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LEI Nº 10.639/2003 – 10 ANOS
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva1
RESUMO
O artigo apresenta uma reflexão sobre os desafios impostos à sociedade brasileira, a partir da inclusão
da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Aborda como esta política
curricular evidencia questões de pertencimento étnico-raciais, as quais devido ao processo de
colonização europeia, se pautaram pelo racismo e pela hegemonia da cultura e história branca
eurocentrada, tida como universal e que acaba por inferiorizar as culturas e histórias dos negros e
indígenas no Brasil. Este trabalho aponta ainda como a Lei nº 10.639/2003, através de suas DCN,
apresenta importantes elementos para a construção da educação das relações étnico-raciais. Por fim,
remete à avaliação das condições para a consolidação da iniciativa política e pedagógica proposta pela
Lei em pauta, a qual visa à igualdade racial e o fortalecimento da cidadania de todos os cidadãos.
Palavras-chave: Política curricular. Educação das Relações Étnico-Raciais. História e Cultura AfroBrasileira e Africana.
ABSTRACT
The article reflects on the challenges facing Brazilian society, from the inclusion of the mandatory
teaching of History and Culture Afro-Brazilian and African. Discusses how this curricular policy
highlights issues of belonging, ethnic-racial, which due to the process of European colonization, were
based by racism and hegemony of white culture and history eurocentered considered as universal and
which ultimately abash the cultures and histories of blacks and indigenous peoples in Brazil. This
work also shows how the Law No. 10.639/2003, through its DCN, presents important elements for the
construction of the education of ethnic and racial relations. Finally, refers to the evaluation of the
conditions for the consolidation of political and pedagogical initiative proposed by the Law under
discussion, which aims to racial equality and the strengthening of citizenship for all citizens.
Keywords: Curricular Policy. Education of Racial-Ethnic Relations. History and Culture AfroBrazilian and African.
1
Professora Emérita da Universidade Federal de São Carlos. Titular em Ensino – Aprendizagem – Relações
Étnico-Raciais, junto ao Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas/UFSCar. Pesquisadora do
NEAB/UFSCar.
2
Por se tratar de política curricular de reconhecimento e de reparação de desigualdades,
a Lei nº 10.639/20032,ao introduzir o estudo de cultura e história afro-brasileira e africana,
assim como a Lei 11.645/20083 que estende essa obrigatoriedade a culturas e histórias dos
povos indígenas, põem em evidência dificuldades frequentes de pessoas de diferentes
pertencimentos étnico-raciais, notadamente brancos e negros, indígenas e não indígenas
conviverem em relações de igualdade e respeito. Uma sociedade diversa étnico-racialmente
como a nossa, informada pelo racismo, vê negros, indígenas como inferiores. Uma sociedade
cuja herança da colonização europeia é valorizada não como um dos componentes da cultura
nacional, mas como aquele em que todos deveriam privilegiadamente se pautar, os
descendentes de europeus estão convencidos de que os valores, conhecimentos, tradições que
herdaram de seus avós migrantes são universais. Buscam, eles, muitas vezes com êxito,
convencer, disso, o restante da população. Assim, preconceitos racistas contra negros e
indígenas geram, cotidianamente, conflitos interpessoais, políticos, intelectuais, mais ou
menos explícitos, que permeiam as relações étnico-raciais entre os brasileiros.
Contraditoriamente, ao mesmo tempo em que se pretende convencer que a cor da pele,
a tessitura dos cabelos, os traços de nariz, lábios, testa, maçãs do rosto, a constituição e
expressão do corpo são dados secundários na comunicação entre as pessoas, julgam-se corpos
negros, corpos indígenas, antes mesmo de se expressarem, como menos capazes do que
corpos brancos. Para serem reconhecidos, exige-se que não brancos desapareçam, ao
comportar-se como se fossem brancos. Como se vê, a corda pele de cada pessoa leva a que
outras as avaliem, antes de qualquer interação, a partir de valores sócio-culturais dominantes
na sociedade, classificando-as, por exemplo, como boas, belas, inteligentes ou, más, feias,
incapazes4.
