Untitled - Vitor Chaves de Souza

Transcrição

Untitled - Vitor Chaves de Souza
Galeria da Sombra
Alguns contos e outros mais,
escritos no labor acadêmico
e em jornadas matinais.
Vitor Chaves de Souza
Primeira edição
Copyright © Vitor Chaves de Souza, 2013
Todos os direitos reservados.
Esta obra é uma publicação digital gratuita disponível exclusivamente na
página pessoal do autor e da Garimpo Editorial.
Título
Galeria da Sombra
Capa e projeto gráfico
Vitor Chaves de Souza
Imagem da capa
New York City, 2010, por © Fatseyeva/Shutterstock.com
Preparação
Elaine Cristina Santos
Revisão ortográfica e gramatical
Antonio Colavite Filho
Dados internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira de Livro, SP, Brasil)
___________________________________
de Souza, Vitor Chaves
Galeria da Sombra / Vitor Chaves de Souza ;
São Paulo : Garimpo Editorial, 2013
ISBN 978-85-62877-11-7
1. Contos e crônicas brasileiras 2. Literatura Brasileira
11-05620
CDD-869.93
___________________________________
Índice para catálogo sistemático:
1. Contos e crônicas: Literatura brasileira 869.93
2. Literatura brasileira 869
Garimpo Editorial Rua Fausto, 357, Conj. 21
Moinho Velho – São Paulo – SP
CEP 04285-080
para Rafael Colavite
cuja amizade abriu-me
um mundo fantástico de palavras
PALAVRA DO AUTOR
Na antiguidade, a humanidade preservou mitos e
histórias elementares como princípios de vida. Do
grego ἀρχή, arché, significa algo que é tanto
“princípio” como “principal”. Eram os arquivos da
humanidade que, segundo a sabedoria,
configuravam as fontes primeiras e, por isso,
principais do conhecimento. Uma galeria guarda
arquivos, sobretudo as memórias primordiais de
uma civilização. Enquanto algumas reflexões
invocam a grande máquina do Estado, as práticas
ritualísticas ou os sistemas artísticos, na tentativa
de transformar tais exteriorizações em coisas
primeiras e principais, palavras e narrativas correm
pela sombra do cotidiano paulista buscando a
autenticidade do indivíduo, do si mesmo, por
detrás da sociedade. A saber, de um jovem
inquieto em sua estação, este livro é uma pequena
coleção de contos sobre as coisas que guardamos
dos encontros diários na tentativa de torná-los em
princípios e principais diante de dogmas, doutrinas
ou ideias políticas, religiosas e filosóficas.
VITOR CHAVE DE SOUZA
Paris, 2013
prefácio 7
[ Contos ]
Deus 10
O paraíso perdido 18
Tentação no deserto 41
Provérbio 42:41 44
Polar 54
Garçom de muitos 93
[ Poesias ]
I 98
II 99
III 101
IV 104
V 105
VI 108
VII 110
Prefácio
Eu devo ter dormido por horas
A névoa da madrugada continuava a aumentar
Rosto quente, mente vazia
Escorriam lágrimas frias do conhecimento último
Era o mundo pelo qual tínhamos sonhado
Durante as estações de força e glória
Que agora era triste e obsceno
E lá estávamos, tão orgulhosos
Em qual memória iríamos nos tornar?
Deveria ser bela, ideal e singular
Algo para ser contemplado, Senhor
Pois caímos no calor da noite
Tão irresponsáveis
Com os poderes da criação
Gerando uma princesa coroada em joias
Vestida com o mais belo vestido
Destemidamente invencível
Tão perfeita, tão irreal
Em uma galeria da sombra.
[ Contos ]
Deus
“Vamos lá, Timão, vamos lá!” dizia
Daniel, alto e eufórico, diante da televisão do
bar The Blue Pub.
“Obrigado por me convidar para assistir
ao jogo contigo”, disse Rafael.
“Sem problemas, Rafael, sua companhia
é um prazer”, disse Daniel. “O importante é o
Timão ganhar hoje!”
“Vamos lá, Timão!”, exclamou Rafael.
A garçonete entregou-lhes cardápios. Era
uma moça alta, rosto liso, atraente, cabelo curto
e corpo deslumbrante. Discreta, trajava um
avental azul com a logomarca do bar. A parede
atrás do balcão era decorada por bebidas caras e
raras. Havia um grande espelho completando a
10 decoração da parede e refletia o corpo da
garçonete, disputando audiência com a
televisão. Enquanto Daniel não tirava os olhos
da televisão, Rafael não os tirava da garçonete; e
disfarçava, lendo o cardápio.
Um senhor surgiu por detrás do balcão e
ajudou a garçonete em algumas tarefas.
“Vou ao Bicanca e já trago o restante do
bar”, disse o senhor à garçonete.
“Puxa vida, como as coisas aqui são
caras”, pensou Rafael ao dar espaço para o
senhor sair do balcão.
Entre os preços altos que se destacavam,
estava uma bebida chamada Deus.
“Daniel, veja só o preço desta bebida,
que caro!”
“É mesmo. Estarei satisfeito com uma ou
duas cervejas comuns”, comentou Daniel,
examinando rapidamente o cardápio para não
perder um único lance de seu time.
“Daniel, se o Timão estiver perdendo, a
gente pode fazer uma vaquinha e comprar
Deus; que tal?”
11 “Uhhh... quase gol do Timão!”, pulou
Daniel na cadeira, dando risada da piada do
amigo após o lance do time.
“Desejam pedir algo?”, perguntou a
garçonete limpando o balcão. Rafael encantarase com a garçonete. Ela, por sua vez, divisava
um rapaz elegante no outro lado do bar.
“Eu quero uma cerveja”, respondeu
Rafael fixando-lhe a vista profundamente.
“Eu também quero uma”, aproveitou
Daniel sem prestar atenção na moça.
Ela anotou os pedidos com rapidez.
Rafael coçou o queixo e alisou o cabelo.
“E ai, Daniel, conte-me sobre a
fotografia que tirastes com o goleiro do
Timão!”, perguntou Rafael espreitando a
garçonete levar os pedidos para a cozinha.
“Ah, sim! Eu fui ao shopping, numa loja
esportiva. O goleiro estava lá tirando fotos e
dando autógrafos.”
“E você conseguiu uma foto?”
12 “Sim, eu consegui tirar uma fotografia
com ele, mas junto com um monte de gente
que eu nunca vi na vida.”
A garçonete retornou e entregou-lhes as
cervejas. Daniel bebia, apreensivo com o
desempenho de seu time.
“Quem comprasse uma camiseta na loja
poderia tirar uma fotografia individualmente e
pegar autógrafo com o goleiro. Como eu não
comprei, e a maioria dos que estavam lá
também não, fizeram uma fotografia com todos
juntos ao final”, completou Daniel.
Rafael ouvia o amigo e girava o portacopos entre os dedos. Continuava a dividir sua
atenção entre o jogo de futebol e a garçonete.
“Legal este porta-copos inglês. Será que
podemos levar para casa?”
“Não
sei.
Podemos
consultar”,
respondeu Daniel.
“Moça!”, chamou Rafael quando a
garçonete passou próximo. “Eu posso levar este
porta-copos para casa como lembrança do dia
em que te conheci?”
13 “Pode”,
respondeu
a
garçonete,
balançando
os
ombros
e
sorrindo
displicentemente. Enxugou um copo e foi para
o outro lado do balcão.
“Rafael, uma cerveja apenas não justifica
esta cantada mal feita”, comentou Daniel
achando graça.
“Oh, não...”, interrompeu Rafael
olhando para a televisão.
“O que aconteceu?”
Daniel olhou assustado para o televisor.
“Gol do Palmeiras...”
“Não acredito! Como?”, indagou Daniel
com as mãos na cabeça.
Eles assistiram incrédulos ao replay do
lance. O barulho no bar dividia-se entre
lamentações e gozações.
“Ai, Timão, o empate já nos
classificaria!”, lamentou Daniel. Bebeu um
longo gole da cerveja. “Droga, quanto custa a
garrafa Deus?”
“R$ 159,00”, respondeu Rafael.
14 “Caramba, dá para comprar 50
refrigerantes com este preço.”
“Na igreja Deus é de graça, não?”
“Dependendo da igreja, pode até sair
mais caro.”
“Mas se funcionar...”
Eles fizeram silêncio atentos ao jogo.
Assistiam apreensivos aos instantes finais da
partida.
“Vamos comprá-la!”, exclamou Daniel,
impaciente e resoluto, sem tirar os olhos da tela.
Rafael pensou que fosse brincadeira, mas
Daniel falava sério.
“Moça, por favor, queremos uma garrafa
Deus”, solicitou Daniel.
“Ai, moço, infelizmente Deus está em
falta”, respondeu a garçonete com seu jeito todo
especial.
“Não acredito!”, exclamou Daniel.
“Nenhuma outra bebida no estilo?
Talvez chamada Alá?”, disse Rafael.
“Não”, sorriu a garçonete. Ela recebeu
um olhar demorado do rapaz pelo qual se
15 interessara no outro lado do bar. Discretamente,
ela foi arrumar a prateleira.
O senhor retornou com uma caixa para a
garçonete e esbarrou no ombro do Rafael ao
entrar no balcão. Ele se dirigiu para a cozinha e
a garçonete abriu a caixa, olhando de volta para
o rapaz, que sorriu para ela.
“Vamos lá, Timão, vamos lá!”, gritou
Daniel com o rosto pesado.
A garçonete descarregou os produtos das
caixas e arrumou algumas novas taças e bebidas
na prateleira.
“Gol?”
“GOL!”
“GOOOL!”
Daniel e Rafael pularam de alegria com a
surpresa de um gol do Corinthians no minuto
final do jogo. Abraçaram-se e comemoraram.
Os olhos de Daniel brilhavam. Ele saboreava a
cerveja com gosto e já solicitava outra.
“É isso aí, Timão!” “Eu nunca vou te
abandonar!” “Aqui tem um bando de loucos,
loucos por ti, Corinthians!”, cantava Daniel.
16 Rafael divertia-se com a alegria do
amigo. Gostaria de fazer sucesso com a
garçonete como o time de futebol fazia com
eles. Deslumbrava-se mais com ela do que com
o próprio jogo vitorioso. Observou-a trabalhar e
terminar de arrumar a prateleira. Perguntou-se
se haveria mulher mais linda que ela que
pudesse estar ao seu alcance algum dia.
A garçonete colocou a última garrafa no
canto da prateleira e foi para a cozinha. Rafael
permaneceu contemplativo com a imagem da
garçonete correndo pelo reflexo. Seu olhar
terminou de acompanhá-la, ao final do espelho,
e ele arregalou os olhos quando viu o último
item que ela colocara na prateleira. Era a garrafa
Deus.
