A Leitura e os Contos
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A Leitura e os Contos
os seus pensamentos. Sugere coisas e diz-me o que pensa que eu devo fazer quando estou perdido ou confuso. Foi a minha mãe que me deu a ideia do índio. Às vezes, não posso interagir fisicamente com ele na minha mente. Às vezes, limitamo-nos a sentar-nos juntos e a fumar um cachimbo. Geralmente vejo-o a fazer várias coisas e a pensar por mim. Por vezes nem sequer o vislumbro ou penso nele, mas ele ajuda-me a racionalizar e a interpretar os meus sentimentos e as minhas acções. Ele é A Leitura e os Contos muito simples e está sempre perto de uma tenda. Calça mocassins e veste calças de camurça e uma camisa. Tem longas tranças negras, e em volta da cabeça uma tira feita com penas e contas. Usa em redor do pescoço uma fieira de contas castanhas, brancas, azuis e pretas. Os mocassins são ornados de contas. Parece sempre tranquilo. A busca da identidade Nesta sociedade, temos poucos rituais para assinalar o fim da infância e o início da idade adulta. Queremos que os nossos adolescentes assumam cada vez mais a responsabilidade pelas suas vidas, na escolha de empregos, de namorados e de colégios, mas não deixamos de os tratar como crianças. Castigamo-los, negando-lhes regalias, quando pensamos que não estão a comportar-se como adultos responsáveis. Os adolescentes são principiantes. Estão a enfrentar, pela primeira vez, muitas experiências e problemas de adultos. Subitamente, vêem-se diante de problemas tão diferentes como o significado dos papéis masculino e feminino, a identidade e a 159 actividade sexual, preocupações financeiras, seguro de automóvel, candidatar-se a empregos, decisões sobre a escola e sobre sair de casa e tentar entender quem são. Além disso, ainda queremos que vão deitar o lixo fora e que façam todos os deveres sem demora. Eles precisam de toda a nossa compreensão, orientação, paciência e estímulo e, naturalmente, também queremos a sua cooperação e respeito. O que em geral ocorre é uma luta emocional pela supremacia. Para encontrar a sua própria identidade, os adolescentes repelem frequentemente as figuras dos pais e de outras autoridades e contam com o apoio e conforto dos amigos. Na adolescência, dos 16 aos 19 anos, a busca da própria identidade intensifica-se. É esta mesma busca que atemoriza pais e professores e os torna mais restritivos. O adolescente defronta-se com a necessidade de afirmar a sua vontade de conhecer a própria identidade, e receia que, se o fizer, possa perder o amor dos pais. A mensagem por detrás disto é: “Posso correr o risco de afirmar quem sou, ou tenho de me conformar em ser amado por vocês?” Como disse Brett, de dezassete anos: “Quero que o meu pai compreenda que sou jovem apenas uma vez e que preciso de experimentar. Não estou a tentar exasperá-lo. Apenas tenho necessidade de procurar.” Outros adolescentes sentem-se culpados em relação à dicotomia entre o eu que mostram aos pais e professores e o eu que está a estudar diferentes papéis com os amigos. Tim, de dezoito anos, diz: “Quero que os meus pais saibam quem realmente sou. Eles pensam que sou bonzinho.” Os pais não estão menos confusos do que os filhos. Primeiro queremos prendê-los e, momentos 160 depois, não vemos a hora de os soltar. Eu mesma dei comigo a Índice transformar-me numa mãe cada vez mais exigente quando o meu filho se preparava para ir para a faculdade. Durante o último ano que passou na escola secundária, tentei impor uma lei marcial cada Sonhos na palma da mão.......................................................................1 De pequenino se torce…o leitorzinho! ..............................................13 A Senhora dos livros.............................................................................39 Algumas leves considerações acerca dos contos de fadas .............45 O pássaro da lua ..................................................................................51 Como inventar histórias? ....................................................................59 Era uma vez ….um dia de escola normal ............................................63 A hora do conto ...................................................................................69 vez mais rigorosa em relação a chegar cedo, até que Brendan me chamou a atenção para ao facto de que podia ficar fora até mais tarde quando estava no nono ano! Compreendi, então, que estava apreensiva não apenas em relação ao comportamento que ele e os amigos estavam a adoptar, mas também em relação ao seu crescimento e afastamento da família. Dizer adeus a uma relação dependente e tentar encontrar uma nova maneira de se relacionar baseada na independência são as tarefas do adolescente mais velho, assim como dos pais ou do O desejo de Ruby ..................................................................................73 professor. E não é fácil. Este é um período de muitas emoções Contar um pouco de mim! .................................................................79 mescladas. Para os filhos, a alegria, as expectativas e a liberdade A Vovó-lobo ..........................................................................................81 que associam à passagem para a idade adulta estão misturadas com A luta pelo sentido ..............................................................................95 o medo de se afastar da segurança e da protecção do lar. Os pais Madassa ..............................................................................................129 perguntam-se se incutiram todos os valores “certos” e se O uso das imagens mentais ..............................................................133 Uns minutos de relaxamento ...........................................................175 É a tua vez de ler, Sara! ......................................................................177 As folhas da tília ................................................................................185 Quem conta um conto... ...................................................................191 As palavras cor-de-rosa e as palavras cinzentas .............................195 O conto como auto-conhecimento .................................................203 A casa feita de sonho .........................................................................209 prepararam o filho ou filha de maneira suficientemente boa para a vida. Os professores preocupam-se em saber se prepararam os alunos de modo adequado para os estudos futuros ou os deveres profissionais. Pais e professores têm também que se haver com sentimentos de perda quando os adolescentes amadurecem e se afastam do seu convívio diário. Esta é uma fase difícil para o adulto que não tem consciência do necessário distanciamento pelo qual o adolescente deve passar. Os adultos podem, muitas vezes, sentir-se rejeitados, impotentes e i 161 não-amados, e perguntam-se o que aconteceu com a relação Burros & livros ...................................................................................213 afectuosa que existia entre a criança e o adulto. Lembre-se de que As sapatilhas de Sofia ........................................................................219 esta é uma fase de desenvolvimento e não durará para sempre. O avô Lop ............................................................................................225 Quanto mais espaço der às crianças para encontrarem a sua própria identidade, mais elas quererão compartilhá-la consigo – no momento certo. O contar é um instrumento de reconstrução do mundo .............233 E se a lua pudesse falar… ...................................................................259 Cosmicidade da infância ...................................................................263 Como se afastar da identificação excessiva Infância e palavra...............................................................................269 Os adolescentes ficam muitas vezes absorvidos por uma coisa Os contos de fadas no cuidado e tratamento de crianças com perturbações emocionais ..................................................................273 ou outra, tornando-se cegos em relação a tudo o que está fora do Eros e Psique .......................................................................................297 campo da sua paixão particular. Esta pode ser a música, a moda, o Os contos e os mitos no ensino - uma abordagem junguiana ......299 sexo oposto, a imagem do corpo, o atletismo ou uma crença. Não O elogio da narrativa .........................................................................311 há nada de errado nisto. A coisa em si pode ser, na verdade, O contador de histórias .....................................................................317 inteiramente positiva. Se nos identificamos com a verdade, integramos essa qualidade na nossa vida. No entanto, essa identificação, quando levada ao extremo, pode bloquear a possibilidade e a viabilidade de qualquer outro sentimento, sensação ou pensamento. Os adolescentes apegam-se tenazmente à própria identidade, ao modo como se vêem a si mesmos e como desejam ser vistos pelos outros. A intensidade dos seus sentimentos e ideias faz com que, por vezes, sejam vistos de uma forma muito limitada, não apenas por si mesmos, mas também pelos outros. Precisamos de os ensinar a dar um passo atrás e chegar a uma visão de perspectiva de si mesmos. Nesse sentido, um exercício proveitoso é o do “Santuário”, ou seja, levar os nossos jovens a imaginar um espaço edénico, paradisíaco, onde possam estar tranquilos. Proporciona ii 162 aos adolescentes a oportunidade de alterar o seu ritmo, de ir para um lugar dentro de si mesmo, um lugar seguro e livre da intensidade dos sentimentos juvenis e encontrar um centro tranquilo e uma sensação de paz interior. Alex, de dezassete anos, escreve: Fui ao labirinto de Ojai e olhei para o vale e o mar, que é sempre uma fonte de calma para mim. Parecia SONHOS NA PALMA DA MÃO ÃO próximo devido à sua imponência e, de longe, a sua imensidão e quietude acalmam-me. Demorei a encontrar No sonho nho, a liberdade este lugar. Inicialmente escolhi o meu quarto mas havia demasiadas distracções. Depois, voltei ao local de um Uma história — como a sentimos? grande sonho que tive na noite anterior, mas não pude Como semente. Uma semente que cresce conn onnosco e nos ter ali nenhum pensamento original porque a minha faz crescer. Estes «Sonhos na Palma da Mão» pagam agam, de certa mente ficou a vaguear em volta do sonho. Percebi o maneira, o encanto que me deram «A Rapariga dos os F Fósforos», a vento de Outono e senti o perfume das árvores. «Sereiazinha», «O Patinho Feio», «O Rouxinol». l». Longe, na Outro exercício que nos ajuda a reconhecer sentimentos e a infância. Com as suas sombras e claridades — Ande ndersen nunca expressá-los, em vez de ficarmos identificados demais com eles, é o mentiu a vida e soube sempre aliar beleza e sofr sofrimento — chamado “Boletim Meteorológico”. rolavam sobre mim, como berlindes mágicos, percor corriam-me os cantinhos da alma, abriam portas rtas Faça com que o seu filho ou os seus alunos tracem um grande secretas, círculo, dividindo-o em quatro quadrantes. Pergunte-lhes como se permitiam-me respirações, outras, que ue nem sabia. estão a sentir no momento – mental, emocional e fisicamente. Uma dimensão, cujo bafo tento, aqui qui, passar a Em seguida, eles anotam um sentimento em cada um dos corações com olhinhos interiores. quadrantes e escolhem dois ou mais sentimentos para explicar: O pássaro não era maior do que a fa falange do dedo polegar. Tão delicado, tão delicado e peq pequenino, que a menina quase receava tocar-lhe — e a m maior parte das 1 163 vezes só o fazia com o olhar, deixando-o no longo alfinete, espetado no raminho seco da estante de livros do quarto da avó. Sim, porque as meninas ainda costumam ir a casa da avó, mesmo sem cestinho de bolos, sem capuchinho encarnado, sem lobo, nem Exausto Amistoso floresta. Só de autocarro. Era esta uma menina atenta e curiosa e tinha perguntado logo donde viera o passarinho. — Da China — respondera, breve, a avó, que escrevia uma carta. Atrapalhado Fora de sincronia — Ai, é um rouxinol? — insistira excitada, pois a avó tinha-lhe lido «O Rouxinol» de Andersen e da China era só o que sabia e mais amava. Mas a avó, esquecida da história, estranhara simplesmente: Na parte de baixo do papel eles escrevem: “Eu sinto-me ……porque...”, explicando como se sentem e por que se sentem — Um rouxinol?! Porquê um rouxinol?... Não parece. Lembra assim. Eis aqui um exemplo de David, um rapaz de dezasseis anos: mais um pisco, por causa do papinho vermelho... Olha aqui — puxou a enciclopédia e deixou-lha aberta na página colorida das Sinto-me exausto porque se quiser dormir o bastante, aves, enquanto voltava à escrita. não faço todos os deveres escolares. E as minhas relações pessoais sofrem porque não tenho tempo para elas. Sinto-me Passado pouco tempo, a menina tornou: atrapalhado porque a minha irmã está a chegar a casa. A — A China é grande, vovó? última vez que a vi compreendi uma porção de coisas — Imensa... — e a avó abriu totalmente os braços para negativas sobre a nossa relação, e não quero cair nisso outra mostrar a impossibilidade de a abarcar. vez. Sinto-me amistoso porque este ano fiz novos amigos. As pessoas gostam de mim e aceitam-me mais do que esperava. Grande, grande, percebeu a menina. Curioso, mas dava Estou contente. Sinto-me fora de sincronia comigo mesmo pássaros pequeninos. porque o meu corpo está tão cheio de energia sexual que não — Como o mar? sei o que fazer. 164 2 — Ai que marota, que não me deixa acabar a carta!... Como o A expressão desses sentimentos ajuda o adolescente a aceitá- mar, não. O mar é maior do que toda a terra e a China é menor do -los, a contê-los e a compreendê-los para que eles não possam que o Canadá, um país onde há muita neve e gelo... manipular a sua vida. Ajuda-o também a ver que pode ter ao mesmo tempo sentimentos conflituosos. David sentia-se amistoso, Ah! Não era fácil. Era preciso comparar... embora, simultaneamente, se sentisse atrapalhado em relação aos — E há rios na China? seus sentimentos pela irmã. A identificação dos sentimentos diminui A avó rira. Claro que havia rios e um deles era o rio o controle que eles exercem sobre o nosso comportamento. Amarelo... A busca de sentido E a menina imaginou um guache espesso de sol derretido, a correr entre montanhas azuis, nas margens, espadas verdes de Os adolescentes sentem uma enorme aflição pela situação bambu, que também sabia, ordenadas como exércitos. Complicada em que se encontram as coisas no mundo e ficam indignados com a China. E como a avó saíra do quarto para atender o telefone, o as pessoas mais velhas por nos terem metido na confusão em que seu interesse regressou ao pássaro. Olhou-o uma vez mais. A nos encontramos. Muitas vezes passam por uma crise existencial e cabecinha e as asas eram de uma só pena, cor de pinhão, anegrada expressam-na em desespero. “Para que serve a vida? Qual o seu no leque do rabinho. Os olhos, contas de missanga miúda, estavam sentido? Nada do que eu faça tem importância, pois, afinal de aprisionados em círculos branco-giz, desenhados a pincel. O contas, estamos a caminho da destruição.” papinho era preciosa seda vermelho-sangue. Que lindo era! Quem No período da nossa história em que Robert Kennedy e o teria feito, com amor e agulhas minuciosas? Muito desejava sabê- Martin Luther King Jr. foram assassinados, trabalhei como -lo. Como se hesitasse em erguer voo estava pousado num ninho de consultora raminhos secos, espiralados, de sementes mortas. E nesse ninho profundamente tocada com a reacção dos miúdos a essas mortes e passou a chocar os sonhos da menina. com o seu sentimento de que a vida estava fora de controle e de de adolescentes que usavam drogas. Fiquei que eles não podiam fazer nada quanto a isso. “Que diferença faz se Agora, sempre que ela dormia em casa da avó e naquele eu parar de usar drogas, quando pessoas como Martin Luther King quarto pedia-lhe, mudamente: Jr., que estavam a tentar, com tanta dificuldade, tornar as coisas melhores para os homens, são assassinadas? Que hipóteses tenho — Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na eu de realmente causar impacto no mundo?” minha mão! 3 165 A nossa tarefa como pais e educadores é proporcionar aos Depois, já deitada, só com a grenha dos caracóis fora da nossos filhos e alunos uma valorização do potencial positivo da roupa, muito aconchegada, esperava que o sonho a visitasse. Mas vida e dar-lhes a esperança de que podem influir na mudança. como queria também ajudar, começava a cerzi-lo com os vagos fios Muitos adolescentes mais velhos começam a questionar a sua do que sabia: aquele tamanho grande da China, o rio Amarelo... até relação e a sua responsabilidade para com o mundo e a desconfiar que abandonava tudo e se situava apenas no longe, sem lugar certo. dos caprichos das circunstâncias da vida que estão além do seu Então, via surgir o palácio daquele imperador que tinha no seu controle. Fazem perguntas do tipo: “O nosso destino é controlado império um rouxinol que conseguira livrá-lo da morte e todas as por alguma força externa ou temos controle sobre ele?” “É o noites cantava para ele, perdoando-lhe tê-lo substituído por um Universo algo que devemos temer?” “Há um Espírito, uma pássaro mecânico. Divindade ou Fonte exterior? Que influência exerce nas nossas Aquela história continha toda a China para a menina. E ela vidas?” Estas perguntas existenciais da juventude podem ser sabia o palácio todo de porcelana, irisada, como feito de frágeis resolvidas considerando-se o que está além dos nossos “pequenos asas de borboleta, doirado pelo sol, que se reflectia nos lagos de eus locais”, no domínio transpessoal. Isto acarreta uma busca de cristal despolido pelas sombras da floresta e morria, longe, flor sentido, uma busca de valor e uma ligação mais profunda com o eu rubra, na linha do mar, onde o pescador lançava as redes. E, pelos autêntico. Esta exploração do eu pode ser experimentada como um caminhos conhecidos da história, chegava aos canteiros onde as sentimento de “unidade” com a natureza ou com outros seres flores não tinham uma placa de zinco ao pescoço, como as do vivos. Ouvi alguns alunos da minha turma do último ano no jardim botânico, onde a avó a levara, mas guizinhos de prata, que colégio descrevê-lo assim: “Quando a minha máscara cai, as com o seu tlim! chamavam a atenção dos distraídos para a beleza minhas defesas baixam e compreendo que tu e eu somos um só. cetinosa das suas pétalas, para o seu perfume doce, para os seus Não há separação; tu tens os mesmos medos, os mesmos desejos e brilhos vários e coloridos. Era ali naquele mundo encantado que o as mesmas necessidades que eu.” pássaro tinha nascido. Os corredores e os esquiadores atingem uma “experiência Que rumores eram aqueles? Parecia-lhe sentir passos culminante” quando se fundem no seu meio ambiente e o apressados no interior do palácio e no jardim andavam jardineiros movimento se faz sem esforço. Esta compreensão visceral de que o a distribuir lanternas e a pendurá-las em árvores anãs. Havia com meio ambiente e o eu actuam juntos, em harmonia, é um poderoso certeza uma festa. Num canto, numa espécie de pagode, com um freio contra o uso abusivo da natureza e de outros seres vivos, e telhadinho de abas graciosamente erguidas, uma dama costurava. E 166 4 como se tivesse receio de que a noite descesse antes de acabada a fomenta o desenvolvimento de uma consciência planetária. Como sua tarefa, os seus dedos longos, como pétalas frágeis, afeiçoavam disse John Muir: “Se arrancamos uma flor, descobrimos que ela está apressados e com pontos miúdos um corpinho de pássaro. unida a todas as coisas no Universo.” A menina espreitava, interessada. A dama estava a pregar-lhe A busca de uma ligação mais profunda com o eu ajuda os a missanga dos olhos. Depois, com delicadeza, aprisionou com um adolescentes mais velhos a compreenderem a sua própria sabedoria íntima e a reconhecer que eles têm dentro de si todas as respostas, pincel os olhinhos em círculos brancos. Estava pronto. Aliviada, a se tiverem tempo de se concentrar, aquietar a mente e ouvir. O nobre dama do palácio fechou o estojo de costura, guardou os exercício do “Aliado Interior” estimula o participante a encontrar pincéis numa caixa de charão e com uns passinhos miúdos, correu dentro de si um ser sábio que proporciona orientação e apoio e que em direcção ao palácio. Mal chegou ao seu quarto, poisou o seu pode ter respostas para as perguntas pessoais. Eis a seguir a reacção tesouro em cima da cabaia negra, já estendida sobre a cama. Que de Erinn, uma rapariga de dezassete anos, a este exercício: sucesso ia fazer! Ia lançar a moda dos pássaros! O meu espírito era antes um sentimento, uma protecção E, como a menina imaginava pela imaginação da dama, que me envolvia. Fez-me entrar na caverna de cristais e senti sentiu que todas as outras iam morrer de inveja, agora que o uma emoção muito intensa. As lágrimas corriam pela minha pássaro mecânico do imperador do Japão estava na moda, quando face, como se eu estivesse a libertar-me. Queria pegar no meu ela entrasse na sala do trono. Aquele vermelho cintilante do espírito, buscando conforto, mas ele não era um objecto, papinho brilharia como um rubi na seda negra da sua cabaia, pois embora eu o pudesse sentir. Como precisava de alguma coisa tencionava fechá-la com ele. A dama não podia esperar mais e tão para agarrar a fim de me proteger, procurei alcançar um impaciente estava que começou a pintar o seu rosto de «biscuit» cristal e peguei-lhe, sentindo que o meu espírito dera uma transparente. parte de si mesmo ao meu cristal. O meu espírito disse-me que Por fim, vestiu a cabaia de seda. Não precisava de perguntar me livrasse dos meus medos de incapacidade. Disse-me que eu ao seu espelho de prata se haveria alguém mais belo, porque o tinha uma falsa imagem de mim mesma e que era realmente espelho devolvia-lhe um rosto-flor a emergir do cálice de seda muito mais forte do que pensava. Disse-me também que negra do colarinho, onde o pássaro fazia nascer um botãozinho de deveria enfrentar a minha mãe e gritar com ela, porque eu sangue. A dama sorriu à sua imagem. Parecia uma estampa estava sempre a dar em vez de receber. Sou a mãe da minha delicadamente laçada. E assim se deixou ficar em muda mãe e do meu irmão, e o meu espírito disse-me que tinha 5 167 contemplação. responsabilidades demais. Disse-me que precisava de agir como uma criança para libertar as minhas tensões. O palácio começava a estar iluminado por mil luzes e as paredes brilhavam como as paredes do samovarzinho de porcelana Este tipo de diálogo interior pode ajudar os participantes a libertar as suas tensões, conquistar um sentimento novo de da avó, quando ela lhe acendia a lamparina. Sons musicais, autoconfiança e aceitação de si e a compreender que não estão pingentes de água e cristal ecoavam pelos jardins, onde os sozinhos no mundo. Pode também proporcionar ao adolescente balõezinhos festivos começavam a acender brandos crepúsculos, uma experiência concreta da esfera transcendente e um ponto de nas ramagens anãs. E naquele mundo feérico, recortado pelas partida para iniciar explorações mais profundas. Matt, de dezoito mágicas sombras do jardim, se fechava o sonho da menina, que anos, escreveu: adormecia profundamente. influenciou-me Depois, entre as tarefinhas da escola: colagens, picotados, intensamente; enquanto antes não chegara a considerar esta cantares, e o brincar acordado do dia-a-dia, a menina começava a possibilidade, estou hoje prestes a acreditar. Posso não pensar que na história que a avó lhe lera, não se falava de nenhuma acreditar num poder exterior, mas acredito na consciência dama do palácio. E se na história não havia uma dama como podia deste organismo total e belo a que chamamos Mãe-Terra. Ele o passarinho ter sido feito por ela? Então a menina apagava aquele diz-me respeito e planeio estudá-lo. Deixá-lo agora em sonho. Quem o tinha feito tinha sido com certeza a criadinha — a suspenso seria cometer uma injustiça face ao meu aliado e a que sabia o rouxinol verdadeiro e fizera descobrir o seu canto, que mim. arrancava lágrimas aos conselheiros do imperador. Tinha sido com O encontro com o meu aliado certeza ela. E a menina dirigia o seu coração e pensamento para A criança interior encontra-se com o eu ampliado outros rumos. Quando voltava a casa da avó já levava a semente Antes de despedir-se da adolescência e saltar, com uma doutro sonho, que punha a chocar no ninho do pássaro. Antes de confiança cega, para a idade adulta, é útil estabelecer contacto com adormecer olhava os seus olhinhos, quietos, de missanga miúda, a criança interior para compreender a nossa continuidade e aprisionados pelo branco-giz do pincel, e pedia-lhe uma vez mais, responsabilidade para com o futuro. Quando temos a oportunidade no segredo do seu desejo: de reviver o amor e a aceitação que experimentamos como — Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na crianças, ou a falta disso, lembramo-nos de quem somos. Saber de minha mão! onde viemos ajuda-nos a escolher para onde ir, e através das 168 6 E, pelos caminhos do imaginário, depressa, depressa, imagens mentais dirigidas podemos sanar qualquer conduta instalava-se naquela China, onde as raparigas se chamavam «Chuva irregular que tenha raízes na tenra infância. “A criança interior” de Primavera», «Orquídea do mar» ou «Lua de Outono», mas desta pode fazer o adolescente lembrar-se do mistério, da maravilha e da vez afastava-se do palácio de porcelana, adormecido entre as flores beleza da vida, e da curiosidade, da liberdade e da criatividade da tilintantes, embrenhava-se pela floresta e procurava a casinha à infância. Um sonho do passado pode reacender-se; uma relação pode ser compreendida e restabelecida; um problema de beira do mar. E, em bicos de pés, espreitava pela janela. personalidade pode apresentar-se para ser solucionado. Para A criadinha cortava um retalhinho de seda vermelha do realizar todo o nosso potencial, cada um de nós deve chegar a um quimono do imperador, que o alfaiate lhe dera, e afeiçoava-o a um acordo com o passado, aprendendo com ele, e avaliar como cada corpinho de menos de beija-flor. E mesmo instalada na bolha de parte da nossa história pessoal influencia o nosso presente e futuro cristal azul da noite (coisas de sonho!) ouvia tudo o que se passava colectivos. dentro de casa. Somos mais do que os nossos corpos, mentes, emoções, necessidades, desejos e sonhos pessoais. Temos uma natureza — Filha — ralhava, meiga, a mãe — que estás tu a fazer? superior e transcendente e fazemos parte de uma espécie que está Sacrificas os olhos depois do trabalho, para quê? paulatinamente a evoluir no sentido da totalidade. A criança — Não se aflija... Faço um passarinho para a nossa janela. pequena não está separada desse eu transcendente, mas o Verá que, quando estiver pronto e espetado ao pé da flor do vaso, adolescente, em busca do conhecimento racional e intelectual do há-de atrair o sol, que virá fazer-lhe companhia, enquanto trabalho mundo, acaba por se distanciar da sua natureza espiritual. As no palácio... imagens mentais dirigidas dão aos adolescentes uma oportunidade valiosa de sanar esta dicotomia entre mente e coração. — Tonta!... A minha alegria és tu. A tua lida começa antes do sol se erguer e só termina quando ele se apagou há muito. Tu és o Através do contacto com o eu ampliado, é possível lançar um meu sol, vai descansar! — pedia a mãe, ansiosa, com receio de ver olhar para o futuro e ter uma ideia geral do nosso lugar no todo. O adoecer o seu único amparo. eu ampliado é a parte do eu que já alcançou o seu potencial pleno, o projecto que se converteu em realidade. Realizar o exercício do “ — Mas isto não é um trabalho... é um gosto, mãe. Verá como Eu Ampliado” pode dar origem a uma percepção capaz de vai ficar bonito... modificar as atitudes dos adolescentes em relação a si mesmo e ao — Tonta, minha tontinha!... mundo à sua volta. Depois disso, eles podem ver a realidade de 7 169 modo diferente, valorizar a vida a partir de uma nova perspectiva e — Por hoje faço-lhe a vontade. Vamos, então, descansar... perder o medo do futuro. A minha conversa com o meu eu Amanhã continuarei... ampliado tem sido, para mim, uma fonte de beleza, de inspiração e Nos sonhos, os amanhãs e as noites sucedem-se num piscar de energia, especialmente durante os períodos em que duvido de de olhos. E a menina, sempre do lado de fora da janela, seguia mim mesma: aqueles serões e via nascer o passarinho até que finalmente ouviu a Uma senhora idosa caminhou na minha direcção a criadinha dizer: sorrir, com os cabelos brancos presos no alto da cabeça. A — Veja, mãe, não é lindo? Não poderá cantar como o minha primeira impressão foi a da sua força. Ela tocou-me no rouxinol da floresta e, por isso, fiz-lhe um papinho vermelho- rosto com a mão forte e enrugada e senti, mais do que vi, uma -sangue, que será o seu canto mudo. profunda compaixão nos seus olhos. Observei a sala, — Como é belo! — exclamou extasiada a mãe. — Nunca tive semelhante a um atelier de tecto alto e paredes de adobe um presente tão belo! branco. Era tudo muito simples. Da parede pendia uma bonita tapeçaria de tonalidades delicadas que ela tecera no tear. A menina olhava também, pela janela, aquele corpinho Mostrou-me vasos de cerâmica translúcida, fina como papel, minúsculo e gracioso — outro e o mesmo do quarto da avó — que acabara de cozer. Resplandeciam. Estava a resgatar um enquanto a lua de Outono subia no céu e tornava de prata as ondas antigo processo alquímico. Os vasos eram frágeis como cascas que vinham quebrar-se na orla do mar. E o seu sonho fechava-se, de ovo, delicados embora firmes, à semelhança do equilíbrio porque ela era pequenina e não resistia àquele embalo das águas. que todos devemos ter para caminhar na vida. Ela aproximou- Ao acordar e durante dias, aquele sonho parecia-lhe possível -se de mim e disse-me que havia ainda muito trabalho para e dava-lhe abrigo no seu coração – até que começava a pensar se a fazer. Mostrou-me muitos grupos de pessoas que esperavam história do passarinho não seria outra. Lembrava-se das princesas do lado de fora. Formavam ondas iguais aos anéis de água encantadas que os príncipes libertavam noutras histórias da avó. num lago depois de nele ter sido arremessada uma pedra. Lembrava os presentes que havia nessas histórias: Quando parti, ela pôs uma pequena pedra branca na minha — Ai fita, fita! ai pente, pente! da minha amada que está mão. Enquanto voltava, ainda sentia a sua mão no meu rosto. doente... Finalmente, se de facto é verdade que ensinamos aquilo que 170 Talvez o passarinho também fosse um presente de amor. Não 8 fita, nem pente, mas pássaro. Seria? Quando voltava a dormir no precisamos de aprender, então ainda preciso de me concentrar, quarto da avó olhava, longamente, o corpinho frágil, que oscilava relaxar o meu corpo, tranquilizar a minha mente diante das no alfinete entre flores secas, e voltava a pedir, numa intimidade distracções da vida diária, levar-me menos a sério e penetrar mais sem voz: fundo na esfera de sabedoria e conhecimentos universais onde há esperança, harmonia e unidade cósmica. Este é apenas o começo. — Passarinho, querido passarinho, pousa um sonho na Lembremo-nos de que ensinamos aquilo que somos, e, quando minha mão! fazemos estes exercícios com os nossos filhos, alunos, família e outros adultos, tornamo-nos todos como crianças, recuperando o E aquela China de sonho, a da história que amava, começava milagre, o mistério e a alegria de tudo isso. a nascer. Só que o palácio de porcelana e o jardim de flores tilintantes ficavam quase escondidos entre a massa da floresta, pois SANTUÁRIO os via do alto mar, do barco do pescador. Com a sua vela-asa agitada pelo vento — singrava em direcção a terra por entre ondas IDADE: de 15 anos à idade adulta azuis com recorte de berço, como as dos desenhos que fazia na EXERCÍCIO: 10 minutos escola. Àquela hora, aquela que o pescador amava, trabalhava ainda no palácio, mas em breve estariam juntos. E ele aconchegava CONTINUAÇÃO: 15 minutos ao peito o presente que lhe trazia. A pesca tinha sido abundante — Fecha os olhos e começa a concentrar a atenção na os deuses fossem louvados! — e tinha-a ido vender a uma aldeia respiração, observando o ar que entra e sai das tuas narinas. Dá a ti ribeirinha e próxima, onde havia festa no templo. Por causa da mesmo a sugestão de que, a cada expiração, o teu corpo fica cada solenidade do dia muitos se tinham permitido um luxo de peixe vez mais relaxado. (Pausa) Muito bem. Agora imagina que estás a fresco. viajar através do tempo e do espaço para um lugar que é, para ti, um santuário. O santuário é seguro, simples e belo. Pode estar — Ora — diziam — as luas também têm as suas diferenças. localizado na natureza, nas colinas ou perto do mar, pode estar no Depois da venda, juntara-se à multidão para ir ao templo quarto da tua casa ou em qualquer outro lugar à tua escolha, onde queimar incenso, grato pela sua boa sorte. E fora precisamente à te sintas seguro e protegido. Vai lá agora e sente as cores, as saída do templo, entre o movimento alegre das cabaias, que os seus texturas, os cheiros, os sons, os sabores. Como que o teu corpo fica olhos descobriram o passarinho, no tabuleiro do vendedor. Que nesse lugar. Terás alguns minutos contados no relógio, que é todo delicado era! Mal o vira com o seu papinho vermelho, pensara nela 9 171 o tempo de que precisas para te relaxar neste santuário. (Pausa de e na cascata negra do seu cabelo, que uma vez se desatara na três minutos) floresta e ela voltara a torcer como uma meada de seda. Agora, aquela seda nocturna podia ela rematá-la com aquele gancho- Agora é hora de voltares para cá, trazendo contigo a sensação -passarinho, que lembrava uma jóia. O vento impelia o barco — de segurança e protecção que sentiste no santuário, pronto para o embora menos velozmente do que os desejos daquele coração desenhares ou escreveres sobre ele. Contarei até cinco. Abre os ansioso. olhos quando eu disser cinco, sentindo-te relaxado e alerta. Um... Mas finalmente, colhida a vela, o barco varado na enseada, dois... três... quatro... cinco. liberto, o pescador seguiu apressado o caminho da floresta — o Reacções ao exercício do santuário caminho dela para regressar a casa. O sol já se tinha posto e as primeiras estrelas faziam lucilar o seu oiro num azul ainda aguado, Eis o que disse Matt, de 18 anos: acima das árvores, que eram já um túnel escuro, onde o canto do O meu santuário é uma clareira fechada, cercada de rouxinol se erguia — perfume na noite. Tão belo! Tão belo e palmeiras e de outras plantas verdes e cortada por um regato; apaixonado que o pescador não pôde impedir-se de dizer, em voz algumas pedras grandes formam um local de repouso perto do alta, como estava escrito na história: regato. O lugar é silencioso, a não ser pelo rumor dos pássaros — Que bem que canta! e do regato. Um pequeno pagode de pedra está situado do — Assustaste-me! Não te esperava aqui, a esta hora! — outro lado do regato. O meu aliado, a raposa, está deitado ao exclamou, rindo, a criadinha que trazia no braço o cesto com a meu lado. Circula uma brisa fresca. O céu azul é visível, bem comida para a mãe. — Não foste hoje à pesca? como algumas nuvens brancas, encapeladas e claras acima da — Fui, mas vim esperar-te... Sentemo-nos um pouco. Tenho abertura no alto das árvores. Parece a fusão perfeita da uma surpresa para ti. natureza com um jardim feito pelo homem. — Uma surpresa?! Diz depressa! A CRIANÇA INTERIOR — Abre as tuas mãos, para eu depor o meu presente... Vê tu mesma... IDADE: de 15 anos à idade adulta — Oh! que lindo passarinho! É para mim?... Mesmo para EXERCÍCIO: 10-15 minutos 172 10 mim?! O papinho vermelho parece um coração... CONTINUAÇÃO: 15 minutos — E é um coração... o meu, cheio de amor por ti. Trouxe-o Fecha os olhos e começa a acompanhar a tua inspiração e para que ele possa fazer ninho na noite dos teus cabelos. expiração, através das tuas narinas. Enquanto segues o movimento da respiração, deixa o teu corpo relaxar. (Pausa) Agora, prepara-te — Mas só poderei usá-lo fora do palácio — e a criadinha riu. para acolher a tua criança quando ela surgir. Pode ter cinco, oito — Vou parecer uma dama... ou dez anos, ou qualquer outra idade. Também pode mudar de — Desata os teus cabelos, peço-te, para que eu o veja brilhar idade durante a visita. Ei-la que chega. Pousa a tua mão que entre eles! escreve na mão da criança quando ela chegar. Sente o contacto de Então a rapariga desatou os cabelos e o pescador afogou o ambas as mãos e começa a interagir com ela, deixando-a assumir o seu rosto naquela noite que apagava todas as imagens — e onde se comando. Sê o amigo mais velho da tua criança, o amigo que ela fechou também o sonho da menina que, finalmente, adormecia. sempre quis. Se ela quiser levar-te para o esconderijo secreto, para Como o abrir e o fechar de um leque, assim se abriam e fechavam um jardim ou para o quarto para brincares com ela, acompanha-a. os sonhos da menina com aquele passarinho do quarto da avó — Ela pode querer conversar contigo ou pedir-te que pegues nela ao até que ela se cansou e o abandonou ao mistério da sua grácil colo. Sê atencioso com as necessidades e desejos dela e aprende o fragilidade... que ela tem para te ensinar. Terás 5 minutos contados no relógio, que é o tempo de que precisas para ficar com ela. Podes começar. (Pausa de 5 minutos) Agora, é o momento de dizer adeus, por Matosinhos, Maio/88 enquanto. Agradece à tua criança o tempo que passaram juntos e diz-lhe que em breve lhe pedirás que volte outra vez. (Pausa) Luísa Dacosta Sonhos na palma da mão Porto, Edições Asa, 2004 Contarei até dez. Junta-te a mim quando eu disser seis, sentindo-te bem relaxado e alerta, e pronto para escrever sobre o teu encontro. Um...dois...três...quatro...cinco…seis… sete…oito…nove… dez. Maureen Murdock Giro interior S.Paulo, Cultrix, 1987 (excertos adaptados) 11 173 DE PEQUENINO SE TORCE…O LEITORZINHO! UNS MINUTOS DE RELAXAMENTO PARA OS MAIS NOVOS QUE AINDA ACREDITAM NO ● Será que as crianças/os adolescentes ainda lêem? TAPETE MÁGICO… Hoje em dia, a publicação de livros ilustrados para recém-nascidos é cada vez mais frequente e estes descobrem o encanto dos livros que lhes são destinados. Por sua parte, os profissionais Tentem sentar-se confortavelmente no tapete mágico empenham-se em levar os livros onde quer que haja bebés: creches, (senão, ele não levanta voo!) ou nas cadeiras, descruzem as centros de acolhimento temporário de crianças, instituições de solidariedade social. É a acção conjunta das instituições e destes pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos profissionais, bem como a atenção dos pais pelo despertar dos abertas, com as palmas para cima; tentem fechar os olhos e filhos, que permite que os livros cheguem aos seus mais jovens respirem profundamente, pondo a mão direita em cima do leitores. Quando a criança entra no jardim infantil, começa a levar peito, para sentirem o coração…Ouçam, em silêncio, o seu livros para casa, porque os professores sabem muito bem o quão importante é, para a criança, folhear um livro com os pais, mesmo bater cada vez mais lento; e preparem-se para ouvir uma sem saber ainda ler. Por esta altura, muitos pais inscrevem os filhos linda história… numa biblioteca, comunicando-lhes assim o seu amor pela leitura. Deixem os livros circular! ♫♫♫ Uma música tranquila pode acompanhar os minutos de relaxamento….Por exemplo, se a história que vamos ouvir fala de um violino, porque não convocar o som suave dos seus acordes? É importante que os livros circulem entre a escola e a casa e que sejam lidos, porque a escrita, independentemente do lugar, do momento ou da pessoa que lê, representa um importante elo de continuidade para a criança. 13 175 Quando entra na escola primária, a criança que já viveu experiências de leitura continuará a apreciar o tempo que o pai ou UNS MINUTOS DE RELAXAMENTO a mãe dedicam a ler-lhe livros. À medida que a criança cresce, o texto torna-se mais compacto e as ilustrações mais requintadas. PARA OS MAIS VELHOS… Seguem-se os primeiros romances curtos, com ou sem ilustrações. Tentem sentar-se confortavelmente no chão ou nas cadeiras, Quando, tanto em casa como na escola, se criou um ritual de descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos leitura em voz alta, a narrativa torna-se uma fonte de aventuras, de descobertas, e a leitura conjunta constitui uma alegria. A criança abertas, com as palmas para cima; procurem fechar os olhos e compreende, então, quão vasto é o campo da literatura para a respirem profundamente; sintam o bater do coração; descontraiam os juventude e as possibilidades infinitas de escolha que lhe estão músculos todos do vosso corpo: os dos pés, das pernas, do tronco, dos reservadas. Nesta idade, se já foi iniciada nos livros ilustrados, se já braços, dos dedos das mãos; concentrem-se no vosso rosto e beneficiou dos contos, das poesias e dos romances, já terá porventura um grãozinho de leitora a germinar dentro dela. Mas, descontraiam também todos os músculos da cara, a começar pela embora hoje o livro faça parte da vida das crianças – desde a casa à testa, pelas faces, pelo queixo, pelos olhos e finalmente pelos lábios; se escola primária, passando pela creche e pelo jardim infantil –, as quiserem, imaginem na vossa mente uma paisagem do vosso agrado crianças que tiveram dificuldades em aprender a ler, ou que não vivem num ambiente onde os livros são valorizados, podem muito onde se sintam leves, serenos e felizes; desfrutem da paisagem que bem detestar ler: é a esses que se dirige, prioritariamente, este vos rodeia e caminhem por ela, sem pressa, ouvindo o bater tranquilo livro. do vosso coração; [APÓS CERCA DE CINCO MINUTOS…] Mexam, aos poucos, os dedos dos pés e das mãos e abram os olhos A cada um a sua vez! Aos 7-8 anos, começa a leitura solitária mais longa. (ou, se preferirem, mantenham-nos fechados); vamos ouvir uma Quando a criança começa a ler as suas primeiras ficções, linda história…. é bom continuar a entremear a leitura em voz alta com a leitura silenciosa. O pai ou a mãe lêem um capítulo ♫♫♫ Uma música tranquila pode acompanhar os minutos de relaxamento….Por exemplo, se a história que vamos ouvir fala da Natureza, porque não convocar o som do murmúrio da água? 176 e a criança lê outro. 