apresentação - Estudantes Pela Liberdade
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Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao APRESENTAÇÃO Em seu primeiro número, a Revista Estudos pela Liberdade apresenta uma seleção de seis artigos inicialmente com temas contemporâneos, relacionados com política, economia e sociedade como eixos centrais nas abordagens, mostrando a interdisciplinaridade presente nesses artigos de estudantes de diferentes formações universitárias do Brasil. Inicialmente, há o artigo de Adriano Diego Klein que analisa o “índice de lotação mínima” para o Estado do Rio Grande do Sul proposto pelo INCRA, suas intenções, contradições e efeitos de sua aplicação pela óptica econômica e produtiva sob base dos trabalhos relacionados resultados destas praticas produtivas obtidas e sob a luz da teoria econômica. Em seguida, Anthony Ling disserta sobre a regulação governamental da profissão de arquiteto, seja na forma de conselhos ou sindicatos. Através de políticas que justificam a manutenção da qualidade da profissão arquitetônica e defesa od consumidor (os clientes dos arquitetos) e de projetos de má qualidade, prevendo também um aumento de acidentes e desastres construtivos caso não implementada. O autor visa estudar o tipo de regulamentação que é feita, analisar a posição tomada por grande maioria dos arquitetos e medir suas conseqüências sociais com maior profundidade. Sobre o tema polêmico da privatização de presídios no Brasil, Fábio Ostermann, bacharel em Direito discute essa polemização sob quatro aspectos principais com os quais são criticadas as experiências de privatização de presídios no Brasil: jurídico, político, econômico e ético/simbólico. Além de conceituar esta expressão tão aberta a interpretações equivocadas - “Privatização de presídios”, nome popular pelo qual é conhecida a experiência de delegar atividades administrativas internas das prisões a 5 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao empresas privadas, permitindo diversos tipos de arranjos. Argumentando de, portanto, não simplesmente leiloar a empresas o estabelecimento prisional com tudo aquilo que estiver nele contido (inclusive os presos). Na área jornalística de análise temos o artigo de Julia Brofman, que analisa o jornal Granma e o blog Generación Y, que fornecem notícias sobre o cotidiano cubano atualmente. Através da análise de conteúdo de cinco matérias sobre assuntos similares entre os dois veículos, se busca visualizar como um informativo oficial e um clandestino apresentam interpretações distintas. O estudo está acompanhado de uma contextualização da situação política e midiática em Cuba. Numa análise mais ao lado da palavra literária, trazemos o artigo de Kaio Filipe, de Brasília, o qual discutirá a questão da Liberdade a partir do romance “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Para isso, o autor irá demonstrar como as concepções sobre “o que é ser livre” defendidas pelos três personagens principais (Hans Castorp, Settembrini e Naphta) podem ser comparadas às perspectivas de cinco autores da Filosofia Moral e Política: Berlin, Mill, Arendt, Nietzsche e Humboldt. Por fim, a partir das noções de Bildung e Bildungsroman, procurará explicitar o Humanismo defendido por Mann ao longo da obra, e como a ênfase nessa visão de mundo se relaciona com o contexto histórico e político do autor. No último artigo de Caroline Rippe a autora discute a teoria político-economica internalizada no político e embaixador do Brasil – Roberto Campos e seus dilemas ao longo de sua vida, contratando suas duas grandes fases – mais protecionista e desenvolvimentista na razão do Estado e sua última ao final do vida denominada como liberal – onde o intelectual confere razão ao Mercado sobre as ações econômicas e políticas de uma país, sempre voltado ao caso brasileiro, e sua solidão ideológica que viveu em relação aos intelectuais brasileiros, por ter idéias distintas e contrárias a ordem intelectual vigente no país. Por fim, participam desta edição pesquisadores graduandos, graduados e pósgraduandos das mais diversas faculdades do Brasil – Unisinos, UFRGS, PUCRS e UnB, com o objetivo de divulgar suas pesquisas, concepções e conhecimento construído durante anos. O principal objetivo da Revista Estudos pela Liberdade, é estimular a 6 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao autonomia do autor e sua ideologia, colaborando assim com a profusão de idéias de e pesquisas que beneficiam a graduação ou pós-graduação. Boa leitura a todos. Caroline Rippe de Mello Abril de 2011. 7 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao REVISTA ESTUDOS PELA LIBERDADE Número 1 – Ano 1 – Abril de 2011 – Revista Anual Temas Contemporâneos: Política, Economia e Sociedade Conselho Editorial Primeiro Número Caroline Rippe de Mello Graduado em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Mestranda em História pela Unisinos - RS. E-mail: [email protected] Fábio Ostermann Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Mestrando em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. E-mail: [email protected] Conselho Consultivo Primeiro Número Anthony Ling (UFRGS) Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. E-mail: [email protected] Contatos para publicação [email protected] Normas de publicação no site: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao SUMÁRIO APRESENTAÇÃO Caroline Rippe de Mello....................................................................................................5 INDICE DE LOTAÇÃO MINIMA DO INCRA E O INTERVENCIONISMO FALHO Adriano Diego Klein ........................................................................................................8 ANÁLISE SOCIAL DA REGULAMENTAÇÃO DO EXERCÍCIO PROFISSIONAL DA ARQUITETURA Anthony Ling...................................................................................................................14 A PRIVATIZAÇÃO DE PRESÍDIOS NO BRASIL: CRÍTICAS E OBSTÁCULOS Fábio Ostermann..............................................................................................................21 O COTIDIANO CUBANO VISTO SOB DUAS ÓTICAS - ANÁLISE DO JORNAL GRANMA E DO BLOG GENERACIÓN Y Julia Gus Brofman...........................................................................................................36 O CULTIVO DA LIBERDADE EM “A MONTANHA MÁGICA” Kaio Filipe.......................................................................................................................52 ROBERTO CAMPOS, UMA VIDA RUMO A LIBERDADE E A SOLIDÃO Caroline Rippe de Mello..................................................................................................67 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao INDICE DE LOTAÇÃO MINIMA DO INCRA E O INTERVENCIONISMO FALHO Adriano Diego Klein1 8 Resumo: O artigo pretende analisar o “índice de lotação mínima” para o Estado do Rio Grande do Sul proposto (e imposto) pelo INCRA, suas intenções, contradições e efeitos de sua aplicação pela óptica econômica e produtiva sob base dos trabalhos relacionados resultados destas praticas produtivas obtidas e sob a luz da teoria econômica. Palavras-chave: Agricultura. INCRA. Rio Grande do Sul. Milton Friedman já falava que as leis deveriam ser analisadas por seus efeitos e não pelas suas intenções (FRIEDMAN, 1980). Se observarmos a lotação mínima 2 , podemos perceber um incentivo (coercitivo, mas incentivo) para intensificar a pecuária. A pecuária do RS, segundo algumas opiniões de senso comum, é do século XVIII, atrasada e de grandes áreas e de pouca produção, a menor riqueza gerada na região Sul do estado é delegada grande parte a ela. Com a lotação mínima eles seriam obrigados a ter mais animais, e pela lógica, mais produção. Se a pastagem nativa no atual estado não funcionar no sistema tradicional, podese recorrer às soluções técnicas variadas, dentre elas: suplementar, cultivar espécies mais produtivas na área3, uso de manejos avançados (dos quais transformaram o pastejo voasin4 quase numa religião) e qualquer outra solução que estiver em voga, pois em último caso a 1 Graduando em Engenharia Agronômica pela UFRGS. Email: [email protected]. A lotação mínima consiste em manter um número mínimo de animais (no caso Unidade Animal, UA=350Kg, como unidade de medição) por uma determinada área (hectare, HÁ) como forma de analisar se uma propriedade é produtiva, sendo que a não consonância pode levar a multas, maiores taxas e desapropriação. 3 Isso é inclusive um paradoxo ao discurso ambientalista da maioria dos apoiadores da medida, tanto que um renomado Instituto Ambientalista, o GAIA, foi contra a medida dos índices, pois ameaçavam o BIOMA PAMPA que se encontrava em relativo equilíbrio. 4 Técnica de pastejo proposta pelo André Voasin na França, supõe controlar a possibilidade de pastejo dos animais utilizando cercas de forma a manter as plantas sempre em curvas máximas de produção, evitando superpastejo ou senecencia de campos. 2 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao falha de sua adaptação servia como justificativa para reforma agrária (uma das bandeiras dos proponentes). Desta forma era vitória ou vitória. Primeiramente saliento que somente pela total violação da propriedade a exigência destes modelos, apesar de ser protesto velado, visto que este tipo de postura é comum em todos os setores (das residências a estabelecimentos comerciais) e de certa forma se tornou louvado ou pelo menos atonitamente aceito pela sociedade em geral. Visto isso à abordagem será mais pelos aspectos econômicos e produtivos esquivando-se deste aspecto legal/moral. Contudo, algo estava errado, no momento que algumas das propriedades mais tecnificadas e produtivas do estado eram enquadradas e invadidas tendo como notório o caso da Estância Ana Paula5, dessa forma, algo esta sendo ignorado isto é, a natureza da região: o solo raso, muitas vezes com afloramento de rochas (que nem sobre decreto do INCRA produzem forragem), a chuva inferior a outras regiões em que se compara a produção (pelo menos em questão de oferta - demanda evapotranspirativa), faltando água nos períodos onde haveria maior crescimento de pasto (seca de verão) e um período de cria desfavorável (frio do inverno). Pecuárias avançadas como nos Estado Unidos e Austrália tem áreas onde a densidade é de 10,20ha até 50 ha para um animal, estarão estes abrindo mão de sua “pecuária tecnificada”. Mas e as adubações, silagens e suplementos como opção de adaptação, possuem uma natureza que os burocratas não entendem - o Mercado. A taxa de retorno da pecuária vem baixa em um longo período (superior a 20 anos). As causas disso são diversas, sendo muitas delas de origem governamental, saliento duas: a percepção de carne como alimento básico, cuja valorização é fonte de impopular inflação gerando um malabarismo desde compras em massa para estocagem, regulação maquiavélica dos estoques do produto e 5 Fazendo modelo do RS que se mudou para o Uruguai após sucessivas invasões, sob argumento de sua produção apesar de ser uma das mais eficientes do cone Sul, como as próprias reportagens sobre assunto retrataram Canal Rural. Fonte: Estância Ana Paula é modelo de rastreabilidade no Uruguai. Canal Rural. Reportagem do dia 16/09/2008, 07h09min. Disponível em: <http://www.canalrural.com.br/canalrural/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&action=noticias&id=2184081§i on=noticias> Acesso em: 30 de jan. de 2011. 9 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao controle dos frigoríficos pelo governo (BNDES controla eles através do credito além de instituições legais envolvidas no funcionamento destes) de forma a espremer os fornecedores. O segundo tem um misto de natureza tributária e estabilidade econômica, onde, muitos profissionais urbanos, sobretudo profissionais liberais tem empregos com alta tributação e alto imposto de renda, dessa forma, a pecuária neste caso funciona como um escape de capital deduzindo os pesados tributos (comuns no Brasil). A estabilidade economia vem do risco do dinheiro “visado”, confiscos de poupança, visibilidade de ter muito capital em moeda, a segurança da terra e a ótica sobre o gado como “sacos de dinheiro bem guardados”, não entrando no mérito deste processo, ele contribui para uma pecuária menos intensificada pelo fim da mesma não ser o lucro, mas incentivos indiretos, que não tem a solução na legislação do INCRA, mas em outras diversas. Ainda foi ignorado pelo INCRA o sistema de preços - base do sistema de tomada de decisão como: o valor do gado naquele local, naquele produtor, naquele sistema e se paga o investimento. Diversos trabalhos acadêmicos mostram respostas negativas, e aparentemente, a maioria das propriedades isso se mostra verdadeiro, algumas sendo viável apenas o uso de certa quantidade de sal proteinado, ou mesmo somente sal mineral, raro algum uso de silagem em pequena participação. Se verdadeiro fosse a total viabilidade destas praticas os utilizados com alta taxa de retorno adquiriram mais campos, investidores entrariam neste mercado e os “velhos produtores”sairiam do mercado, o que não aconteceu. Se todas as leis de efeito negativo a sociedade tivessem efeito nulo, ótimo seria, mas isso não é o que realmente acontece, e esta não é uma exceção. A pastagem nativa, segundo trabalhos, deve ter oferta (peso seco de forragem/peso animal) de 10 a 15%, variando de trabalhos mais arrojados aos conservadores ficando a maioria deles entre 12-13%, citando a consagrada curva de oferta de forragem6 (SETELICH, 1994). Desta forma a produção alcançaria um patamar de qualidade favorável, o “problema” é que isso significa em algumas áreas ter 0,3/0,4 unidades animais por hectare, em alguns momentos do ano com o inverno de 0,2 unidades. Quando o INCRA obriga por decreto esta 6 Oferta de forragem é a quantidade de pasto por animal em % do peso dele. 10 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao propriedade ter 0,7 unidades animais por hectare ele impõe uma “pecuária de fome”, não sendo necessário ter vivencia produtiva para saber que um animal que passa fome e perde peso, o contrário do que a lei se propõe7. Há diferenças entre os animais, tais como, 0,8 carga animal em Bagé tendo +-50% de vacas prenhas e 0,6 +-70% , sem contar o maior peso, repetição da prenhez. Se medir a produção de uma tecelaria pela quantidade de máquinas de fiar fosse discutível, discutir a produção de gado pela quantidade deles numa área sob uma quantidade de pasto quase inflexível é insano. 11 A cultura tradicional da pecuária já usava altas lotações, a legislação do INCRA reforça a idéia e a tornam regra. Com esta norma não se muda a pecuária obsoleta, mas a torna padrão, sendo as propriedades que seguem a recomendação zootécnica a ficar a margem da lei. Muitos já lotearam suas propriedades, migraram para outros países como Uruguai ou abandonaram a atividade, mais o farão se isso se perpetuar. As zonas passiveis de punição vai muito além das verbas de reforma agrária, sendo mais um “fantasma” e massa de manobra que política real de assentamento. Portanto reitero a não intervenção nos índices de lotação. Abordando as intenções e resultados, fica claro que quando alguns políticos falam em medidas para “avançar o rural” deviam mudar de abordagem para “políticas para não manter as leis que sufocam nosso campo”. Seria muito mais fácil deixar que o consumidor através do mercado sustentar aqueles que lhe fornecem a boa carne a preços que estejam ao seu alcance que pela mão de um burocrata ideológico. 7 Os resultados destas lotações altas podem ser encontrados em diversos trabalhos como, (LOBATO, 2003 e 2004). Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FAGUNDES, José, et all. Efeito de Duas Cargas Animais em Campo Nativo e de Duas Idades à Desmama no Desempenho de Vacas de Corte Primíparas. Revista Brasileira de Zootecnia, v.32, nº6, p.1722-1731, 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbz/v32n6s1/19693.pdf > Último acesso em: 14 de fev de 2011. FRIZO, Adriana, et all. Análise Econômica da utilização de suplemento em pastagem de gramíneas anuais de inverno. 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Este artigo visa estudar o tipo de regulamentação que é feita, analisar a posição tomada por grande maioria dos arquitetos e medir suas consequências sociais com maior profundidade. Atualmente, a estrutura da regulamentação da Arquitetura em nível federal brasileiro é gerida pelo Conselho Federal de Engenharia, Arquitetura e Agronomia (CONFEA), com representação estadual na forma dos Conselhos Regionais, sendo no Rio Grande do Sul o CREA-RS, que será o exemplo regulatório estudado neste artigo. Os objetivos do CREA/RS são: - Garantir à sociedade que somente profissionais tecnicamente habilitados sejam responsáveis por serviços e obras. - Registrar profissionais e empresas da área tecnológica. - Fiscalizar o exercício profissional em defesa da comunidade. Os três objetivos do órgão buscam claramente uma defesa da sociedade. Para isso, uma das principais normas estabelecidas pelo órgão estadual é a restrição do fazer arquitetônico aos profissionais habilitados pelo órgão de regulamentação de sua região, como estabelece, por exemplo, na norma 003/90, que resolve, no Artigo 2o: 1 Graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFRGS. Email: [email protected] 14 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao As pessoas físicas ou jurídicas que se propunham a executar obras ou serviços de engenharia, arquitetura ou agronomia, mesmo que limitadas suas atividades ao fornecimento ao fornecimento tãosomente de mão-de-obra, obrigatoriamente devem estar habilitadas junto ao CREA/RS. Além disso, para um arquiteto estar habilitado junto ao CREA/RS como pessoa física, ele deve ser diplomado em uma escola de ensino superior de Arquitetura habilitada pelo Ministério da Educação e pagar, obrigatoriamente, tanto uma taxa de registro como uma anuidade. Devemos lembrar que, apesar dos conselhos regionais e federais que alegarem que não recebem recursos diretamente do governo, eles recebem dos profissionais que contribuem obrigatoriamente para poderem exercer sua profissão legalmente. A lógica por trás desse tipo de norma, replicada em todos estados brasileiros, é de que se todos profissionais trabalhando na área forem diplomados em instituições de ensino de Arquitetura aprovadas pelo MEC e devidamente regulados pelos conselhos regionais, o número de edificações de má qualidade diminuirá. A norma também surge com a idéia de proteger a profissão do arquiteto, já que garante que ele terá que ser contratado para os serviços de sua jurisdição. Porém, por causa da norma deve-se perceber o surgimento de uma série de efeitos que vão justamente ao sentido contrário do que ela busca, que normalmente não percebidos quando se fala na regulamentação legal da profissão, amplamente defendida pela grande maioria dos profissionais. Ao criar a barreira de entrada da formação em escolas específicas no curso de Arquitetura, impedindo designers, técnicos de construção e de desenho, mestres-de-obra ou qualquer outro tipo de profissional da área a executar os serviços semelhantes ou iguais ao de um arquiteto, a concorrência na produção de projetos diminui brutalmente. Esse efeito é notado pelos que defendem a regulamentação, pois sabem que muitos técnicos da construção e bons designers estão melhores habilitados a projetar do que arquitetos formados. 