ecos a warhol, ecos de warhol
Transcrição
ecos a warhol, ecos de warhol
José Schneedorf (org.) ECOS A WARHOL, ECOS DE WARHOL Seleção de seis vozes contemporâneas apresentada aos alunos da disciplina ‘Serigrafia’ da Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, como requisito parcial para redação do trabalho final do semestre letivo: leitura de imagens a partir do tema ‘Arte seriada e reprodutibilidade pós-Warhol: a cultural do impresso’. Belo Horizonte Escola Guignard da UEMG 2010 2 I. MOSTRA DE WARHOL APONTA ESVAZIAMENTO DE CONTEÚDO1 Paulo Pasta Exposição com obras do artista americano, um dos principais de nossa época, revela "espécie de terror" de um mundo que pode ser convertido em mercadoria. Visitar a exposição de Andy Warhol na Estação Pinacoteca me fez pensar muito na assim chamada pintura metafísica italiana. Na grande maioria dos trabalhos ali expostos, encontra-se, como na referida pintura, uma sugestão de tempo parado, de estranhamento, como se houvesse sido retirada do mundo parte da sua natureza vital. Não se trata propriamente de nenhuma novidade. É conhecido o fato de De Chirico ser um dos pintores preferidos de Warhol. Claro, existem diferenças enormes entre a escola metafísica e o pop genuíno do artista americano. Por exemplo, o universo de De Chirico ainda é assombrado pelo peso simbólico da herança cultural das civilizações. Já a arte de Warhol, como se sabe, gostaria de dar ao museu o mesmo status de uma loja de departamentos. Tornar a temporalidade evidente é uma das qualidades da escola metafísica. Ao assistir ao filme "Empire", no qual Warhol filma um conhecido edifício nova-iorquino e faz coincidirem o tempo do filme e o tempo real, a impressão é a de que o artista, além de sofrer sua influência, ampliou e atualizou o alcance daquele movimento. Nesse filme, existe apenas essa fruição. A certa altura da projeção, nos perguntamos sobre o que estamos vendo. E então entendemos que, enquanto espectadores, estamos, na verdade, nos observando como sujeitos mergulhados no tempo. Tais estratégias se encontram presentes na exposição das mais variadas maneiras. Um dos recursos mais caros a Warhol seria justamente este: o do esvaziamento dos conteúdos – pela repetição ou pelo apelo à impessoalidade das fotografias –, para recolocar a pergunta sobre a real natureza deles. Somos, assim, sempre tentados a nos perguntar pela existência do oposto da superficialidade posta ali. Escrevendo sobre o movimento metafísico italiano, Giulio C. Argan alude ao fato de o cubismo possuir um "tempo de vida". Mas ressalva que a grande novidade, depois das descobertas de Picasso e Braque, ficava por conta da contraposição do "tempo de morte", da pintura de De Chirico. Partindo dessa relação, uma outra associação poderia também ser feita entre o expressionismo abstrato americano dos anos 50 e alguns trabalhos da escola pop. Penso que poucas pinturas sugerem mais a idéia de vida do que as de Pollock, por exemplo. Se existe morte nelas, essa sugestão nasceria justamente do ímpeto de estar plenamente vivo. Morte O caso oposto ocorre com o pop de Andy Warhol: de todos os seus trabalhos exala um bafio de morte. A criação é detonada somente quando ele se manifesta. Seriam 1 PASTA, 2010, p E1. 3 muitos os exemplos. As pinturas com as imagens de Marilyn Monroe e Jacqueline Kennedy são realizadas quando a primeira acabara de morrer e a segunda perdera, em um atentado, seu famoso marido (que também fez parte do repertório do artista). Cadeiras elétricas, acidentes de carro, suicídios: esses temas são todos expostos ao lado de outros banais, como as conhecidas latas de sopa Campbell. E tudo feito por meio da fotografia, que ele serigrafava e na qual aplicava tinta à base de polímero sintético. Aliás, o próprio uso predominante da fotografia como linguagem nos levaria à percepção de um mundo congelado, já também esvaziado e convertido em pura imagem. Algo como um "ready-made" do mundo. Uma espécie de náusea começa a nascer a partir dessa constatação: tudo se repete e se esvazia, tudo se iguala, tudo é imagem e superfície. Aquela vontade de livrar a arte de subjetivismos, que existiu em boa parcela da modernidade, ganha em Warhol uma inflexão particular, na medida em que ele o faz por meio do uso das imagens, de uma figuração, e não mais da abstração. E essa imagem – que parece nascer do seu próprio esvaziamento – faz repercutir e amplificar-se cada vez mais este último. Esta parece ser também a única verdade no universo glamouroso dos astros e estrelas ali retratados. O mundo pode ser convertido em pura mercadoria, e uma espécie de terror nasce daí. Nessa operação, ao ser capaz de revelar isso, coerentemente com a linguagem empregada, onde "o que" e "o como" não se separariam, Warhol torna-se um dos principais artistas da nossa época. Dizia querer ser como uma máquina, e parece que, nessa sua declaração, para além do seu sarcasmo, existe uma vontade de tornar sua vida tão esvaziada como a das suas imagens. Algo como "tal vida tal obra", diferentemente do "uma vida para uma obra". Para o crítico David Silvester, o que existe de magnífico na câmera fotográfica de Warhol é que ela é descerebrada e não organiza aquilo que registra: não o explica nem limita. Penso que o uso da cor por Warhol obedece a um sistema parecido. Suas cores, como as de Matisse, possuem autonomia e não expressam mais uma essência. Mas as semelhanças, acredito, param por aí. Podemos falar de otimismo e alegria em Matisse. É possível afirmar o mesmo das pinturas de Warhol? II. WARHOL 25 DE DEZEMBRO DE 19622 Michael Fried De todos os pintores [...] a serviço (ou servos) de uma iconografia popular, Andy Warhol é provavelmente o mais propositado e o mais espetacular. [...] Eu não tenho certeza disso, mas parece que ele trabalha primeiro as áreas de cores mais vívidas, então serigrafa o preto sobre elas, e finalmente pinta certos detalhes. O resultado técnico é brilhante, e existem momentos de precisão pictórica, de igual perícia, embora nesse último aspecto, Warhol é inconsistente; ele pode lidar bem com a tinta, mas ela não é o seu guia, talvez nem mesmo [...] importe a técnica escolhida, em relação à imagem 2 FRIED, 1998, p. 287-288 (tradução do autor). 4 particular selecionada para a reprodução – o que o deixa exposto ao perigo de um esvaecimento sobre o qual ele nada pode fazer. Uma arte como a de Warhol é necessariamente parasitária sobre os mitos de seu tempo, e indiretamente, portanto, sob o maquinário da fama e da publicidade que comercializa esses mitos; e não é de todo improvável que os mitos que nos comovem sejam ininteligíveis (ou, na melhor das hipóteses, completamente datados) para as gerações seguintes. Isso é dito não para denegrir o trabalho de Warhol, mas para caracterizar os riscos que esse trabalho corre – e, eu admito, para registrar de antemão um protesto contra o advento de uma geração que não ficará comovida pelas representações lindas, vulgares e pungentes da Marilyn Monroe de Warhol, como eu fico. Essas, eu acho, são as peças mais bem-sucedidas da exposição [...].Em sua maior força – eu tomo isso como presente nas pinturas da Marilyn Monroe – Warhol possui uma competência de pintor, um certeiro instinto para a vulgaridade (como em sua escolha de cores), e uma sensibilidade para o que é verdadeiramente humano e patético em um dos mitos exemplares de nosso tempo. III. O EMBREANTE ANDY WARHOL (1928-1987)3 Anne Cauquelin Se a obra de Duchamp é de difícil acesso, quase mantida secreta, a ponto de tornar opaca sua relação com a sociedade de seu tempo, fazendo com que haja necessidade de uma análise para encontrar nela os princípios gerais do regime da comunicação, a obra de Warhol é, em compensação, tão pública, e toma emprestado de maneira tão notória as vias e os meios de publicidade mercantil, que torna também difícil a avaliação de sua contemporaneidade. 