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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Coordenadoria de Biblioteca Central – UFMS, Campo Grande, MS, Brasil) Papéis : revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens / Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. – v. 1, n. 1 (1997)- . Campo Grande, MS : A Universidade, 1997- . v. : il. ; 23 cm. Semestral Subtítulo anterior: revista de Letras. ISSN 1517-9257 1. Literatura - Periódicos. 2. Lingüística - Periódicos. 3. Semiótica - Periódicos. I. Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. CDD (22)-805 CORRESPONDÊNCIA EDITORIAL E ASSINATURA Papéis: Revista do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens Centro de Ciências Humanas e Sociais Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Cx. Postal 549, UNIDADE 4, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7634 e-mail: [email protected] EDITORA UFMS Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Cidade Universitária, Estádio Morenão, Portão 14, Campo Grande, MS. Fone: (67) 3345-7200 e-mail: [email protected] UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGENS REITORA Célia Maria da Silva Oliveira VICE-REITOR João Ricardo Filgueiras Tognini DIRETORA DE CENTRO Élcia Esnarriaga de Arruda COORDENADOR DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO Geraldo Vicente Martins EDITOR CIENTÍFICO Geraldo Vicente Martins EDITORES ADJUNTOS DESTA EDIÇÃO Edgar Cézar Nolasco Rosana Cristina Zanelatto Santos IMAGEM DE CAPA Marcos Antônio Bessa-Oliveira Buraco Negro, 2010 - Hipergravura Digital 36,7 x 52,06 cm - acervo do autor PROJETO GRÁFICO Eluiza Bortolotto Ghizzi REVISÃO A revisão lingüística e ortográfica é de responsabilidade de Eva de Mercedes M. Gomes TRADUÇÃO PARA O INGLÊS DO TEXTO DA ORELHA Quelciane Marucci CÂMARA EDITORIAL Alda Maria Quadros do Couto - Aparecida Negri Isquerdo - Auri Claudionei Matos Frubel - Edgar Cezar Nolasco dos Santos – Elizabete Aparecida Marques - Eluiza Bortolotto Ghizzi - Hélio Augusto Godoy de Souza - José Genésio Fernandes - Kelcilene Grácia Rodrigues - Márcia Gomes Marques Maria Adélia Menegazzo - Maria Emília Borges Daniel`– Raimunda Madalena Araújo Maeda - Rauer Ribeiro Rodrigues - Rita de Cássica Pacheco Limberti - Rosana Cristina Zanelatto Santos - Rosangela Villa da Silva - Vânia Maria de Vasconcelos - Wagner Corsino Enedino CONSELHO CIENTÍFICO Álvaro Cardoso Gomes [UNIMARCO] – Benjamin Abdala Junior [FFLCH/USP] – Clotilde Azevedo Almeida Murakawa [FCLAR-UNESP] – Daniel Abrão [UEMS] – Eduardo de Oliveira Elias [UNAES] Gladis Maria de Barcellos Almeida [UFSCAR] – Jacyra Andrade Mota [UFBA] – Jaime Ginsburg [USP] – Luiz Carlos Santos Simon [UEL] – Luiz Gonzaga Marchezan [FCLAR-UNESP] – Márcia Valéria Zamboni Gobbi [FCLAR-UNESP] – Maria Cândida Trindade Costa de Seabra [UFMG] – Marilene Weinhardt [UFPR] – Richard Perassi Luiz de Sousa [UFSC] - Silvia Maria Azevedo [FCL-ASSIS/UNESP] – Thomas Bonnici [UEM] – Vanderci de Andrade Aguilera [UEL]. Sumário Apresentação Literatura [Artigos] 15 MANOEL DE BARROS: ETHOS E ORALIDADE NO CHÃO DO PANTANAL Paulo Sérgio Nolasco dos Santos Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa 35 A CONSTRUÇÃO DO DISCURSO PUBLICITÁRIO: ENTRE OS PROVÉRBIOS E OS MASS MEDIA, O TRABALHO DA MEMÓRIA Vânia Maria Lescano Guerra Anita Luisa Fregonesi de Moraes 57 VOZES DESDOBRADAS: O MESMO E OS OUTROS DE A LA RECHERCHE DU TEMPS PERDU Paulo Bungart Neto 77 ÁGUA VIVA COMO UM “LIVRO DE ARTISTA” AUTOBIOGRÁFICO DA ESCRITORA CLARICE LISPECTOR Marcos Antônio Bessa-Oliveira Edgar Cézar Nolasco 105 COTAS PARA NEGROS: TENSÃO NOS SENTIDOS Marlon Leal Rodrigues 5 125 A DRAMATICIDADE EXISTENTE NO TORO CANDIL: UMA MANIFESTAÇÃO CULTURAL DA FRONTEIRA BRASIL COM PARAGUAI Giselda Paula Tedesco Edgar Cézar Nolasco 141 LITERATURA FEMININA: TECENDO UMA ESCRITA DE RESISTÊNCIA Romair Alves de Oliveira 151 A CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADES E IDEOLOGIAS: UM CONFRONTO ISLÂMICO E NORTE-AMERICANO Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari Silvane Aparecida de Freitas 173 O PERSONAGEM MALANDRO E A PICARESCA CLÁSSICA ESPANHOLA: APROXIMAÇÕES Altamir Botoso 189 CONVERSA ENTRE MULHERES OU A LITERATURA DE AUTORIA FEMININA E JOSEFINA PLÁ Márcio Antonio de Souza Maciel 6 Apresentação Cada vez mais, os estudos literários apresentam-se contaminados pelos Estudos Culturais. Todavia, mesmo quanto tal contaminação não acontece, é inegável que os estudos literários têm levado em consideração a importância do contexto cultural como mediador das análises propriamente ditas. Talvez seria mais pertinente constatar que os estudos literários, num crescendo, atravessam e são atravessados por estudos que têm em pano de fundo a cultura e sua diferença. Daí podermos dizer que, hoje, os estudos voltados para a literatura, assim como ao discurso, erigem-se assentados em teorias culturais às mais diferentes possíveis. Entre estas, podemos mencionar as dos próprios Estudos Culturais, as dos Estudos subalternos, as dos Estudos pós-Coloniais, as dos velhos Estudos Pós-Modernos, as dos Estudos Comparados, entre outras teorias. A Revista Papéis, que ora vem a público, ilustra bem o exercício transdisciplinar mencionado, justificando, por um lado, que os ensaios a ela arrolados estão consoantes à discussão contemporânea, e, por outro lado, que ela cumpre de forma satisfatória seu papel enquanto Revista do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens, que é de natureza mista (linguagens). Paulo Sérgio Nolasco dos Santos e Ana Maria dos Anjos M. Barbosa, com o ensaio “Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal”, abrem tal discussão quando afirmam que o trabalho 7 “tem por objetivo central verificar, com base nos Estudos Culturais e de literatura comparada, principalmente sob a perspectiva da crítica cultural latino-americana, o locus de enunciação da prosa poética do escritor sulmato-grossense Manoel de Barros”. Tal discussão propõe uma reflexão, entre outras, em torno do que se compreende por cultura local, nos dias atuais. Toda a reflexão do ensaio dá-se embasada pela relação entre os estudos culturais e os estudos comparados. Vânia Maria Lescano Guerra e Anita Luisa Fregonesi de Moraes, em “A construção do discurso publicitário: entre os provérbios e os mass media, o trabalho da memória”, tendo por base a teoria da Análise do Discurso que defende que os processos que constituem a linguagem são históricosociais e o discurso é visto como efeito de sentido entre interlocutores (Foucault), analisam a constituição dos sentidos dos enunciados proverbiais inseridos em textos publicitários publicados, em 2005 e 2006, em dois veículos de comunicação de massa, a revista semanal Veja e o jornal diário Folha de S. Paulo. Tendo como arcabouço teórico a Análise de Discurso de linha francesa, o ensaio encontra-se também atravessado pelo discurso dos Estudos Culturais, uma vez que a questão da memória é uma das preocupações do debate proposto. Encontra-se, ainda, no bojo da discussão teórica proposta pelo ensaio, uma teoria da comunicação que é inerente aos textos publicitários como um todo. Paulo Bungart Neto, em “Vozes desdobradas: o mesmo e os outros de A la recherche du temps perdu”, aborda os diferentes papéis atribuídos ao autor Marcel Proust, ao narrador e ao herói do roman-fleuve, tendo como aporte teórico a crítica estruturalista francesa do século XX. Para discutir a polifonia do romance francês, Bungart Neto vale-se dos postulados contemporâneos a respeito da memória, aliando, por sua vez, toda uma teoria da memória cultural aos postulados da crítica estruturalista. Vozes da escritura, da memória e da cultura desdobram-se tecendo o discurso crítico proposto pelo ensaísta. Marcos Antônio Bessa-Oliveira e Edgar Cézar Nolasco, em “Água viva como um “livro de artista” autobiográfico da escritora Clarice Lispector”, propõem uma análise cultural biográfica do livro Água viva, 8 de Clarice Lispector, defendendo a idéia de que o livro possa ser lido como uma autoficção da persona da escritora. Nessa direção, o livro será tomado como uma autobiografia de Lispector, ou melhor, como um diário ficcional, onde a intelectual relata os fatos de sua vida e os procedimentos de seu processo de construção literária. Entre o texto literário e o discurso da crítica biográfica, arma-se uma crítica de cunho culturalista que não partilha mais das visadas dualistas que refugavam o que era do campo das meras subjetividades do intelectual. Marlon Leal Rodrigues, em “Cotas para negros: tensões nos sentidos”, aborda uma discursividade polêmica sobre a questão do negro que, de certa forma, constitui um debate também sobre a identidade do brasileiro. Conforme mostra o autor por todo seu ensaio, o discurso sobre as cotas para negros nas universidades públicas vem colocar “em cena” um conjunto de sentidos e representações sociais e históricas da posição social e política do negro no Brasil. Tendo em pano de fundo os postulados da Análise do Discurso, o ensaio de Rodrigues apresenta uma grande preocupação culturalista, o que enriquece sobremaneira a discussão proposta. Com certeza, somente um ajustamento crítico pertinente, entre o discurso e a cultura, para atacar com o cuidado necessário que tal “problema” social/cultural demanda. Giselda Paula Tedesco e Edgar Cézar Nolasco, com “A dramaticidade existente no Toro Candil: uma manifestação cultural da fronteira Brasil com Paraguai”, tendo em pano de fundo a discussão em torno da cultura local, discutem a manifestação cultural Toro Candil como uma produção cultural local capaz de representar o que se entende por cultura localista. Por tratar-se de uma brincadeira híbrida, transculturada e fronteiriça, a manifestação em análise propõe uma discussão em torno das culturas fronteiriças que marcam o locus da região (MS). O Toro Candil vem mostrar que as produções aqui encenadas são de natureza trans (-lingual, -cultural, -fronteira), demandando, por sua vez, um discurso de natureza transdisciplinar. Romair Alves de Oliveira, em “Literatura feminina: tecendo uma escrita de resistência”, defende que a literatura de autoria feminina apresenta não somente a questão do espaço privado (lar), mas também 9 um espaço psicológico altamente intimista em sua escrita. De acordo com o autor, a escritora Júlia Lopes de Almeida, tendo sua obra reconhecida pela crítica por seu cunho didático, contempla seu ensaio na ótica da escritura feminina não como o “sorriso da sociedade”, mas como resistência de uma escrita singular para mostrar o posicionamento da mulher nos vários espaços sociais. Como se vê, o ensaio de Oliveira pauta-se pelos postulados da inserção da mulher na sociedade, bem como sua representação na mesma, valendo-se, assim, de um discurso de valor cultural, social justo ao objeto tratado. Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari, e Silvane Aparecida de Freitas em “A construção de identidades e ideologias: um confronto islâmico e norte-americano”, analisa as formações ideológicas sobre o atentado ao World Trade Center ocorrido no dia 11 de setembro de 2001, por meio das marcas enunciativas presentes nos discursos (cartas do leitor e reportagens principais) das revistas Veja e Caros Amigos. Fundamentadas nos postulados teóricos da Análise do Discurso Francesa e nos dos Estudos Culturais, Becari e Freitas discutem as representações sociais desses discursos, investigando as práticas discursivas ligadas à constituição da identidade/reprepsentação do povo islâmico e do “ex-presidente” norteamericano. A junção Análise do Discurso e Estudos Culturais torna a leitura do ensaio prazerosa e instigante, tanto quanto comovente foi o acontecimento no bojo da cultura ocidental e na virada do século. Altamir Botoso, em “O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola: aproximações”, estuda a configuração do personagem malandro na literatura brasileira, o qual pode ser visto como uma recriação do personagem picaresco espanhol. O autor faz também um comentário lúcido do romance Malditos paulistas, romance policial de Marcos Rey, com o objetivo de destacar as principais características do malandro literário e as aproximações que podem ser estabelecidas entre o personagem picaresco e o malandro. Embasado nos estudos literários, o ensaio torna-se mais significativo ainda com a presença dos Estudos da cultura, aporte teórico capaz de dar conta dessas discussões que não se sustentam por fora de uma visada culturalista. 10 Márcio Antonio de Souza Maciel, em “Conversa entre mulheres ou a literatura feminina e Josefina Plá”, propõe reler parte significativa da obra da poetisa paraguaia Josefina Plá, bem como parte de sua fortuna crítica. Em um segundo momento de seu ensaio, o autor detém-se na leitura sobre a literatura de autoria feminina para, num momento seguinte, propor uma leitura “feminilizante” de alguns versos de Plá. A discussão em torno do feminino, bem como de uma mulher escritora paraguaia como Plá, abrem-se para o campo fértil da cultura com todos os seus reveses. O autor capta e traduz tais sintomas de forma lúcida e muito bem apropriada criticamente. Os dez ensaios presentes neste volume, ambos de natureza crítica compósita, não apenas brindam o crivo transdisciplinar da Revista, conforme foi destacado no início, como também propõem um diálogo crítico entre ambos que, por sua vez, acaba enriquecendo ainda mais cada um dos ensaios. Que o leitor da Papéis, de posse deste ensaios, possa propor leituras críticas ainda mais desconstrutoras. Edgar Cézar Nolasco Rosana Cristina Zanelatto Santos Editores-adjuntos da Revista 11 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal1 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa Resumo: Este artigo tem por objetivo central verificar, com base nos Estudos Culturais e de literatura comparada, principalmente sob a perspectiva da crítica cultural latino-americana, o locus de enunciação da prosa poética do escritor sul-mato-grossense Manoel de Barros, em sua dimensão espacial, regional e local. Sob o signo emblemático do ethos e da oralidade, índices de grande produtividade na prosa do escritor, são enfocados temas / elementos contextuais e a constituição discursiva/ discursivização, formadores, em reflexo, da identidade, e presentificados, literária e culturalmente, tanto na escrita do Autor como nas manifestações socioculturais da região sulmato-grossense. Argumenta-se, assim, que a paisagem original do Autor circunscreve-se na letra e na enunciação enquanto cartografia do universo de discurso, figurativização matricial de sua prosa poética. Palavras-chave: Manoel de Barros; Literatura Sul-mato-grossense; Identidade pantaneira; Discursivização Abstract: This article aims to check, on base in Cultural Studies and Comparative literature, mainly under the Latin American cultural review perspective, the poetics prose declaim locus of sul-mato-grossense writer Manoel de Barros, on its spatial dimension, regional and local. Under the oral and ethos emblematic sign, big protuctivities indices in the prose of the writer, 1 Em uma versão preliminar, “Viventes dos pantanais e cerrados”, este artigo se originou de comunicação apresentada pelo autor, em sessão coordenada, “A fronteira agrega ou separa? Reflexões acerca do contexto literário híbrido no Mato Grosso do Sul”, no II Seminário Regional sobre Território, Fronteira e Cultura, da UFGD, em 8-11/09/2009, depois publicada, pela co-autora, em Cd-Rom do 3º Encontro de Pós-Graduação da UFGD, como embasamento para a dissertação de Ana Maria Barbosa, cujo título se aplica a este artigo. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 15 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] are focus on themes/ context elements and the discursive/ “discursivização” constitution, producer, on reflex, of identity, and present, literary and culturally, as many on the Author ‘s writing as sociocultural demonstration of Sul-mato-grossense region. To argue, so, that the original landscape of the author to limit on the letter and on the discursive in speech course universe cartography, matrix “figurativização” of his poetics prose. Keywords: Manoel de Barros, Sul-mato-grossense literature, “Pantaneira” identity, “Discursivização”. À guisa de introdução Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido, onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores. Manoel de Barros. Memórias inventadas para crianças, p. 21 Abordar a escrita de Manoel de Barros em seu nível de representação, enquanto discursivização própria do elemento regional, intrínseco ao universo de discurso do escritor, procurando uma “circunscripción”2 da voz autoral, constitui aspecto dos mais relevantes na ampliação do conhecimento da poética do escritor sul-mato-grossense. Neste artigo, procuramos pontuar o lugar/espaço do texto – da textualidade – como constitutivo do que denominamos literatura sul-mato-grossense, propondo que essa literatura, sob o signo emblemático do ethos e 2 Segundo KALIMAN, teórico de “regiões culturais”, trata-se de pensar como a produção de conhecimento, em um conjunto heterogêneo, forma una circunscripción espaciotemporal, revitalizando o debate sobre a diferença entre região física e região constituída por afinidades ideológicas e conceituais. Circunscripción carrega uma ideia implícita, digna de discussão, uma vez que “una regiõn no es el conjunto de realidades materiales contenidas dentro de determinados limites espacio-temporales, más precisamente, el constructo mental – o social, ségún el marco conceptual en el que estemos trabajando – en el cual imaginamos esos límites” (Kaliman, 1998, p. 2). 16 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] da oralidade, demanda índices de grande produtividade na prosa de Manoel de Barros – escrita e região, ou, escrita e localidade são móbiles reflexos – instigando à focalização dos temas/elementos contextuais e os processos discursivos, ambos formadores, em reflexo, da identidade, e presentificados literária e culturalmente tanto na escrita do poeta como nas manifestações socioculturais e/ou geofísicas sul-mato-grossenses. Sem desconhecer a dimensão maior da representação na poética manoelina, interessa-nos especialmente discutir a produção de sentidos do texto literário enquanto gerador de elementos de representação que vinculam representativos textos do autor, extraídos de um corpus significativo, com o locus de enunciação e com o contexto sociocultural que serviu de solo para o seu surgimento. Dizendo de outra maneira, trata-se de verificar o caráter dialógico que a obra do escritor estabelece com o solo da região cultural que a originou. Nesta perspectiva, as reflexões teórico-críticas postas em desenvolvimento pelo discurso crítico latino-americano, como do próprio Kaliman (1998), de Boniatti (2000)3, de Cosson (1998)4 e, particularmente de Léa Masina (2008)5, contribuem para a nossa reflexão. Segundo Masina, por exemplo, há que reconhecer a pertinência das produções simbólicas vinculadas ao local, ao regional; neste caso, da literatura produzida nesta região do centro-sul do Mato Grosso do Sul, pois que se trata de uma região de “[...] fronteira viva, lindeira com um país de cultura tradicional e espanhola, como é o Paraguai. Uma cultura que se forma, portanto, à sombra da história local.” (Masina, 2008, p. 10). O que significa reconhecer, ainda, que, o poder cultural que o espaço geográfico da fronteira Brasil-Paraguai representa, pode ser descrito e 3 BONIATTI, I. .M. Literatura comparada: memória e região. Caxias do Sul: EDUCS, 2000. 4 COSSON, Rildo. “Notas à margem de uma fronteira móvel”. In: CONTINENTE SUL/ SUR, Porto Alegre: Instituto Nacional do Livro, 1998. v. 7, p. 85-94. 5 MASINA, Léa. Um roteiro singular (Prefácio). In: SANTOS, Paulo S. Nolasco dos. Fronteiras do local: Roteiro para uma leitura crítica do regional sul-mato-grossense. Campo Grande: Editora UFMS, 2008. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 17 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] lido, segundo a crítica do regionalismo, como “o espaço que as obras descrevem, o tema que é retirado deste mesmo espaço em que as obras serão estudadas e reconhecidas” (Kaliman, 1994, p. 5). Assim, à guisa de exemplificação, é difícil não reconhecer na obra de Hélio Serejo, nosso regionalista maior, que reuniu a região fronteiriça do Brasil, no Sul de Mato Grosso com o Paraguai e a Argentina, um formidável registro e formatação mais adequada da tradução cultural da região, tornando-se ele próprio, Hélio Serejo, uma espécie de mimetismo da cultura deste Brasil Meridional, no extremo Oeste e Centro-Sul do estado, cujas palavras de enunciação vêm dele mesmo, ao se deixar denunciar e flagrar num emaranhamento linguístico-cultural, de transculturalidade: Eu sou o homem desajeitado e de gestos xucros que veio de longe. Eu sou o homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sanguíneas os açoites dos ventos dessa região, vadios e haraganos, que, no afirmar da lenda avoenga, nascem nas terras incaicas, num recôncavo do mar, varrem o altiplano boliviano, penetram o imenso aberto do Chaco paraguaio, para depois, exaustos do bailado demoníaco, numa cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortantes e gélidos, nesta cidade de Ponta Porta, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada das terrrarias sul-mato-grossenses. Eu vim dos ervais, meus irmãos, do fogo dos barbaquás, do canto triste e gemente dos urus, dos bailados divertidos, dos entreveros dos bailados das estradas, do mais hirsuto da paulama seca, do pôr-do-sol campineiro, dos dutos, das encruzilhadas e das distâncias perdidas [...] Eu vim de longe, eu sou um misto de poeira de estrada, de fogo de queimada, de aboio de vaqueiro, de passarada em sarabanda festiva no romper da madrugada, de lua andeja rendilhando os campos, as matas, as canhadas, o vargeado. Sou misto, também de índio vago, cruza-campo e trota-mundo [...] Eu vim, em verdade, dos charcos e da poeira revolvente dos tempos [...] Fui gemido de carreta [...] Amei imensamente, o vazio aberto. (Serejo, 2008, p. 33-36). Vivência e cultura no Pantanal e no cerrado Trata-se de uma região formidável, misturada à água e cerrados, ao pé da serra de Maracaju, de colinas arquiteturais, outrora visitada por cronistas e viajantes de além-mar, onde só existem planícies de 18 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] exuberantes cerrados e alagados em abundância – que os indígenas denominaram mar de xaraés. Nada que não fosse gado vacum servia à referenciação destas planícies pantaneiras. Quem não conhece os campos de vacaria não conhece este país. Como anotou o cronista-historiador: Durante três séculos ruminamos com os nossos bois a mesmice e o marasmo do tempo. E com eles, pastando soltos pelos campos indivisos, delimitamos as nossas fronteiras. Nesse decorrer vivenciamos a sanha das atrocidades como ninguém. Construímos a nossa sociedade mestiça, mesclada de usurpados e usurpadores. [...]. Estamos no centro, quem sabe nos venha daí a consciência [...]. Somos o coração da América, talvez por isso sejamos tão apaixonados. (Figueiredo, 1987, p.8). Desenho de planície: insondável e inabalável calmaria, geradora de viventes ensimesmados, não só renitentes às transformações e mudanças, mas antes tão entronados em seus hábitos de luz de lamparinas e de causos à luz da cheia, caindo por traz dos capões de mato, que tudo que não seja o próprio “aldeanismo” é refugo que se masca e remói como o boi, para regurgitar longe, gosto forte de fumo de corda e uvaia do cerrado. Como enfatiza Achugar, o aldeão vaidoso continua existindo nesse presente, por isso refletir sobre o imaginário de nosso tempo representa pensar a partir de um locus próprio, legitimando assim a própria enunciação de si. (Achugar, 2006, p. 83, 90). O travo cresce com a gente, remodela o modo de andar, e no espírito e nos costumes ele se imiscui, recendendo num ethos calado, cortante como o chumbo do quarenta e quatro, que, quando acontece de ser útil, é expedito em substituir a voz, econômico e definitivo. Morte aqui não é de brincadeira. Ela vem séria e necessária como a terra que se pisa e amaina. Com a vida, afeiçoa-se às entrelinhas da própria vida. Os daqui, habitantes dessas planícies eldoradas, viemos de muito longe e cá estamos dentro de uma remota cruzada; num lugar despertencido, onde a lei e o rei estão desentronizados na ânima de gente guerreira e brava – herança de longe, longa, mais que de quatrocentos, das nações guaicurus, usurpados mas recidivos nos usurpadores de hoje, inamovíveis no vate e na dor que cantarolam ao lado do fogo; fogo invernoso no Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 19 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] canto do chão batido da cozinha, atravessado por achas de lenha estrepitosas e fumegantes chocolateiras. Prosear com o pantaneiro é ser co-participante do inédito, é saborear prosa rude que fascina o espírito. Dentre os que tiveram essa ventura, lembra-nos o criador e contador de estórias do Grande sertão: veredas que, numa de suas cartas, esses recortes d’alma, afirmara não ter esquecido do boi laranja; viajante-cronista que, ao passar por Dourados e região escreveu o relato de “Sanga Puyta” e registrou: “sorvi o bafo do campo largo, os berros dos bois, toda a vivência de uma gente sadia e brava, ao longo do tropear das boiadas, esse mundo autêntico de sentimento, pitoresco, variado e rico.” (apud Santos, 2001, p.110). Isso foi há muito tempo. Se se pudesse plasmar tudo numa xilogravura, ter-se-ia uma inter-relação de cores e acordes onde apreciar as imensas pastagens mais um genuíno linguajar castiço; também não faltaria o tereré nem a guavira. O chimarrão, indiciário sulista, é costume bem arraigado nas paragens de Dourados, Aquidauana, Miranda e Jardim. Para comprovar, é suficiente visitar uma dessas famílias que, ainda hoje, apontando, ora com o dedo ora traçando um riscado no chão, desenham como se fazia a coleta da erva-mate e seu transporte via Picadinha até Porto Dom Carlos. A Mate Laranjeira era a responsável pelo transporte e fornecimento para outros estados e portos e está viva no cadinho das memórias do colono regional. Nossa reflexão incide sobre uma rede de inter-relações, elos de intermediação nas produções simbólicas e suas representações interculturais a partir do Centro-Sul do estado. Ao selecionar este espaço como central para o eixo de nossas reflexões, pelo menos duas assertivas de natureza espacial e geográfica delimitam o “lugar” de nossa inserção e o locus de nossa enunciação: o primeiro, refere-se à região mesma, de planície, circunscrevendo-a como região de fronteira viva e internacional com o Paraguai e a Bolívia, o segundo, em contiguidade, diz respeito à planície pantaneira do nosso estado, formando um dos mais importantes ecossistemas do planeta. A imensa planície pantaneira, cortada pelo Rio Paraguai e afluentes, constitui uma área aproximada de 250.000km²; o Pantanal brasileiro tem 144,299km² de planície alagável, 61,95 aos 20 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] quais (89,318km²) no Mato Grosso do Sul e 38,1% (54.976km²) em Mato Grosso. A cada 24 horas cerca de 178 bilhões de litros de água entram na planície pantaneira6. Daí que, de suas belezas iluminadoras descreveu-as nosso poeta mais conhecido, Manoel de Barros, no livro Para encontrar o azul eu uso pássaros, como se desejasse proteger-se de tantas belezas: “Que as minhas palavras não caiam de / louvamento à exuberância do Pantanal. [...]. Que eu possa cumprir esta tarefa sem / que o meu texto seja engolido pelo cenário.” ou, ainda, em: “Nesta hora de escândalo amarelo / os pingos de sol nas folhas / cantam hinos ao esplendor” [...]. “Uma palmeira coberta de abandono / é como um homem / de escura solidão”7. Ora, o que se lê nesses versos, no livro-álbum como um todo, é a intensificação do regional pantaneiro, que é autenticado, sobretudo, pelas imagens fotográficas que formatam a materialidade do livro, propondo a construção de uma leitura relacional, intersemiótica entre os dois textos, o verbal e o imagético. Já se sublinhou bastante o fato de Manoel de Barros ter aprendido com o Pantanal e com ele ter realizado uma “aprendizagem”, que queremos aqui demarcar como o “lugar” de experimentação e vivência do sujeito, de suas narrativas e de sua voz poética8. Valhamo-nos da crítica Berta Waldman, apresentadora de Gramática expositiva do chão e do historiador Durval Albuquerque Junior, este que, em ensaio instigante, busca na poética manoelina o suporte para a revisão dos postulados de sua disciplina e a notável produtividade que advém de uma arte que reinventa o passado. Ao retomar o lugar de semovência do Pantanal, a partir do topos “deslimites do vago”, dado no verso “tudo 6 Cf.: www.wwf.org.br 7 BARROS, Manoel de. Para encontrar o azul eu uso pássaros. 1ª ed. Campo Grande: Saber Sampaio Barros Editora, 1999. 8 WALDMAN, Berta. Poesia ao rés do chão. In: BARROS, M. de. Gramática epositiva do chão. RJ: Civilização Brasielira, 1990, p.15. Também: ALBUQUERQUE Jr., Durval M. de. História: redemoinhos que atravessam os monturos da memória. In: _____. História: A arte de inventar o passado. Bauru-SP: Edusc, 2007. Capítulo 4, p.85-97. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 21 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] prefere os deslimites do vago, se entorna preguiçosamente e inventa novas margens”, do Livro de pré-coisas (1985), que se expande noutros versos do autor: Por aqui é tudo plaino e bem arejado pra céu. Não há lombo de morro pro sol se esconder detrás. Ocaso encosta no chão. Disparate de grande este cortado. Nem quase tem lado por onde a gente chegar de frente nele. Mole campanha sem gumes. Lugares despertencidos (Barros, 1985, p.69). A partir desses versos, o ensaísta Albuquerque Junior constrói uma perspectiva aprofundada da poética manoelina, de modo a fazer reincidir sobre a própria matriz enunciativa uma selva de signos carregados de valores indiciários do diálogo e da interculturalidade, palpitantes na escrita do poeta – cisco ou coisas do ínfimo são alguns desses signos que ancoram a leitura sobre o sujeito e seu local: Uma história capaz de descobrir beleza no pequeno, no ínfimo, no pobre, no traste, no abandonado, no trapo, no vil, no chão. Uma história que não olhe apenas para o alto, para as coisas celestiais, para o grande, para o grandioso, para o famoso, para o heróico, para o único, para os espalhafatos do poder, mas que se deixa seduzir ‘pelas pessoas apropriadas ao desprezo’, que tenha olhos para o ordinário, o cotidiano, o semnobreza, o sem-riqueza, o sem-saber, todos os “sem-algo” que pululam em nossa sociedade pós-moderna. Sociedade que, como dizia Foucault, possui uma nova artimanha, a de incluir excluindo; que tem na exclusão parte importante do funcionamento do sistema. Sociedade da sobra e do resto, que precisa de um saber capaz de fazer destes ciscos, destes restolhos, novos inventos, que saiba dar grandeza aos andrajos, que tenha um olhar para abaixo, para o menor, para o insignificante, para os seres que na sociedade são chutados como lata: esta é uma questão de ética e uma questão de estética (Albuquerque Jr., 2007, p. 94-95). Com efeito, prolongando as ressonâncias dos versos do nosso escritor, lidos num espaço intertextual com a epígrafe inicial, sobrevêm sentidos homológicos na poética manoelina, ainda quando deparamos com o texto intitulado “Sobre sucatas” – sucata constitui significante caro à poética da oralidade manoelina (sublinhe-se) –, que assim exprime, na originalidade do traço primevo do escritor, suas memórias da infância: 22 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] Isto porque a gente foi criada em lugar onde não tinha brinquedo fabricado. Isto porque a gente havia que fabricar os nossos brinquedos: eram boizinhos de osso, bolas de meia, automóveis de lata. Também a gente fazia de conta que sapo é boi de cela e viajava de sapo. (Barros, 2006, p. 19). Sob esta perspectiva, a prosa de Manoel de Barros passa a constituir naturalmente uma “espécie de épica às avessas”9; é recorrência de coisas que se desenvolvem num tempo e num espaço quase que narrativo, meio que descritivo, no qual o projeto maior do sujeito é uma escrita metonímica do seu lugar de enunciação – o Pantanal. Aliás, este lugar, o Pantanal da Nhecolândia, foi definido “como um livro que nós, da universidade, não sabíamos ler”, conforme observou Fernandes, ao entrevistar um dos narradores pantaneiros: Fiquei extático diante da profundidade desta definição. Ele [ o narrador pantaneiro ], em outras palavras, dizia com isso que os causos contados por ele não são para ser entendidos dentro dos paradigmas verdade/ mentira, origem/persistência, mas sim, em seus contextos de produção e de significação. (Fernandes, 2004, p. 92). A fidelidade ao meio constitui um imperativo da prosa poética manoelina? Sem sombra de dúvida, a resposta é afirmativa. Livro de pré-coisas, Para encontrar o azul eu uso pássaros e a tríade Memórias inventadas expressam uma intenção voltada para o regional e o local. Muitas passagens desses textos revelam, intencionalmente, a história e o registro de acontecimentos cruciais como é o caso da Guerra do Paraguai, os episódios da infância do Autor e, ainda, as imagens do Pantanal. A tipologia do pantaneiro encontra aqui, como a do gaúcho, em Simões Lopes Neto, um cenário característico que se impõe por sua veracidade. Dessa perspectiva, o registro de um ethos particularizado é evidente. Manoel de Barros mantém o protótipo do pantaneiro tradicional; veja, por exemplo, no texto “Lides de campear”, onde o Autor define o que é um pantaneiro, inicialmente evocando o significado exposto na Grande 9 Ver: Camargo (2004). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 23 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] enciclopédia Delta Larousse: Diz-se de, ou aquele que trabalha pouco, passando o tempo a conversar (Barros, 1985, p. 35). Ao contestar a comparação, o escritor argumenta que a natureza do trabalho determina muito, pois como a lida a cavalo é monótona, repetitiva até por dias inteiros, além de cansativa, sempre um desafiar, um porfiar inerente, exige persistência. Assim: No conduzir de um gado, que é tarefa monótona, de horas inteiras, às vezes de dias inteiros, - é no uso de cantos e recontos que o pantaneiro encontra seu ser. Na troca de prosa ou de montada, ele sonha por cima das cercas. É mesmo um trabalho na larga, onde o pantaneiro pode inventar, transcender, desorbitar pela imaginação. (Barros, 1985, p. 35). (grifo nosso). Anteriormente, em livro de 1985, obra cuja representatividade torna-se um marco, também pela significativa anterioridade na obra completa do escritor, a partir do qual a reflexão sobre a identificação do elemento regional cresce, visível e exponencialmente, Manoel de Barros indica já no próprio título o lugar da enunciação, a voz do escritor, e o relato da vida nos pantanais – segundo as “coisinhas miúdas” que vêm revelar e encher de significação o universo do discurso da obra: trata-se da prosa subintitulada Roteiro para uma excursão poética no Pantanal, cujo título é Livro de pré-coisas. O título, assim, na sua significação mais plena, de elemento do paratexto, constitui um claro convite ao conhecimento de um lugar em especial, original, santuário / terra natal não só do nascimento do poeta, mas sobretudo de suas vivências, ele mesmo um vivente dos pantanais, que, logo em seguida descreve o lugar desta enunciação na abertura do texto “Mundo renovado”: “No Pantanal ninguém pode passar régua [...] A régua é existidura de limite. E o Pantanal não tem limites.” (Barros, 1985, p.31). Em sequência, na abertura do texto “Carreta pantaneira”, fala de um lugar onde as coisas acontecem através do não-movimento, elas apenas aparecem; imagens do visto e do que se vê, lugares sem limites, em um tempo primordial: “As coisas que acontecem aqui, acontecem paradas. Acontecem porque não foram movidas. Ou então, melhor dizendo: desacontecem”. (Barros, 1985, p. 33). 24 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] Além das descrições da “região-lugar-mundo” do escritor, Barros descreve o ato de recriar, numa linguagem oblíqua, no uso da oralidade, que lhe é peculiar, nomeando ou re-nomeando as coisas. O próprio Manoel de Barros, em Memórias inventadas: a infância, descreve sua visão oblíqua: [...] Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. [...]. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido, onde havia a transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos.Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores (Barros, 2003, s.d.). Aliás, a visão oblíqua que marca o olhar manoelino encontra iguais ressonâncias na linguagem do escritor mineiro, Guimarães Rosa, também identificada como oblíqua, conforme já observou Luisa Vasconcelos na análise de Tutaméia: Na linguagem oblíqua, pela sua irradiação, o significado radical e o real se dilata, alarga-se pelo contágio imaginário de outros significados, em graus diversos e dos mais vários modos, carregando-se da energia entitativa dos mesmos; e por esse contágio, seus contornos aparecem oscilantes e fluidos dinamizando a realidade (Coronado, apud Vasconcelos, 1997, p.54). Com efeito, a linguagem de Barros e Rosa nasce na voragem da oralidade que vem a constituir um registro interdiscursivo, fazendo aflorar o elemento primaz e soberano de suas escritas: a tradição da oralidade. Como se o próprio Vaqueiro Mariano relatasse o Pantanal como mundo, recriando retalhos de textos, de enunciados obtidos ao longo do tempo e da vida; resultante de uma oralidade dos narradores-contadores de causos pantaneiros, como bem destaca a perspicácia crítica de Wander Miranda: “Guimarães Rosa conseguiu fazer algo extraordinário: Grande sertão: Veredas é, nas palavras de Roberto Schwarz, o resultado de quinhentos anos de oralidade. É totalmente oral e, ao mesmo tempo, totalmente letrado (Miranda, 2006, p. 165). Assim, dizendo de um lugar particular, o poeta faz repercutir, por meio da própria voz, a fala do aldeão, não relatável por nenhum outro sujeito, pois que ninguém pode pensar (ou falar) por ele a não Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 25 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] ser ele próprio. Daí a classificação de linguagem oblíqua, como enfatiza Vasconcelos: “A linguagem oblíqua, por sua irradiação e opacidade, é aberta e sem recortes, ou seja, fundamentalmente interpretativa” (Vasconcelos, 1997, p.59); logo, a perspicácia da análise que enfatiza em Barros uma “épica às avessas”, pois trata-se na realidade de uma práxis do herói – a personagem Bernardo deste mesmo Livro de pré-coisas – que visa a agregar as coisas do chão em torno de si, como bem observou Camargo (2004, p. 111-112): “Situado na origem dos tempos, portanto, mítico, adâmico, Bernardo se confunde com o cão, se confunde com os bichos, assume características deles.” –, ilustrando com texto de “O personagem”, onde Bernardo se revela como personagem mais amada de Barros. Segundo Barros (1998), num importante volume (Gente pantaneira) que constitui valioso material histórico, sociológico, antropológico, folclórico, linguístico e genealógico, o meio físico-geográfico deveria influir no comportamento humano. Assim, o homem das montanhas, tendendo à introversão, ao ensimesmamento – nisso constituindo sua paisagem – diferencia-se do da planície, como o pantaneiro, cuja personalidade mostra-se mais aberta, solta e tendente à aventura e à mobilidade. Daí resulta que a beleza da paisagem – da planície – acaba imprimindo certa estética da amplidão ligada à abertura e largueza de vista. Em outro livro, Poemas concebidos sem pecado, o primeiro publicado por Manoel de Barros, em 1937, particularmente no texto “A draga”, leem-se descrições da região-lugar/mundo do poeta; descrições extensivas ao ato de recriar e/ou errar a língua, se não em uma forma de re-nomear as coisas, na de simplesmente recriá-las através da palavra “adâmica”, ainda não nomeada – como os usos / jogos que o poeta faz com o significado / dicionarização da palavra “draga”: A gente não sabia se aquela draga tinha nascido ali, no Porto, como um pé de árvore ou uma duna / [...] Abrigo de vagabundos e de bêbados, restaram as expressões: estar na draga, viver na draga por estar sem dinheiro, viver na miséria / Que ora ofereço ao filólogo Aurélio Buarque de Hollanda / Para que as registre em seus léxicos / Pois que o povo já as registrou. (Barros, 1937, p. 44-45). 26 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] De resto, o geógrafo Rogério Haesbaert (2006) sublinha, destacando, em nosso poeta, sua “velocidade das tartarugas mais do que a dos mísseis”, frisando, nesses espaços de “reenzaizamento”, o processo de territorialização como o que consegue alçar a condição de algo imanente do Ser, do homem e do mundo, um dos componentes indissociáveis da existência e que por isso, nunca será ‘morto’ pela desterritorialização – a não ser que desapareçamos nós e a Terra da qual julgamos ser os protagonistas mestres.” (Haesbaert, 2006, p. 371). A poética de Manoel de Barros: Uma excursão pelo chão do Pantanal De outra perspectiva, mas em sintonia com a nossa reflexão, o escritor e professor amazonense, Milton Hatoum, autor de Relato de um certo oriente, vem explicar como não só sua própria obra, mas a de todo escritor, está vicariamente ligada ao “lugar” de enunciação, diríamos de pertencimento do escritor. Numa obra literária os traços da cor local e as circunstâncias históricas, geográficas e sociais são inevitáveis, pois o escritor está sempre rondando suas origens; às vezes, sem se dar conta, são sempre essas origens que o seguem de perto, como uma sombra, ou mesmo de longe, como um sonho ou um pesadelo. (Hatoum, 1996, p. 11). Representativa parcela da produção literária manoelina faz repercutir o lugar de nascimento do narrador e muito de suas vivências, mostrandose entranhada num locus de enunciação, num universo de discurso que em tudo e por tudo fixa-se ao torrão natal, seja através da paisagem ou da oralidade local, como se observa em diversas passagens de Poemas concebidos sem pecado10: “- Eu só sei que meu pai é chalaneiro mea mãe é lavandeira e eu sou beque de avanço do Porto de Dona Emília [...]” (p.37); “sob o canto do bate-num-quara nasceu cabeludinho bem diferente de Iracema[...]”(p.9); “- Vou ali e já volto já” (p.15); “Nisso chega um vaqueiro e diz: - Já se vai-se, Quério? Bueno, entonces seja felizardo lá pelos rios de janeiros...” (p.17); 10 Cf. Barros (2005, passim). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 27 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] Verifica-se, assim, que o narrador demarca para o leitor a sua região geográfica: o coração do Brasil, o Pantanal sul-mato-grossense, construído através da matéria poética do autor; narrador/sujeito que vai revelando sua identidade, como é possível constatar em O livro das ignorãças, quando Barros apresenta o “Retrato falado” do narrador, revelando sua identidade pantaneira: Venho de um Cuiabá garimpo e de ruelas entortadas. Meu pai teve uma venda no Beco da Marinha, onde nasci. Me criei no Pantanal de Corumbá, entre bichos do Chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. [...]. (Barros, 1991, p. 107). Apesar de ter conhecido e até vivido em lugares como Rio de Janeiro, Nova York, Paris, Itália, entre outras metrópoles, Barros configura seus limites no chão do Pantanal. Ou seja, o locus de enunciação traz evidências de que esse local não é somente “matéria de poesia”, ou de carpintaria ou invenção, mas de “pertencimento”. Com os olhos voltados para o chão de onde emana a força maior de suas realizações, com a agressividade e o lirismo da terra, vindo ao encontro das inquietações e preocupações da contemporaneidade, Barros fala de um lugar particular, como o faz a personagem Bernardo, alter ego do escritor: Manoel de Barros escolhe para os seus poemas as figuras que não têm uma função social ou heróica e são destituídas da grandiloqüência épica. São as personagens do seu universo criado que respondem ao desejo do poeta de ocultar-se, falar de si disfarçado, multiplicar-se, dar forma ao seu eu fragmentado e dramatizar a sua sensibilidade poética. São personagens importantes na configuração da poética barreana, porque desvendam um processo de criação que dramatiza o eu lírico e, simultaneamente, informam sobre quem o poeta utiliza para falar em seu nome. (Camargo, 2004, p. 110). Em Livro de pré-coisas, o narrador vai se revelando e construindo sua identidade, num processo de identificação com sua origem, pois o “sujeito” desses textos, contador de estórias, transmuta-se em ser performático do espaço regional, descreve e demarca os elementos naturais: “Deixamos Corumbá tardeando. Empeixado e cor de 28 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] chumbo, o rio Paraguai flui entre árvores com sono...”. (Barros, 1993, p. 107). E, ainda, no mesmo texto, o narrador apresenta sua terra natal, Corumbá: Corumbá estava amanhecendo. [...] Aqui é o Portão de Entrada para o Pantanal. Estamos por cima de uma pedra branca enorme que O rio Paraguai, lá embaixo, borda e lambe. [...] Parece uma gema de ovo o nosso pôr-do-sol do lado da Bolívia. Se é tempo de chover desce um barrado escuro por toda a extensão dos Andes e tampa a gema. [...]. (Barros, 1993, p. 11). Segundo Ricciardi (2008), em “Espaço biográfico e literatura”, os espaços na literatura são inúmeros e coloridos: “existe, antes de mais nada, um lugar, um espaço da alma e do corpo, um eu que interage com os outros, com o ambiente, com a história e as estórias e que caracteriza a minha maneira de ser, a maneira de ser do escritor ou até de uma geração.” (Ricciardi, 2008, p. 111). Aponta, ainda, motivos para discutir a relação de espaço biográfico versus criação literária, pois, segundo o crítico: “Às vezes, porém, é o conhecimento das variáveis históricas, é o conhecimento dos ‘acidentes’ [termo que o crítico observa sua utiliza em oposição à substância] de um texto que permitem entender mudanças, passagens, escatologias na trajetória de uma obra ou de um autor” (Ricciardi, 2008, p. 111). Ao discutir o aspecto relacional do texto com a identidade e pertencimento do autor, o ensaísta tece observações não só sobre a escrita manoelina, mas também propõe significativa análise de autores como Ferreira Gullar, que assim se posicionara sobre a questão: “Minha luz, minha poesia nasce do chão, das pessoas e não do céu nem de anjo algum.” (p.113. grifo nosso). O que se pode comprovar, assim, dentre outras passagens, no seguinte no trecho do poema “XIII”, de O livro das ignorãças, onde o narrador manoelino descreve os lugares vividos, presentificando-os enquanto lugares de pertencimento: De 1940 a 1946 vivi em lugares decadentes onde o Mato e a fome tomavam conta das casas, dos seus Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 29 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] Loucos, de suas crianças e de seus bêbados. Ali me anonimei de árvore. Me arrastei por beiradas de muros cariados desde Puerto Suarez, Chiquitos, Oruros e Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia. Depois em Barranco, Tango Maria (onde conheci o poeta Cesar Vallejo), Orellana e Mcomonco – no Peru. […]. (Barros, 1993, p. 103). Segundo Nolasco (2008, p. 66), deve-se observar que: “Na poesia, na escritura, na literatura, na cultura, na história, o biográfico existe para marcar a diferença ancestral do sujeito, que varia de sujeito para sujeito, de lugar para lugar, de cultura para cultura”. Depreende-se, então, que as imagens suscitadas na prosa de Manoel de Barros correlacionam-se à vida, ao cotidiano e revelam a oralidade, as expressões populares e regionais. Barros trabalha com o ethos da oralidade perdida dos xaraiés, línguas que são substrato da poética do escritor e que, comparada ao kotyú – forma poética guarani que se caracteriza por ser breve –, em cada fragmento, podemos ler o frescor desses dialetos e idiomas perdidos dos Xaraiés, e através da escritura oralizada do poeta, como salientou Douglas Diegues, outro escritor da fronteira. Sob esta perspectiva, Barros transmuta-se na personagem Bernardo, a mais importante de Livro de pré-coisas e presente em vários textos do escritor. Bernardo é aquele que, nas águas, escreve com as unhas o Dialeto – Rã: Falado por pessoas de águas, remanescentes do Mar de Xaraiés, o Dialeto - Rã, na sua escrita, se assemelha ao Aramaico idioma falado pelos que habitavam a região pantanosa entre o Tigre e o Eufrates. Sabe-se que o Aramaico e o Dialeto - Rã são línguas escorregadias e carregadas de consoantes líquidas. É a razão desta nota. (Barros, 1990, p. 281). Considerações finais A expressiva maioria dos textos de Manoel de Barros são escritos em forma de prosa poética e não apresentam propriamente relatos de sua vida, acontecimentos históricos que narram como os fatos aconteceram, porém observam-se indicativos claros de vivências, experiências que denotam o sujeito da prosa poética. São pensamentos livres, soltos, 30 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] “inventados”, mas que indicam um lugar de pertencimento, comovendo, persuadindo o leitor a também enxergar esse mundo narrado. Por isso, Barros expressa: “O tema da minha poesia sou eu mesmo e eu sou pantaneiro” (Barros, apud Béda, 2002, v. 2). Num jogo com as palavras, o autor provoca o leitor a constatar que fala de si mesmo. Dessa forma, a poesia é o próprio Pantanal, as vivências do escritor a partir da visão de menino. Se a enunciação é a via de acesso às construções semiodiscursivas, ou seja, constituindo a instância de mediação que produz o discurso, é importante observar, como faz Diana Barros, que “o sujeito da enunciação [...] está sempre implícito e pressuposto no discurso-enunciado” (Barros, 2002, p. 74). Agamben (2007), em “O autor como gesto”, contesta o tema da impessoalidade da escrita, assim estabelecendo a importância do autor no gesto de afastamento que ele tece em relação à obra, na sua ausência, que, deste modo, deverá encontrar um movimento solidário por parte do leitor, ou seja: “o autor não é senão a testemunha que o afiança da própria falta na obra em que foi jogado” e o leitor não pode senão voltar a soletrar esse depoimento, não pode senão, por seu turno, deixar de modificar-se em fiador do próprio inexausto ato de jogar de não ser suficiente (Agamben, 2007, p. 63); assim, autor e leitor estão em relação com a obra sob a condição de permanecerem inexpressos e o texto irradia o testemunho dessa ausência. Nesse aspecto, “a função-autor aparece como processo de subjetivação mediante o qual um indivíduo é identificado e constituído como autor de um certo corpus de textos”, e “toda investigação sobre o sujeito como indivíduo parece ter que ceder o lugar ao regesto, que define as condições e as formas sob as quais o sujeito pode aparecer na ordem do discurso”11. Agamben observa, ainda, que “o autor não está morto, mas pôr-se como autor significa ocupar o lugar do morto. Existe um sujeito-autor, e, no entanto, ele se atesta 11 “Regesto é uma coletânea de atas e documentos, resumidos ou transcritos em suas partes consideradas essenciais, ou então um resumo de um determinado documento histórico” (Cf. Agamben, 2007, p. 57). