuma das duas famílias tem machamba e ambas compram toda a sua comida.
Wakulaga – este grupo de pessoas cultiva a machamba e sustenta-se com a sua
produção. Os Wakulaga constituem uma categoria bastante vasta que abrange a
maioria das pessoas de Malila, incluindo os líderes da povoação (Secretário do
Bairro, presidente do Conselho Consultivo, etc.), vulgares membros da comunidade
e também famílias muito vulneráveis.
Os membros da comunidade local identificaram duas famílias wakulaga pobres para
representarem no nosso estudo esta categoria social. Ambas as famílias são
chefiadas por mulheres e incluem diversas crianças pequenas; vivem em habitações
pequenas (menos de 20 m2) e com mau aspecto, com 1-2 divisões. Ambas as
mulheres que chefiam os agregados familiares têm impedimentos físicos (idade
avançada ou incapacidade física) que limitam a sua capacidade para cultivar toda
uma machamba. Consequentemente, ambas as famílias dependem de outras
pessoas para se sustentarem.
Mazikine – este é o grupo sócio-económico mais pobre. As pessoas “não têm
machamba nem lugar para dormir, nem sequer um cobertor, nada”. Os mazikine “não
colhem nada e não têm dinheiro”. “Comem nas casas de outras pessoas” e por isso
os mazikine “vivem como animais”.
De novo a comunidade identificou dois agregados familiares mazikine, ambos de um
só membro: um homem idoso incapacitado fisicamente. Nenhum dos dois homens
estava em condições de fazer trabalho agrícola e ambos dependem inteiramente de
outras pessoas para se sustentarem. As estruturas das suas casas e os materiais de
construção não eram muito diferentes das casas das famílias wakulaga acima
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
mencionadas. No entanto, o facto de viverem nas suas próprias casas torna-os ainda
mais vulneráveis e mais dependentes da benevolência de outras pessoas.
Durante os dias que passámos com as famílias foco, tornaram-se aparentes algumas
características interessantes. Por exemplo, todos os chefes dos agregados familiares mais
ricos tinham viajado bastante dentro do país (e.g. durante o serviços militar) e/ou são
originários de outra parte do país. Por isso, estiveram expostos a diferentes modos de vida e
de trabalho. Além do mais, nenhuma das famílias mais ricas depende da agricultura, tendo
outras fontes de rendimento.
A geração de rendimento de uma família wakupatha panandi
Um caso interessante é o da senhora Glória (wakupatha panandi), a esposa de um transportador
de Malila, que encontrou várias formas alternativas de geração de rendimento a partir das
facilidades que criou em casa. A senhora Gloria é de Nampula e veio para Malila através do
casamento. O seu marido tem um camião com que ele transporta pessoas e bens entre Lichinga e
a Vila de Malanga. A família possui uma machamba mas pagam a pessoas da comunidade para
trabalhar nela. Têm três filhos, mas apenas o mais novo está em casa com a Senhora Glória; os
outros estudam em Lichinga.
O marido da senhora Glória sai de casa ao nascer do sol e só volta quando já está a anoitecer. No
seu dia-a-dia, a senhora Glória cuida das tarefas domésticas e espera que o marido regresse no
final do dia. Foi num desses dias que ela decidiu usar uma parte da mesada que o marido lhe dava
para comprar crédito para revender à população da comunidade. Ela vende o crédito a 5-10 Mt
acima do preço de compra. O negócio começou a crescer e com o sucesso da venda de crédito,
ela decidiu usar o gerador da casa para oferecer serviços de recarga das baterias dos telefones
celulares mediante pagamento. Ela cobra 10 meticais por carregamento de um telefone. Também
começou a cobrar a entrada às pessoas que queiram assistir a televisão em sua casa,
principalmente nos dias de jogo de futebol. O negócio tem crescido tanto que ela abriu uma conta
no banco onde tem acumulado poupanças e está actualmente a construir uma casa na cidade de
Nampula. Ela gostaria que o negócio crescesse e que ela pudesse ganhar mais dinheiro para não
depender financeiramente do marido é aumentar as suas poupanças.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Como o senhor Fernando se tornou wakupatha
O senhor Fernando é natural da província de Inhambane e chegou ao Niassa em 1980, quando foi
colocado na 7ª brigada no distrito de Cuamba. Durante a guerra deslocou-se entre vários
batalhões do exército das províncias da Zambézia e de Nampula. É nessa época que se casa pela
primeira vez e instala a sua família em Lichinga. Em 1991 o senhor Fernando foi transferido para o
distrito de Majune. Lá ele conheceu a mulher com quem estabeleceu uma segunda família.
Quando chegou ao distrito de Majune, ele, a esposa e uma dúzia de outras pessoas eram os
únicos habitantes da sede do distrito. Com o dinheiro do subsídio do exército (Mt 1,500) decidiu
começar um negócio de comercialização de produtos de primeira necessidade como açúcar,
sabão, óleo. Inicialmente comprava os produtos no Malawi e vendia-os em Majune. Começou com
uma pequena banca e conta com orgulho que o seu estabelecimento foi o primeiro do distrito.
Com o passar dos anos, entre percalços e sucessos, o senhor Fernando conseguiu diversificar as
suas actividades para o sector de transporte, construção, transporte de mercadorias e hotelaria
(possui um bar e uma pensão de 22 quartos na vila de Malanga). “Fui subindo devagar”, disse, e
esclarece que sempre procurou perceber quais as mercadorias e os serviços que tivessem boa
saída localmente. Foi nessas áreas em que ele investiu e assim aos poucos conseguiu gerar
lucros.
Hoje, o senhor Fernando tem 57 anos e tornou-se um empresário de sucesso. A gestão dos seus
negócios é repartida entre Lichinga e Majune. Em Lichinga, a sua primeira esposa gere o negócio
de transportes; em Majune, a segunda esposa cuida do sector de hotelaria. Ele próprio gere o
negócio de construção. O senhor Fernando não possui machamba; compra tudo que consome em
casa. Trabalha com o governo distrital em vários sectores, desde a construção até ao fornecimento
de energia de gerador ao distrito, esta última interrompida devido aos custos do projecto. Pese
embora todo o seu sucesso, e empregar 35 pessoas, o senhor Fernando sonha ainda poder
construir um armazém para abastecer os comerciantes locais mais pequenos.
