Veja a resenha completa.
Transcrição
Veja a resenha completa.
RESENHAS O que vale a pena ler sobre Violência contra Crianças e Adolescentes no Brasil e no mundo 4 INFÂNCIA NEGLIGENCIADA e INCESTUOSA A trágica história (ficcional) de incesto irmão-irmã, no contexto inglês de uma família negligente Maria Amélia Azevedo Lochan - “[Maya] Nós ainda podemos nos amar... Não há leis nem limites para sentimentos. Nós podemos nos amar tanto e tão profundamente quanto quisermos. E ninguém, Maya, ninguém vai poder jamais tirar isso de nós” (p. 186) ... 1 Os protagonistas principais: Maya e Lochan/Lochie Com uma escrita magistral, confirmada por vários prêmios internacionais, Tabitha Suzuma, nascida em Londres e a mais velha de cinco irmãos, apresenta-nos os protagonistas principais de Proibido, seu livro-sucesso de 2010, que chegou ao Brasil em 2014. “Ela (Maya) é doce, sensível e extremamente “Ele (Lochan) é brilhante, generoso e sofrida: tem dezesseis anos, mas a maturidade altamente responsável: tem dezessete anos, de uma mulher marcada pelas provações e mas a fibra e o senso de dever de um pai de privações da pobreza, o pulso forte e a família, lutando contra tudo e contra todos têmpera de quem cria os irmãos menores para mantê-la unida, e só uma pessoa conhece como filhos há anos, e só uma pessoa conhece a grandeza e a força de caráter que se a mágoa e a abnegação que se escondem por escondem por trás daqueles intensos olhos trás de seus tristes olhos azuis.” verdes” “Eles são irmão e irmã” e ousaram violar o proibido tabu do incesto As violências do cotidiano doméstico Para entender a saga dessa violação, a autora nos conduz através de três cenários ora sequenciais, ora superpostos, enfatizando sobretudo o plano dos sentimentos, simbolizados estes pelas cores cinza, vermelho e negro. 1º Cenário: Uma família negligente 2 A família Whitely mora há cinco anos numa casa de 3 cômodos, paga pelo governo londrino, depois que o pai (um poeta) embarcou para Austrália com a nova esposa deixando para trás cinco jovens de 5 / 8 / 13 / 16 / 17 anos, sob a responsabilidade da antiga esposa, uma ‘coroa metida a broto’ (segundo vizinhos) e ‘u’a mãe com vários problemas’ (segundo os filhos). - Lochan – “[Mãe] Quando é que você vai cair na real e reconhecer que tem um problema com a bebida?” (p. 48). - Lochan – “O trimestre se arrasta... as contas a pagar vão se empilhando, mamãe perde de novo o talão de cheques. Como ela está se afastando cada vez mais da vida familiar, Maya e eu dividimos tacitamente as tarefas: ela limpa, ajuda com o dever de casa, põe as crianças para dormir; eu faço as compras, cozinho, separo as contas, busco [as crianças menores] na escola... Nas poucas ocasiões em que está em casa, [mamãe] raramente fica sóbria por muito tempo... (p. 65) - Lochan – “Nossa mãe está louca para se casar com Dave, desde o momento em que pôs os olhos nele, mas Dave, mesmo agora que seu divórcio finalmente foi homologado, não a pediu em casamento, obviamente porque não está preparado para assumir a bagagem extra de outra família numerosa. Nossa mãe já fez sua escolha – mas, agora que estou prestes a fazer dezoito anos e me tornar legalmente um adulto, tenho medo de que ela nos corte definitivamente, numa última tentativa de pôr uma aliança no dedo. Toda vez que a obrigo a nos dar dinheiro para o básico – comida, contas, roupas novas, material escolar -, ela começa a gritar que largou os estudos e começou a trabalhar quando tinha dezesseis anos, saiu de casa e não pediu nada aos pais. Quando argumento que ela não tinha três irmãos mais novos para cuidar, isso é a deixa para ela dizer que nunca quis filhos, que só nos teve para agradar ao nosso pai, que ele queria um atrás do outro, até que um dia 3 se encheu de todos nós e fugiu para começar uma nova vida com outra mulher. Observo que a deserção de nosso pai não lhe dá o direito, como num passe de mágica, de nos desertar também. Mas isso apenas a provoca mais ainda, e ela joga na minha cara sem o menor pudor que nunca teria se casado com nosso pai se não tivesse ficado grávida de mim, por acidente. Sei