O comprimido da discórdia

Transcrição

O comprimido da discórdia
Periodicidade: Semanal
Temática:
Saúde
Expresso
Classe:
Informação Geral
Dimensão:
5779
24­01­2015
Âmbito:
Nacional
Imagem:
S/Cor
Tiragem:
131300
Página (s):
42 a 47
E
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Expresso
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E
Saúde
S/Cor
O comprimido
da discórdia
uso
Milagre para uns Abuso para outros O metilfenidato uma substância
psicoativa vulgarmente conhecida por Ritalina Rubifen ou Concerta usada
em crianças e adolescentes que sofrem de hiperatividade e défice
de atenção já tem 60 anos mas continua a causar polémica Falámos
com neurologistas psicólogos pediatras e professores E com pais e filhos
sob o efeito da medicação As opiniões dividem se mas num ponto todos
estão de acordo
— não vicia mas causa hábito Atenção em caso de
faça o com cerimónia texto anasoromenho fotografias nuno botelho
oana Gonçalves tem 23 anos e atravessou um lon
go caminho até descobrir que sofria de Perturba
ção de Hiperatividade com Défice de Atenção Só
aos 18 anos descobri que tinha PHDA Muitas ve
zes desejei que houvesse um sinal físico do sinto
ma qualquer coisa que indicasse que eu sofria cla
ramente de uma perturbação neurológica no meu
desenvolvimento Esta perturbação foi tão mar
cante na minha vida que resolvi fazer deste tema
uma questão profissional revela Joana terapeuta
de motricidade ver caixa
Beatriz 9 anos é aluna do 4 ano num colégio
de Lisboa Tenta explicar Estou sentada na sala de
aula e oiço tudo o que se passa à minha volta Baru
lhos no corredor as conversas das amigas tudo me
chama atenção e começo a pensar noutras coisas
Faço um esforço para me concentrar mas toma
se muito difícil estar atenta Isto chateia me muito
porque eu quero aprender
Tiago 21 anos é estudante de vídeo e imagem
No final do 12º ano teve um problema com a dis
ciplina de matemática e ficou sem capacidade de
se concentrar Conta Deixei de ter capacidade de
estudar durante horas seguidas Durante os exa
mes sentia tanto pânico que ficava com respostas
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em branco Chumbei A coisa tornou se realmen
difi
te complicada porque eu queria sair do Alentejo e
vir estudar para Lisboa Entrar na faculdade era um
objetivo muito claro Fui procurar um psicólogo
disse me que estava tudo bem Consultei um neu
rologista para me ajudar a resolver o problema da
falta de concentração
Joana Beatriz e Tiago Por motivos diferen
tes todos se cruzaram num mesmo lugar As di
ficuldades relacionadas com o percurso escolar
levaram nos a procurar ajuda de especialistas e
a tomar uma medicação que os ajudou a concen
trarem se Há dois anos Joana começou a tomar
Ritalina Há três meses Beatriz foi medicada com
Rubifen e todas as manhãs antes de entrar na es
cola toma um comprimido para estar atenta Ti
ago durante sete meses tomou diariamente um
comprimido de Concerta Passou a matemática
parou e não voltou a tomar
Ritalina Rubifen e Concerta são medicamen
tos que contêm metilfenidato um fármaco psico
estimulante que pertence ao grupo das anfetami
nas e atua no sistema nervoso central aumentando
a atenção e a concentração e diminuindo compor
tamentos impulsivos Entre os três as variantes
têm a ver com o tempo de duração e dosagens O
Rubifen por exemplo atua entre três a quatro ho
ras a Ritalina de seis a oito e o Concerta de dez a
doze
a
de horas
sono APodem
t
comunidade
provocar
lmédica
a
perda avisa
de apetite
f
Não evicia
mas cria hábito O maior problema é não se conse
guir funcionar sem ele
QUANDO APRENDER SE TORNA DOLOROSO
Aos 6 anos Beatriz entrou na primária mas de
morou algum tempo até conseguir juntar as pri
meiras letras Uma coisa estranhíssima reve
la Sofia referindo se à mais nova das três filhas
Poucos meses depois do colégio alertaram que
a miúda estava atrasada em relação ao que seria
