Mudança no registro civil do transexual

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Mudança no registro civil do transexual
MUDANÇA NO REGISTRO CIVIL DO TRANSEXUAL
“O que é isso, a identidade? É estar em harmonia com
você mesmo, descansar em você mesmo, no seu centro,
saber quem você é e o seu valor. A ‘identidade’ é formada
e definida por limites, limitações e por escolhas, não por
opções ilimitadas e aleatórias. A identidade é moldada e
produzida pela experiência. [...].”1
A primeira premissa que deve restar incontroversa é que o transexual
anatomicamente é um indivíduo normal2 (tanto anatomicamente quanto mentalmente) e
saudável. Não há qualquer anomalia em seus órgãos sexuais.
O direito ao nome é elemento da identidade que possui tutela autônoma no
ordenamento brasileiro ao ser positivado no Código Civil, nos artigos 16 ao 19. O
nome, segundo conta a história, é “o primeiro direito da personalidade que foi objeto de
preocupação específica dos juristas, isto muito antes que se cogitasse da própria
categoria dos direitos da personalidade.”3 Ainda que na Antiguidade houvesse
regulação através dos usos e costumes, e também das práticas religiosas, o nome sempre
figurou como instituto de grande importância.
Contudo, não é razoável a primazia do interesse social em detrimento da
individualização pessoal no que tange ao nome. Tal primazia funciona de forma a
perpetuar o princípio da imutabilidade do prenome4. Esse princípio é entendido por
muitos como absoluto5 por força da antiga redação do art. 58 da Lei de Registros
1
WENDERS, Wim. Cinema além das fronteiras. In MACHADO, Cassiano Elek (org.). Pensar a cultura: série
Fronteiras do Pensamento. Porto Alegre: Arquipélago Editorial, 2013. Página. 61.
2
“Interessante notar que, ao cuidar dos problemas sexuais, Goodwin e Guze, embora fazendo referência ao suicídio e
à automutilação praticados pelos transexuais, não os rotulam de insanos. Igualmente Farina entende que o transexual
não é doente, mas normal sob todos os aspectos.” SUTTER, Matilde Josefina. Determinação e mudança de sexo.
Aspectos médicos legais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1993.
3
DONEDA, Danilo. Os direitos da personalidade no novo Código Civil. In A parte geral do novo Código Civil.
Estudos na perspectiva civil-constitucional. 3ª ed. revista. Coordenador Gustavo Tepedino. Rio de Janeiro: Renovar,
2007. Página 51.
4
ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a
superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil –
RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 206.
5
Em sentido contrário: “O princípio, porém, nunca foi absoluto.” MORAES, Maria Celina Bodin de. Na Medida da
Pessoa Humana: Estudos de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar: 2010. Página 152.
Públicos6. Aliás, com a nova redação conferida pela Lei 9.708 de 1998 o art. 58 passou
a dispor que o prenome seria definitivo7.
Entretanto, importante considerar que o nome é elemento da personalidade
individual8 sendo um dos valores da personalidade dos mais relevantes ao ser humano.
Portanto, não há qualquer primazia do interesse público que possa minimizar o direito
que se tem de refletir no nome sua verdadeira essência enquanto pessoa. Considerando o
nome como um valor da personalidade, e tendo como premissa ser a mesma construída
ao longo da vida e, portanto, passível de modificação, não cabe adotar o princípio da
imutabilidade como justificativa para negar a alteração do prenome no caso do
transexual9.
Adentrando no caso dos transexuais, não há texto expresso quanto à autorização
da mudança de prenome10, o que significa dizer que tais casos acabam por ficar ao crivo
do judiciário11. Neste caso o justo motivo que enseja a alteração é o fato daquele
prenome não mais refletir a verdadeira identidade pessoal/sexual12 do autor da demanda.
Ainda esbarra-se em mais uma crítica: a segurança jurídica de terceiros pode
estar em risco quando da autorização para mudança do prenome. Neste ponto, conforme
inclusive já procedeu o STJ em Recurso Especial da Relatoria da Ministra Nancy
6
Lei 6015/1973, art. 58: O prenome será imutável.
Lei 6015/1973, art. 58, nova redação: O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por
apelidos públicos notórios.
8
MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliação da proteção ao nome da pessoa humana. In Manual de teoria geral
do direito civil. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RIBEIRO, Gustavo Pereira Leite. Belo Horizonte: Del Rey,
2011. Página 250.
9
“[...] resulta estreme de dúvidas que, diante da excepcionalidade do caso em tela, é de prevalecer à regra da
imutabilidade o direito à alteração do prenome, por força do art. 58 da Lei n.º 6.015/73. Inclusive, tem-se por
desnecessária a prova a respeito das situações vexatórias vivenciadas pelo recorrente, sendo do conhecimento de
todos os constrangimentos diários pelos quais passam pessoas como o apelante.” Brasil, TJRS, 7ª Câmara Cível, AC
70013909874, Rel. Des. Maria Berenice Dias, DJ 5/4/2006, fl. 179.
