A dialogicidade de Freire na construção do diálogo

Transcrição

A dialogicidade de Freire na construção do diálogo
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Departamento de Metodologia de Ensino
Departamento de Engenharia de Materiais
A dialogicidade de Freire na construção do diálogo igualitário e
suas relações com os princípios da Aprendizagem Dialógica
Juliana Aparecida Moretti
São Carlos
2007
Universidade Federal de São Carlos
Centro de Educação e Ciências Humanas
Departamento de Metodologia de Ensino
Departamento de Engenharia de Materiais
A dialogicidade de Freire na construção do diálogo igualitário e suas
relações com os princípios da Aprendizagem Dialógica
Texto apresentado à disciplina Trabalho de
Conclusão de Curso em Pedagogia 2 ,
desenvolvido pela aluna Juliana Aparecida
Moretti sob orientação do prof. Dr. Amadeu
Logarezzi e co-orientadora de Vanessa
Girotto.
São Carlos
2007
Dedicatória
a Deus por iluminar a minha vida e por me dar força para buscar
meu progresso no plano terrestre,
ao professor Amadeu Logarezzi por ter orientado este trabalho com
dedicação e paciência,
a Vanessa Girotto por ter me co-orientado lido e relido meu trabalho
seriamente,
as mulheres e homens do Niase por terem proporcionado tantos
conhecimentos e por termos compartilhado tantos momentos de
trabalhos assíduos e de comemorações,
as/os minhas/meus amigas/amigos por terem acompanhado mesmo
distante este trabalho, fazendo críticas construtivas,
a amiga Diana por estar sempre ao meu lado em todos os momentos
da minha vida me fazendo sempre refletir diferentes posições,
dialogando,
Sumário
Introdução .............................................................................................................................1
1. A vida de Paulo Freire .....................................................................................................6
2. Educação na perspectiva de Paulo Freire.......................................................................9
3. A dialogicidade em Freire .............................................................................................15
4. Os sete princípios da aprendizagem dialógica..............................................................17
4.1 O diálogo igualitário...............................................................................................18
4.2 Inteligência cultural ...............................................................................................21
4.3 Transformação .......................................................................................................24
4.4 Dimensão instrumental ..........................................................................................25
4.5 Criação de sentido ..................................................................................................26
4.6 Solidariedade ..........................................................................................................27
4.7 Igualdade de diferença ..........................................................................................29
5. O diálogo nos princípios da aprendizagem dialógica ................................................30
5.1 O diálogo igualitário e a inteligência cultural ......................................................31
5.2 O diálogo e a transformação .................................................................................32
5.3 O diálogo e a dimensão instrumental ...................................................................33
5.4 O diálogo e a criação de sentido ............................................................................35
5.5 O diálogo e a solidariedade ....................................................................................36
5.6 O diálogo e a igualdade de diferença ....................................................................37
Considerações Finais ..........................................................................................................39
Referencias bibliográficas .................................................................................................42
Bibliografias ........................................................................................................................43
Resumo
Este trabalho é um pequeno ensaio sobre a teoria da dialogicidade de Paulo Freire.
Nele foi estudado os sete princípios da aprendizagem dialógica (dialogo igualitário,
inteligência cultural, igualdade na diferença, transformação, solidariedade, dimensão
instrumental e criação de sentido) e como o diálogo igualitário perpassa os demais
princípios trazendo importantes considerações.
Palavra chave: dialogicidade, diálogo igualitário, aprendizagem dialógica.
A dialogicidade de Freire na construção do diálogo igualitário e suas
relações com os princípios da Aprendizagem Dialógica
Introdução
O projeto que segue surge para cumprir com os requisitos da disciplina Trabalho
de Conclusão de Curso em Pedagogia (TCC). Tem como orientador Amadeu Logarezzi,
professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e do Departamento de
Engenharia de Materiais e co-orientação de Vanessa Girotto, doutoranda do (PPGE).
Este projeto de conclusão de curso se justifica no interior do Núcleo de
Investigação e Ação Social e Educativa (Niase), que teve sua origem no Centro Especial de
Investigação em Teorias e Práticas Superadoras das Desigualdades (CREA), de Barcelona.
O Niase foi fundado em 2002 pela profª Dra. Roseli Rodrigues de Mello1 com
base teórica de Habermas2, Paulo Freire3 e outros autores preocupados com as
transformações sociais. Esta professora, em seu pós-doutorado realizado no CREA, estudou
o projeto Comunidades de Aprendizagem, de mesma fundamentação teórica, e o trouxe
para o Brasil em 2003.
Preocupada também com as questões de transformação social, tive contato com o
Núcleo desde o início de 2006 por meio do projeto Comunidades de Aprendizagem4 e,
1
Professora do PPGE e do Departamento de Metodologia de Ensino da Universidade Federal de São Carlos.
2
Habermas é um sociólogo que estuda os movimentos sociais tomando como referência sua teoria denominada acción
comunicativa. Segundo o livro Teoria sociológica contemporânea, de Ramón Flecha, Jesús Gómez e Lídia Puigvert,
esta teoria tem como concepções básicas: racionalidad instrumental y comunicativa, teoria da argumentación,
pretensiones de validez y pretensiones de poder, comprensión mítica y comprensión moderna del mundo, cuatro tipos de
acciones: teleológica, regulada por normas, dramatúrgica y comunicativa e comprensión en las ciências sociales.
3
Paulo Freire foi um grande pedagogo que fez Sociologia da Educação. Em sua teoria, preocupou-se em trabalhar o
diálogo igualitário, a transformação entre outros conceitos sempre relacionados à transformação social por meio das
interações entre as pessoas. Diante disso, o CREA se apropriou principalmente dos conceitos destes teóricos para criar o
conceito da aprendizagem dialógica.
4
Comunidades de Aprendizagem é um projeto que implica uma transformação social e cultural na escola e no entorno,
porque envolve mudança de rotina e atitudes das famílias, profissionais da Educação, crianças e de toda a comunidade
em torno da idéia de construir uma escola onde todas as pessoas aprendam. Além disso, está voltado para a educação de
portanto, com estes teóricos, base do projeto, que me despertaram o olhar para os sete
princípios da
aprendizagem dialógica:
diálogo
igualitário,
inteligência
cultural,
transformação, dimensão instrumental, criação de sentido, solidariedade e igualdade de
diferenças.
Embora meu contato com o pensamento de Paulo Freire se tivesse dado antes de
este TCC se consolidar, por meio da leitura de Pedagogia do Oprimido (primeira
publicação em 1968) pude reconhecer a profundidade e relevância com que Freire analisa
as complexas relações no mundo, valorizando o diálogo. Diante do pensar de Freire sobre o
diálogo, busquei melhor compreensão sobre a teoria da dialogicidade, uma vez que, do meu
ponto de vista, o diálogo é o melhor meio para se alcançar um resultado realmente
transformador, e para fazer crescer e amadurecer as relações.
Em sua obra Pedagogia do Oprimido o autor ressalta que o diálogo se constitui da
palavra verdadeira, que implica ação e reflexão. Se há valorização demasiada da ação em
detrimento da reflexão, o que acaba por acontecer é um ativismo; e se há valorização
demasiada da reflexão, o que há é verbalismo. Segundo Freire, não é no silêncio que os
homens se fazem, mas nas palavras, no trabalho, na ação-reflexão (FREIRE, 2003, p. 92).
Pensando na teoria dialógica de Freire, encontrei minha motivação pessoal para
desenvolver este trabalho, especialmente porque realizei meu estágio em uma escola que
abriga um dos projetos do Niase, intitulado Comunidades de Aprendizagem. Nesta escola,
tive a oportunidade de trabalhar e conviver com várias pessoas (crianças, familiares,
funcionárias/os, professoras/es e diretora), as quais me despertaram para uma melhor
compreensão das relações de diálogo entre os seres humanos. Além disso, por tentarem
estabelecer o diálogo em diversas relações, me fizeram enxergar também outras
possibilidades de conviver com elas.
crianças de baixa classe social, que precisam aprender na escola conteúdos que ainda não foram adquiridos por elas.
Portanto, conta com a presença de familiares, crianças, adolescentes e voluntários do próprio bairro, na orientação de
leitura, escrita, estudo e pesquisa. Tudo é feito para potencializar a aprendizagem das/dos participantes, ou seja, para
acelerar sua aprendizagem.
Grande parte desta vivência se deu ao lado da diretora da escola5, que procurava
manter suas ações pautadas na valorização das relações, no diálogo igualitário, e não no
autoritarismo, despertando-me para tal compreensão. Além do contato com a diretora,
outros fatos da minha experiência de estágio me estimularam a estudar e entender melhor a
teoria freireana. Um deles foi perceber o quanto a realidade das crianças era diferente da
minha e quão grande era meu esforço para compreendê-las. Por exemplo, causava-me
estranhamento ver o quanto as crianças se batiam na hora do recreio, além de me
surpreender com a naturalidade com que aceitavam o fato de muitos pais estarem
encarcerados.
Em busca de compreender a realidade exposta no ambiente escolar, encontrei em
Paulo Freire uma grande identificação pessoal, pois o autor me trouxe respaldo teórico para
pensar como é estar no mundo com o outro, dialogando. Diante desta nova visão sobre o
mundo e os seres humanos, encontrada no autor, busquei na prática do estágio modificar
minhas ações, de forma que se tornassem mais coerentes com o que penso. Isto ultrapassou
as barreiras da escola, e hoje busco em minha vida a coerência entre o que leio e como
pratico aquilo em que acredito.
Então, observei no estágio que as crianças vivem efetivamente o mundo em que
estão e, com naturalidade, uma realidade que, sob o meu olhar inicial, parecia estranha.
Enquanto estagiária e pessoa de referência do Comunidades de Aprendizagem na escola,
vivendo neste cenário constatei, entre outras experiências, que conhecer e respeitar o meio
em que as/os educandas/os estavam inseridas/os conferia sentido a sua aprendizagem. As
crianças melhoravam sua aprendizagem, e passavam a se interessar mais pelos conteúdos
que até então desconheciam. O próprio Freire (2003) já considerava em sua teoria sobre a
dialogicidade que não existe diálogo se não houver um profundo amor ao mundo e aos
homens (FREIRE, 2003, p.79).
Tendo o estágio me colocado estas reflexões, que encontraram em Paulo Freire
respaldo para responder diversas das dúvidas que, então, eu tinha, pude alcançar melhor
5
Nesta escola, que em 2006 era referência do projeto Comunidades de Aprendizagem, estagiei junto à companheira de
trabalho Francisca Lima. Ali, passávamos o dia todo organizando o projeto para que posteriormente a escola pudesse
caminhar em busca de seus objetivos, juntamente com os voluntários, crianças, comunidade de entorno. Neste ano
tivemos bonitas aprendizagens.
percepção de como devemos estar no mundo com o outro e da importância do diálogo nesta
busca desafiadora.
Por esses motivos relatados é que senti o desejo e a necessidade de estudar a
dialogicidade em Freire, conceito importante para a formação do diálogo igualitário,
princípio presente na aprendizagem dialógica desenvolvida pelo CREA. A este me dediquei
com maior profundidade para responder a minha questão de pesquisa.