1. Um falso moderno, um verdadeiro contemporâneo Certamente, os termos que são em geral adotados a seu respeito são aqueles que caracterizam uma sociedade de consumo ‘moderna’: máquina-ferramenta, sistema de publicidade, máquina de consumo. Suas séries, suas repetições estereotipadas de produtos de consumo, sua empresa (a Factory4) concebida como um verdadeiro consórcio, as declarações que as acompanham, em forma de slogans publicitários, tudo parece indicar que ele é o porta-voz lúcido e satírico dessa sociedade de consumo. A arte será regida pelas leis de mercado dos produtos, será um produto como qualquer outro. Essa constatação que Warhol, longe de desmentir, afirma com insolência fornece munição aos críticos. Se Warhol é um ‘artista’ – e não se pode ignorá-lo como tal – é porque sua obra será dupla: de um lado, ela irá se situar no sistema mercantil, mas de 3 CAUQUELIN, 2005, p. 106-120. Em 1962, Warhol instalou seu ateliê em um loft, no número 321 da East Forty-seventh Street, em Nova York, e batizou o lugar de Factory. “É um mundo só dele, de paredes cobertas de folhas de prata, e povoado de celebridades, de superesnobes inadaptados” (Sandler, op. cit., p. 189). Mais tarde, Factory se mudará para o número 860 da Broadway. 4 5 outro, ao exibir notoriamente esse sistema, ela o criticará – Warhol faz negócios e não os esconde, o que deixa muito pouco à vontade aqueles que comentam a arte ‘moderna’. O julgamento estético: Warhol tem talento, tem ‘um bom olho’ (“ele tinha um verdadeiro dom”, diz Greenberg), e é recoberto por um julgamento moral: Warhol quer que falem dele. “Tão logo chegou a Nova York, em 1949, Warhol perseguiu a celebridade com a obstinação de um salmão na época da desova”.5 A) A crítica envergonhada Para evitar esse julgamento moral e o desconforto que ele suscita, é preciso que os críticos se entreguem ao contorcionismo. Falarão do desejo de Warhol de se identificar com uma máquina, de uma participação-denúncia da vida norte-americana, do kitsch, da delação pública do banal, do mecânico, da seriação pela reduplicação da própria série, de um espelho de dupla face que exibe a realidade do vazio social: “Onde está a realidade quando dois espelhos estão frente a frente?”. De uma obsessão trágica pela morte, instalada na repetição, do caráter duplo da técnica, simultaneamente perda e salvação, segundo a análise de Martin Heidegger: em suma, tentarão juntar a imagem tradicional do artista, crítico da sociedade, à de ‘homem de negócios’ em busca de dinheiro e de poder. Salvam o que é possível da Arte (e portanto do artista Warhol), apelando para a intenção, para a profundidade, etc. Assim fazendo, adotam uma atitude contraditória que pensam corresponder perfeitamente a seu trabalho, retribuindo-o na mesma moeda. Contraditória, dúplice ou dupla, por vezes tripla – teria havido três Warhol: o primeiro, simples desenhista de publicidade; o segundo, artista pop reconhecido; o terceiro, empreendedor de negócios.6 É verdade que Warhol ‘pertence’, na história da arte, à pop art, aos anos 1960 – anos do triunfo norte-americano –, e portanto à arte moderna. Mas, se ele está no mesmo nível de James Rosenquist, Roy Lichtenstein e Claes Oldenburg, distingue-se deles, contudo, pela forma como vê de que modo a arte se articula à sociedade e, em particular, ao mundo dos negócios. É sobre essa articulação que convém refletir, e é ela que nos leva a considerar Warhol parte da arte contemporânea, na qualidade de embreante da sociedade de comunicação. Se fosse necessário, poderíamos também alegar a referência a Duchamp, por intermédio de sua devoção a Jaspers Johns e de sua proximidade com as idéias de arte conceitual. É essa reflexão que permite considerar a obra de Warhol em sua complexidade sem ter de tomar partido em relação à moral de seus ‘negócios’, ou então considerar essa atitude resultado de uma filosofia da comunicação e não uma perversão cínica do sistema de consumo. 2. Warhol’s system 5 Calvin Tomkins, citado por Irving Sandler, Le triomphe de l’art américain, lês années soixante, op. cit., p. 113. 6 Sobre as contradições da crítica, imitando as contradições de Warhol, cf. os artigos em Artstudio, nº 8 (1988): Spécial Warhol, e nos Cahiers du Museé National d’Art Moderne, nº 3 (1990) (Warholiana). Entre outros, cf. Jean Baudrillard falando sobre máquina, Bruno Paradis sobre técnica de dupla face, Bernard Marcadé sobre fruição retardada e inserção, e Démosthènes Davvetas, sobre contradição. 6 Retomemos, então, os pontos que servem de princípios à arte em regime de comunicação: A) O abandono da estética Como Duchamp, Warhol abandona a estética, deixa seu ofício de desenhista, renuncia ao estilo, à habilidade manual, e se dedica à Arte – esfera que se dissocia das questões de gosto, de belo e de único. Os objetos que mostrará serão banais, kitsch, de mau gosto. Serão objetos de consumo usual: garrafas de Coca-Cola, fotos publicadas em jornais e rearranjadas. Em suma, duplicatas, remade. Exatamente como Duchamp, trata-se de mostrar o que já existe, mas, ao ready-made ‘acrescentado’ de Duchamp, que permanece único e quase impossível de ser encontrado, Warhol opõe a repetição em série, a saturação das imagens e o paradoxo de uma despersonalização hiperpersonalizada. "Seria fantástico se mais gente empregasse a serigrafia, ninguém jamais saberia se meu quadro é de fato meu ou se é de outro”. Ou seja, todos os quadros poderiam perfeitamente ser seus. Então, s e Duchamp havia concedi do ao local a i ncumbência de anunciar a mensagem "Isto é arte", renunciando assim à habilidade e à estética do gosto, afastando-se por assim dizer da cena e se preservando, Warhol, ao colocar em prática seu conhecimento das redes, abandona esse ultimo refúgio e essa última marca da arte, que é o local de exposição, para se estabelecer no espaço inteiro das comunicações. Passa de um lugar (topos) determinado, marcado com um rótulo 'arte', ao conjunto de um circuito que ele ocupará inteiramente. A despersonalização visada vai, portanto, transformar-se em personalização desmesurada por meio da invasão do nome 'Warhol' sobre todos o s suportes. Serigrafia e fotografia, ampliação de imagens já conhecidas, cores fortes, fidelidade ao motivo, apagamento da intenção, esmaecimento do autor, antiexpressionismo: se é verdade que os artistas pop dos anos 1960 trabalham as imagens do cotidiano da mesma forma, tendo todos eles operado uma separação entre a estética das formas e da ‘habilidade manual’, não chegaram contudo a explorar nem a levar às últimas conseqüências os outros conceitos que regem a comunicação7: a rede, com a redundância e a saturação; o paradoxo, com o bloqueio em torno de si mesmo; a autoproclamação com o nominalismo; a circulação dos signos dentro da rede sem autor nem receptor, e finalmente o totalitarismo, com a internacionalização do sistema de comunicação. Pois bem, são esses preceitos ou princípios que Warhol vai utilizar da melhor maneira possível. B) A rede de comunicação Warhol compreende muito cedo o sistema publicitário. Quando, em 1960, abandona 7 Eis por que Oldenburg ou Rosenquist tiveram seu momento de glória, mas não conhecerem o efeito Warhol: de fato, o que os consome ainda é o lugar das formas, do conteúdo de suas mensagens, a inserção delas na história da arte de sua época. Warhol, por sua vez, só falará de inscrição social e de duplicação, evitando cuidadosamente qualquer idéia de originalidade ou de profundidade. Ele falará de si, não como sujeito-autor, mas como de um nome associado a um rosto. 7 a arte comercial, ele sabe ‘como aquilo funciona’. Essa experiência é fundamental porque lhe serve para construir sua própria imagem e utilizar mecanismos da publicidade para torná-la conhecida. (Em suma, ele é o fabricante de um produto chamado Warhol e o publicitário que transforma o produto em imagem e o vende). Assim, sabe que é preciso entrar na rede no lugar específico onde há mais chances de estar imediatamente conectado com o mundo a que ele visa: a galeria de Leo Castelli, onde Warhol vai entrar em 1964. C) A repetição A segunda ‘lei’ da rede de comunicação é a repetição ou tautologia. Ao contrário da obra única e original, que é uma das exigências da estética tradicional, trata-se de duplicar o mais rápido e com maior número possível de entradas a mesma mensagem. A publicidade lhe mostra o caminho. Admitindo que o trabalho do artista da pop art consiste não em ‘fazer’ mas em escolher a imagem que mostrará, será necessário selecionar a imagem que causará sensação ou o meio de tornar qualquer imagem sensacional. No primeiro caso, as fotos de catástrofes publicadas na imprensa servirão ao propósito. É a série Disasters: Tunafish disaster (1963), Five death ou Saturday disaster. Em Tunafish disaster, são imagens de latas de atum segundo o princípio das garrafas de Coca-Cola ou das sopas Campbell’s, mas suspeitara-se que essas latas tinham provocado a morte de diversas pessoas. As fotografias das vítimas estão colocadas sob as latas mortíferas. A proximidade desses rostos anônimos e sorridentes e de sua morte