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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil)
Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em
Estudos de Linguagens / Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo
Grande, MS : A Universidade, 1997- .
v. : il. ; 23 cm.
Semestral
Subtítulo anterior: revista de Letras.
ISSN 1517-9257
1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos.
3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de
Mato Grosso do Sul.
CDD (22)-805
CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA
Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens
Centro de Ciências Humanas e Sociais
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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS
REITORA
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VICE-REITOR
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DIRETORA DE CENTRO
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COORDENADOR DO PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO
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EDITOR CIENTÍFICO
Geraldo Vicente Martins
EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO
Edgar Cézar Nolasco
Rosana Cristina Zanelatto Santos
IMAGEM DE CAPA
Marcos Antônio Bessa-Oliveira
Buraco Negro, 2010 - Hipergravura Digital
36,7 x 52,06 cm - acervo do autor
PROJETO GRÁFICO
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REVISÃO
A revisão lingüística e ortográfica é de
responsabilidade de Eva de Mercedes M. Gomes
TRADUÇÃO PARA O INGLÊS
DO TEXTO DA ORELHA
Quelciane Marucci
CÂMARA EDITORIAL
Alda Maria Quadros do Couto - Aparecida Negri Isquerdo - Auri Claudionei Matos Frubel - Edgar
Cezar Nolasco dos Santos – Elizabete Aparecida Marques - Eluiza Bortolotto Ghizzi - Hélio Augusto
Godoy de Souza - José Genésio Fernandes - Kelcilene Grácia Rodrigues - Márcia Gomes Marques Maria Adélia Menegazzo - Maria Emília Borges Daniel`– Raimunda Madalena Araújo Maeda - Rauer
Ribeiro Rodrigues - Rita de Cássica Pacheco Limberti - Rosana Cristina Zanelatto Santos - Rosangela
Villa da Silva - Vânia Maria de Vasconcelos - Wagner Corsino Enedino
CONSELHO CIENTÍFICO
Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo
Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP]
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[UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas
Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL].
Sumário
Apresentação
Literatura
[Artigos]
15
MANOEL DE BARROS: ETHOS E ORALIDADE
NO CHÃO DO PANTANAL
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa
35
A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO PUBLICITÁRIO:
ENTRE OS PROVÉRBIOS E OS MASS MEDIA, O
TRABALHO DA MEMÓRIA
Vânia Maria Lescano Guerra
Anita Luisa Fregonesi de Moraes
57
VOZES DESDOBRADAS: O MESMO E OS OUTROS
DE A LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU
Paulo Bungart Neto
77
ÁGUA VIVA COMO UM “LIVRO DE ARTISTA”
AUTOBIOGRÁFICO DA ESCRITORA
CLARICE LISPECTOR
Marcos Antônio Bessa-Oliveira
Edgar Cézar Nolasco
105
COTAS PARA NEGROS: TENSÃO NOS SENTIDOS
Marlon Leal Rodrigues
5
125
A DRAMATICIDADE EXISTENTE NO TORO CANDIL:
UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA FRONTEIRA
BRASIL COM PARAGUAI
Giselda Paula Tedesco
Edgar Cézar Nolasco
141
LITERATURA FEMININA:
TECENDO UMA ESCRITA DE RESISTÊNCIA
Romair Alves de Oliveira
151
A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E IDEOLOGIAS:
UM CONFRONTO ISLÂMICO E NORTE-AMERICANO
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari
Silvane Aparecida de Freitas
173
O PERSONAGEM MALANDRO E A PICARESCA
CLÁSSICA ESPANHOLA: APROXIMAÇÕES
Altamir Botoso
189
CONVERSA ENTRE MULHERES OU A LITERATURA
DE AUTORIA FEMININA E JOSEFINA PLÁ
Márcio Antonio de Souza Maciel
6
Apresentação
Cada vez mais, os estudos literários apresentam-se contaminados
pelos Estudos Culturais. Todavia, mesmo quanto tal contaminação não
acontece, é inegável que os estudos literários têm levado em consideração a
importância do contexto cultural como mediador das análises propriamente
ditas. Talvez seria mais pertinente constatar que os estudos literários, num
crescendo, atravessam e são atravessados por estudos que têm em pano de
fundo a cultura e sua diferença. Daí podermos dizer que, hoje, os estudos
voltados para a literatura, assim como ao discurso, erigem-se assentados
em teorias culturais às mais diferentes possíveis. Entre estas, podemos
mencionar as dos próprios Estudos Culturais, as dos Estudos subalternos,
as dos Estudos pós-Coloniais, as dos velhos Estudos Pós-Modernos, as dos
Estudos Comparados, entre outras teorias.
A Revista Papéis, que ora vem a público, ilustra bem o exercício
transdisciplinar mencionado, justificando, por um lado, que os ensaios a
ela arrolados estão consoantes à discussão contemporânea, e, por outro
lado, que ela cumpre de forma satisfatória seu papel enquanto Revista
do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens,
que é de natureza mista (linguagens).
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos e Ana Maria dos Anjos M.
Barbosa, com o ensaio “Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão
do Pantanal”, abrem tal discussão quando afirmam que o trabalho
7
“tem por objetivo central verificar, com base nos Estudos Culturais e de
literatura comparada, principalmente sob a perspectiva da crítica cultural
latino-americana, o locus de enunciação da prosa poética do escritor sulmato-grossense Manoel de Barros”. Tal discussão propõe uma reflexão,
entre outras, em torno do que se compreende por cultura local, nos dias
atuais. Toda a reflexão do ensaio dá-se embasada pela relação entre os
estudos culturais e os estudos comparados.
Vânia Maria Lescano Guerra e Anita Luisa Fregonesi de Moraes, em “A
construção do discurso publicitário: entre os provérbios e os mass media,
o trabalho da memória”, tendo por base a teoria da Análise do Discurso
que defende que os processos que constituem a linguagem são históricosociais e o discurso é visto como efeito de sentido entre interlocutores
(Foucault), analisam a constituição dos sentidos dos enunciados proverbiais
inseridos em textos publicitários publicados, em 2005 e 2006, em dois
veículos de comunicação de massa, a revista semanal Veja e o jornal
diário Folha de S. Paulo. Tendo como arcabouço teórico a Análise de
Discurso de linha francesa, o ensaio encontra-se também atravessado pelo
discurso dos Estudos Culturais, uma vez que a questão da memória é uma
das preocupações do debate proposto. Encontra-se, ainda, no bojo da
discussão teórica proposta pelo ensaio, uma teoria da comunicação que
é inerente aos textos publicitários como um todo.
Paulo Bungart Neto, em “Vozes desdobradas: o mesmo e os outros
de A la recherche du temps perdu”, aborda os diferentes papéis atribuídos
ao autor Marcel Proust, ao narrador e ao herói do roman-fleuve, tendo
como aporte teórico a crítica estruturalista francesa do século XX. Para
discutir a polifonia do romance francês, Bungart Neto vale-se dos
postulados contemporâneos a respeito da memória, aliando, por sua
vez, toda uma teoria da memória cultural aos postulados da crítica
estruturalista. Vozes da escritura, da memória e da cultura desdobram-se
tecendo o discurso crítico proposto pelo ensaísta.
Marcos Antônio Bessa-Oliveira e Edgar Cézar Nolasco, em “Água
viva como um “livro de artista” autobiográfico da escritora Clarice
Lispector”, propõem uma análise cultural biográfica do livro Água viva,
8
de Clarice Lispector, defendendo a idéia de que o livro possa ser lido
como uma autoficção da persona da escritora. Nessa direção, o livro
será tomado como uma autobiografia de Lispector, ou melhor, como
um diário ficcional, onde a intelectual relata os fatos de sua vida e os
procedimentos de seu processo de construção literária. Entre o texto
literário e o discurso da crítica biográfica, arma-se uma crítica de cunho
culturalista que não partilha mais das visadas dualistas que refugavam o
que era do campo das meras subjetividades do intelectual.
Marlon Leal Rodrigues, em “Cotas para negros: tensões nos
sentidos”, aborda uma discursividade polêmica sobre a questão do negro
que, de certa forma, constitui um debate também sobre a identidade
do brasileiro. Conforme mostra o autor por todo seu ensaio, o discurso
sobre as cotas para negros nas universidades públicas vem colocar “em
cena” um conjunto de sentidos e representações sociais e históricas da
posição social e política do negro no Brasil. Tendo em pano de fundo
os postulados da Análise do Discurso, o ensaio de Rodrigues apresenta
uma grande preocupação culturalista, o que enriquece sobremaneira
a discussão proposta. Com certeza, somente um ajustamento crítico
pertinente, entre o discurso e a cultura, para atacar com o cuidado
necessário que tal “problema” social/cultural demanda.
Giselda Paula Tedesco e Edgar Cézar Nolasco, com “A dramaticidade
existente no Toro Candil: uma manifestação cultural da fronteira Brasil com
Paraguai”, tendo em pano de fundo a discussão em torno da cultura local,
discutem a manifestação cultural Toro Candil como uma produção cultural
local capaz de representar o que se entende por cultura localista. Por tratar-se
de uma brincadeira híbrida, transculturada e fronteiriça, a manifestação em
análise propõe uma discussão em torno das culturas fronteiriças que marcam
o locus da região (MS). O Toro Candil vem mostrar que as produções aqui
encenadas são de natureza trans (-lingual, -cultural, -fronteira), demandando,
por sua vez, um discurso de natureza transdisciplinar.
Romair Alves de Oliveira, em “Literatura feminina: tecendo uma
escrita de resistência”, defende que a literatura de autoria feminina
apresenta não somente a questão do espaço privado (lar), mas também
9
um espaço psicológico altamente intimista em sua escrita. De acordo com
o autor, a escritora Júlia Lopes de Almeida, tendo sua obra reconhecida
pela crítica por seu cunho didático, contempla seu ensaio na ótica
da escritura feminina não como o “sorriso da sociedade”, mas como
resistência de uma escrita singular para mostrar o posicionamento da
mulher nos vários espaços sociais. Como se vê, o ensaio de Oliveira
pauta-se pelos postulados da inserção da mulher na sociedade, bem
como sua representação na mesma, valendo-se, assim, de um discurso
de valor cultural, social justo ao objeto tratado.
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari, e Silvane Aparecida de Freitas
em “A construção de identidades e ideologias: um confronto islâmico
e norte-americano”, analisa as formações ideológicas sobre o atentado
ao World Trade Center ocorrido no dia 11 de setembro de 2001, por
meio das marcas enunciativas presentes nos discursos (cartas do leitor e
reportagens principais) das revistas Veja e Caros Amigos. Fundamentadas
nos postulados teóricos da Análise do Discurso Francesa e nos dos Estudos
Culturais, Becari e Freitas discutem as representações sociais desses
discursos, investigando as práticas discursivas ligadas à constituição da
identidade/reprepsentação do povo islâmico e do “ex-presidente” norteamericano. A junção Análise do Discurso e Estudos Culturais torna a
leitura do ensaio prazerosa e instigante, tanto quanto comovente foi o
acontecimento no bojo da cultura ocidental e na virada do século.
Altamir Botoso, em “O personagem malandro e a picaresca clássica
espanhola: aproximações”, estuda a configuração do personagem
malandro na literatura brasileira, o qual pode ser visto como uma
recriação do personagem picaresco espanhol. O autor faz também um
comentário lúcido do romance Malditos paulistas, romance policial de
Marcos Rey, com o objetivo de destacar as principais características do
malandro literário e as aproximações que podem ser estabelecidas entre
o personagem picaresco e o malandro. Embasado nos estudos literários,
o ensaio torna-se mais significativo ainda com a presença dos Estudos
da cultura, aporte teórico capaz de dar conta dessas discussões que não
se sustentam por fora de uma visada culturalista.
10
Márcio Antonio de Souza Maciel, em “Conversa entre mulheres ou
a literatura feminina e Josefina Plá”, propõe reler parte significativa da
obra da poetisa paraguaia Josefina Plá, bem como parte de sua fortuna
crítica. Em um segundo momento de seu ensaio, o autor detém-se
na leitura sobre a literatura de autoria feminina para, num momento
seguinte, propor uma leitura “feminilizante” de alguns versos de Plá. A
discussão em torno do feminino, bem como de uma mulher escritora
paraguaia como Plá, abrem-se para o campo fértil da cultura com todos
os seus reveses. O autor capta e traduz tais sintomas de forma lúcida e
muito bem apropriada criticamente.
Os dez ensaios presentes neste volume, ambos de natureza crítica
compósita, não apenas brindam o crivo transdisciplinar da Revista,
conforme foi destacado no início, como também propõem um diálogo
crítico entre ambos que, por sua vez, acaba enriquecendo ainda mais
cada um dos ensaios. Que o leitor da Papéis, de posse deste ensaios,
possa propor leituras críticas ainda mais desconstrutoras.
Edgar Cézar Nolasco
Rosana Cristina Zanelatto Santos
Editores-adjuntos da Revista
11
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
Manoel de Barros:
ethos e oralidade no chão do Pantanal1
Paulo Sérgio Nolasco dos Santos
Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa
Resumo: Este artigo tem por objetivo central verificar, com base nos Estudos
Culturais e de literatura comparada, principalmente sob a perspectiva da
crítica cultural latino-americana, o locus de enunciação da prosa poética do
escritor sul-mato-grossense Manoel de Barros, em sua dimensão espacial,
regional e local. Sob o signo emblemático do ethos e da oralidade, índices de
grande produtividade na prosa do escritor, são enfocados temas / elementos
contextuais e a constituição discursiva/ discursivização, formadores, em
reflexo, da identidade, e presentificados, literária e culturalmente, tanto
na escrita do Autor como nas manifestações socioculturais da região sulmato-grossense. Argumenta-se, assim, que a paisagem original do Autor
circunscreve-se na letra e na enunciação enquanto cartografia do universo
de discurso, figurativização matricial de sua prosa poética.
Palavras-chave: Manoel de Barros; Literatura Sul-mato-grossense; Identidade
pantaneira; Discursivização
Abstract: This article aims to check, on base in Cultural Studies and Comparative
literature, mainly under the Latin American cultural review perspective,
the poetics prose declaim locus of sul-mato-grossense writer Manoel de
Barros, on its spatial dimension, regional and local. Under the oral and
ethos emblematic sign, big protuctivities indices in the prose of the writer,
1
Em uma versão preliminar, “Viventes dos pantanais e cerrados”, este artigo se originou de
comunicação apresentada pelo autor, em sessão coordenada, “A fronteira agrega ou separa?
Reflexões acerca do contexto literário híbrido no Mato Grosso do Sul”, no II Seminário Regional
sobre Território, Fronteira e Cultura, da UFGD, em 8-11/09/2009, depois publicada, pela
co-autora, em Cd-Rom do 3º Encontro de Pós-Graduação da UFGD, como embasamento
para a dissertação de Ana Maria Barbosa, cujo título se aplica a este artigo.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
are focus on themes/ context elements and the discursive/ “discursivização”
constitution, producer, on reflex, of identity, and present, literary and
culturally, as many on the Author ‘s writing as sociocultural demonstration
of Sul-mato-grossense region. To argue, so, that the original landscape of the
author to limit on the letter and on the discursive in speech course universe
cartography, matrix “figurativização” of his poetics prose.
Keywords: Manoel de Barros, Sul-mato-grossense literature, “Pantaneira” identity,
“Discursivização”.
À guisa de introdução
Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum
lugar perdido, onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela.
Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era
o menino e as árvores.
Manoel de Barros. Memórias inventadas para crianças, p. 21
Abordar a escrita de Manoel de Barros em seu nível de representação,
enquanto discursivização própria do elemento regional, intrínseco ao
universo de discurso do escritor, procurando uma “circunscripción”2
da voz autoral, constitui aspecto dos mais relevantes na ampliação
do conhecimento da poética do escritor sul-mato-grossense. Neste
artigo, procuramos pontuar o lugar/espaço do texto – da textualidade –
como constitutivo do que denominamos literatura sul-mato-grossense,
propondo que essa literatura, sob o signo emblemático do ethos e
2
Segundo KALIMAN, teórico de “regiões culturais”, trata-se de pensar como a produção
de conhecimento, em um conjunto heterogêneo, forma una circunscripción espaciotemporal, revitalizando o debate sobre a diferença entre região física e região constituída
por afinidades ideológicas e conceituais. Circunscripción carrega uma ideia implícita,
digna de discussão, uma vez que “una regiõn no es el conjunto de realidades materiales
contenidas dentro de determinados limites espacio-temporales, más precisamente, el
constructo mental – o social, ségún el marco conceptual en el que estemos trabajando
– en el cual imaginamos esos límites” (Kaliman, 1998, p. 2).
16
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
da oralidade, demanda índices de grande produtividade na prosa de
Manoel de Barros – escrita e região, ou, escrita e localidade são móbiles
reflexos – instigando à focalização dos temas/elementos contextuais e os
processos discursivos, ambos formadores, em reflexo, da identidade, e
presentificados literária e culturalmente tanto na escrita do poeta como
nas manifestações socioculturais e/ou geofísicas sul-mato-grossenses. Sem
desconhecer a dimensão maior da representação na poética manoelina,
interessa-nos especialmente discutir a produção de sentidos do texto
literário enquanto gerador de elementos de representação que vinculam
representativos textos do autor, extraídos de um corpus significativo, com
o locus de enunciação e com o contexto sociocultural que serviu de solo
para o seu surgimento. Dizendo de outra maneira, trata-se de verificar o
caráter dialógico que a obra do escritor estabelece com o solo da região
cultural que a originou.
Nesta perspectiva, as reflexões teórico-críticas postas em
desenvolvimento pelo discurso crítico latino-americano, como do próprio
Kaliman (1998), de Boniatti (2000)3, de Cosson (1998)4 e, particularmente
de Léa Masina (2008)5, contribuem para a nossa reflexão. Segundo
Masina, por exemplo, há que reconhecer a pertinência das produções
simbólicas vinculadas ao local, ao regional; neste caso, da literatura
produzida nesta região do centro-sul do Mato Grosso do Sul, pois que
se trata de uma região de “[...] fronteira viva, lindeira com um país de
cultura tradicional e espanhola, como é o Paraguai. Uma cultura que
se forma, portanto, à sombra da história local.” (Masina, 2008, p. 10).
O que significa reconhecer, ainda, que, o poder cultural que o espaço
geográfico da fronteira Brasil-Paraguai representa, pode ser descrito e
3
BONIATTI, I. .M. Literatura comparada: memória e região. Caxias do Sul: EDUCS, 2000.
4
COSSON, Rildo. “Notas à margem de uma fronteira móvel”. In: CONTINENTE SUL/
SUR, Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro, 1998. v. 7, p. 85-94.
5
MASINA, Léa. Um roteiro singular (Prefácio). In: SANTOS, Paulo S. Nolasco dos.
Fronteiras do local: Roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense.
Campo Grande: Editora UFMS, 2008.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
lido, segundo a crítica do regionalismo, como “o espaço que as obras
descrevem, o tema que é retirado deste mesmo espaço em que as obras
serão estudadas e reconhecidas” (Kaliman, 1994, p. 5). Assim, à guisa de
exemplificação, é difícil não reconhecer na obra de Hélio Serejo, nosso
regionalista maior, que reuniu a região fronteiriça do Brasil, no Sul de
Mato Grosso com o Paraguai e a Argentina, um formidável registro e
formatação mais adequada da tradução cultural da região, tornando-se
ele próprio, Hélio Serejo, uma espécie de mimetismo da cultura deste
Brasil Meridional, no extremo Oeste e Centro-Sul do estado, cujas
palavras de enunciação vêm dele mesmo, ao se deixar denunciar e flagrar
num emaranhamento linguístico-cultural, de transculturalidade:
Eu sou o homem desajeitado e de gestos xucros que veio de longe. Eu
sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces
sanguíneas os açoites dos ventos dessa região, vadios e haraganos, que,
no afirmar da lenda avoenga, nascem nas terras incaicas, num recôncavo
do mar, varrem o altiplano boliviano, penetram o imenso aberto do Chaco
paraguaio, para depois, exaustos do bailado demoníaco, numa cólera e
estrupício de tormenta, arrebentar, cortantes e gélidos, nesta cidade de
Ponta Porta, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrrarias
sul-mato-grossenses.
Eu vim dos ervais, meus irmãos, do fogo dos barbaquás, do canto triste e
gemente dos urus, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bailados das
estradas, do mais hirsuto da paulama seca, do pôr-do-sol campineiro, dos
dutos, das encruzilhadas e das distâncias perdidas [...] Eu vim de longe,
eu sou um misto de poeira de estrada, de fogo de queimada, de aboio de
vaqueiro, de passarada em sarabanda festiva no romper da madrugada, de
lua andeja rendilhando os campos, as matas, as canhadas, o vargeado. Sou
misto, também de índio vago, cruza-campo e trota-mundo [...] Eu vim, em
verdade, dos charcos e da poeira revolvente dos tempos [...] Fui gemido de
carreta [...] Amei imensamente, o vazio aberto. (Serejo, 2008, p. 33-36).
Vivência e cultura no Pantanal e no cerrado
Trata-se de uma região formidável, misturada à água e cerrados,
ao pé da serra de Maracaju, de colinas arquiteturais, outrora visitada
por cronistas e viajantes de além-mar, onde só existem planícies de
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
exuberantes cerrados e alagados em abundância – que os indígenas
denominaram mar de xaraés. Nada que não fosse gado vacum servia à
referenciação destas planícies pantaneiras. Quem não conhece os campos
de vacaria não conhece este país. Como anotou o cronista-historiador:
Durante três séculos ruminamos com os nossos bois a mesmice e o
marasmo do tempo. E com eles, pastando soltos pelos campos indivisos,
delimitamos as nossas fronteiras. Nesse decorrer vivenciamos a sanha
das atrocidades como ninguém. Construímos a nossa sociedade mestiça,
mesclada de usurpados e usurpadores. [...]. Estamos no centro, quem sabe
nos venha daí a consciência [...]. Somos o coração da América, talvez por
isso sejamos tão apaixonados. (Figueiredo, 1987, p.8).
Desenho de planície: insondável e inabalável calmaria, geradora
de viventes ensimesmados, não só renitentes às transformações e
mudanças, mas antes tão entronados em seus hábitos de luz de
lamparinas e de causos à luz da cheia, caindo por traz dos capões de
mato, que tudo que não seja o próprio “aldeanismo” é refugo que
se masca e remói como o boi, para regurgitar longe, gosto forte de
fumo de corda e uvaia do cerrado. Como enfatiza Achugar, o aldeão
vaidoso continua existindo nesse presente, por isso refletir sobre o
imaginário de nosso tempo representa pensar a partir de um locus
próprio, legitimando assim a própria enunciação de si. (Achugar,
2006, p. 83, 90). O travo cresce com a gente, remodela o modo
de andar, e no espírito e nos costumes ele se imiscui, recendendo
num ethos calado, cortante como o chumbo do quarenta e quatro,
que, quando acontece de ser útil, é expedito em substituir a voz,
econômico e definitivo. Morte aqui não é de brincadeira. Ela vem
séria e necessária como a terra que se pisa e amaina. Com a vida,
afeiçoa-se às entrelinhas da própria vida. Os daqui, habitantes dessas
planícies eldoradas, viemos de muito longe e cá estamos dentro de
uma remota cruzada; num lugar despertencido, onde a lei e o rei
estão desentronizados na ânima de gente guerreira e brava – herança
de longe, longa, mais que de quatrocentos, das nações guaicurus,
usurpados mas recidivos nos usurpadores de hoje, inamovíveis no
vate e na dor que cantarolam ao lado do fogo; fogo invernoso no
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
canto do chão batido da cozinha, atravessado por achas de lenha
estrepitosas e fumegantes chocolateiras. Prosear com o pantaneiro
é ser co-participante do inédito, é saborear prosa rude que fascina
o espírito. Dentre os que tiveram essa ventura, lembra-nos o criador
e contador de estórias do Grande sertão: veredas que, numa de
suas cartas, esses recortes d’alma, afirmara não ter esquecido do
boi laranja; viajante-cronista que, ao passar por Dourados e região
escreveu o relato de “Sanga Puyta” e registrou: “sorvi o bafo do campo
largo, os berros dos bois, toda a vivência de uma gente sadia e brava,
ao longo do tropear das boiadas, esse mundo autêntico de sentimento,
pitoresco, variado e rico.” (apud Santos, 2001, p.110).
Isso foi há muito tempo. Se se pudesse plasmar tudo numa xilogravura, ter-se-ia uma inter-relação de cores e acordes onde apreciar as
imensas pastagens mais um genuíno linguajar castiço; também não faltaria
o tereré nem a guavira. O chimarrão, indiciário sulista, é costume bem
arraigado nas paragens de Dourados, Aquidauana, Miranda e Jardim.
Para comprovar, é suficiente visitar uma dessas famílias que, ainda hoje,
apontando, ora com o dedo ora traçando um riscado no chão, desenham
como se fazia a coleta da erva-mate e seu transporte via Picadinha até
Porto Dom Carlos. A Mate Laranjeira era a responsável pelo transporte
e fornecimento para outros estados e portos e está viva no cadinho das
memórias do colono regional.
Nossa reflexão incide sobre uma rede de inter-relações, elos de
intermediação nas produções simbólicas e suas representações interculturais a partir do Centro-Sul do estado. Ao selecionar este espaço como
central para o eixo de nossas reflexões, pelo menos duas assertivas de
natureza espacial e geográfica delimitam o “lugar” de nossa inserção e
o locus de nossa enunciação: o primeiro, refere-se à região mesma, de
planície, circunscrevendo-a como região de fronteira viva e internacional
com o Paraguai e a Bolívia, o segundo, em contiguidade, diz respeito à
planície pantaneira do nosso estado, formando um dos mais importantes
ecossistemas do planeta. A imensa planície pantaneira, cortada pelo Rio
Paraguai e afluentes, constitui uma área aproximada de 250.000km²;
o Pantanal brasileiro tem 144,299km² de planície alagável, 61,95 aos
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
quais (89,318km²) no Mato Grosso do Sul e 38,1% (54.976km²) em Mato
Grosso. A cada 24 horas cerca de 178 bilhões de litros de água entram
na planície pantaneira6.
Daí que, de suas belezas iluminadoras descreveu-as nosso poeta
mais conhecido, Manoel de Barros, no livro Para encontrar o azul
eu uso pássaros, como se desejasse proteger-se de tantas belezas:
“Que as minhas palavras não caiam de / louvamento à exuberância do
Pantanal. [...]. Que eu possa cumprir esta tarefa sem / que o meu texto
seja engolido pelo cenário.” ou, ainda, em: “Nesta hora de escândalo
amarelo / os pingos de sol nas folhas / cantam hinos ao esplendor”
[...]. “Uma palmeira coberta de abandono / é como um homem / de
escura solidão”7. Ora, o que se lê nesses versos, no livro-álbum como
um todo, é a intensificação do regional pantaneiro, que é autenticado,
sobretudo, pelas imagens fotográficas que formatam a materialidade do
livro, propondo a construção de uma leitura relacional, intersemiótica
entre os dois textos, o verbal e o imagético.
Já se sublinhou bastante o fato de Manoel de Barros ter aprendido
com o Pantanal e com ele ter realizado uma “aprendizagem”, que
queremos aqui demarcar como o “lugar” de experimentação e vivência
do sujeito, de suas narrativas e de sua voz poética8. Valhamo-nos da
crítica Berta Waldman, apresentadora de Gramática expositiva do
chão e do historiador Durval Albuquerque Junior, este que, em ensaio
instigante, busca na poética manoelina o suporte para a revisão dos
postulados de sua disciplina e a notável produtividade que advém de
uma arte que reinventa o passado. Ao retomar o lugar de semovência
do Pantanal, a partir do topos “deslimites do vago”, dado no verso “tudo
6
Cf.: www.wwf.org.br
7
BARROS, Manoel de. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 1ª ed. Campo Grande:
Saber Sampaio Barros Editora, 1999.
8
WALDMAN, Berta. Poesia ao rés do chão. In: BARROS, M. de. Gramática epositiva do
chão. RJ: Civilização Brasielira, 1990, p.15. Também: ALBUQUERQUE Jr., Durval M. de.
História: redemoinhos que atravessam os monturos da memória. In: _____. História: A
arte de inventar o passado. Bauru-SP: Edusc, 2007. Capítulo 4, p.85-97.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
prefere os deslimites do vago, se entorna preguiçosamente e inventa
novas margens”, do Livro de pré-coisas (1985), que se expande noutros
versos do autor:
Por aqui é tudo plaino e bem arejado pra céu. Não há lombo de morro pro
sol se esconder detrás. Ocaso encosta no chão. Disparate de grande este
cortado. Nem quase tem lado por onde a gente chegar de frente nele. Mole
campanha sem gumes. Lugares despertencidos (Barros, 1985, p.69).
A partir desses versos, o ensaísta Albuquerque Junior constrói uma
perspectiva aprofundada da poética manoelina, de modo a fazer reincidir
sobre a própria matriz enunciativa uma selva de signos carregados de
valores indiciários do diálogo e da interculturalidade, palpitantes na
escrita do poeta – cisco ou coisas do ínfimo são alguns desses signos que
ancoram a leitura sobre o sujeito e seu local:
Uma história capaz de descobrir beleza no pequeno, no ínfimo, no
pobre, no traste, no abandonado, no trapo, no vil, no chão. Uma história
que não olhe apenas para o alto, para as coisas celestiais, para o grande,
para o grandioso, para o famoso, para o heróico, para o único, para os
espalhafatos do poder, mas que se deixa seduzir ‘pelas pessoas apropriadas
ao desprezo’, que tenha olhos para o ordinário, o cotidiano, o semnobreza, o sem-riqueza, o sem-saber, todos os “sem-algo” que pululam
em nossa sociedade pós-moderna. Sociedade que, como dizia Foucault,
possui uma nova artimanha, a de incluir excluindo; que tem na exclusão
parte importante do funcionamento do sistema. Sociedade da sobra e
do resto, que precisa de um saber capaz de fazer destes ciscos, destes
restolhos, novos inventos, que saiba dar grandeza aos andrajos, que tenha
um olhar para abaixo, para o menor, para o insignificante, para os seres
que na sociedade são chutados como lata: esta é uma questão de ética e
uma questão de estética (Albuquerque Jr., 2007, p. 94-95).
Com efeito, prolongando as ressonâncias dos versos do nosso
escritor, lidos num espaço intertextual com a epígrafe inicial, sobrevêm
sentidos homológicos na poética manoelina, ainda quando deparamos
com o texto intitulado “Sobre sucatas” – sucata constitui significante
caro à poética da oralidade manoelina (sublinhe-se) –, que assim
exprime, na originalidade do traço primevo do escritor, suas memórias
da infância:
22
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo
fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos:
eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a
gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. (Barros,
2006, p. 19).
Sob esta perspectiva, a prosa de Manoel de Barros passa a constituir
naturalmente uma “espécie de épica às avessas”9; é recorrência de coisas
que se desenvolvem num tempo e num espaço quase que narrativo,
meio que descritivo, no qual o projeto maior do sujeito é uma escrita
metonímica do seu lugar de enunciação – o Pantanal. Aliás, este lugar,
o Pantanal da Nhecolândia, foi definido “como um livro que nós, da
universidade, não sabíamos ler”, conforme observou Fernandes, ao
entrevistar um dos narradores pantaneiros:
Fiquei extático diante da profundidade desta definição. Ele [ o narrador
pantaneiro ], em outras palavras, dizia com isso que os causos contados
por ele não são para ser entendidos dentro dos paradigmas verdade/
mentira, origem/persistência, mas sim, em seus contextos de produção e
de significação. (Fernandes, 2004, p. 92).
A fidelidade ao meio constitui um imperativo da prosa poética
manoelina? Sem sombra de dúvida, a resposta é afirmativa. Livro de
pré-coisas, Para encontrar o azul eu uso pássaros e a tríade Memórias
inventadas expressam uma intenção voltada para o regional e o local.
Muitas passagens desses textos revelam, intencionalmente, a história e o
registro de acontecimentos cruciais como é o caso da Guerra do Paraguai,
os episódios da infância do Autor e, ainda, as imagens do Pantanal. A
tipologia do pantaneiro encontra aqui, como a do gaúcho, em Simões
Lopes Neto, um cenário característico que se impõe por sua veracidade.
Dessa perspectiva, o registro de um ethos particularizado é evidente.
Manoel de Barros mantém o protótipo do pantaneiro tradicional; veja,
por exemplo, no texto “Lides de campear”, onde o Autor define o que é
um pantaneiro, inicialmente evocando o significado exposto na Grande
9
Ver: Camargo (2004).
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
enciclopédia Delta Larousse: Diz-se de, ou aquele que trabalha pouco,
passando o tempo a conversar (Barros, 1985, p. 35). Ao contestar a
comparação, o escritor argumenta que a natureza do trabalho determina
muito, pois como a lida a cavalo é monótona, repetitiva até por dias
inteiros, além de cansativa, sempre um desafiar, um porfiar inerente,
exige persistência. Assim:
No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às
vezes de dias inteiros, - é no uso de cantos e recontos que o pantaneiro
encontra seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima
das cercas. É mesmo um trabalho na larga, onde o pantaneiro pode
inventar, transcender, desorbitar pela imaginação. (Barros, 1985, p. 35).
(grifo nosso).
Anteriormente, em livro de 1985, obra cuja representatividade
torna-se um marco, também pela significativa anterioridade na obra
completa do escritor, a partir do qual a reflexão sobre a identificação do
elemento regional cresce, visível e exponencialmente, Manoel de Barros
indica já no próprio título o lugar da enunciação, a voz do escritor, e
o relato da vida nos pantanais – segundo as “coisinhas miúdas” que
vêm revelar e encher de significação o universo do discurso da obra:
trata-se da prosa subintitulada Roteiro para uma excursão poética
no Pantanal, cujo título é Livro de pré-coisas. O título, assim, na sua
significação mais plena, de elemento do paratexto, constitui um claro
convite ao conhecimento de um lugar em especial, original, santuário
/ terra natal não só do nascimento do poeta, mas sobretudo de suas
vivências, ele mesmo um vivente dos pantanais, que, logo em seguida
descreve o lugar desta enunciação na abertura do texto “Mundo
renovado”: “No Pantanal ninguém pode passar régua [...] A régua é
existidura de limite. E o Pantanal não tem limites.” (Barros, 1985, p.31).
Em sequência, na abertura do texto “Carreta pantaneira”, fala de um
lugar onde as coisas acontecem através do não-movimento, elas apenas
aparecem; imagens do visto e do que se vê, lugares sem limites, em um
tempo primordial: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas.
Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo:
desacontecem”. (Barros, 1985, p. 33).
24
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Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
Além das descrições da “região-lugar-mundo” do escritor, Barros descreve o ato de recriar, numa linguagem oblíqua, no uso da oralidade, que
lhe é peculiar, nomeando ou re-nomeando as coisas. O próprio Manoel de
Barros, em Memórias inventadas: a infância, descreve sua visão oblíqua:
[...] Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e
oblíqua das coisas. [...].
Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum
lugar perdido, onde havia a transfusão da natureza e comunhão com ela.
Era o menino e os bichinhos.Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era
o menino e as árvores (Barros, 2003, s.d.).
Aliás, a visão oblíqua que marca o olhar manoelino encontra iguais
ressonâncias na linguagem do escritor mineiro, Guimarães Rosa, também
identificada como oblíqua, conforme já observou Luisa Vasconcelos na
análise de Tutaméia:
Na linguagem oblíqua, pela sua irradiação, o significado radical e o real se
dilata, alarga-se pelo contágio imaginário de outros significados, em graus
diversos e dos mais vários modos, carregando-se da energia entitativa dos
mesmos; e por esse contágio, seus contornos aparecem oscilantes e fluidos
dinamizando a realidade (Coronado, apud Vasconcelos, 1997, p.54).
Com efeito, a linguagem de Barros e Rosa nasce na voragem da
oralidade que vem a constituir um registro interdiscursivo, fazendo aflorar
o elemento primaz e soberano de suas escritas: a tradição da oralidade.
Como se o próprio Vaqueiro Mariano relatasse o Pantanal como mundo,
recriando retalhos de textos, de enunciados obtidos ao longo do tempo
e da vida; resultante de uma oralidade dos narradores-contadores de
causos pantaneiros, como bem destaca a perspicácia crítica de Wander
Miranda: “Guimarães Rosa conseguiu fazer algo extraordinário: Grande
sertão: Veredas é, nas palavras de Roberto Schwarz, o resultado de
quinhentos anos de oralidade. É totalmente oral e, ao mesmo tempo,
totalmente letrado (Miranda, 2006, p. 165).
Assim, dizendo de um lugar particular, o poeta faz repercutir,
por meio da própria voz, a fala do aldeão, não relatável por nenhum
outro sujeito, pois que ninguém pode pensar (ou falar) por ele a não
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
ser ele próprio. Daí a classificação de linguagem oblíqua, como enfatiza
Vasconcelos: “A linguagem oblíqua, por sua irradiação e opacidade, é aberta
e sem recortes, ou seja, fundamentalmente interpretativa” (Vasconcelos,
1997, p.59); logo, a perspicácia da análise que enfatiza em Barros uma
“épica às avessas”, pois trata-se na realidade de uma práxis do herói – a
personagem Bernardo deste mesmo Livro de pré-coisas – que visa a
agregar as coisas do chão em torno de si, como bem observou Camargo
(2004, p. 111-112): “Situado na origem dos tempos, portanto, mítico,
adâmico, Bernardo se confunde com o cão, se confunde com os bichos,
assume características deles.” –, ilustrando com texto de “O personagem”,
onde Bernardo se revela como personagem mais amada de Barros.
Segundo Barros (1998), num importante volume (Gente pantaneira)
que constitui valioso material histórico, sociológico, antropológico,
folclórico, linguístico e genealógico, o meio físico-geográfico deveria influir
no comportamento humano. Assim, o homem das montanhas, tendendo
à introversão, ao ensimesmamento – nisso constituindo sua paisagem
– diferencia-se do da planície, como o pantaneiro, cuja personalidade
mostra-se mais aberta, solta e tendente à aventura e à mobilidade. Daí
resulta que a beleza da paisagem – da planície – acaba imprimindo certa
estética da amplidão ligada à abertura e largueza de vista.
Em outro livro, Poemas concebidos sem pecado, o primeiro
publicado por Manoel de Barros, em 1937, particularmente no texto “A
draga”, leem-se descrições da região-lugar/mundo do poeta; descrições
extensivas ao ato de recriar e/ou errar a língua, se não em uma forma
de re-nomear as coisas, na de simplesmente recriá-las através da palavra
“adâmica”, ainda não nomeada – como os usos / jogos que o poeta faz
com o significado / dicionarização da palavra “draga”:
A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um
pé de árvore ou uma duna / [...] Abrigo de vagabundos e de bêbados,
restaram as expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem
dinheiro, viver na miséria / Que ora ofereço ao filólogo Aurélio Buarque
de Hollanda / Para que as registre em seus léxicos / Pois que o povo já as
registrou. (Barros, 1937, p. 44-45).
26
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Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
De resto, o geógrafo Rogério Haesbaert (2006) sublinha, destacando, em nosso poeta, sua “velocidade das tartarugas mais do que a dos
mísseis”, frisando, nesses espaços de “reenzaizamento”, o
processo de territorialização como o que consegue alçar a condição de
algo imanente do Ser, do homem e do mundo, um dos componentes
indissociáveis da existência e que por isso, nunca será ‘morto’ pela
desterritorialização – a não ser que desapareçamos nós e a Terra da qual
julgamos ser os protagonistas mestres.” (Haesbaert, 2006, p. 371).
A poética de Manoel de Barros: Uma excursão pelo chão do Pantanal
De outra perspectiva, mas em sintonia com a nossa reflexão, o
escritor e professor amazonense, Milton Hatoum, autor de Relato de
um certo oriente, vem explicar como não só sua própria obra, mas a
de todo escritor, está vicariamente ligada ao “lugar” de enunciação,
diríamos de pertencimento do escritor.
Numa obra literária os traços da cor local e as circunstâncias históricas,
geográficas e sociais são inevitáveis, pois o escritor está sempre rondando
suas origens; às vezes, sem se dar conta, são sempre essas origens que
o seguem de perto, como uma sombra, ou mesmo de longe, como um
sonho ou um pesadelo. (Hatoum, 1996, p. 11).
Representativa parcela da produção literária manoelina faz repercutir
o lugar de nascimento do narrador e muito de suas vivências, mostrandose entranhada num locus de enunciação, num universo de discurso que
em tudo e por tudo fixa-se ao torrão natal, seja através da paisagem ou
da oralidade local, como se observa em diversas passagens de Poemas
concebidos sem pecado10: “- Eu só sei que meu pai é chalaneiro mea
mãe é lavandeira e eu sou beque de avanço do Porto de Dona Emília
[...]” (p.37); “sob o canto do bate-num-quara nasceu cabeludinho bem
diferente de Iracema[...]”(p.9); “- Vou ali e já volto já” (p.15); “Nisso
chega um vaqueiro e diz: - Já se vai-se, Quério? Bueno, entonces seja
felizardo lá pelos rios de janeiros...” (p.17);
10
Cf. Barros (2005, passim).
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Verifica-se, assim, que o narrador demarca para o leitor a sua região
geográfica: o coração do Brasil, o Pantanal sul-mato-grossense, construído
através da matéria poética do autor; narrador/sujeito que vai revelando
sua identidade, como é possível constatar em O livro das ignorãças,
quando Barros apresenta o “Retrato falado” do narrador, revelando sua
identidade pantaneira:
Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas.
Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci.
Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do
Chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. [...].
(Barros, 1991, p. 107).
Apesar de ter conhecido e até vivido em lugares como Rio de
Janeiro, Nova York, Paris, Itália, entre outras metrópoles, Barros configura
seus limites no chão do Pantanal. Ou seja, o locus de enunciação traz
evidências de que esse local não é somente “matéria de poesia”, ou de
carpintaria ou invenção, mas de “pertencimento”. Com os olhos voltados
para o chão de onde emana a força maior de suas realizações, com a
agressividade e o lirismo da terra, vindo ao encontro das inquietações e
preocupações da contemporaneidade, Barros fala de um lugar particular,
como o faz a personagem Bernardo, alter ego do escritor:
Manoel de Barros escolhe para os seus poemas as figuras que não têm
uma função social ou heróica e são destituídas da grandiloqüência épica.
São as personagens do seu universo criado que respondem ao desejo do
poeta de ocultar-se, falar de si disfarçado, multiplicar-se, dar forma ao seu
eu fragmentado e dramatizar a sua sensibilidade poética. São personagens
importantes na configuração da poética barreana, porque desvendam
um processo de criação que dramatiza o eu lírico e, simultaneamente,
informam sobre quem o poeta utiliza para falar em seu nome. (Camargo,
2004, p. 110).
Em Livro de pré-coisas, o narrador vai se revelando e construindo
sua identidade, num processo de identificação com sua origem, pois
o “sujeito” desses textos, contador de estórias, transmuta-se em ser
performático do espaço regional, descreve e demarca os elementos
naturais: “Deixamos Corumbá tardeando. Empeixado e cor de
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Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
chumbo, o rio Paraguai flui entre árvores com sono...”. (Barros, 1993,
p. 107). E, ainda, no mesmo texto, o narrador apresenta sua terra natal,
Corumbá:
Corumbá estava amanhecendo. [...]
Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal.
Estamos por cima de uma pedra branca enorme que
O rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe. [...]
Parece uma gema de ovo o nosso pôr-do-sol do lado da Bolívia.
Se é tempo de chover desce um barrado escuro por
toda a extensão dos Andes e tampa a gema. [...].
(Barros, 1993, p. 11).
Segundo Ricciardi (2008), em “Espaço biográfico e literatura”, os
espaços na literatura são inúmeros e coloridos: “existe, antes de mais
nada, um lugar, um espaço da alma e do corpo, um eu que interage com
os outros, com o ambiente, com a história e as estórias e que caracteriza
a minha maneira de ser, a maneira de ser do escritor ou até de uma
geração.” (Ricciardi, 2008, p. 111). Aponta, ainda, motivos para discutir
a relação de espaço biográfico versus criação literária, pois, segundo o
crítico: “Às vezes, porém, é o conhecimento das variáveis históricas, é o
conhecimento dos ‘acidentes’ [termo que o crítico observa sua utiliza em
oposição à substância] de um texto que permitem entender mudanças,
passagens, escatologias na trajetória de uma obra ou de um autor”
(Ricciardi, 2008, p. 111). Ao discutir o aspecto relacional do texto com
a identidade e pertencimento do autor, o ensaísta tece observações não
só sobre a escrita manoelina, mas também propõe significativa análise de
autores como Ferreira Gullar, que assim se posicionara sobre a questão:
“Minha luz, minha poesia nasce do chão, das pessoas e não do céu nem
de anjo algum.” (p.113. grifo nosso). O que se pode comprovar, assim,
dentre outras passagens, no seguinte no trecho do poema “XIII”, de O
livro das ignorãças, onde o narrador manoelino descreve os lugares
vividos, presentificando-os enquanto lugares de pertencimento:
De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o
Mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
Loucos, de suas crianças e de seus bêbados.
Ali me anonimei de árvore.
Me arrastei por beiradas de muros cariados desde
Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia.
Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o poeta
Cesar Vallejo), Orellana e Mcomonco – no Peru. […].
(Barros, 1993, p. 103).
Segundo Nolasco (2008, p. 66), deve-se observar que: “Na poesia,
na escritura, na literatura, na cultura, na história, o biográfico existe para
marcar a diferença ancestral do sujeito, que varia de sujeito para sujeito,
de lugar para lugar, de cultura para cultura”. Depreende-se, então, que
as imagens suscitadas na prosa de Manoel de Barros correlacionam-se
à vida, ao cotidiano e revelam a oralidade, as expressões populares e
regionais. Barros trabalha com o ethos da oralidade perdida dos xaraiés,
línguas que são substrato da poética do escritor e que, comparada ao
kotyú – forma poética guarani que se caracteriza por ser breve –, em
cada fragmento, podemos ler o frescor desses dialetos e idiomas perdidos
dos Xaraiés, e através da escritura oralizada do poeta, como salientou
Douglas Diegues, outro escritor da fronteira. Sob esta perspectiva, Barros
transmuta-se na personagem Bernardo, a mais importante de Livro de
pré-coisas e presente em vários textos do escritor. Bernardo é aquele
que, nas águas, escreve com as unhas o Dialeto – Rã:
Falado por pessoas de águas, remanescentes do Mar de Xaraiés, o Dialeto
- Rã, na sua escrita, se assemelha ao Aramaico idioma falado pelos que
habitavam a região pantanosa entre o Tigre e o Eufrates. Sabe-se que
o Aramaico e o Dialeto - Rã são línguas escorregadias e carregadas de
consoantes líquidas. É a razão desta nota. (Barros, 1990, p. 281).