Estudei ainda o diálogo igualitário6 dentro dos princípios da aprendizagem
dialógica, a fim de compreender como este se faz presente em cada um dos demais
princípios, pois ele é base teórica do projeto Comunidades de Aprendizagem, existente
nesta escola. É importante para os demais princípios que o estudo sobre o diálogo
igualitário seja compreendido, pois é ele a base para todos os outros acontecerem. Portanto
os objetivos deste trabalho são: 1) discutir a dialogicidade em Freire a partir de quatro obras
deste autor, 2) discutir como o diálogo igualitário (princípios criados principalmente
pautados pela dialogicidade) pode perpassar os demais princípios da aprendizagem
dialógica.
A relevância acadêmica deste trabalho é contribuir para o fortalecimento teórico
de trabalhos educativos que se orientam pela perspectiva dialógica.
Desenvolve-se aqui, então, uma pesquisa bibliográfica, na qual foram investigadas
algumas das obras de Paulo Freire e alguns artigos do CREA. Neste sentido, estudei as
seguintes obras: Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido,
Pedagogia da Esperança e Pedagogia da Autonomia
como fontes que tratam da teoria
freireana, sobretudo a respeito do diálogo , e também Compartiendo Palabras
como
fonte que trata da aprendizagem dialógica, elaborada pelo CREA.
Desta forma, tomei como base a metodologia de pesquisa teórica proposta por
Gonsalves (2001) em Iniciação à Pesquisa Científica, e fiz os fichamentos bibliográficos
de cada uma das obras, registrando todos os dados bibliográficos do texto em forma de
resumo e destacando as principais idéias de cada autor estudado.
6
Os sete princípios foram criados pelo CREA com base em Paulo Freire e Jurgen Habermas.
Conforme fui fazendo as leituras, dialogava com os autores. Em Freire busquei o
que é a dialogicidade e como ela influencia na formação dos princípios da aprendizagem
dialógica. Em Flecha (CREA) estudei os sete princípios da aprendizagem dialógica,
respondendo a minha questão de pesquisa: como a dialogicidade de Freire está presente na
formação do conceito de diálogo igualitário e como este conceito está presente nos demais
princípios da aprendizagem dialógica.
Sendo assim, pensamos7 neste trabalho que para se falar de um conceito, que não é
apenas uma proposta teórica mas também coerência prática, é importante estudar não só os
livros que o autor escreve, mas também sua própria vida para entendermos seu processo
criativo a partir de seu contexto de vida.
Portanto, nos dedicamos a escrever no primeiro capítulo sobre a vida de Paulo
Freire, a fim de situar o leitor sobre suas obras e sua carreira como importante educador
brasileiro, e teórico traduzido, estudado e respeitado em todo o mundo. Assumo aqui
também a posição de sempre usar as palavras em suas versões femininas e masculinas da
nossa língua, como, por exemplo, mulheres e homens, pois é importante sempre pensarmos
em valorizar aqueles grupos que são alvo de preconceito ou discriminação na sociedade, o
que será bastante trabalhado nos princípios da aprendizagem dialógica.
Assumimos aqui o mesmo compromisso de Freire de contemplar as mulheres na
escrita, uma vez que a gramática da língua portuguesa é machista o suficiente para causar a
marginalização. Portanto buscamos, assim como o autor, a transformação, valorizando as
mulheres na escrita e em todos os âmbitos da sociedade. Além disso, proponho-me a usar a
palavra ser humano pensando na construção do pensamento de Freire, que em suas
primeiras obras utilizava o termo homem para se referir aos seres humanos , e que mais
tarde adotou de maneira absoluta os termos seres humanos para ser coerente com uma
nova concepção que formulou a respeito do uso das palavras, procurando refletir evoluções
e tendências da realidade social de sua época.
Tendo me inspirado principalmente em Paulo Freire neste trabalho, no segundo
capítulo explicamos o seu conceito de educação e visão de mundo.
7
Utilizarei neste trabalho a primeira pessoa do plural tomando sempre como referência a equipe que o desenvolveu:
orientador, professor Amadeu Logarezzi, co-orientadora, Vanessa Girotto, e autora, Juliana Aparecida Moretti.
No terceiro capítulo trabalhamos com o conceito de dialogicidade.
No quarto capítulo, definimos os sete princípios da aprendizagem dialógica do
CREA/Barcelona, partindo da compreensão que tive das leituras feitas para este trabalho,
principalmente com a obra Compartiendo palabras.
No quinto capítulo nos dedicamos a responder a questão de pesquisa. Nesse,
constatamos que o diálogo comparece nos demais princípios da aprendizagem dialógica
como meio, potencializando-os.
E, por último, traçamos as considerações finais, ressaltando a experiência
vivenciada por mim ao ler, refletir e escrever esse trabalho de conclusão de curso, pautado
num referencial dialógico que procurei não apenas estudar, mas também trazer para meu
próprio mundo da vida. Além disso, fizemos algumas conjecturas que poderão servir de
tema para futuros trabalhos.
1. A vida de Paulo Freire
Nascido em 19 de setembro de 1921, na cidade de Recife/PE-Brasil, Paulo Reglus
Neves Freire foi um ilustre educador brasileiro que contribuiu com seus escritos e suas
ações para uma educação mais humanizadora do ser humano, pautada na coerência entre
teoria e prática. Suas ações e reflexões foram baseadas não simplesmente em idéias, mas
sim em existências, ou seja, o autor em suas obras sempre considera as experiências que
viveu e, além disso, valoriza muito cada experiência a ele relatada. É devido a este
comprometimento com a valorização das experiências vividas por Freire no mundo que se
pode considerá-lo um pensador comprometido com a vida.
Tendo vivenciado muitos momentos históricos no nosso país, como a ditadura
militar, em que a pobreza se instalava, a indignação do autor o levou a se preocupar com os
oprimidos e em ajudar a construir seu método de ensino particular. Desta forma, pensou um
método pautado no diálogo, em que a educação era voltada contra a opressão, portanto para
a prática da liberdade.
Mesmo sendo formado em Direito, Freire preferiu trabalhar como professor em
uma escola de segundo grau, ensinando a língua portuguesa. Dotado de visão crítica sobre
os assuntos voltados para a prática da liberdade, Paulo Freire apresentava uma preocupação
com a formação consciente do povo. Por isso dirigiu seu trabalho para a alfabetização de
adultos, visto que era necessário que todas as pessoas soubessem ler e escrever para terem o
direito de participar das eleições de dirigentes do país.
Por conta de suas experiências com Educação, no ano de 1946 o autor
foi
indicado diretor do Departamento de Educação e Cultura do Serviço Social no Estado de
Pernambuco. Mais tarde, em 1961 ele foi indicado diretor do Departamento de Extensões
Culturais da Universidade de Recife.
No prefácio de Educação como Prática da Liberdade, primeira obra de Freire,
Weffort (2006) conta que, em 1962, o Movimento de Cultura Popular (MCP) foi o que
recebeu maior destaque. Segundo Weffort Paulo Freire em Angicos, Rio Grande do Norte
(RN) alfabetiza 300 trabalhadores alfabetizados em cerca de 45 dias (FREIRE, 2006,
p.19).
Interessado na eficiência deste método, em 1963 o ministro da educação Paulo de
Tarso nomeia Freire presidente da Comissão de Cultura Popular do Ministério da Educação
e Cultura (MEC). Uma vez que o governo tinha interesses diferentes dos de Freire, o MCP
de Paulo Freire teve sentido ambíguo, pois tinha a intenção de alfabetizar e conscientizar o
povo por um lado, enquanto que, por parte do governo direitista e da elite dominante, o
objetivo era alfabetizar para contar com mais um voto facilmente manipulável.
Impressionados com o resultado do método de alfabetização, o governo federal
passou a ampliar o programa para todo o território nacional e, em 1964, criaram-se cursos
preparatórios para coordenadores alfabetizadores em quase todas as capitais do país. Estes
cursos previam a instalação de 20.000 círculos de alfabetização que já estavam capacitados
para alfabetizar por volta de 2 milhões de pessoas, 30 por círculo, com duração de 3 meses
cada curso.
De acordo com o prefácio de Weffort, a pedagogia de Freire se preocupava em
criar um clima de diálogo entre os educadores e educandos, além de sua educação estar
voltada para a decisão, para a responsabilidade social e política (FREIRE, 2006, p.20).
Freire visava à autonomia de mulheres e homens na tomada de decisões e
responsabilidade social e política. Seus círculos de cultura alfabetizavam a partir de temas e
palavras geradores, extraídos da própria realidade em que a/o alfabetizanda/o vivia,
levando-a/o a questionar a estrutura social em que se inseria.
Antes mesmo que Freire pudesse concretizar seu plano de alfabetização, veio
novamente a repressão pelo Golpe Militar de 1964, pois o populismo no Brasil, além de ter
uma forma ambígua, mantinha também descomprometimento com a política capitalista.
Portanto, os militares, que consideravam os governos populares os responsáveis pelo
fracasso econômico, apelaram para as velhas formas fascistas de repressão, pondo fim aos
ricos movimentos de educação popular, surpreendendo os educadores e silenciando o
debate educacional.
Neste contexto, Freire foi acusado de estar traindo sua pátria, e permaneceu preso
por 70 dias. Depois ficou exilado na Bolívia e trabalhou no Chile por cinco anos, para o
Movimento de Reforma Agrária da Democracia Cristã e para a Organização de Agricultura
e Alimentos da Organização das Nações Unidas. Em 1967, publicou seu primeiro livro:
Educação como Prática da Liberdade.
O livro foi bem aceito pela sociedade, e Paulo Freire foi convidado em 1969 para
trabalhar na Universidade Harvard. No ano anterior, ele publicou Pedagogia do Oprimido,
escrito durante seu exílio. A obra foi publicada em várias línguas, dentre elas espanhol,
inglês e até hebraico. O Brasil estava passando por repressões na época da ditadura militar,
e este livro só foi publicado no país depois de 1974, quando o General Geisel tomou o
controle do Brasil e iniciou um processo de liberalização cultural.
Segundo Fiori, a
Pedagogia do Oprimido
postula, necessariamente uma
pedagogia do oprimido . Não pedagogia para ele, mas dele (FREIRE, 2003, p. 9) porque
busca desenvolver nos oprimidos a conscientização de sua realidade. De acordo com Fiori
(2003), Paulo Freire:
Não inventou o homem; apenas pensa e pratica um método pedagógico
que procura dar ao homem oportunidade de re-descobrir-se através da
retomada reflexiva do próprio processo em que vai ele se descobrindo,
manifestando e configurando método de conscientização (FIORI, 2003,
p.15).
Tendo vivido este momento, depois de um ano o autor se muda de Cambridge para
Geneva, Suíça, para trabalhar para o Conselho Mundial de Igrejas. Tornou-se consultor
educacional, atuando em colônias portuguesas na África, Guiné Bissau e Moçambique.
Paulo Freire voltou para o Brasil em 1980 e se afiliou ao Partido dos
Trabalhadores, na cidade de São Paulo. Atuou como supervisor no programa do partido
para alfabetização de adultos de 1980 até 1986, e foi indicado Secretário de Educação para
São Paulo, quando o Partido Trabalhista (PT) foi bem sucedido nas eleições municipais de
1988, na administração de Luiza Erundina.
Freire foi casado com Elza, sua primeira esposa que faleceu em 1986. Depois de
alguns anos, casou-se com Ana Maria Araújo Freire, conhecida como Nita Freire, que
continua seu trabalho até hoje, organizando e editando escritos deixados pelo autor.