expectável naquela fase de aprendizagem Fize
ram lhe uma série de testes de avaliação psico
pedagógica Ao fim de quatro dias um primeiro
relatório indicava que Beatriz tinha problemas de
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atenção que lhe dificultavam a aprendizagem da
leitura e da escrita Apesar de Sofia considerar a
filha uma miúda muito inteligente a conclu
são pareceu lhe óbvia
— Beatriz tinha uma
culdade específica Esta intuição era baseada na
comparação com as duas filhas mais velhas para
quem a aprendizagem de qualquer matéria nunca
fora um obstáculo
Ambas eram alunas de ex
celência constata acrescentando que também
Beatriz é uma aluna razoável O que se passa en
tão A questão é que a Beatriz além de ter uma
grafia incompreensível dá erros ortográficos ina
creditáveis explica Sofia
Fizeram se exames neurológicos concluiu
se que Beatriz tinha um problema de dislexia
associado ao défice de atenção Durante dois anos
recorreram a uma terapia que a fez interiorizar as
regras da ortografia adaptadas ao seu problema
Até que Sofia começou a ser aconselhada a dar lhe
Ritalina para se concentrar Sofia resistiu Não lhe
era simpática a ideia de ajudar o cérebro da filha
a resolver o problema de forma artificial Explica
ram lhe que era precisamente o contrário Que o
medicamento ajudaria o cérebro a criar mecanis
mos para aprender a funcionar e ganhar estratégias
para adquirir as competências da leitura e da escri
ta Sofia cedeu Optaram por Rubifen só nos di
as de escola por ter um tempo de duração mais
curto Ainda estamos numa fase de experimenta
ção começámos há dois meses diz Sofia ao fim
da tarde sentada num sofá do seu apartamento no
centro de Lisboa Beatriz colada à mãe tenta cor
responder à conversa descreve que mal tomou o
comprimido sentiu uma vontade enorme de traba
lhar Foi mesmo assim Aparentemente é absolu
tamente milagroso confirma a mãe A ponto de
pedir para lhe darem mais porque queria continu
ar a sentir aquela sensação de estar tão concentra
da A verdade é que não era nada usual a pequena
Beatriz
m
lhe sempre
nacabeça
ercom
aterumavontadeinexplicável
imilppensamentos
odora
de
trabalhar
O que lhe aconteceu então
nos neurotransmissores as substâncias químicas
que permitem a transmissão de informação entre
neurónios como se vivessem menos acordados É
preciso vigília para consolidar a memória e é neste
processo que o metilfenidato atua Ao provocar um
aumento da adrenalina e da dopamina interferem
no nível de vigília aumentando automaticamente a
capacidade de focagem e de concentração expli
ca Pedro Cabral diretor clínico do centro de desen
volvimento infantil CADin Continua o neurologis
ta Dentro do largo espetro do que definimos como
sendo a atenção existem várias subfunções que nos
permitem manter acordados e vigilantes e que nos
levam a detetar com rapidez estímulos que nos in
teressam sinalizar ou que nos permite filtrar o que
não nos interessa Estas crianças ditas desatentas
podem ser descritas como não prestando atenção a
nada mas o problema é que prestam atenção a tu
do não se concentrando em nada
Em termos neuro
lógicos estes miúdos apresentam níveis diminuídos
A dificuldade de aprendizagem desencadeia
problemas que se podem tornar bastante graves a
nível da autoestima e é neste sentido que Pedro
Cabral não tem dúvidas sobre a importância de re
ceitar qualquer destes medicamentos O metilfe
nidato é usado há 60 anos Se há coisa que é sa
fe é a Ritalina Na oferta terapêutica existem muito
poucos medicamentos tão estudados e que ofere
çam tanta segurança afirma sem hesitar
Também Miguel Palha pediatra do desen
volvimento e responsável pelo centro Diferenças
partilha a posição de Pedro Cabral Sei que exis
te muita literatura e muita polémica em redor des
tes medicamentos
o
me pelas
tguide
n
Como
lines
e
homem
da i
Academia
r
da ciência
o
America