Indignado diante dessa opressão renovadamente construída há cinco séculos, Marcos
Terena (2013, p. 54-55), com autoridade feita na experiência de homem indígena, quando das
reuniões preparatórias para a Conferência Mundial de Durban, em 2001, advertiu e encorajou:
Temos de levar adiante as conquistas necessárias para assegurar os direitos
básicos: direito à vida, à dignidade e ao direito de sermos o que somos.
Temos que reconhecer e ensinar que “os índios e os negros não
desapareceram, apesar de todo massacre existente. Não desapareceram por
causa da cultura e da espiritualidade. Temos de educar as futuras gerações,
para que a gente passe, realmente, a construir uma sociedade com mais
2
A Lei nº 10.639/2004 introduz, na Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da educação Nacional, o Art. 26A
que determina a obrigatoriedade do ensino do estudo de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
3
A Lei nº 11.645/2008 altera o Art. 26A da Lei nº 9.394/1996, estendendo a obrigatoriedade para o ensino de
histórias e culturas dos povos indígenas.
4
Sobre esta importante questão, ver entre outros Gomes (2006); Torres (2010).
3
condições de a gente poder ter essas diferenças e que elas não possam
significar separação, ódio.
O corpo de cada um carrega a história e expressa nuances culturais do grupo social,
étnico-racial a que pertence e é instrumento privilegiado de comunicação, de diálogo. Por
isso, é urgente desconstruir a equivocada crença de que vivemos numa democracia racial,
deixar de reduzir a diversidade étnico-racial da população a questões de ordem economicosocial e, além do mais, admitir que fazemos parte da história do ocidente colonizador que
produziu sociedades excludentes, racistas, discriminatórias, que insistem em assim se
conservar, como bem sublinha Silva (1987).
Para eliminar a ideia de uma supremacia branca e das desumanidades que tem gerado,
é preciso ter presente, conforme Quijano (2010), que “com toda a certeza, a ideia de raça é o
instrumento mais eficaz de dominação social inventado nos últimos 500 anos”. Prossegue,
ele:
De ese modo, raza, una manera y un resultado de la dominación colonial
moderna, pervadió todos los ámbitos del poder colonial capitalista. En otros
términos, la colonialidad se constituyó como la piedra fundacional del patrón
de poder mundial capitalista, colonial/moderno y eurocentrado (Ibid., p.
184).
Poder esse que incide sobre os sistemas de educação, sobre políticas, propostas, planos
curriculares, demarcando projeto de sociedade que se quer dominante. Entretanto, na
execução dessas políticas, explicitamente ou não, outros projetos de sociedade que no dia a
dia entram em conflitos, são expostos, revelando resistência à imposição de uma visão de
mundo e aos valores, privilégios, hierarquias que gera. King (2010) argumenta, referindo-se à
experiência em Nova Orleans (USA) pós Katrina5, que o objetivo real de certas reformas
curriculares pode ser a destruição da integridade cultural de um grupo social, o que ocorre
frequentemente em relação aos negros. E isso se faz, sublinha, ela, por meio da destruição da
educação pública, isto é, daquela que deve acolher, valorizar a diversidade social, étnicoracial de uma população.
Segundo Sleeter (1996), a educação que respeita a multiculturalidade da população, ao
não aceitar conformidade a uma única norma cultural, desafia a opressão provocada por
pretendida supremacia da cultura de raízes europeias, das pessoas de cor branca. No mesmo
sentido, Hilliard III (2009) esclarece que “raça não é uma questão de cor da pele, anatomia ou
fenótipo, mas de dominação de um grupo sobre outro”.
5
Catástrofe natural provocada por violento furacão, em agosto de 2005.