Em 1991, foi fundado o Instituto Paulo Freire em São Paulo
SP, que nasceu para
elaborar as teorias do autor sobre educação popular. É neste instituto que estão os escritos e
arquivos sobre o autor. Freire foi autor de muitas obras como: Educação como Prática da
Liberdade, Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperança,
Pedagogia da Tolerância, Pedagogia da Indignação e muitas outras obras também escritas
com outras pessoas.
Paulo Freire faleceu no dia 2 de maio de 1997 de um ataque cardíaco, devido a
complicações por uma cirurgia de desobstrução de artérias, no Hospital Albert Einstein, em
São Paulo
SP. Foi um grande homem, um ilustre educador, que procurou pensar o ser
humano e sua realidade, sempre os sensibilizando e os conscientizando de forma crítica
sobre o mundo em que vivem.
2. Educação na perspectiva de Paulo Freire
Paulo Freire foi um grande teórico que procurou sempre buscar coerência entre
teoria e prática. Ele se aprofunda no conceito da dialogicidade, mostrando que sua
concepção de educação está voltada sempre para a liberdade das mulheres e dos homens.
Liberdade de poder compreender o mundo em que estão inseridas/os, de atuar nele e de ter
consciência crítica do que lhes acontece. Sendo assim, é muito importante que cada
uma/um de nós possamos entender e raciocinar sobre a nossa posição política, sobre a
escolha da nossa profissão, sobre nosso trabalho, sobre o nosso modo de pensar e enxergar
o mundo.
Já dizia Heller (1994, citada por ROSSLER 2004), esta uma outra com quem tive
contato durante minha graduação, que somos alienados sobre o mundo em que vivemos, e
para sairmos desta condição de alienação precisamos ter consciência de duas esferas que
compõem a nossa vida: a cotidiana e a não cotidiana.
A primeira, esfera da vida cotidiana, é composta pelo conjunto das atividades
voltadas para a reprodução da existência do indivíduo. A segunda, esfera da vida não
cotidiana, está relacionada a assuntos mais complexos em nossas vidas como, por exemplo:
a arte, as ciências, a filosofia. Ambas as esferas mostram ligações com a teoria freireana,
pois é através da consciência delas que o indivíduo pode-se tornar mais humano e optar por
ser mais, ou menos, dialógico. Desta forma, tendo tal consciência, ele será capaz de
reconhecer o que está acontecendo ao seu redor e com outras pessoas, podendo assim
decidir o que lhe é melhor, buscando superar sua condição de oprimido ou de opressor.
Aprofundando um pouco mais na esfera da vida cotidiana, também conhecida por
objetivação genérica em si, podemos dizer que é nesta que se inicia a formação do
indivíduo, desde seu nascimento e sua inserção no universo cultural, se estendendo durante
toda a vida. Segundo Heller (1994, citada por ROSSLER 2004), é na esfera cotidiana que
o indivíduo apropria-se da linguagem, dos objetos e instrumentos culturais, bem como dos
usos e costumes de sua sociedade (ROSSLER, 2004, p. 79).
Na concepção de Heller, na vida cotidiana a presença de qualquer forma de
pensamento ou sentimento de ação, como a espontaneidade (ato espontâneo, sem reflexão),
o economicismo (lei do menor esforço), a imitação (cópia do que se observa), a entonação
(ambiente emocional que a pessoa cria ao seu redor) e outros, não é em si mesma um
problema. Esta só é problema quando as pessoas se tornam incapazes de romper com tais
estruturas psíquicas, então temos em vista o processo de alienação. Segundo Heller (1994,
citada por ROSSLER 2004):
Quando a estrutura da vida cotidiana se hipertrofia, tornando-se a única
forma de vida do indivíduo; quando uma vida se resume num conjunto de
atividades voltadas essencialmente para a sua reprodução, para a
reprodução de sua particularidade, apresentando, assim, modos, rígidos de
pensar, sentir e agir, isto é, determinando um modo de funcionamento
psíquico (intelectual e afetivo) cristalizado, que não pode ser rompido
mesmo nas situações que o exigem. (Heller, citada por ROSSLER, 2004,
p. 110).
A esfera não cotidiana, também conhecida como objetivações genéricas para si,
tem seu princípio histórico na esfera cotidiana, e sua existência é um estágio de
desenvolvimento da sociedade. Esta se constitui a partir das objetivações humanas
superiores, ou seja, mais complexas.
Nela, os indivíduos desenvolvem atividades voltadas para a reprodução da
sociedade que são determinadas por motivações genéricas. As objetivações genéricas para
si que compõem esta esfera da vida social indicam: o grau máximo do desenvolvimento
alcançado pela humanidade, num momento histórico, ou seja, apontam para o que há de
mais desenvolvido numa dada sociedade, em termos de suas produções socioculturais
(Heller 1994, citada por ROSSLER 2004, p.103).
Analisando a exposição da esfera da vida cotidiana e não cotidiana, podemos
observar que é na esfera cotidiana que acontece o processo alienante.
A alienação quebra a relação que há entre o significado e o sentido que está
relacionado a tudo aquilo que nos separa de algo na vida, do acesso ao conhecimento,
informações e outros. Desta maneira, a alienação da estrutura material da sociedade deixa
cada vez mais pobre a estrutura do psiquismo humano, à medida que as condições materiais
de vida, típica de uma sociedade marcada por relações sociais de dominação, passam a
impedir a relação do indivíduo com as esferas não cotidianas da existência humana.
Paulo Freire constrói sua concepção de educação pautada em muitas leituras do
mundo. Desta forma, é possível fazer uma associação na construção deste pensamento
sobre a esfera cotidiana e a não cotidiana encontrada na teoria de Heller e de Paulo Freire.
Este último diz que tanto opressor como oprimido desenvolvem o papel de ser
menos. Para Freire, ser menos é ser oprimido ou oprimir outras pessoas. Ou seja, o ser
menos está relacionado ao uso da inteligência que o ser humano faz quando toma
consciência da realidade em que está inserido.
De nada adianta uma pessoa possuir sua inteligência e utilizá-la para se beneficiar
de outros, porque ao desenvolver seu papel de opressor não está deixando de ser menos. Ou
ainda, também não há evolução intelectual e humana se as pessoas não buscam a
consciência do seu mundo para se libertar da condição de oprimidas.
Sendo assim, por mais que o opressor consiga manipular os oprimidos, estes, ao
se conscientizarem de que são hospedeiros daquele, podem contribuir para o partejamento
de sua pedagogia libertadora, muitas vezes se revoltando contra aquele que o fez menos.
Pode ainda o oprimido, em vez de se libertar, se tornar opressor, ou ainda subopressor. Isto porque este é seu momento de contradição. O ideal para ele neste momento é
ser humano e se tornar livre, mas se tornar homem da forma contraditória é se tornar
opressor. Freire dá um exemplo muito interessante em sua obra Pedagogia do Oprimido, e
conta que quando os oprimidos querem a reforma agrária, a querem sim para passar a ter
terra, mas, podem passar a mandar em outras pessoas, oprimindo-as, caso não tenham a
consciência.
Portanto, o oprimido não deixa de ser oprimido nestas circunstâncias, pois mesmo
quando tenta lutar para sair da condição de ser menos cai nela própria, tornando-se um
novo opressor.
Freire cita:
Raros são os camponeses que, ao serem promovidos a capatazes, não se
tornam mais duros opressores de seus antigos companheiros do que o
patrão mesmo. Poder-se-á dizer e com razão que isso se dá ao fato de
que a situação concreta, vigente, de opressão, não foi transformada. E que,
nesta hipótese, o capataz, para assegurar seu posto, tem de encarnar, com
mais dureza ainda, a dureza do patrão. Tal afirmação não nega a nossa a
de que nestas circunstâncias, os oprimidos têm no opressor o seu
testemunho de homem (FREIRE, 2003, p. 33).
Com isso, notamos que os oprimidos têm medo da liberdade e os opressores medo
de perder a liberdade de oprimir. Ou seja, comparando com a teoria de Heller podemos
observar que as mulheres e os homens podem tomar consciência de suas esferas cotidiana e
não cotidiana da vida, mas cabe a cada um deles querer se libertar, superar sua condição de
oprimidos ou de opressores. Entretanto, muitas pessoas não têm esta consciência devido ao
meio em que estão inseridas, ou seja, muitas vezes pela falta de oportunidade de superar
esta condição, e outras ainda pela questão das barreiras, ou sejam situações de obstáculos
em que estão inseridas.
Pensando nisso, podemos dizer que Freire desenvolveu um método de
alfabetização que pode tirar muitas pessoas de sua condição de desconhecedoras de sua
realidade. Isto porque não se preocupou apenas em alfabetizar, mas também em
conscientizar as pessoas sobre suas condições de vida.
Em sua obra Educação como Prática da Liberdade, Freire detalha mais sobre este
método de alfabetização voltado para a libertação dos oprimidos e dos opressores, e explica
que por muito tempo foi utilizado no Brasil um método de educação oposto ao da liberdade
das pessoas, que é o método bancário da educação. Este método alfabetizava e alienava
as/os alunas/os de forma que não pudessem compreender a realidade em que estavam
inseridas/os, não sendo estes capazes de raciocinar sobre o seu mundo.
Na educação bancária, a/o professora/o despeja nas/os alunas/os todos os
conteúdos a serem ensinados, e desta forma suas/seus alunas/os não podem construir
juntamente com sua/seu educadora/educador o conhecimento, porque a/o professora/or
acredita ser detentora/or de todo o conhecimento. Além disso, nesta concepção está posta a
relação oprimido-opressor, visto que os oprimidos são estudantes que não podem
questionar o conhecimento, e o opressor a/o professora/o que molda a educação da forma
que lhe é conveniente.
Esta educação é vista, nas palavras do autor, como algo estático, parado, em que a/o
professora/or é a/o grande depositária/o de conteúdos desconexos da realidade das/os
suas/seus educandas/os. Nela, Freire conta que a/o educadora/or aparece como indiscutível
agente, como o seu real sujeito, cuja tarefa indeclinável é
encher
os educandos de
conteúdos de sua narração (FREIRE, 2003, p.37). Aqui a/o educadora/or não comunica a
suas/seus educandas/os, só faz comunicados sobre o que quer e como quer.
Por ser esta educação manipuladora, podemos chamá-la de bancária, pois as/os
educandas/os vão-se tornando depósitos de informações que suas/seus educadoras/res
transmitem e aquelas/es guardam e arquivam através da repetição. Em sua obra Pedagogia da
Autonomia Freire cita:
A memorização mecânica do perfil do objeto não é aprendizado
verdadeiro do objeto ou do conteúdo. Nesse caso, o aprendiz funciona
muito mais como paciente da transferência do objeto ou do conteúdo do
que como sujeito crítico, epistemologicamente curioso, que constrói o
conhecimento do objeto ou participa de sua construção. É precisamente
por causa desta habilidade de apreender a subjetividade do objeto que nos
é possível reconstruir um mau aprendizado, em que o aprendiz foi puro
paciente da transferência do conhecimento feita pelo educador (FREIRE,
2004, p.69).