14 Ao contrário do que se possa pensar, há muitos adolescentes que lêem. E que lêem livros imponentes. A prova é que o número de editoras de livros para a juventude está a aumentar. Nos livros, os jovens encontram temas e problemas que lhes dizem respeito e à sociedade, problemas e temas que os fazem reflectir e lhes abrem portas de comunicação com os outros. Num estudo sobre os lazeres culturais, 88% dos jovens de idades compreendidas entre os 10 e os 14 anos liam livros, 87% liam jornais e revistas e 77% liam banda desenhada. Confirma-se, assim, que os adolescentes lêem. Mas o que lêem eles? Lêem romances de aventuras (69%), literatura do horror e do fantástico (64%), séries com um herói É A TUA VEZ DE LER, SARA! recorrente (60%), romances policiais (54%) e livros sobre um tema específico (51%). Também apreciam o imaginário das sagas e dos relatos biográficos. Os autores e os editores encarregam-se de lhes São oito horas da manhã. O sol queima e o ar seco enche-se fornecer contos fantásticos com heróis e enquadramentos que se do cheiro das ervas aromáticas. A estrada poeirenta que conduz à repetem, mas também lhes oferecem romances com qualidades vila estende-se ao longe, direita como uma recta. Sara conhece bem mais psicológicas. esta estrada, porque a percorre todos os dias para ir à escola. A A civilização da escrita não está em vias de desaparecimento, caminhada longa não a perturba, porque é uma menina sonhadora está em vias de mudança. As escolhas e os hábitos de leitura dos e tem perninhas fortes. A escola é que a cansa. nossos adolescentes já não são os mesmos das gerações anteriores. Quando, na sala de aula, o Professor Adónis diz: “Peguem A leitura tornou-se variada e multifacetada. No contexto de uma nos livros de leitura, meninos!”, Sara sente-se mal. As suas mãos oferta cada vez maior, cada um faz as suas escolhas e cria a sua tremem e a voz não sai. Sara detesta ler em voz alta. As palavras própria “manta de retalhos” cultural. E como “os leitores são, com intensidades similares, telespectadores, ouvintes e utilizadores de são muitas e correm à desfilada, umas atrás das outras, linha após computador”, a oferta e a procura reflectem o contexto mediático e linha, página após página. Até chegam a enrolar-se-lhe na língua. A os seus ritmos, modos de funcionamento e produtos. menina hesita constantemente e tropeça em todas elas. Quando é a sua vez de ler, toda a turma se ri. É um facto que os heróis dos filmes fazem vender livros. Mas 15 177 — Não tenhas pressa, Sara! — diz o professor, com gentileza. os jovens que vêem televisão e passam horas ao computador continuam a ler para descontrair porque, mesmo que a leitura exija — Não tenhas pressa, Sara! — troçam Carla e Carmen, no fim um esforço, também permite que o corpo repouse e que o espírito das aulas. divague. — Não tenhas pressa! — entoam os mais pequenos em coro. Os jovens telespectadores podem ser excelentes leitores e Apenas Emílio se mantém afastado e nada diz. Sabe que utilizar simultaneamente o computador e o livro, sem problemas e Carla e Carmen têm ciúmes porque Sara é bonita como uma sem complexos. E constroem o seu imaginário tanto através dos princesa. livros que têm de ler para as aulas como através dos jogos e dos filmes. Em casa, chamam-lhe “cordeirinho”, porque é a mais nova, e nasceu muito depois dos irmãos. Os pais criam ovelhas e a família Se podemos deixá-los deleitarem-se com as sagas, também trabalha arduamente na quinta todos os dias, à excepção do devemos propor-lhes romances mais ancorados na realidade, no passado, no mundo dos adolescentes de outros países. A literatura domingo. juvenil é influenciada pelo cinema, pelas artes, pelas correntes Ao domingo, depois do almoço, o pai faz a sesta e a mãe literárias e históricas. senta-se à sombra para tricotar. Depois de algumas malhas, O livro ajuda o adolescente a aperfeiçoar os seus raciocínios, também ela sucumbe ao calor. Então, Sara corre pelo mato e vai até a aumentar os seus conhecimentos e a esclarecer os seus às colinas, onde mora Helena. sentimentos. Infelizmente, alguns jovens recusam-se a ler. Todavia, Sentada no seu velho automóvel com os pneus desmontados, mesmo com esses, uma abordagem diferente ou livros apropriados Helena espera Sara. Esta senta-se no lugar do condutor e leva a podem fazê-los restabelecer uma ligação com a escrita. Seja qual velhinha a passear. Um passeio a fingir, que as conduz bem longe… for a idade, a leitura ajuda, diverte e enriquece. Enquanto a menina conduz, Helena conta-lhe histórias dos Livros para todos os gostos seus tempos de juventude, da época em que o seu carro era novo e Torna-se cada vez mais necessário explicar às crianças e aos rutilante. Sara conta-lhe o quanto detesta ler em voz alta, a forma como as palavras se engasgam na sua garganta como se fossem pão jovens tudo o que a leitura lhes proporciona. É preciso dizer-lhes que, seco, e a troça que a turma faz dela. mesmo que não estejam de acordo com um livro, isso não quer dizer que não haja algum outro na biblioteca que lhes agrade. — É verdade que as pessoas são maldosas, por vezes — diz 178 16 Helena — mas não desanimes. É tão bom saber ler e poder ● A necessidade de ler e os imensos benefícios da leitura saborear histórias bonitas. Prazer do jogo e prazer do eu Certo domingo, cansada de conduzir, Sara sentou-se no Coloquemo-nos no lugar da criança que escuta uma história: banco de trás do carro. Enquanto acariciava o couro estragado, as palavras fornecem-lhe o sentido do conto. Atenta, interpreta, à enfiou a mão entre as costas e o assento. Qual não foi o seu espanto sua maneira, as frases que ouve. Às vezes, não capta tudo. Mas isso quando encontrou um livro velho e poeirento, cuja capa se não tem importância, porque captou o essencial e, no decurso de decompôs ao tentar abri-lo. leituras posteriores, captará a totalidade. As imagens, que ela considera parte integrante da narrativa, também contribuem para a — Meu Deus, Sara! — exclamou Helena. — Olha o que está entusiasmar. A criança é uma pesquisadora incansável de prazer, escrito: Para a Ana, com o amor da Mãe e do Pai. Este livro salvo se viveu traumatismos muito intensos. Se a leitura de uma pertencia à minha filha; o pai e eu oferecemo-lo pelo seu história lhe proporcionou prazer, lembrar-se-á dela e pedirá que aniversário. lha leiam de novo. Isto repetir-se-á até que um adulto lhe sugira — Leia-mo, por favor! — suplicou Sara, já sentada no lugar uma outra história, o início de uma nova aventura. De história em da frente. história, o prazer de ler desenvolve-se, aprofunda-se e torna-se A velha senhora abanou a cabeça: “desejo” de outros livros. E o que encanta a criança quando lê? Todas as informações — Não, Sara. que encontra, tudo o que, à semelhança de um jogo, a toca e lhe A menina ficou desconcertada, mas logo a cara séria de provoca um efeito de surpresa ou de alegria. Do nascimento à Helena se abriu num sorriso. idade adulta, o jogo é parte integrante da construção do ser — Era uma vez uma mulher casada com um homem muito humano. Uma história que se lê é recebida como um jogo. rico… Quando a criança escuta ou quando ela mesma lê, joga com as personagens e as suas representações, como se fosse uma Era a história de uma bela menina e das suas duas meias- aventura ou uma fantasia onírica. Experimenta o prazer do jogo ao -irmãs malvadas. estruturar o seu eu através destes heróis com os quais se identifica, Era tão divertido ler com Helena! e através da repetição. A felicidade renovada da leitura desenvolve Sara conseguiu mesmo ler algumas das passagens sozinha. o desejo de ouvir outras narrativas engraçadas, outros contos 17 179 Sempre que uma palavra se revelava mais difícil, a velha senhora maravilhosos ou, se a criança tiver idade suficiente, de ler outras lia-a com ela. Em breve, chegaram ao fim do livro: Então, Cinderela histórias. casou com o príncipe e viveram felizes para sempre. Ludovic tem uma pequena biblioteca. Certa manhã, chora. Quando o sol se pôs, Helena fechou o livro. Recusa-se a ir ao infantário e quer ir com a mãe para o Sara estava tão feliz que não conseguia articular palavra. emprego desta. Quando a mãe hesita, esta criança de dois anos resolve sozinha o problema: pergunta-lhe se pode levar o — Este livro é teu a partir de agora — disse-lhe a velha seu livro favorito para o infantário. Aliviada, a mãe aceita e senhora, acariciando-lhe a mão. —Trá-lo contigo no próximo Ludovic passa a levar o livro com ele todos os dias. Um dia, domingo, para o voltarmos a ler. esquece-se dele e tudo volta à normalidade. No dia seguinte, Sara estava impaciente por chegar à escola, Será que Ludovic procurava a pessoa de quem gosta no livro, porque queria mostrar o seu novo livro ao Professor Adónis. através das imagens e das palavras? Será que vive a presença da — Ah! É a Cinderela! — exclamou. criança do livro como um simulacro de si mesmo? O livro tornou-se um amigo. O psicanalista inglês Winnicott — Leia-nos o livro, Professor! — pediram os alunos todos. demonstrou o valor insubstituível do jogo na vida da criança. O Ao ouvir o professor ler o livro, Sara recordou a história toda, jogo nunca é inocente: aperfeiçoa a compreensão íntima da criança como se as palavras desfilassem diante dos seus olhos. Quando o e satisfaz as suas necessidades relacionadas com a separação e a Professor Adónis pediu aos alunos que abrissem os livros de leitura, reparação. Sara abriu o seu, cheia de vontade. Mas, quando chegou a sua vez No caso de Ludovic, o livro tornou-se o objecto de transição. de ler em voz alta, as palavras misturaram-se na língua e a menina Permite suportar a passagem da casa-mãe para o infantário, como começou de novo a gaguejar. se fosse um ursinho ou outro objecto qualquer. O tempo da leitura representa um elo entre o interior e o exterior. O livro responde a — Não tenhas pressa, Sara — disse o professor. determinadas necessidades e, muitas vezes, satisfá-las. Emílio olhou para Sara e viu que os olhos da colega se Desde a mais tenra infância, as obras lidas numa interacção enchiam de lágrimas, à medida que se debatia com as palavras. tripla – adulto, criança e livro – proporcionam momentos Carla e Carmen riam-se nas suas costas. excepcionais, no decorrer dos quais o adulto oferece a sua voz e o seu tempo. Quando Sara se encontrou com Helena no domingo seguinte, 180 18 O livro preferido de Simon, de seis anos, é Je ne joue plus1. É contou-lhe tudo o que acontecera. a história de um rapaz que luta contra, e triunfa sobre, as — O Emílio é o único que não se ri de mim — explicou. infelicidades da vida. Simon mostra o livro a todas as pessoas — Esse Emílio parece um príncipe — disse a velha senhora. que vão a sua casa. E diz bem alto: “O meu pai lê-mo todas as — E, já agora, quem achas tu que podes ser? noites. Ao domingo, lê-o várias vezes. Chamamos-lhe “o nosso Helena foi a casa buscar um vestido de noite e disse, fazendo livro querido.” uma vénia: Enquanto que no caso de Ludovic o livro funcionava como — Este vestido parece ter sido feito para si, Princesa. uma autorização da mudança espacial e se tornava objecto transicional, no caso de Simon o livro torna-se objecto relacional. A Todos os domingos Sara lia para Helena. Quanto mais lia, leitura permite, mesmo àqueles que já lêem romances, ir mais menos assustada se sentia ante a perspectiva de ler em voz alta na longe, ir à procura do que ainda não compreendemos e que aula. E, quanto menos medo tinha, melhor lia. Algum tempo queremos compreender. Os livros ajudam sempre a crescer e a depois, a Directora da Escola, Dona Dalila, entrou na sala do construir-se. Professor Adónis para ouvir os alunos ler. Um a um, todos leram A linguagem de todos os dias e a linguagem dos livros em voz alta. Chegou a vez de Sara. Esta abriu o livro e sentiu-se Desde os primeiros anos de vida que a criança tem a noção logo mal. O professor Adónis esperou, paciente. Os alunos ficaram de que existem duas linguagens: a primeira é a linguagem da vida irrequietos. quotidiana, das trocas no seio da família e da escola, aquela que Então, Sara pensou em todas as palavras que tinha lido com permite comunicar. Nela estão inseridas as palavras de todos os Helena. Viu as letras amigas que dão as mãos para formar palavras dias, aquelas de que precisamos no imediato, as palavras da que dançam e cantam em conjunto. Sentiu a mão de Helena no seu aprendizagem escolar e as palavras das trocas de ternura. A ombro e ganhou coragem. Quando começou a ler, as palavras segunda é a linguagem dos textos. Trata-se de uma língua precisa, fluíam como as águas de um rio no início da Primavera. rica, construída, por vezes poética. É a língua da narrativa, do conto ou do poema. É constituída por frases elaboradas, por jogos — Lês maravilhosamente — elogiou a Directora. de palavras, por buscas de sonoridades, pela música da língua. O Pelo canto do olho, Sara viu Emílio a sorrir. Depois das aulas, autor trabalhou a escrita. Pensou-a, pesou-a, aperfeiçoou-a e regressaram juntos a casa. 1 Já não brinco. (N.T.) 19 181 — Gostarias de dar uma volta no meu carro? — convidou cinzelou-a antes de ela ter sido impressa para os jovens leitores. Sara. Jonathan tem três anos. Os livros fazem parte da sua vida e Emílio riu: são os seus objectos preferidos. Logo que algum membro da — Onde está o teu carro? família tem tempo livre, Jonathan pede-lhe que lhe leia uma história. Uma recusa funciona como um castigo. Infeliz, — Anda, que eu mostro-te — disse Sara, pegando-lhe na comenta: “Acabaram-se os meus momentos memoráveis.” A mão. mãe pergunta-lhe o que quer dizer com aquelas palavras. Quando Helena os viu chegar, acenou-lhes e disse: “Aborreço-me, já não tenho histórias bonitas.” De repente, a — Venham depressa! mãe lembra-se de lhe ter lido aquela palavra num livro e dá-se Sara sentou-se ao volante e Helena sentou-se no banco de conta de que o filho se quer familiarizar com a palavra e, por isso, a utiliza. A mãe explica-lhe o sentido da palavra, e trás para que Emílio ficasse ao lado da menina. Jonathan repete-a como se fosse uma lengalenga. Aperfeiçoa, — Tu é que és o Emílio? assim, a seu conhecimento da língua. — Sou, sim — respondeu o garoto timidamente. — Sou o As palavras dos livros são eruditas, mas também são lúdicas, amigo da Sara. inventivas. A escrita permite dar livre curso à imaginação, — Achas que ela lê bem? — perguntou Helena. memorizar um grande número de vocábulos, de expressões e de frases que, embora simples, já são literatura. As crianças gostam de — Lê maravilhosamente. brincar com palavra novas, com as metáforas que só encontram — Aposto que não sabias que ela conduzia tão bem. nos livros. Dizem-nas, redizem-nas e, pouco a pouco, vão — Confesso que não — riu o rapaz. descobrindo o seu sentido exacto. Aos sete anos, David recebeu como prenda o Dictionnaire — Onde vamos hoje? — perguntou Helena. du bonheur des expressions2. Enquanto passeia com o livro, — Vamos a um sítio muito longe daqui — respondeu Sara. exclama: “Não sou uma galinha molhada, mas uma força da Diante delas, a paisagem imensa da savana perdia-se de vista. natureza, sou esperto como um macaco, satisfaço os meus Os cumes das montanhas cintilavam à luz do sol poente, quais castelos saídos de uma lenda. 182 2 20 Dicionário das Expressões Felizes. (N.T.) No ar tranquilo da tardinha, Sara pôs-se ao volante e contou desejos, e tu comes como um ogre.” uma história nova: Tal como David, todas as crianças gostam de jogar com as imagens, as sonoridades, as repetições, as rimas. O prazer começa Era uma vez… com as trocas orais e continua na leitura dos textos. Quando a criança cresce, tem de se submeter ao sentido. Mas continua a apreciar os jogos de palavras, as aliterações e as astúcias que lhe Niki Dally À toi de lire, Sarie ! Paris, Gautier-Languereau, 2003 (Tradução e adaptação) permitem rir-se da língua. Joga ao sentido e ao sem sentido. Numa oficina de escrita criativa, a criança poderá escutar poemas e falar das suas próprias emoções através das suas criações linguísticas. Jane tem nove anos. Frequenta uma oficina de leitura e escrita todas as quartas–feiras, na biblioteca. Depois de ouvir alguns poemas, escreve: “Caminhei ao longo de um grande riacho que se transformou num lago de lágrimas.” Jane gosta imenso desta actividade que designa como “ a exprimação” de todos os seus sentimentos! O desejo secreto de saber ler Paco tem 5 anos e requisitou o livro La Fugue3na biblioteca. Pede muitas vezes aos pais que lhe leiam esta história, que fala de um gato que é constantemente maltratado. Um dia, o animal foge e procura um rapaz que viu uma vez, e que tinha o nome Jules estampado na T-shirt. Depois de muito errar pelas ruas de Paris, o gato acaba por encontrar o amigo dos seus sonhos. Neste livro, Paco tenta encontrar as letras que compõem o nome Jules. Quer aprender 3 A Fuga. (N.T.) 21 183 sílabas e palavras. Em breve, lê uma frase inteira, depois duas. Sem que se perceba bem porquê, este livro despoletou em Paco a vontade de aprender a ler. Aprender a ler faz apelo a dois sistemas: primeiro, à descodificação silábica, ou seja, à arte de reconhecer as sílabas (conjunto de vogais e consoantes). Segundo, à decifração, ou seja, à possibilidade de antecipar o sentido, imaginar o fim de uma palavra ou de uma frase. Qualquer criança que não tenha tido dificuldades especiais de crescimento é capaz de aprender a descodificação silábica. Através de estudos realizados na escola pré-primária e na escola primária, os investigadores conseguiram provar que a aprendizagem da leitura se faz mais facilmente quando os alunos já tomaram previamente contacto com vários livros. As leituras em voz alta da infância motivaram-nos para a leitura, ao mesmo tempo que lhes trouxeram a capacidade de imaginar. Graças a estas narrativas que desenvolveram a sua imaginação, as crianças conseguem adivinhar palavras mais facilmente, emitir hipóteses, enunciar sentidos. A sua actividade favorita não é aprender a ler, mas querem saber ler para poder usufruir dos livros de que gostam. As crianças que, por múltiplas razões, não foram sensibilizadas para as histórias, não têm a mesma facilidade. São frequentemente crianças oriundas de casas onde ninguém compra jornais ou livros, e onde as pessoas não costumam lidar com a palavra escrita. Essas crianças arriscam-se a acumular dificuldades de aprendizagem. Para fazer face a estes insucessos, associações, educadores e autarquias lutam para que as crianças leiam livros 22 com regularidade. Não só no infantário e na escola pré-primária, mas também nos centros de lazer, nas colónias de férias. Mesmo AS FOLHAS DA TÍLIA quando a criança sabe ler, é bom continuar a ler-lhe histórias, já que são precisos pelo menos três anos até que ela consiga ler com desenvoltura. E fazei aquilo que a vós não houve quem fizesse para que em cada geração as árvores cresçam mais direitas. Os tropismos O ser humano é composto de linguagem – o que o distingue dos animais –, sensibilidade e pensamento. Mas todo o pensamento é linguagem. A linguística já nos mostrou como esta Cayetano Arroyo funciona. Cada palavra tem um sentido primeiro (às vezes, um segundo ou um terceiro) e um sentido subjacente, misto de afecto Quero explicar-vos, amigos, por que motivo escrevo contos. e de sombra. Uma simples palavra, como nos ensinou a escritora Até há muito pouco tempo não me apercebera da magia que ficou Nathalie Sarraute, pode fazer bem ou fazer mal. presa às minhas mãos quando, em menina, brincava com as folhas Quando recebemos um elogio de alguém de quem gostamos, da tília. Não podia guardar por mais tempo este maravilhoso sentimo-nos logo melhor. Inversamente, uma palavra pode magoar segredo e por isso aqui deixo a minha história. sem que aquele que a proferiu se dê disso conta. Sarraute chamou “tropismos” às sensações internas que podem surgir a partir de um Havia na minha escola uma árvore gigante e frondosa gesto, de uma frase, de um silêncio ou de uma hesitação. cujos ramos cresciam ao longo do grande muro do pátio onde Há crianças que sentem o mínimo desvio de linguagem. jogávamos nos recreios. O seu tronco era pequeno, mas a sua força era imensa, pois conseguira chegar ao céu. Era pelo A mãe de Joséphine morreu e esta vive sozinha com o pai. menos o que me parecia a mim, que a ia contemplar, enquanto Num dia de grande frio, chega à escola mal agasalhada. A lanchava, para em seguida brincar com as suas folhas. contínua, que não conhece o seu drama, exclama “A tua mãe Recordo como me esticava para colher a mais bela das suas deixou-te vir assim vestida!” Joséphine desata a chorar. A folhas, tão larga e verde, de tão requintado perfume, que para professora apressa-se a cobri-la com o seu próprio casaco e meus olhos ela continha em si todo um bosque. Devo dizer que leva-a para a biblioteca, sempre a tentar consolá-la. Propõe- foi esta a única árvore da minha infância, pois cresci numa rua 23 185 órfã de amigos verdes. Logo que conseguia colher uma folha, -lhe que escolha um livro. Joséphine escolhe L’étoile d’Erika4. A acariciava-a por trás e pela frente, consolava-me ao tocar a professora lê-lhe esta história comovente de uma mãe judia sua superfície rugosa, depois cheirava-a profundamente, diria que atirou a filha bebé pela janela do comboio, quando este se mesmo que a escutava através do meu nariz, e um pouco dirigia para um campo de extermínio alemão. A criança foi depois começava o ritual. Lentamente, muito lentamente, ia-a salva porque uma família austríaca a recolheu. Finda a leitura, despojando da sua carne até lhe deixar apenas as veias que Joséphine, já calma, entra na sala de aula pela mão da sulcavam a sua enorme superfície. Faziam-me lembrar professora. grandes rios e pequenos afluentes que iam ficando sem o Uma simples frase feriu Joséphine como se fosse uma arma e verde-mar dos seus vales e ribeiras para entretenimento de relembrou-lhe o seu imenso desgosto. Mas, tal como as palavras, uma menina que brincava a ser feliz sem o saber. Acabado o que devem ser manuseadas com delicadeza, também os livros ritual, a fragrância líquida daquela árvore impregnava as podem aquietar uma tristeza, sobretudo se for a própria criança a minhas mãos como uma oferenda anónima da vida ardente solicitá-lo. que palpitava dentro dela. A estrutura da narrativa Cresci e nunca mais tive notícias da árvore da minha A literatura traz às crianças e aos jovens a língua, as infância. Andei no instituto, na universidade, comecei a escrever expressões, as metáforas, em suma, toda a riqueza do estilo poético coisas muito sérias e difíceis de entender para uma criança. ou prosódico. Também lhes oferece a estrutura da narrativa. Se Também eu me converti numa mulher muito séria que dava pegarmos na pequena história que constitui o cerne de um livro conferências, ensinava, escrevia artigos de carácter social e para crianças, encontramos uma introdução, um desenvolvimento, uma situação de suspense e uma conclusão. No texto, as conhecia muita gente. Fui andando pela vida sem saber que algo personagens, despertava em mim, um mistério profundo que me acompanhara crianças animais, encontram-se, falam-se, separam-se, reencontram-se. Este poderá o enredo de uma desde a infância. Esse mesmo que começou a florescer quando primeira narrativa. Desde a infância que o jovem leitor tem escrevi o primeiro conto. Até eu própria me admirava ao ver a contacto com narrativas que aprenderá a reproduzir e a tornar forma como das minhas mãos fluíam as histórias fantásticas de mais complexas ao longo das suas leituras e da sua aprendizagem muitos seres que como personagens nasciam do meu coração. escolar. Com o romance, aprenderá modos de narração distintos, Não conformada com isto, comecei também a escrever 4 186 ou 24 A estrela de Erika. (N.T.) tais como o diário, a correspondência, o monólogo, a narração a poesia, e foi exactamente uma amiga poetisa que me deu a várias vozes, a linearidade cronológica ou a fragmentação da primeira pista do que seria o grande segredo da minha vida. A narrativa, a construction en abîme e o entrecruzar de histórias, minha amiga Alícia Wagner falou-me um dia de uma árvore entre outros. venerada pelos alemães, que crescia junto das fontes e das escolas, e que era a tília. Cantou-me depois uma canção sobre ela, cheia de Alice frequenta o segundo ano e tem algumas dificuldades a saudade; e despertou em mim uma estranha curiosidade de Francês. No entanto, gosta de escrever histórias. Como a mãe conhecer essa árvore que inspirava assim tão belos sentimentos. lhe leu inúmeros livros – tanto ilustrados como romances – Alice cria narrativas que, embora com erros ortográficos, Foi, sem dúvida, uma porta que se abriu para me dar a estão sempre bem estruturadas. São agradáveis, bem conhecer a origem da magia que impregnava as minhas mãos. Um construídas e engraçadas. Estas histórias fazem-na praticar a dia, sem contar, abri um livro sobre árvores e deparei com uma língua e mostram-lhe que consegue inventar e conduzir uma grande tília com as folhas desenhadas em ponto grande. A minha narração. Depois de algumas sessões num ortofonista, Alice memória, que permanecera adormecida, recordou finalmente a melhora a sua ortografia e aprende, aos poucos, as regras da árvore que havia impregnado a minha infância de verde esperança. gramática. Senti um imenso amor por quem tinha sido a minha companheira de jogos, mas o que eu não sabia é que ia ficar impressionada ao ler O imaginário: um sótão as pequenas letras daquela página onde se apresentava a sua Uma criança herda as esperanças e os fantasmas dos pais e silhueta. cresce através do confronto com a realidade que vai descobrindo, o que faz através do seu imaginário. O imaginário de cada criança é o Dizia aí que aquela árvore era a favorita das fadas, que nela lugar onde os seus desejos e a possibilidade de os realizar se habitavam desde tempos imemoriais, por um motivo: deixar defrontam, tendo em conta certas interdições culturais. É o espaço impressa em cada uma das suas folhas a fórmula mágica que iria virtual onde as imagens mentais são conservadas. Pode construir- impedir que os contos se acabassem no Mundo. Porque a criança -se de uma forma relativamente equilibrada, ou podem surgir que tocasse uma das suas folhas receberia o dom de escrever bloqueios que conduzam a uma morte interior (o autismo). É neste contos sobre as coisas sagradas deste planeta. espaço que se alojam as primeiras representações das relações E mais, mesmo que não quisesse escrevê-los, mais tarde ou afectivas, que têm a ver com as experiências corporais do bebé mais cedo, acabaria por contá-los, pois a seiva havia de estimulá-la relativamente à satisfação, ou não, do desejo. Essas representações 25 187 a imaginar histórias que teria irremediavelmente de parir se não também passam pelos sons, pelas palavras, pelas canções, pelas quisesse morrer de tristeza por estar tão prenhe de contos e de histórias, pelos livros, e claro está, pelas carícias e pela voz que se lendas e não poder dá-los à luz. dirigem à criança. Olhei para as minhas mãos e fiquei apaixonada pelo segredo É no imaginário que a criança irá procurar os elementos dos que elas continham; por ter brincado com as maravilhosas folhas seus fantasmas e dos seus sonhos. É a imaginação que vem enriquecer o imaginário e podemos compará-la a uma escada que da tília quando era criança tinha agora a profissão mais formosa e permite aceder ao sótão. Não há vida sem imaginação. Daí que o luminosa: descobrir a magia sagrada que impregna todas as coisas, livro seja tão essencial para as crianças, já que vem fazer funcionar, o profundo mistério que anima a vida e escrever isso, depois, em frutificar e enriquecer a imaginação. Os livros ilustrados forma de conto. Senti-me deveras uma fada, porque agora aquela alimentam-na com a sua beleza estética e a sua força inconsciente, árvore mágica que crescia dentro de mim podia contar com todas e cada obra funciona como uma pequena dramaturgia, na qual as as minhas forças para poder dar fruto. E escreveria um conto por crianças cada uma das folhas com que brinquei. personalidade e da sua sociabilidade. Na profundidade do seu ser, encontram os elementos de construção da sua elabora-se então um imaginário linguístico, poético, artístico e Posso, pois, afirmar que os contos são um dos maiores musical. tesouros da humanidade. Desde tempos remotos que nos têm ajudado a viver, dando-nos forças para superar os conflitos e É indispensável brincar a imaginar encontrar a luz na escuridão. Foram os canais de transmissão de A imaginação é aquela faculdade humana que permite uma sabedoria tão profunda que acabaram por tornar possível reflectir, pensar, inventar, criar. Está presente no domínio da passar através dos tempos o calor da humanidade e a importância pesquisa artística, científica e filosófica, no seio das quais de continuarmos vivos de geração em geração. desempenha um papel importante. Mas, se não for exercitada, emperra, tal como os músculos. É indispensável fazer funcionar a Creio que devemos dar especial atenção aos contos que nos imaginação das crianças em todas as idades. As histórias que lhes revelam a problemática da existência, embora de forma simbólica, lemos desbloqueiam e accionam a imaginação, que se alimenta do e nos oferecem alternativas; porque hoje, mais do que nunca, há mistério dos contos. Alguns professores do ensino primário e que acreditar no poder da vida. Nós, adultos, sabemos que as secundário constataram, porém, que alguns alunos tinham condições sociais não oferecem horizontes às novas gerações. dificuldades em distinguir o real do imaginário, a realidade da Vemos como boa parte da juventude se destrói, absorvida pela 188 ficção. Torna-se assim necessário precisar estas noções, que 26 permitem compreender melhor a realidade. Os prolongamentos da espiral do consumismo, da droga e da violência. E perguntamos: leitura – as perguntas, as respostas, os debates – permitem que sucederá aos nossos filhos, aos nossos alunos? Como educá-los equacionar o real e o fictício. Estas trocas em torno de um livro são para o mundo que lhes coube em sorte? tanto mais indispensáveis quanto colocam uma distância positiva A sociedade exige profundas mudanças e lança-nos entre as primeiras emoções e a sua compreensão. importantes desafios no sentido de evoluirmos através dos grandes A imaginação em perigo conflitos que surgem diariamente. A escola e a família também têm Quando se pede a algumas crianças para imaginarem, pede- de evoluir para uma educação mais consciente. É necessário que -se o impensável. Trata-se de usar uma língua que não lhes foi comecem a transmitir auto-estima às crianças, de forma a que, comunicada com o amor de que elas tinham necessidade. Nestes quando crescidas, possam enfrentar e transformar a realidade. A casos, só a doçura de uma presença pode ajudá-las a fazer essa meu ver, o valor da auto-estima é o bem mais apreciado dos nossos aprendizagem. Nestas circunstâncias, tanto a poesia, como o tempos; permite à pessoa acreditar em si mesma e conhecer os seus humor, como a imagem podem trazer algum apaziguamento. recursos, a fim de criar o seu lugar no mundo. Enquanto que algumas crianças privadas de trocas familiares compensam essa falta através da sua vida imaginativa, outras buscam mais a passagem ao acto. Se o jovem tenta verbalizar, mas o conteúdo verbal da sua resposta não é aquele que o adulto Rosa Mª Badillo Baena Contos para "delfins". Auto-estima e crescimento pessoal. A didáctica do ser. Porto, Asa Editores, 2003 (excertos adaptados) espera, o jovem será punido e sentir-se-á rejeitado. Responde, então, através de um acto físico, o que conduzirá a uma sanção. Daí a necessidade de insistirmos na verbalização. Um educador do infantário tinha reparado que a linguagem verbal era uma fonte de sofrimento para alguns alunos. Em casa destes, a televisão estava ligada de manhã à noite. Quando o educador encontrou a colecção “Sagesses et malices” 5começou a ler, todos os dias, algumas breves histórias, tentando incutir o amor pelas palavras aos seus alunos. No fim do ano, os alunos que tinham dificuldades davam a 5 “Sabedorias e malícias” (N.T.) 27 189 impressão de estar mais à vontade para falar e para imaginar. Na adolescência Quer seja pessoal ou colectivo, o imaginário gerou mitos, contos e poesias. O imaginário é esse sótão onde se entrecruzam desejos, fantasmas, pulsões, sonhos, imagens, perfumes, gostos e desgostos, músicas, esse jardim secreto onde se escondem os bons e os maus sentimentos, os acontecimentos felizes ou infelizes, com todas as suas sensações e emoções. Ler romances realistas, fantásticos, históricos ou policiais ajuda os adolescentes a continuarem a desenvolver a sua imaginação. Esta vai criando novas imagens, novos textos, novas formas, novas ideias. É algo que se deve fazer continuamente porque oferece à pessoa uma energia inventiva. A imaginação contribui para a formação do pensamento e estrutura a inteligência. Cada um de nós tem necessidade de se forjar identidades múltiplas e de se arriscar em sonhos incríveis. Cada um de nós tem necessidade de viver a busca de si, entre a realidade e a mentira. A leitura traz-nos tudo isto através do herói, herói esse que nos pode emprestar vida, força, sentimentos, paixões… Ávido de conhecimentos Ler desenvolve uma qualidade: a curiosidade. Curiosidade quanto à história, aos lugares, às personagens, à época, curiosidade quanto ao estilo. Um ser curioso sabe observar, escutar, armazenar, questionar, abrir-se aos outros e abrir-se a ele mesmo. Consequentemente, a leitura desenvolve um certo saber. Permite descobrir outras experiências, outros destinos, outros valores, 28 outros pensamentos, outras paisagens, outros mundos, outras artes. Ler é evoluir com personagens estranhas ou desconhecidas, QUEM CONTA UM CONTO... ou ver seres que se nos assemelham. Ler representa um tempo de encontros secretos. Ler representa uma experiência social: descobrem-se “Toda a gente sabe contar uma história.” Será? Dois continentes, ao mesmo tempo que se descobre o passado, a contadores profissionais falam da importância dos contos e de uma escravatura, o racismo, o holocausto, as guerras e todas as abominações que elas comportam. Ler é percorrer a sua época e ou outra regra para narrá-los bem. Tem de ser um acto de amor, encontrar jovens que vivem situações revoltantes, crianças exiladas dizem. ou que vivem em campos de concentração. É escutar a voz Stória, stória daqueles que estão no desemprego, dos que têm sida, dos que não Furtuna di Séu, ámen têm família. Ler é compreender, indignar-se e tentar decifrar o que As histórias da noite fazem parte de um ritual sagrado para se esconde na história da humanidade. É pensar, misturar as ideias, muitas crianças, que muitas vezes é profanado pela falta de tempo, abordar situações, sentimentos, experimentar toda a interioridade cansaço, má disposição… Vale a pena não desistir. Todos que permite aos jovens compreenderem melhor o que se passa concordam: os contos são fundamentais para alimentar o dentro eles, à sua volta, longe deles. imaginário. Contá-los é um acto de amor, dizem os contadores. Sylvie tinha doze anos. O pai tinha falecido recentemente e E dizem também que o melhor é pôr os livros de lado e a mãe tinha-se refugiado no desleixo e no desgosto. Sylvie ia à contar, olhos nos olhos, que há um menino que ganhou asas para biblioteca da zona, onde uma jovem bibliotecária, que a procurar o ó-ó; que um lobo se aproxima do jardim onde brinca o conhecia bem, lhe preparava uma pilha de livros todas as Pedro; que uma carochinha anda à procura de marido. Uma semanas: livros ilustrados que a poderiam reconfortar, história é sempre melhor quando não há barreiras entre o narrador aventuras loucas de quatro heróis e de mil perus a vaguearem e o ouvinte. por estradas americanas, ou romances que lembravam o seu Também ajuda lembrar as histórias que nos contavam os próprio caso. Sylvie devorava tudo. Hoje, diz que foi a leitura avós, os pais, os professores. É bom recordar situações de infância, que a salvou. diz António Fontinha, contador de contos profissional. Há um Ler é uma experiência social mais ou menos valorizada. É-o mundo, que tem a ver com a memória, que é aquele que se está a 29 191 tentar reacender. Temos de fazer arqueologia: ir aos sítios a que a muito na escola, pouco nos meios de comunicação, nada na memória está ligada, falar com as pessoas. O conto é importante televisão. Mas trata-se de uma experiência que se partilha, que dá para ajudar a desenvolver o espaço da oralidade em casa. Temos de lugar a trocas frutíferas entre amigos, e que permite reagir e reconstruir o espaço da oralidade para conviver ao nível do reflectir em conjunto sobre os mesmos livros. imaginário. Repouso, fruição e estilo… Não há receitas para contar bem uma história, porque o que Ler é estar sozinho, com o corpo relaxado, em tranquilidade. serve a um pode não servir a outro. Mas, diz, pode haver algumas A leitura exige um esforço intelectual, mas também permite um técnicas: a repetição é uma regra de ouro. As personagens ganham relaxamento. Ler é ter junto de si um livro, aberto ou não, lê-lo, vida com o tempo. Começa-se a experimentar coisas. Diz-se que pousá-lo, reflectir, voltar a pegar nele, ao ritmo que se desejar. Ler quem conta um conto acrescenta um ponto. É esse ponto, o é encontrar personagens e situações ideais, entesourar recordações memoráveis. Ler é deambular entre o interior e o exterior. Ler pormenor, que vai evoluindo. Isso também só acontece com as também é descobrir um estilo. A escrita tanto se aprecia em textos histórias que dão prazer contar. curtos como em textos longos. Ler é deixar-se levar pela O que leva à segunda regra: Nunca devemos contar um conto musicalidade das palavras, pelo ritmo, pela cadência e pela de que não gostamos. harmonia de certas frases. A língua pode ser surpresa, embalo, encanto… Toda a gente sabe contar uma história, defende o contador cabo-verdiano Horácio Santos. E, recorrendo também ao ditado A televisão e os jogos electrónicos popular, o contador acrescenta: A forma de contar é que é o ponto. A televisão pode ser um meio de enriquecimento cultural, já Ninguém conta a mesma coisa da mesma maneira. que o pequeno ecrã abre os olhos das crianças para a realidade Horácio Santos prefere também ter as mãos livres de livros e circundante. Há imensos documentários, feitos por realizadores recorrer à memória. Com um livro perde-se a capacidade de recriar. talentosos, que são fonte de conhecimentos científicos, artísticos e Quando conto, desdobro-me em personagens. O livro prende o históricos. Graças a emissões sobre a fauna e a flora, sobre a terra e sobre o mundo submarino, os jovens podem viajar e descobrir contador e parte o entusiasmo.” coisas que, de outra forma, lhes estariam vedadas. Fonte de Para o contador cabo-verdiano, todas as histórias são boas distracção, a televisão também pode ser veículo de ficção de para crianças, mesmo as que têm violência. No original, o qualidade, de desenhos animados cativantes, de filmes inteligentes. Capuchinho Vermelho morreu. Qualquer história tradicional, Mas torna-se necessário vigiar os programas e seleccionar as 192 30 emissões. É que, infelizmente, a televisão nem sempre é utilizada popular, tem partes violentas. Podem, no entanto, evitar-se certas de forma positiva. palavras, procurar outras que acertem melhor. Em França, 94% das casas possuem um ou mais receptores Horácio Santos começa sempre as suas sessões de histórias de televisão e, em algumas famílias, cada membro vive em função com uma tradição trazida de Cabo Verde: do seu programa favorito. Um telespectador passa, em média, duas Stória, stória horas e quarenta e cinco minutos por dia em frente do seu Furtuna di Séu, ámen aparelho. Há inúmeras crianças que consagram tanto tempo à (História, história, dádiva do céu, ámen) televisão como à escola e muitas começam a ver televisão logo de Porque um conto é uma graça divina. Todo o tempo manhã e acabam à noite, já tarde. dedicado a contar uma história é um tempo fértil, que germinará, Uma professora de Francês tinha reparado que os seus diz por sua vez Fontinha. Tudo o que se dá à terra, a terra devolve. A alunos do 6º ano estavam menos despertos de manhã do que terra não é madrasta. de tarde. Fez, então, um pequeno inquérito sobre os hábitos O imaginário, transmitido pelos contos, também não. É um televisivos. Constatou que mais de metade dos alunos da património que acompanha as crianças, que as cultiva. Um turma tinha um aparelho no quarto e que via televisão muito contador de histórias é sempre um educador: os contos passam depois das 23 horas. Quando se reuniu com os pais, falou-lhes valores, continua Fontinha. dos malefícios da televisão não controlada e do cansaço que as crianças mostravam durante as aulas. Falou-lhes da E é também por isso que Horácio Santos defende um possibilidade de gravar programas mais tardios e alertou-os trabalho depois da história: terminado o conto, há que identificar para o perigo de as crianças terem acesso às emissões na os elementos, ambientes, personagens, para que a criança possa privacidade dos seus quartos. Seguiu-se uma pequena troca de descodificar e recontar o que ouviu: Fazer o exercício da memória. impressões com os pais, da qual ressaltou o facto de não haver Neste processo, a criança estabelece o diálogo com os pais. momentos de partilha familiar, o facto de as crianças Fontinha sugere que os adultos entrem agora no mundo do petiscarem constantemente diante da televisão, a falta de narrador e que não o esgotem nos próximos anos, apenas enquanto horas de repouso, o tempo perdido para o desporto, a os filhos são crianças; pelo contrário, defende que este papel deve brincadeira, a leitura… ser prolongado por toda a vida. Depois deste encontro, alguns pais tiraram a televisão do 31 193 O resultado será uma forte cumplicidade entre pais e filhos. E quarto dos filhos e tentaram reflectir com os filhos acerca dos uma recuperação da tradição oral. programas que estes viam. Alguns alunos foram queixar-se à professora do que os pais tinham feito, assacando-lhe as culpas. Ela riu-se e garantiu-lhes que um dia lhe agradeceriam. Foi o que Rita Pimenta Público, Revista Pública 5 de Agosto de 2001 (excertos adaptados) aconteceu alguns meses mais tarde, quando elogiou o trabalho de uma aluna, que tinha feito progressos consideráveis. Esta confessou: “É graças a si! Dantes fazia os deveres diante da televisão. Agora que já não a tenho no meu quarto, concentro-me melhor!” Uma estatística confirma que 43% dos jovens com idades entre os 8 e os 16 anos têm televisor no quarto, o que significa que é impossível controlar a escolha de programas e que a hora de dormir é deixada ao critério do próprio adolescente. Além disso, a mudança contínua de canais converte-se numa atitude que o jovem adopta inconscientemente na escola com os professores. Os docentes com mais de uma dezena de anos de experiência são unânimes em reconhecer que a atenção dos alunos diminuiu consideravelmente, mesmo entre os pequeninos do infantário. Será que devemos tolerar esta utilização abusiva do pequeno ecrã, tanto entre os mais velhos como entre os mais novos? A televisão sempre ligada, qual fundo sonoro contínuo, é particularmente nefasta para os mais pequeninos, que se tornam passivos, e que se afastam da linguagem e das brincadeiras essenciais para a sua idade. Os miúdos dos 4 aos 7 anos habituam-se a um encadeamento de sons e imagens que se opõe ao esforço de concentração que precisam de fazer para aprender a ler. As crianças que passam cada vez mais tempo diante do ecrã correm mais riscos de se tornarem obesas. O sedentarismo arrasta consigo 194 32 o excesso de peso. Aqueles que vêem televisão regularmente, depois de virem da escola ou nas tardes em que não têm aulas, bem como aqueles que jogam mais de duas horas no computador, não As palavras cor-de-rosa COR-DE-ROSA e as palavras cinzentas AS PALAVRAS estão em tão boa forma física como aqueles que correm, saltam ou E AS PALAVRAS CINZENTAS praticam um desporto. O filho mais velho de Marie está doente. Para lhe fazer companhia, Marie passa uma quarta-feira inteira diante do televisor, acompanhada dos filhos. “Descobri que os meus filhos estavam tão absortos nos desenhos animados Um dia, sem se saber muito bem porquê, tudo aconteceu de americanos ou japoneses que nem me ouviam falar. Estavam repente: as palavras cor-de-rosa desapareceram do planeta! O que completamente prisioneiros da imagem. Os enredos eram são palavras cor-de-rosa? São palavras delicadas como Obrigado, frequentemente violentos e ao fim do dia estávamos todos Faça favor, Se não se importa, És tão importante para mim. estupidificados.” Palavras tão doces que são como mel no coração. Seria obra do O herói dos desenhos animados não tem a subtileza do herói Mago Cinzento, que só gostava do salgado, do picante e do dos livros. Contrariamente ao cinema ou ao teatro, que possuem amargo? Não… Eram os homens que, vá lá saber-se porquê, referências espaciais concretas e obrigam a um certo ritual, os preferiam as palavras picantes, amargas e salgadas. desenhos animados fornecem modelos irreais ao imaginário da Naquela época, existiam na Terra lojas de palavras cor-de- criança, sem qualquer tipo de distanciamento. Os adolescentes de -rosa e lojas de palavras cinzentas. Os vendedores de palavras cor- hoje já não distinguem o real do fictício. As explicações do adulto e -de-rosa vendiam Amo-te, Penso em ti, Muito Obrigado, Se faz a sua presença tornam-se, pois, indispensáveis. Por outro lado, o favor… Os vendedores de palavras cinzentas vendiam sobretudo uso generalizado da televisão contribui para formar uma sociedade Cabeça de alho chocho, Não me chateies, Cala o bico… A princípio, onde todos partilham os heróis da moda e se alheiam do ambiente comprava-se muito mais palavras cor-de-rosa do que palavras familiar, o que faz com que se isolem do mundo adulto que os cinzentas. Os vendedores de palavras cor-de-rosa faziam bons rodeia. Isto pode ser extremamente grave em lares onde a negócios, e um perfume doce envolvia a Terra. Os vendedores de comunicação é escassa e os elos entre os membros da família se palavras cinzentas passavam os dias à espera, porque só tinham encontram fragilizados. clientes uma ou duas vezes por ano, por altura de grandes zangas. 33 195 Numerosas famílias confessam ter necessidade de gerir o ☻☻☻ No entanto, um dia, os homens puseram-se estranhamente a tempo que os filhos passam diante do ecrã, mas dizem não ter a comprar palavras cinzentas. Havia uma crise de emprego, uma firmeza necessária para o fazer. Tanto as crianças como os jovens precisam de um adulto a seu lado para limitar o tempo passado greve de corações. Os patrões compravam muitos Vá pregar a outra diante do ecrã e para os ajudar a escolher os programas, bem como freguesia, Está bem arranjado, homem!, Obrigado pelos seus a altura de se dedicarem a outras actividades. O gravador permite serviços mas está despedido. Havia guerras entre famílias, gravar bons desenhos animados, documentários, filmes, e é divórcios, casais que já não se entendiam. Invejas entre irmãos, possível adquirir vídeos que desenvolvem a capacidade crítica dos zangas… Comprava-se vários Já não gosto de ti, Acabou tudo. Nas jovens e fazem deles espectadores inteligentes. O bom uso da lojas de palavras cor-de-rosa, muitos Obrigado, Por favor, Gosto de televisão passa pela educação e pela partilha. Por ver os programas ti, ficavam por vender. em conjunto e por os discutir. – Para o diabo com as palavras doces – diziam os homens. Uma ortofonista, que vivia sozinha com as duas filhas, – São caras e não trazem nenhum benefício. inquietava-se com o tempo que as miúdas passavam diante do Desolados, os vendedores de palavras cor-de-rosa já não televisor. Constatou que quase já não liam. Comprou um sabiam onde as armazenar. As lojas cor-de-rosa fechavam umas gravador e decidiu consagrar algum tempo a ver os programas atrás das outras. Passa-se, Fechado por morte do proprietário, com as filhas. Tentou educá-las para a imagem. Sempre que Liquidação total, Quinze palavras cor-de-rosa pelo preço de uma. emitia uma opinião, justificava-a. Falavam as três das Mas, mesmo a preços módicos, elas não atraíam ninguém. As lojas escolhas que faziam. Alguns meses mais tarde, as filhas já de palavras cinzentas, essas sim, prosperavam. Porque, e isso é bem viam menos televisão, eram mais selectivas e tinham conhecido, as palavras feias são contagiosas. Se no recreio te recomeçado a ler. lembrares de lançar uma, receberás dez em troca! Abriram-se Os mesmos limites devem ser impostos à utilização dos jogos mesmo lojas especializadas em palavras feias, risos grosseiros, de vídeo. O Monopólio e os jogos de cartas geravam outrora insultos horríveis. E os vendedores cinzentos trabalhavam dia e momentos de alegria e de encontro familiar. Hoje em dia, a técnica noite para descobrirem jóias raras, as palavras mais horríveis e mais invadiu os lares. Se não podemos afastar os nossos filhos destes maldosas! meios com os quais amanhã estarão em contacto permanente, ☻☻☻ 196 podemos, pelo menos, reduzir o tempo que passam com eles. O 34 desporto, os passeios, as visitas a museus podem divertir e afastar Como receavam ficar sem provisões, o que costuma os jovens destes “encontros” solitários. acontecer em tempo de guerra, as pessoas começaram a fazer Pierre, pai de dois rapazes e de uma rapariga, já estava conservas de palavras cinzentas. Congelaram-nas às dúzias, farto de ouvir o barulho dos jogos dos filhos. Decidiu jogar empilharam-nas nos armários da cozinha, nos guarda-fatos, com eles e, qual não foi a sua surpresa, quando descobriu que debaixo das camas. E, upa, ao menor atrito, ao mais pequeno o jogo que tanto os entusiasmava só consistia em matar os gracejo, à mais insignificante discussão, ia-se à reserva: Cala o bico, adversários! Perguntou aos filhos quem lhes tinha dado aquele Vai ver se chove, És um atraso de vida, Ó gordefas, e assim por jogo. Responderam que tinha sido emprestado por um amigo. adiante! Os aniversários tinham lugar no meio dos piores insultos. A partir de então, Pierre vai sempre com os filhos comprar os Cantarolava-se Infeliz aniversário, infeliz aniversário, lançando-se jogos de computador e partilham em conjunto o prazer de uma bomba de palavras feias no meio da festa. Entre os adultos, construir um castelo medieval ou um jardim zoológico. para se festejar a passagem do ano, comia-se as passas e bebia-se Os pais de hoje devem estar muito atentos aos jogos sumo de peúgas pretas, no meio de gracejos do género: electrónicos e à utilização que os filhos fazem da Internet, que – Desejo-te um ano péssimo… e, principalmente, muito tanto os pode ajudar a documentarem-se como pode transformar- pouca saúde! -se numa droga. As crianças e os jovens que lêem não deixam de E, quando se abriam as prendas, era um concerto de ver televisão ou de jogar no computador. São jovens do seu tempo, gemidos: mas que adquiriram a capacidade de escolher… – Que feio! Como é que tiveste uma ideia tão má? É, de ● Conclusão facto, o presente que eu mais temia! De algumas décadas a esta parte, tanto escritores como Antes das aulas, as crianças corriam para as lojas cinzentas e artistas, franceses ou estrangeiros, oferecem às crianças cada vez enchiam os bolsos de palavras feias para a hora do recreio. Antes mais obras de talento: livros ilustrados espantosos, ficções cheias das férias, os adultos também lá iam, para encherem as malas de de subtileza, obras que auxiliam na descoberta do mundo de hoje. palavras cinzentas, de piadas estúpidas, que atiravam pela janela na Há contadores para distrair as crianças, fazê-las rir, conduzi-las ao auto-estrada, entre as sandes e o café, durante os engarrafamentos: mundo do sonho. E há também ilustradores de talentos diversos Ó aselha, vai mas é plantar batatas! para enriquecer a sua percepção. Para uns e para outros, as crianças À face da Terra, a atmosfera era glacial. O Sol, que tem medo 35 197 das grosserias e dos arraiais de pancada, recusava-se agora a – desde o bebé que começa a ver imagens àquela que observa com brilhar. Lembrava-se de outros tempos, em que era acolhido de atenção os livros de arte – são leitores de corpo inteiro, e a sua braços abertos: afectividade, capacidade de reflexão, necessidades, direitos, e futuro, são sempre tidos em conta. Os textos e as ilustrações – Está bom tempo! Que maravilha! Obrigado, amigo Sol… reflectem as suas sensações, as suas emoções, as suas interrogações. Oh, meu Deus, como gosto do Sol… É verdade que a leitura pode constituir um elo entre a Em vez disso, ouvia-se agora: criança e o mundo adulto, um meio de partilha no seio da família, – Que calor horrível! Bolas! Kêkalôr! da escola, da biblioteca, das colectividades locais. É verdade que a Então as nuvens invadiram o céu, e a terra mergulhou num leitura pode abrir horizontes: alberga tanto os ensinamentos do período glacial. Toda a gente tinha frio. As pessoas recusavam-se a poeta como o murmúrio das histórias, desvenda o coração do despir-se, já não faziam festas umas às outras, já não nasciam escritor ao mesmo tempo que corre em busca do passado, do bebés. A Terra estava tão triste, sem flores nem palavras cor-de- espaço reencontrado e abre as suas páginas ao artista-mágico que -rosa! desenha traços e cores. Há todo um trabalho de autor, ilustrador, pedagogo, editor e ☻☻☻ No entanto, algures no mundo, um rapazinho não queria impressor que está na origem deste tesouro que os jovens podem habituar-se às palavras cinzentas. Talvez por, no seu bolso, ter desvendar sem cessar. O livro desenvolve a sensibilidade, a língua, o pensamento, a inteligência. Inúmeras pessoas, entre as quais ficado uma palavra cor-de-rosa meio gelada. “Eu”, dizia o Pedro, animadores, bibliotecários e livreiros, dedicam-se, em seguida, à “não quero um mundo onde mais ninguém canta; onde não se diz tarefa de fazer amar os livros ilustrados e os romances. bom dia, nem obrigado, onde há sempre tanto frio. Vou ver se Todo este trabalho profundamente impressionante faz com encontro o Sol.” O rapazinho caminhou durante muito tempo, que em França haja um público de pais extremamente exigente escalou colinas geladas, pequenas e grandes montanhas, vulcões que, por sua vez, transmitem aos filhos o amor pelos livros. extintos. Por fim, ao cabo de meses e meses de árdua caminhada, Façamos com que a afirmação de Jean Dellas, director da chegou exausto e transido à casa das nuvens. editora L’École des Loisirs, segundo a qual “a França é um dos – Toc, toc – bateu. – Venho à procura do Sol. países onde famílias e colectividades compram cada vez mais livros – Oh, oh! – exclamou a nuvem-chefe, que tinha tomado posse do céu cinzento. 