em latas de atum causa justamente o choque. A morte ocupa as páginas dos jornais, e é a essa morte cotidiana em seus aspectos mais corriqueiros que Warhol dá destaque. O tema da morte, que aparece com freqüência na obra de Warhol, não está ligado a uma intenção trágica nem a qualquer tipo de gosto mórbido – interpretação psicologizante exibida tradicionalmente, mas que deve ser considerada dentro da ótica da rede: o efeito saturação-repetição traz em si seu próprio fim, soa como uma queixa obsessiva. No segundo caso, é um objeto qualquer, sem absolutamente nada de sensacional, que será escolhido. Um objeto que todo mundo conhece. Ele é público. Ligando seu nome ao objeto em série, conhecido de todos, Warhol se torna tão conhecido quanto a imagem que assina. Será o caso da sopa Campbell’s, da Coca-Cola, de estrelas e ídolos do público como Marilyn Monroe ou Liz Taylor, ou, melhor ainda, da nota de um dólar. Bastará tornar esses objetos sensacionais, seja pelo tamanho – as cem Marilyns têm 205,5 X 567,5 cm: as Liz, 211 X 564 cm: o dólar, 228 X 177,5 cm –, seja pela repetição: cem Marilyns; 1123 garrafas: Green Coca-Cola bottles (1962). É o impacto sobre o público que importa; é preciso cobrir as paredes, repetir incessantemente, saturar. Porque a comunicação funciona como tautologia, como redundância. “Uma lata de sopa Campbell’s é uma lata de sopa Campbell’s é uma lata de sopa Campbell’s”. Os McDonald’s são McDonald’s que são McDonald’s: “O que há de mais bonito em Tóquio é o McDonald’s, o que há de mais bonito em Estocolmo é o McDonald’s, o que há de mais bonito em Florença é o McDonald’s. Pequim e Moscou ainda não têm nada de bonito”. 8 Como ele diz ainda: “Todas as Coca-Colas são parecidas. São todas boas. Liz Taylor sabe disso, o Presidente sabe, o mendigo sabe e nós também sabemos disso”. E como saberíamos senão pela publicidade? É preciso, portanto, saturar as redes e fazer uso de todos os suportes possíveis. Para isso, é necessário que seu nome e suas imagens ocupem ao mesmo tempo todas as posições possíveis dentro da cadeia de comunicação e que o grupo reunido na Factory também colabore. Em 1965, Warhol monta o Velvet Underground, grupo de rock que ele produz em Nova York, em 1966. Filmes: Sleep (que dura seis horas, pois o tempo também pode ser repetição e saturação), Chelsea Girls, Dracula. Entrevistas, acontecimentos que envolvam o astro, como o atentado por ele sofrido em 2 de junho de 1968, tudo isso circula na imprensa, na televisão, no mundo das redes internacionais, como para a estrela de cinema ou de rock. “Ser tão conhecido quanto a lata de sopa Campbell’s!”.8 D) O paradoxo O paradoxo é uma das leis elementares da rede. Trata-se do bloqueio entre o autor de uma mensagem e a própria mensagem.9 Em um sistema de comunicação, o nome e a obra são idênticos. O nome de Warhol não é um nome que assina uma ou diversas obras: é uma obra, o resultado de um circuito de produção de múltiplas entradas (como ‘frigidaire’ é um nome genérico para qualquer refrigerador na França). Nesse objetivo, o signo Warhol marca uma série de produções em rede: pinturas, filmes, fotografias, exposições, textos. “O autor Warhol identifica-se com a rede que faz circular os produtos Warhol”. Como os astros que são produtos de uma cadeia de realizações cinematográficas e avalizam essas realizações com suas presenças célebres, a obra de Warhol está numa relação de destaque diante do sistema de produção, que a coloca à frente. Ou, se quisermos, e como ele mesmo faz questão, Warhol produz a si como sua própria obra, como seu próprio astro (pois não existe astro desconhecido, assim como não existem ‘marcas desconhecidas). Um astro é, em sua personalidade visível, impessoal como um objeto. Ele não envelhece (“Memorex impede as estrelas de envelhecer”). Pertence à rede antes de pertencer a si mesmo, e se multiplica identicamente. O paradoxo – e o bloqueio próprio do embreante Warhol – é o fato de ele ser ao mesmo tempo o produtor de uma imagem de astro, a qual se dedica a fazer circular pelas cadeias de comunicação, e o astro em si, que ele produz como obra e que é simplesmente ele mesmo. O objeto que apresenta – a lata, a garrafa ou o astro – traz sua marca, é Warhol.10 Assim, a separação existente entre o nome que designa um autor singular e a assinatura que promove esse nome como signo, valendo como nome, encontra-se aqui 8 Entrevista a Leo Castelli, Artstudio, nº 8. Trata-se de auto-referência: a mensagem remete a si mesma, sem significar outra coisa senão simples presença no circuito. Assim, para tomar o exemplo clássico: ‘Esta frase tem 28 letras’ não significa nada fora dela mesma, remete-se apenas à sua mera presença. 10 “O objeto não passa do suporte do nome, propagação compulsiva de uma assinatura” (Luc Lang, ‘Trente Warhol valent mieux qu’un’, Artstudio, nº 8 (1988), p. 42). 9 9 esmaecida. Nome, assinatura e obra se vêem confundidos. Nesse caso diferentemente de Duchamp, que protegia seu nome ‘próprio’ naquilo que este tinha de único ao abrigo de uma assinatura disfarçada, preservando assim seu caráter reservado, discreto, secreto. Outro nível do paradoxo: o nó formado pela impessoalidade exibida por meio do re-made – não há engenho, não há toque pessoal, nem transformação do objeto mostrado, ele é reproduzido tal como é – e a hiperpersonalização do nome-assinatura. Ademais, é esse nome-assinatura que será idolatrado pelos adolescentes,11 como o de um astro cuja figura aparecerá estampada nos jeans, nos bonés, nas camisetas, e cujos pôsteres serão pregados em paredes – pin-up –, e não os objetos mostrados. A interpretação sociológica que consiste em explicar o sucesso de Warhol junto ao público jovem norte-americano pela apresentação de objetos do cotidiano, geralmente deixados de lado pelos artistas ‘artesãos’, não dá conta da especificidade do efeito Warhol, uma vez que os outros artistas da pop art que trabalhavam os mesmos temas estão longe de ter conhecido a mesma sorte. É preciso deixar bem claro que a diferença se deve à exploração por Warhol da rede e de seus princípios. 3. A arte dos negócios Comecei minha carreira como artista comercial e quero terminá-la como ‘business-artist’ [...]. Eu queria ser um homem de negócios da arte ou um artista-homem de negócios [...]. Ganhar dinheiro é uma arte, trabalhar é uma arte e fazer bons negócios é a melhor das Artes.12 Essa declaração de Warhol deu o que falar. Pode parecer provocativa, e é, mas provavelmente não pelas razões que em geral lhe atribuem. Seria provocativa para um autor inserido na tradição ideológica do artista, produzindo afastado do mundo uma obra genial, consciente de um valor único e incomparável. Mas, como vimos, essa exigência de pureza, essa recusa do comércio e da arte comercial desapareceram com o abandono da estética. Com seu aspecto anticomercial, as vanguardas cederam lugar aos artistas absolutamente determinados a se tornar ricos e célebres e a fazer uso, para isso, de todos os trunfos mundanos. Se um deles não alcança, como Warhol, seu objetivo determinado, é talvez por não possuir o domínio do processo. A) Uma empresa: Factory “No mundo dos negócios, não é o tamanho que conta, é o tamanho que você deseja ter”. Para se tornar rico e célebre, para ter o tamanho que você deseja, é preciso freqüentar celebridades, e, melhor ainda, fabricá-las, tornar-se o centro da vida in. Foi o que se tornou a Factory.13 Ela chegou ao tamanho que Warhol queria. De 1963 a 1965, lá se encontravam todas as espécies de subculturas, a contracultura, o pop, superstars, todo o jet set e as estrelas fabricadas pela Factory. Em 1968, antes do atentado de que 11 Em 1965, uma horda enlouquecida de adolescentes invadiu a exposição no Institute of Contemporary Art of Philadelphia. Foi preciso retirar os quadros. 12 Andy Warhol, The philosophy of Andy Warhol (Harcourt, 1977), p. 92. 13 Irving Sandler, ‘L’artiste homme du monde’, Le triomphe de l’art américain (Cap. 4). 