Freud hoje

Transcrição

Freud hoje
Ano IV - número 15 - Março / Abril / Maio 2006
Freud hoje
Fábio Landa discute rumos da psicanálise
nos 150 anos de seu criador
EDITORIAL
O século da psicanálise
Conselho Editorial
Ernesto Strauss, Flavio Mendes Bitelman, Luis S. Krausz,
Michael Pinkuss, Raul Meyer, Yael Steiner
Publisher: Flavio Mendes Bitelman
Editor: Luis S. Krausz
Direção de arte: Iaara Rosenthal
Diretora de Relações Institucionais: Ana Feffer
Executivo do Centro da Cultura Judaica: Giselle Tidei
Administração: Adriane Oliveira
Circulação: BrandMember
Distribuição: Door to Door
Gráfica: Ipsis
Tiragem: 10.000 exemplares
Colaboraram nesta edição:
Andrea Lombardi, Adriana Kanzepolsky, Avraham Milgram
(Jerusalém), Bertrand Costilhes (ilustração), Cláudia
Altschüller, Dov Bigio, Enrique Mandelbaum, Graciela Karmann
(revisão) José Arthur Gianotti, Klaus Billand (Viena), Leslie
Susser (Jerusalém), Luis Dolhnikoff, Marcelo Lerner (fotografia),
Marco Frenette, Marleine Cohen, Moacir Amâncio, Monica
Nudelman Kalili (ilustração), Nahum Sirotsky (Tel Aviv),
Samuel Feldberg, Susana Kampf Lages
Foto da capa: Hulton-Deutsch Collection/Corbis/Stock Photos
Impresso em papel Couché Reflex Matte 95 g/m2 (miolo) e
150 g/m2 (capa) da Cia. Suzano, produzido com recursos
renováveis. Cada árvore utilizada foi plantada para este fim
As matérias assinadas não necessariamente refletem a
opinião da Revista 18 ou do Centro da Cultura Judaica
Centro da Cultura Judaica – Casa de Cultura de Israel
Rua Oscar Freire, 2500 São Paulo CEP 05409-012
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Na lista dos nomes que mais influenciaram os rumos da civilização ocidental nos últimos 100 anos, o de Sigmund Freud
certamente ocupa lugar de destaque. O criador da psicanálise,
cujo 150º aniversário se comemora no próximo dia 6 de maio,
inaugurou uma nova maneira de compreender o ser humano –
longe dos dogmas religiosos tanto quanto da febre da razão
voltada para a produção, que se abateu, como uma epidemia,
sobre a Europa (e sobre o restante do mundo ocidental) a partir
do século 19.
A complexidade do ser humano, o conceito de consciência
individual e a noção de profundidade na vida psíquica foram
temas centrais de seus estudos e de sua prática psicanalítica, e
Freud deixou uma marca indelével sobre as humanidades de
um modo geral, influenciando campos tão diversos como a
antropologia, a educação, a arte e a literatura.
Assim, esta edição da Revista 18 dedica dez de suas páginas a
uma longa conversa com Fábio Landa, psicanalista e médico
brasileiro há quase duas décadas radicado em Paris, onde se
dedica ao ensino e à clínica, e um dos mais lúcidos representantes do pensamento psicanalítico contemporâneo. Landa analisa os rumos da psicanálise hoje, sempre tendo em vista, como
Freud, sua ligação inextricável com as artes, com a estética, com
a literatura e com a filosofia. E conclui que, num mundo onde
outra vez os fanatismos – da religião tanto quanto das políticas
laicas de opressão – ameaçam, de maneira cada vez mais avassaladora, a consciência e a liberdade individuais, a psicanálise
preserva um espaço laico de reflexão e de lucidez.
Freud é representante de um pensamento judaico europeu,
de molde cosmopolita, tributário da tradição do humanismo, do
pensamento científico e também do judaísmo. E as implicações
políticas de seu pensamento estão vinculadas a ideais de democracia e de pacifismo que se tornam a cada tanto mais voláteis e
ilusórios no mundo contemporâneo. A manipulação da
consciência, seja por meio do terror puro e simples, seja por meio
do fanatismo religioso, seja por meio da torrente incessante da
propaganda, está na ordem do dia num mundo em que a retórica da ameaça, da demonização e do ódio ocupam, cada vez mais,
o território do diálogo, do respeito mútuo, da emancipação.
A psicanálise, portanto, é mais atual (e necessária) do que
nunca: um século e meio depois de seu nascimento, Freud
ainda explica.
Luis S. Krausz
SUMÁRIO
ENTREVISTA
40 O mundo nos MUNDOS
DE FRANZ KAFKA
4 RUMOS DA PSICANÁLISE,
aos 150 anos do nascimento
de seu criador
43 Nova antologia visita universo
imortal de PRIMO LEVI
PERISCÓPIO
14 MAHLER BANIDO de
igrejas checas; a imortal
SARAH BERNHARDT,
Hugo Chávez e os judeus...
46 PAUL CELAN, comentado
por Hans-Georg Gadamer
48 A LUCIDEZ DO ENSAIO em coletânea
de Márcio Seligmann-Silva
OPINIÃO
16 JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
e os limites da tolerância
O REPÓRTER
20 UMA NOVA E TERRÍVEL FRONTEIRA
entre o Irã e Israel
22 DESCAMINHOS DA DEMOCRACIA
no Oriente Médio
50 Romance recria
TEMPO DE MAIMÔNIDES
52 GUSTAV MAHLER, de ontem e de hoje
CONTO
54 A HIPÉRBOLE
JUDAICO-MEXICANA
da escritora Margo Glantz
ENSAIO
26 Da impossibilidade de diálogo com o
ABSOLUTISMO ISLÂMICO
ARQUIVO
PERFIL
58 De Lucca a Foz do Iguaçu, a trajetória
de um JUSTO ENTRE AS NAÇÕES
30 MAYANA ZATZ entre os limites
e os horizontes da genética
NA REDE
32 De uvas, raposas e
HISTRIONISMO JUDAICO
62 O JUDAÍSMO CIBERNÉTICO,
na tela do seu computador
LETRAS E ARTES
HUMOR
36 RITUAIS EM BRANCO
E PRETO, por André Douek
64 A ÉTICA DOS SAMURAIS,
em versão judaica
Revista 18 1
CARTAS
Quero cumprimentar os organizadores da Revista 18, da Casa de Cultura
de Israel, que está muitíssimo interessante. Gostei dos artigos, do nível (nem
muito superficial, como a maioria, nem
muito cabeça). Levei comigo no avião
achando que iria dar uma olhada e
deixar lá mesmo, mas, que nada! Trouxe
de volta. Parabéns!
Adriana Jacobsberg - São Paulo, SP
Passando os dias de Carnaval na casa de
campo, em Teresópolis, de uma amiga, tive
a oportunidade de conhecer a Revista 18.
Li-a com o máximo interesse!
Erika Mayer - Rio de Janeiro, RJ
Acabo de receber a Revista 18 nº 14.
Excelente como sempre. Meus parabéns
pela escolha das matérias e o equilíbrio
dos assuntos, tornando a Revista 18 um
verdadeiro must.
Joseph Eskenazi Pernidji - Rio de Janeiro, RJ
Quanta alegria em meu coração ao
receber a Revista 18! Li as matérias e
alegrou-me ver um conteúdo tão diversificado e fundamentado em fatos históricos,
sociais e culturais.
Por gentileza de amigos, tive o prazer
de conhecer a Revista 18, no seu número 14.
Parabéns ! Comedida a entrevista com o
rabino Henry Sobel. Acertada a matéria
de Luis Dolhnikoff. A divulgação do genocídio armênio é importante... e assim vai ...
com bastante variedade, leituras agradáveis, mais profundidade do que extensão,
sem excessos publicitários, fotografias
adequadas... enfim, vale a pena !
Nossos sinceros votos de um Ano
Novo com grandes realizações, e que a
Revista 18, continue honrando e orgulhando a intelectualidade judaica e brasileira, as quais vêm se banhando nos importantes artigos publicados, sem qualquer
censura prévia e com os mais brilhantes
colaboradores. Um grande abraço ao
Conselho Editorial e ao Centro da Cultura
Judaica. Felicidades e sucesso!!!
Joaquim Rohr - São Paulo, SP
Rachel Green, Centro de Memória e Acervo
das Oficinas Culturais da Secretaria de
Estado da Cultura - São Paulo, SP
Em geral, eu não gosto de revistas de
certa orientação segmentária – tipo femininas, juvenis, nordestinas etc. Isto inclui
revistas para psicólogos, sociólogos, que
tragam algo além de notícias específicas,
digo, notícias sobre serviços.
No começo, recebia a Revista 18
como se fosse mais uma. Devagar, fui
sendo seduzida pela oferta de artigos
que realmente me interessam. Não
é apenas questão de concordar ou
discordar. Os temas me interessam.
Continuem, estou curtindo.
Gostaria de agradecer e cumprimentar
pela excelente qualidade da Revista 18!
Sobre a Revista 18 nº 14, devo dizer que
fiquei chocada com a publicação da matéria
“Crônica de uma Guerra de Surdos”, de
Marco Frenette, a propósito de um livro
escrito há dez anos por Norman Finkelstein,
em má hora publicado no Brasil, e que trata
do conflito israelense-palestino. Frenette
alega ter encontrado no livro “clareza e
objetividade do começo ao fim”. Israel e sua
história não podem ser divulgados pela
ótica de autores que acham, a respeito de
Finkelstein e de sua visão deturpada de
sionismo, que “é forçoso admitir que
estamos diante de um autor que busca,
honestamente, descortinar esta justiça”.
Marcelo Maghidman - São Paulo, SP
Irene G. Freudenheim - São Paulo, SP
Anna Verônica Mautner - São Paulo, SP
Noé Darnel Lopes - Salvador, Bahia
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Paranasa Engenharia e Comércio
Petroquímica União
Politeno
Química Fina
REM Indústria e Comércio
Satipel Industrial
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Cláudio Hirschheimer
David Erlich
Eduardo Fischer
Fredric Michael Litto
Gustavo Halbreich
Henri Philippe Reichstul
Israel Grytz
Jacques Sarfatti
Jayme Garfinkel
José Mindlin
Mário Arthur Adler
Mário Fleck
Raul Meyer
Renato Ochman
Ruy Fischer
Samuel Lafer
Saul Olimpico Libman
William Lohn
ENTREVISTA
Arquivo pessoal
O divã, depois de um século
e meio de Freud
Fábio Landa: psicanálise
longe das camisas-deforça que pretendem
isolar, umas das outras,
a psicologia, a estética
e a literatura
4 Revista 18
paulistano Fábio Landa, radicado há quase duas
décadas em Paris, é uma das vozes mais lúcidas
do pensamento psicanalítico contemporâneo.
Médico formado pela Escola Paulista de Medicina,
doutorou-se em psicanálise pela Université Paris VII e
continuou na França para dar seguimento a seus
estudos. Acabou fazendo carreira em Paris: humanista à
moda francesa, que se recusa a vestir as camisas de força
artificiais que separam, em boa parte do universo acadêmico, a psicologia da filosofia e da estética, ele é um
profundo conhecedor da tradição européia do humanismo
judaico, leitor e intérprete de Canetti, Lévinas e Derrida
(e tradutor destes dois últimos), e também um pensador
original, dono de um olhar crítico sobre a realidade
contemporânea, que sempre enxerga o homem dentro do
contexto mais amplo em que vive, nunca se deixando
levar pelos modelos reducionistas que se tornaram um
estereótipo de certo tipo de psicologia. Por recuperar a
O
universalidade do pensamento freudiano, bem como suas
interfaces com as ciências humanas de um modo geral,
Landa é alguém que olha com extrema desconfiança
para a fragmentação e a especialização das ciências em
nosso tempo, cujo discurso, no seu entender, aproxima-se,
de maneira cada vez mais perigosa, da superstição.
Hoje ele atua em Paris como clínico e docente na área
de filosofia, mas é também presença freqüente no Brasil,
onde se dedica a ministrar seminários dirigidos a psicanalistas e também cursos em nível de pós-graduação em
filosofia em diversas universidades (usp, Unicamp etc).
Autor do livro Ensaio sobre a criação teórica em
psicanálise (Editora da Unesp/Fapesp, 1999) e de
numerosos artigos publicados por revistas como Les
Temps Modernes (fundada por J. P. Sartre) e Le Coq
Heron, Landa falou com exclusividade à Revista 18
sobre sua visão do papel da psicanálise e sobre os rumos
da prática psicanalítica no mundo contemporâneo.
Fotos: reprodução
ENTREVISTA
evista 18: 150 anos depois do nascimento de Freud, como o Sr. avalia a
importância de seu pensamento no
mundo contemporâneo ? A validade da
psicanálise freudiana ainda se sustenta?
R
Fábio Landa: Talvez mais do que nunca,
eu diria enfaticamente: sim, 150 anos
depois do nascimento de Freud, no
mundo contemporâneo, a psicanálise não
só é válida como tem um imenso papel a
desempenhar. Justificaria isso dizendo
que, do meu ponto de vista, a psicanálise
hoje talvez seja o último espaço laico,
absolutamente laico, em que algo como
um diálogo, mesmo que seja um diálogo
impossível, como talvez seja todo diálogo,
possa ter lugar. Num mundo com as
determinantes que podemos pressentir,
com espanto e perplexidade, num mundo
em que se observa um ressurgimento
agressivo da atuação das "ideologias", a
psicanálise torna-se mais importante do
que nunca. Hannah Arendt deu um
sentido agora clássico ao termo “ideologias”, destacando que estas têm a
pretensão de explicar tudo, pois consideram que o encadeamento dos eventos
obedece à mesma “lei” que rege o encadeamento de idéias. Talvez se encontre aí a
arrogância dos ideólogos que pretendem
dominar tudo pelo seu pensamento,
pretendendo mesmo controlar seu
próprio pensamento. E hoje essas ideologias voltam a atuar de maneira agressiva por meio de todos os recursos que
conhecemos: o apavoramento de grandes
massas humanas, os meios mais intensos
de propaganda, que impõem um comportamento extremamente primitivo calcado
na violência sem limites. Aquilo que
parecia ter sido solidamente conquistado
não o foi. As “ideologias” totalitárias, o
discurso totalitário com suas ramificações e até mesmo seus núcleos exterminadores e genocidas ressurgem. A mentira
absoluta, de que falava Hannah Arendt,
faz sua reaparição. Então, mais do nunca,
a psicanálise surge como esse espaço antitotalitário. E como esse espaço de diálogo
– possível e comprometido e ao mesmo
tempo impossível – a psicanálise torna-se
alvo, um dos alvos prediletos inclusive, do
desprezo, do pouco caso, da tentativa de
banimento. Este fenômeno é também
fosse um balão de ensaio daquilo que
Página do New York Times, de 1937, com artigo sobre o criador da psicanálise
em seu 80º aniversário: psicanálise como resistência às simplificações
grosseiras e ao materialismo crasso que caracterizam boa parte do século 20
pode vir a ser, do aniquilamento da
opinião pessoal, da realidade interna das
pessoas em prol do que Primo Levi
apontava como uma sociedade governada
pelos privilégios obtidos pela violência e
mantidos pela violência. A ambição
totalitária tende a apagar as fronteiras que
conhecemos como esquerda ou direita
numa busca aflita por privilégios. Hoje
em dia, os discursos totalitários, a
ambição totalitária, são mais do que
nunca presentes, e portanto, mais do
nunca, eu tenderia a afirmar a validade, a
atualidade e sobretudo a necessidade do
pensamento psicanalítico.
18: O projeto teórico de Freud explica
a psique inconsciente como um
Revista 18 5
ENTREVISTA
repositório de conteúdos reprimidos
por autoridades familiares e/ou
culturais. A visão de inconsciente de
Freud também toma como pressuposto
que o irracional no homem pode ser
explicado pela razão. Onde estão os
limites desse projeto de desencantamento da psique ?
FL: Talvez devêssemos discutir alguns
dos pressupostos dessa pergunta antes
de chegarmos ao desencantamento da
psique. O projeto teórico de Freud a
respeito do inconsciente é muito mais
complicado que um mero repositório de
conteúdos reprimidos. Alguns leitores
críticos da psicanálise, como Canetti ou
Lévinas, apontavam justamente, na psicanálise, essa aparência de uma certa mecânica de emoções, como se eu pudesse
consertar minhas emoções. Como dizia
Canetti, numa piada muito cruel, é como
se eu fosse ao psicanalista com o mesmo
estado de espírito com que levo ao
mecânico meu automóvel, como se a
psicanálise se propusesse a ser uma
mecânica de emoções, uma arquitetura de
articulações, em que alguém pudesse
mexê-las, remexê-las ou normalizá-las.
Mas o inconsciente freudiano não é
simples memória reprimida. É isso
também, mas não apenas. Freud não
concebeu o inconsciente como um mero
depositório, uma espécie de quintal onde
se jogam coisas que não servem ou coisas
que foram maceradas ou coisas que
foram relegadas para a periferia de si. O
valor da noção de inconsciente deve-se,
justamente, ao fato de se ter de considerálo como se habitasse em mim um estrangeiro que está o tempo todo pedindo, exigindo, implorando, impondo, construindo
em mim uma atitude hospitaleira, isto é,
um estrangeiro que pede hospitalidade.
Examinemos, por exemplo, a manifestação onírica: todas as noites sonhamos
e o sonho aparece como a linguagem de
um território estranho, numa língua
estranha, da qual não conhecemos as
palavras nem a gramática, e menos ainda
a estrutura etimológica. Não conhecemos
nada dessa língua, nada desse território e
no entanto sabemos que há algo nos
dizendo alguma coisa, alguém nos dizendo
alguma coisa, e somos obrigados a fazer
um esforço de tradução de um lugar para
6 Revista 18
outro, de uma língua para outra, de um
registro afetivo a outro registro afetivo.
Esse estrangeiro, que está sempre incomodando, me obriga a ter uma orelha para
escutar uma língua que eu não conheço,
ele me força a criar uma língua e faz com
que eu lhe dê ouvidos porque insiste em
falar comigo, insiste em obter uma resposta
de mim. E esse estrangeiro, esse território
estranho, demanda de mim, inclusive,
algo que eu não tenho, quer que eu lhe
diga “fique à vontade”, como quando a
Alguns leitores críticos
da psicanálise, como
Canetti ou Lévinas,
apontavam justamente,
na psicanálise, essa
aparência de uma
certa mecânica de
emoções, como se eu
pudesse consertar
minhas emoções
gente recebe uma visita, “faça como se
estivesse em casa”. Esse estrangeiro, que
Freud me diz que eu acolho em mim – ou
não acolho em mim – demanda a minha
hospitalidade, meu esforço de tradução,
meu esforço de compreensão. Às vezes
suas maneiras me parecem até selvagens,
me parecem pouco civilizadas, como se
esse estrangeiro me falasse de alguma
coisa que eu não reconheço como eu. O
estrangeiro me fala de uma civilização ou
de uma não-civilização, de uma anticivilização que coloca em questão a
maneira pela qual eu vivo atualmente,
pela qual eu disponho meu espaço, pela
qual eu disponho os meus móveis, meus
interesses. Esse estrangeiro apresenta-se,
dia após dia, para me dizer que a minha
maneira civilizada não é a única maneira
civilizada, que dentro de mim existe uma
outra maneira, um outro modo de fazer,
de pensar as coisas, de querer.
Portanto, o inconsciente é esse repositório, mas não só. Ele é esse repositório de
assuntos reprimidos (é um aspecto importantíssimo; sem dúvida, foi a primeira
definição do inconsciente), mas o inconsciente de Freud é muito mais do que isso.
O inconsciente não está nos limites da
consciência, não é algo que já foi
consciente e não é mais. É algo que jamais
foi consciente. Como se eu tivesse a
memória de algo que não vi, e sobretudo
não vivi. Se fosse a memória só daquilo
que vivi, diria que seria um repositório.
Mas é uma memória daquilo que não vivi.
E como posso ter a “memória” de algo que
não vivi? Esse é o grande interesse do
inconsciente, tal como Freud formulou.
Quando pensamos o inconsciente como
essa “memória” daquilo que talvez eu
nunca tenha vivido, abrimos o caminho
para uma postura analítica segundo a
idéia de Freud, em que o analista fornece,
não interpretações, mas construções ao
seu analisando. Freud preferia a palavra
construção à palavra interpretação. O
analista contrói modelos, hipóteses que
ele submete ao seu analisando, de tal
maneira que aos poucos essas construções
daquilo que não foi vivido, daquilo que
poderia ter sido vivido, seja o que talvez
está sendo comunicado dis após dia pelos
sonhos. Algo que não vivi mas também
que não posso esquecer. Uma "memória"
que se torna uma necessidade de
conhecer. Preciso conhecer esse algo que
habita em mim e que vem desse território
em mim onde se encontra uma “memória”
do não-vivido, por mais estranho que isso
possa parecer.
18: Entretanto, a psicanálise freudiana
muitas vezes é percebida como um
método que busca, por meio da razão,
conhecer e explicar as especificidades e
patologias de cada indivíduo...
ENTREVISTA
FL: A visão de inconsciente de Freud não
pressupõe uma explicação do irracional
pela razão já supondo que a razão vá
submeter a não-razão. Freud aponta para
uma coabitação entre instâncias de naturezas distintas em que jamais uma vai
submeter a outra definitivamente, o que
estabelece a necessidade de negociação
entre as instâncias. E esse é um dos grandes
interesses do ensinamento psicanalítico:
em cada um de nós coabitam instâncias
distintas, que negociam perpetuamente,
para desespero dos portadores das verdades
e certezas únicas. Nenhuma instância em
nós é capaz de ser o amo e senhor único,
nem mesmo o tão decantado logos que,
diga-se de passagem, pretendeu ter tomado
o poder num aparentemente bem-sucedido
golpe de Estado. A psicanálise mostrou que
o rei, qualquer rei, está nu, inclusive o logos,
que durante séculos animou a crença de
tantas mentes brilhantes, pretendendo
nos ensinar a nos desembaraçar de nossas
paixões. A razão deve conhecer seus
limites. A razão precisa aprender a ser
humilde porque precisa negociar com
outras instâncias que funcionam de
acordo com outros princípios.
Sigmund Freud: o inconsciente é como a memória de algo que não foi vivido
18: Parece-lhe que hoje, no universo da
cultura e da sociedade, essses limites
da razão estão se tornando mais nítidos
e reconhecidos?
FL: Hoje em dia assistimos ao reencantamento da natureza, dos céus, das relações
humanas – mas por meio dos demônios,
dos velhos demônios conspiracionistas,
“complotistas”, da tentativa de explicar o
mundo, novamente, pelos maus e os
bons, Satã, Lúcifer, as hordas infernais
contra as hordas celestiais. Isto é um
reencantamento dos céus, da natureza,
uma tentativa de dominar aquilo que
nós não dominamos porque o mundo é
complexo demais para que o possamos
dominar e aceitamos isso muito mal.
Então, depois do desencantamento, nós
vemos o reencantamento dos céus pelos
extraterrestres, pelos ovnis. Nós vemos o
reencantamento das relações humanas
pelos complôs, pelo racismo. O reencantamento – ou o encantamento que
nunca desapareceu na psicanálise – não
me parece passar por essa mágica um
pouco virulenta...
18: A psicanálise hoje, então,
surgiria como a ciência do convívio
e da conciliação?
A psicanálise nos obriga
a estarmos acordados,
a não podermos dormir,
a estarmos insones,
incomodados por aquilo
que é estranho,
estrangeiro, incontrolável,
não-domesticável e que
nos obriga a um
doloroso abandono de
uma posição de
dominação absoluta
FL: Sim, ela trata da imperiosa necessidade de coabitar. Quase como se pudéssemos dizer: podemos viver juntos? Como
se eu pudesse transformar essa pergunta
em mim mesmo: será que eu posso viver
junto comigo? Será que os diversos "eus"
podem coabitar em mim? Será que posso
ser um território de coabitação? Não
estamos, aqui, muito longe da palavra
poética, uma palavra que é, ao mesmo
tempo, comunicativa e performativa, e
que porta em si a possibilidade de atravessar as barreiras entre eu e os meus
outros, entre eu e o outro; atravessar as
barreiras míticas, todas as barreiras mistificadas que existem entre eu e os outros, e
os meus outros. A palavra poética vara
essa carapaça e atinge o outro, e o outro
me atinge numa afetação recíproca, nos
afetamos, estamos afetados, não somos
Revista 18 7
ENTREVISTA
indiferentes. A palavra poética me arranca
do meu isolamento, me arranca da minha
ilusão de que posso reinar sozinho, me
arranca da ilusão de que posso extirpar
aquilo que me incomoda e me obriga a
escutar e a tentar dizer, varando as
barreiras aparentemente inexpugnáveis.
Estamos próximos do que Blanchot dizia
da psicanálise: “uma conversa sem fim”.
18: Antes do século 19 europeu, a
humanidade norteou as suas sociedades pela crença religiosa e atribuiu à
espiritualidade um papel fundamental
na organização da vida humana. O Iluminismo, do qual a teoria freudiana é
tributária, passou a colocar em xeque
essa visão tradicional, buscando pela
via da razão, o que se considerava como
a real libertação do homem. O projeto
iluminista, porém, vê-se esgotado em
nossos dias. O que se passa com a teoria
de Freud nesse contexto ?
FL: Sim, de alguma maneira poder-se-ia
pensar que uma das grandes fontes do
8 Revista 18
pensamento psicanalítico é o Iluminismo. Talvez devêssemos considerar
alguns fatos que se passaram completamente fora do âmbito da psicanálise. Eu
me refiro à introdução, não só dos
discursos genocidas, mas da implementação de políticas genocidas que se
tornaram práticas genocidas. Nesse
sentido, o estabelecimento de todas as
estruturas estatais fundadas no racismo
nazista é um paradigma fundamental e
fundador. Essas políticas genocidas, que
se tornaram práticas genocidas, talvez
tenham sido um grande sobressalto,
uma tentativa desesperada de estabelecer uma onipotência do homem, ou
seja, um domínio total do homem sobre
o outro homem, domínio total de um
pensamento sobre outro pensamento,
domínio total de uma lógica sobre outra
lógica, domínio total de uma idéia
tomada como “verdade”. Hoje em dia
somos, ao mesmo tempo, herdeiros
dessas políticas genocidas e vítimas intelectuais e afetivas daquilo que nasceu
com as políticas genocidas e tornou-se
um veio persistente, duro, teimoso,
perseverante: o negacionismo. Em última
análise, o negacionismo quer dizer: “não,
não houve exterminação, portanto precisamos exterminar hoje”. Diante dessa
inflamação, Lévinas escreveu: “Amar
mais a Torá do que Deus”; o estudo se
sobrepõe à crença cega ou, se quisermos, o
compromisso, a paciência, se contrapõem
ao fanatismo, ao imediatismo, à força.
Creio que é nesse contexto que podemos
situar a psicanálise. Creio que a psicanálise não ficou imune a esse abismo que é a
política genocida acompanhada de suas
práticas genocidas, e ao mesmo tempo de
práticas negacionistas.
Hoje temos de reconhecer que está em
curso uma tentativa de recuperar uma
certa figura de onipotência ante o desespero da perda da onipotência. Figura de
onipotência que parecia ultrapassada,
figura pretensamente dominadora que
pode determinar o fim do outro. Figura
que usa todas as artimanhas e todos os
argumentos e toda a retórica para estruturar, justificar, explicar, tornar aceitável
ENTREVISTA
o terror, paralisar o outro pelo terror,
tornando-o objeto de um ato predatório, a
caça do caçador. Talvez nesse contexto a
psicanálise seja tributária do Iluminismo,
mas também de algo mais sutil: ela
rompeu com a hipnose, ela rompeu com o
outro dormindo, com o outro em meu
poder. Uma análise nos obriga a estarmos
acordados, a não podermos dormir, a
estarmos insones, incomodados por
aquilo que é estranho, estrangeiro, incontrolável, não-domesticável e que nos
obriga a um doloroso abandono de uma
posição de dominação absoluta, que nos
obriga a uma dolorosa acomodação com o
outro irredutivelmente outro e diferente
de mim. O outro enquanto outra pessoa,
digamos assim, ou o outro enquanto as
minhas outras instâncias que habitam em
mim e que pedem, exigem, impõem,
resistem a toda tentativa que não seja a de
uma coabitação difícil, conflituosa. Neste
sentido, a psicanálise não é o domínio da
razão, mas é a aceitação do conflito.