198 para crianças” seja sempre verdadeira, já que, tal como afirma – Olhem só para isto… Um fedelho Geneviève Patte, especialista mundial em literatura infantil: “A 36 leitura é um instrumento que contribui para a difícil conquista da ridículo que vem à procura do senhor Sol! O Sol não aparece a liberdade.” ninguém! Desde que as palavras cinzentas tomaram o poder, somos nós, as nuvens pardacentas, que somos os chefes. Dito isto, virou as costas e fechou-lhe a porta na cara. O Rolande Causse Qui lit petit lit toute sa vie Paris, Albin Michel, 2005 (Tradução e adaptação) rapazinho sentou-se, confuso. Como responder? Não trazia no bolso uma única palavra cinzenta. Então, começou a chorar. A nuvem olhou para ele surpreendida: já há muito tempo que não via ninguém a chorar! Naquele universo glacial, todos os olhos estavam gelados, todos os corações estavam frios. – Pára com isso imediatamente! – gemeu a nuvem. – Se não, vou fazer cair um aguaceiro. (Porque as nuvens têm habitualmente a lágrima ao canto do olho.) Finalmente comovida, tomou, lá no íntimo, a decisão de o ajudar. – Olha – disse-lhe. – Aquela bolinha amarela ali em baixo é o Sol. Pedro abriu os olhos e viu de facto uma bola a bilhar, perdida na imensidão do azul: era o Sol, que estava quase a desaparecer… Já no limite das forças, o rapazinho caminhou em direcção à pequena bola amarela. – Bom dia! – cumprimentou. – Vim buscar-te. Tudo se tornou cinzento na Terra. Temos frio, sentimo-nos mal. Nunca nos rimos, nunca dizemos palavras delicadas. Precisas de voltar. E o Sol e o rapazinho começaram ambos a suspirar, pensando naquela “época cor-de-rosa”…. 37 199 – Precisas de voltar – insistiu Pedro. – Está bem, vou contigo, mas só a título de experiência… – resmungou o Sol. – Atira primeiro para a Terra estas palavras cor-de-rosa. Assim, o meu regresso será mais agradável. O Sol deu ao menino um conjunto de palavras cor-de-rosa: Por favor, É simpático da tua parte, Muito obrigado, Gosto muito de ti, Amor da minha vida, Se não se importa, etc. O rapazinho meteu-as nos bolsos, na boca, no boné, nas meias, em todo o lado. Todas as que conseguisse levar! ☻☻☻ Regressou à Terra e distribuiu-as ao acaso. De repente, nos engarrafamentos, as pessoas começaram a desdobrar os papelinhos cor-de-rosa: Faz favor de passar, Que tempo tão bonito, não acha?, Pode ir à minha frente, não tenho pressa nenhuma… Nos recreios, começaram a ouvir-se novamente risos simpáticos e palavras como És o meu melhor amigo, Claro que podes entrar no jogo… Em casa, as crianças voltaram a usar palavras cor-de-rosa: Obrigada, mamã, Por favor, Desculpa, não fiz de propósito… Nos aniversários, cantava-se alegremente e, nas festas da passagem do ano, formulava-se votos de felicidade e de saúde. O Sol voltou a brilhar e a deitar-se todas as noites na sua nuvem cor-de-rosa. E, juro, os vendedores de palavras cor-de-rosa começaram a fazer fortuna! Abriram-se mesmo outras lojas especializadas em sorrisos, em suspiros de satisfação, em 200 delicadeza, em cortesia, em civismo… Foi como mel para o coração! Quanto às palavras cinzentas, decidiram, diante de tanta felicidade, desarvorar com quantas patas cinzentas e peludas tinham. E, quando alguma se lembrava de vir meter o nariz, garanto que não ficava por muito tempo! Sophie Carquain Petites histoires pour devenir grand Paris, Albin Michel, 2003 (Tradução e adaptação) A SENHORA DOS LIVROS A minha família e eu vivemos num sítio muito alto, pertinho do céu. A nossa casa fica situada num local tão alto que quase nunca vemos ninguém, a não ser falcões a planar e animais a esconder-se por entre as árvores. Chamo-me Cal e não sou nem o mais velho nem o mais novo dos irmãos. Mas, como sou o rapaz mais velho, ajudo o meu pai a lavrar e a ir buscar as ovelhas quando, às vezes, elas se escapam. Também me acontece trazer a vaca para casa ao pôr-do-sol, e ainda bem que o faço. É que a minha irmã Lark passa o dia todo a ler. O meu pai diz sempre que nunca se viu uma rapariga tão super-leitora... Cá comigo não é assim. Não nasci para ficar sentado e quieto a olhar para quatro garatujas. E não acho graça nenhuma a que a Lark se arme em professora, porque a única escola que existe fica a quilómetros daqui e ela dificilmente lá chegará. Por isso é 39 201 que ela quer ensinar-nos. Só que, a mim, a escola não me interessa! Sou sempre o primeiro a ouvir o ruído dos cascos e a ver a égua alazã da cor do barro. Sou o primeiro a dar-se conta de que o ginete não é um homem, mas uma senhora com calças de montar e cabeça bem erguida. É claro que recebemos a forasteira de braços abertos, porque pessoa mais simpática não há. Depois de tomar chá, põe os alforges em cima da mesa e até parece ouro o que tira de lá de dentro. Os olhos da Lark põem-se a brilhar como moedas e a minha irmã não consegue ter as mãos quietas, como se quisesse apropriar-se de um tesouro. Na realidade, o que a senhora traz não é tesouro nenhum, pelo menos a meu ver. São livros! Um monte de livros que ela, sozinha, carregou pela encosta acima. Um dia inteiro a cavalo para nada! É o que eu digo! Porque, se ela os quisesse vender, como faz o caldeireiro, que anda por aí com panelas, sertãs e outras coisas, veria logo que nós nem um centavo sequer temos para gastar. Muito menos em livros velhos e inúteis! O meu pai põe-se a fitar Lark e pigarreia. Então propõe à Senhora dos livros: — Fazemos um contrato. Em troca de um livro dou-lhe uma saca de framboesas. Aperto bem as mãos atrás das costas. Quero falar, mas não me atrevo. As framboesas, fui eu que as 40 apanhei… Para fazer uma tarte, não para trocar por um livro! Quando vejo a senhora recusar, até pasmo. Não aceita uma saca de O CONTO COMO AUTO-CONHECIMENTO framboesas, nem um molho de legumes, nem nada do que o meu pai, em troca, lhe quer oferecer. Os livros não custam dinheiro; são de graça, como o ar. Ainda por cima, dentro de quinze dias, voltará O conto é um espelho mágico no qual somos convidados a para os trocar por outros! mergulhar, a fim de nos reconhecermos. Não no sentido de nos Cá para mim, tanto se me dá que a Senhora traga livros ou afogarmos numa auto-contemplação estéril, como Narciso, mas que não encontre o caminho até nossa casa. O que me espanta é antes no de nos observarmos tal e qual somos, para além das que, mesmo que chova a cântaros, haja neve ou faça frio, ela volte aparências. Em A Bola de Cristal, por exemplo, o herói parte em sempre! busca de uma princesa encantada que espera ser libertada. Mas Certo dia de manhã, a terra acordou mais branca do que a quando a encontra, a princesa parece-lhe repugnante. Esta adverte- barba do nosso avô. O vento uivava como lince em plena escuridão -o: “O que vês não é o meu verdadeiro rosto. O Grande Mágico tem- e apertamo-nos todos diante da lareira, pois, num dia desses, -me em seu poder. Por causa dele, os homens só me podem ver-me ninguém faz nada. Com um tempo assim, até os animaizinhos da sob esta forma horrível. Se quiseres contemplar a minha verdadeira floresta se deixam ficar bem aconchegados. aparência, vê-me no espelho. O espelho não se deixa enganar e mostrar-te-á a minha verdadeira face”. O herói olha para o espelho e vê nele o rosto, cheio de lágrimas, da rapariga mais bela do mundo. Existe em cada um de nós uma princesa encantada que achamos feia e repugnante: são os nossos recalcamentos, que vivemos sob a forma de vergonha, inveja, cólera e desencorajamento, entre outros. Se aprendermos a ver esses instintos nesse espelho de verdade que são os contos, poderemos De repente, ouviram-se umas pancadinhas na janela. Era a contemplar as verdadeiras belezas que habitam em nós e que Senhora dos livros, abrigada até à ponta dos cabelos! Fez a troca choram enquanto aguardam a sua libertação. Essas princesas só 41 203 têm um herói: nós mesmos. É a nós que compete libertar o nosso através da porta entreaberta, para não apanharmos frio. E quando reino interior e a princesa belíssima que nos espera. É a parte mais o meu pai lhe pediu que dormisse em nossa casa, não se deixou íntima do nosso ser que encontramos no espelho dos contos e que convencer: nos conduz à libertação e ao desabrochar pleno. Existe uma — A égua leva-me embora — respondeu. identidade perfeita entre nós e o conto. O conto é a nossa história. Fiquei de boca aberta a vê-la afastar-se. Pensei que era uma É a encenação metafórica de aspectos nossos que ignoramos, pessoa muito corajosa e tive vontade de saber por que é que a recusamos, ou que não sabemos ver tal e qual são. Se conseguirmos Senhora dos livros se arriscava a apanhar uma constipação ou coisa penetrar no espelho e reconhecer a nossa imagem, se escutarmos o bem pior. conto para nele encontrarmos aspectos concretos da nossa Escolhi um livro com letras e desenhos e pedi à minha irmã existência, bastar-nos-á pôr em prática as suas propostas e viver a Lark: nossa vida segundo esse modelo de verdade. Somos feitos da mesma maneira que os contos são feitos e a função dos contos é — Ensina-me o que está aqui, por favor. lembrar-nos isso mesmo. Se não nos lembramos, é porque estamos A minha irmã não se riu nem troçou de mim. Arranjou um sob o feitiço de um Grande Mágico, que nos subjuga, seja através lugar aconchegado e, em voz baixa, pôs-se a ler. de condicionamentos mentais, seja através das representações O meu pai costuma dizer que nos sinais da natureza está falseadas da realidade. O conto tem por fim acordar a nossa escrito se o Inverno vai durar muito ou pouco. Este ano, todos os estrutura de verdade profunda, levar-nos a experimentá-la e a pô-la sinais anunciaram neve bem abundante e um frio tremendo. Mas, em movimento, a fim de que possamos harmonizá-la com o embora todos os dias ficássemos em casa apertados como arquétipo ideal. sardinhas em lata, não me importei nada. Pela primeira vez. Os contos de fadas convidam-nos a uma mudança Só quase na Primavera é que a Senhora dos livros pôde voltar miraculosa. Funcionam para nós como uma memória ancestral, conservada através de relatos populares, cuja a visitar-nos. A minha mãe ofereceu-lhe um presente, a única coisa aparente de valor que lhe podia dar: a sua receita de tarte de framboesa, a insignificância permitiu evitar adulterações dogmáticas. Mas não melhor do mundo. nos deixemos iludir: os contos de fadas transmitem, à sua maneira, — Não é muito, bem sei, para o grande esforço que faz — a mesma sabedoria que as Sagradas Escrituras. São um repositório disse a minha mãe. de conhecimentos incrivelmente ricos, dos quais podemos 204 42 Em seguida, baixou a voz e acrescentou com orgulho: alimentar-nos se conhecermos o código e as regras. Devido ao poder e à simplicidade das suas imagens, são — E por ter conseguido arranjar dois leitores onde apenas havia um! formas de nos ajudar a despertar e operam a diversos níveis da consciência. A análise do conto propõe-nos um atalho atraente Baixei a cabeça e esperei pelo fim da visita para comentar: para o interior de nós mesmos, e convida-nos a efectuar um — Também gostaria de ter alguma coisa para lhe oferecer. verdadeiro trabalho de auto-conhecimento e de transformação. Os A Senhora dos livros virou-se e fitou-me com os seus grandes contos são mais do que ensinamentos. São uma verdadeira olhos negros: iniciação, misteriosa e mágica, quase sagrada. Como todas as obras de arte tradicionais, são sóbrios em meios mas ricos em símbolos e — Vem cá, Cal — disse, com muita doçura. arquétipos. Os contos são um enigma cuja resolução deve ser Quando me aproximei dela, pediu: procurada no nosso interior e não neles mesmos. — Lê-me alguma coisa. Mesmo quando nos foram fielmente transmitidos pela Abri o livro que tinha entre mãos, mesmo acabadinho de tradição popular, os contos estão impregnados das características chegar. Dantes, eu pensava que eram quatro garatujas, mas agora já culturais dos países onde são transmitidos. Mesmo que possuam sei ver o que contém. um fundo ancestral comum e transmitam as mesmas mensagens essenciais, fazem-no através de cenários diferentes, provenham E li um pouco em voz alta. eles da Europa, da África, da Ásia ou da América. Neste livro — Isto é que é a minha prenda! — disse a Senhora dos livros. estudaremos apenas contos de fadas provenientes do repertório europeu, por uma questão de coerência. Se a maior parte deles é ♦♦♦♦♦♦ dos irmãos Grimm, é porque os irmãos Grimm, souberam, no Nota da Autora início do século XIX, transcrever com sobriedade os contos Este livro é inspirado numa história real, e relata o trabalho populares do seu tempo. incansável das bibliotecárias a cavalo, conhecidas como «as Este respeito na recolha destas narrativas populares permite- Senhoras dos livros» entre os Apaches do Kentucky. -nos ter hoje aceso a um repertório autêntico e fidedigno, o que O Projecto da Biblioteca a Cavalo foi criado nos anos trinta do nem sempre acontece com os “autores de contos”, tais como século XX, no contexto do New Deal do Presidente Franklin D. 43 205 Perrault ou Andersen, para só citar os mais conhecidos, que se Roosevelt, com a finalidade de levar os livros às zonas isoladas afastam “criativamente” da tradição. Não nos interessa o estudo do onde havia poucas escolas e nenhuma biblioteca. No alto das conto enquanto obra literária, mas enquanto chave de acesso a um montanhas do Kentucky, os caminhos eram amiúde simples leitos melhor auto-conhecimento. O conto enquanto desafio à mudança: de riachos ou carreiros acidentados. De cavalo ou de mula, as como a pôr em prática desde que compreendamos a sua bibliotecárias percorriam a mesma rota árdua, cada duas semanas, mensagem. Os contos podem conduzir-nos à nossa própria carregadas de livros, independentemente de fazer bom ou mau realização pessoal, apesar de todos os obstáculos, provas e tempo. Para demonstrar a sua gratidão por algo que não custava frustrações. Os contos de fadas convidam-nos a viver o Todo- dinheiro, “como o ar”, as famílias podiam dar-lhes algo do pouco 1 -Possível , para além das nossas limitações. Ou seja, convidam-nos que possuíam: legumes das suas hortas, flores ou frutos silvestres, a viver a totalidade da realidade, visível e invisível. Para que isso ou até apreciadas receitas transmitidas de geração em geração. Embora também houvesse alguns homens na Biblioteca a ocorra, são-nos propostos procedimentos muito concretos e Cavalo, geralmente eram as mulheres que o faziam, numa época precisos. em que a maioria das pessoas achava que o lugar da mulher era em A primeira coisa que devemos fazer é ouvir ou ler os contos, casa. As bibliotecárias a cavalo revelavam uma resistência e uma deixando que as imagens e as sensações surjam livremente, como entrega extraordinárias. Ganhavam muito pouco, mas sentiam-se se estivéssemos a sonhar. Neste estádio, é importante não orgulhosas do seu trabalho: levar o mundo exterior ao povo apache tentarmos interpretar o sentido da história ou dos símbolos. Temos e, em muitas ocasiões, converter num leitor quem antes nunca de experimentar interiormente o que as personagens vivem e tinha achado nenhuma utilidade em “quatro garatujas”. sentem, a fim de que o poder do conto e das suas imagens possa No Kentucky, os leitos dos riachos e os carreiros acabaram atingir o seu pleno desenvolvimento. As crianças sabem predispor- por se transformar em estradas. Os cavalos e as mulas deram lugar -se instintivamente à escuta dos contos. Os adultos sentem uma a carros-biblioteca, que são as bibliotecas ambulantes nos dias de maior dificuldade, por causa das barreiras mentais e dos juízos de hoje. Dedicados à sua tarefa, bibliotecárias e bibliotecários valor que abafam frequentemente a emoção. Temos de nos colocar continuam a levar livros a quem deles necessita… em sintonia com o conteúdo da história e seguir atentamente as Heather Henson La señora de los libros Barcelona, Editorial Juventud, 2010 (Tradução e adaptação) mínimas peripécias, mesmo que nos pareçam incompreensíveis. 1 Para os autores, o Todo-Possível é sinónimo da dimensão oculta da realidade. (N.T.) 206 44 Antes de estudar detalhadamente as regras precisas que os contos nos ensinam, é bom saborear a sua magia e abordá-los com ALGUMAS LEVES CONSIDERAÇÕES ACERCA DOS CONTOS DE FADAS…. um coração de criança. Esta abordagem exige humildade da parte do ouvinte ou do leitor e é um acto de fé face à porção de verdade que a história traz até nós. Quando o ouvimos pela primeira vez, o conto raramente nos transmite logo a sua mensagem. Esta aparece Talvez se oculte dentro da palavra imaginação a própria com subtileza e, lentamente, vai-nos iluminando por dentro, até se magia. Mais do que magia: a imagem recuperada ou inventada. transformar num espelho de nós mesmos. Esta história é a nossa Porque no universo da imaginação há estranhos e ignorados história e nós somos as personagens do conto. Cabe-nos a nós caminhos que levam a terras sonhadas e terras reais. Onde senti-las como aspectos de nós mesmos. podemos dizer que começa realmente a fantasia e acaba a realidade? Que memória nos atraiçoa? Que esperança nos A fim de explorar e vivenciar esta estrutura de verdade sobre desmente? Hoje em dia sabemos como são fundamentais para o a qual se modelam os contos, propomos, neste livro, um percurso crescimento das crianças as histórias de fadas, esses enredos onde a constituído por cerca de quarenta contos, retirados, na sua maioria, realidade e a fantasia convergem para um ponto de encontro e de do repertório dos irmãos Grimm. Faremos com esses contos um compreensão – talvez para a constatação de que o bom e o mau, o jogo de espelhos com os diferentes aspectos da nossa vida. Estes feio e o bonito, são nomes de seres ou de objectos ou de situações contos estão repartidos por dez chaves essenciais, chaves mágicas vivendo lado a lado, inevitavelmente. que nos permitem abrir o mundo maravilhoso do Todo-Possível e Diz Bruno Bettelheim que o conto de fadas tem um efeito aceder à mudança milagrosa. Estes contos não foram escolhidos ao terapêutico na medida em que a criança encontra uma solução acaso, embora pudessem ter sido escolhidos outros, já que no para as suas dúvidas através da contemplação do que a história mundo da Fecundidade tudo pode frutificar e já que num conto parece implicar acerca dos seus conflitos pessoais nesse momento encontramos todos os outros contos. da vida. O conto de fadas não informa sobre questões do mundo Depois de o termos lido e de termos deixado o conto ecoar exterior, mas sim sobre processos interiores que ocorrem no âmago dentro de nós, extrairemos dele as chaves activas, a fim de do sentir e do pensar. experimentarmos as suas correspondências. Poderemos então E as crianças entendem bem a linguagem dos símbolos dos procurar o nosso reflexo no espelho do conto, antes de abordar a contos. São elas que inventam no seu dia-a-dia o jogo do “faz de execução do conto através da prática de certos exercícios de 45 207 imaginação criativa ou de atenção consciente, que nos permitirão conta” e tantos outros que as divertem e distraem em tempos prolongar a vibração mágica do conto até ao cerne do nosso vividos entre a imaginação e a realidade. São elas que necessitam quotidiano, integrando as suas verdades na nossa existência. O de contrapontos para situarem a sua própria vivência e o seu convite do conto permitir-nos-á resumir o essencial da sua equilíbrio. Talvez por isso não se deva “explicar” à criança o sentido mensagem numa fórmula viva. dos contos de fadas. As imagens e as acções são “as palavras explicativas” dos contos de fadas. Quem não se lembra da aflição que sentiu ao ouvir contar que, “de repente, a menina se viu perdida na floresta”? A criança que escuta atentamente a história logo se sente e imagina também perdida naquela mesma floresta Edouard Brasey e Jean-Pascal Debailleul Vivre la magie des contes Paris, Albin Michel, 1998 (Tradução e adaptação) imensa e desconhecida. Quem conta a história vê-se envolvido em todo este processo. Um adulto que goste de contar histórias não escapa ao seu próprio fascínio e descobre a cada momento, a cada pausa, o efeito que as suas palavras e a sua expressão provocam nele mesmo e na criança que ouve, de olhos maravilhados. As fadas dos contos podem ser fadas boas ou fadas más. A fada é sempre, para qualquer criança, uma certa imagem da sua própria mãe. Em primeira análise, porque é ela quem a acorda de manhã, lhe dá de comer e de beber, a veste e a embala. Mas esta “fada” que a criança pressente na sua mãe, nem sempre lhe aparece com cara radiante! Quando a criança se porta mal, a mãe zanga-se com ela. E na ansiedade da vida de todos os dias, quantas vezes a mãe, cansada e desiludida, não se zanga com ela um pouco injustamente! A criança revolta-se. E quando se é criança, qualquer pequena revolta pode ser profundamente violenta. A mãe pode aparecer de repente como a fada má. Fada má e fada boa ao mesmo 208 46 tempo podem ser imagens projectadas. Diz ainda Bettelheim que a divisão de uma pessoa em duas, a fim de manter a boa imagem inalterada, surge a muitas crianças como solução para um conjunto de relações demasiado difíceis de digerir ou compreender. Quando uma criança se irrita com a mãe que ela adora, sabendo muito bem que não deveria irritar-se, está sem o saber a transformá-la em fada má ou em bruxa, ao mesmo tempo que preserva, no seu íntimo, a imagem da sua mãe inteiramente boa ou fada benfazeja. A fantasia da bruxa serviu-lhe para escoar toda a sensação de raiva que sentia, e para deixar liberta a imagem da mãe. A criança, aliás, “divide” as pessoas que a rodeiam em boas e A CASA FEITA DE SONHO em más. “Divide-se” a ela própria, quando não se assume como culpada de coisas que fez e que a desgostam: chega a afirmar que Leve como uma pluma, não foi ela quem fez isto ou aquilo (que realmente fez). alta como uma torre, É a preservação do lado bom contra o lado mau. A fada má, a quente como um ninho bruxa, a madrasta das histórias de fadas, são tão necessárias como a e doce como o mel, fada boa, o pai compreensivo, a mãe adorada, o príncipe assim imaginei encantado. Os contos de fadas garantem à criança que as desde pequeno dificuldades podem ser vencidas, as florestas atravessadas, os a minha casa… caminhos de espinhos desbravados e os perigos mudados, por mais pequeno e insignificante que seja quem pretende vencer na vida. E Mais tarde, quando me encontrei só no mundo, como não a criança, desprotegida por natureza, sente que também ela pode tinha dinheiro, resolvi construí-la com as próprias mãos. Fiz ser capaz de vencer os seus secretos medos, as suas evidentes primeiro a minha casa de papel, que é um material barato. E assim ignorâncias. que ficou pronta, vieram todos os ventos da Terra e levaram a minha Assim, aprende a aceitar melhor as pequeninas desilusões casa de papel, leve como uma pluma... que vai encontrando no seu dia-a-dia, pois sabe que, à semelhança Fiquei sem casa, mas não desisti. E fiz a minha casa à beira- do que acontece nos contos, os seus esforços por se tornar melhor 47 209 -mar, com areia da praia, que é um material barato. Mal estava hão-de ter um dia a desejada recompensa. No seu íntimo, ela pronta, vieram todas as marés do mundo e levaram a minha casa de entende muito bem que as histórias maravilhosas são irreais – mas areia, alta como uma torre... Deu-me vontade de desistir, mas eu não as aceita como falsas, na medida em que descrevem, de um precisava de uma casa, e sobretudo não podia abandonar o meu modo imaginário e simbólico, os passos do seu crescimento. sonho. Num mundo já de si perfeitamente antagónico, ela intuitivamente “divide” tudo em bom e mau, para assim encontrar E resolvi fazer a minha casa de madeira, que é um material o seu equilíbrio. E, no entanto, quantas vezes se inquieta: porque barato. Cortei-a dos bosques, com as próprias mãos! Ficou linda!... será, ela própria, obediente e teimosa, boa e má, valente e medrosa, Escondida entre a folhagem…Mas ainda mal a tinha acabado, vieram uma contradição viva? todos os fogos do céu e queimaram a minha casa de madeira, quente Através de imagens simples e directas, os contos de fadas, como um ninho... Chorei sobre as cinzas, como se chora uma pessoa com toda a sua imaginação, ajudam a criança a destrinçar os seus querida que morreu. Mas, mesmo assim, não desisti. E resolvi fazer a próprios sentimentos complicados, ambivalentes, de modo a minha casa de açúcar... Mas o açúcar não é um material barato! Pois desviar cada qual para o seu lugar, evitando as confusões. O conto não... de fadas sugere não só o isolamento e a separação dos aspectos Mas eu precisava de uma casa, e sobretudo, não podia disparatados e confusos da experiência da criança em coisas ou abandonar o meu sonho. Trabalhei, lutei, passei fome, para juntar o situações antagónicas, como também projecta estes em figuras açúcar suficiente... E quando a minha casa estava pronta – eram de diferentes, conclui Bettelheim. açúcar as paredes, o chão, o tecto, os móveis, as portas e as janelas – Para quem escreve, assim como para quem lê para crianças, é vieram todos os bichos da Terra e devoraram a minha casa de essencial nunca escrever ou contar por contar. São de exigir os açúcar, doce como o mel... Fiquei sem casa. E desisti de construí-la conflitos, as confrontações, as aventuras – ou seja: sentido e acção. com as próprias mãos... Afinal, o que faz parte da própria vida. É para nós um desafio escrever as novas histórias destes novos tempos, em que a varinha Perguntam-me onde moro... Onde moro eu? Sei lá!... Vou pelo mágica pode ser muito simplesmente um interruptor de luz; a mundo, aqui, além, no bosque, à beira-mar... Perguntam-me se não cabana da floresta; uma tenda de campismo; um cavalo alado; o tenho casa... Tenho, sim! Eu podia lá abandonar o meu sonho!... mais recente foguetão espacial... Resolvi imaginá-la. Num sítio onde não chega o vento, nem o mar, Por detrás da imaginação, quantas vezes escondida, está nem o fogo, nem os bichos da Terra. sempre a vontade de criar. O conhecimento dessa vontade não é de 210 48 hoje, mas de há muito, muito tempo. Para Platão, ela nasceria do Fiz a minha casa com o meu próprio sonho. Ficou linda! poder de um deus ou de um demónio. Ele chegou a falar de Leve como uma pluma, alta como uma torre, quente como um inspiração. Aristóteles e Horácio embrenharam-se pelos caminhos ninho e doce como o mel... do estudo da poesia e da escrita apaixonada. Os antigos também invocavam as musas, essas misteriosas e invisíveis companheiras dos escritores e dos artistas em geral. A tradição sempre acreditou que, espreitando sobre o ombro de quem escrevia, estava “uma outra vontade” que não a de quem exercia o activo ofício de escrever. Para os românticos, essa outra vontade era evidentemente a própria inspiração. Para Freud, ela morava no inconsciente de cada um. Para os surrealistas, ela existia no próprio acto de escrever e era provocada por ele mesmo. Vontade, imaginação e criação conjugam-se para que, em cada época, se consiga extrair do mundo a essência dessa mesma época. Maria Alberta Menéres Imaginação Porto, Ed. Asa, 2003 (excertos adaptados) Ricardo Alberty A casa feita de sonho Melhoramentos de Portugal, 1991 49 211 O PÁSSARO DA LUA A criança da lua soprava bolhas. Bolhas grandes que mais BURROS & LIVROS pareciam pérolas a flutuar no espaço. Algumas estouravam quando iam de encontro às pontinhas das estrelas, outras voavam até à Chama-lhes “biblioburros”. Os animais são baratos, fiáveis, não precisam de gasolina e vão a quase todo o lado. Um homem leva livros em cima de asnos a aldeias porque acredita que, se houver bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas histórias, poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os guerrilheiros e as forças paramilitares. Terra e só rebentavam quando aterravam. Uma dessas bolhas pousou junto do ouvido de um bebé e fez “Pop!”, deixando a criança envolta em silêncio. Mas aquele não era um silêncio qualquer: era o silêncio da lua. ― O que se passa com o nosso filho? ― perguntou o pai da criança, que por acaso era um rei. Todos os fins-de-semana, Luís Soriano e dois burros ― O meu bebé não sorri quando canto ― queixou-se a mãe carregados atravessam montes e vales no Norte da Colômbia, onde da criança, que por acaso era uma rainha. ― Nem responde aldeias como El Dificil e El Tormento receberam estes nomes, e quando chamo por ele. bem, porque a única forma de lá chegar é através de trilhos tortuosos. A missão de Soriano é quixotesca e a carga dos burros é E chamava, cada vez mais alto: 51 213 preciosa: caixotes com 160 livros destinados às aldeias isoladas, ― Orla! Orla! Orla! onde os residentes não têm virtualmente acesso à leitura, para Foi então que decidiram convocar a fada do reino, que além de alguns textos da escola primária, em folhas já marcadas abanou um guizo de prata junto do ouvido da criança. Orla nem por muitas dobras, e Bíblias. sequer mexeu a cabeça. Há cinco anos, esta biblioteca itinerante, a que Soriano chama “biblioburros”, é a única nesta pobre e remota zona rural. “As pessoas daqui adoram histórias”, diz Soriano, de 32 anos, antigo livreiro de uma aldeia do estado da Magdalena. “E eu tento, à minha maneira, manter vivo esse entusiasmo.” Soriano apaixonou-se pelos livros aos seis anos, e licenciou-se em Literatura espanhola depois de ter estudado com um professor que se deslocava à aldeia, duas vezes por mês. Esta paisagem rude, onde ― O vosso filho não nos ouve ― disse aos soberanos. viveu toda a sua vida, poderá fazer despistar qualquer meio de ― Não ouve? ― perguntou a rainha. ― Queres dizer que o transporte com rodas, enquanto os animais, penosamente, lá vão príncipe é surdo? progredindo. “Os animais são baratos, fiáveis, não necessitam de gasolina e podem ir praticamente a todo o lado”, observa. ― Não, não é surdo. Ele consegue ouvir sons, mas não sons da Terra. Numa pasta vermelha, Soriano guarda uma lista dos títulos que os aldeãos pedem com maior frequência. Embora a sua ― Não pode ser! Claro que ele nos ouve! ― protestaram o rei biblioteca itinerante inclua romances, histórias e textos medicinais, os livros mais populares são as histórias infantis e a rainha. com Mas, por muito que gritassem, o filho não os ouvia. E, porque acontecimentos incríveis, em locais improváveis, onde os animais não ouvia, Orla não aprendeu a falar. Os pais estavam destroçados. se assemelham aos homens e são os heróis. Talvez seja por isso que Como poderia o seu filho alguma vez ser rei? Soriano e os seus burros se enquadram tão bem aqui. Orla tornou-se assim conhecido como “o príncipe silencioso”. Antes da sua volta semanal, à noite, Soriano coloca os livros Os reis enviaram emissários a todos os cantos do reino a pedir em bolsas de plástico individuais, fechadas em capas de lona. ajuda, mas nada resultou. 214 52 Um dia, quando Orla tinha cinco anos e estava a brincar Arruma as capas em pacotes do tamanho de pastas, aconchegando- sozinho nos jardins do palácio, viu um pássaro da lua numa árvore. -as em caixotes de madeira que prende nas selas dos burros. O pássaro abriu as asas coloridas e dirigiu-se a Orla: Soriano tem apenas duas regras para quem quer ler os livros: lavar as mãos e não escrever nas páginas. Ele sabe quem levou este ou ― Segue-me. aquele livro, mas declara confiar mais no sistema da honestidade. Orla ficou tão surpreendido por ouvir uma voz que obedeceu “Talvez seja uma das únicas bibliotecas do mundo onde as pessoas imediatamente. Havia uma magia especial na canção do pássaro da vêm com as suas mochilas e não são controladas à saída”, observa lua. Quem quer que a ouvisse, logo pensava estar no jardim da lua Soriano. onde cresciam frutos e flores nunca vistos na Terra. Os próprios Antigamente, Soriano levava uma vida mais normal, pois era animais tinham poderes mágicos. dono de uma loja de abastecimento e tinha uma família para criar. Lia por prazer e tinha em casa uma biblioteca com cerca de 80 volumes. Depois, começou a emprestar os seus livros, vasculhando, pedindo e emprestando para obter mais. Acabou por aumentar a colecção para 4800 livros. A sua mulher, Diana, estava cada vez mais desesperada com falta de espaço para criar os três filhos. “Ela costumava perguntarme: O que vais fazer, comer livros com arroz?”, conta Soriano. Nessa noite, Orla dormiu no jardim. Quando acordou, viu Há três anos, Soriano encontrou um patrocinador. Addis que os olhos ternos de uma gazela o fitavam. Orla conseguia ouvi- Marilyn, director da biblioteca municipal de Santa Marta, uma -la, tal como ouvia o pássaro da lua. cidade a cerca de 300 quilómetros, situada na costa das Caraíbas, ― Quando falo com os meus olhos, tu ouves-me com os teus. ouviu falar do que ele fazia e convidou-o para trabalhar como uma É um dom que podes partilhar com os teus pais. sucursal sua. Aproveitando a ideia de Soriano, Marilyn patrocinou Um macaco prateado ajudou a cuidar do jovem príncipe. outros dois projectos de “biblioburros”. Actualmente, os três Falava com ele, através dos movimentos do corpo e das mãos. E, partilham um orçamento que ronda os sete mil dólares (5700 em breve, Orla conseguia falar com as mãos, tão bem como euros). 53 215 Soriano diz não ter tido sorte ao pedir ajuda às autoridades qualquer um dos macacos prateados, que conseguiam enviar locais para montar uma biblioteca decente, mas o governo nacional mensagens para lugares distantes, enquanto saltavam de árvore em interessou-se mais. Ainda há pouco tempo, um senador propôs-lhe árvore e pregavam partidas. criar uma rede de bibliotecas transportadas por burros para todas Com as gazelas, Orla aprendeu a ouvir a música que as as zonas rurais da Colômbia. árvores faziam quando a brisa soprava. Para se preparar para esta viagem, uma jornada de três horas ― Chama-se a isto “música dos olhos” ― diziam-lhe. até à aldeia de Las Planadas, além dos livros, Soriano embalou As gazelas conseguiam ouvir vozes nas pocinhas de água, também 40 máscaras de porquinho que conseguiu obter com a risos nas folhas, e canções na erva ondulante. ajuda de Marilyn. Pretende distribui-las às crianças da aldeia antes de estas lerem “Os Três Porquinhos”. Como idealista que é, Soriano Um dia, o pássaro da lua apareceu de novo e disse a Orla: pensa que, se houver bastantes pessoas a apaixonarem-se pelas ― É altura de voltares para a tua família. histórias, poderá quebrar-se o ciclo de 40 anos de violência entre os O príncipe ficou muito excitado e perguntou: guerrilheiros e as forças paramilitares. ― Achas que poderei falar com os meus pais? Os soldados paramilitares, que alegadamente usam os lucros Depois, seguiu a canção do pássaro para fora do jardim da lua da venda de droga para financiar um sistema de intimidação e e irrompeu pelo palácio dentro. ameaças de morte, controlam grande parte das aldeias da região. Mas Soriano diz que ele e os seus burros se mantêm afastados de ― Mãe! Pai! ― chamou. tudo isso e, em troca, os militares respeitam-no. Muitas das Correu para os abraçar, enquanto crianças não sabem ler, por isso, ele ensina-as frequentemente. Por ouvia com os olhos claros e brilhantes e vezes, também ensina os pais. falava com as mãos eloquentes. O rei e a Alberto Mendoza, de 11 anos, ajoelha-se juntamente com os rainha outros. A sua família, ao contrário das das restantes crianças, tem espantados com a mudança que se tinha operado no filho. um livro em casa. “Temos um livro”, declara, “A Bíblia.” Numa ― visita anterior, Soriano mostrara a Alberto um livro ilustrado sobre Orla, quiseram saber. um filhote de urso que passa uma tarde inteira a construir castelos 216 ficaram 54 onde estiveste? ― O filho bem tentou dizer-lhes, mas os pais não conseguiam na areia e a regar um jardim cheio de flores com o seu avô. Hoje, ler os olhos dele. Apenas podiam observar a estranha e bela dança esse mesmo livro encontra-se pendurado numa árvore. Quando das suas mãos e as palavras que brotavam, silenciosas, da sua boca. Soriano termina a história e diz às crianças que podem escolher os livros que querem, Alberto corre para a árvore e agarra o livro do ― Parece estar a falar connosco, mas não percebemos o que ursinho antes que alguém consiga lá chegar. está a dizer ― disseram à fada. ― Podemos aprender ― sugeriu a fada, que percebera de imediato a linguagem gestual do príncipe. ― Não vejo como ― disse a rainha. Colômbia // Missão Quixotesca // Texto: Monte Reel ― Os reis não falam com os dedos ― queixou-se o rei. Exclusivo Público/Washington Post Orla sentiu-se muito triste. Gostava muito dos pais e queria partilhar o que sabia com eles. Nesse mesmo momento, o pássaro da lua entrou pela janela. ― Escutem a canção do pássaro ― disse a fada. ― Nela encontrarão a resposta para as vossas perguntas. 55 217 Então, o pássaro cantou a sua canção. Falou da serenidade das montanhas e dos sons por detrás do seu silêncio. Falou da Terra e de como brilha quando gira no espaço. Falou da lua, das estrelas e dos mundos para além do nosso. ― De que está ele a falar? ― perguntou o rei. ― Não consigo ouvir nada ― queixou-se a rainha. Contudo, Orla ouvia. Entretanto, a criança da lua observava tudo o que se estava a passar. A sua intenção não fora a de causar problemas, mas agora tinha de remediar o mal que causara ao rebentar a bolha junto dos ouvidos do príncipe. Soprou uma enorme bolha da lua que flutuou pelo espaço e aterrou no reino. De repente, ficaram todos rodeados de silêncio. E o que ouviam eles no silêncio? Com os olhos, ouviam a canção da Terra. Nas mãos seguravam a canção da lua e das estrelas. Nos corações sentiam a canção das estrelas. Viam, ouviam e compreendiam como nunca antes o tinham feito. Então, o rei e a rainha estenderam as mãos para o filho: ― Como podemos ter sido tão cegos e surdos? Orla tinha trazido uma semente do jardim da lua para mostrar aos pais. Plantaram-na todos juntos no jardim real. A árvore da lua tem hoje um milhão de anos e o pássaro da lua continua a cantar nos seus ramos. 56 A canção do pássaro são as imagens que habitam o nosso interior. AS SAPATILHAS DE SOFIA Na aldeia de Sofia, o sol é muito brilhante e faz sempre muito Joyce Dunbar; Jane Ray Moonbird London, Picture Corgi Books, 2007 (Tradução e adaptação) calor. Raramente chove mas, quando isso acontece, a chuva cai, ininterruptamente, dias seguidos. Era um dia abrasador e Sofia não conseguia abrir os olhos naquela luz tão intensa. No ar pairava uma quietude quando, de repente, se ouviu um ruído semelhante ao zumbido de um enxame de abelhas, que aumentava cada vez mais. O porco começou a grunhir e as galinhas a cacarejarem. Sofia queria perceber o que se passava e, sentada direita como um pau de vassoura, pôs-se à escuta. “Deve ser a carrinha do homem dos números”, pensou ela enquanto esfregava os olhos. Uma vez por ano, um homem da cidade chegava à aldeia numa carrinha vermelha. A gente da aldeia dizia que era o homem dos números. O homem contava as pessoas da aldeia a mando do 57 219 governo. Depois de fazer o seu percurso, o homem parou defronte da casa de Sofia. — Quantas pessoas vivem aqui? — perguntou. — Duas — respondeu Sofia, — a minha mãe e eu. — Vejamos, assim dá um total de 154 pessoas. O ano passado eram… O homem dos números tinha ouvido dizer que o pai de Sofia morrera porque não havia médico na aldeia e não havia nenhum hospital por perto. Sofia olhava fixamente para o calçado do homem. — Ah! Nunca viste umas sapatilhas? Sofia ficou ruborizada. O segredo, que acalentava há tanto tempo, ocupou-lhe por inteiro o pensamento, que voou para tão longe como os falcões voam em grandes círculos no azul dos céus. No fundo do coração Sofia sentia que, se algum dia tivesse umas sapatilhas iguais às daquele homem, o seu desejo se transformaria em realidade. — Vamos até à margem do rio? — disse o homem dos números. — Põe os pés nessa lama de barro fino. Agora sai! Sofia gostou da sensação do barro a escorrer por entre os dedos dos pés. O homem tirou a régua do bolso das calças e mediu as marcas dos pés de Sofia. Enquanto coçava a barba, fazia contas em voz alta e acabou por dizer: — Vejamos… dentro de trinta dias vais receber um presente. 220 Sofia contava os dias… Algum tempo depois, a carrinha dos correios atravessou a aldeia e deixou-lhe na porta de casa um COMO INVENTAR HISTÓRIAS? pacote. Depois de sofregamente abrir o pacote, gritou: — Umas sapatilhas! Calçou-as com muito cuidado e exclamou: Era uma vez… — Agora, já posso realizar o meu desejo secreto! Era uma vez… mas que «vez»? Ocasionalmente, somos invadidos por uma — Que desejo? — perguntou a mãe. estranha sensação ― estamos perdidos no meio do deserto sem um único — Agora já posso ir à escola, mãe! ponto de referência. Para onde havemos de ir se não sabemos, — Mas, minha querida, a escola fica a oito quilómetros e o sequer, onde estamos? Antes de iniciar uma caminhada, é caminho é muito mau! necessário definir um ponto de partida. Não é possível partir de — Eu sei, mãe, mas é que eu agora tenho umas sapatilhas… dois pontos, ou mais, em simultâneo. Qual a direcção que mais nos — respondeu Sofia enquanto saltitava de alegria. convém? Um sorriso começou a desenhar-se lentamente na boca da Na realidade, por um só ponto passam um número infinito mãe de Sofia. Recordou a filha de vestido amarelo, cor do sol, a de rectas. São as leis da geometria, mas que se aplicam também à correr ao lado do pai que, com a pequena lousa preta debaixo do vida e, sobretudo, ao acto criativo. Mas que «vez» era aquela? braço, procurava a sombra de um coqueiro. Recordava a filha, de Como pôr a faiscar os neurónios que são capazes de inventar olhar fixo e sem pestanejar, a olhar a lousa onde o pai fazia histórias? Como agarrar um turbilhão de ideias que, às vezes, voam sarrabiscos a que chamava letras: “Este aqui é o teu nome e este é o nas asas da imaginação? nome da nossa aldeia”, ensinava ele à Sofia. Seja o avô que quer inventar uma história para contar ao neto — Creio que podes ir à escola — disse então a mãe à Sofia. que teima em não adormecer, seja a criança que na sala de aula não consegue escrever uma linha sobre aquele «tema livre», a angústia No dia seguinte, ainda o sol não tinha nascido e já Sofia é sempre a mesma – o desafio silencioso de uma folha de papel em comia uma tigela de arroz com peixe salgado e se punha a caminho branco que não nos dá, sequer, uma pista. Profundamente sós, através dos arrozais. As sapatilhas protegiam-na das pedras sentimo-nos como quando não há nada para dizer. aguçadas. E corria como se tivesse asas nos pés! 59 221 Com um salto atravessou riachos e percorreu uma estrada Mas, se naquela superfície branca cair um pontinho negro ou deserta, onde só passava um carro de longe a longe. Sofia corria e alguém escrever uma palavra, tudo pode modificar-se. De repente, corria, cada vez mais depressa, até que por fim avistou a escola que apetece-nos desenhar uma cara… E porque não acrescentar tinha apenas uma sala de aula. algumas letras à palavra MAR? As sandálias dos alunos estavam, em fila alinhada, junto à AMAR o MAR, o MAR é azul, cheira a MARESIA, AMARELO, porta da entrada. Sofia tirou rapidamente as sapatilhas, colocou-as REMAR, MARIA, MÁRMORE… junto às outras sandálias e entrou descalça na sala de aula. Pode ainda ser pouco, mas é um princípio, uma luz que se — O meu nome é Sofia e venho à escola para aprender a ler e acende, uma ideia que se anuncia. A imaginação exercita-se com a escrever! um olhar atento sobre a vida através de coisas simples. Há palavras que fazem voar o pensamento e a escrita afigura-se como uma Na sala, onde havia só rapazes, começaram logo os risinhos. caminhada interior em busca de sentidos para a construção do — Silêncio! — disse a professora, colocando o dedo sobre os mundo que, exteriormente, nos rodeia. lábios fechados. Criar não é uma questão de inspiração, mas uma questão de — Vem cá, és muito bem-vinda. Diz-me, de onde vens? orientação no processo criativo. Passo a passo, partindo e — De Andong Kralong. chegando, a luta desenvolve-se entre momentos de prazer e A professora, apanhada de surpresa, disse em surdina: desprazer, de facilidade e dificuldade, de tensão e calma, de encontro e desencontro. Não existe uma única definição para o — Mas, essa aldeia fica a oito quilómetros daqui!… conceito de «criatividade», mas podemos dizer que está associado — Pois fica, senhora professora, mas eu tenho as minhas à inovação e à adequação. sapatilhas! O processo criativo consiste em combinar ideias ou objectos Os rapazes continuavam com as suas risadinhas, tapando a existentes de modo a encontrar soluções novas e úteis. Precisamos boca com as mãos. Os olhos da Sofia encheram-se de lágrimas. de pensar em duas direcções opostas, mas que se complementam: — Mas, tu és uma rapariga! — sussurrou um dos alunos. divergir para diversificar pontos de vista deitando um olhar criativo sobre o horizonte que se alarga – pensamento divergente – e Sofia engoliu toda a raiva que sentia e manteve-se de cabeça convergir para chegar ao ponto mais original, escolhendo erguida e quieta como a serpente antes de atacar a presa. Em breve criteriosamente a melhor solução – pensamento convergente. chegaria o momento da desforra. 222 60 Uma palavra é um som, uma imagem ou o movimento da Acabada a aula, Sofia calçou as sapatilhas e atou os seus linha que desenha letras. Cada mensagem reúne um conteúdo cordões, com um triplo nó. Então, virou-se para os rapazes, olhou- semântico, no qual se baseia o seu entendimento, e um conteúdo -os de frente e disse: estético, capaz de extravasar todos os limites da imaginação — Já que são tão espertos, venham agarrar-me! criadora. Podemos viajar por dentro de uma só palavra, descobrir Os rapazes, empurrando-se uns aos outros, logo desataram a os segredos mais profundos de um conjunto de letras arrumadas correr atrás dela. Em vão. lado a lado. A imaginação criadora não é um atributo específico da Na manhã seguinte, Sofia acordou antes do cantar do galo. genialidade, mas uma capacidade fundamental do intelecto Sair tão cedo permitiu que fosse a primeira a chegar à escola. Os humano. rapazes iam chegando de sorriso envergonhado… É que ainda não Nasce na infância o poder da fantasia e do sonho. A criança é tinham esquecido a derrota, na corrida da véspera. E, a partir criativa por natureza, dispõe de uma capacidade infinita para daquele dia, Sofia aprendeu muito naquela escola de uma única imaginar. No início deste novo milénio, o mundo parece estar por sala. detrás de um simples clique que nos abre as portas para uma realidade virtual, plena de imagens fantásticas. Com o computador Passou um ano. Uma manhã, Sofia estava sentada junto da e a internet, torna-se fácil comunicar, informar, jogar e entreter. mãe quando, de repente, se levantou uma nuvem de poeira na Mas este clicar mágico não faz, por si só, apelo à imaginação encosta. O porco começou a grunhir. As galinhas a cacarejarem. criadora, nem promove o gosto pela leitura ou pela escrita. Era o homem dos números que voltava na sua carrinha vermelha. Sabemos que ler e escrever são actividades que caminham Nesse momento, as primeiras gotas de chuva começaram a em conjunto como dois alpinistas que escalam uma montanha, um formar pequenos círculos na superfície da água do rio, círculos que «puxando» pelo outro. Cabe aos educadores inventarem estratégias se alargavam cada vez mais. Começava a monção. Sofia olhou as que sejam capazes de desenvolver as potencialidades criativas e nuvens que se formavam e pensou que, agora, iria ter menos calor expressivas do imaginário infantil. Mais importante do que dar às a caminho da escola. crianças receitas para fazer bolos, é pôr à sua disposição os O homem dos números contou as pessoas da aldeia e, ao fim ingredientes adequados para confeccioná-los. do dia, chegou a casa de Sofia. E olhou para os pés nus da menina. É urgente LER… com prazer, em voz alta, dez minutos antes — Onde estão as tuas sapatilhas? — perguntou. de adormecer, saltando páginas, mesmo não acabando o livro, não Sofia sorriu e, com ar de desafio e mãos na cintura, disse: importa onde (o quê ou quando), um ou vários livros ao mesmo 61 223 — Só calço as minhas sapatilhas para ir à escola. tempo. Não se pode mandar ler, como não se pode mandar amar ou sonhar. Há o direito de ler e o de não ler. Mas continua a ser E os dois começaram a rir. urgente criar hábitos de leitura e de escrita, exercitar a imaginação — Hoje, eu quero mostrar-lhe uma coisa — disse Sofia. — e a criatividade. Só existirão adultos leitores quando as crianças Venha comigo, por favor. conseguirem gostar de ler. Caminharam juntos e em silêncio, até à margem do rio. Não só das histórias nascem histórias, mas também das Chegados aí, Sofia, de cabeça baixa, disse timidamente: imagens ou das palavras – soltas, deformadas, metaforizadas, — Um dia, quero construir uma escola na minha aldeia, e… reinventadas, contraditórias, erradas, associadas, metamorfoseadas — O quê? ou interrogantes. Das coisas nascem coisas. — Também quero ser professora — afirmou Sofia. E era uma vez… umas formigas que se aproveitaram das letras que compõem o título do conto A Floresta, de Sophia de Pegou numa cana de bambu e agarrando-a com as duas Mello Breyner Andresen, para dar uma lição a um ratão muito mãos, escreveu na lama de argila: espertalhão. …As Formigas Lixaram O Ratão Espertalhão, Surripiando Muito obrigada pelas sapatilhas. Toneladas de Açúcar… Agora, já sei ler e escrever. E, se, de uma só vez… a palavra «Floresta» desse uma reviravolta? E fez-se um tal silêncio que se podia ouvir o borbulhar da água a correr por entre os seixos. Esta Flor na Floresta… E o que aconteceria se, naquela vez, o Anão da Floresta fosse à gruta visitar a Menina do Mar? Frederick Lipp Las zapatillas deportivas de Sofía Barcelona, Intermón Oxfam, 2007 (Tradução e adaptação) 224 Ana Mantero Aprender a olhar nº 11, Fev./Março 2004 62 ERA UMA VEZ ….UM DIA DE ESCOLA NORMAL Era uma vez um dia normal de escola. Um rapaz como tantos outros acordou normalmente dos seus sonhos, levantou-se como era normal da sua cama, fez como normalmente um chichi, tomou O AVÔ LOP normalmente o banho normal, vestiu a roupa normal, e tomou o seu pequeno-almoço normal. No fundo da floresta dos sonhos há um grande arbusto. Os Esse mesmo rapaz lavou normalmente os dentes, despediu-se ramos entrelaçam-se na parte de cima, formando um guarda-chuva normalmente da mãe e saiu de casa em direcção à escola, como verde e viçoso que protege dos aguaceiros de cristal do início de normalmente fazia. Andou normalmente pelas mesmas ruas, Abril e de Maio todos os seres que ali vivem. A chuva cai durante passou normalmente pelas mesmas lojas e atravessou as mesmas uma ou duas horas, e depois os raios dourados do sol, como que avenidas, também normalmente, enquanto meditava normalmente surgidos do país das fadas, escorrem pelas folhas até chegarem ao nos mesmos pensamentos. chão. Ao chegar à escola, esse mesmo rapaz, igual a tantos outros, Foi aí que, durante toda a vida, brincaram e viveram os jogou futebol como era habitual, exactamente com os mesmos coelhos da floresta. Havia coelhos com grandes rabos fofinhos e amigos, até soar o toque para a entrada nas aulas, como 63 225 coelhos quase sem rabo — pequenos, gordos, magros, peludos, e normalmente. O rapaz, igual a tantos outros, entrou na sala um coelho muito velho chamado avô Lop. habitual e sentou-se na sua mesa, como era normal. Foi então que aconteceu algo de absolutamente fora do normal... O avô Lop era tão velho que há já muito tempo que o pêlo embranquecera. Usava um cachecol à volta do pescoço e andava sempre com um pau torcido que lhe servia de bengala. Todas as tardes, por volta das duas ou três horas, o avô Lop sentava-se no seu tronco preferido a desfrutar do calor do sol. Sentava-se em silêncio até que — sem se aperceber — todos os coelhinhos pequenos se juntavam aos seus pés. Eles bem tentavam ficar calados mas era tão difícil que alguns até tinham de meter as orelhas na boca para não se rir! ― Bom dia a todos! ― disse alguém, com um ar absolutamente extraordinário, ao entrar de rompante na sala. ― O avô Lop recostava-se no tronco, olhava à sua volta e Eu sou o vosso novo professor e chamo-me Gee. começava, numa voz muito suave e baixa: ― Ainda não nos conhecemos uns aos outros, mas eu tive — Em tempos que já lá vão, no país da névoa e das coisas uma ideia que vai ajudar-me a conhecer-vos melhor... Nesta nossa mágicas, havia uma floresta encantada… primeira aula, quero que ouçam música, que deixem que a melodia À medida que ia contando a história, muito devagar, algo de vos faça lembrar imagens e que essas imagens se soltem das vossas estranho e maravilhoso acontecia. O avô Lop começava a cabeças. Está entendido? ― ia dizendo o professor, enquanto endireitar-se cada vez mais. A luz do sol brilhava nos seus olhos distribuía uma folha de papel a cada aluno. castanhos e cintilava pela floresta, e o seu pêlo reluzia. Os coelhinhos ficavam completamente encantados porque, de um ― Ele é estranho! E meio tonto! É mesmo doido! Música? momento para o outro, o velho avô Lop se transformava no mágico Desenhos? Qual é a ideia dele? ― cochicharam os alunos uns para da floresta! E ficavam sempre tão fascinados pela história, que nem os outros, como normalmente. davam conta quando ela chegava ao fim! O avô tinha de dizer: ― Silêncio, fechem os olhos, abram bem os ouvidos e ouçam! ― continuou o professor. — Agora é tempo de irem, coelhinhos. 