15 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao O que não é percebido é que essa diminuição da concorrência faz com que a qualidade dos projetos, em geral, diminua. Se o arquiteto formado será empregado obrigatoriamente por qualquer um que queria executar um projeto, ele terá menos incentivos de estudar e se preparar para enfrentar o mercado. Seu trabalho está garantido pela regulação legal da profissão. Também se torna mais lucrativo para o arquiteto defender sua regulamentação e ter uma atuação política através da mobilização da classe do que se capacitar na sua profissão, gastando mais tempo com o trabalho nos conselhos do que com o trabalho no escritório. A concorrência no mercado desregulamentado gera maior eficiência para a profissão, já que os profissionais são incentivados a serem cada vez mais preparados. O medo da concorrência também mostra o fato de que passar por uma instituição de ensino superior pode ser uma sinalização de capacidade, porém não necessariamente uma garantia de qualidade: vêmos cada vez mais arquitetos se formando em instituições de ensino superior de suposta qualidade que não teriam condições de trabalhar se a profissão não fosse protegida por normas como a do CREA. A desregulamentação implicaria também em um aumento do incentivo para que as faculdades de arquitetura fossem de melhor qualidade, atendendo a demanda dos estudantes que querem enfrentar um mercado mais exigente. Então, as obras de má qualidade que a regulamentação pretende diminuir acabam acontecendo mesmo assim, criando algo ainda pior: a formação de um mercado negro de projetos. O Brasil apresenta hoje um número altíssimo de empregos informais: cerca de 55% dos postos de trabalho da área urbana no Brasil são informais, sendo mais próximo de 60% na indústria de construção. A existência da informalidade é devida unicamente à regulação destes empregos com barreiras de entrada. Sem estas barreiras, o mercado é livre, e o informal deixa de existir. No caso da arquitetura, ele surge dado a obrigatoriedade do consumidor em pagar um “prêmio” muito alto a arquitetos formados para construir legalmente, porém não são todos que têm interesse ou até condições de pagar por um arquiteto. Estes irão ser os atores do que chamamos de mercado negro. Assim, este mercado negro acaba sendo constituído por profissionais realmente despreparados, com todo interesse de serem invisíveis perante a lei. Estes projetistas 16 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao informais são muito mais difíceis de controlar e de se classificar, colocando os consumidores em xeque: já que o preço pela legalidade é alto em comparação com a qualidade dos profissionais formados, eles têm grandes incentivos em optar pela construção ilegal, gerando um risco social muito maior do que o existente anterior à regulação. A tentativa atual da regulação é de reprimir os incentivos destes consumidores, fazendo com que eles paguem o preço de um mau custo-benefício pelos projetos arquitetônicos. Mesmo sendo inviável a regulamentação da totalidade dos profissionais com precisão, o objetivo do Estado é a implementação das normas criadas pelas agências reguladoras da profissão. Porém, esta política só faz com que a riqueza da sociedade seja indevidamente investida, já que estes consumidores poderiam estar gastando este extra que pagam aos arquitetos em outras coisas a que eles atribuem um valor maior, seja isto saúde educação ou bens de consumo como roupas e comida. A força do Estado é usada para proteger e transferir riqueza para indivíduos que não são os mais aptos para exercer a atividade arquitetônica para a sociedade. A concorrência não regulamentada do arquiteto com os demais profissionais da área de projeto elegeria aqueles que são verdadeiramente melhores no que fazem e automaticamente acabaria com o mercado negro nesta área, pois não haveria a vantagem do preço mais baixo pela informalidade e a lei poderia ser aplicada igualmente a todos os profissionais. Os arquitetos no mercado já têm o incentivo natural de fazerem um bom trabalho, pois se não o fizerem alguma outra pessoa fará. Bons projetistas são recompensados ainda mais através de prêmios dados por entidades privadas, que produzem uma espécie de selo de qualidade para seu trabalho: o Pritzker Prize e o Mies Van der Rohe Award são os mais reconhecidos internacionalmente, sendo em nível nacional os prêmios concedidos pelo IAB, principalmente durante a Bienal Internacional de Arquitetura, que também ocorre em diversos países premiando os melhores arquitetos. Estes prêmios não julgam o arquiteto pela sua filiação aos conselhos de arquitetura, e sim pela sua capacidade. Também é comum ver grandes arquitetos que não tem uma educação formal completa, Tadao Ando, Ludwig Mies Van der Rohe são exemplos disso: o primeiro é vencedor do 17 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Pritzker Prize e o segundo é considerado por muitos o maior arquiteto de todos os tempos. Se fôssemos aplicar a lei da regulamentação para estes dois indivíduos, provavelmente o mundo seria um lugar mais feio e menos funcional. O cientista político brasileiro com Ph.D. pela Universidade de Chicago, Alexandre Barros, também escreve sobre o assunto em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo: José Zanine Caldas, famosíssimo arquiteto autodidata, desenhou e construiu algumas das mais caras e belas casas do Joá e da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Quem as comprava pagava por sua competência e seu bom gosto, mas um naco era para o engenheiro formado, cuja única função era assinar a planta. Zanine foi professor na Universidade de Brasília. Hoje não poderia, porque não tinha diploma. Em resumo, não ganhamos nada com profissões regulamentadas. Só ganham os profissionais que fazem parte delas. Exemplos diferentes de regulamentação em outros países mostram que há maneiras melhores de se obter um melhor padrão de qualidade no exercício profissional da arquitetura. O Key Center for Architectural Sociology, dirigido pelo arquiteto e sociólogo australiano Dr. Garry Stevens, informa que na a Austrália, no Reino Unido, na Turquia, Holanda e Nova Zelândia, qualquer um pode realizar o trabalho de um arquiteto: apenas o nome da profissão é protegido para aqueles que egressam das escolas certificadas. Ele também diz que na Dinamarca, Finlândia, Irlanda, Noruega e Suécia, desde que as edificações estejam de acordo com as normas de construção locais (como o Código de Edificações existente no Brasil), não importam quem desenhou a edificação. A opinião do Dr. Stevens também é favorável à desregulamentação: Na medida em que os países passaram a regular os arquitetos e o que eles fazem, as opiniões dos clientes passaram a valer menos. Hoje em dia, arquitetos devem defender seus argumentos para o Estado e, indiretamente, à opinião pública; não diretamente aos clientes. Ao invés de demonstrar suas habilidades superiores no mercado, negociando com aqueles que comprarão estas habilidades, eles vieram a depender da persuasão do Estado para passar leis em seu favor, para forçar os potenciais compradores do seu trabalho para empregá-los. Outra premissa usada para defender a norma é a valorização da cultura arquitetônica na sociedade, e que sem ela o arquiteto seria ainda menos valorizado do que é hoje. Mas, vendo o resultado da regulamentação, o cenário fica ainda pior quando notamos que a obrigatoriedade na contratação de arquitetos despreparados cria uma imagem negativa da profissão na sociedade. Arquitetos terminam por não serem respeitados, não por que não são legalmente defendidos, mas justamente pelo contrário: 18 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao os consumidores são obrigados a contratar arquitetos de má qualidade que acabam prejudicando a imagem da profissão como um todo. A norma acredita na criação de uma cultura que valoriza arquitetura, mas gera exatamente o oposto ao tentar impôr uma cultura à força. A valorização da Arquitetura e de bons projetos acontecem com o aumento da riqueza da sociedade como um todo, e não decorrente de leis que impõem esta valorização. O designer Philip Starck (que também trabalha como arquiteto de interiores e que criou o conceito do Hotel Fasano no Rio de Janeiro) fala disso muito bem na sua palestra no TED Talks: design não é uma necessidade prioritária da humanidade. Felizmente, ele alega hoje a humanidade adquiriu riqueza suficiente para que o bom design possa ser adquirido por todos, e não por uma pequena elite. O crescimento econômico brasileiro dos últimos anos só tende a melhorar essa situação para o nosso país: vêmos cada vez menores escritórios surgindo para atender novos clientes dispostos a consumir a boa arquitetura. Exemplos destes são o Studio Paralelo, de Porto Alegre, e o Atelier Um, de São Paulo, recentemente publicados na revista de arquitetura e design internacionalmente reconhecida Wallpaper. A desregulamentação da profissão também não impede a formação de entidades de classe de forma voluntária que não se utilizam de normas para se proteger, importantes agências institucionais privadas de apoio aos profissionais e à comunidade. O Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), por exemplo, tem um papel de destaque no Brasil, promovendo cursos, concursos, apoio técnico e acadêmico como associação civil e independente. Infelizmente, ele luta também pela regulação: neste caso para separar os arquitetos do CREA na criação um conselho independente. Analisando o cenário criado pela regulamentação do arquiteto, concluo que são produzidos efeitos contrários aos almejados, prejudicando a qualidade da produção arquitetônica e colocando a sociedade em risco com a formação de um mercado negro. A desregulamentação deveria ser uma alternativa mais estudada na classe dos arquitetos para possibilitar a recuperação da imagem da nossa profissão pela própria competência, e não pela imposição de uma norma. 19 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Os arquitetos que mais lutam pela organização da classe (que mais têm medo da desregulamentação) são aqueles que sabem que serão os primeiros prejudicados pela entrada de novos concorrentes. É difícil encontrarmos bons arquitetos defendendo o fechamento do mercado: estes não têm com o que se preocupar. Enquanto maioria dos benefícios da regulamentação resta sobre poucos arquitetos, maioria dos malefícios resta sobre toda a sociedade. 20 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL, Ato Normativo Nº 003/90, 12 de outubro de 1990. Estabelece as condições de participação dos intervenientes em serviços e obras de engenharia, arquitetura e agronomia, e revoga o Ato n° 03/78. Sala de Sessões CREA/RS, Porto Alegre, RS, 12 out. 1990. Sessão 1. BARROS, Alexandre. Desregulamentar profissões. Todas!. O Estado de São Paulo, São Paulo, 21 jul 2009. p A-2. MENDES, Lucas. Desregulamentação do mercado de trabalho: a liberdade garante a ética e a qualidade. Disponível em <http://www.mises.org.br/Article.aspx?id=340> Acesso em: 11 mar. 2011. STARCK, Philippe. Philippe Starck thinks deep on design. Monterey, 7 mar. 2007. Palestra proferida no TED2007. Disponível em <http://www.ted.com/talks/philippe_starck_thinks_deep_on_design.html> Acesso em: 11 mar. 2011. STEVENS, Garry. Regulating Architects Across the Globe. Disponível em: <http://www.archsoc.com/kcas/RegulatingArchitects.html> Acesso em: 11 mar. 2011. STEVENS, Garry. Design Rules: Architects Justify Themselves. Disponível em <http://www.archsoc.com/kcas/Bdaa.html> Acesso em: 11 mar. 2011. Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao ROBERTO CAMPOS: UMA VIDA RUMO A LIBERDADE E SOLIDÃO Caroline Rippe de Mello1 Resumo: Este artigo foi feito através dos estudos feitos junto ao Grupo de Pesquisas sobre nação e nacionalismo, que tem como coordenadora a Profª. Drª. Janete Abrão, do curso de História da PUCRS. Fez-se uma análise sobre a as concepções teóricas e teses de Roberto Campos presentes em seus livros, além de outra bibliografia de apoio sobre o autor e sobre o contexto histórico da época que o mesmo atuou politicamente. O intuito do artigo é mostrar as diferentes visões de Campos sobre a nação e o nacionalismo, além de sua teoria acerca do desenvolvimento para o Brasil, principalmente no que tange às décadas de 1960 até 1980. Palavras-chave: Roberto Campos, Liberalismo, Economia ROBERTO CAMPOS, O “SOLITÁRIO LIBERAL” Para entender o pensamento político e econômico de Roberto Campos, deve-se primeiramente compreender sua formação intelectual. Formado em Filosofia em 1934 e Teologia em 1937, vem a formar-se em economia nos Estados Unidos, país em que atuará durante toda sua vida. Nos Estados Unidos, atuou como presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico em 1952, e Embaixador do Brasil entre 1961 e 1963. Também foi o idealizador e um dos criadores do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) em 1966 juntamente com Castello Branco e Octávio Bulhões2 e o Banco Nacional de Habitação (BNH) em 19643, além de outras reformas e medidas que se converteram em benefícios a população brasileira. O posterior “solitário liberal”4 vivenciou o contexto da Guerra Fria, o antagonismo entre dois céus e dois infernos, onde os opostos regimes ao mesmo tempo divulgavam êxito total, e taxavam uns aos outros como fracassos cambaleantes. Em 1 Bacharel e Licenciada em História pela PUCRS. Mestranda em História pela Unisinos. Email: [email protected]. 2 Lei no 5.107, de 13 de setembro de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L5107.htm>Acesso em: 17 ago. 2010. 3 Lei nº 4.380, DE 21 de agosto de 1964. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4380.htm> Acesso em: 17 jun.2010. 4 Considerado “solitário”, pois fora o único liberal a compor uma cadeira na Associação Brasileira de Letras, em 23 de setembro de 1999, o qual o mesmo chamou de “Cadeira da Liberdade”, sendo tanto sucedido quanto precedido por integralistas e comunistas. 67 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao outras palavras, a Guerra Fria significou a oposição entre dois modelos de sociedade – a capitalista e a “socialista”, em que as “duas superpotências aceitaram a distribuição global de forças no fim da Segunda Guerra Mundial, que equivalia a um equilíbrio de poder desigual, mas não contestado em sua essência” (HOBSBAWN, 2003: 224). A URSS controlava uma parte do globo, que o exército vermelho e tropas de força militar comunista estavam ocupando desde a II Guerra Mundial, já os EUA, por outro lado, controlava a outra parte do globo, o Ocidente, através do consumo, impulsionado pelas políticas econômicas americanas, em vista de deixar sua balança comercial sempre favorável. Ao mesmo tempo, as duas potências evitavam um confronto direto de forças, para não provocar uma III Guerra Mundial. No caso do Brasil, nesse contexto de Guerra Fria, certas autoridades governamentais e as alites econômicas e intelectuais se encontravam temerosas com relação ao regime soviético, tanto que muitos governantes e pessoas influentes, como o próprio Roberto Campos, sempre lutaram contra a inserção e práticas de idéias comunistas no país. Em termos econômicos, principalmente na década de 1950, “a poupança interna permanecia cronicamente baixa, mantendo assim também o investimento baixo. E o esperado capital estrangeiro para complementar o investimento nacional não era suficiente” (SKIDMORE, 1998: 205). Em termos de pensamento econômico, o antagonismo oferecido pela economia liberal - livre mercado, em relação à socialista – planejamento em todos os setores parece ter encontrado a resposta numa terceira via, assim como seu conterrâneo Hélio Jaguaribe, por exemplo, propunha uma “economia mista”. Essa teoria sobre “economia mista” expõe que o Estado desempenharia um papel crucial no planejamento e intervenções criando mecanismos para o controle de oferta e demanda inclusive, tendo como teórico fundador John Maynard Keynes em seus escritos sobre teoria macroeconômica.5 Inicialmente Campos, adere a essa teoria nos anos 50, apesar desta teoria “mutilar o potencial de poupança e [...] perpretrar a inflação e o subdesenvolvimento [...], pois a teurapêutica keynesiana aplica-se muito bem a 5 A teoria macroeconômica está expressa na obra: A teoria geral do emprego, do juro e da moeda, sob autoria de John Maynard Keynes. Que previa um maior controle do mercado pelo Estado, no qual a poupança, investimentos e renda devem ter um equilíbrio estável entre si. Sendo somente possível a realização desse planejamento através do controle sob a taxa de juros e demanda por moeda. 68 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao economias desenvolvidas em depressão, mas nunca a nações subdesenvolvidas com inflação”, como foi dito por seu tutor Mario Henrique Simonsen. Para Roberto Campos, nos primeiros países onde a industrialização ocorreu o planejamento estatal é alheio, pois para ele, “o credo utilitarista e individualista se constituiu na principal força desenvolvimentista” (CAMPOS, 1974: 24). Segundo Simonsen: 69 Ao contrário do próprio Rostow, esse credo não se concentrou exclusivamente na promoção de motivação lucrativa e na defesa da propriedade privada, conforme a acusação marxista. Ao longo do tempo, o credo individualista e utilitário evoluiu no sentido da defesa da liberdade política e do voto unitário; implantou o controle de monopólios, desenvolveu uma legislação social que moderou o incentivo do lucro e tornou respeitável, senão dominante, a motivação do bem-estar; e finalmente criou o imposto de renda progressivo, como poderoso instrumento redistributivo e moderador da absorção da mais valia pelo capitalista (SIMONSEN, 1974: 24). Os países considerados em desenvolvimento possuem tendências socializantes e estatizantes, devido a debilidade empresarial no setor privado. Partindo deste princípio, Roberto Campos concede uma importância ao setor privado para com a economia. Campos definiu, por exemplo, que países onde o empresariado é debilitado, são geralmente considerados “em desenvolvimento”. Declarando também que “um dos principais problemas da iniciativa privada na América Latina resulta do contínuo intervencionismo estatal e da imprecisão ou inconstância da delimitação de áreas e funções entre o setor público e privado” (CAMPOS, 1972: 15) Roberto Campos atrelava ao índice de desenvolvimento o fomento à industrialização, devendo o Estado incentivá-la, sendo essa uma concessão ao liberalismo. Podemos notar a prática desta teoria principalmente no segundo governo Vargas, com a criação do Vale do Rio Doce em 1942 e criação da Companhia Hidroelétrica do São Francisco em 1945, só para citar alguns exemplos. E mais claramente essa industrialização se deu no governo de Juscelino Kubitschek com a implementação do Plano de Metas, onde os “cinquenta anos de progresso em cinco” eram a representação da necessidade de uma rápida industrialização dos países ainda agrários, como o Brasil, pois “o objetivo era unir o Estado e o setor privado numa Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao estratégia de alto crescimento, com a finalidade de acelerar a industrialização e a construção da infra-estruta para sustentá-la” (SKIDMORE, 1998: 203). Já nos anos de 1960 há uma preocupação maior em relação ao comunismo, pois a Revolução Cubana ocorrera em 1959 e a esquerda tornava-se cada vez mais heterogênea, principalmente, nas universidades, onde era motivo de adoração a Teologia da Libertação e os “nacionalistas radicais”. Porém, em contrapartida, havia setores mais conservadores, que mesmo sendo simpático para com o liberalismo econômico, era “protecionista”. Cabe esclarecer que essa esfera conservadora que simpatizava com o liberalismo econômico se enquadra no “conceito plutocrático de liberdade e da disciplina6”, proposto por Mannheim. Roberto Campos sente-se ultrajado pelo governo de João Goulart que, para ele, ameaçava não só a propriedade privada com suas reformas, mas a autonomia brasileira. Goulart assume a presidência com uma inflação de 34,7% em 1961, chegando a ponto de em 1964 a inflação atingir os 100%. Desta forma, logo houve o apoio de Campos ao golpe de 1964, alinhando-se às politicas de Castelo Branco (1964-1967), pois: “[...] a partir de 1964, face à ameaça de caos social que poderia descambar num autoritarismo de esquerda [...] surge como elemento de contenção do populismo distributivista, do regionalismo dispersivo e do personalismo político o golpe de 64” (SIMONSEN, 1974: 228). Por isso, Roberto Campos declarou que “na primeira parte dos anos 60 o Brasil perdeu seu ímpeto desenvolvimentista que tinha nos anos 50, por desastres políticos” (SIMONSEN, 1974: 25). Neste sentido, apoiou as políticas do presidente Castelo Branco, pois sua função era “reafirmar a autoridade para salvar a liberdade” (CAMPOS, 1968: 354). Segundo Campos, as medidas de Goulart de nacionalizar refinarias de petróleo privadas e desapropriar terras em prol da Reforma Agrária ameaçavam as finanças. Logo, em Roberto Campos, percebe-se que para uma sociedade tornar-se moderna e industrializada, certo grau de autoritarismo era inevitável. No caso de 1964 6 Esse conceito elaborado por Karl Mannheim consiste em quando, uma classe limitada de ricos aplica ideologia liberal sem levar em consideração as mudanças sociais. A liberdade econômica deve ser expressa, diminuindo o papel do Estado. Porém a liberdade social é tolhida de certos grupos. 