Luiz Otavio Braga - O Conjunto Época de Ouro

Transcrição

Luiz Otavio Braga - O Conjunto Época de Ouro
O Conjunto Época de Ouro
Por Luiz Otávio Braga
Violonista e compositor, ex-integrante da Camerata Carioca
Professor da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Ensaio elaborado especialmente para o projeto Músicos do Brasil: Uma Enciclopédia,
patrocinado pela Petrobras através da Lei Rouanet
Jacob Pick Bittencourt, ou melhor, Jacob do Bandolim, organizou este fabuloso conjunto em
1966. As exigências de Jacob, a rotina de ensaios, a qualidade artística inerente a cada um dos
membros resultam considera-lo o mais perfeito dentre os conjuntos de Choro, fechando um ciclo que
vem desde as memórias do “chorão” Alexandre Gonçalves Pinto, atravessa a era dos então
denominados “regionais”, na também gloriosa era do rádio brasileiro e invade a modernidade,
contrariando expectativa sombria do próprio Jacob Bittencourt a respeito da continuidade do choro.
A palavra “conjunto” é certamente mais nova, uma vez que o termo “regional” é aquele que
viria a cunhar a formação estabilizada do “choro” na era do rádio: 2 violões, cavaquinho e pandeiro,
variando o instrumento solista. É assim que vamos encontrar na discografia, grupos como o Regional
de Benedito Lacerda, Regional de Claudionor Cruz, Rogério Guimarães e seu Regional. E assim
tantos mais. Era também com o termo “regional” que Radamés Gnattali se referia a essa formação.
Modernamente, músicos, imprensa e diletantes referem-se a “conjuntos de choro”, estando algo fora
de uso o termo “regional”.
O termo regional está intimamente ligado a choro; e não há mais muita discussão em torno.
Choro significa a formação instrumental, num primeiro momento, evoluindo para cada vez mais
corresponder a uma “forma de execução” como preferia o musicólogo e violonista Mozart de Araújo
e finalmente a um gênero musical aonde se confundem as terminologias. Francisco Guimarães, o
Vagalume, critico carnavalesco, ao escrever o delicioso Na Roda do Samba, assim se refere ao
choro:
“antigamente, lançado o samba, a roda se incumbia da sua propagação. Hoje mandam
fazer folhetos, se empenham com os cronistas de publica-lo, organisam «chôros» (sic) e
percorrem as batalhas, como fez o Eduardo Souto”.
Os “choros”, nesse caso, são os grupos de violão, cavaquinho e percussão, principalmente o
pandeiro. Simbolizam também o festejo e, claro, um repertório, capaz de animar as festas em casa de
família e tais. Continuando, dizia ele que o lugar do samba
“não era só na Penha (...). Era também onde houvesse um «Choro», um «arrastado», um «vira-viramexe-mexe», uma festa qualquer e principalmente na velha Cidade Nova, onde quase sempre se
realizava o baile na sala de visitas e um sambinha mole no quintal. Aí se encontravam as sumidades
do samba e os «azes» da batucada.”.
Tal livro editado em 1933 se não deixa dúvidas quanto à intrínseca relação entre o choro e o
samba urbano, que progredia, referenda a formação instrumental do conjunto de choro como a
orquestra típica do Brasil. Porque instalada a radiofonia no país, os “regionais” vão se constituir em
indispensáveis pilares da programação radiofônica; e isso se estende pelo menos até a primeira
metade dos anos 1980 quando ainda era possível ouvir o Regional de César Moreno na Rádio
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Metropolitana e, mesmo, o regional que a TV Globo mantinha no cast, para apresentações
ocasionais. Não custa lembrar que entre os seus maestros figuravam músicos como José Menezes,
Guio de Moraes, portanto gente do choro, sem falar em Radamés Gnattali.
O papel de “orquestra” é indubitável, porquanto cada rádio instalada (só no Rio de Janeiro,
em 1935, eram 12 estações) tinha o seu “regional”. Na época áurea da Rádio Nacional, com 3
orquestras, sendo uma sinfônica – liderada por Radamés Gnattali, Leo Perachi e Lirio Panicalli –, o
regional ocupava importante espaço, seja de maneira independente ou fazendo parte da mescla
instrumental. Se examinarmos a produção discográfica, veremos que a maior parte do
acompanhamento era creditada aos regionais ou eles se mesclavam à presença cada vez mais
ostensiva da orquestração da música popular brasileira. Por outro lado, conforme depoimento de
Arlindo Ferreira - o Arlindo Cachimbo, maravilhoso violonista, integrante do Regional de
Claudionor Cruz – o regional agilizava a programação diária, cumprindo o papel de acompanhador
principal do cast e também o de “tapar buracos” na programação.
