aqui - O outro lado do muro

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aqui - O outro lado do muro
o outro lado do muro
UMA VIAGEM À PALESTINA
Fernanda Campagnucci
o outro lado do muro
UMA VIAGEM À PALESTINA
EDITORA MULTIFOCO
Rio de Janeiro, 2011
EDITORA MULTIFOCO
Simmer & Amorim Edição e Comunicação Ltda.
Av. Mem de Sá, 126, Lapa
Rio de Janeiro - RJ
CEP 20230-152
CAPA e DIAGRAMAÇÃO
Guilherme Peres
O outro lado do muro: uma viagem à Palestina
CAMPAGNUCCI, Fernanda
1ª Edição
Fevereiro de 2011
ISBN: 978-85-7961-328-9
Todos os direitos reservados.
É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Multifoco.
A Edna e José, que me ensinaram
a olhar o mundo
Sumário
Prefácio
.......................................
Breve história de um conflito
........................
13
...............................
21
............................
25
.......................................
37
Bem-vinda a Israel
“Você logo se acostuma”
Mikado
9
“Vocês sabem que mapa é esse?”
.......................
51
“Balance a cabeça e diga la, la”
.......................
71
“Essa é uma questão estúpida”
........................
79
........................................
85
Awdah
As laranjas de Jaffa
Shereen
...............................
103
.......................................
117
Barracas de concreto
..............................
123
Oliveiras que choram
.............................
131
Como uma novela do Kwait
Um museu para Khalil
.........................
139
............................
145
“O que você quer ser quando crescer”?
Hoje não tem aula
..................
157
...............................
173
Um pedaço de terra brasileira
........................
177
...............................
181
.........................................
187
Cuidado com o lixo
Cinco
Prefácio
U
m muro tortuoso de quase nove metros de altura, de concreto, parece intransponível. Em 1896, o pai do sionismo, Theo-
dor Hertzl, escreveu que o Estado judeu na Palestina seria “um pedaço de fortaleza contra a Ásia, a sentinela avançada da civilização
contra a barbárie”. Hoje, a barreira, real, materializada, que entra
como garras nos territórios palestinos além de suas fronteiras, pa-
rece ser a própria barbárie.
A Palestina que encontrei em julho de 2007 é uma terra fragmentada, dividida em ilhas, com barreiras, checkpoints, cercas, estradas principais e secundárias, de uso exclusivo para alguns e proibida para outros; deparei-me com uma triste colcha de retalhos:
não só a paisagem está em pedaços, mas a rede social também ficou
dividida, assim como a vida das famílias. A narrativa dessa viagem
não poderia ser diferente: são crônicas das histórias que conheci
dos dois lados do muro e que compõem um cenário mais complexo
do que o noticiário é capaz de mostrar.
O olhar estrangeiro de uma brasileira, que não fala árabe nem
hebraico, que não tem ascendência judia ou árabe, é mais um as-
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O OUTRO LADO DO MURO
pecto dessa fragmentação – mas está longe de ser um olhar isento.
Daí o texto em forma de diário, em primeira pessoa.
Para realizar esta reportagem, juntei-me a um grupo de ativistas internacionais – europeus de diversas nacionalidades, entre
muçulmanos, judeus, católicos e ateus –, o que me deu um leque
ainda maior de pontos de vistas.
Ao ler este livro, o leitor não terá um extenso relatório sobre os
tratados desrespeitados, os processos de paz interrompidos, nem
um panorama detalhado da evolução do conflito. A intenção de O
Outro Lado do Muro é dar um rosto humano às estatísticas e contar
a História por meio das vidas de anônimos que são – estas, sim – o
núcleo deste relato.
Andei por cidades árabes do deserto do Neguev, invisíveis no
mapa oficial de Israel, e tomei chá com seus habitantes, de carne e
osso, os beduínos. Nas ruas de Tel Aviv e outras cidades de Israel,
tentei enxergar os traços da guerra de 1948, que causou o exílio do
povo palestino. Ajudaram nessa tarefa ativistas judeus que lutam
para que esse drama não seja esquecido por lá.
Ouvi, emocionada, a história do ex-soldado judeu Elik, um
refusenik, que se recusou a servir o Exército e levar a ocupação
adiante mesmo depois de perder uma irmã num atentado terrorista. Senti um frio na espinha ao entrar na casa palestina com paredes
cobertas de fotos de um filho morto, e que parecia um santuário.
Ao mesmo tempo que vi como os palestinos se estabeleceram nos campos de refugiados eternamente provisórios, ouvi
sobre a expulsão tácita dos últimos moradores árabes de cidades
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
israelenses, como Jaffa. Visitei a Igreja da Natividade, onde Jesus
teria nascido, em Belém (Cisjordânia), e conheci Ahmad, um
guia turístico desanimado diante da escassez de turistas desde
a construção do muro. O mesmo muro que vi pichado em um
vilarejo próximo a Tulkarem (norte da Cisjordânia) e que, literalmente, cortou casas ao meio.
Um muro tão acintoso como esse é quase um convite a tentarmos enxergar o que há do outro lado. Com a grande tela cinza que
nos impede de simplesmente ver o outro, não parece haver diálogo
possível. Mas o muro ainda não é intransponível para alguns, e o
jornalismo tem essa função: criar brechas e pontes onde as informações e histórias parecem estar presas, à espera de alguém que as
escute e as leve para longe. Espero, aqui, poder transmiti-las.
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Breve história de um conflito
O
ano de 1917 é o penúltimo da Primeira Guerra Mundial (19141918) e também o início do mais longo conflito que o mundo
contemporâneo conheceu. Em 2 de novembro daquele ano, o lord Arthur James Balfour, ministro das relações exteriores do poderoso Império
britânico, consolida, na chamada Declaração Balfour, algo que já vinha
sendo negociado entre o governo de Sua Majestade e o movimento sionista: a promessa da criação, na Palestina, de “um lar nacional” dos judeus.
Uma cláusula do texto ressaltava, entretanto, que isso não causaria prejuízo à população local não-judaica.
Talvez os britânicos se sentissem no direito de prometer uma terra que não era sua porque um ano antes, em 1916, Paris e Londres
1
haviam assinado secretamente os acordos de Sykes-Picot , em que definiam as linhas da partilha e as zonas de influência de cada uma das
duas potências no Oriente Médio – como num jogo de tabuleiro – no
caso de ganharem a guerra.
Mas os britânicos não se contentam apenas em apoiar a criação
de um lar nacional para os judeus. Fazem a mesma promessa a diri1. Marks Sykes e Georges Picot eram dois altos funcionários dos governos britânico e francês, respectivamente.
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O OUTRO LADO DO MURO
gentes árabes. O califa otomano, governador dos territórios do Oriente Médio, havia se aliado à Alemanha e ao Império Austro-Húgaro
em 1914. Para derrotá-lo, o governo britânico convence os árabes a se
revoltarem contra o Império Otomano, em um levante liderado por
Husayn, xarife de Meca. Em troca, Londres promete se engajar na
independência dos árabes.
Mas, terminada a Primeira Guerra, a região é simplesmente dividida entre a França e a Grã-Bretanha, conforme previam os acordos secretos. A recém-criada Liga das Nações, embrião das Nações
Unidas, estabelece um sistema de mandatos no Oriente Médio e, a
partir de 1922, o mandato sobre a Palestina é atribuído aos britânicos. Era previsto que a potência mandatária fosse também responsável pela execução dos compromissos firmados pela Declaração Balfour, endossada pelas potências aliadas.
Até o fim do século XIX, a imigração judaica para a Palestina havia sido pouco significativa. Uma lei de 1867 concedia aos
estrangeiros o direito de possuírem terras no Império Otomano,
o que facilitou a aquisição de propriedades pelos sionistas.
Quando a imigração se torna mais regular, no início do século
XX, começam os primeiros conflitos entre camponeses palestinos e colonos judeus.
O movimento sionista tinha duas bandeiras: a conquista da terra e do trabalho. Além da compra sistemática de terras, as lideranças
sionistas impõem às colônias a proibição de empregar trabalhadores
árabes muçulmanos nos seus estabelecimentos agrícolas ou industriais. Para contornar a situação, as colônias decidem empregar ára-
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
bes diferentes – árabes judeus. A leva de imigração de árabes judeus
do Iêmen foi a primeira a ser incentivada.
Na primeira década do século XX, a Palestina já tinha uma
população de aproximadamente 800 mil habitantes, sendo 650 mil
muçulmanos, 80 mil árabes cristãos e 60 mil judeus. Até 1939, a Grã-Bretanha favorece a imigração judaica na região. Desde a conquista
de Jerusalém, em 1917, instala-se uma administração sionista independente e paralela à administração britânica. O Yishuv – nome
dado à comunidade judia instalada na Palestina – começa, assim, a
formar seu Estado. É criada a Agência Judaica, que se dedica especialmente a acelerar a imigração, escolhendo os candidatos e cuidando da burocracia.
Os imigrantes vinham principalmente da Europa Central e da
Rússia dos czares, fugidos dos pogroms, ou simplesmente da miséria.
Entre 1919 e 1923, cerca de 35 mil imigrantes chegam à Palestina.
Entre 1924 e 1925, com a adoção de uma política antijudaica na Polônia e a restrição da imigração sobretudo nos Estados Unidos, aumenta o fluxo populacional para a região, embora ainda seja pouco
significativo: em 1927, por exemplo, há mais saídas do que ingressos
de migrantes. Somente a partir da ascensão de Hitler ao poder, em
1933, e da perseguição aos judeus que se seguiu, a imigração se intensifica, agravando os conflitos entre palestinos e judeus, que já vinham
se radicalizando desde 1920.
Em abril de 1936, os distúrbios locais culminam em uma grande
revolta dos palestinos, não só contra a colonização sionista, mas também contra as autoridades britânicas. O movimento dura até 1939,
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O OUTRO LADO DO MURO
coincidindo com o crescimento de um movimento nacionalista antifrancês e antibritânico no mundo árabe. O balanço é trágico: são
mortos de 3 mil a 6 mil árabes, 400 judeus e 140 britânicos, além de
milhares de prisões e deportações. Em 11 de novembro de 1937, a
Irgun, organização militar sionista, lança mão do terrorismo, promovendo atentados a bomba em locais públicos. Em 6 de julho de 1938,
na cidade de Haifa, uma bomba mata 21 pessoas numa feira árabe;
em 25 do mesmo mês, outra explosão faz uma quarentena de mortos.
Diante da situação, a Grã-Bretanha recua. Em 17 de maio 1939,
2
o mandato britânico edita o terceiro “livro branco” sobre a Palestina, que causa grande revolta do movimento sionista. A resolução
recomenda um estado binacional, além de restringir severamente a
imigração. Em setembro, começa a Segunda Guerra Mundial e o teor
do conflito muda. Os jovens sionistas lutam ao lado dos britânicos
contra os alemães e a região se transforma em um enorme aquartelamento militar, o que provoca um surto de desenvolvimento
econômico na região. O engajamento judeu na guerra permitiu o
desvio de armas para as milícias que seriam o embrião do futuro
Exército israelense.
Em 1947, Londres decide levar a questão às Nações Unidas. O
brasileiro Oswaldo Aranha preside a sessão da Assembleia Geral de
29 de novembro, que adotou a resolução 181 – conhecida como plano
2. Em inglês, “white book” : trata-se de um relatório ou guia de ação, emitido por autoridade governamental, que em geral se refere ao modo de encaminhamento de um problema específico. Os “livros
brancos” sobre a Palestina expressavam a política oficial do governo britânico para a região. Cada um
deles ficou conhecido pelo nome do Secretário Colonial da época; o de 1939 é também conhecido como
Livro Branco de MacDonald.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
de partilha da Palestina. Sensibilizados com o Holocausto, os membros da comissão da ONU que analisou o caso previam no texto um
Estado judeu, um Estado árabe e uma zona sob regime internacional
ao redor de Jerusalém. Os judeus ficariam com 55% das terras e os
palestinos, com 45%.
Os ataques às cidades árabes começaram um mês após a aprovação do plano de partilha. Em abril de 1948, uma centena de pessoas
foi massacrada no vilarejo palestino de Deir Yassin. Outras cidades
também foram atacadas.
Em 14 de maio de 1948, David Ben-Gurion proclama o nascimento do Estado de Israel, o que causa a imediata reação dos Estados
árabes – Transjordânia, Egito e Síria, que, ajudados por contingentes
libaneses e iraquianos, invadem o novo país no dia seguinte. O resultado é desastroso para os árabes: Israel conquista ainda mais territórios e se apodera de 78% da Palestina histórica.
Cerca de 90% da população árabe é expulsa do território designado como Estado judeu; milícias sionistas destroem mais de 530
vilarejos árabes; confiscam terras e a criam mais de 700 colônias,
com o objetivo de absorver novos imigrantes judeus. Em dezembro
de 1948, a ONU aprova a resolução 194, que estabelece o direito dos
refugiados de retornarem às suas casas e receberem reparações.
Em 1949, um armistício é assinado por Israel e seus vizinhos árabes,
que perderam a guerra. Em 1950, a Transjordânia e o Egito assumem o
controle da Cisjordânia e de Gaza, respectivamente. Israel adota a Lei do
Retorno, que concede a nacionalidade israelense a todo imigrante judeu,
ao passo que proíbe o retorno dos palestinos refugiados.
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O OUTRO LADO DO MURO
Em 1967, como resultado da Guerra dos Seis Dias, Israel ocupa
todo o resto da Palestina (Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém
Leste), além do Sinai egípcio e das Colinas de Golã, da Síria. Começa
a colonização dos territórios ocupados.
Em pleno feriado judaico do Dia do Perdão (Yom Kipur), em
6 de outubro de 1973, Síria e Egito promovem uma ofensiva contra
Israel, para reconquistar seus territórios ocupados desde 1967. Após
três semanas de combates, o Exército israelense consegue repelir os
inimigos. Em 1979, o Estado judeu assina o primeiro acordo de paz
com um vizinho árabe, o Egito, e devolve a Península do Sinai.
Em dezembro de 1987, um veículo militar israelense atropela e mata
quatro palestinos em Gaza, marcando o início da explosão da primeira
Intifada – que se estendeu, depois, à Cisjordânia. A chamada revolta das
pedras foi liderada por uma geração de jovens palestinos que cresceu sob
a ocupação israelense e teve importante participação das mulheres. Durante três anos, morreram 800 palestinos e outros 15 mil foram presos.
Do lado israelense, foram registrados 50 mortos.
Em 1988 a Organização pela Libertação da Palestina, criada em
1964 e presidida por Yasser Arafat, proclama o Estado da Palestina,
acata as resoluções 181 e 242 (que reconhece o direito de existência
ao Estado de Israel, mas exige a retirada das forças ocupantes dos
territórios palestinos), além de reafirmar a condenação ao terrorismo. O
caminho estava aberto para as negociações de paz promovidas pelos norte-americanos e russos. Em 1991, uma conferência de paz é organizada
em Madri. Em 1993, Israel e OLP se reconhecem mutuamente. Em uma
cerimônia histórica na Casa Branca, Yasser Arafat e o primeiro-ministro
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
israelense Yitzhak Rabin apertam as mãos pela primeira vez em público,
diante do presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton.
Mas, enquanto avançavam as negociações pela paz, a violência
não cessa. Israel continua expandindo suas colônias e extremistas islâmicos continuam a promover ataques contra judeus. Em novembro de 1995, Yitzhak Rabin é assassinado por um jovem judeu de
extrema-direita, contrário ao diálogo com os palestinos. A direita, representada por Benyamin Netanyahu, ganha espaço no Parlamento
israelense e vence as eleições em 1996.
A partir daí, nenhum dos acordos vingou – e algumas causas
disso são abordadas ao longo deste livro. Em julho de 2000, fracassam
as negociações em Camp David, entre o premiê israelense Ehud Barak, o presidente da Autoridade Palestina Yasser Arafat e o presidente
americano Bill Clinton.
Em setembro do mesmo ano, Ariel Sharon, chefe do partido Likud, da direita israelense, entra na Esplanada das Mesquitas, ges3
to que foi considerado uma provocação pelos palestinos , e levou à
Segunda Intifada. Em março de 2001, Sharon é eleito primeiro-ministro, cargo em que permaneceria até 2006. Ao mesmo tempo, nos
Estados Unidos, o novo presidente George W. Bush toma posse do seu
primeiro mandato, alinhando-se às posições de Israel.
As histórias deste livro acontecem em 2007, num momento em
que a Palestina está completamente fragmentada pela ocupação isra-
3. Sharon é uma figura controversa mesmo dentro de Israel, sendo considerado por seus adversários
como um criminoso de guerra, em razão de seu envolvimento nos massacres de Qibya (1953) e de Sabra
e Shatila (1982).
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O OUTRO LADO DO MURO
elense. São numerosos os postos de controle, muros, barreiras, grandes colônias e diferentes divisões administrativas, tanto na Cisjordânia como na parte oriental de Jerusalém, que deixam território e
sociedade civil isolados em mais de 190 “ilhas”. Tal fragmentação se
expressa também no conflito entre os grupos Hamas e Fatah, numa
guerra fratricida que já deixou mais de uma centena de mortos. É
neste momento que chego à região.
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Bem-vinda a Israel
TERÇA-FEIRA, 10 DE JULHO DE 2007
“D
esculpe, não posso sentar entre duas garotas”, me diz um
senhor barbudo, com um largo chapéu preto, sentado em
minha poltrona ao lado da janela no voo MA214, Budapeste-Tel
Aviv. Como a garota do corredor, na ponta dessa fileira de três assentos, não esboçasse qualquer reação, sentei na poltrona que me
restou, a do meio. O incidente me lembrou então de que eu, ateia e
brasileira, ignorava grande parte do mundo no qual desembarcaria
dali a algumas horas.
Passageiros de voos de diferentes origens se enfileiravam em
frente às cabines do controle de passaporte do aeroporto de Tel
Aviv. Judias usando vestidos de mangas compridas, falando inglês,
português ou francês com seus maridos; muçulmanas com véus na
cabeça e turistas com camisas floridas e óculos escuros. Um relógio
pendurado no teto do saguão marcava 4 horas da madrugada e o
aeroporto não estava tão movimentado. Mas o andamento das filas
dependia da duração de cada interrogatório. Minha fileira empacou com uma família árabe, que já demorava mais de 20 minutos
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O OUTRO LADO DO MURO
para ser interrogada, enquanto outras filas desapareciam e se formavam rapidamente.
O controle pode começar antes, na própria fila. Já me haviam
alertado sobre os agentes à paisana que abordam os visitantes para
questionar sobre seu roteiro no país. Uma resposta suspeita – o fato
de o sujeito ser ou parecer árabe aumenta os riscos – e o interrogado pode ser impedido de entrar no país, por questões de segurança.
Quando finalmente chegou a minha vez de falar com a mulher
de dentro da cabine, mostrei meu passaporte verde e tentei parecer
natural ao repetir meu “mito”. Seguindo as recomendações de franceses que fizeram a mesma viagem, eu já havia preparado toda uma
história para não correr o risco de ser barrada. Amigos descendentes de magrebinos também me haviam contado suas passagens intermináveis pelo controle de entrada no país.
Então, eu era turista. Na minha bagagem, nada além de roupas – incluindo roupa de banho –, máquina fotográfica e câmera
filmadora. Qualquer objeto ou livro que remetesse à Palestina era
desaconselhado. Cisjordânia, Gaza? Sei que existem problemas por
lá, mas não entendo o que acontece e gostaria que isso não prejudicasse minhas férias. Se perguntassem por que eu viajava sozinha, a razão seria “conhecer pessoas”. Se quisessem saber do
meu roteiro, “Mar Morto-Templo de Massada-Jerusalém”. O
motivo da minha viagem? Não sou religiosa, mas me interesso
por sítios históricos – se dissesse que fui para conhecer a região
onde Jesus nasceu qualquer pergunta sobre religião que viesse a
seguir desmascararia minha fraude. Quanto à estadia, eu tinha
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
sorte: um amigo israelense – que conheci semanas antes em uma
comunidade de hospedagem solidária na internet – tinha aceitado me receber nos dois primeiros dias, sem saber do propósito
jornalístico da minha viagem. Assim, se perguntassem, eu ficaria na casa do Gilad. Neurose? Preferi não arriscar.
“Qual objetivo da sua viagem?”, perguntou, com os olhos fixos
no meu passaporte, a agente israelense.
“Turismo. Quero conhecer a cidade velha”.
“Que lugares pretende visitar?”
“Mar Morto, Templo de Massada, Jerusalém”.
“Tem lugar para ficar?”
“Sim. Na casa de um amigo. Gilad”.
“Seu endereço?”
“Ele é de Hertzillya e vem me buscar na estação de trem. Tenho
o telefone dele, se precisarem”.
A mulher checou alguma coisa em seu computador. Pediu
o telefone de Gilad, mas não ligou. Meu ensaiado interrogatório
não durou mais de cinco minutos, e um seco “enjoy your stay”
me liberou dali.
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“Você logo se acostuma”
QUARTA-FEIRA, 11 DE JULHO DE 2007
À
quela altura, eu não sabia muito bem o que me esperava, mas
estava certa de que minha estadia não seria exatamente diver-
tida, como propunha a agente do aeroporto. Naqueles últimos meses, o mundo acompanhava com atenção o crescente conflito entre os partidos palestinos Fatah, secular, e o Hamas, islâmico. Este
último, considerado uma organização terrorista, havia ganhado o
parlamento nas eleições de 2006, não sem desagradar a chamada
“comunidade internacional”. Assim, a Autoridade Nacional Palestina (ANP) teve cortados os recursos da União Europeia, seu principal doador – que contribuía com 25% do orçamento palestino
–, assim como o repasse de impostos arrecadados pelo Estado de
Israel – mais de 50% dos recursos da administração palestina. Os
Estados Unidos também anunciaram a suspensão da ajuda à ANP.
Nos territórios ocupados não há moeda própria, nem sistema
bancário próprio. Líderes árabes foram pegos tentando atravessar a
fronteira com dinheiro vivo, já que estava proibida a transferência
de recursos de países vizinhos que quisessem ajudar. Os funcioná-
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O OUTRO LADO DO MURO
rios da administração – incluindo médicos e professores – estavam
há 18 meses sem receber salários e a insatisfação era obviamente
grande. Salam Fayyad, do Fatah, fora colocado no lugar do primeiro-ministro deposto, Ismail Haniyeh, representante do Hamas eleito em 2006. E, com isso, Israel anunciara a liberação da transferência dos recursos provenientes de impostos arrecadados na região,
alguns dias antes da minha chegada.
Segui para a estação de trem onde Gilad viria me buscar, assim
que eu ligasse. Os bilhetes são vendidos em máquinas automáticas,
mas difícil foi entender que direção pegar. As estações não parecem
ter sido projetadas para receber turistas – pelo menos não os que
não falam hebraico – , apesar da grande confluência que é aquela
região. A maioria das placas não tem instruções em inglês, nem
mesmo a transliteração dos nomes de bairros e cidades para o alfabeto latino. Perguntar às pessoas também não foi tão simples. Ao
contrário do que eu tinha ouvido dizer, não são todos os israelenses
que falam inglês. Depende da idade e da classe social do indivíduo.
Nesse caso, era só dizer Hertzillya que, teoricamente, eu acharia a
direção (e a estação de destino). Mas três pessoas diferentes deram
três informações também diferentes.
O nascer do sol visto de dentro do trem expresso quase me
distraiu na hora de descer. Era muito mais intenso do que qualquer outro que eu já tivesse visto. Com a paisagem meio seca, os
amarelos e laranjas do céu pareciam ter sufocado qualquer azul.
O senso comum diz que a região é desértica, mas não é o caso de
uma área que faz parte do chamado Crescente Fértil – a área, em
26
FERNANDA CAMPAGNUCCI
forma de meia-lua, que se estende das planícies aluviais do Nilo
até o Golfo Pérsico.
Chegando à estação Hertzillya, parei para tomar um café e ler
os jornais. A capa da edição em inglês do diário israelense Ha’aretz
estampava que o Irã deve atingir sua capacidade nuclear em meados
de 2009, segundo informações da inteligência das Forças Armadas
de Israel (FDI). O relatório dos analistas militares, publicado naquele dia, listava as quatro principais ameaças a Israel: em primeiro
lugar, os iranianos; em seguida, a Síria, sempre se preparando para
uma guerra contra o país, sem, no entanto, estar tão interessada
num conflito àquela altura; em terceiro, o Hezbollah, organização
política e paramilitar dos muçulmanos xiitas do Líbano.
Por último – quem diria – estava a Palestina. O relatório
dizia que o terrorismo deve continuar na região, mas que a Autoridade Palestina não representa mais ameaça ao Estado de Israel. Chego num momento em que a Palestina está relegada às
páginas internas dos jornais. Mas isso eu também só entenderia
mais tarde, ao ouvir do ativista israelense Michael Warschawski,
o Mikado, a triste metáfora: os palestinos, para os israelenses,
são como picadas de mosquito; às vezes coçam, incomodam um
pouco, mas passamos uma pomadinha e não precisamos ir ao
4
médico por causa disso. A economia vai de vento em popa , e a
comunidade internacional apoia tacitamente as ações de Israel
nos territórios ocupados.
4. O Produto Interno Bruto (PIB) de Israel cresceu cerca de 5% por ano desde 2003, e o crescimento do
PIB em 2007 está estimado em 5,4%.
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O OUTRO LADO DO MURO
“Territórios ocupados”. Dependendo da linha editorial do jornal, dizer “ocupado” já é um grande avanço. Alguns veículos se valem de eufemismos para falar da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Os
dois territórios, sob ocupação militar desde 1967, representam apenas 22% da Palestina histórica, isto é, a Palestina antes da criação
do Estado de Israel, em maio de 1948. Alguns israelenses esquecem
a segunda palavra e ficam só com a primeira (“territórios”), consolidando a ideia de que a região é controlada por Israel.
Não é exagero dizer que alguns mapas nem mesmo delimitam as
duas áreas tão conhecidas pelo noticiário internacional. A Cisjordânia, por exemplo, é a Judeia-Samaria (nomes bíblicos). O guia turístico
que comprei sequer mencionava a palavra “Palestina”. O mapa de Israel
estava pintado inteiramente da mesma cor, englobando os territórios
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
palestinos. Comprei o guia logo naquele dia em um grande shopping
center – durante o primeiro passeio que fiz com Gilad, de carro.
*
Um homem mandou o carro parar antes de entrarmos no estacionamento. Passou um detector de bombas embaixo do veículo.
Depois, já na entrada do shopping, pediram que abríssemos nossas mochilas – procedimento obrigatório para todos que desejam
entrar ali. Contei a Gilad, num tom meio irônico, que, só naquela
manhã, já tinham me “controlado” várias vezes. Enquanto eu o esperava na estação ferroviária, por exemplo, fiquei lendo o jornal, ao
lado de dois guardas, por pelo menos uma hora. Depois, passei sob
seus olhos e saí pela porta de vidro, para usar um telefone público
do lado de fora, a menos de dois metros. Quando voltei para dentro
da estação, os mesmos guardas pediram para olhar minha mochila.
“Isso tem em todo lugar”, disse Gilad, meio indiferente. “Você
logo se acostuma”.
Diante do meu silêncio, Gilad continuou.
“O problema é a maneira como fazem isso, sem educação.
Além do mais, se eu quisesse trazer uma bomba escondida em outro lugar eu traria, sabe?”, disse, apontando para o banco de trás do
carro, onde o detector não acusaria a presença de explosivos.
“É, pode ser uma maneira de deixar as pessoas mais tranquilas”, falei, sem certeza do que falava. Gilad concordou. Continuamos nosso passeio.
29
O OUTRO LADO DO MURO
Tel Aviv é uma cidade relativamente nova. Foi construída pelos
sionistas para ser sua capital moderna e secular – os judeus ortodoxos continuaram concentrados essencialmente em Jerusalém. A
cidade foi fundada em julho de 1907, exatos 100 anos antes de
eu pisar ali, por sessenta e seis entusiásticos sionistas. Eram dos
primeiros a chegar à região para criar colônias, com a ajuda do
barão de Rothschild.
Tudo começou com uma mansão, chamada Ahuzat Bayit –
mais tarde denominada Tel Aviv – construída com o financiamento do Fundo Nacional, principal agência sionista. Novos edifícios
surgiram no verão seguinte. Um século depois, nota o historiador
Ilan Pappe, através de uma história tortuosa, a sociedade judaica
voltaria a se dividir entre a Jerusalém ortodoxa e a Tel Aviv secular,
“como se o tempo tivesse parado”.
A intensidade do sol me dava ainda mais a impressão de que eu
andava por uma cidade branca. As construções da área central seguem, em sua maioria, a arquitetura da Bauhaus. Vindos da Europa
no início do século XX, os arquitetos precisavam projetar uma Tel
Aviv que não parava de acolher imigrantes judeus. As formas deveriam ser as mais simples possíveis, dado que a economia do futuro
Estado de Israel ainda estava em formação, sob o mandato britânico. Também havia o sonho da criação de uma sociedade igualitária,
sem sofisticações – o sionismo fundador de Israel era de esquerda.
Grande financiador da empreitada, o barão de Rothschild hoje
é nome de praças e ruas. Uma delas é o arborizado boulevard Rothschild, no centro de Tel Aviv, onde as pessoas passeiam tranqui-
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
las, os namorados se dão as mãos e as velhinhas caminham lentamente. Descendo à sombra das palmeiras com Gilad, demos de
cara com mísseis Qassam – dezenas deles – amontoados, encravados no chão, ao lado de um sofá destruído, móveis quebrados ou
um urso de pelúcia coberto de poeira. Era uma “instalação artística” que procurava chamar a atenção para as famílias israelenses
da fronteira com a Faixa de Gaza, na cidade de Sderot, que vivem
com medo de serem atingidas – e o são, efetivamente – com o que
“sobra” do outro lado. Como são pobres, muitas delas vindas de
antigos países da antiga União Soviética, fala-se de uma indiferença
por parte do Estado de Israel. No livro de visitas, alguém faz um
apelo, em hebraico, que Gilad me traduz: “precisamos todos sair
desta bolha, precisamos acordar”.
Eu procurava atentamente algum sinal da Palestina, mas não
era fácil. A estrela de Davi é encontrada frequentemente pichada
nos muros, junto à frase, em hebraico, “somos nós o Estado de Israel”. A bandeira de Israel está pendurada aqui e acolá nas janelas. Nas
lojas de Tel Aviv, raramente se vê um símbolo palestino – o máximo
que pude ver foram camisetas com slogans pacifistas, como “Stop
the War”. Quanto a manifestações de protesto, na branca Tel Aviv
daquele dia, vi apenas um grupo de jovens vestidos com camisetas
escuras e jeans rasgados, que distribuíam panfletos contra as agressões aos animais.
Gilad e eu sentamos num bar para comer... hummus. Se eu não
vira menção nenhuma à causa palestina até aquele momento, os
cardápios estavam repletos de pratos árabes: falafel (bolinhos de
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O OUTRO LADO DO MURO
grão de bico), pita (pão árabe) e muitas variedades de hummus,
uma receita muito popular nos países árabes como o Líbano, a Síria, a Jordânia e a própria Palestina. Dizem que o prato já tem mais
de dois mil anos e era usado no Egito dos faraós. De um cardápio
que continha dezenas de formas de preparo do hummus, escolhi a
de limão, azeite e páprika. Para acompanhar, Gilad me apresentou
a taibeh, cerveja local.
Enquanto eu aprendia algumas palavras em hebraico para me
virar sozinha com o mínimo de politesse – shalom (saudação), bevakasha (por favor), slicha (desculpe), toda (obrigada), ken (sim), lo
(não), um grupo de brasileiros tagarelava na mesa ao lado. Duas senhoras falavam português do Brasil, em outra mesa. Havia também
muitos franceses. Perguntei a Gilad se eram turistas. Ele respondeu
que muitos deles vinham para comprar casas e apartamentos caríssimos, aumentando consideravelmente a especulação imobiliária na região, o que já desperta raiva da população local, que vê os
preços subirem cada vez mais.
Gilad trabalha à noite em uma videolocadora e precisou me
deixar. Fui a um café, a uma lan house e tentei fazer meus contatos
e marcar entrevistas para os próximos dias. Nem vi o tempo passar.
Quando procurei o caminho de volta que Gilad havia me explicado, não pude encontrar. Pensei que, se fosse a um grande terminal,
certamente acharia um ônibus que me levasse ao local combinado
com ele. Mais uma vez, ninguém soube me explicar onde eu poderia pegar um ônibus para o terminal mais próximo. Alguém me
indicou um terminal ao sul, direção contrária à casa de Gilad.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Chegando ao terminal, tive que abrir minha mochila – eu já
estava me acostumando. Dessa vez, o vigia não teve pudores: revirou meus chocolates, pasta de dentes, papéis que jogo na bolsa
e esqueço de jogar no lixo. Enquanto eu esperava, observei dois
jovens soldados no ponto de ônibus (uma garota e um garoto
de pouco mais de 18 anos), rindo e falando alto, com seus fuzis
M-16 a tiracolo.
Lá dentro, fiquei ainda mais perdida: o terminal, de quatro
andares, tinha sinalização em hebraico. Segui as imagens daquele
“i” dentro de um círculo que, geralmente, quer dizer “informação”.
Mas a mulher da cabine parecia estar desinformada, porque pediu
com um sinal que eu me encaminhasse à bilheteria. Lá, o vendedor
não sabia dizer em qual das plataformas estava o ônibus de que eu
precisava. Na fila, uma jovem atrás de mim disse que a companhia
de ônibus estava em greve naquele dia.
Liguei para o celular de Gilad e ele propôs que seu pai viesse
me buscar. Envergonhada, mas sem alternativa, aceitei. Quase uma
hora depois, eu estava sentada à mesa com os pais do meu amigo –
ele, israelense, ela, marroquina – e sua irmã mais nova, Noah. Não
tive como não aceitar mais hummus, e a conversa se estendeu por
pelo menos duas horas. A discussão era em francês – ficaram muito felizes em desenferrujar a língua – com algumas traduções para
Noah, que ainda aprendia o idioma. O assunto era o Brasil.
