Capítulo II O Clube das Bruxas

Transcrição

Capítulo II O Clube das Bruxas
Copyright © 2015 by Antonio Sampaio Dória
Grafia conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
Capa
Flavio Pessoa
Projeto gráfico
Verba Editorial
Preparação
Renato Potenza Rodrigues
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
Dória, Antonio Sampaio
Ariana e Arion: as bruxas do Rio: (livro i)/ Antonio
Sampaio Dória. — São Paulo: Ed. do Autor, 2015.
isbn
978-85-920147-0-4
1. Ficção juvenil. i. Título.
15-10098
cdd-028.5
Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura juvenil 028.5
Todos os direitos desta edição reservados em nome do autor.
Telefone: (11) 3672-4631
www.arianaearion.com.br
contato: [email protected]
Ao amigo e mestre
Flávio Luiz Porto e Silva,
com minha gratidão por todo aquele trabalho.
Às belas leitoras Stephanie Leone, Vanessa Assumpção Rodrigues
e Paloma Batista da Silva, que com seus comentários pertinentes
deram alento a este livro
Sumário
Prólogo
I
II
III
IV
V
VI
VII
VIII
IX
X
XI
XII
XIII
XIV
XV
XVI
XVII
XVIII
XIX
XX
XXI
XXII
XXIII
XXIV
XXV
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A Floresta
O Clube das Bruxas
Entre o Bem e o Mal
A Deusa
Branca de Neve
A Baleia
O Poder da Magia
Três Fios de Cabelo
Arion
O Baile da Ilha Fiscal
O Mapa
Feitiços que (não) Funcionam
Deusas de Pedra
O Sabá das Bruxas
A Invisibilidade
A Perseguição
Morte à Espreita
Mau-olhado, Magia Negra, Pimenta e Sal
A Inquisição
O Mundo dos Espíritos
As Deusas na Floresta
O Encontro
Trabalho de Amor
Batalha Final
Fim é Começo
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26
43
56
75
87
99
111
121
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152
169
185
198
211
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252
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295
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337
349
367
Bibliografia
375
Prólogo
Caça às Bruxas
E
m janeiro de 1993, a polícia do Rio de Janeiro realizou
uma série de operações nos morros da cidade, que foi
apelidada de “Caça às Bruxas”. Traficantes de drogas e seus associados foram presos. As prisões tiveram destaque na imprensa, seguidas
de processos que tiraram esses nomes de circulação, mas os inscreveram na memória do povo.
O preço foi alto: vinte e duas mortes em uma semana. Poucos
se incomodaram; era evidente que uma ação tão ambiciosa não
poderia acontecer sem um derramamento de sangue. No futuro,
qualquer ação policial violenta seria questionada e seus autores julgados, se não pela justiça, pela opinião pública. Naquele momento,
as prisões foram comemoradas como uma vitória da lei e da ordem.
Passando ao largo das mortes, a imprensa especulou que havia um bruxo (também chamado de feiticeiro), que fora capaz de
apontar todos os envolvidos para o alto comando da polícia. Afinal,
quem poderia reunir tanta informação sobre o crime organizado?
No entanto, nunca se soube a identidade do bruxo ou se realmente
existiu.
O espaço deixado pelos bandidos presos foi ocupado por outros. Os novos chefes do tráfico aprenderam a lição: deviam não
apenas dividir o poder, circunscrito a áreas específicas, como evitar
o reconhecimento público, as fotografias, o trânsito de informações.
Passaram a apagar as pistas deixadas — o que podia se traduzir em
outros banhos de sangue — e lutavam para manter seu ponto.
A realidade dos morros se tornou menos conhecida. A especulação em torno de nomes e identidades aumentou. Mesmo assim,
os donos do tráfico fizeram o mesmo que os anteriores, gastando
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as bruxas do rio
dinheiro para proteger e agradar as comunidades onde estavam
inseridos. Assim, transformavam-se em santos, ou até em personagens de cordel. Como o bruxo que desapareceu, tornaram-se uma
lenda. Teriam existido? Existem ainda hoje? E, finalmente, se existem e mantêm o milionário comércio de drogas, qual é a relação
que têm com a polícia?
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Capítulo I
A Floresta
A
riana moveu a cabeça para fora da janela. Viu o Cristo
Redentor que, num segundo, se iluminou.
A luz repentina, o brilho contra o céu azul, seria coincidência?
No mesmo instante em que se questionava sobre tudo? athame
A natureza: a montanha de rocha escura, o verde rugoso
cobrindo o topo, seria até natural acreditar que Deus havia desenhado aquele cenário.
De repente, um susto: algo cortou sua visão. O que pareceu
um ataque era um pássaro que voava entre os prédios. Desenhava
arcos, como se tentasse escrever uma mensagem. Desapareceu na
direção da praia.
Ele havia chegado muito próximo.
Antes, Ariana interpretava tudo como um sinal. Agora, a explicação de que uma força maior comandava tudo parecia tola. Mesmo
que acreditasse, isso não diminuiria a estranheza, a difícil tarefa de
viver no próprio corpo. Não podia perguntar a uma colega: “Você
também se sente estranha? Seu corpo parece uma onda do mar, se
revirando, voltando e desaparecendo?”.
Ariana estava agora no colégio de freiras Imaculada Conceição
— transferida pelos pais contra a vontade. Deus era um tema constante: generoso, compreensivo, amigo. Teriam combinado o discurso?
“A fé é a base de tudo. O resto é consequência.” Ariana ouvia risos,
mas não deixava de pensar na questão.
As freiras andavam sempre com blusas bem fechadas até o pescoço. Deus era suficiente para levarem aquela vida, aulas, missas e
só? Deus, um velhinho de roupa branca, capaz de atender pedidos,
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as bruxas do rio
ou um espírito feito de nuvens? Nenhuma das alternativas a convencia.
Com o polegar, apertou o braço até a pele virar um papel branco e a dor ficar insuportável. Os músculos, a vermelhidão, essa era
uma verdade inegável. O milagre da existência: a vida estava impressa em sua pele.
Mas faltava a certeza.
Tocou o próprio rosto arredondado diante do espelho, a pele
clara, os cabelos loiros encaracolados caindo pesadamente dos lados. Como se a verdade pudesse se revelar. Voltou a olhar o Cristo‑farol. O vento vinha do outro lado, da praia. Fechou os olhos.
— Ariana!
A mãe entrou no quarto.
— Por que você estava debruçada na janela? Não diga que...
Ariana não disse.
— Parece que você está testando.
— O que você quer dizer? — estranhou Ariana.
— Para ver se Deus vem te salvar. Daqui a pouco você se joga
pela janela, para ver se ele faz um milagre.
— Tenho medo de altura, lembra? Poderia me jogar na frente
de um carro, mas... e se não desse certo? Além de ir para esse maldito colégio, teria de ir de muletas.
— Isso não é engraçado, Ariana. Acho que o colégio foi necessário — disse a mãe, balançando a cabeça. — Não respeita mais
nada. Antes, você acreditava.
— Isso foi há séculos.
— Séculos quer dizer dois anos atrás.
Ela tinha razão, pensou Ariana. Dois anos eram mesmo dois
séculos. Maldita hora em que havia se aberto sobre suas dúvidas.
— Você está passando por uma fase — continuou a mãe. —
Mas você acreditava. E havia os sinais.
Ariana riu.
— Você achava que eu tinha algum poder... Alguma ligação
com o além. Isso, sim, é engraçado.
— Mas você adivinhava coisas... Via sinais, figuras...
Ariana sorriu para si mesma. As fantasias da infância haviam se
desfeito como espuma. Agora, estava só.
— E você — perguntou Ariana, em desafio —, nunca duvidou?
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ariana e arion
— Nunca!
— Nem mesmo com a chegada da Ângela?
— Com a chegada... O que quer dizer?
— Você não esperava ter uma filha com problemas, esperava?
Além disso, já fez novenas, promessas. Nada adiantou. Deus não
ouviu.
Ariana se referia à irmã, que aos oito anos tinha a capacidade
mental de uma criança de quatro. A mãe ficou surpresa. Ariana viu
o impacto daquelas palavras, o silêncio mudo. Os olhos da mãe se
avermelharam.
— Nunca deixei de acreditar...
O estrago estava feito. Silêncio pesado, falta de argumentos, só
havia culpa. Ariana se sentiu a pior das filhas.