Considerações finais
A expressiva maioria dos textos de Manoel de Barros são escritos em
forma de prosa poética e não apresentam propriamente relatos de sua
vida, acontecimentos históricos que narram como os fatos aconteceram,
porém observam-se indicativos claros de vivências, experiências que
denotam o sujeito da prosa poética. São pensamentos livres, soltos,
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Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
“inventados”, mas que indicam um lugar de pertencimento, comovendo,
persuadindo o leitor a também enxergar esse mundo narrado. Por
isso, Barros expressa: “O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu
sou pantaneiro” (Barros, apud Béda, 2002, v. 2). Num jogo com as
palavras, o autor provoca o leitor a constatar que fala de si mesmo. Dessa
forma, a poesia é o próprio Pantanal, as vivências do escritor a partir
da visão de menino. Se a enunciação é a via de acesso às construções
semiodiscursivas, ou seja, constituindo a instância de mediação que
produz o discurso, é importante observar, como faz Diana Barros, que
“o sujeito da enunciação [...] está sempre implícito e pressuposto no
discurso-enunciado” (Barros, 2002, p. 74).
Agamben (2007), em “O autor como gesto”, contesta o tema da
impessoalidade da escrita, assim estabelecendo a importância do autor
no gesto de afastamento que ele tece em relação à obra, na sua ausência,
que, deste modo, deverá encontrar um movimento solidário por parte
do leitor, ou seja: “o autor não é senão a testemunha que o afiança
da própria falta na obra em que foi jogado” e o leitor não pode senão
voltar a soletrar esse depoimento, não pode senão, por seu turno, deixar
de modificar-se em fiador do próprio inexausto ato de jogar de não ser
suficiente (Agamben, 2007, p. 63); assim, autor e leitor estão em relação
com a obra sob a condição de permanecerem inexpressos e o texto
irradia o testemunho dessa ausência. Nesse aspecto, “a função-autor
aparece como processo de subjetivação mediante o qual um indivíduo
é identificado e constituído como autor de um certo corpus de textos”, e
“toda investigação sobre o sujeito como indivíduo parece ter que ceder
o lugar ao regesto, que define as condições e as formas sob as quais o
sujeito pode aparecer na ordem do discurso”11. Agamben observa, ainda,
que “o autor não está morto, mas pôr-se como autor significa ocupar
o lugar do morto. Existe um sujeito-autor, e, no entanto, ele se atesta
11
“Regesto é uma coletânea de atas e documentos, resumidos ou transcritos em suas
partes consideradas essenciais, ou então um resumo de um determinado documento
histórico” (Cf. Agamben, 2007, p. 57).
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34]
unicamente por meio dos sinais da sua ausência”. Isso leva o pensador a
concluir que “o lugar – ou melhor, o ter lugar – do poema não está, pois,
nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor
e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente
fogem disso” (p. 58). Desse modo, o autor é tão somente a testemunha,
o fiador de sua própria ausência na obra, competindo ao leitor, por sua
vez, retraçar essa ausência, o lugar vazio do vivido, como infinito reinício
do jogo. Logo, de acordo com o filósofo contemporâneo, o sujeito é o
que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que
foi posto – se pôs – em jogo (Agamben, 2007, p. 63).
Concluindo, em Paisagens originais (2002), Rolin demonstrou que
cada escritor compõe sua própria “paisagem original”, uma vez que a
obra de um escritor conduziria aos labirintos minuciosos do passado,
como os amores da infância correm no mundo dos sonhos, e que há
um estranho frêmito que cresce em todos nós nesses momentos em que
a lembrança se une ao sonho. De tal forma que a paisagem original de
um Borges, por exemplo, reduzir-se-ia a seus elementos absolutamente
primeiros, do espelhamento infinito, repetição de um tempo cíclico,
reprodução de um mundo original do qual o nosso seria apenas a imagem
especular. Dessa perspectiva, resultaria uma concepção de “lugar, espaço
da memória”, no qual “as paisagens originais são os espaços sentimentais
pelos quais estamos ligados ao mundo, os istmos da memória” (Rolin,
2002, p. 148-149). Sob esse ponto de vista, em relação à prosa manoelina
sublinha-se que os vários textos grifados, sob o nome e a assinatura do
escritor/Autor, deixam-se refletir como num espelho tríptico, onde a
escritura manoelina é, simultaneamente, contraface da história do local
e do chão em que todos os três germinaram.
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34]
REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.
AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: _____. Profanações. São Paulo: Boitempo,
2007.
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Paulo Sérgio Nolasco dos Santos é docente da
FACALE/UFGD.
Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa é mestre em
Letras pela FACALE/UFGD.
34
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
A construção do discurso publicitário:
entre os provérbios e os mass media, o
trabalho da memória
Vânia Maria Lescano Guerra
Anita Luisa Fregonesi de Moraes
Resumo: Considerando que, de acordo com a Análise de Discurso, os processos
que constituem a linguagem são histórico-sociais e o discurso é visto como
efeito de sentido entre interlocutores (FOUCAULT, 2005), este trabalho
analisa a constituição dos sentidos dos enunciados proverbiais inseridos
em textos publicitários publicados, em 2005 e 2006, em dois veículos de
comunicação de massa, a revista semanal Veja e o jornal diário Folha de
S.Paulo. Para fundamentar nossas análises, articulamos a teoria polifônica
de Ducrot (1987) e a heterogeneidade de Maingueneau (2005) que,
aliadas ao arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa,
permitem descrever os fatos da língua, verificados no fio discursivo de dois
textos publicitários, e compreender os efeitos de sentido produzidos pelo
cruzamento do interdiscurso com o intradiscurso por meio do trabalho
da memória.
Palavras-chave: provérbios; discurso publicitário; mass media.
Abstract: It’s known that, according to the Discourse Analysis, the processes that
constitute the language are social-historical and the discourse is seen as
a meaning effect between interlocutors (FOUCAULT, 2005), the objective
of this article is to analyze the proverbial statements constitutes inserted
in advertising texts published predominantly in 2006, in two vehicles of
mass communication, the weekly magazine Veja and the periodical daily
Folha de S. Paulo. To base our analyses, we articulated the poliphonic
theory of Ducrot (1987) and the heterogenity of Maingueneau (2005) with
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
the French Discourse Analysis theory that allows to describe the facts of
the language, verified in the discursive wire of 2 advertising texts, and to
understand the meaning effects produced by the relation of interdiscourse
and intradiscourse according to the work of memory.
Keywords: proverbs; advertising discourse; mass media.
Introdução
Neste trabalho, propomo-nos estudar enunciados publicitários,
tendo como objeto de análise propagandas veiculadas na mídia impressa,
construídas a partir da articulação de provérbios. Analisar discurso não
é uma tarefa fácil, dadas as inúmeras definições do termo oriundas
de diferentes concepções teóricas; além disso, para se referirem às
produções verbais os linguistas também recorrem aos termos “enunciado”
e “texto”. Inicialmente, cabe-nos, portanto, precisar a perspectiva teórica
abordada nesta análise.
Maingueneau (2005, p.51), ao tratar especificamente do termo
discurso, destaca seus empregos usuais: são os enunciados solenes
(“o presidente fez um discurso”), as falas inconsequentes (“tudo isso
é só discurso”) ou um uso restrito da língua (“discurso político”). O
termo discurso constitui parte essencial das ciências da linguagem e é
empregado tanto no singular, referindo-se à atividade verbal em geral,
como no plural, ao se referir a cada evento da fala. Na verdade, esse
termo representa uma mudança na maneira de conceber a linguagem ao
considerar o texto como unidade primeira (o texto precede as sentenças),
tendo como condição essencial a textualidade: “relação do texto consigo
mesmo e com a exterioridade” (ORLANDI, 2004, p.52).
É no sentido de “exterioridade” que a perspectiva abordada neste
trabalho difere dos outros campos de investigação linguística. Aqui,
texto é um objeto histórico, resultado de uma atividade subjetiva inscrita
em um contexto determinado - texto como discurso. A filiação teórica
adotada neste trabalho, portanto, é a da Análise de Discurso de origem
francesa (AD), que considera o contexto histórico-social parte constitutiva
36
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
do sentido e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado.
Ou seja, no discurso os sentidos são historicamente construídos. Para a
AD, então, o texto é considerado um objeto linguístico-histórico.
Michel Pêcheux, Dominique Maingueneau e Oswald Ducrot são
os autores em que buscamos apoio teórico, já que, de uma maneira
abrangente, concebem o discurso como o lugar da manifestação de uma
subjetividade atravessada pela presença do Outro/outro. Nesse sentido
trazem uma contribuição aos estudos dos discursos: qualquer modificação
na materialidade linguística, a ordem significante, corresponde a
diferentes gestos de interpretação, compromisso com distintas posições
do sujeito, com diferentes formações discursivas, distintos recortes de
memória, ou seja, diferentes relações com a exterioridade.
O aprofundamento da teoria do discurso no que se refere à
subjetividade, à polifonia, à historicidade e às redes de memória fez-nos
pensar nos enunciados proverbiais em um contexto mais específico de
como se constituem os efeitos de sentido no discurso. À necessidade de
definir um objeto de pesquisa aliou-se o estudo dos gêneros discursivos
e, dessa maneira, chegamos ao discurso publicitário12.
Para Brandão (1998), a noção de gênero é um tema constante
dos estudiosos da linguagem desde Platão e Aristóteles. Inicialmente, o
estudo dos gêneros restringiu-se à poética e à retórica por dois motivos:
a ciência linguística é recente e sua preocupação inicial foi com as
unidades menores que o texto. À medida que ela passa a trabalhar
não só com textos literários, mas também com o funcionamento de
quaisquer textos, a questão dos gêneros torna-se crucial para os estudos
linguísticos. Sabemos que o discurso publicitário é altamente persuasivo,
oferecendo um “mundo colorido” de abundância, progresso e felicidade.
Em decorrência disso, a mensagem é manipulada de modo que ao
12
O termo discurso aqui toma um valor mais preciso, sendo considerado como um uso
restrito da língua, definida como um sistema compartilhado. Nesse sentido, discurso
publicitário trata-se de um tipo de discurso (MAINGUENEAU, 1998, p.43).
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
discurso de apresentação do objeto desejado sobrepõe-se um discurso
de representação dos sujeitos “desejantes” (LANDOWSKI, 1992, p.105).
Assim, o discurso publicitário oferece as imagens que valorizam o produto
e, ao mesmo tempo, constitui a identidade de seu público, oferecendo
a suposta imagem de seu desejo, utilizando para tanto todos os recursos
disponíveis dos códigos linguístico e não linguístico.
Pensando especificamente no caso dos enunciados proverbiais
usados nos textos publicitários, recorremos a Obelkevich (1997, p.45)
para quem, tradicionalmente, os provérbios são “estratégias para situações,
mas estratégias com autoridade, que formulam uma parte do bom senso
de uma sociedade, seus valores e a maneira de fazer as coisas”. Para o
autor, o que define o provérbio não é a sua estrutura linguística, mas a
sua função externa, normalmente moral e didática: as pessoas utilizam-no
para dizer às outras que atitude tomar em relação à determinada situação.
Assim é que se pode entender a expressão “bom senso”, utilizado por
Obelkevich. Encaramos o uso dos provérbios nos textos publicísticos como
uma das estratégias de persuasão, utilizando a voz do senso comum, da
comunidade, que fala por intermédio deles. Dessa maneira, procuramos
mostrar que diferentes vozes, trazidas pela memória discursiva, se cruzam
nesses enunciados, e que é no encontro dessas vozes com a voz do emissoranunciante13, em posição de enunciador, que se constitui o sentido.
Os estudos sobre memória social e suas relações com as várias formas
de se conceber o arquivo acompanham a produção do conhecimento
humano e se relacionam ao percurso da história. Da nossa perspectiva
metodológica, o conceito de arquivo segue Foucault (2005, p. 149)
quando afirma que o arquivo é “a lei do que pode ser dito, o sistema que
rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”.
O arquivo é o que faz com que todas as coisas ditas não desapareçam
ao simples acaso de acidentes da exterioridade do discurso, “mas que
se agrupem segundo regularidades específicas”.
13
Expressão usada por Landowiski (1992, p.104).
38
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
Os textos publicitários analisados foram retirados de dois veículos de
comunicação social, a saber, a revista semanal Veja e o jornal diário Folha
de S. Paulo. No nosso exercício de análise, trabalhamos a materialidade
descritível do corpus, num nível intradiscursivo, como suporte da
emergência do interdiscurso, pontuando o caráter heterogêneo e
polifônico da linguagem, a partir de uma memória discursiva. A escolha
desses dois veículos comunicacionais deu-se, primeiramente, por serem
eles reconhecidos pela credibilidade e pela maior penetração junto ao
público leitor. Em segundo lugar, pela frequência de sua publicação: a
revista é semanal e o jornal, diário.
Seguindo essa orientação, a pesquisa baseia-se na análise do
discurso publicitário, e vai detectar pontos onde transpareçam as
posturas ideológicas que dizem respeito à presença dos interdiscursos
que se materializam nesse discurso, e os efeitos de sentido relacionados
ao regime político, ao modelo econômico, e, finalmente, à sociedade
brasileira. Para tanto, mobilizaremos o recorte, seguindo a visão de
Orlandi, que é uma unidade discursiva: fragmento correlacionado de
linguagem – e – situação. Tais recortes são feitos na (e pela) situação de
interlocução, aí compreendido um espaço menos imediato, mas também
de interlocução, que é o da ideologia. Assim, “o texto é o todo em que
se organizam os recortes” (ORLANDI,1986, p. 139).
Como procedimento metodológico, enumeramos os recortes,
nos quais se busca reconhecer as diferentes representações do sujeito
no discurso, por meio do exame de algumas marcas discursivas que
trazem as várias presenças do outro, bem como de alguns efeitos
de sentido instaurados pelos argumentos analisados. Portanto, ao
desenvolvermos este estudo, que articula a influência dos interdiscursos
e de suas ideologias presentes na materialidade linguística, à luz das
teorias da AD, mobilizamos questões históricas e sociais, as condições
de produção que, num sentido estrito, são as circunstâncias de
enunciação, o contexto imediato; e num sentido amplo, as condições
são representadas pelo contexto sócio-histórico a fim de entendermos
essa materialidade específica.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
1. O discurso publicitário e a cultura dos provérbios
O poder da publicidade está na linguagem. Segundo Quessada (2003,
p.120), “a linguagem faz parte do produto”, ambos são co-produzidos,
testados junto aos consumidores que, de certa maneira, elaboram os
enunciados que irão seduzi-los. O discurso publicitário torna-se, assim,
um “discurso do produto”, do qual as empresas se servem para convencer
e seduzir. Desse modo, o capitalismo apodera-se da linguagem e a utiliza
para fins comerciais; para tanto, a publicidade modela a linguagem à
maneira dos produtos: elabora sequência de palavras, inventa e testa
sistemas de enunciados e certas configurações linguageiras.
Há uma distinção entre publicidade de marca e a publicidade
institucional. A primeira destina-se a divulgar um produto e promover
seu consumo e para isso utiliza estratégias do tipo direta ou indireta, ou
seja, utiliza-se de um discurso mais enfático em que predomina a função
conativa14, como no primeiro tipo, ou anunciam-se apenas as virtudes
e /ou o nome do produto, no caso da estratégia indireta. A publicidade
institucional, por sua vez, trata da valorização de si, estabelecendo uma
relação com o público. No discurso publicitário há também uma distinção
entre propaganda e publicidade. Para Carvalho (1998), propaganda
refere-se à mensagem política, religiosa, institucional e comercial, dirigese, portanto, para os valores éticos e sociais.
O termo publicidade, por sua vez, abrange apenas as mensagens
comerciais, explorando o universo dos desejos. Nesse sentido, ela é mais
leve, mais sedutora que a propaganda, já que utiliza subterfúgios na
estratégia de convencimento, de sedução. A diferença entre os termos
está, portanto, no universo que cada uma delas aborda. Não exploramos
o mérito dessa diferença, pois, para o nosso trabalho isso não é relevante.
14
De acordo com a tipologia das funções da linguagem de R. Jakobson, os discursos são
classificados de acordo com a função predominante. Nos textos em que a função conativa
predomina, o locutor procura agir sobre o outro. É importante salientar, entretanto, que
o discurso mobiliza várias funções ao mesmo tempo. (MAINGUENEAU, 2005, p.60)
40
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
Usamos o termo publicidade e a expressão discurso publicitário para nos
referirmos ao domínio discursivo em que se inscrevem os enunciados
proverbiais, objeto desse estudo. Nesse sentido é que também referimonos à expressão mensagem publicitária, largamente utilizada pelos
autores Landowski (1992) e Eco (2003).
Os enunciados proverbiais, objeto deste trabalho, são partes
constituintes de discursos publicitários, portanto, estão inseridos no
universo discursivo que descrevemos acima. Eles fazem parte de uma
estratégia discursiva para seduzir o enunciatário, o alvo da mensagem,
a fim de que ele adquira determinado produto, acreditando que essa é
a sua vontade e não a do enunciador. A publicidade explora estratégias
comerciais para a conquista de mercado, manipulando, muitas vezes,
instrumentos culturais (no nosso caso, os provérbios) que influenciam o
comportamento do consumidor. Dessa maneira, o discurso publicitário
age sobre o indivíduo, os grupos sociais, a sociedade como um todo.
Para o liberalismo, liberdade se resume à liberdade de comerciar:
liberdade de escolher entre todos os produtos de que fala a publicidade,
transformando ideologicamente o cidadão em consumidor. Por isso, o
papel do discurso publicitário não se resume apenas à comunicação, ele
estabelece relações de vínculo na sociedade. Para Quessada (2003), a
publicidade cria e define territórios (os territórios das marcas) aos quais
se aderem as pessoas e, para que o discurso publicitário funcione como
sistema, repetindo que a liberdade é consumo, a imprensa, o rádio e a
TV tornam-se instrumentos do marketing.
Desde que a ciência se atribuiu um lugar específico na sociedade,
delimitando e distinguido seus campos, o que restou dessa limitação
é o que se pode denominar cultura. A ruptura que a ciência produziu
entre as línguas artificiais, seus discursos, e os falares populares é ainda
uma estratégia para confirmar seu poder, desautorizando o saber sobre
as práticas sociais. Os enunciados proverbiais, como práticas discursivas
exemplares, apresentam marcas enunciativas, representam modalizações
da prática social, “instrumentos manipuláveis por usuários” (DE CERTEAU,
2005, p.82); indicam, portanto, uma historicidade. Os provérbios são,
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
41
Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
dessa maneira, registros atemporais de cultura popular, representam
vozes de pessoas comuns conversando em inúmeras situações da vida
cotidiana, incorporando atitudes populares. São enunciados impessoais
e anônimos que têm uma existência própria, independente de autores,
falantes ou ouvintes. Apesar de serem facilmente reconhecidos, são
difíceis de serem definidos. Apesar de os provérbios serem usados na
escrita, pertencem primordialmente à oralidade, e oferecem conselhos
e sabedoria, proferidos em um tom sentencioso. Transmitem não só
conhecimento moral como também prático, social e profissional.
Estruturalmente, os enunciados proverbiais são breves, fáceis
de serem memorizados. Linguisticamente são ricos em metáforas,
aliterações, rimas, construções binárias ou simetrias entre as partes
que criam um eco do sentido. Mas o que define, na realidade, os
provérbios não é sua forma interna, mas sua função externa moral
e didática. Eles podem ser usados em qualquer situação e seu
papel moral pode ser aplicado informalmente, no cotidiano, ou no
ensino formal, como nas escolas de ensino básico do século XIX. Em
situações de conflito, servem para atenuar uma crítica ao expressar
uma desaprovação de forma indireta. Eles são vistos como parte de
um código restrito que aprisiona a experiência. Diante disso, há
uma tendência atual em esvaziar seu conteúdo tradicional, deixando
de expressar a sabedoria popular para tornar-se matéria-prima da
originalidade do falante. Essa tendência está mais difundida do que
nunca em todos os níveis culturais como nos grafites, nos textos
publicitários ou na literatura.
Os enunciados proverbiais apresentam uma dupla visão: à
primeira vista, parecem sensatos, estabelecidos numa ordem cotidiana,
representantes da condição humana. Mas, se analisados mais de
perto, indicam uma fonte de disputas sociais: envolvidos na política da
linguagem, transformam-se em variáveis históricas e sociais. Ao serem
questionados pelas elites culturais como o “outro” linguístico associado
aos plebeus e pequeno-burgueses, o que está em jogo não é apenas a sua
“vulgaridade”, mas a própria natureza e os rumos da cultura de elite.
42
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
2. Uma análise dos enunciados publicitários ancorados nos provérbios
Considerando que nosso objetivo neste artigo é estudar enunciados
publicitários, tendo como objeto de análise propagandas veiculadas
na mídia, construídas a partir da articulação de provérbios, torna-se
necessário nesta etapa apresentarmos os dois enunciados publicitários
selecionados. Ressaltamos que eles estão elencados, a partir da sequência
que adotamos também na articulação de nossas análises, especificados
pelos suportes midiáticos FSP (Jornal Folha de S. Paulo) e RV (Revista
Veja) e suas respectivas datas de publicação, a saber:
1. “Pode tirar a coroa. Uma rainha nunca perde a majestade. Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil. www.bohemia.
com.br. Aprecie com moderação”. RV, ed.1960; ano39; n°23;
14/06/06.
2. “O Continental planta surpresas para você colher emoções.
Continental Shopping”. FSP, 19/12/05.
Os provérbios representam um tipo relativamente estável de enunciado, numa perspectiva estilística, composicional e, muitas das vezes,
temática. Isso nos faz considerá-los, de acordo com Bakhtin (1992), pertencentes a um gênero específico do discurso. Estão intimamente ligados à
cultura popular, caracterizada como uma atividade resistente a uma “rede
de forças e de representações estabelecidas” (DE CERTEAU, 2005, p. 79),
alterando as regras desse espaço opressor. São enunciados metafóricos marcados por usos e por uma historicidade social e que incorporam atitudes
populares. Por serem atemporais e representarem a voz do senso comum,
sua enunciação é “fundamentalmente polifônica” (MAINGUENEAU, 2005,
p.169). Proferir um provérbio é dar à voz do enunciador uma outra voz, a
voz do bom senso e dos valores de uma sociedade, sem deixar, entretanto
de dar responsabilidade ao enunciador, já que ele faz parte, assim como
o provérbio, de uma comunidade. Cabe ao co-enunciador reconhecer o
provérbio como tal, apoiado em sua memória e em sua estrutura composicional. Pela sua característica de impessoalidade, não se referem a
situações enunciativas particulares, são apenas estratégias, embora com
autoridade, para determinadas situações.
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Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
Na perspectiva da AD, há dois tipos de universos discursivos:
os logicamente estabilizados, representados pelos discursos das tecnologias, das ciências da natureza, etc. e os não estabilizados logicamente, dos quais fazem parte o discurso político, o sócio-histórico e
os registros do cotidiano, incluídos neste último os provérbios. Dessa
maneira, trabalhar com esse gênero discursivo implica trabalhar com
a sua materialidade discursiva, o real da língua na sua existência simbólica, abordando-a a partir do “equívoco”, de sua heterogeneidade.
Isso quer dizer que os provérbios, vistos como enunciados, são suscetíveis a tornarem-se outros, de deslocarem discursivamente de seus
sentidos para outros sentidos. Nesse processo interferem diretamente
as condições de produção, que compreendem os sujeitos, a situação
e a memória discursiva, ou seja, aquilo que já foi dito antes, em outro
lugar e que retorna sob a forma do já-dito. É a memória discursiva, o
interdiscurso, que vai disponibilizar os dizeres que vão determinar o
modo como o sujeito faz a significação em uma dada situação enunciativa. A enunciação proverbial, vista como estereotipada, torna-se
outra no discurso midiático, adquirindo novos sentidos cujos limites
são dados pela situação enunciativa.
Nesta etapa de análise, apresentamos os textos publicitários, em
que podemos verificar que a relação, nesse caso, entre o enunciado
original e o do texto publicitário não é exclusivamente lúdica, pois
permite que este construa sua própria identidade. Um discurso pode
imitar um outro a partir de duas estratégias opostas: captação e subversão (MAINGUENEAU, 2005, p. 173). Nesta, há uma desqualificação
do texto imitado, tendendo à paródia em que a estratégia da captação
difere da subversão, pois captar um texto significa tomar a mesma direção
que ele, apropriar-se de seu valor pragmático. Exemplo de captação é
o texto publicitário retirado da Revista Veja, de 14 de junho de 2006,
mobilizado na Figura 1:
44
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A contrução do discurso publicitário [35-55]
Figura 1 - Pode tirar a coroa. Uma rainha nunca perde a majestade. Bohemia, a primeira e
melhor cerveja do Brasil.
Aqui, o enunciado original (Um rei nunca perde a majestade) sofre
uma mudança de gênero e cabe ao enunciatário a responsabilidade de
reconhecê-lo como sendo um provérbio. O enunciador, ao propor a sua
utilização, conta com a colaboração do leitor no seu reconhecimento
como tal, isso porque ambos fazem parte do conjunto de falantes da
língua à qual o enunciado pertence e, nesse sentido, a memória discursiva
disponibiliza seu reconhecimento, já que “a percepção é sempre
atravessada pelo ‘já ouvido’ e o ‘já-dito’” (PÊCHEUX, 1990).
Enunciador e enunciatário, sujeitos participantes do processo
discursivo, são pensados como “posição” na estrutura de uma formação
social, ou seja, os sujeitos se encontram representados no processo
discursivo. Desse modo, cada um deles atribui um lugar a si e ao outro,
constituindo, nesse sentido, uma imagem que fazem de seu próprio lugar
e do lugar do outro. É no entrecruzamento da memória discursiva com
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55]
os lugares estabelecidos pelos sujeitos, as formações imaginárias, que
se constituem o reconhecimento do provérbio como tal e a produção
do sentido.
O enunciador desse texto propagandístico usou o provérbio
porque é um texto facilmente reconhecido por estar inscrito numa
memória coletiva, social, e isso lhe dá a certeza de que seu enunciatário,
representado, no caso, pelos leitores da revista, irá reconhecê-lo como
tal. Essa certeza está baseada, inconscientemente, nos lugares sociais que
eles, enunciador (publicitário) e enunciatário (leitores de Veja) ocupam.
Seu significado original, literal, indica a permanência de um poder,
independentemente de uma situação adversa.
A sociedade atual é caracterizada pelo exercício político da
democracia, na qual as palavras rei/rainha, coroa e majestade não têm
valor denotativo, mas (res)significam porque constituem um fato social
pertencente a uma memória coletiva referente às relações sociais e
políticas de uma época específica da história nacional. É possível, então,
a partir disso, opor história à memória coletiva, esta como lembrança,
“corrente de pensamento contínua no seio do grupo social” e aquela
como conhecimento descontínuo e exterior ao próprio grupo. As palavras
rei/rainha, coroa e majestade, portanto, significam porque fazem parte
dessa “corrente de pensamento” presente na sociedade já que sua força
histórica – fomos colônia subordinada à monarquia por três séculos – é
constantemente rememorada nos manuais escolares.
Todo funcionamento da linguagem apóia-se na tensão entre os
processos parafrásticos e polissêmicos (ORLANDI, 1999). Aqueles, o
espaço da estabilização, da memória e estes, o espaço do deslocamento,
da ruptura e é no jogo entre o mesmo e o diferente que os sentidos
se movimentam. O sentido e os sujeitos derivam para outros sentidos,
outras posições e essa deriva é o efeito metafórico, é “a palavra que fala
com outras” (p.53).
Sabemos que uma das características dos provérbios é seu efeito
metafórico. Para a AD, a metáfora significa um deslizamento de sentido,
deslizamento este constitutivo da língua. Dessa maneira, as expressões
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A contrução do discurso publicitário [35-55]
linguísticas rainha e perder a majestade adquirem novos significados,
transferem seus sentidos para outros associados a uma situação discursiva
específica, no caso, a propaganda de uma marca de cerveja. Dessa
perspectiva, então, o leitor desliza o sentido original para outro: a cerveja
(rainha) será sempre a preferida entre os consumidores (nunca perder
a majestade). Esse novo significado é ainda corroborado pela sentença
seguinte: Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil.
Na teoria polifônica de Ducrot (1987), o enunciado pode ser
atribuído a um ou a vários sujeitos e, dentre estes, há a necessidade de
distinguir os locutores e os enunciadores. Locutor é a quem se deve a
responsabilidade do enunciado e, necessariamente, não é o mesmo que
o seu produtor, o sujeito falante. Enunciador é o ser responsável pela
enunciação, no sentido de ponto de vista, de posição, sem que lhe sejam
atribuídas palavras precisas. Nesse sentido, o locutor apenas manifesta
o ponto de vista do enunciador. Assim é que podemos compreender o
enunciado Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil. Nesse caso,
as palavras primeira e melhor modalizam-no, marcando uma perspectiva
concessiva do enunciador. Há outras cervejas no Brasil, que podem
ser consideradas boas, mas a Bohemia é a pioneira (desde 1853, data
registrada na fotografia que ilustra a mensagem publicitária) – primeira
- e supera em qualidade todas as outras – melhor.
Da mesma maneira, compreende-se o enunciado Aprecie com
moderação, cujo enunciador representa o consenso geral de uma
sociedade para a qual a bebida alcoólica, ingerida em excesso, causa
prejuízos à saúde do indivíduo, além da possibilidade de provocar
acidentes que tragam danos materiais e físicos a si e a outros.
Há ainda nesse texto uma outra associação metafórica ligada
indiretamente ao provérbio e lingüisticamente marcada pela palavra
coroa. Aqui, o significado literal associa-se à palavra rainha, presente
no provérbio utilizado, mas, novamente pelo deslizamento de sentidos,
podemos associar ao fato de que, apesar de haver outras marcas de
cerveja disponíveis no mercado, a cerveja Bohemia continua sendo a
preferida. Os códigos publicitários funcionam em um duplo registro:
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verbal e visual (ECO, 2003). Aquele, muitas vezes, com o objetivo de
ancorar a mensagem deste, embora essa ancoragem não seja parasitária.
Uma das finalidades de uma investigação retórica da publicidade é saber
como se cruzam esses dois códigos.
A cerveja Bohemia é pioneira no mercado e, apesar do surgimento
de outras marcas, ela continua sendo a preferida dos consumidores. Esse
é o sentido do texto publicitário em questão. Ele (o sentido) só pôde ser
compreendido porque enunciador e enunciatário compartilham de uma
filiação de dizeres, de uma memória que permite que se reconheçam
discursos cristalizados, mesmo que subvertidos em sua forma original,
considerando suas condições de produção. Como se trata de um texto
publicitário, esse sentido, ainda, é corroborado pela imagem associada
metaforicamente à materialidade linguística do enunciado.
O outro exemplo de captação é O Continental planta surpresas para
você colher mais emoções, em comemoração aos 30 anos do Continental
Shopping (Figura 2), publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 19 de
dezembro de 2005.
Figura 3 - O Continental planta surpresas para você colher mais emoções.
Nesse caso, o provérbio que sofreu a transformação é “Quem planta,
colhe”. Embora esse enunciado tenha como característica apresentar
dois verbos que, de acordo com a gramática tradicional, são classificados
com transitivos diretos, pois “exigem uma palavra para completar-lhes o
significado” (CUNHA, 1970, p.65), seus complementos não são linguisticamente marcados e é essa característica que é explorada pelo texto
publicitário analisado.
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A contrução do discurso publicitário [35-55]
Numa perspectiva discursiva, o preenchimento das lacunas do
provérbio original se dá pela relação entre o acontecimento do dizer
e o espaço histórico da constituição desse dizer. O fato de o sujeito
assumir um lugar nesse espaço da história permite a ele estabelecer
recortes de significação nesse preenchimento, pois, para Dias (2002),
a transitividade é um fenômeno que se desenvolve num espaço mais
ampla do que o campo lexical do verbo. Assim, um aspecto importante
a ser considerado é o fato de que isso se configura num recorte de
memória relativo à submissão às dicotomias socialmente marcadas como
ações positivas x ações negativas: Quem planta (intriga/amor), colhe
(desavenças/carinho).
Os discursos são constituídos pelas condições de produção, que
funcionam de acordo com certos fatores, como as relações de sentido:
“um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou
possíveis” (ORLANDI, 1999, p.39). São essas relações que não só nos
permitem associar o texto publicitário ao provérbio “Quem planta, colhe”,
pois esse enunciado pertence a uma memória coletiva, como também, a
partir das dicotomias sociais, preencher suas lacunas linguísticas com as
palavras surpresas e emoções. O aspecto positivo do lugar da constituição
do objeto direto (surpresas / emoções) está intimamente relacionado
com outro fator das condições de produção do discurso, o mecanismo
de antecipação, que regula a argumentação do sujeito de acordo com
o efeito que ele pensa produzir em seu ouvinte, no caso, os leitores do
jornal. Considerando que ao discurso publicitário sobrepõe-se um discurso
figurativo de representação dos sujeitos desejantes (LANDOWSKI, 1992,
p.105), constituindo a identidade de seu público, informando-lhe seu
desejo, o sujeito enunciador, por esse mecanismo, coloca-se no lugar de seu
interlocutor, antecipando o sentido que suas palavras produzem. Surpresas
e emoções, portanto, instituem sentidos previstos pelo enunciador.
Os códigos de uma mensagem publicitária apóiam-se em um
duplo registro: visual e verbal. Este tem a função de ancorar a mensagem
visual, mas não de um modo parasitário, pois dá a direção a ser tomada
pela significação. É na associação desses dois códigos, portanto, que os
sentidos de surpresas e emoções são reafirmados. Temos, na mensagem
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visual, ao centro, a figura de um garoto sorridente portando uma camisa
de listras brancas e vermelhas e, na cabeça, um gorro típico da figura do
Papai Noel. Um arco de ramos de pinheiro emoldura o garoto. As imagens
do gorro e dos ramos de pinheiro constituem códigos iconográficos
porque “escolhem como significantes os significados dos códigos icônicos
para conotarem semas mais complexos e culturalizados” (ECO, 2003,
p.137), originando configurações sintagmáticas reconhecíveis. Essas
figuras constituem, então, ícones clássicos, culturalizados, que remetem
a um significado convencionado, “natal”, que faz parte do léxico dos
sujeitos participantes do processo enunciativo. A agregação dos códigos
verbais e visuais proporciona, portanto, a emergência de sentidos que
provêm de uma memória discursiva, na qual a palavra “natal” remete a
significados positivos (surpresas, emoções) em determinadas condições de
produção de discurso. Assim é que, nesse texto publicitário, o enunciador
prevê o interlocutor como “cúmplice” dos sentidos produzidos.
Essa cumplicidade também está materializada linguisticamente no
enunciado. Retomando o provérbio original, “Quem planta, colhe”,
podemos considerá-lo, do ponto de vista da embreagem enunciativa,
como não embreado, pois é uma generalização que não se ancora
em uma situação enunciativa particular e cujo enunciador é apagado,
“o provérbio não pode se referir a indivíduos ou a eventos únicos”
(MAINGUENEAU, 2005, p.170). Numa perspectiva intradiscursiva, o
lugar de sujeito do verbo plantar é preenchido pelo pronome indefinido
“Quem”, o que reforça a ideia de generalização, de indeterminação
do enunciado. O verbo colher, por sua vez, tem como sujeito a oração
anterior, criando, assim, um sentido circular de generalização. Além disso,
o enunciado apresenta as lacunas nos lugares de objeto direto. Portanto,
o sentido do provérbio é explicitamente indefinido. O enunciador do
texto publicitário, num processo argumentativo, antecipando-se aos
sentidos produzidos por suas palavras e numa busca pela cumplicidade,
aproveita essa indefinição preenchendo os lugares vazios e incertos.
“Quem planta, colhe” torna-se, então, nesse processo, O Continental
planta surpresas para você colher emoções: “[Quem / O Continental]
[planta (surpresas)], [(para você)] [colhe(r) (emoções)]”.
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A contrução do discurso publicitário [35-55]
Esse texto é um exemplo de publicidade institucional, pois “a
valorização de ‘si’ passa pela encenação de determinado tipo de relação
que se procura estabelecer com um público, uma clientela, uma opinião”
(LANDOWSKI, 1992, p.103). O público, nesse caso, está marcado
linguisticamente pela palavra você, que caracteriza a natureza embreante
do enunciado, engajando-o (o público), de forma explícita, na situação de
enunciação. O locutor destaca seu destinatário dentro de um conjunto de
indivíduos, implicando-o na relação instituída na cena enunciativa. Por outro
lado, Brandão (1998, p. 59) ressalta o papel indiferenciado do pronome você
na publicidade. Seu referente pode ser cada um dos possíveis leitores do
discurso publicitário: homens, mulheres ou crianças, que adquirem, apenas
aparentemente, um estatuto de sujeito discriminado entre um conjunto de
indivíduos. Nesse enunciado, a cumplicidade que o enunciador pretende
é geral: você refere-se a uma pessoa, não importa qual.
Concluídas as nossas análises à luz da AD francesa, mobilizaremos
nas Considerações Finais algumas reflexões advindas desse processo
interpretativo, que nunca teve a pretensão de ser exaustivo, conforme
orientação metodológica já exposta, mas que parte da premissa de que,
nas Ciências Humanas, os estudos discursivos abrem um vasto campo
de questões sobre as formas de poder, o estatuto do saber, sempre
privilegiando a situação discursiva (GUERRA, 2006).
Considerações finais
É importante considerar que o centro de interesse de grande parte
das tendências linguísticas, nas últimas décadas, tem sido deslocado da
descrição de aspectos formais da língua como sistema para a descrição
de como os indivíduos/grupos usam essa mesma língua em situações
concretas e variadas de uso. Torna-se importante estudar como a língua
é utilizada pelos membros de uma sociedade e como tal uso permite
analisarmos valores, crenças e ideologias da sociedade que representam.
Desde a última década tem havido uma preocupação acentuada
com relação à linguagem-sociedade e as pesquisas têm enfatizado a
importância de se levarem em consideração as práticas sociais e históricas
e as implicações da análise linguística crítica nas mudanças sociais.
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Nessa direção, chamamos, primeiramente, a atenção para o fato de
que o objetivo deste artigo consistiu em estudar os anúncios publicitários,
atentando para os processos de significação e enunciação aí envolvidos,
ou seja, a construção dos provérbios populares, a partir de um quadro
teórico de perspectiva discursiva. A primeira permitiu-nos a construção
de uma rede de sentidos com base em um processo discursivo altamente
complexo e elaborado. A segunda possibilitou-nos observar como esses
mecanismos linguístico-discursivos são estrategicamente construídos
em função de situações de comunicação específicas, daquelas que se
traduzem pelo anúncio publicitário, com suas respectivas condições de
produção e gestos de interpretação.
Uma questão observada é a “relação de forças”, ou seja, o lugar a
partir do qual fala o sujeito do discurso publicitário e que é constitutivo
do que ele diz. Assim, as condições de produção do discurso implicaram
o que é material, o que é institucional e o mecanismo imaginário.
Esses elementos contribuíram para a constituição das condições em
que o discurso propagandístico se produz e, portanto, para a sua
análise. Pode-se dizer, então, que o sentido não existe em si, mas é
determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo
sócio-histórico em que as palavras são produzidas no bojo dos anúncios
publicitários. Nossas análises evidenciam que os provérbios, subvertidos
ou não em seu sentido original, participam como estratégias discursivas
de convencimento, já que transmitem a autoridade da “voz do povo”,
via mídia impressa.
Consideramos que, embora busque perseguir o máximo de
objetividade possível, o discurso publicitário marca constantemente a
presença humana, a participação, o engajamento. Desde o recorte feito
no universo das palavras do outro até a estrutura verbal selecionada para
relatá-la, passando pela decisão entre empregar ou não a metáfora e
pela escolha do verbo no imperativo, ou do verbo delocutivo no interior
da citação, tudo reflete a presença do locutor falante, que efetua um
aproveitamento diferenciado das alternâncias de vozes no interior do
texto, interferindo, em graus diversificados, nas falas que articula.
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A contrução do discurso publicitário [35-55]
Dentre as funções que pode assumir o emprego do discurso de
outrem destacamos as imagens, embora pareçam apenas complementares,
como dissemos na introdução desta pesquisa, revelam-se fundamentais
para o sentido do texto publicitário. Vale ressaltar que quem estuda
as vozes do discurso publicitário sabe que é um tipo de pesquisa
de grande complexidade, pois exige muito mais do que meramente
identificar “quem fala”. Mapear os enunciadores requer a incorporação
de conceitos fundantes da AD, associados à compreensão do jornalismo
e da publicidade como um modo de conhecimento que resulta das
condições de produção ou existência aqui já citadas.
Nossos dados mostram que as imagens do mundo contemporâneo
estão emolduradas por um sem-número de textos (complementares ou
controversos) construídos numa variedade de códigos e linguagens. Em
consequência disso, a movimentação social tem-se tornado cada dia mais
complexa e complicada, dela emergem situações e posições diferentes
e até antagônicas. É certo que somente a pluralidade de perspectivas
de enunciação pode configurar o discurso publicitário como um campo
plural e representativo da diversidade social. Revelar este funcionamento
discursivo é uma das contribuições que a AD pode oferecer aos estudos
de jornalismo, de propaganda, de comunicação desmitificando a ideia
de que um texto traz somente a perspectiva do autor, naturalmente
transparente e cristalizada.
Verificamos nos textos analisados que, ao se fazer discursividade,
os discursos transversos articulados (da publicidade, do capitalismo, da
mídia, da moda, da saúde, da religião, da mãe e tantos outros advindos de
leituras e de leitores possíveis) são recortados em unidades significantes,
constituindo-se em memória discursiva. Portanto, a memória discursiva
é formada por aqueles sentidos possíveis de se tornarem presentes no
acontecimento da linguagem: um discurso (publicitário) aponta para
outros (populista, moderno, consumista, capitalista etc) que o sustentam,
assim como para dizeres futuros. Não há começo absoluto nem ponto
final para o discurso, ele tem relação com outros dizeres realizados,
imaginados ou possíveis.
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Sabemos que a globalização e o consumismo incentivado também
pela mídia publicitária são, sem dúvida, mecanismos de exclusão social no
nosso país (GUERRA, 2006). Arriscamos dizer que representar a diversidade
brasileira pode não parecer tarefa fácil, uma vez que parece significar
uma divisão igualitária dos espaços físicos e temporais numa mídia que
deve servir a uma sociedade tão plural. Contudo, se os espaços (físicos
e temporais) exaustivamente destinados à cristalização e estereotipia de
alguns segmentos da diversa sociedade brasileira forem utilizados para a
promoção das culturas excluídas, a diversidade racial, geracional, sexual
e regional, do caso brasileiro, poderá tornar-se legítima e valorizada.
Por fim, ousamos afirmar aqui que os discursos divulgados pela
imprensa publicitária, em virtude de seu caráter multiplicador, são cruciais
para a construção da identidade social, à medida que, por um lado,
instauram a possibilidade de novos discursos e, por outro, interferem
na construção de nosso cotidiano e na forma como configuramos as
relações sociais e a memória. Nessa perspectiva, os discursos divulgados
em jornais e revistas, mass media de circulação nacional, estabelecem
novos sentidos e representações, instituindo, assim, as condições para
a formação de novas e multifacetadas identidades.
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DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1°. artes de fazer. 11 ed. Trad. Ephraim
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DIAS, Lizete F. Aspectos de uma gramática explicativa: a ocupação do lugar do objeto
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Revista Veja, edição 1960, n° 23, ano 39, 14 de junho de 2006.
1. Vânia Maria Lescano Guerra é docente do curso
de Letras da UFMS/CCHS
2. Anita Luisa Fregonesi de Moraes é docente do
curso de Letras da UNIESP/ Presidente Prudente
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Vozes desdobradas [57-75]
Vozes desdobradas:
o mesmo e os outros de A la recherche du
temps perdu
Paulo Bungart Neto
Resumo: O artigo discute a polifonia no romance A la recherche du temps
perdu, de Marcel Proust, abordando os diferentes papéis atribuídos ao
autor, ao narrador e ao herói do roman-fleuve, a partir do aporte teórico
da crítica estruturalista francesa do século XX. Demonstra-se também de
que forma o narrador de uma obra memorialística (o “eu que rememora”)
difere daquele que ele relembra (o “eu reinvenado”).
Palavras-chave: Polifonia; Marcel Proust (1871-1922); A la recherche du temps
perdu.
Abstract: This article discusses the polyphony in the novel A la recherche du
temps perdu, by Marcel Proust, approaching the different roles assigned to
the author, the narrator and the hero of the roman-fleuve, from the French
structuralist review theory in the 20th century. We also show in which way
the narrator of a memorial book (the ‘I’ who remembers”) is different from
that one it evokes (the “reinvented ‘I’”).
Keywords: Polyphony; Marcel Proust (187101922); A la recherche du temps
perdu.
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Paulo Bungart Neto [57-75]
Introdução: Desdobramento e polifonia – o autor, o narrador e o
herói proustianos
Abordar-se-á o desdobramento e a polifonia em A la recherche
du temps perdu sob dois aspectos fundamentais - a multiplicidade de
vozes a compor o romance, e a reconstituição da infância (o Mesmo
como o Eu que rememora um outro Eu, este existindo somente à medida que é reinventado) a que procede Marcel Proust ao longo de A
la recherche, semelhante às evocações de Augusto Meyer nas páginas
de Segredos da infância (1949) e de No tempo da flor (1966). A ideia
básica da análise presente nesse artigo reside na observação feita por
Roland Barthes em Ça prend (1979)15, segundo a qual um dos fatores
que contribuíram para a excelência da composição do romance está
em “une certaine manière de dire ‘je’, un mode d’énonciation original que renvoie d’une façon indécidable à l’auteur, au narrateur e au
herós” (1997, p. 46).
