A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL

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A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL
Revista Ipisis Libanis
(Revista Eletrônica Acadêmica do ICBL)
A SHARIA E SUA INTERAÇÃO COM O DIREITO INTERNACIONAL PUBLICO E
PRIVADO
Najad Khoury1
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O profeta Maomé propagou uma nova ordem política-religiosa, o Islã, entre 622-632 D.C., com o
intuito de unificar a Península Arábica. Ele recitava as palavras divinas, reveladas verbalmente pelo
anjo Gabriel, que posteriormente foram agrupadas após sua morte no Alcorão, o Livro sagrado dos
Muçulmanos. Maomé introduziu preceitos religiosos, recomendações, advertências éticas e morais
e a direção para as condutas religiosa e social. Esse conjunto de instruções formou a base da Sharia,
um compilado das primeiras leis escritas do incipiente Estado-Nação muçulmana que abrigava
aproximadamente 100.000 habitantes.
Devido à proximidade física e o convívio com outras comunidades, judaicas e cristãs, que
habitavam a mesma península, a primeira fase da Sharia foi influenciada pelas leis e hábitos de
Torá. Sobre essa confluência regida, primordialmente, pelo aspecto religioso, Gideon Libson2
ressalta que:
"Estudiosos estavam conscientes da semelhança geral dos dois sistemas jurídico-religiosos,
sendo ambos casuísticos, formais, pessoais, relevantes para todas as áreas do comportamento
humano, desenvolvidos principalmente pelos esforços da doutrina, em vez de pelo
precedente judicial. Ambos não fazem a distinção entre Estado e religião, uma vez que
ambos dão direito à precedência religiosa sobre o Estado3”.
Após a Hijra4, a migração da cidade natal Meca para Medina que marcou o inicio de calendário
muçulmano, Maomé introduziu as primeiras leis administrativas para reger o convívio pacifico na
1ª cidade conduzida por princípios teocráticos através do tratado formal, Ṣaḥīfat al-Madīna,
1
MBA em Relações Internacionais pela Fundação Getúlio Vargas.
Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém onde leciona as disciplinas Lei Judaica e Islâmica e
Comparativo das Leis Judaicas e Islâmicas
3
https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0011_0_10121.html
4
A Hijra (Hégira): A migração para Medina, antiga Yathrib em 622 D.C., ano que celebra o início do calendário
muçulmano.
2
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elaborado com a preocupação de criar uma comunidade única entre os muçulmanos recémchegados e as comunidades judaicas e árabes existentes na cidade. Para este fim, instituiu uma série
de direitos e responsabilidades para por fim com as lutas internas, roubos, estupros e assassinatos.
Entretanto apesar de assumir a liderança religiosa e politica, Maomé atribuiu aos chefes religiosos,
judeus e cristãos, o direito de julgar os membros das suas congregações. Portanto, a Sharia nasceu
harmonizando com outras de leis dentro do mesmo espaço físico, característica essa que perdura até
hoje.
Como havia pouca escrita na época e seguindo as tradições locais, os versos de Alcorão eram
decorados e repetidos. Entretanto com a expansão do Império Muçulmano e a morte dos repetidores
em batalhas, surgiu-se a necessidade de unificar a administração dos territórios conquistados sob
uma nova ordem jurídico-religiosa. Assim, o conteúdo do Alcorão foi compilado e escrito anos após
a morte do Profeta, sob a orientação central dos primeiros Califas herdeiros, denominados
Rashidoun (os bem-guiados), que governaram entre 632-661 D.C.
A versão original do Alcorão tornou-se a primeira base escrita da Sharia, a jurisprudência Islâmica.
O Alcorão constituiu-se a 1ª referência legal e transformou o árabe a língua oficial do Império
Muçulmano.