na de Pediatria que são muito precisas sobre este
assunto A questão é que a prescrição não deve ser
a primeira opção e deve ser administrada por um
período experimental O remédio pode ser uma
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ajuda indispensável mas por si só não resolve o
problema Ambos concordam que o uso da medi
cação deve ser acompanhado com terapias orien
tadas para cada um dos problemas específicos das
perturbações em causa O maior risco alertam mé
dicos e psicólogos é habituarem se à ideia que sem
medicação não conseguem funcionar
insuces
centrais
A TENTAÇÃO DE PÔR A CABEÇA NO LUGAR
Nas últimas décadas o sucesso
— ou o
so
— escolar pas ou a ser um dos tópicos
na relação entre pais e filhos professores e alu
nos Simultaneamente o conhecimento do cé
rebro e os avanços dos estudos da neurologia in
troduziram leituras e terapêuticas que alteraram
radicalmente a forma como passaram a ser en
caradas as doenças da comportamento No léxico
dos educadores entraram termos como dislexia e
dificuldades na aprendizagem mas
sobretudo
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dimensões assustadoras A minha crítica nao tem a
banalizou se o diagnóstico de perturbação da hi
peratividade e défice de atenção precisamente
por ser um dos motivos de distúrbio dentro da sa
ver com a medicação em si mas com a banalização
do diagnóstico A minha preocupação é esta Será
que de repente as crianças muito agitadas são todas
la de aulas e de dificuldade do controlo na relação
hiperativas
Corália Gonçalves professora do primeiro ci
clo da escola básica Frei Luís de Sousa em Benfica
entre crianças e adultos Neste sentido o uso da
Ritalina o mais popular entre os três medicamen
tos cujo efeito milagroso como descrevia a mãe
de Beatriz é tentador para acalmar os miúdos tur
bulentos e complicados dentro do espaço escolar
O problema é que é receitada a crianças cada vez
mais pequenas alertam as educadoras
Sou ferozmente contra diz sem vacilar Isabel
Soares psicóloga de formação e diretora do Colé
gio Moderno em Lisboa há mais de duas décadas
São 850 a estudar no colégio e é inquietante o nú
meros de alunos que são aconselhados a tomar Ri
talina Nos últimos anos o fenómeno tem tomado
partilha o mesmo receio e confere que numa sala de
aula da segunda classe metade dos seus alunos to
mam Ritalina
A maioria das vezes tomam a partir
de uma conversa entre pais e pediatras raramen
te me pedem relatórios escolares O que me choca
é que não vejo resultados O que vejo são miúdos
apáticos que memoraram as competências sociais
mas que continuam com as mesmas dificuldades
de aprendizagem que sempre tiveram
Rita Jonet psicóloga do Colégio Nosso Jardim
em Lisboa também ela com uma longa experiência
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A PRESSÃO EM
DISCURSO DIRETO
de trabalho junto de crianças da primária e do pré
escolar confessa que no princípio era bastante
resistente mas ao longo do tempo verificou que a
Ritalina pode funcionar como experiência até con
firmar o diagnóstico Por vezes perdemos mui
to tempo à procura das causas e depois em poucos
dias resolvem se problemas de atenção aparen
temente irresolúveis A questão é sempre não exa
gerar Deve se fazer um trabalho de acompanha
mento e ensinar regras de autocontrolo necessários
para o futuro destas crianças que sofrem proble
mas de atenção para não ficarem dependentes do
medicamento
Pedro Cabral confere que há um excesso de fo
co sobre a questão da hiperatividade a ponta do
icebergue nos distúrbios provocados pelo défice de
atenção A medicação não funciona sobre os sin
tomas da impulsividade funciona sim sobre os
sintomas da atenção A hiperatividade pode surgir
por consequência e havendo uma medicação para
a atenção a hiperatividade melhora
Conclui E a
partir de que idade é que se deve medicar
A par
tir dos 6 anos diz Só muito excecionalmente em