Conflito que não necessariamente tem
que ser uma ruptura ou uma guerra. Mas
A placa da campainha de Freud em seu famoso consultório na Berggasse,
em Viena: relações do psicanalista com a capital austríaca sempre foram
marcadas pelo sentimento de rejeição e pela atmosfera anti-semita
um conflito, um conflito de interesses,
que tem de ser negociado sem que
nenhum dos parceiros possa impor sobre
o outro suas próprias condições, e em que
ambos têm que abandonar dolorosamente a onipotência, essa tentativa de
domínio absoluto, para buscarem as
condições de coabitação.
18: Trata-se, portanto, menos de um
processo de libertação do que de um
processo de aceitação de limites?
FL: A libertação do homem é uma libertação muito precária, mais ou menos como
sair de uma prisão para entrar em outra. Ou
melhor, sair de uma prisão ilusória em
que eu pretendo poder exterminar, eliminar, aniquilar o outro, os meus outros,
todos os outros, para outra prisão, para uma
zona de conflitos em que estou o tempo
todo me afetando, me auto-afetando, sendo
afetado pelo outro, afetando o outro, sem
poder me socorrer da indiferença, numa
“conversa sem fim”. Freud não conheceu
os campos de concentração nem as
câmaras de gás. Nós conhecemos e nós
conhecemos algo mais também: a negação
das câmaras de gás. Freud vivia num tempo
em que aparentemente ainda podia acreditar, sem desconfiar, na liberdade. Liberdade que no pensamento ocidental sempre
foi considerada como indiscutível, algo que
ninguém ousava sequer tocar em sua
primazia. Lévinas diz, muito apropriadamente, que a liberdade rapidamente se
torna liberdade assassina e que a liberdade não tem essa primazia, mas que ela
tem que ceder sua primazia, quase o seu
privilégio, à responsabilidade, à responsabilidade infinita: sou infinitamente
responsável pelo outro, por esse outro que
Ícones religiosos de civilizações antigas pertencentes à coleção do primeiro psicanalista (da
esquerda para a direita): retrato de jovem, de
Roma, em marfim, século 1 a.C.; figura masculina, de Chipre, século 6 a.C.; Ushebti, ou
criado, egípcio, em faiança, da 25ª-30ª
dinastia, século 7-3 a.C.; Afrodite, de Mirna,
do período helenístico, século 2 a.C.; ídolo antropomórfico Mescala, do México, século 12-15:
o grande pesquisador da alma humana quis
trazer de volta para a modernidade aquilo que
a história sepultou na alma humana
Revista 18 9
ENTREVISTA
por aceitá-la e por aceitá-la como algo
mais de nosso ambiente com o qual
devemos nos acomodar. Talvez, se o intelectual, aquele que tem como profissão
estar alerta, se deixa adormecer, ele trai
sua tarefa social de barreira, de alarme de
paralisia do pensamento de todos. O intelectual traidor torna-se traidor de todos e
do pensamento. O homem aterrorizado já
é vítima e vítima humilhada e ofendida
na sua inteligência, presa fácil de tornarse apenas mais um na massa. Talvez
devêssemos, com Karl Kraus, jamais ceder
e abrir a brecha por onde passam as
palavras que vão constuir Auschwitz.
Os limites da psicanálise: dominação absoluta
por meio da razão é a grande quimera que
surge, na Europa, a partir do Iluminismo,
e que só pode ser contida pela noção de
responsabilidade e humildade
não se deixa dominar, por esse outro que,
sem ele, eu não sou eu. Nesse contexto em
que a responsabilidade, lenta mas inexoravelmente, afasta a liberdade de sua posição
majestática, imperial, a psicanálise e a filosofia têm de considerar a ética como filosofia primeira, como queria Lévinas. Não
estamos longe do espírito freudiano. Freud
dizia que o Ego, esse sacrossanto senhor, é
um pequeno senhor, um ínfimo senhor,
quase um não-senhor, é um anão que tem
que lidar, negociar com dois gigantes,
aquilo que Freud chamava o Superego,
muito mais do que o Ego, aquele que está
acima do Ego, e o Id. Então vemos que a
questão de negociar não é nem mesmo
negociar honrosamente, pomposamente,
já que se trata da negociação de um anão
com dois gigantes. Assim, homens hoje,
ou mentimos, nos iludimos e permanecemos aspirando essa dominação
senhorial, absoluta, sobretudo por meio
do terror, ou somos obrigados humildemente, modestamente, quase submissamente, a negociar. Difícil entrada neste
milênio que se anunciava radioso e cheio
de promessas de liberdade e de felicidade.
Gostaria de insistir sobre a palavra
terror. De tanto repeti-la, manuseá-la, acabamos por torná-la familiar, acabamos
10 Revista 18
A psicanálise não é o
domínio da razão, mas é
aceitação do conflito.
Conflito que não
necessariamente tem
que ser uma ruptura
ou uma guerra. Mas um
conflito, um conflito
de interesses, que tem
de ser negociado sem
que nenhum dos
parceiros possa impor
sobre o outro suas
próprias condições
18: A psicanálise surgiu como uma
ferramenta para a cura de doenças
psíquicas ou mentais. Ela também é
capaz de proporcionar a felicidade e a
realização do ser humano?
FL: Gostaria de retomar o comentário de
alguns leitores críticos da psicanálise que
mencionei anteriormente: se fosse ao psicanalista como se estivesse levando meu
automóvel ao mecânico, efetivamente a
psicanálise, então, como ferramenta, não
teria nenhum interesse. Mas creio que o
valor da psicanálise é que começou a se
interessar pelas doenças, como na formulação da pergunta, psíquicas ou mentais, e
muito rapidamente deixou-se convencer
pela evidência de que as doenças psíquicas
ou mentais não são apanágio de alguns, os
“doentes”, mas são propriedade de todos.
Todos nós passamos por lá. Todos nós,
sem muito caricaturar, passamos por
experiências das quais pensávamos muito
orgulhosamente, até algumas décadas
atrás, estar resguardados. Nenhum de nós
pode dizer que está do lado certo da
fronteira entre os sadios e os doentes,
porque estes limites, que nos pareciam
tão evidentes, claros, intransponíveis que
praticamente não teríamos com que nos
preocupar, na realidade não são claros.
Enfim, a psicanálise teve o mérito de
abandonar muito rapidamente esta
situação confortável que colocava os
“doentes” de um lado e os “médicos” e os
“sadios” de outro. Os psicanalistas reconheceram o interesse de buscar na literatura ou então nos casos ditos raros ou
bizarros, alimento, fonte de aprendizado.
Essa barreira julgada clara, determinada,
entre saúde mental e doença mental, pode
ser transposta com certa facilidade.
Nesses termos, é muito difícil falarmos de
felicidade, realização, quando reconhecemos a proximidade com o sofrimento, o
drama e a tragédia. Felicidade, realização,
são termos muito vagos para a psicanálise. Observamos, hoje ainda, disciplinas que tentam mostrar efetivamente
que podemos nutrir as ilusões de que
vamos dominar tudo. Cremos ou estamos
dispostos a acreditar que somos científicos, que vamos resolver as coisas pela
ciência, pelos comprimidos, pela mudança
dos comportamentos. E vamos ser felizes.
É interessante constatar como o pensamento científico, dito científico, está tão
perto do pensamento mágico, do pensamento religioso, nessa ilusão de acreditar
na salvação, redenção, felicidade, o equilíbrio e todas essas coisas que, se olharmos
com olhos um pouco menos hipnotizados, não existem.
18: E em que medida pode a psicanálise
aliviar os sofrimentos que são intrínsecos à condição humana?
FL: A psicanálise, dizia na resposta à
ENTREVISTA
primeira pergunta, é um espaço leigo. Ela
não promete a redenção ou então a
recompensa, antes ou depois da morte,
como no campo religioso, onde muitas
vezes se afirma que se a felicidade não está
aqui, ela está um pouco mais adiante. Se a
recompensa não está aqui, não tem
problema, ela está um pouco mais
adiante, para além da vida, da morte. Para
a psicanálise, do ponto de vista da negociação, a questão da felicidade e da realização surge como um problema insolúvel
ou apenas temporariamente solucionável. Saímos de uma ilusão de libertação
para um peso da responsabilidade, saímos
de uma ilusão de tudo podermos para
uma necessidade de negociar pacientemente. De tal maneira que a psicanálise,
primeiro, não é uma ferramenta, segundo,
pode até ser uma terapia, e pode até ajudar
um pouco, mas absolutamente não
promete a felicidade, muito menos a
iluminação, menos ainda a realização
humana. Mas ela promete algo muito
difícil de aceitarmos como promessa: um
caminhar lento, aflito, de negociação com
os outros de mim, de dentro e de fora de
mim e que muda completamente o
registro da questão da realização ou da
felicidade para o registro da negociação
do conflito e para o registro da humildade, da modéstia. Sofremos, de nossas
próprias pulsões, a pressão de termos de
crescer e crescer é um trabalho de
nomeação, de encontrarmos as palavras e
a maneira de dizer, portanto também de
aprendizado (no sentido forte do termo,
aprender com a experiência). Ante
doutrinas que prometem as maravilhas
do além, como se a morte fosse algo nem
tão grave assim, e ante os livros e os
discursos que nos prometem que, fazendo
isso e aquilo vai dar tudo certo, o psicanalista só pode oferecer um olho sorridente
e outro lacrimoso.
18: Libertar o ser humano de seus condicionamentos e neuroses pressupõe a
existência de um Eu verdadeiro que se
encontra aprisionado. A noção de que o
indivíduo nasce como uma tábula rasa
e que ele é o fruto de suas expériências
e traumas da infância, é compatível
com a idéia de um Eu verdadeiro que
busca realizar-se num mundo real ?
O psicanalista e seu cão da raça chow-chow: conscientizar o indivíduo da multiplicidade de aspectos da personalidade é maneira de
enfrentar o reducionismo racionalista e utilitarista que ameaça, cada
vez mais, transformar seres humanos e cidadãos em autômatos
Nesse contexto em que a
responsabilidade, lenta
mas inexoravelmente,
afasta a liberdade de sua
posição majestática,
imperial, a psicanálise e
a filosofia têm de
considerar a ética como
filosofia primeira, como
queria Lévinas
FL: No campo da psicanálise, estamos
muito longe de pensar que uma criança é
algo que nasce em branco. A criança, o
pequeno homem, o homem que nasce, já
nasce imerso numa tal complexidade, já
nasce sendo de uma tal maneira
complexo, que a última coisa que a gente
poderia pensar, para sermos rigorosamente psicanalistas, é que o homem
nasce como uma tábula rasa. Poderíamos
lembrar uma passagem de Kafka que pode
nos servir. Kafka, quando estava elaborando A muralha da China, escreveu no
seu diário um pequeno conto: construir a
si mesmo é como construir uma casa.
Construir a si mesmo é como construir
uma casa, em que começamos a
desmontar a casa velha, construindo a
casa nova. Terminamos por constatar que
não só não temos mais a casa velha como
ainda não temos a casa nova. Enquanto a
casa velha já não tem mais teto, a nova só
tem uns pilares. Mudamos de uma casa
que não serve mais para uma casa que
ainda não nos serve, de uma casa que já
não nos abriga para uma casa que ainda
não pode nos abrigar. O Eu verdadeiro, se
é que existe algo como Eu e como
verdadeiro, é um Eu nu, vulnerável, em
busca de certo conforto ou proteção, um
Eu fraco, frágil, laborioso, mas também
preguiçoso. Então, se existe um verdadeiro Eu, é quase como se fosse um Eu em
permanente exílio, um Eu que, se quiser
possuir alguma coisa, possui muito
pouco, e tem uma posse que não lhe serve
Revista 18 11
ENTREVISTA
para quase nada. Uma condição de
habitação muito precária, quase como
alguém que tem que prestar contas ao
proprietário da casa ou do terreno. Quase
alguém que tem sempre que estar
pedindo empréstimo e financiando o teto
ou a porta, sabendo que mesmo assim não
vai conseguir construir uma fortaleza,
não vai conseguir ficar sossegado. Está
condenado a ser frágil. A condição de
fragilidade talvez seja a condição mais
complexa que possamos atribuir à
criança. Todos nós começamos na
condição complexa de dependência. Se
não fosse o outro para cuidar de mim, eu,
pequeno homem que acabou de nascer,
não teria chance nenhuma.
fação com a vida? Freud previa estes
rumos para a civilização ocidental?
18: E o que é para Freud o mundo real ?
A realidade palpável e concreta, os
reflexos dessa realidade na psique
humana ou os poderes psíquicos que
cada indivíduo traz consigo?
É interessante constatar
FL: Talvez puséssemos dizer que a psicanálise trouxe algumas poucas contribuições, mas essas poucas contribuições
são suficientes para que a psicanálise
tenha um lugar respeitável na história do
homem. Uma dessas contribuições é que
Freud nos mostrou que a realidade
também não é uma, a realidade é duas,
pelo menos; que temos uma realidade
interna e uma realidade externa e que
essas duas realidades são tão reais uma
quanto a outra. Vivo, não uma realidade,
mas o encontro ou o choque ou o conflito
entre duas realidades, que são irredutíveis
uma à outra: a realidade interna e a realidade externa. Minha realidade interna
constrói o mundo da mesma maneira que
o mundo me constrói. Essas duas realidades estão, permanentemente, num
comércio muito denso e talvez pudéssemos nos aproximar do que diziam os
surrealistas: a convergência virtual entre
duas realidades é a aspiração do homem.
pensamento mágico,
18: Como se explica, à luz da teoria
freudiana, o paradoxo que se observa
no assim chamado “mundo desenvolvido”, onde segurança material parece
ter como contrapartida, não um grau
crescente de felicidade, mas problemas
cada vez mais graves de consumo de
drogas, explosões de violência e insatis12 Revista 18
FL: Freud, como profeta, não merece uma
atenção particular; chegou a supor o
nazismo como uma febre passageira.
Porém, deixou um legado considerável ao
prevenir que a psicanálise não poderia ter
uma “visão de mundo”: um analista analisa. Nesses grandes eventos mencionados
na questão – o consumo de drogas, as
explosões de violência, a insatisfação com
a vida, talvez pudéssemos pressentir uma
tentativa mágica e imediata de buscar
algo como uma felicidade prometida ou
como o pensamento
científico, dito científico,
está tão perto do
do pensamento religioso,
nessa ilusão de acreditar
na salvação, redenção,
felicidade, o equilíbrio
e todas essas coisas
que, se olharmos
com olhos um pouco
menos hipnotizados,
não existem
então uma satisfação prometida. E a
constatação de que essa felicidade, essa
satisfação é uma promessa, e como toda
promessa, uma dívida que não se paga. O
consumo de drogas ou as explosões de
violência têm, evidentemente, uma
multiplicidade de fatores implicados, mas
talvez também tenham a ver a com o fato
de que a promessa do desenvolvimento
científico não trouxe consigo a contrapartida que esperávamos. Nada parece
poupar, abreviar ou aliviar a tarefa de
cada um na construção de si mesmo. Essa
tarefa, a construção de si mesmo, hoje
parece em grande dificuldade. Ressurgem
as ideologias totalitárias, com seus
grandes mestres, suas ordens simples e
peremptórias, sua massa de seguidores,
mais ou menos vítimas, mais ou menos
criminosos. Os discursos simplificadores,
o ódio pela cultura e pela inteligência, as
explicações conspiracionistas e diabólicas
da história, infelizmente, estão outra vez
em alta.
18: O pensamento freudiano está
calcado sobre um rompimento radical
com o legado espiritual e religioso do
judaísmo, mas ao mesmo tempo Freud
via-se, sempre, como judeu. De que
maneira o pensamento de Freud está
impregnado pela tradição judaica?
FL: Teríamos que ser muito cautelosos
para dizermos que o pensamento
freudiano é um rompimento radical. Sim,
é um rompimento radical com o legado
espiritual e religioso de um certo
judaísmo e de uma certa maneira de
abordar o judaísmo. Numa troca de
correspondência entre Freud e Abraham,
verificamos algo significativo: os dois
interlocutores diziam, um para o outro,
que “talvez nós tenhamos abandonado o
estudo do Talmude, mas o Talmude não
nos abandonou”. Poderia ser uma anedota, mas nem tanto porque, com um
certo judaísmo, sim, a ruptura de Freud é
radical, mas com outro judaísmo seria
mais difícil afirmar isto. Porque é uma
vasta pergunta, essa. Alguns grandes
trabalhos a respeito da relação de Freud
com o judaísmo mostram que se trata de
uma relação extremamente complicada,
conflituosa, já começando pela história
pessoal de Freud, de Freud com seu pai.
Há um célebre episódio em que o pai de
Freud conta a Freud que ele estava
andando na calçada quando um antisemita passa por ele e joga o chapéu dele
na rua e diz : “Vai pegar, judeu!” E Freud
pergunta ao pai: “E o que você fez, pai?”. E
o pai responde: “Eu desci da calçada e fui
pegar o chapéu”. Seria oportuno avançar
aqui, sem desenvolver a hipótese de que o
interlocutor irredutível de Freud e da
psicanálise é a figura do anti-semita?
Talvez aí sim valesse a pena uma tentativa de resposta, evidentemente sujeita
polêmica e a grandes divergências. Freud
fundou um método baseado, entre outras
coisas, sobre a resistência, quer dizer, eu
resisto à análise. Aí não estamos longe de
um certo judaísmo quando os judeus, ao
receberem as Tábuas da Lei (e não é
qualquer coisa receber as Tábuas da Lei.
Primeiro, porque recebê-las impõe uma
série de restrições, uma delas capital: não
matarás) respondem, “faremos e compreenderemos” Nessa ordem. A compreensão
no pensamento ocidental parece preceder
a ação. Os judeus responderam, “faremos e
compreenderemos”. Quer dizer, antes de
compreender, a gente faz. E é para
compreender que a gente faz. De tal
maneira que Freud dizia: o senhor quer se
analisar, pois não, o senhor vem aqui três
ou quatro vezes por semana, o senhor
deite no divã, o senhor fale tudo o que lhe
passe pela cabeça, não esconda nada, não
critique nada. Não quer contar tudo:
resistência; não quer vir: resistência, não
quer deitar: resistência. Quer dizer,
faremos e compreenderemos. E esse fazer
e compreender é, digamos assim, uma
máxima ou então algo que talvez Freud
tenha tomado do judaísmo e que de
alguma maneira não é uma ruptura tão
radical, mas é como um empréstimo
radical, uma dívida radical. Faremos e
compreenderemos. Outro grande eixo: a
transferência. Eu estou na presença do
outro e algo se passa que é uma repetição,
mas também uma novidade. Saindo do
campo da psicanálise, para depois
voltarmos a ele, lembremos o face a face
de Lévinas: um homem só pensa em face
de um outro homem. Não estamos muito
longe de Freud que dizia a mesma coisa,
quer dizer: uma análise é sempre algo
amendrontador para os dois. Se fosse uma
mera repetição, qual seria o amedrontamento? Nenhum. Tanto para o analista
quanto para o analisado, a situação analítica tem alguma coisa que incomoda, que
desconcerta, que é uma não-repetição.
Repete alguma coisa, mas há algo que se
passa entre dois e que é uma afetação recíproca. Isso quer dizer, dois homens, dois
seres humanos em presença um do outro,
vão se modificar, um por causa do outro.
Isso nos reconduz a alguma coisa que
Canetti dizia, ele que foi um grande
crítico da psicanálise, mas também um
leitor extremamente atento: “Se alguém
me escuta com atenção, verdadeiramente,
Peter Aprahamian/Corbis/Stock Photos
O consultório de Freud em Londres: a construção do ser
humano se dá a partir do choque entre realidades
O que a psicanálise
promete é algo muito
difícil de aceitarmos
como promessa: um
caminhar lento, aflito,
de negociação com os
outros de mim, de dentro
e de fora de mim e que
muda completamente o
registro da questão da
realização ou da
me ocorrem pensamentos que jamais eu
poderia pensar”, ou seja, uma conversa de
verdade, com tudo que se pode dizer de
uma conversa de verdade, efetivamente
cria em mim e no outro algo que não
existia antes. Quer dizer eu penso, eu
descubro, eu vejo coisas que não tinha
visto antes, eu penso coisas que não tinha
pensado antes. De tal maneira que há uma
dimensão fundamentalmente criativa na
psicanálise e que vem, de alguma maneira,
desse método, que temos que reconhecer –
e eu repito, com todas as possibilidades de
divergências, disputas, polêmicas, argumentações, que vem de um certo dizer
judaico : “Faremos e compreenderemos”. felicidade para o
registro da negociação
do conflito e para o
registro da humildade,
Luis S. Krausz, editor da Revista 18, é
mestre em Letras Clássicas pela University of
Pennsylvania, pós-graduado pela Universidade de Zurique e doutorando em Literatura e
Cultura Judaicas pela USP
da modéstia
Revista 18 13
Fotos: reprodução
PERISCÓPIO
Bem junto ao Ninho da Águia
“Louvai ao Senhor”
O Intercontinental Berchtesgaden,
luxuoso resort situado nas belas
montanhas de Obersalzberg, na
localidade de Berchtesgaden, Alemanha, completa um ano de
funcionamento em março de 2006.
O hotel é dotado de 138 quartos,
três restaurantes, piscinas (interna e
externa), área de conferência, salão
de beleza, campo de golfe, spa e uma belíssima vista para as montanhas.
São instalações com padrão cinco estrelas voltadas para hóspedes
exigentes. O resort aceita a presença de animais de estimação em suas
dependências. Um detalhe apenas o transformou em alvo de espanto da
comunidade internacional: Berchtesgaden era o lugar de repouso de Adolf
Hitler, onde ele residiu por longas temporadas e planejou muitas ações da
2a Guerra Mundial. Ali tinha sua residência para férias e fins de semana,
chamada O Ninho da Águia, à qual foram acrescentados, em 1943, uma
fortaleza e um bunker. O Intercontinental foi construído no lugar de um
antigo albergue para membros do partido nazista, próximo ao Ninho.
O bispo da cidade tcheca de Brno determinou que as
obras do compositor Gustav Mahler (1860 - 1911)
não apresentam, em seu conjunto, louvores a Deus
em quantidade suficiente. Por isto, os concertos
dedicados à obra de Mahler, que desde o ano 2000
eram executados na catedral de Jihlava, foram
proibidos pelo bispo, que apresentou como justificativa um decreto papal de 1987, que determina
que “só músicas que contenham louvores a Deus
podem ser apresentadas em igrejas”. O Conselho
Municipal de Jihlava reagiu com espanto à ordem
do bispo. Mahler passou nesta cidade seus
primeiros 15 anos de vida, e é conhecido como um
filho desta localidade na Moravia.
E agora, Hamas?
Enquanto não se definem os rumos do novo governo israelense, Hamas parece hesitar entre o desejo de diálogo com a União
Européia e os Estados Unidos e o caminho de violência que vem seguindo até agora. Por Nahum Sirotsky
ericó fica na Cisjordânia, nas proximidades do rio Jordão.
Tem uns 20 mil habitantes. E disputa com Damasco, capital
da Síria, o título de mais antigo centro urbano habitado nessa
parte do mundo onde surgiu o monoteísmo. Segundo a Bíblia,
Jericó foi a porta de entrada das terras prometidas aos hebreus,
que vinham de 40 anos de andanças pelo deserto do Sinai. Tudo
isto há muitos milhares de anos.
Em 1967, na Guerra dos Seis Dias, os israelenses conquistaram a cidade, e em 2005 entregaram-na à Autoridade Palestina, então presidida por Yasser Arafat, como parte de um
processo que, imaginava-se, levaria a um Estado palestino independente. Mas a chamada Intifada de Al Aksa, revolta palestina,
interrompeu a marcha. Foram meses de choques. Depois, veio a
morte de Arafat, e a queda de Sharon, em Israel.
Eleições gerais na zona da Autoridade Palestina transferiram
o poder para um Conselho Legislativo (Parlamento), com a
J
14 Revista 18
imprevisível maioria absoluta do Hamas, grupo que promete
governar com honestidade, implantar um Estado teocrático. E
não reconhecer o direito de Israel existir.
Eleições gerais em Israel foram marcadas para o fim do mês
corrente. E devem decidir quem será o chefe de Governo, no
lugar de Sharon, que foi substituído por um interino. No dia 14
de março, Israel invadiu Jericó, para capturar um grupo de
palestinos que estavam confinados num presídio palestino.
Entre eles incluíam-se indivíduos apontados como autores do
assassinato do então ministro do Turismo, general Rehavam
Zeevi, um dos grandes heróis militares do país. Os criminosos
haviam sido entregues à Autoridade Palestina com o compromisso, garantido pelos Estados Unidos e Inglaterra, de serem
mantidos em detenção. Um deles era o líder de Frente Palestina,
em discordância com o processo de paz. Circulou a notícia de
que ele seria solto pelo Hamas. Israel agiu para impedir que
PERISCÓPIO
Miss também é cultura
Mais de 300.000 telespectadores franceses elegeram
Alexandra Rosenfeld, de 19
anos, como a mulher mais
bonita da França, e ela recebeu
o título de Miss França 2006. A
nova rainha da beleza, que se
diz leitora e admiradora do
escritor italiano Primo Levi,
representou, no concurso nacional, a região do
Languedoc, e representará o país no próximo
concurso internacional de Miss Universo.
Sarah, a Divina
A grande atriz francesa Sarah
Bernhardt (1844-1923) é o tema
de uma exposição atualmente
em cartaz no Jewish Museum
de Nova York. Esta artista legendária, que é também descrita na
obra-prima de Marcel Proust
Em busca do tempo perdido, era
filha ilegítima de uma cortesã
judia holandesa, chamada
Judith van Hard. Embora fosse
batizada, Sarah Bernhardt foi
alvo de anti-semitismo, principalmente no início de sua
carreira, e ridicularizada pela
imprensa da época por causa de
sua “aparência judia”.
Contra e a favor
O New York Times de 3 de fevereiro citou palavras do secretário de Defesa dos Estados Unidos Donald Rumsfield, que
comparam o presidente da Venezuela Hugo Chávez a Adolf Hitler. A comparação de Rumsfield desencadeou uma
série de protestos, inclusive dentro da comunidade judaica norte-americana. Recentemente, Chávez fez um pronunciamento que poderia ser interpretado como sinal de anti-semitismo, porém, pouco depois, encontrou-se, de maneira
respeitosa, com membros destacados da comunidade judaica venezuelana. O gesto de Chávez, de enviar óleo combustível para aquecimento doméstico a preços subsidiados para a população pobre dos Estados Unidos, tem sido aplaudido por muitos rabinos norte-americanos, indignados com o corte de subsídios por parte da administração Bush.
Virá a vingança com a volta a ataques suicidas a Israel? Ou
fossem liberados. Foi uma batalha de cerca de dez horas entre
os novos líderes palestinos optarão por compensação compaforças de Israel e um grupo de detentos, que prometiam resistir
tível com seus objetivos maiores? Europa e Estados Unidos se
até a morte. Preferiram a vida. E se entregaram.
negam a conversar com o Hamas enquanto o grupo islâmico
Em Israel se discute, desde então, se a operação foi
palestino persistir em sua linha de se
justificada pela possibilidade de soltura
recusar a aceitar a existência de Israel e
de líderes perigosos ou se houve
se reservar o direito de continuar como
intenção eleitoral do atual chefe de
movimento de libertação nacional, ou
governo interino e candidato nas
Como se verificou no caso das
seja, de manter um estado de guerra. Mas
eleições que se aproximam. Ninguém,
imagina-se que talvez o Hamas prefira
porém, discute a periculosidade dos
reações às caricaturas de
dialogar com os europeus e americanos,
elementos detidos.
