art 09 - tesouras sensíveis

Transcrição

art 09 - tesouras sensíveis
Maria Letícia Rauen Vianna
Tesouras Sensíveis - a arte da
apropriação e intervenção em imagens
fotográficas impressas
Maria Letícia Rauen Vianna (Doutora)
Curso de Artes Visuais - Computação / Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens Universidade Tuiuti do Paraná
Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001
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Tesouras Sensíveis - a ar te da apropriação e...
Resumo
Escrito em 1988, este texto foi recentemente (2000) tomado como ponto de partida para o desenvolvimento
de um projeto de pesquisa, cujo objetivo é aprofundar experiências didáticas realizadas em forma de estudos
exploratórios desde 1987 e que sofreram descontinuidade. Ele esclarece como, utilizando-se do recorte (apropriação) e da colagem (manipulação e intervenção em imagens), alunos de cursos de Arte, sob a orientação da
autora, exploraram tesouras e colas para realizar tanto leitura como representação do mundo contemporâneo.
O trabalho com a imagem recortada e colada chegou a configurar-se como um processo autônomo de ensino
do recorte e da colagem. Baseado na apropriação e intervenção em imagens fotográficas pré-existentes, geradas e divulgadas pela mídia impressa e em imagens que reproduzem obras de arte consagradas pela História
da Arte (igualmente fotografadas e impressas), o trabalho didático possibilitou ainda experiências práticas de
interação entre estes dois tipos de imagem.
Palavras-chave: imagens fotográficas impressas, apropriação e intervenção em imagens, criação de mensagens visuais.
Resumé
Écrit en 1988, ce texte, récemment (2000), a été pris comme départ pour le développement d’un projet de
recherche dont l’objectif est d’approfondir des éxpériences didactiques réalisées comme des études exploratoires
depuis 1987 et qu’ont eut discontinuité. Il essaye d’éclaircir comment, en utilisant de la découpure (appropriation)
et du collage (manipulation et intervention en images), les élèves, sous l’orientation de l’auteur, ont exploré des
ciseaux et colles pour réaliser tant la lecture comme la répresentation du monde contemporain. Le travail avec
l’image découpé et collé s’est configuré comme un processus autonome de l’enseigment du collage. Basé sur
l’appropriation et l’intervention en images photographiques imprimés engendrés et difusés par la presse et en
images qui reproduissent des oeuvres d’art consacrés par l’Histoire de l’Art (également photographiés et imprimés),
ce travail a permit réaliser encore des éxpériences pratiques d’interaction entre ces deux types d’images.
Mots-clés: images photographiques imprimés, appropriation et intervention en images, création de messages
visueles.
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Maria Letícia Rauen Vianna
O impresso não morreu, nem seguramente morrerá jamais,
mas contudo, nossa cultura, dominada pela linguagem, tem
se deslocado perceptivelmente para o icônico.
..............................................................................................
Há poucas dúvidas que o estilo de vida contemporâneo esteja
profundamente influenciado pelas transformações que nele
introduziu a fotografia. A maior parte do que sabemos e
comprendemos, identificamos e desejamos, vem determinado
pelo predomínio da fotografia sobre a psique humana. E
este fenômeno vai se intensificar ainda mais no futuro.
Dondis
Introdução
É ilusório supor que os alunos que chegam aos Cursos Superiores de Arte trazem conhecimentos, aptidões ou habilidades artísticas básicas devidamente
desenvolvidas. Seria assim se realmente tivéssemos,
no Brasil, um bom ensino de arte em todos os níveis
de escolaridade e eficientes mecanismos de avaliação
nas provas de habilidades específicas dos vestibulares. Sabemos que tal não ocorre.
É certo que todos os alunos já tiveram alguma
experiência com a técnica do recorte e colagem, mas
é também quase certo que tais experiências deixaram
muito a desejar, seja porque não foram bem orientadas, seja porque foram interrompidas prematuramente, sem atingir um estágio de desenvolvimento
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satisfatório.
