art 09 - tesouras sensíveis
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art 09 - tesouras sensíveis
Maria Letícia Rauen Vianna Tesouras Sensíveis - a arte da apropriação e intervenção em imagens fotográficas impressas Maria Letícia Rauen Vianna (Doutora) Curso de Artes Visuais - Computação / Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens Universidade Tuiuti do Paraná Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 177 178 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... Resumo Escrito em 1988, este texto foi recentemente (2000) tomado como ponto de partida para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa, cujo objetivo é aprofundar experiências didáticas realizadas em forma de estudos exploratórios desde 1987 e que sofreram descontinuidade. Ele esclarece como, utilizando-se do recorte (apropriação) e da colagem (manipulação e intervenção em imagens), alunos de cursos de Arte, sob a orientação da autora, exploraram tesouras e colas para realizar tanto leitura como representação do mundo contemporâneo. O trabalho com a imagem recortada e colada chegou a configurar-se como um processo autônomo de ensino do recorte e da colagem. Baseado na apropriação e intervenção em imagens fotográficas pré-existentes, geradas e divulgadas pela mídia impressa e em imagens que reproduzem obras de arte consagradas pela História da Arte (igualmente fotografadas e impressas), o trabalho didático possibilitou ainda experiências práticas de interação entre estes dois tipos de imagem. Palavras-chave: imagens fotográficas impressas, apropriação e intervenção em imagens, criação de mensagens visuais. Resumé Écrit en 1988, ce texte, récemment (2000), a été pris comme départ pour le développement d’un projet de recherche dont l’objectif est d’approfondir des éxpériences didactiques réalisées comme des études exploratoires depuis 1987 et qu’ont eut discontinuité. Il essaye d’éclaircir comment, en utilisant de la découpure (appropriation) et du collage (manipulation et intervention en images), les élèves, sous l’orientation de l’auteur, ont exploré des ciseaux et colles pour réaliser tant la lecture comme la répresentation du monde contemporain. Le travail avec l’image découpé et collé s’est configuré comme un processus autonome de l’enseigment du collage. Basé sur l’appropriation et l’intervention en images photographiques imprimés engendrés et difusés par la presse et en images qui reproduissent des oeuvres d’art consacrés par l’Histoire de l’Art (également photographiés et imprimés), ce travail a permit réaliser encore des éxpériences pratiques d’interaction entre ces deux types d’images. Mots-clés: images photographiques imprimés, appropriation et intervention en images, création de messages visueles. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna O impresso não morreu, nem seguramente morrerá jamais, mas contudo, nossa cultura, dominada pela linguagem, tem se deslocado perceptivelmente para o icônico. .............................................................................................. Há poucas dúvidas que o estilo de vida contemporâneo esteja profundamente influenciado pelas transformações que nele introduziu a fotografia. A maior parte do que sabemos e comprendemos, identificamos e desejamos, vem determinado pelo predomínio da fotografia sobre a psique humana. E este fenômeno vai se intensificar ainda mais no futuro. Dondis Introdução É ilusório supor que os alunos que chegam aos Cursos Superiores de Arte trazem conhecimentos, aptidões ou habilidades artísticas básicas devidamente desenvolvidas. Seria assim se realmente tivéssemos, no Brasil, um bom ensino de arte em todos os níveis de escolaridade e eficientes mecanismos de avaliação nas provas de habilidades específicas dos vestibulares. Sabemos que tal não ocorre. É certo que todos os alunos já tiveram alguma experiência com a técnica do recorte e colagem, mas é também quase certo que tais experiências deixaram muito a desejar, seja porque não foram bem orientadas, seja porque foram interrompidas prematuramente, sem atingir um estágio de desenvolvimento Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 satisfatório. Partindo dessas premissas e acreditando na importância da atividade, iniciei o que considero uma fascinante aventura pelo mundo