226 64 E a música começou a soar: eram ritmos retumbantes, E lá voltavam eles aos saltinhos para a moita da floresta. Mas ribombantes, por vezes ensurdecedores, que progrediam e se os coelhos mais velhos foram ficando cada vez mais preocupados espalhavam ruidosamente por toda a sala. De repente, a música com os pequenitos. Certo dia, depois de eles terem desaparecido, parou. Então, o professor disse: como era costume, os coelhos mais velhos reuniram-se. ― Ora digam lá o que a música vos fez lembrar! — Onde é que eles irão? — perguntavam uns aos outros. — Desaparecem todos os dias à mesma hora. Uma das raparigas respondeu, entusiasmada: — Aposto que saem para ir ver aquele inútil do avô Lop — ― Cavalos a galope! disse um deles. — Só sei que não andam a fazer coisa boa! Outro aluno disse: Conversaram algum tempo e decidiram que, mal os ― Não, era uma corrida de carros! coelhinhos voltassem nessa tarde, iriam descobrir o que estava a E o rapaz como tantos outros disse: acontecer! À hora do costume, os coelhinhos regressaram e, como ― Eu vi elefantes, professor, centenas de elefantes! combinado, os coelhos mais velhos perguntaram-lhes onde tinham estado. ― Muito bem! ― disse o professor, rindo-se. ― Não — Bem — disse um — fomos à floresta ver o avô Lop e ele acharam maravilhoso? Agora quero que cada um tente escrever na contou-nos uma maravilhosa história mágica da floresta. E quando folha em branco o que ouviu. Vamos lá, todos a escrever! E enquanto os ritmos progrediam e a contava, aconteceu uma coisa ainda mais mágica e maravilhosa: o regrediam avô Lop transformou-se no mago do bosque! repentinamente, rodopiavam e voltavam a rodopiar, o rapaz como tantos outros escrevia. Por vezes, não entendia perfeitamente as — Eu já sabia! — disse, encolerizado, um dos coelhos mais palavras que utilizava e a história parecia não fazer sentido, mas velhos. — Aquele coelho velho só anda a contar mentiras aos isso não era importante e nem sequer o preocupou. miúdos. Escrevia tão rápido quanto conseguia e, mesmo assim, sentia — Mas é verdade! — disseram os coelhinhos em coro. — que precisava de escrever mais rápido ainda ― havia tanto para Quando ele nos conta histórias, aparecem sempre estrelas e faíscas. dizer! Era como se existisse dentro da sua cabeça um dique que, de É magia! repente, ao abrir-se, a inundava de palavras...e as palavras Os coelhos mais velhos saltaram para o lado e falaram em 65 227 surdina uns com os outros, olhando de vez em quando por cima do divertiam-no como os brinquedos, e sentia-se mergulhado naquele ombro. Finalmente, dirigiram-se às crianças com um tom deveras jogo ― o jogo de contar histórias. Era uma coisa extraordinária, severo. fora do normal... — Achamos que vocês estão a mentir! A magia não existe! E os seus colegas? Alguns escreveram histórias sobre gigantes Por isso, vão já para a cama sem jantar, e daqui para a frente estão e outros sobre coisas mágicas. Algumas raparigas escreveram sobre proibidos de tornar a ver esse avô Lop! raparigas corajosas e alguns rapazes escreveram sobre rapazes com cicatrizes mágicas que lhes davam grandes poderes. Alguns Com as lágrimas a correrem dos olhos, os coelhinhos escreveram muito pouco, porque a música não lhes fazia lembrar arrastaram-se até às suas camas. Tinham o coração pesado e o muita coisa e a Pauline, por exemplo, preferiu ler a sua revista estômago muito vazio. preferida. No dia seguinte, como de costume, o avô Lop sentou-se no Houve quem escrevesse histórias que pudessem agradar ao seu tronco preferido a apanhar sol e à espera que os coelhinhos professor e uns transformaram-se em heróis, enquanto outros aparecessem. Esperou, esperou e deve ter caído no sono porque preferiram ser os malvados da história. E o Billy até adormeceu. acordou sobressaltado quando o sol estava a pôr-se. Para seu espanto, não havia nem coelhinhos nem o que quer que fosse à sua ― Talvez esteja a sonhar! ― disse o professor. volta. E, no final desse extraordinário dia de escola, o rapaz como “Se calhar esqueceram-se — pensou — mas de certeza que tantos outros viu o professor entrar no seu carro. amanhã se vão lembrar!” E, com isto, partiu a coxear em direcção à ― Professor ― disse ele ― esta foi a melhor aula que já tive. sua toca na floresta. Nunca me tinha acontecido tal coisa, foi mágico! No dia seguinte, e no outro ainda, foi um avô Lop ― Continuas a pensar que eu sou doido? ― perguntou o entristecido que esperou e esperou pelas crianças, que nunca mais professor, a sorrir. vinham... Por fim, já desesperado, resolveu ir à grande moita do O rapaz como tantos outros corou até às orelhas. bosque à procura de algum sinal dos coelhinhos. ― Estou ansioso por ler a tua história, hoje à noite! ― Ao descer, coxeando, pelo caminho abaixo, encostando-se acrescentou o professor. ― Até amanhã! pesadamente à sua bengala, encontrou um dos coelhos mais 228 66 E desapareceu por entre uma nuvem de pó, ao sair os portões velhos. da escola. À hora de dormir, o rapaz como tantos outros vestiu o — Bom dia! — disse, curvando-se entorpecido em sinal de pijama habitual, lavou os dentes e fez chichi, como normalmente, respeito. — Ando à procura dos coelhinhos do bosque. Costumava deu um beijo à mãe, tal como era normal, e deitou-se na cama contar-lhes histórias, sabe, mas eles deixaram de vir. habitual... — Pois ainda bem! — roncou o coelho grande. — Tudo o que aqueles coelhinhos aprenderam consigo foi a mentir e a contar histórias. O avô Lop ficou chocado. — Mas eu nunca lhes ensinei a mentir — disse. — Só lhes contei as maravilhosas e mágicas histórias do bosque! — Pois já não vai contar mais nenhuma! — disse, irritado, o coelho, antes de regressar à moita. Foi um avô Lop muito triste e envelhecido, com uma lágrima a descer-lhe pelas bochechas, que regressou à sua toca na floresta. E teve sonhos extraordinários.... Sem nada com que ocupar agora os dias, o avô Lop vagueava sem destino. Ainda chegou a ir uma ou duas vezes à grande moita da floresta mas, assim que aparecia, os coelhos mais velhos mandavam os coelhinhos pequenos para o outro lado. Colin McNaughton Era uma vez um dia de escola normal Lisboa, Ana Paula Faria Editora, 2005 — Vai-te embora! — gritavam-lhe. — Não queremos coelhos velhos na nossa moita! E assim todos os coelhos fugiam precipitadamente para as suas tocas. Completamente sozinho, o avô Lop deixou a moita e voltou 67 229 para o seu recanto do bosque. Os coelhinhos bebés obedeceram aos mais velhos, mas nunca conseguiram esquecer a magia do mago do bosque. Às vezes, quando estavam todos sozinhos, costumavam segredar o quanto tinha sido divertido, mas a maior parte das vezes arrastavam-se pela moita, levantando poeira e sentindo-se muito tristes. Os coelhos mais velhos tentavam animá-los, e às vezes até lhes contavam uma história ou outra…Mas não era a mesma coisa! As coisas foram piorando tanto que os coelhinhos começaram a discutir entre eles. Tudo começava com um coelho a bater noutro, mas acabava sempre num emaranhado de braços, pernas e orelhas a debater-se no chão! A certa altura, como alguns dos coelhos mais velhos já não aguentavam mais, reuniram os coelhinhos todos. — Isto tem de acabar — disseram. — Com estas disputas já não se consegue fazer mais nada! Já ninguém vai apanhar comida, já não se constroem novas tocas e o Inverno está a chegar! — Se pudéssemos ouvir as histórias mágicas do avô Lop — disse um dos coelhinhos — já não arranjávamos mais problemas. — Mas a magia não existe! — disseram, zangados, os coelhos mais velhos. — Vocês mentiram! — Nós não mentimos! Nós dissemos a verdade e se tivessem vindo connosco, teriam visto como a magia existe mesmo! Os coelhos mais velhos reflectiram por uns instantes. 230 — Vamos com vocês ao vosso “mago” do bosque — decidiram — só para provar que a magia não existe! A HORA DO CONTO E lá seguiram todos aos saltinhos para a floresta, pelo longo e sinuoso carreiro abaixo, até chegarem ao tronco onde o avô Lop esperava... Estava, como sempre, ao sol, a contemplar o céu. Os coelhinhos sentaram-se rapidamente aos seus pés, enquanto os Um conto é sempre um convite a uma viagem…Pode mais velhos se sentaram, cépticos, num cepo velho e apodrecido. introduzir numa paisagem exterior, mas o verdadeiro O avô Lop reclinou-se para trás e, com um brilho nos olhos, convite é, em permanência, o de uma descida ao interior de começou, numa voz suave e baixa: cada um…. — Há muito tempo, numa terra de névoa e magia, havia uma E só pode viajar em pleno quem estiver tranquilo e floresta encantada… disponível, com os sentidos apaziguados…Por isso, é quase uma condição absoluta fazer anteceder as palavras da Os coelhos mais velhos arregalaram os olhos de espanto ao narrativa oral por uns momentos de relaxamento. verem o avô Lop ficar cada vez mais direito. À medida que ia E também é importante lembrar que o tom da nossa contando a história, a luz do sol brilhava nos seus olhos castanhos- voz é fundamental: deve ser pausada, murmurante, -claros, e bolinhas de magia começaram a cintilar pela floresta. O encantatória, antecipando, assim, a entrada no mundo da pêlo passou de branco a prateado e ele transformou-se no magia…. verdadeiro mago do bosque! Aliás, toda a postura do educador é essencial: as Quando a história chegou ao fim, todos os coelhos, novos e crianças e os jovens sentem logo quando queremos velhos, estavam completamente encantados! O momento era tão “apressar” o momento da história. O encanto desfaz-se e belo que alguns dos coelhos mais velhos até tinham lágrimas nos raramente se atingirá o objectivo! olhos! Ninguém disse uma palavra, tal era o medo de quebrar aquele momento mágico, mas, um a um, todos se aproximaram do avô Lop para o abraçar com todo o amor que tinham no coração! 69 231 Os coelhos mais velhos nunca pediram desculpa pelo mal Por exemplo, podemos dizer aos mais pequenos: cometido…. Mas agora, todos os dias, sempre à mesma hora, todos Tentem sentar-se confortavelmente no tapete mágico, de os coelhos saltam da moita e correm para ir ouvir o avô Lop e vê-lo preferência sem se tocarem uns aos outros (caso contrário, ele não transformar-se no mago do bosque. levanta voo!) ou nas cadeiras. Descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso colinho as mãos abertas, com as palmas para cima; tentem fechar os olhos (crianças há que não gostam de fechar os olhos. Têm medo. Temos de aceitar e respeitar, desde que não Escutem, dos mais velhos, perturbem as outras)….e comecem a respirar profundamente, pondo As suas histórias douradas a mão direita em cima do peito, para sentirem o coração. Tentem E lembrem-se do avô Lop escutar, em silêncio, o vosso coração. Agora sim, já mais sossegados, E da magia revelada. podemos entrar na Terra do Nunca….ERA UMA VEZ…. E aos mais velhos, que já não acreditam tanto no tapete mágico…. Tentem sentar-se confortavelmente no chão ou nas cadeiras, descruzem as pernas e os braços, ponham no vosso regaço as mãos abertas, com as palmas para cima; procurem fechar os olhos e Stephen Cosgrove Granpa-Lop Los Angeles, Sloan Publishers, Inc., 1981 (Tradução e adaptação) respirem profundamente. Sintam o bater do coração; descontraiam os músculos todos do vosso corpo: os dos pés, das pernas, do tronco, dos braços, os dedos das mãos… Concentrem-se no vosso rosto e descontraiam também todos os músculos da cara, a começar pela testa, pelas faces, pelo queixo, pelos olhos e finalmente pelos lábios. Se quiserem, imaginem na vossa mente uma paisagem do vosso agrado onde se sintam leves, serenos e felizes; desfrutem da paisagem que vos rodeia e caminhem por ela, sem pressa, ouvindo o bater tranquilo do vosso coração… (Após cerca de 5 minutos)…ERA UMA VEZ… 232 70 N. B. O CONTAR É UM INSTRUMENTO DE RECONSTRUÇÃO DO MUNDO 1 – De preferência, o conto não deve ser lido. É bem diferente o impacto da audição, da "palavra encantatória" sobre o ouvinte, sobretudo se este é uma criança!! Ou até uma pessoa idosa! E O caminho mais saudável e menos custoso para a resiliência sobretudo com as crianças da faixa etária que visamos, isto é quase é o da narratividade. Esta apetência para a própria história é uma condição sine qua non, pois a leitura deve ser deixada para as necessária para a formação da imagem da própria personalidade. aulas…Por isso, é desde logo assimilada, na mente delas, ao Este obrigatório e ao curricular! Acresce que temos crianças que não facilmente o deleite provocado pela recordação de momentos sabem ler e que, até mesmo inconscientemente, se podem sentir felizes, como acontece quando estamos em grupo e quando a "inferiorizadas"! evocação de momentos alegres faz voltar essa felicidade. Assim se trabalho causa um estranho prazer. Compreende-se tece a afeição entre os que partilham uma mesma lembrança. Mas recordar permanentemente um episódio doloroso, fazer voltar as 2 – O espaço que se cria deve ser "mágico"! Daí que não os imagens tristes, repetir os diálogos conflituais e imaginar outros, devamos distrair com elementos factuais extraídos do mundo que provoca uma emoção embaraçosa e de desgosto. E é provavelmente nos rodeia, pelo menos enquanto ocorre a “Hora do Conto”. De esta estranheza que permite compreender a função da narrativa qualquer forma, no tempo do conto só se deve contar o conto, interior: ter de novo em mãos a emoção provocada pelo passado e auscultar as reacções (se as houver…e eles quiserem falar…) e voltar a manuseá-la para fazer dela uma representação de si sintetizar com um desenho (ou reconto), acompanhado de um intimamente aceitável. possível momento final de relaxamento. Este trabalho da história tem um duplo efeito. Primeiro, na função de identidade: “Eu sou aquele que fugiu de uma casa de correcção, mandou o pai para a prisão para proteger as irmãs...” Depois, no tratamento das emoções: “Agora, já consigo suportar a lembrança do exército chileno a expulsar a minha mãe com os filhos pequenos. Sinto mesmo, vinte e cinco anos depois, um orgulho indescritível ao evocar esta recordação dolorosa a partir de 71 233 Espanha, país que me acolheu, e me deu responsabilidades importantes.” O facto de contar permite constituir-se em sujeito íntimo e a narração convida-o a ocupar o seu lugar no mundo, partilhando a sua história. O que é intimamente aceitável liga-se ao socialmente partilhável. Após este trabalho, o ferido pode olhar-se de frente e integrar-se na sociedade. Não se trata de regressar ao passado, o que é impossível. Quando conto a minha visita ao palácio do rei Miguel na Roménia, não é a viagem de quatro horas para Constanza que recordo. Lembro-me vagamente da densidade da floresta, do tempo pesado e da lentidão da viagem. Condenso algumas imagens significativas: o isolamento do castelo, a mudança barroca do estilo em cada divisão e semantizo aqueles desenhos para que eles me permitam, num só flash, recordar aquela viagem à Roménia. No tocante à verdade, as recordações são tão verdadeiras como as quimeras. Tudo é verdadeiro num tal monstro: o corpo é o de um leão, o peito o de uma cabra, e as asas, essas, são de águia. No entanto, o animal mítico não existe na realidade. Existe, sim, numa representação que o falante faz do real e que partilha com os seus companheiros de cultura. O resultado deste duplo efeito é que as histórias íntimas ou culturais podem criar, no mundo psíquico, um sentimento equivalente de pertença segura, quando os laços precoces o construíram deficiente. A ligação precoce fica gravada no temperamento infantil sem os pais se aperceberem, mas a narração discursiva, essa sim, pode ser urdida intencionalmente pelo trabalho de psicoterapia, de criatividade artística, ou por um 234 debate sócio-cultural. Todos somos obrigados a seguir este caminho a fim de construirmos a nossa identidade e ocuparmos um lugar no grupo. Os feridos da alma têm de o fazer com o trauma na sua memória e com a narração que dele fazem aos outros, o que não quer forçosamente dizer que se torne pública uma ferida íntima. Certas crianças gravemente feridas, ou que vivem num mau ambiente, demitem-se e tornam-se embotadas, confusas, escravas do passado, ruminando o golpe sempre a sangrar. Enquanto outras conseguem criar uma história interior necessária à sobrevivência psíquica. Contar põe em cena factos reais, cuja significação depende de quem fala deles. Georges Perec nunca viu desaparecer O DESEJO DE RUBY ninguém, até que um dia é o seu próprio desaparecimento que ele vê. Durante a 2ª Guerra Mundial raramente se viu desaparecer Se caminhar por uma certa rua de uma certa cidade na judeus, mas, um dia, demo-nos conta de que tinham desaparecido. China, e passar pelo mercado de animais de estimação, com os Georges lembra-se da presença do pai, com o uniforme de papa-arroz amarelos e verdes a saltar nas gaiolas de bambu, os soldado francês da Legião Estrangeira. E um dia… deixou de o ver. peixinhos dourados e as tartarugas de água doce nas taças de Recorda-se da mãe o acompanhar à estação, e depois… deixou de a porcelana, há-de chegar a um quarteirão de casas. Nesses edifícios, ver. O seu mundo esvazia-se sem traumatismo aparente. O golpe é agora castanhos devido à idade e à sujidade, moram muitas enorme, invisível, e a criança não compreende nada, porque não famílias. Porém, se olhar com atenção, verá que outrora essas casas pode ver uma coisa que deixou de lá estar. Então, durante os eram uma só, uma magnífica casa que pertencia a uma única quatro anos de psicanálise, esboroa a carapaça dos seus refúgios família. raciocinadores e depara-se com recordações que, para si, passam a ser factos reparadores da sua imensa ferida: “Gostaria de ter A casa foi construída por um velho que tinha estado na ajudado a minha mãe a levantar a mesa da cozinha.” Montanha de Ouro. Era este o nome que os Chineses davam à Vê-se bem que para se gostar duma tal recordação é preciso Califórnia, quando muitos deles participaram na Corrida ao Ouro, não se ter tido mãe. Um acontecimento não é o que se pode ver mas poucos regressaram. Este homem regressou, e regressou muito 73 235 nele ou aquilo que se sabe dele, é aquilo que dele fazemos na rico. Fez, em seguida, o que todos os homens ricos faziam na necessidade que dele temos para virmos a ser alguém. A mais Antiga China: casou com muitas mulheres. As mulheres tiveram simples banalidade traz em si a semente de um grande muitos filhos e os filhos também tiveram muitas mulheres. A dada acontecimento interior, se dermos à pessoa atingida um lugar e um altura, a casa transbordava de gritos e risos de mais de uma meio de poder mergulhar à procura das recordações perdidas. O centena de crianças. acontecimento é o que fazemos daquilo que nos acontece: Entre estas crianças, havia uma menina a que todos desespero ou glória. chamavam Ruby, porque adorava a cor vermelha. Na China, o vermelho é a cor das celebrações. No Dia de Ano Novo, as crianças O bestiário imaginário e o romance familiar recebem envelopes vermelhos cheios de “dinheiro da sorte” e as As crianças que não sabem escrever, ou que ainda não noivas vestem-se de vermelho no dia do casamento. Contudo, Ruby dominam suficientemente a noção de tempo para fazerem uma insistia em vestir-se de vermelho todos os dias. Mesmo quando a narrativa, contam a si mesmo dois géneros de efabulação: o mãe a obrigava a usar cores mais sóbrias, como as primas faziam, folhetim do amigo imaginário e o romance familiar. O bestiário Ruby atava o seu cabelo negro com fitas vermelhas. imaginário desempenha um papel importante no desenvolvimento do psiquismo infantil. Toda a criança, antes de se deitar, sabe bem Uma vez que tinha muitos netos, o avô de Ruby contratou que, para dormir, tem de pôr de lado a realidade e deixar-se ir para um professor para vir a casa ministrar as lições. Todos os netos que outro mundo, o do sono. É preciso que tenha passado um bom dia quisessem aprender tinham aulas com este tutor. Esta não era uma e adquirido suficiente confiança, para ter a coragem de largar o que situação comum na China de então, dado que a maioria das a segura ao real e deixar-se deslizar para um mundo de sombras raparigas nunca aprendia a ler ou escrever. Sempre que o tempo onde pode surgir todo o género de fantasmas. A criança inventa, estava bom, as aulas tinham lugar no jardim. As janelas do então, uma etapa intermédia em que imagina seres estranhos mas escritório do avô davam para o jardim e, com frequência, o velho familiares, não completamente desconhecidos. Recria todas as levantava-se para observar os netos. noites a cena do menino que chama para a sua cama Pernou, o simpático companheiro invisível que imagina ser metade homem e Um dia, o avô viu a parede alta e branca do jardim coberta de metade cão, e Perguit, outro animal-homem amigo. Guardado, caligrafias. Os netos tinham estado a praticar a escrita. O avô riu-se assim, por esta boa companhia que acaba de criar, tenta a aventura ao ver que muitos tinham a cara e as mãos cheias de tinta! Foi de mergulhar no escuro. então que reparou que uma das folhas era mais bela do que as 236 74 restantes. Qual dos seus netos produzira tão bela caligrafia? Os animais imaginados povoam esta zona intermédia entre a Entretanto, no jardim, o tutor elogiava Ruby, que tinha as orelhas imagem parental familiar que lhe dá segurança e o desconhecido tão vermelhas como o casaco que vestia. angustiante. Embora sabendo que a autora deste povo intermediário é ela, sente-se mais confortável, porque vive a Para acompanhar os primos nos estudos, a verdade é que sensação suscitada pelo mundo que inventou. O seu imaginário age Ruby tinha de se esforçar o dobro. Com efeito, quando terminavam sobre o real íntimo, os dois “amigos” imaginários modificam o seu os estudos, os rapazes iam brincar; as raparigas, porém, tinham mundo interior, acalmam a sua angústia e convidam-na a deixar-se ainda de aprender a cozinhar e a governar a casa. Eram estas as levar pelo sono em boa companhia. Não há criação sem efeito. únicas tarefas que as mães achavam dignas de aprendizagem. Uma Tudo o que é inventado actua sobre o psiquismo daquele que o a uma, todas as netas abandonavam as aulas. Todas, excepto Ruby, inventa. que escolhia a noite para compensar os bordados que não fizera de Desde os primeiros escritos, Freud sublinharia a importância dia. E, durante muitas noites, a sua vela era a única acesa em toda a do romance familiar, quando a criança constrói uma história em casa, depois de todos se terem ido deitar. que conta a si própria que a família que tem não é a família verdadeira: “Foi um acidente da vida que me trouxe a esta gente. Um dia, o tutor pediu às crianças que escrevessem um Eu sei que sou uma princesa, até me pareço com a rainha Fabíola. poema. Ruby escreveu: Além disso, vi, uma vez, aqueles que fingem ser meus pais, a falar com uma espécie de mendigo. Deviam estar a dar-lhe o dinheiro Má sorte ter nascido rapariga; que lhe prometeram por me raptar…” pior sorte ter nascido nesta casa A menina que inventa um enredo destes e o aperfeiçoa a cada onde apenas os rapazes recebem atenção. indício novo está, no fundo de si mesma, graças a esta história, a O professor ficou impressionado com o poema da menina e desenvolver o sentimento de autonomia que acaba de nascer em si. mostrou-o ao avô. Este também ficou impressionado, além de “Descubro que os meus pais não são os seres excepcionais que eu pensava. Identifico-me mais com pessoas do meu nível, uma preocupado. Chamou, então, a neta ao escritório. Ruby viu o avô rainha, por exemplo. A angústia ligada ao desejo incestuoso que sentado na cadeira, com o poema pousado na secretária diante senti não tem razão de ser, porque os homens da minha família dele. não são o meu pai nem o meu irmão verdadeiros. Portanto, tive um — Foste tu que escreveste este poema? — perguntou. sentimento normal.” Não pensem que este romance familiar é uma 75 237 manifestação de desprezo pelos verdadeiros pais. Quase que é o — Sim, avô, escrevi — respondeu a neta. contrário. — Achas que nesta casa só nos preocupamos com os rapazes? A criança, ao crescer, descobre as limitações dos pais reais. — Não, avô — respondeu Ruby, arrependida por ter Tem a nostalgia da admiração passada mas, graças ao romance da perturbado o avô. família, evita a decepção e preserva, no fundo de si, o delicioso sentimento que experimentava quando os pais tinham ainda — Ruby — disse o avô, gentil — gostaria de saber porque prestígio. Eis como uma criação imaginária trabalha um escreveste este poema. De que forma cuidamos melhor dos sentimento concreto. Mais tarde, quando o jovem ou o adolescente rapazes? encontrar um amigo que partilhe de um imaginário análogo, farão A neta tentou escolher um exemplo insignificante. disso uma fantasia colectiva que será a prova de que o sentimento — Bem, quando se realiza o Festival da Lua, e nos dão um deles é fundado, já que o outro também o vivenciou. A crença bolinho a cada um, os rapazes ficam sempre com a parte da gema. funciona, modificando o real e arrastando os fiéis para o deleite… ou para o horror. — Ai sim? — disse o avô, como que à espera de mais O imaginário pode portanto alterar, de alguma forma, o revelações. modo como sentimos o que nos rodeia, o sabor do mundo. — E quando fazemos o Festival da Lanterna, as raparigas só Partilhamos todos desses sentimentos. Mas, a partir de uma recebem simples lanternas de papel, enquanto os rapazes recebem competência comum, as agulhas poderão apontar em direcções lanternas vermelhas com a forma de peixinhos dourados, galos e diferentes, dependendo dos tutores afectivos, sociais e culturais dragões. que o meio coloque à nossa volta. Enquanto a sublimação tem em conta a existência do outro, o imaginário é uma expressão do O avô riu baixinho. Nunca havia pensado naquilo. Mas narcisismo. Se o ambiente for vazio, a pessoa fica prisioneira do seu imaginava, facilmente, o quanto a neta gostaria de ter uma refúgio e corre o risco de ficar lá fechada, como na mitomania. lanterna vermelha. Mas, se conseguir encontrar alguém que a convide a esforçar-se — Mas o mais importante — concluiu Ruby, fitando as para transformar o sonho em criação, então o ferido poderá biqueiras dos seus sapatos vermelhos — é que os rapazes vão para construir uma ponte de resiliência. a universidade, enquanto as raparigas se casam. Uma criança traumatizada que não sonhe fica sujeita à — Não queres casar-te? — perguntou o avô. — Tens muita realidade destruidora. Pelo contrário, uma criança fracassada que 238 76 sorte, porque uma rapariga desta família pode casar com quem se refugia no sonho a ponto de cortar com o real afasta-se da quiser. sociedade. Sozinha, uma criança ferida, que se protege graças ao sonho e encontra alguém que lhe pede para fazer um esforço de — Eu sei, mas preferia ir para a universidade. criação, terá hipótese de construir a sua resiliência. Fugir à O avô afagou-lhe o cabelo. realidade ou submeter-se a ela são dois mecanismos de defesa — Obrigado por teres desabafado comigo, Ruby. Continua a tóxica. Enquanto que proteger-se de uma realidade agressora e ir buscar ao imaginário algumas razões para a transformar, constitui estudar. Aproveita o mais que puderes. um mecanismo de defesa resiliente. Ao inventarem a sua história, E Ruby continuou a estudar. Alguns dos rapazes cresceram e os artistas vão buscar novas forças às feridas da infância, ao peso foram para a universidade. Outros ficaram em casa e constituíram das lembranças escondidas. Próxima do sonho, esta transformação família. Mas todas as raparigas casaram e foram viver com as de si mesmo tende a alargar a nossa concepção estreita do famílias dos maridos. Ruby sabia que, em breve, chegaria a sua vez. indivíduo. Nos lagos, observava as carpas cor de laranja e brancas, que procuravam pão sob uma fina camada de gelo. O Ano Novo chinês Dar forma à sombra para se reconstruir. A omnipotência do aproximava-se e a menina sabia que seria o último que passaria desespero naquela casa. Gosto de dizer que aquilo que não pode ser dito pode ficar No Dia de Ano Novo, calçou os sapatos de veludo vermelho e para sempre no domínio do não-dito. Este insignificante jogo de prendeu o cabelo com fitas vermelhas. Depois foi desejar a todos palavras permite evocar o desafio da transformação, quando uma um feliz ano. Começou pelas primas casadas, e em seguida felicitou desvantagem, uma mágoa ou uma vergonha se transformam em os pais, os tios e as tias. Cada um lhe deu um envelope vermelho desenvolvimento pessoal a partir do momento em que são cheio de dinheiro da sorte. Por fim, fez uma vénia ao avô: encarados de frente. Todo o herói autêntico tem de ultrapassar uma prova, como etapa para a luz. Um traumatizado, esse, não tem — Desejo-te boa sorte e prosperidade, avô. escolha possível porque o fracasso está lá, com a sua perturbação, — Boa sorte, Ruby — respondeu ele, entregando-lhe um deixando-o no dilema de escolher entre a prostração e a desordem: envelope vermelho muito grosso. “Julguei mesmo que ia sucumbir. Quando a vida perde assim todo o sentido, é um sofrimento sem igual. Eu nada mais era então do Todos os olhares da família se cravaram nela enquanto abria que uma actividade transbordante e descobri agora em mim a o presente. O presente não era dinheiro; era algo muito melhor: era 77 239 omnipotência do desespero”.1 a carta de uma universidade que se dizia orgulhosa por aceitar Quando nos vemos atirados para a morte, a única defesa Ruby como uma das suas primeiras alunas! E foi assim que Ruby urgente é lutar, ainda que haja a tentação de nos deixarmos realizou o seu desejo. Esta história é verdadeira. Sei-o, porque Ruby arrastar para o abismo. Se nos deixarmos dominar por esta última é minha avó. E todos os dias ainda veste algo vermelho. saída, tornamo-nos niilistas, privados de qualquer ponto de apoio, à deriva no meio das agressões da vida real. Se, no entanto, enfrentarmos o absurdo da vida antes que o nada nos domine, Shirin Yim Bridges Ruby’s Wish San Francisco, Chronicle Books, 2002 (Tradução e adaptação) poderemos preencher esse nada e tornar-nos criadores. O caminho do homem normal não está isento de provas: tropeça nas pedras, arranha-se nas silvas, hesita nas passagens perigosas e, mesmo assim, caminha! O caminho do traumatizado está bloqueado. Há um fosso que leva ao precipício. Quando o ferido pára e volta atrás, fica prisioneiro do passado, fundamentalista, negativo, ou submetido à proximidade do precipício. O resiliente, esse, depois de parar, abre um caminho lateral. Tem de encontrar uma nova via com os dados da sua memória, seguindo os contornos da ravina. Um caminhante normal torna-se criativo, o resiliente é mesmo obrigado a isso. Quando não é capaz de assimilar a realidade, a criança mais crescida tem a sensação de explodir: “Porquê aqui, ou além, ou noutro lado? Porquê isto e não aquilo?” A sua identidade fracassada não consegue tratar as informações do mundo nem adaptar-se a ele. Para dar forma a esta confusão urge tomar conta de si próprio. Ao tentar pôr coerência no mundo que a rodeia, a criança dá uma resposta adaptativa: fugir, submeter-se, seduzir o agressor, enfrentá-lo, analisá-lo, a fim de o controlar. O mecanismo 1 240 Hölderlin (1797), Hypérion, Paris, Gallimard, 1973, p. 21. 78 habitual de defesa urgente é o sintoma, fenómeno observável que exprime uma parte do mundo íntimo invisível. A partir do CONTAR UM POUCO DE MIM! momento em que o sintoma esclarece a sensação de desmoronamento do mundo interior, a pessoa sente-se melhor, porque pode referenciar a imagem do seu próprio sofrimento. Vê donde vem o mal e pode finalmente dar-lhe um nome. Este mapa do corpo dá forma à confusão e torna comunicável o sofrimento: COMO ESCREVER UM HAÏKU… “Posso expressar o que sinto num grupo. Posso consultar um médico e indicar-lhe sintomas. Já não estou só no mundo. Sei agora Se há uma actividade de que as nossas crianças e os jovens o que tenho de enfrentar e como posso ser ajudado pelo próximo e gostam, é, sem dúvida, quando os convidamos a escrever, sem pela minha cultura.” regras nem pré-formatações, sem rigidez, mas de um modo fluido, Quando um trauma despedaça a personalidade, a reduz a pó imaginativo e criativo, TRÊS VERSOS CURTOS, SEM RIMA, a ou a fragiliza mais ou menos gravemente, o atingido fica, durante propósito da Natureza que nos rodeia, das impressões que se sente um certo tempo, sem rumo, desidentificado: “O que é que me está ao caminhar numa floresta, ao deambular por entre os canteiros a acontecer? O que fazer neste caso?” Se na sua memória floridos de um jardim, ao passear ao longo da praia, numa manhã perturbada permanecer a recordação da pessoa que era, da família de sol, num fim de tarde outonal, ou numa noite estrelada… que o rodeava, leva então consigo a sombra do passado, estranha testemunha, prova impalpável de que já foi alguém: neste caso, Por isso, antes de lhes propormos esse pequenino esboço de permanece no fundo do seu eu despedaçado uma afirmação escrita criativa, convém fazer com eles um curto mas importante vacilante, uma presença indelével, uma brasa de vida. relaxamento… e ainda é melhor se esse “exercício de paz” tiver lugar já no jardim, no parque, no local cuja atmosfera (plantas, “Quando retomo o meu caminho, quando regresso ao sol animais, pedras, nuvens, céu…) irá servir de motivação para a para encontrar um pouco de alegria, vejo a sombra que projecto: a dos meus pais mortos. Sou uma imagem real, sou um rapaz, não escrita… tenho jeito para jogar futebol, tenho muitos amigos, mas os outros vêem bem que em mim há duas sombras. Então desconfiam e Todos sentados o mais confortavelmente possível (pode ser na acham que eu sou estranho.” “O que é que este rapaz tem? É relva, num banquito de pedra, numa pedra, e podem estar deitados, bonito, simpático e, de repente, tem perturbações de linguagem. 79 241 Fica calado quando falamos dos nossos pais, fica imóvel quando o olhando o céu, por exemplo…), vamos começar por sentir o coração abraçamos. O que se passa com ele? Encanta-nos e preocupa-nos. a bater mais tranquilo… Num 1º momento, vamos fechar os olhos e Mesmo quando está connosco, está noutro mundo, de lá traz uma ouvir apenas os sons da natureza que nos rodeia, o chilrear dos relíquia, uma foto antiga com os bordos desfeitos. Olha muitas pássaros,… sentir a leve brisa que nos acaricia,… cheirar os odores da vezes para ela, é a fotografia das suas sombras. terra molhada ou seca…, distinguir os pequenitos ruídos das Por vezes, vem-lhe do além um objecto, uma caixa de cartão formigas que trabalham, das mosquitas que se passeiam…Ficamos de cantos desfeitos, uma moeda de um país estrangeiro, uma assim cerca de 10 minutos…. Só depois é que podemos abrir pequena chave de ouro, decerto legada pela sua sombra paterna.” lentamente os olhos e, SEMPRE EM SILÊNCIO E SEM NOS Dar forma à sombra é reconstituir-se após o caos traumático. Dar TOCARMOS, vai cada um olhar, ver, observar atentamente, um ou forma à sombra é o primeiro momento da criação artística. O nome outro pormenor da Mãe Natureza que mais o fascine e sobre o qual que uso é o nome das minhas sombras. É a prova social de que elas queira escrever… existiram. Os meus fantasmas foram reais. A minha história adensa-se com a história das minhas sombras. Como se faz para suportar uma sombra? Enterra-se a sombra para não se ter mais E só depois destes momentos de contemplação silenciosa é sombra? Fundimo-nos na massa, procuramos o anonimato para que cada um pode escrever o que quiser no caderninho ou na folha deixarmos de ser sujeito?” de papel que tiver na mão (de preferência um A5)…. Poucas Mas quando, apesar do fardo das sombras, desejamos viver, palavras, apenas algumas… pois não se vai escrever uma longa mudamos o nome e, para melhor o escondermos, pomo-lo em história mas apenas três pequenos versos, sem rima, que destaque: “Chamar-me-ei Niki de Saint-Phalle. Este criptograma transmitam o que estamos a sentir naquele instante, naquele lugar, percorrerá o mundo e ocupará o seu lugar entre a humanidade, naquele preciso momento…. Quem ainda não souber escrever, donde fui expulsa com a idade de 11 anos, quando o meu pai, aquele pode pedir ao professor para escrever por ele/ela… grande banqueiro que eu tanto amava, se meteu na minha cama. Se quisermos, depois, podemos passar a limpo os versos, Hei-de combater o meu exílio, farei esculturas de mulheres com o numa folha/marcador, e desenhar algo que possa ilustrar o que se sexo à mostra, darei carne à minha sombra e matéria ao meu escreveu! E, às vezes, até se pode pôr a data… aquele momento trauma. Depois, estas criaturas expulsas do meu mundo íntimo ficará para sempre gravado na nossa vida! hão-de permitir que o meu nome seja aceite. Hei-de voltar ao mundo dos humanos com a ferida transformada em obra de arte.” 242 80 Expulsar de si a cripta traumática enquistada no psiquismo constitui um dos factores mais eficientes de resiliência. Para isso, é preciso que a criança mutilada se tenha tornado capaz de encontrar um modo de expressão adaptado e um lugar de cultura posto ao seu alcance. A escrita permite muito cedo este processo de resiliência. Deitar cá para fora, para tornar bem visível, objectivável e maleável, um sofrimento impregnado no fundo de si. É misterioso este desejo sentido por muitas crianças traumatizadas de virem a ser escritoras, quando nem sequer sabem escrever. Escrever não é dizer. Ao contar a minha ferida, as mímicas do outro, as suas exclamações ou até os silêncios modificam as minhas emoções. A sua simples presença muda tornou-o co-autor do meu A VOVÓ-LOBO discurso. Já não sou apenas eu o dono dos meus desejos. Custa-me agarrar o sentimento do meu passado. O confidente modificou as Eu tinha um amigo. Chamava-se Artur. Ainda se chama minhas intenções. Artur, mas já não é meu amigo. Desde o início das aulas que eu pensava como é que havia de fazer para o Artur ser meu amigo. O Pelo contrário, quando escrevo, com palavras tiradas do meu Artur é muito bonito. Gosto muito dos seus olhos castanhos e íntimo, atiro para fora de mim, lanço no papel a cave de onde todas delicados por detrás dos óculos azuis. O cabelo, cortado à as noites deixava sair alguns fantasmas. Da mesma maneira que escovinha, faz lembrar erva preta. Tem orelhas pequenas, anda Niki Saint-Phalle volta a integrar o mundo dos humanos graças ao muito bem vestido mas tem tendência para pensar que os outros artesanato de mulheres com o sexo à vista, Francis Ponge deita cá para fora um tema de escrita cuja função íntima será repará-lo: não valem “um tostão furado”, como diria a minha avó. A propósito “Tudo se passa como se, desde que comecei a escrever, eu da minha avó, eu disse ao Artur na hora do recreio: corresse… “atrás” da afeição de uma certa pessoa. A escrita é uma ― Artur, queres que te conte um segredo? testemunha de defesa. Todo o romance põe em jogo um herói ― Que segredo? reabilitador. A obra prolonga o aparelho psíquico e dá uma forma esculpida ou escrita à sombra que a pessoa mutilada carrega; este ― Uma coisa muito importante. Não vais dizer nada a lugar é um fórum exterior que contém uma delegação dos ninguém? 81 243 representantes do fórum interior”.2 O lugar da obra é o lugar da ― Claro que não, achas que sou o quê? cave, é o palco onde os fantasmas representam. “E compreendi que Então disse-lhe ao ouvido: todos aqueles materiais da obra literária eram a minha vida ― A minha avó é bruxa. passada”,3 escreve Proust, perito na evocação de sombras. Ele até deu um salto. Fingir para fabricar um mundo ― Já não há bruxas, isso era antigamente! A escrita, alquimia que transmuta o nosso passado em obra No momento em que eu ia dizer: “Mas a minha avó é uma de arte, participa na reconstrução de um eu arruinado e permite bruxa boa”, Íris, a magricela, aterrou entre nós como se tivesse fazer-se reconhecer pela sociedade. Mas, antes da escrita, outros caído do céu. Olhava para o Artur com ar provocador, com aqueles modos socialmente valorizados da representação de si entram em olhos grandes. A Íris era nova na escola, tinha chegado há dez dias, acção no decorrer do desenvolvimento. Uma criança tem de saber mas eu não falava muito com ela porque só queria ter o Artur como “fingir” desde os 15 meses de idade. Cair sem ser forçada, simular amigo. Ela tinha ouvido a conversa. Falava muito depressa e choro e mágoa que na realidade não sente, saber mostrar-se gesticulava. ameaçadora, adormecida ou até afectuosa. Em resumo, todas as actividades fundamentais da sua existência devem ser postas em ― Ah, então achas que já não há bruxas, Artur? Nunca cena no seu pequeno teatro pré-verbal, sob pena de não ter acesso ouviste falar da senhora da loja dos animais? à alteridade. A partir do momento em que uma criança treina para ― Não. inventar uma personagem a quem dá vida, um duplo imaginário a ― Aquela dos animais, no centro comercial, que dantes era quem confia os seus pequenos desgostos, um papel pré-verbal representado mimicamente com gestos, posturas e vocalizações, uma loja de brinquedos, não estás a ver? ela fornece ao adulto a prova de que compreendeu existir um outro ― Não, e o que é que isso tem a ver com bruxas? mundo mental diferente do seu e sobre o qual procura agir graças a ― Vou dizer-te uma coisa, meu menino. A senhora da loja cenários imaginados. dos animais transformou todos os animais de pelúcia em animais Quando brinca a fingir, o petiz inventa uma ficção expressa verdadeiros. Não sabias? Todos os cães, os gatos e até a piton do pelo corpo, dá forma às emoções para agir sobre o mundo mental seu terrarium. E, pode voltar a desfazer tudo quando quiser. 2 3 244 Portanto, vê lá, nunca te esqueças do teu ursinho na loja dela, meu C. Mason, L´angoisse et la création, Paris, L’Harmattan, 2001, p.154. M. Proust, A la recherche du temps perdu, Paris, Gallimard, 1989, p.206. 