Interessantemente, os agregados familiares mais pobres também não se envolvem na
agricultura. Não têm qualquer fonte de rendimento e por isso dependem inteiramente de
outras pessoas. Contudo, no passado, a maioria deles dependeu da agricultura e foi só
quando as suas capacidades físicas diminuíram que se tornaram destituídos.
Torna-se também evidente que a pobreza é um conceito relativo, que para nós significa
coisas bastante diferentes do que significa para a população local. Um agricultor de
pequena escala, cujo rendimento anual é inferior a 10.000 Mt, parece-nos pobre mas em
Malila representa a „classe média‟ local. O nível de rendimento e os bens destes agregados
familiares são reconhecidamente escassos, mas
no entanto são capazes de alimentar as suas
O que é o bem-estar para as pessoas
famílias e isso parece ser a principal linha
de Malila?
divisória entre os que localmente são
-“Ter comida para comer e água para
beber e tomar banho.”
considerados pobres e os que não são.
-“Ter dinheiro no bolso.”
-“Ter uma casa com paredes rebocadas
[em vez de blocos em bruto], um telhado
coberto com chapas de zinco e janelas
com vidros.”
-“Ter uma cama e um cobertor; pratos e
panelas; roupas.”
-“Ter uma esposa.”
-“Ter uma machamba.”
-“Ter saúde.”
-“Poder estudar e ter um emprego.”
Não obstante a distinção entre as diferentes
„classes‟ sócio-económicas, parece que a
população de Malila interage facilmente através
das „classes‟. As duas famílias wakupatha
panandi foco parecem socializar sem restrições
com os seus vizinhos e amigos que são
consideravelmente mais pobres. Isto foi
observado ao longo de vários dias, quando
passávamos pelas suas casas e de cada vez
encontrávamos várias crianças e adultos da
vizinhança que tinham parado para conversar.
Surpreendentemente, também os muito pobres
podem tomar parte activa na vida social da
povoação. Uma das duas pessoas mazikine
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
identificadas é o adjunto do Secretário de Bairro e, embora seja deficiente físico, diz que
participa sempre nas reuniões e eventos da povoação. Realmente, identificámo-lo quando
de uma das reuniões de grupo que tivemos com a população local.
Assim, parece que em Malila não há grandes fronteiras sociais entre as diferentes „classes‟.
As pessoas não são isoladas ou discriminadas por causa da sua pobreza, mas uma
incapacidade física/mental pode limitar a interacção social. Em alguns casos, a deficiência
reduz a capacidade das pessoas se moverem e socializarem normalmente com outros
membros da comunidade, como é o caso do senhor Paulo (mazikine) que está demasiado
doente para sair da sua casa o que limita os seus contactos sociais às poucas pessoas que
o visitam e lhe trazem alguma comida.
Noutros casos, as pessoas
incapacitadas auto-discriminam-se
e limitam as suas próprias
oportunidades sociais. Este é o
caso da senhora Rosa (wakulaga)
que se feriu durante o período da
guerra quando estava a fugir da
luta. Caiu num buraco no terreno e
partiu um pé. Nunca recebeu
assistência médica e com o
passar do tempo a ferida não
tratada
transformou-se
numa
incapacidade permanente. Coxeia
e periodicamente fica quase
imobilizada com uma terrível dor
no pé. Quando teve o acidente, a
senhora Rosa vivia com um oficial
do exército de quem teve três
Fotografia tirada pelo senhor Cassamo (mazikine) mostrando a sua
filhos. O oficial convidou-a a casa, que representa a sua pobreza.
mudar-se com ele para Maputo
mas ela rejeitou a oferta devido à
sua deficiência. “Eu sou uma aleijada. O que faria eu em Maputo, onde há tantas mulheres
bonitas?,” perguntou ela. A sua baixa auto-estima é evidente. “Se eu fosse casada, teria um
homem para me ajudar”, disse ela, “mas como sou uma aleijada ninguém pede para se
casar comigo.” De facto, os nossos estudos de caso sugerem que uma incapacidade física é
muitas vezes razão para uma separação.
Embora não haja discriminação entre as diferentes „classes‟ sociais e embora as diferenças
entre as „classes‟ (particularmente entre os mazikine e os wakulagas) nem sempre sejam
muito evidentes, parece que as pessoas em Malila estão bem conscientes da sua posição
na hierarquia social local. Esta auto-consciência tornou-se muito óbvia durante um exercício
em que foi dada a algumas das nossas famílias foco uma máquina fotográfica para tirarem
fotografias da „pobreza‟ e do „bem-estar/desenvolvimento‟. As wakupatha panandis que
participaram neste exercício fizeram fotografias delas mesmas, das suas casas (por dentro e
por fora) e de bens que possuíam (comida, carros, geradores, etc.) de modo a
demonstrarem riqueza e boa vida. O único mazikine que participou nesta actividade também
tirou fotografias da sua casa e do seu pé paralisado, para mostrar a pobreza.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
3. RELAÇÕES SOCIAIS DA POBREZA
3.1 Organização da família e do agregado familiar
Em Malila, o casamento ou uma relação marital é vital para o bem-estar, não só para fins
reprodutivos mas também para a mera sobrevivência. A agricultura, que é a principal fonte
de subsistência para a maioria, exige trabalho duro e habitualmente quanto mais pessoas
trabalham nos campos, maior é a colheita. Uma única pessoa dificilmente pode produzir o
suficiente para um ano inteiro. Além disso, o trabalho agrícola manual é fortemente
condicionado pelo género; na agricultura há uma clara divisão de responsabilidades entre
homens e mulheres. Uma relação marital também garante alguma segurança social, dado
que as agruras da vida podem ser partilhadas e respondidas em conjunto com outra pessoa
adulta. Uma pessoa adulta solteira – seja homem ou mulher – enfrenta sozinha as
dificuldades e se as suas capacidades físicas estão por qualquer razão reduzidas, por
exemplo devido a doença, a pessoa avança rapidamente para a destituição. Assim, uma
relação marital não é apenas uma opção desejada mas sim uma necessidade. De acordo
com isto, não surpreende notar-se que todas as nossas famílias foco mais ricas (wakupatha
e wakupatha panandi) sejam compostas de casais casados, enquanto todos os nossos
agregados familiares mais pobres (wakulaga and mazikine) são chefiados por um adulto
solteiro.