Interessa estudar tal “modo de enunciação original” que remete
o leitor a uma inter-relação a operar a partir de uma polifonia - vozes
“desdobradas” e “superpostas” - e da configuração de um Mesmo sui
generis, pois que composto pela sobreposição das vozes do autor (Marcel
Proust), do narrador e do herói (ambos Marcel). Praticamente à mesma
época do texto de Barthes, Pierre Brunel, no verbete ‘Proust” de sua
Histoire de la littérature française (Tome II), também considera que a
originalidade da descoberta proustiana está ligada a esta fusão:
L’instrument de cette découverte est un certain langage. Proust ne devient
un mâitre que quand il passe du roman à la troisième personne (le ‘il’
de Jean Santeuil) au ‘je’ qui, d’emblée, donne le ton de la Recherche:
‘Longtemps, je me suis couché de bonne heure.’ Ce ‘je’ ne représente
ni l’auteur - car le roman n’est pas une autobiographie - ni le héros
proprement dit, mais un personnage intermédiaire, le narrateur, dont les
souvenirs constituent la matière du roman (1977, p. 600).
15
Este ensaio foi consultado na versão publicada no número 350 de Magazine Littéraire, de
janeiro de 1997. O texto original foi publicado em janeiro de 1979 (Magazine Littéraire,
nº 144). As referências bibliográficas a este ensaio seguem a edição de 1997.
58
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Vozes desdobradas [57-75]
Todavia, Roland Barthes já indicara esta manifestação polifônica de
A la recherche du temps perdu em texto de 1967 (“Proust e os nomes”,
1974, p. 55-67), ao perceber a estrutura metalinguística do romance cuja
principal característica é descrever, na verdade, seu próprio processo
de escritura:
Como se sabe, La Recherche du temps perdu é a história de uma escritura.
Talvez não seja inútil relembrar essa história, a fim de melhor apreender o
seu desfecho, já que este desfecho representa aquilo que permite afinal
que o escritor escreva. (...) A gestação de um livro, que não chegaremos a
conhecer mas cuja anunciação constitui o próprio livro de Proust, procede
como um drama entre atos. O primeiro ato anuncia a vontade de escrever
(...) O segundo ato, muito longo pois abrange a parte essencial do Temps
perdu, trata da incapacidade de escrever (Barthes, 1974, p. 55).
Algumas páginas adiante, Barthes aprofunda a diferenciação entre
os dois tipos de discurso presentes na obra, acentuando a diversidade
de intenções que os caracterizam:
Os dois discursos, o do narrador e o de Marcel Proust, são homólogos
mas não análogos. O narrador vai escrever, e este futuro faz com que
ele se mantenha numa ordem da existência e não da palavra; está a
braços com uma psicologia e não com uma técnica. Marcel Proust, pelo
contrário, escreve; luta com as categorias da linguagem, e não com as do
comportamento (1974, p. 58; grifo do autor).
De um lado, planejamento e dúvida quanto à materialização da escritura; de outro, a técnica que lapida a linguagem e a linguagem que expõe
a técnica - discursos díspares mas correspondentes, eis um dos segredos do
bem-sucedido projeto proustiano. Em “Longtemps, je me suis couché de
bonne heure”, conferência apresentada no Collège de France em 1978 e
incluída em Le bruissement de la langue (1984), Roland Barthes, percebendo
a genialidade da descoberta de Proust, esclarece melhor seu público ouvinte
acerca da peculiaridade do Eu que narra A la recherche:
L’oeuvre proustienne met en scène - ou en écriture - un ‘je’ (le Narrateur);
mais ce ‘je’, si l’on peut dire, n’est déjà plus tout à fait un ‘moi’ (sujet et objet
de l’auto-biographie traditionnelle): ‘je’ n’est pas celui qui se souvient, se
confie, se confesse, il est celui qui énonce; celui que ce ‘je’ met en scène est
un ‘moi’ d’écriture, dont les liens avec le ‘moi’ civil sont incertains, déplacés.
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Proust lui-même l’a bien expliqué: la méthode de Sainte-Beuve méconnaît
‘qu’un livre est le produit d’un autre ‘moi’ que celui que nous manifestons
dans nos habitudes, dans la societé, dans nos vices’. Le résultat de cette
dialectique est qu’il est vain de se demander si le Narrateur de la Recherche
est Proust (au sens civil du patronyme): c’est simplement un autre Proust,
souvent inconnu de lui-même (1984, p. 318; grifo do autor).
Tal imbricação ao mesmo tempo tão perfeita e tão misteriosa, capaz
de criar “um outro Proust”, faz com que o narrador obtenha destaque
maior que o do próprio escritor, posto tratar-se do próprio Eu da escritura,
que é o que afinal importa para o crítico francês:
De plus en plus nous nous prenons à aimer non ‘Proust’ (nom civil d’un
auteur fiché dans les Histoires de la literature), mais ‘Marcel’, être singulier,
à la fois enfant et adulte, puer senilis, passionné et sage, proie de manies
excentriques et lieu d’une réflexion souveraine sur le monde, l’amour,
l’art, le temps, la mort (1984, p. 319).
Em outro texto presente em Le bruissement de la langue, o conhecido e paradigmático ensaio La mort de l’auteur, Barthes desmitifica a
crença ingênua de alguns críticos (Sainte-Beuve, por exemplo) em relação
ao poder supostamente ilimitado do autor, ao dizer que
la critique consiste encore, la pluspart du temps, à dire que l’oeuvre de
Baudelaire, c’est l’échec de l’homme Baudelaire, celle de Van Gogh,
c’est sa folie, celle de Tchaikowski, c’est son vice: l’explication de l’oeuvre
est toujours cherchée du côté de celui qui l’a produite, comme si, à
travers l’allégorie plus ou moins transparente de la fiction, c’était toujours
finalement la voix d’une seule et même personne, l’auteur, qui livrait sa
‘confidence’ (1984, p. 62; grifos do autor)16.
16
No mesmo texto, Barthes diferencia o autor da obra do sujeito da escritura, destacando
o momento de enunciação como o aporte essencial da diferenciação: “linguistiquement,
l’auteur n’est jamais rien de plus que celui qui écrit, tout comme je n’est autre que celui
qui dit je: le langage connaît un ‘sujet’, non une ‘personne’, et ce sujet, vide en dehors de
l’énonciation même qui le définit, suffit à faire ‘tenir’ le langage, c’est-à-dire à l’épuiser. (...) le
scripteur moderne naît en même temps que son texte: il n’est d’aucune façon pourvu d’ un
être qui précéderait ou excéderait son écriture, il n’est en rien le sujet dont son livre serait le
prédicat; il n’y a d’autre temps que celui de l’énonciation, et tout texte est écrit ici et maintenant” (1984, p. 63-64; grifos do autor). Sobre a importância da enunciação, ver também o
60
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Vozes desdobradas [57-75]
Parece claro para o estruturalista francês que A la recherche du
temps perdu é composta por uma mescla original de vozes17, sendo um
dos atributos principais de sua modernidade justamente a capacidade
de saber fundir inextricavelmente o escritor e suas personagens, a ponto
de conseguir um feito notável - realizar uma espécie de “epopeia da
escritura moderna”:
Proust lui-même, en dépit du caractère apparemment psychologique de ce
que l’on appelle ses analyses, se donna visiblement pour tâche de brouiller
inexorablement, par une subtilisation extrême, le rapport de l’écrivain et de
ses personnages; en faisant du narrateur non celui qui a vu ou senti, ni même
celui qui écrit, mais celui qui va écrire (le jeune homme du roman - mais, au
fait, quel âge a-t-il et qui est-il? - veut écrire mais il ne le peut, et le roman finit
quand enfin l’écriture devient possible), Proust a donné à l’écriture moderne
son épopée: par un renversement radical, au lieu de mettre sa vie dans son
roman, comme on le dit si souvent, il fit de sa vie même une oeuvre dont son
propre livre fut comme le modèle, en sorte qu’il nous soit bien évident que
ce n’est pas Charlus qui imite Montesquiou, mais que Montesquiou, dans sa
réalité anecdotique, historique, n’est qu’un fragment secondaire, dérivé, de
Charlus (Barthes, 1984, p. 63; grifos do autor).
Roland Barthes não foi o único pensador a identificar a polifonia de A la
recherche du temps perdu. Em Temps et récit (tome II - La configuration dans le
récit de fiction), o filósofo Paul Ricoeur atribui à composição narrativa ímpar da
obra seu status de ficção, que a distingue da memorialística pura por considerar
a presença de dois tipos de eventos descritos, isto é, acontecimentos ligados
à vida do autor Marcel Proust (“eventualmente transpostos” no romance)18,
e aqueles peculiares à vida (fictícia) do herói-narrador Marcel:
comentário de Daniel-Henri Pageaux em “De l’imagerie culturelle à l’imaginaire”: “L’étude
du rapport entre l’Autre et Je se transforme en enquêtes sur la ‘conscience énonciative’ (le
Je qui dit l’Autre), pour reprendre les mots utilisés par Michel Foucault dans son Histoire de
la folie à l’âge classique” (1989, p. 145).
17
Já em 1928, Tristão de Athayde havia escrito: “Em Proust o que encontramos, no centro
de sua criação, não é a dissolução do eu, mas a multiplicação de eus”. (V. Marcel Proust.
In: Proustiana Brasileira, 1950, p. 25; grifos do autor).
18
“(...) toute image procède d’une prise de conscience, si minime soit-elle, d’un Je par
rapport à l’Autre, d’un Ici par rapport à un Ailleurs” (Pageaux, 1989, p. 135).
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Paulo Bungart Neto [57-75]
Est-il légitime de chercher dans A la recherche du temps perdu une fable
sur le temps? On a pu paradoxalement le contester de différentes manières. Je
ne m’attarderai pas sur la confusion, que la critique contemporaine a dissipée,
entre ce qui serait une autobiographie déguisée de Marcel Proust, auteur, et
l’autobiographie fictive du personnage qui dit je. Nous savons maintenant
que, si l’expérience du temps peut être l’enjeu du roman, ce n’est pas en
raison des emprunts que celui-ci fait à l’expérience de son auteur réel, mais
en vertu du pouvoir qu’a la fiction littéraire de créer un héros-narrateur qui
poursuit une certaine quête de lui-même, dont l’enjeu est précisément la
dimension du temps. Reste à déterminer comment. Quoi qu’il en soit de
l’homonymie partielle entre ‘Marcel’, le héros-narrateur de la Recherche,
et Marcel Proust, l’auteur du roman, ce n’est pas aux événements de la vie
de Proust, éventuellement transposés dans le roman, et dont celui-ci garde
la cicatrice, que le récit doit son statut de fiction, mais à la seule composition narrative, qui projette un monde dans lequel le héros narrateur tente
de recouvrer le sens d’une vie antérieure, elle-même entièrement fictive.
Temps perdu et temps retrouvé sont donc à entendre tous deux comme les
caractères d’une expérience fictive déployée à l’intérieur d’un monde fictif
(Ricoeur, 1984, p. 246; grifos do autor).
Apesar da referência ao “herói-narrador” Marcel como o mesmo
“sujeito” da enunciação, Ricoeur não funde suas vozes em uma mesma
e única dicção, comprovando, neste longo e fundamental trecho, o
paralelismo, simétrico mas não idêntico, de seus discursos:
La Recherche laisse entendre au moins deux voix narratives, celle du
héros et celle du narrateur. (...) Le héros raconte ses aventures mondaines,
amoureuses, sensorielles, esthétiques au fur et à mesure qu’elles adviennent;
ici, l’énonciation adopte la forme d’une avancée orientée vers le futur, lors
même que le héros se souvient; d’où la forme du ‘futur dans le passé’ qui
projette la Recherche vers son dénouement; c’est encore le héros qui reçoit la
révélation du sens de sa vie antérieure comme histoire invisible d’une vocation;
à cet égard, il est de la plus grande importance de distinguer la voix du héros
de celle du narrateur, non seulement pour replacer ses réminiscences ellesmêmes dans le courant d’une recherche qui avance, mais pour préserver le
caractère événementiel de la visitation. (...) Mais il faut entendre aussi la voix
du narrateur : celui-ci est en avance sur la progression du héros parce qu’il la
62
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Vozes desdobradas [57-75]
survole; c’est lui qui, plus de cent fois dans l’oeuvre, dit: ‘comme on le verra
plus loin’. Mais, surtout, c’est lui qui dépose sur l’expérience racontée par le
héros la signification: temps retrouvé, temps perdu. En deçà de la révélation
finale, sa voix est si basse qu’elle est à peine discernable de la voix du héros
(ce qui autorise à parler de narrateur-héros). Il n’en est plus de même au
cours et à partir du récit de la grande visitation: la voix du narrateur prend
là tellement le dessus qu’elle finit par couvrir celle du héros; c’est alors que
l’homonymie entre l’auteur et le narrateur joue à plein, au risque de faire du
narrateur le porte-parole de l’auteur, dans sa grande dissertation sur l’art. Mais,
même alors, c’est la reprise par le narrateur des conceptions de l’auteur qui
fait foi pour la lecture. Ses conceptions sont alors incorporées aux pensées du
narrateur. A leur tour, ces pensées du narrateur accompagnent l’expérience
vive du héros qu’elles éclaircissent. Ce faisant, elles participent au caractère
d’événement que revêt, pour le héros, la naissance d’une vocation d’écrivain
(Ricoeur, 1984, p. 252-253; grifos do autor).
Acerca da passagem do temps perdu ao temps retrouvé e de Proust
a Marcel, Aguinaldo José Gonçalves, em “O processo holometabólico de
Marcel Proust”19, sugere a reconfiguração de um novo tempo, integrado e
espacializado, admitidos inclusive o esquecimento e a perda da memória
como fatores indispensáveis à “outra viagem” que se inaugura:
O tempo prossegue inexoravelmente e o único meio de estancá-lo é integrarse a ele, é habitá-lo. Mas habitá-lo implica espacializá-lo, colocando-lhe
rédeas, através de finas agulhas, com linhas tênues: fabricação do tecido,
ou da rede da própria vida. Esse gesto de criar coincide com o gesto
de viver: indissolubilidade apreendida e empreendida no exercício de
profunda identidade do ser que acaba sendo, dialeticamente, de extremo
alheamento. Para a realização de tal movimento, o escritor deve descobrir
‘qu’un livre est le produit d’un autre moi que celui que nous manifestons
dans habitudes, dans la societé, dans nos vices’20. Para que se desse esta
19
Este ensaio foi publicado como prefácio à tradução brasileira de Contra Sainte-Beuve
- Notas sobre crítica e literatura (Proust, 1988, p. 7-24).
20
A citação feita por Aguinaldo Gonçalves pertence a um trecho da crítica de Proust a SainteBeuve no qual o romancista condena a ingenuidade da abordagem biográfica do autor das
Lundis, afirmando que “esse método desprezava aquilo que uma convivência um tanto profunda
com nós mesmos pode ensinar: que um livro é o produto de um outro eu e não daquele que
manifestamos nos costumes, na sociedade, nos vícios. Aquele eu, se desejamos tentar compreendê-lo, está no fundo de nós mesmos, tentando recriá-lo em nós é que podemos atingi-lo.
Nada pode dispensar-nos deste esforço de nosso coração” (Proust, 1988, p. 51-52).
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Paulo Bungart Neto [57-75]
transformação de Proust para Marcel, a extensão temporal de natureza
cronológica passou pela engendragem da máquina do tempo outro, o do
esquecimento. Dentro da perda da memória, deu-se início à emersão do
novo universo e uma outra viagem se inaugurou. Nela o roteiro já não
é mais delimitado, pois isto significaria a submissão à própria dimensão
cronológica da existência (1988, p. 10-11).
Como fecho do raciocínio desenvolvido nesta primeira parte
do artigo, a fim de melhor exemplificar a duplicidade autor-Proust
x herói-narrador-Marcel, evoca-se a magistral contraposição, a que
procede Jorge Luis Borges em página de El Hacedor (“Borges y yo”,
1995, p. 62-63), entre a figura do autor enquanto homem comum
(que se oculta e se apaga ante a imortalidade do outro) e enquanto
criador respeitado e admirado, este sim merecedor da alcunha de
“Borges” e canonizado em listas de professores ou em dicionários
biográficos:
Al outro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por
Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar
el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias
por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un
diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la
tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa
de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo
vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado
afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para
que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica.
Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero
esas páginas no me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es
de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por
lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo
algún instante de mí podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy
cediéndole todo, aunque me consta su perversa costumbre de falsear
y magnificar. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar
en su ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre.
Yo he de quedar en Borges, no en mí (si es que alguien soy), pero
me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en el
laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme
de él y pasé de las mitologías del arrabal a los juegos con el tiempo
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Vozes desdobradas [57-75]
y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que
idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es
del olvido, o del otro. No sé cuál de los dos escribe esta página.21
Outros exemplos de desdobramento: “marcottage des figures” e
“deux identités d’un même corps”
“Le même n’est le même qu’en s’affectant de l’autre”
(Jacques Derrida, La voix et le phénomène, 1967, p. 95. Apud Descombes,
1979, p. 172)
O “modo de enunciação original” referido por Roland Barthes em
Ça prend é, para o crítico, uma das técnicas responsáveis pelo sucesso
de concepção e de composição de A la recherche du temps perdu. Além
da fusão de discursos, examinado na seção anterior, outras três técnicas
são apontadas por Barthes22, sendo que a última diz respeito a mais
um caso de desdobramento, desta vez das personagens e relacionada à
própria estrutura romanesca da obra, da qual
Proust a la révélation dans la Comédie Humaine, et qui est (je cite Proust)
‘l’admirable invention de Balzac d’avoir gardé les mêmes personnages
dans tous ses romans’ : procédé que Sainte-Beuve a condamné, mais
qui, pour Proust, est une idée de génie ; quand on sait l’importance des
retours, coïncidences, renversements, tout au long de la Recherche, et
combien Proust était fier de cette composition par enjambements, qui
fait que tel détail insignifiant, donné au début du roman, se retrouve à la
fin, comme poussé, germé, épanoui, on peut penser que ce que Proust a
découvert, c’est l’efficacité romanesque de ce que l’on pourrait appeler
21
V. tradução e comentário deste texto em MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges por
Borges. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 18-19. Tradução: Ernani Só.
22
A segunda e a terceira técnicas são, respectivamente, a definição dos nomes próprios de
A la recherche (“une ‘vérité’ (poétique) des noms propres finalement retenu”; 1997, p.
46); e uma mudança de proporções (“un changement de proportions; il peut se faire en
effet (chimie mystérieuse) qu’un projet longtemps bloqué devienne possible dès lors qu’on
décide brusquement, et comme par inspiration, d’agrandir sa taille”; 1997, p. 46).
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65
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le ‘marcottage’ des figures : plantée ici, souvent discrètement (disons, au
hasard, par exemple : la dame en rose), une figure se retrouve bien plus
tard, par enjambement au-dessus d’une infinité d’autres relations, fonder
une nouvelle souche (Odette) (Barthes, 1997, p. 46).
Ora, no Larousse - Dictionnaire du français d’aujourd’hui (2000),
encontra-se, à página 809, a seguinte definição do vocábulo marcotte:
“branche qui tient à la plante mère, couchée en terre pour y prendre
racine”, isto é, um ramo preso simultaneamente à planta-mãe e à terra a fim
de crescer, criar raiz e futuramente se emancipar. “Marcottage”, portanto,
refere-se à “ação de alporcar”, e “alporque” ou “mergulhia”, segundo o
Novo dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira, é um “tipo de reprodução vegetal que consiste em enterrar um
ramo de planta, ainda preso a ela, para constituir, depois de enraizado,
novo exemplar, uma vez separado da planta-mãe” (1986, p. 1122).
Aproveitando a imagem retirada do mundo vegetal, Roland Barthes
cria então a metáfora da “reprodução das personagens” (“marcottage
des figures”), técnica segundo a qual um novo ramo / personagem
“plantado” (a dama de rosa em No caminho de Swann, por exemplo,
personagem “nova”), dá novos “frutos” (o ramo, dá origem a uma nova
planta; a personagem, Odette a partir de À sombra das raparigas em flor,
que retorna com força “própria” e funda nova “estirpe”). Tal estrutura
romanesca, aprofundada a partir da sugestão do roman-fleuve de Balzac,
permite-nos identificar mais este caso de desdobramento, desta vez não
das vozes entrelaçadas do autor, do narrador e do herói, mas de um
Mesmo (dama de rosa) que se torna Outro (Odette).
Entretanto, essa técnica segundo a qual a personagem se modifica
ao longo dos sucessivos romances que compõem A la recherche du
temps perdu (sob o ângulo da Alteridade, o Eu que se assume como
Outro), ocorre também em relação às diversas identidades reveladas
aos poucos (revelação na qual a identidade “aparente” é desmascarada
pela “verdadeira”, sobretudo em Sodoma e Gomorra), conforme Roland
Barthes aponta no ensaio “Une idée de recherche”, presente em Le
bruissement de la langue. Vejamos o contraponto entre aparência e
verdade, tendo como exemplo a princesa Sherbatoff:
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Dans le petit train de Balbec, une dame solitaire lit la Revue des deux
mondes ; elle est laide, vulgaire ; le Narrateur la prend pour une tenancière
de maison close ; mais au voyage suivant le petit clan, ayant envahi le
train, apprend au Narrateur que cette dame est la princesse Sherbatoff,
femme de grande naissance, la perle du salon Verdurin. (...) Ce dessin,
qui conjoint dans un même objet deux états absolument antipathiques et
renverse radicalement une apparence en son contraire, est fréquent dans
la Recherche du temps perdu (Barthes, 1984, p. 307).
A “pérola” do salão Verdurin, dama de honra de uma duquesa, é
tida por dona de bordel. Convergem, assim, para a mesma personagem
duas identidades díspares e praticamente excludentes, característica que
representa ainda a busca de Proust pela essência de suas criações:
Voilà donc deux identités d’un même corps : d’un côté la tenancière de
bordel, et de l’autre la princesse Sherbatoff, dame d’honneur de la grande
duchesse Eudoxie. On peut être tenté de voir dans ce dessin le jeu banal de
l’apparence et de la vérité : la princesse russe, fleuron du salon Verdurin,
n’est qu’une femme de la plus basse vulgarité. (...) on reconnaîtrait alors
(ce qui a été fait, ici et là) dans l’oeuvre proustienne un projet aléthique,
une énergie de déchiffrement, une recherche d’essence, dont le premier
travail serait de débarrasser la vérité humaine des apparences contraires
qui lui surimpriment la vanité, la mondanité, le snobisme (1984, p. 308309 ; grifo do autor).
Finalmente, essas “duas identidades em um mesmo corpo” não
aludem apenas aos embates moral e social da dicotomia aparênciaverdade, mas também às preferências sexuais lentamente descobertas
- as identidades feminina e masculina atuando na mesma personagem,
como nos casos do Sr. de Charlus, de Saint-Loup e do Príncipe de
Guermantes, a ponto de Barthes classificar esse procedimento de
“discurso da inversão”:
L’inversion sexuelle est á cet égard exemplaire (mais non forcément
fondatrice), puisqu’elle donne à lire dans un même corps la surimpression
de deux contraires absolus, l’Homme et la Femme (contraires, on le
sait, définis par Proust biologiquement, et non symboliquement : trait
d’époque, sans doute, puisque, pour réhabiliter l’homosexualité, Gide
propose des histoires de pigeons et de chiens) ; la scène du frelon, au cours
de laquelle le Narrateur découvre la Femme sous le baron de Charlus,
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vaut théoriquement pour toute lecture de jeu des contraires ; de là, dans
toute l’oeuvre, l’homosexualité développe ce qu’on pourrait appeler son
énantiologie (ou discours du renversement) ; d’une part, elle donne lieu
dans le monde à mille situations paradoxales, contresens, méprises, surprises,
combles et malices, que la Recherche relève scrupuleusement ; et, d’autre
part, en tant que renversement exemplaire, elle est animée d’un mouvement
irrésistible d’expansion ; par une large courbe qui occupe toute l’oeuvre,
courbe patiente mais infaillible, la population de la Recherche, hétérosexuelle
au départ, se retrouve à la fin en position exactement inverse, c’est-à-dire
homosexuelle (tels Saint-Loup, le prince de Guermantes, etc) : il y a une
pandémie de l’inversion, du renversement (1984, p. 310).
Considerações finais: O Mesmo de hoje e o Outro da infância – Eu
que rememora x Eu reinventado
Esses anos da minha primeira infância não estão mais em mim, são
exteriores, deles nada posso tirar a não ser pelo que contam os outros,
como se dá com as coisas que sucederam antes de nascermos. (Proust,
1953, p. 4; grifo meu)
Assim argumenta o narrador Marcel no início de O caminho
de Guermantes. Ao tentar reconstituir sua infância, o Mesmo recorre
necessariamente à lembrança dos outros na tentativa de recompor o Outro que
ele foi, já que a memória não é capaz de precisar detalhes de fatos ocorridos
em tenra idade23. Dá-se, dessa forma, um fenômeno curioso: inventamos
nosso próprio Eu (vivido, mas não sedimentado), uma vez que dependemos
de outros relatos e, consequentemente, de nossa imaginação para acercarmonos, por pouco que seja, do que fomos há tanto tempo. Em seu primeiro
livro de memórias (Segredos da infância, 1949), Augusto Meyer compõe um
parágrafo cuja ideia básica é muito semelhante à situação descrita por Proust
em O caminho de Guermantes. Alega o memorialista gaúcho que
23
Em A Prisioneira, quinto volume de A la recherche du temps perdu, questiona Marcel:
“Parece que os acontecimentos são mais vastos do que o momento em que ocorrem e
não podem caber neles por inteiro. Certo transbordam para o futuro pela memória que
deles guardamos, mas pedem também um lugar ao tempo que os precede. Pode-se
dizer que não os vemos então como serão, precisamente, mas na lembrança não são
eles também modificados?” (Proust, 1971, p. 343).
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Nada sabemos do começo. O que os outros mais tarde nos contaram,
tentando retraçar aos nossos olhos a imagem da criança que já fomos, não
diz nada às vozes da memória, nem de leve toca nas cordas da revelação.
Os outros só nos falam de outro; não podemos contar com o auxílio de
ninguém para dar os primeiros passos no tempo que passou. É dentro de
nós mesmos que ele dorme, como a verdade no fundo de um poço. Dura,
estranha, absurda, é a imagem que uma fotografia amarelecida recortou
há tantos anos na fluidez do instante, e só vale como documento na
imaginação alheia. Na grande noite do começo, vagamente pressentimos
a escuridão do fim (1949, p. 13; grifo do autor).
Além do relato daqueles que nos conheceram, a imaginação assume
grande importância nesta reconstituição, pois este passado tão longínquo
só existe à medida que o Eu que rememora o reinventa24. Recordações
distantes e imaginação fantasiosa convivem, portanto, sem se excluírem,
e possibilitam ao Mesmo, muitas vezes através da busca estéril do elo
perdido da infância, recriar a imagem do Outro.
A imaginação atua porque o Eu que recorda o passado é diferente
daquele vivido na infância: “(...) meus olhos mudaram mas lá no fundo
o coração é o mesmo”, escreve Augusto Meyer em “Tema da infância”,
crônica publicada no Correio do Povo em 4 de junho de 1930. Se o
olhar do memorialista mudou, amadurecido pelo passar dos anos e pelo
convívio com a literatura, o “coração” (memória “sentimental”) permanece
inalterado, “fonte viva do ser” que se resigna a constatar o contraponto:
Segredos e caminhos da infância... De todo aquele mundo, ficaram
apenas algumas imagens vagas, reproduzidas grosseiramente a poder
de concentração da memória sentimental, mas tão deturpadas pela
24
Ver em O tempo redescoberto: “(...) é tão fácil embelezar-se as narrativas de um
passado do qual já ninguém está a par, como as das viagens por países aonde ninguém
foi” (Proust, 1970, p. 206). Ver também em No tempo da flor: “A imagem pode avivar
num relance de iluminação brusca toda uma constelação de significados metafóricos.
E por isso mesmo, entregue ao sonambulismo da saudade, um pobre insone, estirado
em sua cama, encerrado em seu quarto, voa a uma distância enorme no tempo e no
espaço, viaja ao fundo de si mesmo e à origem das origens... Mais um passo na escuridão
povoada de fantasmagorias, e ele se torna passivo e indefeso aos assaltos do intuitus
mysticus, põe-se a conversar com os abismos” (Meyer, 1966, p. 37-38).
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necessidade discursiva, tão diferentes e quase irreconhecíveis depois de
passarem pelo crivo da análise, que, em vez de aproximar-nos da fonte
viva do ser em sua ingênua frescura, aguçam cada vez mais a consciência
que nos separa daqueles rincões perdidos. (...) A todo momento, quando
nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é preciso voltar de
qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! Diz uma voz interior, voltar
enquanto é tempo à manhã da tua vida... (Meyer, 1949, p. 16-17).
Embora se refiram, objetivamente, à mesma pessoa, há uma
oposição entre o Eu da infância, “em sua ingênua frescura”, e o Eu do
memorialista, atormentado pela “necessidade discursiva” e pelo “crivo
da análise”, a ponto de despertar no escritor o impulso de retornar à
“manhã” de sua vida. As palavras de Augusto Meyer parecem ecoar na
ideia desenvolvida por Samuel Beckett em seu livro sobre Proust, no
qual à página 9 o autor de En attendant Godot escreve:
Não estamos meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros,
não mais o que éramos antes da calamidade de ontem. Calamitoso dia,
mas calamitoso não necessariamente por seu conteúdo. A boa ou má
disposição do objeto não tem nem realidade nem significado. Os prazeres
e pesares imediatos do corpo e da inteligência não são mais que malformações de superfície. Assim como foi, esse dia é assimilado ao único
mundo que tem realidade e significado, o mundo de nossa consciência
latente, cuja cosmografia sofre assim um deslocamento (...) As aspirações
de ontem foram válidas para o ego de ontem, não para o de hoje. Ficamos
desapontados com a nulidade do que nos apraz chamar de realização25.
O deslocamento das lembranças da infância para “nossa consciência
latente” atual, contudo, não nos possibilita um sentimento de realização,
de tarefa cumprida, já que amanhã seremos outros novamente, desta vez
“cansados” por causa de hoje, e assim infinitamente, angustiadamente,
sem que possamos definir e consolidar nosso Eu. No parágrafo de
abertura de “Na Praça da Matriz”, capítulo inaugural do segundo volume
25
Em Roland Barthes por Roland Barthes, o crítico francês pergunta: “Que direito tem
meu presente de falar do meu passado? Meu presente tem algum poder sobre meu
passado? Que ‘graça’ me teria iluminado? Somente a do tempo que passa, ou de uma
boa causa encontrada em meu caminho?” (Barthes, 2003, p. 137).
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das memórias de Augusto Meyer (No tempo da flor, 1966), constatamos
a mesma preocupação com tamanha mudança de nossa personalidade,
a acompanhar as transformações dos lugares onde vivemos:
Vejo a Praça da Matriz, em Porto Alegre, desandar para as feições que ainda
mostrava aos meus olhos de menino e moço. Mas é claro que estas praças
vão mudando, enquanto a gente mudou. Nesse jogo vertiginoso, mudam
as cousas por dentro e por fora, e ao passo que as paisagens lentamente
se desmancham, recompostas noutra forma, também o espectador vai
trocando de alma e de pele, apesar de conservar o mesmo nome, confiado
nas certidões do registro civil. O Eu da gente é um inquilino que se imagina
dono de si mesmo, proprietário do nariz, e dentro dele moram não sei
quantos locatários irresponsáveis, que acabam estragando a casa. De
vez em quando, ao cair do último andar do seu devaneio, o dono de si
mesmo descobre que foi logrado, vagamente se dá conta de um embuste
... ‘Muda, muda, que eu também já mudei’, dizem-lhe as casas, as ruas, as
posturas municipais. E de mudanças vamos vivendo, enquanto não vem
a hora da grande mudança (1966, p. 7).
Tal fracionamento de “eus” não aparece somente na obra
memorialística de Augusto Meyer - também em seus poemas
podemos identificar exemplos de desdobramento da personalidade,
através de metáforas geralmente relacionadas ao reflexo no espelho
(consequentemente, de como o Mesmo vê a si como Outro). Em “Sanga
funda”, por exemplo, ao mirar um remanso de água, o poeta conclui:
“E que estranho era o meu rosto / no momento em que o sol-posto /
punha uns longes na paisagem! (...) / Aprendi a ser bem cedo / segredo
de algum segredo, / imagem, sombra de imagem ...” (1957, p. 14). Ou
ainda no poema de abertura de Giraluz, emblematicamente intitulado
“Espelho”: “Quem é esse que mergulhou no lago liso do espelho / e
me encara de frente à claridade crua? / (...) Dói-me a ironia de pensar
que eu sou tu, fantasma ...” (1957, p. 69). Por fim, do poema em
prosa “O Outro”, publicado originalmente em Literatura e Poesia e
reproduzido, juntamente com os poemas citados acima, em Poesias
(1922-1955), destaca-se a frase que encerra o texto: “Do outro lado,
no lago emoldurado, o mesmo Outro, que era e não era ele mesmo ...”
(1957, p. 204).
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Paulo Bungart Neto [57-75]
A expressão “o mesmo Outro, que era e não era ele mesmo”
é um achado genial, uma vez que reproduz o paradoxo de nossa
relação com um outro Eu que nos habita, seja este reconstituição
do passado ou imagem refletida e duplicada em espelhos, remansos, etc. Como se houvesse uma espécie de dicotomia ou ruptura,
algo como o “eu real” (essência) x “eu virtual” (aparência). A esse
respeito, leiamos o que assevera Aristóteles em “De la mémoire et
de la réminiscence”:
l’animal peint sur un tableau est à la fois un animal et une copie, et, tout
en étant un et le même, il est ces deux choses ; cependant l’existence n’est
pas la même pour les deux, et il est possible de considérer cet animal à la
fois en tant qu’animal et en tant que copie ; de même aussi, il faut supposer
que l’image peinte en nous est quelque chose qui existe par soi et qu’elle
est la représentation d’une autre chose. Par conséquent, en tant qu’on la
considère en elle-même, elle est une représentation ou une image, mais
en tant qu’elle est relative à un autre objet, elle est comme une copie et
un souvenir. (...) Alors l’impression produite par cette contemplation varie :
quand l’âme considère l’objet comme un animal figuré, l’impression existe
en elle comme une pensée seulement ; d’un autre côté, quand elle le
considère comme une copie, c’est un souvenir (1953, p. 56).
O animal pintado é, portanto, animal e cópia (“Mesmo” e “Outro”) a um só tempo - aplicada a hipótese ao caso que se examina, o
memorialista é também, ao mesmo tempo, a consciência que relembra (“Mesmo”) e a consciência que reinventa (“Outro”), abstraídas
as distâncias de tempo e espaço. Tal disposição é referida por Paul
Ricoeur, no terceiro tomo (Le temps raconté) de Temps et récit, nos
seguintes termos:
Renversement dialectique : si le passé ne peut être pensé sous le ‘grand
genre’ du Même, ne le serait-il pas mieux sous celui de l’Autre ? (...) Le
modèle d’autrui est certainement un modèle très fort, dans la mesure où il
ne met pas seulement en jeu l’alterité, mais joint le Même à l ‘Autre. Mais
le paradoxe est qu’en abolissant la différence entre l’autrui d’aujourd’hui
et l’autrui d’autrefois, il oblitère la problématique de la distance temporelle
et élude la difficulté spécifique qui s’attache à la survivance du passé dans
le présent - difficulté qui fait la différence entre connaissance d’autrui et
connaissance du passé (1985, p. 263-266).
72
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Vozes desdobradas [57-75]
De toda essa problemática associada ao papel da memória26, resta,
a fim de, dizendo com Dom Casmurro, “atar as duas pontas da vida”
(Machado de Assis, 1994, v. 1, p. 810), encontrar aquilo que Georges
Gusdorf chama de “verdade de si mesmo”:
La vérité de la mémoire se présente non comme une vérité sur les
événements ou sur les choses, mais comme une vérité de moi-même.
Aussi bien la situation initiale ne pouvait-elle avoir toute sa valeur que
pour moi seul. Elle fut le sens de ma vie en un certain moment. Ce sens
ne peut se réaffirmer que pour moi. La vie de la mémoire ne saurait donc
être dissociée de la vie personelle en sa plus large signification (1951, v.
1, p. 197).
O Eu fracionado, porém, não é necessariamente o Eu da negatividade. A perda do Eu original implica simultaneamente um desdobramento
e um aprofundamento, conduzindo a um auto-conhecimento, que
nada mais é do que a própria base da monumental obra engendrada
por Marcel Proust, conclusão a que chega Augusto Meyer em “Proust,
o zaori”:
A procura do Tempo Perdido é a procura do Eu que se perdeu. O Eu
proustiano se volta pro passado com a intenção de reconquistar ao longo
dos anos vividos a memória integral da personalidade, quer salvar-se no
meio da correnteza construindo na ilha da memória o observatório da
consciência. Mas ao mesmo tempo não quer a salvação por meios ilícitos,
recorrendo ao narcisismo religioso. Exige de si mesmo a imagem mais
sincera e mais crua que for possível reconstruir. Vem daí o seu trabalho
moroso, retardado em meandros, cheio de atalhos que se perdem noutros
atalhos, de becos subentendidos - e a claridade quase desumana que
atravessa a obra toda, esse olhar de zaori enxergando através das paredes
convencionais (Meyer, Correio do Povo, 11.05.1930).
26
Em O tempo redescoberto, volume que encerra A la recherche du temps perdu,
reconhece Marcel Proust: “Então, menos brilhante sem dúvida do que a que me fizera
vislumbrar na obra d’arte o único meio de reaver o Tempo Perdido, nova luz se fez em
mim. E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, a minha vida passada;
que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na dor, e eu
acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe
o destino nem a sobrevivência” (1970, p. 144-145).
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Bungart Neto [57-75]
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Paulo Bungart Neto é docente do curso de Letras
da FACALE/UFGD.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
Água viva como um “livro de artista”
autobiográfico da escritora Clarice Lispector
Marcos Antônio Bessa-Oliveira
Edgar Cézar Nolasco
Resumo: Nosso trabalho propõe tão-somente uma análise cultural biográfica
da obra Água viva, da escritora Clarice Lispector, publicada em 1973.
Considerando que tal obra tenha sido pouco explorada pela crítica até
os dias de hoje, a proposta de análise deste trabalho se baseará na ideia
de que o livro Água viva possa ser lido como uma autoficção da persona
Clarice Lispector. Para tanto, o livro Água viva será lido, antes, como uma
autobiografia da escritora, ou seja, um diário ficcional escrito por ela e sobre
ela mesma. Nosso trabalho parte da ideia de que Água viva é uma ficção
escrita por Clarice Lispector na qual ela ficcionaliza a sua própria história
pessoal, posto que, como dissera Jacques Derrida em entrevista, “cada vez
que deixo partir alguma coisa, vivo a minha morte na escritura”.
Palavras-chave: Clarice Lispector; Água viva; Autoficção
Abstract: Our research aims only a biography cultural analysis of Agua Viva book
of Clarice Lispector which was published in 1973. Considering that the book
had been a little explored by the review until today, the porpose of the analysis
of this research will base on the idea of that the Agua Viva book can be read
as an autoficcion of the person Clarice Lispector. For so, the Agua viva book
will be read, firstly, as an writer autobiography, namely, a ficcional diary which
was written by her and about herself. Our research is the idea that Agua viva
is a ficcion which is written by Clarice Lispector in which se ficcionalize hers
own history, although, Jacques Derrida said in an interview, “erevytime that
I let go something, I live my own death in the escriture”.
Keywords: Clarice Lispector; Água viva; Autoficcion.
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
Notas sobre a crítica biográfico–cultural
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o outro.
Adriana Calcanhoto/ Mário de Sá-Carneiro. O outro. In: Público, 2000, faixa 13.
A epígrafe que encima este trabalho, retirada do CD Público da
cantora Adriana Calcanhoto, foi intencional pelo fato do poema de
Mário de Sá-Carneiro, musicado pela artista, trazer imbricado nele as
dúvidas entre ser um ou ser o outro – eu não sou eu nem sou o outro. A
musicalidade de Adriana Calcanhoto, através da interpretação feita do
poema do escritor português, consegue atingir as mesmas proposições
que são demandadas pelo livro Água viva de Clarice Lispector. Ou seja, a
indefinição – de ser um ou o outro – no poema; e a do livro – ser pintora
ou ser escritora – acaba por corroborar a ideia de ficcionalização que o
autor faz de si mesmo. Por isso, este trabalho se ampara da perspectiva
teórica da crítica-biográfico-cultural para pensar Clarice Lispector como
uma escritora ficcional de sua própria trajetória de vida.
Já que a relação escritural do livro Água viva se dá em torno da
discussão ser uma pintora que quer ser escritora e, que nossa ideia primeira
é pensar o livro como uma autoficção clariciana, queremos poder ler
as imagens que são formuladas pela escritura de Clarice Lispector e as
imagens que formam os seus leitores ao lerem o livro também como um
possível livro de artista da escritora uma vez que o livro de artista também
pode ser entendido como uma autobiografia do artista. Pensamos nessa
possibilidade, do livro Água viva como livro de artista da escritora e o
livro de artista como uma autobiografia do artista, considerando as novas
aberturas teórico-metodológicas que nos são dadas a partir da introdução
de estudos de crítica biográfica cultural no Brasil, que nos permite novas
abordagens de leituras dos diferentes corpus de trabalho.
Eneida Maria de Souza, no livro Crítica cult, traz um ensaio que é
alentador para nossa leitura sobre crítica cultural biográfica. Daí, também,
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
parte nossa relação empírica, a partir do nosso título introdutório, com
o texto da autora de Crítica cult. Naquele texto, Eneida Maria de Souza
disserta de forma esclarecedora sobre as novas proposições de biografias
que são propostas pela crítica biográfica cultural. Permeadas pelas relações
de proximidades dos Estudos Culturais e com a Literatura Comparada
Eneida de Souza consegue formular ali novas visões para a construção de
biografias alentadas pela crítica cultural. O livro Crítica cult, além do ensaio
intitulado “Notas sobre a crítica biográfica” aqui referido, traz ensaios
importantes não só para se trabalhar a vertente de crítica cultural biográfica,
mas também, várias outras leituras críticas de propostas culturalistas. Mas,
como nosso interesse maior aqui é a questão biográfica – crítica cultural
biográfica –, concentramos nossos esforços em desvendar as entrelinhas da
escritura de Água viva guiados pelas “Notas sobre a crítica biográfica”.
A natureza da biografia vem, ao longo dos tempos, sofrendo
alterações na sua forma de escrita. Os formatos tradicionais, ainda
publicados na contemporaneidade, vêm sofrendo rotulações de críticos
filiados às novas vertentes críticas pós-introdução dos Estudos Culturais no
Brasil. Ou seja, biografias que se atêm em documentos comprobatórios
e registros datados “reais” através de fotografias, relatos de viagens,
de experiências etc, para estudiosos-biógrafos de visada culturalista,
deixam de contribuir com leituras mais significativas que poderiam,
aproveitando-se também de metáforas, criar relações de amizades,
reais e imaginadas, viagens que poderiam ter ocorrido, para formularem
leituras mais amplas entorno da vida e obra dos biografados. A questão
não passa pela impossibilidade de que na contemporaneidade não
seja mais possível fazer leituras a partir de levantamentos históricos e
documentais, mas a crítica cultural defende a ideia de que leituras, que
se valem de outros recursos “menos” realistas, podem contribuir para
um enriquecimento da “história” sobre o biografado que se quer contar.
Fragmentos retirados da vida e da obra – do real e do imaginário – podem
contribuir para melhor se relatar a vida do personagem da biografia.
Partindo desse pressuposto de que as biografias podem ficar
cada vez mais ricas se se valerem de recursos, diríamos, metafóricos
na construção de personagens – biografados –, imaginados através de
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
suas prováveis relações de amizades, a crítica cultural adianta que será
possível que tenhamos biografias que podem se tornar mais ricas e, por
conseguinte, menos historicistas. Questões postas à contemporaneidade,
como diversidade cultural, identidade cultural, sujeito contemporâneo,
passaram a ser melhores “explicadas” e narradas nessas prováveis
biografias culturais. Nesse sentido, uma das maiores estudiosas do assunto
no País, Eneida Maria de Souza, esclarece-nos sobre tais possibilidades
da biografia cultural na literatura:
A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação
complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além
de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes
metafóricas entre o fato e a ficção (SOUZA, 2002, p. 111).
A proposta que é defendida pela crítica biográfico-cultural, e
apresentada aqui através da passagem de Eneida Maria de Souza, é a
relação entre fatos reais e ficcionais com o mesmo peso “documental”
na redação de uma biografia em nossos tempos atuais. Partilhando desse
ponto de vista de Souza, ainda podemos afirmar que outros campos
artístico-culturais, e não só o da literatura, vêm se beneficiando de leituras
mais culturalistas através de biografias. Nesse sentido, poderíamos dizer
que os livros de artistas seriam, da perspectiva de biografias culturais,
autobiografias, ou ainda, autoficções, novas formas de artistas se exporem
e exporem os seus trabalhos relacionando o conjunto da vida ao conjunto
de obras. Auxilia-nos pensar nos livros de artistas como obras biográficas
possíveis nessa relação entre vida e obra facilitada pela crítica cultural
considerando que esses livros se tornam lugares de exposição não só
de trabalhos artísticos, mas também, fazem parte deles fragmentos dos
próprios artistas como sujeitos. Sobre isso ajuda-nos saber que
O livro de artista é lugar, suporte de representação, campo primário que aloja
a ideia, o conceito, a representação e não a reprodução da obra original.
Dentro desse paradigma, de o livro de artista falar de si próprio e de o
artista explorar em seus livros certas particularidades do campo da arte, o
livro de arte apropria-se de características inerentes ao livro, como a de
ser um múltiplo e a de ser acessível a um grande público (PANEK, 2005,
p. 267).
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
Dessa probabilidade que nos coloca Bernadette Panek pensar o livro
de artista podemos de fato supor tal suporte artístico na contemporaneidade
como uma provável biografia ou autobiografia do artista que o produz,
considerando que ali o artista não experimenta com a sua criação, ele a
produz exclusivamente para aquele suporte, impregnando-o de emoções,
ações, imagens, restos e fragmentos do próprio artista plástico, sejam
fragmentos da sua vida real ou da sua obra ficcional artística. E se com
as biografias de leituras culturalistas nós passamos a ter vida e obra de
biografados mais completas, mesmo que a partir de construções de metáforas
por seus biógrafos, aproximando a relação não só entre vida e obra do autor
mas também o leitor do seu escritor – valendo-se das novas possibilidades
discursivas da contemporaneidade personalidades políticas, autores, atores
e artistas vêm sendo biografados por críticos biógrafos que trabalham essa
relação entre o real e o ficcional em suas biografias culturais.