A educação bancária é composta de memorização, ou seja, a/o aluna/o apenas
decora o conteúdo através da repetição. Além disso, é considerada por Freire como
antidialógica porque, ao considerar a/o professora/or a/o única/o detentora/or de todo o
conhecimento, as/os educandas/os não têm o direito de manifestar suas opiniões sobre
diferentes conceitos. Ou seja, não há questionamento, não há diálogo.
Diante desta concepção tradicional da educação, Freire propõe uma educação
libertadora, problematizadora, que responda à essência do ser da consciência, necessária
para a superação da contradição educador-educando, ao ponto que ambos fiquem
simultaneamente educadores e educandos. Assim, propõe uma educação pautada no
diálogo, e considera que todas as pessoas têm conhecimentos e que podemos aprender
juntas/os, ouvindo um ao outro de forma respeitosa.
Freire se preocupa com uma educação na qual os oprimidos desenvolvam sua
consciência crítica e que sejam transformadores de si próprios e do mundo em que estão
inseridos, e que os opressores deixem suas condições de ser menos, tomando consciência
de que não devem oprimir. Sendo assim, é importante que ambos sejam seres de
transformação de sua realidade, e não seres de adaptação a ela.
Entretanto, por mais que a idéia do opressor seja transformar a mentalidade dos
oprimidos e não a situação que os oprime, tornando-os seres da acomodação, de acordo
com Freire é preciso que os oprimidos deixem a condição de ser seres fora de para
assumirem a posição de seres dentro de
(FREIRE, 2003, p.61).
É por este e por outros motivos que Freire pensa uma educação em que os
oprimidos possam tomar consciência de suas realidades e superá-las, e que os opressores
tomem consciência do que fazem e procurem transformar sua realidade, deixando de
oprimir.
Segundo Freire (2003) para se alcançar a libertação das mulheres e dos homens
não se deve aliená-las/os. É preciso que haja a práxis verdadeira, que implica ação e
reflexão, para transformar o mundo; ou seja, as pessoas devem ter consciência do mundo
em que estão. Para isso, é importante criar um clima de dialogicidade entre educador e
educando, para que, sendo sujeitos do processo, ambos tenham que desenvolver uma forma
autêntica de pensar e atuar no mundo. Conforme o autor, precisam pensar-se a si mesmos
e ao mundo, simultaneamente, sem dicotomizar este pensar da ação (FREIRE, 2003, p.72).
É imprescindível explicar como o autor pensa a educação, a relação opressoroprimido, e como o diálogo está posto em cada um destes conceitos para definirmos a
dialogicidade, conceito central deste trabalho. Vale lembrar que Paulo Freire foi um
pensador que criou a teoria dialógica mas, anteriormente a ela, pensou com amor, fé e
esperança em proporcionar um ambiente mais igualitário para a vida de todos os seres
humanos que sofrem com suas condições de ser menos.
3. A dialogicidade em Freire
Neste capítulo, o conceito de dialogicidade será explicado a partir da análise de
Pedagogia do Oprimido. Apesar de esta ter sido a principal obra dentre as selecionadas
neste trabalho, para a discussão do conceito de dialogicidade, utilizo-me também da obra
Educação como Prática da Liberdade para compor minhas reflexões.
Para a criação de um clima dialógico é preciso um componente especial do
diálogo, que é a palavra. O autor comenta que a palavra verdadeira, práxis, é composta de
ação e reflexão. Sem esta mistura, o diálogo se torna meramente palavras jogadas ao vento,
ou seja, falar por falar, ou então, se for inautêntica, oca e esgotada de sua dimensão de
ação, sacrificada automaticamente, a reflexão se transforma em blá, blá, blá. Além disso, a
palavra pode se tornar ativismo, ação pela ação, se minimizada a sua reflexão.
Neste sentido, é importante que todos nós saibamos que sendo o diálogo um
conjunto de palavras verdadeiras em que deve haver a união da ação com a reflexão, as
pessoas não são capazes de fazê-lo sozinhas, pois para que seja estabelecido é necessário
que outras pessoas se encontrem e o pronunciem juntas.
Segundo Freire (2003), não existe diálogo se não houver um profundo amor ao
mundo e aos homens (p. 80). Sendo assim, o diálogo deve ser ato de coragem, além de ser
também compromisso às mulheres e aos homens.
Para que haja um clima dialógico, de acordo com Freire, é preciso que haja ainda,
além da ação e da reflexão, a fé, o amor, a humildade e a esperança intensa nos homens.
Isto porque com a fé é possível se instaurar um clima de confiança entre todas as
pessoas antes de se encontrarem e pronunciar a palavra verdadeira. Sendo assim, esta
confiança vai fazendo as cada vez mais companheiras e dialógicas no mundo. Já o amor é
imprescindível para o clima dialógico, pois sem ele não se conquistam os sonhos. Se não há
um clima de amor o diálogo se perde no percurso e, portanto, deixa de ser verdadeiro. Além
disso, se não houver a humildade o diálogo não existe, pois se as pessoas não vê em si a sua
ignorância, mas só a do outro, se se pensa dono do saber e da verdade não é capaz de criar
um clima dialógico.
Por último, é importante destacar que a esperança está na própria imperfeição das
pessoas, e estas fazem com que vivam sempre na eterna busca. Busca de se melhorar, de
aprender, de querer ser. Portanto, sendo o diálogo um encontro das pessoas para ser mais é
preciso que este seja feito sempre com esperança. De acordo com Freire (2003), a
esperança não é um cruzar de braços e esperar, mas sim um mover-se na esperança
enquanto luta, e se luta com esperança então pode esperar.
Portanto, para haver a comunicação entre as pessoas é preciso que haja a fé, o
amor, a humildade e a esperança, a fim de estabelecer o diálogo verdadeiro através de um
pensar verdadeiro e crítico.
Preocupado em despertar a consciência de todas/todos para o mundo em que estão
inseridas/os e para a busca de sua liberdade, criou um método pautado na dialogicidade em
que pode aplicar todo o seu pensamento para tirá-las da condição de oprimidas.
Como parte deste método, Freire e as/os educandas/os investigavam, por meio de
entrevista e por meio de visitas ao cotidiano das/os educandas/os, a realidade de cada
participante, criando assim os temas geradores. Estes se dão pelo universo temático do
povo ou do conjunto de seus temas geradores e se define como sendo o universo mínimo
temático de cada educanda/o. Portanto, se fundamenta no universo temático do povo, ou
seja, pesquisa-se o universo de palavras das/os educandas/os para através destas, ensinálas/os, conscientizá-las/os.
Foi com este novo método que Freire foi capaz de alfabetizar em Angicos, Rio
Grande do Norte (RN), 300 pessoas em cerca de 45 dias. De acordo com o prefácio de
Weffort na obra Educação como Pratica da Liberdade, a pedagogia de Freire (2006) é
pautada na liberdade que só pode ter sentido se a prática educativa for alcançada pela
participação crítica e livre das/os educandas/os. Este é um dos princípios essenciais para a
estruturação dos Círculos de Cultura, peça fundamental da educação popular , onde Freire
aplica seu método de alfabetização.
Concluímos através da teoria da dialogicidade de Freire que com ela as pessoas
podem despertar para a consciência crítica do mundo em que se encontram, saindo de sua
condição de oprimidas, e buscando assim a condição do ser mais, em meio a um processo
de humanização, em atendimento a uma vocação humana universal.
4. Os sete princípios da aprendizagem dialógica
A origem deste conceito se deu no Centro Especial de Investigação em Teorias e
Práticas Superadoras das Desigualdades (CREA), da Universidade de Barcelona/Espanha
que tem por objetivo estudar as transformações sociais e culturais a fim de garantir
educação de qualidade a todas/os. Este grupo tem como base teórica os estudos de Paulo
Freire com a sua dialogicidade e os estudos de Habermas com sua teoria da Ação
Comunicativa.
Sendo assim, participantes deste Centro de Investigação, como Ramon Flecha,
Ligia Puigvert e outros, criaram os sete princípios da aprendizagem dialógica que são:
1º) diálogo igualitário;
2º) inteligência cultural;
3º) transformação;
4º) dimensão instrumental;
5º) criação de sentido;
6º) solidariedade;
7º) igualdade de diferenças.
Freire foi um autor importantíssimo para a formulação destes princípios, inclusive
do diálogo igualitário, porque ele indica ao leitor como lutar por um diálogo em situações
de desigualdade. Particularmente no contexto brasileiro, sua teoria nos ajuda a pensar
coisas importantes sobre nossa realidade latino-americana, base de sua construção teórica.
Neste sentido, definirei cada um destes princípios, baseada em leituras de algumas
obras escritas pelo CREA como, por exemplo, Compartiendo Palabras, Teoria Sociológica
Contemporánea, Comunidades de Aprendizaje em Euskadi e Comunidades de Aprendizaje:
transformar la educación. Dentre elas, enfatizo principalmente o livro Compartiendo
palabras, pois foi ele que ofereceu maior base e aprofundamento teórico para a
compreensão de cada um dos princípios da aprendizagem dialógica.
4.1 O diálogo igualitário
Antes de entrarmos na explicação de diálogo igualitário, nos perguntávamos o
porquê da palavra diálogo vir acompanhada do adjetivo igualitário. Então, refletimos que
este adjetivo mostra um compromisso com o diálogo, caracterizando-o como igualitário, ou
seja, que haja respeito em saber ouvir, que haja direito de todas/os se manifestarem e terem
opiniões distintas. O adjetivo igualitário, com o substantivo diálogo, fortalece a idéia de que
o diálogo deve ser igual. Sendo assim, reforça a idéia da igualdade entre as pessoas, no
sentido de que todas/os devem ter o direito da palavra.
Para se definir o diálogo igualitário, conceito formado pelo CREA/Barcelona,
foram utilizadas grandes teorias como a da Ação Comunicativa de Habermas (sociólogo
europeu) e a dialogicidade de Paulo Freire (educador brasileiro). Estes foram e são peças
fundamentais para pensar a educação pautada no diálogo igualitário.
Tendo em vista a dialogicidade de Freire trabalhada no capítulo anterior, não
podemos deixar de explicar neste, mesmo que rapidamente, como Habermas contribuiu
com o CREA para a criação dos princípios da aprendizagem dialógica, sobretudo do
diálogo igualitário, por ser o assunto principal deste trabalho.
A participação de Habermas para a criação dos sete princípios da aprendizagem
dialógica se deu por sua teoria da Ação Comunicativa, em que os sujeitos capazes de
linguagem e ação estabelecem uma relação interpessoal com meios verbais ou não verbais.
De acordo com Gabassa (2007), esta teoria é
reconhecida mundialmente como a
construção de maior relevância do autor (p. 14), pois o resultado é a proposição mais
explícita já feita da filosofia da comunicação de Habermas e da estrutura dupla do modelo
de sociedade (sistema e mundo da vida) que ela aplica (p. 14).
A teoria de Habermas está pautada na validez dos argumentos e no consenso. Ou
seja, é mais importante que haja o diálogo e boas argumentações para se alcançar um
objetivo do que alcançar um resultado pela posição de poder. Um exemplo de Ação
Comunicativa, encontrada em Flecha (2001) é um casal de namorados decidir junto sua
programação do final de semana pensando que o importante na relação é fazerem algo
juntos e interessante para os dois. Neste caso, o importante é que estejam felizes e bem
juntos, sem que apenas um decida o que deverá ser feito. Segundo este autor, o conceito
central da Ação Comunicativa é que se não houver um consenso e a manifestação de todos
e todas sobre determinado assunto, não deve existir então uma decisão.
