Também enganamos a nós mesmos
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Também enganamos a nós mesmos
Também enganamos a nós mesmos* Na segunda-feira, 30 de julho de 1962, John F. Kennedy entrou no Salão Oval e ligou o moderno sistema de gravação novo em folha que mandara instalar no fim de semana. A primeira conversa que gravou foi sobre uma conspiração para subverter o governo do Brasil e tirar do poder o presidente João Goulart. Nennedy e seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, discutiram o gasto de US$ 8 milhões para interferir nas eleições seguintes e preparar o terreno para um golpe militar contra Goulart — “para expulsá-lo, se necessário”, disse o embaixador Gordon ao presidente. O posto da CIA no Brasil deixaria “claro, discretamente, que não somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, em absoluto, se ficar claro que o motivo da ação militar é...” “...Contra a esquerda”, completou o presidente. Ele não deixaria que o Brasil ou qualquer outra nação do hemisfério ocidental se tornasse uma segunda Cuba. Começou a fluir dinheiro da CIA para a vida política do Brasil. Um dos canais era o Instituto Americano para Desenvolvimento de Trabalho Livre, braço do AFL-CIO¹ (diplomatas britânicos que estavam por dentro do assunto o chamavam de AFL-CIA). Outro era o Instituto para Estudos de Pesquisas Sociais, uma recém-formada organização de líderes empresariais e cívicos do Brasil. Os receptores eram políticos e oficiais militares que se opunham ao presidente Goulart e que mantinham íntimo contato com o novo adido militar americano no Brasil — Vernon Walters, futuro vice-diretor da central de inteligência. O retorno desses investimentos seria pago em menos de dois anos. As fitas da Casa Branca, transcritas em 2001, registram conversas diárias sobre os planos de ação secreta que ganhavam forma no Salão Oval. Em 8 de agosto, McCone se reuniu com o presidente na Casa Branca para discutir a conveniência de despejar centenas de soldados nacionalistas chineses na China de Mao. O presidente aprovara a operação paramilitar. McCone estava em dúvida. Mao tinha mísseis terra-ar e, conforme McCone disse ao presidente, o último U-2 que a CIA enviara para sobrevoar o território chinês foi localizado e seguido por radares da China comunista doze minutos depois de decolar de Taiwan. “Isso é uma piada”, disse o assessor de segurança nacional de Kennedy, Michael Forrestal, filho do falecido secretário de Defesa. “Daremos ao presidente outro desastre do U-2” E qual seria a mentira dessa vez?, brincou o presidente. Todos riram. Um mês depois da reunião, as forças de Mao derrubaram um U-2 sobre a China. Em 9 de agosto, Richard Helms foi à Casa Branca para discutir as chances de derrubar o governo do Haiti, a 48 quilômetros de Cuba. O ditador do Haiti, François “Papa Doc” Duvalier, vinha roubando a ajuda econômica americana e usando o apoio militar americano para sustentar seu regime corrupto. O presidente autorizou um golpe. A CIA forneceu armas a dissidentes que esperavam derrubar o governo usando quaisquer meios necessários. A questão sobre se Duvalier seria assassinado foi considerada. McCone deu sinal verde. Mas a CIA estava hesitante. “Devo dizer, senhor presidente, que não parece que esse plano seria muito bem-sucedido”, disse Helms. Ele advertiu que o “bando de pistoleiros” de Duvalier era “uma força repressora que não mede esforços”, o que tornava “o plano um negócio perigoso”. Faltava ao melhor agente recrutado pela CIA, um ex-chefe da guarda costeira haitiana, a vontade ou os recursos necessários para levar o golpe adiante. Para Helms, as chances de sucesso eram escassas. “Um outro golpe realmente não vai fazer nenhum bem se você não tem com quem trabalhar”, disse o presidente a Helms. Em 10 de agosto, John McCone, Robert Kennedy e o secretário de Defesa, Robert McNamara, reuniram-se na suntuosa sala de conferência do secretário de Estado, Dean Rusk, no sétimo andar do Departamento de Estado. O assunto era Cuba. McCone lembrou “uma sugestão apresentada para liquidar as pessoas mais importantes do regime de Castro”, incluindo Castro e seu irmão Raul, ministro da Defesa cubano, que acabara de voltar de uma viagem a Moscou para comprar armas. Ele achava a idéia horrível. O diretor via um grande perigo pela frente. Previa que a União Soviética daria armas nucleares a Castro — mísseis balísticos de médio alcance capazes de atingir os Estados Unidos. Vinha se preocupando com essa possibilidade havia mais de quatro meses. Não tinha informação secreta alguma, nada para ir em frente além de um forte instinto. McCone era o único que via a ameaça com clareza. “Se eu fosse Kruschev”, disse ele, “colocaria mísseis ofensivos em Cuba. Depois eu poria os pés sobre a mesa e diria aos Estados Unidos, ‘Como vocês se sentem olhando para a boca do cano de uma arma, só para variar? Agora vamos falar de Berlim e qualquer outro assunto de minha escolha’”. Ao que parece, ninguém acreditou nele. “Os especialistas concordaram unânime e inflexivelmente que aquilo estava além do reino das possibilidades”, observa um relato da agência dos tempos de McCone.