O mesmo nós podemos dizer dos livros de artistas que vão desacralizar
a obra de arte bem como o artista na contemporaneidade, “o livro vai
desempenhar o papel de lugar que substitui as paredes da galeria, como
espaço de ‘apresentação pública’ e disseminador de arte para um público
mais abrangente” (PANEK, 2005, p. 257), proporcionando, por conseguinte,
uma relação mais pessoal entre leitor/espectador com o artista e com a obra
de arte deste. O livro de artista acaba por contribuir com a disseminação da
obra e vida de determinado artista plástico, papel desempenhado pelo livro
literário, e que vai criar novas formas de se ler esses personagens artistas.
As contribuições da crítica cultural para as biografias contemporâneas são
as possibilidades que são dadas aos novos críticos biógrafos de não mais
terem que se valer apenas dos fatos documentais entendidos como reais.
Ainda segundo Eneida Maria de Souza:
O fascínio que envolve a invenção de biografias literárias se justifica
pela natureza criativa dos procedimentos analíticos, em especial, a
articulação entre obra e vida, tornando infinito o exercício ficcional do
texto da literatura, graças à abertura de portas que o transcendem. A crítica
biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental
do autor — correspondência, depoimentos, ensaios, crítica — desloca o
lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de
relações culturais (SOUZA, 2002, p. 111.
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A perspectiva que a crítica brasileira coloca as possibilidades da biografia cultural deixa-nos entrever – pela natureza criativa dos procedimentos
analíticos – que é possível estabelecer uma relação de proximidade entre
o biógrafo/leitor e o biografado. Ou seja, a partir das leituras realizadas
pelo biógrafo, que também passa a ser um leitor do autor/biografado,
ele cria para si biografias novas, mesmo que de natureza metafórica, que
possibilitam a ele reescrever de forma mais ampla os fatos da vida do autor
biografado. E se ainda, como garante Eneida de Souza, o biógrafo/leitor
fizer a articulação entre obra e vida, tornando infinito o exercício ficcional
do texto da literatura, pode-se considerar que maiores são as possibilidades
de pontes metafóricas que relacionem vida e obra.
Ainda, na esteira da crítica cultural, se a escolha da crítica biográfica
por outros fragmentos que não só o documental descola o lugar exclusivo
da literatura como corpus de análise, entendemos que estão aí as portas
abertas para pensarmos Água viva também como um livro de artista
de Clarice. Ou seja, tomar as imagens fragmentadas em escrita do
livro para pensá-lo como mais um suporte biográfico na construção da
autoficção da escritora, permite-nos entrever uma artista pintora, mesmo
que amadora, que até hoje não fora, nem de longe, bem observada
por grande parte de sua crítica estudiosa. A metáfora de se pensar o
livro Água viva como um livro de artista reside para nós exatamente na
possibilidade de se fazer uma biografia cultural de Clarice Lispector,
principalmente aquela escritora e pintora que ainda não fora lembrada
nas suas biografias já publicadas.
Partindo então dessa consideração de que o biógrafo é um leitor do
biografado e que ele cria biografias para si desse autor, pensamos que
a biografia cultural abre um leque de infinitas possibilidades de leituras,
sempre pautadas na relação vida x obra, para escrever essa que seria a
biografia enviesada pela crítica biográfico-cultural. E, ainda, se a leitura
do biógrafo/leitor já permite novas biografias, poderíamos dizer que o
autor também pode, via sua vida real e sua vida ficcional – sua literatura
– formular novas biografias de si próprio. Ou seja, entendemos que o
biógrafo, que é um leitor do biografado, com suas leituras acaba por
criar uma persona particularizada sua do autor biografado a partir da
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
reunião dos fragmentos de vida e obra que ele elege para sua biografia.
O mesmo também contribui para pensar que o autor/escritor cria de si
uma persona, biografada por si próprio, a partir de “estilhaços”, reunidos
e identificados voluntária ou involuntariamente, de sua vida real e da
sua obra ficcional/cultural.
Não seria, então, uma autoficção de si própria que a pessoa do
escritor – que também é seu próprio leitor – cria? E não é compreensível
dizer o mesmo para o artista plástico ao criar o seu livro de artista?
Pensamos nessa possibilidade do livro de artista plástico apenas como
forma de situar nossa leitura também no campo das artes plásticas –
considerando que nossa escritora analisada, Clarice Lispector, margeou
também a atividade artística plástica – mesmo que amadoramente.
Podemos dizer que ambos os artistas acabam por se ficcionalizarem –
suas vidas reais – em suas obras artísticas ficcionais/culturais. Tornandose assim, os autores, sejam artistas plásticos ou escritores, biógrafos
autoficcionais de si próprios. Partimos dessa ideia uma vez que, como
observa mais uma vez Panek, “o livro de artista agora é espaço público,
pode ser visitado a qualquer momento. É um objeto que se relaciona
com o observador e não mais objeto de contemplação” (PANEK, 2005,
p. 267) ao se falar de produção em artes plásticas.
Nesse sentido, vale tentarmos compreender o que seja a autoficção.
Na tentativa, partimos e recorremos mais uma vez ao que diz Eneida
Maria de Souza, só que desta vez ao texto “Autoficção de Mário”, do livro
A pedra mágica do discurso. Naquele livro, a autora estuda a vida e obra
do intelectual modernista Mário de Andrade; e o que vai nos interessar
da leitura é a afirmação que faz a intelectual sobre a relação entre vida
e obra na escrita para (re)criar uma auto-imagem, ou outra imagem, do
intelectual estudado, ou ainda, como vão ser criados auto-retratos, pelo
autor ou pelo seu leitor, do personagem estudado:
Associado ainda à técnica do esboço, a criação da auto-imagem promove
maior aproximação entre vida e arte, pela natureza inacabada e precária
de ambas as instâncias simbólicas. Escrita de mão dupla, na qual se cruza
a via da ficção com a da realidade (SOUZA, 1999, p. 195).
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
Preferencialmente, entendemos, que a auto-imagem, a que se refere
Eneida de Souza em sua leitura metafórica, trata-se da imagem que o próprio
Mário cria de si mesmo para os seus amigos/leitores com a colaboração das
imagens que seus leitores/amigos criam dele. Ou seja, a auto-imagem que
se dá ai é uma imagem construída do intelectual: formulada por fragmentos
que ele dispõe ao outro e pelas imagens fragmentadas que todos os seus
amigos e/ou leitores têm dele. Nesse sentido, esclarece-nos as palavras
de Eneida Maria de Souza: “O auto-retrato andradino recebe pinceladas
de seu autor e dos outros que partilham dessa criação, devolvendo-lhe
imagens verossímeis ou deformadas, conforme o traço particular de cada
observador” (SOUZA, 1999, p. 193).
Retomemos aqui propositalmente uma frase da epígrafe do texto de
Mário de Sá-Carneiro, musicado por Adriana Calcanhoto, que encabeça
este texto que diz: Sou qualquer coisa de intermédio, que como já
propomos antes, também vai de encontro ao que afirma Eneida de Souza
ao garantir que as imagens de Mário de Andrade, em sua leitura são
formadas por traços particularizados de cada “observador” do escritor
modernista. Nesse sentido, queremos pensar que também assim os são
as imagens que são formuladas pelo espectador de um livro de artista
que tem, como dissemos antes, maior relação com seu espectador ao
quebrar barreiras que a obra de arte enquanto objeto aurático tem.
O livro de artista ainda permite-nos ser pensado como obra aberta a
diferentes possibilidades de leituras pela sua natureza indefinida entre
categorias de livros, como nos afirma Bernadette Panek no texto “O livro
de artista e o museu:
O livro pode apresentar-se como livro-objeto, como livro de artista ou
livro de artista artesanal; pode fazer parte dos livros de bibliófilo ou
manifestar-se como documento de performances, de trabalhos conceituais
ou experiências de land art; pode assumir a forma de livro ilustrado
por artistas ou de livro-objeto, livro-poema ou poema-livro, e outras
denominações, as quais podem diferir a partir da concepção do referido
objeto. Em realidade, não estão claros os limites entre o que é um livro
de artista e o que não é, pois existem diferenças conceituais de autor para
autor (PANEK, 2006, p. 41).
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
Se as pinceladas do auto-retrato, de acordo com Eneida de Souza,
são conforme o traço particular de cada observador, frase que, aliás, mais
vai nos interessar da passagem que a pouco fizemos referência da crítica
cultural sobre o “auto-retrato” do intelectual, porque corrobora-nos
afirmar que é a partir daí que podemos pensar a autoficção formulada
pelo seu próprio autor e também construída pelo biógrafo estudioso/
leitor, já que essas imagens formuladas, por um ou por outro, não
corresponderiam a nenhuma verdade de fato sobre aquele autor. As
imagens que emanam dessas percepções particularizadas e as que são
emanadas pelo próprio autor não contariam nenhuma verdade que
poderia, ou não, ser parte da vida real encontrada na obra ficcional do
autor. Pensamos isso considerando que “uma única ‘verdade’ possível
reside na ficção que o autor cria de si próprio, acrescentando mais uma
imagem de si ao contexto da recepção de sua obra” (KLINGER, 2007,
p. 52). O autor, nesse sentido, cria imagens particularizadas de si para
os outros e essas imagens, por conseguinte, acabam criando outras para
os seus leitores. Imagens, por sua vez, que nem sempre representam
alguma realidade sobre a vida real do autor.
É valido pensar nessa formulação de imagen(s) também do artista
plástico por ele próprio por entender que se os livros de artistas são um
suporte primário, ali são realizadas obras artísticas finais, não são áreas
de experimentos para o artista eles guardam imagens imprimidas pelo
seu autor que corroboram para reconhecer fragmentos reais da ação do
autor sobre o seu suporte. O artista ao impor-se diretamente no suporte
livro como campo de ação primário estampa ali uma relação muito mais
marcante de fatos reais de sua vida com fatos ficcionais que compõem
sua obra de arte. A autoficção que o artista plástico cria da vida real para
a obra/vida ficcional no livro de artista é mais aberta de interpretações
tanto do leitor/espectador quanto de estudiosos que por ele for falar.
Mesmo que as imagens dali feitas não possam ser comprovadamente
como imagens reais. O livro de artista passa a ocupar lugares inusitados
antes quase nunca ocupados pelas obras de arte mais fechadas. A obra
de arte via livro de artista e, por conseguinte, os artistas saem das galerias,
museus e casa de pessoas mais abastardas para o compactuarem com o
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
cotidiano de qualquer cidadão comum mais apto a contemplar a artes.
O trânsito em espaços mais nômades, menos convencionais para a obra
de arte, caracteriza o livro de artista em
[...] volumes que hoje podemos encontrar nas prateleiras de uma biblioteca
de universidade, ou de uma livraria. Pode-se estar com o livro nas mãos,
um objeto não mais idolatrado. A tiragem é de edição comercial. O livro
de artista não pertence mais às jóias raras de uma biblioteca. Com a
reprodutibilidade, chega a um número significativo, não se releva a aura
da obra única. Ele, diante disso é espaço público e democrático, pode ser
visitado a qualquer momento. Tal obra se relaciona com o leitor, não está
mais como peça de contemplação; o observador passa agora a portador,
tem o objeto artístico em suas mãos (PANEK, 2006, p. 45).
Na esteira de estudiosos da autoficção como Diana Klinger,
compreendemos que as imagens que são formadas a partir dessas
“leituras” da persona ficcional são as que vão, pelo seu grau de
ficcionalidade, propor uma diferença se uma determinada obra ficcional
é ou não é uma autoficção. Ou seja, na autoficção, as imagens extraídas
da ficção do autor e formuladas pelo leitor, dependendo do seu grau
de verossimilhança, é que vão distinguir uma autobiografia de uma
autoficção, por exemplo. Nesse sentido, numa autoficção podemos
deduzir que o autor consegue formular imagens que são menos
passíveis de serem verossimilhantes de si para o seu leitor. Nesse caso,
o leitor, mesmo que “teoricamente”, fica impossibilitado de relacionar
diretamente a imagem ficcional do escritor/autor com as imagens reais
que se tem dessa mesma persona. Daí até concordarmos que “[...]
a autoficção mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim
suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua
verossimilhança” (KLINGER, 2007, p. 46).
Tal afirmativa de Daina Klinger nos faz compreender que se o
espectador/leitor consegue relacionar as imagens que são descritas pela
palavra no livro literário ou aquelas impressas por imagens, claramente
irreconhecíveis, no livro de artista, esse autor consegui produzir uma
autoficção própria. Essas imagens independem da confirmação, por parte
do espectador/leitor, de serem verdades absolutas desses autores. Mas
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
o que dizer da produção artística que produz imagens que também são
claramente irreconhecíveis por grande parte dos espectadores/leitores
mas que determinado público reconhecem ali os seus autores? Talvez
nasça daí um novo tipo de “documento” biográfico sobre esse autor
que do nosso ponto de vista, essa é uma questão que vale ser pensada
por nós em outro trabalho sobre crítica biográfica. Ou seja, que tipo de
biografia estaríamos falando neste tipo de trabalho artístico?
As produções artísticas, e aqui partilhando-nos das ideias de Klinger, de
“[...] categoria de autoficção implica[m] não necessariamente uma corrosão
da verossimilhança interna do romance, e sim um questionamento das
noções de verdade e de sujeito” (KLINGER, 2007, p. 47). Com base nessa
afirmação, podemos dizer que as imagens e a persona que são formuladas
pela ficção são tão reais quanto irreais ao mesmo tempo. A abertura que
é proporcionada pela ficção de questionar “verdades” e “sujeitos” como
prováveis realidades, corrobora a ideia de autoficção implícita na ficção do
escritor. Como também nos possibilita o questionamento de verdades e
sujeitos que o livro de artista traz impresso em suas páginas. Ou seja, que
verdade pode ser extraída das páginas daquele livro de artista: as obras são
reais ou são cópias depois que o livro é impresso em grande escala? e de
que sujeito artístico estamos falando quando temos uma produtor artístico
difundindo sua produção em larga escala? aquele que visa alcançar a um
público maior ou aquele que visa atingir um mercado consumidor maior?
Mercado e consumo. São questões que sempre estiveram e sempre vão estar,
do nosso ponto de vista, diretamente ligadas às produções artísticas.
Considerando o que se disse até aqui sobre a autoficção, e
considerando, sobretudo, que a crítica de cunho biográfico cultural ainda
não se deteve de forma satisfatória na leitura do livro Água viva (1973)
como uma autoficção da escritora, entendemos ser possível desenvolver
tal leitura agora, principalmente quando os Estudos Culturais garantemnos a pessoa nessa relação intervalar entre vida e produção cultural.
Propomo-nos, enfim, ler metaforicamente a vida da escritora Clarice
Lispector na obra, e vice-versa, além de defendermos a ideia de que
o livro possa ser lido como um diário ficcional que a escritora faz de si
mesma, ainda que traída por essa atmosfera envolta ao “bio”.
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A (auto/bio) ficção/grafia de Clarice Lispector
O monstro sagrado morreu. Em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe.
Clarice Lispector. Água viva, 1998, p. 78.
“Não quero ser autobiográfica. Quero ser “bio””, afirma Clarice
Lispector em Água viva. Querer ser bio é mais do que desejar, é viver
a morte também. Talvez seja pensando nesse livro que termina de
forma meio desolada — como que querendo mostrar que, por mais
que a escrita continue, possa continuar (“o que te escrevo continua e
estou enfeitiçada”) para além do sujeito que a pratica, uma vez que
não partilha da estética do perdão (“Olha para mim e me ama. Não: tu
olhas para ti e te amas. É o que está certo.”), por tudo isso, misturado e
em conjunto — que a amiga Olga Borelli tenha considerado-o como o
“prenúncio do fim” ou “a ante-sala da desagregação absoluta”. Borelli
talvez já reconhecera em Água viva, em suas palavras e frases anotadas,
fragmentos da vida de Clarice Lispector que, não por acaso, ainda não
tivera coragem de publicá-lo; talvez também por reconhecer nele uma
autobiografia, realizada de forma inconsciente:
Água viva, apesar de dar a impressão de ser um texto corrido, feito num jorro
só, foi, no entanto, de penosa elaboração. Ela passou três anos anotando
palavras e frases, sem conseguir estruturá-lo. Quando ficou pronto, sentiu-se
sem coragem de publicá-lo (BORELLI, 1981, p. 87-88).
Perguntada sobre essa sua ficção, Clarice certa feita respondeu: “O
que é este livro? Não sei, não.. Não sei... E mesmo o que lhes poderia
dizer, não valeria nada. Nunca releio meus livros depois de publicados...
eles não me interessam mais” (apud GOTLIB, 1995, p. 413). Sabiamente
a escritora parece procurar falar o mínimo possível sobre o livro, uma
vez que falar dele próprio equivale-se a falar de si. Como se vê, é na
denegação que Clarice fala de si.
Se, para Lucia Helena, Água viva “[...] é um tipo de texto que não
comporta mais as designações convencionais [...]” (HELENA, 1997, p.
84), então podemos dizer, mesmo que metaforicamente, que se trata
agora de uma conversa cara a cara entre criador e criatura, um com
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
o outro, que “[...] gradativamente eu e tu vão-se aproximando, numa
inter-relação [...]” (HELENA, 1997, p. 82). Uma relação interior onde
se busca entender a si próprio, assim como aquelas conversas em que
a gente sozinha diante de um espelho, tem consigo mesmo, buscando
explicação para coisas inexplicáveis para o inominável. Eu sou o meu
reflexo?, resta-nos a pergunta.
“A relação entre o eu e o tu, em Água viva, é de extrema complexidade
e problematiza esta distância entre sujeito e objeto” (HELENA, 1997, p.
83): porque o objeto reflexo só existe diante da coisa refletida, um, reflexo
e refletido, não existe sem o outro, o primeiro não toca no outro. É uma
relação que só se concretiza se a coisa refletida se posta diante do objeto
reflexo e, “[...] o eu deseja seduzir o tu pela palavra lançada como isca
[...]” (HELENA, 1997, p. 83). A imagem que se reflete daí – desse contato
entre autora e leitor – refletidas um para o outro proporciona reflexos/
leituras que se misturam entre a imagem real e a ficcional do autor.
Talvez quem melhor entendera a proposta estética da escritora
naquele momento da publicação do livro, e que sua produção depois só
viria a confirmar, tenha sido o amigo e filósofo José Américo Pessanha,
que recebera os datiloscritos do ainda chamado Objeto gritante. Em
carta à amiga de 5 de março de 1972, Pessanha diz e sugere questões
das quais nos deteremos em algumas: 1- “tentei situar o livro: anotações?
pensamentos? trechos autobiográficos? uma espécie de diário (retrato
de uma escritora em seu cotidiano)? No final achei que é tudo isso ao
mesmo tempo” (apud GOTLIB, 1995, p. 404). Continua: 2- “De início,
supus que o livro se situasse numa espécie de linha como A paixão
segundo G.H.. Depois achei que não: estava mais perto de (fundo de
gaveta), de A legião estrangeira” (apud GOTLIB, 1995, p. 404). Apesar de
demonstrar muito cuidado crítico em seu julgamento, dizendo à amiga
por carta que o livrinho escapava a qualquer gênero já visto em toda
a literatura brasileira (“gênero não me pega mais”, afirma Clarice em
Água viva), Pessanha faz as referidas afirmações que, do mesmo modo,
vemos também em algumas das críticas sobre a obra, isto é, de que o
livro trata-se de um diário, “ainda que não exatamente nos moldes de
um diário íntimo”.
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“Água viva é uma continuação e um recomeço: continuação da
experiência de esvaziamento [...] — esvaziamento do sujeito narrador,
que se desagrega, e da narrativa, que conta a errância desse mesmo
sujeito [...]” (NUNES, 1995, p. 156), um esvaziamento que faz Clarice
para si mesma diante do seu reflexo no espelho e para seu leitor diante
de seu livro. Narrando com “[...] palavras feitas apenas de instantes-já
[...]” (LISPECTOR, 1998, p. 11), no instante em que se coloca diante de
sua própria imagem, de seu reflexo, passagens e errâncias de sua própria
vida. Ao narrar, a escritora narra-se a si própria, deixa-se contar sobre si
ao outro, involuntariamente.
“Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais
por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os
trabalhos [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 11). É na intenção de se desligar de
sua imagem de grande escritora já aclamada e adorada, quando escreve
Água viva, que Clarice se debate consigo própria, de alguma forma contra
imagem de grande literata que a incomodava profundamente: que por
conseguinte, são imagens que se embaralham a uma vida real de persona
que afirma que “[...] Sempre fui uma amadora, amadora compulsiva, é
verdade, mas amadora. E tenho receio de uma profissionalização [...]”
(LISPECTOR, 1984, p. 47), dissera ela certa vez.
Na esteira de Maurice Blanchot, “se o diário aponta para uma
sedução um pouco voyeur” (BLANCHOT, 1984), logo ler os escritos de
outro incita o leitor a desvendar a intimidade de um eu. Em Água viva,
que o tomamos como diário ficcional da escritora, esse pensamento não
se aplica. E se o diário é mesmo uma armadilha, como quer Blanchot,
ele não se dá no livro como o acesso ao segredo de um eu, como
registro de uma biografia, mas como o momento da aparição de um
sujeito que é feito/eleito de linguagem, ou talvez, ainda mais longe, “da
própria linguagem como sujeito” (ANDRADE, 2007, p. 65). “Não mais
diário de alguém, mas diário de algo: diário da vida escrita”. Ao que nós
faríamos uma pergunta simples mas provocativa: uma outra escritora
escreveria Água viva, que não fosse a escritora Clarice Lispector? Pensando
na pergunta, voltamos ao texto de Andrade, ainda onde se lê: “A vida
para essa autora parece fazer-se em texto, de modo que a vida(bio) é a
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
invenção, ficção, criação literária, registro(grafia)” (ANDRADE, 2007, p.
65). Aqui, quando Andrade afirma que a vida parece fazer-se texto, está
para nós todo o distanciamento e a aproximação entre a escrita de Água
viva X Diário, vida X ficção, que faz toda a diferença. Ou seja, é o livro
Água Viva detentor de uma escritura que pode ser lida como um ensaio
sobre a vida e sobre a morte, mas no sentido de sobrevida derridaiano.
Depois voltaremos a esta questão, para chegar à escrita arquivística da
escritora. Antes, porém, queremos pensar um pouco o livro Água viva
como uma autoficção, já que o título do trabalho de Andrade sugere
tratar-se do assunto: da escrita de si à escrita fora de si: uma leitura de
Objeto gritante e Água viva, de Clarice Lispector.27
Água viva, “[...] texto fronteiriço inclassificável, que está no limite
entre literatura e experiência vivida [...]” (NUNES, 1995, p. 157). Nele,
Clarice conta uma experiência narrada de forma improvisada como
em uma conversa que acontece entre um eu e um tu, diante de um
espelho; por isso, “[...] ao escrever não posso fabricar como na pintura,
quando fabrico artesanalmente uma cor [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 12).
As aproximações a que se propõe a escritora na obra resultam, a nosso
ver, de experiências do cotidiano, de experiências de vida e de morte. É
nesse sentido que entendemos que o livro propõe uma estética da vida
que suplementa a estética canônica da ficção. A fusão entre realidade
e ficção é uma das características mais marcantes de Água viva, a ponto
de Clarice Lispector se inscrever dentro do livro-vida:
Se é que ainda é desejável pensar em termos de “verdade”, o que parece
altamente duvidoso, em todo caso em relação à autoficção este conceito
não coincide com a verdade autobiográfica, nem portanto com a verdade
como alguma coisa verificável. Uma única “verdade” possível reside na
ficção que o autor cria de si próprio, acrescentando mais uma imagem de
si ao contexto da recepção de sua obra (KLINGER, 2007, p. 52).
27
C. f. ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Da escrita de si à escrita fora de si: uma
leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. Tese de Doutorado defendida
no Programa de Pós-Graduação – Estudos Literários – Universidade Federal de Minas
Gerais. 2007.
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
Tendo por base o que postula Diana Irene Klinger, podemos inferir
algumas proposições sobre o processo de escrita/inscrição que Clarice
faz em Água viva: a primeira é que a escritora não procura escrever na
obra sua biografia de escritora ou persona intelectual, o que não nos
permite classificar o livro como uma autobiografia. Podemos dizer que
se, por um lado, os termos autoficção e autobiografia se aproximam pelo
“auto” do sujeito, por outro lado afastam-se pelo “bio”, pela forma como
esse “bio” se inscreve nas produções, diferenciando-as umas das outras.
Nessa direção, vejamos o que diz Eneida Maria de Souza:
Esta personagem, construída tanto pelo escritor quanto pelos leitores,
desempenha vários papéis de acordo com as imagens, as poses e as
representações coletivas que cada época propõe aos seus intérpretes da
literatura. Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede
imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade:
ou o do ausente ou do morto, pois também a morte cultiva seus teatros,
como palhaço e o dandy (SOUZA, 2002, p. 116).
Portanto, podemos insistir que Água viva não se trata de uma
autobiografia de Clarice Lispector, já que não se corresponde a nenhuma
“verdade” absoluta sobre a autora, ainda que essa, busca pela verdade,
não seja o interesse das biografias de visadas culturalistas.
Já a segunda proposição que nos permitem as anteriores passagens
de Klinger e de Eneida de Souza para pensarmos Água viva como uma
autoficção e não como uma autobiografia, dá-se pelo fato de Clarice se
ficcionalizar em sua própria produção. Fato este, aliás, não só observado
em Água viva mas também em quase toda a sua produção literária
dos anos anteriores e posteriores à publicação do livro. Em A hora da
estrela (1977), por exemplo, vários estudiosos já observaram “tratar-se”
a novela da própria retirante Clarice Lispector enquanto Macabéa. A
ficcionalização em Água viva margeia entre a água cristalina e reflexiva
de um rio e as margens de um espelho recortado: “[...] [que mesmo que]
tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim
como água se derrama [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 71). Afirmamos então
que Água viva é a água da vida de Clarice ficcionalizada, para o leitor,
que se derrama diante desse espelho e que se esvai, morrendo a cada
92
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
instante ao buscar o instante-já das coisas. Porque “[...] o ser voltado a
água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua
substância desmorona constantemente [...]” (BACHELARD, 1997, p. 7),
e Clarice morre a cada instante em que tenta assumir-se e entender-se
no monólogo com a sua vida em Água viva.
“E se eu digo “eu” é porque não ouso dizer “tu” ou “nós” ou “uma
pessoa” [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 12), o objeto reflexo, a coisa, o
refletido e o leitor, o ser que agora se pôs a escutar a coisa, agora se
confunde na narrativa de Água viva: um se faz no/dentro do outro. A
partir das imagens que um formula/emana do outro. Narrativa que se
constitui em fragmentos soltos e esparsos de uma conversa da coisa e
do objeto e que o leitor pode ou não entrar sorrateiro pela porta da
frente ou dos fundos e fazer parte de “[...] um texto que revela o lugar
de onde o sujeito-Clarice fala [...]” (JORGE, 1997, p. 97). As imagens
formalizadas a partir de Água viva, pelo leitor e pela escritora, ocupam
um lugar intervalar entre o real e a ficção “[...] passando a exercitá-la[s]
no seio do mais banal cotidiano, cuja realidade harmoniosa defende e
protege o sujeito de se deparar com o real [...]” (JORGE, 1997, p. 99)
tornando o que pode ser real ficcional e vice-versa.
Uma escrita autoficcional é sempre uma escrita de si, que nunca deixa
de ser já uma escrita do outro, mas que, talvez por isso mesmo, faz retornar
sempre aquele sujeito em si, mesmo que de per si. Ou seja, uma escrita de si
aponta para o sujeito de dentro e de fora da escrita, não privilegiando, nunca,
só o de dentro ou só o de fora. Pensando nisso, é como se disséssemos que a
Clarice da escrita do datiloscrito Objeto gritante, que, para Andrade, é uma
escrita de si (posto que autobiográfica pessoal íntima), suplementa a Clarice
da escrita de Água viva (e vice-versa), que, para Andrade, é uma escrita fora
de si (exterior, impessoal , ex-tima28). Aqui talvez seja bom voltarmos de novo
a algumas passagens da carta de Pessanha.
28
C.f. ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Da escrita de si à escrita fora de si: uma
leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. Tese de Doutorado defendida
no Programa de Pós-Graduação – Estudos Literários – Universidade Federal de Minas
Gerais. 2007.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
Em sua carta-conselho à amiga, o filósofo diz:
Tive a impressão de que você quis escrever espontaneamente, ludicamente,
a-literariamente. Verdade? Parece que, depois de recusar os artifícios e as
artimanhas da razão [...], você parece querer rejeitar os artifícios da arte.
E despojar-se, ser você-mesma, menos indisfarçada aos próprios olhos e
aos olhos do leitor (apud GOTLIB, 1995, p. 405).
E conclui aconselhando que a autora dê um subtítulo à obra para
que o leitor possa identificá-la “como não-ficção, como apontamentos,
como um certo tipo de diário, enfim como você considere melhor
qualificá-la sem traí-la em excesso”(apud GOTLIB, 1995, p. 405). Ou
seja, se Clarice não trai a obra, trai a si mesma, posto que é sabido que
depois da carta, principalmente, procura retirar tudo ou quase tudo que
parecia ser de mais pessoal em Objeto gritante.
Como se vê, há aí uma fusão entre sujeitos de si e de fora de si que
se somam, se suplementam, dificultando qualquer visada racionalista.
Como se não bastasse, parece-nos que Clarice foi deliberadamente traída
pela escrita de Água viva, uma vez que grandes pistas de sua mentora
ficaram esquecidas meio a despropósito dentro da escritura. Talvez
também como forma de esconder o que o amigo Pessanha vira demais
nos datiloscritos, principalmente quando falava de “a-literariamente”,
a escritora tenha escrito após o título a palavra “ficção”. Nessa ficção,
temos Clarice Lispector contando-nos uma outra noção de “verdade” de
si. Cabe-nos, então, uma pergunta: o que é ficção e o que não é ficção
em Água viva? O que é da ordem do diário e o que não é? Não sabemos
ao certo, e tal questão nodal passa despercebida no livro. Mas uma coisa
podemos suspeitar: talvez começasse exatamente ali o não interesse
da escritora pelo divisor do que é e do que não é mais literatura. Daí
podermos pensar que Água viva possa ser lido como um resumo de tudo o
que a escritora dissera até então e um rascunho, no bom sentido, de tudo
o que viria a dizer naquela última década de vida. “Assim, a autoficção
adquire outra dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando
que o sujeito da escrita não é um “ser” pleno, senão quando fora dele,
na “vida mesma” (KLINGER, 2007, p. 55).
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
Voltamos pela última vez à carta de Pessanha:
“Tento me explicar melhor: você se transcendia e se “resolvia”” em termos
de criação literária; agora a “literatura” desce a você e fica (ou aparece)
como que imanente ao seu cotidiano; você é seu próprio tema — como
num divã de psicanalista, em que se fala, fala, sem texto previamente
ensaiado. Esse encontro de você-Clarice com você-escritora certamente
resulta de um processo pessoal que a levou até aí. Pergunto [...]: e então,
o que virá depois? (apud GOTLIB, 1995, p. 406).
Com base no que diz Pessanha, podemos postular que Água
viva seja exatamente o lugar onde a Clarice fora de si funda-se com a
Clarice dentro de si, o que só sinaliza que a escritura Água viva/Água
vida é o lugar para onde também convergia todo o projeto intelectual
da escritora até então. Num texto a-literário, um misto de diário e antidiário, ficção e verdade, convulsão linguajeira e derradeiro silêncio, a
escritora ensaia um discurso sem texto e sem forma, mas possivelmente
dentro de uma lógica que justificaria sua fala monocórdica, repetitiva
e monótona, cheia de falhas e de faltas, cortes abruptos e fragmentos
justapostos aleatoriamente, como forma de tentar driblar o outro (o
leitor) da herança/errância de um sujeito e de um lugar derradeiro do
qual a escritora e intelectual Clarice Lispector poderia ainda falar ao
outro, mesmo que em silêncio de morte. Clarice Lispector tornar-se
seu próprio tema em Água viva explica-nos, em parte, a compreensão
dos textos ditos autoficcionais (como o diário) na medida em que, do
ponto de vista do outro (do leitor, do crítico etc), Água viva pode ser
um diário, uma biografia; enquanto que do ponto de vista do sujeito
mesmo, aqui no caso a escritora, o discurso de Água viva é uma forma
nova de biografia.
“Ver-se a si mesmo é extraordinário. [...] arrepio-me diante de mim
[...]” (LISPECTOR, 1998, p. 71), é um arrepio de quem quer se entregar
e entender-se em todas as instâncias, é uma busca de explicação para
o que não se explica, e um ser “[...] entre a necessidade de dizer e a
experiência de ser, no curso de improvisações [...]” (NUNES, 1995, p.
157), um ser-se que não se pode ser com mais ninguém, um ser-se que
só se é diante de si mesmo em que não tenha mais ninguém que queira
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
que você seja algo, é um ser-se que só se é sozinho, um sozinho que
só se faz diante de seu reflexo próprio no espelho, onde se diz e se faz
tudo sendo você mesmo no âmago do seu ser. Se a imagem do livro de
artista foi pensada em outros pontos deste nosso trabalho como uma
possível autoficção de si, aqui essa imagem se presentifica de forma mais
material possível na escrita. A autoficção imagética que retrata o livro de
artista e o reflexo da própria persona no espelho podem ser pensados
como uma matéria ficcional ou real do artistas só.
Em Água viva, Clarice é-se, ela se deixa viver, escrever e pintar por
improvisações, em notas soltas e esparsas constrói todo o seu universo
em/de Água viva, sendo ela própria, “[...] é com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o
mais escuro uivo humano [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 9), ela consegue
ser ela mesma. E é diante desse espelho de águas vivas e espelhos de
“[...] sucessão de escuridões [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 72) que Clarice
consegue dar o seu grito de liberdade e vida porque “[...] só uma pessoa
muito delicada pode entrar no quarto onde há um espelho vazio, e com
tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca [...]”
(LISPECTOR, 1998, p. 72). Marca esta que ela já carregava de grande
escritora que era. “Quero me reinaugurar. E para isso tenho que abdicar
de toda a minha obra e começar humildemente, sem endeusamento,
de um começo em que não haja resquícios de qualquer hábito [...]”
(LISPECTOR, 1978, p. 69), hábitos como os da escrita, hábitos de fazer
uma literatura melhor que a outra, uma literatura posterior que venda
e agrade mais que a anterior.
O que sabemos é que Água viva encena o sentido mesmo da vida da
escritora no momento em que se constrói sua escrita fluida e móvel, escorregadia e flutuante. Ou seja, o sujeito da escrita cria uma ficção de si mesmo.
Aqui o que Michel Foucault fala ajuda-nos a compreender a questão:
O papel da escrita é constituir, contudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’.
E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas
sim [...] como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras,
delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa
vista ou ouvida em forças e em sangue (FOUCAULT, 1992, p. 143).
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
O livro Água viva, por seu próprio processo de construção/organização, é uma metáfora perfeita do que a própria Clarice denomina
de “Fundo de gaveta”, lugar onde se guarda o que presta e o que não
presta, como ficção e não ficção, restos, coisas insignificantes e desprezíveis, rascunhos, comentários de um projeto literário ambicioso, mas
que deixou pouquíssimos rastros, manuscritos. Questão, aliás, que nos
faz voltar a uma passagem de Olga Borelli, já citada neste trabalho, em
que a amiga da autora afirma que “durante três anos” a escritora juntou
palavras e frases, sem conseguir estruturá-lo como um romance linear.
Como dissemos no início, o livro Água viva é um ensaio sobre a
vida e sobre a morte. Numa entrevista concedida pouco antes de morrer,
Derrida deixa claro que todos os conceitos que o ajudaram a trabalhar
durante toda a vida, sobretudo o de rastro e o de espectral, estavam
ligados a ‘sobreviver’ como dimensão estrutural, já que “a sobrevida
não deriva nem de viver nem de morrer” (apud MARGENS/ MÁRGENES,
2004, p. 13). E conclui, digamos, de forma clariciana:
[...] no momento em que deixo (publicar) ‘meu’ livro (ninguém me obriga),
torno-me, aparecendo-desaparecendo, como o espectro ineducável que
jamais terá aprendido a viver. (..). Deixo um pedaço de papel, parto, morro:
impossível sair dessa estrutura, ela é a forma constante de minha vida.
Cada vez que deixo partir alguma coisa, vivo a minha morte na escritura
(apud MARGENS/ MÁRGENES, 2004, p. 15).
Dizemos de forma a la Clarice porque toda sua obra pode ser lida
como uma escritura sobre/vida enquanto sobre(a)vida: Água viva lida
como sobrevida(autoficção) não é simplesmente o que resta , é a vida
mais intensa possível. “Nunca”, continua Derrida,
me sinto tão obcecado pela necessidade de morrer do que nos momentos
de felicidade e gozo. Gozar e chorar a morte que espreita, para mim, é a
mesma coisa. Quando recordo a minha vida, tendo a pensar que tive essa
chance de amar até os momentos infelizes de minha vida, e de abençoálos (apud MARGENS/ MÁRGENES, 2004, p. 17).
Afinal não é a toa que, para Clarice Lispector, “escrever é também
abençoar uma vida que não foi abençoada” (LISPECTOR, 1984, p. 191),
pelo menos é assim que entendemos a perda e a recordação amorosa
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
que se narra em Água viva. “Escrever é um dos modos de fracassar”,
vaticinou certa vez a escritora. Talvez seja por ter tal consciência, que ela
tenha feito de sua busca pela linguagem sua travessia única, realizandose, assim, exatamente ali onde ela como escritora mais fracassaria. Não
saber-viver fez com que Clarice contornasse a falta, a culpa, o luto na
escrita, e tudo sem nenhuma esperança de salvação. A ficção não compensa a vida, mas às vezes ocupa o seu lugar para que um espectro nela
retorne. Se não em vida, depois da morte do sujeito o espectro escava
para si (e para seu outro) um lugar de honra na cultura do presente. A
escritura do instante de Água viva bordeja essas questões que escapam
à compreensão racionalizante da critica. Daí entrar em cena a critica
biográfica, já que compete a este aparato teórico trabalhar entre o monumento (a ficção) e o documento (a vida). Mais uma vez, Eneida Maria
de Souza corrobora nossa reflexão:
Ao se considerar a vida como texto e as suas personagens como figurantes
deste cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá
certamente responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária,
a crítica cultura e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional
da teoria e a força teórica inserida em toda ficção (SOUZA, 2002, p.
119-120).
Favorecendo, assim, as possibilidades infinitas de se pensar Água
viva não só como uma autoficção da escritora Clarice Lispector, mas,
ainda, como um livro sobre(a)vida da artista/escritora.
Viver é morrer na escritura
Tenho falado muito em morte. Mas vou te falar no sopro de vida. Quando
a pessoa já está sem respiração faz-se a respiração bucal: cola-se a boca
na boca do outro e se respira. E a outra recomeça a respirar. Essa troca de
aspirações é uma das coisas mais belas que já ouvi dizerem da vida. Na
verdade a beleza deste boca a boca está me ofuscando.
Clarice Lispector. Água viva, 1998, p. 59.
A Clarice Lispector de Água viva morre, literalmente, para continuar
vivendo uma verdade nem que seja inventada. Se as imagens que são
emanadas da obra são o que a qualifica, entre ser ou não ser, como
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
uma autoficção, Lispector como escritora real vive a morte na sua
escritura para não ser o livro a sua ficção da vida real. As imagens que
o livro, publicado em 1973, proporciona ao leitor são imagens que nos
permitem formular a todo instante imagens que podem ser “comparadas”
à persona clariciana. Diz a escritora em certa altura do livro que “o que
falo nunca é o que falo e sim outra coisa” (LISPECTOR, 1998, p. 28).
Portanto, pode-se depreender do livro imagens ficcionalizada, pelo leitor
e pela escritora, de Clarice e imagens reais da autora presentificadas no
livro ficcionalmente. Claro se considerarmos que a vida e a ficção se
“embaralham” em Água viva.
Diríamos que o que lemos em Água viva é outra coisa além da ficção
de uma pintora que quer ser escritora – temática presente no livro. Temos
na obra uma escritora que será um dia pintora. Mas que, em contrapartida,
o enredo não pode ser confirmado se de fato a história que se conta na
obra poderia ser a história da escritora, já que ela morrera antes (1977) de
confirmar o seu sucesso como pintora. Como o era assim a personagem da
ficção. As consequências imagísticas, pela leitura, que nos proporciona o
livro Água viva hoje são passíveis de interpretações [por] verossimilhantes e
também [são] inverossimilhantes à autora Clarice Lispector, justamente pela
inversão de papéis que ocorre entre vida e ficção no livro. Tal “desenredo”,
da vida real na obra ficcional, que Clarice Lispector realiza em Água viva
coloca-nos com possibilidades infinitas de reconhecer ali fragmentos da
vida real da escritora e, também, leva-nos a questionar a todo instante se
são apenas ficções de uma vida de escritora.
Sabe-se que a construção de Água viva, bem como quase toda a
obra da escritora como comprova as leituras de Edgar Cézar Nolasco
nos livros Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura (2001) e Restos
de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector (2004), é
composta de fragmentos que Clarice recolhera, provavelmente, ao longo
de toda uma vida como já também sinalizara a amiga Olga Borelli. Ou
seja, podemos afirmar que em Água viva a escritora vai tornar “reais”
imagens que ela recolheu em todo esse percurso de vida. Nesse sentido,
podemos dizer ainda que é somente em Água viva que a autora não
vai experimentar a escrita, bem como o faz o artista em seu livro de
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103]
artista que é suporte primeiro de sua produção, no livro Clarice se deixa
desenvolver o seu processo artístico/criativo de escrever por “colagem”
de imagens fragmentadas. E são essas imagens que vão dar corpo à
personagem pintora que quer ser escritora, entre viver e/ou morrer na
escritura/pintura.
Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta
hora. Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte
me conclui. Mas eu aguento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida
é mortal. Vou ter que interromper tudo para te dizer o seguinte: a morte
é o impossível e o intangível. De tal forma a morte é apenas futura que há
quem não a aguente e se suicide (LISPECTOR, 1998, p. 77).
Se em Água viva Clarice tenta não ser autobiográfica, podemos
dizer que seu projeto vai fracassar exatamente na escrita que ela
faz de si no decorrer de quase todo livro. Já não pensamos mais nas
possibilidades que são retiradas por alusões feitas pelos seus leitores,
mas dos fragmentos da própria obra que relacionam diretamente com
sua “bio” de mãe, mulher, escritora e até pintora que fora. Corrobora
tal constatação quando lemos no livro: “Nasci assim: tirando do útero
de minha mãe a vida que sempre foi eterna. Espera por mim — sim? Na
hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que
nunca ninguém tocou” (LISPECTOR, 1998, p. 32). Sabe-se que Lispector
nasce exatamente para salvar a mãe de um mal de saúde – fato da vida
real da escritora que vai se fazer presente também em toda a trajetória
da vida escritural de Clarice enquanto autora.
A relação intrínseca existente entre a escritura e as imagens de
Água viva mostra-nos toda uma vida que a autora não conseguiu se fazer
esconder na escrita, já que durante toda sua vida a escritora escamoteou
sua vida real vivendo personagens de suas obras literárias. Água viva é
o suporte primário de uma prática artística que vai culminar em outras
obras mais tarde no referente a personagens pintoras, além de esboçar
uma atividade que a própria escritora vai levar à prática anos depois na
vida real. Por isso, os limites ou fronteiras entre o real e o ficcional da
vida de Clarice em Água viva vão ser impossíveis de demarcações com
claridade e objetivação tanto são as colagens, as sobreposições e as
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Água Viva como um “livro de artista” [77-103]
invenções e realidades de imagens e escrita da vida da autora, tornando-o
assim, um livro da artista sobre a vida da escritora. Portanto, um livro de
artista de Clarice Lispector.
[...] o livro de artista se articula nos recortes, nas perfurações, na
permanência da história e no envelhecimento. Provocando o público nas
intermitentes páginas da arte, rompe fronteiras e dessacraliza o próprio
estatuto da obra de arte, estetiza o objeto livro desconstruindo o corpo
físico e imaginário para além dele, agora no campo da arte, fundase no jogo
da decifração e significação, de metáforas (HOLZ; LAMAS; LOURENÇO,
2005, p. 16).
Finalmente, podemos dizer que se o livro Água viva conta uma
história, esta história está perpassada de fio a pavio pela persona da
escritora Clarice Lispector. Se viver é morrer na escritura, como dissera
Derrida, podemos dizer que via leitor, biógrafo, crítica etc, Clarice vive
a todo instante a sua escritura de Água viva, considerando que a crítica,
principalmente, (re)inventa a escritora a partir das muitas leituras que
se faz da obra. A cada instante já que Clarice tentou viver/buscar em
Água viva, a crítica e seus leitores criam uma nova persona da escritora.
Nesse sentido, podemos afirmar que Água viva, que já fora nomeado
de Atrás do pensamento: monólogo com a vida e de Objeto gritante29 é
uma autobioficção de Clarice Lispector.
29
C. f. MENDES, Marlene Gomes. Nota prévia. In: LISPECTOR, Clarice. Água viva: ficção.
– Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1973.
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Marcos Antônio Bessa-Oliveira é mestrando do
Programa de Mestrado em Estudos de Linguagens
no PPGMel – DLE/CCHS-UFMS.
Edgar Cézar Nolasco é docente do curso de Letras
da UFMS.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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104
Cotas para negros [105-123]
Cotas para negros:
Tensão nos sentidos30
Marlon Leal Rodrigues
Resumo: o presente trabalho aborda uma discursividade polêmica sobre
a questão do negro que de certa forma constitui um debate também
sobre identidade do brasileiro. Mais especificamente, o discurso sobre
as cotas para negros nas universidades públicas vem colocar “em cena”
um conjunto de sentidos e representações sociais e históricas da posição
social e política do negro no Brasil.
Palavras-Chave: discurso, negro, identidade, cotas.
Abstract: This work discusses the “discursividade” controversy about the issue
of black that also constitutes a debate about Brazilian identity. More
specifically, the speech about quotas for blacks in public universities put
“on the scene,” a set of directions and social representations and historical
social and political position of black in Brazil.
Keywords: discourse; black; identity; quota.
30
Este trabalho é parte de um conjunto de reflexão que venho desenvolvendo desde
2003 sobre as cotas nas universidades públicas.