crianças mais novas
Ricardo foi uma exceção Mónica e Luís foram
chamados à escola e informados que o filho de 5
anos era um trapalhão não conseguia concen
trar se Pouco tempo depois aconselharam os pais
a fazer lhe testes para despistar se o miúdo não
teria DAMP Perturbação da Atenção do Controlo
Motor e da Perceção
Um síndroma que agora
tomar
está muito na moda conta Mónica Testes feitos
diagnóstico confirmado
— Ricardo teria de
Ritalina para aprender a ler e a escrever Mónica
entrou em pânico Achei um exagero mas não
queria ser negligente fiquei sem saber o que fa
zer O pediatra disse lhe para esperar para ver o
que aconteceria a Ricardo na primeira classe Mó
nica respirou de alívio esperou e trocou o filho de
escola Hoje com 7 anos Ricardo é um aluno ra
zoável sem nada a assinalar Quando conta a his
tória do filho Mónica continua ainda visivelmen
te perturbada Mas o que mais a incomoda nes
te processo é pensar Uma criança já não pode
ser trapalhona ou desengonçada Mesmo que lhe
fosse mais difícil aprender não teria o direito de
esperar pelo seu tempo de poder falhar
Desde pequena intuía que era diferente Não
conseguia ouvir o que dizia a professora nem
fechar a boca para me calar O meu cérebro
ONDE PARA A CRIATIVIDADE
Tiago o rapaz que estuda imagem e cresceu numa
pacata cidade do Alentejo é o caso típico do estu
dante que entrou numa crise de ansiedade por cau
sa de um exame de matemática Quando lhe recei
taram Concerta avisaram no que deveria ter em
atenção os efeitos secundários como por exemplo
uma sensação de irritabilidade e de impaciência a
propósito de tudo e de nada Assim foi Mas o que o
deixou mais perplexo foi o efeito poderoso do Con
certa no seu espaço mental Era como se vivesse
numa bolha Eu e mais nada Tudo o resto tomava
se menos relevante A capacidade de foco era tão
grande que conseguia estar numa biblioteca ou num
ambiente extremamente barulhento e não me per
turbava O Concerta tem uma atuação de 12 horas
Durante sete meses Tiago tomou o medicamento e
depois parou Porquê Dava me uma calma extre
mamente fria em relação a tudo A focagem é muito
grande e no período em que o tomei deu me tempo
para refletir Hoje agradeço esse ano que chumbei
Foi importante encontrar alguns métodos mas per
cebi que muitas coisas tinham a ver comigo e que
teria de ser eu a resolvê las Não me agradava a ideia
nunca parava como se quisesse estar sempre
a lembrar se de tudo ao mesmo tempo
Levantava me inúmeras vezes e não me dava
conta de que tudo isto acontecia Consegui
fazer o liceu com algumas notas muito baixas
e bastantes explicações A parte da socia
lização também foi complicada Era muito
impulsiva acusavam me de ser mandona de
provocar conflitos Já nessa altura sentia que
precisava de ajuda e pedi para me levarem
ao médico Os meus pais desvalorizavam as
queixas diziam que era preguiçosa que me
esforçava pouco
No liceu quando as coisas começaram a
fugir do controlo arranjei estratégias para
me defender Fechava me no escritório e
espalhava tudo pelo chão cadernos livros
apontamentos a garrafa de água para não
me dispersar Na véspera dos testes levanta
va me às quatro da manhã para ter a matéria
fresca na cabeça Escrevia vezes sem conta
os mesmos resumos repetia os à exaustão
Estudava de pé com as folhas na mão para os
ler em voz alta e sentir me acordada Deseja
de tomar um medicamento durante toda a vida
va muito entrar na universidade
No ano passado um dos médicos do CADin
ligou lhe a perguntar se queria participar num es
tudo sobre Ritalina e criatividade Tiago que tra
balha com imagem e som colaborou Confessa
que nunca tinha pensado sobre o assunto mas que
agora olha para a sua experiência e conclui que es
tes medicamentos talvez lhe afetassem o processo
criativo e concentra se para explicar Ao conse
guirmos a máxima atenção numa tarefa acabamos
por só focar numa linha de pensamento Como se