Partindo dessas premissas e acreditando na importância da atividade, iniciei o que considero uma
fascinante aventura pelo mundo das imagens fotográficas impressas nas revistas coloridas de consumo
cotidiano. Embora a colagem em si possa ser uma
atividade que abrange tudo o que pode ser colado,
prescindindo, portanto, em muitos casos, do recorte, o trabalho que desenvolvi não pode separar
colagem de recorte. Ao restringir o material físico de
trabalho às imagens recortadas de revista, coladas
sobre papel e ainda, limitar a escolha a imagens fotográficas, tinha por objetivo ampliar a abrangência da
atividade, por mais paradoxal que isso pudesse parecer.
Essas ‘restrições’ que imprimi às atividades não
só permitiram uma maior exploração da técnica em
si, mas, ao mesmo tempo, a transcenderam, possibilitando o desenvolvimento de uma linguagem. Aquilo que poderia ser um mero exercício visual, motor
e composicional, se converteu em forte recurso expressivo, alternativo inclusive à dificuldade de desenhar, pois como disse Matisse a respeito de suas
colagens: “a tesoura pode adquirir mais sensibilidade
que o lápis”. (In: Dicionário da Pintura Moderna,
1987:251)
O processo, pela forma como foi conduzido, fa-
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voreceu um rico diálogo entre o aluno e as imagens.
“Expandir nossa capacidade de ver significa expandir nossa
capacidade de compreender uma mensagem visual e o que é
mais importante, de elaborar uma mensagem visual”.
Dondis
A colagem:
No ato de colar, deve-se buscar uma total aderência
da forma recortada ao suporte, de modo a dar impressão de que a figura está ali ‘quase que impressa’.
Insisto na necessidade de uma espécie de ‘virtuosismo
técnico’ para que se possam obter resultados visualmente satisfatórios.
Da técnica*
O recorte:
Da linguagem
Para iniciar o trabalho, embora imprescindíveis, não basta
dispor de tesoura de bom corte e uma meia dúzia de
revistas de qualidade gráfica razoável. É preciso mais: o
aluno terá que treinar olhos e mãos, aguçar sua percepção visual, apurar seus critérios de escolha e apropriarse das imagens pelo recorte. Nesta etapa, forte
concentração e grande dose de paciência lhe são exigidas
para percorrer o contorno das imagens com a tesoura,
redesenhando a forma em todas as suas sutilezas. Tratase, neste primeiro momento, de retirar a figura de seu
contexto original, separando-a do fundo e das demais
figuras. Toda atenção é pouca no sentido de não produzir nas figuras deformações indesejáveis, provocadas
por um mau recorte. Entretanto, sempre haverá casos
especiais em que desrespeitar um contorno pode significar enriquecimentos visuais ao trabalho.
A composição:
A técnica da colagem pela sua peculiaridade de ‘formas soltas que se cola onde se quer’, presta-se, muito
eficazmente, para exercícios composicionais. As possibilidades de se mover as figuras no espaço, até encontrar-lhes o local mais adequado, favorecem o
estudo da composição. Mas, não é suficiente conhecer
e dominar suas principais regras: equilíbrio, harmonia,
contraste, simetria e assimetria, espaço cheio e espaço
vazio, dinâmica, ritmo e movimento, entre outros.
Nesse momento, já não se pode mais ignorar o conteúdo das imagens. Conforme sua disposição na superfície, tais conteúdos podem ser ora reforçados, ora
enfraquecidos ou mesmo anulados e, muitas vezes, ser
inteiramente subvertidos em seus significados primeiros. Verifica-se na prática, a estreita relação entre com-
* As imagens que ilustram este texto, pertencem a três categorias: 1 - trabalhos de alunos com imagens de revista (tema livre); 2 - trabalhos de
alunos a partir de obras de arte ou com imagens recortadas de obras de arte; 3 - reproduções de obras de alguns artistas para referência.
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posição e mensagem, entre composição e sentido.
As propostas:
Tudo quanto tem sido proposto aos alunos se inspirou, de uma forma ou de outra, no trabalho de grandes mestres da arte, de diferentes épocas: os cubistas
Braque e Picasso, considerados inventores da colagem,
especialmente em seus trabalhos em papiers collés e em
suas esculturas feitas de objets trouvés; o fauvista Matisse
que, no final da vida, praticou a colagem com maestria,
restituindo aos papéis colados o valor de linguagem;
os dadaístas alemães e russos, especialmente nas
fotomontagens de Hanna Hoch e Rodtchenko; o
dadaísta Marcel Duchamp, pelos seus objetos readymade; o pintor Arcimboldo que, já no século XV, pintou cabeças humanas com insólitas outras imagens, e
especialmente Max Ernest, pela cunhagem da palavra
collage e pelas suas concepções sobre esta técnica artística, entre outros.