17 O Paraíso Perdido
— Eva, mas que bagunça este quarto.
Arrume o lençol, também a mesa de trabalho e a
tela do seu computador. Olhe pra mim. Eu
disse: arrume o lençol, a mesa e o computador!
Eva acordava do cochilo e observou a
mãe falar.
Sentou-se e folheou uma revista de
pintura. Logo estava apreensiva com o celular na
mão, desde o momento que levantara pela
manhã. Mudava as páginas impacientemente e
pouco contemplava as pinturas expressionistas
de tendências pós-modernas. Borrifou e
encarou o celular. A tela sem novidades deixoua zangada. Continuou a folhear a revista. Após
18 algum tempo, jogou a revista para o lado e
deitou-se na cama. Encarava o teto e balançava
os pés impacientemente. Celular ainda na mão,
abraçava-se. Girou a cabeça em direção à janela
e viu o Sol se pôr. Outro dia se passava igual ao
anterior. Dormiu sem se cobrir e acordou no
dia seguinte com o Sol alto.
— Eva, menina, você dormiu com a
roupa de ontem? Que horror!
Ela acordou, olhos inchados. Sentou-se
na cama e as pálpebras pesavam. Viu a mãe abrir
a janela e a luz do Sol trincou quarto adentro.
Tapou os olhos e chiou algo.
— Deixa disto, menina — disse a mãe,
tirando as mãos da filha da frente do rosto dela.
— Vai, vai tomar um banho e se trocar. Dá-me
aqui seu celular que eu cuidarei dele pra ti
enquanto arrumo esta bagunça.
Eva tomou uma ducha quente e
demorada. Vestiu-se com roupas que a
deixavam parecida com uma boneca. Colocou
seu colar favorito e teve seu desjejum. Comia
devagar e sem apetite. Quando sua mãe visitava
19 a mesa e lhe olhava forte, ela disfarçava estar
disposta, coluna ereta e comia apresentando
satisfação. Terminou o café matinal e foi para o
quarto. Usava o computador, conversava com
amigos na internet e navegava por sites, alguns
de notícias, outros de relacionamentos, e poucos
de arte. Sua mãe deixara o celular ao lado do
computador. Eva o colocou em sua coxa. Estava
navegando por uma página de trailers
legendados e o celular tocou. Ela pulou com o
celular vibrando em sua perna, olhou o número
com ansiedade e identificou o telefonema.
Correu para a mãe, entregou-lhe o celular
ansiosa e a mãe o atendeu.
— Sim? Ah, sim, prazer Seu Antonio.
Sim, sou a mãe da Eva que conversou contigo
nesta semana. Lembra-se? Isso. Ela pode te
visitar? Quando? Hum. Hum-hum. Ok.
Anotado! Obrigada, Seu Antonio. Até logo —
disse a mãe, entregando o celular para a filha. —
É para você ir ao estúdio na sexta-feira pela
manhã!
20 — Aleluia! — exclamou a menina. —
Não acredito que vai dar certo.
— Sim, filha, claro que vai dar certo —
disse a mãe com as mãos no rosto da filha,
beijando-lhe a testa. — Veja, mas este é um
primeiro passo. Ele não falou ainda de
contratação ou efetivação. Ele quer te conhecer.
Você é uma pessoa muito especial, certamente
ele vai te contratar. Eu te levarei lá e te darei
todo o apoio que for necessário.
Os olhos da filha brilhavam ao
acompanhar as palavras da mãe. Ela correu para
o quarto e espalhou a novidade para seus amigos
através da internet. Ficou o dia todo online
conversando e contando as vantagens de
trabalhar com um famoso designer. Aquele
profissional era o melhor da cidade – e quiçá do
Estado. Os pais de Eva orgulhavam-se da filha e
desejavam que o talento dela fosse reconhecido
publicamente.
21 No dia seguinte, horário combinado,
Eva estava na porta do estúdio de Seu Antonio,
junto com a mãe.
— Deixe que eu te apresente, ok? —
disse a mãe ao tocar a campainha.
Elas aguardaram após o toque. Não
foram atendidas. Tocaram novamente. E
ficaram a aguardar. Tocaram mais uma vez e
esperaram como quem aguarda a eternidade. A
mãe resolveu telefonar para o Seu Antonio. Eva
estava nervosa e emburricada com o atraso.
— Aqui é a secretária do Seu Antonio.
Desculpe, infelizmente ele teve um imprevisto
e viajou a trabalho — disse uma voz do outro
lado do telefone.
A mãe guardou o celular, encarou a
fachada do prédio do escritório, indignada por
terem sido abandonadas.
— Vamos, Eva, este senhor não merece
sua disposição e talento!
Elas retornaram para casa e Eva escondia
sua tristeza, com medo de que a mãe a
repudiasse por chorar ou entristecer-se.
22 — Você sabia que você é muito bonita?
— Sim, claro. Desde pequena as pessoas
me paparicam e dizem que sou bonita —
respondeu Eva.
— Você nunca namorou? Não acredito
como uma mulher como você ficaria sozinha
este tempo todo.
— Pois é, só “fiquei” com um rapaz uma
única vez, mas nunca namorei. Não tenho
tempo para isso!
Frequentemente Eva conversava com os
amigos pela internet, através de chats, em seu
quarto, e trocava diversas mensagens de texto o
dia inteiro.
— Mas não sente falta de um namoro,
Eva?
— Não. Não vou ficar com qualquer
um. Quero alguém que me entenda, que me
acompanhe, que esteja comigo em meu trabalho
e nas minhas decisões.
23 — Você é uma moça segura de si e isso
encanta os homens. Certamente, quando achar
o homem certo, o relacionamento vai
proporcionar todas estas coisas.
— Depende. Não acredito muito em
amor assim. Eu quero viajar para a Europa no
futuro, trabalhar lá. Tem que ser alguém que
tenha capacidade de fazer isso comigo, que fale
assim: “Vamos para a Europa na semana que
vem?” Aí nós iremos. Senão, não rola.
— Você viaja muito, né?
— Sim, conheço a Europa toda. No ano
passado, eu passei o Natal em Madri, com meus
pais, e neste ano passaremos o meu aniversário
em Paris, também com meus pais.
— Nunca foi sozinha?
— Não. Eu gosto de viajar com meus
pais. Pra que eu iria sozinha? Quando vou com
eles, ficamos nos melhores hotéis, comemos
nos melhores lugares, fazemos os melhores
passeios.
— Não tem vontade de viajar sozinha?
Ou com um namorado?
24 — Não, como eu disse, apenas com
alguém que me acompanhe em minhas coisas!
— Você é uma moça bonita, não terá
problemas em encontrar alguém especial.
— Eu sei! As pessoas vivem falando que
sou bonita. Eu até me canso disso, sabia? Vivem
me elogiando, dizendo que eu pareço uma
boneca de tão bonita e perfeita que sou. Mas,
sabe, isto cansa! Só ouço elogios.
Houve silêncio.
— Bem, e o trabalho? Nada de novo?
Você é uma pessoa muito talentosa!
— Obrigada. Mas não fiz nada
ultimamente, nenhuma pintura, nenhuma arte,
nenhuma ideia. Ando atarefada com alguns
papéis artísticos e decorados para a família. Ah,
sim, e também fui a algumas festas chiques de
antigas amigas da faculdade.
— Há quanto tempo terminou a
faculdade?
— Cinco anos.
— Você tem muito talento para estar
parada, Eva, é um desperdício.
25 — Mas é melhor estar assim do que
trabalhar para qualquer um. Além disso, estou
aguardando um arquiteto renomadíssimo me
convidar para trabalhar com ele. Chama-se Ruy
van der Wuuw. Ele é europeu, é dos bons. Está
com escritório novo aqui na cidade e minha
amiga disse que ele contratará pessoas boas e
competentes para o escritório dele. Vou
conhecê-lo e trabalhar com ele.
— Há quanto tempo está aguardando o
chamado dele?
— Alguns meses.
— Por que você não pega uns trabalhos
por conta, freelancer?
— Eu até tento, mas não aparece nada.
Tenho que esperar meu pai arrumar o
escritório, aí eu poderei montar meu negócio
próprio. Até lá, quero trabalhar com os
melhores para aprender com os melhores.
— Espero que dê certo!
— Obrigada! Nesta semana eu devo
receber o convite do Ruy van der Wuuw. Agora
26 vou para a aula de ballet, depois para a aula de
Espanhol.
— Mãe, pai! Ruy van der Wuuw
respondeu à minha mensagem!
— Que maravilha, filha — comentou a
mãe após passar as últimas coordenadas para a
cozinheira e a faxineira. — E?
— Vou trabalhar com ele! — exclamou a
filha.
— Uau, ele já te confirmou? —
perguntou a mãe espantada.
— Bem, ele disse que quer me conhecer
— respondeu a filha.
O pai olhou para ela por cima do jornal e
sorriu.
— Melhor que isto, só se ele for
espanhol, como nossos ancestrais, de sangue e
fúria forte — comentou o pai enquanto
aguardava o almoço.
— Vamos acertar para que tudo dê certo
— comentou a mãe.
27 Eva deu um beijo na mãe. Abraçou o pai.
Olhou para a mãe que, com uma palavra muda,
mandou Eva ir para o quarto.
— Sim, Ruy van der Wuuw, Eva te
visitará em seu escritório agora mesmo, não
perderemos tempo, eu mesmo a levarei aí —
disse a mãe ao telefone diante de Eva, que
prestava atenção em cada detalhe da conversa.
— Obrigada, até daqui a pouco — concluiu a
mãe ao desligar o aparelho e correr para o carro
com Eva.
“Quanta coisa pra fazer!”, pensou Eva a
caminho do escritório. “Ontem, fiz um texto
para o blog da minha amiga comentando as
obras daquele escultor péssimo que se mete a
ser como os europeus. E hoje, vou visitar o
grande Ruy van der Wuuw. Tenho que
conseguir trabalhar com ele para crescer e estar
entre os melhores, aprender e ir pra Europa!”
O escritório de Ruy van der Wuuw não
era longe. A mãe e Eva foram bem recebidas por
28 uma secretária gentil. Aguardaram alguns
minutos e logo o artista estava conversando com
as duas.
— Então esta pequena se interessa por
artes, escultura, pintura e, principalmente,
design — comentou Ruy van der Wuuw.
— Sim — respondeu a mãe antes que a
filha se pronunciasse.
Eva, com olhos vivos e espertos, apenas
deixava a mãe fazer a conversa. Ruy van der
Wuuw dividia seu humor sorrindo para Eva e
cobrando arduamente seus funcionários. Eva
não sabia se ele estava sendo educado ou se
simpatizou com ela. Após algum tempo de
conversa, a mãe os deixou a sós. Equipou a filha
com dois celulares de baterias cheias e se dispôs
para qualquer favor que eles precisassem.