4
A Lei nº 10.639/2003, bem como a Lei 11.645/2008 visam fazer face ao racismo e
discriminações contra negros e indígenas que permeiam a sociedade e, por isso mesmo, as
escolas, as instituições de ensino superior. Criam, essas leis, condições, por meio do
reconhecimento e valorização da história e cultura africana, afro-brasileira, indígena, para se
enfrentar tão séria problemática e propor um projeto de sociedade justa, equânime. O
Conselho Nacional de Educação, exercendo sua competência, alerta os sistemas de ensino por
meio da Resolução CNE/CP 1/2004 e Parecer CNE/CP3/20046:
Precisa, o Brasil, país multiétnico e pluricultural, de organizações escolares em que
todos se vejam incluídos, em que lhes sejam garantidos o direito de aprender e de ampliar
conhecimentos, sem ser obrigados a negar a si mesmos, ao grupo étnico/racial a que
pertencem e a adotar costumes, ideias e comportamentos que lhes são adversos. E estes,
certamente, serão indicadores da qualidade da educação que estará sendo oferecida pelos
estabelecimentos de ensino de diferentes níveis (BRASIL, 2004a).
O Brasil, pois, nação plurirracial e culturalmente diversa, precisa garantir, a todas as
pessoas, cidadania plena, para tanto tem de educar para relações étnico-raciais em que todos
sejam devidamente valorizados. Para tanto, preconceitos devem ser desconstruídos, o que se
espera poder atingir por meio do conhecimento e valorização da história e cultura dos
afrodescendentes, dos africanos, dos povos indígenas. Essas histórias e culturas, queira-se ou
não, são centrais na construção da nação e como tal precisam ser estudadas, a fim de que se
superem preconceitos, freiem definitivamente ideias de supremacia de uma cultura sobre
outras, desconstruam pedagogias que visam assimilar todos a uma única visão de mundo.
Ao buscar superar visão de historiografia que privilegia um grupo étnico-racial, assim
como discursos que fazem desaparecer ou tratam como inferiores as histórias e culturas dos
afro-brasileiros, africanos, indígenas, pretende-se superar conjunção de relações que geram
ideias, discursos, posturas, atitudes racistas e discriminatórias. Neste caso, está-se entendendo,
como pondera Marcela G. Sollano (2002), a relação entre conhecimento e consciência social,
como lugar dos processos de ensino:
El desafio histórico a que nos enfrentamos los educadores requiere un tipo
de discurso orientado a enriqecer la realidad como problemática, aunque no
exclusivamente en torno a un eje teórico, sino en base a proyectos de sujetos
sociales.
6
A Resolução CNE/CP 1/2004 (BRASIL, 2004a) e Parecer CNE/CP3/2004 (BRASIL, 2004b) tratam das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileria e Africana.
5
É nessa perspectiva de articulação entre significação do mundo, produção de
conhecimentos e experiências sociais que se há de ensinar história e cultura afro-brasileira,
africana e dos povos indígenas. E nesse processo é essencial saber se comunicar, examinar
problemas que concernem a todos, buscar soluções que contentem a todos. Para tanto, todos
têm obrigação de se comunicar. Como diria Ki-Zerbo (2002), historiador africano, ao
discorrer sobre democracia e governança: todos têm de ter não somente o direito à liberdade
de expressão, “mas têm a obrigação de se exprimir”.
A Lei nº 10.639/2003 ao provocar o diálogo, coordenado pelas escolas, entre
diferentes culturas, questiona a invisibilidade com que negros e indígenas têm sido tratados,
escancara crueldades do racismo e de ideias preconcebidas, questiona relações étnico-raciais
que discriminam e desqualificam pessoas e grupos, problematiza privilégios e hierarquias que
distinguem ou desqualificam a cidadania de homens e mulheres. Como sublinha Carpentier e
colaboradores (2012), o encontro de culturas é um desafio para a escola, seus professores, mas
sobretudo para a sociedade que precisa querer se reeducar.
