18.:Layout 1 - Criança Esperança

Transcrição

18.:Layout 1 - Criança Esperança
18.:Layout 1 10/4/10 7:47 PM Page 126
Central Única das Favelas (Cufa)
Rio de Janeiro, capital
Personagem
da vida real
A vida de Marcos Vinícius Galdino da Silva daria um filme – e ele tem
apenas 18 anos. A história do menino é fortemente marcada por
episódios tão violentos quanto dramáticos, que tiram o fôlego de quem
os ouve. Quando ele finaliza a primeira parte do relato, é quase um alívio
perceber que o “final feliz” é, na verdade, o começo: o garoto, que aos 14
anos virou soldado do Terceiro Comando, uma das facções do tráfico,
no Rio, conseguiu o feito de sair vivo e mudar de vida, e começa a
desenhar planos para o futuro. Hoje ele é aluno do curso de audiovisual
da Central Única das Favelas (Cufa) e, para se sustentar, trabalha lá
mesmo, como recepcionista e office boy.
“Sobrevivi a diversos ataques do Caveirão, que é o carro blindado
da Polícia Militar aqui do Rio, e passei por situações de trocas de tiro
de mais de uma hora, vendo tijolos se despedaçarem a poucos centímetros de mim, assim, bem perto do meu corpo. Não sei quantas
pessoas vi morrer, mas foi para mais de 50. Lembro que num único
dia (era até Dia das Mães) foram 12 moleques de uma vez só”, lembra
Galdininho, como é conhecido.
Marcos Vinícius está na Cufa há um ano e nove meses. Ganha
R$ 500,00 mensais. No tráfico, ganhava o mesmo valor. Só que por
semana. Aos 14 anos, além do salário de R$ 2 mil, foi seduzido por
promessas de ter poder no morro em que vivia e trabalhava, além de
muitas mulheres. Cedo percebeu que a vida é curta para aproveitar o
que vem do crime – para os soldados do tráfico, a morte sempre pode
estar na próxima viela ou surpreendê-lo no próximo beco.
Sozinho aos 14
18anos
A entrada de Marcos Vinícius no crime foi rápida – no ritmo de trailer
de filme de aventura. Foi agredido pelo padrasto bêbado e no dia
seguinte já não morava na mesma casa que a mãe e os cinco irmãos.
Apesar da coragem para enfrentar a vida sozinho, o herói dessa
aventura muito real era um garoto – tinha apenas 14 anos.
Marcos Vinícius
Galdino da Silva
18.:Layout 1 10/4/10 7:48 PM Page 127
18.:Layout 1 10/4/10 7:48 PM Page 128
Para se sustentar, Galdininho começou a trabalhar como ajudante
em uma barraca de comida na favela de Acari, zona norte do Rio
de Janeiro, onde nasceu e se criou. Recebia R$ 50,00 por semana, o
suficiente para bancar um quartinho na comunidade. No barraco,
havia apenas um colchão fino. O dinheiro não dava para mais nada.
Depois de alguns meses dando duro, o negócio começou a ir mal e
o garoto atrasou o aluguel. Antes de ser despejado, procurou um
conhecido que já havia sido recrutado pelo tráfico.
“Na primeira semana, trabalhei quatro dias e faturei R$ 350,00.
Eu era novo. Ficava todo bobo de segurar uma pistola e as meninas
apareciam”, narra. Franzino, Galdininho diz ter ganhado postura de
homem ao circular com uma pistola nove milímetros e duas granadas
M-16 na cintura. A pistola é largamente utilizada por exércitos do
mundo inteiro e conhecida por seu poder de transfixação – um
único tiro é capaz de perfurar o primeiro inimigo (ou obstáculo) e
ainda atingir o segundo. As granadas, por sua vez, espalham
estilhaços por um raio de 15 a 25 metros. “Eu levava cargas de crack
para vender diretamente aos viciados e, por isso, estava sempre
com muito dinheiro. E os policiais sabem que quem carrega ‘a bolsa’
está com o dinheiro”, diz.
Criada em Cidade de Deus, Rio de Janeiro, após, 11 anos
de existência, a Cufa está representada em 27 estados
brasileiros e em sete países. O que era um movimento
hip hop, virou a voz organizada dos jovens da periferia.
Galdininho estava sempre pronto para o combate. Mesmo
quando passava 24 horas acordado, em vigília. O “expediente
normal” ia das 19 horas às 7 da manhã. Não foram poucas as vezes
em que teve de “virar”, devido a incursões policiais ao longo do
dia – quando deveria estar dormindo.
Sentença de morte
Foi como soldado do Terceiro Comando, mas de “folga” – desarmado e sem “flagrante” (drogas) – que passou por uma das situações
que considera mais críticas. Abordado por policiais militares, foi
colocado sob a mira de três fuzis. Chegou a ouvir a ordem que soou
como sentença de morte: “Senta e abaixa a cabeça”. “Tive certeza
de que morreria”, relata Marcos Vinícius.