— Aqui nós trabalhamos em equipes e
grupos criativos — disse Ruy van der Wuuw,
caminhando com Eva pelo escritório. —
Fazemos intercâmbios entre as áreas do
conhecimento. Temos profissionais de todo o
ramo da estética. Isto forma nossa identidade.
29 Não gostamos dos conceitos arquitetônicos
comerciais vigentes até então. Como disse o
grande Niemeyer, de curvas é feito o universo
todo. Ao invés da reta, buscamos o encanto da
forma curva, como o buscou Picasso, a
tolerância do mundo atual, e a crítica de Le
Corbusier — disse Ruy van der Wuuw ao
apontar para modelos que construíra. — A
realização da arte e a aspiração dos saberes
dentro de um único design gráfico
arquitetônico — concluiu, gesticulando para cá
e para lá.
Eva o acompanhava, mas não conseguiu
seguir todas suas palavras, mesmo prestando-lhe
atenção no rosto, na expressão, nos gestos e na
fala do artista. Ele apresentou os setores de
trabalho, mostrou sua equipe, os projetos em
andamento, os conceitos básicos do escritório e,
finalmente, convidou-a para fazer um estágio
voluntário, sem remuneração, para ela
experimentar o ambiente e a proposta de
trabalho. Ela voltou para casa empolgada.
30 — Ei, Michele, olha só que estranha
aquela estagiária nova.
— O que é estranho nela?
— Eu a chamo e ela não dá bola pra
mim.
— Ah, deve ser porque ela é da alta elite,
toda orgulhosa com seu kit de desenho
importado.
— Será? Se é assim, por que está
trabalhando de graça?
— É rica, não precisa de dinheiro. Mas
acho que pode ser algum tipo de teste que o
Ruy van der Wuuw exigiu.
— Pode ser. Mas que é estranho, é. Vou
jogar uma bolinha de papel nela. Veja.
— Sua doida, ela nos encarou feio.
Fiquei com medo. Pequena, mas brava.
— Ela é doente. Ignora a gente e só olha
quando a provocamos. Vixi, agora ela está vindo
para cá!
Houve discussão.
31 — Vamos voltar ao trabalho? — disse
Ruy van der Wuuw.
Elas se assustaram e pularam na cadeira.
Pediram desculpas. Ruy van der Wuuw estava
atrás das duas funcionárias e viu tudo. Viu,
também, quando Eva levantou-se, foi até as
duas meninas e falou algumas bobeiras para elas.
Ruy van der Wuuw não chamou Eva para uma
conversa particular, mas as duas funcionárias
foram advertidas.
Eva trabalhou um dia com Ruy van der
Wuuw.
— O que? Ah! Ela está doente? Puxa, o
que ela tem? Hum! Espero que não seja grave.
Bem, quando ela ficar boa e quiser voltar a
trabalhar, as portas estarão abertas para ela
continuar o período de estágio voluntário. Só
que na semana que vem eu irei para a Holanda e
voltarei daqui dois meses. Sim, eu que agradeço
32 a atenção. Até mais! — disse Ruy van der Wuuw
para a mãe de Eva ao telefone.
Ruy van der Wuuw desejou que Eva
estivesse bem de saúde, mas torceu para que
esta doença fosse uma desculpa para não voltar a
trabalhar no escritório.
— Mãe, eu não iria levar desaforo para
casa! — disse Eva. — As pessoas naquele
escritório eram escrotas, sem educação, sem
estilo. É ruim conviver com gente assim, só
faziam trabalhos ruins, sem qualidade, sem
criatividade.
— Fez bem, minha filha. Eu não quero
que leve desaforo para casa nem que conviva
com profissionais ruins. Papai e eu te ensinamos
a ser uma pessoa forte e nobre. Seja dura com
aqueles que não te respeitam e busque trabalhar
com o melhor, sempre!
— Sim, mãe.
Eva evitou abaixar a cabeça. Devia estar
erguida sempre. Sua mãe a abraçou e lhe disse
33 que em breve alguém bom e importante iria
descobri-la. Eva acreditava em seus pais, tinha
todo apoio deles para o que fosse o melhor para
ela. Ela os obedeceu e aguardou. Por anos.
— Eva, eu tenho este amigo que é
fotógrafo de casamento; você pode começar a
pegar experiência profissional auxiliando-o.
— Ah, fotografia de casamento não é
meu interesse — respondeu.
— Eva, meu tio é escultor e pintor. Ele
tem um pequeno ateliê. Se você desejar
começar a praticar pintura e vendas com ele,
posso te apresentar a ele.
— Ah, eu queria algo maior, mais
importante — respondeu.
— Eva, minha prima montou um
escritório de arquitetura com alguns amigos há
dois anos. Estão começando, têm poucos
clientes, mas já se sustentam e estão ganhando
projeção no mercado. Gostaria que eu te
recomendasse para eles?
34 — Ah, estou aguardando alguém melhor
aparecer para eu trabalhar para esta pessoa —
respondeu.
— Eva, pelo amor de Deus, faça alguma
coisa! Lá em Minas Gerais dizem que peru
dentro do círculo se perde e a família, às vezes,
torna-se um círculo na vida da gente!
— Tenho que ir para a aula de pintura.
Tchau!
Mais alguns anos se passaram e Eva
começou a se questionar se sua vida iria para
frente ou não. Ela queria um novo computador,
mas não tinha dinheiro para comprá-lo por
conta própria. Sua mãe deu bastante vinho para
seu pai beber numa noite; assim, elas pediram
ao pai um computador novo e ele não negou o
pedido. Junto veio um novo celular com os
mais modernos recursos de mensagens de texto
– o que era conveniente para Eva se comunicar.
Estava conectada a qualquer momento.
Trabalho não era problema, pois seus pais
35 proviam tudo que ela desejasse. Eva vivia férias
intermináveis. Apenas seus sonhos, como
aquele de mudar-se para a Espanha e lá
trabalhar com algum artista famoso, eram
sempre adiados. Os anos que se passavam já a
incomodavam.
Pois
nenhum
homem
interessou-se por ela; nenhum grande artista a
aceitou como aprendiz; nenhum de seus
objetivos estava sendo realizados. Mas seus pais
nunca a abandonavam, estavam sempre ao lado
dela, protegendo-a e zelando pela integridade de
Eva. Até que um dia um designer gráfico foi
além de seu ofício.
— Desculpe-me, dona, mas tua filha
possui limitações das quais ela mesma não está
disposta a trabalhar. Este é o problema.
— Como assim, meu caro, explique-se!
Minha filha é uma pessoa muito especial,
estudou nas melhores escolas, pertence a uma
família dos modos mais nobres, e o senhor me
diz que ela possui limitações? E, ainda, quais são
36 as limitações que ela não está disposta a
trabalhar? — perguntou a mãe indignada.
— Ela é talentosa e leva jeito para arte.
Isso não posso negar. Mas ela possui algumas
barreiras...
— Minha filha é extremamente educada
e nobre, pronta para ser a melhor profissional
que o senhor verá no mercado! Ela não tem
barreiras!
— Ela poderá ser uma grande
profissional sim, mas apenas se ela trabalhar
seus limites. Ela não nos ouve!
— Não fales isto! Se não a deseja como
funcionária, basta nos dizer. Você tem algum
problema com Eva?
— Não tenho, mas o trabalho tem.
Como eu disse, o problema aqui é que Eva não
aceita seus limites e, por isso, atrasa as relações e
processos.
— Mas, ora, você fala como se ela fosse
uma pedra no caminho!
— Não, minha senhora. O trabalho dela
é bom, alguns até têm ciúmes dela. Mas,
37 convenhamos, você a trata como se ela não
tivesse nenhuma dificuldade.
— Minha filha é muito inteligente e
herdeira de uma nobre família. Ela é tão capaz
quanto outro qualquer. Ela sabe falar quatro
idiomas! Aposto que você mal fala o Português
— disse a mãe.
— Ao menos eu sei meus limites —
respondeu o designer.
— Mas que falta de educação tua!
— Falta de educação? Eu estou sendo
sincero e tentando ajudar. Eva tem problemas
para se relacionar e para ouvir o outro. Ela
precisa conhecer seus limites, aceitá-los e
trabalhar para ampliar estes limites — disse o
designer.
— Que horror! Que humilhação! Como
ousa dizer o que Eva deve ou não fazer? —
gritou a mãe com o designer. — Eva, vamos sair
deste lugar que fede orgulho!
— Orgulho? — indignou-se o designer
vendo as duas darem as costas e dirigirem-se
para a saída. — Em nenhum momento faltei
38 com educação — disse alto o designer. — Sou
compassivo com os objetivos profissionais de
Eva, mas ela não pode querer ser a primeira e a
pessoa mais importante da Terra!
Eva estava no seu quarto, sentada,
balançando as pernas. Sua mãe a proibira de
comunicar-se com qualquer amigo naqueles
dias sob o pretexto que o isolamento seria o
melhor para ela. Como sempre, não podia,
também, sair de casa sozinha. O monitor de seu
computador estava desligado e o celular sem
bateria. Ela raramente ficava ociosa, sem se
ocupar com o computador e a internet.
Rabiscou algumas linhas no papel; entre elas,
escreveu a palavra “voar” nos idiomas que
conhecia. Olhou para a janela e viu o Sol se pôr
novamente. Ela não sabia se queria sair dali, de
sua casa, de sua família. Desejos, meios nem
caminhos lhe estavam próximos. Enfim, outro
dia se passou e Eva mais uma vez não saiu de
39 casa para passear pelas ruas de seu saudoso
bairro Paraíso.
40 Tentação no deserto
Ele colocava café numa xícara quando eu
entrei na sala. As pessoas e o falatório não me
impediram de vê-lo, sozinho, olhos baixos,
rodando a colher no café e soprando o calor da
xícara. Aproximei-me e cumprimentei-o. Ele
olhou com aquela expressão desconfiada de
sempre. Sorriu ao me ver. Abraçou-me com um
braço, o outro segurava a xícara. Perguntei se ele
estava bem. Sua esposa mostrou-me algumas
irritações alérgicas no pescoço dele e sugeriu
que fosse ao hospital.
“Eu já fui muito em hospital nestes
últimos dias”, reclamou.
41 Bebia seu café aos pouquinhos e fitava o
nada. Virou e perguntou-me se poderíamos ter
um grupo para conversas e debates informais,
como aquelas discussões de rua em Curitiba,
onde cada um expunha seus pensamentos,
falavam o que pensavam e confrontavam-se em
respeito mútuo. Animei-me e logo concordei.
Ele era um senhor dedicado e disposto para
questões inquietantes.
“Sabe, desde que li pela primeira vez
aquela passagem na qual Jesus transformara
água em vinho, aquilo me deixou encafifado”,
disse-me.