Assim sendo, cabe questionar, a História e a Cultura Africana, no Brasil, para quê?
Ao longo do Parcer CNE/CP 3/2004 (BRASIL, 2004a), encontram-se respostas e
justificativas a essa pergunta, como veremos a seguir, conforme aponta Silva (2007), estudar
História e Cultura Africana, no Brasil, nos termos do Parecer CNE/CP 3/2004 (Ibid.):
Para que todos os brasileiros, independentemente do seu pertencimento étnico-racial:
valorizem, respeitem e compreendam os pensamentos, as visões de mundo, a
descendência africana dos negros, conheçam seus valores e lutas;
compreendam porque ser negro no Brasil é uma escolha política;
analisem, “na perspectiva forjada pela ideologia do branqueamento que divulga a
ideia e o sentimento de que as pessoas brancas seriam mais humanas, teriam inteligência
superior” (BRASIL, 2004a) e, por isso, teriam o direito de comandar e de dizer o que é bom
para todos, a afirmação de que os negros se discriminam entre si e que também são racistas;
tomem conhecimento de que o “racismo imprime marcas negativas na subjetividade
dos negros e também na dos que os discriminam” (Ibid.);
superem o equívoco de que a discussão e solução dos graves problemas acarretados
por relações étnico-raciais distorcidas, discriminatórias é somente da responsabilidade dos
negros, do Movimento Negro e de pessoas não negras que lutam por uma sociedade
equânime;
6
tornem-se sensíveis ao sofrimento causado por tantas formas de desqualificação,
como: apelidos depreciativos, brincadeiras, piadas de mau gosto sugerindo incapacidade,
ridicularizando traços físicos, a textura de cabelos, agredindo religiões de raiz africana,
demonstrando profundo desconhecimento das civilizações africanas de que os escravizados
eram oriundos;
eliminem comportamentos, manifestados na sua maioria por descendentes de
europeus, brancos, que desqualificam as experiências, pensamentos, escolhas, decisões dos
negros, negando-lhes valor e pretendendo a dar-lhes lições por julgarem que desconhecem a
história (como se houvesse uma única história, ou uma única versão da história), que seriam
incapazes de se libertar das opressões, de criticar as relações étnico-raciais que desumanizam,
de com elas lidar, de superá-las.
Para que os negros:
fortaleçam sua cidadania, o pertencimento étnico-racial, a confiança nas suas
capacidades, a sua responsabilidade de combater toda sorte de racismos e discriminações;
aprofundem o conhecimento das raízes africanas e expressem, com segurança, suas
africanidades;
não sejam rejeitados em virtude da cor de sua pele, menosprezados diante da
infelicidade de seus antepassados terem sido explorados como escravos;
não sejam desencorajados a prosseguir estudos, estudar questões que dizem respeito à
comunidade negra;
não se vejam constrangidos à alienante experiência de fingir ser o que não são, para
serem reconhecidos, respeitados;
não se vejam obrigados a se deixar assimilar por visão de mundo que pretende imporse como superior e, por isso, universal, o que os obriga a negarem a tradição do seu povo.
Para que os brancos:
assumam a responsabilidade moral e política de combater o racismo, as discriminações
e de, juntamente com os negros e outros mantidos à margem pela sociedade, construir
relações raciais e sociais sadias, em que todos cresçam e se realizem enquanto seres humanos
e cidadãos. E sem esquecê-las, não assumam como sua, a culpa pelas atrocidades cometidas
por seus antepassados contra os negros;
reconheçam e valorizem aportes de africanidades no seu jeito de ser brasileiro.