que ela diz isso em sua fúria de bêbada, mas também sei que é verdade: é por isso que ela se ressentiu de mim, muito mais do que dos outros, durante toda a minha vida. Então vem o discurso de sempre, sobre como ela trabalha quatorze horas por dia só para manter um teto sobre as nossas cabeças, que só pede de mim que eu cuide dos meus irmãos por algumas horas, ao chegar da escola todos os dias. Quando tento lembrar a ela que, embora esse tenha sido o esquema inicial quando nosso pai foi embora, a realidade agora é muito diferente, ela começa a gritar que tem o direito de ter uma vida também. Por fim, sou obrigado a recorrer à chantagem: a ameaça de aparecermos todos juntos na casa de Dave, de armas e bagagens, acaba por forçá-la a abrir a carteira. Sob muitos aspectos fico grato por ela ter finalmente saído das nossas vidas, mesmo que isso signifique que todas as considerações sobre o futuro, sobre o nosso futuro, caiam em peso sobre mim”. (p. 204/205) - Maya – “Nós não sabemos o que vai acontecer com mamãe, nem com a nossa situação financeira.Mesmo que ela se case com o Dave e decida parar de nos sustentar, nós podemos ameaçar entrar na justiça contra ela por NEGLIGÊNCIA”... (p. 206) Esses excertos mostram, de um lado a rejeição da mãe, em relação aos filhos, seu progressivo afastamento deles e a intenção clara de transformar Lochie e Maya em pais substitutos dos outros três irmãozinhos: um quadro sombrio de NEGLIGÊNCIA, enquanto Violência por OMISSÃO. 4 2º Cenário: A irresistível paixão incestuosa À medida que dificuldades ligadas seja a falta de condições financeiras, seja a atividades de vida diária familiar/escolar, seja à educação das crianças menores avolumam-se, gerando crises difíceis de administrar, Lochie e Maya vão se tornando cada vez mais próximos um do outro, como forma de auto proteção. E então, devagarinho, bem devagarinho, capitaneada por Maya, uma irresistível paixão começa a insinuar-se no relacionamento de ambos. - Maya – “Eu não tive a intenção de acariciar sua nuca – apenas aconteceu. O momento em que minha coxa roçou a parte interna da sua foi só um acidente. Nunca tive a intenção de fazer com que nada daquilo acontecesse. Não fazia ideia de que dançar uma música lenta pudesse excitar um cara... Ele sempre foi tão mais do que apenas um irmão. Ele é minha alma gêmea, meu oxigênio, a razão pela qual espero com ansiedade pelo momento de acordar todos os dias. Sempre soube que o amava mais do que a qualquer pessoa no mundo – e não apenas de um jeito fraternal... Mesmo assim nunca me passou pela cabeça que pudesse haver um passo a mais.” (p. 102) Não apenas um mas muitos passos a mais, numa escalada que vai do primeiro beijo, às carícias noturnas e finalmente à penetração e à posse completa como amantes... O singular é que o jogo do amor-paixão adolescente é acompanhado sempre por dúvidas cruéis, quanto à natureza incestuosa e ilegal do mesmo, como se os jovens estivessem divididos entre o DESEJO e a RAZÃO. - Lochan – “Maya, o que é que nós estamos fazendo? Porque isso está acontecendo com a gente? Nós não podemos fazer isso... nos amar assim!” (p. 130) 5 - Maya – “[Lochie] você acha que se nós tivéssemos tido pais convencionais, ou simplesmente pais, ainda assim teríamos nos apaixonado?” (p. 240) Pouco a pouco, os apaixonados formulam a pergunta que não quer calar e que está na raiz de qualquer incesto, assim como na capa do livro Proibido: “Como uma coisa tão errada (do ponto de vista social), pode parecer tão certa (do ponto de vista individual)?” (p. 131) 3º Cenário: A cruel revelação (“disclosure”) A resposta veio da forma mais dramática possível quando a mãe flagra os dois jovens nus, na cama, após uma denúncia do irmãozinho de 13 anos. A descrição dessa cena – tecnicamente chamada de revelação (disclosure) é uma das mais vívidas e chocantes pois contrasta a representação que os jovens têm do ato (idílico, apaixonado e romântico) com a representação do mesmo pelas autoridades, familiares, policiais...): um crime grave, real, um “abuso sexual da irmã-criança, praticado por um estuprador e pedófilo”. (p. 