82 menino! Até se diz que ela transformou bonecos em bebés do outro. Este fazer de conta é uma proeza intelectual, por permitir verdadeiros e que ela os… ao mesmo tempo a expressão do seu mundo íntimo e o domínio inter-subjectivo: “Vou assustá-lo, dando uma queda. Vou atrair a O Artur estava vermelho, e julguei mesmo que ele ia atirar-se sua ajuda protectora fingindo que choro.” Quinze meses mais à Íris e começar a bater-lhe, mas não. tarde, quando a criança começar a dominar as suas próprias ― Em primeiro lugar, não gosto que me tratem por “meu palavras, é com palavras que irá fazer o mesmo. Ao contar uma menino” ― gritou em altos berros, batendo com força o pé no chão história, exprime o mundo íntimo, vai manipular as suas emoções e – e depois essa história dos brinquedos é ridícula e, quanto às estabelece assim a ligação de que precisa. Mas para que este bruxas, elas não existem! mecanismo de criação seja eficaz, é preciso que o outro, adulto ou companheiro, responda ao fingimento com uma reacção, essa sim, ― Existem sim, Artur, existem ― disse-lhe eu ― porque a autêntica, porque ele não está a brincar, antes vive um sentimento minha avó também é! “a sério”. ― E o que é que ela faz para ser bruxa? Quando a criança está só e o seu mundo se esvazia, quando o real é aterrador e esta se protege dele inventando uma ficção, ― Faz truques extraordinários, tem poderes… quando o outro, adulto ou companheiro, não responde a esse ― Que poderes? mundo virtual, o miúdo fica prisioneiro daquilo que inventou. ― Basta começar a contar uma história e pronto, transforma- Enquanto a mentira é uma defesa utilitária, a mitomania é uma se! Pode transformar-se em tudo: em príncipe, em anão das tentativa de resiliência pervertida, porque, em redor da criança montanhas, em abelha, ou simplesmente em bruxa. mutilada, a família, os amigos ou a cultura não souberam responder nem dar a tal defesa uma forma socialmente exprimível. O Artur encolheu os ombros, e a Íris, apontando-lhe o dedo Quando a realidade é suportada porque não provoca inquietações, ao nariz, disse-lhe, num ar muito sério: por se ter nela um lugar bem definido e as relações se ― Artur, é melhor para ti que nunca te encontres com essa estabelecerem bem, a realidade torna-se agradável, interessante e avó. até mais divertida do que os jogos de ficção. Num tal ambiente, a criança, ao brincar, aprende a introduzir-se no seu meio. Mas ― Ah! ah! ah! E porquê? quando a realidade é assustadora, quando as relações afectivas ou A Íris levou-nos para longe dos outros, para o fundo do pátio, sociais são perigosas ou humilhantes, a efabulação permite à para ninguém nos ouvir. criança proteger-se do mundo exterior submetendo-se ao mundo 83 245 inventado por ela. ― Eu conheço bem as bruxas ― explicou-nos ― e sei que elas existem. Na outra escola, eu era especialista nesse assunto. As A mentira é uma muralha contra o real, a mitomania um bruxas, agora, não usam chapéus em bico, não têm verrugas no “tapa-misérias” queixo, podem trabalhar nos correios, na televisão, até as há que são professoras! As bruxas tornaram-se comuns! A mentira protege a criança quando esta se encontra em Eu e o Artur ouvíamos o discurso da Íris, de olhos perigo, a mitomania dá-lhe um sentimento de revalorização quando ela não tem possibilidade de corrigir a sua imagem esbugalhados. afectada. Então, as histórias em que ela entra tornam-se coerentes ― Comuns? demais para serem honestas. O real é sempre um pouco caótico, ― Sim, e sei que há uma coisa que elas detestam acima de enganamo-nos nas datas, temos sentimentos ambivalentes, tudo. encontramos imagens do passado por vezes divergentes, um gesto de raiva em relação àqueles que amamos, uma lembrança que nos ― Que coisa é essa? – perguntou o Artur. intriga. Quem efabula é coerente até ao absurdo, deve apoiar-se em ― Detestam, acima de tudo, os malandros que não histórias que o rodeiem de pedaços de verdade com os quais fará acreditam nelas. uma ficção. Uma criança suficientemente cuidada, que adquiriu laços serenos, leva a cabo uma ficção que é uma forma de se O Artur encolheu os ombros. preparar para ocupar um lugar no seu meio. A criança mitómana ― Pfff! Que grande palermice! refugia-se na ficção para evitar esse mundo ou criar uma imagem ― Não te julgues assim tão forte, meu menino! – murmurou que a favorece e com a qual entra na sociedade. Teme o mundo a Íris. ― Eu cá também tenho os meus poderes! real e, apesar disso, deseja ocupar um lugar; por isso, introduz-se nele, criando a imagem desejada por aqueles que estão à sua volta. ― Não me trates por “meu menino”, que isso irrita-me. Desse modo, os temas da mitomania são os da nossa própria ― Estás a ver, eu tenho o poder de te irritar, ah! ah! ah! existência: êxito social, aventuras físicas, proezas militares ou E foi-se embora a saltitar nas suas grandes pernas. O Artur mesmo pequenos acontecimentos agradáveis do dia-a-dia: “Era tão estava furioso. linda… andámos a passear”, conta o adolescente desesperado por não ser capaz de sorrir para uma rapariga. Ao contar a sua fábula, ― Mas diz-me cá, Artur ― perguntei-lhe eu ― acreditas ou vive o sentimento provocado pela imagem que a sua história dá de 246 não que a minha avó é bruxa? Juro-te, Artur, que ela é uma bruxa a 84 sério! si. A carência afectiva está na base dessas ficções compensadoras. É a principal causa da mitomania e esta pode ainda agravá-la mais: é ― Isso é o que tu dizes! uma defesa falhada. O imaginário, pelo contrário, é uma metáfora ― Até o meu primo, que tem catorze anos, a trata por “Vovó- dos nossos desejos, porque põe em cena aquilo a que aspiramos e o -Lobo”, estás a ver! Só tens de vir comigo, se tiveres coragem, e jogo da ficção treina-nos para tornarmos o desejo realidade. Na ficas a saber. mitomania procuram-se palavras para compensar naquele momento o deserto afectivo. Mas ela é apenas agradável no Na quarta-feira seguinte fomos a casa da minha avó. Antes de instante em que se constrói o sketch do desejo: no entanto a entrarmos, preveni o Artur: descida é triste e, como com qualquer droga, depressa terá de se ― Durante a história, é preciso estar com os olhos fechados. recomeçar. Se abrires os olhos enquanto ela está transformada em lobo, em Este “teatro” indica, portanto, uma tentativa de defesa papão ou em monstro, ela pode devorar-te! construtiva. Uma criança posta num ambiente de isolamento O Artur levantou os olhos para o céu: afectivo acaba quase sempre por se deixar levar à morte psíquica, e depois física. De vez em quando, mesmo em carências extremas, lá ― Tretas! aparece uma que resiste: é aquela que consegue criar um mundo Eu insisti: interior feito a partir de alguns indícios, de pequenos nadas. ― Vais abrir os olhos? Aproveitando duas ou três percepções da realidade envolvente, a criança faz delas um objecto de hiper-ligação. Sobrevaloriza uma Ele respondeu: fotografia, um papel que embrulhou um presente, um prego ― Claro, o que é que julgas? dourado, uma fitinha, um artigo de jornal que guarda como um tesouro debaixo da almofada. O objecto simboliza a ligação perdida Apertei-lhe o braço com todas as minhas forças: e depois recuperada: “O meu pai ter-mo-ia dado”, “uma mãe tê-lo― Por favor, Artur, não abras os olhos ou vai ser horroroso! -ia oferecido ao seu filho”. Aquela pequena coisa – que para o E depois a vovó abriu a porta. Sentámo-nos no canapé. A adulto parece fraca e sem qualquer significado – é uma pérola preciosa para o pequeno dono, uma prova concreta de que é vovó disse: possível amar. Eis como um pedaço de papel se torna portador de ― Que história querem que vos conte? esperança. E, no entanto, a criança bem sabe que inventou aquilo e Com tanto azar que foi o Artur a pedir: lhe atribuiu o poder afectivo de que tanto necessita. 85 247 Ao efabular, a criança mais crescida ou o adolescente faz o ― A história do Capuchinho Vermelho. mesmo trabalho. Inventa um teatro em que representa os seus Então, como de costume, ao sentar-se no sofá, a avó disse: desejos e, no mesmo instante em que brinca com as palavras e ― Clic! Clac! Fechem os olhos para entrarem no conto e situações, sente o que acaba de inventar. A mentira serve para saírem dele sem qualquer dificuldade. Clac! Clic! mascarar o real a fim de se proteger dele, enquanto a mitomania serve para compensar o vazio da realidade com o objectivo de Depois começou a contar o passeio do Capuchinho Vermelho preencher uma falha afectiva. Aparentemente, ela repara a imagem na floresta. Não tinha pressa nenhuma, a menina de vermelho, e destruída de si. O imaginário, esse, dá forma ao ideal de si e cria dizia com a sua voz ingénua: um desejo que convida o sonhador a transformar a sua vida ao ― Oh! Que linda floriiinha! tornar real o seu sonho. E a flor respondia, a voar dali para fora: Estes três mundos virtuais têm por função dar um sentimento de segurança. A mentira protege como uma muralha, a ― Não sou uma flor, sou uma borboleta! Colhe-me, se fores mitomania como uma imagem sedutora e o sonho como uma capaz. ponte levadiça que dá para o campo. Se não houver campo, a ponte O Capuchinho Vermelho cantarolava, lalalalalala, e de a nada conduz e a criança fica prisioneira daquilo que inventou. O repente exclamou: que significa que é a relação com o outro, com a família e com a sociedade que pode transformar o sonho em criatividade ou, pelo ― Olha! Um morango silvestre! contrário, numa miragem. A mitomania é uma tentativa de E o morango respondia: resiliência que fracassa, por a criança martirizada não ter ― Não sou um morango, sou uma joaninha! encontrado um meio que a aceitasse com a sua ferida. Gosto muito daquele provérbio, certamente chinês, que diz: E o Artur ria porque a borboleta e a joaninha tinham voz A fachada duma casa pertence a quem olha para ela. O morador grossa. Eu pensava: “O Capuchinho Vermelho devia era usar constrói uma fachada para a oferecer ao espectador. Mas, óculos!” conhecendo-se os benefícios que a dádiva traz àquele que dá, De repente, o Capuchinho Vermelho parou de cantarolar e podemos compreender que aquela criança despedaçada que de saltitar. Alguém saiu de trás de um silvado. Ouviu-se o estalido constrói uma bela fachada tenta criar uma ponte afectiva entre ela das folhas. Senti que a vovó se transformava. e os que a rodeiam. Como quando brincava ao “faz-de-conta”, ou 248 86 quando esboçava um acontecimento que tinha presenciado, tal criança tenta submeter a realidade à sua representação. Mas a criança ferida apenas pode oferecer ao outro uma bela fachada, porque a sua realidade é demasiado triste. Na mitomania, aquilo que ela oferece é apenas a fachada. Atrás do cenário há ruína, desespero. Mas, pelo menos, terá existido na vossa mente, terá partilhado convosco um belo sonho. Pobre benefício, que a presenteia com uma fachada que esconde os escombros. ― Boas taRdes, encantadoRa menina! Ao deitarmos por terra a encenação, estamos a feri-la duas Era mesmo o sotaque do lobo que arrastava os “R”. A voz vezes. Primeiro, estamos a remetê-la para a sua sórdida realidade, passava-lhe por entre os dentes aguçados. Ouvia-se Flat! Flat! Eu depois a humilhá-la ao descobrirmos a sua fraude. Fugirá, então, disse baixinho ao Artur: para escapar à realidade e salvar a fachada, a tal dignidade imaginária. De qualquer modo, quando o trauma é único e quando ― Estás a ouvir a cauda do lobo a bater no chão? os sketchs são menos vitais, a mitomania dilui-se. Mas quando a Ele respondeu-me: criança profundamente ferida permanece no deserto, o mundo que ela imagina é o único prazer que lhe resta. Se tornarmos a sua ― Sim, estou a ouvir. realidade suportável, ela terá menos necessidade da mitomania. Os Eu murmurei: seus devaneios tornar-se-ão amostras de prazer e metáforas de ― É assim que os lobos batem com a cauda, quando sabem projectos. É o imaginário que daí para a frente se torna protector, e que vão regalar-se a comer. não a sua mentira. Pode criar um conto a partir dele ou subir para o palco sem defraudar o espectador. Tudo se torna claro: trata-se ― Boa tarde, meu senhor! ― disse delicadamente o apenas de uma história, de uma cena, de uma lenda, de um jogo Capuchinho Vermelho na sua voz fina. teatral. Mas, no fundo de si, o ferido passou a dominar a sua Francamente, acho estranho que uma rapariga diga “bom dia, tristeza, que nós, ao aplaudi-lo, estamos a curar. A distância do meu senhor” a um lobo. tempo, a busca das palavras e a habilidade da encenação são os instrumentos que lhe permitem não ficar prisioneiro do trauma e ― Onde vais, gRaciosa menina? ― disse o lobo. até fazer dele uma ponte para a sociedade. A vovó tentava adocicar a voz do lobo mas entre duas 87 249 Jorge Semprun ilustra bem este caminho que parte da ferida palavras ouviam-se fortes clac! clac! junto dos nossos ouvidos. para, progressivamente, se metamorfosear numa ficção. Em Le ― Ouves as mandíbulas a bater? Long Voyage4 dá ao trauma a forma de uma narrativa. Trinta anos Artur não respondeu. Certamente, começava a ficar com após a deportação, o seu depoimento entremeia os factos com a medo. imaginação. Picasso reconhece ter seguido o mesmo percurso quando pintou Guernica, alegoria quase incolor para significar a ― Enquanto tiveres os olhos fechados, não tens de ter medo morte. Steven Spielberg, graças à negação, protegeu-se durante de nada ― disse-lhe eu. quarenta anos da dor da Shoah. Mas será por fim uma ficção o que lhe permitirá voltar a ser inteiro. “A partir do filme deixei de ser um Apetece-me dizer a cada instante ao Capuchinho Vermelho: judeu partido em dois.” Até a escolha do assunto é uma confissão “Não respondas ao lobo! Vai-te embora! Foge depressa, ou trepa a autobiográfica. Ao contar a história de um homem que, durante a uma árvore.” Mas tenho medo de que o lobo, irritado e cheio de Segunda Guerra Mundial, salva milhares de judeus, Spielberg dava fome, se vire contra mim. Então deixo aquela pateta do forma à sua vontade de pensar que, apesar de tudo, o mundo ainda Capuchinho Vermelho responder. tinha algumas pessoas generosas. ― Vou a casa da minha avó que vive na floresta. Se fosse eu, respondia antes: “Vou a casa do meu tio que A ficção tem um poder de convicção muito superior ao da pratica boxe!” Senti que o Artur também estava nervoso. Peguei-lhe explicação na mão e disse: Nenhuma ficção pode ser inventada a partir do nada. Há ― Chiu! É muito ingénua esta rapariga mas não se pode fazer sempre indícios da realidade que alimentam a imaginação. Mesmo nada para a ajudar. os devaneios mais desenfreados dão forma a fantasias saídas do nosso mundo íntimo, por vezes próximas do inconsciente. Esta ― E onde é a casa da tua queRida avozinha? É longe daqui? ― passagem resiliente de uma dor real para o prazer da representação perguntou o lobo a dar aos dentes cada vez com mais força. dessa dor acusa a sociedade muito melhor do que o faria o ferido. E aquela palerma a dar-lhe as informações todas: Por que é que o público tem tanta dificuldade de ouvir os testemunhos? Ou melhor, por que é que só ouve os testemunhos ― É fácil, depois do pinheiro grande, vire à direita e depois à que o confortam na ideia que faz da sua própria condição? Fred esquerda, na quarta nogueira. É uma casinha com sardinheiras à janela. 4 250 J. Semprun, Le Long Voyage, Paris, Gallimard, 1972. 88 Evidentemente, o lobo foi a correr para casa da avó. Não Uhlman, filho de um médico judeu alemão, quer dar testemunho devia estar muito treinado na corrida porque arfava de uma forma do desaparecimento de metade dos seus colegas de escola em 1942, esquisita. Affu! Affu! Affu! Chegou diante da casinha. judeus e não-judeus. Quando escreve: “Vi que vinte e seis dos quarenta e seis ― Boas taRdes, avozinha, sou eu! rapazes da minha turma estavam mortos”, provoca um silêncio ― Tu, que-quem? pasmado. Desamparado, vacila um pouco: “Será que eu tinha ― O Capuchinho VeRmelho! mesmo necessidade de o saber?” Então, para contar a verdade que ninguém pode ouvir, decide escrever L’ami retrouvé5, onde, como ― En-entra, minha meniina, en-entra. Semprun, Picasso e muitos outros, cria uma ficção que dá à A avó do Capuchinho Vermelho não é tão robusta como a verdade uma forma socialmente aceitável. Conta a amizade de um minha e tem uma voz tremelicante. E depois deve ser surda para adolescente com Graf von Hohenfels, executado aos 16 anos de confundir daquela maneira a voz da neta com a do lobo. Disse-lhe: idade por conspirar contra Hitler, enquanto os pais, pertencentes à mais fina aristocracia, se tinham empenhado na destruição dos ― Boom diaa, minha menina, coomo és simpááticaaa… judeus da Europa. A ficção possui um poder de convicção muito E o lobo cortou-lhe a palavra e o pescoço. Clac! O lobo tem superior ao testemunho, porque o fio da história leva a uma adesão horror de comer avós, e por isso resmungava: que não é apenas a mera confirmação, demasiado semelhante aos ridículos enunciados oficiais: “55% das crianças morreram com a ― Ugh! Esta carne é dura, insossa e fibrosa! idade de 15,3 anos… 90% admitidas no nível superior do Eu acho que não era lá muito agradável para a vovó, mas o Secundário…” Artur riu-se daquilo. A recusa emocional facilita o negacionismo: “Quarta-feira, 14 ― E o que é isto? Ah, Os óculos! Quase os engolia! Vamos de Julho de 1916. Minha querida mãe: Regressei do gozo de licença antes pousá-los em cima da mesa-de-cabeceira. e estava tudo bem com o meu batalhão. Sabes, constatei, bem E ouvimos o pac! ao pousá-los. Quando a velhinha, entre como os meus colegas, que estes dois anos de guerra tinham ruídos medonhos, foi engolida, o lobo arrotou. O Artur deu um conduzido a pouco e pouco a população civil ao egoísmo e à indiferença, e que nós, combatentes, somos quase esquecidos. salto e exclamou: Algumas pessoas quase me disseram que se admiravam por eu não ― Oh! 5 89 F. Uhlman, L’ami retrouvé, Paris, Gallimard, 1972. 251 ter sido ainda morto. Vou fazer por esquecer, da mesma forma De seguida, o lobo tentou enfiar o pijama da avó, mas fazia como me esqueceram a mim. Adeus, mil beijos do fundo do tudo ao contrário: meteu a cabeça numa manga, e gritava, já quase 6 coração. Gaston” . Quando a pessoa se cala, morre ainda mais. Mas sem ar: quando dá testemunho, faz calar os outros. Perante uma escolha ― Eu MoRRo asfixiado! Eu sufoco! SocoRRo! tão dolorosa, a ficção é um bom meio para tornar a realidade E o Artur tinha um riso contraído, mas não era capaz de se suportável, criando uma narrativa de aventura. conter. Por fim, o lobo pôs a touca de banho da avó para esconder Mas quem inventa uma história construída a partir da sua memória serve-nos aquilo que desejamos: algumas belas narrativas as grandes orelhas, uma touca de plástico com flores cor-de-rosa. de guerra, de amor, de solidariedade, de vitória sobre os maus, a Eu tinha muita vontade de ver como é que ele ficava assim vestido, glória, a pompa, a vingança dos pequenos, a magia, as fadas, a e até me apetecia espreitar pelo canto do olho, mas receava que o ternura, todos os grandes momentos da vida do confidente, que Artur abrisse logo os dois, porque ele é muito curioso. O lobo são encarnados por quem conta a sua própria lenda. ralhou com a sua voz grossa: ― O primeiRo que olhaR paRa mim, devoRo-o! O poder reparador das ficções é capaz de mudar o real Cerrámos as pálpebras com toda a força. O Capuchinho A sociedade pode propor locais de cura mais suaves. Foi o Vermelho chegou. Não estranhou que a avó lhe dissesse com voz que aconteceu com Erich von Stroheim. “Serviu-se da mentira para grossa: proteger a sua intimidade, mas também para se construir a si ― AbRe a poRta, meu tesouRo! próprio. Teve tanto êxito no que empreendeu que só existe uma via de acesso à sua personalidade verdadeira: as obras-primas que ele criou.”7 Erich von Stroheim repara a vergonha da sua juventude por meio de uma compensação imaginária excessiva. Nascido em Viena em 1885, ingressa em 1906 no regimento apelidado “Os dragões de Moisés”, tal era o número de soldados judeus. Em 1907 é feito cabo, mas reformado três meses depois por incapacidade para transportar as armas. Embarca em 1909 em Brême e, ao Debruçou-se sobre o lobo para lhe dar um beijo. Ficou um 6 J.-P. Gueno; Y. Laplume (dir.), Paroles de poilus. Lettres et carnets de front, 1914-1918, Paris, Librio, 1998, pp. 104-105. 7 F. Lignon, Erich Von Stroheim. Du ghetto au gotha, Paris, L’Harmattan, 1998, p. 9. 252 bocadinho admirada quando viu os olhos grandes e a orelha peluda 90 a sair da touca de banho, mas só quando o lobo abriu a boca é que desembarcar em Nova Iorque dez dias depois, tinha ganho um ela disse: “von” entre Erich e Stroheim. Como qualquer emigrante pobre, aceita qualquer pequeno trabalho, até ao dia em que, no ano de ― Avó, que grandes dentes tu tens! Tens uma dentadura 1914, entra para Hollywood como figurante. Está bem longe de ser nova? aquele belo cavalheiro, capitão de dragões! O lobo respondeu: No contexto cultural americano daquela época, qualquer ― É paRa melhoR te comeR, minha menina! pessoa era convidada a descer ao real para aí realizar os seus sonhos mais loucos. Erich, humilhado por ter sido reformado, Gostava que o Artur tivesse gritado: “Capuchinho Vermelho! refugiou-se num imaginário compensador, mas, na cultura Pega num pau e bate no lobo, depressa. Faz-lhe frente, nós estamos americana, pôde desencadear um processo de resiliência. Primeiro contigo!” Eu teria gritado juntamente com ele. Mas ele não dizia construiu, a partir de pormenores verdadeiros, o seu próprio mito. nada. O canapé estremecia. Era o Artur que estava a tremer. Como Stroheim acumulava aquelas precisões que fazem a verdade, o que sempre, sustive a respiração e esperei que a menina do Capuchinho lhe permitiu descrever a condecoração da Ordem de Elisabeth que Vermelho fosse comida. Aquilo demorava muito tempo. teria sido conferida à sua mãe e o ferimento que sofrera na Bósnia-Herzegovina. O lobo saboreava-a e fazia muitos ruídos feios com a boca. E eu sentia que o Artur estava a ficar enervado. De certeza que estava Como todos os mentirosos, disfarça-se no papel de quem não farto daquele lobo. E se ele lhe mandasse um murro na cara, como suporta a mentira. O facto de ter encontrado um lugar onde pôde fez à Amélia, daquela vez que ela o tratou por ouriço-cacheiro por exprimir o seu imaginário permitiu à “imagem que dava nos seus causa do cabelo curto!? De repente senti que ele ia abrir os olhos filmes tornar real e verdadeira a pessoa que ele desejava ser.”8 como tinha dito que faria. O lobo iria comê-lo! Depois de uma avó Gostava muito de contar que, quando Goebbels vira La grande desenxabida, os lobos ainda podem comer um Capuchinho illusion em 1937, como bom conhecedor do exército, teria exclamado: “Mas nós nunca tivemos oficiais deste género!”, e um Vermelho delicioso, um Artur com óculos e até uma menina espectador ter-lhe-ia respondido: “Pior para vocês!”. Esta anedota rechonchuda como eu…Então gritei. permitia a Stroheim desarmar os críticos. A transformação do ― ARTUR! NÃO! ― e atirei-me a ele para impedir que pequeno judeu real no aristocrata oficial que sonhara, permitiu-lhe abrisse os olhos. tornar-se num monstro sagrado. Noutro contexto sócio-cultural, O Artur deu um salto como se tivesse sido mordido por uma 8 91 F. Lignon, op. cit., pp. 27 e 324. 253 poder-se-ia imaginar que a mitomania de Stroheim teria serpente. Então eu abri os olhos. Ainda bem que a vovó teve tempo provavelmente evoluído mal. de voltar a transformar-se em avó. O Artur estava com a cabeça escondida debaixo de uma almofada e gritava: Tal exemplo também permite afirmar que, sem adoradores de mitos, não haveria mitómanos, visto que as histórias que nos ― Nãããão! Nãããão! contam correspondem aos eventos que apreciamos. Os mitómanos, A vovó não parecia admirada e disse num tom de voz muito ao transformarem a realidade, estão a falar de nós. As suas belas meigo: histórias elogiam os nossos desejos mais extravagantes. A cumplicidade deliciosa entre o mitómano e os seus adoradores ― Clac! Clic! Acabou-se o perigo. Podem abrir os olhos. Clic! explica o elevado número de pessoas que, no século do Clac! romantismo, diziam ser Luís XVII, a quantidade de czarinas após a Então, o Artur correu disparado para o corredor. Queria ir revolução russa de 1917 e o número espantoso actual de médicos embora, tremia todo e devia estar a ver tudo desfocado porque os resistentes e até de sobreviventes de Auschwitz. óculos tinham voado. A vovó foi encontrá-los junto do telefone. Já que a ficção do mitómano lhe permite, com o nosso Quando quis aproximar-se dele, o Artur gritou: acordo, ocupar um lugar de sonho numa sociedade desesperada, ele conclui que o seu imaginário modificou o real e, por isso, sente- ― NÃO! -se melhor. Antes, experimentava uma imensa vergonha por causa ― Artur, não podes ir assim para a rua sem óculos, é da importância que atribuía ao olhar dos outros. Mas tudo mudou perigoso ― disse-lhe ela. ― Espera, vou endireitar-tos, estão todos na representação do real e nas interacções que essa imagem torcidos. provoca. Compôs o seu retrato, uma identidade narrativa que o personaliza e o acalma, a ponto de, no momento de contar a sua Depois daquilo, ele bem deve ter visto que a minha avó era história-ficção, ser de uma simplicidade e de uma modéstia uma bruxa boa porque ela devolveu-lhe os óculos arranjados, deslumbrante. dentro duma caixa com bombons. Mas ele fazia um sorriso forçado. Ainda não estava calmo. Nem pegou num único bombom! Bem, de vez em quando, não pode evitar confessar que tal identidade é apenas uma história, mas é-lhe impossível renunciar a Encostado contra a porta, só queria ir embora. No dia seguinte um tal benefício, porque o imaginário mítico dos indivíduos e dos disse-me, na escola: grupos muda a maneira de sentir a realidade. A ficção tem um ― A tua avó é perigosa! grande valor relacional, porque a história liga o narrador ao seu 254 92 Aquilo fez-me rir. ouvinte: “O mitómano mente como respira, porque, se não mentisse, já não respiraria”9; ele não tem outra vida. O imaginário ― Dizes isso porque tiveste medo, Artur. colectivo não se organiza de modo diferente. Quando um grupo é ― Não, eu não tive medo, mas a tua avó é completamente humilhado ou se sente desesperado, inventa uma bela história maluca. trágica e gloriosa para unir os seus membros e recuperar a sua auto-estima ferida. Sendo a ficção feita de pormenores verdadeiros, ― Se voltas a dizer isso, Artur, deixamos de ser amigos. é preciso agora provocar o real para provar que a quimera está viva. ― A tua avó é maluca, idiota, doida varrida. Jorge é um pequeno salvadorenho de 8 anos. O pai emigrou ― Acabou, Artur, deixamos de ser amigos. para os Estados Unidos e a mãe desapareceu quando ele tinha 4 Eu tinha vontade de chorar. Fui para o fundo do recreio, e eis anos. Foi encontrado a vaguear pelas ruas, magro, apático e preto que Íris, a magricela, apareceu. Anda quase sempre sozinha porque de sujidade. Uma instituição religiosa acolheu-o, lavou-o, é nova, e quem fala com ela diz que é estranha. É verdade que às alimentou-o, sem lhe dizer uma única palavra, de tal maneira as irmãs estavam saturadas. Jorge adaptou-se a este meio sem vezes usa palavras esquisitas que fazem rir o Sr. Monjol, o nosso palavras. Retomou um desenvolvimento muito lento, até ao dia em professor. O ar triste da Íris transformou-se imediatamente num que um grupo de soldados tentou raptá-lo à saída da igreja para o sorriso, e correu para mim. levar para a guerra. A criança resistiu e conseguiu fugir. Mas, a ― Magali (que sou eu), queria pedir-te uma coisa. partir desse dia, pôs-se a sonhar em voz alta. À noite revia, no ― Diz lá. decurso dos sonhos involuntários, os devaneios que inventara durante o dia. Contava as atrocidades que presenciara e admirava- Ela hesitava, parecia que, de repente tinha ficado tímida! -se de não sofrer com isso. Depois lá se decidiu: Estranho bem-estar, porque os adultos choravam e entravam ― Será que um dia podias fazer-me o obséquio de me em pânico, e a criança parecia calma. Não podia saber que a apresentares à tua avó? dissociação entre a memória do trauma e o embotamento da afectividade é um sintoma clássico de psico-traumatismo. Julgava- ― Fazer-te o obséquio? -se mais forte do que os outros e esse erro protegia-o. Criou a sua Eu estava tão admirada que não sabia o que responder. Ela imagem de super-homem. Afirmava que, de um só salto, podia julgou que eu recusava. Estava com um ar mesmo desiludido. 9 93 G. Maurey, Mentir. bienfaits et méfaits, Bruxelles, De Boeck Université, 1996, p. 123. 255 escalar montanhas, que a sua força era tal que podia adivinhar ― Por favor, mostra-me a tua avó, nem que seja só de longe. todos os pensamentos e matar com o olhar os maus que lhe Anseio por ver a tua Avó-Lobo! Gostava tanto de ver uma bruxa a quisessem mal. As religiosas da instituição, ao estabelecerem uma sério! Sabes, é que sou uma especialista no assunto, mas nunca vi relação entre a tentativa de rapto e aqueles curiosos discursos, nenhuma autêntica, e o maroto do Artur tem razão. Não vale a escutavam-no suspirando, mas os visitantes estavam convictos que pena termos ilusões, a senhora da loja dos animais não tem nada se tratava de um esquizofrénico. de bruxa e os porcos da Índia que lá tem são animais verdadeiros. Foi nessa época que Jorge começou a pôr à prova a sua Vais apresentar-me a tua Vovó-Lobo? mitomania para comprovar que dizia a verdade. Desde que inventava as suas histórias incríveis, a criança andava melhor. Janine Teisson Mamy-Loup Arles, Actes Sud Junior, 2003 (Tradução e adaptação) Tinha auto-confiança, sentia-se segura, mas sobretudo estabelecia relações humanas, porque finalmente tinha belas histórias para contar. Por vezes tinha dúvidas, é claro, mas nesses instantes de incerteza em que o real se impunha, sentia o gelo a fechar-se dentro de si e a isolá-lo do mundo. Tinha de provar a si mesmo que era, de facto, um super-homem. Tentou então o diabo para o pôr à prova. Escalou a parede de um prédio, de mãos nuas, para melhor sentir as asperezas, mergulhou no turbilhão de uma corrente para se deixar arrastar pelas vagas, atravessou-se no meio do trânsito para passar. De cada vez que escapava vivo, sentia-se mais contente porque tinha a prova de ser invencível. Ficava melhor. Diziam que era doido. Toda a história a respeito de alguém constrói uma identidade narrativa e pode tornar-se um factor de resiliência, se o meio familiar e cultural lhe der um estatuto, lhe proporcionar uma rede de encontros onde possa encontrar uma expressão de partilha. Quando se chega a uma situação extrema, quando se foi “expulso” da normalidade, várias estratégias se tornam possíveis. Se o golpe 256 94 foi demasiado grande, a pessoa sente alívio em deixar-se ir para a morte. Mas se o ferimento não nos destruiu completamente e se as A LUTA PELO SENTIDO forças internas absorvidas no decurso das primeiras ligações nos dão ainda alento para nos ligarmos aos outros, a reintegração na normalidade depende então do ambiente afectivo, social e cultural. Se queremos viver não somente de momento a momento, mas na plena consciência da existência, então a nossa maior necessidade e a nossa mais difícil realização é encontrarmos um sentido para a vida. É sabido que muitos perderam a vontade de Boris Cyrulnik Le murmure des fantômes Paris, Éditions Odile Jacob, 2003 (Tradução e adaptação) viver e que cessaram até de tentar fazê-lo porque a vida deixou de fazer sentido para eles. A compreensão do sentido da vida de cada um não se adquire de repente, em determinada idade, nem mesmo quando já tivermos chegado à maturidade cronológica. Pelo contrário, a maturidade psicológica consiste na aquisição de uma segura compreensão do que pode ou deve ser o sentido da nossa vida. E esta realização é o resultado final de uma longa evolução: em cada estádio procuramos, e temos de encontrar, um mínimo de sentido, adequado à forma como o nosso espírito e a nossa compreensão já evoluíram. Hoje, como em tempos idos, a mais importante e a mais difícil tarefa na educação de um filho é ajudá-lo a encontrar um sentido para a vida. Para se conseguir isso são precisas muitas experiências de crescimento. Enquanto se desenvolve, a criança tem de aprender, passo a passo, a compreender-se a si própria; com isso ficará apta a compreender os outros e, eventualmente, a relacionar-se com eles por vias mutuamente satisfatórias e significativas. 95 257 Como educador e terapeuta de crianças com severas perturbações, a minha principal tarefa era restituir-lhes um sentido para as suas vidas. Se as crianças são educadas de forma a que a vida para elas tenha significado, não precisam de uma ajuda especial. Vi-me confrontado com o problema de deduzir quais as experiências que, na vida de uma criança, eram mais adequadas para promoverem a sua capacidade para encontrar um sentido na vida; para dotar a vida em geral de maior sentido. Relativamente a esta tarefa, nada é mais importante do que o impacto dos pais e dos que tomam conta das crianças; a seguir, em importância, vem a nossa herança cultural, quando transmitida à criança de forma acertada. Quando as crianças são pequenas, é a literatura que da melhor maneira contém essa informação. Sendo assim, tornei-me profundamente desgostoso com muita da literatura destinada a desenvolver o espírito e a personalidade da criança, porque não estimula nem alimenta os recursos de que ela mais necessita para enfrentar os difíceis problemas interiores. A esmagadora maioria da “literatura infantil” tenta divertir ou informar, ou ambas as coisas. Mas a maior parte destes livros são tão frívolos de substância que muito pouco de significativo se aprende com eles. A aquisição de habilidades, incluindo a capacidade de leitura, perde o valor quando o que se aprende não acrescenta nada de importante à nossa vida. Nestes e noutros aspectos, em toda a “literatura infantil”, com raras excepções, nada é mais enriquecedor e satisfatório, quer para a criança quer para o adulto, do que o popular conto de fadas. É verdade que, a um nível inicial, os contos de fadas ensinam 96 pouco sobre as condições específicas da vida da sociedade moderna de massas; estes contos foram criados muito antes desta sociedade aparecer. Mas podemos aprender mais coisas com estes contos – sobre os problemas interiores dos seres humanos e as soluções acertadas para as suas exigências, do que em qualquer outro tipo de história que esteja dentro do âmbito da compreensão das crianças. Exactamente porque a sua vida é muitas vezes desconcertante, a criança precisa mais do que ninguém que lhe dêem a possibilidade de se compreender a si própria neste complexo mundo que vai enfrentar. Para poder fazê-lo, tem de ser ajudada a criar um sentido coerente no meio do turbilhão dos seus E SE A LUA PUDESSE FALAR… sentimentos. A criança precisa de ideias sobre como pôr a casa interior em ordem e, nessa base, conseguir dar um certo sentido à Um par de sapatos debaixo da cadeira. Uma grande janela sua vida. Precisa ― e quase não é necessário dar ênfase a isto ― de uma educação moral em que, com subtileza, se lhe transmitam as aberta. A luz do dia despede-se. vantagens de um comportamento moral, não através de conceitos éticos abstractos mas através do que parece palpavelmente E se a Lua pudesse falar… acertado e, portanto, com sentido para ela. Ora, os contos de fadas são portadores de mensagens … contaria histórias da noite que desliza furtiva importantes para o psiquismo consciente, pré-consciente ou pela floresta, inconsciente, qualquer que seja o nível em que funcionem. Lidando e de uma lagartixa que se apressa a ir para casa jantar. com problemas humanos universais, especialmente com os que preocupam o espírito da criança, as histórias falam ao seu ego Alguém murmura uma canção. Ouve-se o tiquetaque do nascente, encorajando o seu desenvolvimento e, ao mesmo tempo, relógio. Uma luz acende-se. aliviam tensões pré-conscientes ou inconscientes. Quanto mais eu tentava compreender porque têm estas histórias tanto êxito no 97 259 enriquecimento da vida interior da criança, mais intuía que elas, num sentido mais profundo do que qualquer outra leitura, E se a Lua pudesse falar… “atingem” a criança no seu núcleo psicológico e emocional. Falam … contaria histórias das estrelas que brilham no céu, das severas tensões interiores de uma maneira que a criança e da luz de uma fogueira perto da árvore. inconscientemente compreende e ― sem menosprezar as sérias lutas internas que o crescimento implica ― proporcionam exemplos de soluções, tanto temporárias como permanentes, para O pai abre um livro e folheia-o: uma história desenrola-se as dificuldades mais prementes. como um tapete mágico. A minha esperança é de que uma compreensão apropriada dos méritos ímpares dos contos de fadas possa levar pais e E se a Lua pudesse falar… professores a conferir-lhes outra vez o papel central que eles desempenharam durante séculos na vida da criança. … contaria histórias da areia soprada pelo vento, e de nómadas ocultos atrás das dunas. Os contos de fadas e o dilema existencial Sobre a mesa-de-cabeceira, um copo de vidro, um barco Na criança ou no adulto, o inconsciente é um poderoso de madeira e uma estrela-do-mar. determinante do comportamento. Quando o inconsciente é reprimido e ao seu conteúdo é negada a consciencialização, então o E se a Lua pudesse falar… espírito consciente da pessoa acabará finalmente por ficar em parte esmagado pelos derivativos desses elementos inconscientes. Ou … contaria histórias das ondas que rebentam na praia, então, ela ver-se-á forçada a manter um controle tão rígido e das conchas, e de um caranguejo sonhador… compulsivo sobre os mesmos que a sua personalidade pode vir a ser gravemente afectada. Mas quando se permite que esse material inconsciente, atinja em certa medida a consciência, e possa ser Na prateleira, uma caixa de música liberta a sua melodia. elaborado através da imaginação, o seu potencial para fazer o mal Um vira-vento rodopia. Sentado numa cadeira, um coelho ― a nós próprios e aos outros ― torna-se muito reduzido; algumas escuta. 260 das suas forças podem então ser dirigidas para fins mais positivos. 98 Contudo, a crença paternal dominante é que a criança tem de E se a Lua pudesse falar… ser poupada àquilo que mais a perturba: as suas angústias sem forma e nome, as suas fantasias caóticas, enfurecidas ou mesmo … contaria histórias do vento a embalar uma árvore, violentas. Muitos pais acreditam que só a realidade consciente ou e de pássaros abrigados nos ninhos. as imagens agradáveis que satisfaçam os desejos é que devem ser oferecidas à criança ― que ela deve ser exposta somente ao lado belo das coisas. Porém, um tal alimento unilateral nutre o espírito A mãe põe o coelho nos braços da menina. Aconchega-a e também só unilateralmente, e a vida real não é bela na totalidade. dá-lhe um beijo. Há uma recusa generalizada em deixar as crianças saberem E se a Lua pudesse falar… que a fonte de muito do que vai mal no mundo tem a ver com a nossa própria natureza ― com a propensão que todo o homem tem para agir agressivamente, associalmente, egoistamente, por … contaria histórias de uma gruta num local longínquo, raiva ou angústia. Em vez disso, queremos que os nossos filhos e de uma leoa a lamber os filhotes. acreditem que todos os homens são bons por natureza. Mas as crianças sabem que eles nem sempre são bons; e muitas vezes, Os olhos estão quase a fechar-se. O silêncio envolve a mesmo quando o são, prefeririam não o ser. Isto vem contradizer o noite. Da escuridão nasce um sonho cheio de cores. que os pais lhes dizem, o que faz com que a criança se veja a si própria como um monstro. E se a Lua pudesse falar… A cultura dominante deseja aparentar, especialmente no que diz respeito às crianças, que o lado sombrio do homem não existe, … contaria histórias de uma criança que dorme, afirmando acreditar num “melhorismo” optimista. A própria tranquila e feliz. psicanálise é encarada como tendo por fim tornar a vida mais fácil – mas isso não foi a intenção do seu fundador. A psicanálise foi E murmuraria, muito baixinho: criada para habilitar o homem a aceitar a natureza problemática da ― Boa noite! sua vida sem ser vencido por ela ou sem se entregar à fuga Kate Banks Wenn der Mond sprechen könnte Hamburg, Verlag Friedrich Oetinger, 2000 (Tradução e adaptação) sistemática. É esta exactamente a mensagem que os contos de fadas trazem à criança, de múltiplas formas: que a luta contra 99 261 graves dificuldades na vida é inevitável, faz parte intrínseca da existência humana ― mas que se o homem se não furtar a ela, e com coragem e determinação enfrentar as dificuldades, muitas vezes inesperadas e injustas, acabará por dominar todos os obstáculos e sair vitorioso. Os contos modernos para crianças evitam sobretudo os problemas existenciais, ainda que estes representem questões cruciais para todos nós. A criança precisa muito especialmente de sugestões, em forma simbólica, sobre como lidar com estes obstáculos para chegar sem riscos à maturidade. As histórias “inócuas” não mencionam a morte ou a velhice, nem os limites da nossa existência ou o desejo de uma vida eterna. O conto de fadas, pelo contrário, confronta-nos, sem rodeios, com as exigências básicas do homem. Por exemplo, muitos contos de fadas começam com a morte da mãe ou do pai; nestes contos, a morte cria problemas angustiantes, como a própria morte ou o medo dela o fazem na vida real. Outros contos falam de um pai idoso que decide que chegou a altura de a nova geração tomar as rédeas. Contudo, antes que isso aconteça, o sucessor tem de provar ser capaz e digno. O conto dos irmãos Grimm As três penas começa assim: Era uma vez um rei que tinha três filhos… Quando o rei já estava velho e fraco, pensando no seu fim, não sabia qual dos filhos deveria herdar o trono. Para se decidir, o rei dá aos filhos uma tarefa difícil; o filho que melhor a desempenhar será rei depois da minha morte. É característico dos contos de fadas expor um dilema existencial, concisa e directamente. Isto permite que a criança 100 enfrente o problema na sua forma mais essencial, ao passo que um enredo mais complexo seria para ela mais confuso. O conto de fadas simplifica todas as situações. As suas personagens são COSMICIDADE DA INFÂNCIA definidas com clareza e os pormenores, a não ser que sejam muito importantes, são eliminados. Todos os caracteres são mais típicos do que invulgares. Contrariamente ao que acontece nos modernos contos para crianças, tanto a maldade como a virtude encontram- Quando sonha, na sua solidão, a criança tem acesso a uma Em vida sem limites: o seu sonho não funciona como uma fuga, mas praticamente todos eles, o bem e o mal aparecem sob a forma de antes como um impulso, como um voo. Estes momentos de personagens e acções, pois o bem e o mal são omnipresentes na solidão, estes minutos aparentemente vazios, estes instantes que vida de cada um de nós. Aliás, a propensão para ambos encontra-se conhecem o cinzento dos abismos, são oportunidades para abrir os em cada ser. É esta dualidade que coloca um problema moral e que braços ao mundo. A criança torna-se um poço de curiosidade e -se omnipresentes nos contos de fadas tradicionais. exige uma luta para a resolver. arde nela o desejo de compreender o segredo das coisas. Um desejo O mal não deixa de ter os seus atractivos ― simbolizados pelo poderoso gigante ou pelo dragão, pelo poder da bruxa, pelo da astuta rainha em Branca de Neve ― e muitas vezes está temporariamente em ascensão. Em muitos contos de fadas o usurpador consegue, por algum tempo, apoderar-se do lugar que, imóvel. São os contos que reactivam esta infância, ao mesmo tempo que se alimentam dela. Muitas histórias maravilhosas revelam esta infância que nos procura e que nós, por vezes, procuramos. por direito, pertence ao herói – como as maldosas irmãs n’A Gata Reencontrar a infância não é reencontrar a criança que Borralheira. Não é o facto de o malfeitor ser castigado no fim da verdadeiramente fomos, mas ir além das nossas próprias história que faz com que os contos de fadas sejam uma experiência recordações, como se passássemos para o lado de lá de um espelho. de educação moral, ainda que isso também seja uma parte da Agir como se as nossas memórias autênticas e datáveis fossem questão. outras tantas “recordações-espelhos”, que mascaram uma memória Nos contos de fadas, como na vida, o castigo (ou o medo não menos autêntica, mas intemporal, intempestiva, que se dele) é somente uma dissuasão limitada para o crime. A convicção desloca, qual facho iluminado, numa noite que pertence à de que o crime não compensa é uma dissuasão muito mais eficaz, e humanidade, mesmo se continua a ser intimamente nossa. é por isso que nos contos de fadas os maus perdem sempre. Não é o 101 Docemente, as imagens dos contos animam-se e fazem-nos 263 sinal. facto de a virtude ganhar no fim que promove a moralidade, mas Mesmo uma criança que ouve um conto pela primeira vez reage sempre com um sorriso de reconhecimento face ao que ouve. Há qualquer coisa dentro dela que se procurava e que se encontrou. A sua curiosidade sem limites descobre situações à sua medida, e tanto a criança como o conto derivam de uma fonte! A criança provém de tantas fontes, escreve Bachelard, que sim o facto de que o herói é extremamente simpático para a criança, a qual se identifica com ele em todas as suas lutas. Por causa dessa identificação, a criança imagina que sofre com o herói, que vive todas as suas provações e tribulações, triunfando com ele quando a virtude triunfa também. A criança faz tais identificações por si própria, e são as lutas interiores e exteriores do herói que gravam nela a moralidade. seria inútil tentar delinear quer a sua geografia quer a sua história. É As personagens dos contos de fadas não são ambivalentes ― como se existisse uma confluência entre as perguntas infantis e os não são boas e más ao mesmo tempo ― como na realidade o contos. A criança é um excesso: fluxo de felicidade, de lágrimas, de somos. Mas uma vez que a polarização domina o espírito da exclamações, de observações e comentários, de personagens, de criança, ela domina também os contos de fadas. Uma pessoa é boa interesses que ultrapassam a família e fazem esquecer os pais. As ou má, sem meio-termo. Um irmão é estúpido, outro inteligente. encostas da infância desenham um mapa do mundo. Uma irmã é virtuosa e trabalhadora, a outra, vil e preguiçosa. Uma Os contos são um excesso de invenções que dizem respeito ao ódio, à felicidade, ao amor, à morte, à fuga, ao reencontro, mas é bela, as outras feias. Um dos pais é todo bondade, o outro, maldade. A justaposição de personagens opostas não tem por fim dar ênfase ao “bom” comportamento, como seria o caso nos contos também à terra e à natureza das coisas. Nos contos, a infância é de advertência. (Há alguns contos de fadas amorais em que o bem sempre descrita como algo que foi reencontrado: eles despertam a e o mal, a beleza e a fealdade não têm qualquer papel.) nossa capacidade de retorno à floresta profunda, aos poços de minas abandonadas, por entre assustadores blocos de rocha. Permitem-nos voltar aos poços da nossa memória, feitos de histórias contadas e de sonhos infantis. Mas estas personagens polarizadas permitem à criança compreender facilmente a diferença entre ambos os pólos, coisa que ela não poderia fazer facilmente se os protagonistas fossem desenhados mais próximos da realidade, com todas as O Runenberg, um conto feérico de Ludwig Tieck, fala deste complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades desejo irreprimível de encontrar algo de maravilhoso a todo o têm de esperar até que se tenha estabelecido uma personalidade custo, algo que se situe fora do tempo, enquanto vamos relativamente firme com base em identificações positivas. Só então desvendando os segredos do universo graças aos minerais e às 264 é que a criança tem bases para compreender que há grandes 102 diferenças entre as pessoas e que, portanto, tem de fazer uma pedras silenciosas, cheias de segredos. Este conto fala-nos do jovem opção sobre aquilo que quer ser. Esta decisão básica, sobre a qual Christian que, um dia, abandona o pai, os jardins e o castelo onde todo o desenvolvimento posterior da personalidade será erigido, é morava, para ir viver em plena floresta. Não é necessário que o facilitada pela polarização dos contos de fadas. conto se destine especialmente às crianças, ou que tenha sido As crianças de hoje já não crescem na segurança de uma grande família ou de uma comunidade bem integrada. Assim, mais ainda do que no tempo em que foram “inventados” os contos de fadas, é importante fornecer à criança moderna imagens de heróis que têm de se lançar no mundo sozinhos e que, apesar de não saberem à partida como é que as coisas se vão resolver, encontram lugares seguros, seguindo em frente com profunda confiança interior. escrito para crianças, para que nele vejamos os núcleos da infância. Tal como outros românticos, Tieck faz vir à superfície da narrativa imagens que nos lembram que a criança solitária mora em nós e no mundo. Essa é a parte anónima da infância, aquela que vibra com os silêncios da floresta, com as montanhas banhadas pelo luar, e com as vozes obscuras da terra. Esta tranquilidade sempre inquieta que marca a infância, as O herói dos contos de fadas tem um percurso solitário mil perguntas que incubam sob a pele macia de uma criança, bem que como o seu olhar penetrante, são bem diferentes das questões frequentemente se sente isolada. O herói recebe ajuda porque está “Quem sou?”ou “De onde venho?”, às quais pensamos poder dar em contacto com coisas primitivas ― uma árvore, um animal, a uma resposta rápida ao invocar as figuras paternas ou o estado natureza ― tal como a criança se sente em contacto com estas adulto. As perguntas infantis, facilmente transformadas pelos coisas, mais do que a maioria dos adultos. O destino destes heróis ouvidos adultos em perguntas pré-fabricadas, revelam uma convence a criança de que, como eles, se pode sentir abandonada admiração que se repercute no universo inteiro. A criança é no mundo, tacteando no escuro; mas, como eles, no decorrer da espontaneamente filósofa, metafísica mesmo. É espontaneamente durante uns tempos, tal como a criança moderna sua vida será guiada passo a passo, e receberá ajuda quando necessário. Hoje, mais do que noutros tempos, a criança precisa da confiança oferecida pela imagem do homem isolado, que todavia é capaz de estabelecer relações significativas e compensadoras com o astrónoma e física, ervanária e mineralogista, coleccionadora e investigadora. No seio da infância existe uma predisposição enciclopédica selvagem que revela amor pelo mundo. Como pôde Freud reduzir o interesse intelectual da criança a mundo que o rodeia. Ao mesmo tempo que distrai a criança, o conto de fadas elucida-a sobre ela própria e promove o desenvolvimento da sua 103 uma simples curiosidade sexual e a uma vontade, algo voyeurista, de conhecer a forma como nascem os bebés? Diante de um mundo 265 e de uma natureza apaixonantes pela sua complexidade e variedade personalidade. Tem tantas significações, em tantos níveis de manifestações, não podemos reduzir uma pequena cabeça diferentes, enriquece a existência da criança de tantas maneiras, inquisidora a um simples olhar pelo buraco da fechadura. Os que nenhum outro livro é capaz de igualar a quantidade e contos de Tieck, de Arnim, e muitos dos contos dos Grimm são diversidade de contributos que estes contos trazem à criança. A compostos por elementos que nos falam da natureza e dos seus maioria dos contos de fadas teve origem em períodos em que a prodígios. Os núcleos de infância, que são simultaneamente perguntas e respostas, são fundamentalmente órfãos e celibatários, selvagens e reservados. religião era a parte mais importante da vida; assim, eles lidam directamente, ou por dedução, com temas religiosos. As histórias d’ “As Mil e Uma Noites” estão cheias de referências à religião islâmica. Muitos contos de