A fim de transferir o conhecimento sobre os papéis e responsabilidades tradicionais de um
marido e de uma esposa, os jovens no princípio da adolescência – rapazes e raparigas
separadamente – passam por ritos de iniciação que normalmente têm lugar entre Junho e
Setembro. Segundo a tradição Yao, os rapazes são circuncisados durante o período do rito,
que pode prolongar-se por um a dois meses ou tanto tempo quanto as feridas demorarem a
sarar. Durante este período, os rapazes permanecem em grupo longe da sua comunidade.
Descartam-se das suas velhas roupas e mantêm-se nus durante este período de
reincarnação simbólica. Os corpos das raparigas são deixados intocádos mas – tal como os
rapazes – são ensinadas acerca das funções reprodutivas e de como agradar aos seus
futuros maridos. No final dos ritos de iniciação, as comunidades organizam uma festa
unyago que se prolonga por vários dias. Agora, os jovens iniciados são considerados
prontos para a vida marital.
Nos velhos tempos, não eram aceites casamentos mistos entre Yaos e Macuas. Os Macuas
não seguiam os mesmos ritos de iniciação nem a prática da circuncisão e, por essa razão,
os Yaos consideravam-nos impuros. Os matrimónios eram discutidos e acordados entre as
famílias e a prática dos Yao favorecia de facto os casamentos entre primos ou outros
membros da família. Actualmente, diz-se que o casamento já não é tanto um assunto da
família. As raparigas e os rapazes jovens decidem por eles mesmos com quem casar e os
casais mistos Yao-Macua parecem ser cada vez mais comuns. Ouvimos também de um
homem jovem macua, que é também membro da Administração Distrital, que os Macuas
adoptaram a mesma prática de circuncisão masculina dos Yao. É provável que este rito de
transformação tenha minorado os impedimentos aos casamentos mistos.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Sócio-culturalmente, Majune é dominada pelo sistema de parentesco matrilinear em que as
crianças seguem a linhagem das mães e pertencem assim à família da mulher. Tipicamente
também o marido quando se casa, muda-se para a família da mulher ou para próximo dela
(matrilocal). Ao mesmo tempo a religião dominante em Majune é a Islâmica, que enfatiza o
patriarcado e a superioridade do homem e permite que um homem tenha até quatro
esposas. A combinação destes dois tipos diferentes de influências gerou uma cultura que é
polígama e matrilinear.
Dos 120 chefes de agregados familiares estudados em Majune no contexto do nosso estudo
de base, 93 (78%) vivem em relação marital. Destes, 28% vive num cenário de agregado
familiar polígamo. Numa
perspectiva masculina,
ter múltiplas esposas
implica maior segurança
alimentar. Cada esposa
tem uma machamba
separada que cultiva
para se alimentar a si e
aos seus filhos. O marido
beneficia da colheita de
cada esposa dado que
come
(e
dorme)
alternadamente
com
cada uma delas. A
poligamia pode assim ser
vista como uma espécie
de
estratégia
de
sobrevivência
que
aumenta a produção
alimentar do agregado,
melhorando com isso as
Uma família wakulaga apreciando uma refeição em frente à sua casa.
possibilidades de bemestar. A poligamia pode
também ser vista como uma medida de segurança do marido para reduzir o risco de ficar
sozinho se a mulher falecer ou se divorciar. No entanto, esta é uma medida de segurança
unilateral. Se o marido morre, o efeito negativo é multiplicado pelo número de esposas. Para
a mulher, uma relação polígama pode não ser igualmente benéfica, mas muitas vezes a
importância de se casar pesa mais do que a importância da monogamia. Além disso, muitos
homens polígamos são mais velhos e relativamente bem estabelecidos na vida e podem por
isso oferecer à mulher, até certo ponto, melhores condições de vida do que um jovem
marido monogâmico.
O senhor Fernando (wakupatha) e a sua família ilustram bem os benefícios da poligamia. O
senhor Fernando tem uma esposa em Lichinga e outra em Malanga (Majune). Obedecendo
aos princípios da poligamia, o senhor Fernando procura tratar igualmente as duas esposas.
Ambas têm uma casa bem construída onde vivem com as suas muitas crianças. Em
conjunto, o senhor Fernando é pai de 16 filhos. Como homem de negócios, o senhor
Fernando entregou a cada esposa a gestão de um tipo de actividade comercial. Em
Lichinga, a esposa gere o negócio de transportes do senhor Fernando; em Malanga, a outra
esposa toma conta da sua loja/bar e da pensão. O previdente Fernando criou
deliberadamente condições para que ambas as esposas se sustentem a si próprias e à sua
prole, de forma que se ele morrer as suas duas famílias não sejam afectadas pela pobreza.
Deve contudo notar-se que o senhor Fernando é, em Majune, um homem extraordinário não
apenas pela sua riqueza mas também porque vem do sul do país onde as mulheres têm um
maior espaço social e económico (Tvedten, Paulo, Tuominen 2010). A decisão de fazer das
suas duas esposas mulheres de negócios não seria uma escolha facilmente replicável por
26
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
um marido Yao, independentemente do seu nível de rendimento. A tradição Muçulmana, da
forma que é aplicada no Norte de Moçambique, coloca as mulheres na esfera doméstica e
atribui exclusivamente aos homens a responsabilidade pela geração de rendimento.