10 foi vítima, Warhol tinha aumentado seu público, a Factory tornara-se uma instituição. Warhol podia então realizar a segunda parte de sua proposição: tornar-se um homem de negócios de arte. Lembremo-nos: a arte para Duchamp não tinha mais conteúdo intencional, ela só existia em relação ao local onde estava sendo exibida a obra, esta por si só um objeto banal, já presente no mundo, já fabricado. A intervenção do artista consistia em exibi-la – primeiro deslocamento – e em assiná-la ‘acrescentando’ alguma coisa – segundo deslocamento. De posse dessa definição mínima, Warhol também vai mostrar objetos comuns não em sua materialidade em três dimensões, mas reproduzidos (serigrafias, fotografias) sem nenhuma intervenção de sua parte para deslocar ou poetizar o motivo. A única ação pela qual então seu trabalho se define consiste em tornar pública essa exposição, torná-la de alguma maneira obsedante, inevitável. Mas esse ‘tornar público’ é impensável fora de uma rede de comunicação cujo processo é preciso dominar, e esse processo pertence, em sua base, à esfera do comércio, dos ‘negócios’. B) Uma definição: a arte é negócio Eis portanto a arte situada e definida pelo mundo dos negócios: espaço sempre em extensão, onde o jogo consiste em tornar crível a publicidade, em fidelizar a clientela, em estabelecer o valor do que lhe é proposto. Um jogo de ilusões ou verdadeiramente o objeto é o que se quer que seja. O mesmo com a arte: uma ilusão credibilizada, ou seja, que atrai o crédito e que vive desse crédito. Transformemos a primeira fórmula tomando ‘contar’ ao pé da letra e teremos então: “Não é o valor do objeto que conta, é o valor que você deseja que ele tenha”. Não somente o objeto de Arte não é diferente de qualquer outro que ele reproduz, como também segue as mesmas leis de propagação e de proclamação do valor. Nesse momento, o artista é aquele que leva adiante o processo dessa propagação. Ele é ‘artista de negócios’, pois os negócios são de arte e, por outro lado, a arte é uma questão de negócios. O negócio é garantido pelo Nome, que se autoproclama, pela ubiqüidade (internacionalização) do produto, pelo tamanho da empresa e de suas múltiplas filiais, pelos papéis desempenhados simultaneamente pelos agentes da empresa. São esses elementos que tornam verossímil, em outras palavras, que transformam a ilusão da realidade em realidade de uma ilusão. 4. O transformador Warhol Tornar crível uma ilusão não tem sido a grande questão da arte desde a Antiguidade? Mas essa busca da ilusão não é exercida da mesma maneira nem a respeito dos mesmos objetos. Imitar os temas da natureza ou o processo dela, como o da luz ou da construção do visível, coloca o artista em uma situação de ter de responder a um destino imposto de fora. Trata-se agora de construir esse destino, comandando e gerindo ele mesmo a empresa ilusória. A definição de arte como negócio e do artista como homem de negócios da arte é uma proposição terminante, que dá seguimento às proposições de Duchamp. 11 Ela não parece cínica a não ser aos olhos daqueles para quem a arte tem ainda alguma coisa a ver com a estética: o gosto, o belo e o único. De fato, ela é não só coerente com o Warhols system (o sistema de Warhol), com as proposições da pop art, da arte conceitual e do minimalismo, como portadora de uma desmistificação fundamental na qual residem justamente os encantos da arte contemporânea, orientada segundo os princípios da comunicação. O percurso sonhado por Andy Warhol – passar do status de artista comercial ao de artista de negócios – está completo. No caminho, fechou-se também a definição de arte contemporânea – fora da subjetividade, fora da expressividade – na qualidade de sistema de signos circulando dentro de redes. Definição estrita, quase insuportável em seu rigor. IV. TRÊS DÉCADAS APÓS O FIM DA ARTE14 Arthur Danto Assim, é quase como se a estrutura do mundo da arte consistisse exatamente não em “criar de novo arte”, mas em criar arte explicitamente para o propósito de saber filosoficamente o que é arte? [...] Mas, de modo semelhante, do fim da arte para cá continuam a haver experimentos filosóficos modernistas em arte, como se o modernismo não tivesse terminado, como, na verdade, não terminou nas mentes e práticas dos que continuam a acreditar nele. Mas a verdade profunda do presente histórico, ao que me parece, reside no término da Era dos Manifestos porque a premissa subjacente de uma arte orientada por manifestos é filosoficamente indefensável. Um manifesto distingue a arte que ele justifica como sendo a arte verdadeira e única, como se o movimento por ela expressado tivesse feito a descoberta filosófica do que a arte essencialmente é. Mas a verdadeira descoberta filosófica penso ser, na verdade, que não existe uma arte mais verdadeira do que outra, bem como não há uma única forma que a arte necessariamente deva assumir: toda arte é igual e indiferentemente arte. Para mim, a questão sobre o que a arte real e essencialmente é – em contraposição ao que ela aparentemente ou não intrinsecamente é – seria a forma errada assumida pela questão filosófica, e os pontos de vista que propus em vários ensaios sobre o fim da arte procuram sugerir qual deveria ser a forma real da pergunta. Como vejo, a forma da pergunta é: o que faz a diferença entre uma obra de arte e algo que não é uma obra de arte quando não se tem nenhuma diferença perceptual interessante entre elas? O que me despertou para essa questão foi a exposição das esculturas de Brillo Box de Andy Warhol na extraordinária mostra realizada na Stable Gallery, na East 74th Street, Manhattan, em abril de 1964. Quando aquelas caixas apareceram naquele momento – e ainda vigorava a Era dos Manifestos que tanto eles lutaram para finalmente provocar a queda, foram muitos os que disseram – e muitos dos remanescentes da era ainda o dizem – que aquelas obras de Warhol não eram realmente arte. Mas eu estava convencido de que eram arte, e para mim a pergunta instigante e realmente profunda era 14 DANTO, 2006, p. 36-40. 12 no que consistia a diferença entre elas e as caixas de papelão de Brillo que poderiam ser encontradas no depósito dos supermercados, uma vez que nenhuma das diferenças entre elas pode explicar a diferença entre realidade e arte. [...] Até o século XX acreditava-se tacitamente que as obras de arte poderiam sempre ser identificadas como tais. Agora, o problema filosófico é explicar por que são obras de arte. Com Warhol, ficou claro que não há uma forma especial que necessariamente uma obra de arte deve ter – ela pode parecer uma caixa de Brillo ou uma lata de sopa. V. ESTE FUNERAL É PARA O CADÁVER ERRADO15 Hal Foster O filósofo Arthur Danto teve uma similar epifania, que também datava de meados dos anos 60, em seu primeiro encontro com a Brillo Box de Warhol, e em uma série de livros iniciada nos anos 80 fez sua essa visão da transcendência. Segundo sua argumentação, Warhol aperfeiçoou a pergunta duchampiana “O que é arte?” e, desse modo, intencionalmente ou não, introduziu a arte na autoconsciência filosófica. Mas por esse mesmo motivo a arte não teria nenhum trabalho filosófico por diante: sua lógica essencial se havia desvanecido, e daí em diante podia fazer o que quisesse. [...] Esse ‘fim da arte’ se apresenta como benignamente liberal – a arte é pluralista, sua prática pragmática e seu campo multicultural – mas essa posição é não tão benignamente neoliberal, no sentido em que seu relativismo é o que exige a lei do mercado [...]: aqui a arte não aparece subsumida na categoria teórica da representação, mas sobrecarregada pelo domínio prático da “imagem”, forma primária da mercadoria em uma economia de espetáculo, da qual a arte já não pode fingir que se distingue. VI. O RETORNO DO REAL16 Hal Foster Em minhas leituras dos modelos críticos em arte e teoria desde os anos 60, tenho enfatizado a genealogia minimalista da neovanguarda. Na maior parte, artistas e críticos dessa genealogia permanecem céticos com relação ao realismo e ao ilusionismo. Dessa forma, eles continuaram a guerra da abstração contra a representação com outros meios. Como observado no Capítulo 2, minimalistas como Donald Judd viam traços de realismo também na abstração, no ilusionismo ótico de seu espaço pictórico, apagando estes últimos vestígios da velha origem da composição idealista – um entusiasmo que os levou a abandonar a pintura como um todo.17 Significativamente, essa postura 15 FOSTER, 2003, p. 124-125 (tradução do autor). FOSTER, 1996b, p. 127-169. 