— Desculpe!
A mãe entrou na cozinha e começou a dar instruções para Gilda, a cozinheira. Ariana só podia remoer o diálogo. Por que estava
sendo tão má? Só havia uma resposta: a revolta contra o colégio de
freiras.
Virou-se para a janela e viu a figura da mulher de branco, no
céu. Parou. A mesma figura da infância, que julgava ser uma fada.
Imaginação? Antes, era compreensível ter essas fantasias, mas aos
treze anos...
O ano de 2006 não começava bem. Na noite anterior havia
discutido com o pai. Antes, a figura imponente merecia admiração,
pois ele era um homem importante e “lutava contra os bandidos”.
Mas se tornara obcecado pela disciplina.
— Eu não vou jantar — protestou Ariana.
— Fique sentada. Coma alguma coisa, disfarce.
— Disfarçar? Devo fingir, é isso? Eu tinha esquecido. Você vive
no meio da política. Fingir faz parte.
O pai circulava entre políticos, aparecia às vezes no jornal, mas
no dia a dia cumpria funções longe dos holofotes. A sua posição —
chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro — resultava da indicação
de um político, mas o pai não queria ser considerado um deles.
Separava a vida pessoal da profissional para preservar a autoridade.
Ariana questionava a autoridade. A do pai e a das freiras. O
pai não tinha fé, mas parecia satisfeito ao vê-la se debater com o
militarismo das religiosas.
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as bruxas do rio
— Até hoje não entendi como você convenceu meu pai a me
pôr nessa escola — disse Ariana.
— Seu pai não entende de colégios — disse a mãe. — Sou eu
que resolvo.
— Entendo bastante de educação — contrapôs o pai. — Mas
não teria tempo para ir atrás disso.
— Se eu não cuidasse da educação das minhas filhas, do que
eu cuidaria?
Ariana sorriu: renascia o conflito entre eles.
— Então, o objetivo de vocês é que eu me torne religiosa.
— Não, o objetivo é que você se torne disciplinada — interpôs
o pai. — No outro colégio, você era rebelde e matava aulas!
Ariana se lembrou: um dia em que saíra antes do fim das aulas
com as amigas. Resolveram caminhar na praia, segurando os tênis
pelos cadarços. De alguma forma o pai ficou sabendo e as encontrou. Estavam molhando os pés, quando o pai surgiu de terno, os
sapatos pretos no meio da areia, como um totem. O cenho franzido.
Não conseguia esquecer aquela imagem, os sapatos pretos na areia,
afundando, as meias pretas corrompidas de branco. Não conseguiu
olhar as amigas nos olhos. Seguiu-o sem olhar para trás, sabendo
que elas estavam surpresas. O sol queimava na pele. Depois teve
raiva.
— Não sou rebelde — argumentou Ariana. — Só não consigo
ficar presa em um lugar.
— Você matava aulas — repetiu o pai, dando a sentença final.
Quando ela era criança, o homem alto e anguloso não deixava
dúvidas sobre quem estava no comando. O paletó engomado e o
cheiro de tabaco mereciam reverência.
Mas o tempo havia passado. O pai, sempre rígido. Ela, descobrindo o mundo. Primeiro chats na internet, depois passeios com
amigas. Não podia ser mais a bonequinha frágil.
— Mesmo assim — continuou Ariana—, é estranho que você
tenha uma filha num lugar onde só falam em Deus. Deus com café,
Deus com pão, Deus com manteiga. Sabendo de tudo, vigiando
todos. Como se não tivesse mais nada para fazer.
— Por que você estranha tanto? — perguntou o pai.
— Porque você gosta de exclusividade — disse Ariana. — Aqui
em casa você sempre foi o único Deus.
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ariana e arion
Falou sem pensar. Mas, assim que disse, percebeu que era verdade: o motivo para a implicância do pai era o ciúme. Ele queria
ser o único homem, o único poderoso naquela casa: a seu modo,
uma espécie de Deus.
Um Deus marrom e dourado. A insígnia sobre o peito brilhava, capaz de elevá-lo ao ponto mais alto da cidade, de onde veria
tudo, substituindo o Cristo em seu pedestal.
Devia ser difícil para ele ter sua autoridade questionada, ver
que mulher e filhas depositavam em outro ser — um ser masculino
— a fé que ele não merecia. E o pior é que não podia revelar que
isso o fazia se sentir traído. No caso do colégio, a mãe vencera.
Quem pagava o preço mais alto, no entanto, era ela. Devia se
resignar e continuar no colégio de freiras? Não! Precisava reagir.
Se sumisse por um ou dois dias... Mas como? Um policial a levava
e buscava de carro no colégio. A mãe controlava tudo pelo celular.
Precisava de um lugar para se esconder. Um ou dois dias. Se
eles se assustassem... Seria a única forma de se fazer ouvir. Poderiam deixar que ela voltasse para o antigo colégio.
Voltou a olhar para o mar. A linha do horizonte. De repente,
tirou do armário um agasalho de plush azul e escapuliu. A mãe gritou: — Aonde vai?
— Caminhar no calçadão.
Entrou no elevador.
Caminhou até a praia. O mar de Ipanema se arrepiava. O leve
vento indicava uma mudança climática, talvez chuva.
Estar ali era sentir-se dona de tudo. Criara o hábito de ir à
praia ao fim da tarde, como se precisasse tomar conta para que
nada escapasse, o mar, os banhistas, as ilhas, o horizonte. As pessoas reclamavam: está frio, está ventando, está calor demais. Ela, não.
Simplesmente aceitava. Cada momento em sua singularidade, a
transformação natural de uma coisa viva.
O mar. Se tivesse de oferecer alguma coisa valiosa a alguém,
seria o mar.
Não parava de pensar: onde poderia se esconder dos pais? Talvez um lugar distante e desconhecido...
Um homem moreno olhou-a nos olhos, com um sorriso de
cumprimento. Malicioso? Ariana sorriu, sem se deter.
Talvez suas roupas chamassem a atenção. A calça. De um ma15
as bruxas do rio
terial líquido, modulava a cintura, mas era larga e caía como uma
cortina d’água. Algo que nunca vira ninguém usando. Por algum
motivo, pensava que era sua roupa de princesa. Tinha a sensação de
estar flutuando.
Teve vontade de entrar na água. Havia muito tempo que não
molhava os pés. O mar tornava-se violento. A lembrança de que a
roupa não era adequada, a mãe reclamando, o mar enegrecendo,
tudo a fez compreender. Deu meia-volta.
Encontrou o homem sorridente, a pele queimada de sol.
— Faz favor. Onde é o Recreio dos Bandeirantes?
Ariana lembrou-se. O antigo colégio fizera uma excursão para
o Recreio, era perto de um parque de preservação ambiental.
— Fica depois da Barra, naquela direção.
— Estou indo até mais longe. Melhor pegar um táxi?
— Acho que sim.
O homem fez sinal para um táxi que passava no mesmo instante. Abriu a porta e gesticulou.
— Diz que não conhece. É brincadeira? Ou não é do Rio.
Continuou gesticulando. Fez uma mímica, pedindo, “explica
para o motorista”. Ariana se dispôs a ajudar. Viu um homem negro
ao volante. Deve ser do Rio, pensou. Mas ao lançar as primeiras palavras teve a sensação de que ele nada compreendia.
O homem aproximou-se, entre ela e a porta, fez um sinal. Ariana tentou interpretar, mas foi jogada para dentro. O motorista lhe
agarrou o braço, puxando-a, a porta fechada contra si.
O cabelo encaracolado caiu sobre os olhos. Por trás da cortina
de fios, se viu no banco de trás. Espiou os dois homens na frente.
Da maneira que foi jogada permaneceu, esperando que algo fizesse sentido. Só teve certeza da velocidade. O carro era coberto de
filme escuro, no exterior as luzes brancas brilhavam. Levantou a
cabeça e viu a praia iluminada pelos holofotes. Olhou para o braço.
A marca vermelha indicava que não era um mal-entendido.
— Não tenho dinheiro, nem a carteira — informou.
Nada responderam. Sequestro relâmpago: haviam escolhido a
pessoa errada, ela não poderia tirar dinheiro do caixa, eles ficariam com raiva, mas talvez a deixassem ir. Embora dissessem que o
melhor era dar o dinheiro.
