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ÁLISSON JOSÉ MAIA MELO
COORDENADOR
APONTAMENTOS
DIDÁTICOS EM DIREITO
reflexões às margens do Jaguaribe
HOMENAGEM À PRIMEIRA TURMA DE
BACHAREIS DO CURSO DE DIREITO DA
FACULDADE DO VALE DO JAGUARIBE
1ª edição
Fortaleza
2016
ÁLISSON JOSÉ MAIA MELO
APONTAMENTOS
DIDÁTICOS EM DIREITO
reflexões às margens do Jaguaribe
1ª edição
Fortaleza
Álisson José Maia Melo
2016
© 2016 Álisson José Maia Melo
Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde que citada
a fonte.
Apontamentos didáticos em Direito: reflexões às margens do Jaguaribe.
1ª edição.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
M528a
Melo, Álisson José Maia
Apontamentos didáticos em Direito: reflexões às margens do Jaguaribe [recurso eletrônico] / Álisson José Maia Melo – 1. ed. – Fortaleza:
AJMM, 2016.
255 p. ; 21 cm
Inclui bibliografias – Inclui índice.
ISBN 978-85-916769-1-0
1. Direito – Brasil. 2. I. Título.
CDD 340
DADOS TÉCNICOS
Equipe Editorial
Amanda Lima Gomes Pinheiro
Gabriela Pimentel Pessoa
Igor Moura Rodrigues Teixeira
José Evandro Alencar Correia
Natallie Alves de Almeida
Roberta Farias Cyrino
Romana Missiane Diógenes Lima
Thiago Pinho de Andrade
Venusto da Silva Cardoso
Diagramação
Álisson José Maia Melo
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Marcus Mauricius Holanda
APRESENTAÇÃO
Eduardo Neto Moreira de Souza
SOBRE OS AUTORES
CAPÍTULO I
O ENSINO JURÍDICO PARTICIPATIVO: UMA PERSPECTIVA
SOBRE O PROTAGONISMO DO ALUNO DE DIREITO
Igor Moura Rodrigues Teixeira
1 Introdução ....................................................................................... 19
2 Análise sobre o ensino jurídico contemporâneo ............................. 22
3 O modelo central de ensino jurídico e suas características ............. 26
4 O ensino jurídico participativo e o protagonismo do aluno em sala
de aula ................................................................................................ 29
5 Considerações finais ....................................................................... 32
Referências ........................................................................................ 34
CAPÍTULO II
INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA: CONCEITOS AFINS
E APLICABILIDADE PARA O DIREITO
Álisson José Maia Melo
1 Introdução ....................................................................................... 37
2 Interpretação ................................................................................... 38
3 Signo, referência, sentido e significado .......................................... 39
4 Hermenêutica .................................................................................. 40
5 Interpretação do Direito .................................................................. 42
5.1 Sentido e alcance .............................................................................. 44
5.2 Diferenciais da interpretação jurídica ............................................... 45
5.3 Interpretação e figuras afins .............................................................. 48
6 Hermenêutica Jurídica .................................................................... 51
Referências ........................................................................................ 52
CAPÍTULO III
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A SUPOSTA CRISE DA
DEMOCRACIA REPRESENTATIVA
José Evandro Alencar Correia
1 Introdução ....................................................................................... 55
2 A luta pela democracia ................................................................... 56
3 O embate entre Rousseau e Montesquieu ....................................... 59
4 As dificuldades do modelo representativo ..................................... 62
4.1 Conteúdo da representação ............................................................... 62
4.2 Democracia política e democracia social .......................................... 63
4.3 Democracia agregativa e democracia deliberativa ............................ 65
4.4 Autofragilização no desenrolar histórico .......................................... 67
4.5 A apatia legislativa ............................................................................ 70
5 Conclusão ....................................................................................... 71
Referências ........................................................................................ 75