Narrativas sobre a vida de Maomé, seus atos – Sunnah - e falas – Hadith - circulavam livremente
nos territórios conquistados, sendo também, reunidos e escritos séculos após sua morte. Ao
contrário do Alcorão, cuja legitimidade é incontestável, esses relatos não foram compilados por uma
autoridade central reconhecida por unanimidade. Além disso, foram repercutidos principalmente em
Damasco, distantes há mais de 1000 km de Meca e Medina na Península Arábica, onde o profeta
viveu, pondo em cheque a sua legitimidade. Esses relatos sempre estiveram sujeitos a interpretações
e contestações ao longo da história entre estudiosos das várias correntes da religião Islâmica.
Cada narrativa, Hadith, é baseada em duas partes: o conteúdo e a cadeia de narradores. Quando é
individual, dita por membro da Família do Maomé ou por membro dos seus companheiros, tende a
ser autêntica e aceita. Mas quando é fruto de várias repetições acaba perdendo a validade e sua
autenticidade tende a se enfraquecer.
As instituições religiosas espalhadas entre Damasco na Síria, Cairo no Egito, Qum no Irã e Riad na
Arábia Saudita concordam plenamente sobre o teor do Alcorão, um livro imutável cuja versão
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original é impressa até hoje. Entretanto, apesar da falta de consenso em relação às várias
interpretações e classificações, os estudiosos concordam que as Hadith e Sunna fazem parte plena
da Jurisprudência Islâmica, em similaridade com o Talmude para a religião judaica.
O Alcorão e a Hadith se originaram no deserto, onde predominavam hábitos tribais que não
atendiam às necessidades sociais e legais das diversas sociedades bizantinas, africanas, persas,
ibéricas e chinesas, as quais rapidamente foram agregadas sob domínio do Islã. Surgiu-se, então, a
necessidade de criar fontes legais mais abrangentes para governar todos os territórios ocupados.
Assim, o Islã criou várias Escolas de Pensamento para agregar às diversidades sócio-culturalreligiosas no Império Muçulmano.
Entre as Escolas de Pensamento Sunitas5 encontram-se as Hanafita, Malikita, Shafiita e Hanbalita
(Salafita). As três primeiras escolas são moderadas e racionais, espalhadas fora da Península
Arábica, como no caso da Turquia, Egito, Indonésia e Marrocos entre outros. A última se destaca
pelo seu radicalismo religioso que prega o puritanismo e a volta à origem do Islã. Ela orienta a seita
Whabita6, que domina o poder na Arábia Saudita, da onde originou, Kuwait, Catar e Emirados
Árabes Unidos, e nutre os movimentos radicais da al-Qaeda, Boko Haram e do autodenominado
Estado Islâmico7.
A segunda facção do Islã, a Xiita8, desenvolveu outras Escolas de Pensamento distintas, as
Jaafaritas, Zaiditas e Alawitas predominantes no Irã, Iêmen e Síria.
O quarto elemento que compõe a Sharia é a Fatwa, o pronunciamento religioso emitido por
5
Maomé faleceu sem indicar claramente quem era o seu herdeiro. A disputa em torno da herança religiosa e política
criou cisma definitiva em 681 D.C, quando a Nação Muçulmana, Umma,se dividiu entre Xiitas e Sunitas. O 1º grupo
era composto pela linhagem familiar do Profeta, Ahl al-Bait, e o 2º era composto pelos novos Califas, descendentes dos
primeiros companheiros de luta, as-Sahaba, que expandiram o seu domínio para o Levante e transformaram Damasco
na próspera capital do novo Império Muçulmano .
6
Os Wahabitas compõem 1 % dos 1,25 bilhões de Sunitas no mundo. São aproximadamente 10 milhões que habitam
principalmente a Península Arábica. Porém, se distinguem no cenário internacional devido à sua riqueza colossal
oriunda da exportação de petróleo. Outra característica fundamental para esse reconhecimento é o financiamento
bilionário das Madraças Islâmicas (escolas religiosas) no exterior que ajuda a difundir sua mensagem com víeis político.