A teoria de Habermas contribuiu para a formação do diálogo igualitário. A Ação
Comunicativa permite-nos pensar o diálogo, assim como a dialogicidade nos dá este
suporte. Conforme Freire (2003), para o diálogo se estabelecer é preciso que haja ação e
reflexão, ou seja, práxis verdadeira, compromisso com a palavra. Se não for assim, a
palavra acaba por se tornar um ativismo, ação pela ação, ou então a reflexão se torna um
emaranhado de palavras sem sentido e sem reflexão.
Para ilustrar o diálogo igualitário é preciso contar um pouco sobre a experiência
que Flecha (1997) traz na obra Compartiendo Palabras. No livro, o autor apresenta a
atividade de Tertúlia Literária Dialógica, explicitando como cada princípio da
aprendizagem dialógica se dá nas diferentes relações entre as pessoas.
A Tertúlia Literária Dialógica, que é também um projeto do CREA/Espanha e foi
criada para estudar os grandes clássicos da literatura universal, é um espaço de leitura onde
todas as pessoas participantes, com maior ou menor grau de instrução escolar, podem-se
manifestar da mesma forma, pois parte-se do princípio de que todos nós temos
conhecimentos tácitos, adquiridos ao longo da vida, para transmitir.
Conforme Flecha (1997), a Tertúlia Literária Dialógica é uma atividade de reunião
semanal, com duas horas de duração. Todas as pessoas participantes decidem juntas/os o
livro e as partes a comentar nos próximos encontros. Todas/os lêem, refletem e conversam
com familiares e amigos durante a semana. Cada pessoa escolhe um fragmento da obra para
ler em voz alta, explicar o trecho escolhido e relacioná-lo com os assuntos do dia-a-dia. O
diálogo vai se construindo a partir destas abordagens. Os debates entre diferentes opiniões
se decidem através de argumentos. Se todo o grupo chega a um acordo, este se estabelece
com a interpretação provisória verdadeira, pois pode mudar a qualquer momento em que
um discorda, pois o que vale é o poder do argumento e não o argumento de poder. Se não
se chega a um consenso, cada pessoa ou subgrupo mantém sua própria postura; não existe
neste espaço uma posição certa tomada pela posição de poder. Aqui todas/os têm o mesmo
direito de se manifestar e de ser ouvidos, pois é um espaço onde todas/os aprendem
juntas/os.
Sendo assim Flecha cita:
El coordinado (Goyo) aprende tanto o más que el aluno. Quando está muy
seguro de algo, no puede imponerlo, sino que debe intentar convencer a
lãs demás personas. De esta forma se vê obligado a pensar y repensar lo
que daba por descontado, encuentra más razones para aclarar su
opinión...descubre que estaba parcial o totalmente equivocado (FLECHA,
1997, p.18).
Para que exista este espaço de dialogicidade com o diálogo igualitário, é
necessário dar prioridade de fala aos grupos que historicamente sofrem maior exclusão
social, como os grupos de mulheres, dos negros, das pessoas com menor grau de
escolaridade, dando-lhes a oportunidade de inclusão à manifestação e diminuindo as
barreiras ou imposições geralmente sofridas na sociedade.
Portanto, é evidente que o diálogo igualitário é um meio de comunicação
importante em que as pessoas podem aprender e ensinar, ou seja, que todas/os devemos nos
educar para fazê-lo; não é uma tarefa fácil, mas é necessária para realizar as transformações
sociais que queremos, ou seja, como diria Freire: para tornar o mundo menos feio e difícil
de amar. Além disso, é ele quem dá suporte para pensar os outros princípios da
aprendizagem dialógica.
4.2 Inteligência Cultural
A inteligência cultural, segundo princípio da aprendizagem dialógica que venho
abordar, parte do princípio de que todas as pessoas possuem conhecimentos, sejam tácitos
ou acadêmicos, e que estes conhecimentos podem ser trocados com outras pessoas em
relações mais ou menos formais. Para isso é importante que as pessoas saibam fazer o
diálogo igualitário para não reproduzir ainda mais as relações de poder. Portanto, todas as
pessoas, de qualquer idade e classe social e capazes de linguagem, se desenvolvem através
das interações, ou seja, podem adquirir ainda mais conhecimento através da troca de
experiência adquirida por sua inteligência cultural.
Todos ser humano vive em meio a sua cultura, e através dela aprende muitas
outras coisas, conhece muitas outras culturas e vive muitas outras experiências. A isto
chamamos de inteligência cultural, pois é todo conhecimento de mundo que adquirimos
com o passar dos anos, das nossas vivências. Sendo assim, de acordo com Flecha:
Todas las personas tienen inteligencia cultural; la desigualdad se genera
com sus diferentes desarrollos en torno diverso. Unos hacemos bien
exámenes de mecanica, otros saben arreglar el coche cuando se para en la
carretera. Puede realizarse el tránsito de uno a outro ámbito (Del aula a la
carretera o viceversa) siempre que se den algunas condiciones (FLECHA,
1997, p.21)
Ou seja, o mais importante é que duas pessoas ao interagir tenham a consciência
de que ambos podem aprender e ensinar, independentemente de seu grau de escolaridade.
O conceito de inteligência cultural tem seu marco adequado para superar as teorias
dos déficits, especificamente, referidas à população adulta. Flecha (1997), em sua obra, cita
outros autores que mostraram que estudos quantitativos confirmaram a diminuição da
inteligência depois da juventude. Autores como Wechsler e outros citados por Flecha, que
mediram a relação da inteligência com a idade, concluíram que a inteligência decrescia
conforme a pessoa se tornava adulta, e assim confundiam idade com geração. Ou seja,
esqueceram de considerar que gerações diferentes tiveram oportunidades e aprendizagem
muito desiguais. Além disso, seus testes transversais mediam a inteligência de pessoas
diferentes em um mesmo momento.
Portanto, concepções equivocadas sobre as pessoas adultas foram sendo criadas e
preconceitos formados. Um deles é achar que: las personas adultas que no han completado
la educación obligatóoria em la edad apropriada estas todavía en el período de las
operações concretas (FLECHA, 1997, p. 23). Em outras palavras estas pessoas foram, por
muito tempo, marginalizadas da sociedade, pois se considerava que se não aprendessem
conteúdos conceituais quando crianças não mais seriam capazes de aprender quando
adultas.
Piaget (1964) foi um exemplo claro deste pensamento, pois considera que o
indivíduo passa por quatro estágios no processo de aprendizagem, e trabalha em cada um
deles o desenvolvimento moral, afetivo, social e cognitivo do indivíduo. Além disso, vale
destacar que para Piaget cada estágio é caracterizado pela aparição de estruturas originais,
cuja construção o distingue dos estágios anteriores (PIAGET, 1964, p.13). Ou seja, para
ele o indivíduo só aprende determinado conteúdo se já está na fase correta, caso contrário
ele não é capaz de aprender, pois não adquiriu pré-requisitos para as novas aprendizagens.
O primeiro período de que Piaget (1964) trata é o Sensório-Motor (de 0 a 2
anos). Este estágio vai do nascimento da criança até a aquisição da linguagem, e é marcado
por um desenvolvimento mental. O segundo período, chamado Pré-operatório (que vai
dos 2 aos 7 anos), tem como característica cognitiva importante o surgimento da linguagem
representada verbalmente, tornando possível para a criança reconstituir suas ações passadas
e antecipar suas ações futuras. No terceiro período,
Operatório-Concreto
(7 aos 12
anos), a criança começa a se libertar do seu egocentrismo social e intelectual, adquire a
autonomia e passa a desenvolver o pensamento. E por último o Operatório Formal , que
abrange o período da adolescência, no qual os jovens conseguem, de forma mais clara,
elaborar teorias abstratas .
Em suma, para Piaget (1964) é neste último estágio que se encerra o processo de
aprendizagem nas almas sadias, pois o indivíduo que chega até o final da adolescência
alcança uma evolução de conhecimentos ascendente atingindo um equilíbrio final, e em
seguida regride rumo à velhice.
Flecha (1997) diz que Freire, por exemplo, não desvaloriza aquele que não tem
acesso à educação formal, ao contrário, valoriza muito estas pessoas, pois possuem uma
grande experiência de vida, ou seja, inteligência cultural. Concordando com Freire, acredito
que não ter conhecimento escolar não é sinônimo de falta de cultura e de falta de
inteligência. Os analfabetos têm história, e não é porque não sabem ler a palavra nem
mesmo escrever sua história que não são capazes de transformar a realidade, pois sabem ler
o mundo e contar sua história.
Para Freire (1994) a leitura de mundo precede a leitura da palavra, pois antes da
aquisição do código da leitura e da escrita o ser humano já decodifica os códigos do entorno
de qual faz parte: [...] apreendendo as relações entre os objetos e a razão de ser dos mesmos,
o sujeito cognoscente produz a inteligência dos objetos, dos fatos, do mundo
(FREIRE
1994, p. 225).
No meu relatório de estágio concluí que a convivência pessoal dos mais velhos é
importante para os mais jovens, já que aqueles têm muito para contar a estes sobre suas
experiências de vida, pois conhecem muitas coisas pelas quais os jovens muitas vezes irão
passar, além de reunir valores morais, éticos, políticos, sociais, os quais os jovens só
conhecerão se contados pelos mais experientes.
Concluindo, penso que a inteligência cultural é um conceito importante porque
parte do princípio de que todas as pessoas têm coisas para ensinar e aprender,
independentemente do seu grau de escolaridade.
4.3 Transformação
Este conceito foi inspirado na teoria de Paulo Freire, quando este discute em sua
obra Pedagogia do Oprimido que as pessoas são seres da transformação e nunca de
adaptação (FREIRE, 2003, p. 113). De transformação porque os seres humanos são
capazes de tomar consciência de sua realidade e de mudá-la, ou seja, transformá-la. São
capazes de tomar a transformação para si, a fim de que esta passe a ser parte deles próprios.
Já a adaptação não passa de mera aceitação da realidade, posta tal como foi criada pelas
classes dominantes.
Paulo Freire (ibid) retoma o seu método de alfabetização para jovens e adultos que
traz claramente o conceito de transformação. Pois, através deste método, se espera que as
mulheres e os homens tomem consciência de sua realidade, podendo transformá-la saindo
assim de sua condição de oprimidos.
Ou seja, a transformação aqui é um conceito que serve para mudar algo já imposto
socialmente.
As pessoas que participam da atividade de Tertúlia Literária Dialógica, por
exemplo, através das possibilidades de relações dialógicas que são criadas no grupo,
transformam o sentido de sua vida, passando de situações excludentes a outras de criação
cultural, e o impacto que esta transformação causa com relação a suas famílias, seu trabalho
e as pessoas, é muito grande, pois se passa a questionar respostas antes dadas como prontas
e determinadas.