não houvessem outras hipóteses nem a possibili
dade de outros raciocínios Ao anularmos a disper
são reduzimos as várias hipóteses de alternativa
Na minha candidatura à faculdade apresentei
criativa Perdemos a dúvida A dúvida é muito im
portante Sem ela não há solução
seisopções
aeojornalismo
igqueolvariavam
oncPoraquijáse
eentre
toiba vê a
propensão para a dispersão e a dificuldade
em concentrar me Entrei na Faculdade de
Motricidade Humana para fazer o curso de
Reabilitação Psicomotora
Orientar me pode ser um grande problema
Sou de Viseu e quando mudei para Lisboa as
coisas agravaram se Aprender outras rotinas
não foi fácil e logo no primeiro semestre
quis desistir Entretanto comecei a criar
um pequeno grupo de amigos e a procurar
algum apoio Mais uma vez intuitivamente
recorri a novas estratégias estudar em grupo
sair de casa para não me distrair frequentar
bibliotecas onde o ambiente de trabalho
me obrigava a concentrar Mesmo assim as
coisas não corriam bem e comecei a deixar
cadeiras para trás
Nessa altura ainda não sabia que toda a
minha dispersão e desorganização tinham
um nome e foi nessa fase que comecei a
ter sintomas com maior impacto negativo
Nas tarefas domésticas por exemplo as
coisas tornavam se caóticas Montes de
roupa que me esquecia de tirar de dentro da
máquina ou de passar aferro ao ponto de
só dar por isso quando já não tinha nada para
vestir Esquecia me do fogão aceso Deixava
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janelas abertas e as chaves dentro de casa
ou penduradas na porta A guiar perdia me
constantemente Esquecia me de que
havia parquímetros e estacionava em sítios
proibidos porque não via as placas Foram
inúmeras as vezes em que perdi o carro E
na faculdade não conseguia acompanhar
o ritmo
Um dia numa aula da disciplina de Pertur
bações do Desenvolvimento a professora
falou na Perturbação de Hiperatividade
com Défice de Atenção Aquela sou eu e a
professora não sabe Tive de me controlar
para não chorar O meu coração batia tão
forte Afinal tinha razão as minhas dificul
dades não eram normais Havia uma expli
cação para o meu esforço em memorizar e
me concentrar Não era burra nem caótica
nem preguiçosa com me acusavam Avisei
os meus pais de que precisava de apoio
clínico Não aconteceu nada
Andava já no primeiro ano de mestrado
quando fiz 21 anos Como presente de ani
versário pedi aos meus pais uma consulta
de psiquiatria Não ma deram E depois
acontece uma coisa mesmo grave E uma
história longa que começou por me ter
esquecido da carteira e do telemóvel em
casa de uns amigos e acabou num parque
de estacionamento a bloquear vários car
ros ao mesmo tempo durante quatro horas
sem me dar sequer conta de que o tinha
estacionado fora do lugar Foi tão absurdo
que os meus pais ficaram mesmo alarma
dos aceitaram que eu procurasse ajuda Fiz
os testes num centro de desenvolvimento
Imediatamente detetaram que sofria de
PHDA O diagnóstico não é um rótulo é
um alívio é muito importante que as coisas
tenham nome Um dos mitos é que esta
perturbação só acontece aos rapazes
A questão é que neles os sintomas das
diferenças de género são mais acentuados
e tornam se ainda mais impulsivos e com
maior agitação motora
A Ritalina funciona como um relógio sei
exatamente o tempo que me vai ajudar a
concentrar Provavelmente terei de tomar
comprimidos até ao fim da minha vida tal
como algumas pessoas precisam de óculos
para ler A medicação funciona mas não
cura É preciso ter acompanhamento e
encontrar estratégias de sobrevivência É
isto que ensino a crianças pequenas que
sofrem como eu Nos cursos de sensibiliza
ção que faço como voluntária nas escolas
a primeira coisa que lhes digo é Apesar
de o PH DA ser uma das perturbações do
desenvolvimento mais estudadas em psi
quiatria no universo da infân
cia e da adolescência é
aquela que reúne menor
consenso
Saúde
S/Cor