10
“Sem a qualificação civil adequada ao corpo que resultou do tratamento, um corpo de mulher ou de homem, o
indivíduo vê frustradas todas as suas expectativas de vida, no âmbito público ou provado.” BARBOZA, Heloisa
Helena. Disposição do próprio corpo em faze da bioética: o caso dos transexuais. In Bioética e direitos fundamentais.
Organizadores Débora Gozzo e Wilson Ricardo Ligiera. São Paulo: Saraiva, 2012. Páginas 139.
11
“O magistrado não deve analisar a partir de conceitos pessoais o pedido de mudança de nome, mas sim as razões
íntimas e psicológicas do autor da demanda, que devem refletir a identidade da pessoa de forma objetivamente
externada.” ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade
pessoal: a superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito
civil – RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 218.
12
“[...] com os transexuais essa questão se tornou ainda mais emblemática e comprova que o prenome nem sempre
serve de maneira eficaz como indicação do sexo, razão pela qual não deve figurar como uma de suas funções.”
ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a
superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil –
RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 212.
7
Andrighi13, basta exigir do interessado na mudança que ele apresente certidões que
possam resguardar terceiros e, até mesmo, o Estado. Tais certidões são úteis a proteção
de terceiros do que se manter na nova certidão averbado que houve mudança por
decisão judicial.14
Diante da ausência de norma específica é possível que o transexual se socorra do
próprio diploma dos Registros Públicos quando na busca pela mudança do prenome.
Extrai-se do art. 55 deste diploma a proibição do registro de prenome que possa expor a
pessoa ao ridículo.
Ao utilizar como fundamento o referido artigo a discussão quanto à mudança
não, necessariamente, adentra no direito à identidade pessoal e sua tutela constitucional
pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Assim, é possível que evite qualquer
teorização com base em conceitos e valores pessoais do magistrado (ou mesmo
preconceitos arraigados) fazendo com que a discussão seja objetivamente focada nos
danos existenciais que um nome masculino pode causar a uma pessoa do sexo feminino
e vice e versa.
Outrossim, percebe-se que na prática dos tribunais, quando o pedido de mudança
de prenome ocorre após a cirurgia de transgenitalização, há hoje pouca resistência em
deferi-lo15. Apesar de haver discrepância quanto a informar ou não na nova certidão que
houve mudança por decisão judicial16. Esta última observação mostra que ainda há
resistência do judiciário em conceder a mudança concebendo ser esta a nova identidade
13
“Por fim, destaca-se que o recorrido trouxe aos autos certidões expedidas por diversos órgãos federais e estaduais,
de modo a resguardar eventuais direitos de terceiros.” Brasil, STJ, Terceira Turma, REsp 1.008.398, Ministra
Relatora Nancy Andrighi, DJE 18.11.2009.
14
“Preservação da boa-fé de terceiros e das normas registrais, devendo ser averbada a decisão no registro civil,
constando nas certidões que as alterações de nome e gênero decorrem de ato judicial. Precedente do STJ no Resp.
678.933. Inexistência de discriminação ilegítima.” Brasil, TJRJ, 12ª Câmara Cível, Apelação 018096876.2007.8.19.0001, Des. Rel. Nanci Mahfuz, Julgamento 08/09/2009.
15
“A interpretação conjugada dos arts. 55 e 58 da Lei n. 6.015/73 confere amparo legal para que transexual operado
obtenha autorização judicial para a alteração de seu prenome, substituindo-o por apelido público e notório pelo qual é
conhecido no meio em que vive. Não entender juridicamente possível o pedido formulado na exordial significa
postergar o exercício do direito à identidade pessoal e subtrair do indivíduo a prerrogativa de adequar o registro do
sexo à sua nova condição física, impedindo, assim, a sua integração na sociedade.” Brasil, STJ, REsp 737.993/MG,
Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Quarta Turma, julgado em 10/11/2009, DJe 18/12/2009.
16 Enquanto no julgado REsp 737.993 o Ministro João Otávio Noronha determina “No livro cartorário, deve ficar
averbado, à margem do registro de prenome e de sexo, que as modificações procedidas decorreram de decisão
judicial.”, no julgado REsp 1.008.398 a Ministra Nancy Andrighi determinou o contrário “Determino, outrossim, que
das certidões do registro público competente não conste que a referida alteração é oriunda de decisão judicial,
tampouco que ocorreu por motivo de redesignação sexual de transexual.”
do autor da demanda e descartando qualquer elo com o registro anterior por ele não
expressar verdadeiramente quem é aquela pessoa.