fadas ocidentais têm conteúdo religioso; Nos Elfos, a menina só podia brincar e comunicar com o elfo mas a maior parte destas histórias é hoje desprezada e quando estava longe da casa paterna. Félix e Christlieb só desconhecida do grande público, porque, para muitos, estes temas encontram a Criança Misteriosa no fundo dos bosques. O pequeno religiosos já não despertam, universal e pessoalmente, associações Christian tornou-se um ornitólogo solitário para poder viver nos significativas. bosques. Estas imagens falam todas da necessidade de afastamento O esquecimento em que caiu O filho de Nossa Senhora, uma para que os núcleos da infância se revelem. Uma criança pode das mais lindas histórias dos irmãos Grimm, é disso exemplo. crescer sem nunca encontrar a Criança Misteriosa. A pressão Começa exactamente como em Hansel e Gretel: Junto de uma familiar pode ser tal que a criança se infantiliza e nunca enfrenta as grande floresta vivia um lenhador com a sua mulher. Tal como em grandes questões que nascem dos sonhos. A rigidez da educação Hansel e Gretel, o casal é tão pobre que não pode alimentar-se a si pode bloquear tudo o que na criança é verdadeiramente dela, a próprio nem à filha de três anos. Comovida com a sua desgraça, a predisposição que nutre pela errância e pelos sem-família, não pelo Virgem Maria aparece-lhes e oferece-se para tomar conta da ateísmo mas por uma espécie de animismo sem fronteiras. pequena, que leva consigo para o Céu. A pequena vive uma vida maravilhosa até à idade dos catorze anos. Nessa altura, como em Tieck faz mais pela infância ao escrever histórias que não são variadas versões de Barba Azul, a Virgem confia à pequena as “para crianças” que todos os gestores de um pseudo-maravilhoso chaves de treze portas, doze das quais ela pode abrir, mas não a infantilizante. De igual modo, Bachelard, na sua Poétique de la décima terceira. Rêverie, faz mais pela infância do que mil tratados de psicologia infantil ou obras sobre a psicanálise das crianças. Quando A pequena não resiste à tentação: mente e, em consequência, é mandada de volta para a Terra, muda. Sofre provações severas e meditamos sobre a criança que fomos, para além de toda a história 266 104 está prestes a ser queimada viva quando, desejando confessar a sua da família, depois de termos passado a zona dos pesares e todas as má acção, recupera a voz para o fazer. É-lhe dada então pela miragens da nostalgia, atingimos uma infância anónima, um Virgem a felicidade para toda a vida. A lição da história é esta: uma autêntico núcleo de vida, a vida humana primordial. Esta vida está voz habituada a mentir só nos leva à perdição; é melhor sermos em nós e em nós permanece. Há um sonho que a ela nos conduz. A privados dela, como a heroína da história. Mas uma voz habituada recordação apenas reabre a porta do sonho. a arrepender-se para admitir os erros e dizer a verdade, redime-nos. Como não é possível saber exactamente em que idade um Esta comunicação primeira com as coisas e os segredos torna determinado conto de fadas é importante para uma determinada a ciência e a poesia sinónimas. Mais tarde, todas as imagens, todas criança, não podemos decidir qual dos muitos contos deverá ser as ideias que os contos encerram serão esquecidas. Talvez contado em determinado tempo ou porquê. Só a criança pode regressemos a elas em sonho, como que em segredo. Mas não determinar isso, através da força das emoções com que reage ao deveríamos, como indica Bachelard, conceder tempo, espaço e que um conto evoca no seu consciente ou inconsciente. meios a esta infância anónima? Um pouco como a doce mãe de Naturalmente, os pais começarão por contar ou ler ao filho Elfriede, que sabia que devia deixar à filha a maior liberdade um conto de que eles próprios gostaram em pequeninos ou de que possível nos diálogos com o elfo e em todos os jogos marginais de gostam ainda hoje. Se a criança não mostra entusiasmo pela que Elfriede gostava. Ou como o pai de Félix e de Christlieb, que história, isso significa que os motivos e temas não evocaram nela respeitava a relação dos seus filhos com a Criança Misteriosa, e que uma resposta significativa nessa altura da sua vida. Será então acaba por se lembrar que também ele vivera – outrora – uma melhor contar-lhe outra história na noite seguinte. Depressa se relação semelhante. saberá que determinada história se tornou importante para ela, quer pela sua resposta imediata à mesma, quer por pedir que lha contem mais e mais vezes. Se tudo correr bem, o entusiasmo da criança por essa história tornar-se-á contagioso e a história será importante para os pais, quanto mais não seja porque faz tanto Assim, tal como o sonho, os contos e o espírito de efabulação são um meio de que os núcleos da infância se servem para se desenvolverem, para reemergirem e para perpetuarem a dimensão cósmica da infância. sentido para o filho. Finalmente, virá o dia em que a criança retirou já tudo quanto podia da sua história preferida, porque os problemas que a tinham feito procurar a história foram substituídos por outros, que 105 Pierre Péju La petite fille dans la forêt des contes Paris, Robert Laffont, 1997 (Tradução e adaptação) 267 encontram melhor expressão num outro conto. Ela pode então perder, temporariamente, interesse por este conto, e gostar muito mais de outro. Para contar contos de fadas é sempre melhor seguir a indicação da criança. Mesmo que os pais adivinhem correctamente as razões por que o filho se envolveu emocionalmente com determinado conto, deve ser guardada só para si essa descoberta. As experiências e as reacções de uma criança são extremamente importantes e em grande parte inconscientes, devendo permanecer assim até que ela chegue a uma idade em que uma compreensão mais madura seja possível. É sempre inoportuno interpretar os pensamentos inconscientes de uma pessoa, tornar consciente o que ela deseja conservar pré-consciente, e isto é especialmente verdade no caso de uma criança. É tão importante para o bem-estar da criança sentir que os seus pais compartilham as suas emoções, através do gosto pelo mesmo conto, como sentir que os seus pensamentos íntimos não são conhecidos deles até que ela se decida a revelá-los. Além disso, explicar a uma criança por que razão um conto de fadas é para ela tão cativante destrói o encantamento da história, que depende em grande parte do facto de a criança não saber ao certo porque ficou tão deliciada com ela. E com a perda deste poder de encantamento, vai-se também o potencial da história para ajudar a criança a lutar por si própria e resolver sem ajuda o problema que, em sua opinião, deu sentido à história. As interpretações dos adultos, por mais correctas que sejam, tiram à criança a oportunidade de sentir que foi ela, sozinha, por ouvir e ruminar repetidamente a história, que conseguiu resolver com 106 êxito uma situação difícil. Nós crescemos, encontramos o sentido da vida e confiança em nós próprios por termos compreendido e resolvido os nossos problemas pessoais, e não porque outros no-los explicaram. Os temas dos contos de fadas não são sintomas neuróticos, algo que importa compreendermos de forma racional, para mais depressa nos vermos livres deles. Esses temas são sentidos como autênticas maravilhas pela criança, porque através deles se sente compreendida e apreciada no seu âmago, nos seus sentimentos, nas suas esperanças e angústias, sem que seja preciso trazer tudo isso à superfície para ser investigado à luz crua de uma racionalidade que ainda está para além da compreensão infantil. Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e apresentam-se com uma qualidade de encantamento, exactamente porque ela não sabe como é que as histórias produziram em si semelhante prodígio. INFÂNCIA E PALAVRA No princípio, era o Verbo — pelo menos na minha infância, toda caldeada pelo encantamento da palavra. A palavra, lengalengada, d’a pintinha põe o ovo prà menina papar todo — das brincadeiras com que se dava à criança a Um punhado de magia: a vida adivinhada por dentro consciência do rosto e das mãos, esta barba, barbadeira, esta boca, comedeira, este nariz, narizete, estes olhos de pisquete, esta testa, de A Menina do Capuchinho Vermelho foi o meu primeiro amor. Sentia que se pudesse ter-me casado com ela, teria conhecido a verdadeira felicidade. Esta afirmação de Charles Dickens indica que ele, como incontáveis milhões de crianças por esse mundo fora, giesta, este cabelinho, que não é loiro, foge, menina, que te estoiro!, que terminavam, depois de corrido todo o rosto, com uma sapatadinha na testa. Havia também o varre, varre, vassourinha, se também foi encantado pelos contos de fadas. Mesmo já célebre, varreres bem, dou-te um vintém, se varreres mal, nem um real — e, Dickens reconheceu o impacto formativo que as fantásticas pumba!, uma palmada na mão, porque, não sei porquê, se supunha personagens e as diversas ocorrências dos contos tiveram nele e no sempre que a vassourinha não varria a preceito. seu génio criador. Exprimiu muitas vezes desprezo pelos que, em Muito da minha predilecção era o serrobico, bico, bico, todo nome de uma racionalidade desinformada e mesquinha, insistiam 107 269 feito de beliscõezinhos nas costas da mão, enquanto a lengalenga ia em racionalizar, expurgar ou proscrever estas histórias, roubando andando quem te deu tamanho bico? foi a velha chocalheira, que assim às crianças as importantes contribuições que os contos de anda lá pela ribeira a apanhar ovos de perdiz para o filho do juiz, que fadas podem trazer às suas vidas. Dickens compreendeu que as está preso pelo nariz — e era o nosso que se puxava no fim. Depois imagens dos contos de fadas ajudam as crianças, mais do que tudo, havia a palavra mimenta, tão doce e cheia de ternura! Inspirava-se nos passarinhos e no perfume das maçãs: — Minha carricinha, inquieta! Minha maçãzinha de pardo lindo. A noite trazia a palavra na sua muito difícil e todavia importante e satisfatória tarefa: a conquista de uma consciencialização mais madura que ponha ordem nas pressões caóticas do seu inconsciente. Durante a maior parte da história do homem, a vida musical das últimas orações: intelectual da criança (além das experiências mais imediatas no Anjo da Guarda, seio da família) dependia de histórias míticas ou religiosas e de minha companhia, contos de fadas. Esta literatura tradicional alimentava a imaginação guardai minha alma, da criança e estimulava a sua fantasia. Simultaneamente, uma vez de noite e de dia. que estas histórias respondiam às perguntas mais importantes da A palavra-mistério de sons desconhecidos, que estabelecia a ligação com o divino, ouvia-se no latim da missa: Dominus Tecum! Sursum corda! E na ladainha: Turris eburnea, Stela Matutina… criança, constituíam o principal agente da sua socialização. Mitos e lendas religiosas (que com eles estão intimamente relacionados) ofereciam material com o qual as crianças formavam os seus conceitos sobre a origem e a finalidade do mundo e sobre os ideais Quando tínhamos de ficar na cama, por sarampo ou sociais que poderiam imitar. Tais eram as imagens do invicto herói constipação, havia a palavra fascinante e narcisíaca dos contos de Aquiles e do astuto Ulisses; de Hércules, cuja história mostrava que fadas — Espelho meu, espelho meu, haverá no mundo alguém mais não era indigno, mesmo para o mais forte dos homens, limpar a belo do que eu? — e que podia tornar-se maléfica: — Quem isto mais repugnante das cavalariças; de São Martinho, que cortou ao ouvir e o for contar em pedra se há-de tornar!. Ou a palavra viva e meio a sua capa para vestir um mendigo. popular das histórias tradicionais, muito do gosto de minha mãe, Nos contos de fadas, os processos internos são exteriorizados cheias de mãos a abanar, sem eira nem beira, mas espertalhotes, e tornam-se compreensíveis porque são representados por capazes de comer as papas na cabeça dos reis e de casarem com as personagens da história e pelas suas ocorrências. Por isso é que, na princesas. Ai, como me lembro delas! medicina tradicional hindu, um conto de fadas, que punha em jogo o seu problema particular, era oferecido a uma pessoa A palavra dos jogos tinha duas faces: uma de perder, outra de 270 108 psiquicamente perturbada, para meditação. Admitia-se que, ganhar. Ferrum-fum-fum, ferrum-funfelho, quantas abelhas há no através da contemplação da história, a pessoa perturbada seria cortelho? Aqui vai uma barquinha carregadinha de aves, de abraços, levada a uma visão da natureza do impasse que vivia na altura e de beijos… Quando se perdia, por falta de resposta pronta, dava-se entreveria que prenda e no fim recorria-se ao senhor juiz sentenciador, que determinado conto contivesse sobre o desespero, as esperanças e sentença se há-de dar ao dono desta prenda, seja ela de quem for? a possibilidade da sua resolução. Aquilo os métodos de vencer as tribulações, permitia ao paciente descobrir uma saída para a sua aflição e encontrar-se a si próprio, à imagem do herói da história. Mas a importância suprema dos contos de fadas para o indivíduo em crescimento é qualquer coisa de diferente dos Juiz que, às vezes, ordenava, romântica e comprometedoramente que se perguntasse: — Se o meu coração fosse um bosque, quem mandavas lá passear? ensinamentos sobre as formas correctas de viver neste mundo (esta Mas menina não gosta de estar sempre quieta. Menina sabedoria é bastante suprida pela religião, pelos mitos e pelas corropia de roda. E a palavra das cantigas era dançante e anunciava fábulas). Os contos de fadas não têm a pretensão de descrever o o amor: mundo tal como ele é nem aconselham o que cada um deve fazer. Se o fizessem, o doente hindu seria levado a seguir um padrão de comportamento imposto ― o que seria não só má terapêutica, mas — Machada, minha machadinha, quem te pôs a mão sabendo que és minha? o contrário da terapia. O conto de fadas é terapêutico porque o paciente encontra a sua própria solução, contemplando o que a história parece conter a seu respeito e a respeito dos seus conflitos interiores nesse momento da sua vida. O conteúdo do conto escolhido não tem Havia também a Condessa-condessinha, condessa-do-Aragão, a que não dava as filhas nem por ouro, nem por prata, nem por sangue de leão, nem por sangue de lagarta. O cavaleiro tinha de dar provas, antes de poder dizer: nada a ver com a vida exterior do doente, mas antes com os seus — Estimo e estimarei, problemas internos, que parecem incompreensíveis e, portanto, sentada numa almofada, insolúveis. O conto de fadas não se refere claramente ao mundo exterior, ainda que comece de forma bastante realista e contenha temas do quotidiano. A natureza irrealista destes contos (a que a fiar continhas de ouro, salta cá, minha esposada! tacanhos espíritos racionalistas se opõem) é importante, porque Na infância era fácil acreditar que Deus tinha criado o 109 271 mundo pela palavra. Que a luz seja! E a luz foi. Pelo poder da torna óbvio que o objectivo dos contos de fadas não é dar palavra tinha Xerazade conseguido adiar, por mil e uma noites e informação útil sobre o mundo exterior, mas sim sobre os depois para todo o sempre, a sentença de morte que pesava sobre processos psicológicos interiores que têm lugar num indivíduo. ela. A palavra foi para mim uma segunda placenta, aconchegante, As personagens e as ocorrências dos contos de fadas também onde na adolescência irrompeu o deslumbramento por dois poetas: personificam e ilustram conflitos internos, mas sugerem com Cecília Meireles, com o seu recorte visual, e Camilo Pessanha, com a água, morrente, do tempo a esvair-se na própria água do poema. E a palavra-poética tornou-se para mim a palavra-ninho, porque é realidade e é símbolo, a mais significante, polissémica no mesmo contexto, a mais texturada de conotações, e a que não extrema subtileza como resolver esses conflitos e quais os passos a dar em direcção a uma humanidade mais nobre. O conto de fadas é apresentado de forma simples, familiar; não se fazem exigências ao ouvinte ― o que evita até à mais pequenina das crianças o sentirse compelida a actuar de uma maneira específica ― e nunca faz sentir à criança que ela é inferior. Longe de fazer exigências, o admite sinónimos, já que é insubstituível. Por ela soube que a conto de fadas sossega, dá esperanças quanto ao futuro e contém a palavra é, ao mesmo tempo, música, canto e soluço – e o milagre promessa de um desfecho feliz. mais próximo do bafo e do coração humano. [Página de DIÁRIO] Para compreendermos como é que uma criança julga os contos de fadas, consideremos, por exemplo, os muitos contos em que o jovem herói engana o gigante que o aterra ou até ameaça a sua vida. Que as crianças sabem por intuição o que estes “gigantes” Luísa Dacosta Infância e palavra Porto, Edições Asa, 2001 representam, vê-se logo pela seguinte reacção espontânea de uma criança de cinco anos. Animada pela discussão acerca da importância que têm os contos de fadas para as crianças, uma mãe venceu a hesitação em contar ao seu filho histórias “tão sangrentas e ameaçadoras”. Assim, contou-lhe a história de Jack, o mata-gigantes. No final, a resposta do filho foi: “Os gigantes não existem, pois não?” Antes que a mãe pudesse dar ao filho a resposta tranquilizadora que lhe estava na ponta da língua ― e que estragaria o valor da história para ele ― o pequeno continuou: 272 110 “Mas há pessoas crescidas que são como os gigantes.” Com os seus cinco anos, ele compreendeu a encorajadora mensagem da história: apesar de os adultos poderem parecer gigantes assustadores, um rapazinho esperto pode vencê-los. Criança de fronte sem nuvens E olhos cheios de sonhos e encantos, Apesar do tempo veloz E de estarmos separados por meia vida, eu e tu, O teu amoroso sorriso certamente acolherá A prenda de amor de um conto de fadas. OS CONTOS DE FADAS NO CUIDADO E TRATAMENTO DE CRIANÇAS COM PERTURBAÇÕES EMOCIONAIS Marianne Runberg Este capítulo trata, em primeiro lugar, da utilização de contos de fadas na ajuda a crianças com perturbações emocionais. A ajuda pode ser-lhes dada por pessoas que com elas contactem C. L. Dodgson (Lewis Carroll) in Through the Looking Glass diariamente, por exemplo, os seus tutores. Tanto o meu marido como eu própria trabalhamos com crianças em regime de tutela há muitos anos. O confronto com os graves distúrbios que estas A necessidade de magia na criança crianças apresentam e o nosso sentimento de impotência face a eles, tornaram-me interessada na história das “nossas crianças” e, Do ponto de vista dos adultos e em termos da ciência ao mesmo tempo, nas crianças que vivem em regime de tutela. moderna, as respostas que os contos de fadas dão são mais fantásticas do que reais. De facto, estas soluções parecem tão Parecia uma constante: os dados amnésicos disponíveis eram incongruentes a alguns adultos (que se divorciaram já dos frequentemente escassos e os pais biológicos destas crianças caminhos pelos quais as crianças sentem o mundo), que eles se tinham estado, em regra, ausentes desde o início das suas vidas e recusam a transmitir às crianças informações tão “falsas”. Contudo, por longos períodos de tempo. A relação com a mãe fora explicações realistas são normalmente incompreensíveis para as perturbadora devido aos períodos em que a criança tinha vivido crianças, porque lhes falta a compreensão abstracta necessária para separada dela e quase sem nenhum contacto com ela. Na maior lhes dar um sentido. parte das vezes, a criança tinha sido internada em lares ou outras As explicações científicas exigem um pensamento objectivo. Tanto a investigação teórica como a exploração experimental instituições. Muitas mães biológicas eram alcoólicas. Se a criança tinha sido colocada num lar de acolhimento ou demonstraram que nenhuma criança em idade pré-escolar pode 111 273 instituição, era frequente haver uma grande incerteza por parte das verdadeiramente aprender estes dois conceitos, sem os quais a autoridades, dos pais biológicos e das próprias crianças, em relação reflexão abstracta é impossível. Conheci muitos exemplos em que, ao que iria acontecer no futuro. Na maioria dos casos, não existiam especialmente nos últimos tempos da adolescência, foi necessário planos a longo prazo e, durante os períodos de mudança, instáveis, apelar para os anos de crença na magia para compensar alguém também não existiam “pessoas-chave” que providenciassem que se viu prematuramente privado dela na sua infância, depois de continuidade na ajuda a estas crianças. lhe terem imposto (em vão!) a estreita realidade. É como se estes jovens sentissem estar agora perante a última oportunidade para Em Beyond the interest of the child, descreve-se a importância compensar uma grave lacuna nas suas vidas; ou que, sem terem dos chamados “pais psicológicos” na vida duma criança, sejam eles passado por esse período de crença na magia, não se achavam pais biológicos, tutores ou pais de acolhimento. No que diz aptos a enfrentar os rigores da vida adulta. respeito ao conceito de “pais psicológicos”, o que importa é um Muitos jovens que procuram hoje a evasão súbita através dos desejo sincero e profundo de tomar conta da criança a nível prático sonhos proporcionados por drogas, são iniciados por gurus, e a nível emocional, dando-lhe a oportunidade de ter um acreditam na astrologia, praticam “magia negra” ou, por outra desenvolvimento pessoal e social saudáveis. Obviamente, isto não qualquer forma, se escapam da realidade através de devaneios implica apenas sentimentos positivos. O essencial é que estes sobre experiências mágicas que melhorarão as suas vidas, foram sentimentos predominem, baseados num contacto diário feito de prematuramente pressionados a encarar a realidade de uma forma partilha de experiências. É isto que dá à criança a possibilidade de adulta. A tentativa de evasão da realidade por estas vias tem as suas sentir que é um membro integrante da família. Para se conseguir causas mais profundas nas primeiras experiências formativas, que uma relação satisfatória é vital que esta seja mútua. os impediram de se convencer pessoalmente de que a vida pode ser dominada por meios realistas. Se os sentimentos positivos da criança em relação aos “seus pais” não são recíprocos, a criança nunca se sentirá realmente Satisfação indirecta versus reconhecimento consciente amada e apreciada por, pelo menos, uma pessoa. Não será capaz de se amar e respeitar a si própria, o que a impedirá de tomar conta de A criança sente quais dos muitos contos de fadas são a outros quando crescer. É necessária uma vida que lhe forneça um verdade para a sua situação interior de momento (a qual ela não sentimento de continuidade, o que implica estabilidade na vida sabe, por si só, manejar), e sente também em que ponto da história familiar, no jardim-de-infância, na escola, etc…O desenvolvimento esta lhe dá uma achega para poder enfrentar um problema difícil. emocional na infância nunca se faz sem sobressaltos. Por vezes, o Mas isso não é imediatamente resolvido, nem se consegue quando 274 112 se ouve um conto de fadas pela primeira vez. Alguns dos elementos crescimento pode ser rápido; outras vezes, pode haver uma do conto são demasiado estranhos ― como têm de sê-lo, a fim de paragem ou mesmo regressão. A criança precisa de estabilidade e se dirigirem a emoções profundamente escondidas. harmonia no seu mundo exterior para compensar a falta de Só com a repetição frequente do conto, e quando tenha tido tempo suficiente e oportunidade para se debruçar sobre ele, é que a criança pode aproveitar plenamente o que a história tem para lhe oferecer no tocante à compreensão de si própria e do mundo. Só então as livres associações da criança produzem o sentido mais pessoal do conto; só então o conto a ajuda a resolver os problemas que a oprimem. Por exemplo, quando ouve a história pela primeira vez, a criança não pode projectar-se no papel de uma figura do sexo equilíbrio interno. Muitas vezes, tal necessidade é subestimada por aqueles que têm a criança a seu cargo. A noção de tempo é importante para as crianças em lares de acolhimento. A experiência do tempo é muito diferente para uma criança e para um adulto. Este pode, em geral, fazer planos para o futuro, e adiar a satisfação de algumas das suas necessidades até que chegue o tempo de as gratificar. A criança não consegue oposto. É preciso que haja certa distância e colaboração pessoal, esperar pela satisfação das suas necessidades da mesma forma e durante algum tempo, antes de uma rapariga se poder identificar não consegue fazer planos para um futuro distante. O que a um com o João de João e o Pé de Feijão ou um rapaz com Rapunzel. adulto parece um período de tempo bastante curto, pode ser muito Conheci pais cujos filhos reagiam a um conto de fadas dizendo “Gostei”, e assim apressavam-se a contar-lhes outro conto, longo para uma criança, por vezes até infindo ou “para sempre”, dependendo da sua idade biológica e do seu nível de pensando que mais um conto aumentaria o prazer da criança. Mas desenvolvimento. O tempo que uma criança leva a “esquecer” uma o comentário do filho exprimia provavelmente um vago relação emocional antiga e a estabelecer uma nova, variará de sentimento de que a história tem qualquer coisa de importante acordo com o seu estádio de desenvolvimento aquando da ruptura. para lhe comunicar ― qualquer coisa que se perderá se não se ler à Antes dos dois anos de idade, será difícil para a criança reter criança de novo a história, e se não se lhe der tempo para a aprender. Desviando os pensamentos da criança prematuramente para uma segunda história, poder-se-á desfazer o impacto da primeira, ao passo que, fazendo-se isso mais tarde, se poderá antes aumentá-lo. por muito tempo uma imagem interna dos pais. A criança ligar-se-á a outros adultos quando os pais não estiverem presentes, desde que estes adultos preencham as suas necessidades e desde que a criança não esteja muito perturbada. Tal não significa, no entanto, que a criança prossiga a sua vida sem nenhum trauma emocional Quando se lêem contos de fadas a crianças, numa aula ou em bibliotecas durante a hora de recreio, as crianças parecem 113 devido à separação da sua mãe biológica (e pai, se alguma vez ele esteve presente). 275 Ler contos de fadas a uma criança parece ser uma fascinadas. Mas, muitas vezes, não se lhes dá a oportunidade para oportunidade de compensar aquilo de que ela sente falta. O conto contemplarem os contos ou para reagirem; elas são imediatamente de segurança, arrebanhadas, ou para outra actividade ou para outra história previsibilidade e continuidade. Isto acontece na situação de leitura diferente da que lhes contaram antes, o que dilui ou destrói a em que a criança e o adulto partilham uns momentos tranquilos impressão que o conto criou. Falando com crianças depois de uma fadas pode inculcar-lhe sentimentos de antes de se deitarem. Importa criar uma situação estável em que as mesmas coisas se repetem vezes sem conta. A criança torna-se assim capaz de prever a situação; a vida torna-se mais segura e possibilita-lhe ter uma relação mais próxima e calorosa com um ou dois adultos. experiência destas, parece que tanto fazia que a história fosse contada como não, pelo efeito nulo que foi obtido. Mas quando o narrador da história dá às crianças tempo suficiente para reflectirem sobre ela, para se submergirem na atmosfera que a narrativa cria, e quando elas são encorajadas a falar no assunto, então Além da situação de leitura, o conto de fadas comunicará conversas posteriores revelam que, emocional e intelectualmente, a história lhes oferece muito. estabilidade e segurança à criança através da música e do ritmo Tal como os pacientes dos curandeiros hindus eram que, tantas vezes, caracterizam estes contos. Neles, o tempo não se solicitados a contemplarem um conto de fadas para encontrarem mede em dias, meses ou anos mas num certo número de provas. É uma saída para a escuridão interior que encobria os seus espíritos, assim que a perspectiva temporal se torna facilmente visível e também à criança se deve dar a oportunidade de ― vagarosamente passível de ser entendida por uma criança. O herói/heroína é, ― assimilar um conto de fadas, fazendo a junção das suas próprias frequentemente, por associações com o conto. Diga-se de passagem que esta é a razão pessoas/poderes maus mas, no fim, o príncipe fica com a princesa por que os livros ilustrados, hoje tão preferidos por adultos e ou vice-versa. Desta forma se comunica à criança ― que se sente crianças, não são o melhor serviço que se pode prestar à criança. As alguém não desejado, perseguido rejeitada pelos próprios pais ― a esperança de se tornar membro desejado de uma família. ilustrações distraem em vez de ajudarem. O estudo dos livros ilustrados demonstra que as gravuras desviam o processo de aprendizagem em vez de o fomentarem, porque as ilustrações Quanto às crianças mais velhas, elas aceitarão por vezes – a afastam a imaginação da criança daquilo que, por si próprias, e sem nível simbólico – sentirem-se ligadas a novas pessoas. Trata-se de ajuda, elas sentiriam graças à história. A história ilustrada perde um processo frequentemente difícil dado que as crianças estão muito do conteúdo pessoal que poderia trazer à criança que lhe sobrecarregadas com sentimentos de culpa e têm medo de ser aplicasse somente as suas próprias associações visuais, em vez das desleais para com os pais biológicos, mesmo se o contacto com de quem as desenhou. 276 114 Também Tolkien pensava que, por melhores que sejam, as estes é muito raro ou já não existe. O conto de fadas é como que ilustrações pouco bem fazem aos contos de fadas…Se a história diz: um elo de ligação entre a criança e a pessoa que dela cuida e é, “Ele trepou a colina e viu o rio no vale, lá em baixo”, o desenhador igualmente, um instrumento através do qual a criança pode poderá apreender, ou quase apreender, a sua própria visão da cena, receber ajuda na sua caminhada de desenvolvimento harmonioso. mas cada ouvinte terá formado o seu próprio quadro, que será feito de todas as montanhas e rios e vales que jamais viu, mas especialmente a Colina, o Rio, o Vale que foram para ele a primeira Não se pode pedir a uma criança pequena que nos conte os sentimentos que teve durante a primeira infância: como era viver representação da palavra. Eis por que um conto de fadas perde longe de casa, provavelmente sem nenhuma relação com os pais. muito do seu sentido próprio quando as figuras e as ocorrências Contudo, muitas crianças conseguem referir um conto de fadas têm a substância dada pelo desenhador e não pela imaginação da predilecto: ao depararmo-nos com este conto e ao identificarmos criança. Os pormenores, sem igual, derivados da sua vida cuidadosamente os símbolos que são importantes para a criança, individual, com os quais o espírito do ouvinte retrata a história que pode-se atingir uma compreensão das necessidades e sentimentos lhe contam ou que lhe lêem, transformam-na numa experiência da criança. Convém sublinhar a distinção entre a psicoterapia com muito mais pessoal. Tanto os adultos como as crianças preferem contos de fadas feita por um psicoterapeuta profissional e o frequentemente o caminho fácil de alguém que, por eles, assume a encaminhamento por meio de contos de fadas feito por aqueles tarefa de imaginar o cenário do conto. Contudo, se deixarmos o desenhador determinar a nossa imaginação, ela será menos nossa e o conto perde muito do significado pessoal. que tomam conta da criança. A supervisão que os tutores de crianças com perturbações fazem é algo de positivo mas estas pessoas não deverão tornar-se psicoterapeutas das crianças. Perguntar a crianças, por exemplo, como era o monstro de que ouviram falar na história que lhes contaram, dá lugar às mais Recordações da primeira infância variadas formas de personificação: enormes figuras pseudo-humanas, pseudo-animais, figuras que combinam certos traços Acontecimentos traumáticos muito remotos podem ter tido humanos com outros animais, etc. ―, e cada um destes lugar antes da criança dominar a linguagem. Estas recordações pormenores tem enorme sentido para a pessoa que, no seu espírito, criou determinada realização pictórica. Por outro lado, ver o monstro pintado pelo artista, conformemente à imaginação dele, que é bem mais completa se a compararmos com a nossa própria imagem vaga e fugidia, defrauda-nos um pouco. A ideia do 115 existem a nível pré-verbal, o que torna difícil, talvez até mesmo impossível, falar sobre o que aconteceu. Além do mais, lida-se muitas vezes com acontecimentos rodeados de tabus. A criança precisa de se proteger de um confronto claro e directo; por isso 277 deparamos com imagens oníricas dissimuladas. No entanto, por monstro poderá então deixar-nos totalmente indiferentes, sem vezes, é possível à criança recordar imagens vagas, sensações, nada de importante para nos dizer, ou poderá amedrontar-nos, não humores, em volta de acontecimentos bastante longínquos, e ela tendo qualquer significado para além da angústia. pode, igualmente, mostrar fascínio por certos contos de fadas ou A importância da exteriorização: personagens e passagens de contos, que, de uma ou outra forma, parecem acontecimentos fantásticos encerrar experiências anteriores. Em psicoterapia, ouvimos com frequência as pessoas O espírito de uma criança contém uma colecção (que descreverem as memórias da primeira infância como retratos rapidamente se enriquece) de impressões frequentemente mal oníricos que não parecem pertencer nem à realidade, nem à agrupadas fantasia; talvez se tenha que lidar com uma mistura de impressões correctamente apreendidos da realidade, mas muito mais provenientes dos mundos exterior e interior. O que importa elementos completamente dominados pela fantasia. Esta preenche realmente nesta situação é o sentimento e a atmosfera contidos na enormes hiatos no entendimento da criança, devido à imaturidade recordação. O conto de fadas é uma moldura excelente para do seu pensar e à sua falta de informações pertinentes. Outras proteger tais imagens e sentimentos. Ele não fornece um retrato distorções são consequência de pressões interiores que conduzem acabado aos contra-sensos das percepções da criança. ou completo. Embora haja muitos pormenores e só parcialmente integradas: alguns aspectos pertinentes, existem igualmente referências tais como “era uma A criança normal começa a fantasiar com um segmento da vez” ou “lá muito longe, lá por detrás das montanhas azuis”: estas realidade mais ou menos bem observado, o que poderá evocar nela referências vagas criam boas oportunidades para proteger os necessidades e angústias tão fortes que pode deixar-se arrastar por sentimentos e experiências pessoais. elas. Muitas vezes as coisas tornam-se tão confusas no seu espírito que ela não consegue apartá-las umas das outras. Mas é necessário Para abrir caminho às experiências pessoais da criança, parece ser relevante escolher contos de fadas que possam ser lidos ou contados sem ilustrações. A criança fica assim livre para criar as um certo ordenamento para que a criança regresse à realidade, não enfraquecida nem vencida, mas antes fortalecida por esta excursão pelas suas fantasias. suas imagens interiores. Se lemos ou contamos a história, a criança pode mesmo sentir-se encorajada a tomar as rédeas e acabar a história como e quando quiser. Talvez desenhe ou pinte as suas Os contos de fadas ajudam-na, mostrando-lhe como uma claridade superior pode emergir, e emerge mesmo, de todas as suas fantasias. Estes contos começam geralmente de uma forma próprias ilustrações. Um paciente de psicoterapia fez as suas 278 116 bastante realista: uma mãe que diz à filha para ir sozinha visitar a próprias ilustrações enquanto escutava uma passagem dum conto. avó (A Menina do Capuchinho Vermelho); as dificuldades que um As imagens mostravam as transformações que o herói tinha de pobre casal tem para sustentar os filhos (Hansel e Gretel); um enfrentar. Mas, ao mesmo tempo, era óbvio que também pescador que não apanha nenhum peixe na sua rede (O Pescador e ilustravam as dificuldades, a ansiedade e confusão em que o o Génio). Isto é, a história começa com uma situação real, mas de paciente se encontrava. O herói corria grande perigo. Foi então que certo modo problemática. a terapeuta decidiu dedicar algum tempo aos desenhos. Desenhou Uma criança, perante os problemas e acontecimentos que, no um colete de salvação para resgatar o herói em perigo e, através do dia-a-dia, a deixam perplexa, é estimulada pela sua educação a desenho, tentou estabelecer, verbalmente, uma ponte com a compreender o como e o porquê destas situações e a procurar realidade. soluções. Contudo, uma vez que o raciocínio tem, então, um fraco controle sobre o seu inconsciente, a imaginação da criança foge da A partir da realidade, ela pôde levar o paciente de volta à pressão das emoções e dos conflitos não resolvidos. A habilidade história e juntos puderam encaminhar-se para um final feliz. do raciocínio emergente da criança é depressa subjugada por Quando nos deslocamos de uma área para outra, temos a angústias, esperanças, receios, desejos, simpatias e ódios que se oportunidade de orientar o paciente através da história. A tensão entrelaçam com o que quer que seja que a criança tenha começado interna e os sentimentos de ansiedade tornaram-se menos intensos a pensar. e mais suportáveis. É possível, por um curto período, chegar perto O conto de fadas, não obstante começar pelo estado dos problemas do paciente e permitir que ele liberte, de forma psicológico da criança ― tais como sentimentos de rejeição realista, alguns desses sentimentos e se possa criar novamente um quando comparada com os irmãos, como em A Gata Borralheira ― equilíbrio quando se retomar a história. Da mesma forma, ao nunca principia com a sua realidade física. Nenhuma criança tem contar uma história, a pessoa empenhada no bem-estar da criança de sentar-se sobre cinzas, como a Gata Borralheira, ou ser poder-lhe-á fornecer um colete de salvação – se a criança dele deliberadamente abandonada num bosque denso, como Hansel e precisar. Esse colete pode ser fornecido por palavras ou pela Gretel, porque uma semelhança física seria demasiado assustadora proximidade física (no contacto entre a criança e o adulto). para a criança e “acertaria perto de mais no alvo, para seu conforto”, exactamente quando confortar é um dos propósitos dos Fantasia e Realidade contos de fadas. Uma criança familiarizada com os contos de fadas 117 É muito importante para as crianças com perturbações 279 emocionais terem um ritmo diário regular, estável, estruturado e compreende que eles lhe falam numa linguagem de símbolos e não sólido. Elas parecem necessitar de fronteiras claras que as protejam na da realidade de todos os dias. O conto de fadas diz-nos, a partir da “dispersão”. Tais crianças têm uma noção muito frágil de do seu intróito, através do seu enredo e pelo seu desfecho, que realidade. Quando se sentem assustadas ou pouco à-vontade, aquilo de que nos fala não são factos tangíveis ou pessoas e lugares tendem a usar a sua imaginação de forma negativa. Mesmo a reais. Os acontecimentos reais só se tornam importantes para a brincar, a criança poderá interpretar mal as reacções dos seus companheiros porque tem dificuldade em distinguir a fantasia da criança através do sentido simbólico que ela lhes dá ou que ela neles encontra. realidade. Se não houver por perto um adulto que possa interferir e Era uma vez, Num certo país, Há mil anos ou mais, No tempo repor a ordem, poderá ser difícil para a criança lidar com a em que os animais falavam, Uma vez, num velho castelo, no meio de situação, o que a poderá mesmo levar a entrar em pânico, como aconteceu um dia quando um rapaz de oito anos ficou completamente aterrorizado: o seu cabelo estava cheio de pastilha elástica que teve de ser removida com gasolina. Isto fê-lo temer que toda a cabeça se dissolvesse. uma grande e densa floresta ― estes intróitos sugerem que o que se vai seguir não pertence ao “aqui e agora” que conhecemos. Esta imprecisão deliberada, no princípio dos contos de fadas, simboliza que estamos a deixar o mundo concreto da realidade quotidiana. Os velhos castelos, as cavernas escuras, as portas fechadas à chave onde é proibido entrar, os bosques impenetráveis, todos sugerem Outra criança poderá carregar fortes sentimentos de culpa: que alguma coisa normalmente escondida virá a ser revelada, “Se ao menos eu me tivesse portado bem, isto não teria acontecido” enquanto o há muito tempo implica que vamos lidar com (referindo-se à separação da sua mãe biológica). Face a tal situação, acontecimentos arcaicos. é igualmente muito importante que o adulto interfira e ajude a Depois dos cinco anos ― a idade em que os contos de fadas criança a orientar-se de forma realista. Parece claro que para estas se tornam verdadeiramente plenos de sentido ―, nenhuma criança crianças os melhores dias são os dias normais – não o Natal ou as normal toma estas histórias como a verdade da realidade exterior. férias, mas um dia típico, rotineiro, “cinzento”, em que a família se A pequenita que imagina ser a princesa que vive num castelo e levanta à mesma hora e em que a hora de dormir é precedida de desfia fantasias complicadas sabe, quando a mãe a chama para uma história e de certos rituais. Sentar-se em frente de um vídeo, jantar, que não é uma princesa. E, se bem que o arvoredo de um onde a ficção e a realidade se misturam, terá uma influência negativa nestas crianças. parque possa ser visto, às vezes, como uma floresta densa e profunda, cheia de segredos escondidos, a criança sabe que na realidade é somente um arvoredo ― exactamente como a Alguns filmes modernos de ficção científica parecem forçar a 280 118 pequenita sabe que a sua boneca não é na verdade o seu bebé, por imaginação a fixar-se numa moldura pseudo-realista e isto não muito que ela a trate como tal. ajuda a criança a expandir o seu mundo interior. No conto de fadas Os contos que comecem mais próximos da realidade, na sala há muito mais liberdade: a criança pode retirar dele o que necessita de estar ou no pátio da criança, em vez de evocarem a cabana de e a história adapta-se ao estádio de desenvolvimento da criança. um lenhador junto de uma grande floresta, e que contenham gente Uma boa história contém valores concretos e abstractos. A criança muito parecida com os pais da criança, e não com lenhadores pode identificar-se com personagens do conto de fadas e é-lhe pobres ou reis e rainhas (mas que misturem estes elementos possível distinguir a imaginação da realidade, o que parece ser realistas com componentes fantásticos, que satisfazem todos os especialmente importante. desejos), são capazes de levar a criança a confundir o real com o que não o é. Estas histórias, sem estarem de acordo com a Estrutura e símbolos nos contos de fadas realidade interior da criança, por mais fiéis que sejam à realidade exterior, alargam o fosso que separa a experiência interior e exterior da criança. Elas separam-na ainda dos seus pais, porque a criança começa a sentir que ela e eles vivem em mundos espirituais diferentes; por muito próximo que eles se encontrem no espaço “real”, emocionalmente parecem viver, temporariamente, em continentes diferentes. Isto contribui para uma descontinuidade entre as gerações, o que é doloroso tanto para os pais como para a Os contos de fadas apelam para nós a dois níveis. O primeiro nível tem a ver com o imediato e o espontâneo: boas e más forças lutam umas contra as outras e as boas saem vencedoras. O herói funciona como um modelo a imitar na medida em que é uma projecção do “Si Mesmo” que ajuda o ego a evoluir. A aparência imediata tem a ver com o ego consciente, visto que a criança sempre se identificará com o herói. criança. Se contarem a uma criança histórias “verdadeiras como a O segundo nível faz apelo ao inconsciente por meio de realidade” (o que quer dizer falsas para partes importantes da sua símbolos profusamente representados nos contos de fadas. Neste realidade interior), ela pode concluir que muito dessa realidade nível inconsciente, a criança relacionará os símbolos com os seus interior é inaceitável para os seus pais. Assim, há muita criança que conflitos internos. Gradualmente, ela poderá tomar consciência se depaupera-a. dos seus conflitos e aceitar ajuda para os trabalhar. Bettelheim Consequentemente, ela pode depois, já adolescente e, fora da explica isto da seguinte forma: “Dado que tudo nos contos de fadas ascendência emocional dos seus pais, vir a detestar o mundo é expresso com uma linguagem simbólica, a criança poderá não racional e escapar-se completamente para um mundo de fantasia, tomar em conta aquilo para que não está ainda preparada e afasta da sua vida interior, e isso 119 281 responder apenas àquilo que lhe é dito a nível da superfície. Mas é- como que para se desforrar do que perdeu na infância. -lhe igualmente permitido desvendar, camada por camada, alguns Quando for mais velha, isso poderá implicar uma severa dos significados escondidos por detrás do símbolo, à medida que se quebra com a realidade, com todas as perigosas consequências para vai preparando gradualmente e sendo capaz de dominar esse o indivíduo e para a sociedade. Ou, menos seriamente, a pessoa símbolo e dele tirar proveito.” poderá continuar esta clausura do seu “eu” interior toda a sua vida, O tempo e o espaço nos contos de fadas têm um valor eterno devido ao seu carácter abstracto. As personagens são claramente descritas como sendo boas ou más e o seu comportamento não se altera de forma imprevisível, o que poderia perturbar a criança. Outro aspecto importante é a sua orientação para o futuro, normalmente positivo: “Enquanto que a fantasia é irreal, os bons e não se sentir nunca plenamente satisfeita com o mundo, porque, alienada dos processos inconscientes, ela não pode usá-los para enriquecer a sua vida na realidade das coisas. A vida deixa então de ser “um prazer” ou “uma espécie de privilégio excêntrico”. Com tal separação, o que quer que aconteça na realidade deixa de oferecer satisfação apropriada às necessidades inconscientes. O resultado é que a pessoa sente sempre que a sua vida é incompleta. sentimentos que nos oferece sobre nós próprios e o nosso futuro são reais e estes bons sentimentos efectivos são aquilo de que precisamos para nos apoiar”, diz ainda Bettelheim. Quando uma criança não é subjugada pelos seus processos mentais interiores e é bem tratada em todos os aspectos importantes, pode então dirigir a sua vida de maneira apropriada O conto de fadas não nos fala de uma solução feliz que se relativamente à sua idade. Nessas ocasiões, ela pode resolver os atingiu sem qualquer esforço. As mais variadas histórias falam problemas que se levantem. Mas, se observarmos as crianças nos todas de um certo problema que só se resolve quando o herói ou a seus receios, por exemplo, verificaremos como esses períodos são heroína se submetem a provas e a sofrimentos. Isto significa que a limitados. Assim que as pressões interiores da criança estão na mó criança não ultrapassará a sua crise até estar pronta para evoluir de cima ― o que acontece frequentemente ―, a única esperança por meio de um combate e até que seja capaz de reconhecer, de forma ampla, o seu problema, e tenha assim atingido a maturidade. que ela tem de ter algum controle sobre elas é exteriorizá-las. Mas o problema é como fazê-lo sem deixar que as exteriorizações se apoderem dela. Pôr ordem nas diversas facetas da sua experiência Através dos contos de fadas, a criança auto-motiva-se para exterior é tarefa muito difícil para uma criança; e, a não ser que fazer algo, para ser activa. Como exprime Julius E. Henscher em consiga ajuda, torna-se impossível desde que as experiências Death in the Fairy Tale (1967): “O crescimento implica mudança. exteriores se baralhem com as suas experiências interiores. Pode parecer paradoxal que, para fortalecer a nossa identidade, 282 Por si só, a criança ainda não é capaz de ordenar e dar 120 sentido aos seus processos interiores. Os contos de fadas oferecem devamos estar disponíveis para aceitar a mudança, mas é personagens nas quais ela pode exteriorizar o que se passa no seu igualmente paradoxal que a nossa identidade se dilua quando a espírito, por meios controláveis. Os contos de fadas mostram à tentamos fortalecer evitando qualquer alteração na nossa aparência criança como ela pode personalizar os seus desejos destrutivos exterior.” numa só figura, ir buscar satisfações desejadas a outra, identificar-se com uma terceira, ter ligações com uma quarta, e assim por A atmosfera em que a pessoa se desenvolve durante a primeira infância tem, inquestionavelmente, um efeito profundo diante, conforme as suas necessidades de momento. Quando todos os devaneios da criança se personalizam numa fada bondosa, todos os seus desejos destrutivos numa bruxa má, todos os seus receios num lobo