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
As únicas pessoas que realmente mudaram a história foram as que
mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos. Malcolm
X (1925-65)
A proposta das cotas na universidade públicas faz parte de um
conjunto de políticas afirmativas que foi elaborado para ser defendido
na Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo em Durban, África
do Sul, em 2000, com a participação de 189 nações. Essa conferência
foi a terceira (1978 a primeira, 1983 a segunda). O relatório final, de
acordo com Escóssica (2001),
“contém o diagnóstico da situação do racismo e da discriminação no
Brasil (...) propõe novas medidas de combate ao problema. Isso não
significa, porém, que todas as propostas contidas no documento serão
implementadas pelo governo brasileiro”.
O debate, que nos últimos anos se tornou mais aguerrido, contribui
de forma significativa para que “sujeitos” e “discursos” (Pêcheux, 1997)
saiam do armário da dissimulação (o branco finge que não discrimina)
e da indiferença (o negro finge que não é discriminado), ou conforme
Santos (2002: 31): “de um lado há um grupo que finge que não
discrimina. E no outro temos a própria população negra que finge que
não é discriminada” e “as pessoas já estão acostumadas: o branco em
discriminar com naturalidade e o negro em aceitar” (p. 35). Talvez seja
possível esperar que o debate possa contribuir para abrir a caixa-preta
do racismo, à moda brasileira, ou, como sugere a pesquisa da Datafolha,
um racismo cordial.
A proposta é analisar o “contra-discurso” (Pêcheux, 1999) sobre as
cotas enquanto lugar de resistência as políticas afirmativas e tudo que
dela pode e decorre enquanto de disputas sociais e históricas.
Análise do Discurso: uma proposta de leitura crítica
Uma das contribuições, na área da Lingüística, do que se
convencionou chamar de Análise do Discurso de linha francesa – AD –
tem sido demonstrar que os discursos, palavras, expressões, etc, não são
simplesmente um “falar” de algo para alguém de forma simplista, e que
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Cotas para negros [105-123]
ainda os sentidos desse falar não é um dado a priori, da mesma forma
que não pertence meramente à ordem das semi-estruturas da língua, mas,
sim, da ordem de um certo tipo de articulação. Esse tipo de articulação
está no limite do lingüístico com o social, onde as estruturas sociais
se fazem sentir de forma preponderante nas formas de organizações
lingüísticas e vice-versa.
A relação do lingüístico com o social configura o quanto ela está
inscrita em processos sociais e históricos a partir da articulação do
Materialismo Histórico de Marx, relido por Althusser, do Inconsciente de
Freud, relido por Lacan, e, por fim, completando a tríade, da Lingüística
saussureana na leitura de Pêcheux.
Essa articulação possibilitou a elaboração de alguns conceitos que
permitiram um modo até então diferente de interpretação (Pêcheux,
1988) em oposição ao estruturalismo e ao positivismo, que foi colocada
em questão por volta da década de 50 e 60 na Europa.
A palavra “crítica” significa para a AD na medida em ao “observar
o homem falando” (Orlandi, 1999: 15) não se trata apenas do que se
“diz”, mas considerar “a produção de sentidos enquanto parte de suas
vidas, seja enquanto sujeito de uma determinada forma de sociedade”
(idem, 16). Esta perspectiva de abordar o que se fala não é “pouca
coisa”, é colocar uma série de indagações e questões que até então não
eram consideradas no âmbito da lingüística. Estas questões e indagações
ampliam se articulam com o social e o histórico para compreender não
apenas o “homem falando”, mas outra dimensão de sua “fala”, o discurso
enquanto espaço de investimentos sociais, históricos e ideológicos. Em
termos de análise e reflexão, isto não é “pouca coisa” nisto reside o que
se pode considerar como uma proposta de leitura crítica.
A proposta de constituir um instrumento crítico dos processos de
produção de língua/linguagem foi desenvolvida por Michel Pêcheux,
mais comprometido com o materialismo histórico e com as lições de
Althusser. Este empreendimento teórico e ideológico recebeu o nome
de Análise do Discurso de linha francesa.
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
Cotas: corpus
A proposta de analisar a configuração discursiva implica em reconhecer que há uma luta em torno dos “sentidos” (Pêcheux, 1997),
algumas “posições ideológicas” (idem) e algumas de suas relações com
outros “discursos” (idem, 2002) que lhe dão sustentabilidade, que circulam no cotidiano e na imprensa escrita (revistas, jornais, informativos,
panfletos, boletim, internet etc.). Convém ressaltar que os “enunciados”
(idem) abaixo para análise foram recortados dos “suportes discursivos”
(Maingueneau, 2001) citado acima.
Seguem, assim, os recortes ou enunciados31:
(25) “pedir aos donos de universidades particulares (...) mas espaço para
os negros em suas salas de aulas. Na verdade bastaria que mais negros
tivessem dinheiro para as mensalidades, apostilas, provas especiais,
matrículas. Acesso permitido, preconceito zero. Não há preconceito, mas
exclusão social”;
(26) “uma sociedade pobre e orgulhosa de ser mestiça, há de se perguntar
não apenas onde estão os negros, mas quem eles são”;
(27) “como seria a seleção racial – ou, usando um sinônimo,
segregação”;
(31) “a pobreza é a chaga que embala o preconceito” (Reitor da UFRJ,
Carlos Lessa, 2003: 40);
(42) “questão de honra! Acho uma injustiça a reserva de vagas aos negros!
Todos têm os mesmos direitos de estudar (não é atoa sic que existem
apoios municipais e estaduais)” (L. C. R. Ramos. In: www.estadao.com.
br/artigoleitor/htm/2003/fev/21);
(43) “todos nós temos sangue negro, agora imagine se todos quisessem ser
aprovados por essa cota. Aí vai da opinião de cada um (não)”;
(44) “a pessoa que está na frente deve estar se esforçando mais, isto é um
absurdo, mas o certo era criar (...) escolas de educação para negros, não
por racismo (não)”;
(45) “segundo o genoma humano o povo brasileiro é 99% negro e índio,
então como pode existir este tipo de cota? (não)”;
31
A numeração dos enunciados segue a seqüência do corpus maior que serviu de base
para diversos trabalhos, alguns publicados e outros no prelo.
108
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Cotas para negros [105-123]
(53) “é que estaremos distinguindo o negro do branco e separando, quando
devem estar juntos (não)”;
(56) “como patriotas que somos, temos que lutar para o governo agir com
a razão e não com precipitação (não)”;
(62) “... estou revoltado... Quem não é racista está virando (não)”;
(65) “uma das idéias [sistema de cotas] mais bizarras que envergonham a
inteligência brasileira”;
Discurso das generalizações
Há várias formas de marcar posição discursiva contra, além de procurar
interditar: a) atacar diretamente o seu núcleo do discurso; b) desqualificar
seus sentidos; c) negar sua legitimidade na “ordem do discurso” (Orlandi,
1999); d) procurar desviar a sua problemática central para outras instâncias
com estratégia de combate; e) generalizar a questão central quer teórica ou
quer pragmaticamente, para multiplicar a problemática e assim fragmentar
a problemática discursiva no limite da perda das referências, dos objetos
e dos temas significativos do discurso em questão etc.
Se for possível considerar que a estratégia discursiva da generalização
de quem se posiciona contra se configura, primeiro, em uma forma de
deslocamento de sentido (Pêcheux, 1997: 191) radical das questões
centrais de um outro discurso; é, segundo, cobrar prontamente desse
discurso (objetos, conceitos, elementos, sentidos, unidades) todas as
respostas possíveis (teóricas ou não) como forma de dissimulação; e,
em terceiro, entre outras considerações, é atribuir a ele um caráter
acabado, pronto e fechado, negando assim, sua especificidade histórica,
sua “memória discursiva” (idem, 1999) como se nada tivesse dito antes
e como se nada mais pudesse ser dito após.
Enfim, a estratégia de generalização discursiva visa, entre outros
efeitos discursivos, o de inviabilizar, no confronto em torno dos sentidos
e das disputas sociais, o debate a partir de uma certa racionalidade em
torno dos sentidos e dos sistemas e seus regimes de ritualização nos quais
os discursos se constituem.
A bem da verdade, essa estratégia discursiva possui dois efeitos
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
de sentido eficientes: o primeiro é a dispersão, teórica ou não, levado
ao limite das questões centrais de que trata o discurso; e o segundo,
que deriva do primeiro, diz respeito à possibilidade de tornar inviável o
debate, em torno dos sentidos, pela sua fragmentação e dispersão cada
vez mais longe do núcleo central.
Isso não quer dizer, no entanto, que não se deva interrogar o discurso
no domínio de suas instâncias (no debate) naquilo que for possível para
que ele, talvez, dê conta de responder provisoriamente, considerando
que os discursos estão sempre em relação diversa com outros, e que,
de acordo com Possenti (1988: 245-6) “será praticamente impossível
encontrar um discurso não submetido a estas exigências [organização
e não causalidade]”. Enquanto Possenti se refere ao estilo, acredito ser
razoável conceber que esta organização e não causalidade constituem
um dos aspectos de discursos que estejam em confronto ou disputando
uma certa hegemonia, isto não quer dizer ainda que o discurso seja da
ordem da estrutura, pois enquanto “acontecimento o discurso” (Pêcheux,
2002) possui também um próprio (De Certeau, 1990) organização e não
causalidade.
Irei, na análise que se segue, abordar um pouco dessa questão a
partir dos seguintes enunciados.
Em (25), “pedir aos donos de universidades particulares (...) mais
espaço para os negros em suas salas de aulas. Na verdade bastaria que
mais negros tivessem dinheiro para as mensalidades, apostilas, provas
especiais, matrículas. Acesso permitido, preconceito zero. Não há
preconceito, mas exclusão social”, é possível flagrar um deslizamento de
sentido, a partir de algumas unidades discursivas, do qual fala Pêcheux
(1969: 96-8):
a) da universidade pública (não paga) para universidade particular (paga);
não se pode deixar de considerar que há sentidos distintos entre o ensino
público e privado. No ensino médio e no fundamental é de consenso que
o público está em defasagem. É nele que estão (mesmo sendo cursinhos
apostilados com livro de resposta para o professor) os pobres e os negros.
Já no privado é reconhecido que é de melhor qualidade e dirigida pela
elite. Nele estão os alunos não pobres e não negros. Quando se trata do
110
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Cotas para negros [105-123]
ensino superior, essa lógica é invertida (é possível também observar essa
inversão em relação ao Sistema Único de Saúde) em decorrência da
qualidade do público que investe em ensino, em pesquisa e em extensão.
Entre outras considerações, é possível em alguma instância dizer que esse
deslizamento, marca uma certa posição social, talvez de classe, do sujeito
bem distinta; que o negro será uma presença incômoda; que reservar o
espaço no ensino público para o negro é um tipo de segregação racial e
social; pois a ressignificação do negro pode ser um incômodo histórico
para uma sociedade em que ele ocupa certos espaços e outros não;
b) da reparação histórica (sentido das cotas) para concessão privada
(pedir aos donos...); a equiparação de sentido entre reparação (da ordem
governamental) e concessão (da ordem privada) é um tipo de deslizamento
que desloca desqualificando a causa em questão, reduz a um sentido
negativo a reivindicação de inclusão, as políticas afirmativas, a luta contra
o racismo e preconceito. Além do tom de ironia, condição que revela um
certo descaso para com o debate e a problemática histórica e étnica porque
passa uma grande parte da população. Talvez fosse o caso de perguntar
aos donos de faculdades e universidades privadas se eles querem assumir
parte das políticas de reparação histórica sem ônus para os cofres públicos
ou se eles querem servir de intermediários?. Na verdade, esse discurso
visa a favorecer os donos das universidades privadas;
c) das políticas reparatórias (representação social, identidade, auto-estima,
políticas afirmativas, luta contra a discriminação racial e social etc.)
para distribuição de dinheiro para os negros (questão financeira); esse
deslizamento provoca um tipo de efeito de sentido que reduz a positividade
da causa em questão, além de desqualificá-la, pois equipara o sentido de
reparação histórica a indenização pecuniária, o que teria um sentido negativo
e constrangedor, como se fosse possível uma reparação financeira;
d) da ordem pública (afirmação e reconhecimento da questão histórica)
para ordem privada (negação da questão histórica); esse deslizamento de
sentido implica, de um lado, na manutenção da ordem vigente, ou seja,
o acesso restrito ao negro nas universidades públicas, de outro lado, que
negro deva ir para a universidade privada enquanto concessão aparente;
um outro sentido possível do deslocamento sugere a comercialização das
cotas (considerando que a iniciativa privada não irá assumir o ônus da
reparação); nega o sentido histórico de luta ao ressignificá-lo no interior do
discurso da iniciativa privada (é de um certo consenso que ela visa lucro,
não investe em pesquisa, em ensino e em extensão, não tem compromisso
com a formação quer intelectual, quer humanística), isenta o Estado de sua
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
função de elaboração de políticas; nessas circunstâncias, pode-se afirmar
que é um tipo de privatização;
e) do racismo (sentido forte) para o preconceito (diminuição do sentido
do racismo); o efeito de sentido desse deslizamento nega a prática de
racismo que tem um sentido negativo, considerando que ele acontece
entre desiguais (ligado à superioridade de raça/etnia que normalmente
pode levar à intolerância) enquanto que o preconceito se configura em
uma prática entre diferentes (marca a diferença e não a superioridade), é
tolerante, não chega à segregação;
f) do preconceito (jogo em torno dos sentidos) para à exclusão social
(negação do preconceito); considerando o item anterior, o deslizamento
de sentido pode se configurar, primeiro na negação do racismo, e segundo,
em decorrência do deslizamento de sentido na negação do preconceito, o
que excluiria o racismo, dando um efeito de sentido de que ele não existiu/
existe, que a questão do negro é apenas de posição social particular entre
diferentes e não entre desiguais. Sugere ainda pelo efeito de sentido que,
se diminuir a exclusão social, como questão de gerenciamento técnico e
não ideológico político, o preconceito deixa de existir, ou seja, a questão
do negro diz respeito à exclusão social (onde estão os imigrantes, pobres,
índios, marginalizados), não se trata de um caso específico.
Esses deslizamentos de sentido podem ser considerados, de alguma
forma, a tentativa de transferir os discursos sobre as cotas da ordem pública
para a ordem privada. Esse deslizamento (do público para o privado) tem
como desdobramentos: simplificar o debate histórico cuja estratégia é
negar sua importância social; reduzir o sentido de políticas reparatórias a
uma questão simplista financeira-educacional ou educacional-financeira;
negar o racismo e reconhecer o preconceito; e no “fio do discurso”
(Pêcheux, 1997) (acesso permitido, preconceito zero. Não há preconceito,
mas exclusão social), estabelecer uma equivalência de preconceito e
exclusão social; conceber que a questão do negro está ligada à exclusão
social (onde estão os índios, pobres, imigrantes) e não a um certo discurso
histórico constituído a partir de uma posição de classe; e conceber que o
fim da exclusão social do negro terá como efeito o fim do preconceito.
Pode-se dizer ainda que a “transferência” em alguma instância, que
é um dos sentidos em (25), da ordem pública (as próprias instituições se
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Cotas para negros [105-123]
responsabilizam) para a ordem privada, não acarretará a responsabilidade
total da iniciativa privada, haverá sim, alguém custeando (o público) e
“lucrando” (o privado).
Em (26), “uma sociedade pobre e orgulhosa de ser mestiça, há de
se perguntar não apenas onde estão os negros, mas quem eles são”,
é possível fazer algumas inferências: atribuir o sentido de pobreza e
orgulho a toda sociedade brasileira produz um efeito de apagamento
das diferenças sociais, étnicas, culturais etc. sob o sentido de mestiça; a
respeito da mestiçagem, é importante considerar que ela se constituiu,
de acordo com Chauí32 (1999), a partir da violência e do estupro,
desde a saída dos negros como escravos da África até ao cotidiano da
senzala, e após a Lei Áurea, nos quartos de empregadas domésticas;
assim, nega pelo efeito de sentido que os negros estejam em posição
social inferior em relação aos brancos (quem são); nega o lugar social
que lhes está reservado historicamente (onde estão); seria o mesmo que
dizer parafrasticamente: a) não há negros (identidade no particular, com
possibilidade de ser “visível”) e sim mestiços (identidade no plural, com
certa impossibilidade de “visibilidade”); b) eles não estão nos lugares
onde se diz que estão, mas em todas as instâncias sociais; c) os negros
não são o que dizem deles; d) como a formação do povo brasileiro é
mestiça, não há motivo para reparação histórica.
Um outro efeito de sentido desse discurso, (26), diz respeito à
possibilidade de negação, como forma de apagamento ou silenciamento,
dos sentidos de alguns discursos estatísticos - cujo sentido em nossa
sociedade é quase a própria verdade em si – que falam sobre alguns
dos aspectos das condições sócio-econômicas do negro. O que se quer
evitar é a afirmação da identidade positiva do negro pelo próprio negro,
condição que acirra mais a questão. A seguir, são discursos que de certa
forma estão in-significados e de-significados (Orlandi, 1999: 66), como
32
Estes dizeres, (que não são rigorosamente textuais, muito mais uma paráfrase, mas sem
trair os dizeres da filósofa), que atribuo a Marilena Chauí, foram ditos em um Programa de
Debate, por volta da comemoração dos 500 anos do Brasil, na TV Cultura de São Paulo.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
se estivessem fora da memória discursiva a busca de sentidos para
poder significar-se no discurso político. Seguem os discursos da ordem
do estatístico:
a) Censo interno da Prefeitura de Pelotas, conforme Mattozo (2003):
Funcionário administrativo direto: 6.602; brancos: 58,38%; negros: 7,56%;
pardos: 0,24%; não responderam: 34,79%; funcionário da administração
indireta: 855; brancos: 91,34%; negros: 8,57%; cargo de chefia (primeiro
escalão): brancos: 17 secretários brancos (incluindo prefeito e viceprefeito); negros: 1; primeiro escalão do legislativo: 2 negros.
b) De acordo com Henriques (autor do livro Raça e gênero no sistema
de ensino – Limites das políticas universalistas), In: Gaspari (2002). Curva
de escolaridade média entre brancos e negros (1900 a 2000). Em 1900:
brancos: 2,3 anos de instrução a mais que os negros; em 2000: brancos e
negros tiveram mais escolaridade; brancos: 2,3 anos de instrução a mais
que os negros. Crianças pobres até seis anos de idade: 51%; de cada 100
brancas: 38 pobres; de cada 100 crianças negras: 68 são pobres.
c) Segundo o resultado do Provão de 2001 (MEC) que avaliou 20 cursos
superiores (In: A. Góis (RJ), S. Duran (R. Local) e I. Dantas (DF) 2002),
2,6% dos formandos: negros; 15,9% dos formandos: pardos. Curso
de odontologia: 0,6% dos formandos: negros; 8,2% dos formandos:
pardos. Curso de matemática: 4,4% dos formandos: negros; 25% dos
formandos: pardos.
d) De acordo com a pesquisa A cor da Bahia (Mascaranhas, UFBA. In:
Boletim de Políticas Públicas do L. P. P.): nos curso da UFB, departamento
de Ciências Sociais, concorrência nos curso de baixa demanda (Estatística,
Química Industrial etc.): 18% a 25% são negros; cursos mais disputados
(Medicina, Odontologia etc.): menos de 2%: negros.
e) De acordo com a pesquisa do Seade – Fundação Sistema Estadual de
Análise de Dados (convênio com o Dieese) (In: Revista Ponto de Vista,
2001: 20-1), a renda média salarial dos trabalhadores em São Paulo que
“serve de parâmetro para o resto do país”: homens negros: R$ 3,18 h;
homens não-negros: 6,14 h; homem branco: R$ 1.236,00 mensal; homem
negro: R$ 639,00 mensal; mulheres negras: R$ 2,41 h; mulheres nãonegras: R$ 4,58 h.
f) Conforme Júnior (2003, 14-5): na história do STF – Supremo Tribunal
Federal – houve dois negros. Em 1919: mulato escuro; em 1907: mulato
claro; em 2003: um negro indicado pelo presidente Lula.
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Cotas para negros [105-123]
g) De acordo com o IBGE (In: Benefício, 2002), 45% dos 170 milhões de
brasileiros são negros ou pardos; 70% que se encontram abaixo da linha
da pobreza são negros ou pardos.
h) De acordo com os dados do Provão (MEC) de 2001 (In: Folha de São
Paulo, P C1, 2002), por tipo de universidade segundo a cor da pele: Federal:
0,7% não informou; 68,9% brancos; 23,6% de pardos/mulatos; 3,3% de
negro; 3,5% de indígenas/amarelos. Estadual: 0,9% não informou; 63,8%
de brancos; 25,6% de pardos/mulatos; 4% de negros; 5,5% de indígenas/
amarelos. Privadas: 0,6% não informou; 81,7% de brancos; 12,4% de
pardos/mulatos; 2,3% de negros; 3,1% indígenas/amarelos. Média de
estudantes do país: 0,6% não informou; 77,3% de brancos; 15,9% de
pardos/mulatos; 2,6% de negros; 3,5% de indígenas/amarelos. Perfil da
população brasileira: 53,4% de brancos; 40,4% de pardos/mulatos; 5,6%
de negros; 0,6% de indígenas/amarelos. Total de alunos universitários em
1992: indígenas: 329; brancos: 1.148.129; negros: 29.921; amarelos:
13.692; pardos/mulatos: 241.135; total: 1.433.206. Em 1999: indígenas:
1.345; brancos: 1.994.078; negros: 51.962; amarelos: 42.451; pardos/
mulatos: 435.349; total: 2.525.185.
Em (27), “como seria a seleção racial – ou, usando um sinônimo,
segregação”, há alguns efeitos de sentidos em que é possível considerar
um tipo de estratégia (não se trata no nível da consciência e sim
na tensidade constitutiva da enunciação e na atividade parafrástica
discursiva) no fio do discurso do sujeito.
Pode-se dizer que um dos efeitos é uso do operador discursivo
como que introduz o efeito de uma réplica (questionamento) em que já
se prevê a inexorabilidade de uma prática discursiva (as cotas). Assim, o
sujeito se desloca, estrategicamente, para uma outra posição de onde,
mesmo em face à essa inexorabilidade (uma certa derrota - parcial - de
sua posição contra), ainda tenta interditar, mesmo que parcialmente,
os possíveis efeitos. Esse deslocamento de posição sujeito não implica
que ele tenha abandonado sua posição anterior, mas é uma forma de
continuar marcando sua posição contra de um outro lugar.
Um outro efeito de sentido, constitutivo desse deslocamento, do
operador como, é que ele se dá a partir de um discurso que sem efeito,
parcialmente, sobre o qual esse questionamento se dá, ou seja, uma vez
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
que pode não acontecer (as cotas), então (pelo operador como indaga)
quais os conceitos, os temas, os objetos desse discurso serão significados
para que se possa efetivar a inexorabilidade (do nível do discurso para
o nível da empiricidade).
Pode-se representar, assim, de alguma forma, parafrasticamente,
o discurso sobre o qual o operador como irrompe: a) uma vez que vai
ter a cotas então como seria a seleção racial...; b) já que vai ter as cotas
então como seria a seleção racial...; c) se são inevitáveis às cotas então
como seria a seleção racial...; d) mesmo tendo cotas então como seria
a seleção racial.
De alguma forma, essa estratégia pode ser representada como: a)
mesmo que, já que ou uma vez que Z, então como Z’, considerando que
Z’ é em decorrência da inexorabilidade de Z que impôs/impõe seus efeitos.
O sujeito, a partir de uma posição específica, tenta evitar é a irrupção de
Z, não conseguindo desloca-se para posição ‘ (linha) já incorporando ou
tendo em consideração Z em seu discurso ou já na posição Z’.
Em (27), poderia ainda analisar outras relações tensas em torno de
sentidos no fio do discurso, como em a seleção racial que se configura,
a princípio, uma desqualificação das cotas ao compará-la à segregação
(sentido pejorativo identificado a um certo tipo de racismo, como se
o negro estivesse reivindicando a exclusão pela segregação) sobre a
qual o sujeito se posiciona contra, para em seguida negar as cotas, já
pejorativada. Ou seja, ser contra a qualquer tipo de segregação é um
tipo de posicionamento comum e defensável, no entanto o mesmo não
acontece com as cotas, que é um discurso polêmico. Para ser contra as
cotas, o sujeito se vale do pré-construído (discurso da segregação que é
difícil ser defendido em sociedades ditas democráticas), compara seus
sentidos aos da cotas. Além disso, reduz o sentido das cotas ao de seleção
racial, o que configura um efeito de negatividade como será visto.
Primeiro, o sentido de seleção, normalmente, se refere à escolha e
separação entre iguais para compor um grupo ou uma individualidade em
que os critérios visam prestigiar esforços, certas qualidades e habilidades
individuais ou de grupos.
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Cotas para negros [105-123]
Em segundo, o termo raça, há um certo tempo, quer no senso
comum, quer no meio de uma certa intelectualidade, vem sendo
substituído por etnia (menos carregado ideologicamente o que não
quer dizer que mesmo utilizando o termo etnia, ele não pertença a
uma instância ideológica), isso em decorrência de algumas ideologias
que defendem a superioridade a partir do conceito de raça (inferior e
superior). Já etnia seria um termo menos suscetível de imprimir certa
negatividade. Conforme em Kenski (2003: 42), ”novas pesquisas nas
ciências humanas e biológicas mudam o conceito de raça e mostram
os estragos que o racismo faz na sociedade”, para ele, ainda, “muitos
acham que, enquanto o racismo não acabar, não é possível abandonar
a idéia de raça”. Nessa mesma direção, o antropólogo Gilroy (2003: 50)
afirma que “o conceito de ‘raça’ deveria simplesmente ser abolido. (...)
esse termo é uma categoria falsa, criada com fins discriminatórios, que
não traz avanços nem faz sentido no mundo de hoje”.
Assim, a expressão seleção possui um efeito, possível, de
arbitrariedade e imposição enquanto que raça vem com um efeito de
negatividade próximo ao de preconceito. No fio do discurso, seleção
racial, assim posta, pode significar, entre outros sentidos possíveis, ironia,
sarcasmos e até deboche ou de um preconceito/racismo manifesto.
Em (31) “a pobreza é a chaga que embala o preconceito”, podese constatar nesse discurso um deslocamento do domínio do discurso
político (as cotas) para o domínio do discurso biológico (inscrito em
uma outra ordem) ao significar a pobreza como uma doença ou tipo de
doença. Esse deslocamento de domínio discursivo implica em ressignificar
o preconceito na medida em que negar as cotas, no entanto o sujeito não
chega a negar o preconceito. O efeito desse deslocamento tem algumas
conseqüências básicas: passa a conceber a política de cotas como uma
forma de preconceito; afirma que o preconceito é decorrente da pobreza;
nega as cotas enquanto uma anomalia da pobreza, como se fosse uma
doença, assim, quase nada ou nada pode ser feito historicamente.
O sujeito, para negar as cotas, as desloca do político para significálas em outro domínio, isso tem como implicação de sentido conceber,
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
no fio do discurso do sujeito, o preconceito como uma doença e as
cotas decorrentes desse tipo de doença, o que seria, de certa forma,
algo deixado ao acaso, inevitável socialmente ou pouco controlável por
sistemas de verdade e regimes de poder.
Em (43), “todos nós temos sangue negro, agora imagine se todos
quisessem ser aprovados por essa cota. Aí vai da opinião de cada um
(não)”, e (45), “segundo o genoma humano o povo brasileiro é 99%
negro e índio, então como pode existir este tipo de cota? (não)”, e (53),
“é que estaremos distinguindo o negro do branco e separando, quando
devem estar juntos (não)”, pode-se dizer que se configura em um tipo
de discurso que, para negar as cotas, os sujeitos assumem-se como
parcialmente negros, não pelas características que são visíveis em alguns
aspectos – não estou me referindo aos estereotipo sobre o negro -, mas
exatamente naquele que não está visível, possível de categorizar.
A referência ao sangue tem como efeito de sentido contrapor
os aspectos visíveis, que são condição e requisito de todo tipo de
discriminação racial, e afirmar o que importa não são essas características
e sim as formações genéticas invisíveis a olho nu. De novo é um
deslocamento do domínio do político para o biológico. Esse tipo de
deslocamento, por exemplo, não acontece para o domínio das exatas,
estatísticas – como foi visto anteriormente – considerando que ela
trabalha por amostragens possíveis de serem verificadas empiricamente
com maior visibilidade.
Assumir que tem sangue não é o mesmo que se assumir como
negro, dizer que devem estar juntos não é o mesmo que dizer e afirmar
a igualdade, é, antes de mais nada, uma luta em torno dos sentidos como
mais uma forma de negar a desigualdade que leva o próprio negro a
negar a sua descendência ou identidade. De acordo com Santos (2002:
36) “os pretos que estavam em 5 por cento, saltavam para 6 por cento.
Um por cento pode parecer pouco, mas representa 1 milhão e 700
mil pessoas que se identificavam como pardos, provavelmente agora
se colocam como negros”. É importante observar que a negação é um
efeito do peso imediato da “materialidade” e do “real” (Pêcheux, 2002)
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Cotas para negros [105-123]
que o sujeito procura esquivar-se pela autodefinição. O movimento
contrário é sinal de uma resistência, a busca de uma auto-afirmação
que não passa necessariamente pela simples afirmação do sujeito ter
ou não ter sangue negro, até porque a discriminação é mais visível do
que se possa imaginar.
Afirmar que todos nós temos sangue negro é o mesmo que dizer que
não há motivos para as cotas, não há preconceito, não há discriminação
racial, é afirmar que há uma democracia racial, que todos são iguais,
no entanto o sentido de todos se constitui uma forma de generalização
e dissimulação em não significar a igualdade no domínio do político,
portanto, nega o caráter histórico e social que constitui a sociedade.
Provavelmente, quem diz que tem sangue negro não diz que é negro,
pelo menos diretamente (tenho sangue negro, portanto sou negro, essa
lógica não é direta). Entre ter (sangue negro) há possibilidade de negação
ao passo que ser (assumir-se negro ou ser como negro) a possibilidade
negação é menos evidente. Essa relação implica em posições ideológicas
distintas, por exemplo, a discriminação não depende do fato que você
tenha sangue negro, mas do fato de você ser ou ser reconhecido como
tal (relação pertencente ao nível do político e não do genético).
Há uma diferença de sentido em dizer que tem sangue negro e dizer
ou assumir-se como negro, e ainda em ser negro, quer reconhecidamente,
quer assumidamente.
Em (44), “a pessoa que está na frente deve estar se esforçando
mais, isto é um absurdo [as cotas], mas o certo era criar (...) escolas de
educação para negros, não por racismo (não)”, é possível considerar três
discursos: o primeiro, a pessoa que está na frente deve estar se esforçando
mais, diz respeito à condição do mérito (um pré-construído reforçado
pela lógica do sistema neoliberal: vence quem for o melhor e mais
competente) próprio, cuja conseqüência de sentido é um apagamento
de uma memória discursiva das questões sociais e históricas (competição
entre desiguais talvez seja uma competição desigual) na medida em
que nega a desigualdade enquanto efeito de sentido para conceber a
diferença entre sujeitos, situação que exclui as cotas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
Em segundo, mas o certo era criar (...) escolas de educação para
negros, no fio do discurso do sujeito, é um tipo de encadeamento de
discurso que contrapõe o anterior que deve ser apagado ou perder seu
efeito, assume que a questão não diz respeito ao mérito, é um assumirse pelo discurso da desigualdade e segregação racial.
Em terceiro, não por racismo (não), na mesma seqüência discursiva
linear, há uma negação em atraso de sua posição sujeito ou tentativa
de deslocar-se desse para outro menos visível - isso em decorrência
do efeito de sentido de seu discurso (anterior) se constituir ou conter
pré-construídos racistas (segregação) -, um tipo de antecipação que
geralmente, no fio do discurso, acontece no início da enunciação para
– indesejável enunciação - delimitar os sentidos indesejados do discurso
(isto quer dizer que A exclui B, C, D...) que seus possíveis interlocutores
poderiam/podem atribuir ao sujeito.
Dizer que não por racismo já é um constatar, tardiamente, um dos
efeitos de sentido no próprio discurso. Na tensão dos sentidos, se constitui
um tipo de defesa em atraso ou tentativa de negação de um lugar racista
de sua própria enunciação. Esse efeito de sentido do seu próprio discurso
deve cobrir todo seu discurso anterior no fio do discurso para negar que
sua posição contra as cotas e o seu discurso não têm um sentido racista a
despeito do que foi dito.
Em (56), “como patriotas que somos, temos que lutar para o governo agir com a razão e não com precipitação (não)”, há um discurso
da idéia de pátria, de nação, o que implica em um outro, o de fora
(estrangeiro como inimigo) contra o qual deve-se lutar. Não se trata
de negar apenas as cotas, a formação multi-étnica, mas querer impor
limite à cidadania desse outro (deve ficar no lugar sujeito em que está),
considerando que o estrangeiro é o outro que participa de direito e
cidadania concedidos pelo Estado.
Um dos sentidos possíveis de atribuir é dizer que se trata de uma
palavra de ordem (como patriotas que somos), uma convocação para
combater o outro que está colocando em risco, não a nação e o Estado,
mas um estado de coisas que (uma certa classe possui como relevante
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Cotas para negros [105-123]
para si) deve permanecer como está, no regime de verdades (ver letras (a)
a (f)), ou melhor dizendo: atribui um sentido peculiar ao ensino superior
público como “a menina dos olhos” da elite.
Essa convocação é contra o governo que, ao propor já implementando
as cotas estaria colocando em risco certos “direitos”, interesse de classe,
dos patriotas e “beneficiando” (na reparação histórica) precipitadamente
os supostos estrangeiros (os negros), o que equivale dizer “aqueles que
serão supostamente beneficiados não são brasileiros, não compartilham
da mesma formação cultural, não deve ter os mesmos direitos etc”..
(65), “uma das idéias [sistema de cotas] mais bizarras que envergonham a inteligência brasileira”, se for possível considerar que inteligência
de qualquer nação tem como prerrogativa: pensar nas grandes questões
ou temas relevantes para a nação (a humanidade também) nas diversas
áreas de atuação; propor questões (das mais variadas ordens: social,
cultural, filosófica, artística, política etc.) na agenda nacional, ou seja,
inscrever certos discursos que devem fazer sentido ou não na ordem do
discurso. No entanto, já o prof. Santos (2002: 32), (um dos notáveis da
USP), vai em uma direção contrária afirmando que:
a intelectualidade brasileira, aí me incluo, nós estamos dentro dessa idéia, o
silêncio de chumbo da intelligentsia brasileira sobre a questão racial é uma
coisa que me comove até hoje. Porque salta aos olhos de um antropólogo
ou de um cientista político,
e ainda concebe que
um intelectual que se nega a pensar é como um padeiro que não faz pão.
Isso mostra a resistência desse intelectual que não consegue pensar o Brasil.
A USP é moderna, mas não opera com a modernidade” (pág. 37).
As considerações de Santos são pertinentes porque sua posição é
contrária às cotas mesmo sendo um militante do movimento negro.
Assim, a posição sujeito em (62) é a de desqualificar não só a inteligência brasileira, mas, sobretudo, é a negação de sentidos possíveis
que se possa atribuir às cotas.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Marlon Leal Rodrigues [105-123]
Considerações Finais
Considerando que as cotas são um tipo de discurso da ordem
do político e das relações históricas e sociais inscritos na agenda de
demanda nacional, pode-se dizer que elas encontram forte resistência
para significar-se enquanto um discurso de reparações históricas pela
escravidão dos povos africanos. Isso, talvez, decorra da ausência de uma
memória discursiva de políticas de reparação das minorias no País, pois,
as cotas não são um discurso recente.
Outros países, apesar das polêmicas, como os Estados Unidos da
América – a Suprema Corte Americana recentemente confirmou as
políticas de cotas para as universidades americanas -, a Índia, desde
1948, a Malásia, desde a década de 50, o Líbano, a Noruega, a Bélgica, o
Canadá, a África do Sul etc., cada qual adaptando as condições históricas
e culturais reconhecem e confirmam as cotas como parte de um processo
de reparação e afirmação.
O discurso de reparação histórica do negro pela escravidão
encontra forte resistência, produzindo um efeito de sentido não apenas
pela negação da identidade, da igualdade, mas como se não tivesse
ocorrido a escravidão e nem o negro ou tendo sido um acontecimento
irrelevante historicamente. Esse discurso, pelas relações que estabelece
com o poder, não fará sentido na memória da história do Brasil sem
antes se impor e vencer – sempre provisoriamente à espera do próximo
embate - os processos de interdição (processos judiciários e a recusa
“pessoal de reitores e governadores”), os sistemas e regimes de verdades
(desqualificação, críticas, ataques, manifestação), assim, constituindo um
espaço no social e na memória que lhes são próprios.
Considerando a dispersão dos discursos, dos sujeitos e dos enunciados
dos quais fala Foucault, é possível inferir, entre outras questões, que
as cotas colocam em cena não só a questão da reparação histórica, o
racismo travestido de preconceito, e uma certa passividade do negro, mas,
sobretudo, que ela se inscreve na reivindicação de um espaço social que se
constituiu em algo de valor significativo e contraditório, ao mesmo tempo,
para a classe média e para uma boa parcela da elite brasileira.
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Cotas para negros [105-123]
REFERÊNCIAS
ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença-Martins Fontes, 1974.
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Marlon Leal Rodrigues é docente do curso de Letras
da UEMS.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139]
A dramaticidade existente no Toro Candil:
uma manifestação cultural da fronteira Brasil
com Paraguai33
Giselda Paula Tedesco
Edgar Cézar Nolasco
Resumo: A brincadeira do Toro Candil é uma manifestação cultural existente na
fronteira do Estado de Mato Grosso do Sul com o país Paraguai. Acontece
em um lugar intervalar, fronteiriço por excelência, uma vez que é encenada
na cidade portuária de Porto Murtinho. Essa manifestação também pode
ser identificada como um jogo, ou brincadeira, do tipo que acontece nas
épocas festivas de São João e apresenta características que nos remetem a
Commedia dell’Arte. Os brincantes, ao disfarçarem-se, ou melhor dizendo,
ao metamorfosearem-se em mascaritas ou Toro, ao trocarem de sexo,
mesmo sem a existência de um texto à ser decorado, partindo do improviso
representam o papel de outros seres humanos. Entender a liberdade de
criação expressa em manifestações culturais como a do Toro Candil é dar,
aos brasileiros e paraguaios da fronteira, marginalizados, discriminados
e eternamente excluídos da academia e da própria indústria cultural, o
destaque e o lugar de um espetáculo teatral sensível, multicor e festivo
que evidencia a forma de expressão de um povo ao retratar a sua história,
a sua cultura, e a sua memória.
Palavras-chave: Mato Groso do Sul; brincadeira; regional.
33
Este trabalho é parte integrante do II capítulo do texto de dissertação que contempla a
pesquisa initulada A brincadeira do Toro Candil: uma manifestação da memória cultural
local, realizada no Programa de pós-Graduação Mestrado em estudos de Linguagens,
na UFMS, sob a orientação do Professor Doutor Edgar Cézar Nolasco.
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Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139]
Abstract: The Toro Candil game is a cultural manifestation on the South border of
the State with the country Paraguay. It happens in interval place, completely
borderline, whenever it is staged in the hapor city of Porto Murtinho. This
manifestation also may be identify as a game, or a fun thing, that happens in festival
ages of São João and shows some characteristics that remit to think in Commedia
dell’Arte. The players, when they masking, namely, when they metamorphosing
in mascaritas, or Toro, when they change the genus, even without any text to
learn by heart, parting to improvise that represent the human being character.
To understand the freedom express creation in cultural manifestation as the Toro
Candil is to give, to the Brazilian, and border Paraguayan, marginal, discriminated
and eternity out of academy and cultural industry, the spotlight and the place
of the theatre sensitive show, multicolor and festive that evidence the people
expression form to retract their history, their culture and their memory.
Keywords: Mato Groso do Sul; brincadeira; regional.
O Toro candil, uma espécie de jogo dramático, próprio dos festejos
juninos, onde se utiliza o fogo como desafio, é uma manifestação cultural
que acontece na fronteira do Brasil com o Paraguai, na cidade de Porto
Murtinho. Há mais de cinquenta anos, no mês de dezembro, dia 7,
véspera do dia de Nossa Senhora de Caacupê, Dona Dionísia (Noni)
Arguelho realiza, nas dependências internas e externas de sua casa,
desde a varanda até a rua em frente, a brincadeira do Toro Candil, que
mobiliza toda a vizinhança.
Segundo Paulo de Carvalho Neto, os primeiros registros dessa manifestação
cultural datam de 1795, como um Auto Colonial popular chamado ”Rua”,
sendo o Toro Candil34 fragmentos que ainda sobrevivem, ou, melhor dizendo,
são restos de “Rua”:
34
“Consiste en un armazón o esqueleto de madera recubierto de lona pintada o con
un cuero de vacuno, en cuya extremidad delantera se halla una cabeza de vacuno (la
parte ósea) con las astas, simulando un toro grande. En la extremidad de las astas se
atan unas bolsas de trapo o lona embebidas de querosén, a las que se prende fuego
en el momento de la corrida. En el interior del armazón se introduce un individuo que
sostiene el artefacto y hace las veces de toro, atacando el torero quien provisto de una
manta o poncho rojo provoca a aquél, dando lugar de esta manera a una espécie de
espetáculo de toreo de visos cômicos.” (CARVALHO, p. 341).
126
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A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139]
Além disso as ditas “Ruas” foram desdobramentos das festas reais e os
índios como sempre participavam de tudo. Tais registros são, naturalmente,
invaloráveis. O grande viajante assistiu na América ao que na Espanha
segundo ele estava esquecido. “São as Ruas já esquecidas na Espanha, onde
só existe memória no nome da rua do arco del Conde Fernan Gonzáles
de Burgo. Nem os vi em nenhuma parte”. (NETO,1996, p.336)
Quanto ao Toro Candil, por sua vez, só o temos visto na festa do Sagrado
Coração de Jesus. Nosso calendário folclórico, sem oposição, o associa
às festas de São João de Villarrica (1938), Virgem de Carmen e Virgem
do Rosário. Miguel Angel Pesoa comunica ao CEA– Centro de Estudos
Antropológicos do Paraguai - tê-lo visto na festa de São Blás, patrono
de Assunção, por volta do ano de 1935. A primeira semana do folclore
paraguaio o incluiu entre seus atos, a título de defesa da tradição
paraguaia.35 (NETO, 1996, p. 336 e 341).
No Brasil, assim como acontece no Paraguai, uma armação que
imita o corpo de um Toro é feita de bambu e arame, sendo coberta por
chitão ou por qualquer outro tipo de tecido. Na extremidade dianteira da
armação coloca-se a parte óssea da cabeça de um boi (o crânio) com os
chifres, em cujas pontas se amarram bolsas de estopa ou lona embebida
em querosene, nos quais é ateado fogo. No interior da armação, um
indivíduo sustenta o artefato e faz às vezes do Toro Candil, atacando
aos mascaritas (mascarados), espécie de toureiros, ou, ainda, “palhaços”
de rodeio, que provocam o Toro simulando ou imitando uma tourada,
porém, de veia cômica.
35
[...]Además, dichas Ruas fueron dobles a las de las fiestas reales y los índios como
siempre, fueron los brazos de todo.
Tales registros son, naturalmente invalorables. El gran viagero asistió en América a lo que
en España, según él, estaba olvidado. “Son las Ruas olvidadas ya en España, donde sólo
hay memoria en el nombre de la calle de arco del Conde Fernan Gonzáles de Burgo.
Ni los há visto en ninguna parte”. .
[...] Al Toro Candil, por otra parte, lo hemos visto sólo en la fiesta del Sagrado Corazón de
Jesús. Nuestro calendario folklórico, sin embargo, lo consigna en las de San Juan de Villarrica
(año 1938), Virgen del Carmen y Virgen del Rosario. Miguel Angel Pesoa comunica al CEA
– Centro de Estúdios Antropológicos del Paraguay- haberlo visto en la fiesta de San Blas,
patrono de Asunción, alrededor del año 1935. La 1ª Semana Folklórica del Paraguay lo
incluyó entre sus actos, a título de defensa de la tradición paraguaya. (tradução minha)
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Ao Toro Candil, por sua vez, é dado mobilidade quando uma pessoa
coloca-se sob o artefato e passa a movimentar-se com a enorme carapaça.
Dessa forma, tal indivíduo, normalmente um mascarita (mascarado),
previamente designado para assumir o papel de Toro Candil, ao colocarse sob o animal / objeto, lhe dá vida.
Durante a brincadeira, que pode durar horas, normalmente ocorre
um revezamento de mascaritas para carregar o Toro Candil, que investe
sobre os brincantes mascarados, tentando chifrá-los e queimá-los. Os
mascaritas por sua vez, têm a função de torear a fera. Nessa brincadeira,
de “pegar e fugir”, que lembra a brincadeira de “gato e rato”, um
inusitado bailado entre toro e mascaritas é coreografado. Tal bailado
assemelha-se a uma tourada, porém, de veia cômica.
Os Mascaritas são personagens anônimos que, por devoção ou
por promessa à Nossa Senhora de Caacupê, participam do jogo ou da
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brincadeira do Toro Cândil. Normalmente são homens que se travestem
de mulher, mudam a voz e falam num tom agudo, misturando espanhol
com guarani e português. Vestem-se com saias, vestidos, mini-blusas e
sutiãs. As mulheres por sua vez, travestem-se de homens.
Os mascaritas, segundo relatos informais de paraguaios que vivem
em Campo Grande, retrata a figura do peregrino, do andarilho roto, sem
vaidades, que anonimamente se disfarça como se estivesse envolto em
um manto de invisibilidade para não ser reconhecido, e poder, humildemente, pagar sua promessa.
Os devotos, ao abrirem mão, de sua identidade verdadeira, despemse de sua própria natureza humana, de suas próprias máscaras, suas
vitórias, suas dores, suas frustrações, julgando, assim, melhor representar
os peregrinos que andam léguas e libertos de toda ganância, de toda a
matéria, sujeitam-se à fome e à miséria. Tal condição humana é representada pelas vestes maltrapilhas e sujas dos brincantes mascarados.
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Tanto os homens como as mulheres, usam chapéu. Um pano ou trapo
que serve de máscara é usado para cobrir seus rostos, como se fosse uma
máscara, provavelmente daí o nome “mascaritas”. Esses devotos além de
pagarem sua promessa buscam quem sabe, a purificação, e, libertos de
todo o mal, de todo o pecado obter a proteção da Virgem de Caacupê
para sua vida, ou ainda para o novo ano que em breve irá começar.