Como não poderia ficar? O milagre
surpreendera a todos no relato bíblico. Difícil
seria discutir sobre a veracidade do milagre,
pensei racionalmente.
Ele prosseguiu: “Aí chegou um
camarada e disse lá na estória, ‘Então, vocês nos
enganaram e guardaram o melhor vinho,
dando-nos apenas o vinho vagabundo durante a
festa’; tenho a impressão de que esta
malandragem está na natureza humana”,
42 gesticulou meticulosamente as palavras junto
com as mãos, “o ser humano nunca muda”.
Percebi. O que lhe incomodava não era a
verossimilhança
do
milagre,
mas
o
comportamento humano.
“Veja estes nossos políticos; acabaram de
aumentar absurdamente os próprios salários e
criaram um novo imposto. E o que podemos
fazer em relação a isto? Pegar uma espada e sair
cortando cabeças? Ou sermos apenas
coniventes? Parece que é da natureza do ser
humano enganar os outros e só se preocupar
com as coisas próprias”.
Ele abaixou os olhos e tomou o restante
do café.
43 Provérbio 42:41
Rogério girou a chave na ignição do
carro e deu a partida. Limpou o suor da testa e
dirigiu pela cidade grande.
O Sol lhe turvava a visão. Estava cansado
e dirigia apressadamente. Avistou a moça de
vestido vermelho na esquina da avenida.
Diminuiu a velocidade, ela o identificou e se
postou próximo à sarjeta. Rogério estacionou.
“Rogério?” perguntou ela, segurando o
cachecol do vento.
“Sim, senhorita”, respondeu, abrindo a
porta do passageiro. “Entre no banco da frente
mesmo.”
44 Ela sentou e descansou uma sacola no
colo. Alisou o cabelo, tossiu e tirou do bolso um
pedaço de papel com endereço. Entregou-o para
Rogério, que leu e balançou a cabeça
positivamente. Rogério dirigiu.
“Veja só, que insatisfação, pouca
vergonha desta cidade”, disse Rogério,
apontando para crianças quase nuas pedindo
dinheiro no semáforo.
A mulher pouco considerou e virou o
rosto. Olhava para o outro lado da rua e viu
uma bonita parede de pedras com os números
4241 pichados. “Foi o número do quarto do
meu pai na UTI”, pensou a moça. Ela soluçou
alguma coisa para si mesma. Seu reflexo no
vidro do carro foi embaçado pela passagem no
túnel e logo voltou a brilhar quando saíram do
escuro para uma avenida que tangia uma larga
fileira de comércio de camelô.
“Não te incomoda as crianças sozinhas e
pobres, dona?”
“Muita coisa me incomoda, esta é uma
delas. Mas o que posso fazer por elas?”
45 Rogério tentou pensar numa solução
para crianças sozinhas e pobres. O trânsito
intenso lhe cobrava a atenção. Seu semblante
cansado escondia a idade.
“Vai ver o marido?”, perguntou ele.
“Não”, respondeu prontamente a
mulher. “Eu não tenho marido. Desculpe-me,
mas os homens são incompreensíveis.”
“Não te preocupe, não te julgo mal, tem
muito safado por aí.”
“Você não tem ideia de quantos!”
Rogério sorriu e concentrou-se nos
desvios do trânsito no centro da cidade. A moça
encantou-se com algumas decorações festivas
dos grandes prédios. Chegaram ao destino dela.
Ela agradeceu e pagou pela corrida. Rogério
partiu.
“Olá, professor. Vamos para mais um dia
de trabalho?”, perguntou Rogério, ajudando um
senhor a fechar o portão do condomínio,
número 42, apartamento 41, na rua Bélgica.
46 “Obrigado, Rogério”, respondeu o
senhor de rosto vermelho, olhar pesado e
roupas de frio.
O senhor tirou um lenço do bolso após
trancar a porta e assoou o nariz. Entrou no carro
com dificuldade e se acomodou no banco da
frente, enquanto Rogério colocou a pasta de
trabalho do senhor no banco traseiro. Partiram.
“Pois não, minha senhora, para onde
vai?”
“Eu quero ir ao centro, na rua dos
brechós.”
“É para lá que vamos, então.”
“Hum, que coisa boa de comer você tem
aí?”, perguntou a mulher ao ver uma marmita
no banco de trás. “Se for coisa boa, pode deixar
comigo.”
Rogério sorriu.
“A corrida ficou em $ 42,41, moça.”
47 “Bom dia, professor. Pronto para mais
um dia de trabalho?”, perguntou Rogério,
ajudando o senhor a carregar sua maleta cheia
de livros e trabalhos.
“Obrigado, Rogério”, respondeu o
senhor.
O senhor entrou no carro com
dificuldade e se acomodou no banco da frente,
enquanto Rogério colocou a pasta de trabalho e
os pesados livros do senhor no banco traseiro.
Partiram.
“E você, é casado?”, perguntou a
secretária da oficina ao fazer o recibo de
manutenção do carro.
“Sou solteiro. Tenho uma filha
pequenina.”
“Que graça! Qual o nome dela?”
“Amanda”, respondeu Rogério. “Esta é a
minha princesa”, disse Rogério apresentando
um retrato 3x4 da filha, o qual estava na carteira.
48 A moça observou a menina e sorriu.
“Que linda! É realmente uma princesa.”
“Obrigado, ela é especial.”
Rogério guardou a carteira no bolso. Viu
algumas crianças pobres passarem pela oficina e
pedirem dinheiro. A moça chamou um dos
funcionários, que retirou as crianças do espaço.
“É triste ver crianças sozinhas, né?”,
comentou a moça, finalizando o preenchimento
dos papéis.
“Sim. Que futuro elas terão?”, arguiu
Rogério. “Mais triste ainda, se a mãe, como no
meu caso, fica falando abobrinha do pai para a
filha, colocando minhoca na cabeça da filha, só
para prejudicar o ex-marido.”
A moça apenas ouvia.
“Isso é alienação parental, sabia?”
“Eu não sabia”, respondeu a moça.
“Bem, a manutenção ficou em $ 424,10.”
49 “Olá, professor. Animado para mais um
dia de trabalho?”, perguntou Rogério, ajudando
o senhor a entrar no carro.
“Eh, um pouco”, respondeu lentamente
o senhor, como se lhe faltasse ar. “Obrigado,
Rogério”, disse ao sentar no banco da frente.
Partiram e começou a chover.
O trânsito estava intenso e ficaram
parados por um longo tempo na avenida
principal da cidade. Rogério tirou um caderno
do porta-luvas e demonstrou entusiasmo.
“Professor, veja o que diz esta citação. É
de uma leitura para a aula de hoje à noite: ‘A
literatura nada mais é do que um corpo de
estruturas verbais e hipotéticas que imitam
proposições reais. Por isso é trágica: o âmago
mais íntimo de quem esconde a verdade de si
próprio. Mas real dentro de si mesma:
distanciamento imprescindível para conhecer o
mundo ao qual se pertence.’ O que o senhor
acha?”
50 O senhor coçou os olhos. Semblante
sério. Demorou a responder como quem
matutava uma tese na cabeça.
“Bem, Rogério, parece-me razoável.”
Os óculos grossos do senhor escondiamlhe o olhar. Respirava com dificuldade e limpou
o nariz com um lenço branco.
“Eu
achei
muito
interessante”,
comentou Rogério, buscando alternativas no
trânsito. “Eu gostaria de estudar mais a respeito
no futuro.”
O senhor fitou Rogério e encolheu-se
dentro de sua grossa jaqueta, procurando
aquecer-se do frio.
Chegaram à escola na qual o professor
trabalhava.
“Bom dia”, disse o porteiro da escola.
“Nome do motorista e número do carro, por
favor.”
“Rogério. Carro Chevrolet. Placa EAH4241.”
O funcionário anotou os dados e
Rogério entrou com o carro no estacionamento
51 para deixar o professor próximo à porta de
acesso do prédio. O senhor se sentiu
embaraçado com a gentileza. Rogério
estacionou o carro e o professor pegou seus
pertences.
“Obrigado, Rogério, mas não precisava
me trazer até aqui dentro. Tua carona já é de
grande ajuda; sem ela, não sei como eu faria
para trabalhar”, disse o senhor, saindo do carro
com dificuldade.
“Disponha, mestre. São pessoas como o
senhor que dão esperança para nós.”
O senhor reagiu com timidez.
“Amanhã nos veremos novamente?”,
perguntou Rogério.
“Ah, sim”, confirmou o senhor, sorrindo
desta vez. Acenou e caminhou em direção à
escola. Rogério acenou de volta e apoiou-se na
porta do carro, observando o caminhar lento,
pesado e corcunda do professor, que se escondia
debaixo de um guarda-chuva azul.
52 “Bom dia, professor. Vamos para mais
um dia de trabalho?”
53 Polar
— E falando nisso, Woodson, como está
o teu time?
— Vai muito bem. Ontem ganhou de 21
a 16. Três passes para touchdown do Aaron
Rodgers.
— Que bom — comentou Mike,
observando a paisagem vista do alto do
helicóptero. — Ele é um grande quarterback —
concluiu, pensando no porquê de sua filha estar
tão ausente ultimamente.
A aeronave sobrevoava o interior do
Alaska. O inverno espantou toda forma de vida
daquele lugar. O branco da neve e o marrom de
54 algumas árvores formavam uma linda paisagem
de montanhas que se perdiam no horizonte.
— Qual teu palpite para o Super Bowl,
Mike?
— Não sei — respondeu o soldado,
pensando ainda na filha. O som do motor e da
hélice colocavam, como um mantra, os
pensamentos de Mike mais próximos de suas
preocupações familiares.
Woodson, mesmo atento nas operações e
manobras do helicóptero, notou, há algum
tempo, que o colega estava distante do trabalho.
— Minha filha não responde aos meus
telefonemas há alguns dias e isso me preocupa.
— Ora, Mike, ela deve ter tido algum
contratempo — disse Woodson. Ele identificou
a área de pouso e conferiu as coordenadas do
voo.
— E se foi algo pior? — continuou
Mike.
— Calma, rapaz, tem apenas três dias
que vocês não se falam. Se tivesse ocorrido
55 alguma tragédia, certamente nós já saberíamos
dela.
— Credo, Woodson! Não me diga uma
coisa desta! — exclamou Mike. “Ele não sabe o
que estou passando”, pensou; “por isso, não
respeita a dor que sinto”.
— E mais: uma notícia ruim sempre
chega quando não estamos esperando por ela.
Todo desastre chega de surpresa! — completou
Woodson.
Mike
demonstrou
rancor.
Sua
resistência às palavras do colega impediu-o de
perceber que eles já voavam baixo,
surpreendendo-se com o início do processo de
pouso.