das imagens fotográficas impressas nas revistas coloridas de consumo cotidiano. Embora a colagem em si possa ser uma atividade que abrange tudo o que pode ser colado, prescindindo, portanto, em muitos casos, do recorte, o trabalho que desenvolvi não pode separar colagem de recorte. Ao restringir o material físico de trabalho às imagens recortadas de revista, coladas sobre papel e ainda, limitar a escolha a imagens fotográficas, tinha por objetivo ampliar a abrangência da atividade, por mais paradoxal que isso pudesse parecer. Essas ‘restrições’ que imprimi às atividades não só permitiram uma maior exploração da técnica em si, mas, ao mesmo tempo, a transcenderam, possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem. Aquilo que poderia ser um mero exercício visual, motor e composicional, se converteu em forte recurso expressivo, alternativo inclusive à dificuldade de desenhar, pois como disse Matisse a respeito de suas colagens: “a tesoura pode adquirir mais sensibilidade que o lápis”. (In: Dicionário da Pintura Moderna, 1987:251) O processo, pela forma como foi conduzido, fa- 179 180 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... voreceu um rico diálogo entre o aluno e as imagens. “Expandir nossa capacidade de ver significa expandir nossa capacidade de compreender uma mensagem visual e o que é mais importante, de elaborar uma mensagem visual”. Dondis A colagem: No ato de colar, deve-se buscar uma total aderência da forma recortada ao suporte, de modo a dar impressão de que a figura está ali ‘quase que impressa’. Insisto na necessidade de uma espécie de ‘virtuosismo técnico’ para que se possam obter resultados visualmente satisfatórios. Da técnica* O recorte: Da linguagem Para iniciar o trabalho, embora imprescindíveis, não basta dispor de tesoura de bom corte e uma meia dúzia de revistas de qualidade gráfica razoável. É preciso mais: o aluno terá que treinar olhos e mãos, aguçar sua percepção visual, apurar seus critérios de escolha e apropriarse das imagens pelo recorte. Nesta etapa, forte concentração e grande dose de paciência lhe são exigidas para percorrer o contorno das imagens com a tesoura, redesenhando a forma em todas as suas sutilezas. Tratase, neste primeiro momento, de retirar a figura de seu contexto original, separando-a do fundo e das demais figuras. Toda atenção é pouca no sentido de não produzir nas figuras deformações indesejáveis, provocadas por um mau recorte. Entretanto, sempre haverá casos especiais em que desrespeitar um contorno pode significar enriquecimentos visuais ao trabalho. A composição: A técnica da colagem pela sua peculiaridade de ‘formas soltas que se cola onde se quer’, presta-se, muito eficazmente, para exercícios composicionais. As possibilidades de se mover as figuras no espaço, até encontrar-lhes o local mais adequado, favorecem o estudo da composição. Mas, não é suficiente conhecer e dominar suas principais regras: equilíbrio, harmonia, contraste, simetria e assimetria, espaço cheio e espaço vazio, dinâmica, ritmo e movimento, entre outros. Nesse momento, já não se pode mais ignorar o conteúdo das imagens. Conforme sua disposição na superfície, tais conteúdos podem ser ora reforçados, ora enfraquecidos ou mesmo anulados e, muitas vezes, ser inteiramente subvertidos em seus significados primeiros. Verifica-se na prática, a estreita relação entre com- * As imagens que ilustram este texto, pertencem a três categorias: 1 - trabalhos de alunos com imagens de revista (tema livre); 2 - trabalhos de alunos a partir de obras de arte ou com imagens recortadas de obras de arte; 3 - reproduções de obras de alguns artistas para referência. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna posição e mensagem, entre composição e sentido. As propostas: Tudo quanto tem sido proposto aos alunos se inspirou, de uma forma ou de outra, no trabalho de grandes mestres da arte, de diferentes épocas: os cubistas Braque e Picasso, considerados inventores da colagem, especialmente em seus trabalhos em papiers collés e em suas esculturas feitas de objets trouvés; o fauvista Matisse que, no final da vida, praticou a colagem com maestria, restituindo aos papéis colados o valor de linguagem; os dadaístas alemães e russos, especialmente nas fotomontagens de Hanna Hoch e Rodtchenko; o dadaísta Marcel