voraz, todas as ciências da sua consciência num homem sábio encontrado numa aventura, toda a sobre as formas como mais tarde ela vivencia a mudança. Ao escolher contos de fadas para dar apoio a crianças, não parece relevante se o herói é ou não do mesmo sexo da criança. Um rapaz pode identificar-se com a Branca de Neve visto que os problemas sua zanga ciumenta nalgum animal que dê bicadas nos olhos dos dela assumem um carácter geral. Ele pode sentir prazer quando a seus rivais detestados ― então a criança pode finalmente começar bruxa é castigada, sem carregar simultaneamente com sentimentos a pôr ordem nas suas tendências contraditórias. Iniciado este facto, de culpa, e pode experimentar algum alívio de toda a raiva a criança será cada vez menos submersa por um caos incontrolável. acumulada em relação à mãe que o deixou ficar mal. Através dos símbolos nos contos de fadas, podemos punir a Transformações nível inconsciente a mãe que não nos atrevemos a odiar a nível Há uma altura certa para as experiências de crescimento, e a infância é a altura para aprender a transpor a imensa brecha entre as experiências interiores e o mundo real. Os contos de fadas podem parecer absurdos, fantásticos, assustadores e totalmente consciente. O conto de fadas dá à criança a oportunidade de expressar sentimentos de catarse e aliviar assim a sua tensão interna. Mostra-se à criança a possibilidade de reparar, a nível simbólico, aquilo que tem sido uma imagem negativa da mãe ou, inacreditáveis para o adulto desprovido da fantasia dos contos de pelo menos, ajuda-se a criança a obter uma imagem da mãe mais fadas na sua infância ou que tenha reprimido essas lembranças. facetada e positiva ao livrar-se de alguns sentimentos negativos. Um adulto que não tenha conseguido uma integração satisfatória dos dois mundos, da realidade e da imaginação, fica desconcertado Imagens da Mãe com estes contos. Mas um adulto que na sua vida tenha sido capaz de integrar uma ordem racional com a lógica do seu inconsciente 121 Toda a criança precisa de pais psicológicos ou, pelo menos, 283 de uma mãe ou de um pai. As crianças que são acolhidas fora de será receptivo à maneira como os contos de fadas ajudam a criança suas casas raramente conheceram um pai antes disso acontecer. Os na sua integração. Para a criança e para o adulto que, como conflitos principais têm-se centrado nas perturbações decorrentes Sócrates, sabe que ainda há uma criança no mais sábio dos da relação com a mãe ou da separação dela. Nos parágrafos homens, os contos de fadas revelam verdades sobre a humanidade seguintes, e sobre cada um de nós. consideraremos o significado da mãe no desse À sua maneira, o conto de fadas adverte contra o facto de a desenvolvimento. Tal não pretende, contudo, minimizar a criança levar longe e depressa demais os seus sentimentos de raiva. relevância de um bom pai ou duma boa figura paterna. Uma criança cede facilmente ao seu aborrecimento com alguém desenvolvimento da criança ou na perturbação Neumann sublinha o facto de que é muito importante para a criança receber afecto e amor. Ele refere que, se uma criança perde a mãe durante o período em que existe normalmente uma relação que ela estima ou à impaciência quando a fazem esperar; ela tende a albergar sentimentos de raiva e a deixar-se embalar por desejos furiosos, pouco se importando com as consequências, caso estes desejos se transformem em realidade. primária criança-mãe, essa criança tornar-se-á carente e existe o perigo de que tal perturbe o desenvolvimento do seu ego e o instinto de auto-preservação. Muitos contos de fadas realçam o trágico desfecho de tão irreflectidos desejos em que nos empenhamos, porque desejamos demasiadamente algo ou porque não podemos esperar até que as Segundo Neumann, o que é perigoso para a criança não é coisas aconteçam no seu devido tempo. Ambos os estádios mentais tanto se se satisfaz ou não as suas necessidades físicas, mas se ela são típicos da criança. Duas histórias dos irmãos Grimm podem vivencia o sentimento de falta de amor e de compreensão, se ela ilustrar o caso. perde a imagem arquetípica da “Boa-Mãe”. Por “arquetípica”, Neumann quer significar as imagens simbólicas no inconsciente. A “Grande Mãe” implica aspectos positivos e negativos (a Boa/Má Mãe que controla a vida e a morte). Numa relação normal entre a criança e a mãe, a primeira experimenta uma interacção de atitudes negativas e positivas, com preponderância evidente das segundas, o que lhe dá força para ultrapassar os aspectos mais negativos sem prejuízo psíquico para 284 Em Hans, o meu porco-espinho, um homem zanga-se quando o seu grande desejo de ter filhos é frustrado pela incapacidade de a mulher os ter. Fica tão contrariado que acaba por exclamar: “Quero um filho, nem que seja um porco-espinho.” O seu desejo é satisfeito: a mulher tem um filho, cuja parte superior do corpo é a de um porco-espinho e a inferior a de um rapaz.1 1 O motivo de os pais que desejam com demasiada impaciência ter filhos serem castigados com o nascimento de misturas estranhas de seres humanos com animais é antigo e largamente espalhado. Por exemplo, é o tópico de um conto turco em que o rei Salomão efectua a restituição de uma criança à plena humanidade. Nestas histórias, se os pais tratam 122 Em Os sete corvos, uma criança recém-nascida afecta de tal forma as emoções do pai que este, zangado, se vira contra os seus filhos mais velhos. Manda um dos sete filhos buscar água baptismal para baptizar a filha, incumbência a que se juntam os outros seis irmãos. O pai, furioso por ter de esperar, grita: “Gostaria que todos os rapazes se transformassem em corvos!” O que imediatamente ela. Numa relação primária entre mãe e criança, a criança pequena irá sentir que a mãe é a “Mãe Boa e Forte” visto ser quem a protege e alimenta. Assim, a mãe incutirá na criança, através das suas acções, a imagem arquetípica da “Boa Mãe”. Se, por alguma razão, a mãe não pode comportar-se como a “Boa Mãe”, isso acontece. Se estes contos de fadas, em que desejos ditados pela cólera se transformam em verdades, acabassem aí, eles não passariam de influenciará a imagem da mãe de forma negativa e, no inconsciente, a criança desenvolverá o arquétipo da “Má Mãe”. contos de advertência, prevenindo-nos de que nos não devemos A “Boa Mãe” não tem de ser a mãe biológica da criança; pode deixar levar pelas nossas emoções negativas – coisa que a criança ser qualquer pessoa que tome conta dela, protegendo-a e amando- não é capaz de evitar. Mas o conto de fadas sabe que não pode -a. Aparentemente, o que é importante numa relação primária, é a esperar o impossível de uma criança, e que não pode fazê-la evitar presença duma determinada pessoa que tente compreender e ter desejos ditados pela cólera, porque não está nas mãos desta não preencher as necessidades da criança e dar-lhe uma sensação de os ter. segurança. Poderíamos dizer que do que a criança precisa é de Enquanto o conto de fadas realisticamente nos previne que alguém que possua as características arquetípicas da “Boa Mãe”. deixarmo-nos levar pela zanga ou pela impaciência é metermo-nos Qualquer desvio dessas características afectará a relação entre a criança e a mãe e terá um efeito perturbador no desenvolvimento bem e com paciência um filho insuficientemente desenvolvido, este é eventualmente recuperado como um ser humano atraente. A sabedoria psicológica destes contos é notável: a ausência de controlo sobre as emoções por parte dos pais cria uma criança que é inadaptada. Nos contos de fadas e nos sonhos, a deformação física significa frequentemente deficiente desenvolvimento psicológico. Nestas histórias, a parte superior do corpo, incluindo a cabeça, é geralmente parecida com a de um animal, enquanto a parte inferior é a de um ser humano normal. Isto indica que as coisas estão mal quanto à cabeça – isto é, no espírito da criança, e não quanto ao corpo. As histórias dizem também que os danos causados à criança por sentimentos negativos podem ser corrigidos pelo impacto de emoções positivas que se lhe prodigalizarem, se os pais forem suficientemente pacientes e seguros. Os filhos de pais coléricos portam-se frequentemente como porcos-espinhos: só têm espinhos, de forma que a imagem da criança, que é particularmente um porco-espinho, está certa. Há também contos com palavras de advertência: “Não concebam um filho enquanto zangados; não recebam com zanga e impaciência a sua vinda.” Mas, como em todos os bons contos de fadas, estas histórias indicam os remédios certos para corrigir o mal, e a prescrição está de acordo com as melhores compreensões de hoje. 123 da criança a vários níveis. Neumann crê que uma relação primária mãe-criança bastante perturbadora poderá levar a psicoses, particularmente à esquizofrenia. Neste contexto, a criança terá a sensação de que o mundo está a desabar e que o fim está próximo. Neumann conclui que adultos com este historial podem ter visões e sonhos que indicam que tudo se reduz a morte e isolamento; as forças maléficas lutam umas contra as outras. A criança não sentirá mais a 285 mãe como a “Boa Mãe”, reagindo assim ao mundo de forma em apuros, também nos sossega advertindo que as consequências positiva. A mãe, será, então, a “Má Mãe”, aquela que pode destruir são temporárias e que a boa vontade ou as boas acções podem o mundo em que a criança vive mas que, acima de tudo, cria o desfazer todo o mal provocado por desejos maus. caos. Hans, o porco-espinho, ajuda um rei perdido na floresta a Os símbolos arquetípicos relacionados com a “Má Mãe” são, entre outros, a morte, a condenação, a seca, a fome e a sede. Quando a criança vivencia a mãe como a “Má Mãe”, já não se sente suficientemente segura ou confiante para desenvolver um ego estável, dado que a formação do ego depende de uma mãe que a ajuda a incorporar as experiências negativas que surgem, necessariamente, no processo de desenvolvimento. A “Boa Mãe” tentará saciar-lhe a fome e aliviar os seus medos. Desta forma, a criança aprende a tolerar sentimentos regressar são e salvo a casa. O rei promete dar a Hans, em recompensa, a primeira coisa que encontrar no seu regresso a casa, e que é a sua filha única. Apesar da aparência de Hans, a princesa cumpre a promessa do pai, e casa-se com Hans. Depois do casamento, no leito marital, Hans toma finalmente a figura humana e herda o reino. Em Os sete corvos, a rapariga, que fora a causa inocente de os seus irmãos se terem transformado em corvos, viaja até ao fim do mundo e faz um grande sacrifício para desfazer o feitiço lançado sobre eles. Os corvos retomam a forma humana e a felicidade é recuperada. desconfortáveis porque recebe ajuda rápida. A “Má Mãe”, no Estas histórias dizem que, não obstante as más entanto, não a ajudará quando ela precisar e isto impedirá a criança consequências que os desejos do mal acarretam, com boa vontade e de “ter a coragem” de desenvolver normalmente o seu ego; em vez esforço as coisas podem arranjar-se. Há outros contos que vão disso, criará sentimentos de desconfiança e pode tornar-se muito mais longe e dizem à criança que não receie esses desejos, psicótica. Quando, por qualquer razão, a criança não teve a porque, apesar de haver consequências momentâneas, nada muda oportunidade de passar os primeiros anos de vida (até aos três permanentemente; depois de satisfeitos todos os desejos, as coisas anos) com uma ou mais pessoas afectuosas, a imagem interna da mãe é destruída. A “Grande Mãe” manifestou-se quase sempre ficam exactamente como antes de os desejos começarem. Estas histórias existem com muitas variantes no mundo inteiro. como “Má Mãe”, simbolizando o caos, a morte, a seca, a fome. É No mundo ocidental, Os três desejos é provavelmente a por isso muito importante que a criança retome, a nível simbólico, história sobre desejos mais conhecida. Na sua forma mais simples, as imagens positivas da mãe para poder reparar ― simbolicamente ― esse estrago. Uma criança que experimentou carências, bem cedo terá, de alguma forma, a consciência de que a sua mãe a 286 o motivo consiste em satisfazer, a um homem ou a uma mulher, alguns desejos, geralmente três, por um estranho ou um animal, em resultado de alguma boa acção. Um homem recebe esse favor 124 em Os três desejos, mas não lhe dá grande importância. De volta a casa, a mulher dá-lhe o seu prato diário de sopa. “Outra vez sopa? Queria era um doce para variar”, diz ele, e imediatamente o doce aparece. A mulher quer saber como foi que isso aconteceu e o marido conta-lhe a sua aventura. Furiosa por ter desperdiçado um dos seus desejos numa ninharia, ela exclama: “Gostaria que o doce caísse em cima da tua cabeça”, e o desejo foi imediatamente deixou ficar mal. No entanto, a nossa sociedade e cultura tentam dar à criança a ideia romântica de que a mãe é sempre uma mãe “Boa e Grande”. Consequentemente, é fácil entender quantas crianças desenvolvem sentimentos de culpa quando as suas mães as abandonam. Se os contos de fadas forem utilizados num ambiente tranquilizador, satisfeito. “Já se foram dois desejos! Queria era que o doce saísse de podem ajudar a criança a compreender que a mãe pode ter cima da minha cabeça”, diz o homem mais irritado ainda. E assim aspectos positivos e negativos, que alguém que não é a sua mãe se foram os três desejos. real (biológica) pode ser a “Boa Mãe” para ela, ajudando-a a Todas juntas, estas histórias previnem a criança das possíveis resolver problemas e a tornar-se gradualmente responsável e consequências indesejáveis ao formular desejos de uma forma independente. Os contos de fadas falam ao inconsciente a nível precipitada, e garantem-lhe ao mesmo tempo que esses desejos são simbólico, mas também mostram formas práticas de resolver os de poucas consequências, especialmente se formos sinceros nos problemas apelando à acção e incutindo coragem e auto-confiança. nossos esforços para desfazer os maus resultados. Começando por um conto de fadas em que a criança se O facto mais importante ainda parece-me ser o de que me mostre interessada, teremos uma boa oportunidade de discernir os não recordo de um único conto de fadas em que os desejos raivosos problemas mais urgentes que a própria criança põe em foco. A de uma criança tenham qualquer consequência; só a têm os dos próxima coisa a fazer será escolher um conto de fadas que seja útil adultos. O corolário é que os adultos são responsáveis pelo que para se trabalhar com os problemas da criança. Se o problema fazem nos seus momentos de zanga ou de estupidez, mas as principal for a relação com a mãe, escolheremos um conto de fadas crianças não o são. Se as crianças têm desejos num conto de fadas, geralmente só desejam coisas boas; e a sorte ou algum espírito bom satisfá-los, muitas vezes para além das suas mais apetecidas esperanças. em que o papel da mãe e os símbolos a ela ligados sejam essenciais. Assim, o conto será um ponto de partida para mudar gradualmente a imagem negativa da mãe. É como se o conto de fadas, admitindo embora quão humano é uma pessoa zangar-se, esperasse somente que os adultos tenham suficiente auto-controle para se não deixarem levar pela zanga, 125 287 O conto de fadas favorito e o acompanhamento através dos contos de fadas uma vez que os seus exóticos desejos se realizam ― mas os contos acentuam as maravilhosas consequências para uma criança se ela se entrega a desejos e pensamentos positivos. Um pequeno rapaz, Jeff, tinha sido separado da mãe porque A desolação não induz a criança dos contos de fadas a esta ameaçara fazer-lhe mal. Ele era um rapaz muito ávido e entregar-se a desejos de vingança. A criança deseja só coisas boas, impulsivo, com grande dificuldade em controlar as suas emoções, mesmo quando tenha razões de sobra para desejar que coisas más mostrando uma grande ansiedade, sobretudo à hora de deitar. O aconteçam àqueles que a perseguem. Branca de Neve não abriga seu conto de fadas favorito era “A Branca de Neve”, que gostava de desejos raivosos contra a rainha maldosa. A Gata Borralheira, que ouvir vezes sem conta. O que era importante para Jeff era o tem boas razões para desejar que as suas irmãs sejam castigadas paralelismo entre a rejeição da Branca de Neve pela madrasta pelas suas maldades, deseja, pelo contrário, que elas vão ao grande malvada e a rejeição de que ele tinha sido alvo pela mãe, já que ela baile. ameaçara fazer-lhe mal. Também a madrasta tentara fazer mal à A arte de contar histórias de fadas Branca de Neve; tentara mesmo matá-la. A nível consciente, Jeff não se recordava ou não sabia nada Nunca devemos “explicar” à criança o sentido dos contos de sobre a mãe de que pudesse falar, nem sobre os episódios que fadas. Contudo, a compreensão por parte do narrador da tinham levado à sua saída de casa. A nível inconsciente, ele sentia mensagem do conto é importante para o espírito pré-consciente da provavelmente o mesmo que a Branca de Neve. A mãe demoníaca criança. A compreensão por parte do narrador dos diferentes níveis mandara-o embora, pusera-o fora e ameaçara matá-lo. Havia do sentido do conto facilita à criança extrair dele a chave para muitas semelhanças entre o destino deste pequeno rapaz e a melhor se compreender a si própria. Isso favorece a sensibilidade Branca de Neve. O conto termina com a punição da madrasta: faz- do adulto para a selecção das histórias mais adequadas ao estado -se justiça. Branca de Neve vive feliz até ao fim dos seus dias. O rapaz conseguiu, assim, sentir o prazer da vingança de uma forma de desenvolvimento da criança e para as dificuldades psicológicas específicas que a confrontam de momento. que não lhe causava ansiedade. Os seus sentimentos não se Os contos de fadas descrevem os estados íntimos do espírito, tornaram perigosos. Ficou obviamente contente quando verificou por meio de imagens e acções. Tal como uma criança reconhece a que a mãe malvada tinha sido punida, e não foi forçado a reconhecer qualquer relação com a sua própria história. Aliás, não 288 infelicidade e o desgosto quando alguém chora, assim o conto de fadas não precisa de se espraiar sobre o facto de que alguém é 126 infeliz. Quando a mãe da Gata Borralheira morre, não nos dizem que a órfã penava por ela ou pranteava a sua perda e se sentia só, abandonada, desesperada, mas simplesmente que “todos os dias ia até ao seu túmulo e chorava”. teria a idade nem a maturidade suficientes para se dar conta disto. A história ilustra igualmente que podemos aprender a controlar as nossas reacções de modo que estas não perturbem relacionamentos positivos com outras pessoas. A mensagem dada a Nos contos de fadas, os processos interiores são traduzidos por imagens visuais. Quando o herói enfrenta difíceis problemas interiores, que parece não terem solução, não se descreve o seu estado psicológico; o conto de fadas mostra-o perdido numa floresta densa, impenetrável, sem saber para que lado se virar, desesperado por encontrar uma saída. Jeff a nível consciente (e também a nível inconsciente) é que ele deve aprender a adiar a satisfação de algumas necessidades e desistir de algumas coisas; deve dizer “não, obrigado” (no conto abdica-se do cordão e do pente), para poder crescer, obter o reino e viver feliz para sempre. Jeff ouviu a história várias vezes. Pouco a pouco, tornou-se menos fascinado por ela e atingiu, gradualmente, Para toda a gente que tenha ouvido contos de fadas, a um melhor entendimento da sua situação na vida. imagem e o sentimento de se estar perdido numa floresta profunda e escura é inesquecível. Infelizmente, alguns modernos rejeitam os Depois disto ter acontecido, o rapaz parecia pronto para contos de fadas porque aplicam a este género de literatura padrões ouvir outro conto com possibilidades novas e positivas. A história que são totalmente impróprios. Se tomarmos estes contos como poderia transmitir uma imagem materna mais positiva, como descrições da realidade, então eles são de facto excessivos, sob acontece por exemplo no conto dos irmãos Grimm “Os três cabelos todos os pontos de vista ― cruéis, sádicos e sabe-se lá o que mais. de ouro do Diabo”. Trata-se de uma história sobre um rapaz Mas, como símbolos e ocorrências ou problemas psicológicos, estes nascido num lar pobre e com a membrana fetal, o que é um bom contos são bastante verdadeiros. presságio. Prevê-se ainda que o rapaz case com uma princesa no Eis a razão por que depende, em grande medida, dos futuro. O rei toma conhecimento disto e, para o evitar, persuade os sentimentos do narrador acerca do conto, o facto de o efeito ser pais a darem o filho. No seu caminho pela vida, o rapaz encontra um malogro ou, pelo contrário, qualquer coisa de adorável. A avó bons moleiros que o tratam como seu próprio filho e o educam terna que conta a história ao neto que, sentado no seu colo, a ouve com carinho e amor. embevecido, comunicará qualquer coisa de muito diferente do que podem comunicar o pai ou a mãe que, aborrecidos com a história, Mais tarde, ele procura refúgio na cave dum ladrão onde uma mulher velha, sentada à lareira, toma conta dele. Quando chega ao a lêem aos filhos só por obrigação. castelo, a rainha dá-lhe as boas-vindas. Depois, vai procurar os três O sentido de participação activa (o modo como o conto é 127 289 cabelos de oiro do diabo: é então que a bisavó do diabo olha para transmitido) constitui um factor vital, que grandemente enriquece ele e o ajuda. Todas estas figuras femininas simbolizam a “Boa a experiência que a criança dela retira. Implica uma afirmação da Mãe” e, a nível inconsciente, podem ajudá-lo a recuperar a imagem sua arquetípica da mãe positiva. compartilhada com outro ser humano, o qual, embora adulto, pode personalidade através de determinada experiência, apreciar plenamente os sentimentos e as reacções da criança. Outro conto de fadas a escolher seria “Pinóquio” (no capítulo sobre “Pinóquio” como ajuda em psicoterapia, há uma descrição desta história que ilustra o crescimento de um rapaz, da infância à Bruno Bettelheim Psicanálise dos contos de fadas Lisboa, Bertrand Editora, 1991 (excertos adaptados) idade adulta). Embora a “Boa Mãe” oriente “Pinóquio”, como é demonstrado pela fada, ela também o pune quando ele se porta mal (puxa-lhe o nariz quando ele diz mentiras). Mas é igualmente a mãe que perdoa e que, pacientemente, lhe dá novas oportunidades. Esta história ilustra a formação do superego, representado por um grilo que tenta que Pinóquio distinga o certo do errado, dando-lhe uma base de apoio para o seu desenvolvimento posterior. Em “Pinóquio”, encontramos a imagem arquetípica do “Bom Pai” em Gepetto. Esta figura paterna poderia ser importante para o rapaz, visto ele não ter tido a experiência de uma figura paterna estável nos primeiros três anos de vida e ter atingido uma idade em que é vital para o rapaz poder identificar-se com essa imagem. É óbvio que ele não pode viver com um pai de conto de fadas como a única figura paterna com que se possa identificar, mas as boas imagens paternas podem ajudá-lo no processo de identificação. Dado que “Pinóquio” é uma história dramática, será, porventura, necessário, que o contador faça algumas alterações para a adaptar à criança. 290 128 No período em que Jeff estava a ouvir contos de fadas e podia falar sobre a história, começou a crescer emocionalmente e, na minha opinião, tal deveu-se ao trabalho com estes contos. Foi como se ele começasse a pensar de uma outra forma e deu-se mesmo uma mudança na sua relação com os tutores. Foi como se a leitura dos contos de fadas desse lugar a uma nova forma ― criativa e intuitiva ― de lidar com os problemas. Isto foi uma ajuda não só para o rapaz mas também para os tutores. Foi como se eles possuíssem, a nível emocional, uma MADASSA ferramenta muito melhor do que a linguagem que normalmente usavam quando falavam com o rapaz. Aspectos diversos do conto Madassa não sabia ler nem escrever. pareciam fasciná-lo em diferentes alturas. Um tema essencial dizia Madassa tinha a idade que as crianças têm quando sabem ler respeito à mãe/madrasta: o que significa ser madrasta e o que é uma mãe no sentido biológico do termo? Durante algum tempo, e escrever. Jeff fingia ser um bebé ainda por nascer, gatinhando para dentro da Mas Madassa não sabia ler nem escrever. blusa da mãe-tutora e “nascendo” de novo, vindo cá para fora, tal Na cabeça de Madassa não havia lugar para palavras. como os bebés. Insistia em se ligar à “mãe” por meio de uma fita Na cabeça de Madassa habitava apenas o medo, escuro e quando iam às compras sob o pretexto de ter medo de se perder. negro, causado pelos barulhos da guerra, e pelos mortos, muitos Esta brincadeira faz-nos pensar no cordão umbilical pois era como mortos. se ele estivesse a tentar refazer a sua perturbada relação com a Na cabeça de Madassa vivia uma raiva imensa cheia de mãe. Tornou-se claro que, pouco a pouco, ele ganhou confiança no porquês. seu novo lar. Depois de um longo período com estes jogos, deixou Como se as perguntas fossem garras dilacerantes. de os fazer. Isto aconteceu numa altura em que disse à sua “mãe”: Na cabeça de Madassa pairava um nevoeiro de tristeza. “Agora, és minha mãe de verdade, mesmo se não me deste à luz. Isto é tão possível quanto o é um pai ser o pai verdadeiro mesmo se 129 291 não deu à luz o seu filho”. Embora Jeff fizesse estas afirmações, estava plenamente consciente dos nomes da sua mãe biológica, das Tão espesso que ele não conseguia lembrar-se sequer da cara do irmão ou da irmã, cujo paradeiro ninguém conhecia. irmãs e irmãos. Sabia onde viviam e, por vezes, conseguia falar deles. Jeff parecia estar a exprimir o sentimento de que tinha aceite a tutora como mãe psicológica e, a nível inconsciente, estava a reparar a imagem negativa da mãe, embora consciente dos seus Havia dias em que, na cabeça de Madassa morava a mesma fome que lhe enchia o ventre. A negrura do medo, as garras da raiva, o nevoeiro da tristeza – e, em certos dias, a fome – ocupavam toda a cabeça de Madassa. antecedentes biológicos. Também começou a produzir os seus Na cabeça de Madassa não havia lugar para as palavras. próprios contos de fadas. Um dia, contou uma história sobre um pequeno gatinho. Uma gata e um gato não queriam ter o seu A professora já não sabia o que fazer para ajudar Madassa. gatinho apesar de não estarem a morrer (nos contos de fadas, o Quando tinha tempo, lia-lhe histórias que ele sozinho não herói ou a heroína perdem frequentemente a mãe porque ela conseguia ler. morre). O gatinho sentia-se muito infeliz mas decidiu ir correr mundo. Passado algum tempo, conheceu dois cavalos grandes que muito gostariam de ser a sua mãe e pai; tomaram conta dele e Lia-lhe a história do Pequeno Polegar, que tivera tanto medo na floresta. E o medo do Polegarzinho passeava pela cabeça de Madassa. todos viveram felizes até ao fim dos seus dias. Lia-lhe a história de Martinho1, que estava sempre irritado. A história tinha um final feliz tal como a maioria dos contos de fadas. Ao fazer algo ― correr mundo ― o gatinho tinha encontrado aquilo que tanto procurara: os pais perdidos. Trata-se E a irritação do rapaz era igual à que existia na cabeça de Madassa. de uma história positiva que parece ilustrar que o rapaz sentia ser Lia-lhe a história da Menina dos Fósforos. capaz de tomar o destino nas próprias mãos e que tinha confiança E a tristeza da Menina chorava na cabeça de Madassa. nas suas próprias capacidades. É claro que os cavalos são pais A professora contava-lhe também a história de Pedro e a Lua, estranhos para um gatinho: não são nada parecidos com um gato mas, mesmo assim, são suficientemente bons. Na altura em que a história do gatinho foi inventada, Jeff do menino que queria fazer florir a terra inteira com plumas de pássaro. começou a recordar acontecimentos traumáticos que tinham tido lugar antes de o levarem para longe de casa. Tinha havido 292 1 130 Personagem do conto “O duende Dudu, professor de felicidade” (Sophie Carquain). E as plumas dançavam na cabeça de Madassa. episódios violentos e, aparentemente, nunca ninguém tinha falado com ele sobre isso, assim como ninguém pensava que ele se E, entretanto, o que acontecia na cabeça de Madassa? recordaria de tais episódios. Uma noite, quando ia para a cama, ele O medo do Polegarzinho deixava palavras para exprimir o medo. disse: “Lembras-te das vezes em que me amarravas à cama?”. Esta pergunta foi o início duma longa conversa sobre aquilo que tinha A cólera de Martinho deixava palavras para exprimir a cólera. acontecido na sua vida. Tudo acontecera há muito tempo e muito A tristeza da Menina dos Fósforos deixava palavras para longe. A distância no tempo e no espaço era-lhe familiar através dos contos de fadas e, por isso, falar sobre isso parecia menos exprimir a tristeza. A dança das palavras de Pedro e a Lua deixava palavras que davam vontade de dançar. perigoso ficar na cabeça de Madassa. menos passível de lhe causar ansiedade. Simultaneamente, era possível sustentar o seu sentido de realidade fazendo-o Certa manhã, as palavras, fortemente agitadas, não quiseram e compreender que essas coisas terríveis tinham realmente acontecido quando ele era um rapaz pequeno. Jeff mostrou-se aliviado ao ver a realidade confirmada e disse: Então, o menino pegou num caderno, numa caneta, e, “É horrível quando há algo que nós não sabemos se é um sonho ou embora desajeitadamente, como uma criança que aprende a andar, a realidade.” Após ter tido esta conversa, ele parou de gritar e escreveu: chorar quando ia para a cama, e o longo hábito de se agarrar a algo ou alguém foi desaparecendo. A leitura de contos de fadas, as Madassa medo Madassa cólera Madassa tristeza conversas a seguir às histórias e o facto de Jeff inventar as suas próprias histórias, ajudaram-no a estabelecer contacto com Madassa por entre as ervas Madassa ao vento Madassa na água material reprimido que tinha sido fonte de grande conflito. Depois de se ter apercebido, pela confirmação dos outros, que coisas horríveis tinham acontecido, que os seus “retratos” da realidade Madassa cinzento preto azul Madassa vermelho amarelo preto Madassa cinzento amarelo verde estavam certos, que é possível separar a realidade do sonho, procurar a realidade e encontrá-la, ele retomou a confiança em si Madassa galo tigre Madassa sol próprio e nos outros. O seu comportamento mudou, tendo-se tornado muito mais capaz de se auto-controlar de uma forma 131 293 saudável. Os contos de fadas podem ser uma forma ― suave e não ─ Um poema! ─ exclamou a professora. ─ Escreveste um poema! Então escrever é isto! causadora de ansiedade ― de trazer à tona o material conflituoso dos primeiros anos de vida para que possa ser trabalhado. Outro Pegar nas palavras das histórias e transformá-las nas palavras de Madassa. exemplo que ilustra o acompanhamento através de contos de fadas Mas é preciso ler muitas histórias para ter muitas palavras. é o da Anja. Madassa começou a ler. Anja tinha nove anos quando a sua mãe biológica morreu. E a escrever também. Até essa idade, só tinha vivido dois anos com ela e tinha passado Quanto mais lia, mais escrevia. por nove famílias de acolhimento e por diferentes instituições. Quanto mais escrevia, mais vontade tinha de ler. Tinha experimentado repetidas situações em que a desapontavam. Era um círculo mágico. A mãe tinha-a deixado com apenas três dias. Havia pessoas que a Madassa não sabia ler nem escrever. tinham ameaçado e tinha sido vítima de violência e de grande Mas enchia agora cadernos e mais cadernos. pressão emocional. Fora totalmente negligenciada pela mãe, o que Talvez um dia escrevesse um livro. não sucedera com a irmã mais velha à qual a mãe era bastante apegada. Anja tinha uma capacidade diminuta de tolerar a frustração e, quando estava sob stress, reagia de forma regressiva, Madassa escritor. com movimentos nervosos, recusando-se a comer. Anja tinha dois contos de fadas favoritos: “A Rosinha Brava” e “Cinderela”. Estes dois contos forneceram uma boa oportunidade Michel Séonnet Madassa Paris, Ed. Sarcabane, 2003 (Tradução e adaptação) para compreender como Anja vivenciava a sua situação. “Cinderela” tem a ver com a rivalidade entre irmãs e, de um ponto de vista psicodinâmico, com um trabalho positivo através das crises de desenvolvimento da criança. Este conto de fadas mostraria o paralelismo com a sua própria mãe que a não protegera dos ataques violentos da irmã, que preferia esta e que, por vezes, 294 132 atacava Anja, tal como acontece no conto. No conto, as irmãs e a madrasta são castigadas. A nível O USO DAS IMAGENS MENTAIS simbólico, Anja obtém a sua vingança sem que isso seja ameaçador para ela. Mas o conto também encerra uma outra mensagem, ainda Usar as imagens mentais é como comer uma alcachofra. Ao tirarmos as duras pétalas externas da alcachofra, encontramos as pétalas internas, mais tenras e delicadas, e o saboroso miolo do fruto. As imagens mentais actuam da mesma forma. As grossas pétalas externas são como as elevadas tensões que existem no mais positiva. Mesmo se tivermos de passar por muitas tribulações durante o nosso crescimento, há muitas hipóteses de se atingir um final feliz, desde que nos esforcemos por isso e tomemos iniciativas (o conto ilustra isto pelo facto de Cinderela plantar o ramo de aveleira e ir três vezes ao baile). nosso ambiente quotidiano. Quando impedimos a entrada das Ao pensar no significado de “A Rosinha Brava”, teremos que distracções da nossa agitada vida de cada dia, começamos a ter em conta a idade da criança e o seu estádio de descobrir um tesouro de criatividade e de sabedoria dentro de nós. desenvolvimento. Anja ainda não tinha atingido a puberdade. Para As imagens mentais dirigidas são uma ferramenta para abrir ela, o encontro entre o príncipe e Rosinha Brava poderia ser a porta da criatividade. Os exercícios do Giro Interior não devem entendido como símbolo da harmonia consigo própria e com os ser com outros, o sentimento de um ego forte, a promessa de que o caos comportamentos neuróticos ou com fenómenos psíquicos. É interior poderia ser substituído pela harmonia. O conto diz-nos verdade que as imagens mentais dirigidas são utilizadas na terapia igualmente que esta harmonia apenas ocorre quando provém de usados como recurso terapêutico para lidar por médicos competentes, mas não é esse o meu propósito neste livro. Mas espero que estas reflexões ofereçam a crianças e adultos uma oportunidade de experimentarem juntos uma vida mais plena e mais criativa. um longo período de recolhimento, durante o qual a personalidade amadurece. A escolha deste conto por Anja parece indicar que, a nível inconsciente, ela estava a par da sua necessidade de calma e continuidade na vida para poder desenvolver o ego e esta é, É possível que queiram usar os exercícios na ordem em que provavelmente, uma das razões pelas quais o conto ecoou nela. se apresentam, ou talvez prefiram folhear o livro, descobrindo os mais adequados às vossas necessidades pessoais. Estas propostas Parecia que o conto dizia a Anja que ela e a sua nova família não são sequenciais; no entanto, sugiro que comecem pelo precisavam de ser pacientes, de ter espaço e tempo para se exercício de relaxamento. desenvolverem. Era importante não forçar este processo. Anja 133 295 necessitaria de “dormir” emocionalmente e, por isso, não era bom A busca da tranquilidade tentar confortá-la com exigências emocionais. Tal como Rosinha Ao iniciar o trabalho com as imagens mentais, levei vários Brava, ela tinha primeiro que ser posta na cama por um longo meses a fazer exercícios de respiração e relaxamento antes de os período de tempo. Se nos impuséssemos demasiado cedo, não nos ensinar aos meus filhos. Utilizei o relaxamento para me concentrar conseguiríamos aproximar dela. Pelo contrário, ficaríamos presos e acalmar durante um período emocional particularmente difícil da nos “espinhos”, tal como os primeiros pretendentes. Só quando ela nossa vida familiar. Quando apresentei a ideia aos meus filhos tiver podido descansar, durante “cem anos”, e regressar a uma pequenos, que tinham então quatro e seis anos, disse-lhes que posição bastante anterior e segura, é que estará apta a exprimir estava a fazer um exercício divertido que me ajudava a ficar mais sentimentos. O príncipe poderá então “acordá-la” com o seu beijo. calma e a prestar atenção a mim mesma. Disse-lhes que era muitíssimo parecido com “sonhar acordado” e que acreditava que tais exercícios nos ajudariam a aprender mais, a ficar mais tranquilos e a divertirmo-nos mais. Birgitte Brun, Ernst W. Pedersen, Marianne Runberg Symbols of the soul. Therapy and guidance through fairy tales. London, Jessica Kingsley Publishers, 1993 (Tradução e adaptação) Convidei-os a fazermos uma tentativa juntos e tratámos de encontrar uma hora que fosse adequada às necessidades de cada um. Escolhemos o fim da tarde para “brincar” com as nossas imagens, e demos a esse momento em que ficávamos juntos o nome de “hora da tranquilidade”. A escolha da hora Em casa O horário de cada família ditará o melhor momento para o uso das imagens mentais. Muitas famílias preferem o início da manhã, antes da ida para a escola e para o trabalho. Alguns pais disseram-me que estes exercícios de imagens mentais substituíram a televisão à noite, e eram seguidos pelo relato de histórias originadas pelas imagens. Algumas pessoas fazem um breve exercício de relaxamento 296 134 antes do jantar, para que cada membro da família possa comer sem tensão e sem a confusão que muitas vezes caracteriza as refeições em família. Os pais que estão em casa quando os filhos voltam da EROS E PSIQUE escola servem‐se com frequência dos exercícios de imagens mentais para ajudar os filhos a aquietarem‐se depois de um dia agitado. Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada Na sala de aula A quem só despertaria Os professores utilizam um breve exercício de relaxamento no início do dia, depois da merenda, antes de certas aulas ou antes dos testes. A constância é o segredo. Realizar o exercício à mesma Um infante, que viria De além do muro da estrada. Ele dela ignorado, Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino, Ela dormindo encantada. Ele buscando-a sem tino Ele tinha que, tentado, Pelo processo divino nós e para as crianças. Essa hora torna‐se para as crianças o Vencer o mal e o bem, Que faz existir a estrada. momento que aguardam ansiosamente. E nós não precisamos de Antes que, já libertado, muito tempo: cinco minutos bastam para começar, mas podemos Deixasse o caminho errado Tudo pela estrada fora, Por o que à Princesa vem. E falso, ele vem seguro, hora, todos os dias ou uma vez por semana, cria continuidade para aumentar a duração à medida que exploramos o processo. Na minha turma de terceira classe, a cena desenrolava‐se mais ou menos assim. São 8:55 da manhã e eu apago as luzes da A Princesa Adormecida E, se bem que seja obscuro E vencendo estrada e muro, Se espera, dormindo espera. Chega onde em sono ela mora. movimentos ou das frases. Um grupo de espertos, que joga War no Sonha em morte a sua vida. E, inda tonto do que houvera, canto almofadado dos livros, prossegue num tom abafado de voz. E orna-lhe a fronte esquecida, As pombas arrulham na gaiola. Ouvimos o barulho dos dominós Verde, uma grinalda de hera. sala de aula. As crianças, na sua maioria, detêm‐se no meio dos desabando um a um no complicado arranjo criado por Tim. Torno a acender as luzes e as crianças completam as palavras ou frases que estavam na ponta da língua. Põem de lado os jogos ou canetas, À cabeça, em maresia, Ergue a mão, e encontra hera, Longe o Infante, esforçado, E vê que ele mesmo era Sem saber que intuito tem A Princesa que dormia. Rompe o caminho fadado. penduram os agasalhos e reúnem‐se lentamente sobre o tapete. Sentados no tapete, nós, que somos ao todo vinte e oito, Fernando Pessoa formamos dois círculos concêntricos. Espero até que todos estejam 135 297 acomodados. “Por que não penduras o teu blusão, John? Creio que ficarias mais à vontade... Alan, achas que te podes sentar perto do Joe sem sentires vontade de conversar com ele?...Oh! Marissa, estás de volta! Como foi a viagem?” Depois de alguns minutos de contorções e bocejos, as crianças e eu conseguimos ficar quietos e tem início a nossa “hora diária de tranquilidade”. E eu começo: “Procurem uma posição que possam manter durante vários minutos e fechem os olhos. Concentrem a atenção na respiração. Muito bem, relaxem apenas e sintam que a tensão nos músculos do corpo desaparece a cada respiração que fazem. Inspirem... e expirem... inspirem... e expirem.” Qual o melhor ambiente? Em casa Procure um lugar dentro ou fora de casa, livre de distracções. Desligue o telefone e faça saber aos amigos da vizinhança que está ocupado. Um cartaz criativo que diga GÉNIO A TRABALHAR – NÃO PERTURBE poderia dar o resultado desejado. É possível que se queira preparar um ambiente que seja reservado para essa hora, com almofadas ou esteiras e plantas. Façamo-lo bonito. Algumas pessoas disseram-me que cada membro da família traz a sua própria almofada de relaxamento para a sala de estar quando chega a hora de começar. Isto indica, com um mínimo de conversas e recomendações, que o processo está prestes a começar. Uma das minhas alunas organizou uma “sala de meditação” no seu guarda-roupa. Tirou os sapatos do chão do armário e encheu-o de almofadas azuis macias. Então convidava a mãe todas 136 as noites para refazer com ela o exercício de imagens mentais que OS CONTOS E OS MITOS NO ENSINO UMA ABORDAGEM JUNGUIANA tínhamos realizado naquele dia, na turma. E esses exercícios ajudaram a mãe a passar por um divórcio muito penoso. Na sala de aula Por mais importante que seja para um homem poder ganhar a vida, isto ainda não é suficiente para que ele possa realizar o sentido da sua vida. Se tiver na sala uma área atapetada, os seus alunos podem sentar-se num ou em dois círculos concêntricos. Os alunos mais velhos sentam-se nas suas carteiras, com a cabeça baixa, ou Schelling simplesmente fecham os olhos ou olham para o chão. É bom que haja um sinal combinado previamente para dar início ao exercício de imagens mentais. Eu apago as luzes. Outros professores têm Uma análise da nossa escola mostra que o professor não está utilizado com sucesso música suave, o som de um gongo ou de um a ser preparado para ser educador. Acredita-se frequentemente que sino ou o acender de uma vela. um bom ensino se prende com um determinado conteúdo, quase A estrutura da mente nunca escolhido pelo professor, apenas determinado por alguém É melhor trabalhar com as imagens mentais quando se está que se desconhece, e que deve ser transmitido ao aluno com um bem relaxado. Tentar começar um tal exercício quando se está método que muda conforme a moda e os ventos. Não admira pois irritado ou perturbado interferirá provavelmente no processo. que os problemas e os desencontros sejam inúmeros. Além disso, Algumas famílias e turmas escolares chegam a servir-se dos os pais também não estão preparados para a tarefa de educar, exercícios de relaxamento antes de tentar resolver uma discussão, porque pouco sabem a respeito dos seus filhos. Uns dão-lhes pois acham que as soluções se tornam então mais flexíveis e liberdade a mais, outros a menos. Outros ainda compram tudo o criativas. que encontram nas prateleiras das livrarias, arrumadas por faixa Estes exercícios são agradáveis. Partilhamos com os nossos filhos aspectos de nós mesmos que habitualmente não revelamos aos outros, e por isso podemos descobrir que nos tornamos mais próximos. Podemos descobrir que a “hora tranquila” se torna uma oportunidade para partilharmos os nossos desejos, sonhos e temores uns com os outros. etária, como se as crianças tivessem entre si uma única diferença: a idade! Mas educar é algo mais do que isto: educar é formar e informar. Isto significa que temos de habilitar as crianças a viverem neste mundo, felizes, sem conflitos ou, melhor ainda, aptas a enfrentarem 137 todos os conflitos de maneira a não se 299 desestruturarem. Isto implica que a educação deverá atender à Resistência ao uso das imagens mentais criança nas suas características presentes, apresentando-se-lhe, ao Em casa mesmo tempo, conteúdos do mundo social que lhe sejam oportunos e adequados. Para isto precisamos de a conhecer bem. O primeiro passo é a nossa postura em relação à criança: temos de a ouvir e de a observar, esquecendo-nos de todos os conceitos e preconceitos. O segundo passo para a conhecermos é admitirmos É possível que se encontre resistência por parte de alguns membros da família, mas não nos deixemos intimidar. Expliquemos, aos nossos relutantes filho ou esposa ou marido, que gostaríamos de tentar fazer estes exercícios para ajudar todos a relaxar, a aprender mais facilmente a melhorar as aptidões da que ela é um mundo muito mais rico do que supomos, e que memória, a viver em harmonia e a ser mais criativos e fecundos. É precisamos de fazer com que este se desenvolva harmoniosamente. difícil questionar tais objectivos! Afinal, como são constituídos e como funcionam o corpo e a psique da criança? Trabalhe com os membros da família que desejem associar-se. Os outros virão juntar-se quando estiverem dispostos. Deixe A psicologia do sonho, do comportamento, e o conhecimento bastante claro, no entanto, que não podem interferir ou fazer das características da psique humana devem interessar a todos os barulho (sobretudo a ver televisão) quando o resto da família que se ocupam da educação, pois conteúdos e estímulos adequados estiver reunido na sua “hora de tranquilidade”. Talvez possam ler a cada fase da vida e às características do indivíduo levam a um um livro, ouvir música suave ou desenhar enquanto o resto da melhor desenvolvimento, quer no presente quer em fases família estiver ocupado com as imagens mentais. posteriores. Os contos de fadas, os mitos, a arte em geral, são Podemos pensar que a idade tem influência no quanto uma formas simbólicas pelas quais a psique se manifesta e que podem criança deseja participar. Quando os meus filhos eram mais novos, contribuir para a formação harmoniosa da criança. Apesar das ficavam ávidos por juntar-se a mim. Ao chegarem à adolescência, contingências externas, das conjunturas sócio-político-económicas, outros interesses passaram a ser prioritários. Na altura do ensino há saídas para o ser humano, não somente a partir da colectividade, mas, sobretudo, a partir da modificação de cada um ― o caminho a que Carl Gustav Jung chamou o “processo de individuação”. secundário, o meu filho pedia muitas vezes um exercício mental antes de uma prova importante, para o ajudar a relaxar e a melhorar a memória. Aos dezassete anos, a minha filha preferia relaxar e usar a criatividade a ouvir música e a pintar. Qualquer necessidade individual e modalidade de expressão Para Jung, “individuação” significa tornar-se um ser único, devem ser acatadas e respeitadas. dar a melhor expressão possível às nossas características pessoais e 300 138 intrínsecas. Ora, para entendermos o que ocorre internamente com Na sala de aula Embora as técnicas de visualização e de imagens mentais a criança quando ouve ou lê uma história de fadas, será útil tenham obtido ampla aceitação e uso no desporto, nos cuidados interpretarmos a simbologia dos contos de fadas segundo a teoria com a saúde e nos negócios, muitos estudantes não tiveram junguiana. A criança ouve a história e ela pode levá-la a uma contacto com esses recursos de ensino na sala de aula. Explique aos mudança pessoal, não porque a entenda (usando, portanto, o seus alunos e aos pais deles que o objectivo desses exercícios é intelecto), mas sim porque as imagens que ela contém vão directas diminuir a tensão, aumentar a aprendizagem e melhorar as ao seu inconsciente, vão “trabalhar” os seus conteúdos e resolver aptidões da memória. Saliente que a atenção é o requisito algum problema eventual. preliminar para ouvir e aprender, e que as imagens mentais auxiliam o aluno a concentrar-se e a prestar atenção. Digo sempre aos meus alunos que elas constituem um instrumento que valorizo Ao usarem a mesma linguagem que o inconsciente, o conto de fadas e o mito falam directamente com a criança, sem a mediação da razão ou sem necessidade de explicações, conselhos na minha vida pessoal, de modo a permanecer calma e centrada. ou sermões. Eles falam ao inconsciente através de imagens que vão Sugiro-lhes que fechem ou baixem os olhos com um olhar “suave” ou com as pálpebras semicerradas. Fixo duas regras antes de começar: não falar ou cochichar durante o exercício nem estorvar o outro. Compreendo que, devido à estranheza da técnica, nem todos os alunos participem inicialmente, mas todos devem “conversar” com as bruxas, os monstros, os medos. Com o auxílio das fadas ou da espada mágica, a criança adquire forças para vencer o que a assusta ou preocupa. Enquanto não soluciona o seu problema inconsciente, ela ouve ou lê a história inúmeras vezes, aprender a respeitar a escolha dos outros. É possível que se passem