70 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao alguns militares consideravam a intervenção militar algo temporário, apenas para corrigir a indisciplina social, estancar a inflação e retomar o desenvolvimento, sendo considerado esse modelo de uma democracia participante com um executivo forte. Desta forma: “O Congresso expurgado prontamente elegeu [...] Castelo Branco [...]. Os tecnocratas eram liderados por Roberto Campos, diplomata e economista e destacado crítico do governo Jango em seus últimos tempos. Campos trazia consigo uma equipe de economistas e engenheiros, muitos dos quais tinham contribuído para a criação de um think tank, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), no Rio de Janeiro e São Paulo. Eles assumiam o poder com idéias claras e convencionais sobre como conter a inflação e restaurar o crescimento econômico no Brasil” (SKIDMORE, 1998: 216). Cabe acrescentar que Campos atuou efetivamente na economia brasileira no governo de Castelo Branco até 1967, sendo sucedido por seu rival Delfim Neto no governo de Costa e Silva. No primeiro governo militar ocorreu o “milagre econômico” gerenciado por Campos, em que a inflação fora reduzida de 92% em 1964 para 28% em 1967, abrindo espaço ao boom, com uma média de expansão de 10,9%, possibilitando a oferta de crédito e crescimento no setor industrial posteriormente. Contudo, provocou desigualdades entre os trabalhadores, entre as regiões e desigualdades de renda. Para Roberto Campos, um grande número da população brasileira não possuía capital suficiente para sua subsistência, algo que segundo ele se agravava pelo rápido crescimento demográfico, sendo algo típico de países subdesenvolvidos, os quais faziam uma relação entre mão-de-obra capital; capital mão-de-obra e terra, o que diminuía a vantagem competitiva e a remuneração do trabalho. Sendo assim deveria ocorrer uma industrialização lenta e gradual, segundo Gudin, pois a “economia brasileira, como a do restante da América Latina, sofria de baixa produtividade e pleno emprego, e não de especialização em atividades agrícolas e de desemprego”. (BIELSCHOWSKY, 2002: 55) PLANEJAMENTO, DESENVOLVIMENTO E NACIONALISMO Cabe esclarecer que a teoria do planejamento é algo menos concreto do que o projeto, possuindo suas diferenças entre os países de economia capitalista ou socialista, de cunho marxista ou moderado. Em países considerados subdesenvolvidos a teoria do planejamento segue uma linha distinta das outras duas citadas anteriormente, devido às particularidades que seus setores apresentam. Há argumentos a favor da teoria do planejamento e contra também, em que: 71 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Um dos vários argumentos de que se lança mão para demonstrar a inevitabilidade do planejamento, e o mais frequente usado, é o de que as transformações técnicas tornaram impossível a concorrência em capos cada vez mais numerosos e só nos resta escolher duas alternativas: ou o controle da produção por monopólios privados, através de trustes e cartéis [grifo meu], ou direção pelo governo (HAYEK, 1984: 78). A teoria de planejamento adotada por Campos é a de Carl Landauer7, que se definiria como uma “orientação das atividades econômicas por um órgão comunal, mediante um esquema que descreve, em têrmos quantitativos assim como qualitativos, os processos produtivos que devam ser empreendidos durante um período de futuro prefixado” (CAMPOS, 1963: 10).Tanto o planejamento quanto a intervenção estatal são positivos aos países subdesenvolvidos, visto que um dos principais problemas do planejamento reside no setor empresarial, principalmente entre a empresa estatal e estrangeira: a estatal exige concentração de capital contra a alta tecnologia das estrangeiras, logo para corrigir essa debilidade do empresariado nacional, o Estado deve estimulá-lo através de auxílios, pois essa debilidade é fruto de uma má distribuição de renda associada à inexperiência dos profissionais da área. Inclusive devido a isso há órgãos de crédito internacionais voltados à pequena e média empresa, tal como o FUNDECE, FINAME e FIPEME8, constituindo assim uma “nacionalização do crédito externo”. 7 Carl Landauer (1891-1983) foi um professor emérito alemão que atuou na área de economia em diversos países, vindo a falecer nos Estados Unidos, último país que atuou. Em 1912 se tornou membro do Partido Social Democrata alemão, foi quando começou a escrever sobre economia. No período da Segunda Guerra, lutou pela democracia e contra a ascensão do nazismo. Faleceu aos 92 anos, dois dias depois de publicar seu último livro. 8 FINAME: Agência Especial de Financiamento Industrial é um órgão subsidiário ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), criado em setembro de 1964. Oferece financiamentos, sem limite de valor, para aquisição de máquinas e equipamentos novos, de fabricação nacional, através de instituições financeiras credenciadas. FIPEME: Programa de Financiamento à Pequena e Média Empresa. Criado em 1964, e vinculado ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), o FIPEME torna-se uma unidade operacional com a reestruturação do banco, um sistema de apoio gerencial às micro e pequenas empresas. FUNDECE: Fundo de Desenvolvimento da Educação e Capacitação Empreendedoras das microempresas. Tendo como objetivo, a geração de recursos financeiros exclusivamente para desenvolvimento de programas e projetos de formação e capacitação nas áreas de empreendedorismo, gestão, informação, tecnologia e inovação, objetivando a profissionalização e melhoria da competividade das micro e pequenas empresas brasileiras. 72 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao A teoria de Roberto Campos, num segundo momento, já no regime militar, sofreu uma influência da Escola de Freiburg. Para esta escola econômica alemã, no âmbito de suas deliberações, ela tem por premissa o providencialismo – em que as ações econômicas dos indivíduos promovem sua prosperidade e o automatismo do mercado, composta por forças imanentes, que regulam os setores econômicos. Cabe acrescentar que a teoria de Roberto campos também foi influenciada pelo pensamento econômico de Mario Simonsen, o qual fora um dos fundadores do conhecido desenvolvimentismo em 1944, época onde “o planejamento e a industrialização emergiram no Brasil, portanto como questões extremamente politizadas” (SOLA, 1998: 75). Dentre as teorias desenvolvimentistas, os aspectos mais destacados eram: o crescimento de salários e indústrias, expansão do mercado interno e as medidas de base na educação e saúde, medidas essas necessárias para que os países subdesenvolvidos pudessem obter alguma ascensão no cenário interestatal. Esse discurso será reavaliado e incorporado pela própria CEPAL posteriormente, chegando até 1952 com a criação do BNDE, com ativa participação de Roberto Campos na área técnica, onde o tão preterido investimento de capitais externos e ampliação do mercado interno foram as principais medidas realizadas por esse órgão de fomento ao empresariado industrial. Cabe afirmar que a ideologia do desenvolvimento toma forma com o governo de Juscelino Kubitschek, tornando-se uma preocupação freqüente a partir da década de 1950 no Brasil, e inclusive nos países onde a taxa de crescimento vinha sendo mais elevada. O capital estrangeiro nessa década “é visto como necessário para acelerar o aumento da renda”, dessa forma através dos investimentos desse capital, se pensava que a taxa de crescimento se elevaria, porém: O principal problema é a dependência tão forte das relações de intercâmbio, em que todo este processo depousou, e a influência muito pequena que uma economia como a brasileira é capaz de exercer para controlá-las a seu favor9. Dos principais argumentos, um era a favor da inserção do capital estrangeiro no governo de Juscelino era que ele não se pautava num debate emocional, mas numa necessidade técnica, a fim de fortalecer a economia. Esse capital foi amplamente 9 BNDE – Exposição sobre Programa de Reaparelhamento Econômico, exercício de 1955, p. 4. 73 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao empregado na industrialização, para que o país se tornasse soberano e próspero. Para Juscelino, esse investimento na indústria terminaria com pensamento colonialista brasileiro. Na concepção de JK, o nacionalismo se define pelo desenvolvimento, de cunho anticomunista, pois se baseia na defesa da Nação e repúdio a subversão, onde: Num país como o Brasil, o que é colonizador é a ausência de investimentos, ausência de empregos e capitais. Não somos mais nação colonizável. Acreditar na possibilidade de sermos escravizados por influências do dinheiro estrangeiro é o mesmo que concluir pela nossa personalidade nacional e ao nosso caráter de povo formado (CARDOSO, 1977: 140). No caso da presidência de Juscelino, essa ideologia do desenvolvimentismo toma forma e clareza em seus objetivos, pois havia uma maior preocupação com os países em crescimento como o Brasil na época. Por isso deviam-se lançar no mercado os produtos brasileiros, pois a partir do capital nacional seria gerada a exportação, porque essas relações com o mercado externo prejudicavam os países mais fracos economicamente. Por sua vez, Campos apresenta-se como um antinacionalista, em suas obras, o autor acredita que o nacionalismo mais se preocupa em distribuir riquezas do que em produzi-las, além de em outras instâncias ser até mesmo xenófobo e, consequentemente excludente. Redistribui riqueza para os pobres, discrimina a agricultura e enaltece a indústria – atendendo aos interesses da classe média; tende a favorecer a propriedade coletiva e estatal para a socialização de empregos para a clásse média emergente, dificultando em assegurar carreiras. Essa opinião de Campos é um contra-argumento ao nacionalismo moderado do governo Vargas, relacionado com a “política de massas e com o estilo populista [...], em resposta ao processo de redistribuição de recursos políticos associado à concorrência eleitoral e à crescente integração das massas urbanas à vida política” (SOLA, 1998: 94). TEORIAS DETURPADAS E AÇÕES CONTROVERSAS “(...) as deformações de mentalidade são nossos verdadeiros inimigos. Há muito luto contra três deles: o pseudonacionalismo, o pseudoigualitarismo e o pseudoliberalismo” (CAMPOS, 1987: 05). 74 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao O “pseudonacionalismo”, segundo Roberto Campos se caracteriza pela retórica agressiva em detrimento de uma opção pela solução mais eficaz. Suas barreiras, quase xenofóbicas, rejeitam o que não podem substituir, ou seja, os resultados são substituídos pelo discurso agressivo e antiliberdade. O nacionalismo vivenciado por Campos em sua época concentrava os poderes econômicos e de mercado no Estado, declarando-se até mesmo antinacionalista, pois: [...] se alguma coisa a história nos ensina é que a concentração do poder econômico no Estado acaba afirmando mais cedo ou mais tarde o pluralismo político, pois o poder nacional é uma categoria intuitiva como sendo, o poder de coerção que uma nação pode exercer sôbre as outras, quer por métodos pacíficos, quer por métodos militares (CAMPOS, 1964: 37) O “pseudoigualitarismo”, advindo pelo que Lord Action se refere como “fatal posição pela igualdade”, promete assegurar o sucesso de todos, enquanto se mostra possível ao estado na melhor das hipóteses, facilitar o acesso a tal como adubo da demagogia feita à liberdade e oprime a competição, fomentadora da renovação e do progresso. Porém baseado na teoria de Friedman, o liberalismo econômico é antecessor ao político, e uma possível igualdade viria a posteriori, tal como Friedman afirma no trecho a seguir: [...] De um lado, a liberdade econômica é parte da liberdade entendida num sentido mais amplo e, portanto, um fim em si próprio. Em segundo lugar, a liberdade econômica é também instrumento indispensável para a obtenção da liberdade política (FRIEDMAN, 1985: 17). O “pseudoliberalismo” é uma crença para que a liberdade étnica e econômica seja distinta. Por isso, não é concebível cogitar que existam países liberais sem que a esfera social e econômica não seja coerente entre si, ou seja, livres. Fundamentalmente só há dois meios de coordenar as atividades econômicas, uma é a direção central utilizando a coerção – a técnica do Exército ou Estado totálitário. O outro é a cooperação voluntária dos indivíduos – a técnica do mercado. Portanto, se culturalmente a ojeriza entre os indivíduos continua a prevalecer, mesmo num país liberal para com sua economia, logo esse mesmo país não é liberal, mas sim um “pseudoliberal”, segundo a perspectiva de Roberto Campos. No caso do Brasil, muitos governos mostraram tentativas e ainda a aplicação ao mesmo tempo de uma política parcialmente liberal e intervencionista na economia. No caso do segundo governo Vargas, mesmo sendo um Estado de Sítio, algumas dessas políticas liberais foram realizadas, tal como a criação, em seu governo, da Comissão Mista10 de estudos técnicos voltados à economia, contando não apenas com 10 Faziam parte desta Comissão: Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões e Valder Lima Sarmanh. 75 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao profissionais brasileiros, mas americanos também. Ainda no governo Vargas, foram selecionados técnicos nacionalistas da Assessoria Econômica11, mobilizados juntamente com os considerados cosmopolitas, o qual Roberto Campos fazia parte, sendo a maioria em número. “Desse modo, os técnicos de um dos grupos puderam participar ativamente do processo decisório, embora articulados em arenas bastante distintas” (SOLA, 1998: 96). Nessa comissão mista é bom reiterar que, considerado da ala cosmopolita, existiu um teórico de idéias desenvolvimentistas de destaque – Eugênio Gudin, que em 1944, redigiu o Projeto de Lei que institucionalizou o curso de Economia no Brasil. Ao longo de 100 anos de vida, esteve presente no cenário econômico nacional, atuando como delegado brasileiro na Conferência Monetária Internacional, realizada em Bretton Woods (EUA), governador brasileiro junto ao Fundo Monetário Internacional de 1951 a 1956 e Ministro da Fazenda no governo Café Filho, onde “discutiu de forma qualificada os principais problemas econômicos brasileiros e procurou adaptar a teoria desenvolvimentista dos países desenvolvidos à realidade dos subdesenvolvidos” (TELEGINSKI, 2010, p.01). Outro teórico de destaque também foi Mario Simonsen, que defendia a planificação da economia estatal, intervenção e restrições ao capital externo, ao contrário de Gudin. As teorias entre nacionalistas e liberais tiveram seu ápice no debate entre Gudin e Simonsen. Gudin era interessado no comércio agro-exportador e também no setor agrícola, já Simonsen, era mais preocupado em relação à indústria nascente. Simonsen desejava uma participação estatal mais efetiva na econômia, como planejador, produtor e protetor. Gudin via o intervencionismo estatal prejudicial à economia, “sua oposição ao planejamento consiste basicamente na questão do liberalismo econômico, pois considerava perigosa a intervenção do Estado na economia de forma a permitir concessões ao socialismo” (TELEGINSKI, 2010, p.02). Inclusive em 1944, quando Vargas tinha dificuldades em manter o aparato do Estado Novo, Simonsen não questionou o excesso de autoridade presidencial, nem o planejamento e a democracia. 11 Faziam parte da Assessoria Econômica os economistas: Cleanto Paiva Leite, Inácio Rangel, Roberto Campos e como informal Celso Furtado. 76 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Porém Gudin proporcionou subsídios à oposição ao governo, “associando habilmente intervencionismo econômico, ou sua possibilidade, o autoritarismo político 12“. Segundo Robert Dahl, a anterioridade histórica do estado em relação a grupos econômicos privados fortes levou à exclusão do Brasil do modelo poliárquico13. Enfim, o sistema brasileiro é definido como modelo de “capitalismo dirigido pelo estado”, pois a máquina estatal visa o “entendimento aos clamores privados, dando curso no que foi chamado de política de clientela” (PEREZ, 1999: 57). 77 Para Campos, que não seguia linhas ortodoxas fiéis a Simonsen, Gudin ou até mesmo a CEPAL, mas uma teoria e maneira de pensar própria e peculiar. Dentro de seu ponto de vista, o capital estrangeiro e a iniciativa privada têm papel fundamental, mas o pseudonacionalismo e o pseudoigualitarismo são grandes empecilhos, porque eles se utilizam de medidas artificiais para deterem processos que seriam considerados naturais como o mercado, “pois infelizmente nem o evangelho, nem Karl Marx, nem os teólogos da libertação, nem o Diário Oficial conseguiram revogar a lei da oferta e da procura” (CAMPOS, 1986: 15). Para Campos, o pseudonacionalismo e o pseudoliberalismo somados se mostram como fatores primordiais do endividamento brasileiro. O monopólio estatal da Petrobrás ou Petrossauro, no jargão do autor, somado aos subsídios estatais ao resto do pretróleo e derivados foram essenciais para o débito brasileiro. De 1974 a 1980 o Brasil importa de petróleo e derivados 53 bilhões de dólares, sem contar a compra de bens, serviços e equipamentos quase idênticos à dívida de 54 bilhões. Em 1967, após a guerra dos seis dias, o embargo árabe a preço da comodite foi às alturas. Enquanto os países desenvolvidos estabilizaram sua demanda ou a retraíam, como a Inglaterra, no Brasil a mesma dobrava. A monopolista Petrobrás “se torna uma grande empresa acima do solo”, e os subsídios garantiam a demanda para importação, sendo, portanto, importante à opulência estatal, a ampliação e manutenção de outros monopólios, como os de transporte e refino. 12 O debate entre Simonsen e Gudin está publicado em versão completa em: A controvérsia do planejamento na economia brasileira: coletânia da polêmica Simonsen x Gudin, desencadeada com as primeiras propostas formais de planejamento da economia brasileira ao final do estado novo. 13 O conceito de poliarquia tem o mérito de permitir que a ciência social efetue uma análise mais realística dos regimes democráticos existentes, uma vez que, a partir desse conceito, torna-se possível estabelecer "graus de democratização" e, desse modo, avaliar e comparar os regimes políticos. Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Para Roberto Campos a expansão estatal no campo privado era uma espécie de ‘freio’ ao desenvolvimento, e não se resumia a Petrobrás, pois, 26 das 50 maiores empresas eram estatais em 1982, 82% do capital era estatal. Neste sentido, Roberto Campos apresentou um projeto chamado Programa de Repartição do Capital, com vistas a reduzir o grau de concentração no estado e da produtividade dos programas nacionais. O avanço estatal na esfera privada não tinha como resultado ganho social. Pois, o crescimento da ação do estado em áreas de competências privadas tem se provado em prejuízo em relação às aplicações nos setores sociais, cuja proporção do PIB declinou de 4,46% em 1979, para 2,46% em 1981 e possivelmente 1,73% em 1982, segundo estudo da FGV. “Decididamente, o Estado empresário não é um bom samaritano. Ficam vazios sociais; e são esvaziados espaços econômicos para que o estado ocupe” (CAMPOS, 1986: 21). Por sua vez, o nacionalismo deturpado é um escape para a incompetência estatal. Frente a tudo isso, Roberto Campos quando ouvia os nacionalistas dizerem o “petróleo é nosso”, em contrapartida rebatia que o ‘petróleo era dos árabes’. Os atos estatistas são, portanto, defendidos sobre as três deformações de mentalidade, sendo a sacralização do problema da intervenção monopolista e burocrática e a nova demonologia, tendo como demônios as multinacionais e como controlador o FMI, contrariando assim toda análise econômica de Roberto Campos. Diferentemente dos norte-americanos que abriram suas portas aos competidores japoneses e abriram muitas fábricas na Califórnia, os brasileiros dizem temer esse tigre de papel, algo insano pelo fato de três tecnocratas (CIP, Banco Central e CASEC) podiam levar qualquer grande empresa a um estado de agonia. Para Roberto Campos, isso é um complexo de banana republic, pois o Brasil assim como o EUA tem muito a ganhar com capital externo, pois Grã-Bretanha e França recorreram ao FMI e nem por isso seriam lesados em sua soberania. Sendo apenas o escapismo da velha mentalidade colonial. Colocar a culpa da insolvência do Brasil no modelo de 1964, militarista e/ou elitista ou ainda nas multinacionais – numa conjuntura internacional é incabível. Pois desde a moratória de 1831, quando sequer existiam multinacionais nem crise do petróleo, as insolvências ocorreram com maior velocidade. No caso de governos 78 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao populistas, como o de Vargas, foi suspenso o pagamento da dívida quatro vezes, assim como no governo de João Goulart. Quando Roberto Campos negociou três vezes (1961, 1963 e 1964) a dívida por insolvência com os americanos ficou transtornado com a inconsequencia financeira no governo de Castelo Branco. Pode-se afirmar que Roberto Campos defendia a flexibilização do trabalho, tal como a salarial em 1974, que contava com reajuste alheio ao mercado, segundo ele, era causa de inflação e diminuição do poder de compra. Conforme o autor, as intenções foram excelentes, mas os resultados medíocres, se não negativos. Pois os aumentos compulsórios dos salários contribuíram e contribui para o desemprego de muitos, e pelo seu valor deixaram muitos sem emprego. O possível aumento de renda a um extrato de trabalhadores custou o emprego dos demais. Faltava, para Campos, a percepção que o governo não vai realmente garantir melhora de condições de trabalho e vida no papel. Uma nova constituição prometendo isso não é a solução, “pois o problema brasileiro nunca foi fabricar constituições; sempre foi de cumpri-las” (CAMPOS, 1986: 38). Para Roberto Campos, a política trabalhista devia ser menos regulamentada, pois se, de um lado, a economia de mercado tem o desemprego e a desigualdade como efeitos comuns, as alternativas são muito piores. Na economia “marxista” o desemprego é maquiado através dos cabides nas alas burocráticas, exércitos e inteligência, não negando que, muitas vezes, utiliza inclusive campos de concentração e migração forçada. A exportação é a solução do déficit público e dívidas internas e externas, sendo que além do ingresso de desvios gera outros benefícios como, economia de escala com sinergia em menor custo, dinâmica de mercado e extinção de oligopólios, garantindo assim a estabilidade mundial. Para combater a inflação que se apresenta como um empecilho ao desenvolvimento brasileiro deve-se cortar gastos estatais. A mudança proposta por Roberto Campos na constituição de 1967 trocando as emissões de moedas em títulos nada adiantou sem uma política de contenção de gastos. Pois a perpetuação da inflação tem como consequencia o desemprego e paralisia de investimentos, piora na distribuição de renda aos assalariados, estrangulamento cambial e inviabilização do crescimento econômico sustentável. 79 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pelaliberdade/apresentacao Referências Bibliográficas BIELSCHOWSKY, Ricardo. Pensamento econômico brasileiro: o ciclo ideológico do desenvolvimentismo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2004. CAMPOS, Roberto de Oliveira. Do outro lado da cerca: Três discursos e algumas elegias. Rio de Janeiro: APEC, 1968. CAMPOS, Roberto. Economia, Planejamento e Nacionalismo. Rio de Janeiro: APEC, 1963. CAMPOS, Roberto de Oliveira. Ensaios contra a maré. Rio de Janeiro: APEC, 1969. 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Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L4380.htm> Acesso em: 17 jun.2010. LUZ, Olavo. Roberto Campos: Um retrato pouco falado. Rio de Janeiro: Campus, 2002. PEREZ, Reginaldo T. O pensamento político de Roberto Campos. Rio de Janeiro: FGV, 1999. 81 SIMONSEN, Mário Henrique. A nova economia brasileira. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1976. SKIDMORE. Thomas E. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998. SOLA, Lourdes. Idéias econômicas, decisões políticas. São Paulo: EDUSP, 1998. TELEGINSKI, Jaqueline. Gudin e o pensamento liberal. IN: Vitrine Conjuntiva, Curitiba, v.3, n.1, março de 2010. Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao A PRIVATIZAÇÃO DE PRESÍDIOS NO BRASIL: CRÍTICAS E OBSTÁCULOS Fábio Maia Ostermann1 Resumo: Este artigo tem por objeto a análise dos quatro aspectos principais sob os quais são são criticadas as experiências de privatização de presídios no Brasil: jurídico, político, econômico e ético/simbólico. É importante, desde já, conceituar-se esta expressão tão aberta a interpretações equivocadas. “Privatização de presídios” é o nome popular pelo qual é conhecida a experiência de delegar atividades administrativas internas das prisões a empresas privadas, permitindo diversos tipos de arranjos, expostos em capítulos seguintes. Não se trata, portanto, de simplesmente leiloar a empresas o estabelecimento prisional com tudo aquilo que estiver nele contido (inclusive os presos). A importância atual do tema deve-se ao fato de vivermos um momento carente de reflexões acerca da forma como são tratados os seres humanos que vivem atrás das grades. Tal carência se traduz na repetição de velhas fórmulas e práticas de gestão prisional que já nasceram obsoletas e na negligência quanto às condições subumanas em que se encontram indivíduos que, muitas vezes, nem sequer foram condenados pela prática de um crime. Palavras-chave: Criminalidade. Presídios. Privatização CRÍTICAS E OBSTÁCULOS À PARTICIPAÇÃO DA INICIATIVA PRIVADA EM ATIVIDADES PENITENCIÁRIAS: ASPECTO JURÍDICO Sob o aspecto jurídico encontra-se a principal crítica à participação da iniciativa privada na execução penal. Alega-se que a presença de empresas na execução penal não encontraria resguardo no ordenamento jurídico brasileiro por ser o poder jurisdicional do Estado indisponível e indelegável. Não há qualquer controvérsia quanto à indisponibilidade e indelegabilidade do poder jurisdicional do Estado. O cerne da discórdia encontra-se, entretanto, na suposta inadequação da participação de empresas privadas na execução penal face a este postulado. Faz-se importante a diferenciação, na análise deste ponto, entre função jurisdicional e administração penitenciária. Neste sentido, afirma D'Urso: Não se está transferindo a função jurisdicional do Estado para o empreendedor privado, que cuidará exclusivamente da função material da 1 Bacharel em Direito/UFRGS, Mestrando em Ciências Sociais/PUCRS. 21 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao execução penal, vale dizer, o administrador particular será responsável pela comida, pela limpeza, pelas roupas, pela chamada hotelaria, enfim, por serviços que são indispensáveis num presídio. Já a função jurisdicional, indelegável, permanece nas mãos do Estado que, por meio de seu órgão-juiz, determinará quando o homem poderá ser preso, quanto tempo assim ficará, quando e como ocorrerá a punição e quando o homem poderá sair da cadeia, numa preservação do poder de império do Estado, que é o único legitimado para o uso da força, dentro da observância da lei. (D'URSO, 1999, p. 75) Também neste sentido se posiciona Mirabete. O emérito juspenalista separa as atividades inerentes à execução penal, destacando as atividades administrativas em sentido amplo. Estas podem ser classificadas em duas modalidades: atividades administrativas em sentido estrito (judiciárias) e atividades de execução material. As primeiras, por óbvio, são inafastáveis e indelegáveis pelo poder estatal, incumbindo aos órgãos da execução penal elencados na LEP2. Já no que toca às atividades de execução material, poderiam ser atribuídas a entidades privadas, conforme o autor (MIRABETE, 1993). Não há, portanto, qualquer divergência quanto à inadequação legal da delegação do poder jurisdicional à iniciativa privada. Ainda assim é importante ressaltar a completa falta de impedimentos legais à participação de empresas privadas em atividades materiais essenciais ao bom andamento e à qualidade da execução da pena. Tanto na modalidade de terceirização – em prática já há mais de 10 anos no Brasil –, quanto na modalidade de parceria público-privada – em andamento em Minas Gerais e Pernambuco –, não há qualquer questionamento sobre a participação das empresas envolvidas no poder jurisdicional e disciplinar (próprio do Estado). No modelo que vem sendo praticada no Brasil, a empresa tem seu papel restrito ao estabelecido em contrato ou edital, sendo a direção do estabelecimento penitenciário necessariamente uma função do Estado. Além de não proibir a participação da iniciativa privada na execução penal, a LEP ainda faz menção em seu artigo 4º à participação da comunidade na execução penal: “O Estado deverá recorrer à cooperação da comunidade nas atividades de execução da pena e da medida de segurança.”. Ter-se-ia que ir muito longe para se negar o fato de que empresas é parte integrante da comunidade. 2 “Art. 61. São órgãos da execução penal: I - o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária; II o Juízo da Execução; III - o Ministério Público; IV - o Conselho Penitenciário; V - os Departamentos Penitenciários; VI - o Patronato; VII - o Conselho da Comunidade.” 22 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Em um país onde a Constituição Federal de 1988 consagrou a noção de Estado Provedor, não deixa de ser curiosa a presença de um dispositivo estabelecendo como um dever do Estado recorrer ao auxílio da comunidade em uma prestação classicamente sua. Talvez não por acaso, a única assistência a ser em geral assegurada ao preso no Brasil, esteja ele nas maiores metrópoles ou nos rincões mais distantes, é a assistência religiosa prestada pela comunidade, majoritariamente através das diversas confissões evangélicas presentes nas prisões e pela Igreja Católica (que cumpre papel importante na denúncia da revoltante realidade das prisões brasileiras através da Pastoral Carcerária). Outro ponto polêmico diz respeito ao monopólio do uso da força por parte do Estado. Segundo tal crítica, seria ilegal e antiético deixar indivíduos sob o poder coercitivo de outro indivíduo ou empresa. Conforme Weber, “(...) é próprio de nossa época o não reconhecer, com referência a qualquer outro grupo ou aos indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere. Nesse caso, o Estado se transforma na única fonte do 'direito' à violência (WEBER, 2003, p. 60)”. Aqui, o equívoco se encontra na confusão entre o uso do monopólio da força e o exercício regular de direito. Como a própria assertiva de Weber deixa claro, não comportam afronta ao monopólio estatal do uso da força as situações permitidas pelo Direito. Ao cuidarem da segurança interna de uma penitenciária, os funcionários de uma empresa privada estão apenas exercendo um direito que lhes foi outorgado pelo Estado, qual seja, a vigilância sobre o cumprimento de pena por parte de indivíduos assim sentenciados. No caso em análise, a empresa não tem qualquer autonomia para exercer o “direito à violência” contra o preso, cabendo-lhe apenas a função de custódia do mesmo – sendo punível o excesso doloso ou culposo. Diferente do que sugere CHIES (2000, p. 21), a proposta de terceirização ou de PPP não representa, portanto, a “quebra do monopólio estatal da atividade legítima de coerção física penal sobre o particular”. ASPECTO POLÍTICO Sob o aspecto político, o óbice mais comumente levantado é, nas palavras de Minhoto, a possibilidade “de que os interesses privados das companhias passem a influir 23 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao crescentemente na definição dos termos e na condução da política criminal” (MINHOTO, 2000, p. 89). Ou seja, com o surgimento de um mercado correcional haveria o incentivo para que as empresas interessadas nos contratos públicos fizessem lobby para que mais prisões fossem construídas, bem como para que as penas se tornassem mais rígidas, já que tais medidas acabariam por aumentar o lucro das empresas. Ocorre que tal argumento não é, na verdade, uma crítica à participação de empresas privadas na gestão prisional, mas sim uma boa justificativa para reformas no nosso atual sistema políticas, dentro qual grupos de interesses especiais (sindicatos, entidades empresariais, “movimentos sociais” etc) se locupletam da res publica em nome de ganhos privados. Faz-se necessária a existência de mecanismos de controle e transparência que facilitem o acesso às informações referentes aos negócios de interesse público e aos seus agentes, para que possa, de fato, existir um controle público sobre a classe política. Nesse sentido, entidades como a Transparência Internacional e o website Contas Abertas3 devem ser louvadas como sinal da iniciativa e capacidade de mobilização da sociedade civil. Desse modo, se a população não desejar penas mais severas (o que não parece ser o caso), o maior controle sobre a agenda política (criminal) tenderá a inviabilizar o lobby praticado pelas empresas correcionais, ou ao menos diminuir drasticamente suas chances de êxito. Ademais, este argumento ignora o fato de que servidores públicos também buscam influenciar decisões políticas guiados por seus interesses privados – e o fazem com razoável sucesso. Um exemplo claro da atuação dos sindicatos de funcionários públicos é trazido por THOMAS (2003, p. 99). Em 2002, o então governador do estado americano da California, Gray Davis, a despeito de séria crise financeira pela qual passava o Estado (déficit público de cerca de US$24 bilhões), concedeu aos funcionários do sistema penitenciário um aumento de 37%, bem como diversos outros benefícios. Após isso, veio a ser reportado pela imprensa local o curioso fato de que a California Correctional Peace Officers Association havia contribuído com mais de US$500 mil para campanhas de Davis. Apenas no ano de 2000, guardas de prisão doaram cerca de US$1,9 milhão para políticos, tanto Republicanos quanto Democratas. Ainda, no que diz respeito às relações entre Estado e Sociedade, FARIA (1992, p. 232) 3 Ver, respectivamente, www.transparencia.org.br e http://contasabertas.uol.com.br. 24 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao se mostra reticente em relação ao potencial crescimento das empresas de segurança, como resultado de uma maior abertura do mercado de serviços penitenciários. O autor atenta para o perigo de termos um “exército” de funcionários de empresas de segurança privada maior do que o próprio exército regular brasileiro. Ocorre que tal cenário já existe (o efetivo do exército brasileiro é de pouco mais de 200 mil homens, enquanto o do “exército das empresas privadas” é estimado em cerca de 1,148 milhão), e não há nenhuma possibilidade ou temor das autoridades de segurança pública do país quanto a uma sublevação do “exército privado” contra a ordem estatal constituída. Há, isso sim, constantes atentados contra a segurança pública do país perpetrados por grupos criminosos organizados que se valem, justamente, da falta de foco das autoridades no que diz respeito à segurança pública e administração penitenciária (como o já citado caso do PCC e seus assemelhados regionais). ASPECTO ECONÔMICO O aspecto econômico da análise sobre as experiências de administração privada de prisões é de grande importância. Trata-se, não obstante, de uma linha de análise bastante abrangente e polêmica. A Ciência Econômica tem contribuições importantes a fazer ao estudo do Direito e das conseqüências das ações de seus operadores. A noção de eficiência (central ao debate econômico) ainda é vista com certa desconfiança, até descaso, pelo Direito, essencialmente normativista. O princípio da eficiência está consagrado no artigo 37, caput, da Constituição Federal como postulado à atuação da Administração Pública. Logo, a gestão prisional deve pautar-se também por este princípio. Nesse ponto, nos interessa avaliar a privatização penitenciária sob o prisma da eficiência. Para tanto, partiremos da idéia de que “mais eficiente” significa obter o máximo possível do aproveitamento de recursos escassos (MANKIW, 2001, p. 5), ou seja, fazer mais com menos. A principal crítica no que tange ao aspecto econômico da privatização penitenciária traz consigo certa desconfiança quanto à capacidade de uma empresa privada em desempenhar suas atividades de maneira mais eficiente que o órgão público correspondente. O argumento é de que a única maneira de uma empresa gerir os serviços penitenciários a um 25 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao custo mais baixo que o do Estado seria prestando um serviço sensivelmente inferior em termos de qualidade. Entretanto, diversos estudos empíricos comparando a eficiência entre o setor público e o privado dão conta de que na grande maioria das vezes o setor privado leva vantagem. Estudo realizado pela Reason Foundation traz uma compilação de 25 estudos comparativos de custos entre os dois modelos de gestão prisional, realizados entre 1989 e 20004. Infelizmente, no Brasil ainda se carece de estudos comparativos mais detalhados que levem em consideração as diferenças e similaridades de práticas entre penitenciárias administradas pelo Estado e por empresas. De maneira geral, podem ser citadas três razões fundamentais para a presença de maior eficiência na gestão de recursos por parte de uma administração privada do que de uma administração estatal: não há na gestão privada os entraves burocráticos típicos da administração pública (muitas vezes necessários à atuação transparente e isonômica da administração pública, em nome de princípios de Direito Administrativo, como da legalidade, publicidade, motivação, etc.); os administradores privados são sócios ou se reportam diretamente aos donos das firmas, tendo a expectativa de auferir certo benefício profissional com o aumento da eficiência; os empregados da empresa correcional têm maior oportunidade de ascensão dentro da empresa (DONAHUE, 1992, p. 190). A primeira razão é um tanto quanto óbvia, mas de difícil solução. De fato, os custos na administração pública tendem a se elevar devido à própria forma organizacional burocrática do Estado, como ente público, que requer para seus atos e iniciativas práticas uma série de formalidades legais que, mesmo visando à regularidade e à idoneidade das ações da esfera pública, restam por torná-lo menos eficiente no trato da questão, bem como redundando maiores ônus ao erário do que os entes privados, que estão dispensados da série de formalismos exigidos do Estado. A segunda e a terceira razão remetem a uma questão econômica menos óbvia: a presença de incentivos. Estando as empresas privadas submetidas a uma concorrência no mercado, seus administradores conseguem, em geral, vislumbrar a relação de causa efeito 4 Disponível em <http://www.reason.org/corrections/faq_private_prisons.shtml>. Consultado em 26 de outubro de 2008. 