Maomé, o que acontece na
adquirindo, desta forma, legitimidade
Nesta região do mundo, em que
internacional, e reagindo com palavras
nasceu a tradição do olho por olho,
região tende a ser contagiante.
no lugar de bombas. Como se verificou
parece que nada pode ficar sem uma
E perigoso
no caso das reações às caricaturas de
resposta, que tanto pode ser olho por
Maomé, o que acontece na região tende
olho quanto uma compensação adea ser contagiante. E perigoso. quada. A questão agora é saber como
reagirão as organizações palestinas
como o Hamas, que assumiu a responsabilidade por inúmeros
Nahum Sirotsky, jornalista, é correspondente da RBS e do IG em
ataques a Israel pelos chamados homens-bomba, os suicidas,
Israel. Ex-diretor de Visão, Manchete, Diário da Noite do Rio, foi o
arma que agora tanto se utiliza no Iraque.
criador da revista Senhor
Revista 18 15
Reprodução
OPINIÃO
Tolerância máxima
José Arthur Giannotti reflete
sobre os limites do conceito de
tolerância religiosa no mundo
contemporâneo e vê uma política
estritamente laica como única
maneira de garantir o convívio
entre diferentes grupos de fé
conceito de tolerância é multívoco, pois denota o aceitar, o
condescender, assim como o
suportar. Aceitar pode valer entre iguais,
mas condescender e suportar implicam
relações de desigualdade entre os
agentes. Daí a necessidade de distinguir
vários planos em que a tolerância vem a
ser exercida. Já que não posso me aventurar por esses caminhos tortuosos, sou
obrigado a escolher um deles, e tento o
mais abrangente de todos, a tolerância
religiosa, que afeta a totalidade de nossa
existência, do nascimento à morte.
Abarca até mesmo o universo dos não
crentes, pois uns e outros convivem no
mesmo espaço coletivo. Mas de que
forma? A incredulidade não tende a se
dar como infidelidade?
O
16 Revista 18
OPINIÃO
Cultos ecumênicos juntam, num mesmo espaço,
Vale lembrar que, na metade do século 19, particularpráticas diferentes em vista de um objetivo comum, mas
mente os comunistas acreditaram que o problema perdera
cada indivíduo mantém sua identidade na medida em que
relevância. A questão teórica da religião teria sido resolconserva intacto o cerne do ritual que pratica. Mesmo o
vida, de sorte que o progresso e a Revolução terminariam
sincretismo, ao articular, num todo, fragmentos de relipor dissolver esse ópio do povo. Enquanto isso, o Estado se
giões diversas, continua preservando a unidade do culto:
encarregaria de uma repressão educativa. Nem todos,
um católico, adepto do candomblé, não aceitaria comungar
porém, foram tão radicais; os primeiros sociólogos – Max
num terreiro.
Weber é um deles – diagnosticaram um progressivo desenCada crente pode orar sozinho, mas somente pratica um
cantamento do mundo à medida que a ciência e a razão
culto ecumênico se comungar com práticas cujo sentido,
técnica estariam modificando as mentes e solapando
no fundo, ele rejeita. Além do mais, quase sempre a reunião
condutas de cunho religioso. No entanto, foi basicamente
de indivíduos de crenças diferentes em vista de um objeo inverso que aconteceu.
tivo comum – homenagear um morto, por exemplo – se faz
Muitas vezes se ouve dizer que cada religião tem sua
graças ao trabalho de intermediários institucionalizados,
própria experiência do divino, como se elas apresentassem
como o padre, o rabino, o bispo evangélico, que suspendem
aspectos diferentes de um mesmo conteúdo. A multiplisuas diferenças para compor uma cerimônia coletiva. Cada
cação dos encontros e cultos ecumênicos não o comprova?
um está interessado em praticar suas
Mas sem a idéia de Espírito Absoluto, que
crenças e vigiar as transgressões a seus
ganha esse caráter precisamente porque
princípios, mas se participa de uma ceriincorpora todas as representações religiosas,
mônia ecumênica é porque assim acrecada uma como um todo visto de certo
dita estar fortalecendo sua Igreja e se
ângulo, fica difícil pensar o que esse
associa com outras na medida em que
conteúdo possa ser. Talvez o místico, isto é,
A destruição é sempre
calcula os ganhos da ação coletiva. Qual é
um conteúdo sem qualquer modalização.
de alguns inimigos, de
o sentido, porém, desse coletivo? Não é o
Mas deixemos de lado essas firulas metaculto do morto, que poderia ser feito em
físicas para nos perguntar como ficam as
sorte que a política e as
cada Igreja, mas a intenção de reunir fiéis,
práticas religiosas diante do caráter profundaoperações de seu
independentemente de suas crenças, para
mente irreconciliável de seus princípios.
que mostrem que, ao menos em vista do
Não vejo como cada religião possa abrir
aniquilamento ainda
morto, podem estar juntos em vida. As
mão de sua verdade. Sabe-se que as ciências
devem criar as
diferenças de políticas religiosas se
contemporâneas deixaram de se tomar
travam assim por intenções e práticas de
como procura DA verdade, pois nelas há
circunstâncias para que
consenso, propriamente políticas, que
uma determinação recíproca entre discursos
os restantes um dia
avaliam a aliança com os outros tanto
e tecnologias, o que faz delas uma alterquanto a aliança com Deus.
nância de perspectivas e uma procura sem
também possam vir
No entanto, essa relativa autonomia é
fim. Mas o discurso religioso se arma em
a ser amigos
difícil de ser praticada. O adepto de uma
confronto com o espírito científico. Isso não
religião se liga tanto a Deus como aos
significa que a fé seja irracional, mas ela
fiéis da mesma crença e seguem as
labora com seu próprio Absoluto, que tende
mesmas regras como membros de uma
a se fazer prática particular – inquestionável
Igreja, de uma seita, de uma ordem e
e intolerante. O protestante não pode
assim por diante. Ora, desse ponto de
aceitar, como o católico, a transformação da
vista prático, os próprios princípios religiosos passam,
eucaristia em corpo de Jesus; o judeu não pode aceitar a
então, a ser iluminados sob o aspecto da prática políticotese do Apóstolo Paulo, segundo a qual a circuncisão
religiosa; num mesmo texto, ordens diferentes ressaltam
espiritual equivaleria à circuncisão física; o muçulmano
aqueles aspectos que legitimam seu próprio apostolado. Até
não pode aceitar os mistérios da Trindade, pois afirma e
que ponto essa coexistência não degenera em conflito? Em
reafirma a unicidade de Deus, sendo Maomé o seu profeta e
particular, os mesmos princípios cristãos serviram para que
assim por diante. Desse ângulo, os princípios de uma
católicos, donatistas, maniqueístas, pelagianos se engalfireligião não toleram os outros. Os sacerdotes e os teólogos
nhassem até à morte, mas quando se estudam esses movipodem dialogar, reunir-se em concílios, comparar seus
mentos do início do cristianismo fica evidente que a questão
pontos de vista, admirar o refinamento das teses, mas cada
básica era como se apropriar dos restos do Império Romano.
crente não duvidará de que está de posse de sua verdade, a
Creio ser difícil uma disputa sobre princípios religiosos
não ser que já tenha sido mordido pela cobra da indifedegenerar num conflito prático, a não ser que os agentes se
rença. É interessante observar que, nos relatos dos
percebam ameaçados em suas próprias identidades sociais.
encontros ecumênicos, quase sempre um congressista se
O céu pode comportar um diálogo infinito sobre diferenças
distrai e não perde a vez de confirmar o caráter verdadeiro
de fé, mas no nível da prática de cada religião, a tendência é
de sua religião.
Revista 18 17
OPINIÃO
um pacto social além dos conflitos religiosos. É significao cerco dos fiéis pelas Igrejas. Na verdade, cada uma a seu
tivo que nesta época se passa a pensar o Estado como
modo: uma religião da salvação quer salvar os outros, uma
contrato, sendo Thomas Hobbes um dos formuladores mais
religião da transcendência almeja tornar conhecido o
refinados desta teoria. No plano da prática e no plano teócaminho da ascese e assim por diante; mas, desse modo,
rico, frente à ameaça de desastre total, inventa-se um
cada uma está preparada para exercer um tipo de violência.
contrato exclusivamente político que leva ao Estado absoNo entanto, mesmo no conflito, desde que este não degelutista. O Absoluto da religião dá lugar a outro Absoluto.
nere numa matança generalizada, sempre se vislumbra um
Vale a pena ainda lembrar o oportunismo exemplar de
terreno coletivo onde as diferenças religiosas deixam de ser
Henrique IV. Sendo um dos chefes do partido calvinista,
pertinentes, onde outras diferenças se manifestam, pois
consegue salvar-se do massacre pagando o preço da abjusomente assim a luta de um com o outro não termina eliração, vence seus inimigos, sagra-se em Chartres e entra
minando o outro e o próprio conflito.
triunfante em Paris – mas a cidade não vale uma missa?
A associação de crentes numa comunidade requer, pois,
Mais tarde, lá está ele se aliando aos príncipes protestantes
mais do que a convergência de opiniões. Uns se re-ligam
alemães. Dessas idas e vindas, porém, resulta o Édito de
pelo sangue, pela aliança firmada, pela tradição; outros, pela
Nantes, garantindo a liberdade de consciência para todos.
entrega aos mesmos mistérios, prontos a irem além deles
Cada um se obriga a respeitar a religião do outro, desde que
mesmos e assim por diante. Mas convém salientar que
venha a ser intolerante em relação aos
qualquer conflito entre eles incorpora uma
inimigos do Estado. Mas agora a crença
dimensão prática impossível de ser resolpode virar arma política.
vida no plano da fé e até mesmo das instiLembrei esses episódios para salientar
tuições religiosas. Estas, por sua própria
que a prática de uma política que se quer
natureza, quando combatem o cismático,
apenas política nos custou um longo e
quando lutam contra uma ameaça que vem
doloroso aprendizado. E agora, quando de
de dentro, terminam recorrendo à força,
novo a política se entrelaça com políticas
colocando-o fora do campo religioso. Assim
Enquanto o conflito tiver
religiosas, acredito ser necessário repensar
abandonam um projeto de paz e tendem a
toda essa experiência. Em particular, na
fazer do outro o infiel que deve ser morto.
esse caráter, enquanto o
democracia, quando os cidadãos devem
Enquanto o conflito tiver esse caráter,
outro for o absoluto, não
ser tratados como iguais perante a lei, a
enquanto o outro for o absoluto, não há
tolerância prática passa a ter, como uma
conciliação e paz possíveis, o que faz da
há conciliação e paz
de suas condições de possibilidade, a
guerra de religião um processo sem fim.
possíveis, o que faz da
identificação de cada um como sujeito de
Lembremos que, no Ocidente, até o
direitos. Até há poucas décadas, no Ociséculo 16, era impossível alguém se aceitar
guerra de religiões um
dente isto se deu reconhecendo-se esse
como incrédulo, descrente, de sorte que as
processo sem fim
sujeito como cidadão partícipe de um
diferenças religiosas sempre foram pertiEstado. No entanto, não foi por isso que o
nentes. Somente a repressão de uma Igreja
século 20 foi um século de paz e de toleforte poderia assegurar uma paz relativa,
rância. Mas esse dilaceramento, essas
não havendo pois espaço para o pensaguerras totais também não se sedimenmento de uma política estritamente laica.
taram em experiências que podem
O Ocidente pagou um preço alto para
orientar o pensamento do futuro?
compreender que somente uma política laica
Parece-me evidente que a política
em estrito senso vem a ser capaz de limitar
arma um espaço de decisões coletivas na base de pactos
os exageros das políticas religiosas. Isso ocorreu, sobretudo,
que somente se repõem no jogo de aliados e adversários.
durante as guerras religiosas do século 16. Exemplificando:
Parece-me ingênuo pressupor que a luta política possa ter
o católico Carlos V, obcecado pelo projeto de unificar o
na sua base uma ética visando o consenso e a reconciliação
Santo Império Romano sob a mesma crença, só vence os
totais. Por sua própria natureza, a luta pelo poder é exclupríncipes alemães protestantes depois de se comprometer a
siva, uns fazem parte dele, outros são afastados. Daí o risco
assinar o Tratado de Paz de Augsburgo (1555), segundo o
constante. O jogo político do aliado e do adversário, do
qual cada príncipe poderia determinar a sua religião como
amigo e do inimigo, se transforma facilmente num regime
aquela de seu povo. Obviamente, esse compromisso só
autoritário quando o outro é pensado como devendo ser
poderia ser passageiro por causa da disputa entre as velhas
excluído do processo, quando é desenhado como a figura
e as novas elites que modificavam o perfil da Europa. A
do Mal. Isso aconteceu nos movimentos autoritários do
guerra continua, mas os massacres chegaram a limites de
século 20, quando o inimigo foi marcado pelo sangue, pela
tal forma intoleráveis – em Paris, na noite de São
raça, pela traição irrecuperável, merecendo, pois, ser
Bartolomeu (agosto de 1572), foram mortos por volta de
excluído do jogo da política transformada em religião leiga,
3.000 protestantes – que passaram a ameaçar a própria exisexcluído então do mundo dos seres humanos.
tência de cada grupo. Fica então evidente a necessidade de
18 Revista 18
OPINIÃO
No entanto, somente quando a luta
política se entrelaça com a luta políticoreligiosa é que o inimigo necessita ser
visto como o outro radical. A política
democrática, pelo contrário, desde que
aceita a inevitabilidade do conflito pelo
poder, somente pode se configurar como
democrática, operação entre sujeitos de
direitos, se a oposição amigo/inimigo for
relativa, o inimigo de hoje podendo vir a
ser o amigo de amanhã.
Até que ponto, porém, uma política
democrática pode ser mantida quando o
inimigo contesta o indivíduo como
sujeito de direitos e prega sua eliminação
total? Em primeiro lugar, há de se ter o
cuidado de não aceitar o discurso radical
sem antes verificar se não se transformou
em arma ideológica do amigo. Em
segundo lugar, se o inimigo radical se
lança numa aventura terrorista, no
ataque total, é óbvio que todos os
atacados têm o direito de se defender. No
entanto, se, ao exercer sua defesa no
plano do próprio inimigo, eles
convertem a luta política numa luta
político-religiosa, no infinito conflito de
uns contra os outros?
Acontece, porém, que amigos e inimigos formam grupos que somente
desencadeiam um processo de trucidamento recíproco se forem marcados para
sempre como os inimigos uns dos outros.
Não vejo, pois, outra política a seguir, se
a paz ainda continua a ser almejada. A
destruição é sempre de alguns inimigos,
de sorte que a política e as operações de
seu aniquilamento ainda devem criar as
circunstâncias para que os restantes um
dia também possam vir a ser amigos. José Arthur Gianotti é professor emérito do
Departamento de Filosofia da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP,
pesquisador sênior do CEBRAP e membro do
conselho editorial da revista Novos Estudos,
do CEBRAP
Sinagoga de Tarnopol, Hungria, incendiada
pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial: até
que ponto uma política pode ser mantida
quando se contesta o indivíduo como sujeito de
direitos e se prega sua eliminação total?
O REPÓRTER
O Irã às portas de Israel?
Aliança entre o Hamas e o governo abertamente disposto à aniquilação do
Estado judeu, de Mahmoud Ahmadinejad, leva a regressão sem precedentes
nas perspectivas de paz entre Israel e os palestinos. Por Leslie Susser
oucos dias antes das eleições palestinas, no fim de janeiro, o presidente
do Irã Mahmoud Ahmadinejad
encontrou-se com os líderes do Hamas no
exílio Khaled Mashal e Musa Abu
Marzuk, em Damasco. Numa breve visita
à capital síria, Ahmadinejad fez questão
de encontrar-se com os homens do Hamas
e com os líderes de nove outras facções
palestinas que rejeitam qualquer tipo de
acordo com Israel. O conflito israelensepalestino, ele lhes disse, segundo foi relatado pela imprensa do mundo árabe, seria
o “foco central da guerra final entre o
islã e o Ocidente”, e todos eles poderiam
contar com o apoio irrestrito do Irã.
Segundo fontes israelenses, um mês antes,
num encontro com Ahmadinejad em
Teerã, Mashal declarou seu comprometimento com o Irã: “Se o Irã for atacado,
nós seremos parte da reação iraniana”,
teria dito. E quando o Hamas venceu as
eleições, em 25 de janeiro, o Irã declarou
estar à disposição para fornecer fundos,
suprimentos, armas e treinamento para
ações de milicianos contra Israel.
Reprodução
P
A amizade crescente entre o Irã e o
Hamas faz surgir o espectro de um posto
avançado hostil, patrocinado pelo Irã,
bem às portas de Israel. Ou será que o
Hamas pretende moderar-se, num esforço
para garantir a continuidade de bilhões de
dólares em ajuda ocidental? E se a decisão
for manter o radicalismo, e o Ocidente
suspender sua ajuda, o Irã estará disposto
e será capaz de fornecer os us$ 1,5 bilhões
por ano que os palestinos hoje recebem
do Ocidente? E quem será o chefe nas
relações entre o Irã e o Hamas? O Hamas
será uma marionete iraniana, ou será
independente, usando a ajuda oferecida
pelo Irã da maneira que lhe convier?
Alguns especialistas israelenses vêm
falando de um “eixo Hamas-Irã”, e prevêem
que o relacionamento entre o Irã e o Hamas
levará a um perigoso processo de regionalização do conflito israelense-palestino,
no qual o Hamas será apenas uma arma
nas mãos de forças maiores. Outros dizem
que o Hamas vai aproveitar o apoio
iraniano para constituir um exército
palestino forte e independente. Outros,
Esquadrão de homens-bomba, que se mostram dispostos
a atacar, em parada militar do Hamas: envolvimento do Irã
no conflito israelense-palestino é cada vez mais intenso
20 Revista 18
ainda, afirmam que o nacionalismo do
Hamas e o caos da Autoridade Palestina
acabarão por inibir a relação com o Irã,
embora isto não necessariamente signifique moderação com relação a Israel, ou
que o Hamas vai optar por uma tranqüilidade tática, moderando suas posições e
mantendo distância com relação ao Irã
enquanto busca manter a ajuda ocidental.
A relação entre o Irã e o Hamas
começou, timidamente, no fim da década
de 1980, com a primeira Intifada. O
principal elo entre o Irã e os palestinos era
a então diminuta facção Jihad Islâmica,
que apoiava, sem restrições, a difusão de
uma revolução islâmica ao estilo iraniano.
O Hamas, uma organização muito maior,
dirigida a objetivos nacionalistas, era muito
mais circunspecto, e consciente de suas
diferenças ideológicas com Teerã. Preservava, ciosamente, sua independência
como organização nacional palestina, e
enfatizava seus laços com a Fraternidade
Muçulmana Sunita em vez do Irã xiita.
Ainda assim, ambos desenvolveram
laços operacionais estreitos, baseados em
sua total rejeição a um compromisso de
paz com Israel. Estes laços foram enfatizados significativamente no fim de 1992,
quando Israel expulsou mais de 400
líderes do Hamas para o sul do Líbano. Ali
eles foram abrigados pelo Hezbolá, patrocinado pelo Irã, e desde então o Hezbolá
tem ajudado a treinar os guerrilheiros do
Hamas, e tem servido como um canal
para fundos e armas iranianos.
Com o início da segunda Intifada, em
2000, o Irã incrementou seu envolvimento com os assuntos palestinos, aprofundando seus laços com um Hamas
agora ansioso por cooperar, e com outras
facções palestinas. O fornecimento de
armas e de dinheiro cresceu de maneira
O REPÓRTER
significativa e o Hezbolá transferiu tecnologia de importância estratégica, como
por exemplo da manufatura de morteiros.
Os foguetes do tipo Qassam tornaram-se a
principal arma palestina contra Israel nos
últimos anos.
Entre os pessimistas com relação ao
futuro desenvolvimento da situação está
o ex-embaixador de Israel junto às Nações
Unidas, Dore Gold, um especialista em
movimentos islâmicos e conselheiro político do partido Likud. Ele afirma que o
Hamas e o Irã precisam um do outro estrategicamente, e que esta dependência
mútua poderia levar à criação de um
Estado controlado pelo Irã junto à
fronteira de Israel. Gold afirma que o
Hamas precisa do Irã para perseguir seu
objetivo de destruição de Israel, enquanto
o Irã precisa do Hamas para ampliar sua
esfera de influência. “O Hamas depende
de ajuda externa, tanto financeira quanto
militar, e o Irã é a principal potência
regional disposta a desafiar a tentativa
ocidental de estabelecer paz entre
israelenses e palestinos”, ele afirma.
Gold prevê um cenário negro, no qual
não só o Irã ocupa o espaço radical
conquistado pelo Hamas depois de sua
vitória nas eleições, mas a Al-Qaeda
também. “Temos informações de que, no
verão de 2005, a Al-Qaeda tomou a
decisão estratégica de mudar alguns de
seus chefes do Iraque para países seculares vizinhos – como a Síria, o Líbano e a
Jordânia. Prova destas mudanças é o fato
de que foram vistas operações da AlQaeda na Jordânia, em agosto e em
novembro de 2005, enquanto foguetes
Katyusha foram lançados sobre Israel pela
Al-Qaeda a partir do Líbano, em 27 de
dezembro de 2005. Ao mesmo tempo, há
uma atividade contínua da Al-Qaeda no
Sinai, inclusive presença da Al-Qaeda em
Gaza”, diz Gold. “A questão crítica é saber
se Israel será capaz de isolar as áreas
controladas pelos palestinos de reforços
externos, ou se não conseguirá impedir
que insurgentes e armas cheguem de fora
para aumentar as forças palestinas.”
Yuval Steinitz, presidente do Comitê
Parlamentar para Assuntos Exteriores e
Defesa, membro do Likud, mostra-se menos
preocupado com a Al-Qaeda do que com
os desenvolvimentos no interior da
comunidade palestina. Ele enxerga um
processo já em curso que está conduzindo
ao estabelecimento de um grande exército
palestino que seria uma ameaça à existência de Israel. Em sua opinião, o aumento
no fornecimento de armas, os campos de
treinamento do Hamas e o controle, por
parte do Hamas, das forças de segurança
palestinas, criará a infra-estrutura necessária para uma força militar palestina
considerável, ainda que os acordos de
Oslo determinem que os palestinos estão
proibidos de terem um exército.
Será que o Hamas
pretende moderar-se,
num esforço para
garantir a continuidade
de bilhões de dólares em
ajuda ocidental?
Steinitz há muito tempo vem criticando a confiança de Israel no Egito como
uma força capaz de controlar o terrorismo
palestino. Ele manifesta grande preocupação com o crescimento do contrabando
de armas para Gaza e para a Cisjordânia
pelo Sinai. “O Sinai tornou-se um paraíso
para os traficantes de armas. Muitas destas
armas vêm do Irã, passando pela Líbia e
pelo Sudão. Outras vêm de mercados
ilegais no Egito e nos Bálcãs, e são levadas
através do deserto por mercadores
beduínos”, ele revela. E ao que tudo indica,
os fornecimentos do Irã vão aumentar.
Steinitz acusa também Israel por não
ter evitado a construção de campos de
treinamento do Hamas em Gaza. Se isto
agora passar a ser permitido em Gaza
também, no contexto de uma trégua
prolongada, então forças palestinas bem
armadas logo estarão a poucos quilômetros de distância de alvos estratégicos
bem no centro de Israel. Boa parte das
armas, dos recursos, da tecnologia e do
treinamento virão do Irã.
“O maior perigo”, diz Steinitz, “é que
mais cedo ou mais tarde o Hamas passará
a controlar a polícia da Autoridade Palestina, bem como forças de segurança preventiva e de inteligência, fundindo-as com
suas próprias milícias, e confrontandonos com um exército de 80 ou 100 mil
homens.” Um grande exército comandado pelo Hamas, e apoiado pelo Irã,
poderá acabar fazendo uma guerra total
contra Israel. “A organização não pode
mudar sua ideologia. Ela pode, apenas,
alterar suas táticas de curto prazo. A organização pode dizer que agora precisa de
um ano de tranqüilidade, para armar-se e
colocar seus homens à frente das forças
palestinas. Mas, depois disto, pode acontecer qualquer coisa. E então não teríamos
mais uma simples ameaça terrorista e sim
uma ameaça à nossa existência.”
Quanto às medidas que Israel pode e
deve tomar ante a nova situação, Gold vê
uma ameaça regional importante vinda
do Leste e afirma que Israel precisa
manter o controle sobre o Vale do Jordão.
“Na nova equação estratégica, o Vale do
Jordão torna-se uma barreira essencial
para evitar que a Al-Qaeda, no Iraque,
possa se tornar vizinha do Hamas”, diz ele.
Steinitz sugere que Israel deve isolar os
líderes palestinos e restringir ao máximo
sua liberdade de movimento e seu
contato com líderes estrangeiros.
A vitória do Hamas nas eleições levou
o conflito israelense-palestino de volta ao
ponto em que se encontrava há quase 60
anos, quando da independência de Israel
em 1948. Outra vez, o Estado judeu está
lutando por sua independência, e por sua
sobrevivência, com uma mão estendida
para a paz, mas ao mesmo tempo disposto
a garantir seu próprio futuro. Tudo
depende do que Ahmadinejad e Khaled
Mashal terão a dizer um ao outro em seu
próximo encontro.
© The Jerusalem Report
Leslie Susser é jornalista
Revista 18 21
O REPÓRTER
O custo da democracia
Samuel Feldberg reflete sobre a nova conjuntura política
do Oriente Médio, em que Israel se vê cercado pelos poderes
crescentes de radicais por todos os lados, ao mesmo tempo
em que o Irã acompanha de ameaças e pesada retórica
demagógica o esforço para se tornar uma potência nuclear
rimeiro foi o Líbano. Em um país
destroçado por uma longa guerra
civil, o Hezbolá, grupo armado que
controla um amplo território, optou por
participar do processo político e tornouse um dos principais partidos do país
representando quase com exclusividade a
população xiita local. Depois vieram as
eleições no Egito. Em um país com quase
nenhuma tradição de eleições livres, uma
pequena liberalização permitiu a inclusão
de inúmeros representantes da Irmandade Muçulmana (a “raiz” do Hamas) no
parlamento egípcio. Na seqüência, os iranianos optaram por substituir Khatami
(presidente moderado que buscava uma
flexibilização da sociedade e uma acomodação internacional e funcionava como
elemento de equilíbrio para o radicalismo
islâmico dos mullahs) por um representante das massas que vê no programa
nuclear iraniano, na negação do Holocausto e na destruição de Israel, elementos de propaganda para fortalecer sua
posição hierárquica. (Não custa lembrar
que Hitler também começou assim).
Finalmente, a recente vitória do Hamas
nas eleições parlamentares realizadas em
Gaza e na Cisjordânia (alguns leitores
preferirão a denominação Judéia e
Samária) encerra um ciclo que pode ser
visto como o resultado adverso da
demanda norte-americana pela democratização do Oriente Médio. Não podemos,
entretanto, esquecer que eleições livres
são somente um dos muitos elementos
P
22 Revista 18
O Hamas está dividido
entre os que clamam
pela luta permanente e
os que acreditam ser
longa a história, e que a
trégua pode durar o
suficiente para que os
palestinos se fortaleçam
a ponto de poder
derrotar Israel
que caracterizam os regimes democráticos. A quase totalidade dos outros (liberdade de expressão, garantias individuais,
o direito de ir e vir, e muitos mais) não
está e nunca esteve presente nos países
mencionados acima.