7
8
Acrônimo em árabe, DAESH, que atua atualmente na Síria e no Iraque.
Os xiitas são aproximadamente 250 no mundo.
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autoridade máxima islâmica - o Grand-Mufti em países sunitas e o Aiatolá em países xiitas -,
expressando o seu julgamento ou opinião sobre assunto relevante, religioso, social, cultural ou
comercial, não necessariamente localizado na sua jurisdição. A Fatwa tem efeito de Decreto Lei
emitida em Estado de exceção, podendo ser executada por qualquer muçulmano a qualquer hora e
em qualquer parte do mundo.
Portanto, a Sharia, a Jurisprudência Islâmica, é conceito que engloba o as quatro fontes citadas Corão, Sunnah, Hadith e Fatwa’s – regulando o comportamento dos seus seguidores e tolerando
variações na sua aplicação conforme a região e os hábitos locais.
Inicialmente a Sharia definiu a relação dos homens com Deus, como a hora e a forma de orar, se
alimentar, se higienizar e tributar. Entretanto, a partir de 624 D.C., após Maomé conclamar Medina
como a primeira Cidade-Estado, a Sharia adveio de mensagens messiânicas para formular as leis
que governavam as comunidades conquistadas pelo Islã. As revelações ditavam os trâmites legais e
eram contínuas; nas palavras de Paulo Gabriel Pinto, “O seu governo foi pautado por sucessivas
revelações da vontade Divina sobre questões de cunho jurídico9”.
A partir dessa segunda fase, instituiu-se o pagamento de proteção para a comunidade não
muçulmana que vivia sob o seu domínio e proibiu-se o porte de armas nas cidades, roubo, estupro e
assassinato. Definiu-se, também, os direitos matrimoniais, as permissibilidades nas relações
sexuais10 e recomendações, como não engravidar durante o período de amamentação. Deliberou-se
ainda sobre os direitos de herança, alimentos e a custódia dos filhos no caso de divórcio. Advertiuse contra a bebida alcoólica, os jogos de azar e a bruxaria, estipulando penalidades variáveis,
financeiras, castigos físicos ou a morte. O adultério, por exemplo, é penalizado com apedrejamento,
o roubo com corte de mão e a apostasia, com execução. Os “homens que se comportam como
mulheres”, podem enfrentar pena de morte11.
A Sharia tentou enquadrar todas as ações em várias categorias: obrigatórias, louváveis, permitidas,
desprezadas e não permitidas. A maioria dos atos se enquadra na categoria “permitida”, a menos
que haja prova ao contrário em qualquer uma das quatro fontes mencionadas anteriormente. O
9
Islã: Religião e Civilização Uma Abordagem Antropóloga- Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto pág. 43
O sexo tem que ser praticado frontalmente excluindo o período de menstruação.
11
O Irã trata homossexualismo como doença emocional e permite mudança de sexo à custa do seguro social do país. Na
Arábia Saudita a penalidade é capital.
10
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divórcio, por exemplo, é um ato desprezado no Islã sem associação com pecado, entretanto deve
ser considerado como último recurso, quando todos os outros meios de resolver os problemas entre
os cônjuges já tenham sido esgotados. A ingestão de bebidas alcoólicas não é recomendada no
Alcorão. Aquele que fazê-la está cometendo um pecado e será responsabilizado por isso no dia do
julgamento. Alguns países castigam o autor, enquanto outros ignoram. Novos hábitos constituem
novas interpretações. Por exemplo, dirigir um carro ou usar a internet é permitido, pois não existem
provas contrariando essas ações. Porém, enquanto a maioria dos países islâmicos como Irã, Egito,
Turquia, Síria e Iraque permite dirigir, a Arábia Saudita limita ou proíbe as mulheres de fazê-lo. Já o
ato de criar blogs que critiquem o governo é proibido em alguns países, caracterizando, assim,
interpretações locais da Sharia.