“Cidade de Deus... é daquele jeito, mesmo”?, perguntou a mãe
de Gilad, dizendo que a família toda já tinha assistido ao filme de
Fernando Meirelles.
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O OUTRO LADO DO MURO
“Tem muito de verdade na ficção...”, respondi. O assunto violência não renderia muita coisa.
Música brasileira? Quase caí da cadeira ao ver a mãe dele cantar, com português perfeito, os primeiros versos de Trem das Onze,
de Adoniran Barbosa, que fala do bairro paulistano Jaçanã.
“Não posso ficar, nem mais um minuto com você...”
“Eu moro lá! Eu moro em Jaçanã!”, disse, feliz com a surpresa
de ouvir a referência ao bairro onde cresci – ali, num lugar tão longe de casa. “Onde você aprendeu a letra”?
Ela deu de ombros, como quem diz: “por aí...”
“E as telenovelas brasileiras”, disse Noah, “fazem muito sucesso aqui”.
Perguntei o que achavam delas e responderam com uma careta.
Noah disse ainda que uma amiga dela era brasileira, adotada
por um casal israelense quando bebê. Eu soube, depois, que esses
casos são recorrentes por lá. Um deles é famoso, e em 2007 virou documentário: “Bruna”. Conta a diretora do filme, Nili Tal, que
nos anos 80, antes mesmo de Madonna e Angelina Jolie buscarem
crianças no Terceiro Mundo, os israelenses viajavam para o Brasil
a fim de adotar crianças supostamente abandonadas. Ela já havia
feito um filme sobre a questão – “Meninas do Brasil” – que acompanha quatro garotas israelenses que vêm ao país para tentar encontrar suas mães biológicas. Segundo a cineasta, três mil famílias
adotaram crianças brasileiras até 1988, quando o caso de Bruna ganhou notoriedade e pôs fim às adoções internacionais.
A menina brasileira foi adotada aos 4 meses e levada a Israel. Dois anos depois, Rosilda, sua mãe biológica, desembarcou
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
em Tel Aviv com a ajuda de um canal da TV britânico para tentar reaver sua filha que, segundo ela, havia sido sequestrada. A
corte de justiça israelense decidiu a favor de Rosilda e Bruna foi
tirada dos pais adotivos.
Vinte anos depois, Nili Tal vai a Curitiba para localizar a menina Bruna e saber de seu destino. Bruna tinha então 22 anos e dois
filhos pequenos. Depois de algumas tentativas de fuga, havia deixado a casa da mãe e morava “de favor” com o pai, que não a queria
ali. Não conseguia emprego e havia parado de estudar. O filme deixa no ar a pergunta: teria sido melhor se ela tivesse permanecido
em Israel? Não há respostas, mas Nili Tal informa ao espectador um
alarmante número de 7 milhões de crianças abandonadas no Brasil.
Fui dormir no quarto que Gilad me cedera – o dele –, enquanto ele próprio dormiria no quarto de seu irmão, que estava viajando. Dei uma olhada ao meu redor e vi cartazes de filmes como Pulp
Fiction e algumas fotos dele, com armas e amigos, feitas na época
em que servia o Exército, por mais de dois anos. Decidi terminar
de ler o Ha’aretz daquele dia, e uma notinha me chamou a atenção.
“A Autoridade Israelense de Antiguidades (IAA) acaba de autorizar a construção de um Museu da Tolerância, em Jerusalém ocidental”, dizia. Exatamente sobre o terreno de um cemitério árabe,
no qual, desde a Idade Média, célebres personagens da história muçulmana eram enterrados. Eu ouvira falar sobre esse caso antes de
viajar, num folheto distribuído por ativistas. Em 1948, o cemitério
de Ma’manullah já havia sido profanado para a construção de um
estacionamento e um hotel. Agora, no que resta dele, um Museu da
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O OUTRO LADO DO MURO
Tolerância será erguido com financiamento do centro norte-americano Wiesenthal. Aparentemente, de nada serviram os protestos do
arqueólogo Raphael Greenberg, professor da Universidade de Tel
Aviv, e da Al Karameh, ONG palestina de defesa dos refugiados.
Fechei o jornal.
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Mikado
QUINTA-FEIRA, 12 DE JULHO DE 2007
E
u tinha combinado que ficaria mais duas noites na casa de Gilad, mas quis partir antes disso, para Jerusalém. Marquei uma
entrevista com Michael Warschawski, conhecido como “Mikado”
pelos amigos, na redação do Centro de Informação Alternativa (Alternative Information Center - AIC). Pela manhã, Gilad me deixou
numa rodoviária e fui, de mochilão, decidida a ficar em algum albergue de Jerusalém.
Mikado me recebeu sem muitos rodeios, e quis logo começar a
conversa. Baixinho, careca e de bigode, o militante pacifista israelense
é um dos fundadores do AIC, uma ONG com bases em Israel (Jerusalém ocidental) e na Palestina (Belém). O espaço foi criado em 1984 justamente para que ambas as partes do conflito fossem vozes atuantes na
luta pela paz. O site da organização (www.alternativeinformation.org)
divulga vídeos, notícias em texto e áudio, e tem inúmeras publicações
que analisam os efeitos da ocupação militar da Palestina.
O ativista nasceu em 1949 em Estrasburgo, na França, numa
família de judeus ortodoxos. Vive em Jerusalém desde 1965, onde
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O OUTRO LADO DO MURO
estudou na Yeshiva (escola talmúdica). Em 2002, a AIC chegou a
ser fechada por Ariel Sharon, em represália às constantes denúncias
dos crimes cometidos durante a ocupação israelense da Cisjordânia
e da Faixa de Gaza.
Começamos a conversa discutindo a notícia que eu lera nos
jornais, no dia anterior.
“O Ha’artez trouxe, ontem, um relatório do serviço de informação israelense dizendo que a autoridade palestina não representa mais ameaça para a existência de Israel, que deve se preocupar,
isso sim, com o Hezbollah, a Síria e o Irã. O que mudou no conflito
israelo-palestino?”, perguntei.
Para Mikado, tudo era consequência de duas viradas.
“A primeira é que passamos de uma fase de descolonização global – da qual a Palestina talvez seja a última expressão – para uma
época de recolonização do mundo. É a guerra sem fim de George
W. Bush para reconquistar uma posição perdida, não somente em
termos territoriais, mas no plano social nos países ricos, anulando direitos conquistados pelos trabalhadores. É uma recolonização
porque retira o pouco de autonomia da Autoridade Palestina, nos
territórios que administrava”.
A outra reviravolta, segundo ele, estava inteiramente ligada a essa.
“Passamos de um longo período político colonialista para uma
ideia de choque de civilizações, categoria na qual o conflito israelo-palestino foi enquadrado. Houve um reposicionamento – inclusive no seio do movimento nacional palestino – no sentido de separar os maus dos bons, o ‘Hamastão’ de Gaza e a ‘Fatahlândia’ da
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Cisjordânia – o que é um grande absurdo, já que há tanta gente do
Hamas na Cisjordânia quanto em Gaza”.
O que Mikado me dizia se encaixava – não por acaso – na tese
de Edward Said, em seu livro Orientalismo, de 1978. Para Said,
grande intelectual palestino radicado nos Estados Unidos, o Oriente é uma invenção ocidental, um carimbo que marca as civilizações
a leste da Europa com o signo da inferioridade, do exotismo. Assim,
o mundo é dividido entre “eles” e “nós”. No prefácio da edição de
2003, ano de sua morte, Said explica que esse mecanismo é usado
não apenas por intelectuais mas também por altos funcionários de
Washington, prestando-se facilmente “à manipulação e à organização das paixões coletivas”.
Por isso Warschawski acredita que, depois de 11 de setembro
de 2001, o conflito mudou de caráter. Ele explicou que o objetivo
de Israel e dos países que o apoiam é encampar uma guerra contra
os palestinos, sem usar o discurso de colonização. Agora a guerra é
contra o Islã. Os palestinos são, em parte, uma ameaça à chamada
civilização judaico-cristã e Israel se situaria na primeira linha de
5
defesa da civilização face à barbárie .
“O muro não é um muro local, mas global, que separa o mundo em dois. Israel está na linha de frente do bem, da civilização, da
Europa, dos EUA. A Palestina está na linha de frente dos bárbaros,
a Síria, o Irã, o Iraque, o Afeganistão”, continuou Mikado.
5. A ideia de separação entre a civilização da barbárie na região aparece no livro “O Estado Judeu”
(1896) de Theodor Herzl, pai do movimento sionista. “Para a Europa, constituiríamos aí um pedaço de
fortaleza contra a Ásia, seríamos a sentinela avançada da civilização contra a barbárie”, escreveu. HERZL,
Theodor. O Estado Judeu, p.68.
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O OUTRO LADO DO MURO
Comentei que não é preciso ser um historiador para desconfiar
do termo “civilização judaico-cristã”. O que isso quer dizer? Pelo
que se sabe, em séculos de História, os judeus sempre foram perseguidos por cristãos – da Idade Média a Hitler, pelo menos. Warschawski concordou comigo.
“Se antes havia um muro que separava o oeste capitalista do
leste comunista, agora há um que separa o Islã da civilização judaico-cristã. Para combater a situação, deve-se desmistificá-la, já
que se trata de uma estratégia. Voltar a uma filosofia de abertura
e não de fechamento; da mistura, e não do choque de civilizações,
começando, por exemplo, com a desconstrução do conceito de civilização judaico-cristã. Quando colocamos um hífen ligando os dois
termos, é para excluir um terceiro. Existirá uma história judaico-cristã? As relações não foram das melhores, com massacres desde
a Idade Média até Hitler, de fato. Não se trata de uma grande harmonia civilizacional face aos bárbaros. Por outro lado, houve uma
ligação judaico-muçulmana muito rica. É preciso fazer um trabalho de reconstrução da História entre os jovens, que crescem num
mundo bipolar. Não mais entre comunismo e capitalismo, mas entre judeus e cristãos, de um lado, e os muçulmanos, de outro”.
“Os palestinos passaram, então, de atores políticos a representantes do terrorismo, sem terem necessariamente mudado. Como
Israel pôde justificar esse novo tratamento?”, perguntei.
“Houve uma verdadeira guerra de propaganda preparada pelos
6
neoconservadores, planejada nos think-tanks norte-americanos e is6. Um think tank é uma instituição, organização ou grupo de investigação que produz conhecimento e
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
raelenses. Eles refletiram sobre um novo mundo desde os anos 80, e
também sobre estratégias a desenvolver nessa dimensão ideológica”.
Mikado exemplificou sua tese com Yasser Arafat. Segundo ele,
no espaço de uma semana, mudou-se radicalmente a sua imagem
– de ganhador do Prêmio Nobel da Paz, moderado e disposto à
negociação, para terrorista trancado na Muqata (o Quartel General
7
palestino em Ramallah) a partir de 2001 .
“Podemos ver a mudança também na linguagem. Se olharmos os
jornais, depois de 2001, a palavra ‘ocupação’ desaparece, só se fala de ‘terror’. Havia um consenso sobre o problema da ocupação, e essa ótica foi
revertida. Os palestinos eram considerados pela Europa – e eu diria mesmo pelos estadunidenses – como vítimas de um problema para o qual
devemos encontrar uma solução. Hoje é Israel que passa a ser a vítima.
Depois do 11 de setembro é a América que vira vítima. Há uma verdadeira inversão na linguagem: não é o povo palestino que não obteve sua
independência; são os palestinos que ameaçam a existência de Israel”.
Mas quais são as razões dadas pelos neoconservadores de que
fala Mikado para esse fenômeno dos homens-bombas? De novo,
esbarramos no choque de civilizações:
“Antes a análise era diferente, mesmo dentro do governo israe8
lense: Ythzak Rabin sempre disse que o terrorismo era uma reação
oferece ideias sobre assuntos relacionados a política, comércio, indústria, estratégia, ciência, tecnologia
ou mesmo assuntos militares.
7. Em abril de 2002, tropas israelenses cercaram o quartel general de Yasser Arafat em Ramallah (Cisjordânia), situação que se estendeu por mais de um mês.
8. Primeiro-ministro de Israel entre 1974 e 1977. Regressa ao cargo em 1992, exercendo funções até
1995, ano em que foi assassinado por um israelense de extrema-direita.
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O OUTRO LADO DO MURO
negativa a algo, a uma política de Israel. Agora, a explicação que se
dá é de caráter civilizacional. O que é terrorismo? É o modus operandi do Islã. A vida não tem sentido para eles, e, principalmente,
eles querem nos destruir”.
Conversamos mais sobre a guerra civil que se desenhava entre
o Hamas e o Fatah, e sobre o que estava em jogo naquele conflito.
Mas a minha angústia maior, naquele momento, era por não saber
para onde caminhava a sociedade israelense. Como estão os movimentos pela paz? Warschawski pintou um quadro desolador, que
eu já tinha começado a esboçar no meu primeiro dia de Tel Aviv.
“Do ponto de vista da sociedade israelense, não há nenhuma
razão para que se questione a política de ocupação. Não há atentados como antes, não há pressão internacional e a economia vai
muito bem. Há um sentimento de segurança e prosperidade econômica. O que preocupa Israel, neste momento, é o Irã. Eu uso a
seguinte imagem: a questão palestina é, para os israelenses, como
uma picada de mosquito – não é preciso ir ao hospital, fazer uma
operação; coça, incomoda um pouco, mas passamos uma pomada e
nos sentimos bem. Nos jornais israelenses, a questão palestina está
relegada à terceira ou quarta página. Os problemas principais são
internos: os casos de corrupção, os escândalos. E, no horizonte, a
guerra contra o Irã”.
Não é que os movimentos pela paz estejam completamente paralisados – ele me explicou. Há atividade militante, pessoas
que se manifestam contra a guerra do Líbano, ou no aniversário da
ocupação. Mikado citou Uri Avnery, jornalista e ativista israelense,
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
militante dos direitos dos palestinos, que construiu a seguinte imagem: o movimento pela paz é formado de duas rodas, uma pequena
e uma grande. A pequena são os militantes, que ele estima serem
uns dez mil, mobilizados constantemente contra a existência de um
muro de separação, contra a política de colonização e de guerra. E
há um movimento mais largo, a grande roda, como o grupo “Paz
Agora” [Gush Shalom, em hebraico], uma coalizão de organizações
que representa a opinião pública capaz de mudar as decisões políticas. Para ele, o trabalho da roda pequena é movimentar a grande
e assim influenciar a esfera política. O problema é que hoje a roda
pequena funciona muito bem, mas ela gira em falso, pois a roda
maior desapareceu.
“E desapareceu quando, por quê?”, perguntei.
“Desapareceu depois de 2000. A opinião mobilizada – não o
sentimento de cada um sobre a questão – se dissipou em algumas
semanas em agosto de 2000 antes da Segunda Intifada com todas
9
as mentiras da reunião de Camp David, de Ehud Barak , todo esse
discurso mistificador de que estamos numa guerra contra a ameaça
árabe-muçulmana – discurso que antecipou e que fazia parte da
campanha de guerra de civilizações e desse movimento de recolonização do mundo de que falei. Tudo isso provocou o desabamento
do movimento de paz e o que restou foi a pequena roda. Pela primeira vez o “Paz Agora” quis entrar na coalizão da pequena roda,
9. A reunião a que Mikado se refere é mais uma negociação pela paz que fracassou. A cúpula reuniu em
Camp David o premiê Ehud Barak, Yasser Arafat e Bill Clinton em julho de 2000, meses antes do início
da Segunda Intifada.
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O OUTRO LADO DO MURO
após 20 anos de recusa dizendo que éramos radicais demais, extremistas. Ao contrário de muitos colegas, isso não me deixa feliz,
pois quer dizer que não existe mais uma grande roda, e por isso não
temos impacto sobre as decisões políticas”.
“E o que faria ressurgir esse movimento de opinião mais amplo?”
“O preço. Não há um movimento de massa no mundo contra
a guerra ou contra a colonização se as pessoas sentem que não vale
a pena. Se tudo vai bem, é preciso ser muito idealista para pensar
que as pessoas, por ética, se mobilizem. Não falo somente dos atentados, mas também da comunidade internacional. Se os israelenses
sentirem que pode haver uma ruptura com as pessoas civilizadas
do mundo, isso pode contribuir para a emergência de movimentos
de massas. Mas Israel está em sintonia total com a Europa. Tudo vai
bem, a economia, o sentimento de segurança”.
Para terminar, perguntei a Warschawski se ele via esperança de
resolução do conflito, ou alguma possibilidade de paz, no fim do túnel.
Como todo mundo que se envolve com essa história, ele disse que não
sabia. Não tem a mínima ideia de quando as coisas vão mudar – se em
dez, ou trinta anos. Ele acha, apenas, que a História deveria ser parada neste momento. “Israel nunca esteve em situação melhor para isso”,
disse, com um ponto final. Paramos a conversa por ali, até porque percebi que esse tipo de pergunta é distante demais no horizonte de um
ativista como Mikado que acompanha, de perto, todas as contradições
dos acordos de paz e o drama diário dos dois lados do conflito.
Por coincidência, estavam no AIC os franceses com quem eu
tinha feito contato antes da viagem e que eu esperava encontrar so-
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
mente dali a dois dias. O AIC era o escritório de onde eles organizariam os grupo de estudantes que viajariam para diferentes cidades
da Cisjordânia, a fim de conhecer de perto o que era um território
sob ocupação. Eles me indicaram o Hotel Hebron, um albergue relativamente barato – pudera, com quartos que comportam umas
20 pessoas cada um, acomodadas em beliches – e resolvi adiantar
minha ida para lá.
*
O Hotel Hebron fica nos centro da Cidade Velha, não muito
longe do AIC. Entrei pelo Portal de Jaffa, um dos acessos à cidadela
murada. Andando pelas ruas estreitas e repletas de comerciantes,
pensei que fosse me perder facilmente. Naquele espaço tão pequeno, estão os lugares sagrados para as três religiões monoteístas. São
quatro bairros: o armênio, o católico, o judeu e o muçulmano. Para
os seguidores do profeta Maomé, Jerusalém se chama Al-Quds (“A
Sagrada”). A primeira mesquita construída por Maomé em Medina
estava voltada para Jerusalém, e era em direção à mesma cidade que
os muçulmanos faziam suas preces. Só mais tarde que a orientação
mudou-se para Meca.
A cidade velha é cercada por montes – Monte Sion, Monte das
Oliveiras, Monte Moriah. Neste último, a leste, onde um dia houve
um templo judeu, foram construídos a mesquita Al-Aqsa e o santuário Domo do Rochedo, a partir do qual Maomé teria visitado o
céu, segundo o Corão. Personagens como Abraão, José, Moisés e
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O OUTRO LADO DO MURO
Jesus são tão sagrados para os muçulmanos quanto para os cristãos
e os judeus. A capela de Maria (Mihrab Miriam) e o Berço de Jesus (Mahd Issa), que também ficam no Monte Moriah, dão uma
ideia de como se confundem, ali, as religiões e sua História. Os
dois lugares são sagrados para muçulmanos e cristãos. Quando
foram destruídos pelas cruzadas cristãs, foram reconstruídos
pelos muçulmanos.
Eu estava, portanto, no umbigo do mundo (pelo menos para
os adeptos das três religiões). Um verso do Corão explica o caráter
umbilical da cidade para o Islã (sura 24, versículo 35): “Deus é a
luz dos céus e da terra. Sua luz é semelhante a um lampião onde
se encontra uma chama. A chama está dentro de um recipiente de
cristal, que se parece com um astro de brilho muito intenso; seu
combustível vem de uma árvore bendita: uma oliveira nem oriental
nem ocidental cujo óleo parece iluminar mesmo sem que o fogo
o toque”. A oliveira em questão estaria lá, em Jerusalém. A árvore
tornou-se um símbolo sagrado para os palestinos. Por isso não é
raro ver o desespero com que os agricultores palestinos assistem
à queima e destruição de plantações inteiras de suas oliveiras por
soldados ou colonos israelenses10. Além do aspecto simbólico, a
produção do azeite de oliva é uma das principais atividades econômicas da região.
Jerusalém também é sagrada para os judeus, embora poucos
deles morassem na Palestina até o século XIX, quando o sionismo
levou milhares deles à região. Segundo o historiador Lucas Cathe10. O capítulo “Oliveiras que choram”, mais adiante, traz dados sobre a destruição das plantações.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
rine, um primeiro retorno, discreto, aconteceu no século XIII. Os
árabes derrotaram os cruzados definitivamente em 1218, e o sultão
Saladino convidou os judeus a se instalarem em Jerusalém. Desde então, um pequeno fluxo de judeus é observado na Palestina.
Em 1428, o papa Martinho V proibiu que os navegadores italianos levassem os judeus à Terra Santa. E quando a Santa Inquisição expulsou e perseguiu os judeus da Andaluzia, em 1492,
eles se dirigiram principalmente ao Magreb e ao império otomano. Quando a Palestina se transformou em parte do império
em 1516, grandes grupos de judeus sefarditas e orientais ali se
instalaram. São judeus árabes vindos de territórios como o Iêmen ou o Iraque, ou outros países não-árabes da região. Sefardi
é o nome hebraico de Al-Andalus (a Península Ibérica durante a
ocupação pelos islâmicos de 711 a 1492).
De volta ao século XXI, Jerusalém é também o centro político
do conflito. Por seu caráter simbólico, sempre foi disputada como
capital, pelos dois estados. Ao contrário de Tel Aviv, os badulaques
com símbolos palestinos são comuns nos mercados da cidade velha, e em vários deles li a frase “Jerusalem – Hearth of Palestine”.
Até hoje, o status de Jerusalém não foi definido pelo Direito
Internacional. A resolução 181 da Assembleia Geral das Nações
Unidas recomendou que a cidade fosse submetida a um regime de
administração internacional. O plano, no entanto, foi rejeitado pelos palestinos e pelos estados árabes. Em 1949, um armistício entre
Israel e a Jordânia estabeleceu a chamada linha verde, que levou à
divisão da cidade em Jerusalém Oriental, incluindo a Cidade Velha
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O OUTRO LADO DO MURO
(controlada de facto pela Jordânia) e Jerusalém Ocidental (controlada pelos israelenses).
Com o fim da Guerra dos Seis Dias, em 1967, as Forças Armadas de Israel vitoriosas ocuparam a margem ocidental do Rio
Jordão (a Cisjordânia), incluindo a metade oriental de Jerusalém.
Em 1980, o Knesset (Parlamento israelense) aprovou uma lei em
que anexava formalmente a cidade expandida e declarava Jerusalém como capital “una e indivisível” de Israel. O ato foi rechaçado
pela comunidade internacional, apesar de a condenação nunca ter
saído do papel. Repetidas resoluções da ONU e do seu Conselho
de Segurança afirmaram que qualquer tentativa de Israel de mudar
o status de Jerusalém, com a anexação de terras e transferências
populacionais, é completamente ilegal.
*
Nas primeiras voltas que dei na Cidade Velha me senti “devorada” pelos vendedores. Se eu olhasse alguns segundos em direção a alguma bolsa, sapato, bijuteria ou qualquer um daqueles
milhares de objetos que transbordavam nas portas das lojas, um
vendedor saltava na minha frente e me oferecia a um preço bem
camarada. Claro que todos superestimaram meu poder aquisitivo. Como nenhum produto tinha valor marcado – a lei ali é
pechinchar – encontrei preços diferentes e disparatados em lojas
vizinhas. O problema é que a língua ideal para regatear é o árabe
(o inglês pressupõe um valor inicial mais alto). Todos ofereciam
48
FERNANDA CAMPAGNUCCI
com veemência um chá “sem compromisso” – e ficavam irritados com minha recusa.
No Hotel Hebron, tomei um chá com mais calma (desta vez
pago) e pedi um dos pratos servidos na pequena lanchonete. Além
do hummus, tinha espaguete e steak de frango. As paredes do albergue eram de pedra, e as partes que ficavam ao alcance dos visitantes
estavam cobertas de recados pichados com caneta, como em outros
albergues da juventude. A construção era antiga e não combinava
muito com uma TV grande que exibia videoclipes de pop árabe. Mais
ao fundo, num lugar abafado, havia meia dúzia de computadores lentos com acesso pago à internet. Um dos parentes do dono, o adolescente Ahmad, controlava o tempo de navegação, com um papelzinho
na mão e o olho no relógio. Preocupava-se com isso porque, apesar
dos avisos, algumas pessoas não entendiam que o serviço era pago.
Escrevi, num desses computadores, as minhas primeiras impressões,
e mal consegui enviar algumas fotos já que a máquina, de tão velha,
não reconhecia o cabo de minha máquina fotográfica.
O quarto estava vazio e pude escolher um beliche em que iria
ficar. Deitei na parte de cima de um deles. Quando me preparava
para dormir – era cedo, mas eu estava exausta – uma garota pediu,
em inglês, licença para acender a luz. Seu nome era Hiba. Como não
percebi que ela havia retirado o véu ao entrar no quarto, não soube
imediatamente que ela era muçulmana. Aliás, ao trocarmos as primeiras frases, tive dificuldade em perceber de onde era o seu sotaque.
“Sou da Escócia”, respondeu. O começo de conversa em albergues da juventude é sempre o mesmo. Perguntar de onde vêm as
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O OUTRO LADO DO MURO
pessoas do seu quarto é uma praxe necessária, para atenuar a estranha sensação de dormir ao lado de pessoas completamente desconhecidas. Os lugares que a pessoa já visitou e os que ainda pretende visitar
é o próximo passo. Mas, no caso de Hiba, a conversa se estendeu mais:
ela não era turista, e sim mais uma ativista que integrava um comitê
pró-Palestina na Escócia. Negra e muçulmana, logo falou de sua ascendência: era de uma família de imigrantes da Somália.
Na Palestina, especialmente nos territórios ocupados, é muito
comum ver esses grupos de solidariedade internacional – que a mídia local denomina “os internacionais”. Eles participam de manifestações pacíficas, encontram-se com representantes de organizações
de direitos humanos e, de volta a seus países, relatam a experiência.
Autodenominam-se testemunhas. Alguns candidatam-se a participar de atividades voluntárias, como ministrar cursos de língua ou
auxiliar ONGs em tarefas administrativas.
11
Ouvimos, ao longe, o Athaan , o chamado à oração. Na primeira pausa de nossa conversa, Hiba pediu licença, colocou seu véu
e fez aquela que seria sua última oração do dia. Retomamos a conversa, e ela me convidou para ir com seu grupo escocês na manhã
seguinte a uma manifestação contra o muro de separação entre a
Cisjordânia e Israel, numa cidade chamada Um Salamona (próxima à Belém, no território palestino). Era minha primeira oportunidade de passar para o outro lado do muro.
11. Adhan ou Athaan, a convocação para o salá (oração), é feita a partir do minarete das mesquitas,
cinco vezes por dia.
50
“Vocês sabem que mapa é esse?”
SEXTA-FEIRA, 13 DE JULHO DE 2007
N
a manhã seguinte, Hiba disse estar muito cansada e não quis
se levantar antes das sete para ir à manifestação. Juntei-me ao
resto da comitiva da Campanha Escocesa de Solidariedade à Palestina, que continuaria com mais seis pessoas: o casal Kevin e Vanesa
– ele, escocês e ela, espanhola – e Sofiah, que tinham pouco mais
de 30 anos. Os outros três, Sally, Stephen e Jimmy, já beiravam o
dobro da idade – 60 anos. Alguns deles, como eu, usavam camisas
de manga comprida para se proteger do sol, que estava fortíssimo
(Kevin, escocês típico, já estava com a pele vermelha).
Um grupo bem diferente, portanto, do que eu imaginava. Era
inevitável pensar nos tais jovens “internacionais” com lenços palestinos amarrados na cabeça – e, de fato, encontrei alguns deles mais
tarde. O grupo escocês, com as garrafas de água (gelo) e chapéus de
abas de pano do tipo que se encontram na praia se aproximavam
mais da imagem que eu tinha de turistas.
Eles já estavam na Palestina havia dez dias, mas diziam sentir que a estadia já durava um mês, pela sua “intensidade” (pala-
51
O OUTRO LADO DO MURO
vra usada por eles). Na primeira semana em que se basearam em
Jerusalém ocidental, viajaram quase todos os dias para Ramallah,
importante cidade da Cisjordânia que fica a quinze minutos dali.
“Checkpoints, desvios, bloqueios etc. transformavam a viagem de
quinze minutos em uma hora. Mas nós somos sortudos, os palestinos adorariam a nossa relativa liberdade de viajar. Eles precisam de
permissões dos israelenses para andar dentro de sua própria terra”,
escreveria o grupo, mas tarde, no blog da ONG escocesa.
Fomos de sheirut (táxi coletivo) até Belém e, lá, tivemos que
passar a pé pelo primeiro checkpoint da minha viagem. O movimento de cerca de 2,4 milhões de palestinos é controlado por inúmeras barreiras, portões, muros de concreto, grades eletrificadas
e torres de observação. Há um complexo sistema de permissões
que restringe a livre circulação da população e o acesso a serviços
básicos. Em julho de 2007, o Escritório das Nações Unidas para a
Coordenação de Assistência Humanitária (OCHA) reportou 539
impedimentos físicos – incluindo 74 checkpoints controlados por
militares e 12 bloqueios parciais. Mas o número de bloqueios varia de mês a mês: alguns são removidos por palestinos, outros são
retirados para permitir a construção de novas estradas e novos são
criados, pelo Exército de Israel.
As autoridades israelenses argumentam que essas medidas são
necessárias para a segurança de seus cidadãos – tanto os que vivem
em Israel quanto os que vivem nas colônias da Cisjordânia. Algumas rodovias no território palestino são exclusivas para a circulação dos colonos israelenses. Todas essas divisões acabaram criando
52
FERNANDA CAMPAGNUCCI
o que os ativistas e analistas da região chamam de bantustões, em
12
analogia ao sistema de apartheid da África do Sul . A Cisjordânia
é dividida de facto em pelo menos três segmentos (norte, centro
e sul) e é preciso passar por barreiras controladas por israelenses
para ir, por exemplo, de Nablus (norte) a Hebron (sul). Assim, uma
viagem que dura cerca de 40 minutos em circunstâncias normais,
pode requerer várias horas.
Os taxistas árabes já estão acostumados a driblar os chekpoints.
Por telefone ou rádio, eles se comunicam e ficam sabendo quais
estão fechados, em quais o congestionamento é pior e por qual caminho há mais chances de passar. Às vezes, para evitar algumas
barreiras, é necessário fazer grandes voltas – o trajeto fica demorado, mas pelo menos temos certeza de chegar a algum lugar. De
todo modo, para ir de um ponto a outro da Cisjordânia, portanto,
é preciso tomar inúmeros táxis, já que muitas barreiras devem ser
atravessadas a pé. Os táxis ficam acumulados em cada lado das barreiras, à espera de passageiros.
Para passar pelo checkpoint de Belém – e, consequentemente, pelo
muro que separa Jerusalém da Cisjordânia – atravessamos um corredor cercado por grades que dá num posto fechado, cheio de catracas.
Supostamente turistas, mostramos nossos passaportes e passamos sem problemas. Belém é uma cidade turística – ali está, por
12. Durante o regime do apartheid, bantustão era qualquer um dos territórios com limitado grau de
autodeterminação reservados aos negros sul-africanos, encravados pela União Sul-Africana (depois
África do Sul). Com as frequentes comparações da situação dos palestinos com a vivida pelos negros no
regime do apartheid, as divisões administrativas da Cisjordânia têm sido chamadas de bantustões por
acadêmicos e ativistas.
53
O OUTRO LADO DO MURO
exemplo, a Igreja da Natividade, edificada no local onde Jesus teria
nascido. As meninas que guardavam o posto naquele dia – meninas
mesmo, que aparentavam uns 17 anos, fardadas e de M-16 na mão
– olharam nossos passaportes e nos deixaram passar, alertando,
porém, que não era uma boa ideia visitar o outro lado. Uma delas
tinha a minha altura, pouco mais de um metro e meio, e sorriu ao
13
nos devolver o passaporte .
Na saída, nos deparamos com uma fila de árabes que estavam impedidos de entrar. Alguns agitavam suas carteiras de identidade no ar e
gritavam. Foi embaraçoso para nós passar tão facilmente pela barreira.
Em Belém, encontramos um dos muitos grupos de resistência
pacífica que atuam na Cisjordânia. A Holy Land Trust se propõe a
fazer uma espécie de turismo militante na região e é uma das organizadoras das manifestações contra o muro de separação. Entramos no escritório e paramos para descansar e tomar um chá. A sala,
em estilo árabe, tinha tapetes e almofadas coloridas espalhadas pelo
chão. Em outra sala, algumas voluntárias americanas e canadenses
pintavam cartazes com o bordão “Stop the Wall”. Tamer Halaseh,
coordenador da ONG, nos recebeu e disse que em breve um sheirut
nos levaria até Um Salamona. Diversas cidades localizadas ao longo
13. ����������������������������������������������������������������������������������������������
O serviço militar em Israel é obrigatório para homens judeus e drusos israelenses (comunidade
maometana, que fala árabe) por pelo menos três anos e para mulheres judias acima de 18 anos, por,
no mínimo, dois anos. Os árabes israelenses podem servir o exército, mas não é obrigatório. Exceções
podem ser feitas por motivos religiosos, físicos ou psicológicos. De acordo com o relatório anual de
Direitos Humanos do Departamento de Estado norte-americano, um pequeno percentual de árabes
optou pelo serviço militar. Os que não o fizeram, diz o relatório, não tiveram acesso a benefícios sociais
e econômicos (como financiamento de habitação, empregos públicos) para os quais o serviço militar é
pré-requisito. Disponível em: http://www.state.gov.
54
FERNANDA CAMPAGNUCCI
do muro fazem o ato ao mesmo tempo e todos os participantes têm
por princípio a não-violência.