Reconheceu a Prudente de Moraes. A direção era a da Barra,
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ariana e arion
o pequeno diálogo começava a fazer sentido. “É brincadeira!”, ele
dissera.
— Então essa é a brincadeira — disse Ariana.
O homem moreno, que não dirigia, olhou para trás.
— Sim, é a nossa brincadeira. Vai ser divertido, fique calma.
— Estou calma.
A frase surpreendeu a si mesma. Verdade, não estava nervosa,
mas devia estar. Como agiria alguém normal nessa situação? Com
um desmaio? Talvez o propósito de tudo isso fosse mostrar que ela
não estava do lado dos normais.
Olhou-se no vidro que de tão escuro se transformava em espelho. Os cabelos loiros. Do outro lado, carros passando. Tentou dar
ao rosto uma expressão de pânico, quem sabe alguém avisasse a
polícia. Pessoas normais e medrosas podiam ser salvas.
— Faça-me chorar, Deus, se é que você existe — disse em voz
alta.
— Que foi?
— Não quero participar dessa brincadeira — arriscou.
— Então deita, mocinha.
— Não quero deitar.
— Deita! — o homem empurrou-a com a mão esquerda e
apontou uma arma com a outra.
Ariana entendeu o espírito da brincadeira. Deixou-se cair, até
tocar com o rosto o estofamento malcheiroso. Ao entrarem no túnel teve uma pontada de medo. Estavam indo para um bairro distante. Ele não havia mentido, era um bandido sincero.
Um sonho que não podia ser controlado, como todos os sonhos. Ariana tinha mais medo deles do que da realidade, às vezes
acordava angustiada no meio da noite. Agora, vivia uma espécie de
fusão. O pesadelo real.
O celular: por sorte tinha saído com ele, tão discreto no bolso
do agasalho que não haviam notado. Poderia mandar uma mensagem. A mãe avisaria o pai, que mandaria os melhores agentes
resgatarem-na. Não, ele mesmo viria.
Pressionando o telefone contra o peito, percebeu que seria
impossível naquele momento. Bastaria navegar pelo menu, soaria
um toque agudo: os desnecessários plins. Um único aviso, e eles lhe
arrancariam o telefone.
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as bruxas do rio
Por outro lado, logo receberia uma ligação. Apertou a tecla
vermelha para desligar o aparelho. Estava conseguindo pensar, pesar seus atos, isso era o mais importante. O descontrole das pessoas
normais não seria tão útil. Mas o que sentia?
Sem resposta, acreditou que o raciocínio seria o melhor aliado. Não deveria ter dito que estava calma, poderia se safar melhor
se pensassem que tinha medo. Encolheu-se como um feto.
O carro avançava no meio da Barra, eles pareciam longe do
destino. A velocidade tornava impossível um gesto. Para onde a
levavam? Refez os fatos. O homem moreno, tipo comum, havia cruzado com ela no calçadão e sorrido. Em seguida, uma pergunta
inocente: “Onde é o Recreio dos Bandeirantes?”. Percebia agora
que a sentença era absurda, aquele homem sem saber aonde ir,
com sotaque carioca. Um lugar de preservação, florestas. O que poderia fazer em uma floresta? Passear alegremente, com uma cesta
cheia de doces?
O táxi chegando em seguida. Ele se mostrou irritado porque o
motorista não sabia o caminho. É brincadeira? Sim, era uma brincadeira, mas com que propósito? Pediriam um resgate — e isso seria
um problema. Seu pai não aceitaria pagar, optaria pelo confronto.
Se pudesse usar seu dinheiro depositado no banco...
Entraram em uma área de floresta. Podia ver as árvores, grandes e escuras, fechando-se sobre a estrada.
De vez em quando sonhava com lugares escuros, fogueiras e
gritos. Tudo estava se concretizando agora.
Ao perceber que subiam uma estrada ainda mais distante, resolveu esconder o celular. Onde? Não na calça justa. Os seios que tinham
se desenvolvido poderiam servir. Dentro do sutiã, estava com uma
camiseta fechada, podia disfarçar. A ideia de que colocariam a mão
ali, para examiná-la, era insuportável, mas qual a opção?
Sentiu o frio do metal contra o peito.
A estrada tinha curvas acentuadas. Subiram uma estrada de
terra. Por fim, pararam. Pôde adivinhar o cenário, o mato, o frescor verde invadindo. Quando ele abriu a porta e mandou que saísse, mostrando o revólver, não sabia onde estavam. Árvores não
tinham uma marca registrada.
— Segue! — O outro já tinha ido para dentro da casa branca,
uma espécie de depósito, com uma janela pequena.
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ariana e arion
Ariana obedeceu. Andando encolhida de medo, na verdade
para não deixar que o celular aparecesse. A porta aberta era um
abismo. Talvez nunca mais saísse.
— Vamos! — ordenou o homem.
Empurrada, pôs o pé no piso de madeira. Era uma estação
de controle de eletricidade, havia visto uma grande torre metálica.
Fusíveis, fios grossos. No meio do espaço havia uma divisória de
madeira. Ariana foi mais uma vez empurrada, dessa vez para um
canto com um colchão e uma garrafa d’água. Fecharam a madeira
que servia de porta. Ficou sozinha.
Sozinha. Ouviu passos, uma conversa. O homem negro tinha
um sotaque estranho. Esperou que a conversa amainasse. Sentou­
‑se no colchão de espuma que, apesar de disforme, não estava sujo.
Tirou o celular, apertou o botão.
Seria arriscado se entrassem agora. Outros riscos, porém, eram
maiores. Estava disposta a morrer se tentassem algo mais.
Nenhum ruído ao ligá-lo. Digitou, errando muito: “Fui presa p
2 sequestradrs tou presa 1 casinha dpois da barra na floresta”. Enviou-a.
E percebeu que o telefone indicava Somente emergência.
Ouvia a própria respiração. Tudo estava silencioso, apesar do
zumbido onipresente. De repente, o telefone soltou o som característico de Mensagem enviada. Antes de apertar o botão, o moreno
entrou, dando um tapa em sua mão. Ele pegou o celular do chão e
o jogou contra a parede, estilhaçando-o.
— Também gosto de celular. Olha aqui.
Mostrou um celular como se fosse uma arma. Tirou fotos.
Ariana deixou-se cair. A brincadeira não havia chegado ao fim.
Tirar fotos. E depois... pedir o resgate. Nesse jogo precisava estar
viva.
O coringa do jogo. A carta valiosa. O que podia fazer? Deu-se
conta da passividade em que vivia. Manipulada, transferida de colégio. Confiara no celular, ele estava em pedaços. Gritar? Não havia
ninguém por perto. Fez um esforço. A mensagem fora enviada.
Relembrando as palavras, ficou confusa. Tinha escrito que era uma
casa com fusíveis e cabos? Queria acreditar que sim. Mas o nervosismo. Ou pressa. Estava nervosa? Não, embora estivesse preocupada.
Minúcias. Se perdia em divagações. Imaginava que devia ter uma
reação diferente, ou que outros agiriam diferente. Escapar. Não
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as bruxas do rio
era do tipo que ficaria esperando, mas talvez até pessoas medrosas
pensassem da mesma forma: escapar.
Examinou cada possibilidade, a janela, o vitrô de ferro. Elaborou estratégias, até ouvir o som de trovão. E depois a chuva.
A chuva forte a fez perceber que os pensamentos de fuga eram
fantasiosos. Mas ao mesmo tempo a acalmou. A chuva que parecia um convite para deitar e contar histórias, como fazia com
Ângela.
Acordou com um sobressalto, encolhida no colchão. Pensou
que era sua própria cama. A realidade doeu. Se estivesse em seu
quarto... De repente lembrou: queria sumir por um ou dois dias.
Exatamente o que havia imaginado! A prova de que Deus existia:
realizando seus desejos da forma mais cruel. Talvez por ter sido
injusta com os pais. Sim, tinha sido injusta. Queria procurar os motivos que a levavam a ser tão estranha, até para si mesma.
Sentiu pena.
Levantou-se. Olhou pela fresta da porta improvisada, o homem negro dormia em um colchão. A seu lado, uma pistola. Podia
arriscar e pegar a arma. E correr, mas para onde? Se esconderia no
mato. Cobras e ratos seriam seus companheiros.
Onde estava o outro? A ausência era mais significativa do que
qualquer suposição. Estaria de guarda, lá fora. Já tinha ouvido que,
para os sequestradores, a melhor maneira de corrigir qualquer falha era eliminando a vítima.