Podemos perceber que, como bem destaca Eduard Said, “não há um único Islã, mas vários” e o
assunto é bastante discutido entre os muçulmanos. Enquadrar o Islã em apenas uma vertente é um
erro comum que deve ser evitado. Afinal, “a diversidade é uma característica de todas as tradições,
religiões ou nações, mesmo que alguns de seus membros tenham futilmente tentado traçar fronteiras
ao seu redor e demarcar credo12”.
Entre os 57 membros da Organização de Cooperação Islâmica, os países que aplicam estritamente a
Sharia são: a Arábia Saudita, o Irã, a Mauritana e o Sudão. Nos outros países a Sharia convive com
outro sistema jurídico, contudo, regula o Direito da Família em todos.
Interação da Sharia com o Direito Internacional Privado
O Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP) promulga a máxima autonomia na
prática da fé:
“Cada Estado Parte no presente Pacto compromete-se a respeitar e a garantir a todos os
indivíduos que se encontrem nos seus territórios e estejam sujeitos à sua jurisdição os
direitos reconhecidos no presente Pacto, sem qualquer distinção, derivada, nomeadamente,
de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião, de opinião política, ou de qualquer outra
opinião, de origem nacional ou social, de propriedade ou de nascimento, ou de outra
12
Edward W. Said, Cultura E Política pág. 138.
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situação13”
O artigo 18 do mesmo pacto reconhece que a liberdade de manifestar a religião ou as crenças se
prescreve se houver confronto com a segurança, ordem, saúde pública, moral, direitos fundamentais
51
e liberdades de outros.
“1. Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de
religião; este direito implica a liberdade de ter ou de adotar uma religião ou uma convicção
da sua escolha, bem como a liberdade de manifestar a sua religião ou a sua convicção,
individualmente ou conjuntamente com outros, tanto em público como em privado, pelo
culto, cumprimento dos ritos, as práticas e o ensino”.
2. Ninguém será objeto de pressões que atentem à sua liberdade de ter ou de adotar uma
religião ou uma convicção da sua escolha.
3. A liberdade de manifestar a sua religião ou as suas convicções só pode ser objeto de
restrições previstas na lei e que sejam necessárias à proteção de segurança, da ordem e da
saúde públicas ou da moral e das liberdades e direitos fundamentais de outrem.
4. “Os Estados Partes no presente Pacto comprometem-se a respeitar a liberdade dos pais e,
em caso disso, dos tutores legais a fazerem assegurar a educação religiosa e moral dos seus
filhos e pupilos, em conformidade com as suas próprias convicções”14.
Os defensores dos direitos humanos cobram que em alguns países a lei Sharia não protege homens e
mulheres ou muçulmanos e não muçulmanos igualmente e, portanto, viola os acordos internacionais
de direitos humanos. Garantir o balanço aceitável entre o DIPr descrito no ICCPR e a Sharia tem
sido desafiador nesses países. Por exemplo, os xiitas na Arábia Saudita não podem orar em público
junto com os sunitas. No Iraque, onde os xiitas predominam no poder, os sunitas sofrem
descriminações. Os cristãos e outras minorias lidam com outras violações dos seus direitos, mesmo
que tenham habitado naqueles países antes do advento do Islã. Dentre essas atitudes
segregacionistas, citamos a limitação ao acesso a certos cargos públicos e a permissão da conversão
13
14
ICCPR International Covenant on Civil and Political Rights (1966), art 2, UN Treaty
Ibidem, Artigo 18.
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de um cristão ao islamismo enquanto o contrário não é admitido.
Países que aplicam o Direito de Família baseado na Sharia têm abordagens distintas para problemas
como divórcio, custódia de crianças, assistência alimentar e herança. Dependendo do país, o
divórcio pode ser obtido verbalmente pelo homem, porém as esposas não podem ter esta iniciativa,
exceto em caso de violência doméstica. Mesmo assim, elas só podem ganhar no máximo três meses
e dez dias de pensão alimentar e a criança passa da custódia da mãe para a do pai quando alcançar
sete anos. Na herança, a mulher ganha metade da parte do homem, o que aumenta a subjugação
feminina. Em resposta às críticas, alguns países apontam para o caráter islâmico especial do país,
afirmando que isso justifica uma ordem social e política diferente.