Duchamp, pelos seus objetos readymade; o pintor Arcimboldo que, já no século XV, pintou cabeças humanas com insólitas outras imagens, e especialmente Max Ernest, pela cunhagem da palavra collage e pelas suas concepções sobre esta técnica artística, entre outros. A partir do conhecimento dos conceitos e princípios que orientaram o surgimento de suas obras, seja por terem efetivamente praticado a técnica da colagem, seja por terem realizado outras formas de trabalho que, por analogia, me sugeriram estabelecer paralelos com a colagem, consegui conceber e nomear as propostas de colagem que desenvolvi, pela afinidade que encontrei entre seus trabalhos e a forma como tenho Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 orientado as atividades. Essa foi também uma forma de render homenagem aos artistas inspiradores das propostas, além de deles obter uma espécie de ‘respaldo histórico e artístico’. Ao trabalhar à maneira de tais mestres, mais e melhor os conhecemos e compreendemos, ainda que através de outros propósitos, com outros meios e em um outro tempo. Apresento a seguir a descrição de algumas propostas desenvolvidas. Associações singulares Nessa primeira modalidade tem-se a possibilidade de associar duas ou mais imagens heteróclitas e de tentar estabelecer algum tipo de relação entre elas, produzindo novos sentidos. O insólito e a desproporcionalidade entre as figuras são fatores de maior interesse nas novas relações estabelecidas. 181 182 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... Associação entre obras Assim como se podem associar imagens oriundas de diferentes contextos das revistas, num segundo momento, também é possível selecionar imagens retiradas de duas ou mais reproduções de obras de arte e estabelecer novas associações entre elas, aproximando obras de diferentes estilos e épocas ou diferentes personagens. A partir de Retrato de Suzanne Fourment de Rubens e Retrato do doutor Gachet de Van Gogh A partir de A Musa de Picasso e o bebê de Madonna del Garofano de Da Vinci A partir de Yvette Guilbert que saúda o público de Toulouse Lautrec e O Viandante Noturno de Münch Atualização de obras de arte Outra abordagem é a A partir de A Última Ceia de Da Vinci. da atualização de obras de arte do passado, com imagens contemporâneas. Ela consiste em tentar reproduzir a cena representada na pintura com imagens tomadas de revistas, substituindo, entre outras de Mulher lavando a perna coisas, personagens e Adepartir Degas. objetos por imagens atuais, buscando também recriar a atmosfera do quadro. Imagens trouvées Esta proposta foi assim denominada por analogia com as esculturas feitas de objets trouvés, cujo exemplo marcante é a famosa cabeça de touro realizada por Picasso, construída com um selim e um guidom de bicicleta, respectiva- Cabeça de Touro de Picasso. (obra de referência) Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna plexo: reproduzir uma obra de arte somente com imagens redefinidas. Enquanto que, na outra proposta, o tema para as redefinições era livre, aqui o tema é a própria obra de arte. Para obter um bom resultado, é fundamental que a obra escolhida seja bem conhecida e que se busque uma grande similaridade entre o trabalho realizado e a obra de referência. mente a cabeça e os chifres de um touro. Como fez Picasso, a proposta de colagem procura, através de imagens encontradas, compor outras imagens, com novos significados. Nessa perspectiva, a associação se dá em geral pela forma da imagem recortada, enquanto seus conteúdos são redefinidos. São imagens que, coladas, devem deixar de ser aquilo que são e passar a ser outra coisa. Aliás, não é demais lembrar que, ao se escolher a colagem de revista, não se trabalha com a imagem que se quer, mas com a imagem que se encontra (em francês trouvée). Redefinição de obras de arte Num desdobramento da proposta anterior, deparamo-nos com um desafio um tanto mais comTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 A partir de La Goulue de Toulouse-Lautrec A partir de Mulher com Gravata de Modigliani Papiers collés Nesta abordagem, as páginas das revistas são olhadas apenas como uma espécie de mostruário de cores e 183 184 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... texturas, não devendo nos importar as figuras ali representadas. Neste