A manifestação acontece toda sexta-feira, mas, naquela sexta-feira em particular, dia 13 de julho, o grupo tinha mais motivos
para protestar: fazia três anos que a Corte Internacional de Justiça de Haia havia condenado o muro e ordenado sua imediata suspensão, decisão que nunca foi respeitada pelo Estado de Israel. De
acordo com a Corte, o muro anexa terras da Cisjordânia e atenta
contra o direito à autodeterminação do povo palestino.
Mas o muro não só continua no mesmo lugar, como está se
expandindo: segundo a ONG Stop the Wall, seu traçado tortuoso
avança até seis quilômetros para dentro da Cisjordânia, como ocorre na cidade de Qalqilya, que hoje está inteiramente cercada.
Outros projetos do governo de Israel aguardam aprovação do
Knesset. Um deles propõe que o muro adentre até 13 km do lado
cisjordano, para isolar colônias sionistas, além de prever uma nova
barreira paralela à primeira, ao longo do vale do Jordão. Com esta
segunda fase, o muro seria estendido por mais de 700 km e isolaria
50% do território palestino na Cisjordânia.
Quando chegamos ao local da manifestação já havia um grupo
de palestinos, ativistas israelenses e alguns “internacionais”, acompanhados de crianças curiosas, fotógrafos e observadores, empunhando cartazes e bandeiras. Sami Awad, da Holy Land Trust, deu
as últimas instruções:
“Atenção: essa é uma manifestação pacífica. Ficamos em três
blocos, cada um deve escolher o que achar melhor. Há a linha de
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O OUTRO LADO DO MURO
frente que é, claro, a mais perigosa. No segundo bloco, ficam os que
resguardam [e empurram] os primeiros, ainda com algum perigo.
A terceira linha é dos observadores”, disse.
Começamos a descer a estrada que levaria ao muro e, ao longe, pude ver a fila de soldados israelenses que subiam em nossa
direção. A tentativa da organização é de promover sempre uma
manifestação não-violenta, mas, para que a recepção dos soldados
israelenses seja igualmente não-violenta, a presença de ativistas e
observadores internacionais é essencial. O norueguês Tron Botnen,
de uma organização ecumênica que trabalha nos territórios da Palestina e Israel, me explicou que, na ausência de ativistas internacionais, a repressão é maior.
“Os palestinos sempre nos falam que é melhor quando estamos
aqui”, disse. Tron estava lá há dois meses, para “prestar solidariedade”.
“E também testemunhar contra os sofrimentos que esse muro
causa – separa famílias, impede as pessoas de trabalhar, de viajar,
confisca suas terras”, continuou o norueguês, que estava na terceira
linha, a dos observadores.
Mas, quando os soldados israelenses levantaram seus escudos
e se dispuseram em uma linha que bloqueava a estrada inteira, os
três blocos organizados por Sami Awad se transformaram em um
só. Os manifestantes da segunda e terceira linha ajudavam os da
primeira a empurrar os escudos, na tentativa de furar o bloqueio.
Um verdadeiro “braço-de-ferro”, um tanto desequilibrado.
Enquanto o empurra-empurra levantava poeira e deixava roupas
e rostos cobertos daquela cor bege da terra, algumas pessoas tentavam
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
falar com os soldados. Uma jovem ativista israelense gritava algo em
hebraico para o soldado com cara de menino, impassível. Cheguei
perto para tirar uma foto daquele rosto que me inquietou, e percebi
que seus olhos estavam, sim, perturbados diante daquilo. Quase tristes.
Perguntei à ativista o que ela havia dito e ela traduziu, em inglês:
“Eu falei comportem-se, cresçam”, disse, agora batendo sua
roupa para tirar o pó. Ela tinha sido derrubada no chão e sofrera
um leve ferimento na testa. Antes de cair, ela disse que ainda gritou:
“Essa terra não é de vocês, vocês não têm nada a fazer aqui!”.
Sami Awad também foi derrubado, e o grupo recuou. O braço-de-ferro parava por alguns minutos e depois era retomado, num
movimento repetido por, pelo menos, cinco vezes. Os soldados
continuavam imóveis, até que um grupo tentou passar pelos lados.
Um cinegrafista da Reuters desviou diante de um soldado, que batia
num palestino com cassetete. O homem gritava em árabe e inglês
“Não à ocupação!”. Todo o grupo cantou a frase, em árabe, enquanto continuava empurrando a linha de escudos.
Entre uma pausa e outra, o escocês Kevin tentou mostrar aos
israelenses um mapa da Cisjordânia produzido pela ONU.
“Vocês sabem que mapa é esse?”, perguntou Kevin, abrindo o
mapa em frente aos soldados. “É o mapa da Cisjordânia. Mas vocês
nunca devem ter visto. Não sabem nada sobre esse muro, sobre o
que ele significa. Aposto que nem sabem apontar onde estão agora”.
Era como se Kevin falasse sozinho. Nem olhavam para seu
rosto. Um deles esboçou até um sorriso irônico. Outro, por fim,
olhou para o mapa – como se tentasse achar sua localização – e,
57
O OUTRO LADO DO MURO
com a testa franzida, disse que só estava cumprindo ordens. Kevin
continuou a falar. Pedia para que refletissem sobre tudo aquilo. E o
braço-de-ferro recomeçou.
Como em Um Salamona, outros atos contra o muro acontecem toda sexta-feira em várias cidades da Cisjordânia: em Bil`in,
perto de Belém, em Qaffin, ao norte, e em Bani Naium, ao sul. Mas
em Bili`in, ao contrário do que ocorre em Um Salamona, os soldados mantêm uma certa distância e não hesitam em lançar bombas
de gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
Assisti à prisão de um palestino, que foi imobilizado e levado
em um jipe. Explicaram-me que isso acontece em todas as manifestações. Ninguém soube me dizer quando será solto – dentro de um
dia, ou em dois anos...
“Aqui não há regras, não há leis, não temos direito nenhum”,
disse Awad.
Perguntei-lhe se, por alguma vez, eles haviam conseguido passar e chegar até o muro.
“Há um ano fazemos esse ato todas as semanas, e eles não nos
deixam passar. A única vez que nos deixaram passar, na verdade, foi
quando fizemos uma manifestação em homenagem aos estudantes
mortos no massacre de Virgínia”.
Ele se dirigiu aos manifestantes, que a essa altura estavam
exaustos e cobertos de poeira.
“Viemos em paz e vamos sair também em paz”.
Todos caminharam, mais uma vez, sem conseguir passar
pelos soldados.
58
FERNANDA CAMPAGNUCCI
*
O falante motorista do sheirut aproveitou a presença dos “internacionais” em seu carro para criticar a atuação do Exército israelense
em sua cidade. Contou que ele estava exausto porque trabalhava o dia
inteiro debaixo daquele sol forte, ajudando a reconstruir a casa de um
vizinho que havia sido demolida pela segunda vez em dez meses.
A demolição de casas é, de fato, uma política de Israel, tanto
dentro de seu território quanto nos territórios que ocupa. A luta
contra a demolição de casas é bandeira de ONGs, como o Comitê
Israelense contra a Demolição de Casas (ICADH, na sigla em inglês), que reconstroem casas demolidas; alguns de seus ativistas até
se colocam diante dos tratores antes da demolição. Teimosia.
De acordo com dados do ICADH, Israel demoliu mais de 18
mil casas de famílias palestinas desde 1967, deixando mais de 70
mil pessoas sem teto. Em sua página na internet, a organização explica que não é uma entidade humanitária ou assistencialista, mas
quer se fazer ouvir com a reconstrução de casas por mutirões que
reúnem ativistas israelenses e palestinos.
De volta ao escritório da Holy Land Trust, encontrei Elias, que
trabalha no projeto de turismo solidário da ONG (uma agência
chamada Travel and Encounter). Por ser guia turístico, ele conhece
bem o impacto da ocupação israelense no turismo, principal atividade econômica em Belém.
“Desde 1967, Israel tenta marginalizar o turismo nos territórios ocupados. Eles não querem que as pessoas vejam os campos
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O OUTRO LADO DO MURO
de refugiados”, explicou Elias. “Proibiram os palestinos de serem
guias turísticos na sua própria terra, trazendo pessoas de fora para
os principais sítios históricos”.
Com o muro, ficou ainda mais fácil para Israel controlar a entrada de turistas na região. A orientação dos militares aos estrangeiros – que eu mesma ouvi no checkpoint – é de que a Cisjordânia
é perigosa e não deve ser visitada.
“Um grupo dos Estados Unidos esteve aqui e nos disse que
foi advertido por um soldado israelense antes de passar pelo checkpoint: ‘vocês têm que tomar cuidado. As pessoas do outro lado do
muro são animais’”, contou Elias.
“Antes do muro, a cidade era bastante cheia e viva. Os israelenses vinham aqui para fazer compras. Tínhamos oitenta estabelecimentos comerciais. Agora há apenas dois”, disse Elias.
“Mas o que impede as pessoas de virem para ver a Igreja da Natividade, por exemplo, que tem tanto apelo?”, perguntou um dos escoceses.
“As pessoas ficam cansadas com os checkpoints. No começo,
nem os carros de passeio passavam. Os visitantes tinham que descer dos ônibus e táxis, esperar numa fila e andar bastante. Os carros só puderam começar a passar depois de uma grande pressão da
Igreja”, respondeu.
Apesar dos empecilhos, Belém ainda é muito dependente do
turismo. Para atrair mais gente à região, os preços tiveram que cair
muito. Segundo Elias, egípcios, poloneses e tchecos visitam em
peso a região, mas é o turismo chamado “low budget”, ou seja, para
gastar pouco.
60
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Uma diária numa pousada com café-da-manhã e jantar, aqui,
custa 12 dólares. Mas isso não cobre nem o custo!”, disse Elias.
Uma pequena parte dos turistas, no entanto, está interessada
em conhecer a vida na Cisjordânia. Estes visitam as cidades com
ONGs como a Travel and Encounter. Elias nos estendeu alguns folhetos da agência, que fazem propaganda do turismo “solidário” ,
ou intercâmbio cultural, em inglês:
(...) A viagem é organizada para desenvolver relacionamentos,
quebrar estereótipos, fomentar esforços filantrópicos e forjar parcerias estratégicas para fortalecer a região.
Eles sugerem, entre outras atividades:
Aprender árabe. A melhor forma de aprender uma língua é com
a imersão cultural. Temos aulas de 10 horas por semana para nível básico e intermediário. E não é só isso: uma família palestina hospedará
você para ajudá-lo a praticar o que você aprendeu em sala de aula.
Voluntariado. Trabalhe lado a lado com palestinos em educação, saúde, desenvolvimento e projetos de paz e reconciliação.
Hospedagem em casas de famílias. Um lado do conflito israelo-palestino que você nunca viu na TV. Ouça histórias da família
que vai hospedá-lo sobre suas experiências com a ocupação militar e
seus efeitos sociais, econômicos e psicológicos. Construa uma amizade regada à hummus, falafel e chá com menta.
61
O OUTRO LADO DO MURO
Apesar dessas tentativas de alcançar o público estrangeiro, as
agências de turismo israelenses são as que mais conseguem vender
pacotes “seguros” para Belém. São elas que controlam a maior parte
do movimento turístico hoje.
Quando chegam à cidade, os ônibus de turistas nunca ficam por
mais de uma ou duas horas. Elias nos contou que a principal reclamação dos lojistas palestinos é a de que as agências de turismo usam a
estrutura de suas lojas – estacionamento, banheiro – para fazer a visitação e compram algo bem barato para justificar o uso do espaço.
“Ficam muito pouco tempo e não compram nada. A única coisa que nos deixam é lixo”, reclamou. “Desde a ocupação, o turismo
em Belém parece uma visita ao zoológico”.
Elias respirou fundo, bateu no seu peito e continuou:
“O turismo e a hospitalidade fazem parte da nossa cultura. Eu
digo a vocês que estarão a salvo em qualquer parte de Gaza ou da
Cisjordânia. Serão convidados para tomar café ou almoçar o tempo
todo. A violência, quem traz, é a ocupação”.
*
Entramos na Igreja da Natividade, uma das primeiras edificações cristãs, construída sobre a gruta onde Jesus teria nascido. Um
guia logo se aproximou de nós e começou a explicar, em inglês, a
história da basílica – como se fosse um rádio ambulante. Jimmy e
Kevin, mais impacientes, se afastaram e começaram a explorar o
lugar sozinhos. Logo o grupo todo acompanharia as explicações
62
FERNANDA CAMPAGNUCCI
do guia, que tinha um crachá oficial da Autoridade Palestina e se
chamava Abed:
“A Igreja da Natividade é a primeira igreja dos cristãos. Foi
construída pelo imperador Constantino no século IV, e completamente destruída na revolta samaritana do ano 529. Depois, foi reconstruída no mesmo local durante o reino de Justiniano, desta
vez com uma ampla basílica que incorporou partes da edificação
original, que foi sofrendo alterações ao longo dos séculos e hoje
tem 12 mil m²” – Abed despejava as palavras decoradas e cansadas, em inglês.
Andamos por entre as colunas da igreja, que não estava muito
cheia – pelo menos não na parte de cima. Descendo um lance de
escadas estreitas, chegamos à parte de baixo, a gruta, onde um altar
foi eregido no local exato em que Jesus teria nascido. Ali, sim, muitas pessoas oravam e empunhavam suas máquinas fotográficas –
apesar das recomendações de que não tirássemos fotos ali embaixo.
Uma estrela dourada de 14 pontas, desenhada no chão de mármore, indica o ponto exato do nascimento – contestado por alguns
historiadores, lembra Abed. A estrela é cercada por castiçais de prata. Um padre rezava uma missa enquanto dávamos passagem a uma
senhora que passava mal por causa do calor.
A basílica é administrada conjuntamente pelas Igrejas Grega
Ortodoxa, Apostólica Armênia e a Católica Romana, mas também
é sagrada para o Islã. Cada uma cuida de uma parte, literalmente. De volta à parte de cima, falando baixo por causa de uma
missa que agora acontecia ali, Abed apontou para os vidros que-
63
O OUTRO LADO DO MURO
brados de algumas janelas, no alto da igreja, e explicou que estavam assim desde 2002.
“Naquele ano, o Exército israelense cercou a Igreja da Natividade e provocou alguns estragos, como aquela janela quebrada. Até
hoje, o vidro nunca foi consertado porque não se sabe ao certo a
qual das três Igrejas cabe a administração daquela parte. É uma burocracia”, disse.
Nesse momento, Abed olhou para o pulso de Vanesa, que usava uma pulseira de miçangas verdes, vermelhas, pretas e brancas,
como a bandeira palestina. Senti que o tom de Abed mudou. Saiu
do piloto automático.
“Vocês conhecem a história do cerco à Igreja, em 2002?” – perguntou Abed.
Diante do silêncio, ele continuou, agora com mais entusiasmo.
“No dia primeiro de abril daquele ano, o Exército israelense invadiu
a cidade de Belém. Ariel Sharon, então primeiro-ministro de Israel,
declarou que a operação visava acabar com a “infraestrutura terrorista”. Tanques cercaram a cidade e cerca de 50 militantes palestinos
refugiaram-se na Igreja, com o apoio dos padres, que decidiram ficar junto com eles – ao contrário do que se dizia à época. Os religiosos davam comida aos palestinos, mas, em pouco tempo, os mantimentos acabaram. Não se podia colocar o pé para fora da Igreja, já
que soldados posicionavam-se por toda parte com snipers”.
Segundo Abed, nove palestinos morreram, baleados ao tentar
buscar comida. Não foram socorridos, nem seus corpos foram retirados. O tocador de sinos também foi assassinado e um monge
64
FERNANDA CAMPAGNUCCI
morreu durante uma troca de tiros, no dia 10 de abril. O Exército
assumiu a responsabilidade, mas afirmou que ele “parecia armado”.
A essa altura, o papa João Paulo II já havia declarado que ia rezar
pelos que estavam dentro da Igreja e, em 12 de abril, a ordem dos
franciscanos pediu que Israel deixasse as pessoas saírem – apelo
reforçado pelos gregos ortodoxos, dias depois.
No dia 17 de abril, dois turistas japoneses entraram inadvertidamente no local, pois fazia seis meses que estavam viajando, sem
acesso à mídia, e nada sabiam sobre o cerco à igreja. Eles foram socorridos pelos jornalistas e saíram ilesos do local. No dia 2 de maio,
um grupo de ativistas internacionais desafiou o Exército israelense
e conseguiu entrar na Igreja para levar mantimentos. Ao retornar,
os ativistas contaram aos jornalistas histórias horríveis sobre as
condições de lá. Enquanto isso, as negociações para o fim do cerco
pareciam não ter fim. Uma das propostas era a de que os treze militantes palestinos “procurados” fossem mandados para a Itália, mas o
país se recusou a recebê-los. O Chipre aceitou abrigá-los até a decisão
sobre seu destino, no dia 9 de maio. O cerco durou aproximadamente
cinco semanas e acabou no dia 10 de maio, quando os militantes saíram sob a proteção de observadores da União Europeia.
Abed nos informou que recebia um salário da Autoridade Palestina e portanto não precisávamos pagá-lo. Ele disse, porém, que
desde a Intifada, em 2001, o número de visitas guiadas caiu muito.
Se antes fazia cerca de 25 visitas por dia, hoje não faz mais do que
seis por semana. Saímos com Abed e ele nos levou até uma loja de
lembranças e artesanato em madeira, que era de sua mãe.
65
O OUTRO LADO DO MURO
“Querem uma limonada fresca”?, perguntou Abed, já nos apresentando à sua mãe. “Tomem, sem compromisso. Essa é nossa hospitalidade”, disse.
Depois de ouvirem tanto sobre a dificuldade daqueles que vivem
do turismo em Belém, Kevin e Vanesa pareciam ter se sensibilizado e
procuraram algo para comprar. Kevin gostou de uma peça de madeira,
mas achou muito cara. Acabou levando uma outra bem menor.
Abed perguntou de onde vínhamos e abriu um sorriso – o primeiro até aquele momento – quando me ouviu falar do Brasil. Desatou a
contar sobre um primo que já tinha vivido lá, e que falava muito bem
do país. Disse que tinha muita vontade de conhecer, e passou a me oferecer presentes da loja ou descontos. Recusei timidamente.
Afinal, nos despedimos de Abed e de sua mãe, desejando-lhes
boa sorte. Na rua, um senhor bem velhinho se aproximou com dificuldade de Jimmy, oferecendo-lhe selos.
“Eu não quero. Mas ela, sim, adora selos”, disse Jimmy, esquivando-se do vendedor e apontando para mim, com um sorriso de
quem faz uma molecagem. Não gostei da brincadeira. Ouvi o que o
senhor tinha a dizer – claro que o preço dos selos era absurdo – mas
recusei a oferta, com o coração partido.
Mais à frente, um garoto correu até nós e pediu esmola.
“One shekel! One shekel, please!”
Um homem que estava sentado em frente à porta de uma casa
veio atrás dele, e o puxou com um beliscão no braço.
“Você não tem vergonha? Onde já se viu pedir esmolas? Você
envergonha nosso povo!”
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Já não queria ver mais nada de Belém, bastavam-me aquelas
duas cenas. Uma economia arrasada pela política de ocupação e
um povo que não sabe de onde tirar seu sustento. Mas, assim como
não quer se curvar diante dos tanques, também rechaça a esmola
dos turistas que, como eu, nada têm a fazer diante daquele quadro.
*
Almoçamos num restaurante simples que encontramos pelo
meio do caminho. Os donos nos receberam com surpresa e correram para preparar o que pedimos – falafel, hummus, o de sempre.
Curiosamente, na hora de pagar a conta, tive a impressão de que
eles inventaram o valor (pedimos pratos iguais, mas cada um tinha
um preço). E, mais curiosamente ainda, o meu era mais alto do que
o dos escoceses. Não era tão caro – o equivalente a uns 9 dólares
– mas o meu dinheiro estava contado. E eu não podia pagar mais
que os gringos, for Christ’s sake! Meus companheiros de viagem estranharam quando eu reclamei por tão pouco, dizendo que, para
aquela família, era uma ajuda justa – e para nós aquele valor não
faria diferença.
“Sou brasileira e estudante, meus amigos, meu dinheiro vale
menos que o de vocês”, respondi. Kevin tentou argumentar com o
dono, que fechou a cara. Acabou desistindo e concluiu que foi um
erro. Eles ratearam a diferença e acabamos desembolsando todos o
mesmo valor. Seguimos para nosso próximo encontro, o escritório
do Centro de Informação Alternativa de Belém.
67
O OUTRO LADO DO MURO
Já eram quase cinco da tarde e todos estavam visivelmente
cansados. Fomos recebidos pelo coordenador do AIC na Palestina,
Ahmad Jaradat. Ele nos levou a uma sala com almofadas no chão e
os escoceses desabaram ali mesmo. Várias vezes vi Kevin e Jimmy
dormindo, enquanto Ahmad falava. Sofiah estava mais atenta e
anotava algumas respostas de Ahmad em um bloco. Ela fez perguntas sobre financiamento, relação com grupos árabes e atividades da
AIC. Algumas pausas constrangedoras permearam a conversa.
“Traga-nos um café, por favor”, pediu Ahmad a um rapaz que
entrou na sala.
O jovem voltou com uma bandeja, minutos depois. Ahmad
convidou-o a ficar.
“Esse aqui é nosso coordenador do Programa da Juventude,
que trabalha com garotos e garotas para a paz”, explicou Ahmad.
Ele esteve preso por dois anos, pela terceira vez. Acabou de sair
da prisão”.
“E como é a situação na prisão? Você não está sofrendo preconceitos ou dificuldades de readaptação por já ter sido preso?”
Ahmad deu uma risada sarcástica.
“Ele é só mais um dos 800 mil palestinos que foram presos,
desde 1967. Excluindo as mulheres e as crianças, todos aqui já foram presos um dia. Difícil encontrar uma família na qual ninguém
esteja passando ou já tenha passado por essa situação”, disse.
Na dúvida, fiz o teste. Nos dias que se seguiram, descobri que
todo palestino – pelo menos todos os que conheci e entrevistei –
tem alguma história para contar de um parente próximo ou distan-
68
FERNANDA CAMPAGNUCCI
14
te que tenha sido preso . Certas histórias, porém, eram pessoais e
terríveis, como a de Sana, que acabara de ser libertada e me contou
como era o inferno da prisão, ou a de Raouia, que passou quatro de
seus 23 anos presa, acusada de desacato – histórias que eu ouviria
nos próximos dez dias.
14. Em setembro de 2008, o Parlamento Europeu adotou uma resolução sobre os prisioneiros palestinos. O texto foi assinado por diferentes grupos políticos – Socialistas, Liberais, Verdes e o grupo GUE/
NGL – e aprovado por 416 votos. A resolução apela às autoridades israelenses para que respeitem as
normas mínimas de detenção e tratem humanamente os 11 mil presos (dos quais aproximadamente
385 são crianças). Além disso, os parlamentares europeus pedem que todos os prisioneiros sejam levados à Justiça e que se garanta o direito de visita. Atualmente, 48 membros do Conselho Legislativo
Palestino estão presos.
69
“Balance a cabeça e diga la, la”
SÁBADO, 14 DE JULHO DE 2007
T
irei a manhã para explorar a cidade velha. O filho do dono
do Hotel Hebron, Ahmad, estava em frente a uma lojinha de
lembranças. Ele me viu na rua e acenou:
“Está perdida? Vem aqui na minha loja, vou te dar um presente!”
Ahmad pediu que eu escolhesse qualquer coisa entre os brincos, pulseiras, pingentes e outros badulaques, mas não quis aceitar.
Como ele insistiu, fiquei com dois cartões postais de Jerusalém, já
empoeirados. Os dois traziam o Domo do Rochedo e sua cúpula
dourada, ao centro.
O Domo e a mesquita de Al-Aqsa ficam na esplanada das
mesquitas, na cidade velha, desde o século VII. Ou no Monte do
Templo, para os cristãos. Ou no Monte da Casa [de Deus], para os
judeus. É um lugar santo para as três religiões. Para os judeus, porque, segundo o Talmud, foi de lá que Deus tirou o barro para criar
Adão. E foi lá que Adão, Noé, Caim e Abel fizeram seus sacrifícios.
A tradição judaica diz que Abrahão provou, ali, a sua fé, oferecendo
seu filho em sacrifício. O rei Salomão construiu sobre aquelas terras
71
O OUTRO LADO DO MURO
o chamado “Primeiro Templo”, em 950 a.C – destruído por Nabucodonosor II, em 586 a.C, data que marca o exílio dos judeus na
Babilônia. O “Segundo Templo”, reconstruído após a volta do exílio,
foi novamente destruído no ano 70 d.C, mas o muro da parte oeste
resistiu. É hoje conhecido como Muro das Lamentações, importante local de oração do judaísmo.
O sítio é sagrado para os árabes, que também contam no Corão
a história do sacrifício do filho primogênito do patriarca Abrahão.
Para os muçulmanos, o monte é, sobretudo, o lugar onde o profeta
Maomé subiu ao paraíso.
Eu já estava na rua, mas Ahmad me chamou e me trouxe, ainda,
um mapa turístico da cidade velha. Ele abriu o mapa e começou a me
explicar como eu poderia chegar à mesquita Al Aqsa, quando um senhor judeu (reparei nos peyot, cachos de cabelo ao lado das orelhas)
parou ao nosso lado e perguntou, de cima de seu carrinho motorizado:
“Ei, você é judia? Não fale com um árabe, eu posso te ajudar!”
“Obrigada, pode ajudar, sim, mas não sou judia”.
Ele disparou novamente com seu carrinho, sem dizer nada.
Notei vários desses veículos, por ali. Serviam para levar algum
tipo de carga – alguns deles eram para recolher lixo. Andavam rápido demais, considerando a pouca largura das ruas e a quantidade
de gente que circulava por ali. Várias vezes pensei que seria atropelada por uma daquelas engenhocas, mas acabei me acostumando a
elas, como todo mundo.
Cheguei à mesquita de Al Aqsa. Uma mulher com uniforme
militar israelense e M-16 na mão surgiu como uma muralha na mi-
72
FERNANDA CAMPAGNUCCI
nha frente. Falou alguma coisa em hebraico (ou seria em árabe?),
que não entendi. Depois disse, em inglês:
“Para entrar, você deve recitar uma surata do Corão”.
“Hein?”
“Um verso, para provar que é muçulmana”.
“Mas eu não sou muçulmana”.
“Então não pode entrar”.
Essa é boa. Um soldado israelense controla a entrada da esplanada das mesquitas.
“Volte outro dia. A mesquita só é aberta para turistas em alguns horários especiais”.
Mais tarde, uma jovem francesa me contaria que não gostara nada do controle, mas, naquele mesmo dia, tinha conseguido
entrar – não sem antes “provar” que era muçulmana, recitando
algumas frases do livro sagrado do Islã, sob os olhos desconfiados do soldado.
Continuei minha visita pela cidade e fui conhecendo cada um
dos bairros – o que não é difícil, já que a cidade murada é tão pequena. Todas as placas com os nomes das ruas estavam escritas em
hebraico, árabe e no alfabeto latino. Na parte armênia e judia, porém, notei que as placas estavam quase todas pichadas com spray,
de maneira a cobrir a tradução árabe.
Parei em uma das lojas mais afastadas do centro, e, consequentemente, mais isoladas. Perguntei o preço de um keffieh, lenço
palestino tradicional, preto e branco. O vendedor olhou bem para
mim e disparou:
73
O OUTRO LADO DO MURO
15
“Trezentos shekels ”.
“Oh, não, obrigada. Está muito caro!”, disse, com uma risada
de quem acabou de ouvir uma piada. Aquele lenço não passa de 50
shekels, se muito.
“Mas esse é original! Esses que você viu por aí são imitações, chinesas”!
Pedi para olhar mais de perto o lenço e não consegui notar nenhuma diferença do que ele chamava de imitação chinesa. De fato,
em Lyon, antes de viajar para Israel, eu já tinha visto vários tipos de
keffieh à venda, em uma banca de jovens militantes pró-palestina.
Um bonito selo dourado dizia que eram fabricados na Síria, e os rapazes, descendentes de palestinos, garantiam que eram legítimos –
e custavam 9 dólares. Aliás, os mesmos garotos me recomendaram
que eu comprasse os lenços na Palestina mesmo, quando viajasse,
pois eu pagaria bem menos por eles.
O uso do keffieh popularizou-se desde os anos 1980, pelo menos, entre os jovens europeus – quer saibam ou não onde fica a
Palestina – que os enrolam no pescoço, como cachecóis. Recentemente, entraram para o circuito da moda. Alguns jovens em São
Paulo também aderiram aos lenços, que chegam a custar absurdos
R$ 200 em lojas de grife. Por ironia, ao mesmo tempo em que se
espalham pelo mundo, os lenços originais estão desaparecendo na
Palestina, por causa da concorrência de produtos têxteis chineses e
da crise econômica causada pela ocupação israelense. Não encon-
15. Um shekel equivale a, aproximadamente, 25 centavos de dólar. O lenço custaria, portanto, cerca
de 75 dólares.
74
FERNANDA CAMPAGNUCCI
trei bons lenços em Jerusalém, ao contrário do que me disseram.
Nem em Nablus, tradicional produtora dos lenços. A típica peça do
vestuário palestino – a legítima, não a cópia made in China – está
com os dias contados.
Em fevereiro de 2008 o jornal francês Le Monde – em reportagem assinada pelo jornalista Benjamin Barthe – publicou a história
da última fábrica de keffieh na Palestina. O ateliê de Yasser Hirbawi
fica em Hebron, no sul da Cisjordânia e funciona há 45 anos. Das
quinze máquinas que Yasser importou do Japão, no começo dos
anos 1960, somente quatro estão em atividade. As outras máquinas
pararam há cinco anos, por falta de pedidos.
Yasser, hoje com 78 anos, lamenta os tempos difíceis e
lembra que a fábrica de sua família já chegou a produzir quase
150 mil unidades por ano. O movimento era grande em épocas
como a primeira Intifada, quando todo jovem que atirasse pedras contra tanques israelenses tinha que ter o rosto coberto por
um desses lenços. O keffieh era, ainda, inseparável da figura do
líder Yasser Arafat. E, por fim, o boom do turismo à Terra Santa,
nos anos 1990, engendrou os últimos movimentos dos teares de
Yasser Hirbawi.
Ainda segundo o Le Monde, a crise começou por volta dos
anos 2000, com o crescimento acelerado da economia chinesa, a
desregulação cada vez maior do comércio e o início da segunda Intifada. Os keffieh “made in Palestine” também foram prejudicados
pelos checkpoints do Exército israelense que bloqueavam as entregas de encomendas.
75
O OUTRO LADO DO MURO
Tareq Souss, líder da Federação das Indústrias de Vestuário
Palestinas, reclama que o governo da Autoridade Palestina não tem
controle algum sobre as fronteiras e, assim, não foi capaz de barrar
os produtos chineses.
“Até mesmo os cachecóis com o rosto de Arafat e que traziam a
inscrição ‘Jerusalém é Nossa’ distribuídos pela Fatah em seu aniversário no começo do ano, vieram da China”, reclama Izzat Hirbawi,
filho de Yasser, na reportagem de Benjamin Barthe.
Mas, disso, eu só soube depois. Naquele dia, na cidade velha, tive que declinar a oferta de 300 shekels do vendedor que
me garantia um keffieh original (não era, definitivamente), mas
não pude recusar o chá com folhas de menta que ele me trouxe,
“sem compromisso”.
*
No fim da tarde, num restaurante árabe próximo ao portal de
Jaffa, uma das entradas da cidade velha, encontrei os estudantes –
franceses, belgas, suíços, italianos e espanhóis – que fariam a viagem às cidades da Cisjordânia. Durante a reunião, eles leram um
longo e-mail de Omar, dirigente do movimento estudantil palestino
(GUPS – União Geral dos Estudantes Palestinos), que havia sido
barrado na Jordânia quando tentava chegar ao território ocupado.
Segundo o governo de Israel, ele era uma ameaça à segurança nacional (israelense). Na mensagem, Omar pedia que continuassem
sem ele, prometendo acompanhar, desde Amã, todos os passos do
76
FERNANDA CAMPAGNUCCI
grupo. Ele lamentava que não veria mais seus avós, já que certamente não conseguiria entrar no país nos próximos dez anos.
Durante o encontro, o franco-palestino Taher recebeu um telefonema. Levantou-se e esperou o grupo silenciar:
“Acabaram de me avisar que a a Universidade de Beir Zeit
[uma importante universidade palestina, que fica na cidade de
Rammallah] foi fechada depois de confrontos entre partidários do
Hamas e do Fatah. Alguns estudantes ficaram gravemente feridos”.
O grupo continuou em silêncio. Uma menina morena de olhos
verdes, que pouco antes me contava alegremente que era filha de
um brasileiro (mas não falava uma palavra de português), comentou qualquer coisa em voz baixa com a amiga suíça loira, de bata
bordada e óculos escuros. A apreensão durou poucos instantes.
Logo os organizadores da viagem começaram a anunciar o roteiro
do dia seguinte e todos desataram a falar juntos novamente.
*
À noite, Ahmad insistiu para que eu o acompanhasse em
uma partida de xadrez, no albergue. Pedi que ele me ensinasse
algumas palavras em árabe, as essenciais, como Gilad havia feito, com o hebraico.
“Minfadlak é para dizer por favor. As mulheres dizem Minfadlaki, com esse ‘i’ no final. Para dizer obrigada, shukram. Não há
de quê: hafuon. Já ‘não’ é fácil, é la. E para se despedir, pode dizer
bye, mesmo!”, explicou Ahmad. “Ah! E não se esqueça. A garotada
77
O OUTRO LADO DO MURO
na Cisjordânia e aqui em Jerusalém costuma testar os estrangeiros,
para descobrir se são judeus israelenses. Se correrem até você e disserem shalom, balance a cabeça e diga la, la”.
78
“Essa é uma questão estúpida”
DOMINGO, 15 DE JULHO DE 2007
U
m tour pelos arredores de Jerusalém já é suficiente para explicar melhor como a Palestina está dividida em bantustões.