Como se vê, o ensino de História e Cultura Africana, necessariamente articulado ao de
História e Cultura Afro-Brasileira prevê muito mais do que erudição, aquisição de novas
7
informações, requer necessariamente, “a educação das relações étnico-raciais, o que exige de
brancos e negros, trocas de conhecimentos, quebra de desconfianças, projeto conjunto para
construção de uma sociedade justa, igual, equânime” (BRASIL, 2004a). Exige também
conhecimento da complexidade que envolve o processo de construção tanto da identidade dos
descendentes de africanos, como dos descendentes de europeus, de asiáticos e dos povos
indígenas.
Pessoas de diferentes origens étnico-raciais, entre outras marcas de pertencimento
social, interagem no dia-a-dia, em diferentes contextos e situações. Nestes encontros, muitas
vezes desencontros, comparam jeitos de ser e viver, apreciam ou rejeitam modos de pensar,
descobrem-se iguais ou diferentes, confirmam ou ressignificam valores e maneiras próprias de
conceber e organizar a vida. Assim, cada um se reconhece pessoa cidadã, em face a face com
as outras pessoas que interrogam suas certezas, valores, abrindo caminhos para novos
significados, interrogações, atitudes, posturas. Como bem salienta Joffe (2005), o outro,
diferente, desencadeia e influencia o projeto contínuo de construção da identidade de cada
um.
A educação das relações étnico-raciais, pois, enquanto processo pedagógico visa criar
abertura para compreensão de distintas maneiras de pessoas expressarem sua humanidade, por
isso questiona a pretensão de que viveríamos numa sociedade monocultural que se teria
construído unificada por uma língua única, por uma cultura a que todos os habitantes da nação
deveriam convergir, obrigando-os a se desembaraçar das culturas próprias a seus grupos
sociais, notadamente o étnico-racial.
Informados pelo mito da democracia racial de que viveríamos integrados e
harmoniosamente, brasileiros de diferentes grupos étnico-raciais, fazemos, muitos de
nós,vistas grossas a violências e antagonismos gerados pela pretendida supremacia
das
pessoas brancas, das heranças europeias. Sustentam-se tais relações, difundindo o equivocado
entendimento de que somos todos mestiços e de que a mestiçagem 7, enquanto visão de
mundo, ideologia, projeto de sociedade teria unificado todas as culturas, mantendo uma
dominante e aceitando traços das demais. Miscigenação, neste caso, tem implicado em
imposição, assimilação de valores, de projetos, de perspectivas e vida. A tal ponto que
conforme Martin Nakata (2012), sobre a experiência de aborígenes, na Austrália, já não é
possível distinguir o quanto a presença colonial influencia suas vidas, nem sempre se dão
conta de que estão repetindo discursos colonizadores. Essa constatação, entretanto, não
7
Sobre a questão ver entre outros: Toumson (1998).
8
significa que tenham desistido de fazer presente conhecimentos e sabedoria de seus povos nos
estabelecimentos de ensino de diferentes níveis. Ao contrário, demonstram que estão cientes
das dificuldades e desafios a enfrentar, para serem devidamente aceitos e respeitados.
O objetivo de povos originários e também dos negros da diáspora africana, nos
diferentes continentes, é o de receber o que de melhor instituições de ensino podem oferecerlhes, sem contudo, abandonar os conhecimentos e sabedoria próprios. Não desistem, embora
sejam objeto de desqualificações, de influenciar a educação oficial, no sentido de que inclua
conhecimentos e valores próprios às raízes histórico-culturais de seus povos. A resistência de
políticas curriculares e a não aceitação de professores, às suas propostas, se devem de um lado
à ignorância sobre contextos sociais e culturais não hegemônicos e de outro, ao projeto de
sociedade que aceita desigualdades, a fim de manter privilégios para alguns.
Banks8, pesquisador estadunidense na área de multiculturalismo e educação,
argumenta sobre a necessidade de se promover e avaliar aprendizagens, tendo como princípio
e meta – equidade pedagógica. Em outras palavras, utilização de metodologias e materiais de
ensino que garantam, a cada estudante, o direito de receber instrução, formação de qualidade.