“Ele ficou absolutamente sozinho.” Havia um crescente ceticismo em relação à capacidade da agência em prever o comportamento dos soviéticos. Durante uma década, seus analistas haviam errado sistematicamente. “A CIA chegava e pintava o quadro mais assustador possível do que os soviéticos fariam conosco — passaríamos a ser de segunda categoria; os soviéticos seriam o Número Um”, disse o ex-presidente Gerald R. Ford, que em 1962 fazia parte da reclusa subcomissão da Câmara que fornecia o orçamento secreto da CIA. “Eles tinham gráficos na parede, tinham números, e sua conclusão era de que em dez anos os Estados Unidos estariam atrás da União Soviética em capacidade militar, em crescimento econômico”, disse Ford. “Era uma apresentação assustadora. O fato é que eles estavam errados em 180 graus. Aquelas eram as melhores pessoas que tínhamos, os assim chamados especialistas da CIA.” * Trecho da página 219 do livro Legado de Cinzas, de Tim Weiner ¹American Pederation of Labor e Congress of Industrial Organizations (Federação Americana de Trabalho e Congresso de Organizações Industriais. (N. do T.) A área mais perigosa do mundo* Em 15 de agosto, McCone voltou à Casa Branca para discutir a melhor maneira de derrubar Cheddi Jagan, primeiro-ministro da Guiana Britânica, uma colônia miserável nos pantanais caribenhos da América do Sul. Dentista educado nos EUA, casado com uma marxista de Chicago chamada Janet Rosenberg, Jagan era descendente de trabalhadores agrícolas coloniais. Fora eleito pela primeira vez em 1953. Logo depois, Winston Churchill suspendeu a constituição colonial, ordenou que o governo fosse dissolvido e pôs os Jagan atrás das grades. Eles foram libertados depois que os britânicos restauraram o governo constitucional. Jagan foi reeleito duas vezes, e visitou o Salão oval em outubro de 1961. “Fui ver o presidente Kennedy em busca da ajuda dos Estados Unidos e de seu apoio à nossa independência em relação aos britânicos”, recordou Jagan. “Ele era muito encantador e jovial. Os Estados Unidos temiam que eu desse a Guiana aos russos. Eu disse, ‘Se é isso que vocês temem, não tenham medo’. Não teremos uma base soviética.” John F. Kennedy proclamou publicamente — numa entrevista em novembro de 1961 ao genro de Kruschev, editor do Izvesitia² que “os Estados Unidos apóiam a idéia de que todos os povos devem ter o direito de escolher livremente o tipo de governo que querem”. Cheddi Jagan podia ser “um marxista”, disse ele, “mas os Estados Unidos não fazem objeção, porque essa escolha foi feita numa eleição honesta, que ele venceu”. Mas Kennedy decidiu usar a CIA para depôlo. Não muito tempo depois de Jagan deixar a Casa Branca, a guerra fria esquentou em Georgetown, capital da Guiana Britânica. Estações de rádio nunca antes ouvidas entraram no ar. Servidores civis entraram em greve. Distúrbios tiraram a vida de mais de cem pessoas. Sindicatos trabalhistas se revoltaram depois de receberem assessoria e dinheiro do Instituto Americano para o Desenvolvimento do Trabalho Livre, que por sua vez recebia dinheiro e conselhos da CIA. Arthur Schlesinger, assistente especial e historiador oficial da Casa Branca de Kennedy, perguntou ao presidente: “A CIA acha que pode realizar uma operação realmente secreta, isto é, uma operação que, quaisquer que sejam as suspeitas que Jagan possa ter, não deixará qualquer rastro visível que ele possa citar diante do mundo, quer ele vença ou perca, como prova da intervenção dos EUA?” Em 15 de agosto de 1962 na Casa Branca, o presidente, McCone e o assessor de segurança nacional McGeorge Bundy decidiram que era hora de agir. O presidente lançou uma campanha de US$ 2 milhões que acabou tirando Jagan do poder. Mais tarde, o presidente Kennedy explicou ao primeiro-ministro britânico, Harold Macmillan: “A América Latina era a área mais perigosa