Armas: objetos enigmáticos, negros ou prateados. Muitas vezes
vira uma de perto, deixada pelo pai sobre um móvel. Era só se aproximar para levar uma bronca: “Não mexe, não mexe!”.
Aquela pistola não era das mais modernas. Tinham uma ou
duas? O pai guardava uma arma com cabo de madeira brilhante.
A preocupação em ser obedecido, mostrar comando, não mexe! Ela
questionava a autoridade exercida daquela forma.
Mas se ele conseguisse salvar pessoas como ela, nessa situação,
haveria o perdão. O reconhecimento. Provavelmente era o que ele
fazia na maior parte do tempo. Salvava pessoas.
Sentiu pena, mais uma vez.
Voltou a acordar de madrugada, um princípio de luz entrava
pelas frestas. Escapar!, pensou com um susto. O homem dormia.
Que horário seria melhor do que aquele, em que o sono é mais
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ariana e arion
pesado? Tinham passado uma corrente na porta, mas havia uma
fresta imensa.
Espremeu-se, sem barulho. Passou ao lado do corpo inerte,
esticou a mão. Sentiu o frio do metal. Segurou a arma, como os
policiais faziam. Chegou à porta. Estava presa ao chão, não por
iniciativa deles, mas por ser de madeira grossa. Conseguiu abri-la.
Árvores grandes ao longe, de perto só o mato cinzento. O moreno
estava no táxi, dormindo no banco reclinado. Desceu os degraus,
chegou à quina da casinha.
— Ei!
Correu, o cascalho a denunciara. Entrou no mato, chegou à
porção mais adensada. Viu árvores ao longe. Uma elevação. Uma
descida. E se desse um tiro?
Sentiu ásperos tocos no rosto. Trocou de direção. Tentou pisar
leve. Tirou gravetos. Folhas cortantes. O sangue correu no rosto.
Pisou numa poça. Espirrou e roçou num tronco cortado.
Sentiu os fios, espinhos, arbustos, as folhas como sedas em sua
calça, som de velocidade.
Espatifou-se em uma poça em que caiu plantada, batendo a
perna.
Ouviu passos. Tinha lama nas mãos. Segurava a arma.
— Ei! — o moreno surgiu no meio do mato. Veio em sua direção. Ariana ergueu a arma.
Ele parou, surpreso.
— Eu atiro! — gritou Ariana, nervosa.
O homem correu e sumiu. Por uma eternidade, ela esperou.
Ouviu um ruído. Onde?
Ele se aproximou. De lado. Ariana ergueu a arma, o dedo no
gatilho.
O moreno, com jogo de corpo, o olhar fixo, chegou mais perto.
Ariana apertou o ferro fino e duro. Não atirou.
— Espertinha.
Ele a segurou pelos pulsos, tirando-lhe a arma. Passou uma
corda. Puxou.
— Ai! — Ariana protestou, jogando o peso para baixo. O cano
da arma foi enfiado em seu pescoço.
— Vai pagar caro! — empurrou-a.
Ariana reconheceu os obstáculos, a vegetação folhada que ti21
as bruxas do rio
nha atravessado. Resto de um desmatamento. Resíduos traiçoeiros de árvores ceifadas. O sol despontava. Ao ver a casinha, gelou,
como se fosse o seu fim.
O homem negro os esperava de olhos arregalados. Ariana passou
por ele com desprezo, na hierarquia dos bandidos não mandava
nada. O homem a empurrou ao quartinho. Ariana caiu no chão.
Ela a encarou, na pior posição em que podia estar: deitada, os
seios caindo, a camiseta erguida deixando pele à mostra, as mãos
amarradas. Pela primeira vez, entendeu. Estava nos olhos dele. Ele
se aproximou. Ariana contraiu-se, fechando as pernas, ele a segurou pelos pulsos. Então era isso: o pior que podia acontecer a uma
mulher.
— Me solta!
Ele segurou suas mãos. Não tinha nem metade de sua força,
mas resistiu. Ele usava o peso para dominá-la, pela corda empurrava suas mãos para trás. Olhou-a com ar de vingança. Ariana manteve os olhos abertos. Ele tocou sua cintura, Ariana estremeceu. De
repente, ele ergueu os olhos na direção da janela: como se pensasse em outra coisa, ou sentisse uma dor.
Levantou-se. Ao ver que se afastava, Ariana não resistiu:
— Meu pai vai te achar!
— Teu pai? — ele estava surpreso.
— Você não sabe quem é ele.
— Sei mais do que tu pensa. Teu pai tá longe.
— Mas pode chegar!
— Tu não conhece teu pai, menina.
Ariana olhou-o procurando decifrar essas palavras, ele se satisfazia com seu conhecimento. Deu uma risadinha irônica. Será que
esse sequestro era uma... vingança?
Ele saiu e Ariana teve a sensação de chorar. Mas era sangue.
Havia chorado poucas vezes em sua vida. Por que, não sabia.
Estava presa por seus pensamentos. Agora pensava nas consequências das suas palavras. Dera uma informação que eles podiam usar
contra si. Limpou o sangue do rosto.
Ainda de manhã empurram-lhe um macarrão. A fome a convenceu de que o prato de plástico e a massa amarela estavam limpos.
Algumas pessoas ficavam semanas presas. Ao tentar comer, porém,
sentiu agulhadas na boca do estômago.
22
ariana e arion
— Quero ir ao banheiro — disse, depois de ter aguentado
muito.
— Tem uma bacia para tu, menina.
Só aí entendeu que a caixa de papelão guardava uma bacia de
metal para esse fim. Rejeitou a ideia. A sensação de que ouviriam
era insuportável. Preferia molhar a calça.
Começou a ter nojo do corpo que aumentava para todos os lados. Sem contar as regras da menstruação, a baixa estatura, os seios
grandes demais. Tudo, um castigo. O próprio colégio, castigo, corretivo para a rebeldia. Em que momento tinha se desviado? Apenas
por ter matado algumas aulas?
Havia algo maior, anterior a seu nascimento. A voz provocativa
do homem, “Sei mais do que você pensa”. Mas o que ele sabia? Simplesmente que ela merecia tudo aquilo? Um castigo impregnado
nos genes. Vindo de longe, se manifestando agora. Algo que ela
havia desencadeado com as discussões familiares.
Teve saudades de Ângela. A prova de que na família pode haver o máximo de beleza, o máximo de dor, na mesma existência.
Era natural que também tivesse de pagar um preço.
Lá fora o sol ardia. Mas até o sol, aos poucos, perdia sua força.
A corda havia afrouxado entre os pulsos. Saltou em direção
à alavanca da janela basculante. Errou. Escolheu um novo alvo.
Agarrou a parte móvel do vitrô, que cedeu. A corda não a impediu de segurar firme, raspar o braço para se erguer e enxergar lá
fora. A beleza de um pico coberto de árvores imensas. Verde e
negro.
A surpresa de estar no meio de tanta beleza a emocionou. Ao
correr pelo mato não havia percebido. Exatamente como acabara
de pensar, era o máximo de beleza, o máximo de dor. Fora preciso
ser sequestrada para conhecer aquele lugar.
Os pensamentos se atropelavam. Distraidamente, tocou a corrente no pescoço. Finíssima, com um crucifixo. De ouro. Dado
pela avó, por isso o usava sempre. Nem pensava no seu significado,
mas agora estava claro. Se Deus pudesse intervir... Como? Fazendo
com que o pai cedesse.
Ou fazendo com que ela tivesse uma compreensão maior.
Para isso precisava viver.
Lembrou-se da fada de branco contra o céu. Deixou-se condu23
as bruxas do rio
zir em oração, da mesma forma que fazia quando era criança. Lá
no fundo do céu havia alguém. Por que criaria uma forma de vida
tão cheia de curiosidade, de sensações, ideias, se nada disso podia
se cumprir? A certeza de que a vida era sagrada. Essa, sim, a base
de tudo, o resto, a consequência. Não estava testando, como a mãe
dissera, suas dúvidas eram naturais. Nesse momento não tinha mais
dúvida: era o que as freiras chamavam de fé.
Ouviu um carro se aproximando. Em seguida, uma conversa
entre os homens.
O homem moreno entrou. Abriu a porta, jogando a corrente
no chão.
— Vamos! — Puxou Ariana pela corda, mas a garota resistiu.