Israel, como não poderia deixar de ser,
é diretamente afetado por todos estes
desenvolvimentos. No Líbano, o fortalecimento do Hezbolá, que continua a fustigar
o norte de Israel com seus foguetes e recentemente viu frustrada sua tentativa de
seqüestrar soldados de um posto fronteiriço, torna-se mais perigoso à medida que
adquire legitimidade sem abandonar a
luta armada servindo, obviamente, de
modelo para o Hamas e criando na prática
uma fronteira geográfica entre o Irã e
Israel. A eleição de elementos radicais
para o parlamento egípcio não representa
um problema imediato para Israel, mas
certamente acende uma luz vermelha
junto à inteligência israelense, que nunca
deixou de considerar a possibilidade de
uma renovada guerra convencional
contra o Egito, apesar da paz (fria) que já
dura quase 30 anos. Um “Irã democrático”
na fronteira sul de Israel certamente
obrigaria as forças armadas israelenses a
considerarem uma nova ação preemptiva
nos moldes de junho de 1967. Enquanto
isso, os egípcios sofrem os efeitos da
anomia na Faixa de Gaza, impossibilitados de controlar o fluxo através de sua
nova fronteira e tendo de suportar, inclusive, o seqüestro de seu representante
diplomático por uma das facções que hoje
lá circulam, livres e armadas.
A trajetória do Irã rumo ao status de
potência nuclear precisa ser vista por dois
prismas diferentes; por um lado, o Irã
almeja a entrada no restrito clube por uma
questão de prestígio, parte da velha disputa
que teve seu ápice com o pan-arabismo no
século passado (o Irã, não árabe mas muçulmano xiita, sempre foi o adversário do
Iraque, do Egito e outros países menores,
seja sob o Xá, seja na era dos aiatolás). Por
outro lado, a posse de armas nucleares
também permitiria ao Irã garantir uma
ampla retaliação a um possível ataque
norte-americano, não contra o território
dos EUA, mas contra sua força-tarefa no
oceano Índico, ou a interrupção do fluxo
de petróleo, por meio de um amplo
bloqueio do estreito de Hormuz.
Visto desde Israel, o problema é muito
mais psicológico que estratégico. Um Irã
munido de armas nucleares e dos meios
de lançamento necessários (seus foguetes,
desenvolvidos com tecnologia russa e
norte-coreana, já têm alcance para atingir
o território israelense, ainda que sem
muita precisão) embarcaria numa aventura completamente irracional e suicida
caso ameaçasse Israel, já que o Estado
Judeu é, sabidamente, detentor de mais de
uma centena de bombas e da capacidade
para lançá-las contra o território iraniano.
Mas há os adeptos do chamado “equilíbrio do terror”1, que alegam que um Irã
nuclearizado contribuiria para a estabilidade regional, nos moldes da que se estabeleceu entre a Índia e o Paquistão, por
receio de uma escalada que levasse a uma
conflagração nuclear.
Ao mesmo tempo, a vitória do Hamas
nos territórios autônomos palestinos
acontece num momento especialmente
delicado para Israel. O cenário político
israelense apresenta-se completamente
indefinido com a ausência de Sharon, até
há pouco tempo seu ator principal, e a
tentativa de consolidação de um novo
partido que deveria dar seguimento a suas
propostas. Para avaliar esta situação, é
preciso compreender, primeiramente, o
cenário externo: o caminho trilhado por
Israel desde a primeira eleição de Sharon
aponta para uma separação cada vez mais
completa entre israelenses e palestinos.
Se as duas sociedades já estiveram intimamente ligadas, por meio de trocas comerciais, da absorção de dezenas de milhares
de trabalhadores palestinos no mercado
israelense e do compartilhamento de
uma ampla infra-estrutura, agora estão
quase completamente separadas. O fluxo
comercial quase desapareceu; a mão de
obra palestina foi substituída em Israel; o
fornecimento de energia elétrica serve
hoje como elemento de chantagem e as
estradas construídas nos territórios ocupados servem para separar bolsões palestinos e não para permitir a movimentação
entre eles. E o muro (ou cerca) que está
sendo construído terminará de dividir os
dois povos, deixando de um lado uma
população israelense permanentemente
em alerta e do outro uma população
palestina, talvez formalmente independente, mas amargurada e com aspirações
Reprodução
O REPÓRTER
O candidato derrotado nas eleições presidenciais do Irã no ano passado, Mustafá Moin, ao lado de
sua esposa: setor moderado é minoria enfraquecida e inexpressiva nas repúblicas islâmicas
O voto palestino foi de
protesto; protesto contra
as condições de vida,
a corrupção, o
desemprego, a
desilusão. Mas apesar
disto, o Hamas eleito
prega, sim, a destruição
de Israel
irredentistas, uma espécie de “Alemanha
pós-Versalhes”.
Sharon já não voltará à vida ativa. A
separação unilateral será certamente a
lembrança mais concreta de sua longa
carreira pontilhada de polêmicas. Seus
admiradores lembrar-se-ão da unidade
por ele comandada, que terminou com os
ataques dos fedayeen na década de 1950;
da travessia do canal de Suez durante a
guerra de 1973, que determinou a vitória
israelense e da ação no Líbano, que de lá
expulsou a olp. Mas seus detratores certamente acrescentarão à lista sua decisão
durante a Guerra do Sinai, que custou as
vidas de inúmeros soldados, as centenas
soldados mortos no Líbano para expulsar
palestinos que em 1993 voltariam a Israel
para governar a Autoridade Palestina, e as
vitimas de Sabra e Shatila, massacres
pelos quais foi responsabilizado.
Muito se tem discutido a respeito de
quem tem a responsabilidade pela atual
situação nos territórios palestinos. Os
palestinos certamente são responsáveis
pelas catastróficas condições em que se
Revista 18 23
Reprodução
O REPÓRTER
Mahmoud Ahmadinejad: retórica do ódio como força de
manipulação política é endossada por liderança religiosa
encontra o povo; pela corrupção que
grassa na sua liderança; pela ausência de
um controle das armas em poder das
milícias. Mas os israelenses seguramente
são responsáveis por terem adiado até o
limite qualquer tentativa de acomodação,
especialmente após a guerra de 1967,
quando líderes como Ben Gurion já perceberam a impossibilidade de manter sob
domínio israelense uma população de
milhões de árabes. Se a expulsão da população árabe não era possível, manter o
território tampouco o seria. A mudança
de governo em 1977, com a ascensão do
Likud, colocou no poder o adversário
histórico de Ben Gurion, Menachem
Begin, que não tinha dúvidas em relação
ao direito do povo judeu de controlar as
áreas em que se encontravam seus símbolos
mais sagrados. Daí surgiu o messianismo
religioso, o movimento de colonização
simbolizado pelos solidéus bordados
(kipot srugot), abraçado por grande parte
da população atual dos assentamentos.
Um exemplo de como será difícil eliminar
esses assentamentos, que o atual governo
24 Revista 18
considera insustentáveis, encontra-se,
não na retirada pacífica da faixa de Gaza,
mas na recente evacuação de Amona, na
margem ocidental do Jordão, que gerou
violento confronto e vários feridos.
Resta agora descobrir como encarar o
novo governo palestino. Nenhuma das
artimanhas da Autoridade Palestina foi
suficiente para evitar que o Hamas obtivesse maioria absoluta dos votos. É certo
que a população palestina não elegeu o
Hamas por seu empenho em destruir o
Estado israelense. O voto palestino foi de
protesto; protesto contra as condições de
vida, a corrupção, o desemprego, a desilusão. Mas apesar disto, o Hamas eleito
prega, sim, a destruição de Israel, ainda
que o movimento esteja dividido entre
aqueles que clamam pela luta permanente e aqueles que acreditam ser longa a
história, e que a trégua e o cessar-fogo
podem durar o suficiente para que os
palestinos se fortaleçam a ponto de poder
derrotar os israelenses. A vantagem com
que Israel conta no momento está na definição de um endereço para o Hamas: até
agora, o assassinato seletivo da liderança
terrorista (ainda que o Sheik Yassin
tivesse sido reiteradamente denominado
seu “líder espiritual”) demandava um
amplo esforço da inteligência israelense
para localizá-la; no momento em que se
tornarem governo, não mais poderão
esconder-se e evitar assumir a responsabilidade por futuros atentados, ainda que
perpetrados por outras organizações
como o Hezbolá ou a Jihad Islâmica. O
Egito provou deste amargo remédio na
década de 1950, quando das incursões
palestinas de Gaza, que culminaram na
campanha do Sinai.
As últimas notícias mencionam
esforços israelenses e norte-americanos
para “secar” as fontes de recursos da Autoridade Palestina, o que levaria a um
colapso e à realização de novas eleições.
Não posso deixar de associar os acontecimentos no Chile de Allende, em que os
Estados Unidos financiaram as greves de
caminhoneiros, levando ao golpe que
derrubou Pinochet. Mais recentemente, a
dissolução do exército iraquiano após a
ocupação do país colocou nas ruas uma
multidão de homens armados e amargurados, que em parte se voltou para a resistência contra a ocupação. A ausência de
fundos para manter a folha de pagamento
das forcas policiais da Autoridade Palestina poderia ter o mesmo efeito.
Que fazer então? Financiar uma entidade que possivelmente continue engajada na perpetração de atentados, ou na
produção de foguetes para lançamento
contra alvos israelenses? É a difícil decisão
que terá de tomar o novo partido Kadima,
quando vencer as eleições de março e
encontrar os parceiros com quem tentará
formar um novo governo de coalizão.
Samuel Feldberg é bacharel em Ciência
Política e História pela Universidade de Tel
Aviv, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do
Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP e membro do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP
2
A situação de equilíbrio gerada pela paridade de
forcas nucleares entre os Estados Unidos e a União
Soviética durante a Guerra Fria, que garantia a
mútua aniquilação em caso de uma guerra entre as
duas super potências.
AF rev 18 14 301105
27/3/2006
11:47
Page 59
ENSAIO
O Islã e o mundo
A doutrina islâmica, que se impõe a seus seguidores como única doutrina verdadeira, não admite
a legitimidade da existência do outro e é incompatível com a noção ocidental de sociedade civil
e democracia. Para Luis Dolhnikoff, as tiranias muçulmanas são mera conseqüência deste fato
esde a revolução islâmica de 1979
no Irã, o islã tornou-se um ator
central no cenário internacional.
Isto gera uma série de problemas de várias
ordens, a começar pelos termos da
discussão. Pois sequer haveria um islã, já
que este termo se refere, ao mesmo tempo,
a uma religião – que em si não é monolítica – e a uma cultura, ainda menos
monolítica do que a religião.
No entanto, existe um islã. Pois todos
os “islãs” têm certos denominadores
comuns. E o conjunto desses denominadores comuns pode, com pertinência, ser
chamado de o islã. Os primeiros denominadores comuns são a adoção de Alá
como Deus, de Maomé como Profeta e do
Corão como livro sagrado. Outros, os
“cinco pilares” do islã, práticas de cumprimento obrigatório: a profissão de fé
(chahada), as rezas diárias (salat), o dízimo
(zakat), o jejum (saum) no mês do Ramadã
(que comemora a data da “revelação” do
Corão) e a peregrinação a Meca (hajj).
Há, porém, outros denominadores
menos conhecidos, como o Hadith,
conjunto de histórias, normas e comentários, atribuído a Maomé, e que complementa o texto do Corão (atribuído a Alá em
si mesmo, que, segundo a crença, doou-o a
Maomé por meio do anjo Gabriel).
Por fim, mas não menos importante,
há o conceito básico da religião islâmica, a submissão – daí a palavra islã
(submissão em árabe). Em princípio, tratase da submissão do homem a Alá. Na
prática, trata-se da submissão dos fiéis ao
próprio islã.
Um denominador comum menos
“oficial”, mas não menos verdadeiro, é o
fundamentalismo. O termo fundamentalismo originou-se nos EUA, no início do
século 20, para designar protestantes que
pretendem se ater aos “fundamentos” do
D
26 Revista 18
cristianismo contra o criticismo moderno.
Isto inclui a noção de inspiração divina –
e não de criação histórica – da Bíblia, o que
implica sua interpretação literal. Terem
adotado um nome específico, cuja conotação é majoritariamente negativa, indica
quão minoritários são no campo cristão.
No caso muçulmano, porém, a leitura
literal ou fundamentalista do Corão é a
A shariá, ou lei islâmica,
é a lei. Não há, assim,
nenhum país islâmico
em que a shariá não
esteja presente. O que
varia é apenas o tipo de
presença. Ou a shariá é
a lei em si mesma, ou é
a parte principal da lei,
ou é a sombra que paira
pesada sobre leis
não-religiosas
norma e o ideal. Assim, nas escolas religiosas (madrassas), os anos de “estudo”
praticamente se limitam à memorização
do texto – que em minha edição tem, com
notas, 781 páginas, fora o índice (SP,
Marsam, 2001, trad. direta do árabe por
Samir el Hayek). Não por acaso, o oposto
da leitura literal, isto é, a livre interpretação do Corão e também do Hadith
(chamada ijtihad), passou a ser condenada
já a partir do século 11, quando o corpus
teórico do islã – que além dos dois
primeiros, inclui ainda a shariá, ou lei
islâmica – foi concluído.
O que nos leva a outro denominador
comum do islã. Não se trata da famosa
não-separação entre Estado e Igreja. Pois
embora o próprio Maomé – ao contrário
de Abraão, Moisés, Buda ou Cristo – tenha
sido ao mesmo tempo líder religioso e
político, além de militar, e apesar de os
principais títulos islâmicos, como califa
(“sucessor” [de Maomé]) e xeque (“ancião”,
autoridade doutrinária), serem tanto
religiosos quanto políticos, há diferenças
entre as posturas sunita e xiita. A primeira
costuma defender apenas a submissão do
governante à lei islâmica, enquanto a
segunda prefere o poder direto dos sacerdotes (sunismo e xiismo; não por acaso,
são divisões originalmente políticas,
surgidas na sucessão de Maomé no século
7). O outro denominador comum é, na
verdade, a não-separação entre a lei civil e a
lei religiosa. De fato, é a própria inexistência, na tradição islâmica, do conceito
de lei civil.
A shariá, ou lei islâmica (baseada tanto
no Corão quanto no Hadith, e concluída
no século 11), é a lei. Não há, assim,
nenhum país islâmico em que a shariá
não esteja presente. O que varia é apenas o
tipo de presença. Ou a shariá é a lei em si
mesma (como no Irã, na Arábia Saudita
ou no Afeganistão dos talibãs), ou é a
parte principal da lei (como nos inúmeros
países que adotam leis complementares),
ou é a sombra que paira pesada sobre leis
não-religiosas (como na Turquia).
À sombra da lei islâmica, não apenas é
impossível uma verdadeira lei civil, como
também é impossível uma imprensa livre
(pois tudo tem de ser “religiosamente
correto”). E sem uma lei civil e uma
imprensa livre, não existe sociedade civil
que mereça o nome (desconsiderando-se
muitos outros impedimentos, como as
fidelidades tribais e o profundo patriarcalismo). Porque a sociedade civil depende,
entre outras coisas, de um sistema legal
que proteja sua autonomia (“norma
própria”), assim como de uma imprensa
livre que garanta sua voz. Sendo a democracia a expressão política da sociedade
civil, e não havendo uma verdadeira
sociedade civil nos países islâmicos,
explica-se a impermeabilidade das sociedades islâmicas à democracia.
Explica-se, também, a persistência de
ditaduras e reinados no mundo árabeislâmico, que não é, portanto, mera
conseqüência do interesse ocidental em
apoiar a ordem em países produtores de
petróleo, mas igualmente o resultado da
ausência de uma sociedade civil.
Explica-se, ainda, o verdadeiro problema
da política de exportação da democracia.
Os argumentos habituais baseiam-se em
premissas ideológicas: dizem que a democracia, um produto cultural do Ocidente,
não pode ser exportada; a democracia não
deve ser exportada, pois isto seria uma
imposição cultural. O primeiro argumento não resiste à história: de um modo
ou de outro, a democracia ocidental foi
exportada para o Japão, a Coréia, Taiwan e
a Índia. O segundo argumento não resiste
aos fatos: não há, infelizmente, regime
melhor (ou menos pior, parafraseando
Churchill) no cardápio mundial. Não por
acaso, nenhum outro garante o respeito
aos valores internacionais fundamentais,
como os direitos humanos. Qual é, então,
o problema da política de exportar a
democracia? É não se estar a exportar a
democracia – já que não se pode exportar
a sociedade civil. Exporta-se, portanto,
apenas o método eleitoral.
Existe hoje o hábito desinteligente de
reduzir a democracia ao processo eleitoral.
Eleições, porém, são apenas um método de
referendar governos representativos. Democracia, por outro lado, não é um método,
mas um sistema político e jurídico.
Na verdade, o método de escolha do
governante é de relevância menor para
a definição da democracia. Os eua
escolhem seu presidente por via indireta.
No parlamentarismo, é o Parlamento
que escolhe o chefe de governo. O que
Reprodução
ENSAIO
Charge publicada no jornal saudita de língua inglesa The Arab News retrata Ariel Sharon
brandindo um machado em forma de suástica crianças palestinas: demonização e
incitamento ao ódio estão, há décadas, na ordem do dia da imprensa do mundo árabe
O islã, como religião e
como cultura, pressupõe
uma sociedade tutelada,
originalmente, pela
própria religião. O
antagonismo, assim, não
é com a democracia em
si, mas com a concepção
de sociedade conforme a
reconhecemos e
defendemos no Ocidente
importa é a existência da sociedade civil
soberana (apesar mesmo das injunções
econômicas do capitalismo) – que então,
soberanamente, escolhe como quer
escolher seus governantes.
Não surpreende, em todo caso, que
exportar eleições para lugares onde a
sociedade civil é fraca ou inexistente,
enquanto são fortes os grupos antidemocráticos (como no mundo muçulmano),
resulte, cedo ou tarde, no fortalecimento
desses mesmos grupos por meio das
próprias eleições.
Mas como se resolve, então, o
problema dos grupos antidemocráticos
muito populares, como a Frente Islâmica
de Salvação na Argélia e o Hamas nos
territórios palestinos? Considerando que
a democracia tampouco tem a ver automaticamente com maiorias eventuais –
mas sim com regras republicanas. Ou seja,
regras que têm de valer para a totalidade
do espectro político. Uma eventual
maioria eleitoral que confronte essas
regras não merece, portanto, participar do
jogo – muito menos vencê-lo. É o caso dos
grupos que pregam a teocracia (de fato
proibidos na Turquia, a menos imperfeita
das democracias muçulmanas – de modo
equivalente, na Alemanha, grupos que
pregam abertamente o nazismo não
podem concorrer nas eleições).
O caminho, na prática, é o desenvolvimento das instituições mínimas e da
Revista 18 27
ENSAIO
mentalidade básica de uma sociedade
civil antes da realização de qualquer
eleição. O que foi feito na Índia pelos
ingleses, no Japão pelas forças americanas
de ocupação, na Coréia do Sul por uma
ditadura autóctone, em Taiwan pelo
Kuomintang, e mesmo no México pelo pri.
Mas não pela Autoridade Palestina – que,
apesar de eleições mais ou menos
periódicas, instituiu uma autocracia
corrupta, na qual as instituições e os
serviços públicos são completamente
seqüestrados por um partido (Fatah), não
representando, portanto, a sociedade
civil, enquanto se tolera o fortalecimento
de grupos antidemocráticos (pois terroristas e teocráticos) como o Hamas.
Em suma, o islã, como religião e como
cultura, pressupõe uma sociedade tutelada, originalmente, pela própria religião
(o que faculta e facilita a eventual tutela
de outros tipos). O antagonismo, assim,
não é com a democracia em si, mas com a
concepção de sociedade conforme a reconhecemos e defendemos no Ocidente
(plural que se justifica pelo fato de a única
grande corrente política antidemocrática
ocidental, o comunismo, ter sido extinta:
somos hoje, portanto, todos democratas,
nem que seja por falta de alternativa).
Esse antagonismo fica claro na vitória
ou na votação expressiva de grupos e
tendências teocráticos em todos os países
islâmicos onde, nas últimas décadas,
houve eleições, desde a Argélia em 1991
(o que, aliás, resultou na anulação dos
resultados) até o Irã em 2005 (com o
retorno da linha dura), passando pelo
Líbano (com a grande representação
parlamentar do Hezbolá) e o Egito (o
mesmo para a Irmandade Muçulmana),
até culminar na eleição do Hamas nos
territórios palestinos. Cada eleição
envolve questões internas imediatas,
como, no caso palestino, a censura à
corrupção e à inépcia do Fatah. Mas isto
não explica tudo. Tampouco o explica a
consagrada crença de que o que acontece
no mundo muçulmano é mera reação a
ações ocidentais. Pois o islã, além de denominadores comuns, tem vida própria –
inclusive como ideologia política.
O antagonismo com a concepção ocidental de sociedade civil fica também
claro no recente episódio das charges de
Maomé publicadas na imprensa européia.
28 Revista 18
De instituições supranacionais como a
Organização da Conferência Islâmica
(oci) e a Liga Árabe, passando por inúmeros governantes e ministros, até chegar
aos clérigos e às multidões, o mundo
muçulmano, tanto oficial quanto oficiosamente, pronunciou-se de forma massiva,
agressiva e intolerante contra a liberdade
de expressão (e, na prática, contra os
direitos humanos, pelo teor da maioria
das reações). Qualquer outra consideração
é ociosa: tratou-se pura e simplesmente da
defesa da supremacia do dogma religioso
(a proibição de retratar Maomé) sobre a
liberdade de expressão – que inclui,
Dizem que a democracia,
um produto cultural do
Ocidente, não pode ser
exportada, pois isto seria
uma imposição cultural.
O primeiro argumento
não resiste à história:
de um modo ou de outro,
a democracia ocidental
foi exportada para o
Japão, a Coréia, Taiwan
e a Índia. E o segundo
argumento não resiste
aos fatos
naturalmente, a liberdade de não seguir
dogmas religiosos. Pois a partir do instante
em que um dogma tenha o direito de
restringir a liberdade de expressão, outros
dogmas prontamente se apresentarão. E
não existe meia liberdade de expressão.
Daí não haver verdadeira liberdade de
expressão no mundo muçulmano (nem,
portanto, liberdades e garantias civis). Em
compensação, há uma infinidade de
matérias diárias obscenamente antisemitas, anti-ocidentais e anticristãs em
todos os meios de comunicação, dos
jornais às tevês (em que, por exemplo,
judeus roubam órgãos de crianças
palestinas para transplantá-los em
pacientes israelenses). Mas isso, ao
contrário das charges de Maomé, isso
parece não incomodar ninguém – nem no
mundo muçulmano, nem no complacente mundo ocidental.
O que nos leva a outro denominador
comum do islã: o conceito de Umma
(comunidade), o conjunto dos “fiéis” (daí
os líderes islâmicos se referirem constantemente os “1,5 bilhões de muçulmanos”;
daí haver a Organização da Conferência
Islâmica, única organização de Estados no
mundo de caráter confessional). A partir
de tal conceito, a doutrina islâmica divide
o mundo em duas partes: as terras onde os
“fiéis” dominam formam o Dar el Islam, “a
casa do islã”, enquanto o resto do mundo
é o Dar el Harb, “a casa da guerra” (porque
não sujeita à lei islâmica, que garantiria a
paz, e porque passível de ser guerreada
pelo islã). É essa visão dicotômica, aliada à
crença na superioridade do islã como
última – e definitiva – das religiões monoteístas, que explica o duplo padrão
referido acima.
Tal dicotomia também explica mais
um denominador comum: os muçulmanos habitualmente se manifestam
sobre questões que lhes interessam diretamente, mas, ao contrário do que ocorre
em outras culturas, jamais se manifestam
sobre questões que não lhes interessam
diretamente (guerras que não envolvem
muçulmanos, problemas ambientais,
genocídios vitimando “infiéis”, fomes africanas etc.). A mesma dicotomia explica,
ainda, o completo descaso pelas legislações nacionais e pela lei internacional
quando em confronto com a lei islâmica.
E, sem esse descaso, um líder islâmico
não poderia decretar uma condenação
contra um cidadão qualquer, de qualquer
origem, sem qualquer julgamento, e ver
seu decreto respeitado pelos muçulmanos. Sem ele, tampouco poderia o islã
prever em seus códigos punições (naturalmente distintas) para muçulmanos e para
não-muçulmanos de todos os lugares, por
crimes que só existem para o próprio islã,
numa espécie de jurisdição universal
autoproclamada. E isto, não apenas as
ações ocidentais de qualquer tipo, explica
muito das tensões atuais. Luis Dolhnikoff é escritor e ensaísta
PERFIL
Teoria e prática
das células-tronco
A geneticista Mayana Zatz está na linha de frente da pesquisa
com células extraídas de embriões humanos.
Mas enfatiza que ainda está no estágio de pesquisa,
não de tratamento. Por Cláudia Altschüller
geneticista Mayana Zatz hoje
lidera um grupo de cientistas que
se dedicam à pesquisa de ponta
em células-tronco. Professora titular de
genética, diretora do renomado Centro de
Estudos do Genoma Humano da USP e,
desde dezembro de 2005, pró-reitora de
pesquisa da mesma universidade, é autora
de 270 artigos científicos publicados em
periódicos especializados. Mayana coordena uma equipe de 16 pesquisadores,
entre alunos de graduação, doutorado, pósdoutorado e técnicos. Todos trabalham na
identificação de novos genes relacionados
a doenças neuromusculares, que afetam
uma em cada mil pessoas ao redor do
mundo, e em pesquisas com célulastronco visando futuras terapias.
Mayana descobriu a enzima responsável por um tipo de distrofia muscular e
fez parte do grupo que descobriu seis
genes ligados a doenças neuromusculares. Aperfeiçoou também métodos de
diagnósticos precoces de distrofia e
testes que permitem descobrir a chance
de ter filhos com a enfermidade. Recebeu
distinções como o prêmio Women in
Sciences, unesco/l’oreal (2001), por suas
pesquisas em distrofia muscular, e Basic
Medical Sciences, Third World Academy of
Sciences (2004), entregue a cientistas que
se destacaram em suas áreas de conhecimento no chamado Terceiro Mundo.
As células-tronco embrionárias têm o
potencial de formar todos os 216 tecidos do
corpo humano e, portanto, podem vir a
beneficiar portadores de diferentes tipos de
A
30 Revista 18
doenças como síndromes neuromusculares,
diabetes e mal de Parkinson. Porém, tratase de um campo de pesquisa que, para
além das dificuldades científicas propriamente ditas, envolve também uma série de
questões éticas e legais. No Brasil, as célulastronco somente podem ser extraídas de
Grupos de judeus
ortodoxos aprovam as
pesquisas, pois
chegaram à conclusão
de que um embrião
congelado não tem o
status legal e religioso
de um ser humano
embriões humanos inviáveis (ou seja, que
por algum defeito genético pararam de se
dividir e não servem para implantação)
ou que estejam congelados há mais de três
anos. Em todos os casos, a instituição de
pesquisa precisará do consentimento
informado dos pais biológicos do embrião.
Mayana ficou conhecida fora da comunidade acadêmica ao se tornar uma das
líderes mais ativas da campanha pela liberação do uso de embriões humanos em
pesquisas com células-tronco na época
em que se debatia a lei de biossegurança,
aprovada em março de 2005. Esteve nas
principais mídias, pois achava que a
sociedade deveria também discutir as
questões éticas da lei.
À época, houve intensa pressão de
grupos conservadores como a Igreja Católica e parte da comunidade evangélica,
que se opunham às pesquisas por razões
religiosas. Os judeus liberais e os ortodoxos não são contrários às pesquisas.
“Há algum tempo, participei de um
debate com um rabino ortodoxo e ele era,
inicialmente, contra. Dizia que não se
podia destruir uma vida para salvar outra.
Expliquei que não estávamos destruindo
vidas; estávamos pegando embriões
congelados, que têm um potencial de vida
baixíssimo”, diz. Depois, a bióloga soube
que grupos de judeus ortodoxos passaram
a aprovar as pesquisas, pois chegaram à
conclusão de que um embrião congelado
não tem o status legal e religioso de um
ser humano.
Mayana adverte que os benefícios das
pesquisas com células-tronco não serão
imediatos. “Eu fiz um barulho grande
para a aprovação da lei e agora tenho
que colocar água na fervura porque as
pessoas querem resultados imediatos. E,
com isso, já está cheio de charlatões
oferecendo células-tronco para curar
Arquivo pessoal
PERFIL
Mayana Zatz: pesquisa de ponta não destrói vidas e apenas trabalha
com embriões que têm baixíssimo potencial para sobreviverem
qualquer coisa”, adverte. Ela considera
importante enfatizar que ainda se está no
estágio de pesquisa e não de tratamento.