A marca da ocupação são os numerosos postos de controle, muros,
barreiras, grandes colônias e diferentes divisões administrativas, tanto na Cisjordânia como na parte oriental de Jerusalém. Com os olhos
no mapa, dá para se ter uma ideia de porque os acordos de paz estão
longe de chegar a um consenso enquanto esse sistema persistir.
Todo esse aparato é chamado de “Matriz de Controle” pelo antropólogo Jeff Halper, do Comitê Israelense contra a Demolição de
Casas. É um sistema projetado para permitir a Israel o controle de
cada aspecto da vida dos palestinos nos territórios ocupados, ao
mesmo tempo em que diminui o perfil militar do Estado e deixa a
impressão aos que estão de fora de que a ocupação a que os palestinos se referem é meramente administrativa.
A Matriz de controle, segundo Halper, opera de modo a tornar a
ocupação virtualmente invisível. O governo militar de Israel nos territórios ocupados é chamado, por exemplo, de “Administração Civil”,
79
O OUTRO LADO DO MURO
mesmo que seja chefiada por um coronel subordinado ao Ministério
da Defesa. Os mecanismos ativos da Matriz são diversos: ações militares diretas, incluindo ataques a centros da população civil e à infraestrutura palestina; detenções administrativas, prisões, julgamento
e tortura; e “ordens” do comando militar da Cisjordânia e Gaza (cerca
de 2000 desde 1967), somadas às políticas da Administração Civil, que
substitui toda a legislação local e aumenta o controle político de Israel.
Outros mecanismos decorrem da política de Israel de criar “fatos consumados”, e todos eles violam o Direito Internacional, ainda
de acordo com Halper: expropriação massiva de terras palestinas;
construção de mais de 200 colônias e transferência de mais de 400
mil israelenses para além das fronteiras de 1967: cerca de 200 mil
na Cisjordânia e outros 200 mil em Jerusalém oriental.
Outro mecanismo de controle e fragmentação: a divisão dos
territórios em áreas “A”, “B”, “C” e “D” na Cisjordânia; “H-1” e “H2” em Hebron; Amarelo, Verde, Azul e Branca em Gaza; reservas
naturais; áreas militares fechadas, zonas de segurança e restrição de
construção de casas em mais da metade da área palestina de Jerusalém oriental – o que confina os palestinos em cerca de 190 ilhas
cercadas de colônias israelenses, rodovias e checkpoints.
As colônias são ligadas por rodovias que, além de exclusivas
para a passagem dos colonos, criam barreiras entre áreas palestinas.
Aliás, o controle severo de movimento dos palestinos é outro aspecto da Matriz. As colônias, cuja expansão dizem estar congelada,
continuam aumentando nos largos terrenos que possuem – o que
chamam de “crescimento natural”.
80
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Jeff Halper destaca ainda a construção de sete parques industriais que estimulam a economia das colônias isoladas e explora
mão de obra barata dos palestinos – enquanto estes estão impedidos de entrar em Israel para trabalhar desde 1993. Além da possibilidade que Israel tem de continuar despejando seu lixo industrial
na Cisjordânia.
O controle de aquíferos e outras fontes de recursos naturais e a
exploração de locais sagrados – como o túmulo de Raquel em Belém, o Túmulo dos Patriarcas em Hebron –, que trazem benefícios
econômicos a Israel, também acontece com o pretexto de garantia
da segurança.
Restrições de plantio e venda de lavouras, assim como a destruição de centenas de milhares de oliveiras desde 1967 e o emprego de licenças e inspeções no comércio palestino são, ainda, outras
formas de controle.
“A isso tudo deve ser adicionado, claro, os custos psicológicos
da vida sob ocupação: perdas de vidas, emprisionamentos, tortura,
assédio, humilhação, raiva e frustração, assim como traumas sofridos por dezenas de milhares de palestinos (especialmente crianças)
que testemunharam a demolição de suas casas, viram seus amados
apanharem ou serem humilhados, sofreram com habitações inadequadas e com a falta de oportunidades para realizar seus potenciais”, afirma Halper, que é judeu americano imigrado para Israel.
“Essas feridas vão levar gerações para serem curadas”.
Para o antropólogo, o único caminho para a paz é o desmantelamento dessa Matriz. “Israel adora dizer que foi generoso com os
81
O OUTRO LADO DO MURO
palestinos com os Acordos de Oslo, que ofereceu 95% do território,
e que os palestinos é que atrapalharam o processo de paz ao não
aceitar tão generosa oferta – a ‘melhor’ até então”, diz Halper. “O
problema é que os 5% restantes, que compõem essa Matriz de Con16
trole, inviabilizariam qualquer mini-estado Palestino” .
*
Na parte da tarde, visitamos um centro social em Jerusalém
que lida com crianças em dificuldades – algumas delas dependentes de drogas. A sede da ONG está ameaçada de demolição, pois
dizem que eles não têm permissão para atuar.
Enquanto conversávamos com Yasser, que trabalha na ONG
“clandestina”, as crianças corriam e, na falta de pipas, empinavam
sacolas plásticas em frente a uma vista incrível da cidade.
“Estamos enfrentando problemas com a nossa juventude que está
cada vez mais envolvida com drogas. Os soldados israelenses que fazem o policiamento da região de Jerusalém oriental não se importam
com isso, fazem vistas grossas e querem mais é que eles se afundem
nessa tragédia”, disse Yasser. “Não há nenhuma instituição na Palestina
que cuide desse problema do tráfico e consumo de drogas”.
A ONG de Yasser pediu financiamento aos EUA e à União Europeia, mas esbarrou em dois problemas:
“Primeiro, ninguém está interessado em enfrentar esse assunto
tabu. Depois, os envolvidos não podem ter relação com uma exten16. HALPER, Jeff. “The key to peace: dismantling the Matrix of Control”. Disponível no site www.icahd.org
82
FERNANDA CAMPAGNUCCI
sa lista de pessoas ligadas ao terrorismo que eles consultam. Qualquer um que já tenha sido preso ou tenha um parente acusado de
envolvimento com terroristas ou organizações políticas é impedido
de receber financiamento”, explicou Yasser.
“Você já foi preso?”, perguntei.
“Essa é uma questão estúpida”, disse Yasser, num sarcasmo
seco. “Sim, já fui”.
A intensa atividade de ONGs na Palestina me fascinou e me
preocupou, ao mesmo tempo. Se, por um lado, é interessante ver
essa rede associativa em ação contra os problemas causados pela
ocupação, não sei até que ponto a dependência da ajuda externa
não prejudica a comunidade Palestina. Ficam algumas perguntas
sem resposta:
* A definição das prioridades dos palestinos e suas necessidades básicas podem ser definidas por esta ou aquela organização internacional?
* Essas despesas de educação, saúde e assistência social não
deveriam ser de responsabilidade de Israel, que ocupa os territórios
desde 1967 – e que, desde então, cuida da administração civil dos
territórios? A comunidade internacional, alegando o sofrimento
dos palestinos, não tira de Israel a responsabilidade de pagar pelo
custo dessa ocupação?
* O dinheiro é sempre bem gasto? Não dá margem à corrupção?
* Os salários pagos pelas ONGs internacionais são cerca de três
vezes mais altos que os pagos aos funcionários públicos pela Au-
83
O OUTRO LADO DO MURO
toridade Palestina. Isso não priva a administração pública de seus
17
melhores quadros ?
Enquanto saíamos, as crianças nos rodearam e pediram, sorrindo, todas ao mesmo tempo:
“Um shekel! Meio shekel! Por favor”!
17. Reflexões como essa são levantadas no relato de viagem da jornalista Anne Brunswic, em seu livro
Bienvenue em Palestine.
84
Awdah
SEGUNDA-FEIRA, 16 DE JULHO DE 2007
D
epois de três dias de viagem, a palavra Nakba ganhou sentido para mim. É um fantasma que paira sobre as cidades
israelenses – e também sobre os campos de refugiados. O termo,
em árabe, quer dizer “a tragédia” e se refere à criação do Estado de
Israel, em 1948, quando muitas cidades foram destruídas e 60% da
população palestina virou um povo exilado. O sonho do retorno
entre os palestinos é tão forte que algumas pessoas ainda guardam
as chaves da antiga casa e os documentos que provam a sua possessão desde a época do Império Otomano.
A questão do retorno dos palestinos é central em qualquer discussão e negociação pela paz. Até pouco tempo atrás, dizia-se que
os cerca de 800 mil palestinos exilados tinham saído voluntariamente em obediência a ordens dos países árabes, que deflagaram
guerra contra o recém-declarado Estado de Israel. Era uma tese
comumente aceita entre os historiadores – principalmente entre os
18
israelenses. Mas os chamados “novos historiadores” israelenses
18. Os novos historiadores, também chamados de revisionistas, questionaram seriamente a interpre-
85
O OUTRO LADO DO MURO
contestaram essa afirmação. O mais influente deles foi Benny Morris – correspondente diplomático do Jerusalém Post que se doutorou na Universidade de Cambridge. Ele se dedicou a um trabalho
minucioso sobre o nascimento do “problema” dos refugiados e os
massacres de 1948, que deram origem à Nakba palestina.
O plano para partilha da Palestina (Resolução 181) já tinha sido
anunciado para pacificar a região: pôr fim às revoltas dos árabes, insatisfeitos com a crescente imigração sionista e a compra massiva de terras, e
dos judeus, que se rebelavam contra o mandato britânico e as restrições
à imigração. A partilha era apoiada pelas duas potências, EUA e Rússia,
assim como pelos membros da UNSCOP (Comitê especial das Nações
Unidas sobre a Palestina), que apresentaram suas recomendações à Assembleia Geral da ONU. Foi necessária uma pressão considerável de
organizações de judeus americanos e da diplomacia americana, além de
um discurso forte do embaixador russo na ONU, para que o plano fosse
aceito pela maioria de dois terços da Assembleia Geral.
A expulsão de palestinos começou naquele momento, doze
dias após a partilha. Um mês mais tarde foi arrasada a primeira
aldeia palestina. Mas, depois, em março de 1948, a ação se trans19
formou em uma operação de limpeza étnica , o que fez com que a
20
Palestina perdesse grande parte de sua população nativa .
tação tradicional da guerra de 1948 e foram assim qualificados em contraposição à geração anterior nos
primeiros anos de Israel.
19. De acordo com a definição oficial das Nações Unidas, limpeza étnica é “tornar uma área etnicamente homogênea utilizando-se de força ou intimidação para remover de determinada área pessoas de
outro grupo étnico ou religioso”
20. PAPPE, Ilan. História da Palestina Moderna, p. 164.
86
FERNANDA CAMPAGNUCCI
A empreitada sionista pretendia criar, na Palestina, um Estado
judaico que “pertencesse” ao povo judeu. A maioria demográfica
era, portanto, condição sine qua non para a constituição desse país
– como ainda acontece hoje. Assim, a chamada “transferência compulsória” da população árabe no nascente Estado fazia parte da ideologia do sionismo, sobretudo porque o plano de partilha da ONU
21
não contemplava uma maioria judaica estável.
O judeu americano Norman Finkelstein, filho de sobreviventes
de campos de concentração, se vale do levantamento e das provas
do próprio Morris para concluir que os árabes da Palestina foram
22
expulsos de forma sistemática e premeditada . De acordo com
Finkelstein, “praticamente todos os assentamentos árabes foram
abandonados por causa do perigo de destruição ou massacre”.
A declaração do Estado de Israel, ainda segundo Finkelstein, foi decisiva para a intensificação da política de expulsão.
Se antes as lideranças sionistas eram sensíveis às pressões internacionais, por medo de que o plano de partilha fosse alterado,
após maio de 1948 a nova realidade diplomática permitiu a implementação de uma política implacável de expulsão. Criado em
23
março e aplicado a partir de abril, o chamado Plano Dalet foi o
21. FINKELSTEIN, Norman G. Imagem e Realidade no conflito Israel-Palestina, p. 163.
22. Ibid., p. 121
23. A essência do Plano Dalet “era o afastamento das forças hostis e potencialmente hostis do interior daquele que viria a ser o território do Estado judaico (...) Como os combatentes árabes irregulares
estavam baseados e aquartelados nas aldeias, e como as milícias de muitas aldeias participavam de
hostilidades contra o Yishuv, a Haganah considerava a maioria das aldeias como ativa ou potencialmente
hostis”. MORRIS, Benny. Birth of the Palestinian Refugee Problem, p. 113,128-9.
87
O OUTRO LADO DO MURO
o sustentáculo das expulsões, massacres e destruição de vilarejos
palestinos que vieram a seguir.
Israel implementou, portanto, uma série de medidas e procedimentos para tentar criar um Estado puramente judeu, começando
pela expulsão dos palestinos em 1948: 90% da população árabe foi
expulsa do território designado como Estado judeu; a demolição
de mais de 530 vilarejos árabes; confisco massivo de terra árabe e a
criação de mais de 700 colônias, com o objetivo de absorver novos
imigrantes judeus. Cerca de 160 mil árabes, no entanto, continuaram dentro das fronteiras do que hoje é o Estado de Israel, e atualmente a população árabe israelense representa 19,7% da população
24
total, aproximadamente 1,4 milhão de pessoas .
Entre as cidades que sofreram saques e massacres, estão Lod e
Ramla, hoje em Israel. O distrito formado pelas duas cidades estava
fora do plano de partilha da ONU. Hoje são parte de Israel, graças
ao esforço das lideranças sionistas, empreendido entre agosto e dezembro de 1948, de criar colônias sionistas fora das fronteiras. E
foi nessas cidades que percebi como a Nakba continua presente no
cotidiano dos moradores.
Quando cheguei ao centro de Lod, deparei-me com uma feira
livre – poucas barracas de frutas, ervas e utensílios domésticos. Essa
era uma das principais cidades da antiga Palestina, e chegou a ser
sua capital econômica. Hoje só restam os escombros das mansões
otomanas e mamelucas, e fica difícil reconstituir a imagem próspe-
24. Dados
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de dezembro de 2006 do Escritório Central de Estatísticas
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de Israel. Disponível no site: http://
www.cbs.gov.il
88
FERNANDA CAMPAGNUCCI
ra que tentaram me descrever. Em Lod, árabes cristãos e muçulmanos conviviam entre igrejas e mesquitas.
Troquei algumas palavras em inglês com o dono de um bar,
que puxou conversa quando me viu olhar – com, digamos, especial
atenção – um jogo de futebol Brasil x Argentina que passava na
televisão. No meio da conversa, ele me estendeu um jornal árabe e
disse que a edição daquela semana contava o que aconteceu ali há
59 anos. O título, Lod e Ramla: uma história de mortes. Com seus
35 anos, ele cresceu ouvindo esse caso: ao lado do bar, havia uma
mesquita, que ficou fechada por muitos anos e fora reaberta alguns
anos antes. Os habitantes afirmam ter havido ali um massacre de
250 árabes. A condição imposta pela administração israelense para
reabri-la, ele me contou, foi limpar as paredes que guardaram as
marcas de sangue e nunca mais falar sobre isso.
“Limparam, mas não esqueceram”, disse.
Uma cidade vizinha foi rebatizada com o nome da milícia que
causou a tragédia – Beitar.
Uma mulher de uns 40 anos, bem magra, cabelos tingidos
de ruivo e óculos de sol, apresentou-se ao nosso grupo de estudantes. Hurya Al-Saadi era uma voluntária da associação “Lembrança da Nakba”, uma organização local, e nos fez uma espécie
de “visita guiada”, para mostrar os traços de 1948 deixados ali.
Fizemos uma caminhada até um antigo bairro árabe-cristão e
ela parou diante de ruínas de um prédio antigo. Ainda se viam
alguns arcos da construção otomana, com pedras claras. O mato
crescia ali dentro.
89
O OUTRO LADO DO MURO
“Esta era uma mansão mameluca, que servira como hospedaria no começo do século XIX. Aqui, ao lado, funcionava uma fábrica de azeite”.
Entramos na casa e algumas crianças, que começaram a acompanhar nossa caminhada, rodearam as máquinas e utensílios da
fábrica abandonada.
“Se não está pior, é porque uns estudantes fizeram um mutirão de limpeza, na semana passada”, disse. “Todos os pedidos
feitos à administração israelense para restaurar e proteger o sítio
foram ignorados. O que se comenta por aqui é que, se a construção tivesse algum símbolo judeu, seria rapidamente cercado,
limpo, protegido”.
“Vinte e cinco mil pessoas moravam aqui antes de 1948, entre
árabes cristãos e muçulmanos e até alguns judeus. Todos viviam
25
em paz. Tanto é que, quando começaram os ataques , cristãos se
refugiaram em mesquitas e muçulmanos em igrejas. As milícias israelenses não faziam distinção entre eles”, continuou Hurya.
Hoje, há apenas 150 árabes naquela vizinhança. Sara contou
que são discriminados e os prédios em que vivem, desvalorizados.
Aos poucos, a população judia também foi abandonando o local, e
o Estado ficou cada vez mais ausente – ao menos em termos de serviços públicos. Somente os judeus mais pobres, operários que não
podem pagar aluguéis caros, ainda vivem ali. É um bairro industrial
e poluído, onde ninguém quer morar.
25. Em Lod, segundo Finkelstein, entre 200 e 450 palestinos foram mortos no massacre, e é possível que
outros 350 tenham morrido na marcha forçada que se seguiu. FINKELSTEIN, Norman G. Op. cit., p. 122.
90
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Há uma vontade das autoridades de apagar qualquer traço
palestino, por isso eles se omitem quando pedimos para preservar
alguns sítios históricos. Eles querem apagar da História tudo o que
lembra que um outro povo vivia ali antes de 1948”, disse Hurya,
fazendo um gesto para continuarmos a caminhada.
Alguns quarteirões depois, mudamos de bairro. Mas parece
que mudamos de mundo. No lugar da terra revirada e da falta de
asfalto, do lixo nas ruas, do esgoto a céu aberto, com óleo tóxico
de uma refinaria ao lado, do trilho de trem sem proteção para os
pedestres, das ruas sem calçada, onde as crianças brincam e são
atropeladas – no lugar disso tudo que vi no bairro árabe, um bairro
limpo, arborizado e florido. Um bairro judeu.
Eles pagam os mesmos impostos, mas o Estado não está presente da mesma maneira nos dois lugares. Um muro que separava
os dois bairros me chamou a atenção. Não era como o muro de
separação da Cisjordânia – que tem oito metros de altura, câmeras,
cercas elétricas e, em alguns lugares, um fosso. Era um muro menor, mas temo que o objetivo seja o mesmo: “é, sim, um muro de
separação”, disse Hurya, calmamente. “Não estamos na Cisjordânia,
mas este é um muro de separação. Construído com dinheiro do
Estado, pelos moradores judeus. O que mais seria?”.
Os moradores árabes entraram na Justiça e conseguiram deter
a construção do muro. Mas ali, próximo da “divisão” entre os bairros, as casas estão ameaçadas de demolição.
“A administração simplesmente não concede licenças para
a construção de casas a nenhum árabe. Então, essas casas foram
91
O OUTRO LADO DO MURO
construídas de maneira irregular. Isso acontece em muitos lugares,
em Israel e nos territórios ocupados”, disse Hurya.
*
Em Ramla, não muito longe de Lod, as ruas foram todas rebatizadas com nomes de pessoas e fatos da cultura judaica. Destruindo os símbolos – ou deixando que eles se destruam sozinhos, por
degradação – a administração israelense promove a “judaização”
de diversas cidades.
Uma casa da região tinha uma pequena placa na entrada.
“Centro Cultural Mosaico”. É uma ONG que atua contra a discriminação, promovendo a diversidade, na qual Hurya também atua
como voluntária. Entramos e fomos recebidos com chá e café por
um senhor de barba e cabelos brancos. Era Uri Davis, um acadêmico judeu israelense que trabalha no centro e dirige uma ONG chamada “Al Beit - Associação para os Direitos Humanos em Israel”.
Na verdade, apesar de ser filho de judeus e ter a palavra “judeu” registrada em sua carteira de identidade, Uri não gosta de se descrever assim. É ateu e prefere o termo “palestino hebreu anti-sionista”.
Hurya contou que tentou pedir ao prefeito que mudasse o
nome de apenas algumas ruas para homenagear personagens árabes. Eles estavam em um evento público e o diálogo tem, portanto,
testemunhas, inclusive a imprensa, lembrou Hurya.
“Tenho vergonha de dizer o que ele me respondeu, na frente
de todos”, disse.
92
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Eu também tenho vergonha de escrever aqui. Mas vamos lá.
“Fuck you!”, disse Hurya em inglês, imitando o prefeito – que
falou em hebraico.
“Mas sou cidadã como os outros. Por que não temos os mesmos direitos?”, respondeu, sob o olhar curioso dos jornalistas.
“Se vocês não estão satisfeitos, que se mudem para Jalalabad
[vilarejo árabe]. Não tenho culpa se vocês têm tantos filhos”, concluiu o prefeito, retirando-se dali.
Uri Davis entrou na conversa. Ele explicou que as atividades do
Centro Cultural são feitas em três línguas, sempre – hebraico, árabe
e inglês – principalmente com as crianças. Espalham anúncios por
toda parte, mas poucas pessoas aparecem. Apesar disso, diz, acredita nas relações entre árabes e judeus.
“Infelizmente, o racismo é regulado por lei no Estado de Israel. Segundo a Declaração Universal de Direitos Humanos, em
seu 30º artigo, toda pessoa tem o direito de morar onde escolher,
e se quiser deixar o país deve poder voltar. Se, apesar de tudo o
que o governo israelense faz (ou deixa de fazer) para tornar a
vida insuportável, os árabes resistem e decidem ficar ali, meu
trabalho é apoiar essas pessoas que escolheram um lugar errado
para viver”, disse, destacando a palavra “errado”, como quem não
concorda com aquilo.
Sem dúvida, não é um trabalho fácil.
*
93
O OUTRO LADO DO MURO
Mais um hora e meia de ônibus e chegamos ao deserto do Neguev (que os árabes chamam de Nakab), no sul de Israel. Trata-se
de um dos lugares de concentração da população árabe no país, hoje.
Ali, vive uma população de beduínos, povo seminômade que migrava
em determinadas épocas do ano, de acordo com o clima, criavam camelos, cabras e outros animais. Antes de 1948, os beduínos tinham um
papel importante na economia da Palestina, pois forneciam produtos
primários do campo e compravam os produtos manufaturados na cidade, fazendo, portanto, a ligação cidade-campo.
Paramos em frente a um monte de terra e lixo na beira da estrada. Atrás dele, algumas barracas de zinco e plástico se amontoavam. Quem nos acompanhava agora era Atiyia Al`aam, presidente
da Associação das 40 (Ait Arbein). Quarenta o quê?, perguntei. Cidades não-reconhecidas. São cidades como aquela que eu via: existem, mas não constam em mapas oficiais. Atiyia desceu para avisar
sobre a nossa presença e fez um sinal para que o acompanhássemos
para dentro do vilarejo.
Debaixo de um barracão, um senhor esquentava água com folhas de menta para fazer um chá, agachado em frente a um buraco
com brasas. Ele lavou os copos com um pouco da própria bebida,
pois ali a água é rara: nesta vila de beduínos não há distribuição de
água potável, nem serviços de eletricidade, coleta de lixo, esgoto ou
telefone. Awdah, como ele se chamava, nos estendeu os copos de
chá, silencioso.
Apesar de não existirem em nenhum mapa oficial, muitas
dessas cidades já estavam ali antes da criação do Estado de Israel,
94
FERNANDA CAMPAGNUCCI
em 1948. Outras foram estabelecidas no começo dos anos 1960,
quando o Estado promoveu a evacuação dos beduínos do norte
do Neguev para o sul de Beersheba, a maior cidade da região.
Com a adoção da Lei de Planejamento e Construção de 1965,
essas 45 cidades desapareceram oficialmente, e toda instalação
ali foi considerada ilegal – tanto as novas construções quanto as
já existentes há décadas.
Segundo a Associação Árabe de Direitos Humanos (HRA), o
número de vilas nesta situação pode chegar a 100, já que é difícil
definir o que é um município sem critérios objetivos. A cidade de
Im-Tnam, com dois mil habitantes, por exemplo, é considerada ilegal. Não muito longe, a colônia judia de Lavon tem duas famílias, é
reconhecida e usufrui de todos os serviços prestados pelo Estado.
A família de Awdah morou por várias gerações a 50 quilômetros dali, antes da Nakba. Ele nasceu em 1953 e recebeu este nome,
que quer dizer “o retorno”, assim como muitas crianças nascidas no
exílio, na mesma época. Mas a família de Awdah nunca mais pôde
voltar a sua terra, que hoje é uma área militar, vazia.
Depois de 1948, o governo israelense concentrou os 10% dos
beduínos que não deixaram o território no chamado “triângulo de
terra” entre as cidades de Dimona, Beersheba e Arad. Faysal Sawalha, do Conselho de Cidades Árabes Não-Reconhecidas, explica
que a região ficou sob governo militar até 1966, e toda a população
beduína foi proibida de deixar o local: “eles viraram refugiados dentro do próprio país”, diz. Assim, todas as propriedades consideradas
abandonadas foram confiscadas pelo governo, que hoje controla
95
O OUTRO LADO DO MURO
93% das terras israelenses através da Administração de Terras de
Israel (ILA) e do Fundo Judaico.
Além de proibidos de construir novas casas, os beduínos não
podem mesmo reformar ou ampliar suas residências. As famílias
vivem em barracos e a temperatura pode chegar a 50 graus sob os
tetos de zinco.
Atiyia Al’aam, que também é habitante de uma cidade não-reconhecida, contou que eles vivem sob constante ameaça de
demolição. Uma francesa muçulmana traduzia a conversa, que
se deu em árabe.
“Há duas semanas, demoliram sete casas aqui. Enquanto seguem com a demolição, eles prendem os homens e tiram as mulheres e crianças de dentro de casa. Destróem tudo de uma vez. Depois
soltam os homens, mas se eles tentam resistir, a detenção é maior.
Tudo o que estava dentro da casa é confiscado, muitas vezes as pessoas não têm tempo de salvar nada”, disse Atiyia. Enquanto isso,
Awdah servia mais chá com menta a todos, sem dizer uma palavra.
Mesmo construir um banheiro pode ser motivo para aplicação
de uma multa. Funcionários do governo fazem inspeções frequentes e fotos aéreas para descobrir novas construções clandestinas. Os
proprietários recebem uma ordem administrativa e, de acordo com
a HRA, alguns devem demolir a casa por conta própria. Se não o
fizerem, enfrentam um processo criminal. Faysal Sawalha afirma
que, apenas em 2007, mais de 130 casas foram demolidas.
96
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Região conhecida como “triângulo de terra”, entre as cidades de Arad, Beersheva e Dimona, onde os
beduínos foram concentrados a partir de 1948
97
O OUTRO LADO DO MURO
Os beduínos são cidadãos de Israel, votam para as eleições nacionais, possuem identidade e nacionalidade israelense e pagam
impostos, como os outros. No entanto, a ausência do Estado nessas cidades marca uma posição clara que as entidades de Direitos
Humanos denunciam como racista, por privar os cidadãos árabes
de serviços essenciais. Segundo a Administração de Terras de Israel, todos os cidadãos têm direito a esses serviços, mas apenas se
morarem em casas permanentes. Além disso, a ILA alega que os
beduínos estão dispersos em uma área muito extensa, o que impede
seu gerenciamento.
Faysal Sawalha diz que essa é apenas mais uma desculpa.
“Israel não quer nos reconhecer por dois motivos: primeiro,
eles querem concentrar os palestinos na menor área possível e confiscar deles o máximo de terras. Segundo, eles não querem assegurar os serviços mínimos de bem-estar, como eletricidade, água,
saúde, para que seja insuportável a vida aqui e que partamos sem
que eles sejam acusados de nos expulsar. Dizem isso abertamente”.
O que Faysal falava não era nenhum absurdo. Em 1950, um
dos fundadores de Israel, David Ben- Gurion declarou : os beduínos devem ser expulsos, não para desalojar os árabes do Neguev, mas
para garantir o nosso próprio direito de assentamento. Moshe Dayan,
herói de guerra, também compartilhava dessa visão, porém acreditava que o problema seria resolvido sem necessidade de repressão:
sem coerção, mas com uma direção governamental, o problema dos
26
beduínos vai desaparecer, disse .
26. MANSKI, Rebecca. “Bedouins vilified among top 10 environmental hazards in Israel”. News from
98
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Uma das formas de encarar o problema de forma “administrativa”, ou seja, sem massacres, foi varrer do mapa as cidades árabes,
que passaram a não mais existir.
O governo israelense tem vários planos para o desenvolvimento do Neguev. Alguns deles simplesmente ignoram a existência dos
beduínos, como o Plano Nacional de Israel para 2020, e outros planos regionais, como o Tamam 4/14, propõem redistribuí-los em 8
cidades regularizadas. As terras confiscadas estão sendo disputadas na Justiça (600 km², menos de 5% das terras ocupadas pelos
beduínos originalmente), mas, em uma nota publicada em seu site,
o ILA propõe um “assentamento extremamente generoso em troca
da retirada das ações judiciais”.
Em um relatório apresentado ao Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas em 2003, a Associação Árabe de Direitos Humanos denuncia que, apesar de aparentemente ignorá-las, os planos apresentados pelo governo visam
claramente às cidades não-reconhecidas: eles desenham, por exemplo,
estradas que bloqueiam a entrada das cidades, planejam novas cidades
judias onde já existem cidades árabes, ou declaram zonas militares onde
há cidades não-reconhecidas. Um planejamento aparentemente neutro,
mas que, de fato, torna a vida dos habitantes ali ainda mais difícil, sob o
pretexto de um progresso racional. Ainda naqueles dias, o Knesset (Parlamento israelense) aprovou uma lei apresentada pelo deputado Uri
Ariel, do partido religioso União Nacional (Mifdal), que proíbe a locação ou venda de terras do Estado aos “não-judeus”, ou seja, aos árabes.
Whitin, Jerusalém, 23: 33-35, fev. 2007.
99
O OUTRO LADO DO MURO
Terminado o chá, Awdah se afastou da roda de conversa. Uma
jovem franco-tunisiana, que fala árabe, perguntou porque ele estava tão silencioso.
“Não sei falar bonito”, disse.
“Mas o que o senhor acha disso tudo? O que acha da situação
da Palestina?”
“Olha, não há o que fazer. Os palestinos da Cisjordânia ao menos têm uma casa. E o mundo, como vocês, está de olhos voltados
para a situação deles. Aqui, os buldozers passam por cima de tudo
e ficamos sem nada. E ninguém fica sabendo disso”, falou Awdah,
sem alterar o tom de voz. “Aliás, o que o mundo diz de nós, o que
falam da nossa situação lá fora?”
A jovem silenciou por um instante. Depois respondeu:
“O mundo não se interessa por isso, infelizmente”.
Awdah não parecia surpreso.
“Eu também não sei o que acontece lá fora. Só sei que o que se
passa com os beduínos tem a ver com essa questão maior, a Palestina. Todos aqui sofrem muito. Há famílias que foram separadas para
sempre. Eles não podem vir para o lado de cá, em Israel, nem nós
podemos vê-los do outro lado do muro, em Gaza ou na Cisjordânia”, continuou, Awdah, com a voz baixa.
Apesar da distância, ele disse se sentir muçulmano e palestino.
E, digno do seu nome, o Retorno, imagina que um dia todos poderão rezar juntos em Al-Quds (Jerusalém).
Voltamos ao ônibus e acenamos para dois meninos do vilarejo
de Awdah, que tinham subido naquele amontoado de lixo, perto da
100
FERNANDA CAMPAGNUCCI
estrada sem asfalto, para nos ver partir. Atiyia contou que foram os
próprios moradores que construíram essa espécie de muro, para esconder sua condição, que eles consideram vergonhosa. Olhei para
os garotos, que não acenaram de volta.
101
FERNANDA CAMPAGNUCCI
TODA SEXTA-FEIRA, O GRUPO DE
ATIVISTAS ANTIMURO TENTA, EM
VÃO, FURAR O BLOQUEIO DE SOLDADOS ISRAELENSES, EM BIL’IN
TODA SEXTA-FEIRA, O GRUPO DE
ATIVISTAS ANTIMURO TENTA, EM
VÃO, FURAR O BLOQUEIO DE SOLDADOS ISRAELENSES, EM BIL’IN
I
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
O OUTRO LADO DO MURO
O MURO TORTUOSO DE 9 M DE
ALTURA ENTRA COMO GARRAS
NA CISJORDÂNIA; NAS FOTOS,
TRECHOS DO MURO EM BELÉM
II
FERNANDA CAMPAGNUCCI
GILAD MOSTRA A TEL AVIV
AGRADÁVEL...
...ENQUANTO TAL APONTA
TRAÇOS DO ATIVISMO
EM TEL AVIV, AINDA É POSSÍVEL
VER RESQUÍCIOS DE CONSTRUÇÕES DE FAMÍLIAS ÁRABES QUE
MORAVAM ALI ANTES DE 1948
III
O OUTRO LADO DO MURO
ALERTAS AMISTOSOS PARA QUEM
VAI A BELÉM...