— Não vou com você.
— Vai.
— Meu pai está chegando, não é?
Ele a olhou com superioridade.
— Teu pai tá longe. Não vai te ajudar, belezinha.
Teve de obedecê-lo.
Fora, o outro manobrava o carro.
Ouviu-se um barulho de motor. Ariana sentiu o puxão, o homem
enforcou-a com o braço e ergueu a arma. Foi para trás da casinha,
usando-a como escudo. Um tiro ecoou, próximo, ele entrou no
mato. Segurando-a com o braço suado, soprando em seu ouvido.
Teve asco daquela respiração.
— Ninguém ia te matar, menina.
— Então me deixa!
— Preciso de ti, garota.
— Você vai correr mais sozinho.
— Espertinha.
Avançou nas folhagens sem soltá-la, se posicionou atrás de um
arbusto. Um motor ressoou ao longe. Ele ergueu a cabeça, entendeu que era um helicóptero. Outros tiros ecoaram.
— Eu mato a menina! Eu mato a menina!
Não houve resposta. Ele correu, puxando-a. Mas ela caiu, arrastando-o para o chão. Tentou puxá-la, Ariana agarrou-se a raízes
de uma árvore cortada. Mais um tiro. Ele olhou para cima. O ruído
se aproximou e o helicóptero ficou visível. Ele armou-se sobre ela
como se fosse uma presa.
24
ariana e arion
Dois soldados chegaram com roupas camufladas do exército.
Ele atirou e fugiu. Um dos homens pegou-a no colo e correu. Ela
voltou a sentir o mato áspero, viu as copas, as árvores. O policial
devia ter escolhido a trilha mais bonita. E desmaiou.
25
Capítulo II
O Clube das Bruxas
T
rês dias depois, o carro dirigido por um oficial, seguido
por outro com dois agentes, parou diante do Colégio
Imaculada Conceição. Ariana hesitou.
Havia acordado do desmaio no colo do pai, no carro. Recostou
a cabeça, enquanto ele passava a mão nos seus cabelos.
Ao chegar em casa, havia uma confusão na rua. Repórteres,
equipes de televisão. Ariana subiu entre homens de preto que nunca vira antes. Em casa, a mãe quebrou o clima com abraços e lágrimas. Ângela tentava abraçá-la também. Haviam rezado o tempo
todo.
— Nunca me arrependi tanto por coisas que eu disse — falou
Ariana, embalada pela emoção. Valia como desculpas por tudo.
Desculpas pela vida inteira.
— Vamos agradecer, você está salva, é o que importa.
Dormir em sua própria cama, enfim. Mas o esgotamento não
passaria logo. Teve um sonho com homens negros em meio a uma
revolução sangrenta. Acordou, teve a impressão de ouvir o pai dando ordens aos agentes, eles deviam “ir atrás de Branca de Neve!”.
Sim, era difícil separar o sonho da realidade.
Por que hesitar agora? pensou, diante do colégio.
Entrou. No pátio, a caminho da sala de aula, reconheceramna. Os meninos reagiram como se fosse uma celebridade.
— A filha do chefe da Polícia!
Uma massa de adolescentes cheia de fermento, formando um
bolo, Ariana estava no centro. Chegou a ser empurrada, queriam
se aproximar, ver o curativo no rosto, a única prova palpável, mas
para eles suficiente.
26
ariana e arion
— E o negão?
Manteve-se em silêncio, o que só os deixou mais excitados. Recuou na direção do canto, teve a sensação de ser esmagada, as vozes
zumbiam, o volume crescia, sentiu vontade de correr.
Magicamente, uma porta se abriu atrás de si. Ariana atravessou-a, quase caindo, e em seguida a porta foi fechada. À frente,
um menino da sua altura, o rosto redondo como de um anjo, os
cabelos enroladinhos, apontou o caminho.
Ágil como o vento, ele subiu um caminho improvável, escalando o abrigo dos bujões de gás. Ariana teve dificuldade, mas o
seguiu.
As pernas rápidas saltaram pela janela. Ariana o imitou, e então percebeu que estava no corredor do primeiro andar.
— Obrigado, eu...
— Entra — ele apontou a sala, correndo escada abaixo.
Ariana entrou, sem entender. Não fixou na memória o rosto
angelical do menino, que parecia familiar. Aos poucos, os alunos
entraram na sala. Ninguém disfarçava os olhares curiosos na sua
direção.
— Você está bem? — perguntou Anabela, uma das poucas meninas com quem conversava.
— Mais ou menos. Virei um bicho no zoológico!
— Vai passar.
Ariana ficou pensando no menino com rosto de anjo: como
ele podia estar ali, atrás da porta, na hora exata? Ele sabia qual era
sua sala — pelo visto, era mais conhecida do que supunha.
O professor de Ciências entrou, pediu silêncio e começou a
aula. Depois de minutos de cópia da lousa, chegou um bilhete: Você
pode contar para a gente o que aconteceu? Guardaremos segredo!
Seu isolamento estava sendo quebrado da forma mais radical
possível. Até então não quisera se integrar ao ambiente — uma
vingança surda contra os pais. Ali as meninas eram mais fúteis, os
meninos mais briguentos. Não se identificava.
O que fazer quando chegasse o intervalo?
Antes do intervalo, no entanto, foi chamada por uma freira.
Irmã Irene, a diretora, a esperava em sua sala. Ao entrar, recebeu
um inesperado abraço da irmã.
— Está bem, filha?
27
as bruxas do rio
— Sim — afastou-se, antes que ela continuasse com o drama.
— Graças a Deus. Sente-se.
Ariana encarou-a do outro lado da mesa.
— Todos ficaram alvoroçados com a sua presença. Imaginamos que você só voltaria depois de uma semana.
— A psicóloga disse que o melhor era voltar à normalidade.
— Vejo que é corajosa. Mas eles... — abaixou a voz — fizeram
alguma coisa?
— A senhora quer dizer...? Não! Nada.
— Graças a Deus!
— Por que me chamou, irmã?
— Considerando a expectativa geral, e o fato de que está muito bem... por que não conversamos sobre isso, em sala? Serviria
como alerta a todos! Se você se sentir à vontade, claro.
— Onde? — estranhou Ariana.
— Na sua sala. Seriam apenas duas classes, as oitavas.
— Não sei, irmã. Os outros continuariam me perseguindo.
— Fomos pegas de surpresa. Não tivemos tempo de preparar
os alunos. Daremos orientação para ninguém incomodá-la.
Ariana imaginou as perguntas. E a possibilidade de dar respostas chocantes, que fizessem cair os queixos. Escondeu um sorriso,
deixou que a freira se justificasse. Por trás do rosto magro, adivinhava uma curiosidade tão grande quanto a dos outros.
Meia hora depois, estava sentada à mesa do professor, ao lado
da irmã. Cerca de oitenta alunos lotavam a sala.
A freira conduziu as perguntas: como eles a haviam abordado,
onde, para concluir que certos lugares deveriam ser evitados. Ariana contrapôs: a praia era um lugar a ser evitado? Irmã Irene disse
que tudo dependia do horário. Conversas com estranhos, assim,
voltavam à categoria de comportamentos indesejáveis, como se eles
tivessem seis anos de idade.
— Não cheguei a ficar com medo, sinceramente. Acho que, no
fundo, eles não eram agressivos. Tanto que consegui fugir.
— Fugir?
— Para o mato, de manhãzinha. Não escapei por pouco!
— Será que isso é recomendável? Não poderiam ter atirado?
— Eu roubei a arma deles.
Um murmúrio subiu entre os alunos.
28
ariana e arion
Irmã Irene já estava arrependida da ideia. Mas todos vibraram
com a descrição da fuga no mato, o bandido perseguindo-a.
— E estar longe da família, sem saber o que ia acontecer?
— Na verdade, consegui mandar uma mensagem pelo celular. — Então detalhou sua estratégia para ocultá-lo. À menção da
palavra “sutiã”, ecoaram gritos excitados dos meninos. A religiosa
estava a ponto de desistir. Ariana se transformava em uma heroína
com apelo erótico.
— Como você encontrou forças? Em que se apoiou?
— A senhora quer dizer...
— Não pensou em Deus?
Ariana hesitou. Não havia dito nenhuma inverdade.
— Eu não costumo rezar — disse Ariana. — É um hábito que
ficou para trás. Mas dessa vez cheguei a rezar, pedi proteção.