26 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao referente à performance da empresa. Em caso de mau desempenho, as perdas da empresa acabam refletindo em perdas para o próprio administrador (seja através da perda do seu emprego ou perda do patrimônio investido). Existe, portanto, o incentivo para produzir um melhor serviço por um custo mais baixo, já que a falência pune a ineficiência do setor privado. No setor público, por outro lado, a realidade é outra. De fato, performances fracas e fracassos na obtenção de resultados são freqüentemente utilizados pelos gestores públicos como um argumento para conseguir mais verbas para o seu objeto de gestão, ocasionando mais e mais ineficiência (GWARTNEY; STROUP, 1998, p. 126). Na Penitenciária Industrial de Joinville5, administrada pela empresa Montesinos, percebe-se a presença de fortes incentivos à prestação de bons serviços ao Governo do Estado de Santa Catarina, pois seus diretores sabem da forte oposição política à participação de empresas nas penitenciárias. Além disso, a tendência é que cada vez mais empresas se interessem por participar deste mercado, e essa competição tende a conduzir à melhora dos serviços e à eliminação de práticas tidas como ineficientes (WILCOX, 1940) 6. Na medida em que empresas privadas são pagas ou não de acordo com a qualidade da prestação do seu serviço e contanto que cumpra o contrato (diferente de funcionários do Estado), estas têm o incentivo para evitar práticas que violem direitos humanos dos presos. Fato ilustrativo ocorreu no condado de Brazoria, no Texas. Em 1997, após o vazamento de um vídeo em que agentes penitenciários da empresa Capital Correction Resources Inc. e do Estado do Texas (administração compartilhada, dividida por alas) humilhavam e agrediam detentos, o Estado do Missouri (que havia enviado uma parcela de seus detentos para cumprirem pena no estado vizinho devido a problemas de superlotação em seu Estado) rescindiu os contratos com a empresa, referente à penitenciária de Brazoria e mais duas outras no Texas, no valor de US$ 1,8 milhão. O departamento correcional do Estado de Oklahoma também cancelou seu contrato com a CCRI no condado de Limestone, também no Texas, devido a casos semelhantes de abusos por parte de funcionários da empresa (GILLESPIE, 1997). 5 6 Caso analisado com maior profundidade em OSTERMANN, 2008. Apud GWARTNEY & STROUP. O que todos deveriam..., p. 55. 27 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Como se vê, uma das diferenças fundamentais entre a gestão pública e a privada encontra-se no fato de que a punição à má-prestação do serviço no mercado se dá de maneira muito mais eficaz, fazendo com que aqueles que não atendem ao consumidor (no caso o Estado) de maneira satisfatória sofram perdas financeiras. De acordo com Charles Logan, "os controles econômicos [sobre as prisões privatizadas] não excluem os controles políticos, mas possibilitam que ajustes mais rápidos e melhores sejam operados” através da renegociação de contrato ou da simples rescisão. Nas prisões privadas, continua Logan, “mecanismos de mercado no que tange à supervisão, disciplina e responsabilização são acrescentados àqueles tradicionalmente ligados ao sistema político e legal. A responsabilização econômica suplementa, mais do que conflita com, a responsabilização política e legal (LOGAN, 1990)” 7. Não por acaso, a Capital Correction Resources Inc. não mais administra prisões nos Estados Unidos. Além disso, a existência de empresas atuando no mercado correcional traz consigo diversos efeitos positivos, benéficos ao interesse público. O mais óbvio e direto deles é a melhoria do gasto público (melhor serviço, com custo similar ou inferior). Outro efeito, talvez não tão visível em um primeiro momento, se reflete nas inovações geradas pela competição entre as empresas prestadoras de serviços penitenciários. Até mesmo a qualidade dos estabelecimentos penais administrados integralmente pelo Estado é afetada: com a comparação dos custos e das práticas destes dois modelos de gestão prisional, haveria um maior incentivo para que a prisão estatal fosse gerida de maneira mais eficiente. Ademais, um poderia se utilizar de experiências comprovadamente exitosas postas em prática pelo outro. ASPECTO ÉTICO/SIMBÓLICO As críticas elaboradas sob o aspecto ético tendem a se mostrar mais ligadas a sentimentos subjetivos do que as anteriormente citadas (por serem de caráter mais técnico). Como exemplo, citamos Araújo Jr., que expõe sua oposição à privatização de presídios através do seguinte silogismo: As empresas que desejam participar da administração penitenciária visam obter lucros e retirar lucros da própria existência da criminalidade; logo, tais empresas, que têm interesse em manter seus lucros, não irão lutar contra a 7 Apud GILLESPIE. Swift Justice... 28 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao criminalidade (...) e se não têm tal interesse não devem administrar prisões (ARAUJO JUNIOR, 1995: 20). O autor afirma acertadamente que as empresas não irão lutar contra a criminalidade. E nem deveriam, pois esta é uma função que cabe às polícias, e não à administração penitenciária. Inobstante a relevante influência da situação carcerária brasileira nas questões de segurança pública (vide os altos índices de reincidência e o fenômeno dos PCCs), a finalidade da administração penitenciária no Brasil deve ser, em primeiro lugar, agir conforme a lei, respeitando os direitos do preso contidos na Constituição Federal e na Lei de Execução Penal. Em seu artigo 1º, a LEP estabelece que “A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado.“ Havendo um conjunto de leis a serem cumpridas e um contrato estabelecendo penalidades e premiações à empresa conforme a qualidade do serviço prestado, está montado o ambiente ideal para que a empresa, na busca pelo lucro, acabe beneficiando a todos, através de uma administração penitenciária de melhor qualidade, que permita um cumprimento de pena digno e, sobretudo, legal. Ao dissertar sobre o princípio que dá origem à divisão do trabalho, Adam Smith enuncia de maneira clara como a cooperação voluntária entre indivíduos (bem como empresas e Estados) com aptidões e interesses diversos acaba, mesmo que não intencionalmente (como que “através de uma mão-invisível”, como afirma o autor mais adiante), beneficiando a todos os envolvidos: Dê-me aquilo que eu quero, e você terá isto aqui, que você quer – esse é significado de qualquer oferta desse tipo; e é dessa forma que obtemos uns dos outros a grande maioria dos serviços de que necessitamos. Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua auto-estima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles. (SMITH, 1983: 50) No caso em questão, não importa qual a finalidade da empresa ao desempenhar as atividades estabelecidas no contrato. Seja o simples lucro, seja a paz social, o que realmente interessa é que o acordado seja cumprido e que cada um obtenha aquilo que busca – o Estado, 29 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao uma melhor qualidade nos serviços prisionais; a empresa, o pagamento por seus serviços. A participação de empresas privadas na administração penitenciária, como se vê, não é intrinsecamente antiética, como defendem alguns de seus críticos. Laurindo Dias Minhoto, sem dúvida o autor mais lido e citado no Brasil no que diz respeito à privatização de presídios, traz ao debate o argumento “simbólico”, segundo o qual com a existência de empresas na prestação de serviços penitenciários “a fonte pública da autoridade, central à lógica das democracias modernas, é de alguma maneira economicizada” (MINHOTO, 2000, p. 90). O fato de as empresas se utilizarem de câmeras para monitorar a movimentação nos corredores da prisão, minimizando o contato dos guardas com os apenados é visto pelo autor como um reforço a esse problema simbólico, representando a prisão privatizada uma “reedição 'high tech' do Panopticon” (MINHOTO, 2000, p. 90). Ocorre que é justamente este tipo de prática (dentre outras tidas como economicistas8) que permite à empresa ter uma estrutura enxuta e ao mesmo tempo manter o controle sobre a segurança na instituição penal (normalmente “por um fio”, em instituições controladas pelo Estado, como é o caso do Presídio Central de Porto Alegre). Além disso, o distanciamento entre guardas e detentos, diminui a possibilidade de corrupção, aumenta a segurança dos próprios guardas e diminui sensivelmente os casos de abuso de autoridade, já que os guardas também se encontram sob vigilância. Ainda segundo Minhoto, a utilização de jargões empresariais como “residentes”, para se referir aos presos, e “supervisores de residentes”, designando os guardas, é altamente nociva à idéia de autoridade pública. Tal linguagem (um tanto destoante da linguagem nas prisões brasileiras, onde os termos usuais são “interno” e “agente de segurança”), longe de alcançar o nefasto objetivo imaginado pelo autor, tem como resultado a diminuição do pesado estigma existente tanto sobre o “preso”, quanto sobre o “agente carcerário”. Outra crítica neste mesmo sentido foi feita pela American Bar Association, a entidade correspondente à OAB, nos EUA: Quando entra em julgamento da culpa e impõe uma sentença, um tribunal exerce sua autoridade tanto real quanto simbolicamente. Entretanto, sua 8 Mais sobre esta crítica em COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do discurso economicista no direito criminal de hoje. Revista da Faculdade de Direito da UFPR, Curitiba, v. 31, p. 37-49, 1999. 30 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao autoridade fica enfraquecida, bem como a integridade do sistema de justiça, quando um prisioneiro olha para o uniforme do seu guarda e, em vez de encontrar um emblema em que lê: “Federal Bureau of Prisons” ou “State Department of Corrections”, ele vê um que diz “Acme Corrections Company”?9 Parece pouco provável que a cor do uniforme vestido pelo agente de segurança ou o emblema nele contido façam alguma diferença para o apenado. A diferença está entre cumprir pena em um local insalubre, sem oportunidades de estudo e trabalho, sem condições mínimas de manutenção ou recuperação da dignidade inerente a todo ser humano ou em outro que represente o oposto disto. Comparações dos índices de morte, doenças e rebeliões entre os dois modelos de prisão podem ser ilustrativos nesse sentido. Ademais, a autoridade do sistema penal tende a sair especialmente enfraquecida em situações como as encontradas nas prisões brasileiras, em que indivíduos sujeitos de direitos são tratados como lixo. CONCLUSÃO Ao longo da história sempre houve a necessidade de se punir de alguma maneira condutas tidas como indesejáveis. Como decorrência desta necessidade histórica, a prisão acabou por se desenvolver como uma instituição em permanente construção e avaliação – como toda instituição deveria ser, aliás. Ao analisar-se a questão penitenciária, não se deve, desta maneira, partir da premissa de que as prisões chegaram a determinado estágio de desenvolvimento institucional a partir do qual certos paradigmas não devem ser questionados. Conforme demonstrado neste trabalho, o paradigma da gestão estatal das penitenciárias pode e deve ser questionado. É tempo, portanto, de repensar novas formas de atuação face ao problema. Experiências exitosas postas em prática Brasil afora devem ser estudadas e levadas em consideração. O Estado deve conduzir a política penitenciária com inteligência, sem deixar que preconceitos ideológicos descartem a priori algo que vem trazendo mudanças significativas no modo como se vê a administração penitenciária no Brasil. É claro que a Parceria Público-Privada e o regime de terceirização têm suas fragilidades. É justamente por isso que a sociedade e o Poder Público devem estar atentos para que as disposições contratuais sejam estabelecidas de maneira clara, elencando as metas 9 AMERICAN BAR ASSOCIATION REPORT in DONAHUE. Privatização..., p. 184. 31 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao a serem cumpridas bem como as obrigações das partes, fiscalizando de perto e zelando pelo seu cumprimento. Seria temerário, portanto, afirmar que o fornecimento privado de serviços penitenciários é um remédio universal para todos os problemas encontrados nas prisões. Pode, não obstante, colaborar com a solução dos problemas causados pelo descaso histórico com que os estabelecimentos prisionais vêm sendo tratados. Tal atitude tem se mostrado cada vez mais insustentável – e os “clientes assíduos” do sistema penal teimam em seguir nos lembrando deste fato. É necessário, também, o aprofundamento de estudos que dêem conta de comparações entre as prisões geridas pelo Estado e por empresas no que tange aos custos e à qualidade do serviço prestado. Desta maneira, contratos poderão ser redigidos conforme parâmetros razoáveis de qualidade e preço, possibilitando uma maior eficiência do gasto público. Deve ser estudada, ainda, a ampliação das experiências de co-gestão e PPP com relação a outra atividade de importância fundamental ao sistema penal e à segurança pública: a assistência ao egresso da sistema penitenciário, garantida pelo artigo 10, parágrafo único, da LEP. A omissão estatal no cumprimento deste dever é um dos fatores que explicam os altos índices de reincidência criminal no país. A forma como é utilizada a intervenção penal no Brasil deve, também, ser objeto de reflexão. A pena privativa de liberdade quando aplicada a indivíduos que não apresentam ameça concreta à sociedade (especialmente no caso dos chamados “crimes sem vítimas”) acaba sendo, além de uma punição desproporcional ao infrator pelo delito cometido, uma dura punição ao contribuinte. Primeiro, porque se mantém na prisão a um custo alto um infrator que não representa perigo real à sociedade. Segundo, o que talvez seja ainda pior, o contribuinte paga para que estas pessoas saiam de lá piores do que entraram, podendo vir a cometer crimes muito mais graves, devido às condições física e moralmente degradantes existentes nas prisões. A situação atual é insustentável. Em face disso, a Academia e a sociedade civil têm importante papel a cumprir na promoção e na viabilização de alternativas como a apresentada neste trabalho. 32 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO JUNIOR, João Marcello de. Privatização das prisões. São Paulo: RT, 1995. BERG, Julie, Private prisons:International experiences and South African prospects. 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Foi possível constatar que os objetos de análise são jornalisticamente parciais e que os fatos assumem perspectivas diferentes se referidos por cada um dos veículos informativos. Ressaltando, assim, a importância de uma imprensa livre, da liberdade de expressão e, sobretudo, do direito da sociedade à informação. Palavras-chave: Jornal Granma. Blog Generación Y. Liberdade de imprensa. Parcialidade Este artigo surge a partir do trabalho de conclusão de curso em jornalismo, realizado no segundo semestre de 2010 e que foi avaliado com nota máxima. A monografia, também intitulada “O cotidiano cubano visto sob duas óticas - análise do jornal Granma e do blog Generación Y”, teve como principal objetivo observar os diferentes tratamentos dados pelo jornal e pelo blog aos acontecimentos dentro de Cuba. Em uma situação de supressão de liberdade de imprensa, onde apenas veículos vinculados ao Partido Comunista Cubano (PCC) são permitidos, é interessante observar as contradições existentes entre os noticiários oficiais e aqueles considerados ilegais. Botín (2009), durante os anos em que passou como correspondente internacional de um jornal espanhol dentro de Cuba, descreveu as condições de imprensa cubana como uma “aniquiladora máquina de censura”, na qual todos os jornalistas estão tão treinados a cumprir, de modo servil, as condições impostas pelo sistema (BOTÍN, 2009, p. 293)2. É neste contexto que algumas mídias surgem como fontes alternativas. O Generación Y 1 2 Bacharel em jornalismo pela PUCRS em 2010. Email:. Tradução livre da autora. 36 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao não é o único blog dissidente cubano e não é apenas em países com liberdade de impressa limitada que eles existem. Porém, a sua escolha como objeto de estudo tem como justificativa a projeção internacional que obteve. Em 2009, foi citado no prêmio da revista Times americana como um dos 25 melhores blogs do mundo. No mesmo ano, a sua autora, Yoani Sánchez, entrou para a lista das 100 pessoas mais influentes do planeta, em classificação organizada pela revista Times juntamente com a CNN. Através do comparativo da análise de duas fontes de notícias sobre Cuba – uma relatando a versão oficial e a outra funcionando na clandestinidade –, imaginei que teria um resultado claro de que um fato pode assumir duas ou mais versões. A metodologia escolhida foi a análise de conteúdo de Bardin (1977), aplicada à investigação dos textos do site do jornal Granma e do blog Generación Y. Depois de definida a metodologia, surgiu uma dúvida: seria possível analisar e comparar dois elementos distintos? O Granma é um veículo que lida com o jornalismo informativo, enquanto o blog pode ser caracterizado como jornalismo opinativo. Esta não é uma situação ideal, conforme descrito por Bardin (1977), porém, dentro dos objetivos propostos de observar o tratamento dado pela imprensa governamental e a dissidente sobre o cotidiano na ilha, é a única solução. Como não existe um jornal cubano que não seja filiado ao Partido Comunista Cubano (PCC) e somente se tem informações extra-oficiais através de meios alternativos, o estudo precisou ser feito baseado nestes dois elementos. CUBA PÓS FIDEL CASTRO Em 31 de julho de 2006, Raúl Castro assumiu provisoriamente o comando do país, após 47 anos de poder do seu irmão, devido a um problema intestinal sofrido por Fidel que o deixou com a saúde debilitada. O líder cubano era presidente do Conselho de Estado e do Conselho de Ministros, primeiro-secretário do Partido Comunista, chefe supremo das Forças Armadas e comandante chefe da Revolução. Raúl Castro era primeiro vice-presidente de ambos os conselhos, segundo secretário do partido, ministro das Forças Armadas e o único em Cuba com categoria de general de Exército (FOLHA ONLINE, 2008c). 37 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Durante o governo interino de Raúl, embora Fidel estivesse convalescente, “sem a aprovação do irmão mais velho poucos assuntos vitais seguiam em frente e seus vetos ainda eram inapeláveis” (FOLHA ONLINE, 2008d). Em fevereiro de 2008, depois de um ano e sete meses afastado da presidência, Fidel Castro renunciou. Aos 81 anos de idade, disse que não aceitaria cumprir um novo mandato da Presidência. A renúncia abriu caminho para que seu irmão, Raúl Castro, assumisse definitivamente o cargo que já ocupava como interino. 38 MÍDIA EM CUBA Cuba é o único país no continente americano que não tolera uma imprensa independente fora do controle rígido do Estado, conforme consta no relatório do Repórteres Sem Fronteiras (2010)3. Os meios oficiais têm o encargo de difundir a propaganda governamental. Os jornalistas dissidentes, consequentemente, trabalham na clandestinidade e necessitam de ajuda externa para publicar, principalmente através de sites organizados pela comunidade cubana em Miami, o que não podem dizer aos outros cidadãos de Cuba (REPORTERS, 2010). A constituição do país determina que as liberdades civis, legalmente reconhecidas, podem ser negadas a quem se opõe à "decisão do povo cubano de construir o socialismo" (BOTÍN, 2009, p. 296). Os cidadãos podem ser – e muitos já foram – presos por três anos ou mais simplesmente por criticar o regime comunista ou Fidel Castro. De acordo com Botín (2009, p. 300), Em Cuba pode-se prender qualquer pessoa sem motivo, sem que exista sequer uma tendência especial para o delito. Os cubanos não precisam do ‘aval’ de uma sentença judiciária para ir para a prisão, basta que as autoridades decidam sozinhas. A economia do país também é controlada pelo Estado, e o Governo adere aos princípios socialistas para a organização econômica da ilha. Segundo estatísticas do governo cubano (U.S., 2010)4, cerca de 83% da força de trabalho é empregada pelo Estado. Raúl Castro prometeu "eliminar proibições na ilha. Em março de 2008, Castro liberou a 3 REPORTERS Without Borders USA. For Press Freedom. Disponível em: <http://en.rsf.org/report-cuba,174.html>. Acesso em: 7 out. 2010. 