Laia, participante da Tertúlia Literária Dialógica, foi uma mulher que lutou muito
pela transformação da realidade de muitas mulheres que sofriam preconceitos em casa com
seus maridos machistas. Procurou então se reunir com outras amigas para conseguirem
transformar esta realidade. Segundo Flecha:
El principal objetivo de Laia era que las participantes fueram conscientes
de sua mala situación y de las posibilidades de transformarla. Su
perspectiva estaba em desacuerdo com los movimentos dogmáticos,
inflexibles, que usaban al colectivo como instrumento de cambio com la
promesa de mejorar las condiciones de toda la gente oprimida. Como
feminista radical, sabia que estas propuestas totalizantes mantenían la
desigualdad de las mujeres.(FLECHA, 1997, p. 88)
Entretanto, é importante destacar que a transformação só deve ocorrer quando
todas as pessoas de um grupo estão efetivamente sujeitas a mudanças. Concluindo, para
Flecha (1997), a transformação deve ocorrer através do diálogo, sem que se imponham
idéias às demais pessoas e coletivos.
4.4. Dimensão instrumental
A dimensão instrumental está presente na aprendizagem dialógica, pois é
importante que se aprenda tudo o que parece necessário para viver de forma mais igualitária
no mundo. Podemos dizer que a dimensão instrumental é a aprendizagem de conteúdos,
instrumentos fundamentais que constituem a base para ultrapassar as demais aprendizagens.
Ou seja, são pré-requisitos que devem ser bem compreendidos para se poder aprender
outros adiante.
Na dimensão instrumental o processo de ensino e aprendizagem não acontece
como na educação bancária, explicitada por Freire, em que a/o professora/professor
deposita nas/os alunas/os conteúdos descontextualizados da realidade destes. Aqui, para a
dimensão instrumental acontecer, é necessário que o grupo e cada indivíduo dele dialoguem
sobre as experiências que têm sobre o tema escolhido para a discussão. Portanto, todos
trazem contribuições para a aprendizagem, levando em conta suas experiências e
conhecimento sobre o assunto.
Segundo Saso et al. (2002), na obra Comunidades de Aprendizagem:
transformar la educacion , a dimensão instrumental é un componente
esencial del aprendizaje dialógico. Los que proponemos es un contexto
dialógico en el que los aprendizajes instrumentales se consiguen más
eficazmente (p.110)
A dimensão instrumental não é uma pedagogia menos dirigida, descomprometida
com a realidade, que apenas fortalece o espírito crítico deixando em segundo plano a
aprendizagem. Ao contrário, Freire (in Saso) já afirmava que el diálogo implica posibilitar
que todos los niños y niñas puedan aprender los contenidos y estratégias requeridas para um
buen desarrollo em la sociedad (p.110).
Vale destacar ainda que a dimensão instrumental da aprendizagem dialógica se
pauta na intenção de darmos às crianças uma educação de qualidade, para que estas tenham
as mesmas oportunidades que os filhos da elite ou de quem pode pagar por educação de
qualidade. Isto é importante, porque a sociedade da informação na qual estamos vivendo
atualmente exige cada vez mais que os educandos adquiram uma série de aprendizagens
instrumentais para não serem excluídos do mercado de trabalho, da formação permanente e
da participação social como cidadão de plena formação.
Portanto, considerou-se que a leitura e a escrita são um elemento imprescindível
desta dimensão instrumental, pois através delas é possível processar e selecionar
informações além daquelas que são conteúdos escolares obrigatórios.
4.5 Criação de sentido
Este princípio tem relação direta com o sonhar e o sentir. Flecha (1997) defende a
idéia de que todos podem sonhar e sentir, dar sentido a sua e a nossa existência. Ou seja,
todas as pessoas têm que buscar motivação nas coisas que fazem, e devemos gostar do que
fazemos, pois quando não se faz algo com prazer ocorre a perda de sentido.
Segundo Flecha (1997), Juan, participante da tertúlia, neste espaço: convierte la
reflexión propia y la reflexión sobre las reflexiones de los demás em una creación continua
de su passado, presente y futuro (p. 37).
Desta forma, nota-se que ter um ambiente para dialogar com outras pessoas ajuda
a recriar continuamente o sentido global de suas vidas. Para ilustrar utilizamos o exemplo
que Flecha trás na obra Compartiendo palabras:
El paso Del médico y Del maestro a los sistemas sanitários y educativos
ejemplifica el cambio de uma organización personal de la aldeã a uma
ciudad com estructuras burocráticas que tienen un creciente peso em sus
existências. Las conversaciones de la tertulia recuperan la charla
comunitária proyectándo a su presente y futuro en uma sociedad de la
información donde cada vez más necesario el intenso contacto humano
(p.37).
Ou seja, para a criação de sentido existir e permanecer, é importante descobrir o
sentido pelo qual se fazem determinadas tarefas como trabalhar, estudar, comer, enfim, é
descobrir que cada uma das nossas atitudes tem um impacto em nossas vidas e na
sociedade.
Um clima dialógico aqui funciona como um espaço em que as pessoas possam,
juntas, contando suas experiências, dar sentido a seus atos e às coisas que fazem em suas
vidas.
4.6 Solidariedade
Com o advento do capitalismo e com a complexificação da vida em sociedade,
passou-se a exigir cada vez mais que as pessoas obtivessem informações rápidas. Aqueles
que não tinham oportunidade e acesso às informações foram excluídos do mercado de
trabalho e de muitos círculos sociais, sendo selecionados, para determinadas funções,
apenas os mais aptos. Nesta época (década de 1970), segundo Flecha, os ambientes
intelectuais se encheram de inutilidade e passaram a incluir a inconveniencia de hacer
esfuerzos solidários (FLECHA, 1997, p. 38).
Sendo assim, a solidariedade que é definida no Minidicionário da Língua
Portuguesa como
auxílio mútuo; ligação recíproca entre pessoas ou coisas
independentes surge aqui, baseada nos referenciais abordados nesse trabalho, como um
sentimento de ser humano pelo outro, de se fazer tentativa de incluí-lo na vida cotidiana
que o excluiu, trazendo-lhe informações e, mais do que isso, lhe dando o direito e o sentido
da palavra. Aqui a solidariedade tem como fundamento práticas educativas igualitárias.
A Tertúlia Literária Dialógica, citada por Flecha (1997), cria um ambiente de
solidariedade, abrindo espaço para as pessoas excluídas e incluídas - que procuram deixar
de ser o oprimido e o opressor - se comunicarem, expondo suas idéias a respeito dos fatos
que ocorrem ao seu redor. Ou seja, discutem as concepções de poder que muitas vezes
falam mais alto que qualquer outra coisa e acarretam a exclusão de muitas/os, seja com
relação a nível social, econômico ou cultural.
Rosália, coordenadora e participante da tertúlia junto a outras pessoas, lutou e se
esforçou pela melhora das condições de vida de todo mundo. Segundo Flecha (1997):
La tertulia es una actividad del centro de educación de personas adultas,
integrado en las entidades del barrio. Como parte de esa coordinadora, el
grupo participa en las luchas y esfuerzos por la mejora de las condiciones
de vida de todo el mundo. Cuando un sector del profesorado funcionario
quiso imponer autoritariamente um horário que imposibilitaba la
participación de muchas personas, Rosália se sumo a la acción solidária
contra esa dinâmica exclusora y las ideas relativistas y posmodernas que
la legitimaban (p.40)
O mais importante nisso tudo é que, na tertúlia, a solidariedade se estabelece
dando sempre prioridade de participação àqueles que têm menor nível acadêmico, a fim de
propiciar um ambiente em que as oportunidades de participação se equilibrem.
Na sociedade, a solidariedade é um conceito que dificilmente se estabelece pela
falta de compreensão de mundo que ainda temos nos seres humanos.
Há um outro fator, atrelado às relações sociais, que não abre espaço para a
solidariedade ocorrer efetivamente; são as relações de poder. Estas dominam os seres
humanos e, devido à correria da vida cotidiana, muitas vezes não permitem que as pessoas
parem para refletir sobre seus atos, ou seja, para ser solidárias com o próximo.
Um exemplo de relação de poder que nos impede de pensar na solidariedade ao
próximo seria, então, uma discussão entre dois irmãos que podem dirigir o carro; o irmão
mais velho se volta para o mais novo utilizando o argumento: porque ele é mais velho tem
o direito de usar o carro em vez do irmão mais novo. Muitos exemplos de relação de poder
podem ser citados na nossa sociedade, pois grande parte das relações acontece desta forma,
seja na escola, no trânsito, nas relações conjugais, entre outras. Entretanto, o que importa é
que diante destas situações possamos, enquanto seres humanos, tentar o diálogo e
argumentar no sentido da transformação.
Portanto, concluo que é somente com as relações dialógicas baseadas em
solidariedade que se pode alcançar a transformação da sociedade. Veremos mais
profundamente no próximo capitulo o quanto o diálogo igualitário está presente neste e nos
demais princípios da aprendizagem dialógica.
4.7 Igualdade de Diferença
A igualdade de diferença é um conceito que busca valorizar a cultura, raça, etnia,
decisão política, a diferença de cada pessoa de forma respeitosa. A diferença aqui não é
problema, como costumamos ver na sociedade, pois se espera que as pessoas aprendam a
conviver socialmente com diferentes pessoas, conhecendo diferentes modos de vida.
De acordo com Girotto, a verdadeira igualdade inclui:
[...] o mesmo direito de toda pessoa viver de modo diferente, contrariando
a concepção homogeneizadora da igualdade e sua redução à igualdade de
oportunidades considera-se geralmente apenas o fato de que todas as
pessoas têm as mesmas condições de chegar às mesmas posições, sem
levar em conta as desiguais oportunidades e apoios que alguns setores
sociais têm historicamente em detrimento de outros. (GIROTTO, 2006, p.
34-35)
Segundo Flecha (1997), a aprendizagem dialógica se orienta para a igualdade das
diferenças, quando afirma que a verdadeira igualdade inclui o direito a todas pessoas de
viver e ser de forma diferente.
O autor indica que devemos superar alguns muros antidialógicos postos na
sociedade como, por exemplo, os culturais, os sociais e os pessoais. De acordo com Girotto
(2006), os muros culturais desvalorizam a maior parte da sociedade, por considerar que as
pessoas não são capazes de se comunicar por meio dos saberes dominantes. Os muros
sociais excluíram muitos grupos da avaliação e da produção de conhecimentos
considerados importantes, e os muros pessoais impediram que muitas pessoas usufruíssem
a riqueza de seu entorno cultural, uma vez que suas histórias vão gerando auto-exclusão
(GIROTTO, 2006, p.35).
Tomando como base a obra de Flecha (1997), num ambiente dialógico, onde se
estabelece a igualdade de diferença, as pessoas da Tertúlia são diferentes e iguais. O grupo
de pessoas que participavam da Tertúlia, segundo Flecha, criou normas para superar
dificuldades que iam surgindo; por exemplo, dava-se direito da fala primeiramente às
pessoas mais excluídas de todos os âmbitos da sociedade, ou seja, as mulheres, os negros,
os pobres. Portanto, o objetivo da igualdade é o do igual direito das diferenças.
De acordo com Freire, citado por Flecha:
Unidade em la diversidad, nunca se critican las formas limitadas de
igualdad sin defender al mismo tiempo otras más consecuentes, y nunca
se defiende la diversidade sin proponer simultáneamente la equidad de
personas y colectivos diferentes. (FLECHA, 1997, p.42).