A morte é o fim mais comum de uma relação marital, mas por vezes em Malila um
casamento termina em divórcio ou separação, embora esta não seja uma prática bem aceite
pela tradição Islâmica. Entre os nossos sete estudos de caso, descobrimos três famílias
divorciadas, tendo o divórcio de duas delas sido motivado por uma deficiência física ou
mental da esposa. Em ambos os casos, o marido deixou a esposa e os filhos e mudou-se
para fora da comunidade. Como mencionado acima, os agregados familiares com apenas
um membro adulto são vulneráveis perante qualquer sofrimento. Particularmente na idade
avançada em que a força física começa a diminuir, a pessoa adulta que ficou sozinha com
os seus filhos torna-se frequentemente dependente da ajuda de outras pessoas. Na amostra
do nosso estudo em Majune, 20% dos chefes de agregados familiares eram viúvos ou
separados. Entre os agregados familiares chefiados por mulheres esta era a situação em
66% dos casos, facto este que ajuda a perceber a razão porque tantos agregados familiares
chefiados por mulheres se encontram entre os mais pobres.
Embora o casamento seja geralmente visto como estratégia de sobrevivência indispensável,
em certas ocasiões o casamento pode tornar-se num fardo. Este era o caso da esposa do
senhor Cassamo (mazikine) que deixou o seu marido após 10 anos de vida marital. O
senhor Cassamo foi sempre deficiente físico, dado que tem as pernas aleijadas desde a
infância, provavelmente devido à pólio. O senhor Cassamo nunca pôde executar quaisquer
trabalhos agrícolas mas no tempo da sua juventude costumava ganhar a sua vida pilando
manualmente cereais para outras pessoas. Era casado com uma mulher de Malila com
quem tinha um filho. Quando o filho já andava na escola, o senhor Cassamo perdeu
subitamente a visão, ficando cego e totalmente dependente de outras pessoas. Foi quando
a sua esposa o abandonou. Tão cruel quanto possa ser, pode ter sido a única forma de a
mulher sobreviver. Para uma mulher idosa, é suficientemente duro cultivar sozinha uma
machamba para a sua subsistência, para não falar de alimentar outra pessoa adulta que não
pode contribuir de nenhuma forma. Miraculosamente, porém, o senhor Cassamo conseguiu
alguma ajuda por parte de freiras Católicas que o levaram ao Malawi para ser operado aos
olhos. O senhor Cassamo recuperou a sua visão e voltou para Moçambique e para Malila.
Todavia, a sua mulher nunca o quis de volta e, desde então, o senhor Cassamo tem vivido
só. “Se ao menos eu fosse casado, a minha vida seria boa,” queixou-se ele. “Eu viveria bem
e teria alguém para me ajudar,” concluiu o senhor Cassamo.
3.2 Relações gerais de género
No contexto da primeira Constatação da Realidade, as relações de género eram avaliadas
principalmente através do estudo de base. Durante os próximos anos, o estudo da dinâmica
do género será aprofundado através de métodos qualitativos. Apresentaremos abaixo as
principais conclusões do nosso estudo.
Antes de mais, 70% dos agregados familiares estudados em Majune são chefiados por um
homem. Quando perguntado quais os aspectos que determinam quem é o chefe do
agregado familiar, a grande maioria disse que é quem gere as finanças do agregado ou
quem toma as decisões importantes para o agregado familiar.
Vê-se claramente que num agregado familiar a divisão geral do trabalho está fortemente
ligada ao género. Em geral, as mulheres e raparigas são responsáveis pela maioria das
tarefas caseiras, incluindo limpar a casa e o quintal, cozinhar e ir buscar água. Em alguns
casos os homens podem ajudar a arranjar lenha, mas mesmo isso é principalmente feito
pelos membros femininos dos agregados familiares.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
Tabela 4: Divisão de responsabilidades pelas tarefas caseiras entre os membros do
agregado familiar
Por ir
buscar
água (%)
9,2
Pela
obtenção de
lenha (%)
21,7
Pela limpeza
da casa (%)
Por
cozinhar (%)
Chefe do agregado familiar
Esposa do chefe do agregado
familiar
Casal que chefia o agregado familiar
10,8
10,0
43,3
54,2
44,2
37,5
2,5
0,0
0,0
1,7
Raparigas/mulheres
32,5
31,7
36,7
15,8
Rapazes/homens
0,8
0,0
0,0
8,3
Todas as crianças
4,2
1,7
6,7
5,0
Todo o agregado familiar
4,2
0,0
0,8
6,7
Um estranho
1,7
2,5
2,5
3,3
100,0
100,0
100,0
100,0
Membro do agregado familiar
Total
De acordo com o estudo, há mais equilíbrio na divisão dos trabalhos agrícolas. A maioria
destas actividades, incluindo capinar, semear, colher e mesmo limpar a terra e enxotar os
animais é feita por toda a família. O nosso estudo não aprofundou a divisão das tarefas
agrícolas, mas é provável que em Majune, como em qualquer parte de Moçambique, a
divisão do trabalho entre homens e mulheres se diferencie entre culturas de rendimento e
culturas alimentares. Normalmente as mulheres são responsáveis pela produção de
alimentos, enquanto os homens respondem pelas culturas de rendimento.
Tabela 5: Divisão de responsabilidades pelas tarefas agrícolas
Pela
limpeza da
terra (%)
Por
semear
(%)
Pela
capinagem
(%)
Pela
colheita
(%)
Por
enxotar os
animais
(%)
14,2
6,7
5,8
4,2
15,8
7,5
5,8
5,8
3,3
9,2
30,8
25,8
35,8
20,8
15,0
Raparigas/mulheres
0,8
1,7
1,7
1,7
2,5
Rapazes/homens
1,7
0,0
1,7
0,0
12,5
Todas as crianças
0,8
0,0
0,0
0,0
0,0
Todo o agregado familiar
30,0
47,5
34,2
57,5
31,7
Um estranho
2,5
0,8
3,3
0,8
1,7
Não tem machamba
11,7
11,7
11,7
11,7
11,7
Total
100,0
100,0
100,0
100,0
100,0
Membro do agregado familiar
Chefe do agregado familiar
Esposa do chefe do agregado
familiar
Casal que chefia o agregado
familiar
Uma área de responsabilidade que é claramente dominada pelos homens é a tomada de
decisões sobre o uso dos recursos económicos do agregado familiar. Em 76% dos
agregados famliares estudados em Majune, por um lado o chefe do agregado familiar decide
sozinho sobre a parte da colheita que vai ser armazenada e, por outro lado, a que vai ser
vendida. Do mesmo modo, é muito mais frequente serem os homens a negociar os preços
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
de venda de cada cultura e na grande maioria dos agregados familiares (81%) é o chefe do
agregado familiar que decide sozinho o que fazer com o rendimento obtido.