do mundo. O efeito de ter um Estado comunista na Guiana Britânica... seria criar pressões irresistíveis nos Estados Unidos para um ataque militar a Cuba.” Na mesma reunião de 15 de agosto que selou o destino de Jagan, McCone entregou ao presidente Kennedy a nova doutrina da CIA para contra-insurgência. Juntamente, foi entregue um segundo documento descrevendo operações secretas em andamento em onze nações — Vietnã, Laos e Tailândia; Irã e Paquistão; e Bolívia, Colômbia, República Dominicana, Equador, Guatemala e Venezuela. Esse documento era “altamente secreto porque conta tudo sobre os truques sujos”, disse McCone ao presidente. “Uma maravilhosa coleção ou dicionário de nossos crimes”, afirmou Bundy, com uma risada. Em 21 de agosto, Robert Kennedy perguntou a McCone se a CIA poderia orquestrar um falso ataque à base militar americana na Baía de Guantánamo como pretexto para uma invasão americana a Cuba. McCone foi contra. Disse a John Kennedy em particular, no dia seguinte, que uma invasão poderia ser um erro fatal. Advertiu o presidente pela primeira vez de que achava que os soviéticos poderiam estar instalando mísseis balísticos de médio alcance em Cuba. Se realmente estivessem, um ataque americano furtivo poderia deflagrar uma guerra nuclear. Ele defendeu aumentar o alarme público sobre a probabilidade de uma base de mísseis soviética. O presidente imediatamente rejeitou a idéia, mas especulou se seriam necessários guerrilheiros da CIA ou soldados americanos para destruir os locais de mísseis — se eles existissem. Nesse momento, ninguém além de McCone estava convencido de que existiam. A conversa continuou no Salão Oval pouco depois das 18h de 22 de agosto, quando eles receberam Maxwell Taylor, o general em que Kennedy mais confiava. O presidente queria analisar outras duas operações secretas antes de discutir Cuba. A primeira era um plano em desenvolvimento para lançar vinte soldados nacionalistas chineses no território continental chinês na semana seguinte. A segunda era um plano da CIA para fazer escuta telefônica de correspondentes da imprensa em Washington. “Como estamos indo com a preparação daquele negócio para Baldwin?”, perguntou o presidente. Quatro semanas antes, Hanson Baldwin, repórter de segurança nacional do New York Times, publicara um artigo sobre o esforço dos soviéticos para proteger locais de lançamento de mísseis balísticos intercontinentais com bunkers de concreto. A reportagem altamente detalhada de Baldwin apresentava com precisão conclusões da mais recente estimativa da inteligência nacional da CIA. O presidente disse a McCone para criar uma força-tarefa interna para pôr fim ao fluxo de segredos do governo para os jornais. A ordem violava a carta de direitos da agência, que proíbe especificamente a espionagem interna. Muito antes de Nixon criar sua unidade de “encanadores”, formada por veteranos da CIA para impedir novos vazamentos, Kennedy usou a agência para espionar americanos. A CIA concorda completamente com...a criação dessa força-tarefa, que seria um grupo de investigação contínua reportando-se a mim”, disse McCone mais tarde ao presidente. De 1962 a 1965, a CIA continuou vigiando Baldwin, outros quatro repórteres e suas fontes. Ao ordenar que o diretor da central de inteligência conduzisse um programa de vigilância interna, Kennedy abriu um precedente que os presidentes Johnson, Nixon e George W. Bush seguiriam. Nesse mesmo encontro na Casa Branca, a conversa finalmente se voltou para Castro. Trinta e oito navios soviéticos haviam atracado em Cuba nas últimas sete semanas, disse McCone ao presidente. Sua carga “pode incluir partes de mísseis. Não sabemos”. Mas de qualquer modo os soviéticos estavam trabalhando para aumentar a força militar de Cuba. “Agora, isso estaria separado da questão sobre se estão construindo algumas bases de mísseis, não?”, perguntou o presidente. “Bem, não”, disse McCone.“Acho que as duas coisas estão relacionadas. Acho que estão fazendo ambas”. McCone partiu de Washington no dia seguinte para uma longa lua-de-mel. Viúvo recente que acabara de se casar novamente, ele planejava ir a Paris e ao sul da França. “Ficaria bastante feliz se o senhor me procurasse”, escreveu ele ao presidente, “e se o senhor o fizer, ficarei de algum modo aliviado do sentimento de culpa que parece me possuir.” * Trecho da página 221 do livro Legado de Cinzas, de Tim Weiner ² Jornal Diário de Circulação nacional na Rússia, fundado em 1917 e ainda em atividade. (N. da E.)