Foi salvo pela chegada de duas irmãs, uma cunhada e dois sobrinhos.
Elas tinham bíblias nas mãos e conseguiram convencer os policiais,
apesar da desconfiança, que impera entre moradores das favelas e
tiras, de que Galdininho não era traficante. Em outra ocasião, teve
de pular três muros em sequência. “Até hoje não sei como consegui”.
O episódio que fez Marcos Vinícius sair do tráfico foi uma perseguição policial da qual participaram ele e dois companheiros. Os
três fugiam na maior correria e, ao chegar ao final de uma viela,
viram que havia duas opções – esquerda e direita. Os dois companheiros decidiram à esquerda. Ele, sozinho, optou pela direita. Só
nosso personagem sobreviveu.
128
18.:Layout 1 10/4/10 7:48 PM Page 129
Garra
No dia seguinte, devolveu as armas, o rádio e as drogas que ainda carregava. Era seu pedido de demissão. “Não
sei o que fiz com todo o dinheiro que ganhei. Ganhava e gastava com a mesma facilidade”, diz Galdininho. Passou
dois dias escondido na casa da família, que o acolheu depois do afastamento durante o período de um ano em
que viveu como traficante. No terceiro dia, conseguiu o emprego na Cufa. “Minha vida recomeçou no meu primeiro
dia de trabalho”, reconhece.
Depois de concluir o curso de audiovisual, o rapaz pretende começar o de informática, a fim de ampliar as
possibilidades de trabalho. Ao sair da Cufa, à noite, o rapaz faz supletivo “para recuperar o tempo perdido”, como
ele mesmo diz. Está no 9º ano.
Marcos Vinícius é um garoto de garra – mostrou isso ao sair de casa ainda menino e agora, quando está
reinventando a vida. A Cufa tem como uma de suas marcas revelar e impulsionar talentos e, principalmente, dar
oportunidade a milhares de jovens com histórias tão dramáticas como a de Galdininho.
Recomeço
Em 11 anos de existência, o que era apenas um grupo de jovens que gostavam de hip hop, ligados pelo fato de
virem das periferias e dos morros, transformou-se em uma espécie de “multinacional” do bem. A Cufa, nascida
na Cidade de Deus, zona oeste do Rio de Janeiro, está representada em 27 estados brasileiros e em outros países
como Austrália, Alemanha, Argentina, Chile, Estados Unidos, Hungria e Uruguai. “O mais interessante é que não
há brasileiros em todos os países em que há Cufa”, diz a cantora Nega Gizza, que, entre outras funções, é portavoz da instituição.
A primeira aula do curso de audiovisual, em 2001, foi dada pelo diretor Cacá Diegues. “A favela não se enxergava
no cinema, nos vídeos, na TV, e também não participava do processo. Estávamos excluídos de tudo. Além de não
se ver, a favela não fazia”, lembra Gizza. “Agora, temos muita história de gente que conseguiu se encontrar com
esses cursos e hoje tem a própria produtora, ganha sua grana”, diz ela. “Quando atraímos os jovens para as oficinas
de teatro, break, graffiti, DJ, skate, artesanato, informática ou basquete de rua, usamos esse período que passamos
com eles para falar de inclusão social, levar valores, apontar novos rumos possíveis”, explica Gizza.
A principal amálgama do grupo, atualmente, é o basquete de rua. Em abril, um egresso das quadras
improvisadas sob viadutos das grandes cidades do país virou o primeiro representante brasileiro no lendário time
dos Harlem Globetrotters. Wilson de Melo, de 26 anos, assinou contrato de um ano com o time de exibicionistas
americano – mais um menino nascido no Brasil que merecia um filme sobre sua história.
O happy end que a Cufa oferece para muitos jovens é, na verdade, uma oportunidade de recomeçar. Não há
final mais feliz do que poder refazer a vida depois de um, de dois, ou sabe-se lá de quantos tropeços.
129
CONTEXTO
18.:Layout 1 10/4/10 7:48 PM Page 130
2003
Um em cada três jovens morre por
arma de fogo no país; Estatuto do
Desarmamento é sancionado
Especial Criança Esperança homenageia Roberto Marinho
e apoia Brasil com menos armas de fogo
Levantamento feito pela UNESCO e pelo
Ministério da Justiça intitulado “Mortes matadas por armas de fogo no Brasil de 1979 a
2003” revelou que um em cada três jovens que
morria no país fora ferido por bala. Segundo
as estatísticas, das 550 mil vítimas fatais por
armas de fogo no período, 205.722 – mais de
44% – tinham de 15 a 24 anos. O quadro era
tão grave que a sociedade se mobilizou para
pressionar o Congresso Nacional a aprovar o
Estatuto do Desarmamento – a campanha
Brasil sem Armas estimulava o cidadão a entregar voluntariamente suas armas em postos
de coleta.
Graças à iniciativa, entre 2003 e 2004,
houve uma redução de 8,2% no número de
mortes causadas por arma de fogo no Brasil –
o equivalente a mais três mil vidas poupadas.