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 31 Paulo Sérgio Nolasco dos Santos / Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa [15-34] unicamente por meio dos sinais da sua ausência”. Isso leva o pensador a concluir que “o lugar – ou melhor, o ter lugar – do poema não está, pois, nem no texto nem no autor (ou no leitor): está no gesto no qual autor e leitor se põem em jogo no texto e, ao mesmo tempo, infinitamente fogem disso” (p. 58). Desse modo, o autor é tão somente a testemunha, o fiador de sua própria ausência na obra, competindo ao leitor, por sua vez, retraçar essa ausência, o lugar vazio do vivido, como infinito reinício do jogo. Logo, de acordo com o filósofo contemporâneo, o sujeito é o que resulta do encontro e do corpo-a-corpo com os dispositivos em que foi posto – se pôs – em jogo (Agamben, 2007, p. 63). Concluindo, em Paisagens originais (2002), Rolin demonstrou que cada escritor compõe sua própria “paisagem original”, uma vez que a obra de um escritor conduziria aos labirintos minuciosos do passado, como os amores da infância correm no mundo dos sonhos, e que há um estranho frêmito que cresce em todos nós nesses momentos em que a lembrança se une ao sonho. De tal forma que a paisagem original de um Borges, por exemplo, reduzir-se-ia a seus elementos absolutamente primeiros, do espelhamento infinito, repetição de um tempo cíclico, reprodução de um mundo original do qual o nosso seria apenas a imagem especular. Dessa perspectiva, resultaria uma concepção de “lugar, espaço da memória”, no qual “as paisagens originais são os espaços sentimentais pelos quais estamos ligados ao mundo, os istmos da memória” (Rolin, 2002, p. 148-149). Sob esse ponto de vista, em relação à prosa manoelina sublinha-se que os vários textos grifados, sob o nome e a assinatura do escritor/Autor, deixam-se refletir como num espelho tríptico, onde a escritura manoelina é, simultaneamente, contraface da história do local e do chão em que todos os três germinaram. 32 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Manoel de Barros: ethos e oralidade no chão do Pantanal [15-34] REFERÊNCIAS ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006. AGAMBEN, Giorgio. O autor como gesto. In: _____. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ALBUQUERQUE Jr., Durval Muniz de. História: A arte de inventar o passado. Bauru: Edusc, 2007, p. 85-97. BARROS, Abílio Leite de. Gente Pantaneira. (Crônicas de sua História). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1998. BARROS, Diana L. P. de. Teoria do discurso. São Paulo: Humanitas, 2002. BARROS, Manoel de. Poemas concebidos sem pecado (1937). 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Ana Maria dos Anjos Martins Barbosa é mestre em Letras pela FACALE/UFGD. 34 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] A construção do discurso publicitário: entre os provérbios e os mass media, o trabalho da memória Vânia Maria Lescano Guerra Anita Luisa Fregonesi de Moraes Resumo: Considerando que, de acordo com a Análise de Discurso, os processos que constituem a linguagem são histórico-sociais e o discurso é visto como efeito de sentido entre interlocutores (FOUCAULT, 2005), este trabalho analisa a constituição dos sentidos dos enunciados proverbiais inseridos em textos publicitários publicados, em 2005 e 2006, em dois veículos de comunicação de massa, a revista semanal Veja e o jornal diário Folha de S.Paulo. Para fundamentar nossas análises, articulamos a teoria polifônica de Ducrot (1987) e a heterogeneidade de Maingueneau (2005) que, aliadas ao arcabouço teórico da Análise do Discurso de linha francesa, permitem descrever os fatos da língua, verificados no fio discursivo de dois textos publicitários, e compreender os efeitos de sentido produzidos pelo cruzamento do interdiscurso com o intradiscurso por meio do trabalho da memória. Palavras-chave: provérbios; discurso publicitário; mass media. Abstract: It’s known that, according to the Discourse Analysis, the processes that constitute the language are social-historical and the discourse is seen as a meaning effect between interlocutors (FOUCAULT, 2005), the objective of this article is to analyze the proverbial statements constitutes inserted in advertising texts published predominantly in 2006, in two vehicles of mass communication, the weekly magazine Veja and the periodical daily Folha de S. Paulo. To base our analyses, we articulated the poliphonic theory of Ducrot (1987) and the heterogenity of Maingueneau (2005) with Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 35 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] the French Discourse Analysis theory that allows to describe the facts of the language, verified in the discursive wire of 2 advertising texts, and to understand the meaning effects produced by the relation of interdiscourse and intradiscourse according to the work of memory. Keywords: proverbs; advertising discourse; mass media. Introdução Neste trabalho, propomo-nos estudar enunciados publicitários, tendo como objeto de análise propagandas veiculadas na mídia impressa, construídas a partir da articulação de provérbios. Analisar discurso não é uma tarefa fácil, dadas as inúmeras definições do termo oriundas de diferentes concepções teóricas; além disso, para se referirem às produções verbais os linguistas também recorrem aos termos “enunciado” e “texto”. Inicialmente, cabe-nos, portanto, precisar a perspectiva teórica abordada nesta análise. Maingueneau (2005, p.51), ao tratar especificamente do termo discurso, destaca seus empregos usuais: são os enunciados solenes (“o presidente fez um discurso”), as falas inconsequentes (“tudo isso é só discurso”) ou um uso restrito da língua (“discurso político”). O termo discurso constitui parte essencial das ciências da linguagem e é empregado tanto no singular, referindo-se à atividade verbal em geral, como no plural, ao se referir a cada evento da fala. Na verdade, esse termo representa uma mudança na maneira de conceber a linguagem ao considerar o texto como unidade primeira (o texto precede as sentenças), tendo como condição essencial a textualidade: “relação do texto consigo mesmo e com a exterioridade” (ORLANDI, 2004, p.52). É no sentido de “exterioridade” que a perspectiva abordada neste trabalho difere dos outros campos de investigação linguística. Aqui, texto é um objeto histórico, resultado de uma atividade subjetiva inscrita em um contexto determinado - texto como discurso. A filiação teórica adotada neste trabalho, portanto, é a da Análise de Discurso de origem francesa (AD), que considera o contexto histórico-social parte constitutiva 36 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] do sentido e não apenas um apêndice que pode ou não ser considerado. Ou seja, no discurso os sentidos são historicamente construídos. Para a AD, então, o texto é considerado um objeto linguístico-histórico. Michel Pêcheux, Dominique Maingueneau e Oswald Ducrot são os autores em que buscamos apoio teórico, já que, de uma maneira abrangente, concebem o discurso como o lugar da manifestação de uma subjetividade atravessada pela presença do Outro/outro. Nesse sentido trazem uma contribuição aos estudos dos discursos: qualquer modificação na materialidade linguística, a ordem significante, corresponde a diferentes gestos de interpretação, compromisso com distintas posições do sujeito, com diferentes formações discursivas, distintos recortes de memória, ou seja, diferentes relações com a exterioridade. O aprofundamento da teoria do discurso no que se refere à subjetividade, à polifonia, à historicidade e às redes de memória fez-nos pensar nos enunciados proverbiais em um contexto mais específico de como se constituem os efeitos de sentido no discurso. À necessidade de definir um objeto de pesquisa aliou-se o estudo dos gêneros discursivos e, dessa maneira, chegamos ao discurso publicitário12. Para Brandão (1998), a noção de gênero é um tema constante dos estudiosos da linguagem desde Platão e Aristóteles. Inicialmente, o estudo dos gêneros restringiu-se à poética e à retórica por dois motivos: a ciência linguística é recente e sua preocupação inicial foi com as unidades menores que o texto. À medida que ela passa a trabalhar não só com textos literários, mas também com o funcionamento de quaisquer textos, a questão dos gêneros torna-se crucial para os estudos linguísticos. Sabemos que o discurso publicitário é altamente persuasivo, oferecendo um “mundo colorido” de abundância, progresso e felicidade. Em decorrência disso, a mensagem é manipulada de modo que ao 12 O termo discurso aqui toma um valor mais preciso, sendo considerado como um uso restrito da língua, definida como um sistema compartilhado. Nesse sentido, discurso publicitário trata-se de um tipo de discurso (MAINGUENEAU, 1998, p.43). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 37 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] discurso de apresentação do objeto desejado sobrepõe-se um discurso de representação dos sujeitos “desejantes” (LANDOWSKI, 1992, p.105). Assim, o discurso publicitário oferece as imagens que valorizam o produto e, ao mesmo tempo, constitui a identidade de seu público, oferecendo a suposta imagem de seu desejo, utilizando para tanto todos os recursos disponíveis dos códigos linguístico e não linguístico. Pensando especificamente no caso dos enunciados proverbiais usados nos textos publicitários, recorremos a Obelkevich (1997, p.45) para quem, tradicionalmente, os provérbios são “estratégias para situações, mas estratégias com autoridade, que formulam uma parte do bom senso de uma sociedade, seus valores e a maneira de fazer as coisas”. Para o autor, o que define o provérbio não é a sua estrutura linguística, mas a sua função externa, normalmente moral e didática: as pessoas utilizam-no para dizer às outras que atitude tomar em relação à determinada situação. Assim é que se pode entender a expressão “bom senso”, utilizado por Obelkevich. Encaramos o uso dos provérbios nos textos publicísticos como uma das estratégias de persuasão, utilizando a voz do senso comum, da comunidade, que fala por intermédio deles. Dessa maneira, procuramos mostrar que diferentes vozes, trazidas pela memória discursiva, se cruzam nesses enunciados, e que é no encontro dessas vozes com a voz do emissoranunciante13, em posição de enunciador, que se constitui o sentido. Os estudos sobre memória social e suas relações com as várias formas de se conceber o arquivo acompanham a produção do conhecimento humano e se relacionam ao percurso da história. Da nossa perspectiva metodológica, o conceito de arquivo segue Foucault (2005, p. 149) quando afirma que o arquivo é “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares”. O arquivo é o que faz com que todas as coisas ditas não desapareçam ao simples acaso de acidentes da exterioridade do discurso, “mas que se agrupem segundo regularidades específicas”. 13 Expressão usada por Landowiski (1992, p.104). 38 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Os textos publicitários analisados foram retirados de dois veículos de comunicação social, a saber, a revista semanal Veja e o jornal diário Folha de S. Paulo. No nosso exercício de análise, trabalhamos a materialidade descritível do corpus, num nível intradiscursivo, como suporte da emergência do interdiscurso, pontuando o caráter heterogêneo e polifônico da linguagem, a partir de uma memória discursiva. A escolha desses dois veículos comunicacionais deu-se, primeiramente, por serem eles reconhecidos pela credibilidade e pela maior penetração junto ao público leitor. Em segundo lugar, pela frequência de sua publicação: a revista é semanal e o jornal, diário. Seguindo essa orientação, a pesquisa baseia-se na análise do discurso publicitário, e vai detectar pontos onde transpareçam as posturas ideológicas que dizem respeito à presença dos interdiscursos que se materializam nesse discurso, e os efeitos de sentido relacionados ao regime político, ao modelo econômico, e, finalmente, à sociedade brasileira. Para tanto, mobilizaremos o recorte, seguindo a visão de Orlandi, que é uma unidade discursiva: fragmento correlacionado de linguagem – e – situação. Tais recortes são feitos na (e pela) situação de interlocução, aí compreendido um espaço menos imediato, mas também de interlocução, que é o da ideologia. Assim, “o texto é o todo em que se organizam os recortes” (ORLANDI,1986, p. 139). Como procedimento metodológico, enumeramos os recortes, nos quais se busca reconhecer as diferentes representações do sujeito no discurso, por meio do exame de algumas marcas discursivas que trazem as várias presenças do outro, bem como de alguns efeitos de sentido instaurados pelos argumentos analisados. Portanto, ao desenvolvermos este estudo, que articula a influência dos interdiscursos e de suas ideologias presentes na materialidade linguística, à luz das teorias da AD, mobilizamos questões históricas e sociais, as condições de produção que, num sentido estrito, são as circunstâncias de enunciação, o contexto imediato; e num sentido amplo, as condições são representadas pelo contexto sócio-histórico a fim de entendermos essa materialidade específica. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 39 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] 1. O discurso publicitário e a cultura dos provérbios O poder da publicidade está na linguagem. Segundo Quessada (2003, p.120), “a linguagem faz parte do produto”, ambos são co-produzidos, testados junto aos consumidores que, de certa maneira, elaboram os enunciados que irão seduzi-los. O discurso publicitário torna-se, assim, um “discurso do produto”, do qual as empresas se servem para convencer e seduzir. Desse modo, o capitalismo apodera-se da linguagem e a utiliza para fins comerciais; para tanto, a publicidade modela a linguagem à maneira dos produtos: elabora sequência de palavras, inventa e testa sistemas de enunciados e certas configurações linguageiras. Há uma distinção entre publicidade de marca e a publicidade institucional. A primeira destina-se a divulgar um produto e promover seu consumo e para isso utiliza estratégias do tipo direta ou indireta, ou seja, utiliza-se de um discurso mais enfático em que predomina a função conativa14, como no primeiro tipo, ou anunciam-se apenas as virtudes e /ou o nome do produto, no caso da estratégia indireta. A publicidade institucional, por sua vez, trata da valorização de si, estabelecendo uma relação com o público. No discurso publicitário há também uma distinção entre propaganda e publicidade. Para Carvalho (1998), propaganda refere-se à mensagem política, religiosa, institucional e comercial, dirigese, portanto, para os valores éticos e sociais. O termo publicidade, por sua vez, abrange apenas as mensagens comerciais, explorando o universo dos desejos. Nesse sentido, ela é mais leve, mais sedutora que a propaganda, já que utiliza subterfúgios na estratégia de convencimento, de sedução. A diferença entre os termos está, portanto, no universo que cada uma delas aborda. Não exploramos o mérito dessa diferença, pois, para o nosso trabalho isso não é relevante. 14 De acordo com a tipologia das funções da linguagem de R. Jakobson, os discursos são classificados de acordo com a função predominante. Nos textos em que a função conativa predomina, o locutor procura agir sobre o outro. É importante salientar, entretanto, que o discurso mobiliza várias funções ao mesmo tempo. (MAINGUENEAU, 2005, p.60) 40 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Usamos o termo publicidade e a expressão discurso publicitário para nos referirmos ao domínio discursivo em que se inscrevem os enunciados proverbiais, objeto desse estudo. Nesse sentido é que também referimonos à expressão mensagem publicitária, largamente utilizada pelos autores Landowski (1992) e Eco (2003). Os enunciados proverbiais, objeto deste trabalho, são partes constituintes de discursos publicitários, portanto, estão inseridos no universo discursivo que descrevemos acima. Eles fazem parte de uma estratégia discursiva para seduzir o enunciatário, o alvo da mensagem, a fim de que ele adquira determinado produto, acreditando que essa é a sua vontade e não a do enunciador. A publicidade explora estratégias comerciais para a conquista de mercado, manipulando, muitas vezes, instrumentos culturais (no nosso caso, os provérbios) que influenciam o comportamento do consumidor. Dessa maneira, o discurso publicitário age sobre o indivíduo, os grupos sociais, a sociedade como um todo. Para o liberalismo, liberdade se resume à liberdade de comerciar: liberdade de escolher entre todos os produtos de que fala a publicidade, transformando ideologicamente o cidadão em consumidor. Por isso, o papel do discurso publicitário não se resume apenas à comunicação, ele estabelece relações de vínculo na sociedade. Para Quessada (2003), a publicidade cria e define territórios (os territórios das marcas) aos quais se aderem as pessoas e, para que o discurso publicitário funcione como sistema, repetindo que a liberdade é consumo, a imprensa, o rádio e a TV tornam-se instrumentos do marketing. Desde que a ciência se atribuiu um lugar específico na sociedade, delimitando e distinguido seus campos, o que restou dessa limitação é o que se pode denominar cultura. A ruptura que a ciência produziu entre as línguas artificiais, seus discursos, e os falares populares é ainda uma estratégia para confirmar seu poder, desautorizando o saber sobre as práticas sociais. Os enunciados proverbiais, como práticas discursivas exemplares, apresentam marcas enunciativas, representam modalizações da prática social, “instrumentos manipuláveis por usuários” (DE CERTEAU, 2005, p.82); indicam, portanto, uma historicidade. Os provérbios são, Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 41 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] dessa maneira, registros atemporais de cultura popular, representam vozes de pessoas comuns conversando em inúmeras situações da vida cotidiana, incorporando atitudes populares. São enunciados impessoais e anônimos que têm uma existência própria, independente de autores, falantes ou ouvintes. Apesar de serem facilmente reconhecidos, são difíceis de serem definidos. Apesar de os provérbios serem usados na escrita, pertencem primordialmente à oralidade, e oferecem conselhos e sabedoria, proferidos em um tom sentencioso. Transmitem não só conhecimento moral como também prático, social e profissional. Estruturalmente, os enunciados proverbiais são breves, fáceis de serem memorizados. Linguisticamente são ricos em metáforas, aliterações, rimas, construções binárias ou simetrias entre as partes que criam um eco do sentido. Mas o que define, na realidade, os provérbios não é sua forma interna, mas sua função externa moral e didática. Eles podem ser usados em qualquer situação e seu papel moral pode ser aplicado informalmente, no cotidiano, ou no ensino formal, como nas escolas de ensino básico do século XIX. Em situações de conflito, servem para atenuar uma crítica ao expressar uma desaprovação de forma indireta. Eles são vistos como parte de um código restrito que aprisiona a experiência. Diante disso, há uma tendência atual em esvaziar seu conteúdo tradicional, deixando de expressar a sabedoria popular para tornar-se matéria-prima da originalidade do falante. Essa tendência está mais difundida do que nunca em todos os níveis culturais como nos grafites, nos textos publicitários ou na literatura. Os enunciados proverbiais apresentam uma dupla visão: à primeira vista, parecem sensatos, estabelecidos numa ordem cotidiana, representantes da condição humana. Mas, se analisados mais de perto, indicam uma fonte de disputas sociais: envolvidos na política da linguagem, transformam-se em variáveis históricas e sociais. Ao serem questionados pelas elites culturais como o “outro” linguístico associado aos plebeus e pequeno-burgueses, o que está em jogo não é apenas a sua “vulgaridade”, mas a própria natureza e os rumos da cultura de elite. 42 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] 2. Uma análise dos enunciados publicitários ancorados nos provérbios Considerando que nosso objetivo neste artigo é estudar enunciados publicitários, tendo como objeto de análise propagandas veiculadas na mídia, construídas a partir da articulação de provérbios, torna-se necessário nesta etapa apresentarmos os dois enunciados publicitários selecionados. Ressaltamos que eles estão elencados, a partir da sequência que adotamos também na articulação de nossas análises, especificados pelos suportes midiáticos FSP (Jornal Folha de S. Paulo) e RV (Revista Veja) e suas respectivas datas de publicação, a saber: 1. “Pode tirar a coroa. Uma rainha nunca perde a majestade. Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil. www.bohemia. com.br. Aprecie com moderação”. RV, ed.1960; ano39; n°23; 14/06/06. 2. “O Continental planta surpresas para você colher emoções. Continental Shopping”. FSP, 19/12/05. Os provérbios representam um tipo relativamente estável de enunciado, numa perspectiva estilística, composicional e, muitas das vezes, temática. Isso nos faz considerá-los, de acordo com Bakhtin (1992), pertencentes a um gênero específico do discurso. Estão intimamente ligados à cultura popular, caracterizada como uma atividade resistente a uma “rede de forças e de representações estabelecidas” (DE CERTEAU, 2005, p. 79), alterando as regras desse espaço opressor. São enunciados metafóricos marcados por usos e por uma historicidade social e que incorporam atitudes populares. Por serem atemporais e representarem a voz do senso comum, sua enunciação é “fundamentalmente polifônica” (MAINGUENEAU, 2005, p.169). Proferir um provérbio é dar à voz do enunciador uma outra voz, a voz do bom senso e dos valores de uma sociedade, sem deixar, entretanto de dar responsabilidade ao enunciador, já que ele faz parte, assim como o provérbio, de uma comunidade. Cabe ao co-enunciador reconhecer o provérbio como tal, apoiado em sua memória e em sua estrutura composicional. Pela sua característica de impessoalidade, não se referem a situações enunciativas particulares, são apenas estratégias, embora com autoridade, para determinadas situações. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 43 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] Na perspectiva da AD, há dois tipos de universos discursivos: os logicamente estabilizados, representados pelos discursos das tecnologias, das ciências da natureza, etc. e os não estabilizados logicamente, dos quais fazem parte o discurso político, o sócio-histórico e os registros do cotidiano, incluídos neste último os provérbios. Dessa maneira, trabalhar com esse gênero discursivo implica trabalhar com a sua materialidade discursiva, o real da língua na sua existência simbólica, abordando-a a partir do “equívoco”, de sua heterogeneidade. Isso quer dizer que os provérbios, vistos como enunciados, são suscetíveis a tornarem-se outros, de deslocarem discursivamente de seus sentidos para outros sentidos. Nesse processo interferem diretamente as condições de produção, que compreendem os sujeitos, a situação e a memória discursiva, ou seja, aquilo que já foi dito antes, em outro lugar e que retorna sob a forma do já-dito. É a memória discursiva, o interdiscurso, que vai disponibilizar os dizeres que vão determinar o modo como o sujeito faz a significação em uma dada situação enunciativa. A enunciação proverbial, vista como estereotipada, torna-se outra no discurso midiático, adquirindo novos sentidos cujos limites são dados pela situação enunciativa. Nesta etapa de análise, apresentamos os textos publicitários, em que podemos verificar que a relação, nesse caso, entre o enunciado original e o do texto publicitário não é exclusivamente lúdica, pois permite que este construa sua própria identidade. Um discurso pode imitar um outro a partir de duas estratégias opostas: captação e subversão (MAINGUENEAU, 2005, p. 173). Nesta, há uma desqualificação do texto imitado, tendendo à paródia em que a estratégia da captação difere da subversão, pois captar um texto significa tomar a mesma direção que ele, apropriar-se de seu valor pragmático. Exemplo de captação é o texto publicitário retirado da Revista Veja, de 14 de junho de 2006, mobilizado na Figura 1: 44 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Figura 1 - Pode tirar a coroa. Uma rainha nunca perde a majestade. Bohemia, a primeira e melhor cerveja do Brasil. Aqui, o enunciado original (Um rei nunca perde a majestade) sofre uma mudança de gênero e cabe ao enunciatário a responsabilidade de reconhecê-lo como sendo um provérbio. O enunciador, ao propor a sua utilização, conta com a colaboração do leitor no seu reconhecimento como tal, isso porque ambos fazem parte do conjunto de falantes da língua à qual o enunciado pertence e, nesse sentido, a memória discursiva disponibiliza seu reconhecimento, já que “a percepção é sempre atravessada pelo ‘já ouvido’ e o ‘já-dito’” (PÊCHEUX, 1990). Enunciador e enunciatário, sujeitos participantes do processo discursivo, são pensados como “posição” na estrutura de uma formação social, ou seja, os sujeitos se encontram representados no processo discursivo. Desse modo, cada um deles atribui um lugar a si e ao outro, constituindo, nesse sentido, uma imagem que fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro. É no entrecruzamento da memória discursiva com Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 45 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] os lugares estabelecidos pelos sujeitos, as formações imaginárias, que se constituem o reconhecimento do provérbio como tal e a produção do sentido. O enunciador desse texto propagandístico usou o provérbio porque é um texto facilmente reconhecido por estar inscrito numa memória coletiva, social, e isso lhe dá a certeza de que seu enunciatário, representado, no caso, pelos leitores da revista, irá reconhecê-lo como tal. Essa certeza está baseada, inconscientemente, nos lugares sociais que eles, enunciador (publicitário) e enunciatário (leitores de Veja) ocupam. Seu significado original, literal, indica a permanência de um poder, independentemente de uma situação adversa. A sociedade atual é caracterizada pelo exercício político da democracia, na qual as palavras rei/rainha, coroa e majestade não têm valor denotativo, mas (res)significam porque constituem um fato social pertencente a uma memória coletiva referente às relações sociais e políticas de uma época específica da história nacional. É possível, então, a partir disso, opor história à memória coletiva, esta como lembrança, “corrente de pensamento contínua no seio do grupo social” e aquela como conhecimento descontínuo e exterior ao próprio grupo. As palavras rei/rainha, coroa e majestade, portanto, significam porque fazem parte dessa “corrente de pensamento” presente na sociedade já que sua força histórica – fomos colônia subordinada à monarquia por três séculos – é constantemente rememorada nos manuais escolares. Todo funcionamento da linguagem apóia-se na tensão entre os processos parafrásticos e polissêmicos (ORLANDI, 1999). Aqueles, o espaço da estabilização, da memória e estes, o espaço do deslocamento, da ruptura e é no jogo entre o mesmo e o diferente que os sentidos se movimentam. O sentido e os sujeitos derivam para outros sentidos, outras posições e essa deriva é o efeito metafórico, é “a palavra que fala com outras” (p.53). Sabemos que uma das características dos provérbios é seu efeito metafórico. Para a AD, a metáfora significa um deslizamento de sentido, deslizamento este constitutivo da língua. Dessa maneira, as expressões 46 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] linguísticas rainha e perder a majestade adquirem novos significados, transferem seus sentidos para outros associados a uma situação discursiva específica, no caso, a propaganda de uma marca de cerveja. Dessa perspectiva, então, o leitor desliza o sentido original para outro: a cerveja (rainha) será sempre a preferida entre os consumidores (nunca perder a majestade). Esse novo significado é ainda corroborado pela sentença seguinte: Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil. Na teoria polifônica de Ducrot (1987), o enunciado pode ser atribuído a um ou a vários sujeitos e, dentre estes, há a necessidade de distinguir os locutores e os enunciadores. Locutor é a quem se deve a responsabilidade do enunciado e, necessariamente, não é o mesmo que o seu produtor, o sujeito falante. Enunciador é o ser responsável pela enunciação, no sentido de ponto de vista, de posição, sem que lhe sejam atribuídas palavras precisas. Nesse sentido, o locutor apenas manifesta o ponto de vista do enunciador. Assim é que podemos compreender o enunciado Bohemia. A primeira e melhor cerveja do Brasil. Nesse caso, as palavras primeira e melhor modalizam-no, marcando uma perspectiva concessiva do enunciador. Há outras cervejas no Brasil, que podem ser consideradas boas, mas a Bohemia é a pioneira (desde 1853, data registrada na fotografia que ilustra a mensagem publicitária) – primeira - e supera em qualidade todas as outras – melhor. Da mesma maneira, compreende-se o enunciado Aprecie com moderação, cujo enunciador representa o consenso geral de uma sociedade para a qual a bebida alcoólica, ingerida em excesso, causa prejuízos à saúde do indivíduo, além da possibilidade de provocar acidentes que tragam danos materiais e físicos a si e a outros. Há ainda nesse texto uma outra associação metafórica ligada indiretamente ao provérbio e lingüisticamente marcada pela palavra coroa. Aqui, o significado literal associa-se à palavra rainha, presente no provérbio utilizado, mas, novamente pelo deslizamento de sentidos, podemos associar ao fato de que, apesar de haver outras marcas de cerveja disponíveis no mercado, a cerveja Bohemia continua sendo a preferida. Os códigos publicitários funcionam em um duplo registro: Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 47 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] verbal e visual (ECO, 2003). Aquele, muitas vezes, com o objetivo de ancorar a mensagem deste, embora essa ancoragem não seja parasitária. Uma das finalidades de uma investigação retórica da publicidade é saber como se cruzam esses dois códigos. A cerveja Bohemia é pioneira no mercado e, apesar do surgimento de outras marcas, ela continua sendo a preferida dos consumidores. Esse é o sentido do texto publicitário em questão. Ele (o sentido) só pôde ser compreendido porque enunciador e enunciatário compartilham de uma filiação de dizeres, de uma memória que permite que se reconheçam discursos cristalizados, mesmo que subvertidos em sua forma original, considerando suas condições de produção. Como se trata de um texto publicitário, esse sentido, ainda, é corroborado pela imagem associada metaforicamente à materialidade linguística do enunciado. O outro exemplo de captação é O Continental planta surpresas para você colher mais emoções, em comemoração aos 30 anos do Continental Shopping (Figura 2), publicado no jornal Folha de S. Paulo, em 19 de dezembro de 2005. Figura 3 - O Continental planta surpresas para você colher mais emoções. Nesse caso, o provérbio que sofreu a transformação é “Quem planta, colhe”. Embora esse enunciado tenha como característica apresentar dois verbos que, de acordo com a gramática tradicional, são classificados com transitivos diretos, pois “exigem uma palavra para completar-lhes o significado” (CUNHA, 1970, p.65), seus complementos não são linguisticamente marcados e é essa característica que é explorada pelo texto publicitário analisado. 48 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Numa perspectiva discursiva, o preenchimento das lacunas do provérbio original se dá pela relação entre o acontecimento do dizer e o espaço histórico da constituição desse dizer. O fato de o sujeito assumir um lugar nesse espaço da história permite a ele estabelecer recortes de significação nesse preenchimento, pois, para Dias (2002), a transitividade é um fenômeno que se desenvolve num espaço mais ampla do que o campo lexical do verbo. Assim, um aspecto importante a ser considerado é o fato de que isso se configura num recorte de memória relativo à submissão às dicotomias socialmente marcadas como ações positivas x ações negativas: Quem planta (intriga/amor), colhe (desavenças/carinho). Os discursos são constituídos pelas condições de produção, que funcionam de acordo com certos fatores, como as relações de sentido: “um dizer tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis” (ORLANDI, 1999, p.39). São essas relações que não só nos permitem associar o texto publicitário ao provérbio “Quem planta, colhe”, pois esse enunciado pertence a uma memória coletiva, como também, a partir das dicotomias sociais, preencher suas lacunas linguísticas com as palavras surpresas e emoções. O aspecto positivo do lugar da constituição do objeto direto (surpresas / emoções) está intimamente relacionado com outro fator das condições de produção do discurso, o mecanismo de antecipação, que regula a argumentação do sujeito de acordo com o efeito que ele pensa produzir em seu ouvinte, no caso, os leitores do jornal. Considerando que ao discurso publicitário sobrepõe-se um discurso figurativo de representação dos sujeitos desejantes (LANDOWSKI, 1992, p.105), constituindo a identidade de seu público, informando-lhe seu desejo, o sujeito enunciador, por esse mecanismo, coloca-se no lugar de seu interlocutor, antecipando o sentido que suas palavras produzem. Surpresas e emoções, portanto, instituem sentidos previstos pelo enunciador. Os códigos de uma mensagem publicitária apóiam-se em um duplo registro: visual e verbal. Este tem a função de ancorar a mensagem visual, mas não de um modo parasitário, pois dá a direção a ser tomada pela significação. É na associação desses dois códigos, portanto, que os sentidos de surpresas e emoções são reafirmados. Temos, na mensagem Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 49 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] visual, ao centro, a figura de um garoto sorridente portando uma camisa de listras brancas e vermelhas e, na cabeça, um gorro típico da figura do Papai Noel. Um arco de ramos de pinheiro emoldura o garoto. As imagens do gorro e dos ramos de pinheiro constituem códigos iconográficos porque “escolhem como significantes os significados dos códigos icônicos para conotarem semas mais complexos e culturalizados” (ECO, 2003, p.137), originando configurações sintagmáticas reconhecíveis. Essas figuras constituem, então, ícones clássicos, culturalizados, que remetem a um significado convencionado, “natal”, que faz parte do léxico dos sujeitos participantes do processo enunciativo. A agregação dos códigos verbais e visuais proporciona, portanto, a emergência de sentidos que provêm de uma memória discursiva, na qual a palavra “natal” remete a significados positivos (surpresas, emoções) em determinadas condições de produção de discurso. Assim é que, nesse texto publicitário, o enunciador prevê o interlocutor como “cúmplice” dos sentidos produzidos. Essa cumplicidade também está materializada linguisticamente no enunciado. Retomando o provérbio original, “Quem planta, colhe”, podemos considerá-lo, do ponto de vista da embreagem enunciativa, como não embreado, pois é uma generalização que não se ancora em uma situação enunciativa particular e cujo enunciador é apagado, “o provérbio não pode se referir a indivíduos ou a eventos únicos” (MAINGUENEAU, 2005, p.170). Numa perspectiva intradiscursiva, o lugar de sujeito do verbo plantar é preenchido pelo pronome indefinido “Quem”, o que reforça a ideia de generalização, de indeterminação do enunciado. O verbo colher, por sua vez, tem como sujeito a oração anterior, criando, assim, um sentido circular de generalização. Além disso, o enunciado apresenta as lacunas nos lugares de objeto direto. Portanto, o sentido do provérbio é explicitamente indefinido. O enunciador do texto publicitário, num processo argumentativo, antecipando-se aos sentidos produzidos por suas palavras e numa busca pela cumplicidade, aproveita essa indefinição preenchendo os lugares vazios e incertos. “Quem planta, colhe” torna-se, então, nesse processo, O Continental planta surpresas para você colher emoções: “[Quem / O Continental] [planta (surpresas)], [(para você)] [colhe(r) (emoções)]”. 50 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Esse texto é um exemplo de publicidade institucional, pois “a valorização de ‘si’ passa pela encenação de determinado tipo de relação que se procura estabelecer com um público, uma clientela, uma opinião” (LANDOWSKI, 1992, p.103). O público, nesse caso, está marcado linguisticamente pela palavra você, que caracteriza a natureza embreante do enunciado, engajando-o (o público), de forma explícita, na situação de enunciação. O locutor destaca seu destinatário dentro de um conjunto de indivíduos, implicando-o na relação instituída na cena enunciativa. Por outro lado, Brandão (1998, p. 59) ressalta o papel indiferenciado do pronome você na publicidade. Seu referente pode ser cada um dos possíveis leitores do discurso publicitário: homens, mulheres ou crianças, que adquirem, apenas aparentemente, um estatuto de sujeito discriminado entre um conjunto de indivíduos. Nesse enunciado, a cumplicidade que o enunciador pretende é geral: você refere-se a uma pessoa, não importa qual. Concluídas as nossas análises à luz da AD francesa, mobilizaremos nas Considerações Finais algumas reflexões advindas desse processo interpretativo, que nunca teve a pretensão de ser exaustivo, conforme orientação metodológica já exposta, mas que parte da premissa de que, nas Ciências Humanas, os estudos discursivos abrem um vasto campo de questões sobre as formas de poder, o estatuto do saber, sempre privilegiando a situação discursiva (GUERRA, 2006). Considerações finais É importante considerar que o centro de interesse de grande parte das tendências linguísticas, nas últimas décadas, tem sido deslocado da descrição de aspectos formais da língua como sistema para a descrição de como os indivíduos/grupos usam essa mesma língua em situações concretas e variadas de uso. Torna-se importante estudar como a língua é utilizada pelos membros de uma sociedade e como tal uso permite analisarmos valores, crenças e ideologias da sociedade que representam. Desde a última década tem havido uma preocupação acentuada com relação à linguagem-sociedade e as pesquisas têm enfatizado a importância de se levarem em consideração as práticas sociais e históricas e as implicações da análise linguística crítica nas mudanças sociais. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 51 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] Nessa direção, chamamos, primeiramente, a atenção para o fato de que o objetivo deste artigo consistiu em estudar os anúncios publicitários, atentando para os processos de significação e enunciação aí envolvidos, ou seja, a construção dos provérbios populares, a partir de um quadro teórico de perspectiva discursiva. A primeira permitiu-nos a construção de uma rede de sentidos com base em um processo discursivo altamente complexo e elaborado. A segunda possibilitou-nos observar como esses mecanismos linguístico-discursivos são estrategicamente construídos em função de situações de comunicação específicas, daquelas que se traduzem pelo anúncio publicitário, com suas respectivas condições de produção e gestos de interpretação. Uma questão observada é a “relação de forças”, ou seja, o lugar a partir do qual fala o sujeito do discurso publicitário e que é constitutivo do que ele diz. Assim, as condições de produção do discurso implicaram o que é material, o que é institucional e o mecanismo imaginário. Esses elementos contribuíram para a constituição das condições em que o discurso propagandístico se produz e, portanto, para a sua análise. Pode-se dizer, então, que o sentido não existe em si, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas no bojo dos anúncios publicitários. Nossas análises evidenciam que os provérbios, subvertidos ou não em seu sentido original, participam como estratégias discursivas de convencimento, já que transmitem a autoridade da “voz do povo”, via mídia impressa. Consideramos que, embora busque perseguir o máximo de objetividade possível, o discurso publicitário marca constantemente a presença humana, a participação, o engajamento. Desde o recorte feito no universo das palavras do outro até a estrutura verbal selecionada para relatá-la, passando pela decisão entre empregar ou não a metáfora e pela escolha do verbo no imperativo, ou do verbo delocutivo no interior da citação, tudo reflete a presença do locutor falante, que efetua um aproveitamento diferenciado das alternâncias de vozes no interior do texto, interferindo, em graus diversificados, nas falas que articula. 52 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A contrução do discurso publicitário [35-55] Dentre as funções que pode assumir o emprego do discurso de outrem destacamos as imagens, embora pareçam apenas complementares, como dissemos na introdução desta pesquisa, revelam-se fundamentais para o sentido do texto publicitário. Vale ressaltar que quem estuda as vozes do discurso publicitário sabe que é um tipo de pesquisa de grande complexidade, pois exige muito mais do que meramente identificar “quem fala”. Mapear os enunciadores requer a incorporação de conceitos fundantes da AD, associados à compreensão do jornalismo e da publicidade como um modo de conhecimento que resulta das condições de produção ou existência aqui já citadas. Nossos dados mostram que as imagens do mundo contemporâneo estão emolduradas por um sem-número de textos (complementares ou controversos) construídos numa variedade de códigos e linguagens. Em consequência disso, a movimentação social tem-se tornado cada dia mais complexa e complicada, dela emergem situações e posições diferentes e até antagônicas. É certo que somente a pluralidade de perspectivas de enunciação pode configurar o discurso publicitário como um campo plural e representativo da diversidade social. Revelar este funcionamento discursivo é uma das contribuições que a AD pode oferecer aos estudos de jornalismo, de propaganda, de comunicação desmitificando a ideia de que um texto traz somente a perspectiva do autor, naturalmente transparente e cristalizada. Verificamos nos textos analisados que, ao se fazer discursividade, os discursos transversos articulados (da publicidade, do capitalismo, da mídia, da moda, da saúde, da religião, da mãe e tantos outros advindos de leituras e de leitores possíveis) são recortados em unidades significantes, constituindo-se em memória discursiva. Portanto, a memória discursiva é formada por aqueles sentidos possíveis de se tornarem presentes no acontecimento da linguagem: um discurso (publicitário) aponta para outros (populista, moderno, consumista, capitalista etc) que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Não há começo absoluto nem ponto final para o discurso, ele tem relação com outros dizeres realizados, imaginados ou possíveis. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 53 Vânia Maria Lescano Guerra / Anita Luisa Fregonesi de Moraes [35-55] Sabemos que a globalização e o consumismo incentivado também pela mídia publicitária são, sem dúvida, mecanismos de exclusão social no nosso país (GUERRA, 2006). Arriscamos dizer que representar a diversidade brasileira pode não parecer tarefa fácil, uma vez que parece significar uma divisão igualitária dos espaços físicos e temporais numa mídia que deve servir a uma sociedade tão plural. Contudo, se os espaços (físicos e temporais) exaustivamente destinados à cristalização e estereotipia de alguns segmentos da diversa sociedade brasileira forem utilizados para a promoção das culturas excluídas, a diversidade racial, geracional, sexual e regional, do caso brasileiro, poderá tornar-se legítima e valorizada. Por fim, ousamos afirmar aqui que os discursos divulgados pela imprensa publicitária, em virtude de seu caráter multiplicador, são cruciais para a construção da identidade social, à medida que, por um lado, instauram a possibilidade de novos discursos e, por outro, interferem na construção de nosso cotidiano e na forma como configuramos as relações sociais e a memória. Nessa perspectiva, os discursos divulgados em jornais e revistas, mass media de circulação nacional, estabelecem novos sentidos e representações, instituindo, assim, as condições para a formação de novas e multifacetadas identidades. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. São Paulo: Hucitec, 1992. BRANDÃO, Helena N. Subjetividade, argumentação e polifonia. São Paulo: Editora da UNESP, 1998. CARVALHO, Nelly. Publicidade: a linguagem da sedução. 2 ed. São Paulo: Ática, 1998. CUNHA, C. Gramática moderna. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970. 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Revista Veja, edição 1960, n° 23, ano 39, 14 de junho de 2006. 1. Vânia Maria Lescano Guerra é docente do curso de Letras da UFMS/CCHS 2. Anita Luisa Fregonesi de Moraes é docente do curso de Letras da UNIESP/ Presidente Prudente Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 55 56 Vozes desdobradas [57-75] Vozes desdobradas: o mesmo e os outros de A la recherche du temps perdu Paulo Bungart Neto Resumo: O artigo discute a polifonia no romance A la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, abordando os diferentes papéis atribuídos ao autor, ao narrador e ao herói do roman-fleuve, a partir do aporte teórico da crítica estruturalista francesa do século XX. Demonstra-se também de que forma o narrador de uma obra memorialística (o “eu que rememora”) difere daquele que ele relembra (o “eu reinvenado”). Palavras-chave: Polifonia; Marcel Proust (1871-1922); A la recherche du temps perdu. Abstract: This article discusses the polyphony in the novel A la recherche du temps perdu, by Marcel Proust, approaching the different roles assigned to the author, the narrator and the hero of the roman-fleuve, from the French structuralist review theory in the 20th century. We also show in which way the narrator of a memorial book (the ‘I’ who remembers”) is different from that one it evokes (the “reinvented ‘I’”). Keywords: Polyphony; Marcel Proust (187101922); A la recherche du temps perdu. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 57 Paulo Bungart Neto [57-75] Introdução: Desdobramento e polifonia – o autor, o narrador e o herói proustianos Abordar-se-á o desdobramento e a polifonia em A la recherche du temps perdu sob dois aspectos fundamentais - a multiplicidade de vozes a compor o romance, e a reconstituição da infância (o Mesmo como o Eu que rememora um outro Eu, este existindo somente à medida que é reinventado) a que procede Marcel Proust ao longo de A la recherche, semelhante às evocações de Augusto Meyer nas páginas de Segredos da infância (1949) e de No tempo da flor (1966). A ideia básica da análise presente nesse artigo reside na observação feita por Roland Barthes em Ça prend (1979)15, segundo a qual um dos fatores que contribuíram para a excelência da composição do romance está em “une certaine manière de dire ‘je’, un mode d’énonciation original que renvoie d’une façon indécidable à l’auteur, au narrateur e au herós” (1997, p. 46). Interessa estudar tal “modo de enunciação original” que remete o leitor a uma inter-relação a operar a partir de uma polifonia - vozes “desdobradas” e “superpostas” - e da configuração de um Mesmo sui generis, pois que composto pela sobreposição das vozes do autor (Marcel Proust), do narrador e do herói (ambos Marcel). Praticamente à mesma época do texto de Barthes, Pierre Brunel, no verbete ‘Proust” de sua Histoire de la littérature française (Tome II), também considera que a originalidade da descoberta proustiana está ligada a esta fusão: L’instrument de cette découverte est un certain langage. Proust ne devient un mâitre que quand il passe du roman à la troisième personne (le ‘il’ de Jean Santeuil) au ‘je’ qui, d’emblée, donne le ton de la Recherche: ‘Longtemps, je me suis couché de bonne heure.’ Ce ‘je’ ne représente ni l’auteur - car le roman n’est pas une autobiographie - ni le héros proprement dit, mais un personnage intermédiaire, le narrateur, dont les souvenirs constituent la matière du roman (1977, p. 600). 15 Este ensaio foi consultado na versão publicada no número 350 de Magazine Littéraire, de janeiro de 1997. O texto original foi publicado em janeiro de 1979 (Magazine Littéraire, nº 144). As referências bibliográficas a este ensaio seguem a edição de 1997. 58 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] Todavia, Roland Barthes já indicara esta manifestação polifônica de A la recherche du temps perdu em texto de 1967 (“Proust e os nomes”, 1974, p. 55-67), ao perceber a estrutura metalinguística do romance cuja principal característica é descrever, na verdade, seu próprio processo de escritura: Como se sabe, La Recherche du temps perdu é a história de uma escritura. Talvez não seja inútil relembrar essa história, a fim de melhor apreender o seu desfecho, já que este desfecho representa aquilo que permite afinal que o escritor escreva. (...) A gestação de um livro, que não chegaremos a conhecer mas cuja anunciação constitui o próprio livro de Proust, procede como um drama entre atos. O primeiro ato anuncia a vontade de escrever (...) O segundo ato, muito longo pois abrange a parte essencial do Temps perdu, trata da incapacidade de escrever (Barthes, 1974, p. 55). Algumas páginas adiante, Barthes aprofunda a diferenciação entre os dois tipos de discurso presentes na obra, acentuando a diversidade de intenções que os caracterizam: Os dois discursos, o do narrador e o de Marcel Proust, são homólogos mas não análogos. O narrador vai escrever, e este futuro faz com que ele se mantenha numa ordem da existência e não da palavra; está a braços com uma psicologia e não com uma técnica. Marcel Proust, pelo contrário, escreve; luta com as categorias da linguagem, e não com as do comportamento (1974, p. 58; grifo do autor). De um lado, planejamento e dúvida quanto à materialização da escritura; de outro, a técnica que lapida a linguagem e a linguagem que expõe a técnica - discursos díspares mas correspondentes, eis um dos segredos do bem-sucedido projeto proustiano. Em “Longtemps, je me suis couché de bonne heure”, conferência apresentada no Collège de France em 1978 e incluída em Le bruissement de la langue (1984), Roland Barthes, percebendo a genialidade da descoberta de Proust, esclarece melhor seu público ouvinte acerca da peculiaridade do Eu que narra A la recherche: L’oeuvre proustienne met en scène - ou en écriture - un ‘je’ (le Narrateur); mais ce ‘je’, si l’on peut dire, n’est déjà plus tout à fait un ‘moi’ (sujet et objet de l’auto-biographie traditionnelle): ‘je’ n’est pas celui qui se souvient, se confie, se confesse, il est celui qui énonce; celui que ce ‘je’ met en scène est un ‘moi’ d’écriture, dont les liens avec le ‘moi’ civil sont incertains, déplacés. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 59 Paulo Bungart Neto [57-75] Proust lui-même l’a bien expliqué: la méthode de Sainte-Beuve méconnaît ‘qu’un livre est le produit d’un autre ‘moi’ que celui que nous manifestons dans nos habitudes, dans la societé, dans nos vices’. Le résultat de cette dialectique est qu’il est vain de se demander si le Narrateur de la Recherche est Proust (au sens civil du patronyme): c’est simplement un autre Proust, souvent inconnu de lui-même (1984, p. 318; grifo do autor). Tal imbricação ao mesmo tempo tão perfeita e tão misteriosa, capaz de criar “um outro Proust”, faz com que o narrador obtenha destaque maior que o do próprio escritor, posto tratar-se do próprio Eu da escritura, que é o que afinal importa para o crítico francês: De plus en plus nous nous prenons à aimer non ‘Proust’ (nom civil d’un auteur fiché dans les Histoires de la literature), mais ‘Marcel’, être singulier, à la fois enfant et adulte, puer senilis, passionné et sage, proie de manies excentriques et lieu d’une réflexion souveraine sur le monde, l’amour, l’art, le temps, la mort (1984, p. 319). Em outro texto presente em Le bruissement de la langue, o conhecido e paradigmático ensaio La mort de l’auteur, Barthes desmitifica a crença ingênua de alguns críticos (Sainte-Beuve, por exemplo) em relação ao poder supostamente ilimitado do autor, ao dizer que la critique consiste encore, la pluspart du temps, à dire que l’oeuvre de Baudelaire, c’est l’échec de l’homme Baudelaire, celle de Van Gogh, c’est sa folie, celle de Tchaikowski, c’est son vice: l’explication de l’oeuvre est toujours cherchée du côté de celui qui l’a produite, comme si, à travers l’allégorie plus ou moins transparente de la fiction, c’était toujours finalement la voix d’une seule et même personne, l’auteur, qui livrait sa ‘confidence’ (1984, p. 62; grifos do autor)16. 16 No mesmo texto, Barthes diferencia o autor da obra do sujeito da escritura, destacando o momento de enunciação como o aporte essencial da diferenciação: “linguistiquement, l’auteur n’est jamais rien de plus que celui qui écrit, tout comme je n’est autre que celui qui dit je: le langage connaît un ‘sujet’, non une ‘personne’, et ce sujet, vide en dehors de l’énonciation même qui le définit, suffit à faire ‘tenir’ le langage, c’est-à-dire à l’épuiser. (...) le scripteur moderne naît en même temps que son texte: il n’est d’aucune façon pourvu d’ un être qui précéderait ou excéderait son écriture, il n’est en rien le sujet dont son livre serait le prédicat; il n’y a d’autre temps que celui de l’énonciation, et tout texte est écrit ici et maintenant” (1984, p. 63-64; grifos do autor). Sobre a importância da enunciação, ver também o 60 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] Parece claro para o estruturalista francês que A la recherche du temps perdu é composta por uma mescla original de vozes17, sendo um dos atributos principais de sua modernidade justamente a capacidade de saber fundir inextricavelmente o escritor e suas personagens, a ponto de conseguir um feito notável - realizar uma espécie de “epopeia da escritura moderna”: Proust lui-même, en dépit du caractère apparemment psychologique de ce que l’on appelle ses analyses, se donna visiblement pour tâche de brouiller inexorablement, par une subtilisation extrême, le rapport de l’écrivain et de ses personnages; en faisant du narrateur non celui qui a vu ou senti, ni même celui qui écrit, mais celui qui va écrire (le jeune homme du roman - mais, au fait, quel âge a-t-il et qui est-il? - veut écrire mais il ne le peut, et le roman finit quand enfin l’écriture devient possible), Proust a donné à l’écriture moderne son épopée: par un renversement radical, au lieu de mettre sa vie dans son roman, comme on le dit si souvent, il fit de sa vie même une oeuvre dont son propre livre fut comme le modèle, en sorte qu’il nous soit bien évident que ce n’est pas Charlus qui imite Montesquiou, mais que Montesquiou, dans sa réalité anecdotique, historique, n’est qu’un fragment secondaire, dérivé, de Charlus (Barthes, 1984, p. 63; grifos do autor). Roland Barthes não foi o único pensador a identificar a polifonia de A la recherche du temps perdu. Em Temps et récit (tome II - La configuration dans le récit de fiction), o filósofo Paul Ricoeur atribui à composição narrativa ímpar da obra seu status de ficção, que a distingue da memorialística pura por considerar a presença de dois tipos de eventos descritos, isto é, acontecimentos ligados à vida do autor Marcel Proust (“eventualmente transpostos” no romance)18, e aqueles peculiares à vida (fictícia) do herói-narrador Marcel: comentário de Daniel-Henri Pageaux em “De l’imagerie culturelle à l’imaginaire”: “L’étude du rapport entre l’Autre et Je se transforme en enquêtes sur la ‘conscience énonciative’ (le Je qui dit l’Autre), pour reprendre les mots utilisés par Michel Foucault dans son Histoire de la folie à l’âge classique” (1989, p. 145). 17 Já em 1928, Tristão de Athayde havia escrito: “Em Proust o que encontramos, no centro de sua criação, não é a dissolução do eu, mas a multiplicação de eus”. (V. Marcel Proust. In: Proustiana Brasileira, 1950, p. 25; grifos do autor). 18 “(...) toute image procède d’une prise de conscience, si minime soit-elle, d’un Je par rapport à l’Autre, d’un Ici par rapport à un Ailleurs” (Pageaux, 1989, p. 135). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 61 Paulo Bungart Neto [57-75] Est-il légitime de chercher dans A la recherche du temps perdu une fable sur le temps? On a pu paradoxalement le contester de différentes manières. Je ne m’attarderai pas sur la confusion, que la critique contemporaine a dissipée, entre ce qui serait une autobiographie déguisée de Marcel Proust, auteur, et l’autobiographie fictive du personnage qui dit je. Nous savons maintenant que, si l’expérience du temps peut être l’enjeu du roman, ce n’est pas en raison des emprunts que celui-ci fait à l’expérience de son auteur réel, mais en vertu du pouvoir qu’a la fiction littéraire de créer un héros-narrateur qui poursuit une certaine quête de lui-même, dont l’enjeu est précisément la dimension du temps. Reste à déterminer comment. Quoi qu’il en soit de l’homonymie partielle entre ‘Marcel’, le héros-narrateur de la Recherche, et Marcel Proust, l’auteur du roman, ce n’est pas aux événements de la vie de Proust, éventuellement transposés dans le roman, et dont celui-ci garde la cicatrice, que le récit doit son statut de fiction, mais à la seule composition narrative, qui projette un monde dans lequel le héros narrateur tente de recouvrer le sens d’une vie antérieure, elle-même entièrement fictive. Temps perdu et temps retrouvé sont donc à entendre tous deux comme les caractères d’une expérience fictive déployée à l’intérieur d’un monde fictif (Ricoeur, 1984, p. 246; grifos do autor). Apesar da referência ao “herói-narrador” Marcel como o mesmo “sujeito” da enunciação, Ricoeur não funde suas vozes em uma mesma e única dicção, comprovando, neste longo e fundamental trecho, o paralelismo, simétrico mas não idêntico, de seus discursos: La Recherche laisse entendre au moins deux voix narratives, celle du héros et celle du narrateur. (...) Le héros raconte ses aventures mondaines, amoureuses, sensorielles, esthétiques au fur et à mesure qu’elles adviennent; ici, l’énonciation adopte la forme d’une avancée orientée vers le futur, lors même que le héros se souvient; d’où la forme du ‘futur dans le passé’ qui projette la Recherche vers son dénouement; c’est encore le héros qui reçoit la révélation du sens de sa vie antérieure comme histoire invisible d’une vocation; à cet égard, il est de la plus grande importance de distinguer la voix du héros de celle du narrateur, non seulement pour replacer ses réminiscences ellesmêmes dans le courant d’une recherche qui avance, mais pour préserver le caractère événementiel de la visitation. (...) Mais il faut entendre aussi la voix du narrateur : celui-ci est en avance sur la progression du héros parce qu’il la 62 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] survole; c’est lui qui, plus de cent fois dans l’oeuvre, dit: ‘comme on le verra plus loin’. Mais, surtout, c’est lui qui dépose sur l’expérience racontée par le héros la signification: temps retrouvé, temps perdu. En deçà de la révélation finale, sa voix est si basse qu’elle est à peine discernable de la voix du héros (ce qui autorise à parler de narrateur-héros). Il n’en est plus de même au cours et à partir du récit de la grande visitation: la voix du narrateur prend là tellement le dessus qu’elle finit par couvrir celle du héros; c’est alors que l’homonymie entre l’auteur et le narrateur joue à plein, au risque de faire du narrateur le porte-parole de l’auteur, dans sa grande dissertation sur l’art. Mais, même alors, c’est la reprise par le narrateur des conceptions de l’auteur qui fait foi pour la lecture. Ses conceptions sont alors incorporées aux pensées du narrateur. A leur tour, ces pensées du narrateur accompagnent l’expérience vive du héros qu’elles éclaircissent. Ce faisant, elles participent au caractère d’événement que revêt, pour le héros, la naissance d’une vocation d’écrivain (Ricoeur, 1984, p. 252-253; grifos do autor). Acerca da passagem do temps perdu ao temps retrouvé e de Proust a Marcel, Aguinaldo José Gonçalves, em “O processo holometabólico de Marcel Proust”19, sugere a reconfiguração de um novo tempo, integrado e espacializado, admitidos inclusive o esquecimento e a perda da memória como fatores indispensáveis à “outra viagem” que se inaugura: O tempo prossegue inexoravelmente e o único meio de estancá-lo é integrarse a ele, é habitá-lo. Mas habitá-lo implica espacializá-lo, colocando-lhe rédeas, através de finas agulhas, com linhas tênues: fabricação do tecido, ou da rede da própria vida. Esse gesto de criar coincide com o gesto de viver: indissolubilidade apreendida e empreendida no exercício de profunda identidade do ser que acaba sendo, dialeticamente, de extremo alheamento. Para a realização de tal movimento, o escritor deve descobrir ‘qu’un livre est le produit d’un autre moi que celui que nous manifestons dans habitudes, dans la societé, dans nos vices’20. Para que se desse esta 19 Este ensaio foi publicado como prefácio à tradução brasileira de Contra Sainte-Beuve - Notas sobre crítica e literatura (Proust, 1988, p. 7-24). 20 A citação feita por Aguinaldo Gonçalves pertence a um trecho da crítica de Proust a SainteBeuve no qual o romancista condena a ingenuidade da abordagem biográfica do autor das Lundis, afirmando que “esse método desprezava aquilo que uma convivência um tanto profunda com nós mesmos pode ensinar: que um livro é o produto de um outro eu e não daquele que manifestamos nos costumes, na sociedade, nos vícios. Aquele eu, se desejamos tentar compreendê-lo, está no fundo de nós mesmos, tentando recriá-lo em nós é que podemos atingi-lo. Nada pode dispensar-nos deste esforço de nosso coração” (Proust, 1988, p. 51-52). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 63 Paulo Bungart Neto [57-75] transformação de Proust para Marcel, a extensão temporal de natureza cronológica passou pela engendragem da máquina do tempo outro, o do esquecimento. Dentro da perda da memória, deu-se início à emersão do novo universo e uma outra viagem se inaugurou. Nela o roteiro já não é mais delimitado, pois isto significaria a submissão à própria dimensão cronológica da existência (1988, p. 10-11). Como fecho do raciocínio desenvolvido nesta primeira parte do artigo, a fim de melhor exemplificar a duplicidade autor-Proust x herói-narrador-Marcel, evoca-se a magistral contraposição, a que procede Jorge Luis Borges em página de El Hacedor (“Borges y yo”, 1995, p. 62-63), entre a figura do autor enquanto homem comum (que se oculta e se apaga ante a imortalidade do outro) e enquanto criador respeitado e admirado, este sim merecedor da alcunha de “Borges” e canonizado em listas de professores ou em dicionários biográficos: Al outro, a Borges, es a quien le ocurren las cosas. Yo camino por Buenos Aires y me demoro, acaso ya mecánicamente, para mirar el arco de un zaguán y la puerta cancel; de Borges tengo noticias por el correo y veo su nombre en una terna de profesores o en un diccionario biográfico. Me gustan los relojes de arena, los mapas, la tipografía del siglo XVIII, las etimologías, el sabor del café y la prosa de Stevenson; el otro comparte esas preferencias, pero de un modo vanidoso que las convierte en atributos de un actor. Sería exagerado afirmar que nuestra relación es hostil; yo vivo, yo me dejo vivir, para que Borges pueda tramar su literatura y esa literatura me justifica. Nada me cuesta confesar que ha logrado ciertas páginas válidas, pero esas páginas no me pueden salvar, quizá porque lo bueno ya no es de nadie, ni siquiera del otro, sino del lenguaje o la tradición. Por lo demás, yo estoy destinado a perderme, definitivamente, y sólo algún instante de mí podrá sobrevivir en el otro. Poco a poco voy cediéndole todo, aunque me consta su perversa costumbre de falsear y magnificar. Spinoza entendió que todas las cosas quieren perseverar en su ser; la piedra eternamente quiere ser piedra y el tigre un tigre. Yo he de quedar en Borges, no en mí (si es que alguien soy), pero me reconozco menos en sus libros que en muchos otros o que en el laborioso rasgueo de una guitarra. Hace años yo traté de librarme de él y pasé de las mitologías del arrabal a los juegos con el tiempo 64 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] y con lo infinito, pero esos juegos son de Borges ahora y tendré que idear otras cosas. Así mi vida es una fuga y todo lo pierdo y todo es del olvido, o del otro. No sé cuál de los dos escribe esta página.21 Outros exemplos de desdobramento: “marcottage des figures” e “deux identités d’un même corps” “Le même n’est le même qu’en s’affectant de l’autre” (Jacques Derrida, La voix et le phénomène, 1967, p. 95. Apud Descombes, 1979, p. 172) O “modo de enunciação original” referido por Roland Barthes em Ça prend é, para o crítico, uma das técnicas responsáveis pelo sucesso de concepção e de composição de A la recherche du temps perdu. Além da fusão de discursos, examinado na seção anterior, outras três técnicas são apontadas por Barthes22, sendo que a última diz respeito a mais um caso de desdobramento, desta vez das personagens e relacionada à própria estrutura romanesca da obra, da qual Proust a la révélation dans la Comédie Humaine, et qui est (je cite Proust) ‘l’admirable invention de Balzac d’avoir gardé les mêmes personnages dans tous ses romans’ : procédé que Sainte-Beuve a condamné, mais qui, pour Proust, est une idée de génie ; quand on sait l’importance des retours, coïncidences, renversements, tout au long de la Recherche, et combien Proust était fier de cette composition par enjambements, qui fait que tel détail insignifiant, donné au début du roman, se retrouve à la fin, comme poussé, germé, épanoui, on peut penser que ce que Proust a découvert, c’est l’efficacité romanesque de ce que l’on pourrait appeler 21 V. tradução e comentário deste texto em MONEGAL, Emir Rodriguez. Borges por Borges. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 18-19. Tradução: Ernani Só. 22 A segunda e a terceira técnicas são, respectivamente, a definição dos nomes próprios de A la recherche (“une ‘vérité’ (poétique) des noms propres finalement retenu”; 1997, p. 46); e uma mudança de proporções (“un changement de proportions; il peut se faire en effet (chimie mystérieuse) qu’un projet longtemps bloqué devienne possible dès lors qu’on décide brusquement, et comme par inspiration, d’agrandir sa taille”; 1997, p. 46). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 65 Paulo Bungart Neto [57-75] le ‘marcottage’ des figures : plantée ici, souvent discrètement (disons, au hasard, par exemple : la dame en rose), une figure se retrouve bien plus tard, par enjambement au-dessus d’une infinité d’autres relations, fonder une nouvelle souche (Odette) (Barthes, 1997, p. 46). Ora, no Larousse - Dictionnaire du français d’aujourd’hui (2000), encontra-se, à página 809, a seguinte definição do vocábulo marcotte: “branche qui tient à la plante mère, couchée en terre pour y prendre racine”, isto é, um ramo preso simultaneamente à planta-mãe e à terra a fim de crescer, criar raiz e futuramente se emancipar. “Marcottage”, portanto, refere-se à “ação de alporcar”, e “alporque” ou “mergulhia”, segundo o Novo dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, é um “tipo de reprodução vegetal que consiste em enterrar um ramo de planta, ainda preso a ela, para constituir, depois de enraizado, novo exemplar, uma vez separado da planta-mãe” (1986, p. 1122). Aproveitando a imagem retirada do mundo vegetal, Roland Barthes cria então a metáfora da “reprodução das personagens” (“marcottage des figures”), técnica segundo a qual um novo ramo / personagem “plantado” (a dama de rosa em No caminho de Swann, por exemplo, personagem “nova”), dá novos “frutos” (o ramo, dá origem a uma nova planta; a personagem, Odette a partir de À sombra das raparigas em flor, que retorna com força “própria” e funda nova “estirpe”). Tal estrutura romanesca, aprofundada a partir da sugestão do roman-fleuve de Balzac, permite-nos identificar mais este caso de desdobramento, desta vez não das vozes entrelaçadas do autor, do narrador e do herói, mas de um Mesmo (dama de rosa) que se torna Outro (Odette). Entretanto, essa técnica segundo a qual a personagem se modifica ao longo dos sucessivos romances que compõem A la recherche du temps perdu (sob o ângulo da Alteridade, o Eu que se assume como Outro), ocorre também em relação às diversas identidades reveladas aos poucos (revelação na qual a identidade “aparente” é desmascarada pela “verdadeira”, sobretudo em Sodoma e Gomorra), conforme Roland Barthes aponta no ensaio “Une idée de recherche”, presente em Le bruissement de la langue. Vejamos o contraponto entre aparência e verdade, tendo como exemplo a princesa Sherbatoff: 66 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] Dans le petit train de Balbec, une dame solitaire lit la Revue des deux mondes ; elle est laide, vulgaire ; le Narrateur la prend pour une tenancière de maison close ; mais au voyage suivant le petit clan, ayant envahi le train, apprend au Narrateur que cette dame est la princesse Sherbatoff, femme de grande naissance, la perle du salon Verdurin. (...) Ce dessin, qui conjoint dans un même objet deux états absolument antipathiques et renverse radicalement une apparence en son contraire, est fréquent dans la Recherche du temps perdu (Barthes, 1984, p. 307). A “pérola” do salão Verdurin, dama de honra de uma duquesa, é tida por dona de bordel. Convergem, assim, para a mesma personagem duas identidades díspares e praticamente excludentes, característica que representa ainda a busca de Proust pela essência de suas criações: Voilà donc deux identités d’un même corps : d’un côté la tenancière de bordel, et de l’autre la princesse Sherbatoff, dame d’honneur de la grande duchesse Eudoxie. On peut être tenté de voir dans ce dessin le jeu banal de l’apparence et de la vérité : la princesse russe, fleuron du salon Verdurin, n’est qu’une femme de la plus basse vulgarité. (...) on reconnaîtrait alors (ce qui a été fait, ici et là) dans l’oeuvre proustienne un projet aléthique, une énergie de déchiffrement, une recherche d’essence, dont le premier travail serait de débarrasser la vérité humaine des apparences contraires qui lui surimpriment la vanité, la mondanité, le snobisme (1984, p. 308309 ; grifo do autor). Finalmente, essas “duas identidades em um mesmo corpo” não aludem apenas aos embates moral e social da dicotomia aparênciaverdade, mas também às preferências sexuais lentamente descobertas - as identidades feminina e masculina atuando na mesma personagem, como nos casos do Sr. de Charlus, de Saint-Loup e do Príncipe de Guermantes, a ponto de Barthes classificar esse procedimento de “discurso da inversão”: L’inversion sexuelle est á cet égard exemplaire (mais non forcément fondatrice), puisqu’elle donne à lire dans un même corps la surimpression de deux contraires absolus, l’Homme et la Femme (contraires, on le sait, définis par Proust biologiquement, et non symboliquement : trait d’époque, sans doute, puisque, pour réhabiliter l’homosexualité, Gide propose des histoires de pigeons et de chiens) ; la scène du frelon, au cours de laquelle le Narrateur découvre la Femme sous le baron de Charlus, Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 67 Paulo Bungart Neto [57-75] vaut théoriquement pour toute lecture de jeu des contraires ; de là, dans toute l’oeuvre, l’homosexualité développe ce qu’on pourrait appeler son énantiologie (ou discours du renversement) ; d’une part, elle donne lieu dans le monde à mille situations paradoxales, contresens, méprises, surprises, combles et malices, que la Recherche relève scrupuleusement ; et, d’autre part, en tant que renversement exemplaire, elle est animée d’un mouvement irrésistible d’expansion ; par une large courbe qui occupe toute l’oeuvre, courbe patiente mais infaillible, la population de la Recherche, hétérosexuelle au départ, se retrouve à la fin en position exactement inverse, c’est-à-dire homosexuelle (tels Saint-Loup, le prince de Guermantes, etc) : il y a une pandémie de l’inversion, du renversement (1984, p. 310). Considerações finais: O Mesmo de hoje e o Outro da infância – Eu que rememora x Eu reinventado Esses anos da minha primeira infância não estão mais em mim, são exteriores, deles nada posso tirar a não ser pelo que contam os outros, como se dá com as coisas que sucederam antes de nascermos. (Proust, 1953, p. 4; grifo meu) Assim argumenta o narrador Marcel no início de O caminho de Guermantes. Ao tentar reconstituir sua infância, o Mesmo recorre necessariamente à lembrança dos outros na tentativa de recompor o Outro que ele foi, já que a memória não é capaz de precisar detalhes de fatos ocorridos em tenra idade23. Dá-se, dessa forma, um fenômeno curioso: inventamos nosso próprio Eu (vivido, mas não sedimentado), uma vez que dependemos de outros relatos e, consequentemente, de nossa imaginação para acercarmonos, por pouco que seja, do que fomos há tanto tempo. Em seu primeiro livro de memórias (Segredos da infância, 1949), Augusto Meyer compõe um parágrafo cuja ideia básica é muito semelhante à situação descrita por Proust em O caminho de Guermantes. Alega o memorialista gaúcho que 23 Em A Prisioneira, quinto volume de A la recherche du temps perdu, questiona Marcel: “Parece que os acontecimentos são mais vastos do que o momento em que ocorrem e não podem caber neles por inteiro. Certo transbordam para o futuro pela memória que deles guardamos, mas pedem também um lugar ao tempo que os precede. Pode-se dizer que não os vemos então como serão, precisamente, mas na lembrança não são eles também modificados?” (Proust, 1971, p. 343). 68 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] Nada sabemos do começo. O que os outros mais tarde nos contaram, tentando retraçar aos nossos olhos a imagem da criança que já fomos, não diz nada às vozes da memória, nem de leve toca nas cordas da revelação. Os outros só nos falam de outro; não podemos contar com o auxílio de ninguém para dar os primeiros passos no tempo que passou. É dentro de nós mesmos que ele dorme, como a verdade no fundo de um poço. Dura, estranha, absurda, é a imagem que uma fotografia amarelecida recortou há tantos anos na fluidez do instante, e só vale como documento na imaginação alheia. Na grande noite do começo, vagamente pressentimos a escuridão do fim (1949, p. 13; grifo do autor). Além do relato daqueles que nos conheceram, a imaginação assume grande importância nesta reconstituição, pois este passado tão longínquo só existe à medida que o Eu que rememora o reinventa24. Recordações distantes e imaginação fantasiosa convivem, portanto, sem se excluírem, e possibilitam ao Mesmo, muitas vezes através da busca estéril do elo perdido da infância, recriar a imagem do Outro. A imaginação atua porque o Eu que recorda o passado é diferente daquele vivido na infância: “(...) meus olhos mudaram mas lá no fundo o coração é o mesmo”, escreve Augusto Meyer em “Tema da infância”, crônica publicada no Correio do Povo em 4 de junho de 1930. Se o olhar do memorialista mudou, amadurecido pelo passar dos anos e pelo convívio com a literatura, o “coração” (memória “sentimental”) permanece inalterado, “fonte viva do ser” que se resigna a constatar o contraponto: Segredos e caminhos da infância... De todo aquele mundo, ficaram apenas algumas imagens vagas, reproduzidas grosseiramente a poder de concentração da memória sentimental, mas tão deturpadas pela 24 Ver em O tempo redescoberto: “(...) é tão fácil embelezar-se as narrativas de um passado do qual já ninguém está a par, como as das viagens por países aonde ninguém foi” (Proust, 1970, p. 206). Ver também em No tempo da flor: “A imagem pode avivar num relance de iluminação brusca toda uma constelação de significados metafóricos. E por isso mesmo, entregue ao sonambulismo da saudade, um pobre insone, estirado em sua cama, encerrado em seu quarto, voa a uma distância enorme no tempo e no espaço, viaja ao fundo de si mesmo e à origem das origens... Mais um passo na escuridão povoada de fantasmagorias, e ele se torna passivo e indefeso aos assaltos do intuitus mysticus, põe-se a conversar com os abismos” (Meyer, 1966, p. 37-38). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 69 Paulo Bungart Neto [57-75] necessidade discursiva, tão diferentes e quase irreconhecíveis depois de passarem pelo crivo da análise, que, em vez de aproximar-nos da fonte viva do ser em sua ingênua frescura, aguçam cada vez mais a consciência que nos separa daqueles rincões perdidos. (...) A todo momento, quando nos perturba a sedução da sua saudade, sentimos que é preciso voltar de qualquer modo aos pagos da infância. Voltar! Diz uma voz interior, voltar enquanto é tempo à manhã da tua vida... (Meyer, 1949, p. 16-17). Embora se refiram, objetivamente, à mesma pessoa, há uma oposição entre o Eu da infância, “em sua ingênua frescura”, e o Eu do memorialista, atormentado pela “necessidade discursiva” e pelo “crivo da análise”, a ponto de despertar no escritor o impulso de retornar à “manhã” de sua vida. As palavras de Augusto Meyer parecem ecoar na ideia desenvolvida por Samuel Beckett em seu livro sobre Proust, no qual à página 9 o autor de En attendant Godot escreve: Não estamos meramente mais cansados por causa de ontem, somos outros, não mais o que éramos antes da calamidade de ontem. Calamitoso dia, mas calamitoso não necessariamente por seu conteúdo. A boa ou má disposição do objeto não tem nem realidade nem significado. Os prazeres e pesares imediatos do corpo e da inteligência não são mais que malformações de superfície. Assim como foi, esse dia é assimilado ao único mundo que tem realidade e significado, o mundo de nossa consciência latente, cuja cosmografia sofre assim um deslocamento (...) As aspirações de ontem foram válidas para o ego de ontem, não para o de hoje. Ficamos desapontados com a nulidade do que nos apraz chamar de realização25. O deslocamento das lembranças da infância para “nossa consciência latente” atual, contudo, não nos possibilita um sentimento de realização, de tarefa cumprida, já que amanhã seremos outros novamente, desta vez “cansados” por causa de hoje, e assim infinitamente, angustiadamente, sem que possamos definir e consolidar nosso Eu. No parágrafo de abertura de “Na Praça da Matriz”, capítulo inaugural do segundo volume 25 Em Roland Barthes por Roland Barthes, o crítico francês pergunta: “Que direito tem meu presente de falar do meu passado? Meu presente tem algum poder sobre meu passado? Que ‘graça’ me teria iluminado? Somente a do tempo que passa, ou de uma boa causa encontrada em meu caminho?” (Barthes, 2003, p. 137). 70 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] das memórias de Augusto Meyer (No tempo da flor, 1966), constatamos a mesma preocupação com tamanha mudança de nossa personalidade, a acompanhar as transformações dos lugares onde vivemos: Vejo a Praça da Matriz, em Porto Alegre, desandar para as feições que ainda mostrava aos meus olhos de menino e moço. Mas é claro que estas praças vão mudando, enquanto a gente mudou. Nesse jogo vertiginoso, mudam as cousas por dentro e por fora, e ao passo que as paisagens lentamente se desmancham, recompostas noutra forma, também o espectador vai trocando de alma e de pele, apesar de conservar o mesmo nome, confiado nas certidões do registro civil. O Eu da gente é um inquilino que se imagina dono de si mesmo, proprietário do nariz, e dentro dele moram não sei quantos locatários irresponsáveis, que acabam estragando a casa. De vez em quando, ao cair do último andar do seu devaneio, o dono de si mesmo descobre que foi logrado, vagamente se dá conta de um embuste ... ‘Muda, muda, que eu também já mudei’, dizem-lhe as casas, as ruas, as posturas municipais. E de mudanças vamos vivendo, enquanto não vem a hora da grande mudança (1966, p. 7). Tal fracionamento de “eus” não aparece somente na obra memorialística de Augusto Meyer - também em seus poemas podemos identificar exemplos de desdobramento da personalidade, através de metáforas geralmente relacionadas ao reflexo no espelho (consequentemente, de como o Mesmo vê a si como Outro). Em “Sanga funda”, por exemplo, ao mirar um remanso de água, o poeta conclui: “E que estranho era o meu rosto / no momento em que o sol-posto / punha uns longes na paisagem! (...) / Aprendi a ser bem cedo / segredo de algum segredo, / imagem, sombra de imagem ...” (1957, p. 14). Ou ainda no poema de abertura de Giraluz, emblematicamente intitulado “Espelho”: “Quem é esse que mergulhou no lago liso do espelho / e me encara de frente à claridade crua? / (...) Dói-me a ironia de pensar que eu sou tu, fantasma ...” (1957, p. 69). Por fim, do poema em prosa “O Outro”, publicado originalmente em Literatura e Poesia e reproduzido, juntamente com os poemas citados acima, em Poesias (1922-1955), destaca-se a frase que encerra o texto: “Do outro lado, no lago emoldurado, o mesmo Outro, que era e não era ele mesmo ...” (1957, p. 204). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 71 Paulo Bungart Neto [57-75] A expressão “o mesmo Outro, que era e não era ele mesmo” é um achado genial, uma vez que reproduz o paradoxo de nossa relação com um outro Eu que nos habita, seja este reconstituição do passado ou imagem refletida e duplicada em espelhos, remansos, etc. Como se houvesse uma espécie de dicotomia ou ruptura, algo como o “eu real” (essência) x “eu virtual” (aparência). A esse respeito, leiamos o que assevera Aristóteles em “De la mémoire et de la réminiscence”: l’animal peint sur un tableau est à la fois un animal et une copie, et, tout en étant un et le même, il est ces deux choses ; cependant l’existence n’est pas la même pour les deux, et il est possible de considérer cet animal à la fois en tant qu’animal et en tant que copie ; de même aussi, il faut supposer que l’image peinte en nous est quelque chose qui existe par soi et qu’elle est la représentation d’une autre chose. Par conséquent, en tant qu’on la considère en elle-même, elle est une représentation ou une image, mais en tant qu’elle est relative à un autre objet, elle est comme une copie et un souvenir. (...) Alors l’impression produite par cette contemplation varie : quand l’âme considère l’objet comme un animal figuré, l’impression existe en elle comme une pensée seulement ; d’un autre côté, quand elle le considère comme une copie, c’est un souvenir (1953, p. 56). O animal pintado é, portanto, animal e cópia (“Mesmo” e “Outro”) a um só tempo - aplicada a hipótese ao caso que se examina, o memorialista é também, ao mesmo tempo, a consciência que relembra (“Mesmo”) e a consciência que reinventa (“Outro”), abstraídas as distâncias de tempo e espaço. Tal disposição é referida por Paul Ricoeur, no terceiro tomo (Le temps raconté) de Temps et récit, nos seguintes termos: Renversement dialectique : si le passé ne peut être pensé sous le ‘grand genre’ du Même, ne le serait-il pas mieux sous celui de l’Autre ? (...) Le modèle d’autrui est certainement un modèle très fort, dans la mesure où il ne met pas seulement en jeu l’alterité, mais joint le Même à l ‘Autre. Mais le paradoxe est qu’en abolissant la différence entre l’autrui d’aujourd’hui et l’autrui d’autrefois, il oblitère la problématique de la distance temporelle et élude la difficulté spécifique qui s’attache à la survivance du passé dans le présent - difficulté qui fait la différence entre connaissance d’autrui et connaissance du passé (1985, p. 263-266). 72 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Vozes desdobradas [57-75] De toda essa problemática associada ao papel da memória26, resta, a fim de, dizendo com Dom Casmurro, “atar as duas pontas da vida” (Machado de Assis, 1994, v. 1, p. 810), encontrar aquilo que Georges Gusdorf chama de “verdade de si mesmo”: La vérité de la mémoire se présente non comme une vérité sur les événements ou sur les choses, mais comme une vérité de moi-même. Aussi bien la situation initiale ne pouvait-elle avoir toute sa valeur que pour moi seul. Elle fut le sens de ma vie en un certain moment. Ce sens ne peut se réaffirmer que pour moi. La vie de la mémoire ne saurait donc être dissociée de la vie personelle en sa plus large signification (1951, v. 1, p. 197). O Eu fracionado, porém, não é necessariamente o Eu da negatividade. A perda do Eu original implica simultaneamente um desdobramento e um aprofundamento, conduzindo a um auto-conhecimento, que nada mais é do que a própria base da monumental obra engendrada por Marcel Proust, conclusão a que chega Augusto Meyer em “Proust, o zaori”: A procura do Tempo Perdido é a procura do Eu que se perdeu. O Eu proustiano se volta pro passado com a intenção de reconquistar ao longo dos anos vividos a memória integral da personalidade, quer salvar-se no meio da correnteza construindo na ilha da memória o observatório da consciência. Mas ao mesmo tempo não quer a salvação por meios ilícitos, recorrendo ao narcisismo religioso. Exige de si mesmo a imagem mais sincera e mais crua que for possível reconstruir. Vem daí o seu trabalho moroso, retardado em meandros, cheio de atalhos que se perdem noutros atalhos, de becos subentendidos - e a claridade quase desumana que atravessa a obra toda, esse olhar de zaori enxergando através das paredes convencionais (Meyer, Correio do Povo, 11.05.1930). 26 Em O tempo redescoberto, volume que encerra A la recherche du temps perdu, reconhece Marcel Proust: “Então, menos brilhante sem dúvida do que a que me fizera vislumbrar na obra d’arte o único meio de reaver o Tempo Perdido, nova luz se fez em mim. E compreendi que a matéria da obra literária era, afinal, a minha vida passada; que tudo me viera nos divertimentos frívolos, na indolência, na ternura, na dor, e eu acumulara como a semente os alimentos de que se nutrirá a planta, sem adivinhar-lhe o destino nem a sobrevivência” (1970, p. 144-145). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 73 Paulo Bungart Neto [57-75] REFERÊNCIAS ARISTÓTELES. De la mémoire et de la réminiscence. 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Considerando que tal obra tenha sido pouco explorada pela crítica até os dias de hoje, a proposta de análise deste trabalho se baseará na ideia de que o livro Água viva possa ser lido como uma autoficção da persona Clarice Lispector. Para tanto, o livro Água viva será lido, antes, como uma autobiografia da escritora, ou seja, um diário ficcional escrito por ela e sobre ela mesma. Nosso trabalho parte da ideia de que Água viva é uma ficção escrita por Clarice Lispector na qual ela ficcionaliza a sua própria história pessoal, posto que, como dissera Jacques Derrida em entrevista, “cada vez que deixo partir alguma coisa, vivo a minha morte na escritura”. Palavras-chave: Clarice Lispector; Água viva; Autoficção Abstract: Our research aims only a biography cultural analysis of Agua Viva book of Clarice Lispector which was published in 1973. Considering that the book had been a little explored by the review until today, the porpose of the analysis of this research will base on the idea of that the Agua Viva book can be read as an autoficcion of the person Clarice Lispector. For so, the Agua viva book will be read, firstly, as an writer autobiography, namely, a ficcional diary which was written by her and about herself. Our research is the idea that Agua viva is a ficcion which is written by Clarice Lispector in which se ficcionalize hers own history, although, Jacques Derrida said in an interview, “erevytime that I let go something, I live my own death in the escriture”. Keywords: Clarice Lispector; Água viva; Autoficcion. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 77 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] Notas sobre a crítica biográfico–cultural Eu não sou eu nem sou o outro, Sou qualquer coisa de intermédio: Pilar da ponte de tédio Que vai de mim para o outro. Adriana Calcanhoto/ Mário de Sá-Carneiro. O outro. In: Público, 2000, faixa 13. A epígrafe que encima este trabalho, retirada do CD Público da cantora Adriana Calcanhoto, foi intencional pelo fato do poema de Mário de Sá-Carneiro, musicado pela artista, trazer imbricado nele as dúvidas entre ser um ou ser o outro – eu não sou eu nem sou o outro. A musicalidade de Adriana Calcanhoto, através da interpretação feita do poema do escritor português, consegue atingir as mesmas proposições que são demandadas pelo livro Água viva de Clarice Lispector. Ou seja, a indefinição – de ser um ou o outro – no poema; e a do livro – ser pintora ou ser escritora – acaba por corroborar a ideia de ficcionalização que o autor faz de si mesmo. Por isso, este trabalho se ampara da perspectiva teórica da crítica-biográfico-cultural para pensar Clarice Lispector como uma escritora ficcional de sua própria trajetória de vida. Já que a relação escritural do livro Água viva se dá em torno da discussão ser uma pintora que quer ser escritora e, que nossa ideia primeira é pensar o livro como uma autoficção clariciana, queremos poder ler as imagens que são formuladas pela escritura de Clarice Lispector e as imagens que formam os seus leitores ao lerem o livro também como um possível livro de artista da escritora uma vez que o livro de artista também pode ser entendido como uma autobiografia do artista. Pensamos nessa possibilidade, do livro Água viva como livro de artista da escritora e o livro de artista como uma autobiografia do artista, considerando as novas aberturas teórico-metodológicas que nos são dadas a partir da introdução de estudos de crítica biográfica cultural no Brasil, que nos permite novas abordagens de leituras dos diferentes corpus de trabalho. Eneida Maria de Souza, no livro Crítica cult, traz um ensaio que é alentador para nossa leitura sobre crítica cultural biográfica. Daí, também, 78 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] parte nossa relação empírica, a partir do nosso título introdutório, com o texto da autora de Crítica cult. Naquele texto, Eneida Maria de Souza disserta de forma esclarecedora sobre as novas proposições de biografias que são propostas pela crítica biográfica cultural. Permeadas pelas relações de proximidades dos Estudos Culturais e com a Literatura Comparada Eneida de Souza consegue formular ali novas visões para a construção de biografias alentadas pela crítica cultural. O livro Crítica cult, além do ensaio intitulado “Notas sobre a crítica biográfica” aqui referido, traz ensaios importantes não só para se trabalhar a vertente de crítica cultural biográfica, mas também, várias outras leituras críticas de propostas culturalistas. Mas, como nosso interesse maior aqui é a questão biográfica – crítica cultural biográfica –, concentramos nossos esforços em desvendar as entrelinhas da escritura de Água viva guiados pelas “Notas sobre a crítica biográfica”. A natureza da biografia vem, ao longo dos tempos, sofrendo alterações na sua forma de escrita. Os formatos tradicionais, ainda publicados na contemporaneidade, vêm sofrendo rotulações de críticos filiados às novas vertentes críticas pós-introdução dos Estudos Culturais no Brasil. Ou seja, biografias que se atêm em documentos comprobatórios e registros datados “reais” através de fotografias, relatos de viagens, de experiências etc, para estudiosos-biógrafos de visada culturalista, deixam de contribuir com leituras mais significativas que poderiam, aproveitando-se também de metáforas, criar relações de amizades, reais e imaginadas, viagens que poderiam ter ocorrido, para formularem leituras mais amplas entorno da vida e obra dos biografados. A questão não passa pela impossibilidade de que na contemporaneidade não seja mais possível fazer leituras a partir de levantamentos históricos e documentais, mas a crítica cultural defende a ideia de que leituras, que se valem de outros recursos “menos” realistas, podem contribuir para um enriquecimento da “história” sobre o biografado que se quer contar. Fragmentos retirados da vida e da obra – do real e do imaginário – podem contribuir para melhor se relatar a vida do personagem da biografia. Partindo desse pressuposto de que as biografias podem ficar cada vez mais ricas se se valerem de recursos, diríamos, metafóricos na construção de personagens – biografados –, imaginados através de Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 79 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] suas prováveis relações de amizades, a crítica cultural adianta que será possível que tenhamos biografias que podem se tornar mais ricas e, por conseguinte, menos historicistas. Questões postas à contemporaneidade, como diversidade cultural, identidade cultural, sujeito contemporâneo, passaram a ser melhores “explicadas” e narradas nessas prováveis biografias culturais. Nesse sentido, uma das maiores estudiosas do assunto no País, Eneida Maria de Souza, esclarece-nos sobre tais possibilidades da biografia cultural na literatura: A crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a ficção (SOUZA, 2002, p. 111). A proposta que é defendida pela crítica biográfico-cultural, e apresentada aqui através da passagem de Eneida Maria de Souza, é a relação entre fatos reais e ficcionais com o mesmo peso “documental” na redação de uma biografia em nossos tempos atuais. Partilhando desse ponto de vista de Souza, ainda podemos afirmar que outros campos artístico-culturais, e não só o da literatura, vêm se beneficiando de leituras mais culturalistas através de biografias. Nesse sentido, poderíamos dizer que os livros de artistas seriam, da perspectiva de biografias culturais, autobiografias, ou ainda, autoficções, novas formas de artistas se exporem e exporem os seus trabalhos relacionando o conjunto da vida ao conjunto de obras. Auxilia-nos pensar nos livros de artistas como obras biográficas possíveis nessa relação entre vida e obra facilitada pela crítica cultural considerando que esses livros se tornam lugares de exposição não só de trabalhos artísticos, mas também, fazem parte deles fragmentos dos próprios artistas como sujeitos. Sobre isso ajuda-nos saber que O livro de artista é lugar, suporte de representação, campo primário que aloja a ideia, o conceito, a representação e não a reprodução da obra original. Dentro desse paradigma, de o livro de artista falar de si próprio e de o artista explorar em seus livros certas particularidades do campo da arte, o livro de arte apropria-se de características inerentes ao livro, como a de ser um múltiplo e a de ser acessível a um grande público (PANEK, 2005, p. 267). 