Serão necessários alguns anos para que se
possa comprovar a eficácia da terapia.
Existe uma grande diferença entre tentativa terapêutica e tratamento.
Paralelamente ao trabalho de pesquisa,
Mayana tem se empenhado em melhorar
a qualidade e expectativa de vida de portadores de distrofias musculares. Em 1981,
fundou a Associação Brasileira de
Distrofia Muscular (Abdim), que atende
gratuitamente pacientes que previamente
passaram por uma triagem no Departamento de Biociências – USP. A entidade,
localizada em São Paulo, tem como objetivo principal consolidar-se como centro
de referência, no Brasil, no tratamento e
apoio aos portadores da enfermidade.
Mayana, que nasceu em Tel Aviv em
1947, passou na França a primeira
infância e mudou-se para o Brasil com a
família em 1954. Construiu em São Paulo
sua sólida carreira científica, cujas raízes
remontam à infância. “Quando menina,
eu não sabia direito se ia ser médica ou
cientista. No colegial, resolvi, então, fazer
genética humana porque poderia aliar as
duas coisas, a pesquisa e a parte de lidar
com pessoas”, diz. Ingressou no curso de
Ciências Biológicas da USP, onde permanece até hoje. Cláudia Altschüller é jornalista
Revista 18 31
Fotos: divulgação
PERFIL
Humor à moda judaica
Marleine Cohen encontra-se com os integrantes do grupo Os Raposas e a
Uva, que mantém vivo o humor muitas vezes esquecido da tradição hebraica
S ão seis humoristas e uma sonora gargalhada!
– Conhece aquela da mulher que se enrosca no
marido e com jeitinho lhe pede: “David? Fofo,
compra um radinho para mim?”
E ele lhe responde: “Qual o rádio que você quer
ganhar, fofa?”
E Sarah diz: “Ah!... Pode ser um daqueles que têm
carro por fora!”
Seja ashkenazi, seja sefardita, não há como ficar
alheio às alfinetadas do grupo de humor judaico
Os Raposas e a Uva.
Embaixadores do bom-humor, como se autodefinem nas palavras de Ahuva Flint – educadora e
única mulher do grupo –, entre o palco e a mais
distante comunidade judaica da face da terra a
milhões de léguas de distância, os Raposas não
poupam ninguém: da mocinha idish com sotaque
yeke, incorporada por Ahuva, a Mohamed, judeu
palestino representado por Alberto Simantob,
único sefardita da turma, ninguém escapa.
“A coisa já começa a ser engraçada quando se
pensa que se trata de um grupo de judeus que... não
cobra nada para se apresentar!”, provoca Jô Soares,
que os recebeu em seu programa, assim como
Faustão e várias entrevistadoras.
32 Revista 18
A bem da verdade, a química que faz desopilar o
fígado do público se impôs assim que os seis
camaradas se reuniram pela primeira vez.
Isso aconteceu por acaso, por ocasião do
lançamento do livro Enciclopédia do Humor Judaico,
de Henry Spalding, no Brasil, em outubro de 1997.
Lembra Ahuva: “Como o autor do livro não podia
comparecer ao evento por ser um homem de idade
avançada, o editor, Jairo Fridlin, da Editora Sêfer,
teve a idéia de convidar alguns amigos, humoristas
notórios, amadores e contadores de piadas, para
animar a noite na Livraria Cultura de São Paulo”.
Dito e feito: os convidados foram à noite de autógrafos: David (Kaleka), Zig (Mermelstein), Rubens
(Bisker) – a quem Ahuva já conhecia –, e mais Alberto
(Simantob), Marcos (Susskind), entre tantos outros.
“Em determinado momento, me pediram para
contar uma piada no microfone: eu não tive como
recuar. Então, arrisquei:
E Moishe pergunta ao amigo:
– Chaim, diga-me, tua mulher faz sexo contigo
por amor ou por interesse?
Ao que ele responde:
– Creio que por amor, Moishe.
– E como sabe?
PERFIL
– Ora! Porque ela não mostra nenhum interesse!”
Naquela mesma noite, duas ou três piadas depois,
estava formado o grupo Os Raposas e a Uva – e o
público se contorcia de rir, sentado no chão.
O nome escolhido? Uma licença poética para
um jogo de palavras com Ahuva, nome próprio que
em hebraico significa querida.
A missão: “Principalmente fazer benemerência”,
elegendo o humor como ferramenta para ajudar a
aliviar o dia-a-dia dos necessitados e menos
favorecidos, explica ela. “Mas também consolidar a
idéia de que o judeu não é um avarento, ranzinza,
que só pensa em guerra e ocupar terras da Palestina;
é um povo capaz de fazer piadas e de rir de seu
cotidiano e das próprias vicissitudes”, como bem
mostram Woody Allen, os irmãos Marx, Jerry
Seinfield, Mel Brooks, Peter Sellers e tantos outros
humoristas, através da história.
A partir daquele dia, na carteira de clientes dos
Raposas, além do Pioneiros de Santo André – primeira
instituição a encomendar um novo espetáculo
poucos dias depois da noite de autógrafos –, surgiria
um número crescente de ongs, instituições sociais e
entidades religiosas: o Instituto Padre Cacique, de
Porto Alegre; a Igreja Perfect Liberty, de Arujá; a
Associação Minha Rua Minha Casa, de São Paulo; a
Doentes Carentes do Hospital Amaral de Carvalho, em
Jahu, além – é claro – da Unibes, do Lar Golda Meier,
do Refeitório Comunitário Ten Yad e tantas outras
instituições beneficentes da comunidade judaica.
“Trabalhamos exclusivamente com entidades e
instituições não políticas que possuam boa administração financeira, credibilidade e notória ação
social em comunidades carentes ou assistência às
pessoas especiais”, afirma a educadora.
Ao todo, segundo o empresário Alberto Simantob,
são 126 espetáculos gratuitos realizados até o
momento por todo o Brasil – dos quais 82 para
entidades beneficentes não pertencentes à comunidade judaica. Em comum, têm o propósito de
revolver e trazer à tona características próprias aos
judeus dos quatro cantos do mundo: os percalços
da Diáspora e as agruras da imigração, a relação
com o dinheiro e a religião, a comida kasher, os
laços familiares, os guetos urbanos, como o Bom
Retiro e Higienópolis, em São Paulo, e o exercício
da medicina, entre outras tantas.
“Fazemos um show por mês, em média,
buscando acima de tudo mostrar o judeu como um
benemerente, e vincular esta benemerência a causas
sociais”, explica Ahuva Flint, lembrando que as
apresentações extrapolam não só a comunidade,
mas também a cidade de São Paulo. “Começamos a
trabalhar em março para chegar a um total de sete
eventos ao ano, dirigidos tanto a crianças de 7, 8
anos quanto a idosos. Quando fazemos shows em
Rubens Bisker, David
Kaleka e Ahuva Flint
com Jô Soares: “A coisa
já começa a se tornar
engraçada quando se pensa
que se trata de um grupo de
judeus que não cobra nada
para se apresentar...”
lugares particulares, como, por exemplo, em navios
ou bufês, atribuímos um valor comercial ao
espetáculo e o atrelamos à benemerência de
alguma entidade”.
Benemerência?
Explica-se: os espetáculos dos Raposas são
gratuitos por ideologia e por opção. “Somos artistas
amadores, não temos nenhuma pretensão ao
estrelismo e, sim, de atender a um preceito judaico
e do Arquiteto do Universo denominado tzedaká –
o maior de todos no judaísmo”, explica Alberto
Simantob. Segundo ele, a palavra em hebraico é
muitas vezes erroneamente traduzida por caridade,
mas, na verdade, quer dizer justiça, e, neste caso,
particularmente, significa justiça social.
Integração e farra
E de que se alimenta o humor de Os Raposas e
a Uva?
Além do banco de piadas, existente no site do
grupo (www.osraposaseauva.com.br) e aberto a
todos, os integrantes vão pesquisar em livros e
revistas, discos e filmes.
“Também recebemos piadas de amigos e nos
inspiramos no dia-a-dia, sempre atentos a situações
que têm a ver com o universo da nossa comunidade
e que podem se transformar em algo engraçado”,
conta Ahuva.
Mas é acima de tudo o clima mágico de integração, presente durante os ensaios, que fornece a
matéria-prima necessária para o bom humor do
grupo: “Uma vez por semana, nos reunimos na casa
de um de nós e começamos a ensaiar. Estes encontros
são muito divertidos; lanchamos juntos, trocamos
piadas novas, idéias; rimos muito”, relata Ahuva.
Cada integrante tem sua “especialidade”. Assim,
Alberto (Simantob) tem como principal função no
grupo, segundo ele próprio, “coordenar as correspondências e as reuniões de ensaio e agendar
shows”. Ele entra no palco na pele do judeu
Revista 18 33
PERFIL
Alberto Simantob, Marcos Susskind, David Kaleka, Ahuva Flint e Rubens Bisker e,
deitado, Zig Mermelstein: cada integrante tem sua “especialidade” no grupo
palestino, aventurando-se pelo mundo sefardita.
Rubens (Bisker) é considerado o mentor intelectual
dos Raposas, enquanto David (Kaleka) é “o mais
organizado do grupo”. Marcos (Susskind) é
chamado de “o detalhista” – e encarna o clássico
ashkenazi; como tal, não precisa de muito esforço
para provocar risadas: “Minha função no grupo é
talvez a mais importante de todas”, diz. “Sou eu
quem leva o pano de chão para limpar o palco,
antes e depois das apresentações. É claro que se um
dia eu faltar, não tem espetáculo!” “Entrei no grupo
por recomendação do grande Rashi, rabino que previu
que eu seria um grande humorista e que disse isto
para minha tataravó. De bate-pronto, ela morreu de
rir. Quem duvidar que se mate para encontrá-la no
Paraíso e confirmar esta versão!” “Se não fossem Os
Raposas, não sei o que seria da minha vida: é que
graças ao grupo eu tenho... tantas dívidas!”
Ahuva Flint, por sua vez, entra no palco com o
ouvido afiadíssimo, disposta a passear pelos
diversos personagens femininos existentes no Bom
Retiro: a polonesa, a hebraica e outras. Quanto a Zig
(Mermelstein), tem a seu favor uma estatura
invejável que lhe permite se impor de pronto e ser
reconhecido pelo público simplesmente como “o
Zig, o grandão!”
São 75 minutos de puro deleite; os integrantes se
revezam diante do público e dispõem, cada qual,
34 Revista 18
de um bloco no qual chegam a contar seis piadas
ou “causos”.
O sucesso é tão grande que a agenda dos seis
humoristas inclui o lançamento de um dvd, com
exímia seleção de piadas, e o desdobramento da
mera apresentação artística no palco: um trabalho
de orientação empresarial às entidades que os
contratam, com dicas de como vender o espetáculo
ao público, como montar o show e buscar patrocínio, entre outras.
“Fazemos o que fazemos porque temos certeza
de que assim ajudamos o outro, ora com o dinheiro
arrecadado durante o espetáculo, ora com o lazer
proporcionado. Nosso objetivo é dar felicidade às
pessoas. É o nosso maior presente”, explica Ahuva
Flint, concluindo: “Rir faz esquecer os problemas”.
Disposto a não encerrar o bate-papo, Alberto
Simantob ainda emenda: “Gostaria de contar aos
leitores a piada do papagaio que o Jacó ganhou,
mas que a redação censurou. Então, quem quiser
ouvi-la deve assistir ao nosso show...”
Seria este um convite formal, Alberto?
“Bem... sabe como é”, diz. “Esta é a diferença
entre a saída à francesa e à judaica; na primeira, o
sujeito vai embora sem se despedir. Já na saída à
judaica, ele se despede, mas nunca vai embora...” Marleine Cohen é jornalista
Nossa
História
Fotos: divulgação
LETRAS E ARTES
A cerimônia de kapará, realizada um dia antes do Yom Kipur, dia do perdão: rito de absolvição
Gestos de fé
Fotografar o invisível parece ser o objetivo de André Douek ao documentar
os preparativos das celebrações da liturgia judaica tradicional
azer uma documentação fotográfica dos
rituais da liturgia judaica conforme praticados pelos seguidores da ortodoxia é uma
tarefa praticamente impossível. Isto porque as
leis que se referem à maior parte dos dias santos
do calendário judaico proíbem, nestas datas, o
exercício de qualquer trabalho – inclusive o de
fotografar. Deparando-se com esta impossibilidade, André Douek, fotógrafo brasileiro nascido
no Egito, começou a procurar meios para a
realização de um projeto que, havia anos, germinava em sua imaginação.
F
36 Revista 18
Seu desejo era documentar os ritos judaicos,
associados a dimensões da existência que não
fazem parte do mundo quotidiano e, em seu caso,
ligados também às suas memórias da terra natal,
que deixou aos sete anos de idade, em 1962 – ele e
sua família foram dos últimos a deixarem o Egito,
depois da expulsão promulgada por Nasser em
1957, que pôs fim a uma das mais antigas e tradicionais comunidades judaicas do mundo.
As lembranças nítidas da infância e da vida
familiar no Cairo permaneceram com Douek,
porém, como matrizes que organizam o universo
LETRAS E ARTES
A purificação do lar por meio da remoção do chametz, realizada um dia antes de Pessach: para contornar proibição religiosa de fotografar
durante os dias santos, Douek optou por documentar os preparativos das principais cerimônias que marcam o calendário litúrgico judaico
dos sentimentos, de maneira que presenciar a celebração das festas religiosas, cada qual com seu
sabor específico, tornou-se, também, uma maneira
de reencontrar o passado irremediavelmente
perdido, não obstante as diferenças entre as celebrações judaicas no Egito e no Brasil.
Tanto quanto para as festas em si, a nostalgia
de Douek volta-se para o Cairo de sua infância,
onde a vida, seja a dos muçulmanos, seja a dos
cristãos coptas, seja a dos judeus, lhe parecia
impregnada de religiosidade em todos os seus
aspectos. “No Egito daquele tempo a palavra de
uma pessoa valia tudo. Havia um grau enorme de
confiança entre as pessoas, nem se pensava em
contratos”, diz ele.
Recuperar a inocência e a simplicidade perdidas
na voragem materialista e no cinismo, e evidenciar
a sacralidade do tempo conforme cultivada pelos
que seguem a fundo todos os preceitos do judaísmo
tradicional; fotografar o invisível e o proibido,
porque sagrado, foram, assim, os objetivos que ele
tinha em vista ao se lançar neste projeto, que a
Revista 18 publica em primeira mão.
Em meio à desorientação da vida mundana – e
da história – o ritual proporciona refúgio, segurança e libertação. A santificação do tempo
suspende as incertezas para mergulhar quem dela
participa no sentimento e no sentido de maravilhamento. E o rigor das leis judaicas referentes às
festas tem como objetivo, justamente, preservar
este espaço de suspensão dos condicionamentos,
construir, como que uma cerca em torno destes
momentos apartados do calendário comum, para
que nada perturbe sua vivência.
O ritual judaico não é algo que pode ser descrito
em palavras, nem compreendido pela razão ou pelo
intelecto. É algo que ameaça perder-se no tempo e
nas migrações dos judeus por todos os quadrantes
Revista 18 37
38 Revista 18
Na página oposta, no alto, dedicação de uma letra de um Sefer Torá por uma família e, abaixo, preparação para o toque do Shofar, que marca as
cerimônias relativas ao Ano Novo judaico: manutenção da tradição atravessa os séculos, os continentes e as adversidades da história. Acima, prece
ante o santuário onde ficam guardados os pergaminhos enrolados que contêm, em manuscritos hebraicos, os cinco livros de Moisés: a Torá é o
templo portátil do povo judeu
do mundo, mas que acaba por sobreviver, como um
legado, tão abstrato quanto precioso, a ser transmitido às novas gerações.
Como conciliar, então, as múltiplas restrições
que envolvem o ritual com seu desejo de
documentá-los? De uma maneira muito judaica,
isto é, contornando o problema sem perder de vista
o objetivo, Douek teve a idéia de retratar os preparativos das festas, antes de seu início propriamente
dito, produzindo imagens que são, por assim dizer,
um índex, um sinal daquilo que está por vir.
Assim, por exemplo, ao abordar a festa de Pessach,
em que se comemora, justamente, a libertação dos
judeus da escravidão do Egito, Douek fotografou
aquele momento, antes do início da festa, em que as
crianças das casas, munidas de velas, acompanham
o pai em busca do chametz, isto é, dos alimentos
fermentados que precisam ser retirados, para
simbolizar uma ruptura com o passado e um novo
início – da mesma forma que a partida do Egito
representou, para o povo judeu, o começo de uma
nova vida. “Na véspera do Pessach é feita a busca do
chametz. O chefe da casa faz uma bênção e, com
uma única vela acesa, passa pelas dependências
escuras, em todos os lugares onde possa haver
chametz. Na manhã seguinte, o chametz coletado é
queimado numa pequena fogueira”, narra Douek
em sua apresentação destas fotografias.
Outra das celebrações abordadas é a de Shavuot,
festa que se comemora 50 dias depois de Pessach, e
que celebra a colheita dos grãos na terra de Israel.
Simchat-Torá, que comemora a outorga da Torá ao
povo judeu, junto ao Monte Sinai, e ao mesmo
tempo a renovação das gerações, é evocada pela
presença de crianças junto aos manuscritos
sagrados, ao mesmo tempo em que Douek documenta o trabalho de um escriba. Rosh Hashaná, o
início do novo ano, e Yom Kipur, o dia da expiação,
são abordadas, entre outras imagens, por meio do
toque do Shofar e dos ritos preparatórios da Kapará,
em que uma galinha simbolicamente expia as
transgressões cometidas.
Estas fotografias despertam a memória e a
presença de um universo que está além dos
sentidos. São os gestos de uma fé milenar, que
resiste a tudo. (L. S. K.)
Revista 18 39
Franz Kafka,
leitor da realidade
concreta?
Enrique Mandelbaum discute ensaios de Michael Löwy,
que buscam compreender o instigante legado de Kafka
como reflexo de realidades históricas, mas deixam de lado
aspectos importantes inerentes à sua literatura
m maio de 1924 Kafka agonizava,
dilacerado por uma tuberculose que
provocava lesões na garganta, tão
graves que a respiração, a fala e a deglutição estavam seriamente comprometidas. Sua aparência física materializava
uma agonia na qual se tornava quase
impossível encontrar a esperança de
vencer a morte. Aos 41 anos, kafkianamente, Kafka morria de fome, realizando
um incrível esforço para revisar as provas
tipográficas de seu texto Um artista da
fome. No dia 2 de junho, a agonia atingia o
nível do insuportável. Ele pede ao seu
médico: “Mate-me, senão você é um assassino”. Finalmente numa terça-feira, 3 de
junho, ao meio-dia, Kafka morre. Morre
mas não desaparece. A partir daí, uma
literatura que se estima em mais de
20.000 títulos, sem contar as centenas de
milhares de páginas nunca publicadas de
autores anônimos e as incalculáveis
reflexões que sua pequena obra escrita
desperta em cada um de seus leitores, é
posta em movimento, com uma intensidade tão enérgica que nada indica que
virá a se esgotar.
Enquanto os homens enfrentarem as
mazelas do dia-a-dia urbano, do mundo
organizado do qual nunca mais se espera
que eles saiam, Kafka estará presente
como um outdoor afixado permanentemente numa das vias principais, próximo
do olhar de toda a multidão anônima que
E
40 Revista 18
por ali circula. Kafka é daqueles poucos
autores cuja obra transborda os textos e se
transforma em parte do cenário das vidas
humanas, ressoando em todas as
dimensões das situações dos homens.
Toda organização estatal de qualquer país
do mundo tem algo de kafkiano. Toda
instituição, pública ou privada, religiosa,
acadêmica ou mafiosa, midiática, beneficente, esportiva, social ou o que seja, tem
algo de kafkiano em seu interior. Toda
casa, toda vida em família reserva, em
seus aposentos, um nicho kafkiano. Toda
fala entre os homens, toda comunicação
acolhe também tanto a demanda por um
entendimento quanto o mal-entendido,
sendo que ambos podem ser kafkianos.
Enfim, todo homem guarda em seu
interior uma estranheza de si consigo
próprio que é também kafkiana. Kafka
penetra tão fundo a vida que é capaz de se
instalar em compartimentos e lugares do
acontecer humano tão raros que poucos
autores, para não dizer nenhum outro,
conseguem lhe fazer companhia.
Entre as letras e a vida humana, o espaço
é difícil de ser encurtado e não existe, como
os velhos rabinos já sabiam, qualquer trilha
fácil, qualquer atalho facilitador. Por isto,
é bom desconfiar de toda escrita e, antes
de mais nada, desconfiar de nós próprios.
Dostoievski disse: “O homem é um patife
– e patife é aquele que diz sê-lo”, incluindo
a si próprio como uma voz portadora da
Marcelo Lerner
LETRAS E ARTES
LETRAS E ARTES
qualidade de patife, para despertar em seus enorme desejo de liberdade e uma extrema
leitores uma desconfiança que não se sensibilidade para com a violência promoreduza à relação com os outros e com o vida pelas fontes de poder arbitrárias, que
mundo que os rodeia, mas que inclua se deslocariam como que em ondas
antes a eles próprios, fazendo de cada um sísmicas desde um epicentro do poder do
pai sobre os filhos até as instâncias buroalguém desconfiado de si mesmo.
Kafka é herdeiro desta tradição que cráticas do estado autoritário, e que o
visa levar os homens a desconfiarem de si levariam a criar uma obra literária na qual
próprios, exacerbando-a ao máximo, a todo o estado de coisas é considerado
ponto de que ela incida sobre o próprio “desde o ponto de vista de suas vítimas”.
texto que realiza (não devemos esquecer Löwy propõe-se a acompanhar com cuidado
sua séria demanda de que sua obra escrita e atenção o que ele chama de um “fio
fosse queimada após a sua morte). E é esta vermelho” presente nos textos kafkianos,
ampliação da desconfiança por sobre todo através de uma leitura que ele nomeia
o campo textual que levou muitos de seus como “sociopolítica” e que lhe permite
primeiros críticos a ver em seus escritos apontar o conteúdo anti-autoritário da
algo assim como uma ruína do trabalho escrita kafkiana. E o faz como um autor
acostumado ao diálogo
literário, a represenpolêmico com outros
tação de um declínio
críticos, e como um
contextualizado histoexperimentado invesricamente: os escritos
tigador de textos das
de Kafka como portaEnquanto os homens
ciências políticas e
vozes das impossibienfrentarem as mazelas
sociais. Sua pesquisa
lidades burguesas de
fixa um Kafka que
responder com posido dia-a-dia urbano, do
flerta simpaticamente
tividade às demandas
mundo organizado do
com idéias libertárias,
históricas que exigifazendo das experiam a superação da
qual nunca mais se
riências do escritor
própria burguesia.
espera que eles saiam,
com leituras e persoOu ainda o registro
nagens anarquistas
das impossibilidades
Kafka estará presente
uma das evidências
do homem diante do
como um outdoor afixado
de suas convicções
acúmulo de insupessoais, que atuariam
cessos história adentro.
permanentemente numa
com profundidade ao
Porém, mesmo os
das vias principais
longo de toda a sua
críticos mais inquietos
obra. É verdade que,
com o estado de coisas
em Kafka, as organirealizado por Kafka
zações sociopolíticas
reconhecem em suas
obras a presença de um grande escritor. E e culturais são responsáveis, em grande
principalmente a realização de um medida, pelo sofrimento dos homens, mas
enigma que nunca se fecha plenamente, este sofrimento, ao nosso ver, não se reduz
porque nele, apesar de tanta negatividade, em seus escritos apenas a um produto do
apesar de tanta desconfiança, o homem entorno, não provém exclusivamente do
estranhamento e da hostilidade do mundo
ainda se ergue por inteiro.
Michael Löwy, em Franz Kafka, sonhador exterior. Ethos e Cosmos se integram, mas
insubmisso, recolhe um Kafka que poria um não se dilui no outro. Em Kafka, um
em atividade, em seu trabalho literário, um agulhão de estranhamento parece estar
implantado nas próprias entranhas de
cada homem e impede a possibilidade de
Esculturas da Ponte Carlos, em Praga, e, ao
uma síntese pessoal estabilizadora.
fundo, a entrada do Museum Regni Bohemiae:
Löwy, porém, deixa de lado, neste
literatura e escrita decerto obedecem a leis
estudo, esta dimensão da obra kafkiana,
próprias, porém é inegável que a atmosfera de
privilegiando uma leitura que responsaPraga, do Império Austro-Húngaro declinante e
biliza as estruturas burocratizadas do
do império da razão que se instalou com o
poder pelo sofrimento e a alienação dos
século 20, impregnaram a obra de Franz Kafka
Revista 18 41
LETRAS E ARTES
homens, e promove assim uma redução
da complexidade kafkiana, na qual, como
no relato A colônia penal, a violência se
inscreve como letra no corpo humano e
faz de cada um não apenas uma vítima,
mas também um sujeito capaz de suscitála. Esta é a gravidade do universo kafkiano:
cada um, mesmo aquele que mais sofre,
pode ser um agente violento. Esta é a
situação kafkiana por excelência, na qual
todos atropelam todos e todos são atropelados pela máquina burocrática que é
posta em atividade.
Um dos intuitos centrais da leitura de
Löwy é tentar evidenciar quais seriam as
motivações e as fontes de inspiração do
trabalho literário de Kafka. Assim, por
exemplo, ele sustenta que A colônia penal
teria como origem uma crítica de Kafka
ao colonialismo, ao militarismo e à burocracia, chegando até a argumentar em
favor de um colonialismo bem específico
– o colonialismo francês – que estaria na
mira da crítica de Kafka, sendo que Löwy
hesita entre saber se o espaço territorial
em que se passa o relato seria a Ilha do
Diabo, “para onde o Capitão Dreyfuss
havia sido remetido após sua condenação,
mas lá não havia população indígena”, ou
a Nova Caledônia, “essa ‘colônia penal’
francesa habitada por melanésios, para
onde foram deportados os prisioneiros
communards, mas Kafka não menciona
prisioneiros deportados, políticos ou
outros” (p. 83). Para O processo, Löwy põe
em cena a hipótese de que processos antisemitas teriam sido a sua fonte, ou ainda
que a irmã Otla seria o modelo arquetípico sobre o qual teria sido construída a
personagem Amália, da novela O castelo.
O diálogo entre realidade e obra literária nunca é fácil, e a crítica contemporânea há muito que abriu mão de ver a
obra literária como cópia do real. Löwy,
porém, aponta para cada obra uma
origem na realidade social, da qual a obra
seria um desdobramento imaginativo.
Que em toda literatura uma determinada
ideologia se materialize numa ação
imaginária é inquestionável. Ocorre que o
caso de Kafka é emblemático de uma
literatura que, para além de querer
representar um estado de coisas da vida
dos homens, toma a si própria como o
problema a ser trabalhado. E Löwy parece,
neste trabalho, pouco atento a este fato.
42 Revista 18
Ao priorizar a apresentação de um Kafka
anti-autoritário, ele termina por filtrar
aspectos importantes do texto kafkiano,
principalmente no que diz respeito a
questões referentes à forma da escrita,
lugar por excelência da singularidade de
que o texto de Kafka é dotado. Löwy
privilegia uma crítica apoiada sobre o
que seria o argumento do texto. Mas o
trabalho literário consiste basicamente na
operação textual que é realizada, isto é,
nos artifícios de escrita que o escritor põe
em cena, selecionando cada palavra,
construindo cada oração, atento à estrutura frasal, e assim por diante. E isto mais
ainda em Kafka, um autor que operava
consciente de sua atividade textual e
Que em toda literatura
uma determinada
ideologia se materialize
numa ação imaginária é
inquestionável. Ocorre
que o caso de Kafka é
emblemático de uma
literatura que toma a si
própria como o problema
a ser trabalhado
crítico dela, atuando não através da
linguagem mas na linguagem, lugar em
que estão alocadas, pela forma como Kafka
opera, grande parte das tensões constitutivas de seu texto. E Löwy, em seu filtro
crítico, muitas vezes termina por privar o
texto kafkiano desta tensão, o que significa,
de algum modo, privar a letra do “espírito
kafkiano” (a expressão é de Löwy).