— E se sentiu melhor?
— Sim... Fiquei calma. Como vocês dizem, tive fé.
Irmã Irene não conseguia se conter, inchada de satisfação. Por
pouco não estourou.
Ao perguntarem sobre os bandidos, Ariana respondeu:
— Não posso falar a respeito. É uma orientação da polícia.
O mistério deixou todos fascinados. Ao final, a freira constatou em voz baixa:
— Você é mesmo corajosa. Mas diga uma coisa...
Ariana esperou.
— É verdade o que estão dizendo? Que fizeram isso para atingir a polícia do Rio?
— Meu pai disse que é segredo, irmã.
Ariana sorriu ao pensar no segredo — tão secreto que nem ela
sabia.
As aulas chegaram ao fim. Ariana preferiu continuar na sala,
até esvaziar. Ao sair, encontrou Anabela no corredor.
— Olá — disse ela —, está melhor?
Ariana assentiu, mas não entendeu.
— Vou ser direta — admitiu Anabela. — Tenho um convite a
fazer.
— Convite?
— Eu gostaria... nós gostaríamos que você entrasse no clube.
— Nós? Quem está convidando?
29
as bruxas do rio
— Uma delas é Amanda, conhece?
— Conheço.
Amanda era uma das meninas mais altas e bonitas da sala, impossível não saber.
— Mas... que clube é esse?
Anabela fez um ar misterioso.
— É o Clube das Bruxas.
Ariana entendeu o jeito travesso e ao mesmo tempo sério.
— Clube das Bruxas... o que significa isso?
Anabela, de repente, ficou branca. Como um fantasma.
— E então? — insistiu Ariana. Anabela não respondeu.
— Meninas? — a voz de irmã Irene ecoou no fundo do corredor. — Estão saindo?
— Claro, irmã...
E saíram para a área externa. Anabela estava lívida.
— Não entendi — repetiu Ariana. — Clube das Bruxas?
— Bem... — a menina havia perdido o ímpeto. — Nós... formamos esse clube... Mas é segredo, ninguém pode saber.
— Por que eu?
— Você é corajosa, enfrentou os bandidos. Nós também temos
de enfrentar muita coisa.
— E como funciona?
— Antes, faremos algumas perguntas. Se você não quiser, o
assunto morre aqui.
Ariana ficou olhando para Anabela.
— Posso imaginar. Os feitiços... Caldeirões, sapos e vassouras.
Onde escondem tudo isso?
— Você não acredita?
Ariana percebeu que seguia o mesmo rumo: não conseguia
mais ter fé em nada, e isso a afastava das pessoas.
— Por que vocês fizeram esse clube?
— Para nos defender.
— Defender?! De quê?
— Ariana, sei que você enfrentou bandidos, mas este colégio é
um dos lugares mais perigosos que existem!
Ariana olhou-a, atônita.
— Hoje é sexta-feira. Você tem o fim de semana para pensar.
Me procure na segunda — disse a menina e saiu apressada.
30
ariana e arion
Ariana ficou imóvel. O fim de semana para pensar! De alguma
forma tinham conseguido. Um milhão de perguntas não poderiam
ser respondidas em dois dias.
Foi para o pátio, chegou à rua. O motorista a esperava do outro lado. Antes de atravessar, viu aquele menino, de cabelinho enrolado e ar angelical. Ele a encarou.
— Posso te perguntar uma coisa?
Ariana ficou surpresa.
— Pode...
— Quem foi que te sequestrou?
— Dois homens, você não ouviu quando eu disse?
— Alguém estava por trás deles. O mandante, quero dizer.
Ariana ficou confusa.
— Não sei.
— E não vai querer saber?
— Bem... não havia pensado nisso. Será que é importante?
— Claro que é. Por isso esses polícias estão aí — disse ele,
apontando os dois carros. — Eles podem tentar de novo.
— Obrigado, isso me deixa mais calma.
— Se quiser, eu te ajudo a descobrir quem foi.
— Você? Impossível!
— Impossível por quê?
— Você é muito criança.
Ele ficou ofendidíssimo. Ariana não podia ter escolhido palavra pior.
— O que eu quis dizer... você é pequeno, é isso.
— Acha que não existem vantagens em ser pequeno?
Ariana encarou-o sem entender.
— E... como surgiu atrás daquela porta?
— Tenho meus truques — ele sorriu.
Ariana entrou no carro: nunca ouvira tantas perguntas em sua
vida. Ser o centro das atenções não era nada agradável, menos
ainda estar cercada de policiais. Olhou para trás: o menino não
havia desistido, seguia os carros de skate!
E o convite para entrar no “Clube das Bruxas”? Se dissesse não,
ficaria marcada como inacessível. E se dissesse “sim”? Podia imaginar as conversas, bobinhas, conduzidas como se fossem as mais
adultas do mundo. E as perguntas? Começariam com “Você já bei31
as bruxas do rio
jou?”. Perguntariam seu signo. A sua cor preferida. E acenderiam
uma vela.
Ao chegar em casa, correu à televisão. Zapeou por todos os
canais, até encontrar o que queria: Crise na Secretaria de Segurança
Pública, dizia a legenda.
Depois que a filha do Chefe da Polícia Civil, Vladimir Leme da Costa, foi sequestrada, surgiram críticas sobre a capacidade da polícia de
enfrentar a criminalidade. O resgate foi efetuado com sucesso, mas as
críticas continuam.
Finalmente viu sua própria imagem, dentro da grande suv preta: seu rosto com a marca de sangue, o cabelo despenteado, estava
horrível. A cena incluía um close nítido. Com expressão assustada,
ficou constrangida ao se ver. Por isso todos sabiam!
Mostraram o “cativeiro que havia sido desmontado”, o que
soava inadequado, já que ninguém havia desmontado nada. Um
homem importante afirmava que tudo podia ser coincidência. O
apresentador concluía:
Nem mesmo o alto comando da polícia pode evitar ações como essa. A
falta de segurança está generalizada. É triste, mas simbólico.
Ariana podia imaginar discussões, até a interferência do governador. Esperou pelo pai. Mas ele não chegou.
— Está sob pressão — explicou a mãe.
— Por causa do sequestro?
— Não sei...
— E o que aconteceu com os sequestradores?
— Foram mortos.
— Mortos? Mas aquele homem estava fugindo. O policial tinha me salvado. Por que matá-lo?
A mãe fez uma expressão contrariada.
— Não entendo dessas questões.
— Eu entendo. Estava lá e sei como aconteceu.
— Você é muito ingênua, filha! Nesses confrontos, alguém
precisa ser mais forte. Felizmente, foi a polícia.
— Podiam dar informações... O que queriam, muito dinheiro?
32
ariana e arion
— Não chegaram a entrar em contato.
— E quem foi o mandante do crime?
A mãe se surpreendeu com a astúcia da filha.
— Não sabemos se houve um mandante, Ariana. Pode ter sido
engano.
— Estão dizendo que foi contra a polícia do Rio.
— As pessoas falam. Nem o seu pai sabe o que aconteceu ainda.
Ariana esperou que o pai chegasse, mas a noite avançou e caiu
no sono. No dia seguinte, ao acordar, o pai já havia saído. Em situações de crise, ele ficava fora o tempo todo.
O que ela diria às meninas no colégio, que esperavam uma
resposta?
Suas amigas de verdade estavam em outro lugar. Havia se distanciado, mas resolveu ligar para uma delas.
Ariana inteirou-a dos fatos recentes, o sequestro. Ela ficou surpresa, queria saber detalhes, mas não agora, pois fariam uma reunião
na casa de outra amiga. Ariana notou que o nome dessa “amiga” não
foi mencionado: novos desenhos de relações estavam sendo traçados.
O mundo em transformação. Ela havia parado, como uma estátua orgulhosa, esperando que o mundo parasse também. E ainda
estavam em março! Seria possível permanecer alheia, isolada naquele colégio, até o fim do ano?
*
Na segunda-feira, aproximou-se de Anabela.
— Preciso saber mais a respeito. Do clube, quero dizer.
— No intervalo conversamos.
Ariana mais uma vez notou olhares. Estava imaginando coisas?
Uma ansiedade a dominava. Que perguntas poderiam fazer?
No intervalo, Amanda, a bonita morena, apresentou Ariana às
integrantes do clube:
— Conhece nossas amigas?