— Ela deve estar com algum problema,
ou saindo com alguém, alguém de mau caráter
para ela ficar com este comportamento
irresponsável — disse Mike, que ajustou um
rifle e arrumou a mochila. — Ou deve estar
usando drogas! Vai saber? Acho que aquela
discussão que tivemos semana passada, na qual
critiquei os amigos dela. Ela me disse que os
56 amigos são as coisas mais importantes do
mundo; aquilo deve ter colocado fogo no rabo
dela.
— Aqui estamos — disse Woodson,
achando curiosa as hipóteses de Mike.
Um vento agressivo carregado de
neblina cortava o céu. Aos poucos surgia uma
pequena casa cercada por neve. O pouso de
Woodson foi perfeito, numa área a poucos
metros da casa. Woodson desligou a aeronave e
vestiu um agasalho.
— Mike, Mike. Se toda pessoa te
ignorasse pelas tuas reclamações, você não
estaria mais entre nós — brincou.
— O que estás insinuando? Que sou
importuno? — protestou, ajudando o amigo a
descer com os equipamentos.
Eles caminharam pela neve em direção à
casa coberta de branco. Apenas a parte superior
das paredes estava visível. Levaram tempo para
localizar a entrada. Woodson bateu à porta,
esperou e não foi atendido. Tirou uma folha de
57 papel dobrada do bolso, leu um nome e abriu a
porta com cuidado.
— Mikolaj? — chamou Woodson do
lado de fora para não ser invasivo. Seu chamado
não foi correspondido.
— Mikolaj, aqui é primeiro sargento
Clark Woodson do exército americano.
A residência permaneceu em silêncio.
Eles entraram cuidadosamente e observaram o
ambiente. Após uma breve análise, suspeitaram
que todos os cômodos estavam vazios, mesmo
porque não eram muitos.
— Mikolaj? — insistiu Woodson.
A casa tinha uma agradável sala, cozinha,
quarto e banheiro. O interior abrigava o calor de
uma baixa lareira. As lamparinas estavam acesas
e cheiro de comida vinha da cozinha. A sala, o
maior cômodo da casa, toda marrom, possuía
uma larga e baixa mesa ao centro com algumas
estátuas artesanais mal feitas de animais em
madeira. Duas poltronas cercavam a mesa, uma
posicionada estrategicamente próxima à lareira e
com uma bela vista para a janela, e outra coberta
58 por livros. Não havia eletrônicos, apenas um
rádio de comunicação na escrivaninha de
trabalho. As paredes estavam parcialmente
decoradas por pôsteres diversos e peças antigas
de trabalhos gráficos, como réguas de aço,
quadros de serigrafia e uma grande folha com
tarjas CMYK que aparentemente serviu de teste
de impressão.
Mike abriu sua agenda. “Mikolaj Yvon”,
leu para si mesmo. “Professor universitário e
pesquisador. Radicado nos Estados Unidos da
América desde 1982.”
— O que este russo faz aqui? —
perguntou ao guardar a agenda com a ficha de
Mikolaj.
— Ele é biólogo — respondeu Woodson,
observando fotografias de ursos na parede da
sala. — Trabalha pesquisando animais da região.
O urso é sua especialidade. É conhecido pela
comunidade acadêmica por registrar o modo de
vida dos ursos e realizar descobertas sobre a
espécie ursus arctos alascensis.
59 — Veja só, você também conhece sobre
ursos, Woodson? Ou também é conterrâneo
desta terrinha?
— Não sou um especialista, mas gosto
de ursos. Com exceção nos campos da futebol,
aí eu os quero derrotados! — brincou ao se
aproximar da escrivaninha de trabalho de
Mikolaj.
Nela estavam alguns livros, óculos de
leitura, folhas com registros de descobertas
científicas; na frente, mais fotografias de ursos,
algumas de paisagens e duas lentes fotográficas.
O abajur estava ligado em pleno dia.
— As malas estão prontas aqui no quarto
— disse Mike, apontando para três malas em
cima da cama na dependência vazia.
Woodson conferiu seu relógio. Eles
estavam no horário combinado. “Deve ter saído
para dar um último passeio”, pensou. — Mike,
vamos esperar lá fora, sim?
Eles se retiraram da casa e foram para o
helicóptero. Passaram-se duas horas e Mikolaj
não retornou para sua modesta cabana.
60 Woodson fez contato com o tenente responsável
pela operação e informou-lhe que o professor
não se encontrava no local para eles o levarem
de volta a Montana, onde morava sua família.
Explicou ao tenente que, aparentemente,
Mikolaj se preparara para partir, mas
provavelmente saíra para um último passeio
matinal, já que alguns de seus pertences, como
sua agenda e livros pessoais, pareciam estar em
uso naquele dia ou no anterior. O tenente disse
a eles que outros serviços precisavam do
helicóptero, que não tinham tempo a perder e
deveriam retornar naquele mesmo dia com o
pesquisador. Solicitou-lhes que colocassem um
bilhete na casa orientando Mikolaj para os
aguardar, caso ele chegasse, e que fizessem uma
breve patrulha aérea pela região.
— Quantos anos de atividade Mikolaj
tem? — perguntou Mike.
Woodson conferiu os procedimentos de
partida do AH-6J, um Little Bird, e levantou
voo.
61 — Não sei exatamente, mas deve ser
mais de trinta anos — respondeu Woodson após
a procedência de decolagem. — Ele já é um
pesquisador aposentado.
— É muito tempo para a mesma
atividade. Minha filha não para em nenhum
emprego. Não é incompetência, pelo contrário,
ela está sempre pulando de lá pra cá, insatisfeita
com tudo e todos. Eu me pergunto até quando
minha princesinha viverá estas indecisões. Ela já
deveria estar casada, sabe? Pelo menos com um
bom rapaz, de boa família. Ela teve tudo! Casa,
educação, faculdade e, mesmo assim, parece não
se ajeitar na vida.
— Você não acha que te preocupa
demais com ela?
— Como não me preocupar? É minha
filha, minha princesinha.
— Você fala como se ela fosse uma
criança.
— Não é criança, mas é minha criança.
E, às vezes, ela age como uma.
62 “Às vezes, o pai também age como uma
criança”, pensou Woodson, sorrindo.
— Do que ri? — perguntou Mike.
— Nada, nada.
Eles sobrevoaram lugares que julgaram
serem pontos de passeio e de trabalho de
Mikolaj. A região era cercada por montanhas e
uma rala floresta de coníferas composta por
pinheiros e abetos que se destacavam em meio
ao branco da neve. A vegetação era escassa e
sobreviviam poucos arbustos resistentes à
agressão do frio. A ventania e o nevoeiro
atrapalharam a patrulha aérea. Woodson decidiu
retornar e tentar outras estratégias.
— A gente vê tanta tragédia na televisão,
tanta desgraça, que vai saber se isso não
acontece com a gente — reclamou Mike.
— Você ainda se refere à sua filha? Ou
agora ao sumiço de Mikolaj? Pois, se for à sua
filha, pode parar com isso, se pensar só em
tragédia, só atrairá tragédia. Tudo que verá serão
tragédias. E, ademais, este seu humor
63 atrapalhará a vida de sua filha que, ao meu ver,
só quer um pouco de liberdade e diversão.
— É fácil para você falar. Você não é pai
de uma menina como ela, uma menina muito
especial e que está aí perdida no mundo.
— Esta observação não é justa. Eu
também sou pai de quatro filhos e eles
significam muito para mim. Trabalhei para eles
realizarem seus sonhos. Eduquei-os da melhor
forma possível e amo-os com todo meu coração.
Preocupo-me, sim, mas sem esta preocupação
excessiva que você tem — disse Woodson com
aspereza.
Mike torceu o nariz e borrifou. São
parceiros de trabalho há anos, desde a última
grande operação internacional na América do
Sul. A guerra e a patrulha são hiatos e parênteses
na vida de alguns militares; as operações
tornam-se escolas para o ver, o ouvir e o falar
com os mais diversos professores que não se
formaram para tal instrução. E Mike ao menos
fala; até demais para o gosto de Woodson.
64 — Já passou pela tua cabeça que tua filha
está querendo um pouco de liberdade?
— Ora, ela é livre. Mas é minha filha. Se
vive junto, tem que dar satisfação.
— Dar satisfação para tudo?
— Para tudo não. Mas ela não fala que
vai sair, não fala que horário voltará. Está
sempre com os amigos fazendo os programas
mais doidos, sem horário, sem responsabilidade.
Parece que as amigas mandam nela.
— Isto é fase, Mike. Aquela fase juvenil
de ilustrar o ego fazendo aquilo que os amigos
gostam para se sentir importante no meio do
grupo. Sei como é. Não se preocupe tanto com
isto, senão você adoecerá sozinho. Respeite a
liberdade dela. Caso contrário, se desejar
controlá-la, você apenas vai afastá-la de ti e tua
casa. Cuidado para não tentar controlar a vida
dela.
O semblante sério de Mike fez Woodson
desconfiar que o amigo estava indisposto para o
ver e o ouvir.
65 Eles retornaram e foram à casa de
Mikolaj novamente. Não havia novos rastros.
Woodson olhou para a porta e suspirou
descontente. Abriu-a, chamou por Mikolaj,
conferiu o ambiente vazio e fez contato com o
tenente através de seu comunicador pessoal.
— Tenente, fizemos patrulha aérea, mas
o mau tempo não ajudou. Retornamos à casa e
nosso bilhete continua na porta de entrada.
Conferimos o interior, Mikolaj não está aqui.
Mike deixou Woodson conversar com o
tenente e andou pelos arredores. Havia um
grande campo aberto à frente da casa onde
pousaram a aeronave sem sinais de Mikolaj.
Mike circulou em volta da casa observando cada
detalhe que pudesse inferir uma pista. Na parte
detrás havia uma floresta de pinheiros que lhe
chamou a atenção. Ele entrou na floresta através
de um caminho que deduziu ser a passagem
mais lógica para uma pessoa trilhar e notou, a
alguns metros adentro, três cavidades na neve.
Ficou encafifado com as marcas e suas formas
simétricas que se assemelhavam a passos.
66 Investigou mais um pouco em direção ao sul e
não encontrou novidades. Sons de aves distantes
ecoaram na floresta. Já começava a escurecer e
ele não gostava de estar naquele ambiente
sozinho. Rapidamente, voltou para ver
Woodson.
— O tenente falou que fez contato com
a esposa de Mikolaj — disse Woodson,
guardando os aparelhos de comunicação na
mochila. — Ela conversou com Mikolaj ontem
à noite e o marido confirmou que estaria pronto
para nossa chegada. Disse, ainda, que Mikolaj
parecia empolgado com alguns resultados
inéditos de sua pesquisa e que suas últimas
convivências entre os ursos renderam-lhe
prazerosos momentos de descobertas.