Isto não quer dizer que a leitura de
Löwy não seja de grande valia. Ao
contrário, ela contribui em muito para
destacar um Kafka que é também um
genial leitor crítico do estado de coisas
entre os homens. E isto não é pouco
diante de um panorama da crítica literária
contemporânea, que muitas vezes tende a
encerrar a obra literária num compartimento estético-lingüístico, destituindo a
obra de toda a sua potência crítica. E o
próprio Löwy sabe dos limites de seu
trabalho, quando escreve que “a leitura
‘política’ proposta aqui evidentemente é
parcial: o universo de Kafka é rico,
complexo e multiforme demais para ser
redutível a uma fórmula única. Seja qual
for a pertinência de uma interpretação,
sua obra guarda todo o seu inquietante
mistério, sua singular consistência onírica como um ‘sonho desperto’, inspirado
pela lógica do maravilhoso” (p. 13).
Se toda leitura de Kafka é parcial, se
nenhuma a esgota, por que então o
enorme esforço de Löwy para se colocar
como original dentro do gigantesco campo
crítico deste autor? Ele diz: “Em lugar
algum encontrei uma análise sistemática
de sua obra pelo ângulo da paixão antiautoritária que a atravessa como uma
corrente elétrica” (p. 12). Não é o caso de
trazer aqui o incrível leque de críticos que
assentam sua leitura de Kafka justamente
nesta “paixão anti-autoritária”. Citemos
apenas Canetti. Diz ele: “Desde um
princípio, Kafka foi partidário dos humilhados”. E referindo-se a O castelo: “Nunca
se escreveu um ataque mais claro contra
a submissão ao que é superior, tanto se
queremos entender por isto um poder
divino ou meramente terreno”.1 É importante salientar que toda a leitura de Canetti
desdobra este pensamento em profundidade, bem como a de Benjamin, Adorno,
Ritchie Robertson, Hannah Arendt, Marthe
Robert, Deleuze e Guattari e tantos outros
que o próprio Löwy cita. Porém, se Löwy
não é o primeiro a vê-la por este ângulo,
este volume tem o mérito indiscutível de
iluminar em que medida esta paixão antiautoritária percorre a obra kafkiana em
sua totalidade, situando-a no contexto da
realidade européia da primeira metade do
século 20. Enrique Mandelbaum é psicanalista, coordenador pedagógico do Colégio Iavne e autor
de Franz Kafka: um judaísmo na ponte do
impossível. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2002
1
Canetti, E. El otro proceso de Kafka. Barcelona:
Muchnik Editores, 1981, p. 146.
Gianni Giansanti /Sygma/Corbis/Stock Photos
71 faces de
Primo Levi
Nova antologia de contos do escritor italiano
é retrato dos caminhos percorridos por
um dos mais originais ficcionistas do século 20,
desde suas raízes judaicas até o suicídio.
Por Andrea Lombardi
Primo Levi em seu escritório, em Turim, janeiro de 1986: escritor
tematizou elementos constitutivos da tradição judaica e ao mesmo
tempo reafirmava uma certa distância, típica do judaísmo italiano
esenhar estes 71 contos do escritor
judeu italiano Primo Levi (19191987) apresenta uma óbvia dificuldade: como dar conta, em poucas linhas,
de textos tão ricos, tão diferentes entre si e
originários de publicações tão distintas?
Esta nova antologia é uma suma de três
coletâneas: Histórias Naturais, de 1966,
com 15 contos, assinados pelo autor com
o pseudônimo de Damiano Malabaila;
Vício de forma, de 1971, com 20 contos e,
finalmente, Lilith e outros contos, de 1981,
com 36 contos.
Na leitura, há fatores diferentes que
pesam: o estilo do autor, a afinidade com
o tema ou com o gênero, algumas
condições de espírito (às vezes gostamos
mais disso ou daquilo), a gênese e a estru-
R
tura da obra. Em sua excelente introdução, Maurício Santana Dias, o tradutor,
enfatiza o desconcerto que provocou a
publicação de certos contos aqui incluídos,
pois não tinham como tema (ou como
tema único) o campo de concentração de
Auschwitz – desconcerto que os críticos
europeus manifestaram, como se Levi
“fosse condenado a repetir, eternamente,
os horrores do Lager”.
A primeira coletânea, Histórias
Naturais, consiste de contos de ficção
científica, relatando, portanto, histórias e
acontecimentos projetados para o futuro,
ou melhor, projetados no futuro daquele
passado específico, que era o contexto do
autor: a década de sessenta, interessada
em Ovnis e em habitantes de outros
planetas. O segundo livro, Vício de forma,
traz contos ambientados num anômalo
presente; um presente que apresenta
sempre um vício de forma, um problema
ou um pequeno desvio, que dá origem a
um mundo paradoxal e distorcido. Tratase de contos que pertencem a um gênero
que se situa entre a ficção científica e o
conte philosophique, e que, na Itália, possui
sólida tradição, desde o poeta romântico
Giacomo Leopardi (1798-1837) até o
escritor Italo Calvino (1922-1985), contemporâneo de Levi.
Quanto mais imperceptível e anômalo
o desvio, tanto mais surreais serão seus
efeitos. Para usar o paradigma do tempo,
tão forte nesta coletânea, o presente de
que aqui se trata seria futuro do presente,
Revista 18 43
LETRAS E ARTES
um presente como aqueles que o filme de
ficção científica De volta ao futuro mostra,
monstruoso e resultado de modificações
indevidas. Em “Agentes de negócio”, por
exemplo, um funcionário, vestido de
branco, toca a campainha e, no melhor
estilo dos caixeiros viajantes, apresenta
sua mercadoria: “Somos especialistas na
terra... Nós nos encarregamos do Gênero
Humano...” e passa ao mostruário, apresentando breves filmes de exemplares do
gênero humano, para facilitar a escolha:
“Homens e mulheres... O senhor conhece
a diferença, não? É pequena, mas fundamental...”. O interlocutor, que é uma alma
à espera de uma encarnação e um potencial
cliente, desconfia de possíveis falhas e
problemas na “mercadoria”. O caixeiro
viajante admite, finalmente: “Parece-me
que o senhor teve uma intuição; alguém,
em algum ponto, deve ter errado, pois os
planos terrestres apresentam uma falha,
um vício de forma...”.
O terceiro e último livro da trilogia
aqui reunida chama-se, numa alusão inequívoca à tradição cabalista judaica, Lilith
e outros contos, e reúne 36 contos, divididos
em três seções, emblematicamente intituladas: Passado próximo, Futuro anterior e
Presente indicativo. Estes três tempos
gramaticais do italiano aludem, evidentemente, a três momentos na relação entre
o passado e o nosso presente. Passado
próximo reúne contos sobre o campo de
concentração de Auschwitz, de onde Levi
foi libertado em abril de 1945, e tema de
seu magistral relato É este um Homem, de
1947 (Lilith é o apelido que Levi dá a uma
prisioneira). Futuro anterior e Presente
indicativo incluem visões fantasiosas,
advindas de um passado ainda não superado, e sinais de incompreensão, de
choques entre culturas, de mudanças de
perspectiva e situações paradoxais.
Na leitura, cada palavra tem seu peso,
um peso específico, bem material. Como
o peso dos tijolos. Se com estes é possível
construir palácios e pontes (esta última,
uma metáfora bastante presente na obra
de Levi, especialmente em La chiave a
stella, num diálogo ideal entre um engenheiro e um escritor), com as palavras é
possível descrever essas pontes, mudar a
perspectiva de onde são olhadas, apontar
para os “vícios de forma”, na ilusão, talvez,
de que uma transformação seja possível
44 Revista 18
(ao menos, uma transformação de ponto
de vista).
Por meio das palavras observamos nosso
presente, relembramos o passado que nos
influencia e construímos um futuro, que
depende, em grande medida, do exercício
de liberdade que sabemos realizar em
nossa leitura. O que confirma, ainda, o
papel fundamental do exercício de leitura
na época da globalização e da descrença.
Por meio das palavras
observamos nosso
presente, relembramos
o passado que nos
influencia e construímos
um futuro, que depende
da liberdade que
sabemos realizar em
nossa leitura
Há dois detalhes que chamam a
atenção nesta antologia: o título do livro e
a última frase, duas pequenas idiossincrasias desta edição brasileira. Trata-se de
marcas quase imperceptíveis que deixa a
transposição de uma língua para outra, de
um universo cultural para outro, como
rastros da memória. O título 71 contos
existe somente na edição brasileira e é
uma criação que, enquanto tal, modifica
algo na leitura, estimulando especulações, conjeturas, hipóteses, não necessariamente fundamentadas na lógica (mas a
literatura cria sua própria lógica, as
palavras escapam do discurso racional!). E
isto vale especialmente para um escritor
que, químico de profissão e escritor em
seu tempo livre, estava sempre muito
atento às coincidências, que procurava
palavras especiais, como os palíndromos
(palavras que podem ser lidas nos dois
sentidos, da esquerda para direita e viceversa), ou o aspecto específico das
palavras: seu peso ou tamanho.
Os 71 contos poderiam ser lidos como
os 49 degraus (título de um livro de
ensaios do escritor italiano Roberto
Calasso), considerando o aspecto numerológico da tradição cabalista. “O servo”, por
exemplo, um dos contos deste volume,
apresenta uma nova versão do mito do
Golem, metáfora do poder da letra, dentro
da escrita alfabética. Na versão relatada
por Gerschom Scholem (A Cabala e seu
Simbolismo, São Paulo, Perspectiva), ao
Golem, que é uma figura de barro, é dada
a vida pela inscrição de uma palavra:
“Sobre a testa da imagem, escrevem emet,
isto é, verdade”. Mas, vice-versa, quando é
necessário parar sua atividade é sempre
Scholem que afirma: “Eles apagam rapidamente a letra alef da palavra emet sobre
a testa, ficando apenas a palavra met, que
significa morte. Feito isto, o Golem desmorona e se dissolve no barro, no lodo que
fora antes...”. Ou seja, o texto, enquanto
composto de letras alfabéticas permutáveis, comporta-se como um organismo
vivo. Primo Levi, em sua versão nesta
coletânea, acentua o papel dos números:
“O Golem ia tomando forma, e ficou
pronto no ano 1579 da Era Vulgar, 5339º
da Criação; ora, 5339 não é propriamente
um número primo, mas quase, pois é
produto de 19 [...] multiplicado por 289,
que é o número dos ossos que compõem
nosso corpo...”.
É conhecida a relação contraditória de
Primo Levi com o judaísmo, pois o
escritor italiano tematizou elementos
constitutivos da tradição judaica e, ao
mesmo tempo, reafirmava uma certa
distância, em certa medida típica do
judaísmo italiano.
A propósito do número 71 do título
desta nova coletânea, coincidentemente,
o capítulo de número 71 do tratado
Kidushin do talmude babilônico trata da
questão dos segredos relativos à pronúncia
do Tetragrama, o inefável nome divino.
Esta é uma alusão irônica, talvez, por
mera associação livre, mas fala-se, aí,
Reprodução
LETRAS E ARTES
texto famoso de Walter Benjamin, seria
possível dizer que “um autor que se
suicida aos 68 anos será sempre um autor
que se suicidou aos 68 anos”. Uma aparente tautologia. Esta frase abre, porém,
dramaticamente, uma série de questões,
pois o suicídio pode tornar-se um aspecto
privilegiado para a leitura da obra de Levi.
Há outras perguntas: o leitor tem o
direito de indagar sobre a vida particular do
autor? Ela fornecerá elementos interessantes
para a leitura? Trata-se de um interesse
mórbido – a morte que chama a atenção –
ou esta indagação é parte de uma necessidade de comparar os dados biográficos
com a produção, segundo o ultrapassado
estilo biográfico da crítica literária?
Temores e fantasias referentes aos extraterrestres, tão em voga no mundo ocidental
na década de 70, estão também presentes em
parte da obra ficcional de um escritor que,
não obstante, tornou-se quase sinônimo de
literatura de testemunho
sobre um jovem que “antes de ter a idade
certa, subiu atrás dos irmãos nos degraus
e prestou ouvido ao Grande Sacerdote e
percebeu como ele mantinha o Nome
encoberto pelo canto de seus irmãos e dos
sacerdotes”. Outra menção, neste mesmo
tratado talmúdico, sempre no capítulo de
número 71, parece dar indicações sobre o
sagrado Nome.
Ambos podem ser lidos como metáfora
do encobrimento, o que seria bastante intrigante para um escritor como Primo Levi,
que defendeu sempre seu caráter laico e
um estilo transparente, um “escrever
claro”, abrindo, como lembra o prefácio
de Maurício Santana Dias, uma polêmica
com Giorgio Manganelli (exuberante
escritor da vanguarda italiana) e, indiretamente, com Paul Celan, escritor romeno
de língua alemã – além de Franz Kafka,
embora deste último Levi tenha traduzido
O processo, para o italiano.
O segundo detalhe consta no final da
edição, onde há uma breve nota biográfica, quase enigmática; seis linhas, que
terminam com a frase: “Primo Levi
suicidou-se em 1987”. Parafraseando um
É conhecida a relação
contraditória de
Primo Levi com o
judaísmo. Ele tematizou
elementos da tradição
judaica ao mesmo tempo
em que reafirmava certa
distância, típica do
judaísmo italiano
Há duas respostas, ambas interessantes
e pertinentes, pois vêm do próprio Primo
Levi. A primeira, uma veemente crítica à
atitude de Hans Mayer (“entrar em polêmica com um morto é embaraçoso e
pouco leal”), crítico alemão de origem
judaica, que após a monstruosa experiência de Auschwitz resolveu mudar de
nome (passou a chamar-se Jean Améry),
mudou de nacionalidade, mudou de
língua, em sinal de protesto radical contra
tudo que estivesse vinculado ao nazismo.
Améry “o filósofo suicida e teórico do
suicídio, que se matou em 1978”; Levi
dedica a ele um capítulo de seu Afogados e
Sobreviventes. Levi mostra pudor e constrangimento em polemizar com Améry e em
aprofundar as “razões de seu suicídio”, pois
não pode haver uma explicação exaustiva
para o suicídio, além de meras hipóteses e
dos diagnósticos dos médicos.
No conto “Rumo ao Ocidente”, sobre o
qual o prefaciador se detém, três biólogos
estão incumbidos de estudar o comportamento dos lemingues (uma espécie de
roedores) e da tribo dos arundes (cujo
habitat seria o Amazonas). Ambos os
“seres”, roedores e homens, mostrariam
um instinto suicida irrefreável. Entre os
biólogos há divergências: “ ‘Por que um
ser vivo deveria querer morrer?’ E a
resposta: ‘E por que deveria querer
viver?’ ‘É preciso ter coragem para dizer
isso –, quem tem razão são eles.’ ‘Os
lemingues?’ [...] ‘Nós nos enganamos e
sabemos disso, mas preferimos continuar
de olhos fechados. A vida não tem um
objetivo; a dor sempre prevalece sobre
a alegria; somos todos uns condenados
a assistir ao fim das pessoas mais
queridas...’ ”. Os três resolvem testar um
antídoto contra a vontade suicida dos
lemingues e dos arundes, mas... não há
um final feliz nesta história.
O conto é brutal e aponta para uma
filosofia que vai muito além do Além do
princípio do Prazer, o texto em que Freud
identifica no princípio de morte a contrapartida ao princípio do prazer, e afirma
que nosso desejo mais profundo vai em
direção ao primeiro: paz, descanso. Morte.
Mas, na leitura, não há uma interpretação
única. Há um tecido de contos que se interligam, que se superpõem, que se interseccionam. Palavras ligadas a outras palavras.
Abertas, todas, para outras significações. Andrea Lombardi é professor de língua e
literatura italiana da UFRJ
71 Contos de Primo Levi
Tradução de Maurício Santana Dias
Cia. das Letras, 528 p.
R$ 41,00
Revista 18 45
LETRAS E ARTES
Para ler PAUL CELAN
Antologia Hausto-Cristal, comentada pelo filósofo Hans-Georg Gadamer, chega ao leitor de língua
portuguesa e propõe seu emaranhado de significados como objeto de diálogo. Por Moacir Amâncio
uem sou eu, quem és tu?, livro
recém-lançado pela editora da
Universidade Estadual do Rio de
Janeiro, reúne os ensaios que o filósofo
Hans-Georg Gadamer escreveu sobre a
série de poemas Hausto-Cristal, de Paul
Celan. O livro, que traz também os
poemas, chega ao leitor brasileiro em
tradução criteriosa e sensível de Raquel
Abi-Sâmara. Neste volume aparentemente despretensioso encontra-se um
esplêndido curso sobre como ler poesia
na contemporaneidade. Sobretudo tendo
em mente a complicada frase feita de
Adorno segundo a qual, depois da Shoá,
não se pode mais escrever poemas. Fazê-lo
seria um ato de “barbárie”. A realidade
desmente a frase, mas só em parte. Porque
falta a ela o seguinte complemento: não se
pode mais escrever poemas como antes da
Shoá. De igual modo, se o registro da escrita
mudou, também a leitura muda. Ela se torna
um desafio radical, como vem proposta
nos poemas de Celan aqui comentados.
Em Quem sou eu, quem és tu, encontramse uma série de poemas breves, de exterior
impenetrável, e que colocam em xeque
tanto o leitor quanto as fórmulas literárias tradicionais. Ao mesmo tempo,
cada um dos poemas revela uma forte
comoção e é através desta que se estabelece o vínculo entre leitor e texto. Os
poemas não estão aí para serem decifrados como relojoaria, mas para serem
captados por meio de sutilezas e obscuridades. É a isso que se propôs o crítico
alemão, ao levar os 21 poemas da série
para uma viagem de relaxamento,
disposto a lê-los de maneira descondicionada, em busca da sintonia mais íntima
com cada palavra escrita por Celan.
Observe-se, o texto enigmático contemporâneo é muito diferente do texto difícil
Q
46 Revista 18
de Góngora, conforme o exemplo dado
por Octavio Paz em um de seus ensaios.
Em Góngora, o poema é complicado e o
uso de chaves específicas permite a sua
compreensão cristalina. Já na poesia atual,
o texto revela-se enigmático. De um lado,
sabe-se, Celan vinculou-se por algum
tempo ao surrealismo, escola anti-escola
Neste volume
aparentemente despretensioso encontra-se um
esplêndido curso sobre
como ler poesia na
contemporaneidade.
Sobretudo tendo em
mente a complicada
frase feita de Adorno
segundo a qual, depois
da Shoá, não se pode
mais escrever poemas
que se propunha a expor o que permanecia
oculto pelas receitas totalitárias da estética tradicional. A convulsão no lugar da
técnica e do racionalismo constrangedor,
que teve como resultado máximo a Shoá.
Daí o horror das imagens surrealistas. O
mesmo se vê em Picasso: Guernica não
pode ser uma obra fácil e muito menos
bonita. Ela é o avesso da estética “apolínea”.
E propõe ao espectador uma decifração
também emocional.
Algo parecido ocorre com os poemas
de Celan, que exigem, antes de mais nada,
uma aproximação livre e desarmada. O
desafio foi aceito com plenitude por
Gadamer, erudito que soube perceber a
condição primeira para tratar esses textos.
Não se trata de descartar a erudição, algo
de resto impossível, mas de permitir que
ela seja trabalhada pela experiência da
linguagem do poeta – uma entrega à
poesia e não uma tomada da poesia. Esta,
na opinião do crítico-filósofo, por sua vez
não pretende se colocar como seletiva,
poesia feita para alguns intelectuais, mas
para essa entidade vaga e ampla chamada
leitor. Nesse sentido evidencia-se um dos
conteúdos políticos dos escritos. Como
política é a atitude que o leitor deve
adotar diante deles: em vez de pretender
dominar a matéria que lhe é dada,
dialogar com ela, na aceitação do outro,
sob o signo da interrogação do título.
Quem sou eu, quem és tu? É o diálogo e, ao
mesmo tempo, o monólogo proposto pelo
poeta e que o crítico procura explicitar
com a devida humildade e atenção. O
leitor profissional pode desse modo
encontrar-se com o chamado leitor
comum, desde que ambos estejam
munidos de certa ardente paciência, pois,
como diz Gadamer: “Quem deseja compreender e decifrar a lírica hermética não
pode, certamente, ser um leitor apressado.
Mas não precisa, por outro lado, ser um
leitor erudito ou especialmente instruído:
deve ser um leitor empenhado em
continuar ouvindo”.
Quer dizer, em vez da solução pronta,
de pacote, torna-se necessário o convívio
constante e despreocupado com as
palavras de Celan. Outro dado fundamental nessa aventura sem garantia de
êxito é que o mito de domínio do escritor
sobre o que escreve também deve ser
deixado de lado. Gadamer assinala que o
próprio poeta atendia com gentileza aos
pedidos de informação sobre as condições,
motivos do momento da escrita. Isso pode
eventualmente elucidar algum detalhe,
mas pode ser fator de complicação. Isto é,
se não ajuda, atrapalha. Gadamer pergunta:
“Serão necessárias indicações sobre aquilo
em que um poeta pensou ao escrever seu
poema? O que importa, é evidente, é o que
o poema efetivamente diz – e não aquilo
que seu autor teria pensado sem saber
talvez expressá-lo”. Porque os motivos
iniciais e “contingentes” do poeta não se
encaixam de modo necessário no texto
efetivo em sua dinâmica própria. Podemos
concluir que o poeta se encontra com o
público e o crítico na condição de leitor
dessa obra, liberada de autoria. Não é mais
o escritor que fala, mas o poema.
É isso, mais o cuidado em evitar imposições ao leitor, a lição básica de Gadamer.
Ele descarta uma linguagem complexa ou
que se colocasse, por equívoco, num
ângulo mimético em relação aos claros
enigmas de Celan. É outro risco a que a
crítica se expõe diante de textos como o
seguinte – o escritor definiu a poesia
como, talvez, “uma mudança de ar”. Isto é,
um novo modo de estar no mundo:
Nas serrilhas
da moeda celeste, na fresta da porta,
prensas a palavra,
de onde desenrolei-me
ao demolir, com punhos trêmulos,
o teto sobre nós,
telha a telha,
sílaba a sílaba,
por amor ao cupriradiante prato
do mendigo lá no alto. Moacir Amâncio é professor de língua e literatura hebraica da USP, autor de Óbvio (poemas,
Travessa dos Editores), entre outros livros
Quem sou eu, quem és tu
Tradução de Raquel Abi-Sâmara
Hans Georg Gadamer
Editora da uerj, 164 p.
Reprodução
LETRAS E ARTES
Paul Celan: representante de uma tradição judaica em língua alemã, cujas raízes
estão na dupla monarquia dos Habsburgos, e que foi sepultada pelo Holocausto
aul Celan é considerado por diversos autores como o maior
P poeta de língua alemã do século 20. O próprio filósofo
Martin Heidegger, conhecido tanto pela originalidade de suas
obras quanto por sua adesão ao nazismo, encontra-se entre os
que partilham dessa opinião. Ele e o poeta se conheceram e
trocaram cartas, mas essa amizade continua envolta num
mistério. Paul Antschel, seu nome de família, nasceu em
Czernovitz, cidade de sólida tradição cultural judaica que
pertenceu ao Império Austro-Húngaro e, depois da 1ª Guerra
Mundial, tornou-se parte da Romênia. Celan, por isto, pertencia
ao grupo de judeus que falavam alemão. Era descendente de
judeus religiosos. Em 1942 seus pais foram deportados para
campos de extermínio, onde morreram. O poeta passou 19
meses num campo de trabalhos forçados na Romênia, onde,
apesar das condições concentracionárias, continuou a
escrever. Terminada a guerra, trabalhou como tradutor de
prosa e poesia do russo ao inglês e, em 1947, transferiu-se
para Viena, onde se engajou numa manifestação surrealista,
sem acreditar na bênção do papa do movimento, André Breton.
Em 1948 foi para Paris. Trabalhou como professor de alemão e
engajou-se no debate político-intelectual. Seu modo original de
se referir à Shoá provocou polêmica entre escritores de língua
alemã. Em 1955 teve um filho, Eric, com Gisèle Lestrange.
Data de nascimento: 23 de novembro de 1920. Data da morte:
19 de abril de 1970, quando se suicidou no Sena. (Dados
básicos colhidos na apresentação feita pela tradutora.)
M.A.A
R$ 30,00
Revista 18 47
LETRAS E ARTES
Aporias da cultura, depois
do século da barbárie
Volume de ensaios de Márcio Seligmann-Silva reúne, de maneira original e sem solução de continuidade,
alguns dos temas fundamentais da reflexão humanística contemporânea. Por Susana Kampf Lages
local da diferença. Ensaios sobre
memória, arte, literatura e tradução,
título de volume recém-lançado
que traz 26 ensaios do crítico e teórico de
literatura Márcio Seligmann-Silva, já dá
uma idéia da complexidade dos temas e
problemas que serão tratados ao longo de
suas 357 páginas. Muito diversos e ao
mesmo tempo muito afins entre si, estes
textos são resultado da compilação de
trabalhos apresentados em diferentes
ocasiões, no âmbito da atuação acadêmica
e ensaística do autor. O título O local da
diferença faz alusão a dois autores de
destaque no panorama dos estudos humanísticos, que se inscrevem no âmbito do pósestruturalismo ou da pós-modernidade.
São eles o intelectual indo-britânico
Homi Bhabba, que ganhou notoriedade
com o livro O local da cultura, em que trata,
a partir da situação pós-colonial, de temas
afins aos de Seligmann-Silva, e o filósofo
judeu argelino e francês, recentemente
falecido, Jacques Derrida, que cunhou o
conceito de diferença/différence, a quem é
dedicado especificamente um dos ensaios
do volume, e cujo pensamento perpassa,
de uma forma ou de outra, todos os textos
contidos neste volume.
O jogo de alusões anunciado no título
remete, ademais, a outro aspecto da escrita
de Seligmann-Silva: a incorporação do
princípio construtivo haurido do primeiro
romantismo alemão e levado ao paroxismo pela literatura da modernidade e da
pós-modernidade, qual seja, a justaposição
de textos que funcionam como fragmentos
de reflexão. Nesse livro, ímpar pelo nível
de erudição e de agudeza do pensamento,
cada ensaio compõe uma totalidade
coerente em si, mas aberta e comunicante
O
48 Revista 18
com os demais ensaios do mesmo
volume, e com outros do autor e de outros
autores, à maneira de uma composição
constelar – imagem cara a outras duas
referências fundamentais do autor: o
multivalente ensaísta e escritor alemão
Walter Benjamin e o igualmente multifacetado poeta brasileiro Haroldo de Campos.
Trata-se de uma obra
singular no panorama
dos estudos literários
e culturais brasileiros,
também pela rara
faculdade de conjugar
amplitude temática
e histórica com
profundidade analítica
e originalidade
interpretativa
Embora em parte ainda tributária do
estilo expositivo do filosofar, criticado
pelos românticos, a escrita de SeligmannSilva liberta-se dele ao justapor textos sem
a preocupação de compor um todo inteiramente fechado. Trata-se de uma obra
singular no panorama dos estudos literários e culturais brasileiros, também pela
rara faculdade de conjugar amplitude
temática e histórica com profundidade
analítica e originalidade interpretativa.
Entretanto, toda esta carga positiva tem
naturalmente sua contrapartida numa
exigência: a de um leitor igualmente
culto, ou, pelo menos, um leitor que tenha
o mesmo desejo de percorrer as sinuosidades da trajetória da constituição, ou
melhor, da formação (Bildung) de um
pensamento que trabalha permanentemente no registro de aporias e de paradoxos. Seguindo de perto as solicitações
dos românticos de Iena, a obra de
Seligmann-Silva não possui um fio
condutor único; o leitor deve selecionar
os fios da complexa rede temática e
conceitual que o autor constrói.