Ariana não as conhecia, eram da outra classe.
— Angélica.
Loira e nem um pouco alta, ela a fez se sentir menos baixinha.
Mas os olhos delineados de preto, a roupa muito apertada lhe davam aflição.
33
as bruxas do rio
— Andrea.
Felina, linda, ronronou ao cumprimentá-la, sorrindo. Em termos de altura, estava entre Amanda, a mais alta, e Anabela.
Para onde iriam? Subiram escadas. Imaginou a biblioteca, mas
continuaram subindo. Chegaram a uma espécie de sótão.
— Que lugar é esse?
— Era um depósito. Aqui temos privacidade. Diziam que havia
um fantasma — divertiu-se Amanda. — Viemos verificar e acabamos ficando. Pusemos essas banquetas.
— Elas deixaram? As freiras?
Amanda não conseguiu evitar um sorriso.
— Não pedimos permissão.
— Ninguém percebe?
— Aqui é o quarto andar! — disse Amanda. — Se alguém perguntar, estamos indo à biblioteca. O único cuidado é não falar alto.
Fazemos rituais do coven aqui.
— Coven? O que significa isso? — perguntou Ariana.
— Coven é o nome de um grupo de bruxas. Sentem-se.
Ariana sentou-se em uma banqueta. Podia sentir os olhares
caindo sobre si.
— Gostaria de perguntar alguma coisa? — disse Amanda.
— Sim, não entendi o que significa Clube das Bruxas. Parece
coisa de livro.
— Você pode supor que fazemos bruxarias... Dizemos feitiços.
Para quê? Depende do momento. Livros, sim, nós lemos muitos.
Mas o que importa é a união. Se uma de nós quer alguma coisa, as
outras apoiam. E tudo isso é sigiloso.
— Entendo... E o que vocês queriam perguntar?
— Podemos começar?
Um calafrio passou por Ariana.
— Sim.
— Vamos lá: você acredita em Deus?
Se acreditava em Deus? Inacreditável. Não havia outro assunto?
A sensação de que os fatos se enredavam de forma absurda e ao
mesmo tempo lógica era insuportável.
— Bem — começou Ariana.
— Não sei por que perguntam, mas não tenho certeza. Simplesmente não tenho!
34
ariana e arion
— Calma — sorriu Amanda. — Essa resposta está boa para nós.
Mas lembre-se, você disse a todos que rezou durante o sequestro.
— É verdade, mas esse fato, eu mesma desprezo isso.
Olhos se arregalaram.
— Explique.
— Sim, apelei para Deus. Foi uma fraqueza. Antes, eu desprezava essa postura. De só pensar em Deus no momento de dificuldade.
— Interessante — disse Amanda. — Interessante…
— As freiras não me ajudaram a mudar essa opinião.
— Elas deixam a gente com alergia de religião! — riu Angélica, a loirinha insinuante.
— Você menstrua? — continuou Amanda.
Ariana sentiu o sangue afluir no rosto.
— Sim.
— Desde quando?
— Desde o ano passado.
Angélica aproveitou a deixa:
— É virgem?
— Sim... Por quê?
— Tudo isso é importante por uma questão de energia — explicou Amanda. — Por falar nisso, quantos anos você tem?
— Treze. Fiz no começo do ano, em janeiro...
— Você é a mais jovem de nós! Eu tenho catorze, vou fazer
quinze — disse Amanda. — Angélica também. As outras logo vão
fazer catorze. Tem interesse por algum menino da escola?
— Não!
— Prefere mulheres? — cortou Angélica, afiada.
— Não! Por que essa pergunta?
— O que Angélica quis dizer... é se você se interessa pelo queridinho de uma de nós. Isso seria um problema.
— Esse problema vocês nunca terão. Nunca! — Ariana foi categórica. — E os nomes? Todos os nomes aqui começam com A.
— É uma coincidência. Mas será que existem coincidências?
— pontuou Amanda. — Quando vimos seu depoimento...
— Foi por causa da letra?
— Uma soma de fatores. Você é corajosa. É nova na escola. E
pensamos que seria bom para você sair da sua nuvem particular.
35
as bruxas do rio
Ariana enrubesceu.
— Chegou a hora de revelar algo — disse Amanda.
— Revelar? — espantou-se Ariana.
— Talvez você não saiba, mas a bruxaria é uma religião. Quem
a salvou do perigo não foi Deus, mas a Deusa.
— Como vocês podem saber?
— A Deusa cria a vida e protege a vida. É ela quem se manifestou para a sua vida ser preservada, Ariana.
Ariana ficou sem resposta.
— Bem... Não sei...
— Você acabou de receber a informação, é normal ter dúvidas.
Mas para participar do clube, é preciso considerar a possibilidade...
de acreditar na Deusa. Porque ela é quem nos dá poder. Você acha
que poderia, Ariana?
Ariana percebeu que essa resposta era a mais importante. Acre­
ditaria na Deusa? Todas as dúvidas pareciam retornar.
— Mas o que vocês conseguem com os feitiços?
— É possível conseguir qualquer coisa.
— Por exemplo?
— O amor — disse Amanda —, Angélica conseguiu atrair o
seu amado assim.
A loirinha ficou orgulhosa. Ariana não se empolgou.
— Anabela disse que vocês criaram o clube para enfrentar perigos. Que perigos terríveis são esses?
Amanda refletiu. Subiu na banqueta, olhou pela janelinha.
— Venha ver você mesma! Elas estão lá no pátio, sentadas.
Ariana subiu na banqueta. Viu três meninas de cabelos lisos.
— São muito bonitas — constatou.
— Justamente. São as belas. Muito bonitas e arrumadas, moram
na Barra, mas nós também somos bonitas — e inteligentes. Elas
se dizem contra as freiras, mas o que fazem a respeito? Nada! Nós
fundamos o Clube das Bruxas. Percebe a diferença?
— Quem são elas?
— Fabi, Dani e Sheila. Capazes das piores coisas.
— Então elas representam o perigo — murmurou Ariana, cética.
— Você não acredita? — Amanda olhou-a.
Ariana empalideceu. Mais uma vez, a descrença se impunha
como um fosso.
36
ariana e arion
— Você devia conversar com elas — decretou Amanda, com
um brilho de maldade. — Por que você não desce para o pátio?
— Mas eu... não as conheço.
— Desça! — ordenou Amanda. — Elas vão falar com você.
Ariana desceu, incrédula. Havia duvidado, esse era o preço. O
que podia acontecer? As bruxas acompanhavam o som dos passos.
— Será que ela percebeu alguma coisa? — perguntou Anabela, receosa.
— Como poderia? Ela não sabe nada de bruxaria — concluiu
Amanda.
Ariana chegou ao pátio ensolarado. As belas conversavam,
cabelos claros esvoaçando como véus brilhantes. Uma alta, outra
mediana e a outra menor. Bonitas, de fato. De repente, olharam
em sua direção. A loira mais alta tomou a dianteira. Era tão alta
quanto Amanda, porém mais corpulenta. Ariana teve uma sensação ruim.
— Você não é Ariana, a do sequestro?
— Sim, sou...
As outras duas também vinham na sua direção.
— Que situação complicada a sua! O que estão falando a respeito do seu pai é verdade? — a voz suave e fina como um estilete.
— O quê?
— Que ele tinha um acordo pessoal com os bandidos. Aí as
coisas não deram certo, como geralmente não dão, e eles fizeram o
sequestro por vingança?
— Acordo com os bandidos? Meu pai?!
— Sheila! — gritou uma das amigas.
Ariana encarou o belo rosto com ódio. Os olhos claros, transparentes, eram um poço sem fundo. A loira se curvou, caindo.
— Ai! — gemeu. O rosto já não era tão belo.
— Sheila, o que aconteceu? — perguntou a outra.
— Me senti mal... Acho que foi o sol. Meus olhos são muito
claros!
Claros e gelados, pensou Ariana.
— Sheila, o que você falou?
— Apenas repeti o que ouvi por aí. Não fui eu que inventei,
ora. Não tenho culpa!
Ariana se afastou; ela realmente parecia estar mal. De alguma
37
as bruxas do rio
forma, havia pagado por suas palavras. Amanda, Anabela e companhia chegaram ao pátio.
— O que aconteceu?
— A loira, Sheila, falou do meu pai... Ela não tinha esse direito! — protestou Ariana. — Dizer que ele tinha um acordo com os
bandidos, isso é absurdo!