17 De certa forma, a crítica ao ilusionismo continua a velha história da arte ocidental como a procura da representação perfeita, tal como foi contada de Plínio a Vasari e de John Ruskin a Ernst Gombrich (que escreveu contra a arte abstrata); só que, aqui, o objetivo está invertido: abolir em vez de atingir essa 16 13 antiilusionista foi mantida por muitos artistas envolvidos com arte conceitual, crítica institucional, arte corporal, performance, site-specific, arte feminista e de apropriação. Mesmo que realismo e ilusionismo tenham significado coisas adicionais nos anos 70 e 80 – o prazer problemático do cinema hollywoodiano, por exemplo, ou o elogio ideológico da cultura de massas –, eles continuaram sendo coisas ruins. Porém outra trajetória da arte desde os anos 60 estava comprometida com o realismo e/ou idealismo: algo da pop arte, a maior parte do super-realismo (também chamado de fotorrealismo), algo da arte de apropriação. Freqüentemente desbancada pela crítica de genealogia minimalista na literatura crítica (ou mesmo no mercado), essa genealogia pop é hoje novamente de interesse, pois ela complica as noções redutoras de realismo e ilusionismo propostas pela genealogia minimalista – e, de certa forma, igualmente ilumina o trabalho contemporâneo, que passa a ser renovado com essas categorias. Nossos dois modelos básicos de representação são praticamente incapazes de compreender o argumento dessa genealogia pop: de que imagens são ligadas a referentes, a temas iconográficos ou coisas reais do mundo, ou, alternativamente, de que tudo que uma imagem pode fazer é representar outras imagens, de que todas as formas de representação (incluindo o realismo) são códigos auto-referenciais. A maior parte das análises da arte do pós-guerra baseadas na fotografia faz a divisão, de alguma forma, ao longo desta linha: a imagem é referencial ou simulacro. Esse “ou isto/ ou aquilo” redutivo determina as leituras dessas artes, especialmente da arte pop – uma tese que vou testar inicialmente nas imagens Death in America (“Morte na América”), de Andy Warhol, do início dos anos 60, imagens que inauguram a genealogia pop.18 Não é surpresa a leitura do pop warholiano como simulacro por parte de críticos associados ao pós-estruturalismo, para quem Warhol é pop e, mais importante, para quem a noção de simulacro, crucial à crítica pós-estruturalista da representação, parece às vezes depender do exemplo de Warhol como pop. “O que a pop art quer”, escreve Roland Barthes em “That Old Thing, Art” (“Aquela velha coisa, arte”, 1980), “é dessimbolizar o objeto”, libertar a imagem de qualquer significado profundo e situá-la na superfície enquanto simulacro.19 Nesse processo, o autor também é libertado: “O artista pop não se encontra por detrás de sua obra”, continua Barthes, “e ele mesmo não tem qualquer profundidade: é apenas a superfície de suas imagens, nenhum significado, nenhuma intenção em lugar algum”20. Com algumas variações, essa leitura na chave do simulacro é realizada por Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jean Baudrillard, para quem profundidade referencial e interioridade subjetiva são igualmente vítimas da pura superficialidade pop. Em “Pop – An Art of Consumption?” (“Pop – uma arte de consumo?”, 1970), Baudrillard concorda que o objeto na pop “perde seu significado representação. Mesmo assim, essa inversão carrega a estrutura da velha história – seus termos, valores, etc. 18 “Death in America foi o título de um show projetado para Paris das imagens electric chair (cadeira elétrica), dogs in Birmingham (cachorros em Birmingham) e car wrecks (carros destruídos), e algumas suicide pictures (imagens de suicídio) (Warhol, citado em Grene Swenson, “What is Pop Art? Anawers from 8 painters, Part I”, ArtNews 62 [novembro 1963]; 26. Nos capítulos 2 e 4 compliquei a oposição da história da arte entre representação e abstração com o terceiro termo do simulacro. A seguir complicarei a oposiçõ representacional entre referente e simulação de forma semelhante, com o terceiro termo do traumático. 19 Roland Barthes, “That Old Thing, Art”, in: Paul Taylor, ed. Post-Pop (Cambridge: MIT Press, 1989), pp. 2526. Por significado profundo Barthes quer dizer tanto associações metafóricas como conexões metonímicas. 20 Id., ibid., p. 26. 14 simbólico, seu status antropomórfico de muitos séculos”, mas, onde Barthes e outros vêem um rompimento vanguardista com a representação, Baudrillard vê o “fim da subversão”, a “total integração” da obra de arte na economia política do signo de consumo.21 A visão referencial do pop warholiano é defendida por críticos e historiadores que ligam a obra a temas diversos: os mundos da moda, da celebridade, da cultura gay, a Warhol Factory, etc. Sua versão mais inteligente encontra-se em Thomas Crow que, em seu “Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol” (1987), questiona as análises de Warhol ligadas ao simulacro, que afirmam serem as imagens indiscriminadas, e o artista, indiferente. Sob a superfície glamourosa do fetiche das mercadorias e estrelas das mídias, Crow encontra “a realidade do sofrimento e da morte”; as tragédias de Marilyn, Liz e Jackie, em particular, vistas como desencadeando a “expressão direta de sentimentos”.22 Aqui Crow encontra não apenas um objeto referencial para Warhol, mas um tema empático em Warhol, e aqui ele situa o caráter crítico de Warhol – não num ataque à “velha coisa, arte” (como Barthes o queria) mediante a aceitação do signo da mercadoria (como queria Baudrillard), mas antes numa exposição do “consumo complacente” por meio do “fato brutal” do acidente e da mortalidade.23 Dessa forma, Crow empurra Warhol para além de sentimentos humanistas em direção ao engajamento político. “Ele se sentia atraído pelas feridas abertas da vida política americana”, escreve Crow numa leitura das imagens de cadeiras elétricas como propaganda de agitação contra a pena de morte e das imagens da race-riot como um testemunho em favor dos direitos civis. “Longe de ser um puro jogo do significante libertado de qualquer referência”, Warhol pertence à tradição popular americana do truth telling (contar a verdade).24 A leitura do Warhol empático, até mesmo engajado, é uma projeção, mas não mais do que a do Warhol superficial e indiferente, ainda que essa fosse sua própria projeção: “Se quiser saber tudo sobre Warhol, apenas olhe para a superfície de minhas pinturas e filmes, e de mim mesmo, e lá estou. Não há nada por detrás disso”.25 Ambos os partidos criam o Warhol que precisam ou obtêm o Warhol que merecem; não há dúvida de que isso ocorre com todos nós. E nenhuma das duas projeções está errada. Acho ambas igualmente persuasivas. Mas ambas não podem estar corretas... ou será que podem? Será que podemos ler as imagens de Death in America como referenciais e simulacros, 21 Jean Baudrillard, “Pop – Na Art of Consumption?”, in: Post-Pop, 33, 35. (Esse texto foi extraído de La societé de consummation: ses mythes, ses structures [Paris: Gallimard, 1970], 174-85. 22 Thomas Crow, “Saturday Disasters: Trace and Reference in Early Warhol”, in: Serge Guilbaut (org.), Reconstructing Modernism (Cambridge: MIT Press, 1990): 313, 317. Essa é uma segunda versão; a primeiro apareceu em Art in America (May 1987). 23 Id., ibid., p. 322. Id., ibid., p. 324. 25 Gretchen Berg, “Andy Warhol: My True Story”, Los Angeles Free Press, 17 de março de 1963, 3. Warhol continua: “Não havia nenhuma razão profunda para fazer uma série sobre morte, nenhuma vítima de seu tempo; não havia nenhuma razão mesmo, apenas uma razão de superfície”. Claro que essa insistência pode ser lida como uma negação, como um sinal de que há “uma razão profunda”. Esse transitar entre a superfície e a profundidade é constante no pop e pode ser característico do realismo traumático. O que, afinal, faz de Warhol o local de tanta projeção? Ele posava como uma tela em branco, com certeza, mas Warhol era muito consciente dessas projeções, de fato muito consciente do mecanismo da identificação como projeção; é um de seus principais temas. 