Considerando que Majune segue a estrutura de parentesco matrilinear e o padrão de
residência matrilocal, é surpreendente observar que 88% dos agregados familiares
estudados atribuíram ao chefe do agregado familiar a propriedade da casa principal,
enquanto 82% atribuíram-lhe a propriedade da machamba. Deve ser lembrado que 70% dos
chefes de agregados familiares são masculinos. É também notável que a vasta maioria dos
entrevistados tenha referido que a esposa e os filhos do chefe do agregado familiar devem
herdar a casa e a machamba após um eventual falecimento do marido. É necessário estar
consciente de que na tradição matrilinear as mulheres devem passar os seus bens para os
seus próprios filhos, enquanto os homens normalmente transmitem os bens aos filhos das
suas irmãs. Deste modo, estes resultados sugerem que a tradição matrilinear pode estar a
passar por algumas alterações. Todavia, não possuímos ainda informação suficiente para
tirar quaisquer conclusões a este respeito, mas durante as Constatações da Realidade dos
próximos anos estudaremos mais detalhadamente a posição da tradição matrilinear.
3.3 Redes sociais e estratégias de sobrevivência
Num contexto em que o estado não é intervencionista e os mecanismos de protecção social
apoiados pelo estado são fracos, as redes sociais informais tornam-se críticas para lidar
com a miséria. A fome é provavelmente a condição mais aguda que activa a cadeia de
disponibilização de apoio. Geralmente, a família alargada oferece a base mais segura para
essas redes mas, nas comunidades pobres, as redes de apoio informais podem esgotar-se
caso as necessidades ultrapassem excessivamente os recursos disponíveis. Quando uma
dificuldade se prolonga, torna-se parte da normalidade e reduz-se a sua capacidade de
invocar empatia e de mobilizar apoio externo.
Noutros tempos, em Majune, era o régulo que tinha a responsabilidade de animar as redes
sociais para ajudarem numa situação de necessidade. Um grupo de líderes tradicionais de
Majune contou como isto acontecia, por exemplo numa situação de fome:
“No princípio, as pessoas respeitavam os líderes tradicionais. O régulo tinha o direito
de tirar alimentos dos que produziam bastante para dar aos que nada tinham. Toda a
gente trabalhava na machamba do régulo e nas suas próprias machambas. Dessa
forma, quando alguém não tinha comida, o régulo dava-lha. Mas actualmente, toda a
gente só pensa em cuidar de si e apenas Deus cuida de todos nós. Agora, o régulo
já não tem voz activa.”
Apesar desta imagem desolada descrita pelos líderes tradicionais, em Malila as pessoas
mais pobres ainda recebem alguma espécie de ajuda. Funciona de maneira diferente do
passado mas, até certo ponto, ainda funciona.
Apoio individual
Provavelmente, a forma mais comum de ajuda é providenciada através de agregados
familiares individuais que podem esporadicamente oferecer alguma comida a um vizinho
pobre, ou a outros membros da comunidade necessitados. Mais raramente, podem dar
pequenas quantias de dinheiro. A comida pode consistir em farinha de milho ou mesmo e
apenas grãos de milho. Num dia de sorte, até pode ser acompanhada de feijão ou algum
caril (i.e molho).
29
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
A dona Assa, que encontrámos em
Malila, chefia um dos agregados
familiares wakulaga mais pobres. A
dona Assa deve rondar os 50 anos
mas parece muito mais velha. Vive
numa pequena cabana (menos de
15 m2) juntamente com a sua filha
adulta, que é deficiente tanto física
como
mentalmente,
e
três
pequenos netos. A dona Assa não
está de boa saúde e já não
consegue cultivar a machamba da
família. A sua filha também não é
capaz de fazer qualquer trabalho
agrícola. Deste modo, a única
forma de alimentar a família é pedir
ajuda aos membros da comunidade
Refeição do dia de uma família wakulaga pobre
vizinhos. Por vezes, um dos
vizinhos mais próximos toma a iniciativa de levar alguma comida à família da dona Assa.
Nesses dias ela não precisa de ir mendigar, mas também há dias em que ninguém ajuda.
Nessas ocasiões, a dona Assa dirige-se a um dos moínhos locais para recolher farelo
deixado pelas pessoas que aí moem o seu milho e o seu trigo.
A família alargada oferece uma importante rede de apoio; os membros da família têm uma
obrigação moral e social de ajudar os seus parentes pobres. Para isso é importante viver
próximo da família. De acordo com o estudo conduzido no contexto da primeira Constatação
da Realidade, 15% dos agregados familiares entrevistados em Majune recebem alguma
forma de ajuda dos vizinhos ou de membros da família. Mas também há limites para o apoio
que a família pode oferecer. A dona Rosa (wakulaga) vive juntamente com os seus três
filhos na povoação de Niputa, próximo de Malila. Tal como a maioria das pessoas pobres
que encontrámos em Majune, também a dona Rosa é aleijada. Como já mencionado, partiu
um pé durante a guerra e nunca foi tratada. Dada a sua deficiência, a dona Rosa não é
capaz de cultivar uma machamba inteira mas sim um pequeno terreno que produz alimentos
suficientes para cerca de quatro meses. No resto do ano, a dona Rosa vive das
contribuições da sua irmã e do marido desta que vivem na casa ao lado. A família da irmã
da dona Rosa está em melhor situação, dado que são dois adultos saudáveis a trabalhar
para o agregado familiar. No entanto, eles também vivem da sua machamba e só podem
ajudar a dona Rosa com alguns produtos excedentes. Isso significa que durante a maior
parte do ano a dona Rosa e os seus filhos comem apenas uma refeição diária.