As bruxas se entreolharam.
— O que foi? — perguntou Ariana — Já tinham ouvido isso?
— É o que estão falando — disse Amanda. — O que não quer
dizer que nós concordamos, Ariana.
Ariana olhou-as sem saber o que pensar. De onde havia surgido
esse rumor?
— Vamos! A aula vai começar — ordenou Amanda.
— Vocês sabiam o que as belas iam dizer? Como?
— Nós não sabíamos. Nós mentalizamos.
— Mas...
— Começou a acreditar agora, Ariana?
A aula já começava, elas mereceram um olhar zangado do professor. Precisava perguntar, esclarecer. Ao fim da aula, porém, as
bruxas estavam com pressa, e Amanda entregou a Ariana um papel
dobrado com o horário do próximo encontro. Ao descer a escada, esta cruzou com uma menina ruiva, que parecia assustada. Os
olhos negros furavam a pele branca, fazendo-a parecer albina.
— Olá! — disse Ariana.
Seria impressão, ou ela estava mesmo encarando? Não, devia
estar imaginando, era muita coisa de uma vez só!
*
A tarde demorava a passar. Ariana tinha um sentimento ao
qual não sabia dar um nome. Seria possível que a bruxaria desse às
colegas algum tipo de poder? Nesse caso, qual?
Voltou a sentir necessidade do mar. Sua mãe não deixaria, mas
cinco minutos não fariam mal a ninguém.
Ao chegar ao mar e ver resquícios de água, ouviu um grito.
— Ariana!
Ao longe, na areia, havia um policial.
— Sua mãe está chamando. Volte!
38
ariana e arion
Em casa, a mãe reagiu:
— Foi praticamente ontem! Você perdeu a cabeça?
— Acha que vão me sequestrar de novo?
— Vou fazer como teu pai e te mandar para o quarto. De castigo!
— Isso não vai resolver a questão. As coisas estão mal explicadas. As pessoas estão perguntando, até a freira. Digo que é segredo,
mas eu mesma não sei!
— Perguntando o quê? — assustou-se a mãe.
— Por que fui sequestrada? Foi algo contra a polícia? Está esquisito, vocês se recusam a dizer. O bandido disse que... eu não
conhecia o meu pai.
— Ariana, o que você quer dizer?
— Não sei, era o tom de quem estava acusando.
Ariana havia conseguido, a mãe foi tomada de aflição.
— Mas Ariana... — a voz morreu. A expressão falava.
— Tem mais: as pessoas estão fazendo insinuações. Dizem que
a polícia tinha um acordo com os bandidos. A polícia quer dizer:
meu pai.
— Impossível!
— O sequestro foi uma vingança, estão dizendo.
— Seu pai é honestíssimo, Ariana. Ele não faria acordo com
bandidos!
Inútil continuar. Ariana foi para o quarto. Havia, sem planejar,
verbalizado sua angústia.
Depois de um tempo, a mãe apareceu. A expressão mudara.
— Ariana, você tem razão.
— Eu tenho razão? Que milagre é esse?!
— Há coisas que você não sabe, mas eu também não.
— Você quer dizer...
— A polícia. Eles têm segredos. Seu pai sempre disse que não
podia contar tudo. Que eu não podia saber informações sigilosas.
— E você concordou?
— Sim.
— Lamento. Eu não conseguiria viver na ignorância.
— É para a nossa segurança, Ariana! Ou você gostaria de saber
o que fazem os ladrões, os assassinos, os traficantes? Para depois ser
sequestrada, torturada?
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as bruxas do rio
— Mas eu fui sequestrada!
— Por engano, aparentemente, e você voltou inteira. Mas se
tivesse informações, eles iam fazer de tudo para arrancá-las. Tudo!
O ímpeto daquelas palavras criou um vácuo. A respiração alterada da mãe, a emoção interrompida.
— Eu não sou medrosa, mãe.
— Seu pai está investigando. Se descobrir o que aconteceu, vai
dizer.
— Ele já se acostumou a não dizer.
— Então, pergunte. Mas espere a tensão passar. Ele está nervoso.
O assunto estava encerrado. Mas Ariana não se resignaria. O
pai chegou à noite. Entrou em silêncio, sem acender as luzes.
— Pai?
Podia sentir que ele não estava em seus melhores dias. Parou
no escuro.
— Pai, estão me perguntando... por que fui sequestrada.
— Agora não, Ariana! Vou ter uma reunião.
— Reunião?
O pai saiu à luz e Ariana viu seus olhos pálidos.
— Não é a primeira vez.
Havia alguma coisa implícita na voz. Ele estava muito pensativo. Ariana engoliu suas perguntas.
A reunião começou às nove horas. A mãe ajudou a servir os
delegados na sala. Ariana deixou a porta do quarto entreaberta.
Ouvia frases soltas, mas nenhuma referência ao sequestro.
Mais tarde, falaram de Branca de Neve e Rapunzel. Devia ser
engano, mas os nomes foram repetidos, o que a fez pensar em uma
piada — haviam bebido. No entanto, eram delegados, até as piadas
tinham de fazer algum sentido. Chegou a ouvir também uma menção à Bruxa, seguida de risadas.
Estaria sonhando? Não, estava acordada, e aquela conversa era
mais um motivo para não pegar no sono. Quando saíram, foi à sala.
— Pai...
Ariana calou-se ao ver um homem ao lado da porta. Jovem, ele
segurava um envelope de papel pardo. Cumprimentou e saiu.
— Desculpe, não sabia que havia alguém... Por que ele estava
com um envelope?
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ariana e arion
— Por quê? — o pai estranhou. — Por que quer saber?
— Pai, ouvi falar de Branca de Neve, Rapunzel... Ouvi bem?
— Estava ouvindo escondida, Ariana?
— Saí para o banheiro... O que isso quer dizer?
— São nomes de bandidos, ou melhor, apelidos. Você pode
imaginar que não querem ser conhecidos pelos nomes verdadeiros.
— Por que justamente esses apelidos? Também falaram de
uma bruxa...
— Bruxa? Não existe nenhuma bruxa.
— Mas... eles disseram! Não estou louca. Ouvi, sim.
— Só se foi quando saí da sala.
Bruxa... Justo esse nome não podia ser real. E se o pai descobrisse que estava entrando na bruxaria?
— Pai, tem uma coisa... — Ariana tateava. — Durante o sequestro, o bandido fez insinuações e chegou a dizer... que eu não
conhecia você. Por que ele disse isso?
— Por que não perguntou a ele? — a voz dura como pedra
ricocheteou nas paredes.
— Mas pai...
— Está me acusando de alguma coisa, Ariana? Estou atrás de
todas as informações para você me acusar?
A indignação paterna a gelou.
— Claro que não, pai! Mas... estão falando que o sequestro foi
contra a polícia... — Não teria coragem de verbalizar suas dúvidas
mais cruéis.
— Você não sabe o que é uma investigação, Ariana. Bandidos
contratam outros bandidos para certas ações. Chegar ao verdadeiro responsável leva tempo. Quero ir ao fim da investigação. Isso se
você não atrapalhar.
— E como eu poderia atrapalhar uma investigação? — O espanto na sua voz não podia ser mais autêntico.
— Fazendo perguntas, por exemplo, aos oficiais que dirigem
nossos carros.
Ariana estava abismada. Nem sequer imaginara a possibilidade. Mas se o próprio pai dizia... Ele a olhava com severidade. O azul
de seus olhos, quando ela era criança, parecia de uma perfeição
inatingível. Ela nascera com olhos cinzentos.
— Eu nunca faria perguntas... aos policiais. — Mas a vontade
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as bruxas do rio
de saber continuava imensa. — E tenho de sair sempre com eles,
ser vigiada o tempo todo?
O pai expirou.
— Pai, eu não posso ser uma prisioneira.
— Espere dez dias. As investigações serão concluídas. Se foi
um engano, como tudo indica, você poderá andar sozinha.
Ariana teve a sensação de que não seria exatamente uma investigação. Aquela reunião indicava que fariam algo mais radical,
aquelas ações que apareciam na tv. E o pai acompanhava as operações de perto, deixando a mãe em pânico. E aquele homem com
o envelope? Não parecia delegado, era jovem demais. De alguma
forma, teria de saber. Mesmo que fosse preciso... perguntar aos policiais.
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