Mudança
no
Registro
Civil
independente da
realização
da
cirurgia
de
transgenitalização.
Verifica-se que tem sido muito comum o Judiciário permitir a mudança no
registro civil adotando como um dos fortes argumentos o fato de que é preciso deferir a
mudança para que ela espelhe a nova realidade daquela pessoa após a cirurgia de
transgenitalização.
Ou seja, já que após a cirurgia o transexual passa a adotar o sexo físico
compatível com o psicológico e, dessa forma, seria “titular do direito à alteração”17,
afrontaria o princípio da dignidade humana deixar que o registro permaneça fazendo
referência às características de nascimento. Ou ainda, que manter o registro conforme o
originário e não sendo compatível com as atuais características das genitálias seria
deixar a pessoa em “estado de anomalia”18. E, neste sentido, haveria negativa ao direito
personalíssimo à orientação sexual, portanto, nítido que a orientação sexual somente
ganhou tutela após a cirurgia de mudança de sexo.
Entretanto, vislumbra-se nestes julgados a dificuldade de o Judiciário entender o
que de fato é o transexual e suas reais necessidades. Pois, continua-se conferindo maior
importância ao sexo físico em detrimento do sexo psicossocial. Como se somente após a
cirurgia a pessoa se transformasse naquele sexo, quando, na verdade, psicologicamente
aquele sexo já era o natural. O que a cirurgia propicia é apenas um condicionamento
externo a fim de que a genitália passe a expressar o seu sexo real.
17
“O autor se submeteu a cirurgia de transgenitalização de homem para mulher (orquiectomia bilateral, amputação
peniana e neocolpovulvoplastia), tornando-se titular do direito à alteração do sexo no registro civil. Indeferi-la
consubstanciaria afronta ao princípio universal da dignidade humana;” Brasil, TJRJ, 13ª Câmara Cível, Apelação
0003274-54.2008.8.19.0044, Des. Rel. Ademir Pimentel, Julgamento 05/09/2011.
18
“Transexual submetido à cirurgia de redesignação sexual.[...] A conservação do sexo masculino no assento de
nascimento do recorrente, motivada pela realidade biológica em detrimento das realidades social, psicológica e
morfológica, manteria o transexual em estado de anomalia, importando em violação ao princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana por negativa ao direito personalíssimo à orientação sexual.” Brasil, TJRJ, 9ª Câmara
Cível, Apelação 0006662-91.2008.8.19.0002, Des. Rel. Carlos Eduardo Moreira Silva, Julgamento 07/12/2012.
Caso houvesse a real preocupação em tutelar essa minoria tendo em vista seu
direito à identidade19 a alteração não deveria ser justificada ou ter como pré-requisito a
realização da cirurgia de transgenitalização. A identidade não está condicionada
somente às características físicas, ela deve expressar quem de fato se é. O que deve
incluir a percepção que se tem através do psicológico, através do sentimento de
pertencimento que a pessoa tem quanto a determinado aspecto da vida e como ela se
comporta e se mostra aos outros nos diversos meios sociais em que transita.
Insta destacar que enquanto o Judiciário está nesse desencontro de decisões e
entendimentos, o Poder Executivo Federal – através da Portaria nº 233/2010 do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão – e o do Estado do Rio de Janeiro –
através do Decreto nº 43.065/2011 – já adotaram providências de modo a aceitar o uso
do nome social pelo transexual em seus atos e procedimentos20. Tal aceitação independe
da comprovação da realização da cirurgia, em nítido apreço ao direito à identidade e
contrário ao princípio da imutabilidade do prenome.
Portanto, a mudança no registro civil deve vir a espelhar essa identidade e não
simplesmente vislumbrar possível a identidade física de acordo com a presença de
determinada genitália. Importa quem a pessoa é e como se mostra à sociedade, o que ela
leva de carga genética não deve ser primordial quando da lavratura de um registro de
identificação.
Lívia Barboza Maia
Advogada do escritório Denis Borges Barbosa Advogados, Mestranda em Direito
Civil pela UERJ, Especialista em Direito da Propriedade Intelectual pela PUCRio.
[email protected]
19
“O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se manifestou sobre a questão, decidindo o que é
perfeitamente possível a alteração antes da cirurgia, com base no direito à identidade pessoal e no princípio da
dignidade humana.” Brasil, TJRS, Oitava Câmara, AC 70022504849, Des. Rel. Rui Partanova, DJ 16.04.2009.
Página 240.
20
ALMEIDA, Vitor. A proteção do nome da pessoa humana entre a exigência registral e a identidade pessoal: a
superação do princípio da imutabilidade do prenome no direito brasileiro. In Revista trimestral de direito civil –
RTDC. Vol. 52, outubro a dezembro de 2012. Rio de Janeiro: Ed. Padma, 2000. Página 241.

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