De qualidade, porque acolhem valores, linguagens, formas de organizar e expressar o
pensamento, de aprender próprias às raízes étnico-culturais de cada aluno. Sublinha, o
referido educador, ser inaceitável que professores acreditem que pessoas tenham déficits
culturais, em virtude de não serem descendentes de europeus ou de não acolherem
privilegiadamente visão de mundo e valores dessa raiz. A indisponibilidade para conhecer e
aprender com outras culturas, impede, professores, de identificar potencialidades e
possibilidades para aprender o novo que seus alunos trazem a partir de suas culturas
originárias. Como se vê, equidade pedagógica é princípio e condição para reeducar as relações
étnico-raciais que vivemos no dia a dia, inclusive nas escolas9.
A educação das relações étnico-raciais, pois, proporciona, a professores e seus alunos,
aprendizagens sobre a sociedade e sua diversidade. Nesse processo, a autoridade de ensinar e
de aprender advém ora dos professores, ora dos alunos, conforme ensina Paulo Freire
(1978)10.Vivida dessa maneira, a relação pedagógica, nos estabelecimentos de ensino de todos
os níveis, tem papel vital na construção das sociedades democráticas. Sociedades essas que
visam garantir, a todos os grupos sociais, iguais direitos, poder e autoridade.
8
Banks (2006) e Banks (2004).
Sobre isso, ver, entre outros: Santiago; Silva; Silva (2010).
10
Paulo Freire, notada, mas não exclusivamente em Freire (1978). E em Freire (2011).
9
9
O desconhecimento das experiências de ser, viver, pensar e realizar de povos
indígenas, de descendentes de africanos, assim como de outros povos que constituem a nação
brasileira, faz com que tenhamos dificuldades para corrigir os engodos em que nos mergulha
o mito da democracia racial, de vencer determinações de sistema-mundo centrado em
cosmovisão representativa de uma única raiz étnico-racial. Impede-nos de ter acesso a outros
modos de ser, viver, conhecer. Tornamo-nos incapazes de perceber as vozes e imagens
ausentes do cotidiano de nossos próprios grupos e desejosos de reduzir todas as pessoas a um
modelo de ser mulher, homem que seria universal.
A educação das relações étnico-raciais, pois, tem papel vital na construção das
sociedades democráticas que visam garantir, a todos os grupos sociais, iguais direitos, poder e
autoridade. Para tanto, é indispensável, a cada cidadã e cidadão, conhecer e valorizar as
histórias e culturas dos povos que originaram e têm consolidado as nações. Assim sendo,
diálogo entre distintos pontos de vista é fundamental, bem como meios de negociação entre
diferentes posições e concepções, com a finalidade de compor iniciativas e políticas públicas
que gerem impacto em condições de vida e cidadania de todas as pessoas11.
A Lei nº 10.639/2003, cuja promulgação cumpriu dez anos, em 9 de janeiro de 2013, é
uma dessas políticas12, propostas pelo Movimento Negro, em diferentes oportunidades
durante o século XX. Cabe destacar entre essas, pela visibilidade e impacto, a Marcha Zumbi
dos Palmares, no 20 de novembro 1995, em Brasília, cujo objetivo até hoje persiste: Contra o
racismo, pela Igualdade e a Vida. E cujo lema se mantém: Zumbi Vive.
Esses objetivos e lema certamente serão considerados ao se desencadear,
nacionalmente, em cada sistema de ensino, em cada escola, universidade, sala de aula,
avaliação do alcance da execução das determinações legais, desencadeadas pelo Art. 26A da
Lei nº 10.639/2003. Como ponto de partida tem-se a Resolução CNE/CP 1/2004 e o Parecer
CNE/CP/3/2004, por meio dos quais o Conselho Nacional de Educação orienta a implantação
da exigência estabelecida de, todos os brasileiros, conhecerem, respeitarem, valorizarem, a
história e cultura dos afro-brasileiros, dos africanos, dos povos indígenas. Tem-se também o
Plano de Implantação do Parecer CNE/CP 3/2004 que trata das Diretrizes Curriculares
Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
11
12
Sobre a questão, ver entre outros: Silva (2011).