caso, não é permitida a apropriação de nenhuma imagem nem o aproveitamento de nenhum contorno. Deve-se desenhar, diretamente com a tesoura, as próprias imagens, escolhendo em que campo cromático e em qual textura se quer recortá-las, mais ou menos como faziam Braque e Picasso e depois Matisse. Ao desenhar uma forma em um fragmento de papel texturado, este papel fica relacionado à forma criada, mas sempre nos remete ao objeto anterior1 , porque como afirmou Picasso: (..) “se um pedaço de jornal pode converterse numa garrafa, isso também nos dá algo a pensar a respeito de jornais e garrafas. Este objeto deslocado ingressou para um universo para o qual não foi feito e onde, em certa medida, conserva a sua estranheza. E foi sobre esta estranheza que quisemos que as pessoas pensassem (..)”.2 Na proposta dos papiers collés, igualmente são sugeridas duas possibilidades: primeiro as colagens são 1 2 feitas com tema livre, como os exemplos à esquerda, quando se pratica a técnica; depois, com um pouco mais de complexidade, toma-se por tema uma obra de arte que deve ser reproduzida na modalidade dos papiers collés (exemplos abaixo e à direita). A partir de Eu e a Aldeia de Chagall A partir de Retrato de Paulo vestido de Arlequim de Picasso A partir de Mulher com gravata de Modigliani Picasso foi o descobridor da colagem e Braque o inventor dos papiers collés. Enquanto Braque trabalhava de modo lógico e racional, tentando com a colagem imitar cor e textura das coisas, Picasso era mais imaginativo e audacioso. Preferia trabalhar de modo paradoxal, convertendo uma substância em outra, extraindo significados inesperados. Não refletindo nem imitando o mundo real, mas recriando-o de modo distinto e independente. Nessa atividade, incentivo os alunos a agirem mais como Picasso do que como Braque. Afirmação feita em conversa a Françoise Gilot, autora do livro Life with Picasso, Londres, 1965, p. 70, citada no livro: Conceitos da Arte Moderna de Nikos Stangos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, p.47. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna Uma variação desta proposta - seja de tema livre ou tema sugerido por uma obra de arte - é substituir a tesoura pelas próprias mãos, rasgando as formas com os dedos. A irregularidade dos contornos e os ‘branquinhos’ neles A partir de Retrato com a Linha Verde de Matisse surgidos conferem às composições um interessante aspecto visual. Imagens ready-made Assim como Duchamp se apropriava de objetos já prontos de uso cotidiano e, para conferir-lhes o estatuto de obra de arte, lhes agregava ou subtraía algum detalhe, esta proposta solicita a apropriação de uma página inteira, destacada do corpo da revista. Ela é, portanto, uma imagem readymade, pronta de antemão Porta-Garrafas de Duchamp ou...quase! Porque esta pá- (obra de referência) gina já pronta, deverá servir de suporte para novas colagens. Neste caso, em vez do suporte neutro, a ‘foTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 lha em branco’, temos agora um suporte pleno de imagens, que não pode deixar de ser considerado. Para atender as suas inesperadas sugestões de significados, novas imagens lhes devem ser agregadas e/ou algum detalhe subtraído. Muitas das intervenções ocorrem inclusive para encobrir letreiros ou elementos indesejáveis àquilo que se quer expressar. Tal modalidade demanda um novo recurso técnico: a incisão, que permite um melhor encaixe das intervenções que se deseja fazer. Intervenções Duchampianas Esta proposta, na verdade, é um desdobramento da anterior. Tal qual o gesto extremamente ousado e 185 186 L.H.O.O.Q. de Duchamp (obra de referência) Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... irreverente de Duchamp ao colocar bigodes em uma reprodução do retrato da Mona Lisa, proponho que os alunos intervenham com imagens de revista em reproduções de obras de arte conhecidas e famosas. Com a mesma sem-cerimônia de Duchamp, mas, de fato, sem causar o mesmo escândalo, fazem intervenções um tanto menos perversas em sua intenção: A partir de A vida de Picasso ou porque não são os pri- A partir de Nú sentado de Modigliani A partir de O Nascimento de Vênus (detalhe) de Botticelli meiros a “atacar” obras de arte, ou porque, nestes tempos pós-modernos, tais atitudes são bem aceitas, para não