24 15 conectadas e desconectadas, afetivas e indiferentes, críticas e complacentes? Acho que devemos e podemos, se as lermos de uma terceira maneira, nos termos do realismo traumático.26 Realismo traumático Uma forma de desenvolver essa noção é pelo famoso moto da persona warholiana: “Quero ser uma máquina”.27 Normalmente essa declaração é entendida como confirmação da inexpressividade tanto do artista quanto da arte, mas ela pode talvez apontar menos para um sujeito indiferente do que para um sujeito em estado de choque, que assume a natureza daquilo que o choca, como uma defesa mimética contra o choque: Sou também uma máquina, faço (ou consumo) imagens-produto em série também, dou tão bem (ou tão mal) quanto recebo.28 “Alguém disse que minha vida me dominou”, declarou Warhol ao crítico Gene Swenson em uma famosa entrevista de 1963. “Gosto dessa idéia”.29 Aqui Warhol acaba de admitir entregar-se ao mesmo almoço todos os dias nos últimos 20 anos (o que mais senão sopa Campbell?). No contexto, então, as duas declarações podem ser lidas como a predominância da compulsão a repetir colocada em jogo por uma sociedade de produção e consumo seriais. Se você não os pode vencer, sugere Warhol, junte-se a eles. Mais, se você entrar totalmente no jogo talvez possa expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo, por meio de seu próprio exemplo exagerado. Usado de forma estratégica no Dadá, esse capitalismo niilista era encenado de forma ambígua em Warhol e, como vimos no Capítulo 4, muitos artistas jogam com ele desde então.30 (Evidentemente isso é uma performance, há um sujeito “atrás” dessa figura de não-subjetividade que a apresenta como uma figura. De outra forma, o sujeito em choque seria um oxímoro, pois não há um sujeito presente para si mesmo no choque, quanto mais no trauma. Apesar disso, a fascinação em Warhol é que nunca se tem certeza sobre esse sujeito por detrás: há alguém em casa, dentro do autômato?) Essas noções de subjetividade em choque e repetição compulsiva reposicionam o papel da repetição na persona warholiana e nas imagens. “Gosto de coisas tediosas” é outro moto famoso dessa persona quase autista. “Gosto que as coisas sejam exatamente 26 Por razões que se esclarecerão, não pode existir um realismo traumático enquanto tal. No entanto a noção é útil do ponto de vista heurístico – mesmo apenas como uma forma de superar as oposições contidas na nova história da arte (semiótica versus métodos sócio-históricos, texto versus contexto) e na crítica cultural (significante versus referente, sujeito construído versus corpo natural). 27 Swenson, “What is Pop Art?”, p. 26. 28 Hesito entre “produto” e “imagem”, “fazer” e “consumir” porque Warhol parece ocupar uma posição liminar entre as ordens de produção e consumo; ao menos, as duas operações se embaralham em seu trabalho. Essa posição liminar também explica minha hesitação entre “choque”, um discurso que se desenvolve em torno de acidentes no contexto da produção industrial, e “trauma”, um discurso no qual o “choque” é repensado por meio de sua eficiência psicanalítica e fantasia imaginária – e, portanto, um discurso talvez mais pertinente a um sujeito consumidor. 29 Swenson, “What is Pop Art?”, p. 26. 30 Para niilistas capitalistas no Dadá, ver meu artigo “Armor Fou”, October 56 (Spring 1991); para o caso de Warhol, ver Benjamin Buchloh, “The Andy Warhol Line”, in: Gary Garrels (org.), The Work of Andy Warhol (Seattle: Bay Press, 1989). Sugiro a seguir que hoje esse niilismo freqüentemente assume um aspecto infantile, como se “atuar” (acting out) fosse o mesmo que “fazer performance”. 16 as mesmas sempre”.31 Em POPism (1980), Warhol esboça essa aceitação do tédio, repetição e dominação: “Não quero que seja essencialmente o mesmo – quero que seja exatamente o mesmo. Pois quanto mais se olha para exatamente a mesma coisa, tanto mais ela perde seu significado, e nos sentimos cada vez melhor e mais vazios”.32 Aqui a repetição é tanto uma drenagem do significado quanto uma defesa contra o afeto, e essa estratégia já guiava Warhol desde cedo, como na entrevista de 1963: “Quando se vê uma imagem medonha repetidamente, ela não tem realmente um efeito”.33 Claramente essa é uma das funções da repetição, ao menos da forma como foi compreendida por Freud: repetir um evento traumático (nas ações, nos sonhos, nas imagens) de forma a integrá-lo à economia psíquica, que é uma ordem simbólica. Mas as repetições de Warhol não são restauradoras nesse sentido; não se trata do controle sobre o trauma. Mais do que uma libertação paciente por meio do luto, elas sugerem uma fixação obsessiva no objeto da melancolia. Pense apenas em todas as Marilyns, o cultivo, coloração e listagem dessas imagens: na medida em que Warhol retrabalha essas imagens de amor, uma melancólica “psicose-desejada” parece entrar em jogo.34 Porém essa análise não está também exatamente correta. Pois a repetição de Warhol não apenas reproduz efeitos traumáticos; ela também os produz. De alguma forma, nessas repetições, então, ocorre uma série de coisas contraditórias ao mesmo tempo: uma evasão do significado traumático e uma abertura em sua direção, uma defesa contra afetos traumáticos e sua produção. Aqui devo explicitar o modelo teórico que esteve subentendido até agora. No começo dos anos 60, Jacques Lacan estava preocupado em definir o real em termos do trauma. Intitulado “O Inconsciente e a Repetição”, tal seminário ocorreu mais ou menos contemporaneamente à criação das imagens de “Death in America” (no início de 1964).35 Porém, à diferença da teoria do simulacro de Baudrillard e companhia, a teoria do trauma de Lacan não foi influenciada pelo pop. Ela é, no entanto, informada pelo surrealismo, que aqui apresenta seu efeito retardatário sobre Lacan, alguém associado ao surrealismo desde seu início, e abaixo afirmarei que a arte pop é relacionada ao surrealismo enquanto um realismo traumático (certamente minha leitura de Warhol é 31 Declaração não datada de autoria de Andy Warhol, lida por Nicholas Love na missa celebrativa em memória de Andy Warhol, St. Patrick’s Cathedral, Nova York, em primeiro de abril de 1987, citado em Kynaston McShine (org.), Andy Warhol: A Retrospective (Nova York: Museum of Modern Art, 1989), 457. 32 Andy Warhol e Patt Hackertt, POPism: The Warhol 60’s (Nova York: Harcourt Brace Jovanovich, 1980), 50. 33 Swenson, “What is Pop Art?”, 60. Isto é, tem um efeito, mas não realmente. Uso “afeito” não para reinstaurar uma experiência referencial, mas, ao contrário, para sugerir uma experiência que precisamente não pode ser localizada. 34 Sigmund Freud, “Mourning and Melancholia” (1917), in: General Psycological Theory, Philip Rieff (org.), (Nova York: Collier Books, 1963), 166. O trabalho de Crow é especialmente bom no que diz respeito ao memorial de Warhol a Marilyn, porém ele o lê no sentido de um luto, em vez de lhe atribuir um sentido de melancolia. 35 Ver Jacques Lacan, The Four Fundamental Concepts of Psycoanalysis, trad. Alan Sheridan (Nova York: W. W. Norton, 1978), 17-64; outras referências estarão incluídas no texto. O seminário sobre o olhar (gaze), “Of the Gaze as Objet Petit a” tem recebido mais atenção do que o seminário sobre o real, porém o último tem a mesma relevância para a arte contemporânea quando o primeiro (de qualquer forma, os dois textos devem ser lidos em conjunto). Para um uso provocante do seminário sobre o real em escritos contemporâneos, ver Susan Stewart, “Coda: Reverse Trompe L’Oeil / The Eruption of the Real”, in: Crimes of Writing (Nova York: Oxford University Press), 273-90. 17 surrealista). Nesse seminário, Lacan define o traumático como um desencontro com o real. Enquanto perdido, o real não pode ser representado; ele só pode ser repetido. De fato ele deve ser repetido. “Wiederholen”, escreve Lacan em referência etimológica à idéia de repetição em Freud, “não é Reproduzieren”: repetição não é reprodução. Isso pode valer como epítome também de meu argumento: repetição em Warhol não é reprodução no sentido da representação (de um referente) ou simulação (de uma pura imagem, um significante desprendido). Antes, a repetição serve para proteger do real, compreendido como traumático. Mas exatamente essa necessidade também aponta para o real, e nesse ponto o real rompe o anteparo proveniente da repetição. É uma ruptura menos no mundo que no sujeito – entre a percepção e a consciência de um sujeito tocado por uma imagem. Numa alusão à idéia de causalidade acidental de Aristóteles, Lacan chama esse ponto traumático de touché; em Camera Lucida (1980) Barthes chama-o de punctum.36 “É esse elemento que nasce da cena, é lançado para fora dela como uma flecha e me atinge”, escreve Barthes. “É aquilo que acrescento à fotografia e que mesmo assim já estava lá.” “É preciso, porém abafado. Grita em silêncio. Estranha contradição: um raio flutuante”.37 Essa confusão sobre o local da ruptura, touché, ou punctum, é uma confusão entre sujeito e mundo, entre o dentro e o fora. É um dos aspectos do trauma; de fato, pode ser que essa mesma confusão seja o traumático. (“Onde está sua ruptura?”, pergunta Warhol em uma pintura de 1960, baseada em uma propaganda de jornal, com uma série de flechas voltadas para o buraco entre os seios de uma mulher). Em Camera Lucida Barthes está preocupado com fotografias simples, assim, ele situa o punctum em detalhes de conteúdo. Esse raramente é o