A partir do conhecimento dos conceitos e princípios que orientaram o surgimento de suas obras, seja
por terem efetivamente praticado a técnica da colagem,
seja por terem realizado outras formas de trabalho
que, por analogia, me sugeriram estabelecer paralelos
com a colagem, consegui conceber e nomear as propostas de colagem que desenvolvi, pela afinidade que
encontrei entre seus trabalhos e a forma como tenho
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orientado as atividades. Essa foi também uma forma
de render homenagem aos artistas inspiradores das
propostas, além de deles obter uma espécie de ‘respaldo histórico e artístico’. Ao trabalhar à maneira de
tais mestres, mais e melhor os conhecemos e compreendemos, ainda que através de outros propósitos, com
outros meios e em um outro tempo.
Apresento a seguir a descrição de algumas propostas desenvolvidas.
Associações singulares
Nessa primeira modalidade tem-se a possibilidade de associar duas ou mais imagens heteróclitas
e de tentar estabelecer algum tipo de relação entre
elas, produzindo novos sentidos. O insólito e a
desproporcionalidade entre as figuras são fatores
de maior interesse nas
novas relações estabelecidas.
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Associação entre obras
Assim como se podem associar imagens oriundas de
diferentes contextos das revistas, num segundo momento, também é possível selecionar imagens retiradas de duas ou mais reproduções de obras de arte e
estabelecer novas associações entre elas, aproximando
obras de diferentes estilos e épocas ou diferentes personagens.
A partir de Retrato de Suzanne
Fourment de Rubens e Retrato do
doutor Gachet de Van Gogh
A partir de A Musa de Picasso e o bebê
de Madonna del Garofano de Da
Vinci
A partir de Yvette Guilbert
que saúda o público de
Toulouse Lautrec e O
Viandante Noturno de
Münch
Atualização de obras
de arte
Outra abordagem é a
A partir de A Última Ceia de Da Vinci.
da atualização de obras
de arte do passado,
com imagens contemporâneas. Ela consiste
em tentar reproduzir a
cena representada na
pintura com imagens tomadas de revistas, substituindo, entre outras
de Mulher lavando a perna
coisas, personagens e Adepartir
Degas.
objetos por imagens atuais, buscando também recriar a atmosfera do quadro.
Imagens trouvées
Esta proposta foi assim
denominada por analogia com as esculturas
feitas de objets trouvés,
cujo exemplo marcante
é a famosa cabeça de
touro realizada por
Picasso, construída com
um selim e um guidom
de bicicleta, respectiva-
Cabeça de Touro de Picasso. (obra
de referência)
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plexo: reproduzir uma obra de arte somente com
imagens redefinidas. Enquanto que, na outra proposta, o tema para as redefinições era livre, aqui o tema é
a própria obra de arte. Para obter um bom resultado,
é fundamental que a obra escolhida seja bem conhecida e que se busque uma grande similaridade entre o
trabalho realizado e a obra de referência.
mente a cabeça e os
chifres de um touro.
Como fez Picasso,
a proposta de colagem procura, através de imagens
encontradas, compor outras imagens, com novos significados. Nessa perspectiva, a associação se dá em
geral pela forma da imagem recortada, enquanto seus
conteúdos são redefinidos. São imagens que, coladas,
devem deixar de ser aquilo que são e passar a ser outra coisa.
Aliás, não é demais lembrar que, ao se escolher a
colagem de revista, não se trabalha com a imagem
que se quer, mas com a imagem que se encontra (em
francês trouvée).