Os dados são da pesquisa “Impacto da campanha do desarmamento no índice nacional
de mortalidade por arma de fogo”, do Ministério da Saúde. Em 22 de dezembro de 2003, o
presidente da República sancionou o Estatuto
do Desarmamento, restringindo a circulação
de armas em todo o território nacional.
Além da violência letal, durante o ano de
2003, a população brasileira, majoritariamente
concentrada nas regiões sul e sudeste do Brasil, foi apresentada à dura realidade de meninos e meninas do semiárido nordestino. Este
também foi um ano em que a desigualdade
social figurou em relatórios e pesquisas que
ocuparam farto lugar na mídia. Ficou evidente
qual era o perfil dos brasileiros nascidos nas
classes mais altas e como eram os brasileiros
nascidos em condições vulneráveis.
O estudo “Crianças e adolescentes no
semiárido brasileiro” (UNICEF, 2003) mostrou que, em 95% das cidades do semiárido –
uma extensa região que corta nove estados
do Nordeste, a parte setentrional de Minas
Gerais e o norte do Espírito Santo –, a mortalidade infantil era superior à média nacional. Mais de 390 mil adolescentes (10,15%)
eram analfabetos e os que concluíam o ensino
fundamental levavam cerca de 11 anos para
fazê-lo. Cerca de 75% de crianças e adolescentes viviam em famílias cuja renda per capita não chegava a meio salário mínimo, e
quase a metade delas não tinha acesso a rede
geral de água, poço ou nascente.
De acordo com o relatório “Situação da
infância e adolescência no Brasil” (UNICEF,
2003), as crianças que viviam entre os 20%
mais pobres da população iam menos à escola do que as pertencentes às famílias mais
ricas: entre 12 e 17 anos, 20% das mais pobres
não estudavam, contra 4% das mais ricas.
ao menos 11 anos de estudo, por sua vez, apenas 3% estavam no mercado.
Na televisão, artistas consagrados participaram de campanha do Ministério da Educação contra a evasão escolar, que chegava
a 10% ao ano. No mesmo ano, foi inaugurado em Olinda, Pernambuco, no bairro
de Rio Doce, o quarto Espaço Criança Esperança, com o intuito de beneficiar dois mil
jovens e crianças. Assim como os outros três
municípios (Rio de Janeiro, São Paulo e Belo
Horizonte), o Espaço de Olinda fica em um
bairro marcado pela exclusão social e tem
uma particularidade: em Rio Doce, havia alto
índice de crimes cometidos contra crianças.
Somados, os quatro Espaços Criança Esperança passaram a atender diretamente cerca
de seis mil crianças e adolescentes.
Homenagem
Raça
O mesmo estudo mostrava, ainda, que os
adolescentes negros tinham menos oportunidades de estudar do que os brancos, assim
como as pessoas com deficiência.
Outro fator que influenciava consideravelmente o bem-estar e o desenvolvimento de
crianças e adolescentes era a escolaridade de
suas mães – quanto menos tempo de estudo
as mulheres haviam tido, maiores as chances
de seus filhos serem pobres, não frequentarem
as aulas, ficarem doentes e não terem acesso
a saneamento básico. Muitos deles também
começavam precocemente a contribuir com o
orçamento doméstico: entre os filhos de mães
que não estudaram, 13% trabalhavam. Entre
as crianças e os jovens cujas mães tinham
130
No ano da morte de Roberto Marinho,
o jornalista foi homenageado no especial
Criança Esperança, realizado no Ginásio do
Ibirapuera. O aniversário de 450 anos da capital paulista, que seria comemorado no
ano seguinte, também foi lembrado, assim
como o nome de Gabriela Prado, adolescente
assassinada no metrô do Rio de Janeiro, que
virou símbolo de uma ampla campanha pela
paz. O programa abordou a desnutrição, a
fome e a violência que assombravam as crianças e os adolescentes brasileiros, e apoiou a
campanha pelo desarmamento.
De sua criação até o ano de 2003, o Criança
Esperança havia arrecadado mais de R$ 130
milhões, apoiando cerca de 4,8 mil projetos e
beneficiando mais de 2,7 milhões de crianças
e adolescentes brasileiros.
18.:Layout 1 10/4/10 7:48 PM Page 131
Foto: Divulgação
Nizan Guanaes
Presidente da Associação de Empreendedores
Amigos da UNESCO
“Antes de tudo, é preciso destacar a credibilidade do trabalho do Criança Esperança nesses 25 anos.
Só com muito profissionalismo e coragem se faz algo tão grandioso, capaz de mobilizar um país,
estimular a discussão sobre nossos jovens e crianças e, de fato, melhorar vidas. Para mim, é uma honra
fazer parte dessa história e poder ajudar a Rede Globo e a UNESCO, parceiras e grandes responsáveis
pelo sucesso do Criança Esperança. Acredito que projetos como esse, que têm entre seus pilares a
educação e o aprendizado, são a base para um Brasil melhor.”
131

Documentos relacionados