dizer, estimuladas. Creio no entanto que, no nosso caso, essas intervenções sejam de natureza mais lúdica e jocosa, produzindo, via de A partir de Retrato do descoregra, uma atualização das nhecido deBotticelli obras de arte escolhidas, pela freqüente agregação de elementos do nosso tempo. Um ‘non-sense bem humorado’ é conseguido, seja pelo choque entre épocas muito distintas, seja pelo insólito das situações criadas. As possibilidades de interação entre imagens de revistas e imagens que reproduzem obras de arte se A partir de Helène Fourment multiplicam nessas interven- com o filho de Rubens ções duchampianas: podese tanto ter a obra como suporte e fazer interferências com imagens de revista (exemplos à esquerda), como ter como suporte uma página de revista e fazer interfeTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna rências com fragmentos de obra. Teríamos, assim, uma espécie de ‘intervenção duchampiana às avessas’, como se vê nos dois trabalhos na direita da página anterior; ou ainda, fazer interferências em obras de arte com fragmentos de outras obras de arte (exemplos abaixo): A partir de Noite estrelada de Van Gogh e Dânae de Klimt A partir de Rosa e azul de Renoir e elementos do Quarto do artista de Van Gogh A partir de Os comedores de batata de Van Gogh e Maçãs e Laranjas de Cézanne Retratos Arcimboldianos Arcimboldo, pintor do Quatrocentos italiano, construiu suas admiráveis cabeças em pintura (à direita desta página). Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Aos alunos proponho que construam seus autoretratos “à maneira” de Arcimboldo, substituindo as figuras pintadas por imagens recortadas. Assim, de uma lista de objetos heteróclitos, cada aluno deve escolher uma classe de objetos para compor seu auto-retrato. Em geral, o objeto escolhido pode ser encontrado nas revistas, em diferentes cores, tamanhos, formas, posições e pontos de vista. O aluno deverá procurá-los, recortá-los e colecioná-los. Vertumno de Arcimboldo (obra Em seguida, essas imagens de referência) deverão ser coladas, próximas umas das outras, para configurar os retratos. É preciso notar que as imagens escolhidas - nos exemplos apresentados (próxima página): auto-retratos construídos com bijouterias, edifícios ou sapatos - já trazem em si um sentido, mas esse sentido é O Bibliotecário de Arcimboldo desviado para outro. Com (obra de referência) 187 188 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... outra, puxa a outra, puxa a outra... Da metodologia imagens familiares se constrói outra imagem familiar: o próprio rosto. Com o muito conhecido, obtém-se um efeito quase que fantástico. O interessante é que nossos olhos não se desprendem dos sentidos primeiros que produziram tal efeito, ao mesmo tempo em que captam o novo sentido. Há como que uma dupla percepção ou uma percepção simultânea de sentidos. Demais propostas O conjunto das propostas não se encerra aqui. Aliás, parece que, como nas histórias, uma proposta puxa a Face à quase total desinformação e à grande inabilidade verificadas nos recém-chegados alunos, prefiro ‘gastar’ algumas aulas com ensinamentos de ordem prática, ou seja, ‘como recortar e como colar’. Esse ‘tempo perdido’ inicialmente, poderá converter-se em ‘tempo ganho’ mais adiante. De início, coloco para os alunos certas regras básicas, deixando no entanto, amplo espaço para as exceções. As transgressões às regras são desejáveis, desde que executadas de forma intencional e não sejam fruto de alguma desatenção ou inabilidade. Ao longo do processo, o aluno é estimulado a orientar seu olhar para as imagens, em diferentes direções e, a cada nova proposta, deverá operar mudanças nos níveis de sua percepção. Aos poucos, o trabalho vai crescendo em dificuldades técnicas e em complexidade. A aprendizagem é cumulativa e o exercício continuado da técnica favorece um aprimoramento das habilidades e da sensibilidade bem como a busca de uma linguagem. Algumas modalidades básicas são suficientes para percorrer um espectro bastante diversificado de abordagens. Envolver-se com tais atividades proporciona ao aluno a possibilidade de promover novos desdoTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna bramentos para elas, funcionando assim, como elemento desencadeador de ricos processos de criação e expressão. Em todas as fases dos