— O tenente recomendou algum
procedimento?
— Pela missão não ter saído como o
planejado, o tenente classificou esta missão de
transporte para missão de resgate. Temos
permissão e ordem para intervirmos e
localizarmos Mikolaj com quaisquer meios.
67 Antes de escurecer, que já já será o caso, aqui
escurece cedo nesta época do ano, devemos
atualizá-lo com novidades. Se necessário,
reforços estarão à nossa disposição.
— OK. E a família do professor?
— Avisaram que houve um contratempo
no transporte, por enquanto.
— Estão poupando a família da notícia
ruim para depois chegar a surpresa? — disse
Mike ironicamente.
Woodson estava acostumado com as
agressividades gratuitas do amigo e não revidou,
pois abismava-se com suas atitudes.
— Mike, o tenente apenas poupara a
família de um eventual transtorno. Se falarem
que Mikolaj não está aqui, e o encontrarmos,
ficarão apreensivos desnecessariamente.
— Bem, enfim, em todo caso, preciso te
falar uma coisa. Atrás da casa, no início da
floresta, eu vi três marcas na neve que podem
ser de pegadas. Mas estas marcas não possuem
início nem fim. A sequência, penso eu, foi
apagada!
68 — São pegadas humanas? Há marcas de
pés?
— Não exatamente. Mas podem ser.
— Vamos entrar e conferir a casa
primeiro antes de aventurarmos nas causas
externas, OK? — disse Woodson, após julgar
que o argumento do amigo não era
substancialmente convincente.
Eles entraram na casa e iniciaram uma
investigação minuciosa. Ambos sabiam trabalhar
em improviso, porém Mike era mais resistente,
apesar de esforçar-se para acompanhar o colega,
que era mais criativo.
— Que problemão este pesquisador foi
nos dar. Justo hoje que teríamos o restante da
semana de folga e eu poderia conversar com
minha filha — lamentou Mike.
Woodson ouvia o colega ludibriar seus
problemas pessoais enquanto analisava a
escrivaninha de Mikolaj à procura de pistas que
poderiam indicar ou esclarecer o que se passava.
— Não me parece faltar luz aqui para o
abajur estar ligado — inferiu Mike.
69 — Não mesmo. “Ele pode ter uma vista
fraca”, pensou Woodson, “mas não deve ser o
caso; afinal, ele é fotógrafo autodidata e a casa
possui
uma
boa
iluminação
natural.
Provavelmente saiu às pressas logo pela manhã
após trabalhar a noite”, concluiu. — Veja a
xícara — apontou.
Havia metade de café numa grande
xícara vermelha. Sua agenda estava aberta no dia
anterior com algumas anotações. Eles tiveram a
impressão de que Mikolaj trabalhava antes deles
chegarem.
— Aqui na agenda, nos últimos dias, ele
cita constantemente um tal de “O Grande Rei”
— comentou ao folhear o material.
Mike se aproximou, olhou de rabo de
olho, desconfiado.
— Não há nenhuma anotação aí dele
sobre a família? Nadinha?
— Eu não prestei atenção nisso —
respondeu Woodson, surpreso com a
preocupação de Mike.
70 — Coitada da família. Deve se sentir
abandonada por ele.
— Mas Diabos, Mike, deixa a família de
lado pelo menos um pouco. Atenta-se para o
trabalho, OK? Olhe aqui, há desenhos de ursos
em todas páginas. Pelas fotografias e anotações,
suponho que sejam ursos que ele acompanha e
O Grande Rei pode ser algum urso especial.
Diz aqui, numa nota de rodapé em suas
anotações, que O Grande Rei foi o responsável
pelas suas mais recentes descobertas e que o
animal é especial para ele.
Algum tempo passou, Woodson passeava
pelas folhas do diário e Mike se colocou na
tarefa de fazer um lanche e arquitetar hipóteses
sobre o desaparecimento de Mikolaj.
— O que temos aqui? Talvez um crime
meticulosamente realizado — disse Mike,
comendo uma fatia de pão. — A ausência de
rastros
sugere
uma
trama
pensada.
Independente de quem sumiu com Mikolaj, ou
se ele resolveu suicidar-se, estrategicamente as
71 pegadas e rastros foram apagados. Seja o que for,
foi algo grande, algo ruim, algo cruel.
Woodson olhou com desgosto para o
colega e se conteve para não ser deselegante e
mandar o amigo se calar.
— Ou, ele saiu à noite e houve uma
recente queda de neve local, escondendo suas
pegadas — inferiu Woodson racionalmente,
contrariando a teoria do amigo. — E, por algum
motivo, não conseguiu retornar à sua cabana.
Ele pode estar preso em algum lugar, quem sabe
feriu algum membro e ainda não conseguiu
retornar.
— Talvez. Assim teríamos uma
justificativa para as três marcas na floresta.
— Sobre estas marcas, Mike, a floresta é
selvagem e irregular. Não sei se você reparou,
mas existem traços na neve que se assemelham
àqueles rastros na areia deixados pela água de
um rio que transbordou ou pelo vento.
Qualquer coisa pode ter gerado aquelas três
marcas às quais você se refere, inclusive seu
cérebro, ao ver uma coincidência no chão.
72 — Ah, sim, agora eu estou imaginando
coisas?
— E como não? Temos dados concretos
nesta casa que Mikolaj estava aqui até poucas
horas antes de chegarmos. As malas arrumadas
mostram que ele se preparava para partir. A
mesa desarrumada mostra que ele ainda não
estava pronto. Não me parece que alguém
invadiu ou arrombou este lugar. Precisariam de
um helicóptero para vir e um helicóptero não
pousaria aqui sem deixar marcas. Se viessem por
terra, levariam dias e haveria rastros e resíduos
significativos pelo caminho. Certamente
Mikolaj saiu. O motivo? Desconhecemô-lo.
Mas temos de encontrar este senhor logo —
concluiu Woodson, coçando a testa e analisando
outras folhas anotadas.
— Eu já acho que Mikolaj pode ter sido
sequestrado ou raptado.
— Claro, e quem sequestraria ou
raptaria um professor aposentado? —
questionou Woodson, desacreditando que o
amigo insistia em suas hipóteses.
73 — Ele pode ter inimigos neste local.
Não sabemos se existem comunidades
anônimas por aqui. E se ele fez algo para
alguém? Por que ele sumiu misteriosamente
justo no seu último dia de trabalho? Será que
ele tinha uma amante? Ou talvez ele não queira
ver a família novamente. Ou pior: é ele quem
não quer falar com a própria filha!
Antes que Woodson pudesse reagir ao
comentário de Mike, eles ouviram um som
grave e estridente vir de fora da casa.
Assustaram-se, olharam para a porta. Já era
noite. Mike carregava um rifle e Woodson
colocou a mão na bainha de uma faca, pronto
para puxá-la a qualquer momento. Eles ficaram
em silêncio. Mike fitou Woodson apreensivo,
que decidiu levantar-se e aproximar-se da porta.
Woodson abriu a porta e Mike se posicionou
atrás com a arma em punho. Woodson saiu com
cuidado. Sua vista acostumou-se com a luz da
Lua e das estrelas. Lentamente, caminhou ao
redor da casa e não encontrou nada. Mike ficou
vigiando a porta.
74 — Deus do céu, o que era aquele som?
— perguntou Mike após Woodson dar uma
volta.
Ao invés de responder ao amigo,
Woodson manteve sua atenção no silêncio da
noite e viu um brilho dentro do helicóptero. Ele
fez sinal para Mike permanecer na entrada da
casa.
No helicóptero, conferiu que o rádio
estava
recebendo
uma
chamada
de
comunicação.
— O que era, afinal? — perguntou Mike
ansioso com o retorno de Woodson.
— Havia uma chamada, era o tenente
dizendo que devemos localizar Mikolaj sem
demora e que um helicóptero com reforços já
está a caminho.
Mike estava apreensivo e agitado. Seus
planos de passar o restante da semana com a
família era ameaçado pelas inconveniências no
trabalho.
75 — Você tem alguma sugestão de como
encontrarmos este professor o mais rápido
possível?
Novamente, o barulho grave e estridente
ecoou no ar, mas desta vez mais longe, e
Woodson conseguiu localizá-lo: vinha da parte
norte da floresta.
— Sim, talvez se seguirmos este som,
poderemos achar Mikolaj — respondeu
Woodson. — Mike, fecha a porta e venha —
disse com voz baixa, olhar fixo ao norte; pegou
sua lanterna da mochila e correu agachado em
direção ao som.
— Espere! — clamou Mike atrapalhado
com o rifle numa mão e a outra tentando
localizar sua lanterna.
Eles entraram na floresta e caminharam
em passos leves. À frente, um pouco para a
esquerda, ouviram novamente o som. Desta vez
conseguiram identificar melhor sua origem.
— Woodson, droga, Woodson, isso vai
dar problema! — disse Mike assustado; segurou
76 no ombro de Woodson para caminhar e vigiar
os lados ao mesmo tempo.
— Calma, Mike. Desconfio que seja
apenas um urso — inferiu Woodson,
demonstrando satisfação ao seguir a fonte do
barulho.
— Apenas um urso? “Apenas”? —
indagou Mike ironicamente num tom alto.
— Silêncio, Mike! Quer atrair uma
família toda de ursos?
Imediatamente, Woodson parou e fixou
seu olhar para cima. Mike percebeu o
movimento do amigo e viu algo brilhar no céu.
Um fulgor constante, ora ofuscado pela neblina,
ora brilhando com o sopro do vento.
— Woodson, aquilo não é uma estrela.
— Não, está intenso e oscilante para ser.
— Aquilo não é um avião.
— Não. A luz não se mexe.
— E também não é um helicóptero.
— Não. Está tudo muito silencioso.
— Meu Deus, Woodson, eu sabia, aquilo
é um OVNI!
77 Desta vez foi Woodson quem fez
barulho com uma gargalhada. Aves voaram, o
som que seguiam voltou a ecoar mais forte e
tiveram a sensação de que algo se aproximava.
Woodson assustou-se.
— Rápido, esconda-se neste buraco! —
disse Woodson.
Eles agacharam atrás de uma grande e
côncava rocha que se parecia com uma pequena
caverna. Mike segurava o rifle com força e
buscava o ponto mais fundo da rocha para se
esconder. Woodson, costas contra a rocha,
olhava por cima dela para ver de onde vinha o
som. Viu uma sombra passar entre as árvores e
sumir em meio à neblina. Sentiu seu coração
palpitar como nunca antes.
— Eu vi uma grande sombra passar.
Acho que era um urso e aquele som é de um
urso — disse Woodson ao se acomodar no
fundo da rocha com Mike.
— Está falando sério?