Apoio colectivo
A maior vulnerabilidade é enfrentada pelos agregados familiares formados por um adulto
solteiro que não tem parentes com quem possa contar. O senhor Paulo (mazikine) é um
viúvo idoso que vive sozinho em Malila. Quando era mais novo, o senhor Paulo costumava
trabalhar como extensionista para um produtor privado de algodão. Mudou-se várias vezes,
até para o Zimbabwe e Malawi, à procura de uma vida melhor. Onde quer que estivesse,
continuava a trabalhar na produção de algodão. Nessa época, diz o senhor Paulo, a sua
vida era boa. Tinha o suficiente para comer e nunca precisou da ajuda de outras pessoas.
No Malawi, o senhor Paulo casou e teve quatro filhos. Passados anos, a sua filha mais velha
casou. Depois a esposa do senhor Paulo adoeceu subitamente e faleceu e algum tempo
mais tarde ele adoeceu também. As suas pernas foram perdendo a força e tornou-se-lhe
difícil mover-se. Não podia continuar a trabalhar e foi morar com os seus filhos mais novos
na casa da sua filha. Mas o novo marido da filha não estava disposto a sustentá-lo. Foi
30
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
então que o senhor Paulo decidiu voltar para Moçambique, embora os seus filhos ficassem
no Malawi. Não nos explicou a razão da sua decisão. Provavelmente desejaria morrer na
sua terra natal para ser enterrado junto dos seus antepassados.
Desde que regressou a Malila, o senhor Paulo diz que tem dependido da ajuda de outras
pessoas. Longe dos seus filhos ou de outros parentes próximos, o senhor Paulo não pode
contar com muita ajuda. Mas, contra todas as probabilidades, o senhor Paulo recebeu
realmente formas extraordinárias de ajuda por parte dos membros da comunidade de Malila.
Inicialmente, sob a liderança do Presidente do Conselho Consultivo local foi construída uma
casa para o senhor Paulo. É uma construção pequena e nesta altura em estado precário,
mas é de qualquer modo maior do que muitas outras casas da povoação. Os membros da
comunidade também lhe construíram uma casa de banho exterior mas esta desmoronou-se
já há algum tempo. O Presidente do Conselho Consultivo recolhe regularmente dos
membros da comunidade alguma comida para o sustentar. O senhor Paulo reconhece que a
comunidade tem cuidado bem dele. Na realidade, é notável a capacidade de uma
comunidade tão pobre mobilizar uma ajuda colectiva tão extensa – e mesmo assim ainda
não é suficiente para prover o senhor Paulo de condições de vida decentes. A maior parte
das vezes, o senhor Paulo come apenas uma refeição por dia. Desde que a sua casa de
banho exterior caiu ele tem tido de usar as latrinas dos seus vizinhos. Dado não ser capaz
de ir buscar água, só raramente toma um banho. O senhor Paulo está doente e sofre de
grandes dores no peito. Não é capaz de se deslocar sozinho até ao posto de saúde, que fica
a 2,5 km de distância, e ninguém o levou lá. A boa vontade da comunidade não é suficiente
para responder às muitas necessidades do senhor Paulo. Os recursos são certamente
escassos, mas mais importante é que a ajuda não é suficientemente bem organizada para
ser sustentável a longo prazo. Parece que a ajuda está concentrada em muito poucas
pessoas. E ao mesmo tempo, podemos perguntar-nos porque é que o apoio não é
igualmente distribuído entre todos os necessitados.
Acesso a e relevância dos serviços públicos
Como já mencionado, os serviços de segurança social em Majune são insuficientes. De
acordo com o nosso estudo, 2,5% dos entrevistados (ou seja 3 respondentes) recebem
assistência social fornecida pelo governo. Das nossas famílias foco, a dona Assa (wakulaga)
é a única que recebe apoio do governo, providenciado através do INAS na forma de 100 Mt
(USD 3,7) por mês. Às vezes, diz ela, há demoras no pagamento que podem durar vários
meses, mas quando recomeça a receber o dinheiro, o INAS paga-lhe retroactivamente. A
ajuda recebida não é suficiente para cobrir as necessidades da dona Assa e da sua família
durante um mês inteiro, mas ajuda a aguentar algum tempo. Além disso, diz a dona Assa,
ela põe de parte 10 Mt do subsídio para usar em caso de doença. Quando o dinheiro acaba,
a dona Assa volta a mendigar.
Em Majune, os outros serviços sociais públicos englobam serviços de saúde e educação. O
Governo introduziu várias medidas com o fim de aumentar o uso dos serviços públicos, as
quais incluem a abolição de propinas escolares ao nível de escola primária e adoptou taxas
simbólicas no sector da saúde. Mas serão estas medidas suficientes para permitir que os
pobres tenham acesso aos serviços públicos?
De acordo com o Director Distrital de Saúde, Mulher e Acção Social, as pessoas pobres
decidem procurar os serviços de saúde numa fase muito tardia. “Eles pensam que têm de
pagar e por isso preferem usar a medicina tradicional,” explica ele. As nossas famílias foco
mais pobres confirmam a explicação do Director. Mas, para ela, a distância física até ao
centro de saúde é um obstáculo pelo menos tão significativo como a expectativa do
pagamento. O senhor Paulo está simplesmente demasiado fraco para ir pelo seu pé ao
centro de saúde. O senhor Cassamo, que é coxo e caminha com a ajuda de um bastão de
madeira, diz que leva um dia inteiro a percorrer, ida e volta, os 2,5 km até ao centro de
saúde. O mesmo se aplica à senhora Rosa, cujo pé aleijado a obriga a caminhar devagar e
penosamente. E durante a época das chuvas a estrada de areia até Malanga torna-se ainda
31
1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
mais difícil para ela. Assim, os agregados familiares mais pobres e os que são fisicamente
incapacitados muitas vezes não têm outra opção que não seja tomarem ervas localmente
disponíveis e ter esperança em melhores dias. Mas a nossa surpresa é grande quando a
dona Assa diz que a sua filha deficiente tinha ido ao centro de saúde de Malanga para dar
parto. Ela levou também aí o seu bebé a um controlo pós-natal – tudo gratuito. O dinheiro
pode afinal ser o factor mais decisivo quando se trata de procurar o serviço de saúde.