caso em Warhol. Porém há para mim um punctum (Barthes estipula que ele é um efeito pessoal) na indiferença do passante em White Burning Car III (“Carro Branco Queimando III”, 1963). Tal indiferença em relação ao acidentado lançado sobre o poste de telefone é ruim o suficiente, mas sua repetição é insuportável e aponta para a forma de funcionamento do punctum em geral em Warhol. Ele funciona menos por meio do conteúdo do que da técnica, especialmente pelos “raios flutuantes” do processo do silkscreen, o escorregar e marcar, o alvejar e esvaziar, o repetir e colorir das imagens. Para tomar outro exemplo, um punctum aparece para mim em Ambulance Disaster (“Desastre de Ambulância”, 1963) não na mulher jogada na imagem de cima, mas na gota obscena que apaga sua cabeça na imagem de baixo. Nos dois casos – exatamente como o punctum em Gerhard Richter aparece menos nos detalhes do que no desfocar esparramado das imagens – assim o punctum em Warhol aparece não nos detalhes, mas no pipocar (poping) repetitivo da imagem.38 Esses pops, como falhas no registro ou uma diluição na cor, servem como equivalentes visuais de nosso desencontro com o real. “O que é repetido”, escreve Lacan, “é sempre algo que acontece... como por acaso”. Portanto, é como esses pops: parecem 36 “Estou tentando entender aqui como o touché é representado na apreensão visual”, diz Lacan. “Mostrarei que é ao nível do que chamo de “mancha” que o ponto de tiche é encontrado na função escópica” (77). Esse ponto de tiche, então, está no sujeito, mas o sujeito enquanto um efeito, uma sombra de uma “mancha” lançada pelo olhar do mundo. 37 Roland Barthes, Câmera Lúcida, trad. Richard Howard (Nova York, Hill and Wang, 1981), 26, 55, 53. 38 Ainda outra situação desse pipocar (poping) é o apagamento da imagem (que freqüentemente ocorre nos dípticos, isto é, um monocromo próximo de um painel de um acidente de carro ou de uma cadeira elétrica), como se ele fosse um correlativo de um blackout. 18 acidentais, mas também parecem repetitivos, automáticos, mesmo tecnológicos (a relação entre acidente e tecnologia, crucial para o discurso sobre o choque, é um tema importante em Warhol).39 Dessa forma, ele intervém sobre o nosso inconsciente óptico, um termo introduzido por Walter Benjamin para descrever o efeito subliminar das modernas tecnologias de imagem. Benjamin desenvolve essa noção no início dos anos 30, respondendo à fotografia e ao cinema; Warhol a atualiza 30 anos mais tarde, respondendo à sociedade do espetáculo do pós-guerra, aos meios de comunicação de massa e à mercadoria.40 Nessas imagens do começo de sua carreira, vemos o que é o sonhar a vida e o tempo na era da televisão – ou, antes, o que é ter pesadelo enquanto vítimas que se preparam para desastres que já chegaram, pois Warhol seleciona momentos em que o espetáculo racha (o caso do assassinato de JFK, o suicídio de Monroe, ataques racistas), mas racham apenas para se expandir. Portanto, o punctum em Warhol não é nem estritamente privado, nem público.41 Nem tem conteúdo trivial: uma mulher branca atirada para fora de uma ambulância ou um homem negro atacado por um cão da polícia é um choque. Mas, novamente, essa primeira ordem do choque é protegida pela repetição da imagem, ainda que essa repetição possa também produzir uma segunda ordem do trauma, agora no nível da técnica, em que o punctum rompe o anteparo e permite ao real se expor.42 O real, diz Lacan usando um trocadilho, é troumatic, e notei que para mim a gota no Ambulance Disaster é um tal buraco (trou), ainda que não consiga dizer que perda está figurada ali. Através desses buracos ou pops, temos a impressão de tocar o real, que a repetição da imagem ao mesmo tempo afasta e aproxima de nós. (Às vezes a coloração da imagem produz esse mesmo estranho efeito).43 Dessa forma, tipos diferentes de repetição estão em jogo em Warhol: repetições que se fixam no real traumático, que o protege, que o produz. E essa multiplicidade dá conta do paradoxo não apenas das imagens, que são ao mesmo tempo afetivas e sem afeto, mas também dos observadores, que nem estão integrados (o que 39 Esse é, aliás, um tema modernista importante, de Baudelaire ao surrealismo e além. Ver Walter Benjamin, “On Some Motifs in Baudelaire” (1939), in: Illuminations, trad. Harry Zohn (Nova York: Schocken Books, 1969), assim como também Wolfgang Schivelbusch, The Railway Journal (Berkeley: University of California Press, 1986). Como aponto na nota 7, esse choque é tátil em Benjamin, como ele é, de outra maneira, em Warhol: “Vejo tudo daquela forma, a superfície disso, uma espécie de Braille mental, apenas passo minhas mãos sobre a superfície das coisas” (Berg, “Andy: My True Story”, 3). 40 De fato Benjamin apenas toca brevemente a questão em “A Short History of Photography” (1931), in: Alan Trachtenberg (org.), Classic Essays on Photography (New Haven: Leete’s Island Books, 1980) e “The Works of Art in the Age of Mechanical Reproduction” (1936), in: Illuminations. 41 Isso é igualmente verdade para Richter, especialmente em seu conjunto de pinturas de 1988, October 18, 1977, no que diz respeito ao grupo de Baader-Meinhof. O punctum essas pinturas, que são baseadas em fotografias de membros de grupos, celas de prisão, cadáveres e funerais, não é um assunto privado, porém tampouco pode ser explicado por um código público (ou studium no léxico barthesiano). Isso igualmente fala a favor de uma confusão traumática das esferas pública e privada. 42 O choque pode existir no mundo, mas o trauma se desenvolve apenas no sujeito. Como observamos nos capítulos 1 e 7, são necessários dois traumas para efetuar um trauma: pois para que um choque se transforme em trauma, ele deve ser recodificado por um evento posterior; isto é o que Freud quis dizer com ação atrasada (nachträglich). Com relação a Warhol, isso sugere que o choque do assassinato de JFK ou o suicídio de Monroe tornou-se trauma apenas posteriormente, aprés-coup, para nós. 43 O colorir pode lembrar o vermelho histérico que Marnie vê no filme epônimo de Hitchcock (1964). Porém esse vermelho é muito codificado, seguro por ser simbólico. As cores de Warhol são arbitrárias, ácidas, eficientes (especialmente nas imagens da cadeira elétrica). 19 é o ideal da maior parte da estética moderna: o sujeito composto na contemplação), nem dispersos (o que é o efeito de grande parte da cultura popular: o sujeito entregue à intensidade esquizóide da mercadoria). “I never fall apart”, comenta Warhol em The Philosophy of Andy Warhol (“A Filosofia de Andy Warhol”, 1975), “because I never fall together” [jamais caio aos pedaços (fall apart), porque não sou coerente (fall together)].44 Esse é igualmente o efeito de seu trabalho sobre o sujeito, e ele ressoa na produção artística que elabora o pop: novamente, em uma parte do super-realismo, da appropriation art (arte de apropriação) e em algumas obras contemporânea envolvidas com o ilusionismo – uma categoria, tal como a do realismo, que esse tipo de arte nos convida a repensar. [...] Hoje esse pós-modernismo bipolar está sendo empurrado em direção a uma mudança qualitativa: muitos artistas parecem motivados por uma ambição de habitar um lugar de afeto total e esvaziar-se totalmente de afeto; a possuir a vitalidade obscena da ferida e ocupar a radicalidade niilista do cadáver. Essa oscilação sugere a dinâmica do choque psíquico, aparado pelo escudo protetor que Freud desenvolveu em sua discussão do impulso de morte e Walter Benjamin elaborou em sua discussão do modernismo de Baudelaire – mas agora levado para muito além do princípio do prazer. Puro afeto, nenhum afeto: It hurts, I can’t feel anything (dói, não sinto nada).45 Por que tal fascinação com o trauma? Por que essa inveja do abjeto hoje? É certo que motivos existem dentro da arte e da teoria. Como foi sugerido, há uma insatisfação com o modelo textual da cultura assim como com a visão convencional de realidade – como se o real, reprimido no pós-modernismo pós-estruturalista, tivesse retornado como traumático. Além disso, há a desilusão com a celebração do desejo enquanto passaporte aberto para um sujeito móvel – como se o real, descartado por um pós-modernismo performático tivesse sido mobilizado contra um mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo. Mas há forças intensas trabalhando igualmente em outras partes: desespero diante da crise persistente da Aids, doenças invasivas e morte, pobreza sistemática e crimes, a destruição do estado de bem-estar social, de fato, a quebra do contrato social (quando os ricos optam por sair, da revolução, por cima, enquanto os pobres são descartados, tornando-se miseráveis, por baixo). A articulação dessas diferentes forças é difícil, porém juntas elas impulsionam a preocupação contemporânea com o trauma e com o abjeto. Um resultado é este: para muitos, na cultura contemporânea, a verdade reside em temas traumáticos ou abjetos, no corpo doente ou danificado. Podemos estar certos de que esse corpo é a base da evidência de um importante testemunho da verdade, do testemunho necessário contra o poder. Porém, há perigos nessa localização da verdade, como a restrição de nosso imaginário político a dois campos: o dos abjetores e o dos 44 Warhol, The Philosophy of Andy Warhol, 81. Em “Andy Warhol’s One-Dimensional Art: 1956-1966”, Benjamin Buchloh argumenta que “consumidores […] podem celebrar nas obras de Warhol seu próprio status de ter sido apagado enquanto sujeitos” (in: McShine, Andy Warhol: A Retrospective, 57). Essa posição é a oposta à denúncia de Crow, que afirma que Warhol denuncia o “consumo complacente”. Novamente, em vez de escolher entre as duas, devemos pensá-las em conjunto. 