... E PERCALÇOS PARA QUEM
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
QUER VOLTAR
O MOVIMENTO DOS PALESTINOS
NA CISJORDÂNIA É CONTROLADO
PELOS ISRAELENSES; EM JULHO
DE 2007, A ONU REPORTOU 539
BLOQUEIOS
IV
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
FERNANDA CAMPAGNUCCI
ELIK, UM EX-SOLDADO QUE SE
RECUSOU A SERVIR O EXÉRCITO
DE ISRAEL NOS TERRITÓRIOS
PALESTINOS OCUPADOS. ELE É
UM DOS FUNDADORES DA ONG
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
COMBATENTES PELA PAZ
O ISRAELENSE MICHAEL
WARCHAWSKI FALA A ATIVISTAS
SOBRE A OCUPAÇÃO
V
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
O OUTRO LADO DO MURO
EM JAFFA, É POSSÍVEL VER A JUSTAPOSIÇÃO DO NOVO AO ANTIGO,
DA PAISAGEM ÁRABE TRADICIONAL À MODERNA URBANIZAÇÃO
ISRAELENSE; MORADORES DE ORIGEM ÁRABE DIZEM ESTAR SENDO
EXPULSOS AOS POUCOS, EM UM
PROCESSO DE GENTRIFICAÇÃO
VESTÍGIOS DE UMA ANTIGA
PENSÃO MAMELUCA NA CIDADE
ISRAELENSE DE RAMLA; MORADORES RECLAMAM DA NEGLIGÊNCIA
DO PODER PÚBLICO, QUE NÃO
CONSERVA SÍMBOLOS DA CULTURA PALESTINA
VI
FERNANDA CAMPAGNUCCI
MENINOS BRINCAM NA BEIRA DE
ESTRADA EM FRENTE A UMA CIDADE ÁRABE NÃO-RECONHECIDA
NO DESERTO DO NEGUEV, NO
SUL DE ISRAEL
APESAR DE SEREM CIDADÃOS
ISRAELENSES, OS BEDUÍNOS QUE
MORAM NESSAS CIDADES INVISÍVEIS SOFREM COM A AUSÊNCIA
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
DE POLÍTICAS PÚBLICAS
HANDALA, PERSONAGEM
DO CARTUNISTA NAJI AL-ALI,
DESENHADO EM MURO NO
CAMPO DE REFUGIADOS DE
ASKAR, NA CISJORDÂNIA; O
GAROTO, DESCALÇO, SIMBOLIZA
OS PALESTINOS
VII
O OUTRO LADO DO MURO
FOTOS DOS CAMPOS DE REFUGIADOS DE 1948 SÃO COMUNS NAS
CIDADES PALESTINAS; AS BARRACAS, QUE ERAM PROVISÓRIAS...
... VIRARAM CONSTRUÇÕES CAÓTICAS, COMO ESSAS DO CAMPO
DE ASKAR
VIII
FERNANDA CAMPAGNUCCI
ADNUN, VICE-PREFEITO DE
YANUN, FALA SOBRE ATAQUES DE
VIZINHOS COLONOS
DEPOIS DO ENCONTRO,
MULHERES DA CIDADE SERVEM O
MAQLUBEH
IX
O OUTRO LADO DO MURO
RAOUIA PASSOU 4 DE SEUS 23
ANOS NA PRISÃO...
... E SANA SÓ VIU 2 DOS 4 ANOS
DE SEU FILHO
EM TULKAREM, NO NORTE DA
CISJORDÂNIA, AS MULHERES SE
REUNEM EM UMA ASSOCIAÇÃO;
ALÉM DO MURO, ESTÃO NA
PAUTA DE DISCUSSÃO PROBLEMAS
ENFRENTADOS POR ELAS NO
COTIDIANO E CURSOS DE ESPECIALIZAÇÃO
X
FERNANDA CAMPAGNUCCI
TULKAREM TEM A MAIOR COMUNIDADE NEGRA PALESTINA
EM NAZLET ISSA, AS CASAS
FORAM CORTADAS AO MEIO
PELO MURO
XI
O OUTRO LADO DO MURO
A MÃE DE KHALIL MARSHUD FEZ
DE SUA CASA UM VERDADEIRO
MEMORIAL EM HOMENAGEM AO
FILHO MORTO; NA PALESTINA, OS
JOVENS MORTOS EM DECORRÊNCIA DA OCUPAÇÃO - EM COMBATE OU NÃO - SÃO CHAMADOS
DE MÁRTIRES; ABAIXO, A SALA DE
SUA CASA
XII
FERNANDA CAMPAGNUCCI
EM BALATA, SOLDADOS NÃO
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
BATEM À PORTA PARA ENTRAR...
... E OS TANQUES QUEBRAM
PAREDES E CALÇADAS
XIII
O OUTRO LADO DO MURO
PAINEL REPRESENTA A NAKBA
PALESTINA E O SONHO DO RETORNO DOS REFUGIADOS, EM MURO
FOTO: GÉNÉRATION PALESTINE
DO CAMPO DE BALATA
AS HOMENAGENS AOS SHAHIDS
(MÁRTIRES) ESTÃO POR TODA PARTE, NAS CIDADES PALESTINAS
XIV
FERNANDA CAMPAGNUCCI
CRIANÇAS APRESENTAM COREOGRAFIAS DE DANÇA POPULAR
PALESTINA QUE CELEBRA O MOMENTO DA COLHEITA
BALATA FOI CRIADO EM 1952,
POR CERCA DE 4 MIL PESSOAS
FUGIDAS DE MILÍCIAS SIONISTAS;
HOJE, TEM 23 MIL HABITANTES
XV
O OUTRO LADO DO MURO
DURANTE O DIA, AS RUAS DE NABLUS SÃO MOVIMENTADAS; MAS,
À NOITE, HÁ UM TOQUE DE RECOLHER TÁCITO, E NINGUÉM SAI ÀS
RUAS APÓS AS 22 HORAS....
... E NA CASA DA FILHA DE MEREDITA, A REUNIÃO NÃO PÔDE SE
ESTENDER. DA ESQ. PARA A DIR.:
IRMÃO DE SHEREEN; FILHA MAIS
NOVA DE MEREDITA; O GENRO E
A FILHA MAIS VELHA; MEREDITA E
SEU MARIDO, ABU; EM PÉ, SHEREEN E PÉRRINE
NAS RUAS DE JERUSALÉM, O QUE
VALE É REGATEAR - MAS A MELHOR
LÍNGUA PARA ISSO É O ÁRABE; O
KUFFIEH ORIGINAL, TRADICIONAL
LENÇO PALESTINO, ESTÁ DESAPARECENDO
XVI
As laranjas de Jaffa
TERÇA-FEIRA, 17 DE JULHO DE 2007
O
Jerusalem Post do meu sétimo dia de viagem trazia uma nota
sem grande destaque: “Polícia ameaça abrir inquérito contra
manifestantes que marcham para Homesh, hoje”. Os manifestantes
de que falava a matéria eram israelenses de extrema-direita. Homesh, por sua vez, é uma cidade na Cisjordânia (que os judeus chamam de Samaria), onde quatro colônias sionistas foram desmanteladas pelo governo israelense, em 2005, e para onde os excolonos pretendiam voltar. A ação fazia parte de um plano de
Israel de “evacuação” do território palestino, e se concretizou
por completo somente em Gaza, onde os colonos somavam
pouco mais de 7 mil habitantes. Na Cisjordânia, o controverso
plano previa a retirada de apenas 500 assentados (de um total de
aproximadamente 250 mil).
“Os manifestantes de direita não ouviram o discurso de Bush,
ontem, quando ele afirmou que a expansão das colônias judias na
Palestina precisa parar”, dizia o texto do Jerusalem Post, logo no
início. Eu também havia visto alguns cartazes, espalhados pelos
103
O OUTRO LADO DO MURO
postes de Tel Aviv e Jerusalém, pedindo a cada judeu que levasse
um tijolo para desafiar o governo israelense e reconstruir naquele
dia as colônias desativadas. Os manifestantes foram barrados pela
polícia no domingo, mas conseguiram entrar na ex-colônia alguns
dias depois. Esse era o quinto protesto desse tipo contra o desmantelamento das colônias sionistas em território palestino.
“Precisamos corrigir o erro do nosso governo”, dizia um dos
manifestantes ao jornal. “Não temos medo de Bush. Esta terra é
nossa, Deus nos deu”, disse uma outra participante da marcha,
identificada como Ruthi Brenner.
A sociedade israelense, formada por populações imigradas de
diversas partes do mundo, inclusive do mundo árabe, se transformou num complexo mosaico. Apesar de a maioria da população ter
a religião em comum, o judaísmo, Israel está longe de ser um bloco
homogêneo e possui hierarquias, mesmo entre os judeus.
O encontro daquela tarde de terça-feira era em Tel Aviv, com a
jovem Tal. Judia e israelense, Tal tem por volta de 30 anos e trabalha na Zochrot, ONG que se esforça para falar aos judeus israelenses sobre a Nakba palestina. Reparei que ela usava um colar com o
pingente do Handala, figura criada pelo cartunista Naji Al-Ali que
simboliza os refugiados palestinos – é um garoto virado de costas
com as mãos para trás, descalço e de roupas remendadas.
Andamos pelo bairro Florentine e seu entorno, na parte sul
de Tel Aviv. A cidade é, de certa forma, cultural e socialmente di27
vidida. O norte é ocupado predominantemente por ashkenazim ,
27. Ashkenazi é o nome dado aos judeus da Europa Central e da Europa Oriental, descendentes das
104
FERNANDA CAMPAGNUCCI
pela classe média, por liberais e judeus seculares. Ramat Aviv, no
norte, é onde viveram Yitzhak Rabin e Shimon Peres (ex-primeiro
ministro e atual presidente de Israel), entre outros. Ali também está
situada a importante universidade de Tel Aviv, que forma os melhores administradores e advogados. É igualmente no norte que está
o Azrieli Center, conjunto de três torres de vidro – uma cilíndrica,
uma triangular e outra quadrada – que abriga um shopping center
onde os adolescentes ricos vão fazer suas compras.
Já o sul de Tel Aviv é dominado por classes mais pobres e trabalhadoras, sobretudo os judeus Mizrahim – descendentes de comunidades judaicas do oriente médio, do norte da África, da Ásia
Central e do Cáucaso. São os judeus do mundo árabe e países da
28
região, que praticam o rito sefardita do judaísmo . É também onde
se concentram os conservadores, simpatizantes da direita e religiosos mais tradicionais. É uma Tel Aviv pouco frequentada por turistas. No sul, está o grande terminal de ônibus onde me perdi no
primeiro dia, e onde o pai de Gilad foi me buscar. Na ocasião, Gilad
disse que o lugar era “barra pesada”. Quando perguntei por que,
ele desconversou e falou que era por onde passavam os imigrantes
africanos e asiáticos e a classe trabalhadora mais pobre.
Florentine está no sul, mas ainda tem um quê de bairro boêmio, preferido por artistas e intelectuais. Tal contou que os judeus
árabes que moram ali se esforçam para se integrar na sociedade
israelense, e por isso negam a própria origem. Escondem o fato de
comunidades judaicas medievais da Renânia, no oeste da Alemanha.
28. Por uma confusão de termos, os Mizrahim são por vezes chamados de Sefardim.
105
O OUTRO LADO DO MURO
falarem árabe, não o ensinam aos filhos e têm, às vezes, posições
mais radicais contra os palestinos.
“Isso que vou dizer é um pouco estereotipado, mas acaba sendo verdadeiro neste caso. Quanto mais pobre, mais racista”, disse
Tal. “É muito difícil falar da Nakba aqui”.
Zochrot quer dizer “lembrança”, em hebraico. A ONG é formada por um grupo de israelenses que querem chamar a atenção da
população para a catástrofe de 1948, como forma de aproximar os
dois povos.
“Nossa memória coletiva é dominada pela memória sionista,
em que não há espaço para a história de sofrimento dos refugiados
palestinos, os massacres, a destruição de suas cidades. Precisamos
tornar essa história acessível para os israelenses. Reconhecer o passado, afinal, é o primeiro passo para saber lidar com suas consequências”, disse Tal. “Na escola, aprendemos apenas sobre a independência de Israel. Eu só abri meus olhos aos 24 anos”.
Tal apontou para uma faixa num prédio de apartamentos de
padrão popular. Os moradores estavam protestando contra sua expulsão, para dar lugar a um prédio de alto padrão, cujo aluguel eles
não teriam como pagar.
“Isso mostra a eferverscência deste lugar. As pessoas não estão
adormecidas como parecem”, continuou a ativista.
Mais à frente, passamos por um muro pichado com a estrela
de Davi, tal qual eu vira dias antes com Gilad. Desta vez, havia algo
diferente: dentro da estrela, outra frase estava pichada de vermelho,
também em hebraico. Era o número de mortos de judeus e árabes
106
FERNANDA CAMPAGNUCCI
na invasão israelense do Líbano – uma forma de dizer que todos
perdiam com a atitude do Estado de Israel.
Entramos numa casa de judeus que Tal conhecia e olhamos
por cima do muro, para a casa vizinha. Dali, foi possível ver o topo
de uma casa de estilo árabe vermelha, já com a pintura desgastada.
Estava abandonada, como explicaram os judeus que nos receberam.
“Os moradores desta casa tiveram que fugir em 1948. Eram
pessoas muito boas. Moravam ao nosso lado e nunca tivemos problemas. Nunca mais voltaram nem foram vistos. É uma das poucas casas que continua de pé, entre todos esses prédios, mas já está
ameaçada de demolição”, explicou um senhor.
“A Nakba está debaixo dos nossos narizes, só precisamos apontá-la, para que as pessoas a vejam”, disse Tal, em frente a um muro.
A Zochrot elaborou um mapa da Nakba, em hebraico, para mostrar aos israelenses esses sinais escondidos debaixo dos próprios narizes. Tal acredita que esse aprendizado é essencial para a paz e a reconciliação. “Quando as pessoas deixarem de acreditar no mito sionista
de que esta era “uma terra sem povo para um povo sem terra”, talvez
entendam que a Nakba de 1948 é o ponto inicial deste conflito – e não
um problema de dois mil anos, como nos fazem crer”.
*
Tomei muito suco de laranja no Hotel Hebron, já que o preço
era o mesmo da água engarrafada – cerca de U$ 1,50. As frutas
eram muito saborosas, talvez mais que as brasileiras, embora meu
107
O OUTRO LADO DO MURO
paladar e minha sede pudessem estar fortemente influenciados
pelo calor daqueles dias. Confesso que não procurei saber da sua
procedência, mas havia grandes chances de que as laranjas do meu
suco fossem de Israel e, quem sabe, de Jaffa. Situada na costa do
mar Mediterrâneo, em Israel, a bela cidade portuária de Jaffa já era
mundialmente conhecida por suas laranjas no século XIX, quando
a Palestina era uma grande exportadora da fruta, principalmente
29
para o mercado europeu .
Antes mesmo do sionismo, em 1873, a região de Jaffa tinha 420
plantações de laranja, com uma produção anual de 33,3 milhões de
unidades. A marca ficou célebre na Europa, levando o nome da
cidade. Em um relatório de 1880, o cônsul britânico em Jerusalém afirmava que o investimento em frutas cítricas era o melhor a se fazer na Palestina. Seis anos depois, um outro relatório,
desta vez do cônsul americano, destacava a avançada técnica de
enxerto usada pelos camponeses palestinos: “seria útil aplicar a
mesma fórmula na Flórida”.
A imigração sionista se intensifica a partir de 1900, sem, porém, destronar os palestinos – que multiplicaram por seis a super-
29. Foi nessa época que houve a chamada “modernização da economia palestina”. Até meados da
Primeira Guerra Mundial (1914-1919), a Palestina era uma província do Império Otomano. As tentativas
das forças europeias de entrarem na região ou de integrarem sua economia começou antes, com o fim
da Guerra da Crimeia (1856). O Congresso de Berlim, que pusera fim ao conflito, abriu as províncias
dos otomanos ao investimento e especulação europeus. Assim, a partir daí, os estrangeiros passaram
a poder comprar terras na região, que até então eram cultivadas em propriedades coletivas pelos camponeses. Quando os imigrantes sionistas chegaram, portanto, encontraram uma situação de extrema
concentração e especulação fundiária – da qual souberam tirar proveito, como lembra o historiador
Ilan Pappe.
108
FERNANDA CAMPAGNUCCI
30
fície plantada, entre 1922 e 1935 . Mas, com a guerra de 1948 e a
tomada de controle do país pelos sionistas, a laranja vira praticamente um monopólio de Israel. A cidade foi rebatizada de Yaffo, em
hebraico, mas a marca da laranja ainda hoje é estampada em uma
etiqueta com o nome Jaffa, em árabe.
Encontrei com o israelense de origem árabe Samir Bukhari depois do almoço, em Jaffa. A cidade é bem próxima de Tel Aviv – na
verdade, ficam na mesma região metropolitana e fazem parte da
mesma administração municipal. Simbolicamente, Samir marcou a
conversa na grama do jardim de um condomínio de luxo, de frente
para o mar, “ex-fechado”. Ele, juntamente com outras pessoas de
uma associação de moradores local, conseguiu que se reabrisse o
espaço do condomínio, antes gradeado. Segundo Samir, somente
os árabes não podiam entrar no jardim. Os visitantes, não necessariamente moradores, eram selecionados pelos porteiros. A situação pode parecer normal aos acostumados com os condomínios de
luxo de algumas cidades do Brasil, que privatizam até praias, mas
o cercamento de um espaço antes público soou à população como
mais um ato de segregação.
De calça jeans, camiseta, óculos e jeito de professor, Samir começou a explicar a situação dos árabes que moram em Yaffo – os
que restaram e resistiram depois de 1948.
“De 1948 a 1952 vivemos em Jaffa sob um regime militar – que,
em outras cidades árabes do norte e sul do recém-criado Estado de
Israel, se estendeu até 1966. Os militares colocaram famílias judias
30. CATHERINE, Lucas. Op. cit., p. 25
109
O OUTRO LADO DO MURO
nas casas de palestinos exilados; depois, passaram a colocar essas
famílias até mesmo em casas ainda ocupadas por palestinos”, disse.
Jaffa era uma cidade internacional e a referência cultural da região.
Depois, passou a ser apenas a periferia de Tel Aviv, continuou Samir:
“Até 1985, ninguém se importava com Jaffa, as casas eram muito baratas por aqui. Depois, a especulação imobiliária começou a
crescer. Hoje, somos expulsos de nossas casas com os preços impagáveis. O que está acontecendo em Jaffa é um perverso processo de
gentrification”.
O termo gentrification, usado por Samir, pode ser traduzido
como enobrecimento urbano. Com uma súbita valorização imobiliária, os moradores tradicionais, que pertencem a classes sociais menos favorecidas, são expulsos de espaços urbanos, como
no caso de Jaffa.
“É uma transferência econômica. Antes, expulsavam-nos pela
força. Depois, tentaram expulsar pela negligência de serviços públicos. Hoje, é isso. Nossa alternativa seria ir embora para Ramla ou
Lod. Mas lá as condições são terríveis”.
Eu, que já havia passado pelas duas cidades, concordei silenciosamente.
“Um hotel árabe tradicional aqui, que se chamava Clif, foi
completamente demolido e deu lugar a uma nova construção. Bairros árabes, como o Jabalieh, hoje sofrem com demolições e desapropriações. Se um árabe se muda para um prédio onde moram
judeus, os valor do imóvel se desvaloriza em 25%. Isso é regra em
Israel”, disse Samir.
110
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Samir explicou que a população árabe em Jaffa caiu de 70 mil,
em 1948, para cerca de 3.600 atualmente. Houve uma segregação
espacial, e hoje os árabes se concentram principalmente em dois
bairros: Jabalieh e A’jame – este último conta com uma bela vista
para o Mar Mediterrâneo e tem se tornado alvo preferencial das
demolições. A companhia de habitação Amidar, instituída pelo governo israelense em 1949, já emitiu centenas de ordens de despejo.
Samir contou que uma mulher com quatro filhos havia sido expulsa
de sua casa, na semana anterior.
A comunidade local, tanto árabe quanto judia, se opôs à truculência com que as famílias eram despejadas e suas casas demolidas,
e decidiu se organizar, criando o Comitê Popular de Jaffa. A exemplo do que acontece nas cidades não-reconhecidas do Neguev e na
Cisjordânia, os voluntários se colocam em frente às máquinas e,
caso não consigam impedir a demolição, reconstroem a casa. Eles
fazem uma assembleia a cada ameaça para que sejam decididas as
estratégias de ação. A casa da família que Samir mencionou, por
exemplo, já começava a ser reerguida.
Somente nos anos 1970 e 1980 mais de três mil construções
– entre casas, escolas, mesquitas e estabelecimentos comerciais –
foram demolidas. Essa prática se intensificou nos últimos anos.
A ideia, ressaltou Samir, não é incentivar a ilegalidade nem
impedir o desenvolvimento da cidade. Para o Comitê, o ideal é
que as famílias pudessem comprar suas próprias casas de volta
por preços razoáveis, para preservar a diversidade étnica e cultural de Jaffa/Yaffo.
111
O OUTRO LADO DO MURO
O dia estava lindo naquele fim de tarde, o céu quase tão azul
quanto o Mar Mediterrâneo. A vontade era passear pelo porto, andar pela cidade, entender melhor aquela justaposição do novo ao
antigo, do pobre ao rico, da paisagem árabe tradicional à moderna
urbanização israelense. Mas eu tinha um encontro marcado com os
Combatentes pela Paz, em Jerusalém. E já era hora de voltar.
*
Em setembro de 1997, um militante palestino explodiu um
carro em Jerusalém, feriu dezenas de pessoas e matou cinco civis.
Entre elas, a judia israelense Smadar Elhanan, de 14 anos. Era seu
primeiro dia de escola e ela tinha ido à cidade com duas amigas,
para comprar alguns livros. Smadar e uma de suas amigas morreram na hora.
Elik Elhanan, seu irmão, contava essa história sem lágrimas,
mas com pausas na voz que mostravam que, mesmo dez anos depois, a lembrança ainda doía. Ele faz parte de um movimento de
refuseniks, israelenses que se negam a servir ao Exército ou, uma
vez lá dentro, posicionam-se contra a ocupação e a postura de seu
governo. Junto a outros israelenses que recusaram o caminho militar, assim como os palestinos que desistiram da luta armada, Elik
fundou a organização Combatentes pela Paz.
Elik entrou para o Exército em 1995 e serviu por três anos em
uma unidade de elite. Quando recebeu a notícia de que sua irmã
tinha morrido naquele atentado terrorista, sua primeira reação, a
112
FERNANDA CAMPAGNUCCI
mais natural, foi desejar vingança. Como soldado, pensou em sair
à caça dos assassinos, matá-los, fazer justiça. Mas a dor não causou
só raiva e ódio em Elik. O jovem soldado tinha apenas 20 anos e
começou a pensar como tudo aquilo poderia ser possível, como foi
que as coisas chegaram a tal ponto.
Foi então que começou a ligar algumas peças desse quebra-cabeças de violência. Um mês antes da morte de Smadar, a unidade
de Elik fora ao Líbano para uma missão. Ele não pôde ir, por razões
administrativas. Ficou desapontado porque descobriu que a missão
tinha sido um “sucesso”: onze terroristas foram mortos. Mas uma
pequena investigação e as informações que obteve de seus amigos
revelaram outra coisa: entre os mortos na missão, na verdade, estavam três crianças, dois idosos...
“Aquela dor intensa foi uma virada na minha vida. Levou algum
tempo para que eu percebesse que a solução não era militar, e sim política. Era muito fácil pensar que, indo ‘lá’, eu protegeria minha família
‘aqui’. Quando Smadar morreu, tudo isso ficou muito concreto. Culpar todo o povo palestino por aquilo e desejar vingança também era
o caminho mais fácil. Mas eu recusei esse caminho, esse jogo de ação-reação. Tenho certeza que deve haver um outro”, disse Elik.
A saída que Elik e centenas de outros encontraram é o diálogo.
Mas não bastava apenas recusar a solução militar e dialogar com
seus pares e seus concidadãos em Israel. Era preciso fazer mais: falar com o inimigo, do outro lado.
“O primeiro encontro entre palestinos e israelenses que promovemos aconteceu em fevereiro de 2002. Foi o momento mais
113
O OUTRO LADO DO MURO
assustador da minha vida. Era a primeira vez que eu falava com
um palestino – não uma foto de uma carteira de identificação, mas
um ser humano de verdade, que não estava atrás das grades, nem
nas filas dos checkpoints, para ser revistado. Um ano depois, já tínhamos trinta pessoas de cada lado. E hoje somamos mais de cem”,
contou Elik.
Em abril de 2006, a Combatentes pela Paz lançou um projeto
em que ex-soldados, como Elik, vão às escolas falar com jovens do
ensino médio, que estão prestes a servir o Exército. Vão tanto aos
colégios caros como aos mais pobres, em periferias e cidades que
sofrem com o conflito, como Sderot, na fronteira com Gaza. O lugar escolhido para o lançamento também foi simbólico: a escola de
Anata, no norte de Jerusalém. O muro de separação dividiu a escola
ao meio, literalmente.
A associação de Eli agrega pessoas de ideologias diferentes,
mas com os mesmos princípios: defendem o fim da ocupação; são
contrários a todo tipo de violência; pedem o desmantelamento das
colônias israelenses nos territórios palestinos e pregam o restabelecimento das fronteiras anteriores à Guerra dos Seis Dias (1967),
quando Israel anexou terras palestinas para além dos limites definidos pelo armistício de 1949, a chamada Linha Verde.
“Às vezes é insuportável levar essa mensagem, a mensagem
da paz. Os refuseniks viram párias. É muito fácil recusar servir
o Exército israelense. Mas se você alega razões políticas, vai ter
sérios problemas. Só que o outro caminho não é mais possível”,
continuou Elik.
114
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Quando lhe perguntei como a sociedade recebe o movimento,
ele foi enfático:
“Do lado palestino só temos encorajamentos. Já em Israel a mídia e o mundo político nos ignoram. Ainda há pouca adesão das
mulheres, mais isso está mudando. Usamos a estratégia do boca-a-boca, e isso tem dado certo. Na segunda guerra do Líbano, eu sei
de pelo menos 70 pessoas que foram buscar ajuda jurídica para se
recusar a ir à guerra e matar. Ninguém sabe, mas 400 pessoas foram
presas por causa disso”.
Apesar dos esforços da sociedade civil, o diálogo parece continuar truncado. Mesmo dentro da sociedade palestina, com o confronto entre as duas forças, Hamas e Fatah, a via do diálogo parece
ser a mais complicada. Ou simplesmente proibida. No Jerusalém
Post de hoje, o destaque era para a frase de Ehud Olmert, então primeiro-ministro israelense, dirigida a Mahmoud Abbas, presidente
da Autoridade Palestina: “Não vamos cooperar se o Fatah dialogar
com o Hamas”. A falta de diálogo está, digamos, institucionalizada.
Voltei ao Hotel Hebron. Tinha que recuperar as energias. Na
manhã seguinte, eu voltaria ao outro lado do muro – e ali ficaria até
o fim da viagem.
115
Shereen
QUARTA-FEIRA, 18 DE JULHO DE 2007
P
assar pelo checkpoint de Belém foi, de novo, muito fácil. Por ali
ainda passam muitos turistas, e Israel não pode impedi-los de
visitar a cidade de Jesus sem causar alguma comoção. Mas esperávamos ter problemas depois, dentro dos territórios ocupados, onde
os visitantes são poucos e praticamente nenhum é simples turista,
sem segundas intenções. Em geral, são jornalistas ou militantes,
para desagrado dos guardas das barreiras.
Meu destino era Nablus, cidade localizada no norte da Cisjordânia, distante cerca de 64 quilômetros de Jerusalém. Antes, paramos em Deishé, perto de Belém, para encontrar os estudantes palestinos que nos esperavam. Um deles, Tarek, ficaria conosco até o
final da viagem, e seria nosso guia por outras cidades. Ele conhecia
Nablus muito bem, o que não era muito comum entre os adolescentes e jovens palestinos de outras cidades. Para eles a locomoção é
cada vez mais difícil, mesmo dentro de seu território.
Já com Tarek, eu e mais seis pessoas seguimos para Nablus em
um sheirut. O motorista ouvia Fayrouz, cantora libanesa adorada
117
O OUTRO LADO DO MURO
em todo mundo árabe. Sophie, estudante de Direito francesa de
origem marroquina, pediu ao motorista que aumentasse (bastante)
o volume e acendeu um cigarro com o braço para fora da janela. O
táxi contornava as montanhas, com suas curvas, subidas e descidas
de terra a caminho de Nablus, a toda velocidade. Não me incomodei com seus movimentos bruscos, era como se o carro estivesse
deslizando com a voz de Fayrouz. Passavam os campos de oliveiras
– ou tocos das árvores cortadas – e o verde se mesclava com as cores
quentes de um deserto.
Outro checkpoint. Sophie abriu e janela e disse ao soldado, com
seu inglês carregado de sotaque francês:
“Somos franceses e vamos ao Centro Cultural Francês de Nablus”.
Essa era a senha para passar. O governo francês, por meio de
seu Ministério das Relações Exteriores, mantém centros culturais
em várias cidades da Cisjordânia, onde são oferecidos cursos de
francês, além de espetáculos e exposições com artistas franceses
– geralmente os engajados na causa palestina. O último cartaz
que vi foi o de um Festival de Teatro do Oprimido que eles promoviam na região.
Dois soldados rodearam o sheirut e olharam para o rosto de
cada um de nós dentro do carro por alguns longos segundos. Todos
estavam apreensivos. Nablus é a região onde a resistência palestina
é maior, e por isso o controle é ainda mais rígido do que em outras
cidades. A cidade fica num vale, entre os montes Ebal, ao sul, e Gerizim, ao norte; as bases das Forças Israelenses estão devidamente
posicionadas no topo de cada uma, voltadas para a cidade.
118
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Uma bandeirinha dos Estados Unidos em forma de árvore de
Natal ainda balançava, pendurada no retrovisor do táxi. Temíamos
por Tarek. Muitas vezes, os soldados deixam os “internacionais”
passar, olhando os passaportes, mas não os palestinos que eventualmente os acompanharem. Os olhares dos soldados não duraram
muito. Devolveram o passaporte a Sophie e nos deixaram passar.
A ONG Project Hope – Oportunidades Humanitárias para a
Paz e Educação – nos recebeu para um lanche e seria nossa “base de
apoio” naqueles dias em Nablus. AbdulHakim Sabbah, diretor da
instituição, explicou que poderíamos usar a infraestrutura do local,
desde que cumpríssemos algumas regras. Uma delas era a de que
não poderíamos sair – em hipótese alguma! – depois das 22 horas.
Era um toque de recolher tácito.
“A cidade inteira faz isso, mesmo quando o toque de recolher
não está declarado. O Exército israelense faz incursões quase todas as noites aqui. Na madrugada de hoje, houve troca de tiros e
14 palestinos foram presos”, explicou AbdulHakim, em um francês
perfeito. A notícia sobre as prisões já tínhamos ouvido no caminho,
pelo rádio do táxi.
Uma das voluntárias, Shereen, ofereceu hospedagem na casa
de sua irmã para três pessoas. Eu e duas garotas – já que a mulher
não poderia receber homens desconhecidos – aceitamos o convite,
enquanto os outros ficaram no próprio prédio da ONG. Minhas
companheiras de quarto seriam Sabrina – francesa adotada por
uma família espanhola e judia convertida (descobri depois que seu
pai era muçulmano) e Pérrine, belga que também era de família ju-
119
O OUTRO LADO DO MURO
dia, por parte de pai. As duas se juntaram ao grupo porque queriam
conhecer de perto a realidade da ocupação. Sabrina, na verdade,
nos encontrou no Hotel Hebron e, depois de ouvir uma conversa,
pediu para nos acompanhar. Ela assistiria a um casamento em Tel
Aviv dentro de alguns dias.
Shereen era uma mulher magra com o olhar sério, quase triste.
Não a vi sorrir. Usava uma blusa rosa de manga comprida e uma
calça jeans, além de um hijab florido– véu que as mulheres muçulmanas usam para cobrir os cabelos e o pescoço. Conversávamos em
inglês, já que ela não falava francês. Isso era um problema para Sabrina, que não falava a língua, como Pérrine e eu. Ela só revelou que
falava e compreendia árabe para mim dias depois, porque disse que
queria esquecer seu passado. Dele, aliás, Sabrina nunca me falou.
Entramos no prédio da irmã de Shereen, Mouna. Era um apartamento enorme, onde ela vivia com os seis filhos pequenos – dois
meninos e quatro meninas – e o marido, que estava viajando. Ele
era engenheiro de uma empresa americana e passava longos períodos em outros países. Por isso, Mouna e alguns de seus filhos, assim
como o pai, receberam cidadania estadunidense.
“Esse apartamento custou cerca de 80 mil shekels”, disse Shereen. “O dono é muito seletivo. Para manter um certo nível, ele só
deixa engenheiros e médicos morarem aqui”.
Eu não imaginava como seria a vida de uma família de classe
média alta na Palestina – se comparada aos padrões do restante da
população. Além de um status diferente – ter um passaporte estrangeiro representa um valor inestimável para a população palestina
120
FERNANDA CAMPAGNUCCI
diante da ocupação – a família de Mouna tinha um domicílio de
certa forma preservado, além de gadgets tecnológicos que seu marido trazia dos EUA em suas viagens. O menino de 10 anos não saía
da frente do computador, em seu quarto, e as duas meninas mais
velhas não descolavam de um grande televisor com canais americanos que chegavam por satélite, na cozinha. De fato, se não trabalharem no exterior, os palestinos quase sempre têm apenas duas
opções de trabalho: ou o serviço público ou as ONGs, que pagam os
melhores salários e ficam com os melhores quadros.
Shereen tem 25 anos e se formou em psicologia, mas está desempregada. Atualmente, é voluntária no Project Hope, como tradutora inglês-árabe. Ela também é casada com um engenheiro,
que é funcionário público, mas não mora com seu marido. Ele vive
em Ramallah. Segundo Shereen, eles não podem alugar um apartamento para os dois lá porque ele ganha pouco, e a cidade tem
preços mais elevados. A família dele mora em Jenin, ainda mais ao
norte da Cisjordânia.
“Ele tem uma casa lá, mas eu não posso ficar sozinha. Em Jenin
a atuação dos soldados israelenses é mais intensa. Tentei viver com
sua mãe, mas não gostei... sabe como é. Querem determinar tudo o
que devo ou não fazer”, disse Shereen. “Além do mais, a casa dela já
foi tantas vezes destruída e revirada pelos soldados”...
O trauma de Shereen com a cidade tem uma data: 12 de julho
de 2005. Era aniversário de seu casamento, e o casal estava sozinho.