A procura de serviços de educação parece ser uma questão mais complexa. Para muitas
famílias wakulaga que produzem o seu sustento através da agricultura de pequena escala,
cada par de mãos é necessário para maximizar a produção de comida. Mandar os filhos à
escola significa que a família fica com menos mão-de-obra nos campos. Assim, a senhora
Rosa (wakulaga) por exemplo proibiu a sua filha de ir à escola. Devido à sua própria
deficiência física, teria muita necessidade da ajuda da sua filha na pequena machamba da
família, mas a filha quer ir à escola. “Há alguém da família que tivesse morrido por não ter
estudado?” perguntou a dona Rosa à sua filha. A sobrevivência diária da família depende da
produção agrícola. Os possíveis benefícios a longo prazo que a família podia obter através
da educação dos filhos estão demasiado distantes de poderem aliviar o sentimento agudo
da fome.
Além disso, algumas pessoas em Malila argumentam que “os jovens que vão à escola
nunca mais querem trabalhar na machamba”. E, dado não haver oportunidades de emprego
no distrito, a educação da juventude parece não trazer quaisquer benefícios. Isto pode
explicar porque é que tantas pessoas com quem falámos parecem um tanto indiferentes em
relação à educação dos seus filhos. Até uma das nossas famílias wakupatha panandi
permite que a sua filha de 6 anos fique em casa e explica simplesmente que “ela [a filha]
não quer ir à escola”. A única pessoa que encontrámos e que mostra um profundo interesse
em que os seus filhos vão à escola é a senhora Glória (wakupatha panandi), que mandou as
suas duas filhas mais velhas para Lichinga quando ainda eram pequenas para garantir o
seu acesso à melhor educação possível. Na sua opinião, a qualidade da escola primária
local não é suficientemente boa. A senhora Glória quer que as suas filhas façam todo o
percurso até à universidade – coisa que ela não pôde fazer.
Resumindo, em Malila a ajuda aos pobres assenta principalmente nos membros da
comunidade que podem, isolada ou colectivamente, providenciar algum tipo de apoio para
os mais pobres. A resposta dada pelos serviços públicos é, na maioria dos casos,
insuficiente em termos de conteúdo e limitada em termos de cobertura.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
4. DINÂMICA DA POBREZA E MOBILIDADE SOCIAL
Revendo a situação das nossas famílias foco mais pobres, podem-se facilmente identificar
vários denominadores comuns. Em primeiro lugar, os chefes de agregados famíliares
pobres nunca foram à escola nem dão muita importância à educação dos seus filhos. Todas
as nossas famílias pobres são chefiadas por apenas um adulto e o nível de vulnerabilidade
de um agregado familiar chefiado por um adulto solteiro – independentemente do sexo do
adulto – é grande. Na maioria dos casos, viveram a sua vida cultivando a terra mas, com o
avanço da idade ou devido a deficiência física, a sua capacidade de efectuar trabalho
agrícola reduziu. Consequentemente, não são mais capazes de sustentar a sua vida e
dependem da ajuda de outras pessoas. As suas redes de família alargada ou são fracas ou
não existem e por isso vivem da caridade oferecida pelos membros da comunidade.
Em resumo, os principais factores que alimentam a pobreza em Malila parecem ser: (i)
agregado familiar chefiado por um adulto solteiro; (ii) incapacidade permanente/doença
crónica, e (iii) idade avançada – por esta ordem. Qualquer destes três factores aumenta
enormemente a vulnerabilidade de um agregado familiar; uma combinação de dois ou mais
factores numa família multiplica a vulnerabilidade.
Ao mesmo tempo, é notável que algumas pessoas sejam capazes de encontrar um caminho
para sair da pobreza. Todos os chefes dos nossos agregados familiares mais ricos
nasceram em famílias pobres, mas acumularam riqueza pouco a pouco e gradualmente
ascenderam na hierarquia sócio-económica. Uma característica que é comum em todas as
nossas famílias mais ricas é o nível comparativamente elevado de educação formal atingido
pelos chefes de agregado familiar. Além disso, todos viajaram consideravelmente e viram
diferentes partes do país. Tanto a educação formal como as experiências de viagem tendem
a desenvolver um certo nível de auto-confiança e de coragem para se libertarem das
práticas económicas localmente dominantes e tentarem estratégias alternativas de geração
de rendimento. E quanto mais diversificam as suas fontes de rendimento, mais longe ficam
da pobreza. Todos os chefes de agregados familiares mais ricos começaram, quando ainda
jovens adultos, a meter-se nos negócios, em oposição à agricultura e, deste modo, tiveram
muitos anos à sua frente para criar prosperidade. Todos eles ergueram os seus negócios
através da prestação de serviços nas áreas onde a procura local era considerável.
Mais estruturalmente, a mobilidade social ascendente numa comunidade pobre como Malila
é desafiada por um lado pela limitada educação e oportunidades de emprego e, por outro
lado, pelo baixo poder de compra. Para se fazer ali negócio sustentável, é necessário
compreender onde estão as necessidades locais. Nesse contexto, é preciso muita paciência
e persistência para criar riqueza. Por outro lado, não há muitos competidores. Se alguém for
capaz de pôr um negócio a funcionar, pode até ser mais fácil prosperar nesse contexto do
que num cenário urbano agitado.