4 Dados da Oficina Nacional de Estadísticas citados no site do governo americano. Disponível em: <http://www.state.gov/r/pa/ei/bgn/2886.htm>. Acesso em: 26 set. 2010. Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao venda de computadores pessoais e aparelhos de DVD em Cuba. O comércio de telefones celulares e televisores para os cidadãos comuns também foi liberado. Ainda assim, a Sociedade Interamericana da Imprensa (SIP) (2008 citada por BOTÍN, 2009, p. 298), no seu informe anual, assinalou que: Um mês depois que Raúl Castro assumiu o poder em Cuba prevalece no jornalismo a mesma situação de estancamento, controle da informação e repressão contra a imprensa independente. A violência do governo contra os jornalistas independentes não cedeu. Atos de coação contra a prática informativa que incluem multas, registros, apreensão de dinheiro e objetos pessoais, detenções preventivas, limitação de circulação no país, ameaças de morte, assédio e represálias contra seus familiares são praticados pelo governo. Os meios de comunicação cubanos, como a maioria dos órgãos do país, são regulamentados pelo governo. Sendo assim, todos aqueles que não divulgam a versão oficial do que acontece dentro e fora do país são banidos desta dita mídia. Conforme o Comitê para a Proteção dos Jornalistas5 (2008), a informação é filtrada e manipulada. Desta forma, na visão de Ruiz (2003), o governo por impor uma opinião pública pré-fabricada. A principal arma de defesa de qualquer ditadura é a mentira. Fidel insiste que o embargo econômico impede o desenvolvimento econômico de Cuba; que toda a população o apoia e que isso se demonstra com as votações massivas e também que no país existe uma igualdade social (2003, p.24). O autor afirma ainda que estas “mentiras estruturais” são repetidas por todo o sistema de poder cubano (RUIZ, 2003). O governo impõe limitações severas à liberdade de expressão e de imprensa, como foi observado por organizações não-governamentais (ONGs), como a Repórteres Sem Fronteiras. A constituição prevê a liberdade de expressão e de imprensa na medida em que vê os discursos "em conformidade com os objetivos de uma sociedade socialista" (U.S., 2010) O país ainda está entre os que possuem os menores níveis de penetração de telefonia móvel e internet na América Latina e entre os cinco mais baixos em termos de concentração de 5 Comitê para a Proteção dos Jornalistas (Committee to Protect Journalists) é uma organização independente, sem fins lucrativos, fundada em 1981. Promove a liberdade de imprensa em todo o mundo, defendendo os direitos dos jornalistas de relatar as notícias sem medo de represálias. 39 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao linhas fixas (BUDDECOMM, 2010)6. Desde 2003, o país investiu mais de 150 milhões de pesos cubanos no desenvolvimento da indústria de telefone celular. 23 cidades cubanas ainda não têm serviço de telefonia móvel. Em 2009, o número de celulares para cada 100 habitantes era de 2,9, um dos índices mais baixos do mundo (ITU, 2010) 7. Os meios de comunicação operam sob a supervisão do Departamento de Orientação Revolucionária do Partido Comunista, que desenvolve e coordena as estratégias de propaganda. O Comitê de Proteção dos Jornalistas listou que Cuba é o segundo país no mundo onde há maior número de prisões de jornalistas, perdendo apenas para a China. Aqueles que tentam trabalhar como jornalistas independentes são perseguidos, detidos, ameaçados de processo judicial ou prisão ou impedidos de viajar (COMMITTEE, 2010). INTERNET A Internet é de acesso restrito aos cubanos. Cerca de 14% da população do país está online, ou seja, apenas 0,02 em cada 100 habitantes são assinantes de internet banda larga. Entre 100 pessoas, apenas 5,62 tem um computador pessoal (INTERNET WORLD STATS, 2010)8. O preço médio de acesso à Internet durante 1 hora nos cybercafés é de US$ 1,63 para a internet nacional e de US$ 5,40 a US$ 6,80 para acesso à rede internacional. Levando em consideração que os salários giram em torno de US$ 20,48 por mês, o acesso a web é realmente difícil (REPORTERS, 2010) 9. Devido a este conjunto de fatores, a situação da liberdade de imprensa no país é caracterizada como "desastrosa". Considerado pelo site Repórteres sem Fronteiras um dos países mais atrasados da Internet, o cerne do meio em Cuba é o portal CubaWeb (www.cubaweb.cu), um grande diretório de sites governamentais controlados pelo Estado. 6 Buddecomm é uma empresa independente de pesquisa e consultoria na área das telecomunicações. Disponível em: <http://www.budde.com.au/Research/Cuba-Telecoms-Mobile-and-Broadband.html> Acesso em: 26 set. 2010. 7 Dados da União Internacional de Telecomunicações (ITU). Disponível em: <http://www.itu.int/ITUD/ict/newslog/Cell+Phone+Subscribers+In+Cuba+To+Top+1+Mn+By+Years+End.aspx> Acesso em: 26 set. 2010. 8 Disponível em: <http://www.internetworldstats.com/stats2.htm> Acesso em: 26 set. 2010. 9 Disponível em: <http://en.rsf.org/internet-enemie-cuba,36678.html> Acesso em: 7 out. 2010. 40 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Raúl Castro está iniciando um processo de "abertura" do país em alguns aspectos, e esta política mais liberal se reflete também nos meios de comunicação. Apesar do acesso generalizado à Internet ainda ser proibido, algumas medidas adotadas pelo governo indicam um possível processo de mudanças. Logo depois que Fidel se aposentou, uma série de produtos eletrônicos entrou na lista de produtos legalmente acessíveis, incluindo computadores pessoais. (BUDDECOMM, 2010). IMPRENSA ALTERNATIVA Em qualquer estudo sobre a imprensa cubana, o aspecto relacionado à censura que mais chama a atenção é o tratamento dado pelas autoridades aos que tentam criar uma imprensa independente. Apenas aos jornalistas membros da Unión de Periodistas de Cuba (UPEC) são permitidos credenciamento para exercer atividades em Cuba. A UPEC não funciona como uma organização de imprensa em um país livre, mas serve como uma extensão do governo, auxiliando no seu controle e aprovação prévia da informação que pode ser publicada na imprensa. Em 1997, uma publicação do Partido Comunista declarou abertamente que a UPEC serve como um órgão ideológico do partido, acusado de difundir os pensamentos da revolução (PRESS REFERENCE, 2010). No entanto, nem todos os jornalistas pertencem à UPEC. Na realidade, existem várias organizações independentes, apesar de serem proibidas pelo governo. Esses grupos são formados tipicamente por jornalistas dissidentes e opositores do regime, indispostos a se submeterem ao controle do governo. Em muitos casos, o governo retirou ainda o registro de jornalistas envolvidos com esses grupos não oficiais (PRESS REFERENCE, 2010). JORNAL GRANMA O Granma é o principal jornal do país, tem a maior circulação e é o diário oficial do Partido Comunista Cubano. Foi fundado em 4 de outubro de 1965 por Fidel Castro para ser "a voz da Revolução". Na prática, o jornal é um instrumento de propaganda do regime comunista da ilha (REPORTERS, 2010). Além da edição impressa que circula seis dias por semana (exceto 41 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao domingo) dentro de Cuba, existe também o site, que publica basicamente o conteúdo da edição do dia, e o Granma Internacional, versão voltada para leitores de fora do país. É editada semanalmente e tem tradução para o inglês, português, alemão, italiano e francês. De acordo com Green (1987), um leitor diário do Granma notaria algumas tendências do partido como o apoio aos Sandinistas na Nicarágua, a ligação entre Castro e os rebeldes em El Salvador, o seu ódio ao Estado de Israel, a fidelidade à União Soviética e aos países comunistas do leste europeu e a simpatia pela Aliança Nacional Libertadora da Palestina. Em contrapartida, fatos como execuções políticas no país, prisões de dissidentes do regime e a situação pessimista da economia cubana nunca seriam noticiados. O jornal, por sua vez, se defende das críticas que recebe quanto à falta de imparcialidade a respeito do regime Castrista: Devemos acaso criticar o fabuloso programa de justiça social da Revolução que tem prestado cada vez mais assistência aos cubanos, ou tem se destinado a converter esta nação em uma das mais cultas do planeta? Às marcantes conquistas científicas e esportivas que temos? (GRANMA citado por BOTÌN, 2009, p. 292)10. BLOG GENERACIÓN Y Generación Y é um blog sobre o cotidiano em Cuba vivido por quem não concorda com o regime comunista que funciona na ilha. A autora, Yoani Sánchez, é formada em Filologia Hispânica e especialista em literatura contemporânea latino-americana. Inconformada com os salários distribuídos pelo governo, ela foi trabalhar, ilegalmente, como professora de espanhol para turistas. Segundo Sánchez (2010a) 11, “era um momento (que continua até hoje) em que engenheiros preferiam dirigir táxis, professores faziam até o impossível para trabalhar em um hotel e nas lojas poderias ser atendido por um neurocirurgião ou um físico nuclear”. 10 Tradução livre da autora. Disponível em:<http://www.desdecuba.com/generaciony/?page_id=184>. Acesso em: 16 set. 2010. Tradução Livre da autora. 11 42 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Ainda sem um salário suficiente para abastecer a sua família, em 2002 imigrou para a Suíça, onde ficou durante dois anos, e, depois, retornou a Cuba. "Faz tempo que aprendi que a vida para mim não está em outro lugar a não ser em Cuba. Para o meu país eu voltarei sempre” (SÁNCHEZ, 2009, apud TEIXEIRA, 2009). Neste momento, começa a se envolver com o jornalismo. Participou da fundação de uma revista de debates e reflexões, a Consenso, e, três anos depois, inicia a participação no portal de jornalismo cidadão Desde Cuba, onde está linkado o blog Generación Y. 43 Hoje o blog é traduzido para 17 idiomas e possui mais de 14 milhões de acessos por mês. A Time Magazine incluiu o Generación Y entre os 25 melhores blogs do ano em 2009 e a bloggeira foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes no mundo, na categoria "heróis e pioneiros", pela mesma revista (SÁNCHEZ, 2010b). Generación Y é uma expressão utilizada pela autora do blog para caracterizar uma geração de cubanos que nasceu nos anos 70 e 80 e que se encontra encerrada numa utopia do socialismo na qual não acreditam. Yoani sofre pressões e repressões por se manifestar contra o governo cubano e por ser lida por tantas pessoas. Conquistou a atenção internacional ao tentar ilustrar uma realidade diferente daquela mostrada pelos veículos de comunicação oficiais. Em março de 2008 o governo cubano bloqueou o acesso ao blog a partir da rede de internet dentro da ilha. Desde então, ela conta com a ajuda de pessoas que vivem fora de Cuba para postar os seus textos. Conforme consta no relatório sobre Cuba da organização Repórteres Sem Fronteiras (2010), Yoani tem sido atormentada por uma campanha de difamação dentro do país. Acusada de mercenária e de servir ao poder estrangeiro, a mídia estatal tenta desacreditar seu nome. METODOLOGIA A análise do objeto de pesquisa foi elaborada com o emprego da técnica de análise de conteúdo, desenvolvida de forma a instrumentalizar o estudo das comunicações. Este método tem um campo de aplicação extremamente vasto, uma vez que qualquer comunicação tem a Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao possibilidade de ser decifrada (BARDIN, 1977). Esta metodologia pode ser aplicada por meio de diferentes abordagens, mas, em linhas gerais, consiste em uma técnica de pesquisa que busca descrever e interpretar o conteúdo de toda a classe de documentos e textos. De acordo com Bardin (1988), a partir dos resultados da análise é possível verificar se aquilo que o pesquisador julga ver na mensagem está efetivamente contido nela. Para este trabalho foi utilizado a proposta de Bardin que define a análise de conteúdo como: 44 um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens (1977, p.42). Sendo assim, o analista tira partido do tratamento das mensagens que manipula para inferir conhecimentos sobre o emissor da mensagem e o seu meio. O método escolhido para esta pesquisa, portanto, é o qualitativo, tendo em vista que o objeto constitui-se de um corpus reduzido e que o objetivo não é descobrir a frequência de certos elementos, mas a sua presença ou ausência. Por se tratar de um método muito empírico, não existem fórmulas prontas em análise de conteúdo, mas, sim, algumas regras de base. Conforme Bardin (1977), os princípios a serem seguidos são os seguintes: - Exaustividade: não se pode deixar de fora qualquer um dos elementos. - Representatividade: a análise pode ser feita através de uma amostra, desde que o material a isso se preste, sendo uma parte representativa do universo total. - Homogeneidade: os documentos que constituem o objeto de estudo devem obedecer a critérios precisos de escolha e não se distanciarem demasiadamente dos mesmos. - Pertinência: a escolha da amostragem deve ser adequada enquanto fonte de informação, de modo a corresponder ao objetivo inicial da apreciação. Sendo assim, o estudo aparece como um conjunto de técnicas que utilizam procedimentos sistemáticos e objetivos na descrição do conteúdo das mensagens. Uma análise objetiva tem Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao como finalidade fundamentar impressões e juízos intuitivos. Porém, os resultados obtidos não podem ser tomados como prova inelutável, e sim como indicativos de alguns valores de referência e modelos de comportamento presentes no discurso. A análise foi constituída de três etapas: a pré-análise, a exploração do material e, por fim, a interpretação dos resultados. O objetivo foi dissecar os textos para saber como cada veículo – Jornal Granma e o blog Generación Y – retrata acontecimentos dentro de Cuba. Para que o resultado fosse o mais fiel possível, a apreciação foi realizada a partir de acontecimentos noticiados nos dois informativos. Sendo assim, foram escolhidos cinco acontecimentos, julgados relevantes pela autora deste artigo, ocorridos durante o ano de 2010. Estes são fruto do acompanhamento do blog e do site do jornal no período compreendido entres os meses de maio e outubro do mesmo ano. As notícias analisadas abordavam os seguintes temas: O Dia Internacional do Trabalhador, comemorado em 1º de maio; A visita à Cuba do Chanceler espanhol Miguel Ángel Moratinos; A greve de fome do cubano Guillermo Fariñas; A comemoração ao feriado nacional de 26 de Julho; A repercussão na mídia de uma entrevista de Fidel Castro ao jornalista americano Jeffrey Goldberg. Bardin (1988) sugere a utilização de categorias para obter resultados mais claros. Primeiramente, foi realizado o estudo do blog Generación Y por meio do exame de cinco textos e a sua análise de acordo com as categorias propostas. Em um segundo momento, estes procedimentos foram aplicados ao material proveniente do site do jornal Granma. Os resultados foram expostos de forma que fosse possível comparar a abordagem de cada um dos veículos sobre o mesmo acontecimento. Para tanto, foram adotadas as seguintes categorias de análise das amostras: Título: Aqui é relacionado o título dado para o texto no vernáculo em que foi escrito e também a tradução para a língua portuguesa. Assunto: Foi assinalado qual é o fato noticioso e qual o ponto principal discutido em cada matéria selecionada como amostra. Data: Nesta categoria foi registrada a data de publicação dos textos para visualizar a 45 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao imediaticidade em que cada veículo publicou a notícia. Informação: Esta categoria é dedicada a verificar quais são os fatos relatados nos textos a serem estudados. Opinião: Aqui se registram as opiniões expressas no material de amostra. RESULTADOS Identificar as posições assumidas em relação ao governo cubano por cada um dos veículos analisados foi a questão motivadora deste trabalho. Partiu-se do pressuposto de que o conteúdo do jornal Granma fosse apelativo ao regime comunista e ao governo cubano, e que Yoani Sánchez, através do blog Generación Y, expressasse verdades ocultas sobre as condições de vida no país. Depois de concluído o estudo, foi possível verificar que o pensamento inicial não é uma verdade absoluta. Os resultados atingidos indicam a importância do conhecimento e de uma imprensa imparcial para a criação de julgamentos que sejam os mais próximos possíveis da realidade. A metodologia escolhida de análise de conteúdo, conforme preceitos de Bardin (1988), propôs que o estudo fosse feito por meio da categorização do material. As inferências foram obtidas depois da análise de uma amostra de cinco matérias do jornal Granma e cinco do blog Generación Y que abordassem os mesmos temas. Vale ressaltar que as conclusões estão condicionadas às qualidades e às imperfeições da amostra. A pesquisa realizada permitiu concluir que o jornal Granma, de fato, assume a posição de meio de comunicação oficial do Partido Comunista Cubano e dá um tratamento parcial às notícias, tendendo sempre para o lado favorável ao governo. Da mesma forma, o blog Generación Y – que também declara ter um posicionamento, só que contrário ao regime instituído no país –, deixa transparecer sua opinião e pode ser qualificado como um meio de jornalismo opinativo. O Granma, embora não seja fiel aos princípios de imparcialidade, possui um texto mais jornalístico e informativo. A leitura do Granma constrói uma visão erronia sobre Cuba. Por meio dela, pode-se 46 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao acreditar que as condições do país e de sua população são excelentes. Os textos trazem exaltações aos feitos do governo, como a qualidade dos serviços de saúde gratuitos aos cubanos, expostos na matéria sobre Guillermo Fariñas, ou ainda as grandes massas presentes nas comemorações do Dia do Trabalhador e do Dia 26 de Julio, resultado da satisfação do povo com os seus governantes, que forma suas opiniões baseadas nas publicações do jornal. Outra questão perceptível é o tratamento dado a fatos desfavoráveis ao governo: eles simplesmente não são noticiados. Uma vez que não existem outros meios para a sociedade obter informações, para eles, só existiu, só aconteceu o que foi noticiado pelos veículos de comunicação oficiais, todos reproduzindo a mesma versão, também oficial. Como é colocado por Ruiz (2003, p. 73), “a educação, a cultura e os meios oficias propõem apenas um mundo possível; fechado e hermético”. Essa condição justifica o interesse vital em manter uma imprensa fechada e uma repressão constante àqueles que, como Yoani, introduzem novas informações para a população. Na notícia do Granma sobre a visita do Ministro de Relações Exteriores da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, que resultou no acordo de libertação de 52 presos políticos, nada foi dito a respeito. Não é de interesse do governo cubano, primeiro, que a população saiba oficialmente que existem presos políticos e, segundo, que o restante do mundo exerce pressões para que a libertação ocorra e se torne contrário à atitude do PCC. Parece, portanto, que há um esforço para que fontes não oficiais de informação não tenham voz. A autora do blog Generación Y também tem as suas artimanhas para retratar outra versão da realidade, embora seja importante ressaltar que ela não se propõe a ser um meio informativo e imparcial - Yoani Sánchez é uma comentarista. A plataforma utilizada por ela, o blog, não exige que as publicações sejam diárias e nem os conteúdos extensos como os postados no site do jornal Granma. O primeiro indicativo de parcialidade é a seleção de fatos que ela noticia: eles vão de acordo com o seu interesse. Se Yoani tem a intenção de ‘desmascarar’ o governo cubano, vai escrever sobre aspectos negativos da administração. Um segundo ponto a ser considerado é que o conteúdo do seu blog é bastante opinativo. Existe a apresentação de dados, números, informações, mas em cima deles há uma grande carga de opinião. 