A complexidade dos sistemas jurídicos desafia fronteiras e sistemas legais soberanos, especialmente
quando se trata de casamentos inter-raciais ou religiosos envolvendo múltiplas nacionalidades e
residências.
A título de exemplo, citamos um caso de abdução de filhos brasileiros frutos de casamento de mãe
brasileira e pai libanês, com dupla nacionalidade. Apesar de um juiz brasileiro conceder a custódia à
mãe ou em regime compartilhado, o pai, segundo interpretação libanesa do Islã, tem o direito
exclusivo de custodia mesmo ter levado as crianças involuntariamente. Qualquer pleito que a mãe
tente levar adiante deve encontrar diversos obstáculos. Segundo o professor de direito internacional
da USP, Pedro Dallari:
“O direito libanês concede ao chefe da família muito mais prerrogativas. Esse contexto
cultural libanês realmente traz mais dificuldade para que a mãe consiga reaver a sua
criança”15.
Mesmo apresentando ordem jurídica brasileira de custódia legal, haverá discussão sob o DIPr que
paira ao fundo todas e quaisquer disputas legais internacionais. A questão que se coloca é: será que
no Líbano, um juiz abdicaria a sua jurisprudência e reconhecerá a ordem de custódia brasileira
cedendo assim, a determinação de um tribunal estrangeiro? Ao fazê-lo pode aparecer como se o
juiz libanês está diferindo o julgamento para um tribunal brasileiro, abandonando seu papel judicial,
ou subvertendo a ordem jurídica do Líbano ao interesse soberano do Brasil. Consequentemente a
jurisprudência do Líbano não vai apoiar a reivindicação da mão brasileira para reaver os seus filhos.
15
http://g1.globo.com/brasil/noticia/2010/08/mae-que-teve-filha-levada-por-pai-libanes-nao-ve-ha-quatromeses.html
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O DIPr implica em aplicar a lei de um "outro sistema legal" como se fosse melhor do que a de “o
seu próprio sistema jurídico”. Sobre a problemática da custódia estrangeira em conflito com as leis
nacionais de uma nação, Anver Emon16 ao analisar o filme “Nunca Sem Minha Filha” 17., explica
que:
“A ordem de custódia estrangeira pode ter nenhum impacto. Em vez disso, a ordem de
custódia estrangeira põe em relevo a gritante e contínua importância da soberania do Estado
na formação e imperativos das leis”18.
Em 1980, a Conferência de Haia emitiu a Hague Abduction Convention onde os países signatários
criaram autoridades centrais para lidar com qualquer alegação de rapto internacional de crianças .
Estas autoridades centrais são importantes para a distribuição de informações, treinamento
judiciário local e facilitação do retorno automático de crianças para o que a convenção chama de
“residência habitual”.
Países de maioria muçulmana têm consistentemente recusado a ratificar a convenção. Eles
argumentam que a ratificação iria obrigá-los a violar a lei islâmica dada a sua compreensão dos
requisitos legais islâmicos sobre a custódia da criança, portanto, não são constitucionalmente
autorizados a validar tal convenção.
A Sharia, tal como aplicada pelos tribunais islâmicos, não é codificada e os juízes não estão
vinculados a precedente judicial. Logo, o alcance e o conteúdo da lei são incertos, contendo
"práticas que divergem do conceito de Estado de Direito”19.
Assim, as leis privadas da Sharia, como dito anteriormente, “não protegem os homens e mulheres
ou muçulmanos e não muçulmanos igualmente”. E ainda conflitam ou violam os tratados
internacionais de direitos humanos descritos na Carta Internacional dos Direitos Humanos das
16
Professor de Lei da Faculdade de Lei da Universidade de Toronto, conhecido internacionalmente sobre seu estudo da
lei islâmica em conjunto com múltiplas tradições legais.