Redefinição de obras de arte
Num desdobramento da proposta anterior,
deparamo-nos com um desafio um tanto mais comTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001
A partir de La Goulue de
Toulouse-Lautrec
A partir de Mulher com
Gravata de Modigliani
Papiers collés
Nesta abordagem, as páginas das revistas são olhadas
apenas como uma espécie de mostruário de cores e
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texturas, não devendo nos importar as figuras ali representadas. Neste caso, não é permitida a apropriação de nenhuma imagem
nem o aproveitamento de nenhum contorno. Deve-se desenhar, diretamente com a tesoura, as próprias imagens, escolhendo em
que campo cromático e em qual textura se
quer recortá-las, mais ou menos como faziam Braque e Picasso e depois Matisse. Ao
desenhar uma forma em um fragmento de
papel texturado, este papel fica relacionado à
forma criada, mas sempre nos remete ao objeto anterior1 , porque como afirmou Picasso:
(..) “se um pedaço de jornal pode converterse numa garrafa, isso também nos dá algo a
pensar a respeito de jornais e garrafas. Este
objeto deslocado ingressou para um universo para o qual não foi feito e onde, em certa
medida, conserva a sua estranheza. E foi sobre esta estranheza que quisemos que as pessoas pensassem (..)”.2
Na proposta dos papiers collés, igualmente são
sugeridas duas possibilidades: primeiro as colagens são
1
2
feitas com tema livre, como
os exemplos à esquerda,
quando se pratica a técnica;
depois, com um pouco mais
de complexidade, toma-se
por tema uma obra de arte
que deve ser reproduzida na
modalidade dos papiers collés
(exemplos abaixo e à direita).
A partir de Eu e a Aldeia de
Chagall
A partir de Retrato de Paulo vestido de Arlequim de Picasso
A partir de Mulher com gravata de Modigliani
Picasso foi o descobridor da colagem e Braque o inventor dos papiers collés. Enquanto Braque trabalhava de modo lógico e racional,
tentando com a colagem imitar cor e textura das coisas, Picasso era mais imaginativo e audacioso. Preferia trabalhar de modo paradoxal,
convertendo uma substância em outra, extraindo significados inesperados. Não refletindo nem imitando o mundo real, mas recriando-o de
modo distinto e independente. Nessa atividade, incentivo os alunos a agirem mais como Picasso do que como Braque.
Afirmação feita em conversa a Françoise Gilot, autora do livro Life with Picasso, Londres, 1965, p. 70, citada no livro: Conceitos da Arte
Moderna de Nikos Stangos, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997, p.47.
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Uma variação desta proposta - seja de tema livre ou
tema sugerido por uma obra
de arte - é substituir a tesoura
pelas próprias mãos, rasgando as formas com os dedos.
A irregularidade dos contornos e os ‘branquinhos’ neles
A partir de Retrato com a Linha Verde de Matisse
surgidos conferem às composições um interessante aspecto visual.
Imagens ready-made
Assim como Duchamp se
apropriava de objetos já
prontos de uso cotidiano e,
para conferir-lhes o estatuto de obra de arte, lhes agregava ou subtraía algum
detalhe, esta proposta solicita a apropriação de uma
página inteira, destacada do
corpo da revista. Ela é, portanto, uma imagem readymade, pronta de antemão Porta-Garrafas de Duchamp
ou...quase! Porque esta pá- (obra de referência)
gina já pronta, deverá servir de suporte para novas
colagens. Neste caso, em vez do suporte neutro, a ‘foTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001
lha em branco’, temos
agora um suporte pleno
de imagens, que não pode
deixar de ser considerado. Para atender as suas inesperadas sugestões de significados, novas imagens lhes devem ser agregadas e/ou algum detalhe subtraído.
Muitas das intervenções ocorrem inclusive para encobrir letreiros ou elementos indesejáveis àquilo que se
quer expressar. Tal modalidade demanda um novo
recurso técnico: a incisão, que permite um melhor encaixe das intervenções que se deseja fazer.
Intervenções Duchampianas
Esta proposta, na verdade, é um desdobramento da
anterior. Tal qual o gesto extremamente ousado e
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L.H.O.O.Q. de
Duchamp (obra de
referência)
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irreverente de Duchamp ao colocar bigodes em uma
reprodução do retrato
da Mona Lisa, proponho que os alunos intervenham com imagens
de revista em reproduções de obras de arte
conhecidas e famosas.