47 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao E são muitas as interpretações feitas por Yoani Sánchez. Na matéria sobre a comemoração realizada no dia 26 de julho, ela caracteriza a ausência de discurso de Raúl Castro como um silêncio oportuno, já que em vezes passadas a sua fala foi mais prejudicial do que favorável à imagem do governo. Ela ainda interpreta que o silêncio significa que Raúl não está de acordo com as pequenas transformações que o país tem passado e que ele espera que isso seja apenas uma crise momentânea. As ‘pequenas transformações’ às quais ela se refere são atitudes mais liberais que ele tomou após assumir a presidência, como por exemplo, a legalização do aparelho celular (embora os custos do serviço ainda façam com que a utilização do telefone móvel seja bastante limitada). Existe esta contradição nas decisões do governo cubano e nos textos publicados pelos meios de comunicação: a mídia oficial, o Granma, tira proveito dos aspectos positivos, nesse caso a liberação do telefone celular, e foca nele suas matérias. Em contrapartida, o blog retrata que o uso da telefonia móvel é impossível, pois o governo estabelece preços abusivos para que a população não possa telefonar. O leitor deve, então, perceber essas forças contrárias e tentar estabelecer um meio termo entre o positivo e o negativo apresentado. No entanto, quem vive em Cuba não tem essa opção. Para eles, não é possível acessar o blog Generación Y ou outros que também desviam das versões oficiais. A situação da liberdade de imprensa em Cuba é considerada ‘desastrosa’ pela organização Repórteres Sem Fronteiras (2010). A internet possibilitou que novas vozes tivessem um espaço para se manifestar, mas os bloqueios e censuras impostos pelo governo as impedem de serem ouvidas. O resultado é que a grande maioria destes endereços eletrônicos não consegue ter uma penetração significativa no país e, portanto, não chega até os cubanos. Em contrapartida, a abrangência alcançada internacionalmente é inegável. Dessa forma, as controvérsias que antes permaneciam isoladas, hoje são expostas e circulam pelo mundo. A atenção que a mídia alternativa cubana recebe de outros países cresce a cada dia. E os governos estrangeiros, sensibilizados, exercem pressões sobre Cuba. Em 2008, a Sociedade Interamericana de Imprensa (citada por BOTÍN, 2009) denunciou a situação de jornalistas independentes de 48 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Cuba e exigiu a libertação incondicional dos jornalistas cubanos presos e o reconhecimento governamental do exercício independente da profissão de jornalista. São iniciativas como esta que podem garantir que no futuro exista liberdade de imprensa no país e que, assim, a população de Cuba tenha acesso à informação e possa construir a sua própria opinião sobre os fatos. REFERÊNCIAS BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977. _____. Análise de Conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1988. BROFMAN, Julia. O cotidiano cubano visto sob duas óticas – análise do jornal granma e do blog generación Y. Porto Alegre: PUCRS, 2010. BOTÍN, Vicente. Los funerales de Castro. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 2009. BUDDECOMM. Cuba - Telecoms, Mobile and Broadband. Australia, 2010. Disponível em: <http://www.budde.com.au/Research/Cuba-Telecoms-Mobile-and-Broadband.html>. Acesso em: 26 set. 2010. COMMITTEE to Protect Journalists. The alternative Cuban blogosphere. New York, 2009. Disponível em: <http://www.cpj.org/blog/2009/09/the-alternative-cuban-blogosphere.php>. Acesso em: 12 set. 2010. ELEITO presidente de Cuba, Raúl Castro promete mudanças e Estado menor. Folha Online. São Paulo, 24 fev. 2008b. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u375525.shtml>. Acesso em: 2 nov. 2010. GRANMA. Granma Internacional Digital. Apresenta notícias, textos e imagens. 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Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao O CULTIVO DA LIBERDADE EM “A MONTANHA MÁGICA” 52 Kaio Felipe 1 Resumo: Este artigo discutirá a questão da Liberdade a partir do romance “A Montanha Mágica”, de Thomas Mann. Para isso, procurará demonstrar como as concepções sobre “o que é ser livre” defendidas pelos três personagens principais (Hans Castorp, Settembrini e Naphta) podem ser comparadas às perspectivas de cinco autores da Filosofia Moral e Política: Berlin, Mill, Arendt, Nietzsche e Humboldt. Por fim, a partir das noções de Bildung e Bildungsroman, procurará explicitar o Humanismo defendido por Mann ao longo da obra, e como a ênfase nessa visão de mundo se relaciona com o contexto histórico e político do autor. Palavras-chave: Liberdade, Bildung, Formação, Ética, Modernidade. “O homem não vive somente a sua vida individual; consciente ou inconscientemente participa também da vida de sua época e dos seus contemporâneos.” (Thomas Mann) A Chegada: propósitos e objetivos Publicado em 1924, o romance “A Montanha Mágica” tem como protagonista Hans Castorp, jovem engenheiro de temperamento paisano que, em visita ao primo enfermo em um sanatório nos Alpes suíços, recebeu o castigo (ou dádiva?) de passar vários anos de sua vida no local, após descobrir que tem tuberculose. Ao longo de sua estadia, ele aprende mais sobre si mesmo e o mundo à sua volta. Segundo o próprio Thomas Mann, ele é um personagem medíocre, sem qualidades distintas ou qualquer atributo de especial. Porém, sua mediocridade não se refere à inteligência ou personalidade, mas simplesmente aos impedimentos de seu contexto histórico e social. Nas palavras do narrador: O indivíduo pode visar numerosos objetivos pessoais, finalidades, esperanças, perspectivas, que lhe dêem o impulso para grandes esforços e elevadas atividades; mas quando o elemento impessoal que o rodeia, quando o próprio tempo (...) carece 1 Kaio Felipe é estudante de graduação em Ciência Política (6º semestre) pela Universidade de Brasília. 52 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao no fundo de esperanças e perspectivas, quando se lhe revela como desesperador, desorientado e falto de saída, e responde com um silêncio vazio à pergunta que se faz consciente ou inconscientemente (...) pelo sentido supremo (...), toda atividade e de todo esforço – então se tornará inevitável, justamente entre as naturezas mais retas, o efeito paralisador desse estado de coisas, e esse efeito será capaz de ir além do domínio da alma e da moral, e de afetar a própria parte física e orgânica do indivíduo.” (Mann, 2000, p. 47-48) Este romance, por mais épico que seja, tem como “herói” um personagem que tem poucos atributos (força, coragem, ímpeto...) de alguém tido como “heróico”. Esta é a 1ª de várias paródias angustiantes que Thomas Mann fará ao longo de “A Montanha Mágica”, uma obra que, assim como a I Guerra Mundial (acontecimento que a inspirou), combina tradição e modernidade; situa-se entre a Belle Époque que estava sendo sepultada e os Tempos Sombrios que emergiam das trincheiras. Este artigo se propõe a discutir como “A Montanha Mágica” pode iluminar a compreensão do conceito de Liberdade. Esta é um dos temas centrais do livro, presente tanto nas perspectivas de personagens importantes como Settembrini (literato de idéias liberais e iluministas) e Naphta (jesuíta com posições radicais e niilistas) quanto nas reflexões suscitadas no decorrer da trama, inclusive em seu desfecho bélico. Portanto, este romance será tanto fonte quanto objeto de estudo deste texto; pretendemos demonstrar a relevância do Humanismo2, visão de mundo recorrente neste livro, como chave de compreensão do mundo moderno – e da própria liberdade. Nosso pressuposto é o fato de a Literatura ser fonte rica de conhecimento social e humano, constituindo “um saber acerca das motivações, sentimentos e paixões dos seres humanos, cujo valor cognitivo se coloca acima da dúvida sensata” (Gusmão, 2007, p. 251). Podemos pensar a Política por meio da Arte, na medida em que o artista possui a capacidade de “expressar poeticamente a sua sociedade” (Chaia, 2007, p. 13). Destarte, defendemos que muitas das mais valiosas descrições e análises sobre temas políticos estão presentes em autores como Goethe, Dostoiévski, Thoreau e o próprio Mann, autor reconhecidamente dotado de vasta formação cultural e filosófica. 2 Entendemos Humanismo como a filosofia moral voltada para a excelência e a dignidade humanas. Seguimos a perspectiva cara ao Renascimento: o homem como centro do pensamento filosófico (antropocentrismo). 53 53 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao A Teoria Política – e a Ciência Política em geral – têm muito a ganhar caso se abram às possibilidades trazidas por fontes de conhecimento que prezam pela reflexão humanística do senso comum, ao invés de se ater a modas acadêmicas como a (suposta) sofisticação e rigor no uso de conceitos herméticos advindos de abordagens que vão desde o positivismo até o pós-estruturalismo 3. Quanto à estrutura do artigo, faremos o seguinte trajeto: primeiro, apresentaremos os conceitos de Liberdade para cinco autores da Filosofia Moral e da Teoria Política; depois, definiremos “Bildung” e “Bildungsroman”, demonstrando como são decisivos para se compreender a visão de mundo apresentada por Mann; em seguida, procuraremos ecos das concepções de Liberdade apresentadas nos três personagens principais de “A Montanha Mágica”. Operationes Spirituales: Cinco Conceitos de Liberdade Cinco concepções de liberdade serão importantes para o desenvolvimento do artigo. A primeira é de Isaiah Berlin, que em “Dois Conceitos de Liberdade” apresenta uma distinção entre “liberdade positiva” e “liberdade negativa”. Ela é clara o suficiente para facilitar nossa compreensão da diferença entre a liberdade em suas expressões cívicas e explicitamente políticas e as dimensões mais privadas e individuais. Em suma, liberdade positiva consiste em “ser-se amo e senhor de si mesmo”; ou seja, “a auto-realização, ou auto-identificação com um princípio ou ideal específicos.” (Berlin, 1981, p. 142-145) Já a liberdade negativa significa estar livre de coerção, partindo do princípio de que o indivíduo tem o desejo de não sofrer imposições sobre sua privacidade. A segunda visão é a de Stuart Mill, que eternizou uma concepção intimista da liberdade, definindo-a como “buscar seu próprio bem à sua própria maneira” (Mill, 2003, p. 72), pois sobre o seu próprio corpo e mente, o indivíduo é soberano. Além disso, o estabelecimento de limites às ações dos outros é importante para que as ações de uns não constranjam o comportamento dos demais. Percebemos, assim, que em “On Liberty” este 3 Referimo-nos, por exemplo, à apropriação, nas ciências sociais, de conceitos e posições defendidas pelos filósofos intitulados “pós-modernos”. Para maiores detalhes, recomendamos: Alan Sokal e Jean Bricmont, “Imposturas Intelectuais”, Rio de Janeiro: Record, 2006. 54 54 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao autor defende a liberdade negativa, pois enfatiza o direito do indivíduo de não ser coagido, mesmo quando é minoria.4 Por sua vez, Hannah Arendt discordaria de Mill, alegando que considerar a liberdade como própria do domínio da consciência é fruto de uma perda da liberdade política; afinal, as origens dessa visão remontam à alienação dos anos de decadência do Império Romano. Para a autora, “o homem nada saberia da liberdade interior se não tivesse antes experimentado a condição de estar livre como uma realidade (...) tangível” (Arendt, 1972, p. 194). Ela propõe uma concepção mais cívica e ativa e menos individualista da liberdade; aproxima-se, assim, da vertente positiva da dicotomia de Berlin. Segundo Arendt, a liberdade é inerente à ação humana, sendo interdependente, e não oposta, à política. A quarta perspectiva, de Friedrich Nietzsche, contrasta tanto com o individualismo liberal de Mill quanto com o viés mais republicano de Arendt. Para ele, a liberdade é, acima de tudo, vontade de poder; em outras palavras, ela é expressão de nossos instintos, uma rejeição da abnegação e da auto-renúncia. Elitista, Nietzsche critica a “igualdade de direitos” propagada pela moral cristã e burguesa; considera-a antinatural. Para ele, “independência é algo para bem poucos – é prerrogativa dos fortes” (Nietzsche, 2005, p. 34). Portanto, ser livre é se emancipar de tudo o que nos restringe; é afirmar o impulso pela independência, pela “vida”. Por último, há uma concepção seminal para o Liberalismo Alemão, sendo também aquela que mais se aproxima da apresentada pelo próprio Mann. Em “Os Limites da Ação do Estado”, Wilhelm von Humboldt define liberdade como “a possibilidade de uma atividade variada e indefinida” (Humboldt, 2004, p. 133); é ela que nos permite a espontaneidade e o pleno aprimoramento pessoal. A individualidade deve se combinar à “variedade de situações”, já que a sensibilidade humana necessita da pluralidade; a liberdade é uma “indispensável condição que semelhante desenvolvimento pressupõe.” (Ibidem, p. 143). Trocando em miúdos, o cultivo da individualidade e da pluralidade permite o florescimento da personalidade. 4 Em outras obras, como “Considerations on Representative Government”, Mill enfatiza mais a liberdade política e de ação, afastando-se do tom individualista (talvez em razão do próprio tema) de “On Liberty”. 55 55 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Bildungsroman: o romance como formação cultural e humanística Outro conceito importante, também presente em Humboldt, é o de “Bildung”. Ela é “a formação para a autonomia, que não pode ser transmitida como os conteúdos propriamente educacionais” (Fontanella, 2000, p. 17). Análoga à “Paidéia” grega5, tal formação ampla consiste na “realização de uma individualidade nutrida pela diversidade da experiência” (Humboldt, 2004, p. 76). 56 Para Humboldt, “a verdadeira finalidade do Homem (...) é a da formação a mais alta e harmoniosa possível de suas forças em direção a uma totalidade completa e consistente” (Idem, p. 143). Com isso, ele “exprimiu um tema liberal profundamente sentido: a preocupação humanista de formação da personalidade e aperfeiçoamento pessoal. Educar a liberdade, e libertar para educar – esta era a idéia da Bildung, a contribuição goethiana de Humboldt à filosofia moral” (Merquior, 1991, p. 31). Podemos elencar outros pensadores alemães para esta discussão. O diálogo entre os artistas Johann von Goethe e Friedrich Schiller foi fundamental para a disseminação do ideal da Bildung. A amizade entre eles foi decisiva não apenas para consolidar o Classicismo alemão, mas também para apresentar, em termos literários, o que seria este “auto-cultivo”. Seguindo tal linha de raciocínio, entendemos o “Bildungsroman” como “o gênero de romance que se foca no desenvolvimento psicológico e moral do protagonista, da infância à fase adulta” 6. Dentre vários exemplos de romances de formação, destacaremos a obra fundadora do gênero, do próprio Goethe: “Os Anos de Aprendizagem de Wilhelm Meister” (1796), cujo protagonista, erudito, ambicioso e movido por idéias estéticas, chega a participar de uma companhia de teatro.7 A importância deste estilo literário é considerável, pois recupera elementos do gênero épico (a própria idéia da “saga” pela o protagonista passa), combinando-o com o lírico, ao mesclar o caráter autobiográfico com o retrato de uma sociedade. Além disso, o Bildungsroman envolve simultaneamente preocupações com a ética (os valores adequados para o pleno desenvolvimento humano) e com a estética (a apreciação daquilo que é belo e/ou sublime). 5 “Paidéia” grega era o processo educacional de ampla formação cultural e intelectual dos jovens na Grécia Antiga. Fonte da citação: http://andromeda.rutgers.edu/~jlynch/Terms/bildungsroman.html 7 Outros exemplos famosos de Bildungsroman são: “O Retrato do Artista quando Jovem “(James Joyce, 1914), “Siddharta” (Hermann Hesse, 1922) e “Laranja Mecânica” (Anthony Burgess, 1962) 6 56 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao “A Montanha Mágica” possui várias características de um “bildungsroman”. Em primeiro lugar, o caráter pedagógico, pois o protagonista, ao longo de sua trajetória, apreende ao máximo a experiência humana: o amor, a ciência, a política, a arte, a filosofia, a fé e o próprio tempo. Hans Castorp entra em contato com toda a cultura em relação à qual pouco se importara até então. Além disso, ele integra-se aos hábitos e costumes daquela sociedade ao longo da trama.8 Porém, Thomas Mann também traz um debate sobre a Modernidade, com as várias correntes, apologéticas e críticas, confrontando-se ao longo da obra, em uma verdadeira Torre de Babel filosófica. O escritor demonstrava grande interesse pelas obras de Nietzsche e Schopenhauer, e construiu situações e personagens nos quais são fundamentais as idéias centrais de ambos os pensadores, como o embate entre “espírito” e “vida” e a crítica aos limites da razão humana. Além disso, “A Montanha Mágica” é o romance “em que se pretende representar o declínio fatal da civilização alemã e européia do século XIX rumo à Primeira Guerra Mundial, o naufrágio de seu ideal de cultura.” (Fontanella, 2000, p. 8) Mann, durante a maior parte da guerra, assumiu posições conservadoras e de não-engajamento – vide as suas polêmicas “Reflexões de um Apolítico”. Sua visão contrastava com a de seu próprio irmão, o ativista socialista Heinrich Mann. Porém, nos últimos meses do conflito, ele desiludiu-se com os rumos de seu próprio país – e da Europa em geral -, e iniciou uma transição ideológica para o social-liberalismo. “A Montanha Mágica” é um registro dos primórdios da mudança de visão de mundo de seu autor. Assim como este romance se enquadra na categoria de “Bildungsroman”, também podemos afirmar que Mann foi um “prototípico intelectual da Bildung” - mesmo quando suas posições ideológicas mudaram e ele passou a defender a “politização do espírito” e “a consideração simultânea dos dois lados da liberdade: a pessoal e a política” (Souza, 2000, p. 150). Quanto ao caráter pedagógico e filosófico deste livro, podemos visualizar alguns dos conceitos já discutidos no trecho a seguir. O narrador trata do “placet experiri”, que é a 8 Um gesto singelo, mas simbólico para indicar a mudança de Castorp é quando, depois de alguns anos morando em Davos-Platz, ele finalmente pára de consumir charutos importados (atitude tipicamente burguesa) e começa a comprar os comerciados localmente. 