17
Filme americano de 1991 baseado em fatos reais. Conta a história da fuga de uma mãe, cidadã americana, e sua filha
americana-iraniana do Irã.
18
http://www.islamicity.org/8170/islamic-law-and-private-international-law-the-case-of-international-child-abduction/
19
"Rule of Law: Country Studies - Saudi Arabia". Democracy Web: Comparative Studies in Freedom. Albert Shanker
Institute and Freedom House. ???????
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Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos (1966) cujo preâmbulo confirma a igualdade de direitos entre homem e
mulher durante e depois da dissolução de casamento:
54
“Os Estados Partes no presente Pacto tomarão as medidas necessárias para assegurar a
igualdade dos direitos e das responsabilidades dos esposos em relação ao casamento, durante
a constância do matrimônio e aquando da sua dissolução. Em caso de dissolução, serão
tomadas disposições a fim de assegurar aos filhos a proteção necessária”20.
Segundo o relatório anual de 2015 do Freedom House, Think Tank com sede nos EUA que mede o
grau de liberdades civis e políticas no mundo, nenhum país muçulmano foi classificado como livre.
Dados de 2011 mostram que na Europa21 a taxa média de fertilidade entre as famílias com tradição
muçulmana gira em torno de 2,2, enquanto a taxa de fertilidade da população não muçulmana tem a
média de 1,5, portanto a diferença é de quase 50% e com projeção constante de 40% até o ano 2030.
Apesar de discussões em torno desse assunto, a Sharia não pode, por enquanto, ser aplicada em
países ocidentais, mesmo naqueles com presença ou influxo crescente de muçulmanos devido à
globalização da economia mundial e à emigração legal ou ilegal causada por crises que infligem os
países muçulmanos na África e Ásia.
A organização mais importante entre os países muçulmanos, A OIC, Organisation of Islamic
Cooperation, não conseguiu enfrentar os desafios até agora. Porém, ao longo da última década,
tonou-se um participante ativo nos debates internacionais em matéria de Direitos Humanos e criou a
Independent Permanent Commission on Human Rights (IPHRC) para promover o diálogo
permanente com a Danish Institute for Human Rights com o objetivo de proteger os "direitos
humanos e as liberdades fundamentais nos países membros”.
Entre as recomendações se encontra a:
“Affirmation of Shariah consistency with international human rights law by rejecting
20
ICCPR artigo 23/4
https://muslimstatistics.wordpress.com/2014/02/06/pew-fertility-rate-for-muslims-and-non-muslims-in-europe/
(fonte: PEW Research Center’s Forum on Religion&Public life. The future of the MuslimPopulation, January 2011).
21
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interpretations of Shariah that violate or undermine international human rights law and by
elaborating alternative interpretations that respect and further international human rights
law”22.
55
“A afirmação da consistência da Shariah com as leis do Direito Internacional Privado, refutando as
interpretações que a Sharia viole ou prejudique o Direito Internacional dos Homens, e elaborando
interpretações alternativas que respeitem as mesmas ” (tradução livre).
A interação dessa recomendação com o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos23, uma jurisdição
do Conselho da Europa, poderia levar o Tribunal de Justiça da União Europeia, a aceitar decisões da
Sharia abrindo o caminho para outros sistemas jurídicos a seguir os mesmos procedimentos.
A Fatwa e o Direito Internacional Público
No exemplo a seguir podemos perceber claramente o efeito de Fatwa sobre o destino da Síria dentro
do cenário atual de guerra civil e flagelo humano.