É provável que o acesso à estrada melhorada para Mandimba e Cuamaba traga mais
actividades comerciais para Majune e impulsione a economia local. Nessa situação, as
nossas famílias ricas enfrentarão novos desafios através de uma competição crescente e
terão eventualmente de renovar uma vez mais as suas estratégias de rendimento a fim de
não perderem terreno. Nos próximos anos as Constatações da Realidade seguirão a sua
capacidade para enfrentar as novas circunstâncias e permitir-nos-ão aprender mais sobre as
possibilidades de sair da pobreza e ascender na hierarquia sócio-económica.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
LISTA DE LITERATURA
Documentos do Governo
INE (2008) Estatísticas do Distrito de Majune. Maputo: Instituto Nacional de Estatística.
INE (2009b). Recenseamento Geral de População e Habitação 2007. Maputo: Instituto
Nacional de Estatística.
INE (2010). Inquérito sobre o Orçamento Familiar 2008/09. Quadros Básicos. Maputo:
Instituto Nacional de Estatística.
INE (2011). Agenda Estatística 2011. Maputo: Instituto Nacional de Estatística.
Imprensa Nacional de Moçambique (2006). Decreto nº 6/2006 de 12 de Abril Estabelece O
Estatuto Orgânico do Governo Distrital. Maputo: Imprensa Nacional.
Imprensa Nacional de Moçambique (2003): Lei nº. 8/2003 de 19 de Maio Estabelece o
Quadro Legal dos Órgãos do Estado. Maputo Imprensa Nacional.
MISAU (2005). Moçambique. Inquérito Demográfico e de Saúde 2003. Maputo: Ministério da
Saúde.
Niassa
Åkesson, Gunilla e A. Nilsson (2006). National Governance and Local Chieftancy. A multilevel power assessment of Mozambique from a Niassa perspective. Maputo:
Embaixada da Suécia e Sida.
Concern (2011). Relatório Anual de Actividades 2010. Lichinga: Concern Universal
Moçambique.
GdN (2007). Plano Estratégico Provincial 2007-2017. Niassa. Lichinga: Governo da
Província do Niassa.
GdN (2011a). Plano Económico e Social de 2011. Niassa. Lichinga: Governo da Província
do Niassa.
GdN (2011b). Plano Económico e Social de 2010. Relatório Balanço Anual 2010. Niassa.
Lichinga: Governo da Província do Niassa.
GdN/DdM (2007). Plano Económico e Social para 2007. Majune: Governo do Niassa
(Distrito de Majune).
GdN/DdM (2010). Relatório-balanço do ano de 2010. Majune: Governo do Niassa (Distrito
de Majune).
GdN/DdM (2011). Plano Económico e Social para 2011. Majune: Governo do Niassa
(Distrito de Majune).
GdN/DdM (2011). Relatório-balanço referente ao Primeiro Trimestre de 2011. Majune:
Governo do Niassa (Distrito de Majune).
MAE (2005). Perfil do distrito de Majune 2005. Maputo. Metier Consultoria &
Desenvolvimento, Lda.
Outros Documentos
Cunguara, Benedito e Joseph Hanlon (2010). Poverty is Not Being Reduced in Mozambique.
Crisis States Working Papers No. 2. Londres: London School of Economics.
GRM International (2008, 2009, 2010). Bangladesh Reality Check. Annual Reports.
Estocolmo: Autoridade Sueca para o Desenvolvimento Internacional.
ORGUT (2011). Constatação da Realidade em Moçambique – Relatório Inicial.
TVEDTEN Inge, Paulo Margarida, Tuominen Minna (2010). A woman should not be the boss
when a man is present-Gender and Poverty in Southern Mozambique. Noruega: Chr.
Michelsen Institute.
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1A CONSTATAÇÃO DA REALIDADE EM MOÇAMBIQUE, 2011:
SUB-RELATÓRIO, DISTRITO DE MAJUNE
ANEXO I DADOS SELECCIONADOS SOBRE AS FAMÍLIAS FOCO
Nome (fictício)
Categoria
sócioeconómica
Estado civil
Composição do agregado familiar
Sr. Fernando
wakupatha
Casado, 2
esposas
Sra. Gloria
wakupatha
panandi
Casada
O Sr. Fernando tem 2 famílias e sustenta 2
famílias, uma em Lichinga e uma em
Majune. Tem 16 filhos e divide o seu tempo
igualmente por ambas as famílias.
A Sra. Glória vive em Malila com o seu
marido e um filho de 3 anos. Duas filhas
mais velhas frequentam a escola em
Lichinga e vivem com o cunhado da Sra.
Glória.
Sr. Samuel
wakupatha
panandi
Enviuvou e
voltou a casar
Dona Rosa
wakulaga
Divorciada
Dona Assa
wakulaga
Viúva
Sr. Cassamo
mazikine
Divorciado
Sr. Paulo
mazikine
Viúvo
O Sr. Samuel foi casado duas vezes. A sua
primeira mulher morreu e os seus X filhos
vivem actualmente em Lichinga,
sustentados pelo Sr. Samuel. O Sr. Samuel
voltou a casar e vive em Malila com a sua
jovem esposa, o filho de ambos e uma filha
de um anterior casamento da sua esposa,
além de uma sobrinha também da sua
esposa.
A Dona Rosa é chefe do agregado familiar
e vive com os seus três filhos.
A Dona Assa é chefe do agregado familiar.
Vive com a sua filha adulta que é deficiente
e 3 netos (filhos das suas filhas).
O Sr. Cassamo vive sozinho. A sua exesposa vive em Malila e ele tem um filho
adolescente que estuda em Muembe.
O Sr. Paulo vive sozinho. Tem 4 filhos,
todos a viverem no Malawi.
Habilitações
literárias do chefe
do agregado
familiar
Antiga 3ª Classe
(equivalente à actual
6ª Classe)
6ª Classe (esposa)
5ª Classe
Nenhuma
Nenhuma
Fonte de rendimento
Loja/bar, pensão, empresa de
construção, serviços de
transporte, distribuição de
livros escolares
Serviços de transporte
(marido), venda de crédito de
telemóvel, carregamento de
telemóveis, projecção pública
de jogos de futebol na TV
contra pagamento
Serviços de transporte
Machamba, recebe ajuda da
família da irmã
Recebe ajuda dos vizinhos
Nenhuma
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