Soldados israelenses invadiram a casa e ficaram lá por horas. Segundo eles, era um bom ponto de observação e precisavam usá-lo.
121
O OUTRO LADO DO MURO
Depois que os militares saíram, Shereen e seu marido dormiram
assustados. E não tinham mais nada a comemorar, afinal.
122
Barracas de concreto
QUINTA-FEIRA, 19 DE JULHO DE 2007
A
gora, na Cisjordânia, seria mais fácil encontrar com representantes dos dois grupos palestinos em conflito, o Fatah e o
Hamas. Disseram-me, porém, que os militantes do Hamas não se
encontram com qualquer um. Antes, precisam ter certeza de que
não se tratava de alinhados com seus inimigos – de dentro e de
fora da Palestina. Considerados uma organização terrorista, apesar
do apoio da população expresso nas urnas, seus representantes são
procurados e alguns foram mortos pelo Exército Israelense.
Para acabar com as sanções, o Hamas deveria assumir três
compromissos :
1. reconhecer o Estado de Israel;
2. honrar os acordos negociados pelo Fatah e
3. renunciar à violência.
Ora, pelo noticiário, parecia má vontade do grupo não aceitar
de bom grado as imposições feitas pela comunidade internacional.
Afinal, Israel não poderia sentar-se à mesa com uma organização
que pregasse sua destruição. Compreensível.
123
O OUTRO LADO DO MURO
É fato que, ao ser criado, exatamente no ano da Primeira Intifada, em 1987, o partido pregava o fim do seu inimigo, conforme
consta em seu manifesto de fundação. Mas, após vencer as eleições
de 2006, o Hamas adotou uma linha mais pragmática: já não se
tratava mais de questionar a existência do Estado de Israel. Trata-se
de uma “realidade geográfica”.
No início de 2007, o jornal britânico The Guardian publicou
um artigo de Khalid Mish’al, dirigente do Hamas, em que este afirmava que, depois dos acordos de Meca (fevereiro de 2007), seu partido reconhecera as fronteiras anteriores a junho de 1967, ou seja,
aceitou a configuração da Palestina como foi desenhada em 1949,
antes da anexação dos territórios em 1967.
Portanto a primeira condição para os acordos de paz já estaria,
na prática, atendida. No entanto, os israelenses continuam acusando o Hamas de querer jogá-los no mar. Tampouco aceitam negociações com o partido palestino.
Quanto à segunda condição – o respeito aos acordos de paz negociados anteriormente pelo Fatah – eu entendi a objeção do Hamas
no dia em que fui apresentada à Matriz de Controle de que falou Jeff
Halper, e quando, ao visitar os territórios ocupados, pude ver o estrago
feito pelos acordos de Oslo (1993). A Palestina está dividida em bantustões, onde a população vive encerrada em áreas intensamente controladas pelo Exército israelense e seus checkpoints.
Por fim, a terceira condição: o Hamas deveria renunciar à violência. Se é condenável por atingir civis, o terrorismo é uma das armas de
um povo que não tem exército regular, numa correlação de forças ex-
124
FERNANDA CAMPAGNUCCI
tremamente desequilibrada entre um exército poderoso e uma nação
fragmentada e precariamente armada – o mesmo terrorismo, aliás, que
31
Israel usou para se tornar independente dos ingleses . As humilhações
diárias e as represálias coletivas representam, numa constatação horrível, uma fábrica infinita de homens-bomba, não só contra as forças
ocupantes, mas também contra civis inocentes.
O conflito fratricida entre Hamas e Fatah deixou 161 mortos,
dos quais 41 eram civis, segundo o Centro Palestino de Direitos
Humanos. Enquanto o Hamas continuava com o controle de Gaza,
o Fatah se batia pela Cisjordânia. A população palestina, no entanto, também estava dividida. Muitos criticaram a maneira com a
qual o partido do presidente Mahmoud Abbas, o Fatah, lidou com
o conflito. Outros veem o grupo como traidor, por fazer acordos
desfavoráveis aos palestinos – como os de Oslo.
Sem conseguir falar com representantes do Hamas, encontrei,
ao menos, alguns líderes do Fatah. O diretor-geral e o porta-voz do
Ministério do Interior em Nablus nos receberam em seus gabinetes,
pela manhã. Ambos sustentaram um discurso antiocupação, mas,
do encontro, o que ficou foram as críticas veementes ao Hamas –
a quem chamaram de obscurantistas. “O Hamas se apropriou de
Gaza pela força. Agora, vamos tirar Gaza deles com a força também”, disse o porta-voz.
31. Nos últimos anos do mandato britânico, extremistas sionistas – como o grupo Stern Gang – levaram
a cabo uma campanha de terror, conforme explicado na introdução deste livro. Essa campanha atingiu
seu ápice com a explosão do quartel-general britânico no Hotel King David, em Jerusalém, em 1946, pelo
grupo terrorista Irgun. O ataque resultou na morte de 91 pessoas (28 britânicos, 41 árabes, 17 judeus e
5 de outras nacionalidades) e causou ferimentos graves em outras 45.
125
O OUTRO LADO DO MURO
*
Youssef recebeu nosso grupo em uma casinha de decoração
simpática, toda pintada de verde claro. Foi logo providenciando os
copos de chá e refresco. Ele parece gostar de acolher estrangeiros
para contar suas histórias. Seu pai, há 60 anos, havia sido um dos
responsáveis pela criação daquele campo de refugiados nos arredores de Nablus, o Campo de Askar. Youssef tinha 10 anos, então, e
diz se lembrar de muita coisa.
Esse é um campo de refugiados “oficial”, ou seja, mantido
pela Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados
Palestinos (UNRWA). De acordo com a definição da ONU, refugiados palestinos são pessoas que mantinham residência na
Palestina entre junho de 1946 e maio de 1948, e que perderam
tanto suas casas quanto seus meios de subsistência por causa da
guerra de 1948. Essa definição também considera refugiados os
descendentes dessas pessoas, como os filhos e netos de Youssef.
Assim, o número de refugiados palestinos passou de 914 mil
em 1950 para mais de 4,6 milhões em 2008, segundo a ONU – e
deve continuar a crescer.
Cerca de 1,3 milhão de refugiados “registrados” pela UNRWA
moram em 58 campos reconhecidos na Jordânia, Síria, Líbano,
Cisjordânia e Faixa de Gaza, onde são mantidos postos de saúde,
escolas e distribuição de cestas básicas pela Agência. Na maioria
dos locais, o terreno onde ficam os campos é “alugado” pela UNRWA, não pertencendo, assim, aos moradores.
126
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Fotos de 1950 mostram as centenas de barracas com lonas
pretas que abrigavam os refugiados. As moradias provisórias aos
poucos deram lugar a construções precárias, em vilas que cresceram sem planejamento e infraestrutura urbana e sanitária. As
vielas estreitas e os barracos de alvenaria lembram tristemente
as favelas brasileiras.
Youssef quis começar pelo começo e falou da Declaração Balfour, em que os britânicos prometeram a Palestina aos sionistas. De
repente, desconfiado, virou-se para Houda, que traduzia a conversa:
“Ei, não mude nada o que estou falando! Diga a verdade!”, disse, provocando risos de todos ali. Depois, continuou. “A resistência
foi forte, mas a força venceu a coragem. Saímos de casa sem nada,
deixamos tudo para trás. Durante dez anos vivemos na pobreza –
não apenas nós, refugiados, mas toda a população”.
Neste momento, soou o chamado da mesquita, e Youssef pediu
licença para rezar. Fomos até o terraço e pudemos ver, ao longe,
uma colônia israelense de casas brancas – saltam aos olhos porque
parecem casas da Legolândia em meio às outras. Com infraestrutura pós-moderna e ruas bem traçadas, os prédios parecem formar
um bloco só. Em visita à Cisjordânia, o romancista americano Russel Banks descreveu de forma peculiar a sensação ao ver um desses
“blocos”: “parecem ter sido construídos no espaço de uma noite só,
por uma frota de naves vindas do cosmos”.
Youssef voltou e, ao nos ver olhar para a colônia, disparou:
“Eles criam animais por todo o canto. Eles soltam os bichos,
que comem toda nossa colheita”, disse.
127
O OUTRO LADO DO MURO
Na casa ao lado, acontecia um batizado, e as crianças cantavam
e batiam palmas.
Convidaram-nos, então, para visitar a associação de moradores
do campo, um comitê popular. Ahmad apresentou-se como um voluntário e começou a falar sobre os problemas do lugar. Ele contou que sua
família é de uma leva de refugiados de Jaffa. Ahmad chegou a começar
os estudos de Sociologia, mas passou onze anos de sua vida – dos 19
aos 30 – preso. Ainda pensa em voltar à faculdade.
“Nosso objetivo aqui é o mesmo do Direito Internacional: garantir o direito do retorno, de cada um poder reaver seu lugar”, disse Ahmad. “Nossa sociedade sofre com o desemprego, com a falta
de serviços médicos, escola, falta comida”.
Outro problema que os habitantes dos campos de refugiados
enfrentam é o intenso controle militar. As incursões de soldados
israelenses são frequentes.
“Quando os israelenses entram aqui, mandam juntar todos os
homens, fazem-nos deitar no chão e colocar as mãos na cabeça.
Ficamos assim por horas, às vezes um dia inteiro. Quando reclamamos de sede, não nos deixam sair. Se eles suspeitam de qualquer
um, levam, sem pretextos”.
Ahmad contou a história de um jovem de 20 anos chamado
Tamer, que tinha acabado de sair da prisão depois de três anos –
seus irmãos continuam presos. Na última incursão, cercaram a
casa de Tamer durante oito horas. “Queriam pegá-lo morto, não
com vida”, disse Ahmad. Conseguiram pegá-lo, e o mataram na
frente de todos.
128
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Sua mãe já tinha morrido por causa da pobreza. Seus irmãos
estavam presos e seu pai, cego. Ninguém da família viu seu enterro”,
continuou Ahmad.
E outras histórias do campo de Askar se seguiram. A história
de uma criança de nove anos que foi morta, em 2004. A história de
um homem morto cujo corpo ninguém podia pegar, e foi comido
pelos cães. A história do próprio Ahmad, que foi levado preso junto
com outras cem pessoas, com os olhos vendados, e se alimentava
de um pão podre por dia – além da água misturada aos restos de
munição, que lhe davam para beber.
“Essas coisas são cotidianas”, suspirou Ahmad. “O menos pior
são os checkpoints. Os assassinatos são cotidianos. Não queremos
expulsar os judeus. Queremos viver em paz. Mas não digam o que
dissemos. Digam o que viram”.
O pôr-do-sol em Nablus estava lindo, mas anunciava que em pouco tempo deveríamos sair da rua, por causa do toque de recolher.
129
Oliveiras que choram
SEXTA-FEIRA, 20 DE JULHO DE 2007
Y
anun não fica tão longe assim – está, na verdade, a poucos
quilômetros ao sul de Nablus – mas a quantidade de bloqueios
nos fez fazer uma volta de sheirut até Ramallah. A desculpa para
passar por aquele checkpoint seria a mesma de antes: somos francófonos e vamos visitar o Centro Cultural Francês de Ramallah.
Dessa vez, porém, não foi tão fácil.
Muitas pessoas formavam uma fila diante de catracas e grades
enormes. Esperavam indistintamente homens, mulheres e crianças,
com suas carteiras de identidade na mão. Uma mãe balançava seu
bebê e um homem colocava no chão uma cesta básica com o selo
da UNRWA. Um soldado se aproximou do nosso grupo e pediu
nossos passaportes:
“Só passam mulheres e crianças. Homens, só acima de 45 anos”,
disse, com a tira de seu capacete na boca, deixando ainda mais difícil entender o que falava. Tarek, o palestino que nos acompanhava,
não poderia passar. Sophie tentou argumentar que Tarek era nosso
tradutor, e que precisávamos dele para nos guiar pela cidade. De-
131
O OUTRO LADO DO MURO
pois de alguns minutos de conversa, ele deixou que passássemos –
mas disse que deveriam, antes, verificar nossa bagagem.
Todas as nossas bolsas e mochilas passaram pela esteira de um
“jipe-raio-x”. A geleia que Pierre comprara no campo de refugiados
de Askar foi confiscada (seria ela perigosa ou eles precisavam de
algo para passar no pão?) e então pudemos passar. Quando já estávamos do outro lado, o soldado me chamou. Queria saber porque
só o meu passaporte era verde, enquanto todos os outros, europeus,
tinham passaportes vermelhos. Disse que era brasileira e ele ficou
por um momento olhando para mim e para meu passaporte, alternadamente. Finalmente, me deixou ir.
Olhei para trás e vi todas aquelas pessoas que esperavam há
horas e que não tinham um passaporte, verde ou vermelho. Os taxistas do outro lado se precipitaram para nos oferecer carros, já que
por esse checkpoint só passam pessoas à pé – quando passam.
Yanun é um vilarejo de 120 habitantes. Pequeno, mas conhecido internacionalmente pelos problemas que enfrenta com colonos
israelenses fundamentalistas. O prefeito de Yanun, Rachid, e o vice-prefeito, Adnun, nos receberam em uma linda casa antiga, simples mas de paredes muito espessas e recém-pintada de verde. Uma
ativista norueguesa que estava ali por um período de três meses,
Cristine, também acompanhou a conversa.
O vilarejo de Yanun fica a sete quilômetros de uma colônia
israelense de cerca de 300 habitantes – distância, essa, que diminui
a cada ano com a aproximação dos colonos. Por uma fatalidade
geográfica – ou seria burocrática? – as terras de Yanun ficaram em
132
FERNANDA CAMPAGNUCCI
zonas administrativas diferentes mesmo estando completamente
32
dentro da Cisjordânia . Parte fica na Zona C, de controle exclusivo
de Israel, e parte está contida na Zona B, de administração civil palestina e controle militar israelense. Para piorar, a vila corta ao meio
a colônia, que se expande. Cerca de 80% da terra do vilarejo árabe
já teria sido tomada, segundo Adnun.
O vice-prefeito tomou o último gole de café e começou a explicar
a saga de Yanun, que não quis simplesmente ser varrido do mapa.
“O primeiro problema que tivemos com os colonos foi em
1996”, começou Adnun, pausadamente, para que Houda – que traduzia a conversa – pudesse acompanhá-lo. “Um senhor morava
sozinho e foi agredido por um deles. Perdeu um olho”, disse.
Na época, não conseguiram chamar grande atenção para o ataque. Os habitantes de Yanun só começaram a ser ouvidos em 2002,
quando as coisas ficaram muito piores.
“Eles entravam nas casas, quebravam tudo, queriam nos expulsar daqui. Quando viram que não sairíamos, veio a ameaça: se
não partíssemos, o vilarejo se transformaria em nosso próprio cemitério. Acreditamos quando um jovem foi assassinado por eles e
outros foram feridos, durante a colheita das olivas”.
O Exército Israelense, que é responsável pela segurança dos
colonos, era acionado pela população árabe. Apesar de próximos,
chegavam, às vezes, mais de seis horas depois – quando o estrago já
tinha sido feito. Por isso, os habitantes de Yanun decidiram partir.
32. A classificação das zonas administrativas foi estipulada nos acordos de Oslo, conforme explica o
capítulo “Essa é uma questão estúpida”.
133
O OUTRO LADO DO MURO
“Somente dois velhos não quiseram ir embora. Todos foram
para vilarejos próximos. Era como se um novo 1948 estivesse acontecendo”, continuou Adnun.
Foi então que militantes do Internacional Solidarity Movement
(ISM) decidiram intervir e trazer as pessoas de volta. Para convencer os
que ainda estavam traumatizados, comprometeram-se a ficar com eles.
Desde então, pelo menos um militante internacional vive na cidade, em
uma casa que as organizações mantêm. É o caso de Cristine, a norueguesa que participava da conversa, e que ficaria lá por três meses representando a ONG Ecumenical Accompaniers, num esquema de rodízio.
“Não que a vida fosse fácil antes da chegada dos colonos, tudo
aqui é muito difícil”, continuou Adnun, “mas com eles tudo fica
ainda pior. A rodovia mais próxima daqui foi construída há apenas
um ano. Água não existia. Reconstruímos recentemente um poço
que os israelenses haviam destruído”.
Pude ver, depois, o poço danificado. Vi também a caixa d’água
rodeada por uma cerca de arame feita pelos colonos.
Yanun tem duas escolas primárias para as crianças. Para frequentar a escola secundária, os jovens devem ir à cidade mais próxima, Akraba, a sete quilômetros dali. Antes, eles iam a pé, mas
alguns voltavam assustados com ataques dos colonos, que os paravam no meio do caminho. Os “internacionais” compraram um
pequeno ônibus para levá-los. Nas escolas primárias, vi os vidros
quebrados e pichações em hebraico, que não pude traduzir. Adnun
conta que muitos desses ataques ocorrem durante à noite, mas já
aconteceram também durante o horário de aulas.
134
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Como vocês conseguem praticar a agricultura, por aqui?”, perguntei.
Adnun respondeu com um balançar de ombros e a voz firme:
“Os colonos tentam destruir tudo o que plantarmos. Já nos
cortaram mil oliveiras, envenenaram 120 cabeças de gado. Cercaram as oliveiras dos 20% de terra que nos restavam, e agora não
temos acesso a elas para tratá-las. Querem nos distanciar pelo menos 200 metros de onde eles estão, alegando motivos de segurança.
Oliveiras são como crianças, precisam de cuidados”.
Rachid, o prefeito, que estava até então calado observando Adnun, exaltou-se, num lamento:
“Eles nos permitem passagem para a colheita das oliveiras apenas dois dias por ano, o que é um absurdo! Elas precisam de nós
todos os dias. E a colheita, mesmo, dura um mês. Se não podemos
passar para colher os frutos, as oliveiras carregadas são como pessoas chorando. Os frutos caem no chão como lágrimas”.
Nos dois dias de fevereiro em que são autorizados a fazer o
serviço de um mês, os árabes e ativistas internacionais mobilizam
todo o vilarejo e todas as forças que conseguem reunir, inclusive as
crianças. Mas, para entrar na colheita propriamente dita, é preciso
pedir uma permissão do Exército.
A colheita das oliveiras é um período festivo e de sociabilidade. Mas, nos últimos anos, tem ficado cada vez mais difícil festejá-lo. Dados do Applied Resarch Institut de Jerusalem
(ARIJ) tentam dar a dimensão da desgraça que isso representa
para os palestinos. Segundo o Instituto, os colonos sionistas e
o Exército arrancaram e cortaram cerca de 400 mil oliveiras na
135
O OUTRO LADO DO MURO
Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Desde 1967, esse número passaria de um milhão.
Outras centenas de milhares, quando não abatidas, tornaram-se inacessíveis para seus proprietários pela espoliação de terras,
pela construção do muro ou pelas colônias.
Em tom teatral, Rachid contou um episódio que acontecera em
um desses dias de colheita.
“Um responsável do Exército veio nos dizer que um jovem colono israelense apresentara queixa dizendo que aquela terra em que
fazíamos a colheita era, na realidade, dele. O colono, muito religioso, apareceu ali tentando bater num cidadão palestino, dizendo:
‘essa terra é minha! Eu trabalho aqui há 15 anos’. Ora, todos sabíamos que era mentira. O palestino gritou: ‘não pode ser, vocês só
estão aqui há seis anos. Nós, há 400’, disse.”
Para apaziguar a situação, o soldado pediu que o palestino
mostrasse o documento comprovando que aquela terra era, de
fato, dos palestinos. E o palestino perguntou: ‘mas o colono tem
um documento? Quero ver ele apresentá-lo diante do tribunal
israelense’! Ao que o soldado teria respondido: “ele tem um testemunho muito mais alto do que qualquer documento que você
possa apresentar”.
Rachid, gesticulando, conta que um senhor antigo do vilarejo,
de 80 anos, presenciou a situação e perguntou: “e quem é? O pai de
seu Deus?”.
“Não temos a quem reclamar”, disse Rachid. “Eles são, ao mesmo tempo, o carrasco e o juiz”.
136
FERNANDA CAMPAGNUCCI
Cristine, então, de forma muito menos apaixonada, começou a confirmar as histórias que Adnun e Rachid contavam.
Muito branca e loira, de óculos, Cristine fala pausadamente em
um francês perfeito sobre os relatórios que a Ecumenical Accompaniers produz sobre a cidade. Ela ia embora no domingo,
e um outro ativista ficaria no seu lugar. De volta à Noruega, ela
seria responsável por disseminar aquelas histórias em igrejas,
escolas e jornais noruegueses. Os relatórios também são entregues à ONU e à Cruz Vermelha.
“Nossa presença aqui reduz de forma significativa a violência”,
disse Cristine. “Eu mesma já fui ameaçada, mas eles nos agridem
verbalmente, nunca sofri nenhum outro tipo de agressão”.
Rachid nos estendeu um livro de visitas para assinarmos ou
deixarmos alguma mensagem. Folheei o caderno e encontrei mensagens de todo o mundo, de pessoas que passaram por ali desde
2002. Os países mais recorrentes na lista eram França e Itália, mas
também havia assinaturas da Espanha, Estados Unidos, Coreia do
Sul, Reino Unido e mesmo Israel. Minha assinatura era a 688ª, a
primeira aparição do Brasil em Yanun.
Enquanto conversávamos, algumas senhoras da comunidade
cozinhavam. Entraram na casa com dois pratos de Maqlubeh, que,
em árabe, quer dizer algo como “de ponta-cabeça”. É uma espécie
de cuscuz, feito com arroz e ingredientes como frango e legumes
e virado na travessa. Delicioso. Todos comeram do mesmo prato,
cada um com sua colher, como nos disseram que deveria ser.
137
O OUTRO LADO DO MURO
*
À noite, na casa da irmã de Shereen, conversamos sobre o dia.
Naquele apartamento de alto padrão, apesar de distantes da realidade de Yanun, Mouna e seus filhos pareciam conhecer bem o sofrimento dos habitantes de Yanun. Mas a filha mais velha de Mouna,
uma garota de 14 anos com os cabelos soltos e os mesmos olhos
verdes da mãe, parecia não prestar muita atenção na conversa, já
que estava vidrada em um programa da MTV.
“Fernanda, tem uma pessoa que quer muito te conhecer”, disse
Mouna, balançando a filhinha mais nova, de um ano, no colo. “Um
de meus irmãos é casado com a filha de uma brasileira. Falamos de
você a eles, e querem muito que você os visite um dia desses. A mãe
dela cozinha maravilhosamente bem”.
Prometi visitar a sogra do irmão de Shereen e Mouna, no dia
seguinte. Fiquei curiosa para saber como uma brasileira foi parar
em Nablus e formar, ali, uma família. Só não souberam me dizer o
nome dela, que “ninguém na família sabe ao certo, é muito difícil”.
Dona Meredita, descobri depois.
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Como uma novela do Kwait
SÁBADO, 21 DE JULHO DE 2007
M
33
inha visita ao Crescente Vermelho de Nablus, programada
para durar a manhã inteira, não levou mais que uma hora.
O diretor da unidade ainda não poderia receber nosso grupo, então
uma jovem com um véu lilás fluorescente e calça jeans, relações públicas do CV, nos acompanhou pelas salas explicando as atividades
em cada local. Meninos e meninas brincavam no hall de entrada e
outras crianças estavam em salas de informática ou de fisioterapia.
Ela dizia que os pequenos ficam traumatizados com as incursões israelenses, e precisam fazer terapias e outras reabilitações para voltar
a dormir à noite. Disse também qualquer coisa sobre voluntários.
Mas a voz da garota foi se esvaecendo e tudo ficou escuro em volta
de mim. Só senti uma forte dor abaixo do estômago, fiquei absolutamente pálida e, num piscar de olhos, todos estavam ao meu redor.
33. O Crescente Vermelho juntou-se à Cruz Vermelha em 1876, na sequência da guerra entre a Rússia e
a Turquia. O aparecimento deste segundo símbolo advém da necessidade de se preservar a identidade
muçulmana no Movimento, embora tenha apenas uma conotação cultural. Assim, o Crescente Vermelho Argelino, por exemplo, é rigorosamente idêntico à Cruz Vermelha Brasileira em termos estatutários
(ou seja, regula-se pelas mesmas regras do Movimento).
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O OUTRO LADO DO MURO
Não era nada de mais – uma virose, ou algum tipo de contaminação da água – mas as dores eram fortes e cíclicas. Quando
aconteceu pela segunda vez, chamaram Shereen, que estava decidida a me levar ao médico. Depois de alguma insistência, convenci-a
de que não era nada grave, e a condição para que eu não fosse ao
hospital era voltar à casa de Mouna, para repousar.
Quando estávamos entrando no táxi, Yossef, voluntário da Project Hope careca e sorridente, apareceu buzinando no seu carrinho
todo remendado. A porta era de outra cor, não havia mais faróis, o
ronco do motor era um estardalhaço. Yossef desceu gesticulando e
falando em árabe com Shereen – ele não falava nem uma palavra
de inglês – e nos fez entrar em seu carro. Lá dentro, perguntei se ele
nos daria uma carona até a casa de Mouna.
“Nada feito”, respondeu Shereen, ainda séria, “eu expliquei que
você só queria ir para casa mas ele disse que você deve ir ao hospital. Ele não quis me ouvir”.
Yossef virava-se para trás enquanto dirigia, sorria e me falava
algo como “fica tranquila, estamos chegando”.
Ele parou seu carrinho em frente a uma clínica, falando alto e
abanando os braços como se trouxesse uma doente grave. Eu, com
minha dor de barriga, estava constrangida. Confesso que gostei da
ideia de conhecer em tal circunstância um hospital na Palestina,
mas mudei de opinião quando Yossef ignorou a fila de espera na
recepção e entrou para falar diretamente com os médicos.
Ele se virava sorrindo para mim, ainda afobado, fazendo mímicas que entendi pela metade. Ele trabalhava ali, por isso conhecia
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
todo mundo. Apontava para o chão e para o próprio peito. Só não
sei se era faxineiro, e limpava o chão, ou se foi ele quem colocou
aquele piso.
“Voluntária internacional, voluntária internacional!”, ele dizia
aos médicos, me deixando cada vez mais constrangida. Era uma
clínica particular, e estava cheia. Quis passar pela recepção, pegar
uma senha, mas ele me puxou pelo braço.
Apontou para a sala de ultrassonografia, onde um jovem médico me recebeu. Ainda rindo da molecagem de Yossef, o doutor
perguntou, em inglês, enquanto espalhava o gel do exame pela minha barriga:
“Há quanto tempo você está em Nablus”?
“Há três dias”, respondi.
“Ah, mas então é normal que você fique doente. A água é diferente, a comida, tudo. De onde você veio, antes”?
“Eu estava em Paris”.
“Pois é isso mesmo. Quando eu estive em Paris, também tive
dor de barriga”, riu o doutor.
Já com o resultado do exame na mão – que não valeria de nada,
pois eu não tinha bebido água suficiente para fazer uma ultrassonografia – Yossef me puxou, agora, para uma sala de leitos com
cortinas cinzas, onde pacientes se restabeleciam com soro ou, mais
graves, recebiam primeiros-socorros. O médico dali, mais velho,
levantou-se de sua mesa, baixou os óculos e olhou para mim,
piscando de tempos em tempos num tique nervoso. Apertou minha barriga, trocou algumas palavras em inglês e receitou num
141
O OUTRO LADO DO MURO
papel: “food: potato, tea with cake, rice”. Batatas cozidas, chá,
bolo e arroz é o que Mouna me daria à noite, seguindo à risca as
recomendações do doutor.
Na hora de sair, fiz sinal de dinheiro com os dedos à Yossef,
tentando explicar que eu queria pagar pelos serviços do hospital.
Não queria que ele, que morava em um campo de refugiados e vivia
de bicos, ficasse com qualquer dívida. Ele negou veementemente:
“Voluntária internacional! Não paga nada!”, sorrindo, sempre.
Com Yossef não tinha argumentação. Convencido de que eu estava bem tratada, levou-nos de volta à casa de Mouna. Antes, buscou o
resultado de meus exames, para que eu guardasse de lembrança.
*
Às vezes eu me assustava com estrondos que pareciam bombas. Não passavam de fogos de artifício, na verdade. Mouna me
explicou que há muitos casamentos na Palestina, principalmente em seus finais de semana – quinta e sexta-feira – e que os
fogos eram parte das comemorações. Depois que acordei, ela me
convidou para assistir a alguns vídeos – entre eles, o da festa de
casamento de sua prima. Ela explicava que era um casamento
muito rico, da “alta sociedade”. A noiva, vestida toda de branco,
não usava o véu muçulmano. Ela explicou que, no dia do casamento, a mulher pode mostrar toda sua beleza. As convidadas
usavam ou não o hijab, dependendo da sua religião e de seus
costumes. Ela apontou para uma das mulheres que dançavam
142
FERNANDA CAMPAGNUCCI
em volta da noiva: era sua outra irmã, que estuda engenharia
numa universidade da Jordânia.
Perguntei a Mouna qual era o critério para o uso do véu. Ela
o usa quando sai de casa ou quando recebe a visita de um homem;
sua filha de 14 anos, no entanto, não quer usá-lo por enquanto.
“A menina começa a usar o véu quando se transforma em uma
mulher. Geralmente a partir de sua primeira menstruação. Por enquanto, ela faz como se isso ainda não tivesse acontecido. Tem que
ser uma decisão dela”, disse. A filha pequena não vê a hora de usar.
Acha bonito e ajuda a mãe a escolher os seus.
A menina mais velha, que falava inglês muito bem por causa
dos canais americanos que assistia todos os dias na TV, diz que quer
cursar o ensino médio nos Estados Unidos. Mouna disse que se
preocupa, mas vai deixá-la seguir seu caminho.
“Ficar nos Estados Unidos vai ser melhor para eles. Meu filho
mais velho, de 13 anos, está lá com o pai. O mais novo, de 10, também quer ir. Só as duas meninas pequenas ainda não têm o passaporte americano. Estou esperando meu marido voltar para fazê-los.
Da última vez que fui até a embaixada sozinha, fui muito humilhada por um segurança. Ele não queria me deixar entrar porque eu
usava véu, e sou muçulmana. Ouvi coisas que não gostei”.
Entre um vídeo e outro, vimos televisão por uns instantes. Era
uma novela do Kwait.
“Olha como eles são ricos, como as mulheres se vestem bem lá”,
comentou Mouna diante da mulher altamente maquiada e carregada de joias. “No Kwait eles são muito ricos por causa do petróleo,
143
O OUTRO LADO DO MURO
não existe pobreza. Tudo é exatamente como a novela”, disse Mouna, que nunca tinha estado naquele país.
Seu marido viaja muito, a trabalho. Mouna chamou a filha e
pediu que ela trouxesse seu aparelho de DVD portátil, que ganhara
de presente do pai. Agora assistiríamos às gravações que seu marido fizera na última viagem ao Marrocos.
A paisagem de Casablanca capturada de uma câmera portátil
desfilavam na velocidade do carro alugado. Mouna traduzia a narração do marido: esta é a avenida tal, bairro tal; aquele é um clube
famoso; olha esse lindo hotel....
Mais tarde, Shereen apareceu na casa de sua irmã para me visitar, já que viera trazer Pérrine e Sabrina. As duas irmãs deram um
presente para cada uma de nós: para Pérrine e Sabrina, um colar
cujo pingente era a bandeira em forma de mapa da Palestina. Para
mim, um colar com o pingente do desenho do Handala, exatamente como eu havia visto no pescoço de Tal, a ativista da ONG Zochrot, de Tel Aviv.
“Adorei, eu estava mesmo procurando um”, disse, sorrindo.
“Sabíamos que você iria gostar”, disse Shereen. “Todo jornalista que vem aqui gosta”.
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Um museu para Khalil
DOMINGO, 22 DE JULHO DE 2007
O
grupo se dividiu em dois táxis para visitar o campo de refugiados de Balata, ainda em Nablus, onde mora o simpático e
solícito Youssef. O táxi em que eu estava chegou primeiro, e esperamos na calçada a chegada da outra parte do grupo. Um dos moradores
do campo, voluntário da associação de moradores, veio nos receber.
Um grande estrondo atrás de mim me fez saltar em sua direção.
Um carro preto, sem placa, dirigia em alta velocidade e fazia
uma ultrapassagem proibida, quando bateu no táxi que se preparava para estacionar com Sabrina e outras duas garotas – Bouchra e
Myriam. A batida foi na porta, bem ao lado de Sabrina. Pérrine, que
estava ao meu lado na calçada, se precipitou para tirá-las de dentro
do carro. Como a porta estava muito amassada, teve que forçá-la.
Bouchra estava desmaiada, e Pérrine, estudante de enfermagem,
deitou-a no chão e pediu aos os curiosos, aglomerados quase que
instantaneamente no local, que se afastassem. Sabrina estava consciente, mas muito assustada. Myriam, que estava do outro lado do
banco, não sofreu nada.
145
O OUTRO LADO DO MURO
Bouchra abriu os olhos e não conseguia falar nem se mexer.
Felizmente, ela estava apenas em estado de choque e não teve nenhum ferimento mais grave. Uma ambulância que passava na mesma rua parou rapidamente e levou as duas para o hospital. Shereen
as acompanhou.
Sem muito o que fazer por Bouchra e Sabrina, que passariam
a noite em observação, no hospital, continuamos nossa visita pelo
campo. Youssef Rachez – não o mesmo Youssef que me ajudara no
hospital –, era representante do Comitê Popular do Campo de Balata. Lamentou o acidente e deu as últimas notícias sobre Bouchra e
Sabrina. Em seguida, começou a explicar a história do campo.
“Balata foi criado em 1952, por gente que fugiu das milícias
sionistas, pessoas oriundas de mais de trinta cidades diferentes. No
começo, éramos de 4 a 5 mil habitantes. Hoje somos 23 mil pessoas,
em mil famílias. Mais de 35% são crianças”, disse.
A população quintuplicou, mas a superfície que ocupavam
continua a mesma (250 mil m²). Por isso as casas de construção
precária se amontoam e as vielas mal comportam um carro. Não
vi nenhum espaço verde. Rachez explicou que toda a população de
Balata é atendida por apenas um ambulatório com dois médicos.