— Sim — respondeu, secando o suor da
testa.
78 Eles permaneceram em silêncio e
esperaram que aquela sombra, fosse o que fosse,
tivesse ido embora.
— Woodson, Mikolaj deve ter sido
abduzido.
— Você realmente acha isso?
— Claro! — disse Mike com tal
seriedade que Woodson nunca vira naquele
olhar — O professor sumiu sem deixar marcas,
não há resquícios de vida humana neste lugar,
apenas estes ursos e aves. E, agora, aquela
misteriosa luz lá na frente que acende e apaga.
Woodson, desinteressado na conclusão a
que o amigo chegara, empunhou sua faca e
levantou-se antes que Mike pudesse terminar
seu raciocínio.
— Que está fazendo? — perguntou
Mike.
— Vamos conferir aquela luz —
respondeu Woodson, dirigindo-se ao brilho.
“Isto é uma má ideia!”, pensou Mike,
criando coragem para seguir o colega.
79 Caminharam mais preocupados com o
que estava em volta do que com a própria luz.
Chegaram numa grande árvore de onde a luz
brilhava. Embaixo da árvore encontraram um
par de botas de esqui. Woodson olhou para cima
e ficou pasmo.
— É, Mike, seu OVNI transformou-se
numa lanterna!
— Meu Deus, é apenas uma lanterna
presa no alto da árvore. E o que ela está fazendo
lá? E estas botas de esqui, que fazem aqui?
— Não sei, mas não é desta vez que
seremos abduzidos — brincou.
Woodson escalou a árvore até o topo. Na
lanterna estava impresso o nome de Mikolaj.
Pegou-a e guardou-a na mochila. Ele ficou
maravilhado com a vista lá de cima: ali era um
lugar privilegiado para se observar a natureza
local, pois podia-se ver, com a ajuda da Lua, na
noite, grande parte do vale. O que mais lhe
chamou a atenção foi um lago quase congelado.
Pensou ter visto alguns vultos nos arredores. Ele
forçou o olhar, concentrou-se para tentar
80 distinguir melhor e seu comunicador pessoal
tocou em sua mochila, dando-lhe um susto que
quase o derrubou da árvore. Atendeu ao
chamado, conversou pelo aparelho, desceu,
tirou um mapa da mochila e passou algumas
orientações para o outro lado da chamada.
— Vamos, Mike! — disse, após finalizar
a conversa pelo comunicador e carregar as botas
de esqui. — Lá de cima eu vi um lago com
alguns vultos.
— Vultos de novo não — resmungou
Mike. — E o nosso reforço?
— Acabei de passar as coordenadas, estão
chegando.
Correram por uma longa e inclinada
descida e em pouco tempo alcançaram o lago.
Era um lago grande, cercado por árvores e
natureza. Do outro lado da margem, onde a
floresta se tornava mais densa e viva, viram
diversos ursos, a maioria descansando. Evitaram
apontar as lanternas para aquela margem e se
puseram a analisar as proximidades.
81 — Bem, então são ursos, exatamente
como eu imaginei — disse Woodson.
— É, desta vez você acertou —
consentiu Mike. — Mas, um momento, acho
que encontrei algo! — disse empolgado,
levantando-se e caminhando em direção à
margem próxima.
Woodson observou o amigo ir até a
margem e pegar uma bolsa. Levantou-a e
mostrou-a para o Woodson. Era uma bolsa de
couro grande e marrom. Mike abriu-a. Havia
comida, um caderno e lentes fotográficas. Abriu
o caderno e viu o nome de Mikolaj na contracapa. Fuçou mais um pouco e encontrou um
spray de odor para espantar animais. Retornou
os pertences para a bolsa e colocou-a no ombro.
Mike continuou vasculhando as margens
do lago quando Woodson sentiu uma sensação
estranha. Virou-se para trás e viu um grande
urso a poucos metros dele. Apavorou-se. Não
sabia se pegava sua faca ou se jogava longe a
lanterna ou se corria ou se gritava. Mesmo no
limiar da surpresa, lembrou-se que correr seria
82 inútil, que enfrentar o urso com uma faca
também seria banal, e que o ideal seria manterse imóvel e mover-se apenas quando o urso não
estivesse olhando para ele, o que seria difícil de
acontecer, pois o urso encarava-o friamente.
Apesar do medo estampado em sua face,
conseguiu permanecer imóvel. Mas o urso deu
um passo e fungou com um gemido. Woodson
andou inseguro para trás. O urso deu mais
alguns passos, levantou-se e rugiu; levantou tão
alto em direção à Lua que Woodson julgou ter
visto uma coroa na cabeça do grande animal.
Naquele momento, Woodson não pensava em
outra coisa a não ser correr. E assim o fez.
Correu muito e o urso o perseguiu. Ele ouvia os
passos do urso mais próximos, e mais próximos,
até sentir a respiração do urso em sua nuca. Ele
não via mais árvores, neve ou lago; via apenas a
imagem de sua família e do último jogo de
futebol a que assistira no estádio: na ocasião, seu
time ganhou com uma virada histórica, quando
ninguém mais acreditava na vitória, nem ele
próprio. E era uma virada desta que ele mais
83 desejava naquele momento. Então ele ouviu um
estouro de tiro e o urso gritou. Woodson
tropeçou, caiu e olhou para trás com a faca na
mão. O urso estava no chão inconsciente.
Conforme a neblina passava, Mike aparecia atrás
do urso com o rifle em mãos. Woodson
levantou-se e correu para abraçar o amigo.
— Meu Deus, Mike, o que você fez?
— Era você ou o urso. Optei por ti. Fiz
bem? — perguntou Mike assustado.
— Bem, só o tempo responderá a esta
pergunta — respondeu Woodson, ofegante sem
perder o humor, mas com os olhos
lacrimejando.
Observou o gigante urso no chão e
agradeceu por não ter sido morto pelo animal.
Logo ouviram o som do helicóptero com o
reforço.
— Precisamos sair desta área antes que
venham mais ursos — disse Woodson, tentando
recuperar-se de um dos maiores sustos que já
levara em sua vida.
84 Quando Mike abaixou-se para pegar sua
lanterna, viu algo colorido no chão no trajeto
mais longe que a luz alcançava.
— Woodson, espere um pouco, veja ali
na frente! — disse Mike, apontando a lanterna
para o ponto colorido.
Aproximaram-se e surpreenderam-se
com o que viram: um senhor caído na neve. O
lado direito da face estava brutalmente
machucado e havia sangue espalhado pelos
arredores. Seu rosto pálido e frio, ao menos a
parte esquerda que lhe era reconhecível, e seu
cabelo assemelhavam-se com o retrato de
Mikolaj na ficha de Mike.
— Acho que encontramos Mikolaj —
disse Mike perplexo.
Alguns barulhos de ursos vieram do
outro lado da margem. O som do helicóptero se
aproximava e Mike não tardou em soltar um
sinalizador em direção ao céu.
— Parece ter levado um golpe de algum
urso — disse Woodson, apontando para as
feridas. — Há quatro cortes paralelos e
85 simétricos profundos que podem ser as garras
do animal.
O professor vestia roupas esportivas de
inverno. Próximo ao corpo estava um spray e
uma a câmera fotográfica. Mike manuseou a
câmera fotográfica com cuidado e conferiu que
ela estava ligada.
— Provavelmente ele fotografava antes
de ter sido atingido. A revelação do filme poderá
dar dicas aos peritos — sugeriu Mike,
preocupado com alguma nova surpresa.
Pelas coordenadas e com a ajuda do
sinalizador que Mike soltara, a equipe de apoio
chegou num grande helicóptero de batalha, um
MH-60L DAP, com capacidade para carregar
tropas. Pousaram a poucos metros da margem,
numa área aberta. O barulho do helicóptero
espantou alguns ursos do outro lado da
margem. O frio não incomodou os cinco
soldados e o médico que foram prestar ajuda.
— Rápido, precisamos ser rápidos, há
ursos por todo lado — disse Mike agitado.
86 A equipe aproximou-se do corpo de
Mikolaj e Mike ficou vigiando. Woodson
conversou brevemente com dois soldados. O
médico analisou Mikolaj e concluiu que estava
morto há algum tempo. Decidiram colocá-lo no
helicóptero para evitar o risco de ataques de
ursos. A equipe fez registros fotográficos do
local e reuniu os objetos que estavam com
Mikolaj. Com a ajuda de Woodson e Mike,
colocaram o corpo no helicóptero e voaram para
a cabana.
No helicóptero, eles conversavam com
os soldados sobre o que descobriram até aquele
momento.
— Então, conforme os senhores
sugerem —, disse um soldado que estava no
comando do resgate —, Mikolaj saiu de
madrugada para encontrar-se com os ursos uma
última vez. Ele estava com seus instrumentos de
trabalho: mochila equipada, câmera fotográfica e
o spray para repelir ursos. A lanterna encontrada
no topo da árvore possui o nome de Mikolaj
gravado nela e, segundo tua hipótese, ele estava
87 buscando um bom ponto de visão, ou talvez
tentou esconder-se de algum urso, mesmo
sabendo que esconder-se destes animais em
árvore é inútil. Pelas botas de esqui terem sido
abandonadas embaixo da árvore, ele foi
capturado por um urso, que o deixou
inconsciente no ataque e o arrastou até a
margem do rio, conforme podemos verificar os
diversos rastros naquele lugar.
— Sim, penso ter acontecido isto —
concordou Woodson.
— E você, que acha? — perguntou o
soldado a Mike.
— Eu acho que eu tive um péssimo dia!
— reclamou Mike. — O tenente disse que
teríamos uma missão tranquila antes de
voltarmos para casa no feriado, apenas buscar
um professor no meio do Alaska, passeio
sossegado num lugar paradisíaco. Besteira!
Quase morremos aqui! — Após uma pausa, ele
concluiu: — Bem, enfim, sobre Mikolaj,
concordo com a hipótese de Woodson.
88 O soldado em comando tomou nota e
reportou a missão ao tenente.
Lá do alto, Woodson tinha em mente a
triste cena do professor morto; perguntou-se
por que Mikolaj também não teve um amigo
para salvá-lo. Mike, enquanto isso, sentia-se
herói, sem deixar o mau humor.
Ao pousarem, Mike foi para o
helicóptero arquivar os dados da missão e
Woodson, juntamente com os demais soldados,
encarregou-se de limpar a casa e retornar os
pertences de Mikolaj à sua família. Woodson fez
questão de conferir se cada item estava sendo
cuidadosamente carregado. Guardou o diário de
Mikolaj em um lugar de destaque na caixa de
objetos pessoais do professor. Limparam o local,
carregaram os pertences no helicóptero e
partiram diretamente para o Estado de
Montana. Woodson viu o helicóptero levantar
voo e faz uma prece pela família; aproveitou e
lembrou-se de seus filhos ao retornar para seu
helicóptero, onde Mike o aguardava.