57 57 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao preocupação em aprender e descobrir mais sobre si mesmo e sobre a realidade de uma forma lúdica e empírica: “Hans Castorp pressentia, (...) com absoluta nitidez, que essas experiências, fosse qual fosse o rumo que tomassem, não poderiam levar a um fim não insípido, não incompreensível, não desprovido de dignidade humana. Assim ardia por fazê-la. (...) O princípio do placet experiri (...) continuava arraigado em Hans Castorp. Aos poucos coincidia a sua ética com a sua curiosidade, o que, na verdade, sempre fizera; com essa mesma curiosidade irrestrita, própria de um viageiro ávido de formação, que, ao saborear o mistério da personalidade, talvez já se achasse próxima do domínio que agora se lhe deparava...” (Mann, 2000, p. 904-905) Esta reflexão nos remete à carta em que o dramaturgo Schiller discorreu sobre o impulso experimental que caracteriza a liberdade humana: “o homem joga somente quando é homem no pleno sentido da palavra, e somente é pleno quando joga” (Schiller, 2002, p. 80).9 Settembrini, o pedagogo iluminista Lodovico Settembrini: eis um personagem paradoxal. O mesmo homem que diz que "a liberdade é a lei do amor humano, e não o niilismo e a maldade” (Mann, 2000, p. 514) é aquele que exorta a guerra em defesa dos valores e instituições ocidentais, julgando ser “necessário ferir o princípio asiático, o princípio servil da inércia” (Ibidem, p. 214). Democrata, liberal e republicano, ele tenta ser um pedagogo para o franzino Hans Castorp, a quem chama de “filho enfermiço da vida”. Este italiano, uma paródia ao cosmopolitismo de alguns dos intelectuais europeus, encarna o ideal da “civilização”, opondo-se à preferência pela “cultura” por seu rival, Leo Naphta (como veremos adiante). Settembrini, em outra dicotomia, defende o espírito em relação à natureza. Podemos entendê-lo como a versão otimista do Humanismo, ou seja, como partidário da exaltação das realizações do espírito humano. Vejamos o que ele nos diz no seguinte trecho: “Humanista? Claro que o sou! (...) Represento o Classicismo contra o Romantismo. (...) Não ignoro que, dentro da antítese de corpo e espírito, o primeiro representa o princípio mau e diabólico; pois o corpo é natureza, e a natureza – repito que se trata da sua oposição ao espírito, à razão – é má; mística e má! (...) Indiscutivelmente sou humanista, por ser amigo do homem, como o era Prometeu, um enamorado da 9 Entendemos “jogo” como a contemplação estética que se situa entre as capacidades sensíveis e racionais do homem; é o estado intermediário em que o homem se abre a todas as possibilidades, ainda sem operar juízos. 58 58 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao humanidade e da sua nobreza. Mas essa nobreza acha-se encerrada no espírito, na razão...” (Ibid., p. 340-341) Agora, podemos delinear a sua crença veemente no progresso, típica do movimento intelectual do século XVIII que foi decisivo para o Ocidente: o Iluminismo. O lema do mesmo, “conhecer para prescrever”, é recorrente na retórica de Settembrini; ele identifica-se com o ideal de, por meio da razão, libertar a ação humana das forças naturais, estabelecendo regras de conduta para que esta transformação seja contínua e ininterrupta. Não seria exagero considerá-lo como uma metáfora do ímpeto evolucionista do pensamento político moderno. Percebemos semelhanças de suas concepções de liberdade com aquelas expressas por Stuart Mill e Hannah Arendt. Settembrini, assim como o primeiro, valoriza a liberdade individual, julgando-a imprescindível ao aperfeiçoamento humano. Porém, ele também concordaria com Arendt quanto à importância da virtude cívica, no sentido de o ser humano ser livre para alterar a sua realidade, inclusive por meio da ação política.10 Vejamos as palavras do próprio personagem, diante das provocações de Naphta quanto ao legado do Renascimento e do Estado moderno: “Protesto contra a insinuação de que o Estado moderno signifique a servidão diabólica do indivíduo! (...) A democracia não tem outro sentido a não ser o de um corretivo individualista de toda forma de absolutismo do Estado. A verdade e a justiça são as jóias da coroa da ética individual, e no caso de um conflito com os interesses estatais talvez até assumam a aparência de potências inimigas do Estado, posto que, em realidade, visem ao seu bem superior, ao bem supraterreno. (...) As conquistas – emprego essa palavra no sentido literal! –, as conquistas do Renascimento e do Século das Luzes, meu caro senhor, chamam-se personalidade, direitos do homem, liberdade!” (Ibid., p. 544) Settembrini é membro da “Liga Internacional para a Organização do Progresso”, que é mais um deboche de Thomas Mann aos exageros humanitários da intelectualidade européia. Esta Liga visa a suprimir o sofrimento humano, e uma de suas empreitadas é a confecção de uma Enciclopédia que contenha tais “profilaxias”. Por estar enfermo, ele não pode ir às reuniões da organização; por isso, sua tarefa é preparar, para esta Enciclopédia, um volume sobre como as belas-letras podem contribuir na eliminação de todo sofrimento padecido pela humanidade. 10 Aliás, Settembrini muito se orgulha do ativismo de seu avô, que era “carbonário” e foi panfletário no processo político que levou à unificação da Itália, décadas antes. 59 59 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao É importante ressaltar que o pensamento de Lodovico Settembrini é repleto de ambiguidades. Sua defesa apaixonada da liberdade de consciência coexiste com uma argumentação dogmática e intransigente em prol da “civilização”. Ao mesmo tempo em que tenta ser o Virgílio para o Dante11 que vê em Hans Castorp, ele mesmo é uma pessoa que não realiza plenamente aquilo que defende; de outro modo, não estaria “preso” no sanatório. Além disso, sua fé no potencial humano, ao se desligar de qualquer religiosidade ou espiritualidade, aos olhos de Mann se torna satânica, demoníaca; não por acaso, o capítulo em que Settembrini é introduzido na trama chama-se “Satã”. Muitas vezes, parece que este “beletrista” possui um individualismo arrogante e hipócrita. No fundo, o personagem é um acerto de contas de Thomas Mann com seu irmão Heinrich. Ambos encarnam o “homem literato da Civilização”, que acredita na razão, no progresso e no Iluminismo; louvam a Revolução Francesa e, no final das contas, também são favoráveis ao imperialismo da civilização européia. Mann preocupa-se com os excessos desse universalismo ocidental, pois ele minimiza os elementos nacionais, culturais ou mesmo comunitários (Dumont, 1994). Porém, tanto em relação ao personagem italiano quanto com Heinrich Mann, a postura do autor é a mesma: o que ele condena neles não é o cosmopolitismo em si, mas a sua predominância, quase exclusiva, em detrimento do componente “alemão”, da tradição. Naphta, o revolucionário conservador Um dos personagens mais soturnos de “A Montanha Mágica”, Leo Naphta é de origem judia, e nasceu no interior da Alemanha. Seu pai, fanático religioso, caiu em desgraça por sua “irregularidade sectária”, e foi cruelmente assassinado por populares. Esta experiência marcou a vida de Naphta, que passou sua adolescência absorvido em angústias intelectuais, “formando o seu espírito de modo impaciente e descontrolado” (Mann, 2000, p. 603). Finalmente encontrou seu lugar no mundo quando se converteu à Companhia dos Jesuítas. Segundo o narrador, “Naphta tinha um instinto ao mesmo tempo revolucionário e aristocrático; era socialista e também dominado pelo sonho de participar de uma forma de vida soberba, distinta, exclusiva e ordenada” (Ibidem, p. 605).12 Destaca-se pelos constantes e 11 Em “A Divina Comédia” (Dante Alighieri), o narrador é guiado pelo poeta romano Virgílio, a quem admirava, durante sua travessia do Inferno, Purgatório e Paraíso. 12 A propósito, Naphta provavelmente é inspirado no marxista Georg Lukács – o qual, contudo, admirava Thomas Mann. Em “O Marxismo Ocidental” (1987), José Guilherme Merquior alega que “o retrato mais 60 60 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao intensos embates intelectuais travados com Settembrini; é uma rivalidade que começa cortês, mas que, como veremos adiante, se torna literalmente mortal. Dotado de uma retórica perigosamente refinada, Naphta muitas vezes apela para o relativismo cognitivo, dizendo que “verdadeiro é o que convém ao homem”, pois o homem “representa a medida das coisas, e sua salvação é o critério da verdade” (Ibid., p. 543). Em uma tentativa de defini-lo ideologicamente, o narrador nos diz que Naphta “talvez fosse tão revolucionário quanto o Sr. Settembrini, mas o era no sentido conservador, como revolucionário do conservantismo.” (p. 627) Isso ajuda a ilustrar o seu conceito de liberdade, pois ele evoca um tom hierárquico e impulsivo que lembra o de Nietzsche. Em sua ênfase na “vontade de poder”, ambos se notabilizam pela “rebeldia aristocrática”, por meio da qual fazem críticas ferozes à Modernidade, em defesa da grandeza humana presente em épocas anteriores: o cristianismo da Idade Média (Naphta) e os gregos pré-socráticos (Nietzsche). Por outro lado, ambos estão em diâmetros opostos quanto à “renúncia a si próprio”. Enquanto Naphta a defenderia com veemência, considerando-a indispensável para a autoridade absoluta que almeja, o filósofo alemão, como vimos, prega o espírito livre e rejeita a abnegação, associando esta a uma subserviente “moral de animal de rebanho” (Nietzsche, 2005, p. 89). Naphta exalta a vida, enquanto expressão máxima da “cultura”; assim como o próprio Mann antes da desilusão da I Guerra, ele recusa aquilo que os demais povos da Europa chamam de “liberdade” (Dumont, 1994, p. 54). Dos dois ideais alemães de liberdade (holismo comunitário e individualismo auto-cultivado), Naphta rejeita o individualismo cultural da Bildung, mas defende a visão coletivista; ou seja, uma livre dedicação do “eu” ao “todo” (Ibidem, p. 47). Mann, depois de sua transição ideológica, criticaria este primeiro conceito alemão de Liberdade, presente já em Lutero, pois ele despreza a liberdade política e acentua apenas “o direito de ser alemão, só alemão e nada além disso.” (Rosenfeld, 1994, p. 140) Esta tese de que só é possível ser livre no seio da coletividade – e que essa liberdade é interior – aparece, por exemplo, quando Naphta alega que “a liberdade era um conceito do Romantismo antes do que da Época das Luzes, pois com aquele tinha em comum o conhecido de Lukács (...) é um fascinante, mas pouco simpático personagem da Montanha Mágica (...) de Thomas Mann – Naphta, o jesuíta vermelho, um intelecto sequioso de autoridade” (p. 136). 61 61 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao entrelaçamento inextricável dos impulsos de expansão coletiva e do ensimesmamento apaixonadamente individualístico” (Idem, p. 957). Esta submissão do indivíduo à coletividade pregada por Naphta ganha ares de missão política quando ele, em mais uma demonstração afiada de retórica, coloca o socialismo como a última expressão da fé crista: “A ditadura do proletariado (...) tem o sentido (...) de uma ab-rogação temporária do conflito entre o espírito e o poder sob o signo da cruz, o sentido de se triunfar sobre o mundo dominando-o, (...) o sentido do Reino. (...) O proletariado retomou a obra de Gregório; sente arder no seu íntimo o zelo piedoso do grande papa e, como ele, tampouco poderá impedir as suas mãos do derramamento de sangue. Sua incumbência é espalhar o terror para a salvação do mundo e para a conquista do objetivo da redenção, que é a relação filial com Deus, sem a interferência do Estado e das classes.” (Idem, p. 550) E como Hans Castorp lida com tais visões de mundo? Embora inicialmente ele se fascine por tais idéias baseadas na ânsia por absoluto, por Ordem (afinal, ele próprio tinha uma índole conservadora), não demora muito para que o “filho enfermiço da vida” perceba as conseqüências niilistas e destrutivas da ideologia pregada por Naphta. O Amadurecimento de Castorp Se, como vimos, a “Bildung” é o cultivo e desenvolvimento da personalidade individual, então é indispensável investigá-la no próprio protagonista. No decorrer da trama, Hans Castorp evolui bastante, justamente porque não tem medo dos próprios limites. Segundo Fritz Kaufmann, ele é capaz de criar a si mesmo, usando conscientemente dos materiais de seu mundo, apelando a seus instintos sobre a natureza humana e, acima de tudo tendo “a coragem moral para sentir a luxúria da morte e da eternidade e ainda assim decidir pelo futuro da vida” (Kaufmann, 1973, p. 98). Uma passagem decisiva da obra que corrobora tal argumento é quando Castorp resiste sozinho a uma tempestade de neve, encontrando forças para não se entregar aos delírios e devaneios que o acometiam: “Em consideração à bondade e ao amor, o homem não deve conceder à morte nenhum poder sobre os seus pensamentos” (Mann, 2000, p. 678). Além disso, Hans Castorp experimenta e reflete sobre as mais diversas formas de liberdade. Assim como Settembrini, dedica-se aos estudos, adquirindo conhecimentos sobre 62 62 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Botânica e Astronomia. Movido por um sentimento de honra diante da morte, adquiriu o costume de visitar pacientes terminais; o italiano certamente não aprovaria tal morbidez, mas tal atitude agradou a um dos médicos do sanatório, o Dr. Behrens. Às vezes, Castorp também tentava filosofar, chamando sua empreitada de “regência”. Além disso, desenvolveu uma paixão avassaladora pela russa Clawdia Chauchat, cujo charme tinha um quê de mortal e libertino. O narrador deixa a entender que foi a própria mediocridade de Hans Castorp que o permitiu usufruir de tantas experiências nos sete anos que passou no sanatório de Berghof. Afinal, mesmo o homem comum tem o seu quê de genial, quando consegue recombinar as velhas formas em novas, passando da dissolução à ordem. Em outras palavras, é quando recusa a covardia inofensiva diante da realidade que o homem mantém a busca pela finalidade e o sentido da vida. Será, portanto, que prevalecerá o Castorp indolente que vemos no trecho a seguir? “Deixavam-no em paz, pouco mais ou menos como se faz com um aluno que goza do estado singularmente feliz de já não ser examinado nem ter necessidade de trabalhar, porque a “bomba” é um fato consumado e ninguém mais se preocupa com ele; um tipo orgiástico de liberdade – digamos isso de passagem, perguntando-nos se a liberdade pode jamais ter outra natureza que não precisamente esta.” (Idem, p. 973) Porém, o desfecho do romance recusa tal destino para o personagem. Primeiro, temos o trágico duelo entre Settembrini e Naphta, que não conseguiam mais resolver diplomaticamente suas discordâncias. Em mais uma reviravolta dramática, Settembrini atira para o alto, ficando de peito aberto para o seu rival... e este atira na própria cabeça. É, no mínimo, sintomático que os dois niilistas de “A Montanha Mágica” (o outro é Mynheer Peeperkorn, um simpático personagem que foi uma influência decisiva para o lado mais dionisíaco de Castorp) cometeram suicídio. No último capítulo, “O Trovão”, o sanatório é acometido por uma notícia devastadora: estourou a guerra entre as potências européias! Hans Castorp não titubeia e, após se despedir de seu mestre Settembrini, retorna à planície para lutar no Exército alemão. Por ironia do destino, ele vai à batalha que seu primo, o militar Joachim Ziemssen, tanto queria ir; mas, este morreu de tuberculose anos antes. Acima de tudo, a escolha de Castorp soa como se ele saísse do conforto de sua cidadela interior – que, aliás, não é tão incompatível assim com a noção de liberdade negativa pregada por Mill –, e retornasse aos desafios do “mundo”, num ato de 63 63 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao virtude cívica que agradaria a Arendt13 e talvez também a Nietzsche, pois implicaria em aceitação – e luta – pela vida. Thomas Mann parece ver um ato de liberdade – mais do que isso, libertação – na decisão de seu personagem. Ele próprio não tivera a coragem de fazê-lo, alegando que era da índole do intelectual germânico ser apolítico (Dumont, 1994). Porém, os horrores da I Guerra lhe mostraram que não se pode fechar os olhos para a destruição do que há de mais nobre no ser humano: a sua dignidade. 64 É nesse sentido que podemos apelar ao Humanismo, pois ele é uma ode à capacidade do homem de se elevar moralmente, de aprimorar a sua percepção e entendimento da “dialética bipolar” entre espírito e natureza (Kaufmann, 1973) e, principalmente, de cultivar a sua personalidade da forma mais completa possível, inclusive pela pluralidade de experiências (“placet experiri”), o que nos remete a Humboldt. Logo, é correto dizer que “Hans Castorp, para realizar-se, para fechar o círculo de sua educação humanista, precisa voltar à planície” (Rosenfeld, 1994, p. 26). Movido por esta preocupação humanística, o autor conclui o seu romance com a seguinte frase: “Será que também da festa universal da morte, da perniciosa febre que ao nosso redor inflama o céu desta noite chuvosa, surgirá um dia o amor?” (p. 986) Neste trecho, Mann demonstra uma mescla de melancolia e esperança. Por um lado, o escritor “percebe que é exatamente o sentido da própria humanidade que se perdeu ali, antes de qualquer coisa”; resta-lhe narrar “as conseqüências da perda deste sentido básico e preliminar da própria possibilidade da vida em comum”. Logo, este romance seria “a história do declínio de uma sociedade, cujos sintomas não estão em outra parte senão no próprio homem que [a] compõe.” 14 Porém, o “Trovão” da guerra também pode ser o início da redenção pelos erros cometidos. Mann nunca deixou de ter fé no potencial do ser humano; o amadurecimento do medíocre Hans Castorp é uma prova disso. Finis Operis: os desafios da Liberdade Estamos no fim de nossa jornada. Ao longo dela pudemos encontrar em “A Montanha Mágica” um libelo pela liberdade e pela busca de um sentido existencial; “é lícito 13 Por ser ação política, apesar de realizada em uma guerra – lembrando que Arendt dissociava a política da violência. “Impressões de Leitura – A Montanha Mágica”, de Francisco Escorsim. Fonte da citação: http://oitocolunas.blogspot.com/2005/05/impresses-de-leitura-montanha-mgica.html 14 64 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao compreendê-la como um livro escrito contra o niilismo de seu tempo” (Fontanella, 2000, p. 43). A partir dos conceitos de Liberdade e “Bildung”, verificamos a presença deste debate político e filosófico nos personagens do romance, o que corrobora com nosso pressuposto sobre a interdependência entre a Arte e a Política; afinal, a obra é uma alegoria da crise moral que acometeu a Europa, levando-a à trágica I Guerra Mundial. Foram apresentadas várias possibilidades de se encarar a liberdade: Settembrini resignou-se a encontrar na atividade intelectual a sua autonomia; Naphta negou até o livrearbítrio, associou liberdade a vontade de poder e, consumido pelo seu vazio existencial, pôs fim à própria vida; Castorp resolveu sua crise intelectual e espiritual – transcendendo, assim, sua mediocridade – ao aprender a importância de se acreditar na vida e no amor, mesmo que para isso tenha tido que lutar (e, ao que parece, morrer) na guerra. A vida nos compele a fazer escolhas, tomar posições; o homem não é apenas um campo de batalha, mas o também o objetivo desse conflito, e, no fim, o sujeito que decide qual caminho tomar (Kaufmann, 1973). É nesse sentido que identificamos a mensagem do romance como uma espécie de versão pessimista da filosofia do Humanismo. Isso só nos reforça a convicção, expressa anteriormente, de que há um misto de esperança e melancolia do autor ao discorrer sobre a liberdade humana de refletir e agir por um mundo melhor. Sendo assim, Settembrini é o escolhido para proferir a epígrafe deste artigo. Embora tenha fracassado como pedagogo de Castorp, sua honestidade intelectual e sua genuína bondade compensam seus problemas e contradições. Não por acaso, diante do duelo requisitado por Naphta, ele respondeu a seu “discípulo” Hans com tristeza, mas coragem. Se isso foi uma apologia à “guerra pela paz e pela democracia” (um dos mais famigerados “pontos de honra” do Ocidente) ou apenas uma defesa do homem fiel aos seus princípios, cabe ao leitor decidir: “Quem não é capaz de arriscar a vida, o braço, o sangue na defesa de um ideal não é digno dele. Em que pese a nossa espiritualização, cumpre sermos homens.” (p. 964) 65 65 Revista Estudos pela Liberdade. Número 1. Ano 1. Abril de 2011 Disponível em: http://www.estudantespelaliberdade.com.br/index.php/estudos-pela-liberdade/apresentacao Referências Bibliográficas ARENDT, Hannah. “Entre o Passado e o Futuro”. São Paulo: Perspectiva, 1972. BERLIN, Isaiah. “Dois Conceitos de Liberdade”. IN: “Quatro Ensaios sobre a Liberdade”. Brasília: Universidade de Brasília, 1981. CHAIA, Miguel (org.). “Arte e Política”. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007. DUMONT, Louis. “German Ideology: from France to Germany and back”. Chicago: University of Chicago, 1994. 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