Aqui poderemos apenas seguir, de
modo extremamente superficial, alguns
desses fios. Alguns deles nos são indicados
pelo subtítulo: “Ensaios sobre memória,
arte, literatura e tradução”. Ao denominar
a obra como um conjunto de ensaios, o
autor assume a visada subjetiva que passa
de um objeto ao outro, deixando-se determinar por cada um deles. Entretanto, de
modo algum encontramos certa arbitrariedade e o aberto impulso egóico
presente no ensaísmo tradicional: cada
uma das opiniões emitidas e reflexões
apresentadas encontra lastro em uma
(enorme) bibliografia que aparece de
modo explícito no corpo do texto, na
forma de citações, no melhor estilo de
uma escrita acadêmica que preserva a
densidade sem ser pernóstica.
A memória é um dos temas centrais do
livro e é anunciada desde a bela capa que
apresenta a foto de uma instalação da
artista plástica brasileira Leila Danziger,
denominada Greifswalder Str. 138. E é o
trabalho da memória que dá sustento a
todo o projeto intelectual que atravessa
este livro, e que tem como um de seus
núcleos sensíveis o complexo de questões
humanas, éticas e estéticas, desencadeado
pelo evento histórico que mais marcou o
século passado: a Shoá, o genocídio de
milhões de judeus nos campos de extermínio nazistas.
O livro coloca-se, então, por uma ética
da memória – e este também poderia ser
um subtítulo fiel à reflexão que pacientemente se estrutura neste livro, que afinal
também tem sua dimensão autobiográfica,
já que a família da mãe do autor foi obrigada a deixar sua cômoda vida burguesa
em Berlim para buscar uma vida possível
no exílio brasileiro, na década de 30.
Esta vivência familiar é, entre outros, o
desencadeador de uma busca intelectual,
através da qual o autor põe em prática de
forma eficaz o difícil diálogo judaicoalemão – talvez só possível, ou pelo
menos, possível de modo crítico, menos
apaixonado, fora da Alemanha. O imperativo de descrever o indescritível, pois de
uma abjeção impensável, intraduzível em
palavras, se impõe a partir da necessidade
de sobreviventes darem seu testemunho
do Genocídio (e todos os demais genocídios da história do século 20, bem como
dos assassinatos políticos perpetrados por
ditaduras latino-americanas). Dar testemunho é uma necessidade imperiosa –
mas, simultaneamente, uma impossibilidade, pois em sua dimensão terrificante,
repulsiva e sinistra, os eventos ultrapassam os limites do representável. A
literatura de testemunho – novo gênero
literário por força própria? – radicaliza o
questionamento das fronteiras entre real
e ficcional e o próprio estatuto da literatura em si, evidenciando as intrincadas
relações entre a dimensão ética e estética
da obra literária.
O leitor poderá acompanhar os
meandros complexos dessas relações ao
seguir as reflexões de Seligmann-Silva
sobre a obra de Binjamin Wilkomirski,
suíço que se fez passar por sobrevivente
de Auschwitz, e obteve sucesso no panorama literário e cultural internacional
com suas falsas memórias, e em vários
outros ensaios que tematizam os efeitos
traumáticos de catástrofes coletivas (e de
modo paradigmático, a Shoá) sobre a vida
social, a arte e o pensamento. Ao perseguir
as origens e desdobramentos históricos
de conceitos como o sublime e o abjeto, o
sinistro (o Unheimlich, em termos
freudianos), o trauma, o autor realiza uma
verdadeira empresa arqueológica, trazendo
à luz os lados mais sombrios e mais
ambíguos de nossa humanidade, assim
como eles se manifestaram historicamente na arte, na literatura e no
pensamento ocidental.
Ao longo de todo o livro, afirma-se uma
crise da representação, constituída como
culminância de uma série de tensões que
acompanham a história da arte e da literatura no Ocidente. Mais do que historiar
fatos e conceitos de maneira arquivística
(embora o volume de informações seja
enorme), o livro explicita e problematiza
as formas tradicionais de pensar o real e
de representá-lo. Nesse sentido, ganha particular relevo um processo fundamental,
presente em toda forma de representação:
a tradução. É a tradução o operador de
O trabalho da memória
que dá sustento a todo o
projeto intelectual que
atravessa este livro tem
como um de seus
núcleos sensíveis o
complexo de questões
humanas, éticas e
estéticas, desencadeado
pela Shoá
passagens entre as polaridades que o autor
anuncia, para imediatamente relativizar e
dissolver no movimento da reflexão.
Entre passado e presente, entre próprio,
nacional e estrangeiro, entre imagem e
palavra, entre eu e o outro, entre essência
e fenômeno, os segundos termos ressignificam e problematizam os primeiros,
num movimento espiralado em que as
ambigüidades, antinomias, contradições,
Sergio Mekler
LETRAS E ARTES
Márcio Seligmann-Silva: “Crise da
representação atinge o paroxismo
ante o imperativo de narrar o inenarrável,
isto é, a abjeção dos genocídios”
paradoxos e aporias são apresentados sem
que a reflexão os resolva num movimento
unificador; antes, eles são como que
potencializados e sintetizados na figura
exemplar do double bind, do duplo
vínculo, aquela situação em que um
processo se afirma como simultaneamente impossível e necessário.
A tarefa do escritor/tradutor, do artista
e também do crítico é hoje mais do que
nunca marcada por um duplo vínculo. Ou
nós o aceitamos, e procuramos atender ao
imperativo de narrar o inenarrável (e, no
limite, uma resenha crítica é sempre o
produto desse impulso, pois nada
substitui a leitura direta do livro resenhado), ou nos abandonamos ao silêncio.
Também ao leitor caberá fazer a sua
escolha no diálogo aberto por este livro
complexo e fascinante. Susana Kampf Lages é professora de
língua e literatura alemã na Universidade
Federal Fluminense
O local da diferença. Ensaios sobre
memória, arte, literatura e tradução
Márcio Seligmann-Silva
Editora 34, 2005. 547 p.
R$ 46,00
Revista 18 49
Reprodução
LETRAS E ARTES
Romance da
intolerância
Marco Frenette lê novo romance de César
Vidal, que narra a vida de Maimônides sob o
signo do exílio, da perplexidade e da solidão
título do livro do escritor madrilenho César Vidal, Maimônides –
O Médico de Sefarad, sugere um
mergulho na vida e obra do médico e filósofo judeu do século 12. Não é o que acontece. Seu embate médico-filosófico que
desembocou na aceitação da lógica
aristotélica na Idade Média não foi
romanceado; e nem se criaram situações
ficcionais para sua aproximação crítica
da filosofia com a medicina. Maimônides
tampouco é citado pelo escritor como o
autor de Os 13 Princípios da Fé, da Mishnê
Torá ou do Guia dos Perplexos, obras
pilares do pensamento judaico. Naturalmente, há passagens referentes à vida de
Moshê ben Maimon, ou Maimônides, ou
simplesmente Rambam (acrônimo de
Rabi Moshe bem Maimon) – mas, ao fim
da leitura, ninguém entenderá por que ele
é comparado a Moisés, tal sua importância para o judaísmo.
Sendo assim, é preciso trocar de expectativa para apreciar esse romance. O
Maimônides em questão tem muito mais
a ver com a necessidade de Vidal – militante dos direitos humanos – de usar um
personagem para aglutinar as diversas
facetas de um tema que lhe é caro: a vida
asfixiante que se leva em qualquer lugar
dominado pelo fanatismo religioso e por
sua filha mais perigosa, a intolerância. A
partir dessa intenção narrativa, surge um
retrato vívido de dois importantes aspectos
da história judaica: a necessidade do
deslocamento para continuar a viver e a
inabalável fé no Deus único, a despeito
das circunstâncias mais terríveis.
Para tanto, o período histórico abordado não poderia ser mais propício.
Maimônides nasceu em 1135, na cidade
O
50 Revista 18
espanhola de Córdoba. Era uma época em
que, mesmo sob domínio do Islã, as
culturas islâmica, judaica e cristã conviviam e participavam da vida pública
local. Porém, em 1148, Córdoba foi
tomada pelos Almóadas, guerreiros que
pregavam a restauração da fé islâmica em
sua radicalidade, dando pouco valor à
vida de seguidores de outras religiões e
não tolerando muçulmanos com os mais
leves traços de liberalidade. Instalado o
clima de terror, Maimônides e sua família
fogem. A partir daí, começa a peregrinação do personagem por vários lugares
da Espanha, até se assentar como médico
na cidade de Fostat, no Egito.
Escrito num tom intimista e na
primeira pessoa, o romance mostra um
homem que, a despeito de sua sapiência,
retidão e importantes serviços prestados à
comunidade, vive sob o jugo da subserviência devido à sua condição de judeu
em terra estrangeira. A cada chamada
para uma consulta na casa de um muçulmano, não sabe se voltará com vida, pois
um deslize verbal, o toque na mulher
errada ou algum suposto desrespeito a
Alá poderá significar seu fim.
Um dos trechos mais marcantes
descreve a volta do pai de Maimônides
para casa, em Córdoba, após ter ido negar
sua fé, ajoelhando-se aos pés do líder
muçulmano e clamando, em árabe: Asadu
Al-lah ila-lah ua Muhammad al-rasul Al-lah
– Não há outro Deus senão Alá, e Maomé
é o seu profeta. Fez isso sob extrema
pressão, para evitar que seus patrícios
fossem massacrados. Mas, ao chegar à rua
LETRAS E ARTES
de sua casa, a vê tomada por pessoas nem
um pouco interessadas em explicações.
Pessoas que durante anos foram até seu
lar para receber ensinamentos judaicos,
conselhos matrimoniais, pedir dinheiro
ou simplesmente demonstrar respeito.
Alguns dos rostos eram de amigos que já
haviam sido queridos e fiéis. No entanto,
era chegada a hora de ele provar um
pouco da intolerância religiosa, não mais
vinda dos previsíveis muçulmanos, mas
de sua própria comunidade. Ele é chutado,
cuspido, esbofeteado e seu corpo é coberto
com lixo e excrementos. Como um Cristo
local e deslocado, ele suporta sua via
crucis, entra em sua casa com os ombros
arqueados, e se põe a rezar ao seu verdadeiro e único Deus.
Ao ver seu pai passar de respeitado
Dayan (juiz) a execrável apóstata, plantase no espírito de Maimônides uma
convicção que o acompanhará por toda a
vida: “Quando nos encontramos mais
felizes e quanto mais despreocupados nos
sentimos, os tempos mudam, toma o
poder um rei que não chegou a nos
conhecer e nos vemos submetidos a uma
nova perseguição”. Ele também aprende,
com a visão do pai machucado e sujo,
rezando na sala mal iluminada enquanto
as pessoas que ele tanto ajudara ainda
gritam do lado de fora querendo sua
morte, que os desígnios do Criador são
realmente inescrutáveis.
Esses momentos de tônus literário se
mesclam com outros mais frouxos, nos
quais se percebe a pena do autor manipulando os personagens. E, há, também,
momentos impagáveis de humor involuntário, como, por exemplo, quando Vidal
concebe Maimônides a discorrer sobre a
obviedade de o gênero humano ser
marcado pela desigualdade: “Basta lembrar
que de Caim e Abel, os dois primeiros
descendentes de Adão e Eva, um foi justo
e piedoso, e outro um assassino cruel. (...)
faz-se imprescindível que sejamos diferentes. Se só houvesse carpinteiros, quem
se ocuparia de semear a terra? Se existissem só açougueiros, quem construiria
as casas? (...) Por outro lado, não quero
sequer imaginar as conseqüências caso
todos os filhos de Adão resolvessem se
tornar estudantes de filosofia”.
Entre altos e baixos, nos deparamos
com trechos em que Vidal parece
dominar a arte do romance histórico na
primeira pessoa, a ponto de atingir uma
densidade poética comparável a obras
mestras do gênero, tais como Memórias de
Adriano, de Yourcenar, e Pela Mão do Anjo,
de Dominique Fernandez. É assim quando
Maimônides descreve seu amor platônico
pela bela Susana, judia de olhos claros e
cabelos castanhos, que acaba ficando para
trás por conta de sua fuga de Córdoba. A
nostalgia acentuada pelo duro sentimento de desterro também é descrita com
maestria poética. As partes em que
Maimônides rememora os cheiros, as cores
e as texturas que compõem o cenário
quotidiano de sua doce e longínqua
Sefarad (Al-Andalus, para os muçulmanos,
Um personagem para
aglutinar as diversas
facetas de um tema que
é caro ao autor: a vida
asfixiante que se leva
em qualquer lugar
dominado pelo fanatismo
religioso e por sua
filha mais perigosa,
a intolerância
e Hispania, para os cristãos) tem uma
agradável semelhança com os trechos
mais poéticos das declarações de amor à
cidade de Alexandria feitas por Lawrence
Durrell em seu famoso Quarteto.
O autor também se preocupou em
demonstrar quais são os caminhos e
descaminhos que levam à estupidez. Em
seus anos de formação, Maimônides ouve
histórias de tolerância e generosidade
contadas por sábios judeus, que servem
como antídoto ao veneno do fanatismo
que invadia as almas dos jovens estudantes
da Torá. E ao se deparar com a brutalidade
muçulmana, ele próprio começa a tomar
consciência dos riscos que correra em
seus estudos das Sagradas Escrituras:
“Nessa época, vivi a embriagante sensação
de acreditar que tinha nas mãos as chaves
da explicação de qualquer fato que
pudesse ocorrer sob o sol. A leitura,
durante várias horas do dia, foi criando
em mim a convicção de entender tudo e –
o que era pior – de poder tudo explicar”.
Como César Vidal – doutor em
história, teologia e filosofia – tem altas
pretensões estéticas, ele optou pelo entrelaçamento cronológico. Capítulos que
contam a infância de Maimônides e sua
formação intercalam-se com outros sobre
sua vida adulta. A deficiência dessa estrutura está no fato de os capítulos, muito
curtos, causarem insatisfação permanente, em vez de gerar o pretendido
suspense ao deixar uma história inacabada de sua infância para voltar a outra,
igualmente inacabada, de sua vida adulta.
Essa construção literária é usada com
freqüência por escritores que querem ver
seus livros transformados em filmes, e,
por isso, já os escrevem a meio caminho
da linguagem cinematográfica, facilitando o trabalho do roteirista. Mas é um
problema fácil de resolver: basta ler em
seqüência todos os capítulos referentes à
sua infância e adolescência, e depois
voltar e ler todos os referentes à sua vida
adulta. Desse modo, evita-se a estrutura
manquitola forjada pelo autor, e a leitura
ganha fluência.
A despeito desses problemas estruturais e de certa frouxidão narrativa, o
livro vale a pena por conta da criação de
sentimentos e emoções que evidenciam a
perigosa espiral descendente causada pela
intolerância religiosa. Há uma frase de
Maimônides que Vidal poderia ter usado
como epígrafe: “Há coisas que estão
dentro do âmbito e da capacidade de
apreensão da mente humana; há outras
que o intelecto não pode, de maneira
alguma, captar – as portas da percepção
estão fechadas”. Esse romance trata exatamente disso, de pessoas que se debatem
diante de portas mentais e espirituais que
se recusam a abrir. Marco Frenette é jornalista
Maimônides, O Médico de Sefarad
Tradução de Ledusha Spinardi
Relume Dumará, 312 p.
R$ 44,90
Revista 18 51
Fotos: reprodução
LETRAS E ARTES
GUSTAV MAHLER:
a criação de um ícone
O grande compositor, perseguido
em vida em Viena e esquecido
por décadas a fio, tornou-se hoje
uma espécie de ícone
propagandístico da cultura
austríaca. Klaus Billand
acompanha esta singular
trajetória póstuma
Gustav Mahler: busca pelos problemas fundamentais da existência humana, pacifismo,
engajamento contra a opressão social e posicionamento em favor da integridade
da natureza fizeram do compositor um homem à frente de seu tempo
á cinqüenta anos foi fundada, em
Viena, a Sociedade Internacional
Gustav Mahler (em alemão,
Internationale Gustav Mahler Gesellschaft ou
igmg). Isto acontecia numa época em que
o anti-semitismo da primeira metade do
século 20 ainda se encontrava em pleno
vigor em países como a Alemanha e a
Áustria, o que implicava, entre muitas
outras coisas, total descaso para com a
música de Mahler.
Quando vivo, Mahler (1860-1911),
tanto por sua personalidade artística
quanto por sua obra, foi alvo de intensas
polêmicas – e de desprezo por boa parte
da crítica da mais importante metrópole
musical européia de então. A incompreensão estética e o preconceito antisemita o acompanhariam também postumamente e foram raros os maestros que,
nas décadas que se seguiram à sua morte,
se empenharam na apresentação de suas
obras. Para os editores, ao longo de toda a
primeira metade do século 20, a publicação de partituras de Mahler representava um risco comercial considerável.
Durante os anos 60, porém, uma virada
totalmente inesperada levou ao início de
uma era de sucessos mahlerianos sem
H
52 Revista 18
precedentes, que perdura até hoje. Intérpretes conhecidos e pesquisadores descobriram o compositor, enquanto gravações
discográficas divulgavam uma obra até
então desconhecida do grande público.
Há uma série de fatores envolvidos nesta
transformação do “patinho feio” da
música vienense em figura central da
história da música do século 20. A visão
de mundo de uma geração mais jovem
certamente teve influência central aqui: o
dilaceramento interior de Mahler, sua
busca pelos problemas fundamentais da
existência humana, seu pacifismo, seu
engajamento contra a opressão social e
seu posicionamento em favor do respeito
à integridade da natureza – tudo isto
tornou-se, subitamente, muito atual para
a geração que nasceu no pós-guerra, e que
queria romper com os paradigmas do universo de seus pais.
Desde 1955 a Sociedade Internacional
Gustav Mahler, sediada em Viena,
também passou a contribuir de maneira
significativa para esta história de
sucesso. A iniciativa foi da Filarmônica
de Viena, que convidou o maestro Bruno
Walter, pioneiro na divulgação da obra do
compositor, a ocupar o cargo de primeiro
presidente. Mas, afinal, quem acabou por
ocupar este posto foi o vienense Erwin
Ratz, teórico da música e ex-aluno de
Arnold Schönberg, eleito para o posto na
reunião da assembléia geral da instituição
realizada na sede da Filarmônica de Viena
em 11 de novembro de 1955. Bruno
Walter foi nomeado presidente de honra,
e da primeira diretoria da instituição
participaram, entre outros, Theodor
Adorno, Rafael Kubelik, Ernst Krenek,
Donald Mitchell, Eduard Reeser, Alfred
Rose e Georg Solti. Hoje, a Sociedade é o
centro de pesquisas mais importante a
respeito da vida e da obra de Mahler, e seu
trabalho de recuperação e divulgação de
um dos mais ricos legados musicais da
Áustria foi o tema de uma recente exposição, realizada pelo Museu Judaico de
Viena, por ocasião da comemoração do
Jubileu de Ouro da Sociedade, que levou o
título de Mahleriana.
Organizada pelos curadores Reinhold
Kubik e Erich Wolfganf Partsc, a mostra
focalizou a história de uma instituição
cujo objetivo tem sido a transmissão de
um legado artístico, mas trata, igualmente, da criação de um ícone, isto é, do
surgimento de uma figura de culto, que
LETRAS E ARTES
Casinhas que Mahler mandou construir em meio ao idílio da paisagem dos Alpes austríacos
para compor: sensibilidade do artista tinha na natureza seu mais forte manancial, e só
foi reconhecida, em vida, por poucos espíritos sintonizados com seu próprio tempo
entrementes se transformou numa espécie
de cartaz de propaganda do patrimônio
cultural austríaco.
O que hoje soa como evidente, e em
parte conduz à mercantilização do nome
de Mahler, soaria altamente improvável à
época da fundação desta Sociedade. Para
citar só um exemplo, gravações discográficas do ciclo de canções Das Lied von der
Erde (A canção da terra) de antes de 1955,
são praticamente desconhecidas (um dos
primeiros registros foi realizado por
Bruno Walter em 1936). Hoje há no
mercado mais de 80 gravações diferentes
em cd desta obra.
Isto não significa, porém, que Mahler
tenha sido desconhecido em seu tempo.
Sempre houve pessoas sensíveis o suficiente para perceberem a enorme riqueza
e profundidade de sua música, embora a
massa do público musical vienense de sua
época o tenha desconsiderado. Entre os
que já o reconheceram em vida está, por
exemplo, o escultor francês Auguste
Rodin, que criou, em 1909, uma série de
bustos do compositor – e que também
incorporou suas feições a uma escultura
que retratava Mozart, realizada em 1911,
pouco depois da morte de Mahler, como
se o fundisse, para a posteridade, com este
outro mito da música austríaca.
Um aspecto interessante abordado por
esta mostra é ao amor incondicional de
Mahler pela natureza, sempre presente
em sua obra. O compositor dedicava inteiramente à criação musical os meses de
verão, quando tinha férias de suas incumbências como regente da Ópera Imperial
de Viena, e no idílio dos Alpes austríacos
da virada do século recolhia-se em
pequenas cabanas que lhe permitiam
afastar-se dos afazeres quotidianos e
dedicar-se inteiramente à criatividade.
Essas chamadas “casinhas de composição”
existiram em localidades como junto ao
lago Atter; em Klagenfurt-Maiernigg no
lago Wörth e em Toblach (hoje Dobbiaco),
no Tirol do Sul .
Em Steinbach, onde passava os verões
a partir de 1883, Mahler empreendia longas
caminhadas, que lhe proporcionaram
inspiração para sua 2ª e 3ª sinfonias, bem
como para algumas das canções do ciclo
Des Knaben Wunderhorn. Conta-se que,
ao contemplar a vista esplêndida das
montanhas ali, ele teria dito: “Tudo isto já
Auguste Rodin criou,
em 1909, uma série de
bustos do compositor e
também incorporou suas
feições a uma escultura
de Mozart, realizada em
1911, pouco depois da
morte de Mahler
foi transformado em música”. Maiernigg
foi seu refúgio criativo entre 1901 e 1907,
onde ele passou os primeiros verões com
a esposa Alma e as filhas Anna e Maria, e
onde criou suas sinfonias de números 5
a 8, seu ciclo de canções baseado em
poemas de Rückert, e completou o ciclo
Des Knaben Wunderhorn. Em Toblach,
onde passou os verões de 1908 a 1910,
compôs sua 9ª sinfonia, e a 10ª, inacabada, assim como Das Lied von der Erde
(A canção da terra).
Comparar a simplicidade espartana
destas casinhas com a enorme complexidade das obras ali criadas, bem como sua
importância para a história da música do
século 20, fala muito sobre a genialidade
do compositor – e sobretudo sobre a real
origem de sua musicalidade. Estas
casinhas de Mahler, que foram totalmente abandonadas e esquecidas na
Áustria no pós-guerra, transformaram-se
hoje em memoriais graças à ação da Sociedade Internacional Gustav Mahler. O
mundo onírico dos Alpes do início do
século 20 certamente voltará à memória
de quem, tendo uma imagem desses
despojados retiros musicais de Mahler,
voltar a ouvir sua música grandiosa.
Mahler foi também regente titular da
Ópera Imperial de Viena, da qual se tornou
diretor artístico em 1897. Vale lembrar
que converter-se ao catolicismo era
conditio sine qua non para ocupar este posto
de prestígio na burocracia artística dos
Habsburgos. Depois de 10 anos no cargo,
tendo sofrido perseguições não obstante
sua conversão, Mahler abandonou a
Ópera Imperial e passou algum tempo
nos Estados Unidos, tornando-se regente
titular da Filarmônica de Nova York e
regendo também no Metropolitan Opera
House. Voltou à Áustria pouco antes de
morrer de uma doença cardíaca incurável.
Sua máscara mortuária, de 1911,
mostra a face de um músico prematuramente falecido, marcado pelo dilaceramento e pelo amargor, e que certamente
não suspeitava que, na passagem do
século 20 para o 21, sua música ombrearia, no gosto do público, com a dos
maiores compositores da história. Klaus Billand é crítico de ópera da revista Der Neue
Merker, de Viena. www.der-neue-merker.at
Revista 18 53
CONTO
As letras fragmentadas
de Margo Glantz
Adriana Kanzepolsky discute a escrita irreverente
de uma autora nascida no México, filha de imigrantes judeus
do Leste europeu, que tem como objetivo minar a aparente
tranqüilidade reinante em torno das palavras
o capítulo XXII de Las Genealogías,
livro em que reconstrói as
memórias de seus pais, a escritora
judia mexicana Margo Glantz, nascida em
1930, relata uma viagem ao Brasil, na qual
comprou uma fitinha do Senhor do
Bonfim. De volta à cidade do México, ela
tenta ocultá-la dos olhos de seu pai, o
poeta ídiche Jacobo Glantz. Este, porém,
imediatamente percebe o amuleto em seu
pulso e comenta: “O que é isso? Chozerain,
porcarias.” “São superstições de mamãe,
quem sabe de onde ela as tirou”, comenta
sua filha Renata, ao mesmo tempo em que
mostra ao avô sua própria fitinha.
As duas páginas e meia deste capítulo
se limitam a essa viagem, que fez junto
com outras escritoras para propor ao
Ministro da Educação do Brasil da época
um intercâmbio entre autoras mexicanas
e brasileiras. O relato da viagem mantém
o mesmo tom leve, brincalhão e despreocupado dos demais capítulos do livro, e a
narrativa do encontro com diversas escritoras e psicanalistas de prestígio no Brasil
articula-se ao redor da reação desse grupo
de pessoas quando descobrem a “infame”
N
Ilustração: Monica Nudelman Kalili
54 Revista 18
fitinha. Com sua costumeira agudeza,
Margo Glantz deixa claro que, apesar de
algumas reações espantadas, uns mais,
outros menos, todos contavam com
fitinhas ou com algum outro tipo de amuleto para se protegerem do azar.
Apesar desta viagem e de algumas
outras, de caráter acadêmico, que a
trouxeram ao Brasil, Margo Glantz
continua sendo uma figura desconhecida
e quase inédita no país. A única exceção é
seu curto romance Aparições, publicado
pela editora Autêntica, de Belo Horizonte,
em 2002.
Descendente de imigrantes judeus
russos, ela é uma figura importante no
México. Mas é também alvo de controvérsias, por suas posições políticas e
porque sua narrativa escapa aos cânones
tradicionais da literatura desse país.
Autora de uma extensa obra de ficção,
escreveu também grande número de
ensaios, marcados por uma vasta erudição, que cobrem um espectro que vai da
literatura colonial aos debates em torno
do lugar da mulher na sociedade contemporânea. Uma das maiores especialistas
Reprodução
CONTO
Margo Glantz: erudição a serviço da irreverência, da ruptura
dos cânones e do esfacelamento dos chavões da cultura
mexicanas na poetisa barroca Sor Juana
Inés de la Cruz, a escritora, membro da
Academia Mexicana da Língua, é colunista de alguns periódicos de seu país e,
desde 1995, professora emérita da Faculdade de Filosofia e Letras da unam (Universidad Nacional Autónoma de México).
Margo Glantz estreou na escrita de
ficção com Las mil y una calorías (novela
dietética), de 1978, à qual seguiram, entre
outros títulos, Doscientas ballenas azules... y
...cuatro caballos, de 1981; Las genealogías,
que entre 1981 e 1997 teve diversas
edições, nas quais ia acrescentando novos
capítulos; Zona de derrumbe, uma coletânea de contos editada em 2001 na
Argentina; El rastro e Historia de una mujer
que caminó por el camino de la vida con
zapatos de diseñador, ambos publicados na
Espanha em 2002 e 2005, respectivamente.