Num divertido jogo de cena, os mascaritas executam coreografias
diversas com fortes traços cômicos. Embalados ao som da polca paraguaia, iniciam o jogo com a pelota-ta-tá36, espécie de bola de fogo, que
antecede o toro candil e que lembra o jogo de futebol ou melhor uma
“pelada” feita com a bola em chamas, essa brincadeira, antecede e, de
certa forma anuncia a brincadeira do Toro Candil.
36
Bola de estopa que, mergulhada em querosene, à noite, quando ateado fogo, vira a
pelota tá-tá, A palavra, de origem indígena(guarani), tem o significado de pelota (bola)
de fogo (tá-tá),
130
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Segundo o dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, “os jogos estão, na origem, ligados ao sagrado, como todas as atividades humanas;
as mais profanas, as mais espontâneas, as mais isentas de toda finalidade
consciente derivam dessa origem.” (CHEVALIER, 2009, p.518.) O que
nos leva a pensar que o Toro Candil carrega em sua “bio” toda uma
ancestralidade que insiste em permanecer recheada de simbolismos e
mitos que outrora faziam parte do imaginário do povo e que aos poucos foram sendo esquecidos, e que a brincadeira do Toro Candil ao ser
encenada, ajuda a resgatar:
[...] certos jogos e brinquedos eram ricos de um simbolismo que hoje se
perdeu; o pau-de-sebo, por exemplo, está ligado aos mitos da conquista
do céu e o futebol, à disputa do globo solar. Fundamentalmente, o jogo é
um símbolo de luta contra a morte (jogos funerários), contra os elementos
(jogos agrários), contra as forcas hostis (jogos guerreiros), contra si mesmo
(contra o medo, a fraqueza, as dúvidas etc.). Mesmo quando são puro
divertimento, incluem gritos de vitória, pelo menos do lado do ganhador.
Combate, sorte, simulacro ou vertigem, o jogo é por si só um universo,
no qual, através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu
lugar. (CHEVALIER, p.519)
De outra forma, a teatralidade existente no Toro candil inclui fortes traços que oscilam entre o cômico e o dramático, onde homens se
travestem e mudam a voz desempenhando o papel ora de Toro, que
chifra, persegue e algumas vezes acerta seu alvo; ora de mascarita que,
ao imitar o toureiro, foge e fustiga o Toro em meio a arremedos e algazarras que divertem aos espectadores, remetendo-os a um espetáculo
teatral a céu aberto.
Para Sábato Magaldi, O diálogo teatral requer um encadeamento
próprio, porque deve ser transmitido pelo ator:
Sua matéria, na boca de um ser humano que o pronuncia, visa à criação
da personagem. No transcurso do espetácuo, instaura-se o universo teatral
por intermédio da ação de personagens em cena.
Drama, etimologicamente significa ação. A simples conversa, entabolada
como diálogo, não constitui ação, e por isso carece de teatralidade. Para
facilitarem a tarefa de fixar personagens agindo, os autores antepõemlhes obstáculos, cuja transposição conduz ao desfecho. Os obstácuos
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colocam-se no íntimo ou no exterior das peronagens, e caracterizam o
conflito, que a maioria dos teóricos julga essencial ao drama. (MAGALDI,
2004, p.17.)
Porém a maneira espontânea e empírica dos atores/personagens, denota
uma expressiva liberdade de criação e de improvisação, que nos faz, por vezes,
duvidar da qualidade de tal espetáculo, mesmo sabendo que a intenção inicial
não seja a de realizar uma peça, ou, ainda, um espetáculo teatral.
Nesse sentido, os participantes do Toro Candil, geralmente devotos da
Virgem de Caacupê, ao encenarem o Toro Candil, ao se apropriarem dos
personagens mascaritas, o fazem por pura e simples devoção. O Toro Candil,
dessa forma, é encenado para pagar promessas, lembrando às vezes de um
ritual de flagelo corporal, que tem a intenção de homenagear a Santa.
Em uma reflexão sobre os gêneros dramáticos, Sábato Magaldi
aponta que a cada instante, vê-se comédia com traços e elementos
dramáticos e drama com elementos cômicos. Por outro lado, se o Toro
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encontrado no Paraguai é o que restou de um Auto Espanhol como
sugere Paulo de Carvalho Neto, no Brasil, em Porto Murtinho, os recursos
teatrais utilizados no jogo dramático encenado durante a aparição do
Toro Candil nos remetem, em alguns momentos, aos mesmos recursos
cênicos utilizados na Commedia dell’Arte.
A aparente falta de ordem que marca a seqüência de movimentos
desenvolvidos tanto pelo Toro como pelos mascaritas durante a brincadeira
nos chama a atenção para o improviso característico dessa manifestação
cultural. Segundo o crítico teatral Sábato Magaldi, “o fundamento da
Commedia dell’Arte é a improvisação”, onde, “o ator torna-se o autor
do espetáculo que vai oferecendo”(MAGALDI, 2004, p. 227).
Nesse sentido, a narrativa que envolve o Toro Candil se dá do mesmo
modo que a narrativa presente em um espetáculo de teatro e pode variar
dependendo do ponto de vista do espectador (público) que está assistindo,
dependendo, então, da perspectiva e da distância de quem é levado ou
se deixa levar nessa brincadeira, ou melhor dizendo nesse jogo.
Essa liberdade criadora, de forma paradoxal, engessa e limita os
intertépretes de tais personagens que, da mesma forma como acontece
na Commedia dell’Arte, se resignam a representar um mesmo tipo por
anos, o que equivale a repetição e a pobreza do espetáculo. Segundo
Chevalier, num jogo, a pessoa se exprime e reage com toda naturalidade
a ponto de sentir-se totalmente implicada, sendo fácil, então, arrastar os
espectadores a uma participação de maior ou menor intensidade:
A análise psicológica viu no jogo como que uma transferência de energia
psíquica, quer se efetue entre dois jogadores, quer comunique vida
a objetos. O jogo ativa a imaginação e estimula a emotividade. Por
desinteressado que seja, como se diz, é sempre pejado de sentido e de
consequências. Brincar com alguma coisa significa dar-se ao objeto com
o qual se brinca. Brincar é lançar uma ponte entre a fantasia e a realidade
pela eficácia mágica da própria libido37... (CHEVALIER. 2009, p. 520.)
37
CHEVALIER p. 520
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Isso nos sugere que a ponte entre fantasia e realidade, no momento
da encenação do Toro Candil, é o meio pelo qual os recalques latentes são
lançados em cena e resolvidos. Superados, evitam conflitos e provocam
adaptação e progresso. É dessa forma que os jogos dramáticos ajudam a
“libertar as fontes da espontaneidade para que o ser se adapte, sem deixar
de ser ele mesmo, a todos os papéis que a vida dele exigirá” (CHEVALIER.
2009, p. 521.
Segundo Anatol Rosenfeld, “hoje ainda há quem considere o Teatro,
apenas como um veículo da literatura dramática, ou seja, uma espécie
de instrumento de divulgação a serviço do texto literário, como o livro
é de romances e o jornal, de notícias” (ROSENFELD. 2000, p. 21.).
De fato devemos reconhecer e destacar a importância da literatura,
do texto teatral em si, contudo, entender a liberdade expressa em
manifestações culturais como a do Toro Candil é dar, aos brasileiros e
paraguaios da fronteira, marginalizados, discriminados e eternamente
excluídos da academia e da própria indústria cultural, o destaque e o
lugar de um espetáculo teatral sensível, multicor e festivo que evidencia
a forma de expressão de um povo ao retratar a sua história, a sua cultura,
e a sua memória.
Dessa forma, entendemos quando Rosenfeld argumenta:
A discussão é antiga, contudo, é necessário combater uma opinião que
tende a reduzir o teatro, por inteiro, à literatura, qualificando a cena
como “secundária” e mero “artesanato” e atribuindo-lhe só “em diminuta
margem” uma “legítima intuição artística criadora”.
É evidente que isso exige do diretor não só a capacidade de entender
a peça (texto) e sim uma série de qualidades entre as quais a menor
certamente não será a da imaginação criadora. Enfim, o problema não é
proposto na sua complexidade, quando se diz que a magnitude do teatro
“reside na literatura dramática. O demais é demais”. Em se tratando de
teatro, o demais é tudo. De outro modo bastaria ler o texto (ROSENFELD.
2000, p. 22.).
E assim, mesmo com a ausência de um texto literário propriamente
dito, o Toro Candil carrega, em sua essência, as marcas de um teatro
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do povo, realizado a céu aberto, pois o teatro, mesmo quando recorre
à literatura dramática como seu substrato fundamental, não pode
ser reduzido à literatura, visto ser uma arte de expressão peculiar.
(ROSENFELD. 2000, p. 28.).
Nesse sentido, fica claro para nós que, independente da denominação
dada ao Toro; (Jogo dramático, brincadeira ou simplesmente manifestação
cultural), o Toro Candil, consciente ou inconscientemente, nos remete
ao teatro, pois como sugere Rosenfeld, “O gesto e a fala são reais,
são do ator; mas o que revela é irreal. O desempenho é real, a ação
desempenhada é irreal”. (ROSENFELD. 2000, p. 30.).
Rosenfeld reforça nossa forma de entender e perceber o potencial
dramático existente no Toro Candil quando diz que:
A metamorfose do ator em personagem representativo do ser humano não
é só dele. Também o público se identifica com os personagens fictícios.
Todos participam da transformação.
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A partir daí revelava-se, como já foi mostrado, um novo aspecto da
metamorfose. Ela é, de certo modo a origem do ser humano. Vimos que
o homem só se torna homem graças a sua capacidade de separar-se de si
mesmo e identificar-se com o outro.
A divisão que se estabelece no cerne do diálogo, enquanto ao mesmo
tempo separa e une, é um dos fenômenos fundamentais tanto do teatro
como no homem.
A duplicidade humana é ao mesmo tempo trágica e cômica. Nela reside
a grandeza e a fraqueza do homem. Nas suas formas fundamentais da
tragédia e da comédia. (ROSENFELD,1996, p. 39, 40, 41, 42)
Tomando por base essas reflexões, constatamos que os brincantes,
ao participarem do jogo dramático/brincadeira do Toro Candil, ao
disfarçarem-se, ou melhor dizendo, ao “metamorfosearem-se” em
Toro, e em mascaritas, revelam suas paixões e desejos mais profundos.
Libertam-se de seus medos e de suas frustrações, ou, ainda, se permitem
recordar, por meio da brincadeira, os momentos felizes, vividos em outras
épocas, em outra nação.
Dessa forma, “a distância em face de si mesmo lhe permite
desempenhar os papéis de outros seres humanos, pois, “o tema do
teatro é o próprio teatro - o mundo humano; o tema do ator, o próprio
ator – o homem”. (ROSENFELD,1996, p. 43.).
Entendemos pois, que a brincadeira do Toro Candil, em sua
encenação, contempla as duas nações, Brasil e Paraguai. Nesse sentido
a foto seguinte é reveladora, pois reflete, quem sabe, o desejo de manter
íntegra toda uma cultura, uma história, uma memória, que se inscreve
como sendo do “outro”, e que está registrada desde a sua origem, em
sua “bio”, do lado direito, do dorso do Toro, ou da margem do grande
rio, no Paraguai.
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A bandeira paraguaia nesse sentido, tal qual a brincadeira do Toro
Candil, é prova de resistência e tenta manter integra a sua cultura, a sua
tradição, a sua nação. Encobre em algumas partes a bandeira do Brasil
quem sabe na tentativa de se sobressair, pois, é, na maioria das vezes,
vista como resquícios de uma cultura menor.
Nesse sentido a bandeira, paraguaia, poderia representar um
grito de alerta dessa manifestação cultural, que pode estar fadada ao
esquecimento, e que tenta se impor enquanto cultura menor, de fronteira,
que sofre um processo de hibridação e, que, num gesto transculturador já
não é somente paraguaia. Estrategicamente, a brincadeira do Toro Candil
alterou-se em contato com o outro, é brasileira também, e, nesse sentido
é marca da diferença, e representa a diversidade cultural existente em
Mato Grosso do Sul.
A brincadeira do Toro Candil assemelha-se àquela condição de sobrevida
descrita por Derrida. Encontra-se entre a vida e a morte, a lembrança e o
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esquecimento, o arquivo e a exumação, a cultura letrada e o seu fora, o centro
e a fronteira. Um candeeiro queima, conclama, propõe um reavivamento
do que não foi, busca um diálogo com o que existe do outro lado do porto
(Murtinho), enfim, vela uma história que talvez não exista mais. Tal qual o
arquivo descrito por Derrida, o Toro Candil queima de paixão, talvez como
forma de manter sua pulsão existencial em ação, em cena.
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ACESSO EM 31/10/2009 ÀS 08:13
Giselda Paula Tedesco é mestranda do Programa de
Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens
na UFMS.
Edgar Cézar Nolasco é docente do curso de Letras
da UFMS/CCHS.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
139
140
Literatura Feminina [141-150]
Literatura feminina:
tecendo uma escrita de resistência
Romair Alves de Oliveira
Resumo: A literatura de autoria feminina apresenta não somente a questão do
espaço privado – “lar”, mas também um espaço psicológico altamente
intimista em sua escrita. Dentro dessa perspectiva, Júlia Lopes de Almeida
(1862-1934), tendo sua obra reconhecida pela crítica por seu cunho didático,
vem contemplar nosso trabalho na ótica da escritura feminina não como o
“sorriso da sociedade”, mas como resistência de uma escrita singular para
mostrar o posicionamento da mulher nos vários espaços sociais. Desse
modo, concretiza uma literatura feminina e consolida seu valor literário
aos olhos da crítica do início do século passado e mostra, ainda, como a
escrita de autoria feminina negocia com os valores patriarcais oitocentistas,
indicando de que forma a resistência surge nas relações de gênero no fim
do século XIX.
Palavras-chave: Literatura feminina; Júlia Lopes de Almeida; Resistência.
FEMININE LITERATURE: WEAVING A WRITING OF RESISTANCE
Abstract: The feminine writing shows not only the issue of private space – “home”,
but also a highly intimate psychological space in her writing. Within this
perspective, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), having her work recognized
by the critical theoreticals for her nature education, contemplates our work
from the perspective of women’s writing not as the “smile of society”, but
as resistance of a single writing that shows the position of women in various
social spaces. Thus, she concretes a feminine literature and consolidates its
literary value to the early past reviewers’ eyes and also shows how female
writing deals with the nineteenth-century patriarchal values, indicating how
resistance emerges in genre relations in the late nineteenth century.
Keywords: Feminine Literature; Júlia Lopes de Almeida; Resistance.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
141
Romair Alves de Oliveira [141-150]
Introdução
A produção literária de autoria feminina é um dos lugares possíveis
para se traçar uma história do papel desempenhado pelo feminino no
contexto social e cultural através dos séculos; lugar este no qual a mulher,
na medida do possível, se revela na sua escrita.
No campo das artes, mais especificamente no da literatura, discutiu-se
por muito tempo se existe uma escrita feminina caracterizada por um discurso
com marcas genuínas de voz de autoria feminina. A discussão em torno desta
questão, mesmo quando de natureza essencialista, na qual se via a ligação
mulher/natureza como justaposição da condição biológica à social, tem
contribuído para se pensar e se analisar a literatura sob nova ótica, levando-se
em conta as variações possíveis no que tange às questões de gênero.
O contexto da autoria feminina
Não somente a teoria da literatura, mas a história, a sociologia, a psicologia
e a filosofia oferecem subsídios para a compreensão do texto literário. Esta
postura interdisciplinar compreende e considera o feminino como resultado de
articulações diversas. A confluência dessas áreas de conhecimento possibilitou
a retirada da escrita de autoria feminina das margens, da periferia, passando
a reconhecer, nessa autoria, uma literatura com característica própria.
Ultrapassando a barreira do silêncio a que se viu historicamente
condenada, a mulher veio, lentamente, se inserindo em diversos
caminhos, entre eles o da produção literária, com o objetivo de assumir
uma voz própria, sua linguagem, sua escrita e seu discurso.
Construindo um texto oriundo de suas próprias experiências e
contextualização do seu universo, a mulher passa a ser sujeito de seu
próprio querer, de sua existência, de sua palavra. A autoria feminina
se dá, sutilmente, pelo sujeito que se reconhece através da palavra,
na qual apresenta sua consciência, se realiza e se mostra. A autoria
feminina resulta, então, de uma conquista, da afirmação do ser em
meio a uma sociedade que insistia em tornar a escrita feminina invisível,
marginalizando a escrita e a criatividade da mulher.
142
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Literatura Feminina [141-150]
A literatura de autoria feminina ficou relegada à margem da
literatura canônica ocidental até a década de 60, em países como
E.U.A, Inglaterra, França, Brasil e outros. Esse período vem atrelado
às lutas emancipatórias das mulheres que, entre outras demandas,
exigiam o reconhecimento das aptidões e dos direitos femininos além
dos apregoados pela sociedade patriarcal, isto é, o de rainha do lar e de
mãe idolatrada (STEIN, 1984).
A escritora Lygia Fagundes Telles, corroborando com que dissemos
anteriormente, discorre sobre uma escrita de autoria feminina que
envolve características culturais e a condição feminina brasileira,
perceptíveis no fragmento abaixo:
A literatura feminina tem (...) uma fisionomia própria (...) decorrente
da situação da mulher, das suas raízes históricas... a mulher vem
tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher
brasileira mais do que as mulheres do mundo. (TELLES, 1997, p. 57)
As palavras dessa escritora caracterizam, de certa forma, uma escrita
de autoria feminina de um Brasil oitocentista, no qual as mulheres
brasileiras não possuíam direitos autônomos. Aliás, quase direito algum,
principalmente no tocante à educação escolarizada e ao trânsito no
espaço público, predominantemente masculino.
A escrita de autoria feminina, dificilmente, poderia ser diferente
do seu meio e do seu público leitor, essencialmente femininos. Daí
a característica do tom confessional dado pela maioria das escritoras
oitocentistas, tendo como referência seu cotidiano, seu meio (privado),
seus anseios, suas queixas, sua realidade verossímil, ou seja, uma “escrita
de si”, de mulher, sobre mulher e para mulher. Tal escrita reflete um
universo particular ainda imerso em preceitos patriarcais reinantes, em
que a mulher busca, através de escritos como diários, cartas, crônicas
e até receituários, uma forma de revelar sua postura e condição na
sociedade na qual está inserida.
Isolada, silenciada, a mulher tenta, por meio da escrita, romper
com o espaço a ela destinado e mostrar sua condição subordinada
à normatização social vigente. É através destes primeiros textos que
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
143
Romair Alves de Oliveira [141-150]
a mulher busca se definir como: mulher/ser mulher, ou seja, a própria
representação da mulher e o papel por ela desempenhado na sociedade da
época, dando visibilidade a estes estados que estão intrinsecamente ligados
ao padrão masculinizante que rege os preceitos sociais do século XIX.
A literatura de autoria feminina brasileira oitocentista inicia seus
primeiros passos e começa a se afirmar no contexto literário brasileiro
num período de transição política, no qual o país deixa de ser colônia
portuguesa para transformar-se em nação, isto no início do século XIX,
em 1822. Como complemento dessa informação, é importante lembrar
que a História de nosso país se divide em Período Colonial e Período
Nacional; enquanto a literatura brasileira, por questões didáticas, é
dividida, pelos estudiosos, em Era Colonial (literatura de informação) e
Era Nacional (romantismo).
A literatura de autoria feminina no século XIX vem retratar não a
questão de nação, mas a condição vivenciada pela mulher naquele século,
condição essa diferenciada em relação a outros países, principalmente os
europeus. Devido ao contexto histórico brasileiro de resquícios coloniais,
a mulher brasileira não acompanhou as transformações sociais e culturais,
especificamente no âmbito educacional.
A mulher oitocentista brasileira, por “transitar” e “atuar” apenas
no espaço doméstico, por não possuir uma educação adequada à arte
do “bem escrever” e, ainda, por não ter tradição literária de alcance
nacional, dissertava sobre coisas banais, cotidianas ao seu espaço. A
maioria de seus textos não ultrapassava o escrevinhar, termo que pode
apresentar nuanças pejorativas, mas que expressa as características da
escrita da época.
A problemática que envolve a questão educacional e a condição da
maioria das mulheres brasileiras é explicitada por Telles, ao dizer que:
a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do
tempo e a mulher brasileira mais do que as outras mulheres do mundo...
Quando as mulheres do mundo já se comunicavam, através, por exemplo,
das cartas, as correspondências das mulheres de salões, a mulher brasileira
estava fechada em casa, vivendo a vida das senhoras das fazendas, da
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Literatura Feminina [141-150]
senhora da casa grande... Viviam aprisionadas. Não sabiam ler, não sabiam
nem sequer escrever, não sabiam coisa nenhuma. Elas viviam numa
servidão mais terrível do que as mulheres de outros países, inclusive da
Europa. (TELLES, 1997. p. 57)
Telles retrata, assim, historicamente, a condição da mulher
brasileira, e não a sua escrita, reforçando a questão da educação
feminina precária no período oitocentista brasileiro. Embora sua
observação seja válida quanto à apresentação da condição da maioria
das mulheres, ela não reflete o diferencial feminino do século XIX, uma
vez que já havia textos de autoria feminina, de mulheres, a maioria
branca, escolarizada e elitizada.
A grande parte da população feminina do século XIX era, na
verdade, iletrada, condição resultante da própria situação de um país
em transição. Conseqüentemente, esta situação provocou o silêncio
das mulheres e uma ausência de vozes de autoria feminina no contexto
literário de nosso país.
As mulheres escritoras imitavam, primeiramente, a escrita masculina
e reproduziam, em seus escritos, o seu meio social. Não poderia ser
diferente, principalmente por causa da educação que lhes era ministrada
e porque não eram estimuladas à cultura letrada. A mulher era, na maioria
das vezes, apenas receptora de informações condizentes com seu meio
social. Mesmo quando eram escolarizadas e possuíam personalidade
forte e posição econômica relevante, como foi o caso da escritora Nísia
Floresta (Apud, MOREIRA, 2003), tinham reconhecimento menor tanto
da mídia quanto do público.
Uma das razões deste não reconhecimento é que a temática da
literatura de autoria feminina estava, em princípio, relacionada aos
problemas domésticos ou íntimos. Essa falta de envolvimento com
questões ditas importantes, como, a política, história e economia, fez
com que a escrita feminina apresentasse pouca relevância no cenário
literário da época.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Romair Alves de Oliveira [141-150]
Júlia Lopes de Almeida e a escrita de resistência
As mulheres escritoras oitocentistas divulgaram através de seus
textos a importância atribuída aos papéis de mãe e esposa. Entre elas,
destacamos Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e sua numerosa obra
literária de cunho didático, como: Livro das Noivas (1896) e Livro das
Donas e Donzellas (1906). Nestas duas obras, a escritora constrói o
universo da classe burguesa feminina, carioca para, através destes
cenários, problematizar os papéis femininos numa sociedade que
mantinha as mulheres como cidadãs de segunda classe.
A obra de Júlia Lopes de Almeida se insere no contexto histórico
oitocentista descrito por Stein e por Telles. A narrativa de Dona Júlia
(como era conhecida na época) vai além do papel designado ao feminino,
pois ela consegue, através de suas personagens, mostrar que as mulheres
possuem aspirações que extrapolam aquelas valorizadas pelo modelo
patriarcal. Ou seja, as personagens almeidianas aspiram, sobremaneira,
por educação e trabalho. As temáticas da educação e do trabalho
feminino foram o grande foco desta escritora carioca que escreveu uma
vasta produção ficcional, na qual se destacam obras infantis, romances,
contos, crônicas, peças teatrais e uma literatura didática dirigida,
particularmente, às mulheres.
Apesar do reconhecimento da crítica à vasta produção literária
de Júlia Lopes e da sua aceitação pela elite carioca oitocentista, após
sua morte em 1934, essa escritora tornou-se desconhecida, até mesmo
para professores e estudantes dos cursos de Letras, pois, “com o passar
do tempo Júlia Lopes de Almeida reduziu-se a esparsos registros em
compêndios de historiografia em uma ou outra reedição mais recente”.
(XAVIER, 1991, p. 08)
A crítica Lúcia Miguel Pereira reconhece a literatura de Júlia Lopes
de Almeida “como sorriso da sociedade” (PEREIRA, 1957, p. 259);
indicando um tipo de literatura que visava entreter sem questionar
os valores sociais. No entanto, a nossa leitura da narrativa almeidiana
se opõe à leitura crítica de Pereira acerca da obra, isto é, a de que
a vasta produção literária de Almeida teve por finalidade entreter a
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Literatura Feminina [141-150]
sociedade carioca. A nossa divergência à Pereira se respalda em uma
outra observação desta mesma crítica ao afirmar que a autora carioca
“é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela
extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida
literária...” (PEREIRA, 1957, p. 260).
A composição das personagens almeidianas são estrategicamente
concebidas com o diferencial de revelar/desvelar a condição feminina
no período oitocentista, como é o caso dos romances A Viúva Simões
(1897), A Intrusa (1908), A Falência (1901). Tais romances demonstram
uma elaboração mais complexa no que concerne à construção das
personagens femininas e, em especial, das protagonistas. Nessa linha,
ressaltamos também as coletâneas de contos como, Ancia Eterna (1903)
e de crônicas como Eles e Elas (1910). Em ambas, a autora se esmera
na criação de tipos vivenciando conflitos sócio-político-culturais nas
relações de gênero. Essas obras apresentam marcas de resistência na
perspectiva da crítica feminista por meio de uma análise de caráter
sociológico que envolve a literatura e os aspectos ideológicos que
influenciaram a escritora, sobretudo na elaboração do romance A
Viúva Simões.
Apesar de refletir os fatores do meio social, é necessário saber que
a obra literária não registra, mas evidencia sua existência, muitas vezes,
até exagerando a realidade e a investigação sociológica da literatura;
se não justifica a essência do objeto artístico, auxilia a compreender a
criação e o objetivo das obras. Objetivo este condizente com a escrita
oitocentista de autoria feminina e relevante do ponto de vista da crítica
feminista para se entender a condição feminina daquela época.
O discurso feminino do século XIX foi construído sobre os alicerces
patriarcais vigentes, sedimentados por rígidas relações de gênero. Por
isso, utilizavam-se estratégias discursivas que favoreciam sua aceitação
no meio literário. A negociação dissimulada da escrita feminina com
os valores burgueses vigentes facilitava a inserção da mulher-escritora
no espaço literário sem, necessariamente, entrar em choque com as
instituições e o “sermo paterno”.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
147
Romair Alves de Oliveira [141-150]
Compreender como se manifestam as formas de resistência, na
escrita de autoria feminina oitocentista, remete-nos à trajetória histórica
de mulheres escritoras no século XIX, no qual não somente a literatura
brasileira, mas o país vivia uma transição, de colônia à nação, de monarquia
à república. Entendemos que a resistência na obra de Júlia Lopes é
construída, estrategicamente, como forma de confrontar os valores e o
lugar do feminino na sociedade patriarcal carioca, imersa em uma profunda
transição estrutural, política e valorativa advinda da emancipação da
colônia. Ou seja, a sociedade carioca oscilava entre o velho e o novo e
precisava fazer os ajustes necessários a uma ex-colônia que se fazia nação,
a um projeto de modernidade que almejava transformar a cidade do Rio
de Janeiro na Paris tropical, entre outras imposições.
As personas, cujos pensamentos, ações e sentimentos mais
recônditos nos são oferecidos sem reserva na ficção almeidiana, suscitam
indagações sobre o modo como a arte representa a natureza humana.
Os conflitos entre o ser e o parecer vão construindo os elementos de
resistência nos enfrentamentos das relações de gênero. Nesse sentido, a
crítica feminista dá visibilidade à obra de autoria feminina, resistindo ao
princípio de neutralidade literária postulado pelo cânone que desvaloriza,
via de regra, os textos de mulheres escritoras. A crítica procura inserir a
escrita feminina no espaço acadêmico, levando em conta não somente
os aspectos literários, mas pontuando a importância das experiências
vividas no silêncio do espaço privado.
Os valores oitocentistas do patriarcado são discutidos amplamente
pela crítica feminista na medida em que promove a desconstrução do
patriarcado que considerava como natural a opressão da mulher pelo
homem e como universal a supremacia do ponto de vista masculino em
detrimento do feminino. São, portanto, reflexões em torno da tensão
das relações de gênero entre os sexos que sustentam, geralmente, as
análises de obras de autoria feminina.
Falar sobre resistência no âmbito da literatura significa lidar com
fatores políticos, sociais e culturais que farão a escrita ficcional interagir
com o mundo verossímil voltado para a sociedade e para os vários
148
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
Literatura Feminina [141-150]
aspectos que a englobam. Assim, as conexões entre a realidade social
e a estrutura literária se dão como uma das estratégias de resistência
na narrativa romanesca de Júlia Lopes de Almeida, mostrando que a
obra não é apenas a representação da realidade exterior, mas também
é uma associação entre o interno e externo, pois as representações só
têm existência completa através da interpretação dos resultados e da
construção da realidade que o (a) autor(a) pretende apresentar.
Portanto, os elementos utilizados em seu discurso, juntamente às
suas idéias de composição textual, levarão o leitor a notar que a escrita
literária não somente mostra os fatores sociais, mas também como o
texto se relaciona a estes fatores e, ainda, como se dá a representação
na conexão texto e contexto.
A resistência na obra literária almeidiana não resgata apenas o que
foi dito no passado distante; ela transcende o tempo da escrita e propaga
novas formas de pensar e transcrever uma realidade sincrônica envolta
em seus aspectos sociais e culturais, o que viabiliza “a possibilidade de
criar espaços de lutas e de agenciar possibilidades de transformação
em toda parte” (REVEL, 2005, p. 74). Resistência que, no parecer de
MOREIRA (2003), tem sempre uma perspectiva desconstrutiva, no
sentido de propor novas formas de pensar e transcrever uma realidade,
ou seja, ela, a resistência, como uma ferramenta da crítica feminista,
desorganiza a lógica e os valores do “status quo”, contrapondo-se à
rigidez e ao lugar do feminino nas relações de gênero.
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Romair Alves de Oliveira é docente do curso de
Letras da UNEMAT e da UFMT
150
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
A construção de identidades e ideologias:
um confronto islâmico e norte-americano
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari
Silvane Aparecida de Freitas
Resumo: O foco de interesse deste artigo é analisar as formações ideológicas
sobre o atentado ao World Trade Center ocorrido no dia 11 de setembro
em 2001, por meio das marcas enunciativas presentes nos discursos (cartas
do leitor e reportagens principais) das revistas VEJA E CAROS AMIGOS.
Fundamentando-nos, especialmente, nos conceitos advindos da AD
Francesa e dos Estudos Culturais, a partir de uma metodologia qualitativainterpretatista. Propusemo-nos a estudar as representações sociais desses
discursos, investigando as práticas discursivas ligadas à constituição da
identidade/representação do povo islâmico e do “ex-presidente” norteamericano. Assim, constatamos que os discursos das revistas analisadas
remetem-nos a posicionamentos sócio-histórico-ideológicos diferenciados.
Enquanto a Revista Veja utiliza-se de discursos “já-ditos” numa tentativa de
preservar a identidade americana. A Revista Caros Amigos utiliza-se desses
“já-ditos” para desconstruir essa imagem positiva do norte-americano.
Palavras-chave: discurso; ideologia; identidade; islâmico; ex-presidente
Abstract: The interest focus of this article is to analyze the ideological formations
about the attempt to World Trade Center occurred on 11th of September,
in 2001, by means of the enunciatives marks present in the speeches
(reader’s letters and main reports) of the magazines VEJA and CAROS
AMIGOS. Basing, especially, in French AD’s and Cultural Studies’ concepts,
by means of a qualitative-interpretative methodology. We proposed to study
the social representations of these speeches, investigating the discursive
practices linked to the constitution of identity/representation of the Islamic
people and the “north American former president. This way, we verify that
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
151
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172]
the analyzed magazines speeches remit us to different social-historicalideological positions. While the Veja magazine uses the speeches “nowsaids” in attempting to preserve the American identity. The Caros Amigos
magazine uses these “now-saids” to demolish this positive image of the
North American.
Keywords: Speech; ideology; identity Islamic; former president.
1- Introdução
Desde 2001, temos assistido e lido na mídia, em especial, nas
Revistas Veja e Caros Amigos sobre os acontecimentos de 11 de setembro;
no qual os discursos remetem ao “ex-presidente” dos Estados Unidos
da América (EUA) como o causador de tamanha “tragédia”, uma vez
que dizia ser o “Todo-poderoso” de um império inabalável ou ao povo
islâmico como sendo “terrorista, pessoas sem coração, frias, inimigos a
qualquer hora”. Tal fato nos leva à tentativa de entendê-los pelo viés
discursivo, pois destes discursos não só sobressaem os efeitos de sentido,
mas também a construção da imagem/identidade/representação social
tanto do povo islâmico como do povo norte-americano perante as
sociedades mundiais. Tendo em vista que nessas revistas, estes discursos
se representam como verdades absolutas e estas passam a ser vistas como
instituições inspiradoras de credibilidade, tal como postula Coracini
(2007), trabalham no inconsciente do público de forma que deixam vivas
determinadas memórias discursivas e passam a ser mantidas no público
por meio de repetição, assim, asseguram suas condições de construtoras
de estereótipos e representações (BHABHA, 1998).
Diante destas colocações, emerge a necessidade de observar/
problematizar a representatividade dos “atores” envolvidos no
acontecimento de 11 de setembro de 2001 nos discursos que circularam
na mídia (Veja de nº. 1718, ano 34, nº. 37 de 19 de setembro de 2001
e Caros Amigos de nº. 55, ano V de outubro de 2001, num segundo
momento de análise), por meio das reportagens principais e das cartas
do leitor, visando a compreender esses discursos, analisar as práticas
discursivas ligadas à constituição da identidade/representação do povo
152
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
islâmico e do “ex-presidente” norte-americano. Para isso, necessário se
faz, neste artigo, aprofundar os conhecimentos sobre alguns conceitos da
Análise do discurso que serão fundamentais para este trabalho, tais como:
discurso, efeitos de sentido, relações de poder, sujeito, heterogeneidade,
identidade, representação social, ideologia e relações de poder.
2- Pressupostos teóricos
Nesta pesquisa temos como aporte teórico os pressupostos de duas
áreas do conhecimento: Análise do Discurso de Linha Francesa (AD) e
os Estudos Culturais.
O discurso, na perspectiva da AD de linha francesa, não deve ser
estudado desvinculado de suas condições de produção (CPs). Nessa
perspectiva, Orlandi (2001, p.16) afirma que é necessário estabelecer
uma ligação entre a linguagem, a história e a ideologia, ou seja, relacionar
a língua com sua exterioridade. Assim, emerge a necessidade de estudar
as CPs do discurso norte-americano em contraponto com o islâmico
divulgados pelas mídias escritas (Veja e Caros Amigos) em relação ao
dia 11 de setembro de 2001.
Gadet (1988, p. 81-83) retomando Pêcheux, ressalta que há
uma série de formações imaginárias que determinam o lugar que o(s)
interlocutor(es) do discurso atribui(em) a si e ao outros, isto é, a imagem
que fazem do lugar que ocupam e do lugar do outro, bem como a
imagem que o(s) interlocutor(es) faze(m) do referente.
De acordo com Foucault (2005, p. 9), as condições de produção
do discurso “é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e
redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função
conjurar poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade”. Nesse prisma, deparamonos com o conceito de interdição como algo que regulariza o que pode
e que deve ser dito em relação às condições de produção.
Já no que concerne o discurso, Foucault (1972, p. 147) postula que
o discurso deve ser entendido como o conjunto de enunciados que de-
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Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172]
rivam de uma mesma formação discursiva. Nas palavras do autor, “é um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo
e no espaço, que definiram, em uma dada época e determinada área,
social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício
da função enunciativa”.
Desse modo, as condições de produção de discurso, não podem
ser compreendidas, especificamente, como sendo a situação empírica e a
representação no imaginário histórico social do discurso que está em jogo
(CARDOSO, 2003, p. 39). Por isso, o discurso marca de modo implícito
a posição do sujeito, regulando e perpassando-o por meio do local de
produção do discurso e pela formação discursiva no qual se inscreve.
Nesse sentido, o discurso enquanto saber marca poder, “o poder
mostra alternância entre uma positividade e uma negatividade que lhe
é atribuída, mantendo a idéia de prosperidade e exercício de um único
soberano, ou de uma minoria sobre uma minoria”. (GREGOLIN 1988,
p. 118, apud GUERRA, 2008).
De acordo com Foucault (2006, p. 14), “as relações de poder são
intrincadas em outro tipo de relação - de produção, de alianças, de família, de sexualidade em que desempenham – em que desempenham um
papel ao mesmo tempo condicionante e condicionado.” (ibid, p.248).
Portanto, na visão do autor (1979, p. 241) é “a partir do momento
em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Nunca seremos aprisionados pelo poder, pois podemos sempre
modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma
estratégia precisa”, ou seja, as relações de poder estão emaranhadas
em relações sociais.
Ainda nesta perspectiva, para tratarmos de representação social,
adotamos a teoria de Pêcheux (1990, p.82) ao postular que “o que
funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias
que designam o lugar que destinador e destinatário se atribuem cada
um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e
do lugar do outro”.
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A construção de identidades e ideologias [151-172]
Já em relação ao conceito de sujeito do discurso, Pêcheux (1988,
p. 188) postula que todo indivíduo só se torna sujeito quando é interpretado por uma idéia lógica, ou seja, passa a ser assujeitado e fala do
interior de uma formação discursiva (FD), regulada por uma formação
ideológica (FI), pois segundo o autor, as palavras ganham sentido em
conformidade com as formações ideológicas, os sujeitos inscrevem o
sentido de uma palavra, expressão ou até mesmo de uma proposição a
cada enunciação; são os sentidos dependentes da inscrição ideológica
da enunciação, de um processo histórico e social.
Dessa maneira, segundo Guerra (2008), o sujeito é cindido, interpelado pela ideologia, dotado de inconsciente e sem liberdade discursiva,
devido ao fato de que o sujeito é atravessado por uma memória, sentidos
já cristalizados na sociedade, no imaginário coletivo.
Em consonância com os autores citados anteriormente, Orlandi
(1999) afirma que o individuo é interpelado em sujeito pela ideologia para
constituir seu dizer, ou seja, os discursos produzem efeitos de sentido, toda
vez que o sujeito enuncia, pois estes revelam o lugar social, a posição de
onde fala, e seus discursos são perpassados por outros discursos.
Nesse sentido, Orlandi (1992, p. 4) refere-se ao interdiscurso como
sendo a “memória do dizer que abrange o universo do dizível e que
fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidência e de
significações percebidas, aceitas e experimentadas”. Entendemos que o
sujeito constrói as representações da realidade, conforme o lugar que fala,
a partir de suas experiências de vida e sua ideologia.
Para Bakhtin (1992), a ideologia é um conjunto das interpretações da
realidade social e natural e dos reflexos que o sujeito armazena em seu cérebro
e se expressa por meio de palavras ou outras formas signícas, pois segundo o
autor, “o signo é ideológico por excelência, é produto da interação social; só
aparece entre indivíduos socialmente organizados. (BAKHTIN, 2003)”.
Para o autor, a ideologia é produzida conforme as condições sóciohistóricas, numa relação de linguagem e exterioridade, pois não há
sentido sem interpretação e diante de qualquer objeto simbólico (signo),
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o homem é condicionado à interpretação. Tal como afirma Orlandi
(2007, p.31), a interpretação de sentido é determinada pela relação da
linguagem com a história e com seus mecanismos imaginários. Portanto,
são as formações discursivas localizadas em uma formação ideológica
dada, a partir de uma relação de classe, que determina o que pode e
deve ser dito a partir de uma conjuntura social. (PÊCHEUX, 1988).
Já no que tange ao conceito de identidade, nos apropriaremos dos
pressupostos teóricos de Hall (2000, p.9), pressupostos advindos dos
estudos culturais:
A identidade é assim marcada pela diferença; a diferença é marcada
pela exclusão [...] Em certo sentido, somos posicionados e também nos
posicionamos a nós mesmos de acordo com os “campos sociais” nos quais
estamos atuando (p.30).
Nesse prisma, segundo o autor, não existe uma identidade plena,
pois o sujeito é um fragmentado, não possui uma identidade fixa,
essencial ou permanente, mas sim instâncias diferentes assumem
identidades diferentes, não sendo mais unificadas em torno de um “eu”
coerente. Podemos dizer que as identidades são construídas social e
culturalmente e existem diversas identidades dentro de nós, sendo todas
contraditórias e em constante deslocamento.
Em suma, os sujeitos constroem as representações da realidade de
acordo com o lugar que enuncia, com as experiências vivenciadas e sua
ideologia. Os sujeitos, segundo Grigoletto (2006, p. 27), as identidades são
construídas na relação com o outro, dentro das concepções da sociedade
e evoluindo com ela. Os sujeitos possuem identidades fragmentadas e
proteiformes que se mobilizam num mundo pós-moderno midiatico,
pois as referências também são fragmentadas e cambiáveis.
3- As Marcas Discursivas
Partindo desses pressupostos, passaremos a análise de recortes
retirados da mídia Revista Veja nº. 1718, ano 34, nº. 37, 19 de
setembro de 2001 e da Revista Caros Amigos, anoV, nº. 55, de outubro
de 2001:
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A construção de identidades e ideologias [151-172]
No primeiro recorte selecionado (E1), retirado da Revista Veja,
temos:
E1: Dez anos atrás, depois do colapso da União Soviética, o presidente
George Bush, pai de George W., anunciou uma nova ordem mundial, cuja
base era o triunfo dos valores americanos e da democracia liberal. Parecia
que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comercio global.
(VEJA, 2001, p. 50).
Em (E1), o sujeito enunciador nos remete às formações discursivas
do capitalismo, da história, do discurso jurídico (oficial) e da política
mundial, ao relatar que “após o colapso da União Soviética, o pai de Bush
anunciou uma nova ordem mundial”. Por meio do marcador temporal
“dez anos atrás” e do adjetivo “nova”, observamos na ordem do discurso
que o passado é retomado no presente da enunciação para confirmar que
país conquistou um poder inabalável - “todo poderoso” - numa transição
do antes e do agora (de como era este país antes do pai Bush assumir o
comando e do agora, depois da ascensão deste ao poder). No tocante
ao enunciado, estas formações discursivas retomam momentos históricos
anteriores, os “já ditos” (FOUCAULT, 2002) como sendo “formações
discursivas emergentes, pois são constitutivas de diferentes formas históricas
e carregadas de transformações, em que o discurso do outro traz as marcas
da Tradição, da Verdade, da Justiça e da Lei.” (GUERRA, 2010).
Como pode ser observado aqui, recorrendo ao sentido do verbete
“anunciou”: temos os seguintes significados: “dar a conhecer; noticiar,
pôr anúncio de; indicar, prenunciar, promover e custear a divulgação
de anúncio.” (FERREIRA, 2001, p. 48).
Nesse sentido posto, o enunciado atribui ao sujeito presidente
um poder de ditar as regras, ordens no mundo como sendo aquele
que tem a voz absoluta, de verdade, até mesmo de um “anjo”, o que
nos remete ao efeito de sentido de “anunciação” no discurso religioso,
bíblico, reportando-nos ao “dia fixado pela Igreja para se comemorar
a Anunciação à Virgem Maria, pelo Arcanjo Gabriel, no mistério da
encarnação”. A imagem de Bush está associada, então, à condição de um
ser adivindo de Deus para os Americanos e para o mundo capitalista.
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157
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Dessa maneira, os itens assinalados anteriormente, remetem ao
efeito de sentido de que o presidente anunciou depois de dez anos uma
nova verdade, um novo tempo: que os EUA não se abalavam por nada,
eram a maior potência econômica no mundo, que nenhum outro país
seria capaz de destruir este império, pois quem não estive aliado a ele,
seria destruído. O sujeito-enunciador apropria-se, então, desse discurso,
numa tentativa de apagar a fragilidade do país anterior ao fato.
Neste sentido, esta voz legalizadora e legitimadora é atravessada
pelo discurso jurídico, oficial de autoridade e constrói uma identidade
de um sujeito poderoso, supremo, dominador. Tal como Pêcheux (1990,
p.82) postula “o que funciona nos processos discursivos é uma série de
formação imaginária que designa o lugar que destinador e destinatário
se atribuem, cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de
seu próprio lugar e do lugar do outro”.
Além disso, estão imbricadas neste enunciado as formações ideológicas do dominador e do dominado, pois essas vozes são constituídas no
imaginário coletivo. Os discursos se constituem nos “já ditos” (PÊCHEUX,
1988), na repetição, nas paráfrases de conceitos presentes no imaginário
coletivo e até mesmo no senso comum como estereótipos. (GUERRA,
2010). O sujeito-enunciador retoma os estereótipos de o pai de Bush foi
o responsável pela ascensão econômica do país para continuar mantendo
a imagem do país enquanto superpotência, de um país “todo poderoso”,
mesmo depois dos acontecimentos de 11 de setembro.
Nesse prisma de dominador e dominado, recorremos a Foucault (1979)
ao postular que “o poder não existe, existem sim práticas ou relações de
poder. O poder é algo que se exerce que se efetua, que funciona, que se
dissemina por toda a estrutura social”. Segundo Gregolin (1988, p. 118,
apud GUERRA, 2008), “o poder mostra alternância entre uma positividade e
uma negatividade que lhe é atribuída, mantendo a idéia de prosperidade e
exercício de um único soberano, ou de uma minoria sobre uma maioria”.
Neste movimento interpretativo do El, o dominante e a voz condicionante era a do presidente, cuja representação do imaginário coletivo
era do sujeito supremo, aquele que tinha voz oficial, que afirmava a
158
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A construção de identidades e ideologias [151-172]
seus “súditos”, aos condicionados, enquanto sujeitos dominados que
a humanidade dependia desse triunfo da economia americana e da
democracia liberal, que somente “eles”, os americanos, poderiam fazer
isso ou colocar tudo a perder.