Com a mesma sem-cerimônia de Duchamp, mas,
de fato, sem causar o mesmo escândalo, fazem intervenções um tanto menos
perversas em sua intenção: A partir de A vida de Picasso
ou porque não são os pri-
A partir de Nú sentado de
Modigliani
A partir de O Nascimento de
Vênus (detalhe) de Botticelli
meiros a “atacar” obras de
arte, ou porque, nestes tempos pós-modernos, tais atitudes são bem aceitas, para
não dizer, estimuladas. Creio
no entanto que, no nosso
caso, essas intervenções sejam de natureza mais lúdica
e jocosa, produzindo, via de
A partir de Retrato do descoregra, uma atualização das nhecido deBotticelli
obras de arte escolhidas, pela
freqüente agregação de elementos do nosso tempo.
Um ‘non-sense bem
humorado’ é conseguido,
seja pelo choque entre épocas muito distintas, seja pelo
insólito das situações criadas.
As possibilidades de
interação entre imagens de
revistas e imagens que reproduzem obras de arte se
A partir de Helène Fourment
multiplicam nessas interven- com o filho de Rubens
ções duchampianas: podese tanto ter a obra como suporte e fazer interferências
com imagens de revista (exemplos à esquerda), como
ter como suporte uma página de revista e fazer interfeTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001
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rências com fragmentos de obra. Teríamos, assim, uma
espécie de ‘intervenção duchampiana às avessas’, como
se vê nos dois trabalhos na direita da página anterior; ou
ainda, fazer interferências em obras de arte com fragmentos de outras obras de arte (exemplos abaixo):
A partir de Noite estrelada de Van
Gogh e Dânae de Klimt
A partir de Rosa e azul de
Renoir e elementos do
Quarto do artista de Van
Gogh
A partir de Os comedores de batata
de Van Gogh e Maçãs e Laranjas de
Cézanne
Retratos Arcimboldianos
Arcimboldo, pintor do Quatrocentos italiano, construiu suas admiráveis cabeças em pintura (à direita
desta página).
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Aos alunos proponho que construam seus autoretratos “à maneira” de Arcimboldo, substituindo as
figuras pintadas por imagens recortadas. Assim, de
uma lista de objetos heteróclitos, cada aluno deve
escolher uma classe de objetos para compor seu
auto-retrato. Em geral, o
objeto escolhido pode ser
encontrado nas revistas,
em diferentes cores, tamanhos, formas, posições e
pontos de vista. O aluno
deverá
procurá-los,
recortá-los e colecioná-los. Vertumno de Arcimboldo (obra
Em seguida, essas imagens de referência)
deverão ser coladas, próximas umas das outras,
para configurar os retratos.
É preciso notar que as
imagens escolhidas - nos
exemplos apresentados
(próxima página): auto-retratos construídos com
bijouterias, edifícios ou sapatos - já trazem em si um
sentido, mas esse sentido é O Bibliotecário de Arcimboldo
desviado para outro. Com (obra de referência)
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outra, puxa a outra, puxa a outra...
Da metodologia
imagens familiares se
constrói outra imagem familiar: o próprio rosto.
Com o muito conhecido,
obtém-se um efeito quase
que fantástico. O interessante é que nossos olhos
não se desprendem dos
sentidos primeiros que produziram tal efeito, ao mesmo tempo em que captam o novo sentido. Há como
que uma dupla percepção ou uma percepção simultânea de sentidos.
Demais propostas
O conjunto das propostas não se encerra aqui. Aliás,
parece que, como nas histórias, uma proposta puxa a
Face à quase total desinformação e à grande inabilidade verificadas nos recém-chegados alunos, prefiro ‘gastar’ algumas aulas com ensinamentos de ordem prática,
ou seja, ‘como recortar e como colar’. Esse ‘tempo
perdido’ inicialmente, poderá converter-se em ‘tempo ganho’ mais adiante. De início, coloco para os alunos certas regras básicas, deixando no entanto, amplo
espaço para as exceções. As transgressões às regras
são desejáveis, desde que executadas de forma intencional e não sejam fruto de alguma desatenção ou inabilidade.
Ao longo do processo, o aluno é estimulado a orientar seu olhar para as imagens, em diferentes direções e, a cada nova proposta, deverá operar mudanças
nos níveis de sua percepção. Aos poucos, o trabalho
vai crescendo em dificuldades técnicas e em complexidade. A aprendizagem é cumulativa e o exercício
continuado da técnica favorece um aprimoramento
das habilidades e da sensibilidade bem como a busca
de uma linguagem.