89 — Uau, que noite! — disse Woodson,
tomando sua posição de piloto e olhando para a
neve que começava a cair lá fora.
Mike guardou o celular no bolso.
— Estou feliz por termos saído vivos
desta. Mas triste pela morte do professor.
Infelizmente coisas ruins assim acontecem.
— Nem me fale mais disto — comentou
Mike com aquele olhar preocupado e perdido
no horizonte novamente. Após algum silêncio,
prosseguiu: — Minha filha enviou-me esta
mensagem dizendo que tem uma coisa muito
importante para falar comigo. Não sei o que é e
estou com medo de saber, ainda mais depois do
que passamos hoje. Como você disse: todo
desastre chega de surpresa!
— Ora, não espere por isso, Mike —
disse ao levantar voo. — Primeiro, porque você
não sabe o que é; não adiante desastres na sua
cabeça. Segundo, independente do que
aconteça, a diferença está em como reagimos
diante de tais situações. Não é a primeira vez
que você fica reclamando da vida e esperando o
90 pior acontecer. Lembra-te como nos
conhecemos na grande missão da América do
Sul?
— Sim, nossos batalhões se juntaram e
no final do dia você me ofereceu tua água.
— Ofereci-te porque você não parava de
reclamar do calor!
Mike ficou desconcertado. Agradava-lhe
a atenção de Woodson, mas desta vez percebera
que, em muitas vezes, a atenção que
conquistava não era suportável.
— Veja este tal Mikolaj —, prosseguiu
Woodson —, trabalhava com ursos há décadas,
conhecia bem o animal e sabe-se lá o que o
levou a sair atrás de um urso justamente no
primeiro dia de aposentadoria oficial e no dia
que retornaria à sua casa; deu no que deu.
— Viu? É disso que estou falando. Agora
só falta você me dizer que ele morreu feliz, que
pelo menos ele tinha paixão pelo que fazia e
morreu fazendo o que gostava, e blá blá blá —
Mike faz uma breve pausa. — Sabe o que eu
acho? Acho que minha filha, minha
91 princesinha, deve estar com um “urso” na vida
dela. E vai dar problema!
— É, verdade, vai dar problema mesmo
— provocou Woodson. — Mas você tem um
rifle em mãos! — concluiu, observando o nascer
do Sol nas Montanhas Rochosas.
Mike espantou-se com tal observação.
— E, falando nisso, Mike, como está o teu
time?
92 Garçom de muitos
Houve uma época em que o restaurante
era o mais famoso da grande cidade de São
Paulo. Triunfara nas décadas de 70 e 80, onde
mesas eram disputadas com dias de
antecedência para um jantar. Hoje as coisas são
diferentes. “Esta casa existe desde 1968 e apenas
eu e mais dois funcionários estamos nela desde
sua fundação”, disse o garçom. Seu nome era
Pádua. Servia aos clientes por mais de meio
século. “Os donos e sócios-proprietários já
foram trocados diversas vezes. Mandamos todos
os patrões embora e ficou só quem quer
trabalhar”, brincou. O restaurante, com sua
nova administração, buscava resgatar os anos de
93 ouro do empreendimento. Apostavam em novas
propagandas, novas estratégias de culinária e
novos atrativos para conquistar clientes. No
entanto, alguns frequentavam aquele lugar não
apenas pela comida, mas também pelo
atendimento de Pádua. As mesas do canto do
aquário eram as mais requisitadas, pois sabiam
que era o lado servido pelo garçom. “Foi um
prazer ver-te novamente”, disse um para Pádua.
“Sem o senhor, a pizza não tem o mesmo
sabor”, disse outro. Ele ficava grato pelas
saudações e disfarçava sua timidez ajeitando os
óculos grossos e folheando seu caderninho de
pedidos como se não perdesse a concentração
no trabalho. A verdade é que ele apreciava os
elogios e sempre deixava escapar um
comentário emotivo após o afago recebido.
“Que bom que gostaram do serviço. Quase que
vocês não me viam hoje, por pouco eu não
voltei para casa devido a uma dor de cabeça.
Mas logo encontrei o problema. Eu estava
apertado para ir ao banheiro. Como eu tomo
remédio para pressão e estava segurando, deu 94 me uma forte dor de cabeça. Aí fui ao banheiro
e logo fiquei bom”, desabafoum franzindo a
testa mas sem perder o bom humor, que seguia
com uma piada. “Querem mais vinho? Ele está
morno? Se o vinho estiver quente, pode mandar
pra mim que eu darei um jeito nele e o beberei
todo”. Seu atendimento era eficiente e
divertido, rápido e atencioso. Sabia de cabeça
cada pedido. “Já outra Coca-cola? Olha que
você está em fase de crescimento, garoto, só não
pode crescer para os lados”, disse para um rapaz
que pediu seu terceiro refrigerante. Ele não era
um garçom comum. Aposentara-se e
continuava a trabalhar pelo simples prazer em
servir. Alguns clientes não percebiam a paixão
de Pádua; já outros, quando a percebiam,
tratavam-no como se fosse um querido
membro familiar, oferecendo-lhe generosas
gorjetas e abraçando-lhe com carinho tal que
encantaria qualquer conhecido. “Acredita que
tem gente que me oferece uma bebida ou me
convida para jantar com eles?” Estas pessoas e
reações, que correspondiam com o serviço ao
95 qual o garçom se propunha realizar, ajudavamno a se sentir bem e realizado. Ao final da noite,
os garçons e funcionários estavam cansados e
apressados para retornarem aos seus lares, mas
Pádua exibia um sorriso único e parecia não ter
pressa para retirar as mesas e limpar o salão.
“Enquanto a morte não chegar, é porque ainda
sou útil e a vida precisa de meus serviços”, dizia
de peito cheio. E, aos poucos, aquele restaurante
resgatava sua antiga clientela e conquistava
novos frequentadores, até a administração
perceber que eram os antigos, zeladores da
tradição e requintes dos bons costumes, que
garantiam o sucesso do serviço. Era Pádua.
Garçom de muitos anos, garçom de muitos
pedidos, garçom de muitos clientes. Garçom de
muitos.
96 [ Poesias ]
I
Aqueles com os quais convivi,
e aqueles por quem vibrei.
Carrego, não sei porque,
uma multidão que uma vez amei.
98 II
Meu amor é destemido, intrépido, audaz.
Não desanimado ou intimidado.
Eis meu amor.
Senão, seria amor?
Pois na manhã faz sol.
Lindo céu azul.
Amanhã, outro sol.
O mesmo, só que agora com nuvens brancas.
Outro dia, tons de cinza.
Chuva fina.
São Paulo é assim.
Mudança de estação, mais um inverno.
Outono é solidão, que só traz dias mais quietos.
Há quem diga que a natureza corre.
É verdade, o planeta gira.
A fila anda.
O semáforo abre.
99 O trem passa.
E outro também passa.
As pessoas andam.
E as palavras desaparecem no tempo.
Mas o amor, se é amor,
não cai fora
fica dentro
eterno
no momento
fugaz
no passado
e aberto
no futuro.
100 III
Quando penso sobre aquele
que é o Criador
pergunto-me: “Por que tudo isso?
Um sorriso; ao final, dor?”
Sinto que pouco,
muito pouco, posso falar
Mas sim, acredito, não nego,
a vida é um constante confessar.
Um nome santo, antigo,
por meus ancestrais me foi nomeado.
Este acaso, aqui desde o início,
o divino até agora não revelado.
Torre de Babel,
diferença de credos,
101 de um mesmo Deus
nomes de outros dialetos.
Perguntou o sábio de Unamuno
Para que se fechar, em si, menino?
distante do mundo?
distante da vida?
Se somos aqui, você e eu,
Se sou judeu, se sou cristão,
que importa? Sou humano
e não a carcaça de uma opinião.
Sei que ela, meu amor,
tão especial como alguém cantou
na alegria e no gueto da dor
ela se esqueceu de quem a amou.
Fuga, falta algo,
algo que não ouso pronunciar.
E do outro lado falta ela
minha querida rosa do mar.
102 Para ele, Deus é consequência
Para ela, causa da livre ação
Que somos, se somos urgência
Deus é a carência de união.
103 IV
Sozinho, sem ar
solidão
impossível um par.
Quieto, em dor
amanhã
esperança de um amor.
Ingrato, sem razão
sempre
desejo a comunhão.
Agora, e além
viver, é o que peço, Senhor.
Amém.
104 V
espaço quero
quero e s p a ç o
espero, desespero
espero encontrar
um pouco
de e s p a ç o
preciso de e s p a ç o
que e s p a ç o ?
espaço, para despertar
e desperto
espero
meu e s p a ç o
esperançoso, quebro
o espaço
105 espaço do ser
espaço do silêncio
espaço da esperança
espero a esperta
para dançar
encontrarmo-nos no
espaço
e acordar o sonho
em um abraço
voo no e s p a ç o
v o c ê a q u i , eu a í
n ã o
l o n
g
busco constante
já falei, meu e s p a ç o
e você?
f i c a. . . perto,
pertinho
deixa o e s p a ç o
ser e s p a ç o
se você voltar,
e o amor puder ser
106 e,
nosso único
pedaço de e s p a ç o.
107 VI
O amigo
que amigo
do outro lado do rio
se tornara na sombra
do inimigo!
por causar em mim
em nós
o desafio
de partir a fio
a nado, a solidão
de uma memória
que já não conhece a graça
pois dói -- que dor!
pois deixa -- que abandono!
a glória -- que imprudência!
de não querer o que se quis
e querer o que não se quis
108 a este só cabe
a indecisão em suas mãos
de volta no coração
agora, com razão,
que ironia
desejo
inveja
e ferida
a distância o trai
e nos trairia
se não formos
ao final
amigos.
109 VII
Incondicional existência
toca-me sem exigência
fé é abertura, e não crença
que desperta nova vivência
Há uma dinâmica na vida
a saber, ela também é crer
Um bem constante
Adeus para poder viver
Ela promove mudança
ação em última pendência
O drama da palavra calma
fé é a preocupação suprema
A fé permite viver, caloroso
110 o rio que flui dentro de mim
tranquilo e harmonioso
uma beleza sem início e sem fim
Incorpora a ansiedade,
a culpa e talvez o medo
para viver, sem idade,
viver um novo enredo
Fé, posso ter fé
sem saber quem tu és?
E posso saltar
sem saber quem Ele é?
Pois não basta acreditar,
não basta crer
para a fé precisa-se ter
a coragem de ser.
111 Copyright © Vitor Chaves de Souza, 2013
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Fotografia da quarta capa por Vitor Chaves de Souza
Modelo: Nicolas Antonoff
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