Em consonância, aqui, com os significados dos verbetes “triunfo”,
“democracia” e “liberalismo” retirados do dicionário38 (FERREIRA, 2001),
observamos que o “triunfo”, “a vitória” dos americanos faria com que toda
a humanidade também se beneficiasse com esta vitória. E que só restava
à humanidade promover tal acontecimento aos EUA, ou seja, o discurso
do sujeito dominante “forçava” os líderes dominados dos outros países a
participar dessa “luta”, por meio de um discurso que legitima seu governo,
o democrático, pois este era o discurso legitimador, oficial e supremo.
Vejamos no enunciado “Parecia que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comercio global”, o significado do verbete
“derradeiro”: “último, extremo, final” (FERREIRA,2001, p. 210), que
reafirma essa relação de poder, num efeito de sentido “ou é agora ou
nunca mais” como se “não percamos essa chance e façamos vitória contra
aqueles que não seguem nosso regime democrata liberal”, ou seja, o
presidente utiliza-se do discurso de autoridade para atrair o povo e os
demais países, como se houvesse uma “guerra” e precisasse vencê-la,
uma guerra econômica de todos e não apenas dos líderes dos EUA.
Verificamos, neste contexto, que a identidade/representação do
presidente Bush é resgatada a partir da imagem coletiva positiva que
o pai George Bush obtivera em sua trajetória política, enquanto líder
governamental dos EUA, o qual fora responsável em tornar os EUA a
maior potência econômica mundial. Assim, tal como afirma Foucault
38
triunfo: “entrada pomposa, solene, dos generais vitoriosos; vitória; êxito brilhante”
(p.688).
democracia: “governo do povo, soberania popular; doutrina ou regime popular baseado
nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa do poder” (p208).
liberalismo: “atitude dos que defendem a propriedade privada, as reformas sociais
graduais, as liberdades civis e a liberdade de mercado (p.425).
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159
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172]
(2002, p.57), “os discursos são conjuntos de acontecimentos discursivos
regulados e descontínuos uns em relação aos outros”. Em outras palavras, é a exterioridade associada às regularidades discursivas que vão
representar as condições sócio-históricas, nas quais estas se inscrevem
na materialidade linguística (GUERRA, 2010 p.46; CARDOSO, 2003).
Portanto, segundo Hall (2000, p.9) “a identidade é assim marcada pela
diferença; a diferença é marcada pela exclusão (...)”. Neste caso, o presidente
é marcado pela posição de líder oficial, do detentor do poder, do país que
tem mais força, enquanto o povo, os países que dependem deste ficam à
margem, à exclusão. Estes, por sua vez, são marcados por uma identidade/
representação de “fracos”, “incapazes” sozinhos. São essas formações ideológicas constituídas nessa relação de classe que determinam o que pode
e dever ser dito a partir dessa conjuntiva social. (PÊCHEUX, 1988).
Desse modo, retomando ainda, o enunciado “uma nova ordem
mundial, cuja base era o triunfo dos valores americanos e da democracia
liberal. Parecia que o derradeiro desafio da humanidade era promover o
comercio global”, observamos a seguinte formação ideológica, buscando
na memória do discurso não democrático dos russos, que o triunfo dos
EUA foi marcado pela luta, disputa do mercado mundial, devido ao fim
do sistema totalitário no colapso da União Soviética, e a criação de um
poder centralizado na Rússia, que levaram as repúblicas soviéticas a se
desligarem e o poder mundial a entrar em crise também.
Neste sentido, Gadet (198, p. 81-83) fazendo uma releitura de
Pêcheux, postula que as formações imaginárias determinam o lugar
que o(s) interlocutor(es) do discurso atribui(em) a si e ao outros, isto é,
a imagem que fazem do referente.
No intuito de prosseguir o nosso foco analítico com relação às representações que a mídia nos repassa, analisemos o recorte retirado da
Revista Caros Amigos, anoV, nº. 55 de outubro de 2001:
E2: Bush e seus assessores entendem que só há uma maneira de recuperar
a economia dos Estados Unidos e manter o poder sobre o mundo. Realizar
a nona cruzada. Por isso, a paz não lhes interessa, caso contrário, não
manteriam no poder um terrorista e criminoso como Sharon, o Ariel que
160
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lava mais branco. (p.20).
E3: Hegel explica a guerra dizendo que não existe juiz do mundo. (...) já
Fichte escrevera que seria “inevitável a guerra contínua entre os Estados,
pois entre eles, ao contrario do que ocorre entre os cidadãos de um Estado
(...), jamais se assegura o reino de um direito firme”. (...) “incorporar sob
ele a espécie inteira é conforme a um instinto enraizado por Deus na
alma dos homens”. Nação que não se expande encolhe. Essa é a norma
a ser obedecida pelos países que não desejam ser escravos. Benefício
pedagógico das guerras modernas, diz Fichte, é que nelas europeus ensinam
aos povos bárbaros “de outras partes do mundo, pelo constrangimento,
a obediência do domínio civilizado. Combatendo aqueles bárbaros, a
juventude européia se fortifica”. Na cena internacional “não há lei sem
direito, exceto o direito do mais forte” (p.12).
E4: Os filósofos produziram a razão guerreira dos Estados europeus e
definiram os slogans repetidos pela CNN e pelos governantes imperiais. O
elogio da força nas relações externas, o desprezo pelos “povos bárbaros”
que mereceriam a morte pelas mãos dos civilizados, a segurança nacional
e axiomas conexos foram idealizados por gerações de teóricos europeus
antes do século 20. (...) Cada Estado, define ele, age através da força e
dos espiões, aranhas cujas redes envolvem os inimigos. (p. 12).
E5: O CHE GUEVARA DO ISLÃ. O saudita Osama bin Laden, provável
mentor de uma tragédia anunciada, é a encarnação do mal para os
americanos. Mas boa parte do mundo muçulmano o considera um ídolo.
(Revista Veja, edição de 26 de setembro de 2001, páginas 60 e 61, apud
Revista Caros Amigos, p. 27).
Não poderemos entender, produzir sentidos desses fragmentos
sem nos remeter a acontecimentos anteriores, às formações discursivas
de quem diz e é dito nestes enunciados. E2 remete-nos ao discurso
político, pois para Bush e seus assessores a única forma de conduzir
uma negociação ou uma estratégia seria a de efetuar mais uma cruzada
(expedição militar), no caso, a de número nove (nona) contra os infiéis,
os bárbaros – os islâmicos – para garantir o poder que os EUA exercem
sobre os outros países, mesmo que isso acabe com a paz mundial.
Observa-se, por meio dos itens lexicais “Estados, cidadãos de um
Estado, norma, direito firme”, que o sujeito-enunciador utiliza-se do
interdiscurso: de discursos filosóficos e do discurso legal constitucional.
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Ao se referir ao Estado (EUA), enquanto legitimador de direitos, cujas
normas são ditadas pelos três poderes que ele organiza e estrutura,
tendo por finalidade manter a ordem no país, na nação e até mesmo no
mundo. Assim, entende-se que os países que não forem ainda civilizados,
ou seja, não estiverem aliados aos EUA, serão guerrilhados, postos em
constrangimentos, para assim, obedecerem ao líder.
Segundo Bakhtin (2003, p. 32) “um signo não existe apenas como
parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra, pois todo
signo está sujeito aos critérios de uma avaliação ideológica”. O sujeitoenunciador busca por meio do interdiscurso desconstruir os discursos
favoráveis aos EUA que circularam nas mídias internacional e nacional,
recorrendo à filosofia humanística e jurídica. Utiliza-se, ainda, de uma
formação discursiva de ordem institucional pedagógica, a escola. O
sujeito-enunciador atribui, desloca este sentido para os EUA, como sendo
a escola que ensina o que é ser civilizado, que prepara o cidadão para
viver em comunidade. Para tanto, basta ensinar aos países “bárbaros”,
sob a lei do mais forte, em que não há juiz para ditar as regras, quem
não quiser servir de escravo, siga os ensinamentos dos EUA.
De acordo com Foucault (1973, p. 97), o discurso é um conjunto
de enunciados regulados numa mesma formação discursiva, ou seja, “é
um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço que definiram em uma época dada, para uma área
social, econômica, geográfica ou linguística, as condições da função
enunciativa”.
Neste sentido, a representação que a revista Caros Amigos faz do
“ex-presidente” Bush é de um político extremamente capitalista, egoísta
e tirano, que de democrata liberal não possui nenhuma característica.
Já em relação ao povo islâmico, vemos que a mesma revista tende a
questionar os discursos negativos apresentados tanto pela mídia brasileira (como a revista Veja), quanto pela mídia internacional (como a
CNN), trazendo para o leitor discursos que foram silenciados em virtude
do capitalismo - lucro - para a qual estas mídias trabalham. Tal efeito
de sentido pode ser constatado em E2 “a paz não lhes interessa, caso
162
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
contrário, não manteriam no poder um terrorista e criminoso como
Sharon, o Ariel que lava mais branco”. Ao apontar Sharon, como um dos
integrantes do governo Bush, o qual está no comando do poder mesmo
sendo um “criminoso” e “terrorista”, temos uma comparação irônica.
O Ariel, sabão em pó que lava mais branco, é capaz de eliminar toda
a sujeira. Assim, ao comparar Sharon com o sabão Ariel, temos que,
da mesma forma, Sharon, experiente em terrorismo e criminalidade,
também é capaz, pode eliminar/derrotar toda a sujeira que contamina
os EUA, que são os povos bárbaros.
Em E3, percebemos que, por meio da heterogeneidade mostrada
e não-mostrada, o sujeito-enunciador retoma os dizeres dos filósofos,
para contra-argumentar a favor daqueles que são silenciados e vistos
unicamente como “povos bárbaros” – os islâmicos. O que corrobora
com o que postula Authier-Revuz (1990), toda fala é heterogênea, é “a
representação que um discurso constrói em si mesmo de sua relação
com outro”, pois o sujeito é dividido entre o consciente e o inconsciente. O sujeito não é a fonte absoluta do significado, do sentido, não é
a origem, pois este se constitui por falas de outros sujeitos. O sujeito é
o resultado da interação de várias vozes (eu-outro), da relação com o
sócio-ideológico (BAKHTIN, 2003).
O sujeito-enunciador no dizer da imprensa deve dizer a “verdade”,
correspondendo ao desejo de conhecimento do leitor: a imprensa se situa
a partir de uma imagem de credibilidade perante a sociedade, perante seu
público. Diante do exposto, segundo Sargentini; Navarro-Barbosa (2004,
p. 123), os “acontecimentos discursivos utilizados pelas mídias tendem a
construir uma nova identidade remetendo a elementos do passado, não
pelo o que neles está dito, mas pelo modo como esse já-dito neles retorna”,
o que faz ecoar a máxima de Foucault (1995, p. 13) de que “o novo não
está no que é dito, mas no acontecimento do seu retorno”.
Ao recorrer à memória discursiva que Sharon foi um “terrorista” e
que este está aliado a Bush, a revista tenta
mostrar como os americanos são capazes de “qualquer coisa” para manter seu poder, e afirmar
que terroristas só existem entre os islâmicos, a revista tenta com esse
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discurso mostrar que, por trás dos discursos americanos, há uma voz
silenciada pelo seu capitalismo exarcebado, nesta disputa pelo poder, a
voz dos islâmicos.
Comparando os recortes dos enunciados retirados das duas revistas
Veja e Caros Amigos, observamos que os discursos utilizados sobre os
“terroristas” e o “ex-presidente” Bush se diferenciam, pois a representação destes atores também são diferentes: Bush é visto como o filho do
grande construtor da maior potencia econômica mundial (revista Veja)
e como aquele que não visa a paz, não mede esforços para manter seu
“império” (revista Caros Amigos). Já com relação ao povo islâmico, a
representação que se tem são de “ângulos” diferentes, pois nos discursos
analisados na revista Veja, ele é o “terrorista” sem distinção de país e
religião, basta ser islâmico para ter esta característica. Enquanto, na revista Caros Amigos, o islâmico é representado, a partir de grupos étnicos
aos quais pertencem, não há um único islâmico, mas sim vários povos
com culturas diferentes. São vistos de acordo com as diversas formações
discursivas que perpassam a cultura islâmica.
Segundo Grigoletto; Magalhães; Coracini (2006), as identidades são
construções sociais e culturalmente situadas, são formadas na relação
inescapável e necessária com a alteridade. “As identidades dos sujeitos
são fragmentadas e proteiformes em constante mobilidade num mundo
pós-moderno midiático, porque as referências também são cambiantes
e fragmentadas”. Neste caso, as revistas, os sujeitos-enunciadores constroem suas representações sobre a realidade, os fatos, de acordo com o
lugar que fala, com suas experiências e sua ideologia.
Isso fica mais evidente no recorte a seguir:
E6: “Hoje, vivemos sob a ditadura dos veículos de comunicação, cuja
representante maior é a empresa norte-americana CNN (...) Quem mais,
a não ser um governo arrogante, apoiado por uma imprensa títere, a falar
em ataques “cirúrgicos” tentando equiparar assassinos a uma das profissões
mais nobres como a dos médicos? É muito mais do que uma questão de
semântica. É a cultura do dead or alive”. (Caros Amigos, 2001, p. 20).
E7: “Usando metralhadoras. Os norte-americanos iniciaram a sua prática,
malsucedida, de criar lideranças armadas que no início a eles se submetem
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A construção de identidades e ideologias [151-172]
e depois rejeitam os seus ditames. Eles geraram Saddam Hussein e outros,
chegando a Bin Laden. A guerra recomeça no território afegão. Ela exibe
o duplo fracasso americano de impor o mando pelas “elites nacionais”
subordinadas ou criando líderes que deveriam ser autômatos. Mesmo com
a óbvia inutilidade, para os EUA, em prazo longo, de tal política, os cérebros
acadêmicos e jornalísticos que formam o imaginário norte-americano
insistem na violência física. Talvez sirva de consolo saber que Hegel,
após afirmar a inexistência de um juiz mundial, indique algo estratégico:
os impérios se sucedem e muitas nações perdem hegemonia, devido à
mera contingência, não prevista pelos seus governantes. Para desgraça dos
povos livres e pobres, e proveito dos atuais senhores do mundo. (Caros
Amigos, 2001, p. 20).
E 8: “Quem é bin Laden? Nada, eles não sabem nada, nada querem saber.
Vês esses ignorantes, eles dominam o mundo”. “Vocês serão iguais se
puderem ser diferentes sem estar ameaçados de tratamento desigual”. A
luz vem do Oriente, já diziam os sábios. “No Alcorão está escrito que quem
salva uma vida salva a humanidade e que Deus não mudará a condição
dos homens se eles não mudarem o que está neles. Não creio que o
atentado tenha sido praticado por muçulmanos, mas, ao desencadear a
nona cruzada, Bush estará cometendo uma agressão que provocará um
efeito dominó mais devastador ainda do que o proposto pelo ex-secretário
de Estado Henry Kissinger durante a guerra do Vietnã. E o mundo jamais
será o mesmo”. (Caros Amigos, 2001, p.20).
A ideologia do sujeito-enunciador marca a posição social que a revista
tem, assim tece a imagem do “ex-presidente”, como um governante insolente, orgulhoso, pois “ex-presidente” Bush usa de discursos “enganosos”,
compara assassinos a cirurgiões. Usa-se de conceitos do discurso médico,
desloca conceitos na tentativa de afirmar que o óbvio não é o óbvio, abrandando a vulnerabilidade dos EUA, na garantia de manter a imagem do país,
como maior potência mundial. O sujeito-enunciador tenta desconstruir a
imagem de verdade dos EUA, a imagem de que os EUA age em nome do
bem comum. Ao buscar na memória discursiva que os EUA é o país poderoso em virtude da grande produção bélica, que intimida aos demais países
tidos como “inferiores” ou que resistem a esta superioridade.
Segundo Charaudeau (2009, p. 61) “no discurso informativo, o status da verdade é da ordem do que já foi: algo que aconteceu no mundo,
e é esse novo conhecimento proposto no instante de sua transmissão-
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consumação, que vai dar credibilidade aos fatos transmitidos”. Neste
sentido, o sujeito-enunciador afirma que os EUA foi quem criou Bin
Laden e Saddam Hussein, por seu tratamento desigual e ambicioso. Na
tentativa de desconstruir a imagem poderosa, dá voz ao islâmico, num
discurso de defesa, ao buscar o Alcorão, para argumentar a seu favor e
afirmar a identidade destes, não como sendo todos terroristas, mas para
dizer que possui uma cultura que preserva também a paz mundial e a
vida, tal como afirma os norte-americanos.
Analisemos, agora, a ideologia da revista Veja nos recortes a
seguir:
E9: É preciso também eliminar os santuários, os sistemas de apoio e acabar
com os Estados que patrocinam o terrorismo. (VEJA, 2001, p.50).
E10: A única superpotência tornou-se alvo de fanáticos dispostos a tudo.
Como a nação mais poderosa do planeta pode proteger-se das atrocidades
terroristas? - subsecretário de Defesa, Paul Wolfowitz. (VEJA, 2001, p.
50).
E11: Só se pode imaginar como será travada a guerra da superpotência
contra terroristas que escondem nos grotões do Terceiro Mundo. Com o
fim das ideologias e depois dos atentados, o planeta está agora obcecado
pela segurança. (VEJA, 2001, p.50).
Como podemos ver, a ideologia do sujeito-enunciador da revista
Veja se contrapõe à ideologia da revista Caros Amigos como apresentado
acima, pois os itens lexicais “é preciso também eliminar os santuários,
acabar com os Estados que patrocinam o terrorismo”, marcam uma
imagem positiva dos EUA, na qual a ideologia do sujeito-enunciador é
mostrar que os EUA foram atingidos por um grupo de pessoas religiosas
fanáticas (os islâmicos) que praticam o mal, tendo apoio de outros países
que promovem o terrorismo e que tal fato não foi provocado pelos EUA.
Sendo assim, este se exclui de qualquer culpa, não bastaria eliminar
apenas as pessoas “terroristas”, mas há que destruir os lugares onde estes
habitam (os santuários).
Nesse sentido, esse discurso nos remete à memória discursiva, ao
ditado popular: “é preciso cortar o mal pela raiz”. Como poderia permitir
que a única superpotência fosse destruída por grupos fanáticos capazes
166
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
de até perder sua própria vida por um “Deus” e matar tantos inocentes
e nada a ser feito pela honra desses inocentes mortos? Como se pode
observar nos trechos “só se pode imaginar como será travada a guerra da
superpotência contra terroristas que escondem nos grotões do Terceiro
Mundo; o planeta está agora obcecado pela segurança”.
Nota-se nestes discursos tal como foi apresentado, que a Revista
Veja faz uma representação do povo islâmico, utilizando-se de discursos
negativos que os marginalizam, que os colocam como subumanos que
vivem em grotões, em lugares profundos nas cavernas, na escuridão,
afastados como bandidos, isolados do mundo por serem perigosos. Fato
que corrobora com a preservação da imagem norte-americana, mesmo
diante da vulnerabilidade da maior potência.
Portanto, podemos dizer que as revistas articulam cada uma a seu
favor, por pontos de vistas diferentes, cada qual com sua ideologia,
buscando por meio de seus discursos de “verdade”, representar os fatos.
Assim, a revista Veja mostra uma imagem positiva do ex-presidente Bush
e negativa dos islâmico-muçulmanos. Enquanto a revista Caros Amigos
contrariamente a esta, passa uma imagem negativa do “ex-presidente”
Bush e desloca os islâmico-muçulmanos para uma posição de igualdade,
imagem positiva, num discurso de defesa.
Continuando nossa análise, apresentamos alguns recortes que foram
retirados das cartas do leitor da Revista Caros Amigos, p. 5, de outubro
de 2001 e da Revista Veja de 19 de setembro de 2001, p.29:
E12: Perdemos a razão nesse dia 11 de setembro, foi um ataque de
1,99 dólar contra a bilionária geringonça bélica americana. Partindo
desse pressuposto, torçamos para que alienígenas invadam o planeta
estrupício para nos ensinar, com letras grandes e figurinhas para colorir,
a teoria e prática da civilização, módulo básico”. ( Revista Caros Amigos,
2001, p.5).
E13: O ataque sofrido pelos Estados Unidos é covarde, absurdo, sem
precedentes, apocalíptico! Qual seria a verdadeira intenção do ataque aos
Estados Unidos? Destruir a imagem americana? Muito pelo contrário. Estão
com os americanos, hoje, a opinião pública mundial de países poderosos,
talvez até a Rússia e a China”. (Revista Veja, 2001, p. 29).
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
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Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172]
Nota-se que E12, no sintagma verbal “perdemos a razão”, traz
marcas de subjetividade, nas quais o sujeito-enunciador leitor generaliza
o fato como um absurdo nunca visto antes, ou seja, associando essa
idéia de absurdo em relação ao acontecimento de 11 de setembro, ao
ataque das torres gêmeas.
Entende-se também, que ao usar os itens lexicais quantificadores
“1,99 dólar” e “bilionária bélica americana”, o sujeito-enunciador leitor
da Revista Caros Amigos ironiza a grande potencia mundial, reativando a
memória discursiva de que os EUA é o grande produtor de armamento
bélico e, por isso, é considerado como o “todo poderoso”. Havia
inúmeros projetos de investimentos bélicos, redes antimísseis, serviços
de espionagem, agentes no exterior, sistemas de vigilância eletrônica por
satélites, projetos como a CIA. Eram gastos 30 bilhões de dólares por ano
em serviços de inteligência de alta tecnologia. Nesse sentido, o sujeitoenunciador leitor tenta ridicularizar que houve tantos investimentos, mas
que o “todo poderoso” também era vulnerável.
Em consonância com esse argumento, observamos que sujeitoenunciador leitor, ao usar os verbos na primeira pessoa do plural (nós),
remete-nos ao efeito de sentido de que ele se eximir de sua condição
subjetiva singular (dele mesmo), tenta dividir responsabilidade do que
diz a outrem, significando que não é apenas ele quem pensa assim, mas
outros também pensam da mesma forma.
O sujeito-enunciador leitor, nesta perspectiva, tenta desconstruir a
imagem dos EUA, ao generalizar o acontecimento de 11 de setembro,
como se muitos outros leitores estivessem entendendo da mesma forma,
afirmando que o poder está relacionando com o armamento bélico dos
EUA, e procede a sua resistência, assim ao mesmo tempo em que o
sujeito se identifica com a revista, ele se desindentifica. Fato este que
corrobora com o que postula Foucault (2006, p. 248) “as relações de
poder não se restringem à forma da interdição e do castigo, mas sim, se
exercem de diversas formas”, ou seja, onde há “relação de poder, há uma
possibilidade de resistência, pois jamais somos aprisionados pelo poder,
podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas
e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 1979, 241).
168
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
Neste prisma, observamos que o sujeito enunciador leitor é
influenciado pela ideologia da revista, pelo seu discurso de verdade,
mas ao mesmo tempo, deixa de ser influenciado, pois suas crenças, sua
ideologia o faz com que se esquive dessa verdade construída pela revista,
como um ponto de resistência.
O uso do item lexical “alienígenas” por parte do sujeito-enunciador
leitor está atrelado à crença de que os alienígenas são os “únicos”, que não
estão “contaminados” pelas ideologias das civilizações que habitam esse
planeta. Nesse caso, entende-se que somente os alienígenas poderiam
combater o mal que causou a destruição do “planeta estrupício” (os
EUA), os “únicos” com poderes para lhes ensinar o que está na ordem
discursiva da escola, enquanto instituição alfabetizadora.
Já em E13, temos um sujeito-enunciador leitor que ao mesmo
tempo que se deixa influenciar pela ideologia da revista, também resiste,
ou seja, ora se identifica com o discurso de “verdade” atribuído ao dito
pela revista, ora se desindentifica tentando justificar o acontecimento
buscando no discurso bíblico, no interdiscurso, a causa para o ocorrido,
como sendo os islâmicos os culpados, ao mencionar que isso era “obra de
Deus”, como estava previsto na Bíblia. Nesse sentido, comungamos com
Cardoso (2003, p. 45) ao afirmar que ideologia e cultura são entidades
diferentes, já que a cultura não pressupõe necessariamente relações de
poder. A ideologia pressupõe conflitos - conflitos de classe, de grupos
(idade, sexo, raça, cor etc.) motivados por relações de poder.
O sujeito-enunciador leitor se identifica com a revista, por meio dos
itens lexicais “estão com os americanos, hoje, a opinião pública mundial
e países poderosos, talvez até a Rússia e a China”, nos quais marca a voz
da revista, o interdiscurso, a relação de poder que esta exerce sobre o
leitor de forma inconsciente, pois o sujeito-enunciador tenta também
resgatar a imagem dos EUA, tal como faz a revista.
Segundo Guerra (2008, p.47), o discurso se constitui sobre os
primados do interdiscurso: todo discurso produz sentido a partir de outros
sentidos já cristalizados na sociedade. Nesta mesma perspectiva, Pêcheux
(1988) afirma que memória discursiva é esses sentidos já cristalizados,
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169
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172]
legitimados na sociedade e que são reativados no intradiscurso.
Portanto, ao mesmo tempo em que as revistas influenciam,
“dominam” o leitor, o leitor consegue “fugir” dessa influência, deixa de
ser influenciado, mesmo que por lapsos, equívocos.
4- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os dados parciais nos permitem afirmar que ao analisar as formações
ideológicas sobre o atentado ao World Trade Center ocorrido no dia 11
de setembro em 2001, por meio das marcas enunciativas presentes nos
discursos (cartas do leitor e reportagens principais) das revistas VEJA E
CAROS AMIGOS, que os efeitos de sentidos instaurados por estas duas
mídias são diferentes.
Sendo que nesta primeira revista, projetam uma tentativa de
mascarar o “atentado” de 11 de setembro de 2001, como não sendo
fruto de uma possível “fragilidade” administrativa presidencial, mas de
uma pessoa ou grupo que não estava ligado diretamente ao poder do
Estado, pois fora graças ao pai deste, que o país alcançou tal “triunfo”:
ser a maior potência econômica mundial. Fato este observado, quando
o sujeito-enunciador utiliza-se de discursos que resgatam a imagem do
ex-presidente Bush, recorrendo a acontecimentos anteriores.
Já na segunda revista, há uma tentativa de desconstruir essa imagem
positiva instaurada nos discursos midiáticos sobre o “ex-presidente
Bush” e atribuir voz de defesa as culturas ditas “inferiores” pelos norteamericanos, como a cultura islâmica. Desse modo, constatamos que
os discursos são perpassados por formações discursivas do capitalismo,
religiosas, jurídicas, sócio-históricas, de autoridade, filosóficas, políticas
e, entretanto com sentidos diferentes.
Portanto, neste processo inicial de análise, observamos que a mídia –
Revista Veja - utiliza-se de discursos “já-ditos”, como verdades intocáveis
e únicas numa tentativa de preservar a identidade americana. Enquanto
a Revista Caros Amigos utiliza-se desses já-ditos para desconstruir essa
imagem positiva do norte-americano e dar voz ao povo islâmico, num
170
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
A construção de identidades e ideologias [151-172]
discurso de defesa, o que justifica ainda mais a importância desse estudo,
pois se faz necessário desconstruir esses discursos que se mostram
como verdades inatingíveis que, perpassados por ideologias, passaram
a constituir nossas crenças, a habitar nosso imaginário, assujeitando-nos
inconscientemente.
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REVISTA VEJA. Edição 1718, ano 34, nº. 37. Editora Abril. 19 de Setembro de 2001.
SARGENTINI, V.; NAVARRO BARBOSA, P. Foucault e os domínios da linguagem: discurso,
poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.
Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari é mestranda do
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras
do CPTL/UFMS.
Silvane Aparecida de Freitas é docente do curso de
letras da UEMS e na UFMS.
172
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
O personagem malandro e a picaresca
clássica espanhola: aproximações
Altamir Botoso
Resumo: No presente artigo, buscamos estudar a configuração do personagem
malandro na literatura brasileira, o qual pode ser visto como uma
recriação do personagem picaresco espanhol. Realizamos também um
comentário do romance Malditos paulistas: romance policial-picaresco,
de Marcos Rey (1980), no intuito de destacar as principais características
do malandro literário e as aproximações que podem ser estabelecidas
entre o personagem picaresco e o malandro.
Palavras-chave: pícaro espanhol; malandro brasileiro; Malditos paulistas:
romance policial-picaresco; Marcos Rey.
Abstract: In this present article, we studied the trickster configuration in Brazilian
literature that can be seen as a re-creation of the Spanish “pícaro” character.
We also accomplish a commentary of the novel Malditos paulistas: romance
policial-picaresco, by Marcos Rey with the purpose of detaching the main
characteristics of the literary trickster and the approaches that can be
established between the picaresque character and the trickster.
Keywords: Spanish pícaro; Brazilian trickster; Malditos paulistas: romance
policial-picaresco; Marcos Rey.
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
173
Altamir Botoso [173-187]
Antonio Candido (1970, p. 67-89), no seu estudo “Dialética da
malandragem”, dedicou-se à análise do romance Memórias de um sargento
de milícias, de Manuel Antonio de Almeida, procurando refutar a tese de
que a obra possa ser filiada à picaresca espanhola39. Esse estudo é referência
fundamental para a caracterização teórica do romance malandro, razão
pela qual nos deteremos no exame de seus principais aspectos.
Na introdução, Candido arrola três autores que trataram de definir
o gênero romanesco a que a obra pertenceria. José Veríssimo, em
1894, definiu-a como romance de costumes, considerando as inúmeras
descrições de lugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo do rei Dom João
VI. Já para Mário de Andrade a história de Leonardo Pataca é um romance
de tipo marginal, que se aproxima do de Apuleio, Petrônio e do Lazarillo
de Tormes, porque todos apresentam “personagens anti-heróicos que
são modalidades de pícaro” (CANDIDO, 1970, p. 67). Em 1956, Darcy
Damasceno afirmou não ser possível considerar as Memórias como obra
picaresca, pois neste livro há um pícaro mais adjetival que substancial e
lhe faltam as marcas peculiares do gênero picaresco. Damasceno aceitou
a designação de romance de costumes para a obra.
A seção I do estudo de Antonio Candido centra-se na argumentação
de que as Memórias não são um romance picaresco. O crítico não
concorda com o posicionamento de Josué Montelo. Este acreditava
que Manuel Antonio de Almeida teve nas obras La vida de Lazarillo de
39
O romance picaresco é uma modalidade literária que abrange um conjunto de obras
escritas na Espanha, nos séculos XVI e XVII. Seu eixo centra-se no pícaro, personagem de
baixa condição social, que procura por todos os meios possíveis  a trapaça, o engano, o
roubo, o rufianismo  ascender socialmente.Três obras constituem o núcleo clássico, ou
picaresca clássica: Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, publicada em 1554, Guzmán
de Alfarache, de Mateo Alemán, cuja primeira parte apareceu em 1599 e a segunda,
em 1604, e El Buscón, de Francisco de Quevedo, que vem a público no ano de 1626.
Esses livros apresentam a história de um anti-herói que, valendo-se de sua astúcia, tenta
integrar-se à sociedade, narrando ele próprio as suas aventuras e desventuras de forma
autobiográfica. Para mais informações, leia-se: GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do
anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
174
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
Tormes e Vida y hechos de Estebanillo González os modelos para escrever
seu romance. Para Antonio Candido, Montelo supervalorizou analogias
fugazes e não provou que as Memórias são obra picaresca, mas admite
que seu autor possa “ter recebido sugestões marginais de algum outro
romance espanhol ou feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por
toda a Europa no século 17 e parte do 18” (CANDIDO, 1970, p. 68).
A seguir, inicia uma comparação das características do “memorando”
brasileiro com o pícaro espanhol, apoiando-se nas teorias de Frank
Wadleigh Chandler e Angel Valbuena y Prat.
O primeiro aspecto abordado é a questão do narrador. Se nos
romances picarescos é o próprio pícaro quem narra suas aventuras, o
mesmo não ocorre no livro de Manuel Antonio, o qual apresenta um
narrador onisciente e “sob este aspecto o herói é um personagem como os
outros, apesar de preferencial; e não o instituidor ou a ocasião para instituir
o mundo fictício, como o Lazarillo, Estebanillo, Guzmán de Alfarache, a
Pícara Justina ou Gil Blaz de Santillhana” (CANDIDO, 1970, p. 68).
Em seguida, o crítico brasileiro aponta duas afinidades entre Leonardo
Filho e os pícaros espanhóis: a origem humilde e a itinerância. No entanto,
com relação à origem, faltaria a Leonardo um traço fundamental do pícaro:
“o choque áspero com a realidade, que o obriga à mentira, à dissimulação
e ao roubo” (CANDIDO, 1970, p. 69). O personagem das Memórias já
“nasce malandro feito” (CANDIDO, 1970, p. 69) e a sua malandragem
não é “um atributo adquirido por força das circunstâncias” (CANDIDO,
1970, p. 69), como no caso dos pícaros. Por outro lado, a origem humilde
e o abandono não o levam à condição servil, que nos romances espanhóis
é essencial para que o pícaro mova-se e ganhe experiência, “vendo a
sociedade no conjunto” (CANDIDO, 1970, p. 69).
O crítico assevera, então, que Leonardo é um anti-pícaro, com
vocação de fantoche, que termina casado e recebe cinco heranças, sem
que nada tivesse feito para que isso ocorresse.
Na seção II do referido estudo, Antonio Candido (1970, p. 71)
volta a negar que Leonardo seja um pícaro e afirma que ele é um
malandro:
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
175
Altamir Botoso [173-187]
Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro
grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma
tradição folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a
certa atmosfera cômica e popularesca do seu tempo, no Brasil. Malandro
que seria elevado á categoria de símbolo por Mário de Andrade em
Macunaíma.
Efetivamente, com Memórias, o personagem malandro inaugura
uma nova vertente na “novelística brasileira”: o romance malandro, que
se solidifica com a publicação da rapsódia macunaímica e amplia-se com
os malandros do pós-milagre.
No final da seção II, Antonio Candido (1970, p. 71) chega, ainda
que brevemente, a definir o que seja o malandro: “O malandro, como
o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo do aventureiro astucioso,
comum a todos os folclores.” A esperteza, a agilidade, a sagacidade, a
capacidade de improviso são algumas das características mais marcantes
do malandro, que renega o trabalho e procura viver do jogo, da trapaça,
da gigolotagem e até de pequenos furtos.
O autor, na terceira parte do ensaio, atesta que o romance de Manuel
Antonio não é um documentário que reproduz a sociedade do tempo de
Dom João VI. Sua primeira metade, que vai até o capítulo XXVII, tem o
aspecto de crônica e, a partir daí, há uma segunda, que é mais romance,
na qual a figura do filho de Leonardo domina a narrativa. Na quarta e
quinta partes, o crítico, com base na dialética da ordem e da desordem,
faz uma análise das relações dos personagens. De um lado, de acordo com
esta dialética, estão aqueles que “vivem segundo as normas estabelecidas”
(CANDIDO, 1970,p. 77), cujo grande representante é o major Vidigal;
de outro, aqueles que estão ou vivem em oposição ou têm integração
duvidosa em relação a elas. A ordem liga-se a um hemisfério positivo e a
desordem, a um hemisfério negativo. Leonardo transitará entre estes dois
pólos, até ser finalmente absorvido pelo positivo, integrando-se à sociedade
pelo casamento e o recebimento das heranças.
Até este ponto, tentamos resumir as principais idéias de Antonio
Candido, contidas em seu ensaio. Apesar de o crítico basear a sua com-
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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
paração do pícaro com o malandro em teorias discutíveis de Chandler40,
concordamos com ele no que diz respeito ao fato de Leonardo não ser
um pícaro. Entretanto, este personagem pode ser aproximado aos pícaros
espanhóis, cujas armas principais no relacionamento com a sociedade
são a astúcia e a imobilidade. Ele rejeita o trabalho. Seu percurso na
obra também é marcado, em algumas partes, pela itinerância, embora
esta se restrinja apenas ao Rio de Janeiro.
Em suma, consideramos com o professor Candido que Leonardo
não é um personagem picaresco stricto sensu, assim como a obra em
questão não se ajusta plenamente às convenções do gênero picaresco,
mas importa ressaltar que Memórias traz ao primeiro plano a figura do
malandro como descendente cultural de uma linhagem de anti-heróis
protagônicos, inaugurada justamente pelo romance picaresco espanhol.
Ater-se tão somente a elementos como a autobiografia, o serviço a vários
amos e o choque áspero com a realidade, para caracterizar o pícaro ou
um provável romance picaresco, revela-se insuficiente. Desde o Lazarillo
e seus correlatos textuais formadores do núcleo clássico picaresco, o
Guzmán e o Buscón, as demais obras designadas picarescas transgrediram o modelo inicial. A autobiografia, em alguns casos, cedeu lugar
a um narrador em terceira pessoa, mas com o ponto de vista centrado
no herói; por outro lado, já no próprio espaço intertextual canônico,
observam-se importantes variações. Por exemplo, se Lázaro teve vários
amos, Guzmán terá apenas uma meia dúzia, apesar da extensão do
romance, e Pablos, apenas um. O fato é que dentro do que se convencionou chamar “gênero picaresco”, a transgressão, a recriação, a
transformação são marcas constantes:
Assim é como surgem as variações que incomodam tanto aos críticos
e que constituem, em compensação, seu valor mais significativo, pois
40
Chandler “limita-se a identificar o pícaro como um anti-herói e a entender o romance
picaresco como uma autobiografia do mesmo, caracterizada pela falta de plano e pela
presença do humor, sendo que o pícaro seria um mero pretexto para a descrição da
sociedade”. GONZÁLEZ, Mario M. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria,
1994, p. 284.
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177
Altamir Botoso [173-187]
ainda permanecendo no mesmo leito original, cada obra oferece uma
personalidade própria. O Lazarillo inicial conta sua vida a ‘Vossa Mercê’,
mas outros a contam a um ‘senhor’, a um vigário ou um cura, ao leitor, a um
amigo poeta... O primeiro conta-a para explicar seu ‘caso’; os outros o fazem
para escarmentar, para adquirir fama, para divertir... Um começa desde a
infância, outro desde quando estava no ventre de sua mãe... Um menciona
os pais, outro acrescenta os avós e tataravós... O moço é substituído pela
moça... O monólogo torna-se diálogo... A autobiografia é agora relato em
terceira pessoa... O protagonista se converte em testemunha... O que era
mendigo na rua é agora criado num convento, pajem na corte, soldado na
guerra... O que não havia saído de sua cidade, viaja agora pela Espanha,
pela Europa, chega ao Oriente, e acaba na América... O rapaz bom, mas
travesso, torna-se um bêbado empedernido, um ladrão e malfeitor, um
criminoso e assassino... O filho de ninguém chega a ser soldado, escudeiro,
homem de bem, até aristocrata... Alguns superam sua condição miserável e
se ‘estabelecem’ na sociedade, outros não... Alguns se arrependem e mudam
de vida, outros não, ou terminam condenados à morte... Onde havia um
pícaro, agora há dois... Se antes não havia amor, agora há... (BRAIDOTTI,
1979, p. 112-113, tradução nossa).
Como se observa, o personagem picaresco adquiriu novas
características, passou por transformações e transfigurações, sem,
contudo, distanciar-se radicalmente do modelo iniciado pelo Lazarillo
e continuado e alargado pelo Guzmán e pelo Buscón. As demais obras
classificadas como picarescas mantiveram viva a figura do anti-herói.
Novos autores desenvolveram e ampliaram a figura do pícaro. Se estes
autores “tivessem querido simplesmente imitar ou copiar literalmente o
modelo original, ter-se-iam metido em um beco sem saída. Só a variedade
lhes oferecia um futuro seguro, e isto foi o que os salvou do esquecimento
e contribuiu para seu êxito” (BRAIDOTTI, 1979, p. 113, tradução nossa).
Essa variedade demonstrou ser o pícaro um ente ficcional dinâmico,
sempre aberto a novas possibilidades, a adquirir novas características e
a aclimatar-se tão bem em terras estrangeiras.
Em solo brasileiro, o malandro, sem dúvida, pode ser visto como
uma recriação do pícaro espanhol. Embora quase cinco séculos os
separem, muitas afinidades e semelhanças acabam por uni-los. O
estudo de Antonio Candido, apesar de por reparos a essa possibilidade,
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O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
analisa, com toda a propriedade que é peculiar ao autor, a figura do
malandro literário, apresentando-o como um indivíduo fora das normas
estabelecidas (ordem), que usa a astúcia e a recusa ao trabalho como
forma de ascensão social. Tais características são traços constantes dos
pícaros que conhecemos e, em última instância, contradizem o que
o mestre insiste em minimizar: que o malandro Leonardo possa ser
aproximado dos anti-heróis espanhóis.
Ao que consta, Antonio Candido não voltou a se manifestar sobre
este assunto. No entanto, anos após a publicação da “Dialética da
malandragem”, em 1989, num artigo sobre o que ele considera como
a nova narrativa brasileira, faz a seguinte colocação: “E mesmo numa
indicação muito incompleta, não é possível omitir a curiosa vertente
satírica de corte picaresco, de que é manifestação Galvez, imperador do
Acre (1976), de Márcio Souza, anti-saga desmistificadora dos aventureiros
da Amazônia.” (CANDIDO, 1989, p. 212).
Teria o crítico revisto suas idéias expostas na “Dialética” e concluído
que o pícaro e o malandro poderiam ser aproximados? Não o sabemos
e nem é possível sabê-lo apenas com esta alusão breve e “incompleta”.
E, na verdade, isto já não tem importância, uma vez que o estudo
comparado entre malandros e pícaros foi e continua sendo um terreno
fértil para os pesquisadores. Destacam-se, no tocante a este aspecto, as
pesquisas desenvolvidas por Mario González, que culminaram em seu
já citado estudo A saga do anti-herói e numa série de dissertações de
mestrado defendidas na USP. Os malandros Macunaíma, Amphilóphio
das Queimadas Canabrava, Atahualpa (tio e sobrinho) e João Miramar,
por exemplo, já foram lidos e analisados à luz da picaresca clássica nos
seguintes trabalhos: A picaresca espanhola e ‘Macunaíma’ de Mário de
Andrade, de Heloisa Costa Milton (1986); ‘Mi tio Atahualpa’: a sagração
do herói na terra do carnaval, de Maria Teresa C. de Souza (1987); Galvez,
o pícaro nos trópicos, de Rubia Prates Goldoni (1989); Amphilóphio das
Queimadas Canabrava: um pícaro caboclo?, de Maria Eunice Furtado
Arruda (1990); ‘Bildungsroman’ e picaresca em ‘Memórias sentimentais
de João Miramar’ e “Amar, verbo intransitivo’, de Daniel Argolo Estill
(1996). Vale destacar, todavia, que para nós foi gratificante descobrir
Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009
179
Altamir Botoso [173-187]
que o mestre, ainda que minimamente, relaciona o malandro Galvez
com o pícaro espanhol.
O malandro, tal qual o pícaro, transferiu-se das ruas para a ficção.
A sua linhagem, se assim podemos chamá-la, começa com Leonardo
Pataca, afirma-se com Macunaíma, passa pelos demais malandros citados
anteriormente e prossegue em várias obras que ainda vamos mencionar.
No terreno ficcional, o malandro apresentará os mesmos traços
fundamentais do estereótipo do brasileiro: “vagabundagem, preguiça,
sensualidade, indisciplina, vivacidade de espírito  nossa modalidade de
‘inteligência’  e sobretudo simpatia” (GALVÃO, 1976, p. 32).
Ligado ao vocábulo malandro está o termo malandragem, com
um sentido semântico negativo, que significa o ato, a qualidade ou o
modo de vida daquele que a pratica. A carga negativa advém do fato
de estar embutido no seu conceito a lesão ou danos a terceiros. O ato
de malandragem supõe um sujeito (o malandro) que o pratica e um
paciente que o sofre (a vítima ou o otário, dependendo do caso). O
engano, a trapaça e o prejuízo são os motores mais comuns de uma
ação malandra. Roberto Goto (1988, p. 11) observa que
No imaginário da sociedade nacional, [a malandragem] costuma sintetizar
certos atributos considerados específicos ou identificadores do brasileiro:
hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, a manha e o jogo de
cintura muito apreciados no futebol e na política, a agilidade e a esperteza
no escapar de situações constrangedoras ligadas ao trabalho e à repressão,
o ‘jeitinho’ que pacifica contendas, abrevia a solução de problemas, fura
filas, supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania efetiva.
A malandragem brasileira é, de fato, um traço peculiar da forma
de ser nacional, expressa em gestualidades diversas como o “jeitinho”,
a safadeza, a ascensão social com pouco esforço. O tipo que a encarna,
na vida social e na esfera da cultura, é obviamente, o malandro. É
importante acrescentar, no entanto, que ela cobra vigor ao ser encarada
como “um espaço de liberdade dado aos mais talentosos” (GOTO, 1988,
p. 105), o que faz supor, para o malandro, uma vitalidade própria. Essa
espécie de “talento”, aliás, é o que não falta ao nosso anti-herói que,
“desenvolvendo travessuras num mundo aberto ou aproveitando as
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O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
brechas de um mundo fechado”, tem na malandragem o exercício e a
“expressão de uma liberdade, efetiva ou anunciada” (GOTO, 1988, p.
107). Ela, por assim dizer, garante a sua liberdade, desvia-o do trabalho
e permite-lhe a sobrevivência no universo do ócio.
A figura do malandro suscitou estudos em diversas áreas, dentre
elas a da literatura e a da sociologia. Com relação a esta última, o livro
de Roberto da Matta tornou-se uma obra de consulta obrigatória para
quem deseja estudar e conhecer o malandro mais a fundo. Para ele, “o
malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído
do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso
ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” (DA
MATTA, 1990, p. 216).
Cabe aqui apontar que o malandro aprende a usar a sua esperteza,
o seu savoir vivre, para escapar das malhas do trabalho regular e
disciplinado, que o impediriam de circular livremente e cerceariam a
sua tão prezada liberdade.
A definição de malandro dada pelo sociólogo Da Matta pode ainda
ser complementada. O malandro possui outros traços e particularidades
que lhe são inerentes e que compõem o seu perfil. Cláudia Matos (1982,
p. 55) ressalta o seu caráter de ser de fronteira dentro do sistema social:
o próprio malandro é um ser da fronteira, da margem. [...] Ele não
se pode classificar nem como operário bem comportado nem como
criminoso comum: não é honesto mas também não é ladrão, é malandro.
Sua mobilidade é permanente, dela depende para escapar, ainda que
passageiramente, às pressões do sistema. [...] A poética da malandragem
é, acima de tudo, uma poética da fronteira, da carnavalização, da
ambiguidade.