Ver Lei do Estatuto da Igualdade Racial e a Lei das Cotas
10
Afro-Brasileira e Africana, formulado e executado pelo Ministério da Educação, por meio da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade13.
Em 2010, a SECAD/MEC, promoveu contando com a colaboração da UNESCO, sob a
coordenação da Prof.ª Dr.ª Nilma Lino Gomes (2012) e participação de pesquisadores de
diferentes regiões do país, pesquisa que mapeou e analisou iniciativas de redes públicas de
ensino, bem como práticas pedagógicas em escolas dessas redes. Foram analisadas estrutura
física de escolas, formas de gestão, acervo bibliográfico disponível, formação de professores,
formação ética dos estudantes, focalizando-se, em especial práticas no dia a dia das salas de
aula. Verificou-se, entre ouros aspectos que: - há estados e municípios que ainda não criaram
condições normativas, materiais e financeiras para a devida implantação da política curricular
em pauta; - o MEC precisa destinar recursos financeiros para que se atinjam as metas
estabelecidas no Plano de Implantação do Parecer CNE/CP 3/2004; bem como avaliar, em
colaboração com o Conselho Nacional de Educação iniciativas decorrentes das Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana; construir redes que divulguem propostas
curriculares, experiências exitosas de gestão, formulação e aplicação de pedagogias antiracistas. Recomendações também foram feitas a gestores de escolas, professores, aos
movimentos sociais, notadamente o movimento Negro, bem como aos Núcleos de Pesquisa
Afro-Brasileiros.
Essa primeira valiosa iniciativa de avaliação da implantação de Lei nº 10.639/2003
evidencia, em nível local e nacional, dinâmicas de gestão de política pública que criam
condições ou atrapalham, impedem sua efetiva implantação. O que leva, já pensando na
continuidade da avaliação realizada, a se a sublinhar a necessidade de encarar problemas
decorrentes de racismo institucional, do discurso da meritocracia, das atitudes originadas na
ideia de democracia racial que despolitiza a educação das relações étnico-raciais e os
objetivos do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e também dos povos
indígenas.
Simultaneamente à continuidade do processo de avaliação do que vem sendo
executado, será importante incentivar professores a participar de debates e exposições em que
apresentem, discutam, construam e avaliem rotinas diárias em sala de aula em que se
combatam racismos e discriminações, examine-se o impacto, no dia a dia, dessas ações sobre
o aproveitamento de todos os alunos, nas relações que mantêm entre si estudantes negros e
13
Hoje a referida secretaria é designada como SECADI - Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização,
Diversidade e Inclusão.
11
não negros. Também exponham procedimentos de ensino que utilizam e façam críticas a suas
práticas. Indaguem-se sobre seu posicionamento político frente ao racismo, aos sofrimentos
que desencadeia. Interroguem-se e façam propostas sobre como se deve gerir uma escola que
se propõe a reeducar relações étnico-raciais.
A educação das relações étnico-raciais se produz no jogo das diferenças, em resposta a
demandas dos marginalizados pela sociedade, que de forma contundente se exprimem, mesmo
quando poucas são as oportunidades para tanto (GONÇALVES; SILVA, 2011).
Cabe concluir essas considerações motivadas pelos 10 anos da Lei nº 10.639/200314,
indagando: Como vamos planejar os próximos 10 anos? Que condições avaliamos como
necessárias para ampliar e consolidar essa iniciativa política e pedagógica que visa a
igualdade racial e o fortalecimento da cidadania de todos os cidadãos?
São Carlos, março/abril 2013
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