Nos anos de convívio com Arlindo Ferreira no Regional de Abel Ferreira – que não usava
mais o termo, éramos simplesmente Abel Ferreira e seus Chorões – pude captar o entendimento que
o grande violonista tinha da organicidade musical do regional. O elemento fundamental, no
entendimento de Arlindo era a dupla de violões. Isso significava principalmente boa percepção, ou
seja, ter “bom ouvido” para rapidamente responder às necessidades da insipiente atividade
radiofônica, improvisar e, mais que tudo, a dupla de violões tinha que estar muito bem entrosada,
combinando “levadas”, acentuações, sincronizados ao ritmo geral, dar o máximo conforto para o
desempenho do solista instrumentista ou cantor.
As duplas marcaram profundamente a história particular de cada um daqueles regionais. É
assim que se destacam Carlinhos e Petit, no Regional do Rago – Antonio Rago diretor do Regional
da Rádio Tupy, 1942, S. Paulo. O próprio Rago formou com Armandinho no regional que este
dirigiu na Rádio Record na segunda metade dos anos 1930. No mesmo regional a dupla, em 1933,
fora Aimoré e Armandinho. No Regional de Dante Santoro pontificaram Carlos Lentine e Valzinho;
depois César Moreno e César Faria. No Regional de Claudionor Cruz, ao lado de Arlindo Ferreira
revezaram-se Bola-Sete, Freitas e Arlindo falava com saudades da dupla que formara naquele grupo
com Paulo. No regional de Benedito Lacerda dos primeiros momentos tinha-se Gorgulho (Jaci
Pereira) e Ney Orestes; com a saída de Gorgulho completou a dupla Carlos Lentine e, a partir de
1937 a dupla de violões estava formada por Dino e Meira. Cumpre notar que a partir de 1940 dá-se o
encontro, em discos e shows, de Benedito Lacerda com Pixinguinha. É o momento em que
Pixinguinha, lançando mão do aprendizado com seu mestre, o oficleidista Irineu de Almeida,
reincorpora no conjunto de Choro, o contraponto.
A baixaria, que vem da tradição das bandas e incorporara-se ao regional pelo violão, terá em
Pixinguinha um modelo a partir do qual Dino fixará o violão de sete cordas no conjunto de choros e
para o qual se tornará o maior representante, quase um símbolo do instrumento, enfim, aquele que
será o grande mestre das sete cordas.
Quando Benedito Lacerda retira-se da vida artística, Canhoto - Waldyro Frederico
Tramontano -, que era o cavaquinista do grupo, convidou Orlando Silveira, acordeon, Altamiro
Carrilho, flauta, Gilson, pandeiro, e forma em 1950 o Regional do Canhoto. É o momento em que
Horondino Silva, o Dino, tendo a forte e recente referência de Pixinguinha na “baixaria”, fixa o
violão de sete cordas no cenário profissional da música popular brasileira.
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O Época de Ouro
O conjunto Época de Ouro nasceu em 1966, num momento muito rico e curioso da música
brasileira e no qual conviviam estilos variadíssimos, propostas novas, a indústria cultural se
estabelecia definitivamente, reconfigurava-se enfim o panorama da música popular. No
entendimento de Jacob do Bandolim isso era o fim para o Choro. Não é de se ignorar que foi um
momento de extrema dificuldade para músicos como Dino, Abel Ferreira, Canhoto; mormente para
aqueles músicos que não tinham outro meio de sobrevivência. O que não era o caso de Jacob,
escrivão juramentado, funcionário público. Mas o pessoal do Choro, penou. O nome que deu ao
conjunto é sintomático.
No entendimento de Jacob o conjunto seria formado não para acompanhar cantores; não seria
apenas mais um regional. Deu a entender que queria um grupo para tocar choros. E assim convidou
Dino Sete Cordas, César Faria e Carlinhos Leite (violões), Jonas (cavaquinho), Gilberto (pandeiro) e
Jorginho (percussão). A dieta era rigorosa: muito ensaio e disciplina. Ao coletivismo tão caro ao
Choro agregou-se a tarefa de arranjos elaborados, transcrições que eram filtradas em longos e, às
vezes, conflituosos ensaios. Nesse ponto, cabe esclarecer ao leitor como funciona ortodoxamente
uma formação típica de choro, como era aquela do Época de Ouro.