até que o resolve. É esse um dos motivos que leva as crianças a algumas semanas até que professor e alunos se sintam à vontade pedirem que lhes contem várias vezes a mesma história. com o processo. Recomendo aos professores que dêem um prazo Uma criança, paciente de um psicólogo, não dormia porque de seis semanas antes de esperar resultados positivos. No início, tinha medo. O psicólogo sugeriu à mãe que lhe contasse histórias esperem risos abafados. Os alunos podem sentir-se embaraçados, preocupados pelo facto de outros estarem a olhar para eles, ou considerar tola a ideia de ter, na escola, uma hora para exercitar o cérebro. Notei que as risadas desaparecem se os alunos não forem alvo de atenção por isso. de fadas, sem escamotear qualquer motivo de medo, sem tirar nada. O menino passou a dormir. Os monstros e as bruxas não estavam no quarto, debaixo da cama, mas dentro da cabeça do garoto. No momento em que a criança ouve uma história, ela revive-a. Digo “revive”, pois o conto e o mito são manifestações O mais surpreendente para mim é que os próprios alunos 139 psíquicas que reflectem a natureza da alma. São histórias que se 301 passam no nosso interior e que usam uma linguagem simbólica. pedem aos que os interrompem que parem. Não querem que a sua Aliás, enquanto a nossa língua se expressa por signos, o mito, os hora de imagens mentais seja interrompida. Quando ensinava a contos de fadas e os sonhos utilizam a mesma linguagem que o terceira classe, os meus alunos pediam aos retardatários que inconsciente: o símbolo. esperassem fora da sala até que a nossa “hora de tranquilidade” terminasse. Em breve deixou de haver retardatários! Às vezes há Sobre a sua interpretação, eis o que diz Jung: “ (…) o médico deve decidir-se a encarar a fundo o inconsciente, a fim de se resistência dos pais dos alunos. Na minha turma, alguns pais eram inicialmente cépticos; por isso convidei-os a participar na nossa defrontar com ele. Naturalmente, isto não é o mesmo que interpretá- hora matinal de tranquilidade. Sem excepção, todos gostaram dela. -lo. Confrontar-se com o inconsciente é algo de muito diverso: trata- E vários pais passaram a unir-se a nós para a “hora de -se de libertar os processos inconscientes que irrompem na tranquilidade” no momento em que trazem os filhos à escola. consciência sob a forma de fantasias. Pode-se então interpretá-las. Queriam começar o trabalho ou outras actividades quotidianas Em muitos casos é essencial para o paciente ter uma ideia acerca relaxados e concentrados. dessas fantasias; mas o importante é revivê-las plenamente e Uma mãe disse-me que a filha se queixava de ter de fechar os também compreendê-las. Entretanto, não atribuo uma primazia à olhos. Isso assustava-a. Sugeri que mantivesse os olhos abertos, e compreensão. O essencial, é bom repetir, não é a interpretação e a isso aliviou-lhe o medo. Um menino do terceiro ano e a sua mãe compreensão das fantasias, mas a vivência que lhes corresponde. pediram que ele não fosse incluído nos exercícios. Ele achava-os Explicando melhor o problema da interpretação, Jung acrescenta que compreender intelectualmente um sentimento negativo, por exemplo, ou reconhecer a sua falsidade, não é suficiente para o eliminar. Os sentimentos não podem ser atacados ridículos, mas gostava de ouvir o que os colegas tinham a dizer. Permiti que escolhesse entre juntar-se a nós no tapete e ouvir ou sentar-se e ler no canto destinado à leitura. A maior parte do tempo sentava-se do lado de fora do círculo, ouvindo as outras crianças descreverem as suas imagens. pelo intelecto, porque não têm base intelectual ou racional; as suas Continuação raízes mergulham numa vida de fantasia irracional e inconsciente, inacessível à crítica. Em tais casos, deve dar-se ao inconsciente a Depois de um exercício de imagens mentais dirigidas, oportunidade de produzir fantasias. Para o ouvinte, como já foi algumas crianças gostam de comentar como o seu corpo se sentiu dito, não é necessário interpretar as histórias. Entretanto, para ou que imagens lhes ocorreram. Outras preferem desenhar ou compreendermos o que ocorre no seu inconsciente, ao ouvi-las, pintar as imagens que surgiram, escrever sobre elas, ou expressá- temos necessidade de conhecer a teoria junguiana. las em movimento. Vá devagar no começo e respeite o momento de 302 140 cada um. As crianças estão muito mais próximas das suas imagens A natureza finalista e causal do símbolo interiores do que os adultos. Dê-lhes o tempo que desejarem para revelar as suas experiências. Não se pode forçar uma orquídea a A minha metodologia baseia-se, como a de Freud, na prática florir; podemos, no entanto, deleitar-nos com o processo do da confissão. Como ele, também levo em conta os sonhos, mas é na desabrochar. maneira de apreciar os sonhos que as nossas concepções divergem. Para ele, o inconsciente é essencialmente um pequeno apêndice da Confiança no processo consciência no qual estão reunidas todas as incompatibilidades. Uma coisa que aprendi com os anos de uso dos exercícios de Para mim, o inconsciente é uma disposição psicológica colectiva de imagens mentais com crianças e adultos, é que não se deve ter natureza criativa. Dessa divergência radical decorre também uma esperanças definidas de como e de quando as pessoas reagirão. maneira totalmente diversa de apreciar o simbolismo e o seu Tenho, porém, de facto, plena confiança em que este processo tem método grande valor para aqueles que se servem dele. Descubra os exercícios que são úteis para si e para os seus filhos; improvise; invente novos exercícios. Dê livre curso à sua imaginação. de interpretação. Freud procede de maneira essencialmente analítica e redutiva. Eu, porém, acrescento também um procedimento sintético que põe em relevo o carácter finalístico das tendências inconscientes em relação ao desenvolvimento da Talvez julgue que o relaxamento sentado seja ineficaz para si personalidade. e para uma criança hiperactiva. Talvez queira ficar de pé ou deitar-se. Muitos pais e professores mantêm as crianças pequenas ao colo, esfregando-lhes suavemente as costas, enquanto dirigem um O sentido latente de uma fantasia pode ser de natureza causal, isto é, atribui-se o surgimento da fantasia a uma causa exercício de relaxamento. Isto tem um efeito calmante e psicológica. Um desejo reprimido, como o sexual, por exemplo, tranquilizador. Outra sugestão é dar à criança uma pequena bola pode suscitar fantasias eróticas. Freud trabalhou nessa direcção. de argila para segurar enquanto faz o exercício. Isto é Jung, porém, considera que a psicologia do indivíduo, além de particularmente útil para alunos cinestésicos. condicionada por circunstâncias histórico-temporais, problemas Alunos e adultos de mais idade podem adormecer se ficarem fisiológicos, biológicos ou pessoais, enfim, por algo que já se deitados enquanto fazem os exercícios de imagens mentais, e o seu consumou, também é, sempre, um devir, um processo de criação. É ressonar pode perturbar a turma! Pode sugerir-lhes que se sentem este aspecto da natureza do símbolo em Jung que norteia a minha numa posição cómoda, com as costas apoiadas na parede ou numa análise dos contos de fadas. Paul Ricoeur também dizia o seguinte: cadeira. Algumas crianças e adultos preferem movimentar-se Ora, a imaginação tem uma função metafísica que não 141 303 se poderia reduzir a uma simples projecção dos desejos vitais enquanto trabalham com as imagens mentais. Um senhor inconscientes e recalcados (conceito freudiano); tem uma movimenta função prospectiva, uma função de exploração face aos desenhando no ar as imagens que vê na mente. É engenheiro e possíveis do homem. É, por excelência, a instituição e a inventor e utiliza as imagens mentais para activar a sua imaginação constituição do possível humano. É na imaginação dos seus fértil. Alguns exercícios físicos de alongamento antes das imagens possíveis que o homem exerce a profecia da sua própria existência. Compreende-se, por conseguinte, em que sentido se mãos durante o processo, mais vividas. Como facilitar a expressão de si mesmo sonhos de inocência e reconciliação que a esperança trabalha reconciliação são mitos; não no sentido positivista de mito, no as mentais dirigidas podem preparar o corpo e a mente para imagens pode falar de uma redenção pela imaginação: é através dos no ser humano; no sentido amplo da palavra, as imagens de constantemente Não há limites para a criatividade com que as crianças escrevem quando inspiradas pela sua própria imaginação. Elas podem deslocar-se para o futuro, rever o passado e criar invenções sentido de lenda ou de fábula, mas no sentido da para fazer os deveres. Se sugerimos um exercício de imagens fenomenologia da religião, no sentido de uma narrativa mentais no qual elas tenham que resolver problemas ambientais ou significativa do destino humano globalmente considerado; negociar um acordo pacífico para uma guerra, não há limites para mythos quer dizer palavra; a imaginação enquanto função as soluções criativas que ouviremos. Nunca mais nos depararemos mitopoética é também a sede de um trabalho em profundidade com um “Não tenho nada sobre que escrever”. que comanda as mudanças decisivas das nossas visões de mundo. É fundamental, então, frisar-se a característica finalista do símbolo em Jung. Foi o que iniciou a sua ruptura com Freud. Bruno As crianças sabem naturalmente contar histórias, e um exercício de imagens mentais possibilita a expressão de sonhos e de visões coloridas. É um modo de pôr a trabalhar as fantasias: dá-se efectivamente à criança permissão para devanear, durante um período de tempo definido, e depois para expressar essas imagens Bettelheim, em Psicanálise dos Contos de Fadas, faz, por vezes, uma em palavras, desenhos ou movimentos. As imagens mentais análise demasiado freudiana das histórias. Considera, por exemplo, dirigidas são muito eficazes no ensino da redacção porque como símbolos sexuais, os sapatinhos da Borralheira, e o noivo permitem que as crianças exprimam em palavras as suas com aparência de animal como uma atitude negativa prévia experiências imediatas. perante o sexo. Já a análise finalista dará uma interpretação As imagens mentais também estimulam a criança com menor diferente a estas mesmas histórias. 304 142 capacidade verbal a expressar as suas ideias. Às vezes, as crianças As várias interpretações dadas aos contos e sonhos não são sentem que não têm nada que valha a pena dizer, ou que outros o excludentes. Somos seres complexos a vários níveis. Nós, dizem melhor. Janine era uma aluna assim. Com oito anos, ocidentais, num meio cultural onde existem muitos tabus em canhota, era relutante em expressar as suas ideias na sala de aula. relação ao sexo, recebemos uma educação repressora e podemos, Quando falava, a voz era tão discreta que era difícil ouvi-la. Tinha portanto, ter problemas sexuais que se revelam nos sonhos. Numa grande dificuldade em ler em voz alta num grupo. Trocava muitas letras, tanto no trabalho escrito como na leitura. primeira análise, buscando a causa, pode-se achar a origem do sonho. Pode ocorrer, entretanto, que uma pessoa tenha sonhos Depois de um exercício de imagens mentais, no qual fizemos com os mesmos símbolos que, à primeira vista, podem levar a um passeio a um planeta imaginário, ela tornou-se verbalmente concluir a existência de problemas sexuais. Fazendo-se, porém, mais expressiva. Enquanto estivessem nesse planeta, as crianças deveriam agir como exploradores, observando como era a vida ali, como comunicavam entre si as diferentes formas de vida, como viviam, em que consistiam as suas estruturas familiares ou sociais. As crianças tinham dois minutos para, de olhos fechados, soltar a imaginação e fazer a sua inspecção. uma interpretação finalista, tal pessoa poderia, por exemplo, estar prestes a suplantar alguma fase da sua evolução interna. A característica do símbolo é a de permanecer, portanto, indefinidamente sugestivo e complexo. A trama dos contos de fadas e o processo de individuação Quando terminamos a nossa viagem, Janine fez o seguinte Para ler um conto sob o ponto de vista da psicologia analítica relato: junguiana, é necessário levar em conta que todas as personagens O meu barco à vela levou-me até perto dessa terra são uma só – o protagonista diante de todos os aspectos da sua distante e, depois, tive de fazer o resto do percurso psique e o caminho frequentemente difícil para alcançar a montada num golfinho. Lá, as pessoas eram muito individuação. É a história de nós mesmos a caminho de nós pequenas, mas tinham mães e pais grandes. As pessoas mesmos. Nos contos, as personagens somos nós mesmos, vistos pequenas viram-me chegar e prepararam uma grande através das representações simbólicas ou arquétipos. refeição. As comidas eram todas geleias de sabores Os arquétipos diferentes. Eles também tinham salões cor de laranja. Dos salões cor de laranja podia ver-se tudo lá para fora, Voltamos, então, à teoria junguiana: vamos conhecer os mas ninguém conseguia ver o lado de dentro. Então, fui arquétipos, pois são eles as personagens dos contos de fadas. Para 143 305 Jung, a psique é constituída por conteúdos conscientes e conhecer a mãe e o pai das pessoas pequenas. Acharam- inconscientes. Os conteúdos inconscientes podem ser pessoais e me esquisita porque eu não era nem grande como a mãe colectivos. Os primeiros são produto da experiência pessoal, e o pai delas, nem pequena como elas. Vestiram-me com enquanto os segundos são inatos. Jung usou a expressão “colectivo” uma roupa especial, igual às que usavam. porque o inconsciente colectivo não tem natureza individual mas universal. Quer dizer que, em contraposição à psique individual, há também conteúdos e modos de comportamento que são os mesmos em todas as partes e para todos os indivíduos. Aos Um mês depois, repetimos o mesmo exercício. Janine voltou a visitar a terra das pessoas pequeninas e continuou as suas aventuras: Hoje voltei à terra das pessoas pequeninas. Resolvi conteúdos do inconsciente colectivo Jung deu o nome de perguntar qual o nome do planeta delas para não ter de dizer arquétipos. “terra dos pequeninos”. Disseram-me que não tinha um nome Os contos de fadas são histórias de encantamento: de e que eu podia inventar um. Levei algumas horas para me príncipes transformados em animais ferozes, em lindas aves ou em decidir. Durante esse tempo, disseram-me que me mostrariam répteis repulsivos, ou ainda do príncipe que se oculta sob a pele de o jardim da Primavera. Havia lá uma porção de coisinhas algum bicho. Frequentemente é uma bruxa ou o próprio diabo que redondas, esverdeadas e acastanhadas, que brotavam da terra. faz o encantamento. E é para encontrar a princesa e/ou por provas Próximo delas, mantinham pequenos copos d’ água. Eu disse: que tem de vencer que o príncipe é redimido. Dependendo do “Estas não são flores, são apenas bolinhas.” Então eles contexto da história e do animal que aparece, o encantamento tem mergulharam uma das bolas na água e todos gritaram “rosa”. significados diferentes. Mas trata-se sempre de uma interferência Tiraram-na da água e secaram-na e tinham nas mãos uma de conteúdos inconscientes que invadem a consciência e que têm bela rosa. E podiam fazer isso com qualquer espécie de flor ou de ser integrados para a saúde física e mental da pessoa. de arbusto. Sentei-me então para imaginar um nome para o O Conto da Rã planeta. Pensei que seria bom se fosse um nome que tivesse uma relação com eles. Bem, havia muitas flores e árvores e Era uma vez uma criancinha que, diariamente, ficava todos eram felizes. Então eu podia misturar as palavras “flor” sentada no terreiro e a mãe dava-lhe sempre um prato de leite, (flower) e “árvore” (tree) e isso daria “Livre” (free). Assim faria no qual punha pedacinhos de pão; era esta a sua merenda. sentido porque eles são felizes e livres. Decidi-me por ela e, Mas assim que começava a comer a merenda, de uma 306 144 quando lhes disse, todos gostaram do nome. Depois tive que ir frestazinha da parede surgia uma pequena rã que metia a embora. Foi uma aventura maravilhosa. cabecinha no prato e compartilhava da refeição. A criança ficava muito alegre com essa companhia; se, porventura, a rã Passados dois meses Janine tinha melhorado tanto a sua capacidade de falar quanto a de escrever. Tendo adquirido não aparecia logo, punha-se a chamá-la: confiança na manifestação das suas próprias imagens, entrava mais Vem, rãzinha pequenina, vem depressa, bichinha; vem beber o teu leite e comer a tua papinha! livremente nas discussões da aula. O volume e o tom da sua voz mudaram e a leitura oral tornou-se nítida e confiante. Deixou de trocar a posição das letras na leitura e na escrita. Não estou a atribuir esses progressos exclusivamente ao uso das imagens A rã vinha a correr e comia com grande apetite. mentais dirigidas, mas ficou claro que a expressão verbal de Janine Mostrava-se, porém, muito reconhecida, trazendo à criança melhorou muito devido ao uso dos exercícios. uma porção de coisas lindas do seu tesouro escondido: pedras preciosas, pérolas e brinquedos de ouro. Mas a rã só tomava o As artes da linguagem e da leitura leite e deixava sempre o pão; notando isso, a criança, um dia, As crianças gostam de ler as suas próprias histórias e as dos seus companheiros de turma. Aprendem a ler melhor quando lêem algo com implicações pessoais. Depois de um exercício de imagens mentais, podemos sugerir aos nossos filhos mais novos ou à turma pegou na colherinha e bateu-lhe levemente na cabeça, censurando-a: – Vamos, bichinha, come também o pão! que desenhem as figuras que viram na sua imaginação. Podem ditar-lhe as histórias a si ou a uma pessoa mais velha que possa A mãe da criança estava na cozinha e ouviu o filhinho a escrever as palavras. Em seguida, as crianças lêem as histórias em falar com alguém; saiu a ver quem era e, deparando com a voz alta. Que orgulho sentem ao escrever e ler em voz alta as suas criança a bater com a colher na cabeça do animalzinho, próprias assustou-se. Correu para ele e, com um pau, matou a pobre histórias! Pode-se, além disso, aumentar o seu conhecimento do vocabulário, usando as palavras que aparecem na rãzinha. história para ilustrar regras fonéticas e ortográficas. Depois de um exercício de imagens mentais, a história seguinte foi desenhada e ditada a mim por Taro, um menino de sete anos classificado pelo professor como “incapaz de ler”. Em 145 Desde esse momento, verificou-se na criança uma mudança radical: enquanto a rã comia junto dela, a criança desenvolvia-se forte e robusta. Mas agora, o seu rostinho 307 rechonchudo e corado perdia o viço e o pequeno emagrecia seguida, ele leu a sua história em voz alta para o grupo, cada vez mais. Não demorou muito e a coruja começou a piar surpreendido pela recém-adquirida capacidade de ler e orgulhoso durante a noite, o pintarroxo pôs-se a colher galhinhos e dela: Quando olhei para os espelhos, vi um arco-íris a formar- folhinhas para fazer a coroa de defunto e pouco depois a -se e no próprio círculo interior do arco-íris havia uma lista criança foi levada para o cemitério. preta que estava a ser puxada para baixo. Quando chegou ao A rã tem nos contos diversas acepções simbólicas. A principal centro, transformou-se num pequeno ponto e lentamente está relacionada com o seu elemento natural: a água. A água desapareceu. Compreendi então que aquele era o ponto dentro simboliza frequentemente o inconsciente. Portanto, pode-se de mim onde me faltava a confiança. E quando soube disso, considerar a rã como aquela que traz à consciência conteúdos do senti-me a sair do chão e pus-me a voar como Jonathan inconsciente, e isto devido à sua possibilidade de viver em ambos Livingstone Seagull. Comecei então a aprender a controlar o os elementos, terra e água. meu corpo, e podia voar rápido ou devagar e de cabeça para baixo. Depois, comecei a sentir como se estivesse a Jung frequentemente apontava para a necessidade de haver a integração do inconsciente no consciente, de modo a assegurar a transformar-me numa outra pessoa. saúde psíquica da pessoa: se os conteúdos inconscientes A redacção criativa permanecerem desconhecidos, eles ficam autónomos no inconsciente, procurando, sem cessar, uma porta para se manifestar. É isto que origina os famosos desconfortos das Depois de experimentar uma rica imagem visual, uma criança, Jessica, pôde descrevê-la com as seguintes palavras: depressões, angústias e até neuroses. A folha do ácer Este conto simboliza pois essa interferência do inconsciente A cor da folha no consciente, ambos vivendo harmoniosamente, cada um é como um pôr-do-sol laranja alimentando o outro: o último, com o alimento da terra, o A textura da folha é como as pedras redondas da estrada primeiro, com o alimento do conhecimento interior (os tesouros). O aroma da folha A mãe do menino, entretanto, interfere nessa harmonia ao matar a é ainda o mais doce rã, isto é, não permitindo que o inconsciente se manifeste. O Mas o gosto da folha menino, então, adoece e morre. 308 é celestial. 146 Este poema foi precedido por um exercício de imagens mentais que realizei com a minha turma da terceira classe, levando os alunos a conhecer os prazeres que as folhas de Outono Em As Três Penas aparece outra vez a rã, e uma vez mais com essa característica: provocam nos sentidos. Numa viagem à Costa Leste, reuni folhas de muitas variedades, cores, formas e tamanhos. Os alunos da Um rei tinha três filhos. Os dois mais velhos eram muito minha turma tinham crescido no Sul da Califórnia e nunca tinham inteligentes e vivos e o mais novo muito simples e pouco visto o magnífico espectáculo das cores outonais. Sem lhes mostrar amante de desperdiçar palavras. O monarca, já idoso, não as folhas, pedi às crianças que fechassem os olhos e usassem todos sabia a quem deixar o reino. Assim, um dia, chamou os três e os sentidos quando examinassem o que estava prestes a oferecer- disse-lhes que fossem correr mundo. Aquele que lhe trouxesse -lhes. o tapete mais rico, seria o rei. Para que não houvesse discórdias entre eles, atirou para o ar três penas e ordenou que Senta-te numa posição confortável e fecha os olhos. Põe as mãos nas coxas, com as palmas para cima. Concentra a atenção na cada um deles seguisse uma delas. Uma pena foi para oeste, outra para leste e a última caiu no chão. respiração e quando respirares, o corpo e a mente ficarão cada vez mais relaxados. (Pausa) Imagina que estás sentado debaixo da tua Vendo isto, um irmão seguiu para a direita, outro para a árvore predilecta e que começa a soprar uma brisa suave. (Pausa) esquerda e o mais novo, chamado Simplório, ficou no lugar Sentes as folhas que caem da árvore. (Deixe cair as folhas onde tinha caído a pena. Triste e abatido, o pobre Simplório lentamente sobre as crianças.) Ainda com os olhos fechados, pega reflectia em silêncio ao lado da pena, quando se abriu um numa folha e segura-a nas mãos. Sente as nervuras da folha e alçapão no chão. Desceu por uma escada e encontrou uma percebe a sua forma e tamanho. Imagina de que cor pode ser. enorme rã, cercada de outras menores. Depois de ter contado Esfrega-a no rosto e repara na sua textura. Cheira-a... O que é que à rã o que acontecera, esta tirou de uma caixa um tapete e ela te faz lembrar? Imagina qual é o seu gosto. Podes-te levantar, se entregou-lho. Como os dois outros irmãos subestimassem o quiseres, e move-te imitando a queda suave das folhas no Outono. (Pausa) Quando estiveres pronto, abre os olhos devagar. menor, não se esmeraram em procurar um tapete. Simplório apresentou o tapete mais bonito e ia ficar com o reino, quando os outros dois pediram outra oportunidade. A reacção a este exercício serviu-me para saber como é Desta vez o rei pediu um anel. As penas foram lançadas importante o uso dos sentidos na aprendizagem. E um aluno disse: 147 309 e tudo aconteceu como antes. Simplório contou à rã o sucedido e ela deu-lhe um anel riquíssimo, coberto de pedras Vejo folhas a dançar na brisa preciosas. Simplório ganhou novamente aos irmãos, mas estes Algumas são amarelas, verdes e vermelhas, pediram uma nova oportunidade. Mas Simplório acabou por Outras parecem-se com coisas que jamais vimos antes. ficar finalmente com o reino porque a rã, que estava bem A minha tem cheiro de carvalho e, com certeza, é a melhor. próxima de si [as verdadeiras respostas no caminho para nós A textura da folha cheira a vermelho A forma da folha lembra-me uma mão, mesmos estão por perto!] trazia-lhe tudo o que ele pedia. Quando a levanto, posso ver a sombra das nervuras. Esta história, além de mostrar a feliz intervenção do inconsciente, mostra que esta ocorre no príncipe que não é tão inteligente como os outros. Parece que a inteligência não tem muito a ver com a capacidade de poder ouvir o que o inconsciente tem a dizer! Neste poema, a textura cheira a vermelho. Este menino cruzou o sentido táctil com o olfacto e a visão. Este dom, chamado sinestesia, é um instrumento eficaz na ampliação da memória. Este aluno, em particular, apresentava a melhor memória da turma e estava adiantado um ano em matemática. As imagens mentais dirigidas são um meio excelente para criar, de acordo com um Amarilis Pavoni Os contos e os mitos no ensino. Uma abordagem junguiana S. Paulo, Ed. Pedagógica e Universitária, 1989 (excertos adaptados) ponto de vista diferente, as personagens de uma narrativa. As crianças relacionam-se de modo muito intenso com os animais e criam empatia com os seus sentimentos. Elas revelam muito do que têm dentro de si mesmas quando assumem o papel de um animal favorito. Histórias extraordinárias surgem quando a criança adquire as características e atitudes físicas de uma personagem que encontrou no exercício de imagens mentais. Estas personagens tornam-se multidimensionais, e não meras caricaturas monótonas e estereotipadas. Num exercício de imagens mentais em que os alunos foram instruídos para se transformarem nos seus animais favoritos, uma criança (Jenny, de 10 anos) escreveu a seguinte 310 148 história: Eu estava a descer um caminho pedregoso. Tinha O ELOGIO DA NARRATIVA calor e sede. A minha boca estava cheia de água. De repente, vi surgir um tanque e corri rapidamente na sua direcção. Fui tão depressa que nem reparei que andava Em vez de deixarmos a nossa vida transformar-se numa sobre quatro pés. E os meus bigodes estavam a fazer história, não seria melhor evocar as histórias que a marcaram, cócegas nas minhas bochechas. Ao chegar ao tanque, aquelas que lhe ofereceram, fosse através da magia da escuta ou da imediatamente vi que me tinha transformado num dos leitura, meus animais favoritos. Um gato! Um gato com longos existências longínquas e estrangeiras, embora estranhamente familiares? Cada um de nós pode partir à procura pêlos castanhos. Molhei a pata no tanque e lambi-a com da narrativa perdida e reencontrar, se não o primeiro conto ouvido, a ponta da minha áspera língua cor-de-rosa. Depois de pelo menos a imagem marcante mais antiga associada a um conto, um certo tempo, imaginei que o gato em que me tinha indissociada de uma voz, de um serão longínquo da nossa infância, transformado era exactamente como eu. Com a unha, de uma viagem de comboio. desenhei um gato. Até como gato eu podia desenhar A primeira narrativa, mesmo que muito longínqua no tempo, gatos melhor do que ninguém. fica para sempre intacta na nossa memória. Nunca deixou de Justamente nesse instante senti alguém tocar de funcionar como uma visão do mundo para nós. Quando a ouvimos leve na minha pata. “Olá”, disse uma vozinha. Olhei em de novo, o cenário ilumina-se progressivamente. E o que é uma volta e não vi nada nem ninguém. “Olha para baixo”, narrativa? É uma técnica de enunciação que busca implicar um disse novamente a voz. Olhei para baixo e vi uma leitor ou um ouvinte numa série de acontecimentos com os quais joaninha. “Fico contente por alguém me encontrar”, não tem, em princípio, nada a ver e que coloca os acontecimentos disse a joaninha. “Estou perdida no nevoeiro e preciso de evocados num dado campo, ou campos, temporais. um lar. Quero ser tua amiga”, disse a joaninha. Pensei: Através da magia da narrativa, acontecimentos estranhos ou gosto de fazer amigos. Sempre gostei. O facto de ser um longínquos, que se situam a montante de um presente ele mesmo gato não deve mudar nada. “Se eu for teu amigo, tu serás fictício, acabam por me dizer respeito e por quase me pertencer, minha amiga?” acabando assim por se juntar ao tempo presente da minha escuta. 149 311 A narrativa é, pois, a disposição metódica de acontecimentos numa sequência e numa duração, acontecimentos esses que “Naturalmente”, disse a joaninha. “Teremos um o longo dia amanhã, Jenny”, disse a joaninha. “Como sou ouvinte/leitor jamais vivenciará, a não ser ficcionalmente. uma joaninha pequena, vais-me contar uma história para dormir.” Eu contei-a porque gosto de inventar O tempo passa e a nossa existência tem acesso ao tempo da histórias. Quando acordei de manhã, já não tinha narrativa para poder transformar-se em lenda, em conto, ou em bigodes. Não tinha longos pêlos castanhos. Era a romance. Tudo o que nos acontece procura e encontra a sua forma menina comum de cabelos vermelhos e sardas. Sabia que narrativa, feliz ou infeliz. No dia-a-dia, damos notícias nossas aos estava na hora de ir embora. E assim peguei na joaninha que nos são próximos através de pequenas “novelas” que e voltei para a sala de aula. compomos para eles. A minha vida, comunicada e consciente, é simultaneamente conto, novela, romance… AVENTURA COM A FADA DAS FLORES Em Mille Plateaux, Gilles Deleuze propõe uma distinção interessante entre contos, novelas e romances: A essência da “novela”, como género literário, não é muito difícil de estabelecer. A IDADE: de 3 a 12 anos novela existe quando tudo se organiza em redor das perguntas “O EXERCÍCIO: 5 minutos que se passou? O que se terá passado?” O conto, pelo contrário, CONTINUAÇÃO: 5-15 minutos capta a atenção do leitor em função do que se vai passar. Há sempre qualquer coisa que vai acontecer. No romance, está sempre a passar- Às vezes pode criar-se um exercício de imagens mentais -se alguma coisa, embora o romance integre, no seu presente dirigidas com base numa história escrita pelas crianças. Depois de perpétuo, elementos da novela e do conto. ler a história da minha filha Heather, de 9 anos, que acompanha este Contar é um trabalho manual bastante subtil, um bordado bastante complexo, tecido a partir de uma estrutura maleável, rica em combinatórias possíveis. Trata-se de uma estrutura exercício, usei o tema dela para criar este exercício sobre as fadas das flores. Estas imagens mentais permitem que as crianças satisfaçam plenamente o seu sentido de magia e de aventura. impermeável aos conteúdos, significados e valores que cada Fecha os olhos e concentra a atenção na respiração. ouvinte/leitor possa projectar na narrativa, a título individual. Suavemente, inspira... e expira. Enquanto respiras calmamente, o Segundo Barthes, a nossa época é incapaz de narrar. A articulação teu corpo torna-se cada vez mais relaxado. Imagina agora que estás 312 150 sentado ao ar livre na relva, num belo dia de sol quente. Estás a narrativa é reduzida a uma problemática edipiana, da qual depende deleitar-te ao contemplar o desabrochar de novas flores. Sentes o prazer do conto. Se o prazer se perde, a vontade de contar prazer nas suas cores e aromas. De repente, vês um ser diminuto à também. Seria esse o destino actual e infeliz da narrativa: tua frente, subindo pela haste de uma linda margarida. Esse ser não desagregar-se numa “sucessão descoordenada de instantâneos é maior do que o teu dedo médio; ao voltar-se para ti, faz um sinal poéticos”, numa sucessão de imagens carregadas de efeitos, mas de que deves segui-lo. Percebes que também te tornaste pequeno e vazias de estrutura. Esta afirmação peremptória de Barthes apressas-te a acompanhar a tua nova amiga. Tens agora três simplifica a narrativa contemporânea, mas também as causas do minutos contados no relógio, que é todo o tempo de que necessitas prazer das narrativas de todas as épocas. Há já muito que o prazer para realizar uma aventura com esta fada das flores. da narrativa consiste também em percorrer livremente “imagens (Passados três minutos) Agora é hora de te despedires da tua carregadas de afectos”. amiga e de voltares para cá, repleto de lembranças da tua aventura. Todas as comunidades humanas conhecidas sempre se Contarei até dez. Junta-te a mim quando eu contar seis, e abre os contaram a si mesmas, quer oralmente, quer por escrito. Fizeram- olhos, sentindo-te alerta e revigorado, quando eu chegar ao dez. -no para se conhecerem e se compreenderem, a fim de se Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito... nove... dez. perpetuarem. Fizeram-no através de mitos, lendas, contos, epopeias e fábulas; através de frescos e de filmes, de tragédias, comédias e dramas; através de romances e novelas, histórias e rumores. Em todas estas formas, coexistem dois tipos de leitura: AS FADAS DAS FLORES uma que segue a lógica da narrativa estruturada, outra que segue a Numa pequena aldeia da Irlanda, vivia uma menina intensidade dos “instantâneos poéticos”. chamada Mindy. Ela morava num lindo chalezinho. Do lado Contrariamente ao que dizia Roland Barthes, continuamos a fora do chalé havia todo o tipo de flores que se possa imaginar, narrar. A consciência dos mecanismos da narrativa, bem como as e a margear as flores havia caminhos de tijolos. As flores capacidades de desconstrução e distanciação não datam de agora, cresciam a toda a volta do chalé num carreiro de quase dois longe disso. Nem são, tão pouco, uma consequência brutal e metros de largura. Para lá dos caminhos e das flores, havia um moderna das investigações empreendidas pela linguística, pela relvado onde Mindy gostava de brincar. Mindy tinha dez anos semiologia, pela psicanálise, pelo marxismo e pela sociologia, que e cabelos louros compridos. Morava com a mãe, o pai e a sua talvez tenham neutralizado a arte de contar e suprimido o desejo 151 313 de contar menos do que Barthes pressupõe. irmãzinha, Holly. Há já muito tempo que a narrativa tomou consciência de si Um dia Mindy estava sentada no relvado, a olhar para própria, dos seus “truques”, das suas técnicas, e que aprendeu a todas as flores, quando percebeu um diminuto ser alado de jogar com estes elementos. Qualquer narrador hábil e admirado quase dois centímetros e meio de altura, sentado numa tinha de ser também um teórico espontâneo da sua prática, se graciosa flor branca, a conversar com uma joaninha. Dizia: quisesse captar um auditório. As interpretações psicanalíticas são, “Ninguém quer brincar comigo, joaninha. Estão todos muito simultaneamente, fáceis e eficazes, já que são sempre redutoras. O ocupados.” Mindy assustou a joaninha e a menina quando problema é que passam, sistematicamente, ao lado da beleza e da disse: “Eu brinco contigo; afinal de contas, quem és tu?” A estranheza daquilo que interpretam. Será que a psicanálise faz menina disse: “O meu nome é Emília. Sou uma fada das flores.” “falar” os textos, precisamente para evitar que certas coisas sejam Mindy brincou com Emília o resto do dia até que a chamaram ditas? Que coisas serão essas? para jantar. Depois do jantar, leu para Holly e, em seguida, foi dormir. O que retemos dos mitos, bem como dos contos tradicionais, são episódios de encontros, imagens surpreendentes que acabam A meio da noite uma torrente de luz brilhou nos seus por se destacar do contexto em que estão inseridas. Fruímos dessas olhos. Quando acordou, viu-se num pequeno leito de pétalas passagens, desses deslocamentos ao Outro e ao Outro Lado, das de rosa em lugar do cobertor. Mindy olhou para si e viu que transgressões e dos exageros que a situação narrativa nos permite. tinha asas. Levantou-se e olhou em redor. Estava num Toda a narrativa é sedutora na medida em que propõe uma lugarzinho onde havia uma escada que subia até uma porta. aventura, uma forma de ir mais além. Galgou-a e bateu na porta. Emília abriu. “Bom dia”, disse. Mindy perguntou: “Por que estou tão pequena quanto tu?” Ouvir uma história permite-nos retirar da matéria narrativa Emília replicou: “Não há tempo para explicar. Quero que nomes, cenas, objectos fantásticos, situações particulares, gestos, e conheças o rei e a rainha das fadas das flores.” Saíram e expressões com os quais vamos poder fazer qualquer coisa. estavam numa aldeia onde todas as casas e lojas eram feitas Esperamos, secretamente, poder ir mais longe na nossa própria de cogumelos. Foi numa casa de cogumelo que Mindy acordou. vida, a fim de nos inquietarmos, de nos colocarmos questões, coisa Nunca as tinha visto quando estava a brincar, porque elas que não faríamos se não tivéssemos encontrado essa narrativa. O ficam muito bem escondidas debaixo das flores. desejo da narrativa não é senão a necessidade de ir colher e 314 152 Foram para o palácio de cogumelo. De início, andavam, recolher elementos narrativos extraordinariamente variados, para mas depois Mindy aprendeu a voar, de modo que fizeram um sempre alheios à realidade quotidiana e à nossa vida, mas voo até chegar ao grande e imponente cogumelo. Ao ver como susceptíveis de a esclarecer plenamente. Emília era pequena comparada com o rei e a rainha, Mindy espantou-se; eles tinham quase dez centímetros e Emília Pierre Péju L’archipel des contes Paris, Aubier, 1989 (Tradução e adaptação) apenas uns dois e meio. Mas, por outro lado, Emília não tinha a idade do rei e da rainha. Estes ficaram muito contentes em ter Mindy como uma fada das flores. Elas não se demoraram muito porque Emília estava ansiosa por mostrar tudo à sua nova amiga. Ao voltarem à aldeia, ela apresentou Mindy ao pai, cujo nome era Tom, à irmã, Elizabete, e à mãe, Maureen. Moravam todos com Emília, mas não estavam em casa de manhã. Emília e Mindy brincaram uma com a outra todos os dias e divertiram-se imenso até que, um dia, Mindy ouviu a sua mãe a chorar porque pensava que ela tinha ido embora. Dali a alguns dias, Mindy sentiu saudades e quis voltar para casa, mas nenhuma das fadas sabia como fazê-la voltar ao tamanho normal. Um dia, Emília saiu de manhã bem cedo para descobrir como fazer Mindy voltar ao tamanho normal. No caminho encontrou o seu amigo gafanhoto, “Gafanhoto, como posso fazer a minha amiga voltar ao tamanho normal?” “Emília, deves saber que podes ter tudo o que quiseres, se disseres o que queres à flor branca silvestre.” “Muito obrigada, gafanhoto, adeus”, disse Emília. E foi a correr para casa contar tudo a Mindy. Quando Mindy ouviu isto, disse adeus a todos e 153 315 foi falar com a flor branca silvestre. Murmurava: “Eu gostaria de voltar ao meu tamanho normal, se tu deixasses, minha linda flor.” Imediatamente se viu de volta à sua confortável cama. Somente ela e as fadas das flores se lembrarão do maravilhoso passeio de Mindy ao país das fadas. Uma imagem positiva de si mesmo Um dos mais importantes efeitos secundários do uso de imagens mentais dirigidas é o desenvolvimento de uma imagem positiva de si mesmo. As crianças aprendem melhor quando crêem que podem fazê-lo. Essa atitude positiva comunica-se a tudo o que fazem. A maioria das crianças vale-se das outras para se tranquilizar quanto às próprias capacidades. As crianças que desenvolveram uma imagem de si mesmas como pessoas criativas e capazes não têm constante necessidade de reconhecimento dos outros. Elas sabem que são capazes! A criança que se imagina a melhorar determinada habilidade, a realizar bem uma prova ou a aprender com facilidade algo de novo, começa a acreditar que isso é, de facto, possível. À medida que a habilidade desejada se aprimora ou a nota desejada num exame é alcançada, a confiança da criança em si mesma fortalece-se. Ela aprende a ter confiança em si, na sua capacidade de aprender e de ser bem-sucedida. Um facto importante a lembrar é que, quando estamos felizes, tornamos óptima a nossa capacidade de aprender. Devido à maneira como é estruturado o cérebro, é impossível separar as emoções da aprendizagem. Os caminhos neurais entre o neocórtex 154 (o cérebro cognitivo) e o sistema límbico (o cérebro emocional) estão sempre abertos, mesmo nas pessoas que crêem que as suas acções são dirigidas exclusivamente pelo intelecto. Por conseguinte, a primeira coisa que temos a fazer para preparar uma criança a fim de que aprenda é criar uma adequada estrutura mental. Percebi isto quando coordenei um exercício de imagens mentais dirigidas sobre a ideia de si mesmo com um grupo de índios norte-americanos, do sétimo ano, em British Columbia. No final do exercício, perguntei ao grupo em que habilidades imaginavam que estavam a melhorar. Um dos jovens alunos viu-se a apanhar mais peixe; outra viu-se a pintar com mais destreza; outro viu-se a melhorar em matemática. Uma menina veio no final da aula e, com uma voz quase sussurrada, disse: “Eu não me vi a melhorar na escola ou no desporto. Apenas me vi como alguém O CONTADOR DE HISTÓRIAS Yacoub era pobre, mas despreocupado e feliz, livre como um saltimbanco. Sonhava sempre cada vez mais alto... Em boa verdade, estava apaixonado pelo mundo. Porém, o mundo à sua volta feliz.” O avô dela, de setenta e oito anos, um ancião da tribo e professor da escola, estava presente durante o exercício e ouviu a resposta da neta. Numa reunião de professores, naquela tarde, parecia-lhe sombrio, brutal, seco de coração, de alma obscura, e sofria com isso. «Como», perguntava-se, «como fazer com que seja melhor? discutimos os efeitos das imagens mentais sobre a aprendizagem. Como trazer à bondade estes tristes vivos que vão e vêm sem olhar Ele disse ao grupo que esta era a coisa mais importante que a neta os seus semelhantes?» Meditava nestas perguntas pelas ruas de tinha a aprender na vida: ser feliz. Às vezes estamos tão Praga, a sua cidade, vagueando e saudando as pessoas, que, mesmo preocupados em encher os nossos filhos de conhecimentos que assim, não lhe respondiam. Ora, uma manhã, quando atravessava uma praça cheia de sol, esquecemos as coisas mais importantes. teve uma ideia. «E se lhes contasse histórias?», pensou. «Assim, eu, Enfrentando a tensão que penso conhecer o sabor do amor e da beleza, ajudá-los-ia, A crença de que aprendemos melhor sob tensão não é 155 seguramente, na procura da felicidade!» 317 Pôs-se logo em cima de um banco e começou a contar. verdadeira. Quem quer que tenha experimentado a “ansiedade de Admirados, os velhotes, as mulheres e as crianças pararam um exame” sabe como a tensão e o esforço interferem na um momento a ouvi-lo. Mas, depois, viraram-lhe as costas e aprendizagem, assim como na memória. Um simples exercício de prosseguiram o seu caminho. Achando que não podia mudar o relaxamento pode aliviar a angústia que muitas vezes acompanha mundo num dia, Yacoub não perdeu a coragem. uma tarefa difícil, seja a representar, a falar em público ou a No dia seguinte voltou àquele mesmo lugar e de novo lançou ao vento, com voz forte, as palavras mais comoventes. Outras pessoas pararam para o ouvir, mas em número menor do que na realizar um exame. A criança pode adquirir controle sobre as desagradáveis emoções de ansiedade através da respiração e do relaxamento muscular. Num projecto financiado pelo governo federal e realizado na véspera. Alguns riram-se dele. Houve mesmo quem lhe chamasse louco, mas não quis ouvir. «As palavras que semeio, por certo germinarão.», pensou. «Um dia entrarão nos espíritos e acordá-los-ão. Tenho de contar, contar sempre. Cada vez mais.» Teimou, pois, e dia após dia voltou à grande praça de Praga para falar ao mundo, contar maravilhas, oferecer aos seus semelhantes o amor que sentia. Todavia, os curiosos tornaram-se cada vez mais raros, acabaram por desaparecer e, em breve, apenas Bell High School, em Los Angeles, alunos do nono ano que estudavam Inglês como segunda língua alcançaram notas significativamente mais altas em testes de competência linguística do que aqueles que tinham o inglês como primeira língua. Isto ocorreu como resultado dos exercícios de relaxamento e do uso de imagens mentais. Visto que se imaginavam como alunos calmos e bem-sucedidos, aprendiam mais depressa e retinham na memória mais informações. falava para as nuvens, o vento e as silhuetas apressadas, que já só lhe lançavam uma olhadela de espanto à medida que passavam. No entanto, não desistiu. Na sala de aula ou em casa, o uso de um breve exercício de relaxamento pode ser particularmente eficaz antes de uma reunião para resolver problemas de relações interpessoais. As crianças, Descobriu que não sabia nem desejava fazer outra coisa que assim como os adultos, ficam suficientemente relaxadas para falar não fosse contar histórias, mesmo que não interessassem a dos sentimentos de mágoa com bons resultados. Elas aprendem a ninguém. Começou a dizê-las de olhos fechados, pela única identificar os seus próprios sentimentos negativos e a dizer como a felicidade de as ouvir, sem se preocupar se era ouvido ou não. atitude negativa dos outros as afecta. E as soluções tornam-se mais Sentiu-se bem e a partir de então só falava assim: de olhos criativas. O diálogo que vamos transcrever ocorreu entre duas fechados. As pessoas, temendo as suas extravagâncias, deixaram-no alunas do jardim-de-infância. Essas meninas faziam parte de um só, com as suas histórias. E habituaram-se, assim que ouviam a sua triângulo cujos membros estavam constantemente a manipular-se 318 156 uns aos outros. Fizemos um breve exercício de relaxamento antes voz ao vento, a evitar a esquina da praça onde Yacoub se de discutir o problema em questão. Talvez concordem comigo: este encontrava. nível de conversa é extraordinariamente maduro para quem tem Assim se passaram anos. cinco anos. Ora, numa noite de Inverno, enquanto, no crepúsculo indiferente, narrava um conto prodigioso, sentiu que alguém o Juliana: Ania, feriste de facto os meus sentimentos quando não me deixaste brincar contigo, com a Jennifer e a Michelle puxava pela manga. Abriu os olhos e viu uma criança. Esta, fazendo uma careta engraçada, disse-lhe, esticando-se nas pontas dos pés: Ania: Não queria ferir os teus sentimentos; apenas não estava — Não vês que ninguém te ouve, nunca te ouviu, jamais te ouvirá? O que te leva a viveres assim? com vontade de brincar contigo. — Amava com loucura os meus semelhantes — respondeu Juliana: Mas tu disseste que eu podia brincar contigo quando saíssemos e isso fez-me realmente sentir excluída. Yacoub. — Foi por isso que, no tempo em que ainda não eras nascido, me veio o desejo de os tornar felizes! Ania: Esqueci-me. Podes brincar connosco na hora do lanche. O miúdo replicou: — Pois bem, e eles são-no? — Não… — disse Yacoub, abanando a cabeça. O ALIADO INTERIOR — Por que teimas então e nunca desistes? — perguntou ternamente a criança. IDADE: de 5 anos à idade adulta EXERCÍCIO: 5-10 minutos Yacoub reflectiu por instantes: CONTINUAÇÃO: 15 minutos — Conto sempre, é claro, e contarei até morrer — disse. — Fecha os olhos e concentra a atenção na inspiração e na Dantes, era para mudar o mundo. expiração das tuas narinas. Continuando a respirar no teu ritmo, Calou-se; depois, o olhar iluminou-se, e acrescentou: imagina que estás a passar por um caminho numa floresta muito — Hoje, é para que o mundo não me mude, a mim. densa. À tua volta há belas árvores verdes, e esse caminho desce em direcção a um murmúrio de água. Chegas a um pequeno curso e aproximas-te dele, até ver o teu reflexo na água. (Pausa) Logo percebes outra presença próxima de ti mas sentes-te 157 Henri Gougaud A árvore dos tesouros Lisboa, Gradiva, 1988 (Adaptação) 319 inteiramente seguro. Vês outro reflexo junto do teu na água. Essa outra presença pode ser a de um velho sábio, a de um animal ou a de um ser imaginário que sentes como teu aliado, alguém que já conheces há muito tempo, alguém em quem podes confiar. O teu aliado faz um sinal para que o sigas através de uma pequena ponte que cruza o rio. Vais e vês-te a subir um morro que leva a uma gruta. O aliado entra na gruta, senta-se e faz um gesto para que o sigas. (Pausa de um minuto) É possível que tenhas uma pergunta especial para fazer ao teu aliado e fá-la neste momento. Ouve atentamente a resposta. (Pausa de um minuto) O teu aliado diz-te que podes voltar à hora que quiseres. Ele estará sempre à tua espera para o ajudares em tudo o que precisar. Agradeces-lhe e fazes o caminho de volta pela ponte, tornando a olhar o teu reflexo na água. Vais percebendo como te sentes enquanto sobes o caminho. Sais da floresta e tornas-te consciente de estar sentado aqui, plenamente presente. Conta para ti mesmo até três e, lentamente, abre os olhos. Reacções ao exercício “o aliado interior” Eis o que disse Bekki, de 16 anos: O meu índio voltou para mim, em intervalos, durante anos. Ele tem estado sobretudo aqui e ali desde que me mudei para Los Angeles. Nunca me fala verbalmente, mas posso ouvir 158