45 Ver Sigmund Freud, Beyond the Pleasure Principle (1920), trad. James Strachey (Nova York: W. W. Norton, 1961) e Wanter Benjamin, “On Some Motifs in Baudelaire” (1939), in: Illuminations. Essa bipolaridade do extático e do abjeto talvez seja a afinidade, por vezes mencionada na crítica social, entre o barroco e o pós-moderno. Ambos são atraídos por uma fragmentação extática que é também um quebrar traumático; ambos são obcecados com figuras do estigma e da mancha. 20 abjetados, e a pressuposição de que, para não sermos contados ao lado dos sexistas e racistas, devemos nos tornar o objeto fóbico de tais sujeitos. Se há um sujeito da história para o culto da abjeção, ele não é o trabalhador, nem a mulher, nem a pessoa de cor, mas o cadáver. Essa não é apenas uma política da diferença levada à indiferença; é uma política de alteridade, levada ao niilismo.46 “Tudo morre”, diz o ursinho de Kelley. “Como nós”, responde o coelho.47 Porém seria esse ponto niilista a epítome do empobrecimento, que o poder não pode penetrar? Ou seria ele um lugar de onde emana o poder em uma forma nova? Será a abjeção uma recusa do poder, o seu estratagema, ou sua reinvenção?48 Finalmente, seria a abjeção um espaço-tempo para além da redenção? Ou o caminho mais rápido em direção à graça para estrategistas-santos contemporâneos? Por meio das culturas artística, teórica e popular (no SoHo, em Yale, na Oprah), há uma tendência a redefinir a experiência, individual e histórica, em termos do trauma. De um lado, na arte e na teoria, o discurso sobre o trauma continua a crítica pósestruturalista do sujeito, por outros meios, pois, novamente, num registro psicanalítico, não existe o sujeito do trauma: a posição é evacuada, e nesse sentido a crítica do sujeito é, aqui, a mais radical. De outro lado, na cultura popular, o trauma é tratado como um acontecimento que garante o sujeito, e nesse registro psicologizante, o sujeito, por mais perturbado, retorna como testemunho, atestador, sobrevivente. Aqui se encontra de fato um sujeito traumático, e ele tem autoridade absoluta, pois não se pode desafiar o trauma do outro, só se pode acreditar nele, até mesmo identificar-se com ele, ou não. No discurso sobre o trauma, portanto, o sujeito é ao mesmo tempo evacuado e elevado. E dessa forma, o discurso do trauma resolve magicamente dois imperativos contraditórios da cultura hoje: análise desconstrutivista e política de identidade. Esse estranho renascimento do autor, essa condição paradoxal de autoridade ausente, é uma virada significativa na arte contemporânea e na política cultural. Aqui o retorno do real converge com o retorno do referencial.49 46 Questionar essa indiferença não significa descartar uma política não comunitária, uma possibilidade explorada tanto pelas críticas culturais (por exemplo, Leo Bersani), quanto pela teoria política (por exemplo, Jean-Luc Nancy). 47 Kelley, citado em Sussman (org.), Catholic Tastes, 86. 48 “O autodesinvestimento nesses artistas é também uma renúncia de autoridade cultural”, escreveram Leo Bersani e Ulysse Dutoit sobre Samuel Beckett, Mark Rothko e Alain Resnais, em Arts of Impoverishment (Cambridge: Harvard University Press, 1993). No entanto, eles perguntam: “Haverá, talvez, um ‘poder’ nessa impotência?” Se positivo, ela não deveria ser, por sua vez, questionada? 49 Alguns comentários suplementares: (1) Se há, como observaram alguns, uma virada autobiográfica na arte e na crítica, ela é sempre um gênero paradoxal, pois é possível que não exista um “eu” lá. (2) Da mesma forma que o depressivo é duplicado pelo agressivo, também o traumatizado pode tornar-se hostil, e o violado, por sua vez, violar. (3) A reação contra o pós-estruturalismo, o retorno do real, também expressa uma nostalgia por categorias universais de ser e de experiência. O paradoxo é que esse renascimento do humanismo ocorreria no registro do traumático. (4) Em alguns momentos deste capítulo, permiti que os conceitos de trauma e abjeto se tocassem, como ocorre na cultura, ainda que sejam teoricamente distintos, desenvolvidos em diferentes correntes da psicanálise. 21 VII. UMA HERMENÊUTICA MARXISTA50 Frederic Jameson Precisamos apenas justapor o manequim, como símbolo [surrealista], aos objetos fotográficos da arte pop, as latas de sopa Campbell, as pinturas de Marilyn Monroe, ou às curiosidades visuais da op art; precisamos apenas trocar aquele ambiente de pequenos ateliês e balcões de lojas pelo marché aux puces e o barulho das ruas, pelos postos de gasolina ao longo das superestradas americanas, as brilhantes fotografias nas revistas ou o paraíso de celofane de uma farmácia americana, para nos dar conta de que os objetos do surrealismo desapareceram sem deixar traços. Daqui para frente, naquilo que podemos chamar de capitalismo pós-industrial, os produtos com os quais somos supridos são, em última instância, sem profundidade: seu conteúdo de plástico é totalmente incapaz de servir como condutor de energia psíquica. VIII. ENTRE O MODERNISMO E A MÍDIA & LEITURAS EM RESISTÊNCIA CULTURAL51 Hal Foster O artista ocidental contemporâneo defronta-se com duas novas condições: o modernismo recuou em ampla medida como formação histórica, e a indústria cultural avançou de maneira intensa. De fato, duas das posições modernistas básicas encontramse parcialmente erodidas no momento: nem uma recusa austera da cultura de massa nem um envolvimento dialético com sua imagística e sua materialidade são necessariamente críticos hoje em dia; a primeira porque a pureza estética se tornou institucional, a segunda por carência – poucos artistas contemporâneos são capazes de se engajar tanto em formas modernistas quanto em formas da cultura de massa de maneira críticoreflexiva. Como resposta, alguns artistas simplesmente aderiram à cultura de massa (como se isso constituísse uma ruptura definitiva dos limites culturais) e/ou manipularam as formas como se fossem clichês da mídia. O marginal absorvido, o heterogêneo convertido em homogêneo; uma palavra para tudo isso é ‘recuperação’. [...] Todas essas técnicas de recuperação dependem de uma operação-chave: a apropriação, que, no nível cultural, é o que a expropriação é para o nível econômico. A apropriação é muito eficaz porque procede por abstração mediante a qual o conteúdo específico ou o significado [...] é transferido para uma forma cultural genérica ou para o estilo de um outro. 50 51 JAMESON, 1971, p. 105. FOSTER, 1996a, p. 48-221. 22 REFERÊNCIAS CAUQUELIN, Anne. Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2005. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: EDUSP, 2006. FOSTER, Hal. Design and crime (and other diatribes). London: Verso, 2003. ___________. Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996a. ___________. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. London: MIT Press, 1996b. FRIED, Michael. Art & objecthood. Chicago: University of Chicago Press, 1998. JAMESON, Frederic. Marxism and form: twentieth-century dialectical theories of literature. Princeton: Princeton University Press, 1971. PASTA, Paulo. Mostra de Warhol aponta esvaziamento de conteúdo. Folha de São Paulo, São Paulo, p. E1, 02 abr. 2010. Disponível em: <www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq02 04201022.htm> . Acesso em 18 abr. 2010.