Embora a diversidade entre as pessoas venha criando desigualdades educativas,
visto que a diferença gera, de certa forma, desigualdade, espera-se com a perspectiva
dialógica orientada para o exercício do direito uma educação igualitária, dar o direito às
pessoas de serem diferentes e, mais que isso, de se manifestarem sem serem excluídas dos
âmbitos da sociedade. Portanto, deve existir uma consideração de justiça nas nossas
diferenças.
5. O diálogo nos princípios da aprendizagem dialógica
Tendo explicado cada um dos princípios da aprendizagem dialógica no capítulo
acima, neste procuraremos mostrar como o diálogo igualitário está presente nos demais
princípios da aprendizagem dialógica. Para isso relatarei minhas experiências vividas no
estágio acrescidas das leituras que fiz para este trabalho de conclusão. Além disso, tentarei
também levá-lo para outros campos da sociedade, não só a escola e o projeto Comunidades
de Aprendizagem.
Farei a relação do diálogo igualitário com cada um dos outros princípios. Tentarei
identificar estas relações através de exemplos vivenciados por mim na experiência de
estágio. Além disso, tentarei também levá-lo para outros campos da sociedade, não só a
escola e o projeto Comunidades de Aprendizagem.
Como sabemos, o diálogo igualitário é um princípio que permeia todos os outros
porque carrega consigo, para cada situação, a importância de os outros princípios existirem.
5.1 O diálogo igualitário e a inteligência cultural
Vimos neste trabalho que a inteligência cultural é um princípio da aprendizagem
dialógica que considera todas as pessoas capazes de inteligência. Este princípio considera
que todas/os somos capazes de nos desenvolver cognitivamente, não importa se
freqüentamos a escola ou não, pois considera que aprendemos na cultura em que estamos
inseridos e na relação com outras pessoas. Neste sentido, o diálogo igualitário é importante
porque com ele é criado um ambiente em que todas/os possam se comunicar, aprender,
trocar experiências, ampliar os horizontes.
O diálogo igualitário é ainda importante nestes princípios para que não se
reproduzam as relações de poder. Tendo a consciência de que o diálogo deve ser feito com
respeito ao próximo, e mantendo a todos o direito de expressar o próprio ponto de vista
sobre diferentes situações, a inteligência cultural aumenta entre as pessoas, pois estas
ensinam umas às outras aquilo que sabem sobre diferentes assuntos, e aprendem na
interação aquilo que ainda não sabem.
Tomo como exemplo minha experiência de estágio, onde se estabelecia o diálogo
igualitário; em momentos de biblioteca tutorada, um colaborador encontrava um assunto
interessante em um livro e, ao comentar com outras pessoas, estas tinham outras coisas para
lhe dizer sobre o assunto.
Um exemplo claro ocorreu quando uma colaboradora na biblioteca da escola
encontrou um livro sobre animais e foi conversar com outra sobre ele; esta outra
colaboradora, então, se interessou, e logo haviam-se contagiado pelo assunto todas as
crianças presentes. Diante de tamanho interesse, passamos a conversar sobre os animais porco, vaca, cachorro, gato
e cada um pôde relatar o que conhecia sobre o assunto.
Falamos sobre o nascimento e o desenvolvimento dos animais, e caminhamos para os tipos
de comida possíveis de ser feitas com cada um destes.
Diante dos exemplos, podemos dizer que o diálogo igualitário é meio para a
inteligência instrumental acontecer, pois com ele é possível que as pessoas transmitam e
recebam novos conhecimentos juntos.
É importante aqui que as pessoas saibam fazer o diálogo partindo sempre do
princípio de que devam se manifestar aqueles que têm menos chance de pronunciar a
palavra no mundo, para que estas pessoas possam trazer importantes contribuições sobre
diferentes assuntos, e também para se sentirem no direito de poder se pronunciar.
Ou seja, todas as pessoas, de qualquer classe social, idade, etnia, podem se
desenvolver através das interações e da convivência com outras, pois têm inteligência e são
capazes de diálogo.
O diálogo igualitário na inteligência cultural é capaz de trazer novos saberes para
todas as pessoas, partindo do princípio de que cada qual tem conhecimento sobre muitos
assuntos. Além disso, o diálogo na inteligência cultural pode despertar nas pessoas a
curiosidade de querer sempre adquirir novos conhecimentos e, assim, não sabendo a
resposta para todas as suas dúvidas, passam a buscá-la, e cada vez mais tomam consciência
da realidade em que estão, tornando-se mais críticas.
5.2 O diálogo e a transformação
O diálogo é peça fundamental para a transformação, pois é através da palavra
verdadeira, ação e reflexão, conceito já trabalhado aqui, que as pessoas são capazes de
transformar o mundo.
A importância do diálogo na transformação se dá através da oportunidade de as
pessoas argumentarem sobre assuntos que lhes são importantes. E, muitas vezes, é através
destas argumentações que lhes cabe decidir se querem ou não transformar alguma
realidade.
O principal aqui é que não se imponham idéias às pessoas, mas que se as deixem
escolher qual a melhor decisão para suas vidas, através dos argumentos e informações de
que dispõem, que recebem e que buscam. Portanto, para que a transformação ocorra através
do diálogo é necessário que se tenha argumentos coerentes para poder dialogar em
diferentes situações.
Um exemplo hipotético em que o diálogo pode transformar é um jovem decidir
que quer prestar vestibular para ser filósofo e sua família para Engenharia. Neste caso o
jovem tem um problema. E para transformar esta realidade precisa mostrar aos pais, por
meio de argumentos objetivos, que uma opção será melhor do que a outra. Portanto, é
importante unir o máximo de informações sobre a profissão almejada e o maior número de
depoimentos de pessoas com visões diferentes sobre o assunto. Uma vez feito isto, o jovem
terá maior chance de promover a transformação e sair da condição posta inicialmente pelos
familiares, provando para eles a racionalidade da sua escolha.
Um estudante que assim prove aos pais que estudar Filosofia é o mais importante
para ele, se liberta da condição de oprimido, pois ao explicar através de argumentos aquilo
que lhe é importante e tendo a oportunidade de dialogar consegue atingir o resultado que
esperava.
Desta forma, o diálogo é também, aqui na transformação, um meio. Meio porque,
através da criação de um clima dialógico em que todos estejam dispostos a ouvir e falar um
com o outro, é possível transformar a realidade.
Entretanto sabemos que para promover a transformação é preciso haver coerência
entre o que pensamos e o que fazemos com este pensamento.
Portanto, para ocorrer a transformação através do diálogo, é preciso que as pessoas
não seja um ser de adaptação, como disse Freire, mas sim um ser de busca incessante, de
querer conhecer, e de sair da condição alienada do mundo.
5.3
O diálogo e a dimensão instrumental
A dimensão instrumental é um conceito que se preocupa principalmente em
acelerar as aprendizagens de crianças e adultos. Está ligada aos conteúdos que cada um
precisa adquirir no ambiente escolar, para então aprender novos conteúdos. Portanto não
está preocupada apenas em fortalecer o espírito crítico das pessoas, mas também em poder
trazer novos conhecimentos de mundo.
O diálogo igualitário na dimensão instrumental pode funcionar como um meio,
pois se cria um clima em que todos podem dizer coisas que conhecem sobre diferentes
assuntos, a fim de sempre despertar nestas pessoas a vontade de querer aprender aquilo que
ainda desconhecem. Ele é importante porque todos aprendem juntos. Um exemplo claro de
diálogo igualitário na dimensão instrumental são os grupos interativos8.
Na escola
municipal em que estagiei Comunidades de Aprendizagem, tive a oportunidade de ver a
aceleração da aprendizagem das crianças nos grupos interativos.
Nesta experiência, conheci um aluno da quarta série que precisava aprender
conceitos básicos de Matemática e Português. Cheguei a pensar que este não passaria para a
quinta série pois estava muito defasado na aprendizagem; mas, com muita ajuda da
professora, das colaboradoras, dos grupos interativos e das próprias crianças, cheguei a vêlo ensinando um colega de classe o conceito de divisão com dois algarismos na chave. O
aluno, com a colaboração de todos, deu um crescente salto na aprendizagem.
Desta forma, percebi que onde há o diálogo igualitário há sempre uma crescente
aprendizagem instrumental, ou seja, todas as crianças podiam se ajudar nos conteúdos,
explicando o que sabiam e como faziam para resolver uma questão específica. Foi
perceptível quanto elas passaram a gostar mais de aprender e da escola.
Além disso, as/os professoras/res puderam contar com o apoio das
colaboradoras/res da sala para aprender, pois estas sempre se faziam presentes auxiliando
na aprendizagem. Portanto, através desta interação voltada para a aprendizagem, cresce
entre as crianças o conhecimento sobre diferentes conteúdos escolares e também a
capacidade de saber ouvir e falar.
Um outro exemplo foi a situação de dois irmãos aprendendo juntos em momentos
de biblioteca tutorada. A garota mais velha, que já estava na terceira série do ensino
fundamental, ensinava ao irmão mais novo, do primeiro ano, o conceito de multiplicação.
8
O grupo interativo é uma atividade do Projeto Comunidades de Aprendizagem. É uma transformação da aula, que exige
do professor novas atitudes e uma abertura a pessoas que não são da escola dentro da sala de aula, pois sua dinâmica sai
das rotinas que normalmente acontecem no cotidiano escolar, na qual o/a professor/a passa a contar com
colaboradores/as em aula. O colaborador ajuda um grupo de alunos nas atividades propostas pela professora. Depois de
ajudar este grupo ele ajuda outros grupos também formados na sala de aula. Normalmente montam-se 5 grupos com
aproximadamente 5 crianças, e em cada grupo há um colaborador. Cada colaborador disponibiliza uma atividade
diferente sugerida pela professora.
Durante a explicação da irmã, o garoto disse que não precisaria mais fazer a terceira série e
poderia ir direto para a quarta, porque agora ele já sabia fazer conta de multiplicação.
É importante destacar que a dimensão instrumental não se dá apenas no ambiente
escolar. Dá-se em todos os lugares, entre todas as pessoas dispostas a fazer diálogo
igualitário. Neste sentido, pode-se concluir que o diálogo na dimensão instrumental é
essencial para acelerar a aprendizagem.
5.4
O diálogo e a criação de sentido
O diálogo igualitário pode trazer aqui o sentido que orienta os novos caminhos
sociais para se fazer uma vida melhor, e para isso é preciso criar ambientes educativos em
que as pessoas possam falar, e não se calar.
Portanto, é interessante que as pessoas possam se reunir para discutir diferentes
assuntos das suas vidas, pois compartilhar a palavra em grupo dá mais sentido para exercer
o pensamento buscando a racionalidade.
Um exemplo em que a criação de sentido pode ser evidenciada por mim foi um
momento no estágio de docência, nas reuniões que a diretora fazia com todas/os as/os
familiares, funcionárias/funcionários, colaboradaras/colaboradores, professoras/professores
a fim de que estas/estes pudessem sonhar qual escola desejavam para suas filhas/seus
filhos.
Neste sonhar, muitas idéias surgiam, como a de uma escola em que fossem
oferecidas aulas de inglês, de espanhol, de informática para as crianças e para a
comunidade. Assim, quando todas/os sonhavam, estavam dando sentido a sua vida, pois
estavam tomando uma decisão importante, a de assumir o que queriam e como queriam a
realidade de seus filhos, e a sua também.