CAPÍTULO IV
O PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO A PARTIR DA
SOBERANIA
José Evandro Alencar Correia
1 Introdução ....................................................................................... 77
2 Alteração na fundamentação filosófica da sociedade ..................... 78
3 Hobbes como o elaborador da soberania e do positivismo jurídico?
........................................................................................................... 83
4 O desenvolvimento do direito baseado na soberania ..................... 90
5 Conclusão ....................................................................................... 97
Referências ........................................................................................ 98
CAPÍTULO V
FORMAÇÃO E CONFORMAÇÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL
José Evandro Alencar Correia
1 Introdução ..................................................................................... 101
2 As bases cosmológica e teleológicas ............................................ 102
3 A ressignificação a partir da soberania ......................................... 104
4 A consolidação teórica com a Guerra dos 30 Anos ...................... 109
5 Conclusão ..................................................................................... 113
Referências ...................................................................................... 114
CAPÍTULO VI
A EXTRAFISCALIDADE PROIBITIVA NA RELAÇÃO ENTRE
INTERVENÇÃO ESTATAL E LIVRE CONCORRÊNCIA
Natallie Alves de Almeida
1 Introdução ..................................................................................... 117
2 A tributação extrafiscal proibitiva como instrumento de intervenção
estatal ............................................................................................... 119
3 O caráter não sancionatório do tributo extrafiscal proibitivo ....... 124
4 O intervencionismo estatal associado à livre concorrência
econômica ........................................................................................ 128
5 Considerações finais ..................................................................... 133
Referências ...................................................................................... 134
CAPÍTULO VII
ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO PERANTE AS NOVAS
MEDIDAS CAUTELARES
Venusto da Silva Cardoso
Amanda Lima Gomes Pinheiro
1 Introdução ..................................................................................... 137
2 Breve histórico das medidas cautelares no Brasil ........................ 140
3 Atuação do Ministério Público no Processo Penal ....................... 141
4 Atuação Ministerial e o poder geral de cautela penal do juiz ....... 157
5 Análise de um caso em concreto .................................................. 160
6 Conclusão ..................................................................................... 164
Referências ...................................................................................... 165
CAPÍTULO VIII
REFLEXÕES ACERCA DA CONTROVERSA UNIFICAÇÃO DO
DIREITO PRIVADO
Thiago Pinho de Andrade
1 Introdução ..................................................................................... 167
2 Desenvolvimento .......................................................................... 168
3 Conclusão ..................................................................................... 175
Referências ...................................................................................... 177
CAPÍTULO IX
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA VERSUS PATERNIDADE
BIOLÓGICA: ANÁLISE DOUTRINÁRIA E
JURISPRUDENCIAL DOS TRIBUNAIS SUPERIORES
Roberta Farias Cyrino
1 Introdução ..................................................................................... 181
2 Breve ensaio da evolução das famílias ......................................... 182
2.1 Função social da família moderna................................................... 185
3 Da filiação e do reconhecimento de filhos ................................... 187
3.1 Evolução legislativa da filiação e o reconhecimento de filhos ....... 187
3.2 Conceito de filiação ........................................................................ 189
3.3 Da posse do estado de filiação ........................................................ 190
3.4 O reconhecimento de uma filiação ................................................. 191
4 O princípio da afetividade como núcleo-base da família
contemporânea ................................................................................. 194
5 A paternidade socioafetiva, uma paternidade verídica ................. 196
5.1 Breves apontamentos da paternidade socioafetiva.......................... 197
5.2 Efeitos patrimoniais da paternidade socioafetiva............................ 199
5.3 Análise jurisprudencial dos Tribunais Superiores .......................... 200
6 Conclusão ..................................................................................... 211
Referências ...................................................................................... 213
CAPÍTULO X
GUARDA DOS FILHOS E O MELHOR INTERESSE DA
CRIANÇA E DO ADOLESCENTE
Romana Missiane Diógenes Lima
1 Introdução ..................................................................................... 217
2 Conceito e evolução jurídica da guarda ........................................ 218
3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente ........... 220
4 Modos de exercício da guarda: aplicação do melhor interesse do
menor ............................................................................................... 221
4.1 Guarda unilateral............................................................................. 222
4.2 Guarda compartilhada ..................................................................... 224
5 Conclusão ..................................................................................... 228
Referências ...................................................................................... 229
CAPÍTULO XI
DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA
Gabriela Pimentel Pessoa
1 Introdução ..................................................................................... 233
2 Da legitimação em geral: CC/02, art. 1.798 ................................. 234
3 Legitimação especial na sucessão testamentária — prole eventual:
CC/02, art. 1.799, inc. I ................................................................... 236
3.1 Administração dos bens da prole eventual: CC/02, art. 1.800, caput e
§ 1º ........................................................................................................ 237
3.2 Regras gerais da curatela: CC/02, art. 1.800, § 2º ........................... 238
3.3 Nascimento da prole eventual: CC/02, art. 1.800, § 3º ................... 240
3.4 Prazo para concepção da prole eventual ......................................... 241
3.5 Situações especiais .......................................................................... 243
4 Legitimação especial na sucessão testamentária — pessoa jurídica:
CC/02, art. 1.799, inc. II .................................................................. 245
5 Legitimação especial na sucessão testamentária — fundação:
CC/02, art. 1.799, inc. III................................................................. 246
6 Impedimentos legais sucessórios: CC/02, art. 1.801 .................... 248
6.1 Efeitos jurídicos de disposições testamentárias: CC/02, art. 1.802 . 250
6.2 Deixa a filho de concubinato: CC/02, art. 1.803 ............................. 251
7 Vocação hereditária de animais e coisas ...................................... 252
8 Considerações finais ..................................................................... 253
Referências ...................................................................................... 254
11
PREFÁCIO
Os desafios do novo século apresentam aos pesquisadores do direito
uma nova perspectiva e valores frente a desafios clássicos. A complexidade dos desafios da pós-modernidade faz com que o estudioso do direito
assuma uma postura de percepção dos fatos de forma ampla, não mais se
admitindo uma visão limitada do que o rodeia.