O acordo secreto Sykes-Picot, embaixadores da Inglaterra e França, em 1916 fatiou o Oriente
Médio, colocando a Síria sob o mandato francês que logo após a IWW, dividiu a Síria em várias
regiões administrativas (mapa1) baseadas em etnias religiosas ou divisão geográfica, cedendo um
dos territórios para abrigar uma minoria de quase um milhão de Alaúitas que praticavam preceitos
religiosos místicos distintos da maioria sunita do país que não os considerava muçulmanos. Ao
mesmo tempo diferem dos xiitas que apesar de considerar Ali como 1º Imã, o mesmo não era
considerado como divindade, como é no caso dos Alauítas24. Eram chamados de “Nusayris” até
1920, em homenagem ao seu fundador Muhammad Ibn Nusayr que viveu em 883 D.C.
Quando a França entrou em negociações com os nacionalistas sírios em Paris, em 1936, para a
independência da Síria, os Nusayris enviaram um memorando ao governo francês pedindo
22 http://www.orsam.org.tr/en/article_Print.aspx?ID=2509
23 Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, de Estrasburgo ou TEDH foi criado em 1959 e tem a sua sede em Estrasburgo. Transformou-se num órgão permanente em 1 de novembro
de 1998.
24
Os Alauítas não são obrigados a orar cinco vezes ao dia, além de não ter mesquita como o resto dos muçulmanos.
Acreditam em sete reencarnações de Deus na terra para salvar a humanidade. Celebram as festividades cristãs e
muçulmanas simultaneamente e acreditam que o Imã Ali (da onde originou ou nome Alawitas) formava um triênio
divino com Maomé e um dos seus companheiros, Sleiman al-Farsi.
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independência e liberdade, pois não queriam se unir à Síria, uma vez que a sua comunidade se
comportava diferentes dos sunitas que os tratavam como hereges e queriam o Islã fosse à religião
oficial do país.
56
Figura 1: Divisão da Síria pela França em 1916
Fonte: ttps://www.google.com.br/search?q=alawites+in+Syria&client=firefox-a&rls=org.mozilla:ptBR:official&channel=nts&tbm=isch&imgil=TVGM3C
Para ganhar legitimidade religiosa um grupo de sheiks Alauítas havia emitiu Fatwa em 1926
declarando que: "Todo Alauíita é muçulmano e os que não aderem ao Islã, e negam que o Corão é a
palavra de Deus e Maomé é seu Profeta não são Alauítas.” E que “os mesmos são muçulmanos
xiitas (...) seguidores do Imã Ali". Essa Fatwa não foi acolhida como decisiva na Síria, pois tinha
sido emitida por autoridade religiosa local sem projeção nacional ou internacional.
Dez anos mais tarde, o Grande Mufti25 Muhammad al- Husayni, que serviu em Jerusalém entre os
anos de 1921-1938 e era conhecido como nacionalista árabe, queria a Síria unida na luta contra os
ocupantes ocidentais. Portanto, emitiu outra Fatwa em primeiro de julho de 1936 “reconhecendo os
alauítas da Síria como muçulmanos”.
Essa Fatwa tinha maior legitimidade, pois fora emitida por uma autoridade religiosa proeminente
em cidade sagrada importante o que pavimentou o caminho para a minoria Alauíta tomar o poder,
25
Máxima autoridade sunita da cidade
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pois a constituição da Síria determinava que o presidente tivesse que ser muçulmano. Esse fato se
concretizou 24 anos depois, em 1970, quando Hafez al Asaad ocupou o poder com mão de ferro até
a sua morte em 2000, quando repassou a presidência da Síria para o seu filho, Basher al-Assad, o
atual protagonista da crise naquele país. Quatro décadas mais tarde em 2011 a maioria sunita
pleiteou a sua queda, com o apoio de outros países muçulmanos, Arábia Saudita, Catar, Turquia e os
Estados Unidos o que levou o país a atual situação.