80 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] Dessa probabilidade que nos coloca Bernadette Panek pensar o livro de artista podemos de fato supor tal suporte artístico na contemporaneidade como uma provável biografia ou autobiografia do artista que o produz, considerando que ali o artista não experimenta com a sua criação, ele a produz exclusivamente para aquele suporte, impregnando-o de emoções, ações, imagens, restos e fragmentos do próprio artista plástico, sejam fragmentos da sua vida real ou da sua obra ficcional artística. E se com as biografias de leituras culturalistas nós passamos a ter vida e obra de biografados mais completas, mesmo que a partir de construções de metáforas por seus biógrafos, aproximando a relação não só entre vida e obra do autor mas também o leitor do seu escritor – valendo-se das novas possibilidades discursivas da contemporaneidade personalidades políticas, autores, atores e artistas vêm sendo biografados por críticos biógrafos que trabalham essa relação entre o real e o ficcional em suas biografias culturais. O mesmo nós podemos dizer dos livros de artistas que vão desacralizar a obra de arte bem como o artista na contemporaneidade, “o livro vai desempenhar o papel de lugar que substitui as paredes da galeria, como espaço de ‘apresentação pública’ e disseminador de arte para um público mais abrangente” (PANEK, 2005, p. 257), proporcionando, por conseguinte, uma relação mais pessoal entre leitor/espectador com o artista e com a obra de arte deste. O livro de artista acaba por contribuir com a disseminação da obra e vida de determinado artista plástico, papel desempenhado pelo livro literário, e que vai criar novas formas de se ler esses personagens artistas. As contribuições da crítica cultural para as biografias contemporâneas são as possibilidades que são dadas aos novos críticos biógrafos de não mais terem que se valer apenas dos fatos documentais entendidos como reais. Ainda segundo Eneida Maria de Souza: O fascínio que envolve a invenção de biografias literárias se justifica pela natureza criativa dos procedimentos analíticos, em especial, a articulação entre obra e vida, tornando infinito o exercício ficcional do texto da literatura, graças à abertura de portas que o transcendem. A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor — correspondência, depoimentos, ensaios, crítica — desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais (SOUZA, 2002, p. 111. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 81 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] A perspectiva que a crítica brasileira coloca as possibilidades da biografia cultural deixa-nos entrever – pela natureza criativa dos procedimentos analíticos – que é possível estabelecer uma relação de proximidade entre o biógrafo/leitor e o biografado. Ou seja, a partir das leituras realizadas pelo biógrafo, que também passa a ser um leitor do autor/biografado, ele cria para si biografias novas, mesmo que de natureza metafórica, que possibilitam a ele reescrever de forma mais ampla os fatos da vida do autor biografado. E se ainda, como garante Eneida de Souza, o biógrafo/leitor fizer a articulação entre obra e vida, tornando infinito o exercício ficcional do texto da literatura, pode-se considerar que maiores são as possibilidades de pontes metafóricas que relacionem vida e obra. Ainda, na esteira da crítica cultural, se a escolha da crítica biográfica por outros fragmentos que não só o documental descola o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise, entendemos que estão aí as portas abertas para pensarmos Água viva também como um livro de artista de Clarice. Ou seja, tomar as imagens fragmentadas em escrita do livro para pensá-lo como mais um suporte biográfico na construção da autoficção da escritora, permite-nos entrever uma artista pintora, mesmo que amadora, que até hoje não fora, nem de longe, bem observada por grande parte de sua crítica estudiosa. A metáfora de se pensar o livro Água viva como um livro de artista reside para nós exatamente na possibilidade de se fazer uma biografia cultural de Clarice Lispector, principalmente aquela escritora e pintora que ainda não fora lembrada nas suas biografias já publicadas. Partindo então dessa consideração de que o biógrafo é um leitor do biografado e que ele cria biografias para si desse autor, pensamos que a biografia cultural abre um leque de infinitas possibilidades de leituras, sempre pautadas na relação vida x obra, para escrever essa que seria a biografia enviesada pela crítica biográfico-cultural. E, ainda, se a leitura do biógrafo/leitor já permite novas biografias, poderíamos dizer que o autor também pode, via sua vida real e sua vida ficcional – sua literatura – formular novas biografias de si próprio. Ou seja, entendemos que o biógrafo, que é um leitor do biografado, com suas leituras acaba por criar uma persona particularizada sua do autor biografado a partir da 82 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] reunião dos fragmentos de vida e obra que ele elege para sua biografia. O mesmo também contribui para pensar que o autor/escritor cria de si uma persona, biografada por si próprio, a partir de “estilhaços”, reunidos e identificados voluntária ou involuntariamente, de sua vida real e da sua obra ficcional/cultural. Não seria, então, uma autoficção de si própria que a pessoa do escritor – que também é seu próprio leitor – cria? E não é compreensível dizer o mesmo para o artista plástico ao criar o seu livro de artista? Pensamos nessa possibilidade do livro de artista plástico apenas como forma de situar nossa leitura também no campo das artes plásticas – considerando que nossa escritora analisada, Clarice Lispector, margeou também a atividade artística plástica – mesmo que amadoramente. Podemos dizer que ambos os artistas acabam por se ficcionalizarem – suas vidas reais – em suas obras artísticas ficcionais/culturais. Tornandose assim, os autores, sejam artistas plásticos ou escritores, biógrafos autoficcionais de si próprios. Partimos dessa ideia uma vez que, como observa mais uma vez Panek, “o livro de artista agora é espaço público, pode ser visitado a qualquer momento. É um objeto que se relaciona com o observador e não mais objeto de contemplação” (PANEK, 2005, p. 267) ao se falar de produção em artes plásticas. Nesse sentido, vale tentarmos compreender o que seja a autoficção. Na tentativa, partimos e recorremos mais uma vez ao que diz Eneida Maria de Souza, só que desta vez ao texto “Autoficção de Mário”, do livro A pedra mágica do discurso. Naquele livro, a autora estuda a vida e obra do intelectual modernista Mário de Andrade; e o que vai nos interessar da leitura é a afirmação que faz a intelectual sobre a relação entre vida e obra na escrita para (re)criar uma auto-imagem, ou outra imagem, do intelectual estudado, ou ainda, como vão ser criados auto-retratos, pelo autor ou pelo seu leitor, do personagem estudado: Associado ainda à técnica do esboço, a criação da auto-imagem promove maior aproximação entre vida e arte, pela natureza inacabada e precária de ambas as instâncias simbólicas. Escrita de mão dupla, na qual se cruza a via da ficção com a da realidade (SOUZA, 1999, p. 195). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 83 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] Preferencialmente, entendemos, que a auto-imagem, a que se refere Eneida de Souza em sua leitura metafórica, trata-se da imagem que o próprio Mário cria de si mesmo para os seus amigos/leitores com a colaboração das imagens que seus leitores/amigos criam dele. Ou seja, a auto-imagem que se dá ai é uma imagem construída do intelectual: formulada por fragmentos que ele dispõe ao outro e pelas imagens fragmentadas que todos os seus amigos e/ou leitores têm dele. Nesse sentido, esclarece-nos as palavras de Eneida Maria de Souza: “O auto-retrato andradino recebe pinceladas de seu autor e dos outros que partilham dessa criação, devolvendo-lhe imagens verossímeis ou deformadas, conforme o traço particular de cada observador” (SOUZA, 1999, p. 193). Retomemos aqui propositalmente uma frase da epígrafe do texto de Mário de Sá-Carneiro, musicado por Adriana Calcanhoto, que encabeça este texto que diz: Sou qualquer coisa de intermédio, que como já propomos antes, também vai de encontro ao que afirma Eneida de Souza ao garantir que as imagens de Mário de Andrade, em sua leitura são formadas por traços particularizados de cada “observador” do escritor modernista. Nesse sentido, queremos pensar que também assim os são as imagens que são formuladas pelo espectador de um livro de artista que tem, como dissemos antes, maior relação com seu espectador ao quebrar barreiras que a obra de arte enquanto objeto aurático tem. O livro de artista ainda permite-nos ser pensado como obra aberta a diferentes possibilidades de leituras pela sua natureza indefinida entre categorias de livros, como nos afirma Bernadette Panek no texto “O livro de artista e o museu: O livro pode apresentar-se como livro-objeto, como livro de artista ou livro de artista artesanal; pode fazer parte dos livros de bibliófilo ou manifestar-se como documento de performances, de trabalhos conceituais ou experiências de land art; pode assumir a forma de livro ilustrado por artistas ou de livro-objeto, livro-poema ou poema-livro, e outras denominações, as quais podem diferir a partir da concepção do referido objeto. Em realidade, não estão claros os limites entre o que é um livro de artista e o que não é, pois existem diferenças conceituais de autor para autor (PANEK, 2006, p. 41). 84 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] Se as pinceladas do auto-retrato, de acordo com Eneida de Souza, são conforme o traço particular de cada observador, frase que, aliás, mais vai nos interessar da passagem que a pouco fizemos referência da crítica cultural sobre o “auto-retrato” do intelectual, porque corrobora-nos afirmar que é a partir daí que podemos pensar a autoficção formulada pelo seu próprio autor e também construída pelo biógrafo estudioso/ leitor, já que essas imagens formuladas, por um ou por outro, não corresponderiam a nenhuma verdade de fato sobre aquele autor. As imagens que emanam dessas percepções particularizadas e as que são emanadas pelo próprio autor não contariam nenhuma verdade que poderia, ou não, ser parte da vida real encontrada na obra ficcional do autor. Pensamos isso considerando que “uma única ‘verdade’ possível reside na ficção que o autor cria de si próprio, acrescentando mais uma imagem de si ao contexto da recepção de sua obra” (KLINGER, 2007, p. 52). O autor, nesse sentido, cria imagens particularizadas de si para os outros e essas imagens, por conseguinte, acabam criando outras para os seus leitores. Imagens, por sua vez, que nem sempre representam alguma realidade sobre a vida real do autor. É valido pensar nessa formulação de imagen(s) também do artista plástico por ele próprio por entender que se os livros de artistas são um suporte primário, ali são realizadas obras artísticas finais, não são áreas de experimentos para o artista eles guardam imagens imprimidas pelo seu autor que corroboram para reconhecer fragmentos reais da ação do autor sobre o seu suporte. O artista ao impor-se diretamente no suporte livro como campo de ação primário estampa ali uma relação muito mais marcante de fatos reais de sua vida com fatos ficcionais que compõem sua obra de arte. A autoficção que o artista plástico cria da vida real para a obra/vida ficcional no livro de artista é mais aberta de interpretações tanto do leitor/espectador quanto de estudiosos que por ele for falar. Mesmo que as imagens dali feitas não possam ser comprovadamente como imagens reais. O livro de artista passa a ocupar lugares inusitados antes quase nunca ocupados pelas obras de arte mais fechadas. A obra de arte via livro de artista e, por conseguinte, os artistas saem das galerias, museus e casa de pessoas mais abastardas para o compactuarem com o Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 85 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] cotidiano de qualquer cidadão comum mais apto a contemplar a artes. O trânsito em espaços mais nômades, menos convencionais para a obra de arte, caracteriza o livro de artista em [...] volumes que hoje podemos encontrar nas prateleiras de uma biblioteca de universidade, ou de uma livraria. Pode-se estar com o livro nas mãos, um objeto não mais idolatrado. A tiragem é de edição comercial. O livro de artista não pertence mais às jóias raras de uma biblioteca. Com a reprodutibilidade, chega a um número significativo, não se releva a aura da obra única. Ele, diante disso é espaço público e democrático, pode ser visitado a qualquer momento. Tal obra se relaciona com o leitor, não está mais como peça de contemplação; o observador passa agora a portador, tem o objeto artístico em suas mãos (PANEK, 2006, p. 45). Na esteira de estudiosos da autoficção como Diana Klinger, compreendemos que as imagens que são formadas a partir dessas “leituras” da persona ficcional são as que vão, pelo seu grau de ficcionalidade, propor uma diferença se uma determinada obra ficcional é ou não é uma autoficção. Ou seja, na autoficção, as imagens extraídas da ficção do autor e formuladas pelo leitor, dependendo do seu grau de verossimilhança, é que vão distinguir uma autobiografia de uma autoficção, por exemplo. Nesse sentido, numa autoficção podemos deduzir que o autor consegue formular imagens que são menos passíveis de serem verossimilhantes de si para o seu leitor. Nesse caso, o leitor, mesmo que “teoricamente”, fica impossibilitado de relacionar diretamente a imagem ficcional do escritor/autor com as imagens reais que se tem dessa mesma persona. Daí até concordarmos que “[...] a autoficção mistura verossimilhança com inverossimilhança e assim suscita dúvida tanto a respeito da sua verificabilidade quanto da sua verossimilhança” (KLINGER, 2007, p. 46). Tal afirmativa de Daina Klinger nos faz compreender que se o espectador/leitor consegue relacionar as imagens que são descritas pela palavra no livro literário ou aquelas impressas por imagens, claramente irreconhecíveis, no livro de artista, esse autor consegui produzir uma autoficção própria. Essas imagens independem da confirmação, por parte do espectador/leitor, de serem verdades absolutas desses autores. Mas 86 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] o que dizer da produção artística que produz imagens que também são claramente irreconhecíveis por grande parte dos espectadores/leitores mas que determinado público reconhecem ali os seus autores? Talvez nasça daí um novo tipo de “documento” biográfico sobre esse autor que do nosso ponto de vista, essa é uma questão que vale ser pensada por nós em outro trabalho sobre crítica biográfica. Ou seja, que tipo de biografia estaríamos falando neste tipo de trabalho artístico? As produções artísticas, e aqui partilhando-nos das ideias de Klinger, de “[...] categoria de autoficção implica[m] não necessariamente uma corrosão da verossimilhança interna do romance, e sim um questionamento das noções de verdade e de sujeito” (KLINGER, 2007, p. 47). Com base nessa afirmação, podemos dizer que as imagens e a persona que são formuladas pela ficção são tão reais quanto irreais ao mesmo tempo. A abertura que é proporcionada pela ficção de questionar “verdades” e “sujeitos” como prováveis realidades, corrobora a ideia de autoficção implícita na ficção do escritor. Como também nos possibilita o questionamento de verdades e sujeitos que o livro de artista traz impresso em suas páginas. Ou seja, que verdade pode ser extraída das páginas daquele livro de artista: as obras são reais ou são cópias depois que o livro é impresso em grande escala? e de que sujeito artístico estamos falando quando temos uma produtor artístico difundindo sua produção em larga escala? aquele que visa alcançar a um público maior ou aquele que visa atingir um mercado consumidor maior? Mercado e consumo. São questões que sempre estiveram e sempre vão estar, do nosso ponto de vista, diretamente ligadas às produções artísticas. Considerando o que se disse até aqui sobre a autoficção, e considerando, sobretudo, que a crítica de cunho biográfico cultural ainda não se deteve de forma satisfatória na leitura do livro Água viva (1973) como uma autoficção da escritora, entendemos ser possível desenvolver tal leitura agora, principalmente quando os Estudos Culturais garantemnos a pessoa nessa relação intervalar entre vida e produção cultural. Propomo-nos, enfim, ler metaforicamente a vida da escritora Clarice Lispector na obra, e vice-versa, além de defendermos a ideia de que o livro possa ser lido como um diário ficcional que a escritora faz de si mesma, ainda que traída por essa atmosfera envolta ao “bio”. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 87 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] A (auto/bio) ficção/grafia de Clarice Lispector O monstro sagrado morreu. Em seu lugar nasceu uma menina que era órfã de mãe. Clarice Lispector. Água viva, 1998, p. 78. “Não quero ser autobiográfica. Quero ser “bio””, afirma Clarice Lispector em Água viva. Querer ser bio é mais do que desejar, é viver a morte também. Talvez seja pensando nesse livro que termina de forma meio desolada — como que querendo mostrar que, por mais que a escrita continue, possa continuar (“o que te escrevo continua e estou enfeitiçada”) para além do sujeito que a pratica, uma vez que não partilha da estética do perdão (“Olha para mim e me ama. Não: tu olhas para ti e te amas. É o que está certo.”), por tudo isso, misturado e em conjunto — que a amiga Olga Borelli tenha considerado-o como o “prenúncio do fim” ou “a ante-sala da desagregação absoluta”. Borelli talvez já reconhecera em Água viva, em suas palavras e frases anotadas, fragmentos da vida de Clarice Lispector que, não por acaso, ainda não tivera coragem de publicá-lo; talvez também por reconhecer nele uma autobiografia, realizada de forma inconsciente: Água viva, apesar de dar a impressão de ser um texto corrido, feito num jorro só, foi, no entanto, de penosa elaboração. Ela passou três anos anotando palavras e frases, sem conseguir estruturá-lo. Quando ficou pronto, sentiu-se sem coragem de publicá-lo (BORELLI, 1981, p. 87-88). Perguntada sobre essa sua ficção, Clarice certa feita respondeu: “O que é este livro? Não sei, não.. Não sei... E mesmo o que lhes poderia dizer, não valeria nada. Nunca releio meus livros depois de publicados... eles não me interessam mais” (apud GOTLIB, 1995, p. 413). Sabiamente a escritora parece procurar falar o mínimo possível sobre o livro, uma vez que falar dele próprio equivale-se a falar de si. Como se vê, é na denegação que Clarice fala de si. Se, para Lucia Helena, Água viva “[...] é um tipo de texto que não comporta mais as designações convencionais [...]” (HELENA, 1997, p. 84), então podemos dizer, mesmo que metaforicamente, que se trata agora de uma conversa cara a cara entre criador e criatura, um com 88 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] o outro, que “[...] gradativamente eu e tu vão-se aproximando, numa inter-relação [...]” (HELENA, 1997, p. 82). Uma relação interior onde se busca entender a si próprio, assim como aquelas conversas em que a gente sozinha diante de um espelho, tem consigo mesmo, buscando explicação para coisas inexplicáveis para o inominável. Eu sou o meu reflexo?, resta-nos a pergunta. “A relação entre o eu e o tu, em Água viva, é de extrema complexidade e problematiza esta distância entre sujeito e objeto” (HELENA, 1997, p. 83): porque o objeto reflexo só existe diante da coisa refletida, um, reflexo e refletido, não existe sem o outro, o primeiro não toca no outro. É uma relação que só se concretiza se a coisa refletida se posta diante do objeto reflexo e, “[...] o eu deseja seduzir o tu pela palavra lançada como isca [...]” (HELENA, 1997, p. 83). A imagem que se reflete daí – desse contato entre autora e leitor – refletidas um para o outro proporciona reflexos/ leituras que se misturam entre a imagem real e a ficcional do autor. Talvez quem melhor entendera a proposta estética da escritora naquele momento da publicação do livro, e que sua produção depois só viria a confirmar, tenha sido o amigo e filósofo José Américo Pessanha, que recebera os datiloscritos do ainda chamado Objeto gritante. Em carta à amiga de 5 de março de 1972, Pessanha diz e sugere questões das quais nos deteremos em algumas: 1- “tentei situar o livro: anotações? pensamentos? trechos autobiográficos? uma espécie de diário (retrato de uma escritora em seu cotidiano)? No final achei que é tudo isso ao mesmo tempo” (apud GOTLIB, 1995, p. 404). Continua: 2- “De início, supus que o livro se situasse numa espécie de linha como A paixão segundo G.H.. Depois achei que não: estava mais perto de (fundo de gaveta), de A legião estrangeira” (apud GOTLIB, 1995, p. 404). Apesar de demonstrar muito cuidado crítico em seu julgamento, dizendo à amiga por carta que o livrinho escapava a qualquer gênero já visto em toda a literatura brasileira (“gênero não me pega mais”, afirma Clarice em Água viva), Pessanha faz as referidas afirmações que, do mesmo modo, vemos também em algumas das críticas sobre a obra, isto é, de que o livro trata-se de um diário, “ainda que não exatamente nos moldes de um diário íntimo”. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 89 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] “Água viva é uma continuação e um recomeço: continuação da experiência de esvaziamento [...] — esvaziamento do sujeito narrador, que se desagrega, e da narrativa, que conta a errância desse mesmo sujeito [...]” (NUNES, 1995, p. 156), um esvaziamento que faz Clarice para si mesma diante do seu reflexo no espelho e para seu leitor diante de seu livro. Narrando com “[...] palavras feitas apenas de instantes-já [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 11), no instante em que se coloca diante de sua própria imagem, de seu reflexo, passagens e errâncias de sua própria vida. Ao narrar, a escritora narra-se a si própria, deixa-se contar sobre si ao outro, involuntariamente. “Sei que são primárias as minhas frases, escrevo com amor demais por elas e esse amor supre as faltas, mas amor demais prejudica os trabalhos [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 11). É na intenção de se desligar de sua imagem de grande escritora já aclamada e adorada, quando escreve Água viva, que Clarice se debate consigo própria, de alguma forma contra imagem de grande literata que a incomodava profundamente: que por conseguinte, são imagens que se embaralham a uma vida real de persona que afirma que “[...] Sempre fui uma amadora, amadora compulsiva, é verdade, mas amadora. E tenho receio de uma profissionalização [...]” (LISPECTOR, 1984, p. 47), dissera ela certa vez. Na esteira de Maurice Blanchot, “se o diário aponta para uma sedução um pouco voyeur” (BLANCHOT, 1984), logo ler os escritos de outro incita o leitor a desvendar a intimidade de um eu. Em Água viva, que o tomamos como diário ficcional da escritora, esse pensamento não se aplica. E se o diário é mesmo uma armadilha, como quer Blanchot, ele não se dá no livro como o acesso ao segredo de um eu, como registro de uma biografia, mas como o momento da aparição de um sujeito que é feito/eleito de linguagem, ou talvez, ainda mais longe, “da própria linguagem como sujeito” (ANDRADE, 2007, p. 65). “Não mais diário de alguém, mas diário de algo: diário da vida escrita”. Ao que nós faríamos uma pergunta simples mas provocativa: uma outra escritora escreveria Água viva, que não fosse a escritora Clarice Lispector? Pensando na pergunta, voltamos ao texto de Andrade, ainda onde se lê: “A vida para essa autora parece fazer-se em texto, de modo que a vida(bio) é a 90 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] invenção, ficção, criação literária, registro(grafia)” (ANDRADE, 2007, p. 65). Aqui, quando Andrade afirma que a vida parece fazer-se texto, está para nós todo o distanciamento e a aproximação entre a escrita de Água viva X Diário, vida X ficção, que faz toda a diferença. Ou seja, é o livro Água Viva detentor de uma escritura que pode ser lida como um ensaio sobre a vida e sobre a morte, mas no sentido de sobrevida derridaiano. Depois voltaremos a esta questão, para chegar à escrita arquivística da escritora. Antes, porém, queremos pensar um pouco o livro Água viva como uma autoficção, já que o título do trabalho de Andrade sugere tratar-se do assunto: da escrita de si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva, de Clarice Lispector.27 Água viva, “[...] texto fronteiriço inclassificável, que está no limite entre literatura e experiência vivida [...]” (NUNES, 1995, p. 157). Nele, Clarice conta uma experiência narrada de forma improvisada como em uma conversa que acontece entre um eu e um tu, diante de um espelho; por isso, “[...] ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 12). As aproximações a que se propõe a escritora na obra resultam, a nosso ver, de experiências do cotidiano, de experiências de vida e de morte. É nesse sentido que entendemos que o livro propõe uma estética da vida que suplementa a estética canônica da ficção. A fusão entre realidade e ficção é uma das características mais marcantes de Água viva, a ponto de Clarice Lispector se inscrever dentro do livro-vida: Se é que ainda é desejável pensar em termos de “verdade”, o que parece altamente duvidoso, em todo caso em relação à autoficção este conceito não coincide com a verdade autobiográfica, nem portanto com a verdade como alguma coisa verificável. Uma única “verdade” possível reside na ficção que o autor cria de si próprio, acrescentando mais uma imagem de si ao contexto da recepção de sua obra (KLINGER, 2007, p. 52). 27 C. f. ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Da escrita de si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação – Estudos Literários – Universidade Federal de Minas Gerais. 2007. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 91 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] Tendo por base o que postula Diana Irene Klinger, podemos inferir algumas proposições sobre o processo de escrita/inscrição que Clarice faz em Água viva: a primeira é que a escritora não procura escrever na obra sua biografia de escritora ou persona intelectual, o que não nos permite classificar o livro como uma autobiografia. Podemos dizer que se, por um lado, os termos autoficção e autobiografia se aproximam pelo “auto” do sujeito, por outro lado afastam-se pelo “bio”, pela forma como esse “bio” se inscreve nas produções, diferenciando-as umas das outras. Nessa direção, vejamos o que diz Eneida Maria de Souza: Esta personagem, construída tanto pelo escritor quanto pelos leitores, desempenha vários papéis de acordo com as imagens, as poses e as representações coletivas que cada época propõe aos seus intérpretes da literatura. Cada escritor, portanto, constrói sua biografia com base na rede imaginária tecida em favor de um lugar a ser ocupado na posteridade: ou o do ausente ou do morto, pois também a morte cultiva seus teatros, como palhaço e o dandy (SOUZA, 2002, p. 116). Portanto, podemos insistir que Água viva não se trata de uma autobiografia de Clarice Lispector, já que não se corresponde a nenhuma “verdade” absoluta sobre a autora, ainda que essa, busca pela verdade, não seja o interesse das biografias de visadas culturalistas. Já a segunda proposição que nos permitem as anteriores passagens de Klinger e de Eneida de Souza para pensarmos Água viva como uma autoficção e não como uma autobiografia, dá-se pelo fato de Clarice se ficcionalizar em sua própria produção. Fato este, aliás, não só observado em Água viva mas também em quase toda a sua produção literária dos anos anteriores e posteriores à publicação do livro. Em A hora da estrela (1977), por exemplo, vários estudiosos já observaram “tratar-se” a novela da própria retirante Clarice Lispector enquanto Macabéa. A ficcionalização em Água viva margeia entre a água cristalina e reflexiva de um rio e as margens de um espelho recortado: “[...] [que mesmo que] tire-se a sua moldura ou a linha de seu recortado, e ele cresce assim como água se derrama [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 71). Afirmamos então que Água viva é a água da vida de Clarice ficcionalizada, para o leitor, que se derrama diante desse espelho e que se esvai, morrendo a cada 92 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] instante ao buscar o instante-já das coisas. Porque “[...] o ser voltado a água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente [...]” (BACHELARD, 1997, p. 7), e Clarice morre a cada instante em que tenta assumir-se e entender-se no monólogo com a sua vida em Água viva. “E se eu digo “eu” é porque não ouso dizer “tu” ou “nós” ou “uma pessoa” [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 12), o objeto reflexo, a coisa, o refletido e o leitor, o ser que agora se pôs a escutar a coisa, agora se confunde na narrativa de Água viva: um se faz no/dentro do outro. A partir das imagens que um formula/emana do outro. Narrativa que se constitui em fragmentos soltos e esparsos de uma conversa da coisa e do objeto e que o leitor pode ou não entrar sorrateiro pela porta da frente ou dos fundos e fazer parte de “[...] um texto que revela o lugar de onde o sujeito-Clarice fala [...]” (JORGE, 1997, p. 97). As imagens formalizadas a partir de Água viva, pelo leitor e pela escritora, ocupam um lugar intervalar entre o real e a ficção “[...] passando a exercitá-la[s] no seio do mais banal cotidiano, cuja realidade harmoniosa defende e protege o sujeito de se deparar com o real [...]” (JORGE, 1997, p. 99) tornando o que pode ser real ficcional e vice-versa. Uma escrita autoficcional é sempre uma escrita de si, que nunca deixa de ser já uma escrita do outro, mas que, talvez por isso mesmo, faz retornar sempre aquele sujeito em si, mesmo que de per si. Ou seja, uma escrita de si aponta para o sujeito de dentro e de fora da escrita, não privilegiando, nunca, só o de dentro ou só o de fora. Pensando nisso, é como se disséssemos que a Clarice da escrita do datiloscrito Objeto gritante, que, para Andrade, é uma escrita de si (posto que autobiográfica pessoal íntima), suplementa a Clarice da escrita de Água viva (e vice-versa), que, para Andrade, é uma escrita fora de si (exterior, impessoal , ex-tima28). Aqui talvez seja bom voltarmos de novo a algumas passagens da carta de Pessanha. 28 C.f. ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Da escrita de si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação – Estudos Literários – Universidade Federal de Minas Gerais. 2007. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 93 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] Em sua carta-conselho à amiga, o filósofo diz: Tive a impressão de que você quis escrever espontaneamente, ludicamente, a-literariamente. Verdade? Parece que, depois de recusar os artifícios e as artimanhas da razão [...], você parece querer rejeitar os artifícios da arte. E despojar-se, ser você-mesma, menos indisfarçada aos próprios olhos e aos olhos do leitor (apud GOTLIB, 1995, p. 405). E conclui aconselhando que a autora dê um subtítulo à obra para que o leitor possa identificá-la “como não-ficção, como apontamentos, como um certo tipo de diário, enfim como você considere melhor qualificá-la sem traí-la em excesso”(apud GOTLIB, 1995, p. 405). Ou seja, se Clarice não trai a obra, trai a si mesma, posto que é sabido que depois da carta, principalmente, procura retirar tudo ou quase tudo que parecia ser de mais pessoal em Objeto gritante. Como se vê, há aí uma fusão entre sujeitos de si e de fora de si que se somam, se suplementam, dificultando qualquer visada racionalista. Como se não bastasse, parece-nos que Clarice foi deliberadamente traída pela escrita de Água viva, uma vez que grandes pistas de sua mentora ficaram esquecidas meio a despropósito dentro da escritura. Talvez também como forma de esconder o que o amigo Pessanha vira demais nos datiloscritos, principalmente quando falava de “a-literariamente”, a escritora tenha escrito após o título a palavra “ficção”. Nessa ficção, temos Clarice Lispector contando-nos uma outra noção de “verdade” de si. Cabe-nos, então, uma pergunta: o que é ficção e o que não é ficção em Água viva? O que é da ordem do diário e o que não é? Não sabemos ao certo, e tal questão nodal passa despercebida no livro. Mas uma coisa podemos suspeitar: talvez começasse exatamente ali o não interesse da escritora pelo divisor do que é e do que não é mais literatura. Daí podermos pensar que Água viva possa ser lido como um resumo de tudo o que a escritora dissera até então e um rascunho, no bom sentido, de tudo o que viria a dizer naquela última década de vida. “Assim, a autoficção adquire outra dimensão que não a ficção autobiográfica, considerando que o sujeito da escrita não é um “ser” pleno, senão quando fora dele, na “vida mesma” (KLINGER, 2007, p. 55). 94 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] Voltamos pela última vez à carta de Pessanha: “Tento me explicar melhor: você se transcendia e se “resolvia”” em termos de criação literária; agora a “literatura” desce a você e fica (ou aparece) como que imanente ao seu cotidiano; você é seu próprio tema — como num divã de psicanalista, em que se fala, fala, sem texto previamente ensaiado. Esse encontro de você-Clarice com você-escritora certamente resulta de um processo pessoal que a levou até aí. Pergunto [...]: e então, o que virá depois? (apud GOTLIB, 1995, p. 406). Com base no que diz Pessanha, podemos postular que Água viva seja exatamente o lugar onde a Clarice fora de si funda-se com a Clarice dentro de si, o que só sinaliza que a escritura Água viva/Água vida é o lugar para onde também convergia todo o projeto intelectual da escritora até então. Num texto a-literário, um misto de diário e antidiário, ficção e verdade, convulsão linguajeira e derradeiro silêncio, a escritora ensaia um discurso sem texto e sem forma, mas possivelmente dentro de uma lógica que justificaria sua fala monocórdica, repetitiva e monótona, cheia de falhas e de faltas, cortes abruptos e fragmentos justapostos aleatoriamente, como forma de tentar driblar o outro (o leitor) da herança/errância de um sujeito e de um lugar derradeiro do qual a escritora e intelectual Clarice Lispector poderia ainda falar ao outro, mesmo que em silêncio de morte. Clarice Lispector tornar-se seu próprio tema em Água viva explica-nos, em parte, a compreensão dos textos ditos autoficcionais (como o diário) na medida em que, do ponto de vista do outro (do leitor, do crítico etc), Água viva pode ser um diário, uma biografia; enquanto que do ponto de vista do sujeito mesmo, aqui no caso a escritora, o discurso de Água viva é uma forma nova de biografia. “Ver-se a si mesmo é extraordinário. [...] arrepio-me diante de mim [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 71), é um arrepio de quem quer se entregar e entender-se em todas as instâncias, é uma busca de explicação para o que não se explica, e um ser “[...] entre a necessidade de dizer e a experiência de ser, no curso de improvisações [...]” (NUNES, 1995, p. 157), um ser-se que não se pode ser com mais ninguém, um ser-se que só se é diante de si mesmo em que não tenha mais ninguém que queira Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 95 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] que você seja algo, é um ser-se que só se é sozinho, um sozinho que só se faz diante de seu reflexo próprio no espelho, onde se diz e se faz tudo sendo você mesmo no âmago do seu ser. Se a imagem do livro de artista foi pensada em outros pontos deste nosso trabalho como uma possível autoficção de si, aqui essa imagem se presentifica de forma mais material possível na escrita. A autoficção imagética que retrata o livro de artista e o reflexo da própria persona no espelho podem ser pensados como uma matéria ficcional ou real do artistas só. Em Água viva, Clarice é-se, ela se deixa viver, escrever e pintar por improvisações, em notas soltas e esparsas constrói todo o seu universo em/de Água viva, sendo ela própria, “[...] é com uma alegria tão profunda. É uma tal aleluia. Aleluia, grito eu, aleluia que se funde com o mais escuro uivo humano [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 9), ela consegue ser ela mesma. E é diante desse espelho de águas vivas e espelhos de “[...] sucessão de escuridões [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 72) que Clarice consegue dar o seu grito de liberdade e vida porque “[...] só uma pessoa muito delicada pode entrar no quarto onde há um espelho vazio, e com tal leveza, com tal ausência de si mesma, que a imagem não marca [...]” (LISPECTOR, 1998, p. 72). Marca esta que ela já carregava de grande escritora que era. “Quero me reinaugurar. E para isso tenho que abdicar de toda a minha obra e começar humildemente, sem endeusamento, de um começo em que não haja resquícios de qualquer hábito [...]” (LISPECTOR, 1978, p. 69), hábitos como os da escrita, hábitos de fazer uma literatura melhor que a outra, uma literatura posterior que venda e agrade mais que a anterior. O que sabemos é que Água viva encena o sentido mesmo da vida da escritora no momento em que se constrói sua escrita fluida e móvel, escorregadia e flutuante. Ou seja, o sujeito da escrita cria uma ficção de si mesmo. Aqui o que Michel Foucault fala ajuda-nos a compreender a questão: O papel da escrita é constituir, contudo o que a leitura constituiu, um ‘corpo’. E é preciso compreender esse corpo não como um corpo de doutrina, mas sim [...] como o próprio corpo daquele que, transcrevendo suas leituras, delas se apropriou e fez sua a verdade delas: a escrita transforma a coisa vista ou ouvida em forças e em sangue (FOUCAULT, 1992, p. 143). 96 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] O livro Água viva, por seu próprio processo de construção/organização, é uma metáfora perfeita do que a própria Clarice denomina de “Fundo de gaveta”, lugar onde se guarda o que presta e o que não presta, como ficção e não ficção, restos, coisas insignificantes e desprezíveis, rascunhos, comentários de um projeto literário ambicioso, mas que deixou pouquíssimos rastros, manuscritos. Questão, aliás, que nos faz voltar a uma passagem de Olga Borelli, já citada neste trabalho, em que a amiga da autora afirma que “durante três anos” a escritora juntou palavras e frases, sem conseguir estruturá-lo como um romance linear. Como dissemos no início, o livro Água viva é um ensaio sobre a vida e sobre a morte. Numa entrevista concedida pouco antes de morrer, Derrida deixa claro que todos os conceitos que o ajudaram a trabalhar durante toda a vida, sobretudo o de rastro e o de espectral, estavam ligados a ‘sobreviver’ como dimensão estrutural, já que “a sobrevida não deriva nem de viver nem de morrer” (apud MARGENS/ MÁRGENES, 2004, p. 13). E conclui, digamos, de forma clariciana: [...] no momento em que deixo (publicar) ‘meu’ livro (ninguém me obriga), torno-me, aparecendo-desaparecendo, como o espectro ineducável que jamais terá aprendido a viver. (..). Deixo um pedaço de papel, parto, morro: impossível sair dessa estrutura, ela é a forma constante de minha vida. Cada vez que deixo partir alguma coisa, vivo a minha morte na escritura (apud MARGENS/ MÁRGENES, 2004, p. 15). Dizemos de forma a la Clarice porque toda sua obra pode ser lida como uma escritura sobre/vida enquanto sobre(a)vida: Água viva lida como sobrevida(autoficção) não é simplesmente o que resta , é a vida mais intensa possível. “Nunca”, continua Derrida, me sinto tão obcecado pela necessidade de morrer do que nos momentos de felicidade e gozo. Gozar e chorar a morte que espreita, para mim, é a mesma coisa. Quando recordo a minha vida, tendo a pensar que tive essa chance de amar até os momentos infelizes de minha vida, e de abençoálos (apud MARGENS/ MÁRGENES, 2004, p. 17). Afinal não é a toa que, para Clarice Lispector, “escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada” (LISPECTOR, 1984, p. 191), pelo menos é assim que entendemos a perda e a recordação amorosa Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 97 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] que se narra em Água viva. “Escrever é um dos modos de fracassar”, vaticinou certa vez a escritora. Talvez seja por ter tal consciência, que ela tenha feito de sua busca pela linguagem sua travessia única, realizandose, assim, exatamente ali onde ela como escritora mais fracassaria. Não saber-viver fez com que Clarice contornasse a falta, a culpa, o luto na escrita, e tudo sem nenhuma esperança de salvação. A ficção não compensa a vida, mas às vezes ocupa o seu lugar para que um espectro nela retorne. Se não em vida, depois da morte do sujeito o espectro escava para si (e para seu outro) um lugar de honra na cultura do presente. A escritura do instante de Água viva bordeja essas questões que escapam à compreensão racionalizante da critica. Daí entrar em cena a critica biográfica, já que compete a este aparato teórico trabalhar entre o monumento (a ficção) e o documento (a vida). Mais uma vez, Eneida Maria de Souza corrobora nossa reflexão: Ao se considerar a vida como texto e as suas personagens como figurantes deste cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá certamente responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica cultura e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força teórica inserida em toda ficção (SOUZA, 2002, p. 119-120). Favorecendo, assim, as possibilidades infinitas de se pensar Água viva não só como uma autoficção da escritora Clarice Lispector, mas, ainda, como um livro sobre(a)vida da artista/escritora. Viver é morrer na escritura Tenho falado muito em morte. Mas vou te falar no sopro de vida. Quando a pessoa já está sem respiração faz-se a respiração bucal: cola-se a boca na boca do outro e se respira. E a outra recomeça a respirar. Essa troca de aspirações é uma das coisas mais belas que já ouvi dizerem da vida. Na verdade a beleza deste boca a boca está me ofuscando. Clarice Lispector. Água viva, 1998, p. 59. A Clarice Lispector de Água viva morre, literalmente, para continuar vivendo uma verdade nem que seja inventada. Se as imagens que são emanadas da obra são o que a qualifica, entre ser ou não ser, como 98 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] uma autoficção, Lispector como escritora real vive a morte na sua escritura para não ser o livro a sua ficção da vida real. As imagens que o livro, publicado em 1973, proporciona ao leitor são imagens que nos permitem formular a todo instante imagens que podem ser “comparadas” à persona clariciana. Diz a escritora em certa altura do livro que “o que falo nunca é o que falo e sim outra coisa” (LISPECTOR, 1998, p. 28). Portanto, pode-se depreender do livro imagens ficcionalizada, pelo leitor e pela escritora, de Clarice e imagens reais da autora presentificadas no livro ficcionalmente. Claro se considerarmos que a vida e a ficção se “embaralham” em Água viva. Diríamos que o que lemos em Água viva é outra coisa além da ficção de uma pintora que quer ser escritora – temática presente no livro. Temos na obra uma escritora que será um dia pintora. Mas que, em contrapartida, o enredo não pode ser confirmado se de fato a história que se conta na obra poderia ser a história da escritora, já que ela morrera antes (1977) de confirmar o seu sucesso como pintora. Como o era assim a personagem da ficção. As consequências imagísticas, pela leitura, que nos proporciona o livro Água viva hoje são passíveis de interpretações [por] verossimilhantes e também [são] inverossimilhantes à autora Clarice Lispector, justamente pela inversão de papéis que ocorre entre vida e ficção no livro. Tal “desenredo”, da vida real na obra ficcional, que Clarice Lispector realiza em Água viva coloca-nos com possibilidades infinitas de reconhecer ali fragmentos da vida real da escritora e, também, leva-nos a questionar a todo instante se são apenas ficções de uma vida de escritora. Sabe-se que a construção de Água viva, bem como quase toda a obra da escritora como comprova as leituras de Edgar Cézar Nolasco nos livros Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura (2001) e Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector (2004), é composta de fragmentos que Clarice recolhera, provavelmente, ao longo de toda uma vida como já também sinalizara a amiga Olga Borelli. Ou seja, podemos afirmar que em Água viva a escritora vai tornar “reais” imagens que ela recolheu em todo esse percurso de vida. Nesse sentido, podemos dizer ainda que é somente em Água viva que a autora não vai experimentar a escrita, bem como o faz o artista em seu livro de Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 99 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] artista que é suporte primeiro de sua produção, no livro Clarice se deixa desenvolver o seu processo artístico/criativo de escrever por “colagem” de imagens fragmentadas. E são essas imagens que vão dar corpo à personagem pintora que quer ser escritora, entre viver e/ou morrer na escritura/pintura. Diga-me por favor que horas são para eu saber que estou vivendo nesta hora. Estou me encontrando comigo mesma: é mortal porque só a morte me conclui. Mas eu aguento até o fim. Vou lhe contar um segredo: a vida é mortal. Vou ter que interromper tudo para te dizer o seguinte: a morte é o impossível e o intangível. De tal forma a morte é apenas futura que há quem não a aguente e se suicide (LISPECTOR, 1998, p. 77). Se em Água viva Clarice tenta não ser autobiográfica, podemos dizer que seu projeto vai fracassar exatamente na escrita que ela faz de si no decorrer de quase todo livro. Já não pensamos mais nas possibilidades que são retiradas por alusões feitas pelos seus leitores, mas dos fragmentos da própria obra que relacionam diretamente com sua “bio” de mãe, mulher, escritora e até pintora que fora. Corrobora tal constatação quando lemos no livro: “Nasci assim: tirando do útero de minha mãe a vida que sempre foi eterna. Espera por mim — sim? Na hora de pintar ou escrever sou anônima. Meu profundo anonimato que nunca ninguém tocou” (LISPECTOR, 1998, p. 32). Sabe-se que Lispector nasce exatamente para salvar a mãe de um mal de saúde – fato da vida real da escritora que vai se fazer presente também em toda a trajetória da vida escritural de Clarice enquanto autora. A relação intrínseca existente entre a escritura e as imagens de Água viva mostra-nos toda uma vida que a autora não conseguiu se fazer esconder na escrita, já que durante toda sua vida a escritora escamoteou sua vida real vivendo personagens de suas obras literárias. Água viva é o suporte primário de uma prática artística que vai culminar em outras obras mais tarde no referente a personagens pintoras, além de esboçar uma atividade que a própria escritora vai levar à prática anos depois na vida real. Por isso, os limites ou fronteiras entre o real e o ficcional da vida de Clarice em Água viva vão ser impossíveis de demarcações com claridade e objetivação tanto são as colagens, as sobreposições e as 100 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Água Viva como um “livro de artista” [77-103] invenções e realidades de imagens e escrita da vida da autora, tornando-o assim, um livro da artista sobre a vida da escritora. Portanto, um livro de artista de Clarice Lispector. [...] o livro de artista se articula nos recortes, nas perfurações, na permanência da história e no envelhecimento. Provocando o público nas intermitentes páginas da arte, rompe fronteiras e dessacraliza o próprio estatuto da obra de arte, estetiza o objeto livro desconstruindo o corpo físico e imaginário para além dele, agora no campo da arte, fundase no jogo da decifração e significação, de metáforas (HOLZ; LAMAS; LOURENÇO, 2005, p. 16). Finalmente, podemos dizer que se o livro Água viva conta uma história, esta história está perpassada de fio a pavio pela persona da escritora Clarice Lispector. Se viver é morrer na escritura, como dissera Derrida, podemos dizer que via leitor, biógrafo, crítica etc, Clarice vive a todo instante a sua escritura de Água viva, considerando que a crítica, principalmente, (re)inventa a escritora a partir das muitas leituras que se faz da obra. A cada instante já que Clarice tentou viver/buscar em Água viva, a crítica e seus leitores criam uma nova persona da escritora. Nesse sentido, podemos afirmar que Água viva, que já fora nomeado de Atrás do pensamento: monólogo com a vida e de Objeto gritante29 é uma autobioficção de Clarice Lispector. 29 C. f. MENDES, Marlene Gomes. Nota prévia. In: LISPECTOR, Clarice. Água viva: ficção. – Rio de Janeiro: Editora Artenova S. A., 1973. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 101 Marcos Antônio Bessa-Oliveira / Edgar Cézar Nolasco [77-103] REFERÊNCIAS ANDRADE, Maria das Graças Fonseca. Da escrita de si à escrita fora de si: uma leitura de Objeto gritante e Água viva de Clarice Lispector. Tese de Doutorado defendida no Programa de Pós-Graduação – Estudos Literários – Universidade Federal de Minas Gerais. 