Algumas modalidades básicas são suficientes para
percorrer um espectro bastante diversificado de abordagens. Envolver-se com tais atividades proporciona
ao aluno a possibilidade de promover novos desdoTuiuti: Ciência e Cultura, n. 24, FCSA 03, p. 177-192, Curitiba, nov. 2001
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bramentos para elas, funcionando assim, como elemento desencadeador de ricos processos de criação e
expressão. Em todas as fases dos experimentos, os
trabalhos produzidos pelos alunos podem e devem
ser analisados para se verificar, no concreto, a estreita
relação entre o fazer e o pensar.
Paralelamente a todo esse “adestramento”, um
profundo contato com o mundo das imagens vai se
processando. Os alunos vão se tornando mais observadores. Além de prestar maior atenção às próprias
revistas e às reproduções de obras de arte, começam
a realmente enxergar as imagens que os cercam: outdoors, cartazes, panfletos, encartes, imagens de televisão, de cinema, nos objetos pessoais, no cotidiano.
Descobrem detalhes, sutilezas, peculiaridades. Percebem melhor as formas, cores, texturas e sentidos.
Observam os arranjos das imagens nas propagandas
e nas obras de arte. Ou seja: ao tentar ler o mundo das
imagens, chegam a ler as imagens do mundo. E assim, tomam
uma maior consciência de si e de seu tempo.
Para concluir faço minhas as palavras do artista alemão Peter Sorge: “Quero que as pessoas não consumam meramente a oferta ótica, jogada a sua frente,
mas que fiquem perplexas com as combinações estranhas (o que não é exigir demais!).” (In: Catálogo: O
princípio colagem, 1989:116)
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Das perspectivas do trabalho
Toda a abordagem prática já descrita passou a suscitar
incontáveis questões teóricas acerca: da fotografia enquanto registro e forma de expressão; da origem e
desenvolvimento histórico da técnica do recorte e da
colagem; da colagem na história da arte moderna e
contemporânea; do uso de imagens fotográficas pela
publicidade e, especialmente, acerca dos sentidos que
uma mensagem visual pode produzir, entre outras.
Esta pesquisa, que se desenvolveu empiricamente
em forma de estudos exploratórios desde 1987, sofreu descontinuidade. A sua retomada, agora, se faz
pertinente por ter sido verificada a afinidade que possui com a linha de pesquisa “Mediações Simbólicas
em Práticas Comunicacionais” do Curso de Mestrado
em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti
do Paraná, onde sou professora e pesquisadora.
Pretende-se assim, aprofundar o estudo já iniciado, tentando esclarecer as questões já levantadas (e
proceder ao levantamento de outras). Neste reinício,
constatou-se que o trabalho foi concebido na perspectiva da Collage em contraposição à Colagem, conforme diferenciação entre ambos os conceitos
apresentada por Sergio Lima em seu livro Collage: sobre
a reutilização dos resíduos do registro fotográfico em nova superfície:
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Collage é o termo inicialmente empregado por Max Ernest,
em 1918, para indicar um processo de linguagem que se
utiliza de imagens já existentes e, em geral, já impressas.(..)
podemos dizer que colagem é um termo genérico e serve para
designar todo e qualquer trabalho que resulte de material
colado num plano. Isto é, colagem é uma operação de material, geralmente compreendida na expressão técnica mista. Assim, sua ênfase recai no tratamento do material e não em
uma linguagem. (1984:22)
Desse modo, concordamos com as palavras desse
mesmo autor: “não é a cola - reunião de coisas coladas- (..) que faz a collage, mas é o encontro de imagens
que nos dá a collage (..)” e mais: “a collage é uma linguagem pessoal, basicamente dialógica. Seu âmbito é o
sensível da expressão dinâmica, o da visão ativa.”(1984:19)
Além do mais, pretende-se ampliar o universo da
pesquisa desenvolvida até agora, examinando também
as especificidades que a imagem passou a ter, ao ser
enormemente apropriada e manipulada nos e pelos
meios eletrônicos disponíveis na atualidade.
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Referências bibliográficas
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