Havia outras causas que permitiram aos alauítas ocuparem o poder. Entre as quais, citamos o
alistamento militar desta etnia ao exército como reflexo de sua pobreza e do desinteresse das elites
sunitas sírias em servir o exército. Outro fator importante foi a ascensão ao poder do próprio Hafez
dentro do partido laico Baath para garantir legitimidade política pan-arábica Mas podemos deduzir
que se não fosse essa Fatwa que transformou os alauítas em sunitas não seria possível a ocupação
da presidência em 1º lugar.
Uma segunda Fatwa contnia mudou e continua remodelando curso da historia moderna do Oriente
Médio. Para manter o poder, como presidente, Hafez al-Assad embarcou em busca maior validade
religiosa a fim de provar que a crença alauíta fazia parte do Islã Xiita e se aproximas do Irã. Em
1972, o Aiatolá Hassan Shirazi, estudioso xiita de família iraniana que fora exilado no Líbano em
1970, emitiu outra Fatwa evidenciando a meta de Assad. Nela, Shirazi escreveu: “Primeiro de tudo,
os alauítas são os seguidores xiitas de Ali Ibn Abu Talib e em segundo lugar os alauítas e xiitas são
sinônimos em termos de crença e cada xiita é alauíta e todo alauíta é xiita”.
Essa Fatwa aproximou a Síria do Irã, afastando-a, na época, do Iraque, apesar de ambos falarem
árabe e serem governados pelos mesmos princípios do partido Baath que advogava o pan-arabismo
baseado na “união de língua para unir os povos árabes”.
Em consequência dessa aproximação, a Síria foi o único país árabe que apoiou o Irã na guerra
contra o Iraque entre 1980-1988 e fez parte da aliança militar que expulsou o Iraque do Kuwait em
1990.
A aliança estratégica entre a Síria e o Irã permitiu a este aumentar a sua projeção religiosa e política
no Oriente Médio contrariando, assim, os interesses da Arábia Saudita e dos Estados Unidos.
Segundo Martin Kramer26 os interesses eram convergentes mais do que a cosmologia religiosa: “A
26
http://martinkramer.org/sandbox/reader/archives/syria-alawis-and-shiism.
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Número 1
2016
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sense of shared fate, not shared faith, bound these two regimes together”.
Conclusão
58
Podemos concluir que a Sharia, a jurisprudência Islâmica, é a mistura da Civil Law, que
basicamente significa que a principal fonte do Direito é a Lei, neste caso o texto do Alcorão serviria
como a base escrita, e Common Law, o conjunto de interpretações das normas do direito proferidas
pelo Poder Judiciário, neste caso a fonte seria a Sunna e Hadith, e as Fatwas que equivalem às leis
emitidas ou nos estados totalitários ou em Estado de Exceção. Apesar dos debates e em torno da sua
inteiração com o DIPr e DIP o caminho está longo pois exige mais mudanças nos países que
adotam a Sharia como lei do Estado. Mas como ocorreram adaptações no Islã, ao longo da historia,
às leis e costumes dos territórios conquistados nada impede a harmonização da Sharia com as leis
internacionais. Contudo o caminho é longo.
http://www.upi.com/Top_News/US/2013/05/19/Under-the-US-Supreme-Court-Islamic-law-in-UScourts/64481368948600/
http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=356
http://www.frontpagemag.com/fpm/137513/what-sharia-dr-hans-jansen
https://pt.wikipedia.org/wiki/Charia
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International Business Law and Its Environment
https://books.google.com.br/books?isbn...
https://www.aclu.org/bans-sharia-and-international-law
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322012000200014&script=sci_arttext
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(Revista Eletrônica Acadêmica do ICBL)
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http://infielatento.blogspot.com.br/2011/06/lei-islamica-sharia-para-os-nao.html
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Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos fatwas -Abd al-Aziz ibn Baz
-----------------------------------------Jewish and islamic law
https://www.jewishvirtuallibrary.org/jsource/judaica/ejud_0002_0011_0_10121.html
http://forward.com/news/145351/exploring-ties-between-halacha-and-shariah/
http://www.americanthinker.com/articles/2010/12/no_comparison_shariah_and_jewi.html
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