Se fizéssemos um corte diagonal na
narrativa que Margo Glantz produziu ao
longo destas três décadas, reconheceríamos nela algumas marcas e alguns
núcleos que se reiteram no transcurso dos
anos. Refiro-me a textos que não se
deixam classificar facilmente em um
único gênero, mas que transitam pelo
relato de viagem, pelo romance, pelo
conto, pelo ensaio, pela reportagem, pelas
O humor de Margo
Glantz confronta a autora
– e também aqueles que
a cercam – mesmo
quando se reveste de
uma acidez que chega à
beira do sarcasmo
memórias pessoais, entre outros, numa
prosa que já foi qualificada de indômita.
Uma prosa que oscila entre o registro
culto e o popular, trate-se de estribilhos de
boleros, de clichês do espanhol mexicano,
que pontuam El rastro, por exemplo, ou de
provérbios, frases feitas e piadas em
ídiche, como acontece em Las genealogías.
Mesmo que a erudição possa, dissimuladamente, entrar em seus textos de ficção,
nos quais encontramos inúmeras referências a outros escritores e a outras literaturas (a inglesa, a russa ou a ídiche) e que
tenha uma preocupação constante com a
língua que se traduz em um trabalho obsessivo em torno da etimologia das palavras,
devemos destacar que, nestes procedimentos, o irreverente tem primazia sobre
o solene. Para sermos mais justos, deveríamos dizer que eles foram colocados a
serviço da irreverência, não porque a escritora não leve a sério a alta cultura, mas
sim porque, no processo de despedaçar as
palavras, de rasgar seu sentido canônico,
desdobrando-o em suas contradições,
Glantz elabora uma escrita que aposta em
minar a tranqüilidade suspeita que rodeia
essas palavras, expressões ou discursos
que, por serem comuns e repetidos,
Revista 18 55
CONTO
ficaram invisíveis e, assim, adquiriram o
caráter de verdades irrefutáveis.
Claro que não existe irreverência sem
humor, o que faz deste uma das características constantes de sua narrativa. Trata-se
de um humor que a confronta e confronta
aqueles que a cercam, mesmo quando se
reveste de uma acidez que chega à beira
do sarcasmo, como em Historia de una
mujer..., ou quando oscila entre a inocência e a ironia, como acontece em Las
genealogías, em que o humor parece ter sido
posto em cena, dilatada e repetidamente,
expandindo a frase que no começo do livro
define os judeus “como pessoas menores,
com um sentido de humor maior”.
Na prosa de Glantz
reiteram-se alguns
núcleos que convocam
sua escritura –
obsessões, a partir das
quais constrói uma
narrativa que se interna
na vida da matéria e que
faz do quotidiano, do
insignificante, o objeto
do relato
Dizia eu antes que na prosa de Glantz,
seja a de ficção ou a ensaística, reiteram-se
alguns núcleos que convocam sua escritura – obsessões, como ela as denomina
em uma reportagem. Refiro-me, em
particular, ao corpo, em suas manifestações de prazer ou de dor, ou a um corpo
fragmentado em pés, cabelos e dentes, às
viagens, à língua, alheia ou própria, ao
lugar da mulher não só nas passarelas de
alta costura, mas também nos campos de
extermínio nazistas, e à roupa, em particular os sapatos, objeto que a fascina e é
prenda de sua memória pessoal. Obsessões
a partir das quais constrói uma narrativa
56 Revista 18
que se interna na vida da matéria e que faz
do quotidiano, do insignificante, o objeto
do relato.
“Todos, sejamos nobres ou não, temos
nossas genealogias. Eu descendo do
Gênesis, não por soberba, mas por necessidade”, escreve jocosamente Margo Glantz
no prefácio de Las genealogías, livro em que
se propõe indagar a instabilidade que
reconhece como condição própria porque,
como diz, “e tudo é meu e não o é, e pareço
judia e não pareço, e por isso escrevo estas
minhas genealogias”. Paralelamente, ela
se dedica à tarefa incerta de fixar a
memória daquilo que foram as vidas de
seus pais, Jacobo e Luci Glantz. “Ligo o
gravador (com todos os agravantes, assegura meu pai) e inicio uma gravação
histórica, ou pelo menos assim me parece
– e também a alguns amigos. Quem sabe
fixe a lembrança”, anota no primeiro capítulo (itálico meu). Estamos, então, diante
de uma memória que se grava e que,
depois, por meio da narradora, se
transforma neste gênero escorregadio que
são as memórias escritas. Trata-se de uma
memória a três, que se desdobra numa
extensa conversação pontuada pelas
lembranças da própria Glantz, e que se faz
na fala e na boca destes outros, que são
seus pais. Uma memória que, na conversação, desliza entre o russo, língua
materna dos pais, o ídiche, uma língua
meio trazida da Europa e que terminam
de aprender na América, e o espanhol,
idioma materno da narradora e língua
sempre precária na boca dos pais.
Neste trânsito entre as três línguas, na
acumulação de versões, na oscilação entre
a lembrança e o esquecimento, na multiplicidade de tempos que o atravessam, Las
genealogías é uma tentativa de reterritorializar Jacobo e Luci Glantz, isto é, de criar
uma zona de segurança, ancorada na
palavra escrita, para estes imigrantes que,
ao chegar ao México, são uma espécie de
náufragos, faltos de território e de língua
e, até certo ponto, despidos, porque sua
roupa e/ou seu aspecto é inadequado, o
que os expõe demasiadamente seja ao riso
ou à agressão.
Mas, como contar vidas que se fizeram
em uma terra e em uma língua distintas
das da narradora e das do leitor a quem o
livro é destinado? Duas são as estratégias
a que Glantz recorre: pontuar estas
memórias com episódios que se articulam
em torno à comida e fazer de Las
genealogías o relato de um longo exercício
de tradução em que as experiências
vividas em russo ou em ídiche são
contadas em um espanhol permeado por
estas línguas européias.
Desde o primeiro capítulo, a comida
aparece como uma espécie de pano de
fundo que acompanha os encontros de
Margo Glantz com seus pais. E esse ato
quotidiano e trivial de reunir-se à mesa e
comer comida da Europa Oriental não só
produz um salto da memória, mas
também funde passado e presente,
convertendo-se, deste modo, em memória
e genealogia.
Por seu lado, a tradução é uma prática
que permeia e organiza o relato. Conseqüentemente, ser intérprete é uma das
funções que a narradora assume. Entre a
fronteira do espanhol e do ídiche, ela
traduz e interpreta. Translada à margem
do espanhol mexicano o russo e o ídiche
de seus pais, assim como também translada
ao universo cultural mexicano seus
hábitos gastronômicos e culturais. Ao
traduzir, então, intervém como “lançadeira entre duas culturas diferentes”, isto
é, intromete-se, corrige, interpreta, acrescenta dados históricos que contextualizam as lembranças fragmentadas de
seus pais. Uma tradução que articula
sobre duas estratégias: o parêntese, que
repete em espanhol a palavra ou expressão
que originalmente escreve em ídiche e
uma segunda, na qual não importa tanto
o sentido literal dos termos, mas sim a
possibilidade de imaginar o passado
europeu de Jacobo e Luci Glantz. Neste
ponto, ela apela a autores como Isaac
Babel, Bashevis Singer ou Kafka, que em
sua literatura já narraram esta realidade
que não lhe pertence.
É assim que, entre o começo e o fim
do texto, um círculo se fecha ao redor da
palavra escrita. Se a narradora descende
do Gênesis, a literatura judeo-européia
parece ser uma via-régia para traduzir
ao espanhol e à realidade mexicana
a cultura européia que foi deixada
para trás. Adriana Kanzepolsky é doutora em Literatura Hispano-Americana pela USP e doutoranda em Teoria Literária na Unicamp
Genealogias (Prólogo)
Todos, sejamos nobres ou não, temos nossas genealogias. Eu descendo
do Gênesis, não por soberba mas sim por necessidade. Meus pais nasceram
numa Ucrânia judia, muito diferente da de hoje, e ainda muito mais diferente
do México em que nasci, este México, Distrito Federal, onde tive a sorte de
ver a vida entre os gritos dos mercadores de La Merced, estes mercadores a
quem minha mãe observava, assombrada, vestida totalmente de branco.
A mim ninguém pode acusar, como a Isaac Bábel, de preciosismo ou de
biblismo, pois ao contrário dele (e de meu pai), eu não estudei hebraico, nem
a bíblia, nem o Talmude (porque não nasci na Rússia e porque não sou
homem) e sem dúvida muitas vezes me confundo, pensando como Jeremias
e evitando como Jonas os gritos da baleia. Como Joana d´Arc ouço vozes,
porém nem sou donzela nem quero morrer na fogueira, ainda que me sinta
atraída pela beleza destas cores berrantes, de que Shklóvski reclamava a
Bábel quando ainda não eram velhos, e que agora ele recorda com nostalgia, pois
é velho (Shklóvski, porque Bábel morreu num campo de concentração na
Sibéria em 14 de março de 1941).
Talvez o que mais me atraia de meu passado em meu presente judaico
seja a consciência das cores, do berrante, do grotesco, esta consciência que
faz dos judeus verdadeira gente menor com um senso de humor maior, por
sua crueldade simples, sua desaventurada ternura e até por sua ocasional
sem-vergonhice. Ma atraem estas velhas fotografias de um mascate lituano,
com sua barba pontiaguda (propícia às perseguições) e seu abrigo desmesurado, olhando a câmera com um sorriso “bêbado e roliço”, enquanto oferece
mercadorias baratas. A seu lado aparece, solene porém desalinhado, o
vendedor de roupas de mortos, chacal dos currais, porque sabe cheirar a
morte próxima daqueles cujos trajes haverá de vender. Também me atraem
estas crianças do cheder (escola judaica) que vão acompanhando um avô, o
menino sem sapatos e o avô com o olhar desgastado e a barba branca,
porém não pertenço a eles, apenas uma parte adormecida de mim mesma a
eles pertence, a parte que me cabe de proximidade com meu pai, menino
camponês, Benjamin de uma família de emigrantes, cuja irmã mais velha,
Rochel, desapareceu de casa ainda criança, talvez na Bessarábia (talvez em
outro lugar, que importa a esta altura!) e cujos irmãos começaram a emigrar
para os Estados Unidos depois dos pogroms de 1905.
Se vejo um sapateiro de Varsóvia ou um alfaiate de Wolonin, um carregador de água ou um barqueiro do Dnieper, me parece que são irmãos de
meu pai, ainda que seus irmãos tenham se tornado prósperos comerciantes
na Filadélfia e tenham trocado o solidéu e a barba por roupas das grandes
lojas – provavelmente da Macy´s. Se vejo várias crianças de Lublin, que mal
alcançam a mesa e se sentam, muito surpresas, sempre com seus gorros,
diante de uns velhos livros, enquanto o melamed (professor) lhes indica com
um marcador as letras do alfabeto hebraico, me parece também que vejo
meu pai terminando os trabalhos no campo, com os sapatos enlameados (do
outro lado seus irmãos usam sapatos Andrew Geller), sem poder brincar
porque tem que aprender os mandamentos, o Levítico e o Talmude e as
regras destas festas e celebrações que me são muitas vezes estranhas.
Não tive uma infância religiosa. Minha mãe não separava os pratos e as
tigelas, não fazia uma separação taxativa entre os recipientes que podiam
abrigar carne e aqueles destinados ao leite. Minha mãe nunca usou, como
minha avó, aquelas perucas que escondiam os cabelos porque só o marido
podia ver o cabelo de sua legítima esposa, e além disto minha avó Sheine foi
a segunda mulher de meu avô (a primeira morreu, de parto? Não se sabe.
Ninguém se lembra) e sua filha Rochel, a que emigrou para o coração imenso
da Rússia Branca, era filha do primeiro casamento...
ARQUIVO
“Cabe ao homem salvar o homem”
A história do Justo frei Arturo Paoli, que salvou as vidas de perseguidos do nazismo e hoje vive em Foz do
Iguaçu, onde se dedica à melhoria das condições de vida da população carente. Por Avraham Milgram
m 1999, o memorial Yad Vashem
agraciou frei Arturo Paoli com o
título de Justo entre as Nações, por
salvar judeus na Itália ocupada pelos
alemães durante a 2ª Guerra Mundial. Seu
nome figura ao lado de Raoul Wallenberg,
da Suécia, do cônsul português Aristides
de Sousa Mendes, do embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas e de
outras 21.000 pessoas até hoje reconhecidas como Justos. A maioria dos Justos já
não está mais em vida, e entre os vivos o
único que reside no Brasil é o frei Arturo
Paoli, de 94 anos de idade.
Entre os Justos, poucos foram aqueles
que explicaram por que fizeram o que
fizeram. Paoli é um deles. No ato oficial da
entrega do diploma e medalha de Justo
realizado em Brasília, frei Arturo Paoli
expressou o fundamento moral que o
levou a agir em circunstâncias de injustiça total.
Paoli nasceu em 1912, na cidade de
Lucca, Itália. Em 1936, após concluir os
estudos universitários em letras clássicas,
optou pela vida sacerdotal, pois esta lhe
oferecia condições para dedicar-se a
causas justas: “Acabados meus estudos
universitários, senti um impulso irresistível de dedicar-me à defesa dos injustiçados, porque de criança, aos seis anos de
idade, assisti numa praça da minha cidade
natal a cenas de violência com derramamento de sangue. Era o tempo em que se
instalava a ditadura fascista. O imenso
amor de que me envolvia minha família
não alcançava sarar este trauma que mais
tarde compreendi que só podia se transfigurar em fome e sede de justiça”. Esta
sensibilidade humana, incubada desde
tenra idade, manifestou-se a toda prova a
partir de setembro de 1943, quando parte
da Itália foi conquistada por Hitler. Foi
nestas circunstâncias que Paoli se viu na
E
58 Revista 18
obrigação de salvar judeus perseguidos.
Um deles foi Tzvi Yakov (Herman)
Gerstel, judeu ortodoxo, que se refugiara
na Itália com sua esposa.
Tzvi Yakov (Herman) Gerstel, nasceu
em Colônia, Alemanha, em 1921, de uma
família de imigrantes judeus poloneses.
Em 1927 emigrou para a Bélgica com os
pais e o irmão Samuel. A família
estabeleceu-se em Antuérpia e, ao cabo de
Depois de alguns anos
na Argentina, Paoli
delinearia, no início dos
anos 70, uma teologia
comprometida, que se
tornou uma espécie
de prelúdio à Teologia
da Libertação
alguns anos, ele ingressou numa Yeshivá
para estudar o Talmude. Foi nesta condição
que testemunhou a invasão do exército
alemão na Bélgica, na primavera-verão de
1940. Numa sexta-feira à noite de setembro
de 1942, alemães e agentes da polícia belga
invadiram a residência dos Gerstel para
deportá-los para os campos de extermínio. Os irmãos Tzvi Yakov e Samuel
conseguiram escapar e se esconderam no
telhado do edifício, lá permanecendo até
o amanhecer. Os pais não tiveram a
mesma sorte. Levados a AuschwitzBirkenau, foram assassinados. Alguns
meses mais tarde, foi a vez do irmão,
deportado em janeiro de 1943.
Depois disto Tzvi Yakov Gerstel
decidiu fugir da Bélgica, entrando ilegalmente na França com ajuda de um agente
que operava nas fronteiras. Lá, refugiou-se
em Limoges, e mais tarde em Lyon. Em
novembro de 1942 os alemães invadiram
a França de Vichy não ocupada. Ou seja,
Gerstel encontrou-se, novamente, sob
domínio alemão. Pouco depois, fugiu para
Nice, no território francês ocupado pelos
italianos, onde os judeus não eram perseguidos como no restante da França. Ali
casou-se e, juntamente a cerca de 800
refugiados, o casal foi levado a St. Gervais
du Bains, uma espécie de residência
forçada sob controle italiano. A única
obrigação dos refugiados era apresentarse diariamente nos escritórios das autoridades italianas. Havia algo de surreal nas
condições de vida dos refugiados judeus
desta localidade turística e pacífica, sob
regime italiano, se as compararmos ao
que se passava no resto da Europa sob
domínio alemão. No entanto, a queda de
Mussolini e a invasão dos aliados pela
parte setentrional da Itália levou os
alemães a invadir os territórios franceses
sob domínio italiano e o norte da Itália.
Pela terceira vez, Gerstel se via sob
domínio nazista. Como muitos outros
refugiados, escapou para a Itália com sua
esposa. Em Turim encontraram refúgio
num albergue para idosos judeus. Certo
dia, apareceu no asilo Giorgio Nissim,
judeu italiano e membro da delasem
(Delegazione Assistenza Emigrati Ebrei),
para transferir o casal Gerstel para outro
refúgio. Nissim encaminhava refugiados
judeus para Lucca, pois lá contava com a
Reprodução
ARQUIVO
Frei Arturo Paoli: “O Ocidente cristão é o centro organizado da guerra,
da carestia, da acumulação de riqueza nas mãos de poucos”
ajuda de padres e freiras – principalmente
de frei Paoli – que se encarregavam de
esconder judeus em instituições cristãs e
casas particulares. Depois de passar por
um castelo que pertencia a um aristocrata
italiano, Gerstel e sua esposa foram
transferidos para a casa de uma camponesa, onde permaneceram duas semanas.
Como é sabido, para esconder um judeu
durante o Holocausto eram necessárias
dezenas de pessoas, porém bastava uma
só para delatar vários judeus.
A esta altura, o casal teve que separar-se
pois a esposa de Gerstel estava prestes a
dar a luz. Frei Paoli, com quem Nissim
mantinha contato, arranjou para que a
levassem ao hospital de Lucca para
conceber. Lá nasceu Rosa, a primeira filha
do casal, e lá mãe e bebê permaneceram
escondidos até o final da guerra. Após um
bombardeio que atingiu a casa onde se
escondia, Gerstel resolveu buscar o
seminário de Paoli, localizado na mesma
cidade. Durante o período que passou
escondido no seminário, os alemães
invadiram várias vezes a instituição em
busca de judeus e de indivíduos
pertencentes à resistência antinazista.
Nestas “visitas” eles aterrorizavam os
padres com gritos, violência, quebravam
móveis, portas e utensílios domésticos.
Paoli, porém, o protegeu, escondendo-o
durante vários meses até a chegada das
forças americanas, que libertaram Lucca
em 6 de setembro de 1944.
Terminada a guerra, protegido e
protetor se separaram, cada qual tomou
seu rumo. Em 1998, passados 54 anos da
última vez que se viram, Gerstel lembrouse de procurar seu salvador. Após curta
investigação por intermédio dos consulados italianos, veio a informação de que
Paoli se encontrava em Foz do Iguaçu, no
Brasil. Ainda naquele ano, o frei e o extalmudista da Yeshivá, acompanhado pela
mulher, duas filhas e uma neta, se encontraram em Milão. Giorgio Nissim, na
ocasiao, já tinha falecido.
Após o final da guerra, Paoli dedicou-se
à vida sacerdotal em Lucca, e em 1949 foi
convocado por Monsenhor Montini,
futuro Papa Paulo VI, para atuar na Juventude da Ação Católica. Em meados dos
anos 50, influenciado pela filosofia de
Charles Foucauld, confrontou-se com as
doutrinas conservadoras do Vaticano, o
que o levaria a um distanciamento de
Roma e a buscar comunidades periféricas
na América Latina. Depois de alguns anos
na Argentina, Paoli delinearia, no início
dos anos 70, uma teologia comprometida,
que se tornou uma espécie de prelúdio à
Teologia da Libertação. Neste período,
publicou o livro Diálogo da Libertação,
que o levou a ser visto como inimigo do
regime militar argentino, correndo perigo
de vida. Refugiou-se na Venezuela, onde
atuou como responsável pela Ordem dos
Pequenos Irmãos da América Latina. Em
1983, no ocaso da ditadura militar,
estabeleceu-se no Brasil, inicialmente em
São Leopoldo e, em 1987, em Foz do
Iguaçu. Residindo num bairro pobre, Boa
Esperança, fundou a Associação Fraternidade Aliança, (afa) entidade filantrópica
com a finalidade de promover solidariedade entre as pessoas, que tem resgatado a
cidadania de famílias inteiras.
Em 9 de fevereiro de 2000, na presença
do Cardeal de Florença Silvano Piovanelli
e do Rabino Yoseph Levi, por ocasião de
uma homenagem pelo sexagésimo aniversário de sua ordenação eclesiástica,
Paoli fez a seguinte declaração: “Tutta la
nostra cultura è una cultura di morte, l'occidente cristiano è il centro che ha organizzato
la guerra, la carestia, l'accumulazione delle
ricchezze nelle mani di pochi”. (Toda nossa
cultura é uma cultura de morte. O Ocidente cristão é o centro organizado da
guerra, da carestia, da acumulação das
riquezas nas mãos de poucos.)
Aos 94 anos de idade, Paoli continua
atuante na Associação Fraternidade
Aliança em Boa Esperança de Foz do
Iguaçu, escreve, publica, dá palestras,
educa e luta em prol dos carentes por um
mundo melhor e mais justo. Avraham Milgram é historiador do Instituto
Internacional para a Pesquisa do Holocausto
no Yad Vashem, Jerusalém. Escreveu sua tese
de doutorado em História Judaica Contemporânea na Universidade Hebraica de Jerusalém
Revista 18 59
NO CENTRO
Aconteceu no
Centro da Cultura Judaica
5 DE SETEMBRO DE 2005
Inauguração da Exposição Albert Einstein: o
personagem do século
20 DE OUTUBRO DE 2005
Homenagem a David Reznik, que representou Israel na Bienal de Arquitetura de São Paulo
Da esquerda para a direita, William Lohn, da
Casa de Cultura de Israel; Chaim Rabinovich,
reitor da Universidade Hebraica de
Jerusalém e Morris Dayan, presidente da
Sociedade Amigos da Universidade Hebraica
de Jerusalém
O arquiteto David Reznik
A embaixadora de Israel no Brasil,
Tzipora Rimon
27 DE OUTUBRO DE 2005
Inauguração do 3º Ciclo Multicultural Judaico-Brasileiro
Cláudia Matarazzo, Walter Feldman,
secretário das Subprefeituras de São Paulo,
e David Feffer, presidente da Casa de
Cultura de Israel
Boris Cambur e Ana Feffer
José Serra e José Mindlin
60 Revista 18
Ana e David Feffer, José Mindlin e
Cláudia Costin
NO CENTRO
9 DE NOVEMBRO DE 2005
Lançamento do documentário Jamais Esqueceremos, de Francisco Gotthilf
Rachela Gotthilf e Raul Mayer, vicepresidente da Casa de Cultura de Israel
Francisco Gotthilf, diretor e produtor do
documentário, e o rabino Shabsi Alpern
Inauguração da exposição Albert Einstein: o personagem do século, na sede da
Fundação Companhia Siderúrgica Nacional, em Volta Redonda, MG
Sarah Klein, Raphael Klein, Michael Klein e
Francisco Gotthilf
22 DE MARÇO DE 2006
Encontro sobre o tema “O surgimento
do Golem”
Regina Igel e Lyslei Nascimento
Raul Meyer, vice-presidente da Casa de
Cultura de Israel, e Rafael Alves de Moura,
o vencedor do concurso de caricaturas de
Albert Einstein, realizado em Volta Redonda
Ilana Adour, assessora do vicepresidente da Fundação Companhia
Siderúrgica Nacional
Anita Novinsky e Vlad Eugen Poenaru
Seleção e edição de imagens por Giselle Tidei e Beatriz Reingenheimer
Revista 18 61
NA REDE
INTERNET
por Dov Bigio
[email protected]
Beit Chabad do Brasil - http://www.chabad.org.br/
Principal movimento do judaísmo ortodoxo, o Chabad Lubavitch possui mais de
3.300 instituições pelo mundo, dirigidas
por mais de 4.000 famílias de shlichim (emissários), que trazem a mensagem do movimento para as comunidades judaicas.
Fundado há cerca de 250 anos, o movimento busca levar o conhecimento e a
prática da vida judaica para as comunidades em que atua. No Brasil, o movimento
atua desde antes da 2ª Guerra Mundial, e
hoje está presente praticamente em todas
as principais cidades onde há comunidades judaicas, como São Paulo, Rio de
Janeiro, Porto Alegre, Brasília, Belo Horizonte, entre outras. Há diversas sinagogas
do Beit Chabad. O site do Beit Chabad
Central, situado em São Paulo, é o mais
completo, com informações sobre as
festas judaicas, o ciclo de vida, artigos
sobre o modo de vida judaico, além de
uma divertida seção dedicada às crianças.
CIP - Congregação Israelita Paulista - http://www.cip.org.br/
Principal representante do judaísmo
liberal em São Paulo e no Brasil, a cip foi
fundada em 1936 por judeus refugiados
da Alemanha nazista. Atuando na cip
desde 1970, o Rabino Henry Sobel preside
o Rabinato desta instituição, uma das
maiores sinagogas do Brasil em número
de associados. Seu site apresenta textos
sobre judaísmo (festas, ciclo de vida,
cultura, receitas etc.) além de informações
sobre as atividades da entidade. Está
disponível também, na integra, o livro Os
Porquês do Judaísmo, com perguntas e
respostas sobre as principais questões do
judaísmo contemporâneo.
Jewish Things - http://www.jewishthings.com/
Concentrar a melhor seleção de livros,
música, dvds, software e outros produtos
ligados ao judaísmo é a proposta do
JewishThings.com, um dos maiores sites
de produtos judaicos. Se você estiver
procurando um livro, uma música ou um
filme, este é o local certo para começar
sua busca. Na verdade, o site não vende
nem distribui produtos, apenas centraliza
uma seleção de itens disponíveis na
amazon.com, num sistema totalmente
integrado. Isto garante a segurança e a
qualidade do serviço prestado pela renomada amazon.com, e facilita a pesquisa
deste tipo de produtos.
Jewish Jokes - http://www.jewishjokes.net/
Mães judias, relacionamento entre
ashkenazim e sefaradim, a própria religião
e o relacionamento de D'us com os
homens e o anti-semitismo. Estes são
apenas alguns dos diversos temas que
enriquecem o humor judaico. Para tentar
centralizar as piadas judaicas, este site faz
um grande ranking das piadas publicadas,
62 Revista 18
além de permitir que os visitantes enviem
suas próprias anedotas. Capazes de rir de
sua própria situação, de suas crenças e de
seu relacionamento com o mundo, os
judeus sempre foram conhecidos por suas
piadas bem-humoradas, e neste site é
possível divertir-se com elas.
Revista 18
5
62
Ernst
Young
HUMOR
á muitos e muitos anos, na
época em que os samurais
eram muito importantes,
havia um imperador que
precisava de um novo
samurai-chefe, então
ele mandou circular por
seu reino um decreto, anunciando
que estava à procura do melhor
dos samurais. Passou-se um ano
e só três candidatos se apresentaram para as provas:
um samurai japonês, um
samurai chinês e... um
samurai judeu.
O imperador
convidou o samurai
japonês a entrar e
demonstrar suas habilidades com a espada.
O samurai japonês abriu
uma caixa de fósforos, e de
lá saiu uma abelha voando...
Uóoosh! Com sua espada mais afiada
do que uma navalha, o samurai japonês
cortou a abelha em duas partes e o inseto
caiu morto no chão.
“Impressionante!”, exclamou
o imperador.
Em seguida, convidou o samurai
chinês, que também abriu uma caixa
de fósforos, e dela saiu, zumbindo,
uma mosca. Uóoosh! Uóoosh! fez sua
espada reluzente, e a mosca caiu morta
no chão... esquartejada!
“Realmente MUITO impresionante!”,
o imperador exclamou, admirado.
Agora o imperador voltou-se para
o samurai judeu, e pediu-lhe para
demonstrar, também, suas habilidades.
O samurai judeu também abriu uma
caixa de fósforos, e dela saiu voando um
mosquito. Sua espada, rápida como um
raio, fez Uóoosh! Uóoosh!
Uóoosh!... mas o mosquito continuava
a voar.
O imperador, evidentemente desapontado com a demonstração do judeu, disse:
“Vejo que você não serve para o cargo.
O mosquito não está morto!”
O samurai judeu apenas sorriu, e disse:
“A circuncisão não foi feita para matar”.
H
64 Revista 18
Blue Tree
Safra