experimentos, os trabalhos produzidos pelos alunos podem e devem ser analisados para se verificar, no concreto, a estreita relação entre o fazer e o pensar. Paralelamente a todo esse “adestramento”, um profundo contato com o mundo das imagens vai se processando. Os alunos vão se tornando mais observadores. Além de prestar maior atenção às próprias revistas e às reproduções de obras de arte, começam a realmente enxergar as imagens que os cercam: outdoors, cartazes, panfletos, encartes, imagens de televisão, de cinema, nos objetos pessoais, no cotidiano. Descobrem detalhes, sutilezas, peculiaridades. Percebem melhor as formas, cores, texturas e sentidos. Observam os arranjos das imagens nas propagandas e nas obras de arte. Ou seja: ao tentar ler o mundo das imagens, chegam a ler as imagens do mundo. E assim, tomam uma maior consciência de si e de seu tempo. Para concluir faço minhas as palavras do artista alemão Peter Sorge: “Quero que as pessoas não consumam meramente a oferta ótica, jogada a sua frente, mas que fiquem perplexas com as combinações estranhas (o que não é exigir demais!).” (In: Catálogo: O princípio colagem, 1989:116) Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Das perspectivas do trabalho Toda a abordagem prática já descrita passou a suscitar incontáveis questões teóricas acerca: da fotografia enquanto registro e forma de expressão; da origem e desenvolvimento histórico da técnica do recorte e da colagem; da colagem na história da arte moderna e contemporânea; do uso de imagens fotográficas pela publicidade e, especialmente, acerca dos sentidos que uma mensagem visual pode produzir, entre outras. Esta pesquisa, que se desenvolveu empiricamente em forma de estudos exploratórios desde 1987, sofreu descontinuidade. A sua retomada, agora, se faz pertinente por ter sido verificada a afinidade que possui com a linha de pesquisa “Mediações Simbólicas em Práticas Comunicacionais” do Curso de Mestrado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná, onde sou professora e pesquisadora. Pretende-se assim, aprofundar o estudo já iniciado, tentando esclarecer as questões já levantadas (e proceder ao levantamento de outras). Neste reinício, constatou-se que o trabalho foi concebido na perspectiva da Collage em contraposição à Colagem, conforme diferenciação entre ambos os conceitos apresentada por Sergio Lima em seu livro Collage: sobre a reutilização dos resíduos do registro fotográfico em nova superfície: 189 190 Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e... Collage é o termo inicialmente empregado por Max Ernest, em 1918, para indicar um processo de linguagem que se utiliza de imagens já existentes e, em geral, já impressas.(..) podemos dizer que colagem é um termo genérico e serve para designar todo e qualquer trabalho que resulte de material colado num plano. Isto é, colagem é uma operação de material, geralmente compreendida na expressão técnica mista. Assim, sua ênfase recai no tratamento do material e não em uma linguagem. (1984:22) Desse modo, concordamos com as palavras desse mesmo autor: “não é a cola - reunião de coisas coladas- (..) que faz a collage, mas é o encontro de imagens que nos dá a collage (..)” e mais: “a collage é uma linguagem pessoal, basicamente dialógica. Seu âmbito é o sensível da expressão dinâmica, o da visão ativa.”(1984:19) Além do mais, pretende-se ampliar o universo da pesquisa desenvolvida até agora, examinando também as especificidades que a imagem passou a ter, ao ser enormemente apropriada e manipulada nos e pelos meios eletrônicos disponíveis na atualidade. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001 Maria Letícia Rauen Vianna Referências bibliográficas BARTHES, R. (1990).O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. BISBORT, A. (1997). The aberrant art of Barry Kite. Inglaterra: Pomegranate. CATÁLOGO. (1984). Colagens: Hannah Höch. (1889-1978). Alemanha: IFA. CHIPP, H. B. (1999). Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes. DONDIS, D. A. (1976). La sintaxis de la imagen. Barcelona: Gustavo Gilli. ENCICLOPÉDIA. (1966). O mundo da arte. Rio de Janeiro: José Olympio Editora. GOETHE INSTITUT. (1989). O princípio colagem - Catálogo de Exposição. Rio de Janeiro. LIMA, S. C. (1984). 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