“Mas o centro médico fecha às duas da tarde. Após essa hora,
não podemos mais ficar doentes”, disse, enquanto nos levava à sede
da associação de moradores.
Rachez apontava para algumas casas para mostrar a presença
da ocupação israelense. As incursões noturnas do Exército, disse,
são praticamente diárias.
146
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Destroem as fachadas, que reconstruímos depois. Às vezes
eles derrubam paredes simplesmente para chegar com tanques ao
outro lado, já que algumas ruas são estreitas. As crianças estão o
tempo todo assustadas, fazem xixi na cama constantemente. Elas
veem seus parentes sendo presos, arrastados. É um terror psicológico para elas ver toda sua família ser obrigada a sair de noite de
pijama e presenciar essas cenas”.
Já na associação, fomos recebidos por Ahmoud Horan, que
nos acomodou em cadeiras de plástico. Umas telas de grafitti feitas
por um artista do campo secavam no galpão, enquanto ele pintava
outra belíssima tela. Ahmoud é sociólogo. Entrou na Universidade
em 1986, mas só se formou em 1996, após passar alguns anos preso.
Disse que chegou a estudar jornalismo.
Ahmoud começou se desculpando pelo acidente sofrido pelas
garotas, que aconteceu bem em frente ao campo.
“Aqui somos muito simples, aceitamos muito bem os outros e,
apesar da pobreza, guardamos o sorriso no rosto. Amamos a vida”.
Quando soube da nacionalidade francesa de vários do grupo (a intérprete Houria traduzia a fala de Ahmoud em francês), disse que
todos na Palestina “respeitavam muito a França e os valores da Revolução Francesa”.
Ahmoud quis explicar melhor o que ele chamava de pobreza.
“Às vezes, a taxa de desemprego do campo chega a 100%,
porque há épocas em que ninguém pode sair daqui. Hoje, cerca
de 60% das pessoas estão sem trabalho, e 35% vivem na miséria
absoluta”, disse.
147
O OUTRO LADO DO MURO
Outro grande problema, para os moradores, é a falta de espaço para as crianças brincarem. “O índice de jovens mortos é muito alto”, lamentou Ahmoud. A taxa do que os palestinos chamam
de mártires (mortos pelo Exército Israelense, em combate ou não)
chega a um terço do número de mortos em Nablus. Segundo ele,
algumas crianças já foram mortas a caminho da escola. São três
estabelecimentos mantidos pela UNRWA – dois para meninas e um
para meninos. “Hoje, felizmente, as pessoas que estudam aqui conseguem se tornar médicos e engenheiros”.
A ONG internacional Médicos sem Fronteiras presta um serviço de apoio psicológico no local, para as crianças.
Alguém perguntou a Ahmoud se, apesar de todos os problemas, ainda há esperança. A esperança, certamente vaga para quem
perguntou, pareceu muito viva nos olhos e nas palavras dele, que
respondeu prontamente:
“Os israelenses pensam que as novas gerações vão esquecer o
que aconteceu em 1948. Mas nossos pais e avós inculcaram a ideia
do retorno nas nossas cabeças, assim como faremos com nossos
filhos. Este é o nosso direito”.
Periodicamente, a associação organiza sessões de testemunho,
onde os mais velhos contam às crianças suas histórias da Nakba e
as experiências de seus avós.
“Ninguém pode se calar sobre isso”, continou Ahmad, “não há nenhuma família neste campo que não tenha um documento para provar
que era proprietária de sua casa, na cidade de onde veio. São autentificados – seja pelo Império Otomano, seja pelo Mandato Britânico”.
148
FERNANDA CAMPAGNUCCI
*
Youssef – agora, sim, o gentil Youssef do hospital – mostrava
sua carteira de identidade na mesa de uma pequena lanchonete do
campo de Balata enquanto nossos falaféis não chegavam. O bar tinha apenas três mesas de plástico e uma péssima ventilação, que
piorava à medida que os falaféis iam sendo fritos. Youssef contava,
com o auxílio de Houria, o que significava aquela carteira.
“Eu faço alguns trabalhos em Israel. Tenho permissão para
entrar – e não residir – no território israelense, com esta carteira.
Ela deve ser renovada de três em três meses, o que me custa três
mil shekels [cerca de 750 dólares]”. No checkpoint, passam o cartão
magnético e sua foto aparece numa tela de computador. Após conferir as digitais, ele pode passar. Mas nem sempre consegue.
Quando comíamos nosso lanche, um homem que suava muito
entrou com dois pares de sapato na mão, para comprar uma garrafa
de água. De repente, ao ouvir nossa conversa, virou-se e começou a
falar em francês. O homem se chamava Jean-Marie e era conterrâneo dos meus colegas.
Feliz e surpreso por encontrar franceses ali, chamou duas senhoras, também francesas, que estavam com ele, e apresentou-se
como comerciante. Na verdade, ele e as duas mulheres faziam parte
de uma empresa chamada Le Philistin, que Jean-Marie fundou para
fazer comércio solidário de produtos feitos por palestinos.
“Estes sapatos de couro aqui foram feitos por pessoas do campo de Balata. Eu compro deles e revendo na França e outros países
149
O OUTRO LADO DO MURO
da Europa. Fazemos o mesmo com o azeite”, disse, estendendo um
de seus folhetos. O símbolo da empresa é uma oliveira, e o texto do
folheto traz dados das oliveiras cortadas na Palestina.
Ao sair do bar, meninos que brincavam na rua nos cercaram.
“Hi! Where are you from?!”, diziam, em inglês, todos ao mesmo tempo.
“Brasil”, respondi, o que me fez virar o centro das atenções
das crianças.
“Brasil! Ronaldo! Kaká”, começaram a citar nomes de jogadores brasileiros, além de outros nomes da seleção, que eu sequer conhecia. De repente, um deles apontou para o colar que Shereen me
dera no dia anterior, com o famoso personagem de Naji Al’Ali:
“Handala!”, disse o menino, sorrindo. Eu olhei para o que estava escrito em sua camiseta já bem desbotada, e sorri também:
“Capoeira!”
Para ser mais precisa, o que estava escrito ali era “Capoeira
Israel”. Não consegui perguntar onde ele ganhara a roupa.
*
O Campo de Balata tem um grande orgulho: o grupo de meninos e meninas que fazem parte de um grupo de dança folclórica,
o Deiritna. O trabalho das crianças faz parte das atividades de mais
uma ONG, o Centro “Criança Feliz”, que visitamos após o almoço.
O diretor Jamal Ishtiwi nos recebeu em uma das salas do Centro. Mostrou algumas fotos das apresentações das crianças e jovens
150
FERNANDA CAMPAGNUCCI
na França, onde estiveram a convite do Ministério das Relações Exteriores francês. “É algo que eles nunca haviam sequer imaginado”,
disse Jamal.
Além das aulas de dança e teatro, as crianças têm apoio psicológico, um parquinho com alguns brinquedos, aulas de jornalismo,
num projeto chamado “Pequeno Jornalista” e outras atividades. Jovens de 16 a 24 anos participam do projeto “Jovens Líderes”, que,
segundo Jamal, destina-se a “fortalecer suas personalidades, para
que aprendam a detectar um problema e possam encontrar uma
solução, com base em direitos civis e nos direitos humanos”.
Ao lado de uma Universidade, sindicatos e outras associações,
o Centro Criança Feliz organiza o evento de rememoração da Nakba. Naquele ano, as crianças do Centro é que prepararam as homenagens e uma peça de teatro para a comunidade.
Aos poucos, as crianças que observavam nossa conversa foram chegando e perdendo a timidez. Jamal perguntou se elas
não queriam se apresentar para o nosso grupo, e algumas meninas disseram que não tinham treinado, além de não estarem
vestindo as roupas tradicionais. Mas logo correram para buscar
um rádio e os materiais que precisavam, e se posicionaram sérias para começar a apresentação.
Meninos e meninas participaram da dança, que é a representação de um momento importante da cultura palestina, a colheita das olivas. Enquanto dançavam, as crianças faziam a mímica de todo o processo da produção do azeite, do qual homens
e mulheres participam.
151
O OUTRO LADO DO MURO
Um garotinho de uns quatro anos estava vidrado na dança,
de cima de um escorregador. A maturidade daquelas crianças
me impressionou.
Jamal pediu ao filho Khaled, de 16 anos, que nos acompanhasse pelo campo. Com um excelente inglês, Khaled disse que nos
levaria à casa de alguns shahids – os mártires que morreram em
consequência ou não de sua atuação militante. Não gosto da ideia
de que a palavra martírio seja usada para designar a ação kamikaze
de homens-bomba que se explodem levando consigo pessoas inocentes. Mas, como tudo aqui, a relação entre a vítima e o carrasco é
intrincada numa só palavra: shahid também é usada para designar
alguém que morreu, por exemplo, esmagado por um tanque que
demoliu sua casa enquanto dormia, ou para os jovens mortos a caminho da escola – inocentes, também.
No caminho, reparei na cena pintada em um muro: um velho e uma criança apontavam uma grande chave para a paisagem
de Jerusalém.
Paramos em frente a um outro muro – o de uma casa – onde
fora pintada a imagem de um homem, ao lado de algumas palavras
escritas em árabe, que Khaled traduziu: libertem Hussein Khader!
Era a casa de Da’ad, irmã de Khader, um parlamentar do Fatah
que fora preso três anos antes. Também viviam ali sua cunhada, a
esposa dele, e a sobrinha.
Depois de servir o chá, Da’ad explicou a história do irmão.
“Ele já foi preso 23 vezes e na primeira Intifada teve que deixar o país definitivamente. Voltou em 1994, depois dos acordos de
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Oslo, e foi eleito parlamentar do Fatah, o partido de Arafat. Em
março de 2003, após a segunda Intifada, explodiram essa porta e
nos obrigaram a sair. Pegaram tudo o que era dele: câmera, computador, documentos. Foi preso sem que pudéssemos vê-lo e interrogaram-no por 94 dias”.
Da’ad contou que sua família assistiu ao julgamento de Hussein. Ele estava preso a correntes, sem poder fazer qualquer sinal.
Desde então, está isolado em uma prisão, na cidade israelense de
Beersheva. Ela só conseguira falar com seu irmão uma vez, com a
ajuda do Crescente Vermelho, para avisá-lo da morte de um outro
irmão. Mesmo assim, o pedido demorou 45 dias para ser atendido,
e a visita durou 15 minutos por um telefone da prisão. “Não pude
sequer vê-lo”, disse.
“Foi preso sob qual acusação?”, perguntei a Da’ad.
“Por sua atividade política. Ele fazia parte da União dos Estudantes Palestinos na Tunísia. Depois, fundou um centro de apoio
aos refugiados, que atendia a muita gente. Foi assim que ele se tornou reconhecido. Um outro parlamentar, amigo seu, viajou para o
Irã como representante da Autoridade Palestina, e esse foi o pretexto oficial para prendê-lo, já que diziam que o Irã financiava grupos
armados daqui”.
Da’ad balançava a filhinha de dois anos no colo. Criava a menina
sozinha, com a ajuda de sua mãe. Seu marido também fora preso.
“Como conseguem se manter?” Esta pergunta me perseguia há
alguns dias, diante de famílias tão empobrecidas, ou de quem quase
tudo fora tirado.
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O OUTRO LADO DO MURO
“Temos a ajuda de muitos amigos”, afirmou Da’ad. Mesmo
internacionais. “Um grupo de parlamentares alemães esteve aqui
para prestar solidariedade. Chegaram a pedir ao parlamento israelense que o soltassem, mas não adiantou”.
Khaled agradeceu o acolhimento de Da’ad e seguimos em nossa caminhada pelo campo. Desviei de alguns buracos e reparei que
as guias de algumas calçadas estavam em pedaços. A escada em
frente a uma das casas estava completamente destruída.
“São os tanques que fazem isso”, disse Khaled, sem que eu precisasse perguntar. Várias casas tinham marcas de balas (ou buracos dignos
de mísseis) em suas fachadas e algumas vidraças estavam quebradas.
Numa avenida mais larga, as crianças corriam entre os vendedores ambulantes de frutas e brinquedos chineses. No fundo da
avenida, as casas se amontoavam ao pé de uma das montanhas que
cercam Nablus – e onde estão baseados, mais acima, os soldados
israelenses. Quem olhava para frente, via um emaranhado de fios
de eletricidade que foram sendo puxados entre as casas. O que era
para ser provisório, tornou-se a realidade caótica de uma favela.
Nos campos de refugiados, o número de homenagem aos
shahids aumentava. Eram cartazes colados em muros, postes e fachadas de casas com fotos de rapazes palestinos – armados ou não
– que foram mortos. Outros tinham faixas em sua homenagem,
com versículos do Corão.
Paramos em frente a uma casa onde um velho de bigode e roupa branca, com um lenço branco preso na cabeça pelo egal (uma tira
de pano preto torcido) tomava chá. Na frente da sua casa também
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
havia fotos de um shahid. Convidou-nos para entrar e conhecer um
pouco da história de sua família. Ele era o patriarca dos Marshud.
Dentro da casa, um choque: um grande painel com um garoto
ao microfone, replicado quatro vezes, tomava o fundo da sala; dezenas de porta-retratos de diferentes tamanhos e formatos ocupavam
cada móvel e cada espaço na parede, com o mesmo garoto, Khalil.
Em algumas outras fotos, aparecia com seu irmão hoje preso e outros membros da família; seu rosto estava estampado mesmo em
quadros pintados e montagens, além de vasos. Duas estantes embutidas na parede de cada lado do cômodo formavam verdadeiros
altares; na verdade, toda a sala parecia ser um grande memorial em
homenagem a Khalil Marshud.
Três anos já haviam passado desde a sua morte, mas sua mãe
mostrava com a decoração de sua casa que nunca se conformaria.
Retratos de seus netos praticamente desapareciam em meio a fantasmas de Khalil. Não dá para saber, no meio das fotos, quem estava
vivo e quem já tinha morrido.
Olhei para o painel do fundo, em que o jovem de 24 anos,
deslocado daquele contexto, mais parecia um líder de movimento
estudantil em cima de uma tribuna. Mas o destino dele era o caminho inexorável dos outros jovens que vi nos cartazes das ruas, que
morreram ou “se explodiram”.
Um irmão mais velho de Khalil explicava com seus filhos pequenos ao lado o que tinha acontecido com o jovem:
“Ele foi perseguido por seis anos pelo Exército. Mas Khalil era
um dos que amam a Palestina e queria resistir por todos os meios
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O OUTRO LADO DO MURO
possíveis” – conforme pude ver nas fotos, inclusive com a luta armada. “Mas aqui quem quer defender seu país é assassinado”.
Khalil era passageiro de um táxi que passava ao lado da Catedral de Jacó, perto dali, no dia 14 de junho de 2006. Um míssil o
atingiu, e tanto ele quanto o motorista morreram na hora.
Sua mãe, que tinha a expressão cansada e usava um véu preto,
talvez de luto, rompeu seu silêncio e começou a gritar:
“Os soldados vinham todos os dias, reviravam cada centímetro, fuçavam até no encanamento. Todos eram obrigados a sair no
frio, de pijama. Khalil tentava impedi-los”.
Ela explicou que, toda vez que há uma incursão no campo, a família Marshud é ponto de parada obrigatória dos soldados, até hoje.
“Duas semanas após sua morte, eles vieram comemorá-la aqui
em frente”. Ela começou a derramar algumas lágrimas, mas imediatamente enxugou-as com o véu. Virou-se aos visitantes e continuou, num tom de voz potente e grave. “Partam e digam que não
somos terroristas! Somos um povo que reage”. Esses pedidos reiterados começavam a pesar.
A senhora Marshud se retirou e entrou em outro cômodo da
casa. Pedi que uma mulher da família me acompanhasse. Eu queria
conversar mais com aquela mãe, que havia feito de sua casa um museu do seu filho. Dei de cara com a senhora sentada no chão de uma
sala sem móveis, onde, para minha surpresa, estavam pendurados
mais quadros de Khalil, que sorria discretamente numa grande tela
pintada com seu rosto.
156
“O que você quer ser quando crescer”?
SEGUNDA-FEIRA, 23 DE JULHO DE 2007
C
hegar a Tulkarem não seria fácil naquela manhã de 23 de julho.
Estavam fechados os dois checkpoints que deveríamos cruzar
para chegar à cidade do noroeste da Palestina, colada ao muro de
separação. Por causa dos bloqueios, já havíamos desistido de ir até
Qalquilya, cidade, aliás, que foi completamente cercada pelo muro.
Mas o motorista do sheirut nos garantiu que havia uma maneira de
chegar pelo menos até Tulkarem: descendo à cidade de Faraa, mais
ao sul, e fazendo uma grande volta por vias secundárias.
No táxi, o motorista traduz a notícia que acabara de escutar no
rádio: dezenas de oliveiras haviam sido queimadas na “fronteira”,
pelo Exército Israelense, que alegou questões de segurança; havia
vários pontos de protesto. No mínimo, essa era a causa do recrudescimento dos checkpoints naquela manhã.
Chegando à Tulkarem, visitamos a Associação de Mulheres da
cidade, fundada em 2000. Elas nos receberam em sua sede, um sobrado com um salão onde faziam as reuniões. Cinco mulheres, que
formavam o núcleo da Associação, começaram a nos servir bolos e
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O OUTRO LADO DO MURO
quitutes que haviam preparado. Umas usavam vestidos longos estampados, véus brancos, rendados, ou coloridos; outras, conjuntinhos de calça e casaco pretos. Eram donas de casa, agricultoras ou
empresárias. Também participavam da Associação de Resistência
contra o Muro, que funcionava ali.
“Nosso trabalho é fazer com que as mulheres possam tomar
seu lugar na sociedade palestina e participem da tomada de decisões”, disse a presidente da associação – Mouna, mãe de cinco filhos
e agricultora.
A entrada das mulheres palestinas na vida política remonta
ao início do século XX, de acordo com o historiador Ilan Pappe.
O crescente contato com estrangeiros teria favorecido essa politização das mulheres cristãs, enquanto aumentou a severidade
nos trajes que, pelas pinturas e relatos de viajantes, não existia
antes. A primeira associação de mulheres na Palestina foi fundada em 1903.
“Participam desta associação cerca de 40 mulheres, de todas
as faixas etárias – de crianças a senhoras idosas – e de diferentes
estratos sociais. Realizamos atividades culturais e cursos, como informática. Procuramos financiamento e fazemos projetos. Mas não
se trata de um espaço para denunciar os problemas da ocupação,
somente. Também é um lugar para falarmos dos problemas que
nós, mulheres, enfrentamos”, continuou Mouna.
Alguém ali perguntou como os homens viam essa atividade.
Nesse momento, um homem que estava sentado num canto e até
então calado, sorriu e falou em voz alta:
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Eu não só apoio como encorajo!”. Era o marido de uma delas.
“As mulheres palestinas sempre lutaram ao lado dos homens, de
igual para igual”, disse Mouna. “Desde a Nakba foi assim. Mas o que
se transmite, lá fora, é a imagem de uma mulher aprisionada em casa”.
*
Em 2003, uma jovem da cidade de Nazlet Issa, perto de Tulkarem, casou-se com um rapaz que morava a 400 metros de sua
casa. Ela poderia visitar sua família quando quisesse, em cinco
minutos. Faez contava a história em frente ao grande muro de
separação, de concreto, oito metros de altura, com câmeras e
grades de proteção no topo.
“Hoje, seu pai, Abu Diz, vive amargurado naquela casa”, disse,
apontando para um sobrado que tinha a fachada cortada, como se
tivessem passado um poderoso facão em uma sacada que possivelmente havia ali. “Sua filha ficou do outro lado”.
Abu Diz e sua filha não conseguem mais se ver – nem por cima,
diga-se de passagem, já que o andar de um prédio que ultrapassava
a altura do muro foi interditado e cercado para que ninguém possa
sequer olhar por cima dele. Para se encontrarem, precisam fazer
um tortuoso caminho até Jerusalém, quando Abu Diz é autorizado
a entrar na cidade, ou rodar mais de 140 quilômetros.
Antes do muro, Nazlet Issa era uma cidade muito viva, comercial, onde os israelenses também gostavam de ir fazer suas compras.
Eu poderia, aqui, apenas relatar o que Faez e outros moradores con-
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O OUTRO LADO DO MURO
taram, mas preferi resgatar algumas daquelas notícias que aparecem fragmentadas na mídia de tempos em tempos. Eis uma delas:
Lojas palestinas são derrubadas e geram conflitos
Tropas israelenses dispararam gás lacrimogêneo para dispersar
manifestantes em uma vila palestina na Cisjordânia hoje, enquanto
escavadeiras demoliam cerca de 50 lojas que Israel afirma terem sido
construídas de maneira ilegal, disseram testemunhas.
Dezenas de manifestantes, incluindo ativistas israelenses de direitos
humanos, foram forçados a recuar quando atiravam pedras contra os
soldados na aldeia de Nazlet Issa, perto da cidade de Tulkarem.
A administração civil israelense na Cisjordânia disse que os soldados derrubaram 21 pequenas lojas porque haviam sido construídas sem permissão.
Mas um representante do B’Tselem, grupo israelense de defesa dos direitos humanos que monitora as atividades do Exército na
Cisjordânia e na Faixa de Gaza, disse que o número de lojas demolidas foi entre 40 e 50.
As lojas eram a principal fonte de receita da população, que depende de clientes árabes-israelenses e judeus, que chegam de Israel
atraídos pelos preços mais baixos.
“Israel está destruindo a economia palestina novamente. É uma política de provocar fome”, disse Ziad Salem, chefe do conselho municipal
de Nazlet Issa. Ele também disse que cerca de 50 lojas foram destruídas.
As lojas faziam parte de um mercado com 200 estabelecimentos,
que, segundo autoridades palestinas, estão ameaçadas. Os palestinos
160
FERNANDA CAMPAGNUCCI
afirmam que as demolições são uma punição coletiva pelo levante de
28 meses por um Estado palestino.
Autoridades israelenses negaram que as demolições tenham ligação com a cerca que Israel está construindo para tentar evitar atentados suicidas. Nazlet Issa e outras aldeias palestinas já perderam
terras por causa da construção da cerca.
O grupo B’Tselem pediu na segunda-feira ao ministro da Defesa
de Israel, Shaul Mofaz, que parasse com as demolições, afirmando
que violam os direitos humanos de centenas de moradores e a lei internacional. O grupo afirmou que não recebeu resposta.
Fonte: Reuters, 23/01/2003
O correspondente da BBC Jeremy Cooke falou em 60 lojas e pequenos comércios, no que chamou de “a maior operação de demolição” dos últimos anos. “Os buldôzeres vieram pela manhã e quando
chegou a hora do almoço toda a área estava coberta de metais retor34
cidos”, diz a reportagem . O que não se sabia ainda, à época, era o
motivo da destruição. De acordo com os oficiais israelenses, o motivo
era meramente administrativo – assim como todas as outras demolições – , sob a alegação de falta de permissão. Jeremy Cooke chegou a
adiantar: “há rumores de que todas as lojas foram demolidas para dar
lugar à cerca de segurança que deve ser construída para proteger Israel
de atentados suicidas, o que foi negado pelas autoridades”.
Foi negado pelas autoridades, mas aconteceu. Pior do que uma
cerca, um muro intransponível, que já virou realidade para aquelas fa34. “Israelis flatten West Bank shops”, Jeremy Cooke, BBC – 21/01/2003
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O OUTRO LADO DO MURO
mílias há mais de quatro anos. Enquanto Faez falava, um garoto que
tinha pouco mais que essa idade abriu a janela que dava de frente para
o muro e um refletor, a pouco mais de dois metros de distância.
Ao lado, uma casa estava literalmente cortada ao meio. Jardins
cuidadosamente cultivados já apareciam entre as paredes destruídas da casa e eu começava a pensar que as flores tornavam o cenário
menos dramático. Só mudei de ideia quando Faez contou que, no
dia em que construíram o muro e demoliram metade do sobrado,
a família que morava ali estava prestes a celebrar um casamento.
O muro é muito mais do que uma separação de fronteiras, como
eu já havia percebido no primeiro dia, em Um Salamona. Com seu desenho retorcido, ele subtrai uma parcela considerável dos 22% da área
que restou aos palestinos. E não é uma área qualquer.
De acordo com Faez, trata-se de uma região de lençóis freáticos importantes, algo precioso na região para a agricultura e mesmo para o abastecimento doméstico. Mas, mais uma vez, prefiro
relembrar o que foi dito à época, pela imprensa, depois que o muro
já havia sido construído:
Muro fica sobre maior aquífero da Cisjordânia
O muro de separação que Israel está construindo sobre as terras
palestinas corta em dois o vilarejo de Nazlet Issa, na parte noroeste
da Cisjordânia. Palestinos não vêem nisso uma coincidência porque
a cidade reside sobre um dos mais ricos aquíferos da área.
Em frente aos blocos de concreto que atingem a altura de 10 metros, o prefeito da cidade, Ziad Salem, disse com frustração: “vejam,
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
estamos andando sobre um imenso reservatório de água. O reservatório que fica sob Nazlet Issa é altamente renovável no meio dessa
área árida, onde a água é amplamente consumida”.
Elizabeth Sime, diretora da CARE, uma organização não-governamental em Gaza e na Cisjordânia, diz que “o trajeto do muro está
coincidindo com o do lençol freático e dos poços. Os maiores poços e
aquiferos, como que por coincidência, ficaram no lado de Israel.
Abdul-Rahman Tamimi, diretor da ONG Grupo Palestino de
Hidrologia afirma que “a trajetória dos aquiferos e a do muro são
100% consistentes” e que “os israelenses querem desmembrar a terra
palestina e tomar aquiferos e lençóis subterrâneos”. Ele acrescentou
que “o muro está separando centros populacionais de fontes de água,
e está impedindo os caminhões-pipa de se deslocar, o que está fazendo
o preço da água subir”.
Tamimi também disse que, em Qalqilia, a construção do muro
confiscou ou destruiu cerca de 20 poços, o que representa 30% da
água da cidade.
Anne Lou Straat, do Centro de Pesquisa em Geopolítica, de Paris, diz que a “água é parte importante do conflito árabo-israelense
desde o princípio”. Hind Khoury, ex-ministro para assuntos de Jerusalém, recentemente indicado como representante da Palestina em
Paris, afirma que “com o muro, os israelenses querem definitivamente
confiscar a água e remover cidades, e a política de Israel sempre foi
focada em empurrar os palestinos ao deserto”.
Fonte: Agência France Presse, AFP, 18/03/2006
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O OUTRO LADO DO MURO
“Se o muro destruiu casas, separou famílias, impediu crianças
de irem à escola, como poderá trazer segurança e paz aos israelenses?”, concluiu Faez, à sombra do muro, com os olhos cheios de lágrimas. Respirou fundo e começou a andar de volta: “vamos tomar
um sorvete”?
164
FERNANDA CAMPAGNUCCI
*
Como nas outras grandes cidades da Cisjordânia, Tulkarem
também tem um campo de refugiados. E como nos outros campos, as crianças nos rodearam e nos encheram de perguntas em
inglês aos nos ver chegar. A particularidade dali é que várias dessas
crianças eram negras: o campo de Tulkarem tem uma das maiores comunidades negras da Palestina, formada principalmente por
imigrantes vindos do Sudão há cerca de um século.
Algumas mulheres que encontramos logo cedo, na Associação,
nos convidaram a conhecer um outro aspecto eclipsado desse conflito: as mulheres palestinas presas. Sana havia acabado de sair de
um período de dois anos na cadeia e ainda procurava se acostumar
com a família e com o filho de quatro anos, de quem só viu a metade da vida. Quando batemos à sua porta ela estava sem o véu, mas
logo voltou toda vestida de preto, usando um pequeno colar, com
a bandeira palestina no pescoço.
Seu irmão Abdahlla, único filho homem de seu pai, fora assassinado. Seu marido também. Sana diz que foi presa por causa dele,
que tinha atividades políticas. Quando começou a contar sobre as
condições da prisão israelense, fiquei tão absorvida que não notei
se o garoto ainda estava na sala ou não. De qualquer maneira, ele
provavelmente já ouvira a história algumas vezes.
A cela subterrânea, com muita umidade infiltrada, causava
doenças respiratórias nas mulheres. Sana contou com indiferença
que a comida era ruim, por vezes misturada a insetos, e a água era
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O OUTRO LADO DO MURO
quente e reutilizada. Mas ela começou a chorar quando falou da
tortura que sofreu.
“Me bateram muito”, disse Sana, que tinha o rosto delicado e
forte ao mesmo tempo. “Quebraram meu ombro, batiam muito na
região do rim, que dói horrivelmente. Depois davam um remédio
que nos deixava inconscientes. Batiam com um bastão plástico nos
nossos pulsos”. Concluiu, enxugando as lágrimas. “São selvagens
em todos os sentidos”.
Uma estudante de Direito que estava conosco perguntou, um
tanto ingenuamente, se ela não teve assistência jurídica para sair da
cadeia. Sana abriu seu primeiro sorriso e respondeu: “não temos
direito a nada”.
Naquele momento, reparei no seu filho pequeno. Sana pegou-o
no colo. Um dos visitantes, dirigindo-se ao menino, em árabe, fez
uma das perguntas de praxe que se fazem às crianças:
“O que você quer ser quando crescer?”
Curiosamente, o garoto não respondeu o que quer ser – talvez
lhe falte vocabulário para isso – mas disse o que deseja ter quando
crescer: uma M-16.
“Por quê?”, perguntaram.
“Matar um soldado”.
“Que soldado?”, perguntou Sana, ainda com ele no colo.
“O soldado que matou meu pai”.
Sana mordeu os lábios. Seu marido morrera quando seu filho
tinha apenas dois meses; ela não soube dizer quem lhe havia ensinado ou como ele aprendera aquelas palavras de ódio.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Outra mulher que acabara de sair da prisão era Raouia, de 23
anos – presa desde os 19. Fora acusada de desacato contra um soldado israelense em um checkpoint. Disseram que tentara apunhalá-lo. Raouia tinha ficado algumas horas na fila para visitar um primo
em Israel.
“Fiquei dois dias algemada, meus pulsos incharam”, disse Raouia.
“Na prisão, homens nos batem como batem em outros homens”.
Depois de dois anos e nove meses presa, Raouia foi à julgamento. Mas, como foi considerada “prisioneira de segurança”, teve sua
prisão prorrogada. De acordo com a garota, 120 mulheres estavam
presas no mesmo lugar que ela, entre mulheres de meia-idade e
adolescentes.
“Havia a esperança da criação de um Estado Palestino, e foi
isso que me deu forças para continuar viva”, disse Raouia, num misto de raiva e tristeza.
“Como é voltar depois de quatro anos”?, perguntei.
Seus olhos se encheram de lágrimas. “Num primeiro momento
eu só pensava na minha família. Mas as coisas agora me parecem
estrangeiras”, disse. “Em casa todos dizem que mudei. Mas eu sou a
mesma; os outros é que mudaram”.
Ela começou a sorrir, ainda com lágrimas nos olhos. “Eles dizem que eu mudei até o meu jeito de falar. Dizem ‘você não fala
mais como nós’. Mas é verdade que eu não me interesso pelas mesmas coisas. O que eu lia, o que eu via na TV, tudo mudou”. Ela parou ao ouvir algumas crianças rindo alto na rua. “É incrível, mesmo
o barulho de crianças me incomoda, hoje”.
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O OUTRO LADO DO MURO
O desafio para ela, agora, é voltar a ter uma vida normal – na medida do possível, já que mora num campo de refugiados da Palestina.
“Na prisão não podíamos estudar. Quero arrumar um trabalho para financiar meus estudos”, disse a garota, olhando para fora
da janela.
*
O sol escaldante ia se pondo aos poucos, e entramos em sheiruts para voltar à Nablus. Fizemos o mesmo contorno da ida, mas
desta vez não pudemos escapar do trânsito. Uma fila imensa de carros estava parada nos dois sentidos da estrada. Pessoas paradas nos
veículos disseram estar ali já há quatro horas. Entre eles, um ônibus
cheio de crianças. Felizmente, a pista que ia para o sul estava mais
livre e conseguimos passar em meia hora. Mais à frente, vimos a
causa do congestionamento: um tanque estava atravessado na estrada, impedindo a passagem. Um soldado olhou desconfiado para
dentro de nosso táxi. Perguntou-nos de onde vínhamos, e Sophie,
como sempre, já tinha uma resposta ensaiada.
Embora eu me encontrasse no estado de quem viveu o dia mais
quente de toda sua vida, fui visitar a brasileira Dona Meredita, antes
de voltar ao apartamento de Mouna. Shereen disse que ela estava
muito ansiosa para me ver e eu também estava curiosa para saber
como uma brasileira tinha ido parar em Nablus.
“Ah, cheiro do Brasil!”, me agarrou instantaneamente a senhora de 66 anos, num abraço forte e demorado.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
Meredita ficou feliz ao ver uma brasileira – e, mais, uma paulista como ela – em sua casa depois de tantos anos. Ela está na Palestina desde 1964. Como havia chegado ali?
35
“Ah, não sei, yani , foi Deus quem quis que eu viesse”, disse
Dona Meredita, num português que às vezes esbarrava em palavras
árabes. Sua filha, que estava ao lado, não sabia falar uma palavra em
português e se surpreendeu com a mãe. Riu quando reconheceu
algumas palavras árabes.
“Ela ainda sabe falar bem português?”, perguntou. Sim, como
se nunca tivesse deixado de falar.
Dona Meredita nasceu em Bauru, no interior do Estado de São
Paulo, mas sua família morava em uma pequena cidade próxima – São
Manoel. Quando embarcou no navio que a traria ao Oriente Médio,
tinha apenas 24 anos. A viagem demorou um mês e dois dias.
“Era o ano do golpe militar”, comentei.
Ela parou um instante e balançou a cabeça.
“O quê?”