O malandro é, portanto, um indivíduo marginalizado socialmente,
que está fora da ordem estabelecida e que, ao mesmo tempo, procura tirar
partido dessa ordem a qualquer custo, como os pícaros. A ficção que o
consagra como protagonista reinventa, no plano poético, essa condição.
O romance malandro apresenta como protagonista um anti-herói,
que não se enquadra na ordem legal e nem se extravia dela. É um
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Altamir Botoso [173-187]
individualista que pretende ascender socialmente não pelo trabalho, mas
pela astúcia, e que parodiará os mecanismos ascensionais observados
na sociedade da qual ele faz parte, para conseguir seu intento. Em
algumas obras, o malandro deixa de lado o seu individualismo e passa
a ser porta-voz de projetos políticos alternativos, que contribuiriam para
uma mudança social. Geralmente estes projetos, utópicos e quixotescos,
acabam em lutas armadas, com a derrota do próprio malandro
(GONZÁLEZ, 1994, p. 353-357).
Nesta parte do trabalho, consideramos oportuna uma catalogação
das obras que alguns autores como Mario Miguel González (1994),
Edward Lopes (1970), Erwin Theodor Rosenthal (1975) consideram como
romances malandros brasileiros. Em ordem cronológica, os seguintes
livros são aceitos como romances ou relatos malandros:
1852-53: Manuel Antonio de Almeida: Memórias de um sargento de
milícias
1920: Hilário Tácito: Madame Pommery
1924: Mário de Andrade: Memórias sentimentais de João Miramar
1928: Mário de Andrade: Macunaíma o herói sem nenhum caráter
1933: Oswald de Andrade: Serafim Ponte Grande
1961: Jorge Amado: Os velhos marinheiros
1963: João Antonio: Malagueta, Perus e Bacanaço
1968: Marcos Rey: Memórias de um gigolô
1971: Ariano Suassuna: A pedra do reino
1976: Márcio Souza: Galvez: Imperador do Acre
1978: Paulo de Carvalho Neto: Meu tio Atahualpa
1979: Moacyr Scliar: Os voluntários
1979: Fernando Sabino: O grande mentecapto
1980: Edward Lopes: Travessias
1980: Luís Jardim: O ajudante de mentiroso: novela picaresca
1980: Marcos Rey: Malditos paulistas: romance policial-picaresco
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O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
1982: Haroldo Maranhão: O tetraneto del-rei
1984: Napoleão Sabóia: O cogitário
1994: José Roberto Torero: Galantes memórias e admiráveis aventuras
do virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça
1997: André Heráclio do Rêgo: Memórias de um amarelo mofino: romance episódico, memorial, épico, picaresco e escatológico
1998: Marcos Rey: Fantoches
2007: Homero Fonseca: Roliúde
2007: Ruy Castro: Era no tempo do rei: um romance da chegada da corte
Temos consciência de que algumas obras mais recentes poderiam
integrar o rol de obras malandras elencado acima, mas acreditamos que a
lista que elaboramos comprova que, de fato, o romance da malandragem
vem se firmando na literatura brasileira como uma vertente bastante fecunda e que merece ser estudada com mais profundidade. Dessa forma,
julgamos oportuno comentar o romance Malditos paulistas: romance
policial-picaresco, de Marcos Rey, buscando destacar algumas aproximações entre o romance picaresco e o romance malandro brasileiro.
Em Malditos paulistas, Marcos Rey fundiu duas modalidades narrativas: a história de um malandro e uma trama policial. A inserção da
trama policial no romance malandro, a nosso ver, comprova mais uma
vez que o romance é um gênero que transgride constantemente seus
próprios modelos e revitaliza a tradição. O malandro, dentre as muitas
máscaras que utiliza, assume o papel de detetive.
No “romance policial-picaresco” de Marcos Rey, Raul, um rematado
velhaco, narra suas aventuras e desventuras. Ele candidata-se a uma
de motorista, na mansão do milionário Duílio Paleardi. São onze os
candidatos ao cargo. Cada um deles vai sendo dispensado, até que
sobram apenas dois: Raul e um catarinense. A partir da dispensa dos
seis primeiros candidatos, o narrador, numa referência explícita a O
caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie (1985), chega a citar versos
de uma canção infantil que aparece nesta obra: “Quatro negrinhos no
mar; a um tragou de vez o arenque defumado, e então ficaram três.
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Altamir Botoso [173-187]
[...] Três negrinhos passeando no zoo. E depois? O urso abraçou um, e
então ficaram dois. [...] Um deles se queimou, e então ficou só um.”
(REY, 1980, p. 12-15).
O efeito desse empréstimo, como não poderia deixar de ser, é
cômico. No livro de Agatha Christie, dez pessoas são convidadas a passar
um fim de semana numa ilha e, uma a uma, vão sendo assassinadas. Na
estante da sala da casa onde estão os personagens, há dez estatuetas
de negrinhos e, a cada morte, uma delas desaparece. Em Malditos
paulistas, o artifício empregado serve para caracterizar a “eliminação”
dos candidatos e dar a tônica do livro, nos capítulos seguintes: a narrativa
de suspense, de enigma a ser desvendado.
Raul é selecionado para o serviço. Mantém casos amorosos com
as empregadas da casa e trabalha pouco. Tudo vai muito bem até que
uma jóia muito valiosa de Alba, mulher de Duílio, é roubada. A polícia
é chamada e encontra a jóia no painel de um dos carros dirigidos por
Raul. Ele é preso, mas nega veementemente que tenha sido o autor
do delito. Fica na prisão por algum tempo e é libertado pelo patrão,
que o contrata como seu secretário. A esta altura, um homem que
frequentava a mansão dos Paleardi, Johanson Olsen, é encontrado
morto. O próprio Raul começa a investigar e nos capítulos finais,
descobre que o patrão é traficante de diamantes e que matara Olsen
para que este não denunciasse a ele e a seus comparsas. Contudo, a
afamada jóia desaparece pela segunda vez e o narrador-personagem,
que acabara sendo demitido do emprego, retorna à casa dos patrões,
à noite, furtivamente, para apanhar a jóia que ele havia escondido no
painel do carro que dirigia:
Minha mão rumou para o sul, na curva abismal do painel, [...]. [...] meus
dedos haviam interrompido o trajeto à primeira e esperada resistência.
Iniciei a Operação Descolagem. Não usara chiclete, como a Polícia
precipitadamente afirmara. [...] Numa e noutra vez pregara-a com tiras bem
finas de esparadrapo escuro. Solta, apertei-a com força na mão espalmada.
[...] guardei a valiosa jóia azul-guanabara no bolso. (REY, 1980, p. 178).
Totalmente indigno de confiança, o narrador surpreenderá o leitor
ao revelar-lhe que é o ladrão, posto que, nos capítulos anteriores, jurara
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O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
ser inocente. Este recurso foi o mesmo utilizado por Agatha Christie
(s/d) em O assassinato de Roger Ackroyd, no qual o médico que narra a
história é também o assassino. Mas o culpado só é revelado no final da
obra. Tal expediente narrativo é muito eficiente para a manutenção do
suspense ou do mistério de um texto porque
mantém o enigma enganando sobre a pessoa da narração: uma pessoa é
descrita do interior, quando já é assassino; tudo se passa como se em uma
pessoa houvesse uma consciência de testemunha, imanente ao discurso, e
uma consciência de assassino, imanente ao referente; só o entrelaçamento
abusivo dos dois sistemas permite o enigma. (BARTHES, 1972, p. 50).
Raul assume estes dois posicionamentos levantados por Barthes: é
testemunha, na qualidade de narrador que relata o que vê, e é criminoso,
enquanto personagem que realiza o furto. Definitivamente, o culpado
não é o mordomo, mas o próprio doador da narrativa.
Em síntese, Raul assemelha-se aos pícaros clássicos porque o seu
relato também é autobiográfico, embora abarque apenas o período de
uns poucos meses, quando ele trabalha na mansão da família Paleardi
e se apossa da jóia furtada.
Além disso, tal como os protagonistas picarescos, valer-se-á da
astúcia para poder sobreviver, desprezará o trabalho rotineiro e sempre
viverá de empregar expedientes e estratagemas que possam livrá-lo de
qualquer conflito e do universo massacrante do trabalho assalariado.
No final de sua história, Raul, por intermédio da jóia roubada,
poderá passar a fazer parte da sociedade burguesa, sem ter que
trabalhar, uma vez que o dinheiro que conseguirá com a venda da jóia,
possibilitar-lhe-á viver no ócio e sem preocupações monetárias por um
bom período de tempo. Desse modo, notamos que o malandro de
Malditos paulistas também se aproxima dos pícaros clássicos pelo fato
de buscar, incansavelmente, um modo de integrar-se à sociedade e ter
boa vida sem depender de um patrão para tal propósito.
A narrativa de Raul, além de apresentar vários pontos de contato
com a picaresca clássica, é também uma paródia do romance policial,
principalmente dos de Agatha Christie, conforme já comentamos.
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Altamir Botoso [173-187]
Enfim, o personagem malandro pode ser visto como uma recriação
do personagem picaresco nas letras brasileiras e comprova a evolução e a
expansão do romance picaresco clássico dos séculos XVI e XVII, revelando
que a literatura é marcada pelo dinamismo, que resgata a tradição literária
do passado, recriando-a no presente, por meio da intertextualidade,
da paródia, do pastiche e, assim, o pícaro clássico revive nas criações
literárias de diversos países, recebendo outras denominações, como é
o caso do malandro na literatura brasileira.
REFERÊNCIAS
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pícaro caboclo? Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1990.
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Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972.
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herói na terra do carnaval. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP,
1987.
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In: Cuadernos Hispanoamericanos. N. 346. Madrid, abr. 1979, p. 97-119.
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de um sargento de milícias’). Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. N. 8.
Universidade de São Paulo, 1970, p. 67-89.
CANDIDO, Antonio. A educação pela noite e outros ensaios. 2. ed. São Paulo:
Ática, 1989.
CHRISTIE, Agatha. O assassinato de Roger Acroyd. Tradução de Leonel Vallandro.
Rio de janeiro: Record, s/d.
CHRISTIE, Agatha. O caso dos dez negrinhos. Tradução de Leonel Vallandro.
16. ed. Porto Alegre: Globo, 1985.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. 5. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1990.
ESTILL, Daniel Argolo. Bildungsroman e picaresca em ‘Memórias sentimentais
de João miramar’ e ‘Amar, verbo intransitivo’. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, FFLCH-USP, 1996.
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O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187]
GALVÃO, Walnice Nogueira. No tempo do rei. In: GALVÃO, Walnice Nogueira.
Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria da Cultura,
Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976, p. 27-33.
GOLDONI, Rubia Prates. Galvez, o pícaro nos trópicos. Dissertação de Mestrado.
São Paulo, FFLCH-USP, 1989.
GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance
picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira.
São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
GOTO, Roberto. Malandragem revisitada: uma leitura ideológica da
malandragem. Campinas: Pontes, 1988.
LOPES, Edward. Principios y funciones en la novela picaresca española. Tese de
Doutoramento. São Paulo, FFLCH-USP, 1970.
MATOS, Cláudia Neiva de. Acertei na milhar: malandragem e samba no tempo
de Getúlio. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
MILTON, Heloisa Costa. A picaresca espanhola e ‘Macunaíma’ de Mário de
Andrade. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1986.
REY, marcos. Malditos paulistas: romance policial-picaresco. São Paulo: Ática,
1980.
ROSENTHAL, Erwin Theodor. A metamorfose do herói picaresco. In: ROSENTHAL, Erwin Theodor. O universo fragmentário. Tradução de Marion Fleischer.
São Paulo: Ed. Nacional/ Ed. da Universidade de São Paulo, 1975.
Altamir Botoso é docente do curso de Letras da
UNIMAR.
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Conversa entre mulheres [189-204]
Conversa entre mulheres ou a literatura de
autoria feminina e Josefina Plá
Márcio Antonio de Souza Maciel
Resumo: Temos como objetivo neste trabalho reler parte da obra da poetisa
paraguaia Josefina Plá (1909-1999) bem como algo de sua fortuna crítica.
Em um segundo momento, para além do seu texto ficcional e do meta-texto
crítico, auxiliando-nos nessa análise, procederemos, também, à leitura
sobre a literatura de autoria feminina. Por fim, pensamos chegar a uma
proposta de leitura “feminilizante” de alguns de seus versos.
Palavras-chave: literatura de autoria feminina; Josefina Plá; poesia paraguaia
contemporânea; Poesías completas (1996); intertextualidade.
Abstract: We have as an objective in this work re-read part of the work of the
Paraguayan poetess Josefina Plá (1909–1999) and also her critical fortune.
In a second moment, more than her fictional text and her critical meta-text,
supplying us in this analysis we are also going to procedure to the reading
about the writing feminine literature. At last, we propose a “feminizely”
reading of her verses.
Keywords: Writing feminine literature; Josefina Plá; contemporary Paraguayan
poetry; Poesías completas (1996); intertextuality.
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189
Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204]
Eu sei como pisar/no coração de uma mulher;
Já fui mulher eu sei/já fui mulher eu sei.
(Chico César)
1. Ao modo de escrever femininamente
Mas existe, de fato, uma literatura essencialmente feminina? Ou,
dito de outro modo, para além do sexo biológico que nos diferencia,
há também um outro olhar, uma outra percepção que nos representa e
que, portanto, ins/escreve o texto literário? Vários teóricos são os que se
debruçam sobre o tema e responder às tais inquerências, talvez, nem seja
o foco principal. Senão, antes, pensar sobre essas possíveis distinções.
Lúcia Castello Branco (1991, p.211), em seu ensaio “Para além do
sexo da escrita”, ao explicar sobre o porquê do epíteto para tal escrita
–o feminino-, nos diz que “trata-se, portanto, de uma terminologia que
se quer localizar nesse lugar limítrofe entre o sexual e o além-sexual: o
feminino aqui não se restringe a uma leitura sexualizante da escrita, mas
também não se opõe frontalmente a ela” (grifo nosso).
Tal afirmação, longe de paradoxal, quer nos fazer esclarecer que
para a estudiosa o feminino enquanto manifestação (e realização) literária
não deixa de ser/estar relativo às mulheres (de onde deriva adjetivamente
do substantivo ‘fêmea’), porém a elas não se limita somente. Mais tarde,
ao avançar nas suas pesquisas, a crítica (talvez, nesse ponto, ferindo
suscetibilidades de outras suas iguais mais ferrenhas e herméticas) chega
mesmo a “admitir”, segundo suas palavras (1991, p.213), que tais
características [...] não se restringiam aos textos produzidos [somente]
pelas mulheres: Marcel Proust também possuía essa enunciação, algum
Guimarães Rosa em certos momentos ‘falava’ nessa dicção e mesmo
James Joyce, quando tomado completamente pela magia e pelo excesso
da linguagem, fazia-se ouvir assim, [também] femininamente.
Ora, mas se o feminino, então, não se limita, não se restringe tão
somente ao sexo e, por conseguinte, às portadoras desse –as mulheres-,
com efeito, algo que há de haver que una tal adjetivo à tal escrita e dê, por
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Conversa entre mulheres [189-204]
fim, cabo a tal dilema. O “tema” sobre o qual tratam, claro, referente e
constante sobre as mulheres e sobre a sua existência e presença literárias,
pensaríamos alguns. Uma vez mais, Lúcia Castello Branco (1991, p.212)
nos frustra ao afirmar que, assim como antes comentamos que “a escrita
está para além do sexo”, segundo sua expressão, de mesmo modo, está
essa feminilidade para além do significado. Ainda com ela:
[...] quero dizer que algo além dos temas eleitos por essas mulheres
terminava por distinguir sua escrita. [E que] a partir da leitura de um
bom número de textos de autoria feminina, pude verificar que eles se
distinguiam dos demais por possuírem um tom, uma dicção, um ritmo,
uma respiração próprios (grifo nosso).
Portanto, dentro da dicotomia clássica entre “forma x conteúdo”,
o texto marcadamente com características de literatura feminina estaria
mais preocupado com a sua forma, em primeiro lugar, e menos com
o seu tema. Se há protagonismo feminino; se a figura da mulher é
representada e como ela é representada, isso não é o mais relevante.
O que, sim, é relevante, segundo a pesquisadora, é “o percurso pela
materialidade da palavra, que procura fazer do signo ‘a própria coisa’ e
não uma representação da coisa” (Castello Branco, 1991, p.217).
O que, de outra feita, equivale dizer que a escritura feminina busca
primeiramente sua “presentificação” ou “apresentação” ao passo que
a outra escritura (masculina), já assente que é no cânone, está mais
às voltas com a “representação”. Observemos aí que o prefixo re que
semantiza “de novo”, “reiteração” coaduna perfeitamente para reforçar
o conceito que ele mesmo afirma: “representação”; apresentar, pois,
o que já foi apresentado ou consolidar a presença do que já foi eleito
como “presente”, como em um jogo de espelhos.
No caso, da escritura feminina, insistimos, esta se volta antes para a
“apresentação” ou “presentificação” visto que esse é o estágio primitivo e
anterior em que se assenta o seu alicerce; passagem essa que a literatura
masculina, convencional e canônica já não precisa mais. A literatura
feminina insiste no significante para ter acesso à voz; a outra, dele se
distancia ou pode dele prescindir para fixar-se no significado.
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Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204]
Estabelecidas algumas características, nesse primeiro momento, em
torno o que seria uma literatura feminina e para que (e para quem) o
feminino se volta e se espelha, nos ocuparemos, na seqüência, de lê-la
ou de espelhá-la por meio de uma escritora muito importante para a
literatura hispano-americana, Josefina Plá.
2. Josefina no coração da América: seu labor artístico e as letras
paraguaias
Maria Josefina Teodora Plá Guerra Galvany nasceu na Espanha, a
09 de novembro de 1902, em Fuerteventura, nas Ilhas Canárias. No
entanto, sobre a data de seu nascimento existem divergências. Alguns
escritos (sobretudo os pessoais e autobiográficos) apontam o ano de 1909
o que o amigo José Vicente Peiró Barco explica quando de sua visita à
casa da escritora, em Assunção, em agosto de 1995.
Para ele, de fato, Josefina nasceu em 1902 o que teria sido
confirmado, mais tarde, pelas autoridades locais de sua cidade natal.
A outra data “oficiosa”, 1909, (e que perdurou até sua morte mais de
noventa anos depois e que consta dos documentos) teria surgido por
conta de seu capricho e vaidade. Diriam alguns, abalizados pelo senso
comum, portanto, “tão ao gosto das mulheres”.
Assim como sucedia com outras mulheres no início do século XX,
Josefina Plá também não pôde freqüentar a escola regular (território
masculino) mas foi educada junto com sua irmã em casa. O que de certo
modo lhe ajudou em sua aprendizagem de autodidata. Aos dois anos e
meio, muito precoce, já ensaiava suas primeiras leituras como ela mesma
o diz (1999, apud Godoy, p.17): “Yo fui una criatura archiprecoz, [...]. A los
dos años y medio yo ya deletreaba [...] y a los cuatro años y medio escribí
una carta de felicitaciones, por el año nuevo, a mi abuela materna”.
Porém, foi somente com seis anos de idade que lê seu primeiro
livro, O homem que ri (1869), de Victor Hugo (1802-1885) e quando,
furtivamente, adentra a proibida sala de estar/biblioteca paterna e o
mundo se lhe abre como que pela primeira vez. Assim como sucedeu
antes com Juana Inés de la Cruz, no século XVII do México colonial;
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assim como sucedeu, contemporaneamente, com Virginia Woolf, na
Inglaterra vitoriana e com tantas outras.
O único estudo formal que adquiriu foi o “bachillerato” e que,
no Brasil, corresponderia ao ensino médio. Contudo, aplicada que era,
ao mesmo tempo em que terminava a escola, também, fazia o curso
de artes plásticas. Nesse curso, conheceu o ceramista paraguaio André
Campos de Cervera, também, conhecido pelo pseudônimo de Julián
de la Herrería, descendente de espanhóis que era ele. É com ele que,
aos dezoito anos de idade, Josefina Plá chega ao Paraguai, em 1927, e,
descontadas algumas viagens a Europa e mesmo a América (incluindo,
aí, o Brasil), será nesse país que escolheu que viverá toda a sua vida.
Em 1998, um ano antes de seu passamento, recebeu a “Nacionalidad
Paraguaya Honoraria”, a mais alta comenda outorgada pelo Congresso
Nacional do país àqueles que se destacam nas artes e culturas locais.
Embora esparsa dentro de alguns hiatos de publicação, sua obra
é muito fecunda e diversa. Começou por publicar poesias, ainda na
década de 30 (El precio de los sueños, 1937) assim como teatro (Episodios
Chaqueños, 1933); mais tarde, nos anos sessenta, inicia a publicação
de sua narrativa breve (La mano en la tierra, 1963). Escreve, também,
romance, Alguien muere en San Onofre de Cuaremí, de 1984. Como
ativista, agitadora cultural e jornalista, de mesmo modo, publicou ensaios
como “Algunas mujeres de la Conquista”, “Los británicos en el Paraguay”
e, especificamente, sobre a preocupação com o lugar destinado às
mulheres escreveu “Contribuciones y conquistas en la poesía paraguaya”.
Esta obra ensaística está compilada no volume Obras completas: história
cultural, de 1992.
Com Hérib Campos Cervera, o elegíaco poeta do exílio paraguaio,
e Augusto Roa Bastos, que sempre se declarou discípulo de Josefina
Plá, formaram a célebre tríade da chamada “Generación de los 40”, na
literatura daquele país. Tal amizade permaneceria até o fim de sua vida
seja no mundo real seja no mundo das palavras.
Entretanto, mais uma vez, na contramão de seus contemporâneos
ela não se exilou. Ao contrário, conheceu o “insílio” e a relação sempre
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Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204]
conflituosa com a ditadura de Alfredo Stroessner (1955-1989). Sempre
enfrentativa, a artista prefere permanecer e resistir a abandonar o seu país.
Hoje, verificamos que ela tinha razão já que veria a caída do general e
o renascimento da frágil democracia latino-americana, sempre sensível
às intempéries políticas, sobrevivendo uma década ainda.
A obra de Josefina Plá, não seria exagerada a afirmação, em suas
mais de sete décadas de produção artística, está totalmente identificada
com a cultura paraguaia do século XX, de maneira estrita, assim como
com a cultura da América hispânica, de modo geral. De acordo com
Rodríguez-Alcalá (1971, p.327), “hoy se puede decir con seguridad que
la poesía, el teatro, las artes plásticas, la vida académica de Paraguay no
se explican sin Plá, y que gran parte de su obra sería inimaginable fuera
del contexto de Paraguay”.
No próximo tópico, comentaremos algumas de suas poesias dentro
de um possível panorama estético que contemple, também, a sua visão
acerca do feminino.
3. Uma tempestade de palavras: possíveis leituras sobre a sua poesia
Comumente os críticos (majoritariamente homens, vale lembrar)
tem associado a produção lírica de Josefina Plá (e mesmo a narrativa, a
teatral, a ensaística) tão somente ao terreno sempre fugidio e instável da
“reflexão existencial” ou do “devastadoramente elegíaca” ou, ainda, do
“monotemática e monocórdica”, “outonal”, dentre tantos outros clichês
que mais facilmente agrupam que necessariamente ajudam a explicar.
Todavia, afora os juízos de valor sobe a sua recorrente temática
feminina “interior” (e os pré-conceitos acima aludidos são bem representativos de certa parte da crítica), Lúcia Castello Branco (1989, p. 95),
acerca da possível explicação para al associação simbiótica de “textomulher-texto”, nos lembra que:
Na literatura, o resultado não poderia ter sido outro. É no Romantismo
que as mulheres transformam-se no grande público leitor e são as
musas românticas que vão desenhar a figura (e o figurino) das donzelas
e senhoras da época. Portadoras deste legítimo ‘back-ground’, e com
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Conversa entre mulheres [189-204]
raras oportunidades de caminhar um pouco além, é natural que grande
parte de nossas escritoras tenham continuado (e continuem até hoje) no
Romantismo.
Se por um lado não é dona de uma produção lírica extensa (seus
poemas não chegam a 300), caso levemos em conta seus mais setenta
anos de vida artística e cultural, por outro lado sua obra é cíclica e reiterante. Basta que lembremos que ela estreou com o gênero na década de
30, mais precisamente em 1934, e encerrou sua vida (também artística)
com poesia, na década de 90, com Inéditos y esparsos, de 1996, três
anos antes de seu desaparecimento.
Josefina Plá, ademais desse tom “romântico” tão caro às escritoras,
nos parece que se preocupou, também, em seus textos com outros temas
como a dor humana de se estar vivo e só, assim como o não-lugar do
homem contemporâneo. Porém, com igual interesse, se debruçou sobre
a preocupação com a construção de sua própria arte enquanto ofício de
escritora, portanto, preocupação metalingüística, meta textual e de meta
vida. Talvez, ainda que de modo arriscado, pudéssemos afirmar que a
escritora pensa, cria a arte como transfiguração da dor em beleza.
Contudo, não podemos nos esquecer de sua participação enquanto
intelectual que movimentou e esteve no “olho do furacão” dos acontecimentos além (Europa) e aquém-mar (Paraguai), em quase um século de
existência. Se Josefina foi Eva, por exemplo, com a preocupação existencial, ontológica e meta ficcional em sua poesia, por vezes, também, foi
Lilith em algumas passagens em que disserta e poetiza sobre a mulher.
Admitindo, junto com Vera Paiva (1993, p.56), simbolicamente, que:
Eva é o protótipo da mulher moldada pelo Deus judaico-cristão, que
sendo Pai e Todo-Poderoso quis estabelecer um padrão eterno de conduta
para [essa] mulher. Propõe a lei dessa tradição que a mulher: seja mulher
de algum ADÃO, porque foi criada de sua costela (pedaço do homem
e não criação independente de Deus). [...] E que sua posição social
esteja atrelada à responsabilidade pela preservação do casamento e pela
felicidade do lar.
E que, portanto, contrariamente (1993, p.59):
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Lilith [represente] o mito da exclusão da primeira mulher de Adão, igual
a ele e não pedaço de sua costela, que se reivindica igual para exercer
seu prazer na relação com o homem, que quer manter a relação de igual
para igual com o outro-diferente.
É nessa bifurcação, nesse embricamento, portanto, que se pretende
essa nossa análise a partir da escolha de quatro de seus poemas, a saber:
“Piedad por las palabras”, “Buscar con la palabra”, “Oficio de mujer”
e, por fim, “La casada infiel”. Tais poesias perpassam e ilustram dois
momentos de sua escrita: a maturidade artística nos anos sessenta e a
consagração internacional, já próxima ao fim, nos anos oitenta.
Tanto em “Piedad por las palabras” quanto em “Buscar con la
palabra”, ainda que distantes no tempo de sua escrita e recepção, a
autora tratará do tema meta ficcional. Claro está que a preferência pela
temática não é exclusividade da artista paraguaia, outros, também,
dela se valeram e se valem até hoje. No entanto, no caso específico
de Josefina Plá, aqui, os poemas temáticos adquirem outras nuanças.
Vamos aos poemas:
Piedad por las palabras
Piedad por las palabras penitentes
que mueren contra la almohada
las palabras caídas como piedras
en el montón que cuenta los pecados
las palabras ahogadas como recién nacido
del cual la madre se avergüenza
las palabras mendigas que jamás han tenido un vestido decente
para salir al domingo de la vida
Y aún por la palabra amordazada
que un traje de cemento hundió en aguas oscuras
la palabra final sin sílabas y sin destinatarios
(de Invención de la muerte, 1965)
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Buscar con la palabra
Buscar con la palabra lo que aún no tiene nombre
más allá de la lágrima el canto el estertor
La rosa de la luz sin rosal conocido
pero cuyas espinas con constante escozor
y por senderos hechos de arco iris quebrados
marchar hacia esa aurora que nunca tendrá sol
(Porque es la consigna marchar sin saber dónde
O quizá ir es volver hacia el mismo mojón…)
…Y si alguna vez tocas una orilla del manto
será para saber que es sólo una ilusión
Tal vez roces la puerta Tal vez sientas el hálito
y tal vez a Dios mismo
Mas las palabras no
(de La llama y la arena, 1985)
No primeiro poema, afora a aliteração suscitada pelos vocábulos
“piedad” (v.1), “palabras” (v.1), “penitentes” (v.1), “piedras” (v.3) e “pecados” (v.4), da estrofe inicial, tão ao gosto do que identificamos como
marca do feminino e de sua dicção próprios, há outro dado, agora mais
metafórico, de importante destaque.
Separada em dois campos, duas estrofes, que se complementam
está a poesia. No primeiro deles, temos o termo “penitentes” (v.1);
no segundo campo, temos a palavra “amordazada” (v.9). De um lado
sabemos “penitentes” (v.1) são os que sofrem, os que penam mas que,
ainda assim, lutam, perseveram; de outro, igualmente, podemos inferir
que o adjetivo “amordazada” (v.9) diz respeito ao resultado final dessa
luta inglória que venceu a palavra; amordaçando-a.
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Podemos, também, ler o texto como a transfiguração poética, como
a personificação da (e na) própria situação da mulher ou, em última
instância e mais abrangente, do próprio ser marginalizado. Percebemos
que esses seres-palavras são “penitentes” (v.1), que eles “morrem contra
o travesseiro” (v.2) e “caem como pedras (v.3) no monte que conta os
pecados” (v.4). Ora, não é necessário deitar muitas linhas ou abstrair
para associar tal verso com o texto bíblico (e misógino) e o lugar que
este destina às mulheres desde a encomendada Eva-mítica e sua relação
com o pecado original. Na mesma linha de raciocínio, ainda, podemos
ver, nos versos posteriores, tanto “a mãe que se envergonha” (v.6) como
também “as palavras mendigas que jamais tiveram um vestido decente
(v.7) para sair no domingo da vida” (v.8).
Todos os versos, em diferentes graus, pouco a pouco, literariamente
personificam a mulher e a amalgama em poesia. E, de modo restrito, na
poesia de autoria feminina. Podemos dizer que no texto, paralelamente
correndo, a mulher está para a poesia da mesma maneira que a fala está
para a palavra. Dito de outro modo, se “mulher/fala” que pertencem ao
capo semântico do real e do concreto são indissociáveis, “poesia/palavra”
que pertencem ao campo semântico do irreal e do abstrato, por sua vez,
também, se associam por fazer contraste ao primeiro bloco.
Ainda, por fim, há que se comentar a última estrofe que traz as
palavras “amordazada” (v.9) e, depois, “la palabra final sin sílabas y
sin destinatarios” (v.11). Em que pese o dado histórico e o contexto da
ditadura militar porque passava o Paraguai à época da escrita do poema
(o que, em certa maneira, poderia explicar a metáfora aludida), não
podemos nos esquecer do texto de Lúcia Castelo Branco, já trazido à
baila. Essas palavras amordaçadas e, ao final, -pior- sem sílabas e sem
destinatários, coadunam com a dicção feminina de que fala a estudiosa
e resultam em um “diálogo de surdo/mudos”, segundo sua expressão.
Já no segundo poema, “Buscar con la palabra”, percebemos que
desde a escolha/intromissão da preposição não foi algo aleatório. O eulírico não procura o objeto (o que seria óbvio, comum e esperado), senão
procura o eu-lírico “com” o objeto; cria, deste modo, não somente um
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jogo de palavras mas, por isso mesmo, modifica e desestabiliza todo o
discurso que se segue.
Agora, dividido em três partes, o poema ao escolher “procurar com
a palavra” “aquilo que ainda não tem nome” (v.1), ao escolher “além
da lágrima o canto, a respiração difícil” (v.2), ao escolher “a rosa com
ardência” (v.4), de modo gradual, trata justamente do lugar desta literatura
singular escrita por mulheres. Lembremo-nos da distinção de que nos fala
Lúcia Castello Branco (1989) entre os pontos de vistas da “representação”
(característica masculina) e o da “apresentação” da palavra. Ao esgotar,
portanto, o significante busca o eu-lírico o seu significado. Esta, sim,
uma característica de autoria feminina. Procurar, pois, o que ainda não
tem nome é exemplo desta “presentificação”; é marca desse feminino
que fala. Procurar “além da lágrima o canto, a respiração difícil” (v.2),
nos rememora, claro, também a dicção feminina, difícil; faz-nos lembrar
a linguagem materna, linguagem onomatopéica. Mas, talvez, o último
verso da primeira estrofe seja mesmo o paradigmático dessa sôfrega
busca pelo lugar da literatura de autoria feminina, uma vez que, segundo
o eu-lírico, “é procurar marchar em direção a essa aurora que nunca
terá sol” (v.6).
A segunda estrofe, breve somente com dois versos, igualmente é
simbólica nessa leitura da busca por um lugar da literatura feminina.
Se a primeira estrofe se abre com verbos no infinitivo “buscar” (v.1) e
no indicativo “tem” (v.1), “terá” (v.6), certeiros, seguros, sobre o quê
é esse procurar e a terceira estrofe, logo comentaremos, trata de um
conselho, de uma possibilidade “se” (v.9), com reticências e com verbos
no subjuntivo “roce” (v.11), “sinta” (v.11), portanto, em um tempo do
porvir, da dúvida, a segunda estrofe não. No seu prognóstico um pouco
melancólico, o eu-lírico entre parênteses, como se tapasse a própria
boca e falasse oficiosamente contra o regime oficial e dono do discurso,
se vale de um “porque” (v.7) explicativo que nos diz que “a ordem é
marchar sem saber para aonde ir” (v.7) ou, na pior das hipóteses, “é
voltar para o mesmo ponto” (v.8). Em outras palavras, o marco ordeiro,
regular, canônico da literatura oficial.
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Contudo, na terceira estrofe, já liberto e dono de seu discurso, o
eu-lírico suspende o pensamento e aventa para algumas possibilidades.
Nesse enfrentamento com o status quo, com o establishment, de modo
condescendente, ele -eu-lírico- considera uma trégua, uma abertura.
Ao dizer ao oponente “se ele alguma vez tocar a franja do manto” (v.9)
equivale afirmar, metaforicamente, que se alguma vez a literatura oficial
(ocidental, eurocêntrica, masculina, branca, heterocêntrica, narrativa) se
ocupar, considerar a literatura oficiosa (e, aí, incluímos a literatura de autoria
feminina), quem sabe, de três modos (diferentes) possa ela, a literatura
não-oficial, se relacionar com a anterior. Seja roçando “a porta” (v.11), seja
“sentindo o hálito” (v.11), isto é, até mesmo “sentindo Deus” (v.12). Dito
de outro modo, a relação pode se dar em três níveis: de modo superficial,
de modo intermediário ou de modo pleno. Todavia, ainda que em um
momento de trégua, o eu-lírico sempre combativo arremata no último verso
“mas as palavras você não roçará” (v.13). Mesmo que a literatura oficial
(masculina), predominantemente representativa, e “para fora”, considere
esta outra literatura (de autoria feminina), para qual pleiteamos um lugar,
segundo o eu-lírico, ainda assim, ela não tocará na palavra, objeto de desejo
e fim último do fazer literário. Isso cabe apenas àqueles que cosem “para
dentro”, para tomar de empréstimo uma expressão de Clarice Lispector ao
falar de sua literatura; àqueles que se presentificam.
Nesse segundo bloco de poemas, “Oficio de mujer” e “La casada infiel”,
posteriores àqueles dois primeiros (em que a questão da representação
do feminino se apresentava, se presentificava meta-ficcionalmente),
encontramos, conforme já anotamos antes, um eu-lírico feminino ora
intermediário (que brinca, por exemplo, de “esconde-esconde”), como em
“Oficio de mujer” ora mais incisivo como em “La casada infiel”. Ambos,
no entanto, mais próximos e travestidos, imbuídos do espírito, do ideal
de uma outra mulher, da mulher-Lilith. Vejamos os poemas:
Oficio de mujer
Oficio de mujer.
Juego a escondite:
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Conversa entre mulheres [189-204]
En donde estoy nunca vio nadie nada
Oficio de mujer.
Espigadora
De campos bajo un sol que pronto acaba.
Custodia de los cántaros.
Avivo los rescoldos en la dura mañana,
Aliso los pañales como pétalos
Y reenciendo las lámparas.
Oficio de mujer.
Puente entre muertes.
Rosal despetalado con cada alba.
………………….
Oficio de mujer.
Manos moviéndose
sin pausa
como hojas
que se retratan arañando el cielo
para caer al suelo y ser pisadas.
Manos sin pausa y sin descanso
sellando itinerarios, tibios mapas.
En el vientre un camino.
En la mirada
Tremolando al viento el cartel roto
de huérfana posada.
(de La llama y la arena, 1985)
La casada infiel
Y yo que me la llevé al río…
García Lorca
La casada infiel viene en busca de los juncos
pisando zarzamoras y espinos y retamas
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Mil noches de San Juan con sus incendios truncos
le trazan horizonte de agonizantes llamas
Busca en el hueco en el limo donde plantó su pelo
el hueco que fue molde negado a las estrellas
En la ribera alerta se agazapa el recelo
Su cómplice alfabeto le rehúsan las huellas
No palpitan faroles, los grillos no se encienden
Los lirios han perdido su duelo con el viento
(Los peces de sus muslos se fueron ya río abajo)
Inmóviles los juncos su aguja al cielo tienden
El agua arrastra el último menguante soñoliento
y en la vieja colina cicatrizó el atajo
(de La llama y la arena, 1985)
Em “Oficio de mujer”, o eu-lírico, supomos que dividido, tanto está
em dúvida, pela alusão que faz à brincadeira infantil “esconde-esconde”
(v.2), quanto se coloca “num lugar onde ninguém nunca viu nada”
(v.3). Não viu porque não prestou atenção e não viu porque ele ora se
escondia ora se deixava mostrar. Nessa duplicação de papéis, por vezes,
sejam eles mais voltados para o que se convencionou culturalmente
de catalogar como masculino, o eu-lírico e sujeito do poema se coloca
como em “espigadora” (v.5), isto é, aquela que trabalha a terra. Por
vezes, também, os papéis se voltam para o que pensamos ser tarefa do
feminino. Com um papel coadjuvante, na fábula do poema, o eu-lírico
se ocupa, também, da “custódia dos cântaros” (v.7), possivelmente ao
trazer a água para o seu senhor que (este sim) fecunda a terra.
Seguindo adiante nessa bifurcação de lugares, o eu-lírico, ainda,
se nos mostra quer viril “pisando brasas na dura manhã” (v.8) quer de
modo tão maternal “alisando, cuidando de fraldas como se pétalas” (v.9)
fossem. Nesse jogo de “mostrar-se”/ “esconder-se” ora de modo feminino
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ora de modo masculino, no entanto, o eu-lírico diz que, na verdade, em
um trabalho hercúleo (ou mais, diríamos até prometéico), se trata antes
o ofício de “arranhar” (v.19) o céu, conforme ele deixa claro na terceira
estrofe. Ora, sabemos que arranhar se aproxima do tocar levemente a
ponto de não corromper no todo, senão macular o objeto.
Por fim, chegamos à superação total do eu-lírico nesse percurso,
já comentado antes, vale lembrar, iniciado ficcionalmente com a
personificação da mulher com a poesia (“Piedad por las palabras”);
passando, ainda, pelo universo conciliatório da mulher-Eva na sua
preocupação com o lugar da literatura de autoria feminina (“Buscar
con la palabra”); avançando na direção do ideal da mulher-Lilith, com
a intermediação/preparação do feminino, em (“Oficio de mujer”) para
terminar, finalmente, com a belíssima releitura paródica e crítica de “La
casada infiel”.
Não obstante um espaço de tempo de quase sessenta anos, se nos
lembrarmos que o poeta andaluz Federico García Lorca (1898-1936)
publicou sua “La casada infiel” dentro do volume Romancero gitano,
de 1928, a também espanhola Josefina Plá deu continuidade no seu La
llama y la arena (1985), de outro modo, às deliciosas aventuras eróticas
da “donzela que tinha marido”.
Entretanto, Plá constrói a inversão paródica do conhecido texto
lorquiano e consegue, talvez, um outro postulado para essa “nova”
mulher, para essa nova representação do feminino que, aí, reside dentro
dessa nova ordem por ela proposta.
Se não a subverte no título (e muito sabiamente para cheguemos
desavisados ao texto, sem desconfiarmos de nada), ela o faz na forma
uma vez que presenteia à sua infiel (anti) heroína um soneto. Lorca
preferiu as formas populares tão ao gosto e normas do “romanceiro”
que se pretendia laudatório ao povo cigano, objeto de sua homenagem.
García Lorca gasta cinqüenta e cinco versos para nos contar do encontro
amoroso entre essa mulher espanhola e branca e esse homem cigano
de tez morena; Josefina Plá com quatorze versos a redime, dando-lhe
voz para que ela mesma, isto é, o eu-lírico o faça.
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Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204]
No texto de Plá a mulher não é objeto, metade passiva da relação
como em Lorca (“Yo me quité la corbata/Ella se quitó el vestido”) mas
sujeito e agente ativo e provocador dessa mudança que “busca en el
hueco en el limo donde plantó su pelo” (v.5).
Lorca, para ilustrarmos outra diferença, centra o protagonismo cênico
no seu viril cigano, por exemplo, quando diz que “Pasadas las zarzamoras/
Los juncos y los espinos/Bajo su mata de pelo/Hice un hoyo sobre el limo” ao
que o feminino de Josefina Plá subverte. Na poesia da escritora, é a mulher
quem toma a iniciativa já que “vem à procura dos fálicos juncos” (v.1). É ela,
ainda, a mulher, quem “pisa as amoras, os espinhos e os arbustos” (v.2).
Temos de um lado “junco” (v.1), “espinhos” (v.2), “arbustos” (v.2), “São
João” (v.3), “troncos” (v.3), “cúmplice” (v.8), “faróis” (v.9), “grilos” (v.9), “lírios”
(v.10), “peixes” (v.11), “agulha” (v.12), “minguante” (v.13) e “colina” (v.14)
que podem ser associados ao universo masculino. Ainda que esses estejam
em maior número, no poema, no entanto, são signos suplantados pelos
que marcam a feminilidade, como “casada” (v.1), “amoras” (v.2), “chamas”
(v.4), “vazio” (v.5), “limo” (v.5), “cabelo” (v.5), “estrelas” (v.6), “margem” (v.7),
“pegadas” (v.8), “rio” (v.11), “água” (v.13) e “atalho” (v.14).
Para concluir, uma vez mais, lembramos que coerentemente
com esse momento de apogeu da mulher-Lilith o que vemos no texto
é um mundo em crise. Um mundo bipolar, maniqueísta em que o
masculino tem que se opor ao feminino que tão somente é a “ausência”
daquele sexo (gênero) originário. Porém, dessa feita, há a inversão e
o protagonismo cênico é o do feminino. De uma outra maneira, em
resumo, é um mundo em que os “lírios perderam seu poder de dor com
o vento”; é um mundo, finalmente, em que “os peixes tão viris de suas
pernas já desceram rio abaixo”.
4. Últimas palavras
A partir da leitura da obra poética da simultânea espanhola/
paraguaia Josefina Plá, podemos pontuar algumas observações. Muito
além dos recorrentes adjetivos de que se trata de uma poesia de tom
maciçamente elegíaco, de tom didático ou professoral ou nostálgico,
podemos, sim, sublinhar outras cores.
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A escritora, antes, também, se preocupou com sua condição de artista
e intelectual influente assim como não se furtou de tão modernamente
reler as suas “amizades literárias”. No entanto, talvez, o mais importante
foi a sua consciência enquanto mulher sobre a questão do feminino e o
lugar que a este é destinado. Leitora e contemporânea da inglesa Virgínia
Woolf, ainda que “insilada” sua poesia estivesse no, igualmente, “insilado”
Paraguai, Josefina conseguiu transcender as fronteiras.
REFERÊNCIAS
CASTELLO BRANCO, L.; BRANDÃO, R.S. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
LTC/Casa-Maria, 1989.
CASTELLO BRANCO, L. Para além do sexo da escrita. In: Anais do IV Seminário
Nacional Mulher e Literatura. Niterói: UFF/ABRALIC, 1991. p.211-221.
GARCÍA LORCA, F. Obra poética completa. Edição Bilíngüe. Brasília/São Paulo:
Editora da UNB/Martins Fontes, 1989.
GODOY, M. Josefina Plá. Asunción: Editorial Don Bosco, 1999.
PAIVA, V. Eva, Maria, Lilith. Purezas e impurezas. In: Evas, Marias, Liliths…às
voltas do feminino. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p.53-76.
PLÁ, J. Poesías completas. Asunción: Editorial El lector, 1996.
RODRÍGUEZ ALCALÁ, H. Historia de la Literatura Paraguaya. Asunción: Editorial
Comuneros, 1971.
Márcio Antonio de Souza Maciel é docente do curso
de Letras da UEMS.
Projeto Editorial e Normas para Publicação
Projeto editorial
PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como
objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por
professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande
área de Letras, Lingüística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa
do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a ampliação e o
aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais.
Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho
editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc.
A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado
em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte
temática:
As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número
ímpar, aos estudos lingüísticos e de semiótica.
Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre:
Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou interrelacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais,
artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa.
Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em
suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como manifestações de uma dada cultura.
Para os estudos lingüísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre:
Constituição do saber lingüístico: estudos relativos às várias dimensões do saber
lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural
e histórica.
Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de
organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que
engendram o sentido do discurso em relação ao contexto.
Normas para publicação
O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir
acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract
e keywords.
Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12,
parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5
entre linhas.
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Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à
direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito
e sem recuo de parágrafo.
Citações bibliográficas: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em
maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex:
(HERNANDES, 2006, p. 30).
Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento
simples.
Referências bibliográficas: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas
da ABNT. (Ver exemplos abaixo).
Livro:
HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006.
Ensaio em periódico:
NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados,
Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006.
Capítulo de livro:
SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO,
Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252.
Documentos eletrônicos:
CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em:
www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso
em 08 mai. 2007.
Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo,
nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto
que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail.
Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos
diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria.
Para: [email protected]
Assunto: Revista Papéis
Obs.: 1. O nome dos arquivos a serem enviados à revista devem iniciar sempre com o
último nome do autor, seguido de outras informações para identificação do mesmo.
Ex: no caso de o nome do autor ser Maria Fernanda Pereira, o nome do primeiro
arquivo poderá ser ‘pereira_identificação’ e o do segundo ‘pereira_texto’.
2. No caso de o texto ser acompanhado de imagens essas deverão ser encaminhadas em arquivo separado (nomeado com o último nome do autor, seguido
do número da figura, conforme citada no texto), com largura mínima de 10 cm e
resolução mínima de 300x300 dpi.
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