Além disso, sonhar era apenas a primeira fase desta criação de sentido; as/os
familiares, colaboradoras/colaboradores, professoras/professores, funcionárias/funcionários
e diretora tinham que juntas/os lutar pela realização destes sonhos. Sendo assim, esta luta
trazia sentido à vida de cada pessoa, que passava a descobrir sua importância no espaço
escola e depois em diferentes âmbitos da sociedade, como trabalho, política e outros.
Pode-se, portanto notar que o diálogo igualitário aqui é meio para a criação de
sentido, porque através de um ambiente harmônico e dialógico, em que possam expor suas
idéias, as pessoas podem tomar consciência maior de sua realidade, além de poder aprender
outros sentidos sobre sua vida.
5.5
O diálogo e a solidariedade
O diálogo é um meio para ocorrer a solidariedade e deve ser trabalhado junto dela.
Isso porque, sendo a solidariedade um estado em que várias pessoas se dispõem a estar
juntas e a lutar por objetivos comuns, é importante que esta traga consigo a
responsabilidade. Por exemplo, se uma pessoa quer ser voluntária de um projeto social,
deve assumir a responsabilidade de participar das atividades deste todas as vezes em que se
comprometeu ou avisar com antecedência quando precisa estar ausente.
A solidariedade se define popularmente como a ajuda ao outro por vontade
própria, ou seja, é quando fazemos algo que faz a diferença para uma pessoa que necessita
deste gesto. Porém, é importante enfatizar que este ato solidário deve necessariamente vir
acompanhado da responsabilidade. Desta forma, o diálogo igualitário é um fator muito
importante neste princípio, porque vincula a ação de ser solidário à responsabilidade
através do diálogo.
Em minha experiência de estágio, pude notar que quando as pessoas se
solidarizam de fato umas com as outras assumem também a responsabilidade. Por exemplo,
ao participar dos grupos interativos, em que pela solidariedade se almeja ver as crianças
melhorando na aprendizagem, estas pessoas avisavam com antecedência à professora e às
crianças da sala quando não podiam comparecer. Isto mostra um compromisso contido num
ato solidário que se consolida por meio do diálogo igualitário. A falta do compromisso no
ato solidário, neste caso, quando não era avisada a ausência no grupo interativo, deixava
muitas vezes as crianças frustradas por esperar por alguém que não comparecia.
Por mais que a aprendizagem dialógica diga que as pessoas não devam ser
obrigadas a participar de atividades no Comunidades de Aprendizagem, é importante
destacar que a partir do momento em que assumem um compromisso é necessário ter a
responsabilidade de seguir em frente com ele, senão podem prejudicar alguém com sua
desistência durante o percurso.
A aprendizagem dialógica não obriga ninguém a ser solidário, pois as pessoas têm
o direito de escolher o que consideram interessante para sua vida e o que lhe trará mais
sentido. Portanto, ser solidário aqui é uma questão de opção e de vontade própria. Mas que,
se escolhida, deverá ser seguida com compromisso.
O diálogo neste caso é importante, porque é com ele e com a união das pessoas
trabalhando em busca de um mesmo objetivo que se acaba encontrando maior motivação
para ser solidário. Por exemplo, pensar em trazer para todas as pessoas a consciência crítica
de sua realidade, tirá-las da situação de opressores e de oprimidos e inserir na sociedade
as/os excluídas/os são pontos que só conquistamos com muito diálogo e com muita
solidariedade e amor ao próximo. Ou seja, todos juntos.
5.6
O diálogo e a igualdade de diferença
A igualdade de diferença se define como a verdadeira igualdade, e inclui, ao
mesmo tempo, o direito de todas as pessoas viverem de forma diferente na sociedade.
Desta forma, aqui, ninguém deve ser julgado e criticado na sociedade por ser diferente, e
todas as pessoas devem ser respeitadas da forma que são.
O diálogo igualitário é para a igualdade de diferença um meio, porque dá a
crianças, mulheres, negras/os, índias/os, pessoas de baixa renda, o direito da livre
expressão. Estes grupos de pessoas são colocados em condição desprivilegiada por serem
consideradas diferentes dos padrões opressores da sociedade, que confere maior poder a
grupos de brancos, homens, adultos de alta renda.
Com ele aprendemos a conviver, respeitar o diferente e a falar e ouvir o outro.
___
Tendo em vista as relações que o diálogo igualitário tem com os demais princípios
da aprendizagem dialógica, esboçamos neste trabalho um gráfico a respeito desta relação,
representado na figura 1.
S
Di
ID
S
DI
T
Di
IC
Diálogo igualitário
Solidariedade
ID
Igualdade de diferença
T
Transformação
CS
Criação de sentido
IC
Inteligência cultural
DI
Dimensão instrumental
CS
Figura 1. Diagrama de composição do diálogo igualitário nos demais princípios.
Neste sentido, concluímos que o diálogo comparece nos demais princípios,
potencializando-os como meio para o caminhar em cada um deles, e como referência mais
ampla.
Considerações finais
O trabalho desenvolvido aqui trouxe importantes reflexões e aprendizagem. Pensar
num clima em que se estabelece o diálogo é bastante importante e necessita de nossa
aprendizagem para saber ouvir e para saber falar com o outro.
Estamos em meio a uma sociedade em que se estabelece a relação oprimidoopressor. E, portanto, a mídia, a política e outros meios manipulam informações para
moldá-la da forma que lhes é conveniente. Sendo assim, necessitamos, através da
consciência crítica, compreender nossas esferas da vida cotidiana e não cotidiana para
procurar superar esta relação de opressão, incluindo na sociedade todos aqueles que sofrem
a exclusão. Precisamo-nos tornar seres de ação e reflexão, voltados para o bem e para o
pensar no próximo.
Procurei neste trabalho compreender melhor o conceito de dialogicidade de Paulo
Freire, tendo em vista que o autor se preocupou em criar um método pautado no diálogo
para a sociedade, com que trouxe para as pessoas maior sentido em compreender o mundo à
sua volta. Além disso, busquei entender melhor os sete princípios da aprendizagem
dialógica, levando em conta que a escola em que estagiei era e é uma Comunidade de
Aprendizagem e, portanto, tem seus princípios fundamentados na teoria de Paulo Freire,
principalmente sobre o diálogo.
Nesta escola pude observar a posição do opressor e do oprimido, além de notar nas
relações que vivenciei quanto o diálogo foi importante para a superação destas posições,
pois ele é um meio de comunicação que aproxima as pessoas, desperta-as para sonhos então
adormecidos, além de trazer maior sentido a cada uma destas que sonham. Ou seja, através
do diálogo igualitário foi possível a conquista de muitos sonhos.
De acordo com estas experiências vividas no estágio de docência, pude observar
que os familiares, ao se unirem e se oferecem como colaboradores em atividades na escola,
traziam estímulos positivos as/aos suas/seus filhas/filhos. O impacto era perceptível na
aprendizagem das/dos alunas/alunos, que em poucos dias se mostravam melhores nos
conteúdos instrumentais.
Trabalhando com a diretora da escola pude perceber que ao darmos oportunidade
para as pessoas se pronunciarem e decidirem qual educação esperavam para suas/seus
filhas/filhos, a expectativa das crianças e da família com relação à escola crescia a cada dia.
Por exemplo, por conta da criação do clima dialógico, em que se tentava respeitar os
princípios da aprendizagem dialógica, foi possível que a comunidade de entorno, os agentes
escolares e as crianças sonhassem qual escola queriam para si.
Com o sonho e o sentido a eles permitidos vieram as realizações. As aulas de
inglês, espanhol, informática, reforço dos conteúdos, leitura na biblioteca, tudo isso trouxe
conhecimento porque o clima era dialógico. Com isso notei também que muitas/os
colaboradoras/res da escola que tinham parado sua aprendizagem voltaram a estudar e a
buscar novas informações. Portanto, o impacto que o diálogo igualitário causa na vida das
pessoas é muito positivo, pois desperta em cada um a curiosidade e a vontade de buscar
novos conhecimentos.
Isto é evidente na teoria de Freire, quando este diz que o diálogo se dá sem
imposição pelo conteúdo programático, ou seja, não é visto como um conjunto de
informações a ser depositado nos educandos, - mas a devolução organizada, sistematizada
e acrescentada ao povo daqueles elementos que este lhe entregou de forma desestruturada
(FREIRE, 2003, p. 84). Assim, a educação não acontece de A para B nem de A sobre B,
mas de A com B. Ou seja, entre todas as pessoas. Portanto é preciso que cada um de nós
encontre as próprias motivações para continuar lutando na vida.
Nota-se ainda que criar um ambiente em que o diálogo se estabelece é sinônimo
de conquista, de trabalho, de fé, de solidariedade e de comprometimento com todos e todas,
é sinônimo de aprendizado. É a busca por uma sociedade melhor.
Estudar Paulo Freire trouxe uma visão maior de como ser dialógica e como fazer
para criar um clima harmônico, além de estar em constante contato com a consciência e o
saber. Além disso, o contato que tive com o CREA e suas leituras pode me mostrar que
outras pessoas se preocupam também em querer um mundo melhor.
Além de verificarmos neste trabalho que o diálogo é meio para fazer acontecer
cada um dos demais princípios, por sua vez, estes parecem comparecer no diálogo como
elementos que compõem sua amplitude ou como caminhos que compõem seu território.
Nesse sentido, sugerimos como tema de trabalho futuro estudo que enfoque este aspecto da
complementaridade entre os princípios em questão, o qual pode ser representado pela figura
2.
S
Di
ID
S
ID
T
DI
T
Di
IC
Diálogo igualitário
Solidariedade
Igualdade de diferença
Transformação
CS
Criação de sentido
IC
Inteligência cultural
DI
Dimensão instrumental
CS
Figura 2. Diagrama de composição dos demais princípios no diálogo igualitário.
Por fim, conjecturamos também que os diagramas das figuras 1 e 2, somados,
podem ser representados pelo diagrama da figura 3, o qual, na realidade, representa, apesar
de sua simplicidade geométrica, uma teia de múltiplas relações entre os seus pontos
periféricos (seis demais princípios), sempre pelo caminho do diálogo igualitário.
S
S
ID
DI
T
IC
Solidariedade
ID
Igualdade de diferença
T
Transformação
CS
Criação de sentido
IC
Inteligência cultural
DI
Dimensão instrumental
CS
Figura 3. Diagrama de composição da aprendizagem dialógica, em forma de teia onde o diálogo
igualitário é o nó central de ligação entre os demais princípios (vértices).
Ou seja, cada um dos seis princípios pode-se relacionar com qualquer um entre os
outros cincos por meio do diálogo, ponto central que interliga qualquer par de vértices.
Um exemplo desta teia é a transformação que pode acontecer através do diálogo,
porque é o momento que se tem para argumentar sobre as próprias idéias e ouvir o outro.
Mas, penso que em situações de conflito, se tivermos uma grande variedade de cultura e de
pensar diferente, pode haver uma solução mais rica, gerando-se mais conhecimento para o
grupo. Neste caso a inteligência cultural se encontraria com a transformação (dois vértices
do diagrama), tudo por conta da capacidade de fazer o diálogo igualitário (centro do
diagrama).
Nesse contexto, a unicidade do conjunto de princípios parece advir do diálogo
igualitário, o qual também parece conferir consistência à aprendizagem dialógica.
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