Em tese o solista tem a prerrogativa de liderar a melodia principal de ponta a ponta; ao
cavaquinho e pandeiro cabe, em essência, a marcação rítmica. O violão de sete cordas assume para si
a obrigação de, oportunamente, ser a contrapartida melódica para o solo realizado pelo instrumento
solista. Em suma, a baixaria, que é aquela frase expressiva alocada no registro grave do instrumento,
contrastiva ao que executa o instrumento solista. Ao violão de seis cordas cabe o “centro” e atuar em
movimentos de terceiras e/ou sextas paralelas em determinadas frases do violão de sete cordas. Isto
para uma formação com apenas 2 violões. No Época de Ouro havia um terceiro violão, ao que
muitos aficcionados do Choro chamam de “gemedeira”, por atuar no registro médio do instrumento e
ser responsável por certos acentos ou frases oportunas que se destacam subitamente do contexto
harmônico, pontuando-o. Carlinhos Leite se notabilizou por esses procedimentos. Essas
características, repito, já estavam prontas. Não foram inventadas no Época. Mas foram levadas à
perfeição com muito rigor de ensaio e a iniciativa de pensar, para cada música, um arranjo. Isto,
positivamente destaca, para além da competência de cada um dos integrantes, o Época de Ouro dos
conjuntos que o antecederam.
Recomendo ouvir detidamente os três discos que Jacob do Bandolim gravou com essa
formação: Chorinhos e Chorões, Primas e Bordões e Vibrações. De forma por assim dizer, didática,
chamo a atenção para o último deles. Por exemplo, na faixa Pérolas (Jacob do Bandolim), pode-se
ouvir com detalhes o trabalho dos violões nas incursões em terceiras e as “gemidas” do terceiro
violão. Em Lamentos, de Pixinguinha, a fina elaboração do arranjo trazendo inclusive o cavaquinho
para as hostes solistas. No Ingênuo, também de Pixinguinha, aliás o choro preferido do grande
compositor do Carinhoso, o elaborado diálogo entre a melodia principal e o violão de sete cordas.
Na música que dá título ao disco, Vibrações(Jacob do Bandolim), além da exemplar
contrastividade entre a melodia e a baixaria do sete cordas, destaca-se o movimento em “campanela”,
realizada pelo violão de seis cordas na repetição da segunda parte, a qual se dá logo após a chamada
em pizzicato feita pelo Dino (um tipo de toque em que as cordas enquanto são tangidas pela dedeira
são simultaneamente abafadas pela polpa da mão direita; o efeito é a duração mínima de cada nota
tangida). Jacob, nesta faixa, chamava a atenção para a palhetada segura de Jonas e que se confirma
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na introdução do Receita de Samba, composição de Jacob. No Brejeiro, de Ernesto Nazareth, dá-se o
trabalho da transcrição para o bandolim, do original para piano solo, uma tarefa que Jacob repetiu
inúmeras vezes ao longo da sua carreira; inclusive nesse Vibrações, pois, além daquela, transcreveu
ainda as valsas Fidalga, Vésper e o tango brasileiro Floreaux.
Destaco no Fidalga, mais uma vez, a “gemedeira” na parte em Lá menor e o trabalho dos
violões de seis e sete cordas. As faixas Murmurando (Fon-Fon) e Assim Mesmo (Luiz Americano)
são ao meu ver uma homenagem musical de Jacob ao Dino, e que ele já fizera no texto da contracapa
deste LP de 1969. Nessas podemos escutar uma execução exemplar do violão de sete cordas numa
relação de contrastes com a melodia principal que valoriza sobremaneira as composições; todo o
material que Dino desenvolve está a serviço da composição, dando um efeito de propulsão à música,
mantendo-a em movimento, dando continuidade às seções. Tudo isso sem se sobrepor, sem obnubilar
a melodia principal, sem inflacionar o ambiente sonoro, somando ganho estético. Tudo com fino
gosto na escolha das frases e no jeito de toca-las. Certamente tudo refinado pelo trabalho do arranjo e
ensaios exaustivos.
Este Vibrações é um disco sem afetações. Fruto da maturidade das proposições. Reitero o
trabalho “contido” do Cavaquinho, cortesmente seguido pelo Pandeiro e percussão sem firulas de
Gilson e Jorginho, respectivamente. Positivamente, a grande maioria dos pandeiristas de hoje, muitos
deles instrumentistas de técnica e destreza admiráveis, não tocaria com Jacob, dada a exigência de
sobriedade, da exigência de saber a relação funcional entre as partes do conjunto e preserva-la. É um
disco em que se aprende música com ele. Estudantes, músicos, diletantes.
Este disco é tido como o momento exemplar de uma concepção estética burilada na/pela
tradição. Depois dele, malgrado o desaparecimento de Jacob, o choro jamais seria o mesmo.
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