2007. BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaios sobre a imaginação da matéria. Trad. Antonio de Pádua Danesi – São Paulo: Martins Fontes, 1997. (Coleção Tópicos) BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’água, 1984. BORELLI, Olga. Clarice Lispector: esboço para um possível retrato. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. CALCANHOTO, Adriana; SÁ-CARNEIRO, Mário. O outro. In: Público, 2000, faixa 13. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. DERRIDA, Jacques. “Estou em guerra contra mim mesmo”. 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Edgar Cézar Nolasco é docente do curso de Letras da UFMS. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 103 104 Cotas para negros [105-123] Cotas para negros: Tensão nos sentidos30 Marlon Leal Rodrigues Resumo: o presente trabalho aborda uma discursividade polêmica sobre a questão do negro que de certa forma constitui um debate também sobre identidade do brasileiro. Mais especificamente, o discurso sobre as cotas para negros nas universidades públicas vem colocar “em cena” um conjunto de sentidos e representações sociais e históricas da posição social e política do negro no Brasil. Palavras-Chave: discurso, negro, identidade, cotas. Abstract: This work discusses the “discursividade” controversy about the issue of black that also constitutes a debate about Brazilian identity. More specifically, the speech about quotas for blacks in public universities put “on the scene,” a set of directions and social representations and historical social and political position of black in Brazil. Keywords: discourse; black; identity; quota. 30 Este trabalho é parte de um conjunto de reflexão que venho desenvolvendo desde 2003 sobre as cotas nas universidades públicas. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 105 Marlon Leal Rodrigues [105-123] As únicas pessoas que realmente mudaram a história foram as que mudaram o pensamento dos homens a respeito de si mesmos. Malcolm X (1925-65) A proposta das cotas na universidade públicas faz parte de um conjunto de políticas afirmativas que foi elaborado para ser defendido na Conferência das Nações Unidas Contra o Racismo em Durban, África do Sul, em 2000, com a participação de 189 nações. Essa conferência foi a terceira (1978 a primeira, 1983 a segunda). O relatório final, de acordo com Escóssica (2001), “contém o diagnóstico da situação do racismo e da discriminação no Brasil (...) propõe novas medidas de combate ao problema. Isso não significa, porém, que todas as propostas contidas no documento serão implementadas pelo governo brasileiro”. O debate, que nos últimos anos se tornou mais aguerrido, contribui de forma significativa para que “sujeitos” e “discursos” (Pêcheux, 1997) saiam do armário da dissimulação (o branco finge que não discrimina) e da indiferença (o negro finge que não é discriminado), ou conforme Santos (2002: 31): “de um lado há um grupo que finge que não discrimina. E no outro temos a própria população negra que finge que não é discriminada” e “as pessoas já estão acostumadas: o branco em discriminar com naturalidade e o negro em aceitar” (p. 35). Talvez seja possível esperar que o debate possa contribuir para abrir a caixa-preta do racismo, à moda brasileira, ou, como sugere a pesquisa da Datafolha, um racismo cordial. A proposta é analisar o “contra-discurso” (Pêcheux, 1999) sobre as cotas enquanto lugar de resistência as políticas afirmativas e tudo que dela pode e decorre enquanto de disputas sociais e históricas. Análise do Discurso: uma proposta de leitura crítica Uma das contribuições, na área da Lingüística, do que se convencionou chamar de Análise do Discurso de linha francesa – AD – tem sido demonstrar que os discursos, palavras, expressões, etc, não são simplesmente um “falar” de algo para alguém de forma simplista, e que 106 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] ainda os sentidos desse falar não é um dado a priori, da mesma forma que não pertence meramente à ordem das semi-estruturas da língua, mas, sim, da ordem de um certo tipo de articulação. Esse tipo de articulação está no limite do lingüístico com o social, onde as estruturas sociais se fazem sentir de forma preponderante nas formas de organizações lingüísticas e vice-versa. A relação do lingüístico com o social configura o quanto ela está inscrita em processos sociais e históricos a partir da articulação do Materialismo Histórico de Marx, relido por Althusser, do Inconsciente de Freud, relido por Lacan, e, por fim, completando a tríade, da Lingüística saussureana na leitura de Pêcheux. Essa articulação possibilitou a elaboração de alguns conceitos que permitiram um modo até então diferente de interpretação (Pêcheux, 1988) em oposição ao estruturalismo e ao positivismo, que foi colocada em questão por volta da década de 50 e 60 na Europa. A palavra “crítica” significa para a AD na medida em ao “observar o homem falando” (Orlandi, 1999: 15) não se trata apenas do que se “diz”, mas considerar “a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeito de uma determinada forma de sociedade” (idem, 16). Esta perspectiva de abordar o que se fala não é “pouca coisa”, é colocar uma série de indagações e questões que até então não eram consideradas no âmbito da lingüística. Estas questões e indagações ampliam se articulam com o social e o histórico para compreender não apenas o “homem falando”, mas outra dimensão de sua “fala”, o discurso enquanto espaço de investimentos sociais, históricos e ideológicos. Em termos de análise e reflexão, isto não é “pouca coisa” nisto reside o que se pode considerar como uma proposta de leitura crítica. A proposta de constituir um instrumento crítico dos processos de produção de língua/linguagem foi desenvolvida por Michel Pêcheux, mais comprometido com o materialismo histórico e com as lições de Althusser. Este empreendimento teórico e ideológico recebeu o nome de Análise do Discurso de linha francesa. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 107 Marlon Leal Rodrigues [105-123] Cotas: corpus A proposta de analisar a configuração discursiva implica em reconhecer que há uma luta em torno dos “sentidos” (Pêcheux, 1997), algumas “posições ideológicas” (idem) e algumas de suas relações com outros “discursos” (idem, 2002) que lhe dão sustentabilidade, que circulam no cotidiano e na imprensa escrita (revistas, jornais, informativos, panfletos, boletim, internet etc.). Convém ressaltar que os “enunciados” (idem) abaixo para análise foram recortados dos “suportes discursivos” (Maingueneau, 2001) citado acima. Seguem, assim, os recortes ou enunciados31: (25) “pedir aos donos de universidades particulares (...) mas espaço para os negros em suas salas de aulas. Na verdade bastaria que mais negros tivessem dinheiro para as mensalidades, apostilas, provas especiais, matrículas. Acesso permitido, preconceito zero. Não há preconceito, mas exclusão social”; (26) “uma sociedade pobre e orgulhosa de ser mestiça, há de se perguntar não apenas onde estão os negros, mas quem eles são”; (27) “como seria a seleção racial – ou, usando um sinônimo, segregação”; (31) “a pobreza é a chaga que embala o preconceito” (Reitor da UFRJ, Carlos Lessa, 2003: 40); (42) “questão de honra! Acho uma injustiça a reserva de vagas aos negros! Todos têm os mesmos direitos de estudar (não é atoa sic que existem apoios municipais e estaduais)” (L. C. R. Ramos. In: www.estadao.com. br/artigoleitor/htm/2003/fev/21); (43) “todos nós temos sangue negro, agora imagine se todos quisessem ser aprovados por essa cota. Aí vai da opinião de cada um (não)”; (44) “a pessoa que está na frente deve estar se esforçando mais, isto é um absurdo, mas o certo era criar (...) escolas de educação para negros, não por racismo (não)”; (45) “segundo o genoma humano o povo brasileiro é 99% negro e índio, então como pode existir este tipo de cota? (não)”; 31 A numeração dos enunciados segue a seqüência do corpus maior que serviu de base para diversos trabalhos, alguns publicados e outros no prelo. 108 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] (53) “é que estaremos distinguindo o negro do branco e separando, quando devem estar juntos (não)”; (56) “como patriotas que somos, temos que lutar para o governo agir com a razão e não com precipitação (não)”; (62) “... estou revoltado... Quem não é racista está virando (não)”; (65) “uma das idéias [sistema de cotas] mais bizarras que envergonham a inteligência brasileira”; Discurso das generalizações Há várias formas de marcar posição discursiva contra, além de procurar interditar: a) atacar diretamente o seu núcleo do discurso; b) desqualificar seus sentidos; c) negar sua legitimidade na “ordem do discurso” (Orlandi, 1999); d) procurar desviar a sua problemática central para outras instâncias com estratégia de combate; e) generalizar a questão central quer teórica ou quer pragmaticamente, para multiplicar a problemática e assim fragmentar a problemática discursiva no limite da perda das referências, dos objetos e dos temas significativos do discurso em questão etc. Se for possível considerar que a estratégia discursiva da generalização de quem se posiciona contra se configura, primeiro, em uma forma de deslocamento de sentido (Pêcheux, 1997: 191) radical das questões centrais de um outro discurso; é, segundo, cobrar prontamente desse discurso (objetos, conceitos, elementos, sentidos, unidades) todas as respostas possíveis (teóricas ou não) como forma de dissimulação; e, em terceiro, entre outras considerações, é atribuir a ele um caráter acabado, pronto e fechado, negando assim, sua especificidade histórica, sua “memória discursiva” (idem, 1999) como se nada tivesse dito antes e como se nada mais pudesse ser dito após. Enfim, a estratégia de generalização discursiva visa, entre outros efeitos discursivos, o de inviabilizar, no confronto em torno dos sentidos e das disputas sociais, o debate a partir de uma certa racionalidade em torno dos sentidos e dos sistemas e seus regimes de ritualização nos quais os discursos se constituem. A bem da verdade, essa estratégia discursiva possui dois efeitos Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 109 Marlon Leal Rodrigues [105-123] de sentido eficientes: o primeiro é a dispersão, teórica ou não, levado ao limite das questões centrais de que trata o discurso; e o segundo, que deriva do primeiro, diz respeito à possibilidade de tornar inviável o debate, em torno dos sentidos, pela sua fragmentação e dispersão cada vez mais longe do núcleo central. Isso não quer dizer, no entanto, que não se deva interrogar o discurso no domínio de suas instâncias (no debate) naquilo que for possível para que ele, talvez, dê conta de responder provisoriamente, considerando que os discursos estão sempre em relação diversa com outros, e que, de acordo com Possenti (1988: 245-6) “será praticamente impossível encontrar um discurso não submetido a estas exigências [organização e não causalidade]”. Enquanto Possenti se refere ao estilo, acredito ser razoável conceber que esta organização e não causalidade constituem um dos aspectos de discursos que estejam em confronto ou disputando uma certa hegemonia, isto não quer dizer ainda que o discurso seja da ordem da estrutura, pois enquanto “acontecimento o discurso” (Pêcheux, 2002) possui também um próprio (De Certeau, 1990) organização e não causalidade. Irei, na análise que se segue, abordar um pouco dessa questão a partir dos seguintes enunciados. Em (25), “pedir aos donos de universidades particulares (...) mais espaço para os negros em suas salas de aulas. Na verdade bastaria que mais negros tivessem dinheiro para as mensalidades, apostilas, provas especiais, matrículas. Acesso permitido, preconceito zero. Não há preconceito, mas exclusão social”, é possível flagrar um deslizamento de sentido, a partir de algumas unidades discursivas, do qual fala Pêcheux (1969: 96-8): a) da universidade pública (não paga) para universidade particular (paga); não se pode deixar de considerar que há sentidos distintos entre o ensino público e privado. No ensino médio e no fundamental é de consenso que o público está em defasagem. É nele que estão (mesmo sendo cursinhos apostilados com livro de resposta para o professor) os pobres e os negros. Já no privado é reconhecido que é de melhor qualidade e dirigida pela elite. Nele estão os alunos não pobres e não negros. Quando se trata do 110 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] ensino superior, essa lógica é invertida (é possível também observar essa inversão em relação ao Sistema Único de Saúde) em decorrência da qualidade do público que investe em ensino, em pesquisa e em extensão. Entre outras considerações, é possível em alguma instância dizer que esse deslizamento, marca uma certa posição social, talvez de classe, do sujeito bem distinta; que o negro será uma presença incômoda; que reservar o espaço no ensino público para o negro é um tipo de segregação racial e social; pois a ressignificação do negro pode ser um incômodo histórico para uma sociedade em que ele ocupa certos espaços e outros não; b) da reparação histórica (sentido das cotas) para concessão privada (pedir aos donos...); a equiparação de sentido entre reparação (da ordem governamental) e concessão (da ordem privada) é um tipo de deslizamento que desloca desqualificando a causa em questão, reduz a um sentido negativo a reivindicação de inclusão, as políticas afirmativas, a luta contra o racismo e preconceito. Além do tom de ironia, condição que revela um certo descaso para com o debate e a problemática histórica e étnica porque passa uma grande parte da população. Talvez fosse o caso de perguntar aos donos de faculdades e universidades privadas se eles querem assumir parte das políticas de reparação histórica sem ônus para os cofres públicos ou se eles querem servir de intermediários?. Na verdade, esse discurso visa a favorecer os donos das universidades privadas; c) das políticas reparatórias (representação social, identidade, auto-estima, políticas afirmativas, luta contra a discriminação racial e social etc.) para distribuição de dinheiro para os negros (questão financeira); esse deslizamento provoca um tipo de efeito de sentido que reduz a positividade da causa em questão, além de desqualificá-la, pois equipara o sentido de reparação histórica a indenização pecuniária, o que teria um sentido negativo e constrangedor, como se fosse possível uma reparação financeira; d) da ordem pública (afirmação e reconhecimento da questão histórica) para ordem privada (negação da questão histórica); esse deslizamento de sentido implica, de um lado, na manutenção da ordem vigente, ou seja, o acesso restrito ao negro nas universidades públicas, de outro lado, que negro deva ir para a universidade privada enquanto concessão aparente; um outro sentido possível do deslocamento sugere a comercialização das cotas (considerando que a iniciativa privada não irá assumir o ônus da reparação); nega o sentido histórico de luta ao ressignificá-lo no interior do discurso da iniciativa privada (é de um certo consenso que ela visa lucro, não investe em pesquisa, em ensino e em extensão, não tem compromisso com a formação quer intelectual, quer humanística), isenta o Estado de sua Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 111 Marlon Leal Rodrigues [105-123] função de elaboração de políticas; nessas circunstâncias, pode-se afirmar que é um tipo de privatização; e) do racismo (sentido forte) para o preconceito (diminuição do sentido do racismo); o efeito de sentido desse deslizamento nega a prática de racismo que tem um sentido negativo, considerando que ele acontece entre desiguais (ligado à superioridade de raça/etnia que normalmente pode levar à intolerância) enquanto que o preconceito se configura em uma prática entre diferentes (marca a diferença e não a superioridade), é tolerante, não chega à segregação; f) do preconceito (jogo em torno dos sentidos) para à exclusão social (negação do preconceito); considerando o item anterior, o deslizamento de sentido pode se configurar, primeiro na negação do racismo, e segundo, em decorrência do deslizamento de sentido na negação do preconceito, o que excluiria o racismo, dando um efeito de sentido de que ele não existiu/ existe, que a questão do negro é apenas de posição social particular entre diferentes e não entre desiguais. Sugere ainda pelo efeito de sentido que, se diminuir a exclusão social, como questão de gerenciamento técnico e não ideológico político, o preconceito deixa de existir, ou seja, a questão do negro diz respeito à exclusão social (onde estão os imigrantes, pobres, índios, marginalizados), não se trata de um caso específico. Esses deslizamentos de sentido podem ser considerados, de alguma forma, a tentativa de transferir os discursos sobre as cotas da ordem pública para a ordem privada. Esse deslizamento (do público para o privado) tem como desdobramentos: simplificar o debate histórico cuja estratégia é negar sua importância social; reduzir o sentido de políticas reparatórias a uma questão simplista financeira-educacional ou educacional-financeira; negar o racismo e reconhecer o preconceito; e no “fio do discurso” (Pêcheux, 1997) (acesso permitido, preconceito zero. Não há preconceito, mas exclusão social), estabelecer uma equivalência de preconceito e exclusão social; conceber que a questão do negro está ligada à exclusão social (onde estão os índios, pobres, imigrantes) e não a um certo discurso histórico constituído a partir de uma posição de classe; e conceber que o fim da exclusão social do negro terá como efeito o fim do preconceito. Pode-se dizer ainda que a “transferência” em alguma instância, que é um dos sentidos em (25), da ordem pública (as próprias instituições se 112 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] responsabilizam) para a ordem privada, não acarretará a responsabilidade total da iniciativa privada, haverá sim, alguém custeando (o público) e “lucrando” (o privado). Em (26), “uma sociedade pobre e orgulhosa de ser mestiça, há de se perguntar não apenas onde estão os negros, mas quem eles são”, é possível fazer algumas inferências: atribuir o sentido de pobreza e orgulho a toda sociedade brasileira produz um efeito de apagamento das diferenças sociais, étnicas, culturais etc. sob o sentido de mestiça; a respeito da mestiçagem, é importante considerar que ela se constituiu, de acordo com Chauí32 (1999), a partir da violência e do estupro, desde a saída dos negros como escravos da África até ao cotidiano da senzala, e após a Lei Áurea, nos quartos de empregadas domésticas; assim, nega pelo efeito de sentido que os negros estejam em posição social inferior em relação aos brancos (quem são); nega o lugar social que lhes está reservado historicamente (onde estão); seria o mesmo que dizer parafrasticamente: a) não há negros (identidade no particular, com possibilidade de ser “visível”) e sim mestiços (identidade no plural, com certa impossibilidade de “visibilidade”); b) eles não estão nos lugares onde se diz que estão, mas em todas as instâncias sociais; c) os negros não são o que dizem deles; d) como a formação do povo brasileiro é mestiça, não há motivo para reparação histórica. Um outro efeito de sentido desse discurso, (26), diz respeito à possibilidade de negação, como forma de apagamento ou silenciamento, dos sentidos de alguns discursos estatísticos - cujo sentido em nossa sociedade é quase a própria verdade em si – que falam sobre alguns dos aspectos das condições sócio-econômicas do negro. O que se quer evitar é a afirmação da identidade positiva do negro pelo próprio negro, condição que acirra mais a questão. A seguir, são discursos que de certa forma estão in-significados e de-significados (Orlandi, 1999: 66), como 32 Estes dizeres, (que não são rigorosamente textuais, muito mais uma paráfrase, mas sem trair os dizeres da filósofa), que atribuo a Marilena Chauí, foram ditos em um Programa de Debate, por volta da comemoração dos 500 anos do Brasil, na TV Cultura de São Paulo. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 113 Marlon Leal Rodrigues [105-123] se estivessem fora da memória discursiva a busca de sentidos para poder significar-se no discurso político. Seguem os discursos da ordem do estatístico: a) Censo interno da Prefeitura de Pelotas, conforme Mattozo (2003): Funcionário administrativo direto: 6.602; brancos: 58,38%; negros: 7,56%; pardos: 0,24%; não responderam: 34,79%; funcionário da administração indireta: 855; brancos: 91,34%; negros: 8,57%; cargo de chefia (primeiro escalão): brancos: 17 secretários brancos (incluindo prefeito e viceprefeito); negros: 1; primeiro escalão do legislativo: 2 negros. b) De acordo com Henriques (autor do livro Raça e gênero no sistema de ensino – Limites das políticas universalistas), In: Gaspari (2002). Curva de escolaridade média entre brancos e negros (1900 a 2000). Em 1900: brancos: 2,3 anos de instrução a mais que os negros; em 2000: brancos e negros tiveram mais escolaridade; brancos: 2,3 anos de instrução a mais que os negros. Crianças pobres até seis anos de idade: 51%; de cada 100 brancas: 38 pobres; de cada 100 crianças negras: 68 são pobres. c) Segundo o resultado do Provão de 2001 (MEC) que avaliou 20 cursos superiores (In: A. Góis (RJ), S. Duran (R. Local) e I. Dantas (DF) 2002), 2,6% dos formandos: negros; 15,9% dos formandos: pardos. Curso de odontologia: 0,6% dos formandos: negros; 8,2% dos formandos: pardos. Curso de matemática: 4,4% dos formandos: negros; 25% dos formandos: pardos. d) De acordo com a pesquisa A cor da Bahia (Mascaranhas, UFBA. In: Boletim de Políticas Públicas do L. P. P.): nos curso da UFB, departamento de Ciências Sociais, concorrência nos curso de baixa demanda (Estatística, Química Industrial etc.): 18% a 25% são negros; cursos mais disputados (Medicina, Odontologia etc.): menos de 2%: negros. e) De acordo com a pesquisa do Seade – Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (convênio com o Dieese) (In: Revista Ponto de Vista, 2001: 20-1), a renda média salarial dos trabalhadores em São Paulo que “serve de parâmetro para o resto do país”: homens negros: R$ 3,18 h; homens não-negros: 6,14 h; homem branco: R$ 1.236,00 mensal; homem negro: R$ 639,00 mensal; mulheres negras: R$ 2,41 h; mulheres nãonegras: R$ 4,58 h. f) Conforme Júnior (2003, 14-5): na história do STF – Supremo Tribunal Federal – houve dois negros. Em 1919: mulato escuro; em 1907: mulato claro; em 2003: um negro indicado pelo presidente Lula. 114 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] g) De acordo com o IBGE (In: Benefício, 2002), 45% dos 170 milhões de brasileiros são negros ou pardos; 70% que se encontram abaixo da linha da pobreza são negros ou pardos. h) De acordo com os dados do Provão (MEC) de 2001 (In: Folha de São Paulo, P C1, 2002), por tipo de universidade segundo a cor da pele: Federal: 0,7% não informou; 68,9% brancos; 23,6% de pardos/mulatos; 3,3% de negro; 3,5% de indígenas/amarelos. Estadual: 0,9% não informou; 63,8% de brancos; 25,6% de pardos/mulatos; 4% de negros; 5,5% de indígenas/ amarelos. Privadas: 0,6% não informou; 81,7% de brancos; 12,4% de pardos/mulatos; 2,3% de negros; 3,1% indígenas/amarelos. Média de estudantes do país: 0,6% não informou; 77,3% de brancos; 15,9% de pardos/mulatos; 2,6% de negros; 3,5% de indígenas/amarelos. Perfil da população brasileira: 53,4% de brancos; 40,4% de pardos/mulatos; 5,6% de negros; 0,6% de indígenas/amarelos. Total de alunos universitários em 1992: indígenas: 329; brancos: 1.148.129; negros: 29.921; amarelos: 13.692; pardos/mulatos: 241.135; total: 1.433.206. Em 1999: indígenas: 1.345; brancos: 1.994.078; negros: 51.962; amarelos: 42.451; pardos/ mulatos: 435.349; total: 2.525.185. Em (27), “como seria a seleção racial – ou, usando um sinônimo, segregação”, há alguns efeitos de sentidos em que é possível considerar um tipo de estratégia (não se trata no nível da consciência e sim na tensidade constitutiva da enunciação e na atividade parafrástica discursiva) no fio do discurso do sujeito. Pode-se dizer que um dos efeitos é uso do operador discursivo como que introduz o efeito de uma réplica (questionamento) em que já se prevê a inexorabilidade de uma prática discursiva (as cotas). Assim, o sujeito se desloca, estrategicamente, para uma outra posição de onde, mesmo em face à essa inexorabilidade (uma certa derrota - parcial - de sua posição contra), ainda tenta interditar, mesmo que parcialmente, os possíveis efeitos. Esse deslocamento de posição sujeito não implica que ele tenha abandonado sua posição anterior, mas é uma forma de continuar marcando sua posição contra de um outro lugar. Um outro efeito de sentido, constitutivo desse deslocamento, do operador como, é que ele se dá a partir de um discurso que sem efeito, parcialmente, sobre o qual esse questionamento se dá, ou seja, uma vez Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 115 Marlon Leal Rodrigues [105-123] que pode não acontecer (as cotas), então (pelo operador como indaga) quais os conceitos, os temas, os objetos desse discurso serão significados para que se possa efetivar a inexorabilidade (do nível do discurso para o nível da empiricidade). Pode-se representar, assim, de alguma forma, parafrasticamente, o discurso sobre o qual o operador como irrompe: a) uma vez que vai ter a cotas então como seria a seleção racial...; b) já que vai ter as cotas então como seria a seleção racial...; c) se são inevitáveis às cotas então como seria a seleção racial...; d) mesmo tendo cotas então como seria a seleção racial. De alguma forma, essa estratégia pode ser representada como: a) mesmo que, já que ou uma vez que Z, então como Z’, considerando que Z’ é em decorrência da inexorabilidade de Z que impôs/impõe seus efeitos. O sujeito, a partir de uma posição específica, tenta evitar é a irrupção de Z, não conseguindo desloca-se para posição ‘ (linha) já incorporando ou tendo em consideração Z em seu discurso ou já na posição Z’. Em (27), poderia ainda analisar outras relações tensas em torno de sentidos no fio do discurso, como em a seleção racial que se configura, a princípio, uma desqualificação das cotas ao compará-la à segregação (sentido pejorativo identificado a um certo tipo de racismo, como se o negro estivesse reivindicando a exclusão pela segregação) sobre a qual o sujeito se posiciona contra, para em seguida negar as cotas, já pejorativada. Ou seja, ser contra a qualquer tipo de segregação é um tipo de posicionamento comum e defensável, no entanto o mesmo não acontece com as cotas, que é um discurso polêmico. Para ser contra as cotas, o sujeito se vale do pré-construído (discurso da segregação que é difícil ser defendido em sociedades ditas democráticas), compara seus sentidos aos da cotas. Além disso, reduz o sentido das cotas ao de seleção racial, o que configura um efeito de negatividade como será visto. Primeiro, o sentido de seleção, normalmente, se refere à escolha e separação entre iguais para compor um grupo ou uma individualidade em que os critérios visam prestigiar esforços, certas qualidades e habilidades individuais ou de grupos. 116 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] Em segundo, o termo raça, há um certo tempo, quer no senso comum, quer no meio de uma certa intelectualidade, vem sendo substituído por etnia (menos carregado ideologicamente o que não quer dizer que mesmo utilizando o termo etnia, ele não pertença a uma instância ideológica), isso em decorrência de algumas ideologias que defendem a superioridade a partir do conceito de raça (inferior e superior). Já etnia seria um termo menos suscetível de imprimir certa negatividade. Conforme em Kenski (2003: 42), ”novas pesquisas nas ciências humanas e biológicas mudam o conceito de raça e mostram os estragos que o racismo faz na sociedade”, para ele, ainda, “muitos acham que, enquanto o racismo não acabar, não é possível abandonar a idéia de raça”. Nessa mesma direção, o antropólogo Gilroy (2003: 50) afirma que “o conceito de ‘raça’ deveria simplesmente ser abolido. (...) esse termo é uma categoria falsa, criada com fins discriminatórios, que não traz avanços nem faz sentido no mundo de hoje”. Assim, a expressão seleção possui um efeito, possível, de arbitrariedade e imposição enquanto que raça vem com um efeito de negatividade próximo ao de preconceito. No fio do discurso, seleção racial, assim posta, pode significar, entre outros sentidos possíveis, ironia, sarcasmos e até deboche ou de um preconceito/racismo manifesto. Em (31) “a pobreza é a chaga que embala o preconceito”, podese constatar nesse discurso um deslocamento do domínio do discurso político (as cotas) para o domínio do discurso biológico (inscrito em uma outra ordem) ao significar a pobreza como uma doença ou tipo de doença. Esse deslocamento de domínio discursivo implica em ressignificar o preconceito na medida em que negar as cotas, no entanto o sujeito não chega a negar o preconceito. O efeito desse deslocamento tem algumas conseqüências básicas: passa a conceber a política de cotas como uma forma de preconceito; afirma que o preconceito é decorrente da pobreza; nega as cotas enquanto uma anomalia da pobreza, como se fosse uma doença, assim, quase nada ou nada pode ser feito historicamente. O sujeito, para negar as cotas, as desloca do político para significálas em outro domínio, isso tem como implicação de sentido conceber, Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 117 Marlon Leal Rodrigues [105-123] no fio do discurso do sujeito, o preconceito como uma doença e as cotas decorrentes desse tipo de doença, o que seria, de certa forma, algo deixado ao acaso, inevitável socialmente ou pouco controlável por sistemas de verdade e regimes de poder. Em (43), “todos nós temos sangue negro, agora imagine se todos quisessem ser aprovados por essa cota. Aí vai da opinião de cada um (não)”, e (45), “segundo o genoma humano o povo brasileiro é 99% negro e índio, então como pode existir este tipo de cota? (não)”, e (53), “é que estaremos distinguindo o negro do branco e separando, quando devem estar juntos (não)”, pode-se dizer que se configura em um tipo de discurso que, para negar as cotas, os sujeitos assumem-se como parcialmente negros, não pelas características que são visíveis em alguns aspectos – não estou me referindo aos estereotipo sobre o negro -, mas exatamente naquele que não está visível, possível de categorizar. A referência ao sangue tem como efeito de sentido contrapor os aspectos visíveis, que são condição e requisito de todo tipo de discriminação racial, e afirmar o que importa não são essas características e sim as formações genéticas invisíveis a olho nu. De novo é um deslocamento do domínio do político para o biológico. Esse tipo de deslocamento, por exemplo, não acontece para o domínio das exatas, estatísticas – como foi visto anteriormente – considerando que ela trabalha por amostragens possíveis de serem verificadas empiricamente com maior visibilidade. Assumir que tem sangue não é o mesmo que se assumir como negro, dizer que devem estar juntos não é o mesmo que dizer e afirmar a igualdade, é, antes de mais nada, uma luta em torno dos sentidos como mais uma forma de negar a desigualdade que leva o próprio negro a negar a sua descendência ou identidade. De acordo com Santos (2002: 36) “os pretos que estavam em 5 por cento, saltavam para 6 por cento. Um por cento pode parecer pouco, mas representa 1 milhão e 700 mil pessoas que se identificavam como pardos, provavelmente agora se colocam como negros”. É importante observar que a negação é um efeito do peso imediato da “materialidade” e do “real” (Pêcheux, 2002) 118 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] que o sujeito procura esquivar-se pela autodefinição. O movimento contrário é sinal de uma resistência, a busca de uma auto-afirmação que não passa necessariamente pela simples afirmação do sujeito ter ou não ter sangue negro, até porque a discriminação é mais visível do que se possa imaginar. Afirmar que todos nós temos sangue negro é o mesmo que dizer que não há motivos para as cotas, não há preconceito, não há discriminação racial, é afirmar que há uma democracia racial, que todos são iguais, no entanto o sentido de todos se constitui uma forma de generalização e dissimulação em não significar a igualdade no domínio do político, portanto, nega o caráter histórico e social que constitui a sociedade. Provavelmente, quem diz que tem sangue negro não diz que é negro, pelo menos diretamente (tenho sangue negro, portanto sou negro, essa lógica não é direta). Entre ter (sangue negro) há possibilidade de negação ao passo que ser (assumir-se negro ou ser como negro) a possibilidade negação é menos evidente. Essa relação implica em posições ideológicas distintas, por exemplo, a discriminação não depende do fato que você tenha sangue negro, mas do fato de você ser ou ser reconhecido como tal (relação pertencente ao nível do político e não do genético). Há uma diferença de sentido em dizer que tem sangue negro e dizer ou assumir-se como negro, e ainda em ser negro, quer reconhecidamente, quer assumidamente. Em (44), “a pessoa que está na frente deve estar se esforçando mais, isto é um absurdo [as cotas], mas o certo era criar (...) escolas de educação para negros, não por racismo (não)”, é possível considerar três discursos: o primeiro, a pessoa que está na frente deve estar se esforçando mais, diz respeito à condição do mérito (um pré-construído reforçado pela lógica do sistema neoliberal: vence quem for o melhor e mais competente) próprio, cuja conseqüência de sentido é um apagamento de uma memória discursiva das questões sociais e históricas (competição entre desiguais talvez seja uma competição desigual) na medida em que nega a desigualdade enquanto efeito de sentido para conceber a diferença entre sujeitos, situação que exclui as cotas. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 119 Marlon Leal Rodrigues [105-123] Em segundo, mas o certo era criar (...) escolas de educação para negros, no fio do discurso do sujeito, é um tipo de encadeamento de discurso que contrapõe o anterior que deve ser apagado ou perder seu efeito, assume que a questão não diz respeito ao mérito, é um assumirse pelo discurso da desigualdade e segregação racial. Em terceiro, não por racismo (não), na mesma seqüência discursiva linear, há uma negação em atraso de sua posição sujeito ou tentativa de deslocar-se desse para outro menos visível - isso em decorrência do efeito de sentido de seu discurso (anterior) se constituir ou conter pré-construídos racistas (segregação) -, um tipo de antecipação que geralmente, no fio do discurso, acontece no início da enunciação para – indesejável enunciação - delimitar os sentidos indesejados do discurso (isto quer dizer que A exclui B, C, D...) que seus possíveis interlocutores poderiam/podem atribuir ao sujeito. Dizer que não por racismo já é um constatar, tardiamente, um dos efeitos de sentido no próprio discurso. Na tensão dos sentidos, se constitui um tipo de defesa em atraso ou tentativa de negação de um lugar racista de sua própria enunciação. Esse efeito de sentido do seu próprio discurso deve cobrir todo seu discurso anterior no fio do discurso para negar que sua posição contra as cotas e o seu discurso não têm um sentido racista a despeito do que foi dito. Em (56), “como patriotas que somos, temos que lutar para o governo agir com a razão e não com precipitação (não)”, há um discurso da idéia de pátria, de nação, o que implica em um outro, o de fora (estrangeiro como inimigo) contra o qual deve-se lutar. Não se trata de negar apenas as cotas, a formação multi-étnica, mas querer impor limite à cidadania desse outro (deve ficar no lugar sujeito em que está), considerando que o estrangeiro é o outro que participa de direito e cidadania concedidos pelo Estado. Um dos sentidos possíveis de atribuir é dizer que se trata de uma palavra de ordem (como patriotas que somos), uma convocação para combater o outro que está colocando em risco, não a nação e o Estado, mas um estado de coisas que (uma certa classe possui como relevante 120 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] para si) deve permanecer como está, no regime de verdades (ver letras (a) a (f)), ou melhor dizendo: atribui um sentido peculiar ao ensino superior público como “a menina dos olhos” da elite. Essa convocação é contra o governo que, ao propor já implementando as cotas estaria colocando em risco certos “direitos”, interesse de classe, dos patriotas e “beneficiando” (na reparação histórica) precipitadamente os supostos estrangeiros (os negros), o que equivale dizer “aqueles que serão supostamente beneficiados não são brasileiros, não compartilham da mesma formação cultural, não deve ter os mesmos direitos etc”.. (65), “uma das idéias [sistema de cotas] mais bizarras que envergonham a inteligência brasileira”, se for possível considerar que inteligência de qualquer nação tem como prerrogativa: pensar nas grandes questões ou temas relevantes para a nação (a humanidade também) nas diversas áreas de atuação; propor questões (das mais variadas ordens: social, cultural, filosófica, artística, política etc.) na agenda nacional, ou seja, inscrever certos discursos que devem fazer sentido ou não na ordem do discurso. No entanto, já o prof. Santos (2002: 32), (um dos notáveis da USP), vai em uma direção contrária afirmando que: a intelectualidade brasileira, aí me incluo, nós estamos dentro dessa idéia, o silêncio de chumbo da intelligentsia brasileira sobre a questão racial é uma coisa que me comove até hoje. Porque salta aos olhos de um antropólogo ou de um cientista político, e ainda concebe que um intelectual que se nega a pensar é como um padeiro que não faz pão. Isso mostra a resistência desse intelectual que não consegue pensar o Brasil. A USP é moderna, mas não opera com a modernidade” (pág. 37). As considerações de Santos são pertinentes porque sua posição é contrária às cotas mesmo sendo um militante do movimento negro. Assim, a posição sujeito em (62) é a de desqualificar não só a inteligência brasileira, mas, sobretudo, é a negação de sentidos possíveis que se possa atribuir às cotas. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 121 Marlon Leal Rodrigues [105-123] Considerações Finais Considerando que as cotas são um tipo de discurso da ordem do político e das relações históricas e sociais inscritos na agenda de demanda nacional, pode-se dizer que elas encontram forte resistência para significar-se enquanto um discurso de reparações históricas pela escravidão dos povos africanos. Isso, talvez, decorra da ausência de uma memória discursiva de políticas de reparação das minorias no País, pois, as cotas não são um discurso recente. Outros países, apesar das polêmicas, como os Estados Unidos da América – a Suprema Corte Americana recentemente confirmou as políticas de cotas para as universidades americanas -, a Índia, desde 1948, a Malásia, desde a década de 50, o Líbano, a Noruega, a Bélgica, o Canadá, a África do Sul etc., cada qual adaptando as condições históricas e culturais reconhecem e confirmam as cotas como parte de um processo de reparação e afirmação. O discurso de reparação histórica do negro pela escravidão encontra forte resistência, produzindo um efeito de sentido não apenas pela negação da identidade, da igualdade, mas como se não tivesse ocorrido a escravidão e nem o negro ou tendo sido um acontecimento irrelevante historicamente. Esse discurso, pelas relações que estabelece com o poder, não fará sentido na memória da história do Brasil sem antes se impor e vencer – sempre provisoriamente à espera do próximo embate - os processos de interdição (processos judiciários e a recusa “pessoal de reitores e governadores”), os sistemas e regimes de verdades (desqualificação, críticas, ataques, manifestação), assim, constituindo um espaço no social e na memória que lhes são próprios. Considerando a dispersão dos discursos, dos sujeitos e dos enunciados dos quais fala Foucault, é possível inferir, entre outras questões, que as cotas colocam em cena não só a questão da reparação histórica, o racismo travestido de preconceito, e uma certa passividade do negro, mas, sobretudo, que ela se inscreve na reivindicação de um espaço social que se constituiu em algo de valor significativo e contraditório, ao mesmo tempo, para a classe média e para uma boa parcela da elite brasileira. 122 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Cotas para negros [105-123] REFERÊNCIAS ALTHUSSER, L. Aparelhos ideológicos do Estado. Lisboa: Presença-Martins Fontes, 1974. CERTEAU. M. de (1990). A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. 7a. ed. Petrópolis-RJ: Editora Vozes, 2002. ESCOSSÍA, F. da. Delegação brasileira que cotas para negros nas universidades. In: Folha de São Paulo. 22/08/2001. GILROY, P. In: HENSKI, R. Vencendo na raça. In Revista Superinteressante. 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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 123 124 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] A dramaticidade existente no Toro Candil: uma manifestação cultural da fronteira Brasil com Paraguai33 Giselda Paula Tedesco Edgar Cézar Nolasco Resumo: A brincadeira do Toro Candil é uma manifestação cultural existente na fronteira do Estado de Mato Grosso do Sul com o país Paraguai. Acontece em um lugar intervalar, fronteiriço por excelência, uma vez que é encenada na cidade portuária de Porto Murtinho. Essa manifestação também pode ser identificada como um jogo, ou brincadeira, do tipo que acontece nas épocas festivas de São João e apresenta características que nos remetem a Commedia dell’Arte. Os brincantes, ao disfarçarem-se, ou melhor dizendo, ao metamorfosearem-se em mascaritas ou Toro, ao trocarem de sexo, mesmo sem a existência de um texto à ser decorado, partindo do improviso representam o papel de outros seres humanos. Entender a liberdade de criação expressa em manifestações culturais como a do Toro Candil é dar, aos brasileiros e paraguaios da fronteira, marginalizados, discriminados e eternamente excluídos da academia e da própria indústria cultural, o destaque e o lugar de um espetáculo teatral sensível, multicor e festivo que evidencia a forma de expressão de um povo ao retratar a sua história, a sua cultura, e a sua memória. Palavras-chave: Mato Groso do Sul; brincadeira; regional. 33 Este trabalho é parte integrante do II capítulo do texto de dissertação que contempla a pesquisa initulada A brincadeira do Toro Candil: uma manifestação da memória cultural local, realizada no Programa de pós-Graduação Mestrado em estudos de Linguagens, na UFMS, sob a orientação do Professor Doutor Edgar Cézar Nolasco. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 125 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] Abstract: The Toro Candil game is a cultural manifestation on the South border of the State with the country Paraguay. It happens in interval place, completely borderline, whenever it is staged in the hapor city of Porto Murtinho. This manifestation also may be identify as a game, or a fun thing, that happens in festival ages of São João and shows some characteristics that remit to think in Commedia dell’Arte. The players, when they masking, namely, when they metamorphosing in mascaritas, or Toro, when they change the genus, even without any text to learn by heart, parting to improvise that represent the human being character. To understand the freedom express creation in cultural manifestation as the Toro Candil is to give, to the Brazilian, and border Paraguayan, marginal, discriminated and eternity out of academy and cultural industry, the spotlight and the place of the theatre sensitive show, multicolor and festive that evidence the people expression form to retract their history, their culture and their memory. Keywords: Mato Groso do Sul; brincadeira; regional. O Toro candil, uma espécie de jogo dramático, próprio dos festejos juninos, onde se utiliza o fogo como desafio, é uma manifestação cultural que acontece na fronteira do Brasil com o Paraguai, na cidade de Porto Murtinho. Há mais de cinquenta anos, no mês de dezembro, dia 7, véspera do dia de Nossa Senhora de Caacupê, Dona Dionísia (Noni) Arguelho realiza, nas dependências internas e externas de sua casa, desde a varanda até a rua em frente, a brincadeira do Toro Candil, que mobiliza toda a vizinhança. Segundo Paulo de Carvalho Neto, os primeiros registros dessa manifestação cultural datam de 1795, como um Auto Colonial popular chamado ”Rua”, sendo o Toro Candil34 fragmentos que ainda sobrevivem, ou, melhor dizendo, são restos de “Rua”: 34 “Consiste en un armazón o esqueleto de madera recubierto de lona pintada o con un cuero de vacuno, en cuya extremidad delantera se halla una cabeza de vacuno (la parte ósea) con las astas, simulando un toro grande. En la extremidad de las astas se atan unas bolsas de trapo o lona embebidas de querosén, a las que se prende fuego en el momento de la corrida. En el interior del armazón se introduce un individuo que sostiene el artefacto y hace las veces de toro, atacando el torero quien provisto de una manta o poncho rojo provoca a aquél, dando lugar de esta manera a una espécie de espetáculo de toreo de visos cômicos.” (CARVALHO, p. 341). 126 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] Além disso as ditas “Ruas” foram desdobramentos das festas reais e os índios como sempre participavam de tudo. Tais registros são, naturalmente, invaloráveis. O grande viajante assistiu na América ao que na Espanha segundo ele estava esquecido. “São as Ruas já esquecidas na Espanha, onde só existe memória no nome da rua do arco del Conde Fernan Gonzáles de Burgo. Nem os vi em nenhuma parte”. (NETO,1996, p.336) Quanto ao Toro Candil, por sua vez, só o temos visto na festa do Sagrado Coração de Jesus. Nosso calendário folclórico, sem oposição, o associa às festas de São João de Villarrica (1938), Virgem de Carmen e Virgem do Rosário. Miguel Angel Pesoa comunica ao CEA– Centro de Estudos Antropológicos do Paraguai - tê-lo visto na festa de São Blás, patrono de Assunção, por volta do ano de 1935. A primeira semana do folclore paraguaio o incluiu entre seus atos, a título de defesa da tradição paraguaia.35 (NETO, 1996, p. 336 e 341). No Brasil, assim como acontece no Paraguai, uma armação que imita o corpo de um Toro é feita de bambu e arame, sendo coberta por chitão ou por qualquer outro tipo de tecido. Na extremidade dianteira da armação coloca-se a parte óssea da cabeça de um boi (o crânio) com os chifres, em cujas pontas se amarram bolsas de estopa ou lona embebida em querosene, nos quais é ateado fogo. No interior da armação, um indivíduo sustenta o artefato e faz às vezes do Toro Candil, atacando aos mascaritas (mascarados), espécie de toureiros, ou, ainda, “palhaços” de rodeio, que provocam o Toro simulando ou imitando uma tourada, porém, de veia cômica. 35 [...]Además, dichas Ruas fueron dobles a las de las fiestas reales y los índios como siempre, fueron los brazos de todo. Tales registros son, naturalmente invalorables. El gran viagero asistió en América a lo que en España, según él, estaba olvidado. “Son las Ruas olvidadas ya en España, donde sólo hay memoria en el nombre de la calle de arco del Conde Fernan Gonzáles de Burgo. Ni los há visto en ninguna parte”. . [...] Al Toro Candil, por otra parte, lo hemos visto sólo en la fiesta del Sagrado Corazón de Jesús. Nuestro calendario folklórico, sin embargo, lo consigna en las de San Juan de Villarrica (año 1938), Virgen del Carmen y Virgen del Rosario. Miguel Angel Pesoa comunica al CEA – Centro de Estúdios Antropológicos del Paraguay- haberlo visto en la fiesta de San Blas, patrono de Asunción, alrededor del año 1935. La 1ª Semana Folklórica del Paraguay lo incluyó entre sus actos, a título de defensa de la tradición paraguaya. (tradução minha) Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 127 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] Ao Toro Candil, por sua vez, é dado mobilidade quando uma pessoa coloca-se sob o artefato e passa a movimentar-se com a enorme carapaça. Dessa forma, tal indivíduo, normalmente um mascarita (mascarado), previamente designado para assumir o papel de Toro Candil, ao colocarse sob o animal / objeto, lhe dá vida. Durante a brincadeira, que pode durar horas, normalmente ocorre um revezamento de mascaritas para carregar o Toro Candil, que investe sobre os brincantes mascarados, tentando chifrá-los e queimá-los. Os mascaritas por sua vez, têm a função de torear a fera. Nessa brincadeira, de “pegar e fugir”, que lembra a brincadeira de “gato e rato”, um inusitado bailado entre toro e mascaritas é coreografado. Tal bailado assemelha-se a uma tourada, porém, de veia cômica. Os Mascaritas são personagens anônimos que, por devoção ou por promessa à Nossa Senhora de Caacupê, participam do jogo ou da 128 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] brincadeira do Toro Cândil. Normalmente são homens que se travestem de mulher, mudam a voz e falam num tom agudo, misturando espanhol com guarani e português. Vestem-se com saias, vestidos, mini-blusas e sutiãs. As mulheres por sua vez, travestem-se de homens. Os mascaritas, segundo relatos informais de paraguaios que vivem em Campo Grande, retrata a figura do peregrino, do andarilho roto, sem vaidades, que anonimamente se disfarça como se estivesse envolto em um manto de invisibilidade para não ser reconhecido, e poder, humildemente, pagar sua promessa. Os devotos, ao abrirem mão, de sua identidade verdadeira, despemse de sua própria natureza humana, de suas próprias máscaras, suas vitórias, suas dores, suas frustrações, julgando, assim, melhor representar os peregrinos que andam léguas e libertos de toda ganância, de toda a matéria, sujeitam-se à fome e à miséria. Tal condição humana é representada pelas vestes maltrapilhas e sujas dos brincantes mascarados. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 129 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] Tanto os homens como as mulheres, usam chapéu. Um pano ou trapo que serve de máscara é usado para cobrir seus rostos, como se fosse uma máscara, provavelmente daí o nome “mascaritas”. Esses devotos além de pagarem sua promessa buscam quem sabe, a purificação, e, libertos de todo o mal, de todo o pecado obter a proteção da Virgem de Caacupê para sua vida, ou ainda para o novo ano que em breve irá começar. Num divertido jogo de cena, os mascaritas executam coreografias diversas com fortes traços cômicos. Embalados ao som da polca paraguaia, iniciam o jogo com a pelota-ta-tá36, espécie de bola de fogo, que antecede o toro candil e que lembra o jogo de futebol ou melhor uma “pelada” feita com a bola em chamas, essa brincadeira, antecede e, de certa forma anuncia a brincadeira do Toro Candil. 36 Bola de estopa que, mergulhada em querosene, à noite, quando ateado fogo, vira a pelota tá-tá, A palavra, de origem indígena(guarani), tem o significado de pelota (bola) de fogo (tá-tá), 130 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] Segundo o dicionário de símbolos, de Jean Chevalier, “os jogos estão, na origem, ligados ao sagrado, como todas as atividades humanas; as mais profanas, as mais espontâneas, as mais isentas de toda finalidade consciente derivam dessa origem.” (CHEVALIER, 2009, p.518.) O que nos leva a pensar que o Toro Candil carrega em sua “bio” toda uma ancestralidade que insiste em permanecer recheada de simbolismos e mitos que outrora faziam parte do imaginário do povo e que aos poucos foram sendo esquecidos, e que a brincadeira do Toro Candil ao ser encenada, ajuda a resgatar: [...] certos jogos e brinquedos eram ricos de um simbolismo que hoje se perdeu; o pau-de-sebo, por exemplo, está ligado aos mitos da conquista do céu e o futebol, à disputa do globo solar. Fundamentalmente, o jogo é um símbolo de luta contra a morte (jogos funerários), contra os elementos (jogos agrários), contra as forcas hostis (jogos guerreiros), contra si mesmo (contra o medo, a fraqueza, as dúvidas etc.). Mesmo quando são puro divertimento, incluem gritos de vitória, pelo menos do lado do ganhador. Combate, sorte, simulacro ou vertigem, o jogo é por si só um universo, no qual, através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar. (CHEVALIER, p.519) De outra forma, a teatralidade existente no Toro candil inclui fortes traços que oscilam entre o cômico e o dramático, onde homens se travestem e mudam a voz desempenhando o papel ora de Toro, que chifra, persegue e algumas vezes acerta seu alvo; ora de mascarita que, ao imitar o toureiro, foge e fustiga o Toro em meio a arremedos e algazarras que divertem aos espectadores, remetendo-os a um espetáculo teatral a céu aberto. Para Sábato Magaldi, O diálogo teatral requer um encadeamento próprio, porque deve ser transmitido pelo ator: Sua matéria, na boca de um ser humano que o pronuncia, visa à criação da personagem. No transcurso do espetácuo, instaura-se o universo teatral por intermédio da ação de personagens em cena. Drama, etimologicamente significa ação. A simples conversa, entabolada como diálogo, não constitui ação, e por isso carece de teatralidade. Para facilitarem a tarefa de fixar personagens agindo, os autores antepõemlhes obstáculos, cuja transposição conduz ao desfecho. Os obstácuos Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 131 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] colocam-se no íntimo ou no exterior das peronagens, e caracterizam o conflito, que a maioria dos teóricos julga essencial ao drama. (MAGALDI, 2004, p.17.) Porém a maneira espontânea e empírica dos atores/personagens, denota uma expressiva liberdade de criação e de improvisação, que nos faz, por vezes, duvidar da qualidade de tal espetáculo, mesmo sabendo que a intenção inicial não seja a de realizar uma peça, ou, ainda, um espetáculo teatral. Nesse sentido, os participantes do Toro Candil, geralmente devotos da Virgem de Caacupê, ao encenarem o Toro Candil, ao se apropriarem dos personagens mascaritas, o fazem por pura e simples devoção. O Toro Candil, dessa forma, é encenado para pagar promessas, lembrando às vezes de um ritual de flagelo corporal, que tem a intenção de homenagear a Santa. Em uma reflexão sobre os gêneros dramáticos, Sábato Magaldi aponta que a cada instante, vê-se comédia com traços e elementos dramáticos e drama com elementos cômicos. Por outro lado, se o Toro 132 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] encontrado no Paraguai é o que restou de um Auto Espanhol como sugere Paulo de Carvalho Neto, no Brasil, em Porto Murtinho, os recursos teatrais utilizados no jogo dramático encenado durante a aparição do Toro Candil nos remetem, em alguns momentos, aos mesmos recursos cênicos utilizados na Commedia dell’Arte. A aparente falta de ordem que marca a seqüência de movimentos desenvolvidos tanto pelo Toro como pelos mascaritas durante a brincadeira nos chama a atenção para o improviso característico dessa manifestação cultural. Segundo o crítico teatral Sábato Magaldi, “o fundamento da Commedia dell’Arte é a improvisação”, onde, “o ator torna-se o autor do espetáculo que vai oferecendo”(MAGALDI, 2004, p. 227). Nesse sentido, a narrativa que envolve o Toro Candil se dá do mesmo modo que a narrativa presente em um espetáculo de teatro e pode variar dependendo do ponto de vista do espectador (público) que está assistindo, dependendo, então, da perspectiva e da distância de quem é levado ou se deixa levar nessa brincadeira, ou melhor dizendo nesse jogo. Essa liberdade criadora, de forma paradoxal, engessa e limita os intertépretes de tais personagens que, da mesma forma como acontece na Commedia dell’Arte, se resignam a representar um mesmo tipo por anos, o que equivale a repetição e a pobreza do espetáculo. Segundo Chevalier, num jogo, a pessoa se exprime e reage com toda naturalidade a ponto de sentir-se totalmente implicada, sendo fácil, então, arrastar os espectadores a uma participação de maior ou menor intensidade: A análise psicológica viu no jogo como que uma transferência de energia psíquica, quer se efetue entre dois jogadores, quer comunique vida a objetos. O jogo ativa a imaginação e estimula a emotividade. Por desinteressado que seja, como se diz, é sempre pejado de sentido e de consequências. Brincar com alguma coisa significa dar-se ao objeto com o qual se brinca. Brincar é lançar uma ponte entre a fantasia e a realidade pela eficácia mágica da própria libido37... (CHEVALIER. 2009, p. 520.) 37 CHEVALIER p. 520 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 133 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] Isso nos sugere que a ponte entre fantasia e realidade, no momento da encenação do Toro Candil, é o meio pelo qual os recalques latentes são lançados em cena e resolvidos. Superados, evitam conflitos e provocam adaptação e progresso. É dessa forma que os jogos dramáticos ajudam a “libertar as fontes da espontaneidade para que o ser se adapte, sem deixar de ser ele mesmo, a todos os papéis que a vida dele exigirá” (CHEVALIER. 2009, p. 521. Segundo Anatol Rosenfeld, “hoje ainda há quem considere o Teatro, apenas como um veículo da literatura dramática, ou seja, uma espécie de instrumento de divulgação a serviço do texto literário, como o livro é de romances e o jornal, de notícias” (ROSENFELD. 2000, p. 21.). De fato devemos reconhecer e destacar a importância da literatura, do texto teatral em si, contudo, entender a liberdade expressa em manifestações culturais como a do Toro Candil é dar, aos brasileiros e paraguaios da fronteira, marginalizados, discriminados e eternamente excluídos da academia e da própria indústria cultural, o destaque e o lugar de um espetáculo teatral sensível, multicor e festivo que evidencia a forma de expressão de um povo ao retratar a sua história, a sua cultura, e a sua memória. Dessa forma, entendemos quando Rosenfeld argumenta: A discussão é antiga, contudo, é necessário combater uma opinião que tende a reduzir o teatro, por inteiro, à literatura, qualificando a cena como “secundária” e mero “artesanato” e atribuindo-lhe só “em diminuta margem” uma “legítima intuição artística criadora”. É evidente que isso exige do diretor não só a capacidade de entender a peça (texto) e sim uma série de qualidades entre as quais a menor certamente não será a da imaginação criadora. Enfim, o problema não é proposto na sua complexidade, quando se diz que a magnitude do teatro “reside na literatura dramática. O demais é demais”. Em se tratando de teatro, o demais é tudo. De outro modo bastaria ler o texto (ROSENFELD. 2000, p. 22.). E assim, mesmo com a ausência de um texto literário propriamente dito, o Toro Candil carrega, em sua essência, as marcas de um teatro 134 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] do povo, realizado a céu aberto, pois o teatro, mesmo quando recorre à literatura dramática como seu substrato fundamental, não pode ser reduzido à literatura, visto ser uma arte de expressão peculiar. (ROSENFELD. 2000, p. 28.). Nesse sentido, fica claro para nós que, independente da denominação dada ao Toro; (Jogo dramático, brincadeira ou simplesmente manifestação cultural), o Toro Candil, consciente ou inconscientemente, nos remete ao teatro, pois como sugere Rosenfeld, “O gesto e a fala são reais, são do ator; mas o que revela é irreal. O desempenho é real, a ação desempenhada é irreal”. (ROSENFELD. 2000, p. 30.). Rosenfeld reforça nossa forma de entender e perceber o potencial dramático existente no Toro Candil quando diz que: A metamorfose do ator em personagem representativo do ser humano não é só dele. Também o público se identifica com os personagens fictícios. Todos participam da transformação. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 135 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] A partir daí revelava-se, como já foi mostrado, um novo aspecto da metamorfose. Ela é, de certo modo a origem do ser humano. Vimos que o homem só se torna homem graças a sua capacidade de separar-se de si mesmo e identificar-se com o outro. A divisão que se estabelece no cerne do diálogo, enquanto ao mesmo tempo separa e une, é um dos fenômenos fundamentais tanto do teatro como no homem. A duplicidade humana é ao mesmo tempo trágica e cômica. Nela reside a grandeza e a fraqueza do homem. Nas suas formas fundamentais da tragédia e da comédia. (ROSENFELD,1996, p. 39, 40, 41, 42) Tomando por base essas reflexões, constatamos que os brincantes, ao participarem do jogo dramático/brincadeira do Toro Candil, ao disfarçarem-se, ou melhor dizendo, ao “metamorfosearem-se” em Toro, e em mascaritas, revelam suas paixões e desejos mais profundos. Libertam-se de seus medos e de suas frustrações, ou, ainda, se permitem recordar, por meio da brincadeira, os momentos felizes, vividos em outras épocas, em outra nação. Dessa forma, “a distância em face de si mesmo lhe permite desempenhar os papéis de outros seres humanos, pois, “o tema do teatro é o próprio teatro - o mundo humano; o tema do ator, o próprio ator – o homem”. (ROSENFELD,1996, p. 43.). Entendemos pois, que a brincadeira do Toro Candil, em sua encenação, contempla as duas nações, Brasil e Paraguai. Nesse sentido a foto seguinte é reveladora, pois reflete, quem sabe, o desejo de manter íntegra toda uma cultura, uma história, uma memória, que se inscreve como sendo do “outro”, e que está registrada desde a sua origem, em sua “bio”, do lado direito, do dorso do Toro, ou da margem do grande rio, no Paraguai. 136 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A dramaticidade existente no Toro Candil [125-139] A bandeira paraguaia nesse sentido, tal qual a brincadeira do Toro Candil, é prova de resistência e tenta manter integra a sua cultura, a sua tradição, a sua nação. Encobre em algumas partes a bandeira do Brasil quem sabe na tentativa de se sobressair, pois, é, na maioria das vezes, vista como resquícios de uma cultura menor. Nesse sentido a bandeira, paraguaia, poderia representar um grito de alerta dessa manifestação cultural, que pode estar fadada ao esquecimento, e que tenta se impor enquanto cultura menor, de fronteira, que sofre um processo de hibridação e, que, num gesto transculturador já não é somente paraguaia. Estrategicamente, a brincadeira do Toro Candil alterou-se em contato com o outro, é brasileira também, e, nesse sentido é marca da diferença, e representa a diversidade cultural existente em Mato Grosso do Sul. A brincadeira do Toro Candil assemelha-se àquela condição de sobrevida descrita por Derrida. Encontra-se entre a vida e a morte, a lembrança e o Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 137 Giselda Paula Tedesco / Edgar Cézar Nolasco [125-139] esquecimento, o arquivo e a exumação, a cultura letrada e o seu fora, o centro e a fronteira. Um candeeiro queima, conclama, propõe um reavivamento do que não foi, busca um diálogo com o que existe do outro lado do porto (Murtinho), enfim, vela uma história que talvez não exista mais. Tal qual o arquivo descrito por Derrida, o Toro Candil queima de paixão, talvez como forma de manter sua pulsão existencial em ação, em cena. REFERÊNCIAS ANTUNES. Nostalgia do Todo, p. 5 (Monografia de Especialização – Linguagem das Artes_ pósgraduação Latu senso do Centro Universitário Maria Antonia da Universidade de São Paulo) ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca: escritos efêmeros sobre arte, cultura e literatura. Trad. de Lyslei Nascimento. Belo Horizonte: EDUFMG, 2006. 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Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 139 140 Literatura Feminina [141-150] Literatura feminina: tecendo uma escrita de resistência Romair Alves de Oliveira Resumo: A literatura de autoria feminina apresenta não somente a questão do espaço privado – “lar”, mas também um espaço psicológico altamente intimista em sua escrita. Dentro dessa perspectiva, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), tendo sua obra reconhecida pela crítica por seu cunho didático, vem contemplar nosso trabalho na ótica da escritura feminina não como o “sorriso da sociedade”, mas como resistência de uma escrita singular para mostrar o posicionamento da mulher nos vários espaços sociais. Desse modo, concretiza uma literatura feminina e consolida seu valor literário aos olhos da crítica do início do século passado e mostra, ainda, como a escrita de autoria feminina negocia com os valores patriarcais oitocentistas, indicando de que forma a resistência surge nas relações de gênero no fim do século XIX. Palavras-chave: Literatura feminina; Júlia Lopes de Almeida; Resistência. FEMININE LITERATURE: WEAVING A WRITING OF RESISTANCE Abstract: The feminine writing shows not only the issue of private space – “home”, but also a highly intimate psychological space in her writing. Within this perspective, Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), having her work recognized by the critical theoreticals for her nature education, contemplates our work from the perspective of women’s writing not as the “smile of society”, but as resistance of a single writing that shows the position of women in various social spaces. Thus, she concretes a feminine literature and consolidates its literary value to the early past reviewers’ eyes and also shows how female writing deals with the nineteenth-century patriarchal values, indicating how resistance emerges in genre relations in the late nineteenth century. Keywords: Feminine Literature; Júlia Lopes de Almeida; Resistance. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 141 Romair Alves de Oliveira [141-150] Introdução A produção literária de autoria feminina é um dos lugares possíveis para se traçar uma história do papel desempenhado pelo feminino no contexto social e cultural através dos séculos; lugar este no qual a mulher, na medida do possível, se revela na sua escrita. No campo das artes, mais especificamente no da literatura, discutiu-se por muito tempo se existe uma escrita feminina caracterizada por um discurso com marcas genuínas de voz de autoria feminina. A discussão em torno desta questão, mesmo quando de natureza essencialista, na qual se via a ligação mulher/natureza como justaposição da condição biológica à social, tem contribuído para se pensar e se analisar a literatura sob nova ótica, levando-se em conta as variações possíveis no que tange às questões de gênero. O contexto da autoria feminina Não somente a teoria da literatura, mas a história, a sociologia, a psicologia e a filosofia oferecem subsídios para a compreensão do texto literário. Esta postura interdisciplinar compreende e considera o feminino como resultado de articulações diversas. A confluência dessas áreas de conhecimento possibilitou a retirada da escrita de autoria feminina das margens, da periferia, passando a reconhecer, nessa autoria, uma literatura com característica própria. Ultrapassando a barreira do silêncio a que se viu historicamente condenada, a mulher veio, lentamente, se inserindo em diversos caminhos, entre eles o da produção literária, com o objetivo de assumir uma voz própria, sua linguagem, sua escrita e seu discurso. Construindo um texto oriundo de suas próprias experiências e contextualização do seu universo, a mulher passa a ser sujeito de seu próprio querer, de sua existência, de sua palavra. A autoria feminina se dá, sutilmente, pelo sujeito que se reconhece através da palavra, na qual apresenta sua consciência, se realiza e se mostra. A autoria feminina resulta, então, de uma conquista, da afirmação do ser em meio a uma sociedade que insistia em tornar a escrita feminina invisível, marginalizando a escrita e a criatividade da mulher. 142 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Literatura Feminina [141-150] A literatura de autoria feminina ficou relegada à margem da literatura canônica ocidental até a década de 60, em países como E.U.A, Inglaterra, França, Brasil e outros. Esse período vem atrelado às lutas emancipatórias das mulheres que, entre outras demandas, exigiam o reconhecimento das aptidões e dos direitos femininos além dos apregoados pela sociedade patriarcal, isto é, o de rainha do lar e de mãe idolatrada (STEIN, 1984). A escritora Lygia Fagundes Telles, corroborando com que dissemos anteriormente, discorre sobre uma escrita de autoria feminina que envolve características culturais e a condição feminina brasileira, perceptíveis no fragmento abaixo: A literatura feminina tem (...) uma fisionomia própria (...) decorrente da situação da mulher, das suas raízes históricas... a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as mulheres do mundo. (TELLES, 1997, p. 57) As palavras dessa escritora caracterizam, de certa forma, uma escrita de autoria feminina de um Brasil oitocentista, no qual as mulheres brasileiras não possuíam direitos autônomos. Aliás, quase direito algum, principalmente no tocante à educação escolarizada e ao trânsito no espaço público, predominantemente masculino. A escrita de autoria feminina, dificilmente, poderia ser diferente do seu meio e do seu público leitor, essencialmente femininos. Daí a característica do tom confessional dado pela maioria das escritoras oitocentistas, tendo como referência seu cotidiano, seu meio (privado), seus anseios, suas queixas, sua realidade verossímil, ou seja, uma “escrita de si”, de mulher, sobre mulher e para mulher. Tal escrita reflete um universo particular ainda imerso em preceitos patriarcais reinantes, em que a mulher busca, através de escritos como diários, cartas, crônicas e até receituários, uma forma de revelar sua postura e condição na sociedade na qual está inserida. Isolada, silenciada, a mulher tenta, por meio da escrita, romper com o espaço a ela destinado e mostrar sua condição subordinada à normatização social vigente. É através destes primeiros textos que Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 143 Romair Alves de Oliveira [141-150] a mulher busca se definir como: mulher/ser mulher, ou seja, a própria representação da mulher e o papel por ela desempenhado na sociedade da época, dando visibilidade a estes estados que estão intrinsecamente ligados ao padrão masculinizante que rege os preceitos sociais do século XIX. A literatura de autoria feminina brasileira oitocentista inicia seus primeiros passos e começa a se afirmar no contexto literário brasileiro num período de transição política, no qual o país deixa de ser colônia portuguesa para transformar-se em nação, isto no início do século XIX, em 1822. Como complemento dessa informação, é importante lembrar que a História de nosso país se divide em Período Colonial e Período Nacional; enquanto a literatura brasileira, por questões didáticas, é dividida, pelos estudiosos, em Era Colonial (literatura de informação) e Era Nacional (romantismo). A literatura de autoria feminina no século XIX vem retratar não a questão de nação, mas a condição vivenciada pela mulher naquele século, condição essa diferenciada em relação a outros países, principalmente os europeus. Devido ao contexto histórico brasileiro de resquícios coloniais, a mulher brasileira não acompanhou as transformações sociais e culturais, especificamente no âmbito educacional. A mulher oitocentista brasileira, por “transitar” e “atuar” apenas no espaço doméstico, por não possuir uma educação adequada à arte do “bem escrever” e, ainda, por não ter tradição literária de alcance nacional, dissertava sobre coisas banais, cotidianas ao seu espaço. A maioria de seus textos não ultrapassava o escrevinhar, termo que pode apresentar nuanças pejorativas, mas que expressa as características da escrita da época. A problemática que envolve a questão educacional e a condição da maioria das mulheres brasileiras é explicitada por Telles, ao dizer que: a mulher vem tradicionalmente de uma servidão absoluta através do tempo e a mulher brasileira mais do que as outras mulheres do mundo... Quando as mulheres do mundo já se comunicavam, através, por exemplo, das cartas, as correspondências das mulheres de salões, a mulher brasileira estava fechada em casa, vivendo a vida das senhoras das fazendas, da 144 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Literatura Feminina [141-150] senhora da casa grande... Viviam aprisionadas. Não sabiam ler, não sabiam nem sequer escrever, não sabiam coisa nenhuma. Elas viviam numa servidão mais terrível do que as mulheres de outros países, inclusive da Europa. (TELLES, 1997. p. 57) Telles retrata, assim, historicamente, a condição da mulher brasileira, e não a sua escrita, reforçando a questão da educação feminina precária no período oitocentista brasileiro. Embora sua observação seja válida quanto à apresentação da condição da maioria das mulheres, ela não reflete o diferencial feminino do século XIX, uma vez que já havia textos de autoria feminina, de mulheres, a maioria branca, escolarizada e elitizada. A grande parte da população feminina do século XIX era, na verdade, iletrada, condição resultante da própria situação de um país em transição. Conseqüentemente, esta situação provocou o silêncio das mulheres e uma ausência de vozes de autoria feminina no contexto literário de nosso país. As mulheres escritoras imitavam, primeiramente, a escrita masculina e reproduziam, em seus escritos, o seu meio social. Não poderia ser diferente, principalmente por causa da educação que lhes era ministrada e porque não eram estimuladas à cultura letrada. A mulher era, na maioria das vezes, apenas receptora de informações condizentes com seu meio social. Mesmo quando eram escolarizadas e possuíam personalidade forte e posição econômica relevante, como foi o caso da escritora Nísia Floresta (Apud, MOREIRA, 2003), tinham reconhecimento menor tanto da mídia quanto do público. Uma das razões deste não reconhecimento é que a temática da literatura de autoria feminina estava, em princípio, relacionada aos problemas domésticos ou íntimos. Essa falta de envolvimento com questões ditas importantes, como, a política, história e economia, fez com que a escrita feminina apresentasse pouca relevância no cenário literário da época. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 145 Romair Alves de Oliveira [141-150] Júlia Lopes de Almeida e a escrita de resistência As mulheres escritoras oitocentistas divulgaram através de seus textos a importância atribuída aos papéis de mãe e esposa. Entre elas, destacamos Júlia Lopes de Almeida (1862-1934) e sua numerosa obra literária de cunho didático, como: Livro das Noivas (1896) e Livro das Donas e Donzellas (1906). Nestas duas obras, a escritora constrói o universo da classe burguesa feminina, carioca para, através destes cenários, problematizar os papéis femininos numa sociedade que mantinha as mulheres como cidadãs de segunda classe. A obra de Júlia Lopes de Almeida se insere no contexto histórico oitocentista descrito por Stein e por Telles. A narrativa de Dona Júlia (como era conhecida na época) vai além do papel designado ao feminino, pois ela consegue, através de suas personagens, mostrar que as mulheres possuem aspirações que extrapolam aquelas valorizadas pelo modelo patriarcal. Ou seja, as personagens almeidianas aspiram, sobremaneira, por educação e trabalho. As temáticas da educação e do trabalho feminino foram o grande foco desta escritora carioca que escreveu uma vasta produção ficcional, na qual se destacam obras infantis, romances, contos, crônicas, peças teatrais e uma literatura didática dirigida, particularmente, às mulheres. Apesar do reconhecimento da crítica à vasta produção literária de Júlia Lopes e da sua aceitação pela elite carioca oitocentista, após sua morte em 1934, essa escritora tornou-se desconhecida, até mesmo para professores e estudantes dos cursos de Letras, pois, “com o passar do tempo Júlia Lopes de Almeida reduziu-se a esparsos registros em compêndios de historiografia em uma ou outra reedição mais recente”. (XAVIER, 1991, p. 08) A crítica Lúcia Miguel Pereira reconhece a literatura de Júlia Lopes de Almeida “como sorriso da sociedade” (PEREIRA, 1957, p. 259); indicando um tipo de literatura que visava entreter sem questionar os valores sociais. No entanto, a nossa leitura da narrativa almeidiana se opõe à leitura crítica de Pereira acerca da obra, isto é, a de que a vasta produção literária de Almeida teve por finalidade entreter a 146 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Literatura Feminina [141-150] sociedade carioca. A nossa divergência à Pereira se respalda em uma outra observação desta mesma crítica ao afirmar que a autora carioca “é a maior figura entre as mulheres escritoras de sua época, não só pela extensão de sua obra, pela continuidade do esforço, pela longa vida literária...” (PEREIRA, 1957, p. 260). A composição das personagens almeidianas são estrategicamente concebidas com o diferencial de revelar/desvelar a condição feminina no período oitocentista, como é o caso dos romances A Viúva Simões (1897), A Intrusa (1908), A Falência (1901). Tais romances demonstram uma elaboração mais complexa no que concerne à construção das personagens femininas e, em especial, das protagonistas. Nessa linha, ressaltamos também as coletâneas de contos como, Ancia Eterna (1903) e de crônicas como Eles e Elas (1910). Em ambas, a autora se esmera na criação de tipos vivenciando conflitos sócio-político-culturais nas relações de gênero. Essas obras apresentam marcas de resistência na perspectiva da crítica feminista por meio de uma análise de caráter sociológico que envolve a literatura e os aspectos ideológicos que influenciaram a escritora, sobretudo na elaboração do romance A Viúva Simões. Apesar de refletir os fatores do meio social, é necessário saber que a obra literária não registra, mas evidencia sua existência, muitas vezes, até exagerando a realidade e a investigação sociológica da literatura; se não justifica a essência do objeto artístico, auxilia a compreender a criação e o objetivo das obras. Objetivo este condizente com a escrita oitocentista de autoria feminina e relevante do ponto de vista da crítica feminista para se entender a condição feminina daquela época. O discurso feminino do século XIX foi construído sobre os alicerces patriarcais vigentes, sedimentados por rígidas relações de gênero. Por isso, utilizavam-se estratégias discursivas que favoreciam sua aceitação no meio literário. A negociação dissimulada da escrita feminina com os valores burgueses vigentes facilitava a inserção da mulher-escritora no espaço literário sem, necessariamente, entrar em choque com as instituições e o “sermo paterno”. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 147 Romair Alves de Oliveira [141-150] Compreender como se manifestam as formas de resistência, na escrita de autoria feminina oitocentista, remete-nos à trajetória histórica de mulheres escritoras no século XIX, no qual não somente a literatura brasileira, mas o país vivia uma transição, de colônia à nação, de monarquia à república. Entendemos que a resistência na obra de Júlia Lopes é construída, estrategicamente, como forma de confrontar os valores e o lugar do feminino na sociedade patriarcal carioca, imersa em uma profunda transição estrutural, política e valorativa advinda da emancipação da colônia. Ou seja, a sociedade carioca oscilava entre o velho e o novo e precisava fazer os ajustes necessários a uma ex-colônia que se fazia nação, a um projeto de modernidade que almejava transformar a cidade do Rio de Janeiro na Paris tropical, entre outras imposições. As personas, cujos pensamentos, ações e sentimentos mais recônditos nos são oferecidos sem reserva na ficção almeidiana, suscitam indagações sobre o modo como a arte representa a natureza humana. Os conflitos entre o ser e o parecer vão construindo os elementos de resistência nos enfrentamentos das relações de gênero. Nesse sentido, a crítica feminista dá visibilidade à obra de autoria feminina, resistindo ao princípio de neutralidade literária postulado pelo cânone que desvaloriza, via de regra, os textos de mulheres escritoras. A crítica procura inserir a escrita feminina no espaço acadêmico, levando em conta não somente os aspectos literários, mas pontuando a importância das experiências vividas no silêncio do espaço privado. Os valores oitocentistas do patriarcado são discutidos amplamente pela crítica feminista na medida em que promove a desconstrução do patriarcado que considerava como natural a opressão da mulher pelo homem e como universal a supremacia do ponto de vista masculino em detrimento do feminino. São, portanto, reflexões em torno da tensão das relações de gênero entre os sexos que sustentam, geralmente, as análises de obras de autoria feminina. Falar sobre resistência no âmbito da literatura significa lidar com fatores políticos, sociais e culturais que farão a escrita ficcional interagir com o mundo verossímil voltado para a sociedade e para os vários 148 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Literatura Feminina [141-150] aspectos que a englobam. Assim, as conexões entre a realidade social e a estrutura literária se dão como uma das estratégias de resistência na narrativa romanesca de Júlia Lopes de Almeida, mostrando que a obra não é apenas a representação da realidade exterior, mas também é uma associação entre o interno e externo, pois as representações só têm existência completa através da interpretação dos resultados e da construção da realidade que o (a) autor(a) pretende apresentar. Portanto, os elementos utilizados em seu discurso, juntamente às suas idéias de composição textual, levarão o leitor a notar que a escrita literária não somente mostra os fatores sociais, mas também como o texto se relaciona a estes fatores e, ainda, como se dá a representação na conexão texto e contexto. A resistência na obra literária almeidiana não resgata apenas o que foi dito no passado distante; ela transcende o tempo da escrita e propaga novas formas de pensar e transcrever uma realidade sincrônica envolta em seus aspectos sociais e culturais, o que viabiliza “a possibilidade de criar espaços de lutas e de agenciar possibilidades de transformação em toda parte” (REVEL, 2005, p. 74). Resistência que, no parecer de MOREIRA (2003), tem sempre uma perspectiva desconstrutiva, no sentido de propor novas formas de pensar e transcrever uma realidade, ou seja, ela, a resistência, como uma ferramenta da crítica feminista, desorganiza a lógica e os valores do “status quo”, contrapondo-se à rigidez e ao lugar do feminino nas relações de gênero. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Júlia Lopes de. A viúva Simões. 1. ed. 1897. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999. _____. A intrusa. Rio de Janeiro: Departamento Nacional do Livro, Biblioteca Nacional, 1994. _____. A falência. São Paulo: Hucitec, 1978. _____. Ancia eterna. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1903. _____. Livro das donas e donzelas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1906. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 149 Romair Alves de Oliveira [141-150] _____. Livro das noivas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1896. _____. Eles e elas. 2. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1922. MOREIRA, Nadilza M. Barros. A condição feminina revisitada: Júlia Lopes de Almeida e Kate Chopin. João Pessoa, Editora da UFPB, 2003. PEREIRA, Lúcia Miguel. Prosa de ficção: de 1870 a 1820. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988. REVEL, Judith. Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005. STEIN, Ingrid. Figuras Femininas em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984. TELLES, Lygia Fagundes. A mulher escritora e o feminismo no Brasil. In: SHARPE, Peggy (org). Entre resistir e identificar-se: para uma teoria da pratica da narrativa brasileira de autoria feminina. Florianópolis: Editora Mulheres, 1997. XAVIER, Elódia. Tudo no feminino: a presença da mulher na narrativa contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. Romair Alves de Oliveira é docente do curso de Letras da UNEMAT e da UFMT 150 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] A construção de identidades e ideologias: um confronto islâmico e norte-americano Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari Silvane Aparecida de Freitas Resumo: O foco de interesse deste artigo é analisar as formações ideológicas sobre o atentado ao World Trade Center ocorrido no dia 11 de setembro em 2001, por meio das marcas enunciativas presentes nos discursos (cartas do leitor e reportagens principais) das revistas VEJA E CAROS AMIGOS. Fundamentando-nos, especialmente, nos conceitos advindos da AD Francesa e dos Estudos Culturais, a partir de uma metodologia qualitativainterpretatista. Propusemo-nos a estudar as representações sociais desses discursos, investigando as práticas discursivas ligadas à constituição da identidade/representação do povo islâmico e do “ex-presidente” norteamericano. Assim, constatamos que os discursos das revistas analisadas remetem-nos a posicionamentos sócio-histórico-ideológicos diferenciados. Enquanto a Revista Veja utiliza-se de discursos “já-ditos” numa tentativa de preservar a identidade americana. A Revista Caros Amigos utiliza-se desses “já-ditos” para desconstruir essa imagem positiva do norte-americano. Palavras-chave: discurso; ideologia; identidade; islâmico; ex-presidente Abstract: The interest focus of this article is to analyze the ideological formations about the attempt to World Trade Center occurred on 11th of September, in 2001, by means of the enunciatives marks present in the speeches (reader’s letters and main reports) of the magazines VEJA and CAROS AMIGOS. Basing, especially, in French AD’s and Cultural Studies’ concepts, by means of a qualitative-interpretative methodology. We proposed to study the social representations of these speeches, investigating the discursive practices linked to the constitution of identity/representation of the Islamic people and the “north American former president. This way, we verify that Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 151 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] the analyzed magazines speeches remit us to different social-historicalideological positions. While the Veja magazine uses the speeches “nowsaids” in attempting to preserve the American identity. The Caros Amigos magazine uses these “now-saids” to demolish this positive image of the North American. Keywords: Speech; ideology; identity Islamic; former president. 1- Introdução Desde 2001, temos assistido e lido na mídia, em especial, nas Revistas Veja e Caros Amigos sobre os acontecimentos de 11 de setembro; no qual os discursos remetem ao “ex-presidente” dos Estados Unidos da América (EUA) como o causador de tamanha “tragédia”, uma vez que dizia ser o “Todo-poderoso” de um império inabalável ou ao povo islâmico como sendo “terrorista, pessoas sem coração, frias, inimigos a qualquer hora”. Tal fato nos leva à tentativa de entendê-los pelo viés discursivo, pois destes discursos não só sobressaem os efeitos de sentido, mas também a construção da imagem/identidade/representação social tanto do povo islâmico como do povo norte-americano perante as sociedades mundiais. Tendo em vista que nessas revistas, estes discursos se representam como verdades absolutas e estas passam a ser vistas como instituições inspiradoras de credibilidade, tal como postula Coracini (2007), trabalham no inconsciente do público de forma que deixam vivas determinadas memórias discursivas e passam a ser mantidas no público por meio de repetição, assim, asseguram suas condições de construtoras de estereótipos e representações (BHABHA, 1998). Diante destas colocações, emerge a necessidade de observar/ problematizar a representatividade dos “atores” envolvidos no acontecimento de 11 de setembro de 2001 nos discursos que circularam na mídia (Veja de nº. 1718, ano 34, nº. 37 de 19 de setembro de 2001 e Caros Amigos de nº. 55, ano V de outubro de 2001, num segundo momento de análise), por meio das reportagens principais e das cartas do leitor, visando a compreender esses discursos, analisar as práticas discursivas ligadas à constituição da identidade/representação do povo 152 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] islâmico e do “ex-presidente” norte-americano. Para isso, necessário se faz, neste artigo, aprofundar os conhecimentos sobre alguns conceitos da Análise do discurso que serão fundamentais para este trabalho, tais como: discurso, efeitos de sentido, relações de poder, sujeito, heterogeneidade, identidade, representação social, ideologia e relações de poder. 2- Pressupostos teóricos Nesta pesquisa temos como aporte teórico os pressupostos de duas áreas do conhecimento: Análise do Discurso de Linha Francesa (AD) e os Estudos Culturais. O discurso, na perspectiva da AD de linha francesa, não deve ser estudado desvinculado de suas condições de produção (CPs). Nessa perspectiva, Orlandi (2001, p.16) afirma que é necessário estabelecer uma ligação entre a linguagem, a história e a ideologia, ou seja, relacionar a língua com sua exterioridade. Assim, emerge a necessidade de estudar as CPs do discurso norte-americano em contraponto com o islâmico divulgados pelas mídias escritas (Veja e Caros Amigos) em relação ao dia 11 de setembro de 2001. Gadet (1988, p. 81-83) retomando Pêcheux, ressalta que há uma série de formações imaginárias que determinam o lugar que o(s) interlocutor(es) do discurso atribui(em) a si e ao outros, isto é, a imagem que fazem do lugar que ocupam e do lugar do outro, bem como a imagem que o(s) interlocutor(es) faze(m) do referente. De acordo com Foucault (2005, p. 9), as condições de produção do discurso “é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que tem por função conjurar poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade”. Nesse prisma, deparamonos com o conceito de interdição como algo que regulariza o que pode e que deve ser dito em relação às condições de produção. Já no que concerne o discurso, Foucault (1972, p. 147) postula que o discurso deve ser entendido como o conjunto de enunciados que de- Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 153 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] rivam de uma mesma formação discursiva. Nas palavras do autor, “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e determinada área, social, econômica, geográfica ou linguística, as condições de exercício da função enunciativa”. Desse modo, as condições de produção de discurso, não podem ser compreendidas, especificamente, como sendo a situação empírica e a representação no imaginário histórico social do discurso que está em jogo (CARDOSO, 2003, p. 39). Por isso, o discurso marca de modo implícito a posição do sujeito, regulando e perpassando-o por meio do local de produção do discurso e pela formação discursiva no qual se inscreve. Nesse sentido, o discurso enquanto saber marca poder, “o poder mostra alternância entre uma positividade e uma negatividade que lhe é atribuída, mantendo a idéia de prosperidade e exercício de um único soberano, ou de uma minoria sobre uma minoria”. (GREGOLIN 1988, p. 118, apud GUERRA, 2008). De acordo com Foucault (2006, p. 14), “as relações de poder são intrincadas em outro tipo de relação - de produção, de alianças, de família, de sexualidade em que desempenham – em que desempenham um papel ao mesmo tempo condicionante e condicionado.” (ibid, p.248). Portanto, na visão do autor (1979, p. 241) é “a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Nunca seremos aprisionados pelo poder, pois podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”, ou seja, as relações de poder estão emaranhadas em relações sociais. Ainda nesta perspectiva, para tratarmos de representação social, adotamos a teoria de Pêcheux (1990, p.82) ao postular que “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que destinador e destinatário se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”. 154 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] Já em relação ao conceito de sujeito do discurso, Pêcheux (1988, p. 188) postula que todo indivíduo só se torna sujeito quando é interpretado por uma idéia lógica, ou seja, passa a ser assujeitado e fala do interior de uma formação discursiva (FD), regulada por uma formação ideológica (FI), pois segundo o autor, as palavras ganham sentido em conformidade com as formações ideológicas, os sujeitos inscrevem o sentido de uma palavra, expressão ou até mesmo de uma proposição a cada enunciação; são os sentidos dependentes da inscrição ideológica da enunciação, de um processo histórico e social. Dessa maneira, segundo Guerra (2008), o sujeito é cindido, interpelado pela ideologia, dotado de inconsciente e sem liberdade discursiva, devido ao fato de que o sujeito é atravessado por uma memória, sentidos já cristalizados na sociedade, no imaginário coletivo. Em consonância com os autores citados anteriormente, Orlandi (1999) afirma que o individuo é interpelado em sujeito pela ideologia para constituir seu dizer, ou seja, os discursos produzem efeitos de sentido, toda vez que o sujeito enuncia, pois estes revelam o lugar social, a posição de onde fala, e seus discursos são perpassados por outros discursos. Nesse sentido, Orlandi (1992, p. 4) refere-se ao interdiscurso como sendo a “memória do dizer que abrange o universo do dizível e que fornece a cada sujeito sua realidade enquanto sistema de evidência e de significações percebidas, aceitas e experimentadas”. Entendemos que o sujeito constrói as representações da realidade, conforme o lugar que fala, a partir de suas experiências de vida e sua ideologia. Para Bakhtin (1992), a ideologia é um conjunto das interpretações da realidade social e natural e dos reflexos que o sujeito armazena em seu cérebro e se expressa por meio de palavras ou outras formas signícas, pois segundo o autor, “o signo é ideológico por excelência, é produto da interação social; só aparece entre indivíduos socialmente organizados. (BAKHTIN, 2003)”. Para o autor, a ideologia é produzida conforme as condições sóciohistóricas, numa relação de linguagem e exterioridade, pois não há sentido sem interpretação e diante de qualquer objeto simbólico (signo), Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 155 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] o homem é condicionado à interpretação. Tal como afirma Orlandi (2007, p.31), a interpretação de sentido é determinada pela relação da linguagem com a história e com seus mecanismos imaginários. Portanto, são as formações discursivas localizadas em uma formação ideológica dada, a partir de uma relação de classe, que determina o que pode e deve ser dito a partir de uma conjuntura social. (PÊCHEUX, 1988). Já no que tange ao conceito de identidade, nos apropriaremos dos pressupostos teóricos de Hall (2000, p.9), pressupostos advindos dos estudos culturais: A identidade é assim marcada pela diferença; a diferença é marcada pela exclusão [...] Em certo sentido, somos posicionados e também nos posicionamos a nós mesmos de acordo com os “campos sociais” nos quais estamos atuando (p.30). Nesse prisma, segundo o autor, não existe uma identidade plena, pois o sujeito é um fragmentado, não possui uma identidade fixa, essencial ou permanente, mas sim instâncias diferentes assumem identidades diferentes, não sendo mais unificadas em torno de um “eu” coerente. Podemos dizer que as identidades são construídas social e culturalmente e existem diversas identidades dentro de nós, sendo todas contraditórias e em constante deslocamento. Em suma, os sujeitos constroem as representações da realidade de acordo com o lugar que enuncia, com as experiências vivenciadas e sua ideologia. Os sujeitos, segundo Grigoletto (2006, p. 27), as identidades são construídas na relação com o outro, dentro das concepções da sociedade e evoluindo com ela. Os sujeitos possuem identidades fragmentadas e proteiformes que se mobilizam num mundo pós-moderno midiatico, pois as referências também são fragmentadas e cambiáveis. 3- As Marcas Discursivas Partindo desses pressupostos, passaremos a análise de recortes retirados da mídia Revista Veja nº. 1718, ano 34, nº. 37, 19 de setembro de 2001 e da Revista Caros Amigos, anoV, nº. 55, de outubro de 2001: 156 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] No primeiro recorte selecionado (E1), retirado da Revista Veja, temos: E1: Dez anos atrás, depois do colapso da União Soviética, o presidente George Bush, pai de George W., anunciou uma nova ordem mundial, cuja base era o triunfo dos valores americanos e da democracia liberal. Parecia que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comercio global. (VEJA, 2001, p. 50). Em (E1), o sujeito enunciador nos remete às formações discursivas do capitalismo, da história, do discurso jurídico (oficial) e da política mundial, ao relatar que “após o colapso da União Soviética, o pai de Bush anunciou uma nova ordem mundial”. Por meio do marcador temporal “dez anos atrás” e do adjetivo “nova”, observamos na ordem do discurso que o passado é retomado no presente da enunciação para confirmar que país conquistou um poder inabalável - “todo poderoso” - numa transição do antes e do agora (de como era este país antes do pai Bush assumir o comando e do agora, depois da ascensão deste ao poder). No tocante ao enunciado, estas formações discursivas retomam momentos históricos anteriores, os “já ditos” (FOUCAULT, 2002) como sendo “formações discursivas emergentes, pois são constitutivas de diferentes formas históricas e carregadas de transformações, em que o discurso do outro traz as marcas da Tradição, da Verdade, da Justiça e da Lei.” (GUERRA, 2010). Como pode ser observado aqui, recorrendo ao sentido do verbete “anunciou”: temos os seguintes significados: “dar a conhecer; noticiar, pôr anúncio de; indicar, prenunciar, promover e custear a divulgação de anúncio.” (FERREIRA, 2001, p. 48). Nesse sentido posto, o enunciado atribui ao sujeito presidente um poder de ditar as regras, ordens no mundo como sendo aquele que tem a voz absoluta, de verdade, até mesmo de um “anjo”, o que nos remete ao efeito de sentido de “anunciação” no discurso religioso, bíblico, reportando-nos ao “dia fixado pela Igreja para se comemorar a Anunciação à Virgem Maria, pelo Arcanjo Gabriel, no mistério da encarnação”. A imagem de Bush está associada, então, à condição de um ser adivindo de Deus para os Americanos e para o mundo capitalista. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 157 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] Dessa maneira, os itens assinalados anteriormente, remetem ao efeito de sentido de que o presidente anunciou depois de dez anos uma nova verdade, um novo tempo: que os EUA não se abalavam por nada, eram a maior potência econômica no mundo, que nenhum outro país seria capaz de destruir este império, pois quem não estive aliado a ele, seria destruído. O sujeito-enunciador apropria-se, então, desse discurso, numa tentativa de apagar a fragilidade do país anterior ao fato. Neste sentido, esta voz legalizadora e legitimadora é atravessada pelo discurso jurídico, oficial de autoridade e constrói uma identidade de um sujeito poderoso, supremo, dominador. Tal como Pêcheux (1990, p.82) postula “o que funciona nos processos discursivos é uma série de formação imaginária que designa o lugar que destinador e destinatário se atribuem, cada um a si e ao outro, a imagem que eles se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro”. Além disso, estão imbricadas neste enunciado as formações ideológicas do dominador e do dominado, pois essas vozes são constituídas no imaginário coletivo. Os discursos se constituem nos “já ditos” (PÊCHEUX, 1988), na repetição, nas paráfrases de conceitos presentes no imaginário coletivo e até mesmo no senso comum como estereótipos. (GUERRA, 2010). O sujeito-enunciador retoma os estereótipos de o pai de Bush foi o responsável pela ascensão econômica do país para continuar mantendo a imagem do país enquanto superpotência, de um país “todo poderoso”, mesmo depois dos acontecimentos de 11 de setembro. Nesse prisma de dominador e dominado, recorremos a Foucault (1979) ao postular que “o poder não existe, existem sim práticas ou relações de poder. O poder é algo que se exerce que se efetua, que funciona, que se dissemina por toda a estrutura social”. Segundo Gregolin (1988, p. 118, apud GUERRA, 2008), “o poder mostra alternância entre uma positividade e uma negatividade que lhe é atribuída, mantendo a idéia de prosperidade e exercício de um único soberano, ou de uma minoria sobre uma maioria”. Neste movimento interpretativo do El, o dominante e a voz condicionante era a do presidente, cuja representação do imaginário coletivo era do sujeito supremo, aquele que tinha voz oficial, que afirmava a 158 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] seus “súditos”, aos condicionados, enquanto sujeitos dominados que a humanidade dependia desse triunfo da economia americana e da democracia liberal, que somente “eles”, os americanos, poderiam fazer isso ou colocar tudo a perder. Em consonância, aqui, com os significados dos verbetes “triunfo”, “democracia” e “liberalismo” retirados do dicionário38 (FERREIRA, 2001), observamos que o “triunfo”, “a vitória” dos americanos faria com que toda a humanidade também se beneficiasse com esta vitória. E que só restava à humanidade promover tal acontecimento aos EUA, ou seja, o discurso do sujeito dominante “forçava” os líderes dominados dos outros países a participar dessa “luta”, por meio de um discurso que legitima seu governo, o democrático, pois este era o discurso legitimador, oficial e supremo. Vejamos no enunciado “Parecia que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comercio global”, o significado do verbete “derradeiro”: “último, extremo, final” (FERREIRA,2001, p. 210), que reafirma essa relação de poder, num efeito de sentido “ou é agora ou nunca mais” como se “não percamos essa chance e façamos vitória contra aqueles que não seguem nosso regime democrata liberal”, ou seja, o presidente utiliza-se do discurso de autoridade para atrair o povo e os demais países, como se houvesse uma “guerra” e precisasse vencê-la, uma guerra econômica de todos e não apenas dos líderes dos EUA. Verificamos, neste contexto, que a identidade/representação do presidente Bush é resgatada a partir da imagem coletiva positiva que o pai George Bush obtivera em sua trajetória política, enquanto líder governamental dos EUA, o qual fora responsável em tornar os EUA a maior potência econômica mundial. Assim, tal como afirma Foucault 38 triunfo: “entrada pomposa, solene, dos generais vitoriosos; vitória; êxito brilhante” (p.688). democracia: “governo do povo, soberania popular; doutrina ou regime popular baseado nos princípios da soberania popular e da distribuição equitativa do poder” (p208). liberalismo: “atitude dos que defendem a propriedade privada, as reformas sociais graduais, as liberdades civis e a liberdade de mercado (p.425). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 159 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] (2002, p.57), “os discursos são conjuntos de acontecimentos discursivos regulados e descontínuos uns em relação aos outros”. Em outras palavras, é a exterioridade associada às regularidades discursivas que vão representar as condições sócio-históricas, nas quais estas se inscrevem na materialidade linguística (GUERRA, 2010 p.46; CARDOSO, 2003). Portanto, segundo Hall (2000, p.9) “a identidade é assim marcada pela diferença; a diferença é marcada pela exclusão (...)”. Neste caso, o presidente é marcado pela posição de líder oficial, do detentor do poder, do país que tem mais força, enquanto o povo, os países que dependem deste ficam à margem, à exclusão. Estes, por sua vez, são marcados por uma identidade/ representação de “fracos”, “incapazes” sozinhos. São essas formações ideológicas constituídas nessa relação de classe que determinam o que pode e dever ser dito a partir dessa conjuntiva social. (PÊCHEUX, 1988). Desse modo, retomando ainda, o enunciado “uma nova ordem mundial, cuja base era o triunfo dos valores americanos e da democracia liberal. Parecia que o derradeiro desafio da humanidade era promover o comercio global”, observamos a seguinte formação ideológica, buscando na memória do discurso não democrático dos russos, que o triunfo dos EUA foi marcado pela luta, disputa do mercado mundial, devido ao fim do sistema totalitário no colapso da União Soviética, e a criação de um poder centralizado na Rússia, que levaram as repúblicas soviéticas a se desligarem e o poder mundial a entrar em crise também. Neste sentido, Gadet (198, p. 81-83) fazendo uma releitura de Pêcheux, postula que as formações imaginárias determinam o lugar que o(s) interlocutor(es) do discurso atribui(em) a si e ao outros, isto é, a imagem que fazem do referente. No intuito de prosseguir o nosso foco analítico com relação às representações que a mídia nos repassa, analisemos o recorte retirado da Revista Caros Amigos, anoV, nº. 55 de outubro de 2001: E2: Bush e seus assessores entendem que só há uma maneira de recuperar a economia dos Estados Unidos e manter o poder sobre o mundo. Realizar a nona cruzada. Por isso, a paz não lhes interessa, caso contrário, não manteriam no poder um terrorista e criminoso como Sharon, o Ariel que 160 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] lava mais branco. (p.20). E3: Hegel explica a guerra dizendo que não existe juiz do mundo. (...) já Fichte escrevera que seria “inevitável a guerra contínua entre os Estados, pois entre eles, ao contrario do que ocorre entre os cidadãos de um Estado (...), jamais se assegura o reino de um direito firme”. (...) “incorporar sob ele a espécie inteira é conforme a um instinto enraizado por Deus na alma dos homens”. Nação que não se expande encolhe. Essa é a norma a ser obedecida pelos países que não desejam ser escravos. Benefício pedagógico das guerras modernas, diz Fichte, é que nelas europeus ensinam aos povos bárbaros “de outras partes do mundo, pelo constrangimento, a obediência do domínio civilizado. Combatendo aqueles bárbaros, a juventude européia se fortifica”. Na cena internacional “não há lei sem direito, exceto o direito do mais forte” (p.12). E4: Os filósofos produziram a razão guerreira dos Estados europeus e definiram os slogans repetidos pela CNN e pelos governantes imperiais. O elogio da força nas relações externas, o desprezo pelos “povos bárbaros” que mereceriam a morte pelas mãos dos civilizados, a segurança nacional e axiomas conexos foram idealizados por gerações de teóricos europeus antes do século 20. (...) Cada Estado, define ele, age através da força e dos espiões, aranhas cujas redes envolvem os inimigos. (p. 12). E5: O CHE GUEVARA DO ISLÃ. O saudita Osama bin Laden, provável mentor de uma tragédia anunciada, é a encarnação do mal para os americanos. Mas boa parte do mundo muçulmano o considera um ídolo. (Revista Veja, edição de 26 de setembro de 2001, páginas 60 e 61, apud Revista Caros Amigos, p. 27). Não poderemos entender, produzir sentidos desses fragmentos sem nos remeter a acontecimentos anteriores, às formações discursivas de quem diz e é dito nestes enunciados. E2 remete-nos ao discurso político, pois para Bush e seus assessores a única forma de conduzir uma negociação ou uma estratégia seria a de efetuar mais uma cruzada (expedição militar), no caso, a de número nove (nona) contra os infiéis, os bárbaros – os islâmicos – para garantir o poder que os EUA exercem sobre os outros países, mesmo que isso acabe com a paz mundial. Observa-se, por meio dos itens lexicais “Estados, cidadãos de um Estado, norma, direito firme”, que o sujeito-enunciador utiliza-se do interdiscurso: de discursos filosóficos e do discurso legal constitucional. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 161 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] Ao se referir ao Estado (EUA), enquanto legitimador de direitos, cujas normas são ditadas pelos três poderes que ele organiza e estrutura, tendo por finalidade manter a ordem no país, na nação e até mesmo no mundo. Assim, entende-se que os países que não forem ainda civilizados, ou seja, não estiverem aliados aos EUA, serão guerrilhados, postos em constrangimentos, para assim, obedecerem ao líder. Segundo Bakhtin (2003, p. 32) “um signo não existe apenas como parte de uma realidade; ele também reflete e refrata uma outra, pois todo signo está sujeito aos critérios de uma avaliação ideológica”. O sujeitoenunciador busca por meio do interdiscurso desconstruir os discursos favoráveis aos EUA que circularam nas mídias internacional e nacional, recorrendo à filosofia humanística e jurídica. Utiliza-se, ainda, de uma formação discursiva de ordem institucional pedagógica, a escola. O sujeito-enunciador atribui, desloca este sentido para os EUA, como sendo a escola que ensina o que é ser civilizado, que prepara o cidadão para viver em comunidade. Para tanto, basta ensinar aos países “bárbaros”, sob a lei do mais forte, em que não há juiz para ditar as regras, quem não quiser servir de escravo, siga os ensinamentos dos EUA. De acordo com Foucault (1973, p. 97), o discurso é um conjunto de enunciados regulados numa mesma formação discursiva, ou seja, “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma época dada, para uma área social, econômica, geográfica ou linguística, as condições da função enunciativa”. Neste sentido, a representação que a revista Caros Amigos faz do “ex-presidente” Bush é de um político extremamente capitalista, egoísta e tirano, que de democrata liberal não possui nenhuma característica. Já em relação ao povo islâmico, vemos que a mesma revista tende a questionar os discursos negativos apresentados tanto pela mídia brasileira (como a revista Veja), quanto pela mídia internacional (como a CNN), trazendo para o leitor discursos que foram silenciados em virtude do capitalismo - lucro - para a qual estas mídias trabalham. Tal efeito de sentido pode ser constatado em E2 “a paz não lhes interessa, caso 162 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] contrário, não manteriam no poder um terrorista e criminoso como Sharon, o Ariel que lava mais branco”. Ao apontar Sharon, como um dos integrantes do governo Bush, o qual está no comando do poder mesmo sendo um “criminoso” e “terrorista”, temos uma comparação irônica. O Ariel, sabão em pó que lava mais branco, é capaz de eliminar toda a sujeira. Assim, ao comparar Sharon com o sabão Ariel, temos que, da mesma forma, Sharon, experiente em terrorismo e criminalidade, também é capaz, pode eliminar/derrotar toda a sujeira que contamina os EUA, que são os povos bárbaros. Em E3, percebemos que, por meio da heterogeneidade mostrada e não-mostrada, o sujeito-enunciador retoma os dizeres dos filósofos, para contra-argumentar a favor daqueles que são silenciados e vistos unicamente como “povos bárbaros” – os islâmicos. O que corrobora com o que postula Authier-Revuz (1990), toda fala é heterogênea, é “a representação que um discurso constrói em si mesmo de sua relação com outro”, pois o sujeito é dividido entre o consciente e o inconsciente. O sujeito não é a fonte absoluta do significado, do sentido, não é a origem, pois este se constitui por falas de outros sujeitos. O sujeito é o resultado da interação de várias vozes (eu-outro), da relação com o sócio-ideológico (BAKHTIN, 2003). O sujeito-enunciador no dizer da imprensa deve dizer a “verdade”, correspondendo ao desejo de conhecimento do leitor: a imprensa se situa a partir de uma imagem de credibilidade perante a sociedade, perante seu público. Diante do exposto, segundo Sargentini; Navarro-Barbosa (2004, p. 123), os “acontecimentos discursivos utilizados pelas mídias tendem a construir uma nova identidade remetendo a elementos do passado, não pelo o que neles está dito, mas pelo modo como esse já-dito neles retorna”, o que faz ecoar a máxima de Foucault (1995, p. 13) de que “o novo não está no que é dito, mas no acontecimento do seu retorno”. Ao recorrer à memória discursiva que Sharon foi um “terrorista” e que este está aliado a Bush, a revista tenta mostrar como os americanos são capazes de “qualquer coisa” para manter seu poder, e afirmar que terroristas só existem entre os islâmicos, a revista tenta com esse Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 163 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] discurso mostrar que, por trás dos discursos americanos, há uma voz silenciada pelo seu capitalismo exarcebado, nesta disputa pelo poder, a voz dos islâmicos. Comparando os recortes dos enunciados retirados das duas revistas Veja e Caros Amigos, observamos que os discursos utilizados sobre os “terroristas” e o “ex-presidente” Bush se diferenciam, pois a representação destes atores também são diferentes: Bush é visto como o filho do grande construtor da maior potencia econômica mundial (revista Veja) e como aquele que não visa a paz, não mede esforços para manter seu “império” (revista Caros Amigos). Já com relação ao povo islâmico, a representação que se tem são de “ângulos” diferentes, pois nos discursos analisados na revista Veja, ele é o “terrorista” sem distinção de país e religião, basta ser islâmico para ter esta característica. Enquanto, na revista Caros Amigos, o islâmico é representado, a partir de grupos étnicos aos quais pertencem, não há um único islâmico, mas sim vários povos com culturas diferentes. São vistos de acordo com as diversas formações discursivas que perpassam a cultura islâmica. Segundo Grigoletto; Magalhães; Coracini (2006), as identidades são construções sociais e culturalmente situadas, são formadas na relação inescapável e necessária com a alteridade. “As identidades dos sujeitos são fragmentadas e proteiformes em constante mobilidade num mundo pós-moderno midiático, porque as referências também são cambiantes e fragmentadas”. Neste caso, as revistas, os sujeitos-enunciadores constroem suas representações sobre a realidade, os fatos, de acordo com o lugar que fala, com suas experiências e sua ideologia. Isso fica mais evidente no recorte a seguir: E6: “Hoje, vivemos sob a ditadura dos veículos de comunicação, cuja representante maior é a empresa norte-americana CNN (...) Quem mais, a não ser um governo arrogante, apoiado por uma imprensa títere, a falar em ataques “cirúrgicos” tentando equiparar assassinos a uma das profissões mais nobres como a dos médicos? É muito mais do que uma questão de semântica. É a cultura do dead or alive”. (Caros Amigos, 2001, p. 20). E7: “Usando metralhadoras. Os norte-americanos iniciaram a sua prática, malsucedida, de criar lideranças armadas que no início a eles se submetem 164 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] e depois rejeitam os seus ditames. Eles geraram Saddam Hussein e outros, chegando a Bin Laden. A guerra recomeça no território afegão. Ela exibe o duplo fracasso americano de impor o mando pelas “elites nacionais” subordinadas ou criando líderes que deveriam ser autômatos. Mesmo com a óbvia inutilidade, para os EUA, em prazo longo, de tal política, os cérebros acadêmicos e jornalísticos que formam o imaginário norte-americano insistem na violência física. Talvez sirva de consolo saber que Hegel, após afirmar a inexistência de um juiz mundial, indique algo estratégico: os impérios se sucedem e muitas nações perdem hegemonia, devido à mera contingência, não prevista pelos seus governantes. Para desgraça dos povos livres e pobres, e proveito dos atuais senhores do mundo. (Caros Amigos, 2001, p. 20). E 8: “Quem é bin Laden? Nada, eles não sabem nada, nada querem saber. Vês esses ignorantes, eles dominam o mundo”. “Vocês serão iguais se puderem ser diferentes sem estar ameaçados de tratamento desigual”. A luz vem do Oriente, já diziam os sábios. “No Alcorão está escrito que quem salva uma vida salva a humanidade e que Deus não mudará a condição dos homens se eles não mudarem o que está neles. Não creio que o atentado tenha sido praticado por muçulmanos, mas, ao desencadear a nona cruzada, Bush estará cometendo uma agressão que provocará um efeito dominó mais devastador ainda do que o proposto pelo ex-secretário de Estado Henry Kissinger durante a guerra do Vietnã. E o mundo jamais será o mesmo”. (Caros Amigos, 2001, p.20). A ideologia do sujeito-enunciador marca a posição social que a revista tem, assim tece a imagem do “ex-presidente”, como um governante insolente, orgulhoso, pois “ex-presidente” Bush usa de discursos “enganosos”, compara assassinos a cirurgiões. Usa-se de conceitos do discurso médico, desloca conceitos na tentativa de afirmar que o óbvio não é o óbvio, abrandando a vulnerabilidade dos EUA, na garantia de manter a imagem do país, como maior potência mundial. O sujeito-enunciador tenta desconstruir a imagem de verdade dos EUA, a imagem de que os EUA age em nome do bem comum. Ao buscar na memória discursiva que os EUA é o país poderoso em virtude da grande produção bélica, que intimida aos demais países tidos como “inferiores” ou que resistem a esta superioridade. Segundo Charaudeau (2009, p. 61) “no discurso informativo, o status da verdade é da ordem do que já foi: algo que aconteceu no mundo, e é esse novo conhecimento proposto no instante de sua transmissão- Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 165 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] consumação, que vai dar credibilidade aos fatos transmitidos”. Neste sentido, o sujeito-enunciador afirma que os EUA foi quem criou Bin Laden e Saddam Hussein, por seu tratamento desigual e ambicioso. Na tentativa de desconstruir a imagem poderosa, dá voz ao islâmico, num discurso de defesa, ao buscar o Alcorão, para argumentar a seu favor e afirmar a identidade destes, não como sendo todos terroristas, mas para dizer que possui uma cultura que preserva também a paz mundial e a vida, tal como afirma os norte-americanos. Analisemos, agora, a ideologia da revista Veja nos recortes a seguir: E9: É preciso também eliminar os santuários, os sistemas de apoio e acabar com os Estados que patrocinam o terrorismo. (VEJA, 2001, p.50). E10: A única superpotência tornou-se alvo de fanáticos dispostos a tudo. Como a nação mais poderosa do planeta pode proteger-se das atrocidades terroristas? - subsecretário de Defesa, Paul Wolfowitz. (VEJA, 2001, p. 50). E11: Só se pode imaginar como será travada a guerra da superpotência contra terroristas que escondem nos grotões do Terceiro Mundo. Com o fim das ideologias e depois dos atentados, o planeta está agora obcecado pela segurança. (VEJA, 2001, p.50). Como podemos ver, a ideologia do sujeito-enunciador da revista Veja se contrapõe à ideologia da revista Caros Amigos como apresentado acima, pois os itens lexicais “é preciso também eliminar os santuários, acabar com os Estados que patrocinam o terrorismo”, marcam uma imagem positiva dos EUA, na qual a ideologia do sujeito-enunciador é mostrar que os EUA foram atingidos por um grupo de pessoas religiosas fanáticas (os islâmicos) que praticam o mal, tendo apoio de outros países que promovem o terrorismo e que tal fato não foi provocado pelos EUA. Sendo assim, este se exclui de qualquer culpa, não bastaria eliminar apenas as pessoas “terroristas”, mas há que destruir os lugares onde estes habitam (os santuários). Nesse sentido, esse discurso nos remete à memória discursiva, ao ditado popular: “é preciso cortar o mal pela raiz”. Como poderia permitir que a única superpotência fosse destruída por grupos fanáticos capazes 166 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] de até perder sua própria vida por um “Deus” e matar tantos inocentes e nada a ser feito pela honra desses inocentes mortos? Como se pode observar nos trechos “só se pode imaginar como será travada a guerra da superpotência contra terroristas que escondem nos grotões do Terceiro Mundo; o planeta está agora obcecado pela segurança”. Nota-se nestes discursos tal como foi apresentado, que a Revista Veja faz uma representação do povo islâmico, utilizando-se de discursos negativos que os marginalizam, que os colocam como subumanos que vivem em grotões, em lugares profundos nas cavernas, na escuridão, afastados como bandidos, isolados do mundo por serem perigosos. Fato que corrobora com a preservação da imagem norte-americana, mesmo diante da vulnerabilidade da maior potência. Portanto, podemos dizer que as revistas articulam cada uma a seu favor, por pontos de vistas diferentes, cada qual com sua ideologia, buscando por meio de seus discursos de “verdade”, representar os fatos. Assim, a revista Veja mostra uma imagem positiva do ex-presidente Bush e negativa dos islâmico-muçulmanos. Enquanto a revista Caros Amigos contrariamente a esta, passa uma imagem negativa do “ex-presidente” Bush e desloca os islâmico-muçulmanos para uma posição de igualdade, imagem positiva, num discurso de defesa. Continuando nossa análise, apresentamos alguns recortes que foram retirados das cartas do leitor da Revista Caros Amigos, p. 5, de outubro de 2001 e da Revista Veja de 19 de setembro de 2001, p.29: E12: Perdemos a razão nesse dia 11 de setembro, foi um ataque de 1,99 dólar contra a bilionária geringonça bélica americana. Partindo desse pressuposto, torçamos para que alienígenas invadam o planeta estrupício para nos ensinar, com letras grandes e figurinhas para colorir, a teoria e prática da civilização, módulo básico”. ( Revista Caros Amigos, 2001, p.5). E13: O ataque sofrido pelos Estados Unidos é covarde, absurdo, sem precedentes, apocalíptico! Qual seria a verdadeira intenção do ataque aos Estados Unidos? Destruir a imagem americana? Muito pelo contrário. Estão com os americanos, hoje, a opinião pública mundial de países poderosos, talvez até a Rússia e a China”. (Revista Veja, 2001, p. 29). Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 167 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] Nota-se que E12, no sintagma verbal “perdemos a razão”, traz marcas de subjetividade, nas quais o sujeito-enunciador leitor generaliza o fato como um absurdo nunca visto antes, ou seja, associando essa idéia de absurdo em relação ao acontecimento de 11 de setembro, ao ataque das torres gêmeas. Entende-se também, que ao usar os itens lexicais quantificadores “1,99 dólar” e “bilionária bélica americana”, o sujeito-enunciador leitor da Revista Caros Amigos ironiza a grande potencia mundial, reativando a memória discursiva de que os EUA é o grande produtor de armamento bélico e, por isso, é considerado como o “todo poderoso”. Havia inúmeros projetos de investimentos bélicos, redes antimísseis, serviços de espionagem, agentes no exterior, sistemas de vigilância eletrônica por satélites, projetos como a CIA. Eram gastos 30 bilhões de dólares por ano em serviços de inteligência de alta tecnologia. Nesse sentido, o sujeitoenunciador leitor tenta ridicularizar que houve tantos investimentos, mas que o “todo poderoso” também era vulnerável. Em consonância com esse argumento, observamos que sujeitoenunciador leitor, ao usar os verbos na primeira pessoa do plural (nós), remete-nos ao efeito de sentido de que ele se eximir de sua condição subjetiva singular (dele mesmo), tenta dividir responsabilidade do que diz a outrem, significando que não é apenas ele quem pensa assim, mas outros também pensam da mesma forma. O sujeito-enunciador leitor, nesta perspectiva, tenta desconstruir a imagem dos EUA, ao generalizar o acontecimento de 11 de setembro, como se muitos outros leitores estivessem entendendo da mesma forma, afirmando que o poder está relacionando com o armamento bélico dos EUA, e procede a sua resistência, assim ao mesmo tempo em que o sujeito se identifica com a revista, ele se desindentifica. Fato este que corrobora com o que postula Foucault (2006, p. 248) “as relações de poder não se restringem à forma da interdição e do castigo, mas sim, se exercem de diversas formas”, ou seja, onde há “relação de poder, há uma possibilidade de resistência, pois jamais somos aprisionados pelo poder, podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa” (FOUCAULT, 1979, 241). 168 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] Neste prisma, observamos que o sujeito enunciador leitor é influenciado pela ideologia da revista, pelo seu discurso de verdade, mas ao mesmo tempo, deixa de ser influenciado, pois suas crenças, sua ideologia o faz com que se esquive dessa verdade construída pela revista, como um ponto de resistência. O uso do item lexical “alienígenas” por parte do sujeito-enunciador leitor está atrelado à crença de que os alienígenas são os “únicos”, que não estão “contaminados” pelas ideologias das civilizações que habitam esse planeta. Nesse caso, entende-se que somente os alienígenas poderiam combater o mal que causou a destruição do “planeta estrupício” (os EUA), os “únicos” com poderes para lhes ensinar o que está na ordem discursiva da escola, enquanto instituição alfabetizadora. Já em E13, temos um sujeito-enunciador leitor que ao mesmo tempo que se deixa influenciar pela ideologia da revista, também resiste, ou seja, ora se identifica com o discurso de “verdade” atribuído ao dito pela revista, ora se desindentifica tentando justificar o acontecimento buscando no discurso bíblico, no interdiscurso, a causa para o ocorrido, como sendo os islâmicos os culpados, ao mencionar que isso era “obra de Deus”, como estava previsto na Bíblia. Nesse sentido, comungamos com Cardoso (2003, p. 45) ao afirmar que ideologia e cultura são entidades diferentes, já que a cultura não pressupõe necessariamente relações de poder. A ideologia pressupõe conflitos - conflitos de classe, de grupos (idade, sexo, raça, cor etc.) motivados por relações de poder. O sujeito-enunciador leitor se identifica com a revista, por meio dos itens lexicais “estão com os americanos, hoje, a opinião pública mundial e países poderosos, talvez até a Rússia e a China”, nos quais marca a voz da revista, o interdiscurso, a relação de poder que esta exerce sobre o leitor de forma inconsciente, pois o sujeito-enunciador tenta também resgatar a imagem dos EUA, tal como faz a revista. Segundo Guerra (2008, p.47), o discurso se constitui sobre os primados do interdiscurso: todo discurso produz sentido a partir de outros sentidos já cristalizados na sociedade. Nesta mesma perspectiva, Pêcheux (1988) afirma que memória discursiva é esses sentidos já cristalizados, Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 169 Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari / Silvane Aparecida de Freitas [151-172] legitimados na sociedade e que são reativados no intradiscurso. Portanto, ao mesmo tempo em que as revistas influenciam, “dominam” o leitor, o leitor consegue “fugir” dessa influência, deixa de ser influenciado, mesmo que por lapsos, equívocos. 4- CONSIDERAÇÕES FINAIS Os dados parciais nos permitem afirmar que ao analisar as formações ideológicas sobre o atentado ao World Trade Center ocorrido no dia 11 de setembro em 2001, por meio das marcas enunciativas presentes nos discursos (cartas do leitor e reportagens principais) das revistas VEJA E CAROS AMIGOS, que os efeitos de sentidos instaurados por estas duas mídias são diferentes. Sendo que nesta primeira revista, projetam uma tentativa de mascarar o “atentado” de 11 de setembro de 2001, como não sendo fruto de uma possível “fragilidade” administrativa presidencial, mas de uma pessoa ou grupo que não estava ligado diretamente ao poder do Estado, pois fora graças ao pai deste, que o país alcançou tal “triunfo”: ser a maior potência econômica mundial. Fato este observado, quando o sujeito-enunciador utiliza-se de discursos que resgatam a imagem do ex-presidente Bush, recorrendo a acontecimentos anteriores. Já na segunda revista, há uma tentativa de desconstruir essa imagem positiva instaurada nos discursos midiáticos sobre o “ex-presidente Bush” e atribuir voz de defesa as culturas ditas “inferiores” pelos norteamericanos, como a cultura islâmica. Desse modo, constatamos que os discursos são perpassados por formações discursivas do capitalismo, religiosas, jurídicas, sócio-históricas, de autoridade, filosóficas, políticas e, entretanto com sentidos diferentes. Portanto, neste processo inicial de análise, observamos que a mídia – Revista Veja - utiliza-se de discursos “já-ditos”, como verdades intocáveis e únicas numa tentativa de preservar a identidade americana. Enquanto a Revista Caros Amigos utiliza-se desses já-ditos para desconstruir essa imagem positiva do norte-americano e dar voz ao povo islâmico, num 170 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A construção de identidades e ideologias [151-172] discurso de defesa, o que justifica ainda mais a importância desse estudo, pois se faz necessário desconstruir esses discursos que se mostram como verdades inatingíveis que, perpassados por ideologias, passaram a constituir nossas crenças, a habitar nosso imaginário, assujeitando-nos inconscientemente. REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Trad. Celene M. Cruz e João W. Geraldi. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, n.19, 1990. BHABHA, Homi. O Local da cultura. Trad. Miriam Ávila et ali. 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Foucault e os domínios da linguagem: discurso, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004. Rosemeire de Jesus Ferrarezi Becari é mestranda do Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras do CPTL/UFMS. Silvane Aparecida de Freitas é docente do curso de letras da UEMS e na UFMS. 172 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola: aproximações Altamir Botoso Resumo: No presente artigo, buscamos estudar a configuração do personagem malandro na literatura brasileira, o qual pode ser visto como uma recriação do personagem picaresco espanhol. Realizamos também um comentário do romance Malditos paulistas: romance policial-picaresco, de Marcos Rey (1980), no intuito de destacar as principais características do malandro literário e as aproximações que podem ser estabelecidas entre o personagem picaresco e o malandro. Palavras-chave: pícaro espanhol; malandro brasileiro; Malditos paulistas: romance policial-picaresco; Marcos Rey. Abstract: In this present article, we studied the trickster configuration in Brazilian literature that can be seen as a re-creation of the Spanish “pícaro” character. We also accomplish a commentary of the novel Malditos paulistas: romance policial-picaresco, by Marcos Rey with the purpose of detaching the main characteristics of the literary trickster and the approaches that can be established between the picaresque character and the trickster. Keywords: Spanish pícaro; Brazilian trickster; Malditos paulistas: romance policial-picaresco; Marcos Rey. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 173 Altamir Botoso [173-187] Antonio Candido (1970, p. 67-89), no seu estudo “Dialética da malandragem”, dedicou-se à análise do romance Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antonio de Almeida, procurando refutar a tese de que a obra possa ser filiada à picaresca espanhola39. Esse estudo é referência fundamental para a caracterização teórica do romance malandro, razão pela qual nos deteremos no exame de seus principais aspectos. Na introdução, Candido arrola três autores que trataram de definir o gênero romanesco a que a obra pertenceria. José Veríssimo, em 1894, definiu-a como romance de costumes, considerando as inúmeras descrições de lugares e cenas do Rio de Janeiro no tempo do rei Dom João VI. Já para Mário de Andrade a história de Leonardo Pataca é um romance de tipo marginal, que se aproxima do de Apuleio, Petrônio e do Lazarillo de Tormes, porque todos apresentam “personagens anti-heróicos que são modalidades de pícaro” (CANDIDO, 1970, p. 67). Em 1956, Darcy Damasceno afirmou não ser possível considerar as Memórias como obra picaresca, pois neste livro há um pícaro mais adjetival que substancial e lhe faltam as marcas peculiares do gênero picaresco. Damasceno aceitou a designação de romance de costumes para a obra. A seção I do estudo de Antonio Candido centra-se na argumentação de que as Memórias não são um romance picaresco. O crítico não concorda com o posicionamento de Josué Montelo. Este acreditava que Manuel Antonio de Almeida teve nas obras La vida de Lazarillo de 39 O romance picaresco é uma modalidade literária que abrange um conjunto de obras escritas na Espanha, nos séculos XVI e XVII. Seu eixo centra-se no pícaro, personagem de baixa condição social, que procura por todos os meios possíveis a trapaça, o engano, o roubo, o rufianismo ascender socialmente.Três obras constituem o núcleo clássico, ou picaresca clássica: Lazarillo de Tormes, de autor anônimo, publicada em 1554, Guzmán de Alfarache, de Mateo Alemán, cuja primeira parte apareceu em 1599 e a segunda, em 1604, e El Buscón, de Francisco de Quevedo, que vem a público no ano de 1626. Esses livros apresentam a história de um anti-herói que, valendo-se de sua astúcia, tenta integrar-se à sociedade, narrando ele próprio as suas aventuras e desventuras de forma autobiográfica. Para mais informações, leia-se: GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. 174 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] Tormes e Vida y hechos de Estebanillo González os modelos para escrever seu romance. Para Antonio Candido, Montelo supervalorizou analogias fugazes e não provou que as Memórias são obra picaresca, mas admite que seu autor possa “ter recebido sugestões marginais de algum outro romance espanhol ou feito à maneira dos espanhóis, como ocorreu por toda a Europa no século 17 e parte do 18” (CANDIDO, 1970, p. 68). A seguir, inicia uma comparação das características do “memorando” brasileiro com o pícaro espanhol, apoiando-se nas teorias de Frank Wadleigh Chandler e Angel Valbuena y Prat. O primeiro aspecto abordado é a questão do narrador. Se nos romances picarescos é o próprio pícaro quem narra suas aventuras, o mesmo não ocorre no livro de Manuel Antonio, o qual apresenta um narrador onisciente e “sob este aspecto o herói é um personagem como os outros, apesar de preferencial; e não o instituidor ou a ocasião para instituir o mundo fictício, como o Lazarillo, Estebanillo, Guzmán de Alfarache, a Pícara Justina ou Gil Blaz de Santillhana” (CANDIDO, 1970, p. 68). Em seguida, o crítico brasileiro aponta duas afinidades entre Leonardo Filho e os pícaros espanhóis: a origem humilde e a itinerância. No entanto, com relação à origem, faltaria a Leonardo um traço fundamental do pícaro: “o choque áspero com a realidade, que o obriga à mentira, à dissimulação e ao roubo” (CANDIDO, 1970, p. 69). O personagem das Memórias já “nasce malandro feito” (CANDIDO, 1970, p. 69) e a sua malandragem não é “um atributo adquirido por força das circunstâncias” (CANDIDO, 1970, p. 69), como no caso dos pícaros. Por outro lado, a origem humilde e o abandono não o levam à condição servil, que nos romances espanhóis é essencial para que o pícaro mova-se e ganhe experiência, “vendo a sociedade no conjunto” (CANDIDO, 1970, p. 69). O crítico assevera, então, que Leonardo é um anti-pícaro, com vocação de fantoche, que termina casado e recebe cinco heranças, sem que nada tivesse feito para que isso ocorresse. Na seção II do referido estudo, Antonio Candido (1970, p. 71) volta a negar que Leonardo seja um pícaro e afirma que ele é um malandro: Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 175 Altamir Botoso [173-187] Leonardo não é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição folclórica e correspondendo, mais do que se costuma dizer, a certa atmosfera cômica e popularesca do seu tempo, no Brasil. Malandro que seria elevado á categoria de símbolo por Mário de Andrade em Macunaíma. Efetivamente, com Memórias, o personagem malandro inaugura uma nova vertente na “novelística brasileira”: o romance malandro, que se solidifica com a publicação da rapsódia macunaímica e amplia-se com os malandros do pós-milagre. No final da seção II, Antonio Candido (1970, p. 71) chega, ainda que brevemente, a definir o que seja o malandro: “O malandro, como o pícaro, é espécie de um gênero mais amplo do aventureiro astucioso, comum a todos os folclores.” A esperteza, a agilidade, a sagacidade, a capacidade de improviso são algumas das características mais marcantes do malandro, que renega o trabalho e procura viver do jogo, da trapaça, da gigolotagem e até de pequenos furtos. O autor, na terceira parte do ensaio, atesta que o romance de Manuel Antonio não é um documentário que reproduz a sociedade do tempo de Dom João VI. Sua primeira metade, que vai até o capítulo XXVII, tem o aspecto de crônica e, a partir daí, há uma segunda, que é mais romance, na qual a figura do filho de Leonardo domina a narrativa. Na quarta e quinta partes, o crítico, com base na dialética da ordem e da desordem, faz uma análise das relações dos personagens. De um lado, de acordo com esta dialética, estão aqueles que “vivem segundo as normas estabelecidas” (CANDIDO, 1970,p. 77), cujo grande representante é o major Vidigal; de outro, aqueles que estão ou vivem em oposição ou têm integração duvidosa em relação a elas. A ordem liga-se a um hemisfério positivo e a desordem, a um hemisfério negativo. Leonardo transitará entre estes dois pólos, até ser finalmente absorvido pelo positivo, integrando-se à sociedade pelo casamento e o recebimento das heranças. Até este ponto, tentamos resumir as principais idéias de Antonio Candido, contidas em seu ensaio. Apesar de o crítico basear a sua com- 176 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] paração do pícaro com o malandro em teorias discutíveis de Chandler40, concordamos com ele no que diz respeito ao fato de Leonardo não ser um pícaro. Entretanto, este personagem pode ser aproximado aos pícaros espanhóis, cujas armas principais no relacionamento com a sociedade são a astúcia e a imobilidade. Ele rejeita o trabalho. Seu percurso na obra também é marcado, em algumas partes, pela itinerância, embora esta se restrinja apenas ao Rio de Janeiro. Em suma, consideramos com o professor Candido que Leonardo não é um personagem picaresco stricto sensu, assim como a obra em questão não se ajusta plenamente às convenções do gênero picaresco, mas importa ressaltar que Memórias traz ao primeiro plano a figura do malandro como descendente cultural de uma linhagem de anti-heróis protagônicos, inaugurada justamente pelo romance picaresco espanhol. Ater-se tão somente a elementos como a autobiografia, o serviço a vários amos e o choque áspero com a realidade, para caracterizar o pícaro ou um provável romance picaresco, revela-se insuficiente. Desde o Lazarillo e seus correlatos textuais formadores do núcleo clássico picaresco, o Guzmán e o Buscón, as demais obras designadas picarescas transgrediram o modelo inicial. A autobiografia, em alguns casos, cedeu lugar a um narrador em terceira pessoa, mas com o ponto de vista centrado no herói; por outro lado, já no próprio espaço intertextual canônico, observam-se importantes variações. Por exemplo, se Lázaro teve vários amos, Guzmán terá apenas uma meia dúzia, apesar da extensão do romance, e Pablos, apenas um. O fato é que dentro do que se convencionou chamar “gênero picaresco”, a transgressão, a recriação, a transformação são marcas constantes: Assim é como surgem as variações que incomodam tanto aos críticos e que constituem, em compensação, seu valor mais significativo, pois 40 Chandler “limita-se a identificar o pícaro como um anti-herói e a entender o romance picaresco como uma autobiografia do mesmo, caracterizada pela falta de plano e pela presença do humor, sendo que o pícaro seria um mero pretexto para a descrição da sociedade”. GONZÁLEZ, Mario M. A saga do anti-herói. São Paulo: Nova Alexandria, 1994, p. 284. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 177 Altamir Botoso [173-187] ainda permanecendo no mesmo leito original, cada obra oferece uma personalidade própria. O Lazarillo inicial conta sua vida a ‘Vossa Mercê’, mas outros a contam a um ‘senhor’, a um vigário ou um cura, ao leitor, a um amigo poeta... O primeiro conta-a para explicar seu ‘caso’; os outros o fazem para escarmentar, para adquirir fama, para divertir... Um começa desde a infância, outro desde quando estava no ventre de sua mãe... Um menciona os pais, outro acrescenta os avós e tataravós... O moço é substituído pela moça... O monólogo torna-se diálogo... A autobiografia é agora relato em terceira pessoa... O protagonista se converte em testemunha... O que era mendigo na rua é agora criado num convento, pajem na corte, soldado na guerra... O que não havia saído de sua cidade, viaja agora pela Espanha, pela Europa, chega ao Oriente, e acaba na América... O rapaz bom, mas travesso, torna-se um bêbado empedernido, um ladrão e malfeitor, um criminoso e assassino... O filho de ninguém chega a ser soldado, escudeiro, homem de bem, até aristocrata... Alguns superam sua condição miserável e se ‘estabelecem’ na sociedade, outros não... Alguns se arrependem e mudam de vida, outros não, ou terminam condenados à morte... Onde havia um pícaro, agora há dois... Se antes não havia amor, agora há... (BRAIDOTTI, 1979, p. 112-113, tradução nossa). Como se observa, o personagem picaresco adquiriu novas características, passou por transformações e transfigurações, sem, contudo, distanciar-se radicalmente do modelo iniciado pelo Lazarillo e continuado e alargado pelo Guzmán e pelo Buscón. As demais obras classificadas como picarescas mantiveram viva a figura do anti-herói. Novos autores desenvolveram e ampliaram a figura do pícaro. Se estes autores “tivessem querido simplesmente imitar ou copiar literalmente o modelo original, ter-se-iam metido em um beco sem saída. Só a variedade lhes oferecia um futuro seguro, e isto foi o que os salvou do esquecimento e contribuiu para seu êxito” (BRAIDOTTI, 1979, p. 113, tradução nossa). Essa variedade demonstrou ser o pícaro um ente ficcional dinâmico, sempre aberto a novas possibilidades, a adquirir novas características e a aclimatar-se tão bem em terras estrangeiras. Em solo brasileiro, o malandro, sem dúvida, pode ser visto como uma recriação do pícaro espanhol. Embora quase cinco séculos os separem, muitas afinidades e semelhanças acabam por uni-los. O estudo de Antonio Candido, apesar de por reparos a essa possibilidade, 178 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] analisa, com toda a propriedade que é peculiar ao autor, a figura do malandro literário, apresentando-o como um indivíduo fora das normas estabelecidas (ordem), que usa a astúcia e a recusa ao trabalho como forma de ascensão social. Tais características são traços constantes dos pícaros que conhecemos e, em última instância, contradizem o que o mestre insiste em minimizar: que o malandro Leonardo possa ser aproximado dos anti-heróis espanhóis. Ao que consta, Antonio Candido não voltou a se manifestar sobre este assunto. No entanto, anos após a publicação da “Dialética da malandragem”, em 1989, num artigo sobre o que ele considera como a nova narrativa brasileira, faz a seguinte colocação: “E mesmo numa indicação muito incompleta, não é possível omitir a curiosa vertente satírica de corte picaresco, de que é manifestação Galvez, imperador do Acre (1976), de Márcio Souza, anti-saga desmistificadora dos aventureiros da Amazônia.” (CANDIDO, 1989, p. 212). Teria o crítico revisto suas idéias expostas na “Dialética” e concluído que o pícaro e o malandro poderiam ser aproximados? Não o sabemos e nem é possível sabê-lo apenas com esta alusão breve e “incompleta”. E, na verdade, isto já não tem importância, uma vez que o estudo comparado entre malandros e pícaros foi e continua sendo um terreno fértil para os pesquisadores. Destacam-se, no tocante a este aspecto, as pesquisas desenvolvidas por Mario González, que culminaram em seu já citado estudo A saga do anti-herói e numa série de dissertações de mestrado defendidas na USP. Os malandros Macunaíma, Amphilóphio das Queimadas Canabrava, Atahualpa (tio e sobrinho) e João Miramar, por exemplo, já foram lidos e analisados à luz da picaresca clássica nos seguintes trabalhos: A picaresca espanhola e ‘Macunaíma’ de Mário de Andrade, de Heloisa Costa Milton (1986); ‘Mi tio Atahualpa’: a sagração do herói na terra do carnaval, de Maria Teresa C. de Souza (1987); Galvez, o pícaro nos trópicos, de Rubia Prates Goldoni (1989); Amphilóphio das Queimadas Canabrava: um pícaro caboclo?, de Maria Eunice Furtado Arruda (1990); ‘Bildungsroman’ e picaresca em ‘Memórias sentimentais de João Miramar’ e “Amar, verbo intransitivo’, de Daniel Argolo Estill (1996). Vale destacar, todavia, que para nós foi gratificante descobrir Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 179 Altamir Botoso [173-187] que o mestre, ainda que minimamente, relaciona o malandro Galvez com o pícaro espanhol. O malandro, tal qual o pícaro, transferiu-se das ruas para a ficção. A sua linhagem, se assim podemos chamá-la, começa com Leonardo Pataca, afirma-se com Macunaíma, passa pelos demais malandros citados anteriormente e prossegue em várias obras que ainda vamos mencionar. No terreno ficcional, o malandro apresentará os mesmos traços fundamentais do estereótipo do brasileiro: “vagabundagem, preguiça, sensualidade, indisciplina, vivacidade de espírito nossa modalidade de ‘inteligência’ e sobretudo simpatia” (GALVÃO, 1976, p. 32). Ligado ao vocábulo malandro está o termo malandragem, com um sentido semântico negativo, que significa o ato, a qualidade ou o modo de vida daquele que a pratica. A carga negativa advém do fato de estar embutido no seu conceito a lesão ou danos a terceiros. O ato de malandragem supõe um sujeito (o malandro) que o pratica e um paciente que o sofre (a vítima ou o otário, dependendo do caso). O engano, a trapaça e o prejuízo são os motores mais comuns de uma ação malandra. Roberto Goto (1988, p. 11) observa que No imaginário da sociedade nacional, [a malandragem] costuma sintetizar certos atributos considerados específicos ou identificadores do brasileiro: hospitalidade e malícia, a ginga, a finta, o drible, a manha e o jogo de cintura muito apreciados no futebol e na política, a agilidade e a esperteza no escapar de situações constrangedoras ligadas ao trabalho e à repressão, o ‘jeitinho’ que pacifica contendas, abrevia a solução de problemas, fura filas, supre ou agrava a falta de exercício de uma cidadania efetiva. A malandragem brasileira é, de fato, um traço peculiar da forma de ser nacional, expressa em gestualidades diversas como o “jeitinho”, a safadeza, a ascensão social com pouco esforço. O tipo que a encarna, na vida social e na esfera da cultura, é obviamente, o malandro. É importante acrescentar, no entanto, que ela cobra vigor ao ser encarada como “um espaço de liberdade dado aos mais talentosos” (GOTO, 1988, p. 105), o que faz supor, para o malandro, uma vitalidade própria. Essa espécie de “talento”, aliás, é o que não falta ao nosso anti-herói que, “desenvolvendo travessuras num mundo aberto ou aproveitando as 180 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] brechas de um mundo fechado”, tem na malandragem o exercício e a “expressão de uma liberdade, efetiva ou anunciada” (GOTO, 1988, p. 107). Ela, por assim dizer, garante a sua liberdade, desvia-o do trabalho e permite-lhe a sobrevivência no universo do ócio. A figura do malandro suscitou estudos em diversas áreas, dentre elas a da literatura e a da sociologia. Com relação a esta última, o livro de Roberto da Matta tornou-se uma obra de consulta obrigatória para quem deseja estudar e conhecer o malandro mais a fundo. Para ele, “o malandro é um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho, aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se” (DA MATTA, 1990, p. 216). Cabe aqui apontar que o malandro aprende a usar a sua esperteza, o seu savoir vivre, para escapar das malhas do trabalho regular e disciplinado, que o impediriam de circular livremente e cerceariam a sua tão prezada liberdade. A definição de malandro dada pelo sociólogo Da Matta pode ainda ser complementada. O malandro possui outros traços e particularidades que lhe são inerentes e que compõem o seu perfil. Cláudia Matos (1982, p. 55) ressalta o seu caráter de ser de fronteira dentro do sistema social: o próprio malandro é um ser da fronteira, da margem. [...] Ele não se pode classificar nem como operário bem comportado nem como criminoso comum: não é honesto mas também não é ladrão, é malandro. Sua mobilidade é permanente, dela depende para escapar, ainda que passageiramente, às pressões do sistema. [...] A poética da malandragem é, acima de tudo, uma poética da fronteira, da carnavalização, da ambiguidade. O malandro é, portanto, um indivíduo marginalizado socialmente, que está fora da ordem estabelecida e que, ao mesmo tempo, procura tirar partido dessa ordem a qualquer custo, como os pícaros. A ficção que o consagra como protagonista reinventa, no plano poético, essa condição. O romance malandro apresenta como protagonista um anti-herói, que não se enquadra na ordem legal e nem se extravia dela. É um Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 181 Altamir Botoso [173-187] individualista que pretende ascender socialmente não pelo trabalho, mas pela astúcia, e que parodiará os mecanismos ascensionais observados na sociedade da qual ele faz parte, para conseguir seu intento. Em algumas obras, o malandro deixa de lado o seu individualismo e passa a ser porta-voz de projetos políticos alternativos, que contribuiriam para uma mudança social. Geralmente estes projetos, utópicos e quixotescos, acabam em lutas armadas, com a derrota do próprio malandro (GONZÁLEZ, 1994, p. 353-357). Nesta parte do trabalho, consideramos oportuna uma catalogação das obras que alguns autores como Mario Miguel González (1994), Edward Lopes (1970), Erwin Theodor Rosenthal (1975) consideram como romances malandros brasileiros. Em ordem cronológica, os seguintes livros são aceitos como romances ou relatos malandros: 1852-53: Manuel Antonio de Almeida: Memórias de um sargento de milícias 1920: Hilário Tácito: Madame Pommery 1924: Mário de Andrade: Memórias sentimentais de João Miramar 1928: Mário de Andrade: Macunaíma o herói sem nenhum caráter 1933: Oswald de Andrade: Serafim Ponte Grande 1961: Jorge Amado: Os velhos marinheiros 1963: João Antonio: Malagueta, Perus e Bacanaço 1968: Marcos Rey: Memórias de um gigolô 1971: Ariano Suassuna: A pedra do reino 1976: Márcio Souza: Galvez: Imperador do Acre 1978: Paulo de Carvalho Neto: Meu tio Atahualpa 1979: Moacyr Scliar: Os voluntários 1979: Fernando Sabino: O grande mentecapto 1980: Edward Lopes: Travessias 1980: Luís Jardim: O ajudante de mentiroso: novela picaresca 1980: Marcos Rey: Malditos paulistas: romance policial-picaresco 182 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] 1982: Haroldo Maranhão: O tetraneto del-rei 1984: Napoleão Sabóia: O cogitário 1994: José Roberto Torero: Galantes memórias e admiráveis aventuras do virtuoso Conselheiro Gomes, o Chalaça 1997: André Heráclio do Rêgo: Memórias de um amarelo mofino: romance episódico, memorial, épico, picaresco e escatológico 1998: Marcos Rey: Fantoches 2007: Homero Fonseca: Roliúde 2007: Ruy Castro: Era no tempo do rei: um romance da chegada da corte Temos consciência de que algumas obras mais recentes poderiam integrar o rol de obras malandras elencado acima, mas acreditamos que a lista que elaboramos comprova que, de fato, o romance da malandragem vem se firmando na literatura brasileira como uma vertente bastante fecunda e que merece ser estudada com mais profundidade. Dessa forma, julgamos oportuno comentar o romance Malditos paulistas: romance policial-picaresco, de Marcos Rey, buscando destacar algumas aproximações entre o romance picaresco e o romance malandro brasileiro. Em Malditos paulistas, Marcos Rey fundiu duas modalidades narrativas: a história de um malandro e uma trama policial. A inserção da trama policial no romance malandro, a nosso ver, comprova mais uma vez que o romance é um gênero que transgride constantemente seus próprios modelos e revitaliza a tradição. O malandro, dentre as muitas máscaras que utiliza, assume o papel de detetive. No “romance policial-picaresco” de Marcos Rey, Raul, um rematado velhaco, narra suas aventuras e desventuras. Ele candidata-se a uma de motorista, na mansão do milionário Duílio Paleardi. São onze os candidatos ao cargo. Cada um deles vai sendo dispensado, até que sobram apenas dois: Raul e um catarinense. A partir da dispensa dos seis primeiros candidatos, o narrador, numa referência explícita a O caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie (1985), chega a citar versos de uma canção infantil que aparece nesta obra: “Quatro negrinhos no mar; a um tragou de vez o arenque defumado, e então ficaram três. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 183 Altamir Botoso [173-187] [...] Três negrinhos passeando no zoo. E depois? O urso abraçou um, e então ficaram dois. [...] Um deles se queimou, e então ficou só um.” (REY, 1980, p. 12-15). O efeito desse empréstimo, como não poderia deixar de ser, é cômico. No livro de Agatha Christie, dez pessoas são convidadas a passar um fim de semana numa ilha e, uma a uma, vão sendo assassinadas. Na estante da sala da casa onde estão os personagens, há dez estatuetas de negrinhos e, a cada morte, uma delas desaparece. Em Malditos paulistas, o artifício empregado serve para caracterizar a “eliminação” dos candidatos e dar a tônica do livro, nos capítulos seguintes: a narrativa de suspense, de enigma a ser desvendado. Raul é selecionado para o serviço. Mantém casos amorosos com as empregadas da casa e trabalha pouco. Tudo vai muito bem até que uma jóia muito valiosa de Alba, mulher de Duílio, é roubada. A polícia é chamada e encontra a jóia no painel de um dos carros dirigidos por Raul. Ele é preso, mas nega veementemente que tenha sido o autor do delito. Fica na prisão por algum tempo e é libertado pelo patrão, que o contrata como seu secretário. A esta altura, um homem que frequentava a mansão dos Paleardi, Johanson Olsen, é encontrado morto. O próprio Raul começa a investigar e nos capítulos finais, descobre que o patrão é traficante de diamantes e que matara Olsen para que este não denunciasse a ele e a seus comparsas. Contudo, a afamada jóia desaparece pela segunda vez e o narrador-personagem, que acabara sendo demitido do emprego, retorna à casa dos patrões, à noite, furtivamente, para apanhar a jóia que ele havia escondido no painel do carro que dirigia: Minha mão rumou para o sul, na curva abismal do painel, [...]. [...] meus dedos haviam interrompido o trajeto à primeira e esperada resistência. Iniciei a Operação Descolagem. Não usara chiclete, como a Polícia precipitadamente afirmara. [...] Numa e noutra vez pregara-a com tiras bem finas de esparadrapo escuro. Solta, apertei-a com força na mão espalmada. [...] guardei a valiosa jóia azul-guanabara no bolso. (REY, 1980, p. 178). Totalmente indigno de confiança, o narrador surpreenderá o leitor ao revelar-lhe que é o ladrão, posto que, nos capítulos anteriores, jurara 184 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] ser inocente. Este recurso foi o mesmo utilizado por Agatha Christie (s/d) em O assassinato de Roger Ackroyd, no qual o médico que narra a história é também o assassino. Mas o culpado só é revelado no final da obra. Tal expediente narrativo é muito eficiente para a manutenção do suspense ou do mistério de um texto porque mantém o enigma enganando sobre a pessoa da narração: uma pessoa é descrita do interior, quando já é assassino; tudo se passa como se em uma pessoa houvesse uma consciência de testemunha, imanente ao discurso, e uma consciência de assassino, imanente ao referente; só o entrelaçamento abusivo dos dois sistemas permite o enigma. (BARTHES, 1972, p. 50). Raul assume estes dois posicionamentos levantados por Barthes: é testemunha, na qualidade de narrador que relata o que vê, e é criminoso, enquanto personagem que realiza o furto. Definitivamente, o culpado não é o mordomo, mas o próprio doador da narrativa. Em síntese, Raul assemelha-se aos pícaros clássicos porque o seu relato também é autobiográfico, embora abarque apenas o período de uns poucos meses, quando ele trabalha na mansão da família Paleardi e se apossa da jóia furtada. Além disso, tal como os protagonistas picarescos, valer-se-á da astúcia para poder sobreviver, desprezará o trabalho rotineiro e sempre viverá de empregar expedientes e estratagemas que possam livrá-lo de qualquer conflito e do universo massacrante do trabalho assalariado. No final de sua história, Raul, por intermédio da jóia roubada, poderá passar a fazer parte da sociedade burguesa, sem ter que trabalhar, uma vez que o dinheiro que conseguirá com a venda da jóia, possibilitar-lhe-á viver no ócio e sem preocupações monetárias por um bom período de tempo. Desse modo, notamos que o malandro de Malditos paulistas também se aproxima dos pícaros clássicos pelo fato de buscar, incansavelmente, um modo de integrar-se à sociedade e ter boa vida sem depender de um patrão para tal propósito. A narrativa de Raul, além de apresentar vários pontos de contato com a picaresca clássica, é também uma paródia do romance policial, principalmente dos de Agatha Christie, conforme já comentamos. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 185 Altamir Botoso [173-187] Enfim, o personagem malandro pode ser visto como uma recriação do personagem picaresco nas letras brasileiras e comprova a evolução e a expansão do romance picaresco clássico dos séculos XVI e XVII, revelando que a literatura é marcada pelo dinamismo, que resgata a tradição literária do passado, recriando-a no presente, por meio da intertextualidade, da paródia, do pastiche e, assim, o pícaro clássico revive nas criações literárias de diversos países, recebendo outras denominações, como é o caso do malandro na literatura brasileira. REFERÊNCIAS ARRUDA, Maria Eunice Furtado. Amphilophio das Queimadas Canabrava: um pícaro caboclo? Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1990. BARTHES, Roland et al. Análise estrutural da narrativa. Tradução de Maria Zélia Barbosa Pinto. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 1972. 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Bildungsroman e picaresca em ‘Memórias sentimentais de João miramar’ e ‘Amar, verbo intransitivo’. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1996. 186 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 O personagem malandro e a picaresca clássica espanhola [173-187] GALVÃO, Walnice Nogueira. No tempo do rei. In: GALVÃO, Walnice Nogueira. Saco de gatos: ensaios críticos. São Paulo: Duas Cidades/ Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976, p. 27-33. GOLDONI, Rubia Prates. Galvez, o pícaro nos trópicos. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FFLCH-USP, 1989. GONZÁLEZ, Mario Miguel. A saga do anti-herói: estudo sobre o romance picaresco espanhol e algumas de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994. GOTO, Roberto. Malandragem revisitada: uma leitura ideológica da malandragem. Campinas: Pontes, 1988. LOPES, Edward. Principios y funciones en la novela picaresca española. Tese de Doutoramento. 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Em um segundo momento, para além do seu texto ficcional e do meta-texto crítico, auxiliando-nos nessa análise, procederemos, também, à leitura sobre a literatura de autoria feminina. Por fim, pensamos chegar a uma proposta de leitura “feminilizante” de alguns de seus versos. Palavras-chave: literatura de autoria feminina; Josefina Plá; poesia paraguaia contemporânea; Poesías completas (1996); intertextualidade. Abstract: We have as an objective in this work re-read part of the work of the Paraguayan poetess Josefina Plá (1909–1999) and also her critical fortune. In a second moment, more than her fictional text and her critical meta-text, supplying us in this analysis we are also going to procedure to the reading about the writing feminine literature. At last, we propose a “feminizely” reading of her verses. Keywords: Writing feminine literature; Josefina Plá; contemporary Paraguayan poetry; Poesías completas (1996); intertextuality. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 189 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Eu sei como pisar/no coração de uma mulher; Já fui mulher eu sei/já fui mulher eu sei. (Chico César) 1. Ao modo de escrever femininamente Mas existe, de fato, uma literatura essencialmente feminina? Ou, dito de outro modo, para além do sexo biológico que nos diferencia, há também um outro olhar, uma outra percepção que nos representa e que, portanto, ins/escreve o texto literário? Vários teóricos são os que se debruçam sobre o tema e responder às tais inquerências, talvez, nem seja o foco principal. Senão, antes, pensar sobre essas possíveis distinções. Lúcia Castello Branco (1991, p.211), em seu ensaio “Para além do sexo da escrita”, ao explicar sobre o porquê do epíteto para tal escrita –o feminino-, nos diz que “trata-se, portanto, de uma terminologia que se quer localizar nesse lugar limítrofe entre o sexual e o além-sexual: o feminino aqui não se restringe a uma leitura sexualizante da escrita, mas também não se opõe frontalmente a ela” (grifo nosso). Tal afirmação, longe de paradoxal, quer nos fazer esclarecer que para a estudiosa o feminino enquanto manifestação (e realização) literária não deixa de ser/estar relativo às mulheres (de onde deriva adjetivamente do substantivo ‘fêmea’), porém a elas não se limita somente. Mais tarde, ao avançar nas suas pesquisas, a crítica (talvez, nesse ponto, ferindo suscetibilidades de outras suas iguais mais ferrenhas e herméticas) chega mesmo a “admitir”, segundo suas palavras (1991, p.213), que tais características [...] não se restringiam aos textos produzidos [somente] pelas mulheres: Marcel Proust também possuía essa enunciação, algum Guimarães Rosa em certos momentos ‘falava’ nessa dicção e mesmo James Joyce, quando tomado completamente pela magia e pelo excesso da linguagem, fazia-se ouvir assim, [também] femininamente. Ora, mas se o feminino, então, não se limita, não se restringe tão somente ao sexo e, por conseguinte, às portadoras desse –as mulheres-, com efeito, algo que há de haver que una tal adjetivo à tal escrita e dê, por 190 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] fim, cabo a tal dilema. O “tema” sobre o qual tratam, claro, referente e constante sobre as mulheres e sobre a sua existência e presença literárias, pensaríamos alguns. Uma vez mais, Lúcia Castello Branco (1991, p.212) nos frustra ao afirmar que, assim como antes comentamos que “a escrita está para além do sexo”, segundo sua expressão, de mesmo modo, está essa feminilidade para além do significado. Ainda com ela: [...] quero dizer que algo além dos temas eleitos por essas mulheres terminava por distinguir sua escrita. [E que] a partir da leitura de um bom número de textos de autoria feminina, pude verificar que eles se distinguiam dos demais por possuírem um tom, uma dicção, um ritmo, uma respiração próprios (grifo nosso). Portanto, dentro da dicotomia clássica entre “forma x conteúdo”, o texto marcadamente com características de literatura feminina estaria mais preocupado com a sua forma, em primeiro lugar, e menos com o seu tema. Se há protagonismo feminino; se a figura da mulher é representada e como ela é representada, isso não é o mais relevante. O que, sim, é relevante, segundo a pesquisadora, é “o percurso pela materialidade da palavra, que procura fazer do signo ‘a própria coisa’ e não uma representação da coisa” (Castello Branco, 1991, p.217). O que, de outra feita, equivale dizer que a escritura feminina busca primeiramente sua “presentificação” ou “apresentação” ao passo que a outra escritura (masculina), já assente que é no cânone, está mais às voltas com a “representação”. Observemos aí que o prefixo re que semantiza “de novo”, “reiteração” coaduna perfeitamente para reforçar o conceito que ele mesmo afirma: “representação”; apresentar, pois, o que já foi apresentado ou consolidar a presença do que já foi eleito como “presente”, como em um jogo de espelhos. No caso, da escritura feminina, insistimos, esta se volta antes para a “apresentação” ou “presentificação” visto que esse é o estágio primitivo e anterior em que se assenta o seu alicerce; passagem essa que a literatura masculina, convencional e canônica já não precisa mais. A literatura feminina insiste no significante para ter acesso à voz; a outra, dele se distancia ou pode dele prescindir para fixar-se no significado. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 191 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Estabelecidas algumas características, nesse primeiro momento, em torno o que seria uma literatura feminina e para que (e para quem) o feminino se volta e se espelha, nos ocuparemos, na seqüência, de lê-la ou de espelhá-la por meio de uma escritora muito importante para a literatura hispano-americana, Josefina Plá. 2. Josefina no coração da América: seu labor artístico e as letras paraguaias Maria Josefina Teodora Plá Guerra Galvany nasceu na Espanha, a 09 de novembro de 1902, em Fuerteventura, nas Ilhas Canárias. No entanto, sobre a data de seu nascimento existem divergências. Alguns escritos (sobretudo os pessoais e autobiográficos) apontam o ano de 1909 o que o amigo José Vicente Peiró Barco explica quando de sua visita à casa da escritora, em Assunção, em agosto de 1995. Para ele, de fato, Josefina nasceu em 1902 o que teria sido confirmado, mais tarde, pelas autoridades locais de sua cidade natal. A outra data “oficiosa”, 1909, (e que perdurou até sua morte mais de noventa anos depois e que consta dos documentos) teria surgido por conta de seu capricho e vaidade. Diriam alguns, abalizados pelo senso comum, portanto, “tão ao gosto das mulheres”. Assim como sucedia com outras mulheres no início do século XX, Josefina Plá também não pôde freqüentar a escola regular (território masculino) mas foi educada junto com sua irmã em casa. O que de certo modo lhe ajudou em sua aprendizagem de autodidata. Aos dois anos e meio, muito precoce, já ensaiava suas primeiras leituras como ela mesma o diz (1999, apud Godoy, p.17): “Yo fui una criatura archiprecoz, [...]. A los dos años y medio yo ya deletreaba [...] y a los cuatro años y medio escribí una carta de felicitaciones, por el año nuevo, a mi abuela materna”. Porém, foi somente com seis anos de idade que lê seu primeiro livro, O homem que ri (1869), de Victor Hugo (1802-1885) e quando, furtivamente, adentra a proibida sala de estar/biblioteca paterna e o mundo se lhe abre como que pela primeira vez. Assim como sucedeu antes com Juana Inés de la Cruz, no século XVII do México colonial; 192 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] assim como sucedeu, contemporaneamente, com Virginia Woolf, na Inglaterra vitoriana e com tantas outras. O único estudo formal que adquiriu foi o “bachillerato” e que, no Brasil, corresponderia ao ensino médio. Contudo, aplicada que era, ao mesmo tempo em que terminava a escola, também, fazia o curso de artes plásticas. Nesse curso, conheceu o ceramista paraguaio André Campos de Cervera, também, conhecido pelo pseudônimo de Julián de la Herrería, descendente de espanhóis que era ele. É com ele que, aos dezoito anos de idade, Josefina Plá chega ao Paraguai, em 1927, e, descontadas algumas viagens a Europa e mesmo a América (incluindo, aí, o Brasil), será nesse país que escolheu que viverá toda a sua vida. Em 1998, um ano antes de seu passamento, recebeu a “Nacionalidad Paraguaya Honoraria”, a mais alta comenda outorgada pelo Congresso Nacional do país àqueles que se destacam nas artes e culturas locais. Embora esparsa dentro de alguns hiatos de publicação, sua obra é muito fecunda e diversa. Começou por publicar poesias, ainda na década de 30 (El precio de los sueños, 1937) assim como teatro (Episodios Chaqueños, 1933); mais tarde, nos anos sessenta, inicia a publicação de sua narrativa breve (La mano en la tierra, 1963). Escreve, também, romance, Alguien muere en San Onofre de Cuaremí, de 1984. Como ativista, agitadora cultural e jornalista, de mesmo modo, publicou ensaios como “Algunas mujeres de la Conquista”, “Los británicos en el Paraguay” e, especificamente, sobre a preocupação com o lugar destinado às mulheres escreveu “Contribuciones y conquistas en la poesía paraguaya”. Esta obra ensaística está compilada no volume Obras completas: história cultural, de 1992. Com Hérib Campos Cervera, o elegíaco poeta do exílio paraguaio, e Augusto Roa Bastos, que sempre se declarou discípulo de Josefina Plá, formaram a célebre tríade da chamada “Generación de los 40”, na literatura daquele país. Tal amizade permaneceria até o fim de sua vida seja no mundo real seja no mundo das palavras. Entretanto, mais uma vez, na contramão de seus contemporâneos ela não se exilou. Ao contrário, conheceu o “insílio” e a relação sempre Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 193 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] conflituosa com a ditadura de Alfredo Stroessner (1955-1989). Sempre enfrentativa, a artista prefere permanecer e resistir a abandonar o seu país. Hoje, verificamos que ela tinha razão já que veria a caída do general e o renascimento da frágil democracia latino-americana, sempre sensível às intempéries políticas, sobrevivendo uma década ainda. A obra de Josefina Plá, não seria exagerada a afirmação, em suas mais de sete décadas de produção artística, está totalmente identificada com a cultura paraguaia do século XX, de maneira estrita, assim como com a cultura da América hispânica, de modo geral. De acordo com Rodríguez-Alcalá (1971, p.327), “hoy se puede decir con seguridad que la poesía, el teatro, las artes plásticas, la vida académica de Paraguay no se explican sin Plá, y que gran parte de su obra sería inimaginable fuera del contexto de Paraguay”. No próximo tópico, comentaremos algumas de suas poesias dentro de um possível panorama estético que contemple, também, a sua visão acerca do feminino. 3. Uma tempestade de palavras: possíveis leituras sobre a sua poesia Comumente os críticos (majoritariamente homens, vale lembrar) tem associado a produção lírica de Josefina Plá (e mesmo a narrativa, a teatral, a ensaística) tão somente ao terreno sempre fugidio e instável da “reflexão existencial” ou do “devastadoramente elegíaca” ou, ainda, do “monotemática e monocórdica”, “outonal”, dentre tantos outros clichês que mais facilmente agrupam que necessariamente ajudam a explicar. Todavia, afora os juízos de valor sobe a sua recorrente temática feminina “interior” (e os pré-conceitos acima aludidos são bem representativos de certa parte da crítica), Lúcia Castello Branco (1989, p. 95), acerca da possível explicação para al associação simbiótica de “textomulher-texto”, nos lembra que: Na literatura, o resultado não poderia ter sido outro. É no Romantismo que as mulheres transformam-se no grande público leitor e são as musas românticas que vão desenhar a figura (e o figurino) das donzelas e senhoras da época. Portadoras deste legítimo ‘back-ground’, e com 194 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] raras oportunidades de caminhar um pouco além, é natural que grande parte de nossas escritoras tenham continuado (e continuem até hoje) no Romantismo. Se por um lado não é dona de uma produção lírica extensa (seus poemas não chegam a 300), caso levemos em conta seus mais setenta anos de vida artística e cultural, por outro lado sua obra é cíclica e reiterante. Basta que lembremos que ela estreou com o gênero na década de 30, mais precisamente em 1934, e encerrou sua vida (também artística) com poesia, na década de 90, com Inéditos y esparsos, de 1996, três anos antes de seu desaparecimento. Josefina Plá, ademais desse tom “romântico” tão caro às escritoras, nos parece que se preocupou, também, em seus textos com outros temas como a dor humana de se estar vivo e só, assim como o não-lugar do homem contemporâneo. Porém, com igual interesse, se debruçou sobre a preocupação com a construção de sua própria arte enquanto ofício de escritora, portanto, preocupação metalingüística, meta textual e de meta vida. Talvez, ainda que de modo arriscado, pudéssemos afirmar que a escritora pensa, cria a arte como transfiguração da dor em beleza. Contudo, não podemos nos esquecer de sua participação enquanto intelectual que movimentou e esteve no “olho do furacão” dos acontecimentos além (Europa) e aquém-mar (Paraguai), em quase um século de existência. Se Josefina foi Eva, por exemplo, com a preocupação existencial, ontológica e meta ficcional em sua poesia, por vezes, também, foi Lilith em algumas passagens em que disserta e poetiza sobre a mulher. Admitindo, junto com Vera Paiva (1993, p.56), simbolicamente, que: Eva é o protótipo da mulher moldada pelo Deus judaico-cristão, que sendo Pai e Todo-Poderoso quis estabelecer um padrão eterno de conduta para [essa] mulher. Propõe a lei dessa tradição que a mulher: seja mulher de algum ADÃO, porque foi criada de sua costela (pedaço do homem e não criação independente de Deus). [...] E que sua posição social esteja atrelada à responsabilidade pela preservação do casamento e pela felicidade do lar. E que, portanto, contrariamente (1993, p.59): Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 195 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Lilith [represente] o mito da exclusão da primeira mulher de Adão, igual a ele e não pedaço de sua costela, que se reivindica igual para exercer seu prazer na relação com o homem, que quer manter a relação de igual para igual com o outro-diferente. É nessa bifurcação, nesse embricamento, portanto, que se pretende essa nossa análise a partir da escolha de quatro de seus poemas, a saber: “Piedad por las palabras”, “Buscar con la palabra”, “Oficio de mujer” e, por fim, “La casada infiel”. Tais poesias perpassam e ilustram dois momentos de sua escrita: a maturidade artística nos anos sessenta e a consagração internacional, já próxima ao fim, nos anos oitenta. Tanto em “Piedad por las palabras” quanto em “Buscar con la palabra”, ainda que distantes no tempo de sua escrita e recepção, a autora tratará do tema meta ficcional. Claro está que a preferência pela temática não é exclusividade da artista paraguaia, outros, também, dela se valeram e se valem até hoje. No entanto, no caso específico de Josefina Plá, aqui, os poemas temáticos adquirem outras nuanças. Vamos aos poemas: Piedad por las palabras Piedad por las palabras penitentes que mueren contra la almohada las palabras caídas como piedras en el montón que cuenta los pecados las palabras ahogadas como recién nacido del cual la madre se avergüenza las palabras mendigas que jamás han tenido un vestido decente para salir al domingo de la vida Y aún por la palabra amordazada que un traje de cemento hundió en aguas oscuras la palabra final sin sílabas y sin destinatarios (de Invención de la muerte, 1965) 196 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] Buscar con la palabra Buscar con la palabra lo que aún no tiene nombre más allá de la lágrima el canto el estertor La rosa de la luz sin rosal conocido pero cuyas espinas con constante escozor y por senderos hechos de arco iris quebrados marchar hacia esa aurora que nunca tendrá sol (Porque es la consigna marchar sin saber dónde O quizá ir es volver hacia el mismo mojón…) …Y si alguna vez tocas una orilla del manto será para saber que es sólo una ilusión Tal vez roces la puerta Tal vez sientas el hálito y tal vez a Dios mismo Mas las palabras no (de La llama y la arena, 1985) No primeiro poema, afora a aliteração suscitada pelos vocábulos “piedad” (v.1), “palabras” (v.1), “penitentes” (v.1), “piedras” (v.3) e “pecados” (v.4), da estrofe inicial, tão ao gosto do que identificamos como marca do feminino e de sua dicção próprios, há outro dado, agora mais metafórico, de importante destaque. Separada em dois campos, duas estrofes, que se complementam está a poesia. No primeiro deles, temos o termo “penitentes” (v.1); no segundo campo, temos a palavra “amordazada” (v.9). De um lado sabemos “penitentes” (v.1) são os que sofrem, os que penam mas que, ainda assim, lutam, perseveram; de outro, igualmente, podemos inferir que o adjetivo “amordazada” (v.9) diz respeito ao resultado final dessa luta inglória que venceu a palavra; amordaçando-a. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 197 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Podemos, também, ler o texto como a transfiguração poética, como a personificação da (e na) própria situação da mulher ou, em última instância e mais abrangente, do próprio ser marginalizado. Percebemos que esses seres-palavras são “penitentes” (v.1), que eles “morrem contra o travesseiro” (v.2) e “caem como pedras (v.3) no monte que conta os pecados” (v.4). Ora, não é necessário deitar muitas linhas ou abstrair para associar tal verso com o texto bíblico (e misógino) e o lugar que este destina às mulheres desde a encomendada Eva-mítica e sua relação com o pecado original. Na mesma linha de raciocínio, ainda, podemos ver, nos versos posteriores, tanto “a mãe que se envergonha” (v.6) como também “as palavras mendigas que jamais tiveram um vestido decente (v.7) para sair no domingo da vida” (v.8). Todos os versos, em diferentes graus, pouco a pouco, literariamente personificam a mulher e a amalgama em poesia. E, de modo restrito, na poesia de autoria feminina. Podemos dizer que no texto, paralelamente correndo, a mulher está para a poesia da mesma maneira que a fala está para a palavra. Dito de outro modo, se “mulher/fala” que pertencem ao capo semântico do real e do concreto são indissociáveis, “poesia/palavra” que pertencem ao campo semântico do irreal e do abstrato, por sua vez, também, se associam por fazer contraste ao primeiro bloco. Ainda, por fim, há que se comentar a última estrofe que traz as palavras “amordazada” (v.9) e, depois, “la palabra final sin sílabas y sin destinatarios” (v.11). Em que pese o dado histórico e o contexto da ditadura militar porque passava o Paraguai à época da escrita do poema (o que, em certa maneira, poderia explicar a metáfora aludida), não podemos nos esquecer do texto de Lúcia Castelo Branco, já trazido à baila. Essas palavras amordaçadas e, ao final, -pior- sem sílabas e sem destinatários, coadunam com a dicção feminina de que fala a estudiosa e resultam em um “diálogo de surdo/mudos”, segundo sua expressão. Já no segundo poema, “Buscar con la palabra”, percebemos que desde a escolha/intromissão da preposição não foi algo aleatório. O eulírico não procura o objeto (o que seria óbvio, comum e esperado), senão procura o eu-lírico “com” o objeto; cria, deste modo, não somente um 198 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] jogo de palavras mas, por isso mesmo, modifica e desestabiliza todo o discurso que se segue. Agora, dividido em três partes, o poema ao escolher “procurar com a palavra” “aquilo que ainda não tem nome” (v.1), ao escolher “além da lágrima o canto, a respiração difícil” (v.2), ao escolher “a rosa com ardência” (v.4), de modo gradual, trata justamente do lugar desta literatura singular escrita por mulheres. Lembremo-nos da distinção de que nos fala Lúcia Castello Branco (1989) entre os pontos de vistas da “representação” (característica masculina) e o da “apresentação” da palavra. Ao esgotar, portanto, o significante busca o eu-lírico o seu significado. Esta, sim, uma característica de autoria feminina. Procurar, pois, o que ainda não tem nome é exemplo desta “presentificação”; é marca desse feminino que fala. Procurar “além da lágrima o canto, a respiração difícil” (v.2), nos rememora, claro, também a dicção feminina, difícil; faz-nos lembrar a linguagem materna, linguagem onomatopéica. Mas, talvez, o último verso da primeira estrofe seja mesmo o paradigmático dessa sôfrega busca pelo lugar da literatura de autoria feminina, uma vez que, segundo o eu-lírico, “é procurar marchar em direção a essa aurora que nunca terá sol” (v.6). A segunda estrofe, breve somente com dois versos, igualmente é simbólica nessa leitura da busca por um lugar da literatura feminina. Se a primeira estrofe se abre com verbos no infinitivo “buscar” (v.1) e no indicativo “tem” (v.1), “terá” (v.6), certeiros, seguros, sobre o quê é esse procurar e a terceira estrofe, logo comentaremos, trata de um conselho, de uma possibilidade “se” (v.9), com reticências e com verbos no subjuntivo “roce” (v.11), “sinta” (v.11), portanto, em um tempo do porvir, da dúvida, a segunda estrofe não. No seu prognóstico um pouco melancólico, o eu-lírico entre parênteses, como se tapasse a própria boca e falasse oficiosamente contra o regime oficial e dono do discurso, se vale de um “porque” (v.7) explicativo que nos diz que “a ordem é marchar sem saber para aonde ir” (v.7) ou, na pior das hipóteses, “é voltar para o mesmo ponto” (v.8). Em outras palavras, o marco ordeiro, regular, canônico da literatura oficial. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 199 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Contudo, na terceira estrofe, já liberto e dono de seu discurso, o eu-lírico suspende o pensamento e aventa para algumas possibilidades. Nesse enfrentamento com o status quo, com o establishment, de modo condescendente, ele -eu-lírico- considera uma trégua, uma abertura. Ao dizer ao oponente “se ele alguma vez tocar a franja do manto” (v.9) equivale afirmar, metaforicamente, que se alguma vez a literatura oficial (ocidental, eurocêntrica, masculina, branca, heterocêntrica, narrativa) se ocupar, considerar a literatura oficiosa (e, aí, incluímos a literatura de autoria feminina), quem sabe, de três modos (diferentes) possa ela, a literatura não-oficial, se relacionar com a anterior. Seja roçando “a porta” (v.11), seja “sentindo o hálito” (v.11), isto é, até mesmo “sentindo Deus” (v.12). Dito de outro modo, a relação pode se dar em três níveis: de modo superficial, de modo intermediário ou de modo pleno. Todavia, ainda que em um momento de trégua, o eu-lírico sempre combativo arremata no último verso “mas as palavras você não roçará” (v.13). Mesmo que a literatura oficial (masculina), predominantemente representativa, e “para fora”, considere esta outra literatura (de autoria feminina), para qual pleiteamos um lugar, segundo o eu-lírico, ainda assim, ela não tocará na palavra, objeto de desejo e fim último do fazer literário. Isso cabe apenas àqueles que cosem “para dentro”, para tomar de empréstimo uma expressão de Clarice Lispector ao falar de sua literatura; àqueles que se presentificam. Nesse segundo bloco de poemas, “Oficio de mujer” e “La casada infiel”, posteriores àqueles dois primeiros (em que a questão da representação do feminino se apresentava, se presentificava meta-ficcionalmente), encontramos, conforme já anotamos antes, um eu-lírico feminino ora intermediário (que brinca, por exemplo, de “esconde-esconde”), como em “Oficio de mujer” ora mais incisivo como em “La casada infiel”. Ambos, no entanto, mais próximos e travestidos, imbuídos do espírito, do ideal de uma outra mulher, da mulher-Lilith. Vejamos os poemas: Oficio de mujer Oficio de mujer. Juego a escondite: 200 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] En donde estoy nunca vio nadie nada Oficio de mujer. Espigadora De campos bajo un sol que pronto acaba. Custodia de los cántaros. Avivo los rescoldos en la dura mañana, Aliso los pañales como pétalos Y reenciendo las lámparas. Oficio de mujer. Puente entre muertes. Rosal despetalado con cada alba. …………………. Oficio de mujer. Manos moviéndose sin pausa como hojas que se retratan arañando el cielo para caer al suelo y ser pisadas. Manos sin pausa y sin descanso sellando itinerarios, tibios mapas. En el vientre un camino. En la mirada Tremolando al viento el cartel roto de huérfana posada. (de La llama y la arena, 1985) La casada infiel Y yo que me la llevé al río… García Lorca La casada infiel viene en busca de los juncos pisando zarzamoras y espinos y retamas Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 201 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] Mil noches de San Juan con sus incendios truncos le trazan horizonte de agonizantes llamas Busca en el hueco en el limo donde plantó su pelo el hueco que fue molde negado a las estrellas En la ribera alerta se agazapa el recelo Su cómplice alfabeto le rehúsan las huellas No palpitan faroles, los grillos no se encienden Los lirios han perdido su duelo con el viento (Los peces de sus muslos se fueron ya río abajo) Inmóviles los juncos su aguja al cielo tienden El agua arrastra el último menguante soñoliento y en la vieja colina cicatrizó el atajo (de La llama y la arena, 1985) Em “Oficio de mujer”, o eu-lírico, supomos que dividido, tanto está em dúvida, pela alusão que faz à brincadeira infantil “esconde-esconde” (v.2), quanto se coloca “num lugar onde ninguém nunca viu nada” (v.3). Não viu porque não prestou atenção e não viu porque ele ora se escondia ora se deixava mostrar. Nessa duplicação de papéis, por vezes, sejam eles mais voltados para o que se convencionou culturalmente de catalogar como masculino, o eu-lírico e sujeito do poema se coloca como em “espigadora” (v.5), isto é, aquela que trabalha a terra. Por vezes, também, os papéis se voltam para o que pensamos ser tarefa do feminino. Com um papel coadjuvante, na fábula do poema, o eu-lírico se ocupa, também, da “custódia dos cântaros” (v.7), possivelmente ao trazer a água para o seu senhor que (este sim) fecunda a terra. Seguindo adiante nessa bifurcação de lugares, o eu-lírico, ainda, se nos mostra quer viril “pisando brasas na dura manhã” (v.8) quer de modo tão maternal “alisando, cuidando de fraldas como se pétalas” (v.9) fossem. Nesse jogo de “mostrar-se”/ “esconder-se” ora de modo feminino 202 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 Conversa entre mulheres [189-204] ora de modo masculino, no entanto, o eu-lírico diz que, na verdade, em um trabalho hercúleo (ou mais, diríamos até prometéico), se trata antes o ofício de “arranhar” (v.19) o céu, conforme ele deixa claro na terceira estrofe. Ora, sabemos que arranhar se aproxima do tocar levemente a ponto de não corromper no todo, senão macular o objeto. Por fim, chegamos à superação total do eu-lírico nesse percurso, já comentado antes, vale lembrar, iniciado ficcionalmente com a personificação da mulher com a poesia (“Piedad por las palabras”); passando, ainda, pelo universo conciliatório da mulher-Eva na sua preocupação com o lugar da literatura de autoria feminina (“Buscar con la palabra”); avançando na direção do ideal da mulher-Lilith, com a intermediação/preparação do feminino, em (“Oficio de mujer”) para terminar, finalmente, com a belíssima releitura paródica e crítica de “La casada infiel”. Não obstante um espaço de tempo de quase sessenta anos, se nos lembrarmos que o poeta andaluz Federico García Lorca (1898-1936) publicou sua “La casada infiel” dentro do volume Romancero gitano, de 1928, a também espanhola Josefina Plá deu continuidade no seu La llama y la arena (1985), de outro modo, às deliciosas aventuras eróticas da “donzela que tinha marido”. Entretanto, Plá constrói a inversão paródica do conhecido texto lorquiano e consegue, talvez, um outro postulado para essa “nova” mulher, para essa nova representação do feminino que, aí, reside dentro dessa nova ordem por ela proposta. Se não a subverte no título (e muito sabiamente para cheguemos desavisados ao texto, sem desconfiarmos de nada), ela o faz na forma uma vez que presenteia à sua infiel (anti) heroína um soneto. Lorca preferiu as formas populares tão ao gosto e normas do “romanceiro” que se pretendia laudatório ao povo cigano, objeto de sua homenagem. García Lorca gasta cinqüenta e cinco versos para nos contar do encontro amoroso entre essa mulher espanhola e branca e esse homem cigano de tez morena; Josefina Plá com quatorze versos a redime, dando-lhe voz para que ela mesma, isto é, o eu-lírico o faça. Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 203 Márcio Antonio de Souza Maciel [189-204] No texto de Plá a mulher não é objeto, metade passiva da relação como em Lorca (“Yo me quité la corbata/Ella se quitó el vestido”) mas sujeito e agente ativo e provocador dessa mudança que “busca en el hueco en el limo donde plantó su pelo” (v.5). Lorca, para ilustrarmos outra diferença, centra o protagonismo cênico no seu viril cigano, por exemplo, quando diz que “Pasadas las zarzamoras/ Los juncos y los espinos/Bajo su mata de pelo/Hice un hoyo sobre el limo” ao que o feminino de Josefina Plá subverte. Na poesia da escritora, é a mulher quem toma a iniciativa já que “vem à procura dos fálicos juncos” (v.1). É ela, ainda, a mulher, quem “pisa as amoras, os espinhos e os arbustos” (v.2). Temos de um lado “junco” (v.1), “espinhos” (v.2), “arbustos” (v.2), “São João” (v.3), “troncos” (v.3), “cúmplice” (v.8), “faróis” (v.9), “grilos” (v.9), “lírios” (v.10), “peixes” (v.11), “agulha” (v.12), “minguante” (v.13) e “colina” (v.14) que podem ser associados ao universo masculino. Ainda que esses estejam em maior número, no poema, no entanto, são signos suplantados pelos que marcam a feminilidade, como “casada” (v.1), “amoras” (v.2), “chamas” (v.4), “vazio” (v.5), “limo” (v.5), “cabelo” (v.5), “estrelas” (v.6), “margem” (v.7), “pegadas” (v.8), “rio” (v.11), “água” (v.13) e “atalho” (v.14). Para concluir, uma vez mais, lembramos que coerentemente com esse momento de apogeu da mulher-Lilith o que vemos no texto é um mundo em crise. Um mundo bipolar, maniqueísta em que o masculino tem que se opor ao feminino que tão somente é a “ausência” daquele sexo (gênero) originário. Porém, dessa feita, há a inversão e o protagonismo cênico é o do feminino. De uma outra maneira, em resumo, é um mundo em que os “lírios perderam seu poder de dor com o vento”; é um mundo, finalmente, em que “os peixes tão viris de suas pernas já desceram rio abaixo”. 4. Últimas palavras A partir da leitura da obra poética da simultânea espanhola/ paraguaia Josefina Plá, podemos pontuar algumas observações. Muito além dos recorrentes adjetivos de que se trata de uma poesia de tom maciçamente elegíaco, de tom didático ou professoral ou nostálgico, podemos, sim, sublinhar outras cores. 204 Papéis, Campo Grande, MS, v.13, n.25, jan./jun. 2009 A escritora, antes, também, se preocupou com sua condição de artista e intelectual influente assim como não se furtou de tão modernamente reler as suas “amizades literárias”. No entanto, talvez, o mais importante foi a sua consciência enquanto mulher sobre a questão do feminino e o lugar que a este é destinado. Leitora e contemporânea da inglesa Virgínia Woolf, ainda que “insilada” sua poesia estivesse no, igualmente, “insilado” Paraguai, Josefina conseguiu transcender as fronteiras. REFERÊNCIAS CASTELLO BRANCO, L.; BRANDÃO, R.S. A mulher escrita. Rio de Janeiro: LTC/Casa-Maria, 1989. CASTELLO BRANCO, L. Para além do sexo da escrita. In: Anais do IV Seminário Nacional Mulher e Literatura. Niterói: UFF/ABRALIC, 1991. p.211-221. GARCÍA LORCA, F. Obra poética completa. Edição Bilíngüe. Brasília/São Paulo: Editora da UNB/Martins Fontes, 1989. GODOY, M. Josefina Plá. Asunción: Editorial Don Bosco, 1999. PAIVA, V. Eva, Maria, Lilith. Purezas e impurezas. In: Evas, Marias, Liliths…às voltas do feminino. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1993. p.53-76. PLÁ, J. Poesías completas. Asunción: Editorial El lector, 1996. RODRÍGUEZ ALCALÁ, H. Historia de la Literatura Paraguaya. Asunción: Editorial Comuneros, 1971. Márcio Antonio de Souza Maciel é docente do curso de Letras da UEMS. Projeto Editorial e Normas para Publicação Projeto editorial PAPÉIS: Revista do Programa de Pós-graduação em Estudos de Linguagens tem como objetivo a divulgação de ensaios inéditos, resenhas, entrevistas, elaborados por professores, pesquisadores e estudantes de pós-graduação, voltados para a grande área de Letras, Lingüística e Artes, mais especificamente para as linhas de pesquisa do Programa, e que apresentem contribuições relevantes para a ampliação e o aprofundamento do debate teórico, da análise de questões estéticas e culturais. Os trabalhos que atendam à linha editorial da revista são submetidos ao conselho editorial e encaminhados para análise por dois pareceristas ad hoc. A partir de 2006, ano de implantação do Programa de Pós-Graduação - Mestrado em Estudos de Linguagens, a revista Papéis aceita contribuições com a seguinte temática: As edições de número par se dedicam aos estudos da literatura e as de número ímpar, aos estudos lingüísticos e de semiótica. Para os estudos literários, aceitam-se artigos sobre: Poéticas modernas e contemporâneas, em abordagens individuais ou interrelacionadas; comparações entre objetos de linguagens diferentes (artes visuais, artes plásticas, música, por exemplo); poesia ou narrativa. Literatura e memória cultural, compreendendo o estudo de textos literários em suas relações com outros textos, tratando as questões memorialistas como manifestações de uma dada cultura. Para os estudos lingüísticos e de semiótica, aceitam-se artigos sobre: Constituição do saber lingüístico: estudos relativos às várias dimensões do saber lingüístico, tendo a língua como complexo fenômeno de natureza sociocultural e histórica. Produção de sentido no texto/discurso: estudos sobre os procedimentos de organização textual, as variáveis sócio-históricas ou condições de produção que engendram o sentido do discurso em relação ao contexto. Normas para publicação O artigo deve ter extensão máxima, preferencialmente, de quinze laudas e vir acompanhado de resumo, contendo de três a cinco palavras-chave, e de abstract e keywords. Formatação: papel A4, margens de 3 cm, fonte Times New Roman, corpo 12, parágrafos justificados, primeira linha com recuo de 0,8 cm, espaçamento 1,5 entre linhas. 206 Estrutura: título alinhado à esquerda na primeira linha, nome do autor alinhado à direita na segunda linha, subtítulos das seções alinhados à esquerda, em negrito e sem recuo de parágrafo. Citações bibliográficas: o sobrenome aparece apenas com a primeira letra em maiúscula - Ex.: Hernandes (2006, p. 30) - ou com todas as letras maiúsculas - Ex: (HERNANDES, 2006, p. 30). Notas: se necessárias, devem constar do rodapé, com corpo 10 e espaçamento simples. Referências bibliográficas: apresentadas ao final do texto, de acordo com as normas da ABNT. (Ver exemplos abaixo). Livro: HERNANDES, Nilton. A mídia e seus truques. São Paulo: Contexto, 2006. Ensaio em periódico: NOLASCO, Edgar César. A pobreza é feia e promíscua. Revista Cerrados, Brasília, n. 21, p. 47-59, 2006. Capítulo de livro: SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cultural em ritmo latino. In: MARGATO, Izabel & GOMES, Renato Cordeiro (orgs.) Literatura/Política/Cultura. (19942004). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005, p. 239-252. Documentos eletrônicos: CAMPOS, Haroldo de. Uma leminskiada barrocodelica. Disponível em: www.planeta.terra.com.br/arte/PopBox/Kamiquase/ensaios.htm. Acesso em 08 mai. 2007. Os autores deverão encaminhar, separadamente, sua identificação (nome do artigo, nome do autor, instituição de vínculo, cargo, últimas publicações, etc) em texto que não ultrapasse 6 linhas; endereço, telefones para contato e e-mail. Envio dos originais: os textos devem ser enviados por e-mail, em dois arquivos diferentes; o primeiro contendo identificação (nome, função, instituição e endereço); o segundo, o texto sem identificação de autoria. 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