272) “ Nunca na vida ouvi um som tão horrível. Um grito de puro terror, de ódio, fúria e rancor em estado bruto. E ele não para, se erguendo cada vez mais, se aproximando cada vez mais, bloqueando o sol, sugando tudo: o amor, o calor, a música, a alegria. Dilacerando a luz brilhante ao nosso redor, navalhando nossos corpos nus, arrancando o sorriso dos nossos rostos, roubando o ar dos nossos pulmões. Maya me agarra, horrorizada, braços em volta de mim, me apertando com força, o rosto apertado no meu peito, como que implorando ao próprio corpo para se fundir com o meu. Por um momento não consigo reagir, apenas a apertando contra mim, preocupado só em protegê-la, em defender seu corpo com o meu. Então, escuto os soluços – os soluços histéricos, as acusações aos gritos, os uivos insanos. Eu me obrigo a levantar a cabeça e vejo, emoldurada pela porta aberta, nossa mãe. 6 Assim que seu olhar horrorizado encontra o meu, ela se atira em cima de nós, me agarrando pelos cabelos e puxando minha cabeça para trás com uma força inacreditável. Seus punhos me esmurram, suas unhas afiadas se cravam nos meus braços, nos meus ombros, nas minhas costas. Nem mesmo tento empurrá-la. Meus braços envolvem a cabeça de Maya, meu corpo aperta o dela, agindo como um escudo humano entre ela e essa louca, tentando desesperadamente protegê-la do ataque. Maya grita de terror embaixo de mim, tentando se enterrar no colchão, me puxando para si com todas as forças. Mas então os gritos começam a se transformar em palavras, perfurando meu cérebro congelado, e eu escuto: - Sai de cima dela! Sai de cima dela! Seu monstro! Seu monstro diabólico, pervertido! Sai de cima da minha filhinha! Sai! Sai! Sai!” (p. 262-263) As consequências de uma intervenção tão desastrosa não se fizeram esperar: vale a pena conferi-las, porque foram as mais drásticas possíveis, sobretudo para LOCHIE, um personagem marcado por importante fobia social (*) e, portanto, com poucos recursos para enfrentar situações em que teria que ser julgado pelos outros e uma vez mais rejeitado pela mãe, que sempre o considerou um intelectual fracassado, como o pai. ______________________________________ (*) Transtorno de ansiedade social (TAS) ou fobia social. “Os sintomas incluem tensão extrema ou ‘paralisia’, preocupação obsessiva com interações, tendência ao isolamento e à solidão”. (Ribeiro, F.T. Ansiedade in Mente e Cérebro, 2014, ano XXI, nº 261, p. 30). Algumas lições Com incrível habilidade, Tabitha Suzuma coloca diante de nossos olhos, três condições características de uma infância em grande dificuldade no lar: A – a condição da INFÂNCIA NEGLIGENCIADA em casa, ou seja, vítima da perversa Violência Doméstica por OMISSÃO; B – a condição das CRIANÇAS LATCHKEY (“em regime de auto ajuda”), isto é aquelas que são como “órfãos de pais vivos” e por isso têm que se “virar”, inclusive cuidando de 7 irmãos/irmãs menores (cf. Azevedo, Mª Amélia - Infância invisível: crianças “LATCHKEY” in Portal Recria/Nuvem de Estudos – www.recriaprojetos.com.br); C – a condição das CRIANÇAS que vivenciam a chamada Síndrome de João e Maria ou seja a relação sexual INCESTUOSA entre irmãos quase da mesma idade, enquanto componente de uma síndrome geral de privação emocional e uma forma distorcida de obter mútua satisfação, apoio e conforto para sobreviver (cf. Azevedo, Mª Amélia - Incesto irmão – irmã e a Síndrome de João e Maria in Portal Recria/Nuvem de Estudos – www.recriaprojetos.com.br). ... Ao terminar de ler as 302 páginas dos 26 capítulos – onde se alternam as vozes de LOCHIE e MAYA – não deixa de ser patético ouvir o que elas indagaram: “E SE NÓS ESTIVESSEMOS PREDESTINADOS?” (p. 240) E mais patético, ainda, pensar no que foram levados a crer: “Nascemos um para o outro, dessa argila, De que são feitas as criaturas raras”... (Raul de Leoni, [1895 – 1926], ARGILA, in Luz Mediterrânea, São Paulo: Livraria Martins Editora, 1946). A lição mais fundamental no caso de CRIANÇAS VIVENCIANDO TANTAS DIFICULDADES É NÃO CULPABILIZA-LAS jamais!!! PROIBIDO Autora – Tabitha Suzuma Tradução – Heloisa Leal Editora – Valentina Ano - 2014 8