Tentei explicar o que tinha acontecido em 31 de março de
1964, mas Meredita nunca ouvira falar em regime militar, golpe de
Estado, repressão. Tentei lembrá-la do presidente à época, mas ela
não parecia reconhecer nenhum nome. “Getúlio Vargas? Juscelino
Kubitschek? Jânio Quadros? João Goulart?”. Diante de sua expressão de dúvida, arrematei: “Ah, não importa, eu também só os conheço da aula de História”.
35. Yani é uma expressão árabe que significa algo como “quer dizer”. Dona Meredita a usava para
procurar as palavras certas em português, enquanto falava.
169
O OUTRO LADO DO MURO
“Eu me lembro muito bem do Adhemar de Barros, aquele era
um pai!”, sorriu ao falar do governador populista dos anos 50, “mas,
yani, eu não pude estudar”. E, mais séria, contou: “eu chorava para o
meu pai que eu queria aprender. Na minha cidade não tinha escola.
Fui estudar quando tinha 12 anos, mas já era muito moça”.
Seu destino mudou de continente quando conheceu seu marido, na Rua do Oriente, em São Paulo. Ele, sim, era palestino. E
tinha uma pequena loja no bairro conhecido pelo comércio tocado
por imigrantes.
“Tem muito árabe lá”, disse, “e tem muito judeu, também. Mas
eles não brigam como aqui, não”.
“Vocês se conheceram, se casaram, e mudaram para cá?”
“Tem que ser muito boba para casar com um árabe, yani. Se eu
não fosse tão boba, nem casar eu casaria!”, disse. Depois, virou-se
para a filha e continuou falando em português. “Eu quero voltar
para o Brasil, quero ir embora com ela!”. Rimos juntas ao ver que
sua filha não entendia nada.
Dona Meredita aprendeu a falar árabe em dois meses, mas
nunca aprendeu a escrever a língua. É que quando se mudou para a
Palestina, foi morar numa fazenda em Tulkarem.
“Mas se a senhora chegou em 64”, perguntei, “deve ter visto
várias guerras, como a Guerra dos Seis Dias, em 1967”.
“Foi horrível. Você viu as fotos dos corpos sem braços, sem pernas”?
Sua filha mais nova – das duas que ela teve – tinha apenas quinze dias na época da guerra. Meredita estava sozinha em casa com
o bebê, e ficou desesperada quando um soldado israelense entrou.
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Eu gritei: saia daqui! Por favor, fique longe do meu bebê! Mas
ele não acreditou que aquela criança loira e branquinha era minha,
que sou mais morena”.
Meredita baixou o tom de voz e contou, quase sussurrando:
“De repente, o soldado se inclinou no berço, olhou bem para
minha filha, e disse: dorme bem, bebê”. E partiu.
Mas e sua família no Brasil, nunca mais se falaram?
Treze anos depois de sua chegada, já no final dos anos 70, Meredita resolveu visitar o Brasil de avião, junto com as duas filhas.
Viajou pelo aeroporto de Tel Aviv, que à época ainda era acessível para os palestinos. Seu marido, que tem medo de voar, não
as acompanhou.
Mas, de volta à Palestina, Meredita passou longos 26 anos sem
notícias do Brasil ou de sua família. Eles se comunicavam apenas
por cartas e, como não recebera mais nenhuma resposta, Meredita
logo pensou que pudesse ter acontecido o pior. Da parte da família no
Brasil (sua mãe, sua irmã...) todos achavam que Meredita é que tinha
sofrido alguma coisa, já que nenhuma carta mais chegava da Palestina.
A família de Abu, marido de Meredita, ficou com medo de que
ela – que só falava em voltar ao Brasil – levasse consigo as filhas.
Então, decidiram esconder todas as cartas que ela mandava postar
– assim como esconderam todas as que chegavam da família brasileira. Até que as cartas pararam de chegar. Em São Manoel, o nome
de Meredita já estava no túmulo, ao lado de sua avó.
“Um dia, no ano de 2000, fui fazer uma grande limpeza e encontrei o pacote com todas as cartas que esconderam de mim. Meu
171
O OUTRO LADO DO MURO
genro médico, casado com minha filha mais velha, entendeu a situação e levou ele próprio uma carta minha para postar em Jerusalém. Deixei todos os meus dados – endereço, telefone, com a esperança de que eles ainda estivessem no mesmo lugar”. Uma semana
depois, recebeu o telefonema de São Manoel.
“Quando eu penso nisso...”, disse Meredita, chorando. “Ah,
yani, me leva com você!”
Depois de receber a ligação, Meredita visitou o Brasil e ficou
mais de um mês com a família. Suas filhas não foram com ela dessa
vez, porque não têm o passaporte brasileiro.
“Estamos tentando tirar o passaporte para elas, mas parece que
é necessário viver seis meses no Brasil para adquirir a cidadania.
Elas não podem fazer isso. Primeiro, porque não conseguem entrar
em Israel para pegar o avião. Eu passo muito facilmente pelos checkpoints com meu passaporte, mas elas não. Sempre ficam retidas.
Além do mais, elas têm filhos pequenos, que frequentam a escola.
Se conseguissem sair, quem sabe se poderiam voltar?”
Agora, ela planeja uma nova viagem. Abu, hoje com 80 anos,
continua com horror de avião.
“Mas eu vou, ah se vou! Um dia ainda largo tudo e vou, sim”,
disse Dona Meredita, me servindo mais chá.
172
Hoje não tem aula
TERÇA-FEIRA, 24 DE JULHO DE 2007
A
s visitas oficiais não me atraíam muito, mas acompanhei meus
companheiros de viagem ao Ministério da Saúde da Autori-
dade Nacional Palestina, em Nablus. Passamos por alguns prédios
públicos totalmente destruídos, cujos escombros estavam intocados às vezes há dois anos, mas este edifício ainda estava intacto.
O diretor de Relações Públicas do ministério, o médico Omer Al-Nasser, recebeu-nos em sua sala e começou a folhear alguns relatórios, enquanto enumerava os hospitais administrados pela ANP:
vinte e quatro, no total.
O primeiro dado que Omer citou foi a paralisação de serviços por causa do bloqueio econômico, que deixou a administração sem recursos.
“Por causa da falta de pagamento dos salários, os funcionários
da Saúde estão em greve há mais de um mês. Mas tentamos manter os serviços básicos – como a diálise, o tratamento de câncer, as
vacinas”, afirmou o diretor, citando o documento do sindicato que
estava em suas mãos.
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O OUTRO LADO DO MURO
“Sem dúvida, o principal problema do sistema de saúde palestino é a ocupação. São questões estruturais, como os mais de 300
barreiras que impedem funcionários e pacientes de chegar aos hospitais. Bebês morrem nos bloqueios porque suas mães são impedidas de se deslocar, em ambulâncias ou não”, disse Omer. “E também
há o muro. Em cidades como Qalquilya, as pessoas tinham um hospital a 1 km de casa, e hoje têm que percorrer 20 km”.
Segundo Omer, o sistema de saúde fica sobrecarregado com
os feridos graves em decorrência do conflito – os chamados feridos
“securitários” – pela falta de equipamentos e medicamentos necessários. Esses feridos são transferidos para outros locais, como Jerusalém, Jordânia, Egito e, em último caso, Israel.
“Isso nos custa muito caro”, explicou Omer, “Antes da criação
da Autoridade Palestina, trabalhávamos com 30 milhões de dólares
ao ano. Depois da criação, em 1994, passamos a contar com 100
milhões. Mas o ideal seria de 150 milhões de dólares, pelo menos”.
Um relatório chamado “Feridos Securitários”, elaborado pelo
Ministério, aponta que os atingidos na cabeça e no pescoço desde
2000 representam 8 mil de um total de 50 mil feridos – sendo a
maior parte, segundo Omer, composta de crianças, adolescentes e
pessoas idosas. Pedi uma cópia do documento.
“Ele está publicado no site do Ministério na internet. Mas, neste momento, infelizmente, o site está nas mãos do Hamas”, respondeu o diretor.
174
FERNANDA CAMPAGNUCCI
*
Um funcionário nos acompanhou durante a visita a um hospital público criado por um turco, em 1905, e um dos maiores da
região. Quando deixávamos o pátio do hospital para pegar táxis e
encontrar estudantes na Universidade de Nablus, algumas ambulâncias chegaram, transportando muitos feridos. Médicos e enfermeiros corriam para ajudar a transportá-los para o pronto-socorro.
Sophie recebeu uma ligação. Um confronto entre partidários
armados do Hamas e do Fatah na Universidade de Nablus havia
deixado 30 estudantes feridos – os mesmos que agora chegavam
em macas e passavam ao nosso lado, no hospital. Seriam aqueles
com quem deveríamos nos encontrar em instantes? Segundo as
primeiras informações que recebemos, estudantes ligados ao Hamas haviam distribuído panfletos políticos – o que é proibido na
Universidade – e provocado o confronto. A Universidade fechou,
como vinha acontecendo em outras cidades, e nosso encontro foi,
obviamente, cancelado.
175
Um pedaço de terra brasileira
QUARTA-FEIRA, 25 DE JULHO DE 2007
N
a minha última manhã em Nablus, tentei, mais uma vez,
comprar kuffiehs originais. Havia prometido a alguns ami-
gos. Pedi a Fateen, voluntário do Project Hope, que me acompanhasse para aumentar meu poder de barganha em árabe.
Ele me levou direto a uma lojinha pequena e abarrotada, cheia
de tecidos e outras peças amontoadas numa estante quadriculada.
Fateen, que nasceu e cresceu em Nablus, garante que é a única loja
que ainda vende originais naquele bairro. Atrás do balcão, o vendedor olhava desconfiado para mim. Lançou o preço, ouviu minha
contraproposta, mas foi irredutível.
“Por esse valor, posso lhe oferecer apenas estes, chineses”, me
estendeu o pano ralo meio translúcido.
Resolvi levar o original, mais caro, mas tive que me contentar
com apenas um. Meus amigos que me perdoem, mas os tradicionais
kuffiehs palestinos estão ficando cada vez mais raros na Palestina –
se eles quiserem entrar na moda, que comprem em São Paulo.
177
O OUTRO LADO DO MURO
*
Dona Meredita fez questão de preparar um grande jantar para
se despedir de mim. No dia anterior, encontrei-a no apartamento
de sua filha Dinah, que fica no mesmo prédio que o seu. Desta vez,
fomos ao seu apartamento, mesmo. A primeira coisa que reparei foi
uma velha bandeira de plástico do Brasil pendurada na parede. Ela
disse que ficava sempre lá.
Apesar de ninguém saber como se pronuncia o nome de Meredita (chamam-a, no máximo, de Dita) todos a conhecem pela
sua habilidade na cozinha. Ela sabe fazer pratos árabes melhor que
qualquer mulher árabe, garantiram as filhas.
Charutos, saladas, coxinha (feitas especialmente para eu
matar as saudades de casa, disse Meredita), kibe assado... Dona
Meredita ia colocando um prato atrás do outro diante de mim,
como uma avó.
“Come, come, não fica com vergonha!”, dizia para mim, repondo as iguarias no meu prato, sem que ninguém mais a entendesse.
Depois do jantar, perguntei a Meredita se ela não queria que
eu trouxesse uma carta ou alguma pequena encomenda para a sua
família em São Manoel. Ela hesitou um pouco, mas, como insisti,
voltou do quarto com uma grande sacola de plástico.
“São coisinhas pequenas”, falou, “lembranças para a minha
irmã. Pode ser”?
Claro, não tive como recusar. Eram dois tapetes, cinco quadrinhos de gesso com imagens da cidade de Jerusalém e Belém, cuida-
178
FERNANDA CAMPAGNUCCI
dosamente embrulhados – um deles era para mim – e outros tantos
chaveiros com a Mão de Fátima. Prometi entregar as lembranças.
Fomos à casa da outra filha de Meredita. Dinah nos levou em
seu carro, um Fiat Uno antigo. No caminho, ela falou de sua profissão: é engenheira – e casada com outro engenheiro, o irmão de Shereen. Reparei que as duas filhas e a neta de Meredita não usavam o
véu. Perguntei qual era sua religião.
“Quando me casei com Abu, me converti à religião dele, o islamismo. Mas Deus é o mesmo, minha filha. Alá é o nosso mesmo
Deus”, disse.
Chegamos à casa onde moram o genro médico – o que enviou
as cartas de Meredita à família no Brasil – e a outra filha. Era um
palacete. Sentamos ao redor de uma grande mesa no jardim e ficamos ao lado das árvores com cachos de primavera, tomando suco
de laranja gelado, naquela noite agradável. Quase toda a família de
Meredita estava reunida: marido, filhas, netos. Aproveitaram para
fotografar a reunião. Falamos de tudo, menos do conflito. Sobre
planos para o futuro, sobre viagens, sobre o Brasil. Aliás, aquele
quintal florido e feliz entre os muros da casa mais parecia um pedaço qualquer de terras brasileiras. Mas o encontro não durou muito.
Já eram quase 22 horas, e todos sabiam: não se pode circular em
Nablus tão tarde.
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Cuidado com o lixo
QUINTA-FEIRA, 26 DE JULHO DE 2007
V
oltei a Jerusalém de ônibus, com Sabrina. Carregar o mochilão nas costas e uma mochila na frente ficou mais di-
fícil do que eu pensava, com as encomendas de Dona Meredita. Pior foi passar a pé pelos checkpoints e mudar de condução
por causa disso pelo menos duas vezes. O sol escaldante deixava
tudo ainda mais pesado.
O motorista do ônibus passou recolhendo todas as identidades
e nossos passaportes para entregá-los aos soldados que esperavam
do lado de fora. Depois de algum tempo, o homem voltou e foi até
nossos assentos para dizer que os soldados israelenses pediram que
Sabrina e eu descêssemos. Saímos do ônibus, apreensivas.
“Olá”, me disse o soldado, em português, sorrindo “o que uma
brasileira está fazendo aqui”?
“Turismo”, disse, pegando o passaporte de sua mão. “E você, é
brasileiro?”, perguntei, sem muito ânimo.
Era. Mas não tive tempo – nem vontade, por causa da situação – de desenvolver a conversa. Afinal, um ônibus inteiro esperava
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O OUTRO LADO DO MURO
enquanto os soldados eram todo sorrisos para as estrangeiras que
fizeram descer do carro. Aliás, por serem muito jovens, essa tentativa de aproximação dos soldados com turistas é comum. Outras
garotas já haviam me contado casos parecidos.
De volta a Jerusalém, corri para empacotar meus cadernos de
anotações, fitas de vídeo e outros materiais que eu havia coletado
durante a viagem. Precisava enviar tudo pelo correio para minha
casa no Brasil, para que eu não tivesse problemas com isso, no aeroporto. Além de poder, eventualmente, ter meu material confiscado,
também temia ser incluída na extensa lista de pessoas não desejáveis que ousam ver como as coisas se passam do outro lado, e ser
impedida também de voltar a Israel e à Palestina.
Depois de me desfazer das caixas dos quadrinhos de Meredita,
para que estes coubessem na minha mochila, embrulhados em seus
tapetes, segui, sob o sol a pino, à procura de um posto dos Correios.
Deixei para trás, com tristeza, diversas publicações, porque não tinha como carregá-las. Turistas andavam de camelo e tiravam fotos,
perto do Portal de Damasco. A agência postal mais próxima ficava
fora da Cidade Velha, em Jerusalém ocidental.
Chegando à agência, desabei com o ânimo e a bagagem no
chão. Diversas pessoas estavam paradas em frente ao posto de Correios fechado, algumas nervosas e outras resignadas, esperando. De
repente, um funcionário coloca à porta um aviso em hebraico, dizendo que naquele dia, excepcionalmente, a agência estaria fechada. O dia estava acabando e eu tinha que voltar a Tel Aviv. O check-in do meu vôo para Budapeste-Paris seria às 4 horas da manhã e eu
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
decidira passar a noite no aeroporto. Mas eu não chegaria a Tel Aviv
a tempo de encontrar uma agência dos Correios aberta.
Parei no primeiro cybercafé que encontrei e entrei sem notar
que os donos – e a maioria dos frequentadores – eram judeus ortodoxos. Paguei uma hora de acesso à internet para descarregar e
gravar em um CD todas as fotografias que eu havia tirado. Enquanto as fotos da Cisjordânia – muitas delas com cartazes de mártires,
símbolos palestinos, soldados israelenses ou colônias – desfilavam
rapidamente pelo meu monitor, senti que, por mais que eu tentasse
ser discreta, alguns clientes não paravam de olhar em direção ao
meu computador.
Tudo pronto, era hora de decidir o que fazer com aquilo. Lembrei-me, então, do simpático Ashraf, dono do Hotel Hebron. Eu deixaria
com ele tudo isso dentro de um envelope, com a quantia estimada dos
gastos de remessa, para que ele colocasse a correspondência no correio
para mim, num outro dia. Como não aguentava mais andar, por causa
do calor, tive a – no mínimo – irresponsável ideia de pedir ao dono
do café para deixar meu mochilão ali, enquanto eu ia à Cidade Velha
entregar uma correspondência. Todos sabem que, numa cidade traumatizada pelos atentados a bombas em lugares como aquele, objetos
abandonados e longe do dono são sinônimo de perigo. Mas, para minha surpresa, o atendente aceitou sem pestanejar.
Entreguei o pacote com todo o meu trabalho ao filho de Ashraf,
e só me restava torcer para que tudo chegasse bem (o envelope foi
postado em agosto de 2007, mas só o recebi em minha casa, aliviada, três meses depois).
183
O OUTRO LADO DO MURO
*
No terminal rodoviário de Tel Aviv, esperando o ônibus que
me levaria ao aeroporto, revisei com calma as anotações que ficaram comigo. Percebi que acabei deixando na bolsa algumas folhas
avulsas com anotações, nomes e telefones das pessoas que entrevistei nas cidades não-reconhecidas do deserto do Neguev.
Imediatamente, dobrei as folhas e as joguei na lata de lixo que
estava bem na minha frente. Menos de cinco minutos depois, um
homem vestido com roupas normais, civis, saído não sei bem de
onde, caminhou em direção ao lixo, enfiou sua mão lá dentro e tirou as folhas que eu havia jogado. Prendi a respiração, atônita. O
que significava aquilo? Talvez por não entender as anotações em
português, ou por julgá-las inofensivas, o homem jogou de volta
o papel e voltou na direção de onde ele viera. Por impulso, voltei a
pegar as folhas no lixo e, dessa vez, piquei-as em pedaços ilegíveis.
Meu ônibus chegou.
Distraí-me durante a viagem de ônibus conversando com a
garota sentada ao meu lado, uma jovem com piercing e tatuagem,
falante e curiosa. Conversamos sobre o Brasil e a Dinamarca, onde
ela fez um intercâmbio. Ela trabalhava em uma loja de CDs durante
a noite, no aeroporto, e me convidou para visitar a loja, durante as
horas que eu passaria sozinha por lá.
Passei as primeiras horas no aeroporto de loja em loja, e parei para jantar na praça de alimentação. Mais ou menos uma hora
da madrugada, ouvi o som conhecido da trilha sonora da novela
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
brasileira Terra Nostra, que estava sendo exibida na TV. Fiquei entediada e depois irritada com os avisos para não “deixar a bagagem
fora de vista ou abandonada” que eram tocados de cinco em cinco
minutos na gravação do alto-falante do aeroporto. Perguntei-me se
ouviria aquilo a noite toda.
De repente, um agente antibombas passa ao meu lado e, todo
equipado com uma pesada roupa preta e uma máscara que cobria
toda a cabeça, dirigiu-se ao centro da praça de alimentação. Um
copo do McDonald’s estava solitário em cima de uma mesa. Ele
cutucou o copo com um bastão, que tinha uma pinça na ponta,
para finalmente verificar que estava vazio – a não ser pelo restinho de coca-cola que o viajante apressado provavelmente não
conseguira beber. Olhei ao redor e ninguém mais parecia estarrecido com a situação.
185
“Cinco”
SEXTA-FEIRA, 27 DE JULHO DE 2007
A
ssim que pude me apresentar ao check-in, às 4h30, levantei e
me dirigi aos guichês, que estavam vazios. Antes que eu pu-
desse chegar à entrada da fila, porém, um agente do aeroporto à
paisana me parou para fazer algumas perguntas.
“Shalom”, disse o homem, que usava óculos escuros.
“Shalom”, respondi.
Ele desatou a falar em hebraico e o interrompi calmamente dizendo, em inglês, que eu não sabia falar a língua.
“Como assim”, perguntou, “você não fala hebraico”?
“Não, não sou judia”, respondi. Ele parecia não acreditar.
“Mas você nunca aprendeu, mesmo? Nem quando criança”?
“Não, nunca tive a oportunidade”.
“Sei”, disse, olhando agora para todas as páginas do meu passaporte.
“O que você foi fazer em Londres”?
“Fui passar o Natal lá”, respondi, laconicamente.
“Entendo. E na França, o que fez?”.
“Estudei em uma universidade, num programa de intercâmbio”.
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O OUTRO LADO DO MURO
“Estudou o quê”?
“Ciência Política”, falei, já meio impaciente com as perguntas.
Não via aonde ele queria chegar com aquilo. Depois, seguiu com
uma série de perguntas sobre o que eu fiz, que lugares visitei, o objetivo da minha viagem. Omiti a visita à Cisjordânia.
“Desculpe, mas, para quê tudo isso”?, perguntei.
“Fique tranquila, é um procedimento padrão”, disse, colando
um adesivo com o número 5 na contracapa de meu passaporte.
“Passe por aquele balcão, antes do check-in”.
Deixei minha bagagem e minha bolsa em cima do tal balcão, atrás
do qual uns dez agentes trabalhavam entre computadores e equipamentos diversos. Era possível ver o que faziam, pois o local não tinha paredes.
Meu mochilão foi aberto e cada roupa e objeto devidamente investigado.
Carregadores de bateria, pilhas, nécessaire. Já a bolsa com meu pen drive,
minha máquina fotográfica e filmadora foi parar dentro de uma salinha.
Não sei se chegaram a checar o conteúdo, mas não duvidava de nada no
aeroporto com o esquema de segurança mais rígido do mundo.
Os quadrinhos de Dona Meredita ganharam uma atenção especial do agente fuçador, que passou um bastão detector (de partículas?) mais de três vezes em cada um. Fiquei um pouco incomodada com a devassa das minhas roupas sujas, enquanto as mãos sob
luvas de plástico do agente selecionavam minhas coisas como quem
separa lixo reciclável. Ainda bem que não demorei tanto tempo assim para arrumar a mala.
Ao meu lado, uma mulher de uns 30 anos, judia, talvez americana, deixou o passaporte em cima do balcão e acomodou sua ba-
188
FERNANDA CAMPAGNUCCI
gagem no chão. O mesmo agente que encaminhou minha bagagem
à prospecção de objetos suspeitos olhou seu passaporte – que tinha
o número 1 colado na parte de trás dele – e perguntou o que ela
levava em sua mala.
“Apenas roupas e alguns souvenirs”, respondeu a moça.
“Ok. Pode passar”, disse o agente, indicando o caminho do check-in.
Obviamente aquele sistema de números dos adesivos – de 1 a
6, provavelmente – era alguma espécie de classificação da periculosidade dos passageiros, apesar de eu não ter conseguido nenhuma
informação oficial a respeito. Uma mulher ao meu lado, número
5 também – porém muito mais nervosa do que eu – reclamou e
perguntou aos agentes se aquilo ainda ia demorar muito tempo. Ela
parecia indignada com a passagem fácil da nossa colega número 1,
que sequer teve que abrir as malas.
Isso porque, certamente, a investigação dos passageiros não
começa ali. Israel adotou uma tecnologia preventiva de “detecção
de comportamento suspeito” que interessou até aos Estados Unidos. Em setembro de 2008, o chefe do Departamento de Segurança
Interna dos EUA, Michael Chertoff, visitou Israel para conhecer de
perto a tecnologia capaz de analisar o comportamento dos passageiros a fim de adotá-lo no país. Um acordo para o compartilhamento desse know-how foi assinado na ocasião.
Desenvolvido pela empresa israelense de tecnologia WeCU, o
sistema alia a ciência comportamental a sensores biométricos para
detectar intenções obscuras entre os viajantes. O método israelense de interrogar cada passageiro, no entanto, não é tão prático nos
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O OUTRO LADO DO MURO
maiores aeroportos americanos, declarou Chertoff, numa conferência em Jerusalém. Cerca de 9 milhões de pessoas passam pelo
aeroporto Ben-Gurion por ano, enquanto aeroportos como o Chicago O’Hare, nos EUA, recebem mais de 76 milhões de passageiros.
A tendência, portanto, é automatizar o processo. O Projeto de
Intenções Hostis (PHI, na sigla em inglês) deve ser implementado
pelos americanos até 2012 e prevê um software especial nas câmeras para detectar, com aparelhos de laser e de infravermelho, microexpressões faciais e comportamentos suspeitos.
O professor Peter McOwan, da Queen Mary University, em Londres, trabalha na confecção de um novo software que possibilita a leitura
da face humana por computadores. “Estamos procurando por microexpressões faciais em pessoas que em geral mantêm uma expressão neutra, mas que em algum momento se exprimem de forma inconsciente,
ao, por exemplo, mover as sobrancelhas. Esses movimentos acontecem
muito rapidamente e acreditamos que essas microexpresões possam nos
fornecer meios de detectar potenciais terroristas”, disse o professor em
36
entrevista à BBC . Uma careta momentânea ou um piscar de olhos suspeito seria suficiente para levar alguém a ser interrogado.
Eu, que passei a noite zanzando no aeroportos, entrando em
cada loja e observando tudo, nem me dei conta do quanto era observada. Também não tenho ideia do que leu nas minhas expressões faciais o agente que colou o número 5 no meu passaporte.
A procura por suspeitos parece não ter limites. No mesmo
mês em que Israel e EUA discutiam o aprimoramento de seus
36. BBC Brasil: EUA querem identificar terroristas por expressões faciais, 25/09/2007
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FERNANDA CAMPAGNUCCI
sistemas de segurança, um dançarino afro-americano de uma
das maiores companhias de dança do mundo, a Alvin Ailey
American Dance Theater, foi detido no aeroporto Ben-Gurion.
Jackson teve que dançar na frente dos agentes para provar sua
participação no grupo. Ele é um dos veteranos da companhia,
mas seu nome árabe o tornava suspeito.
Jackson chegou junto com o grupo para uma performance em
Tel Aviv, que foi escolhida como a primeira cidade da turnê da Alvin Ailey. “Passamos pelo controle de segurança, mas eu fui abordado e pediram que eu esperasse”, disse Jackson ao site israelense
37
YnewsNet . Ele foi, então, levado a uma sala de espera separada.
Jackson contou que o interesse dos agentes era o seu primeiro
nome, Abdur-Rahim. “Expliquei que meu pai se converteu ao Islã
e me deu esse nome”. E então perguntaram o nome dos meus pais e
o porquê da escolha.
Ele tentou mostrar as brochuras em que aparecia dançando
em várias performances, sem sucesso. “Eles viram as fotografias e
pediram que eu dançasse ali mesmo. Eu estava envergonhado mas
tinha medo que, se fizesse alguma coisa de errado, eu parecesse suspeito”. O dançarino fez, então, alguns passos na frente dos agentes e
foi solto depois de alguns outros esclarecimentos. Ficou detido por
mais de uma hora. A Autoridade Israelense de Aeroportos disse
que “os detalhes do incidente são desconhecidos e nada foi encontrado em nossa investigação”.
37. If you want to enter Israel, dance. Reportagem de Reuven Weiss, publicada no site YnetNews.com
em 9/9/2008
191
O OUTRO LADO DO MURO
Omar Barghouti, coreógrafo e um dos fundadores da Campanha
Palestina de Boicote Acadêmico e Cultural de Israel, criticou a postura
dos agentes de segurança no caso. Ele disse em um artigo publicado em
38
seu site que esse é um caso típico da classificação étnica promovida
por Israel e difundida em diversos locais públicos no país.
Barghouti, que é um cidadão israelense de origem árabe, conhece bem a situação. “Quando eu, portador de uma carteira de
identidade israelense, viajo pelo aeroporto de Tel Aviv, por exemplo, sempre ganho adesivos estampados com o número ‘6’ no meu
passaporte e bagagem. Judeus israelenses, em contrapartida, sempre recebem o ‘1’ ou ‘2’. Um ‘6’ leva ao controle mais degradante
de pessoas e bagagens. Os números mais baixos, porém, significam
que você e sua bagagem vão passar apenas pelo raio-x”, escreveu.
Barghouti lembra que, alguns anos antes, esses adesivos e etiquetas não traziam números, e sim cores. “Eu sempre pegava um vibrante
vermelho, enquanto judeus israelenses pegavam um rosa choque ou
outras cores mais ‘benignas’”, disse o coreógrafo. Um relato de militantes franceses da Campanha Civil de Proteção ao Povo Palestino
(CCIPPP) de janeiro de 2003 mostra situação parecida. Emanuelle e
Laurent contam, no relato da viagem, que receberam etiquetas vermelhas em todas as bagagens. Atrás deles, uma colega que respondeu que
tinha visitado amigos ganhou uma etiqueta azul. “Tentei perguntar à
charmosa controladora qual a diferença das cores, mas ela disse que
39
não poderia nos dizer”, escreveu Laurent .
38. So you think you can dance? Omar Barghouti, 12/09/2008
39. Relatos da 42ª missão do CCIPPP, de 3 de janeiro de 2003 – retirado de www.protection-palestine.org.
192
FERNANDA CAMPAGNUCCI
“Algumas autoridades israelenses espertas devem ter sido alertadas de que a classificação de passageiros segundo um código de
cores, conforme sua etnia e/ou religião, era parecida demais com
o apartheid. Então, eles mudaram para um código de números su40
postamente mais sutil”, conclui Barghouti .
*
Entregaram minha bagagem com as roupas e objetos ainda
revirados em um recipiente plástico, e tive que guardá-los rapidamente, ainda no balcão. Aquilo já havia durado mais de uma hora
e o avião decolaria em pouco tempo. Passei, ainda, por um detector
de metais e o raio-x (sem jaqueta, sem sapatos – que também foram
levados para averiguação) para finalmente ser liberada para ir à sala
de embarque. Um agente me acompanhou até praticamente a porta
do avião, para que eu passasse mais rápido por eventuais filas e não
perdesse o voo. Quanta gentileza... Depois do “bem vinda a Israel”,
na minha chegada, só ficou faltando o “volte sempre”, na partida.
40. De volta ao Brasil, perguntei a Michel Warschawski, da AIC, onde eu poderia tentar confirmar o
sistema de codificação dos passageiros e o número de pessoas que eram impedidas de entrara em Israel
por questões de segurança. “Infelizmente, temo que nem eu nem ninguém possa lhe responder essas
perguntas”, disse o ativista. A embaixada de Israel em Brasília também negou que soubesse qualquer
uma das informações. A assessoria de imprensa sugeriu que eu procurasse o departamento de comunicação do aeroporto e disse que nem se soubesse tais informações poderia fornecê-las.
193
Agradecimentos
A Yone Fernandes e Fernando Gallo, pela leitura cuidadosa do originais, e a Cyrus Afshar, pelo companheirismo em todo o processo.
À professora Arlene Clemesha, pelas observações atenciosas ao trabalho de conclusão de curso que originou este livro, todas incorporadas aqui, e ao professor Cláudio Tognolli, pela orientação.
A minha irmã Simone, por todo apoio e pela belíssima ilustração
da primeira capa e do blog, a meus pais e minha família.
A Diego Vega e aos amigos da Ação Educativa, em especial Ester
Rizzi e Mariângela Graciano, que muito incentivaram a publicação
deste relato.
A todos os membros da Géneration Palestine, pelo apoio logístico e
as traduções do árabe, que me foram essenciais na viagem.
E a todos os ativistas dos direitos humanos – de todo o mundo –
que lutam por dias melhores para o povo palestino e, corajosamente, não param de produzir informação para além dos muros.
Sem vocês, esse livro não existiria.
Referências bibliográficas
ARBEX Jr., José. Terror e esperança na Palestina. São Paulo: Casa
Amarela, 2002.
BANKS, Russel [et al.]. Viagem à Palestina. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
BRUNSWIC, Anne. Bienvenue em Palestine. Paris: Actes Sud, 2004.
CATHERINE, Lucas. Palestine. Berchem: EPO, 2003.
FINKELSTEIN, Norman. Imagem e Realidade no Conflito Israel-Palestina. Rio de Janeiro: Record, 2005
GRESH, Alain. Israël, Palestine – Verités sur un conflit. Paris:
Fayard/Hachette, 2002
HERZL, Theodor. O Estado Judeu. Rio de Janeiro: Mercaz-Wizo-Brasil, 1954.
MORRIS, Benny. Birth of the Palestinian Refugee Problem. Londres: Cambridge University Press, 1989.
PAPPE, Ilan. História Moderna da Palestina. Uma terra, dois povos. Lisboa: Caminho Nosso Mundo, 2000
SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Para conhecer mais...
SITES DE ORGANIZAÇÕES CITADAS NESTE LIVRO
Applied Resarch Institut de Jerusalém (ARIJ)
www.arij.org
Alternative Information Center
www.alternativenews.org
Combatentes pela Paz
www.combatantsforpeace.org
Comitê Israelense contra a Demolição de Casas (ICADH)
www.icadh.org
Ecumenical Accompaniment Programme in Palestine and Israel
www.eappi.org
Centro “Criança Feliz”, Campo de Balata
www.hcc-pal.org
Holy Land Trust
www.holylandtrust.org
Jaffa – Autobiografia de uma cidade
www.jaffaproject.org
Palestinian Academic Society for Studies of International Affairs
www.passia.org
Project Hope
www.projecthope.ps
Stop the Wall
www.stopthewall.org
União Geral dos Estudantes Palestinos - Seção Francesa (GUPS)
www.gupsfrance.org
Zochrot – Direitos Humanos em Israel
www.zochrot.org
Continue acompanhando notícias da Palestina no Blog de O
Outro Lado do Muro: http://outroladodomuro.wordpress.com

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