A produção intelectual deve ser multifacetada, onde o pesquisador
deve estabelecer relações entre os vários ramos do saber, sendo capaz de
realizar uma ligação entre os demais ramos do conhecimento, dando-lhe
profundidade e cientificidade no conhecimento, o direito, agora, é visto
sob a ótica do pluralismo.
Assim a obra Apontamentos Didáticos em Direito: reflexões às margens do Jaguaribe oferece a discussão de novos conceitos, ideias e experiências, recolhendo da sociedade e de seus grupos organizados o material
de seus estudos. Não mais se concebe a ideia estéril de estudo individual
nos quadros universitários. A modernidade, ou pós-modernidade, traz a
exigência de aproximação com o outro. A escuta de suas ideias, experiências e visão do mundo, na expectativa de construção e compreensão de
uma pluralidade social, jurídica e essencialmente plural.
Nessa perspectiva, encontra-se a presente obra coletiva produzida a
partir das reflexões e debates entre professores pesquisadores que nos fazem compreender o ensinamento de Rubens Alves, que “Ensinar é um
exercício de imortalidade”, pois a contribuição à sociedade com suas pesquisas pode gerar debates enriquecedores no desenvolvimento intelectual
de nosso País.
O livro possui claramente três partes.
Na primeira parte, são feitas discussões sobre aspectos gerais do
Direito. Assim percebemos com Igor Teixeira, que apresenta O ensino
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jurídico participativo: uma perspectiva sobre o protagonismo do aluno
de direito, no qual demonstra que o aluno deve estar inserido no processo
de aprendizagem, para que este ocupe um espaço de destaque na sua própria formação e aprenda a refletir sobre as questões que lhe são postas.
E com Álisson Melo, que nos apresenta o capítulo Interpretação e
hermenêutica: conceitos afins e aplicabilidade para o direito, em que
investiga que a temática da Hermenêutica Jurídica, entre outras dificuldades, enfrenta certas confusões conceituais. Mas conclui que a Hermenêutica Jurídica possibilita prever determinadas interpretações por parte
dos juízes e tribunais e, problematizando os diversos aspectos envolvidos
na interpretação, especialmente a realizada pelo Estado, apontar falhas e
propor melhorias nessa atividade.
Na segunda parte, que cuida dos problemas em torno do Direito Público, enquanto José Evandro Correia em um primeiro momento apresenta Breves Considerações sobre a suposta Crise Representativa, nas
quais discute, em especial, uma tensão entre os pensamentos de Montesquieu, defensor da democracia representativa, e Rousseau, filósofo político crítico desse modelo de democracia. Em momento subsequente trata
sobre o Pensamento Jurídico Moderno a partir da soberania procura
identificar a sua historicidade e destacar sua suscetibilidade de mudanças
e as premissas que lhe dão sustentação, fugindo a dogmatismo e interpretações apressadas sobre o direito e sobre a sociedade. E depois arremata
com a apresentação da Formação e Conformação do Direito Internacional, revisitando a transição das bases filosóficas antigas para o contexto
moderno possibilitando compreender a formação e a conformação do Direito Internacional dentro de um panorama histórico.
Natallie Alves de Almeida adentra na temática da Extrafiscalidade
proibitiva na relação entre intervenção estatal e livre concorrência, assim assevera que se for utilizada com prudência cria condições para a
indução de práticas coletivas gerando o desenvolvimento. E, de autoria
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de Amanda Lima Gomes Pinheiro e Venusto da Silva Cardoso, o tema da
Atuação do Ministério Público perante as novas medidas cautelares é
debatido, tendo em vista as profundas transformações, no arcabouço jurídico brasileiro e consequentes reflexos no âmbito social, político e econômico.
A terceira parte da obra apresenta temáticas relacionadas com o Direito Privado. Com efeito, Thiago Andrade expõe suas Reflexões acerca
da controversa unificação do direito privado, buscando para tanto uma
análise da evolução histórica do direito comercial e as regulações que
permearam seu contexto evolutivo impulsiona a reflexão acerca da autonomia de tal ramo a despeito da unificação do direito privado. E apresenta
que o problema a ser averiguado é saber até que ponto é necessário implementar nova codificação em detrimento de um aprimoramento de técnicas de execução e compreensão das legislações já existentes.
Já Roberta Cyrino aborda a Paternidade socioafetiva versus paternidade biológica: análise doutrinária e jurisprudencial dos tribunais
superiores, em que, a partir de uma análise doutrinária e jurisprudencial,
objetivou-se tecer algumas questões controvertidas, em especial quanto
ao patrimônio, que permeiam a paternidade socioafetiva, analisando esta
espécie de paternidade e expondo os seus requisitos e possíveis efeitos, a
fim de encontrar respostas para questões até então silenciadas pelo legislador. Na mesma linha no Direito das Famílias, Romana Lima apresenta
o tema Guarda dos filhos e o melhor interesse da criança e do adolescente, no qual procura demonstrar a importância do estudo da guarda no
Direito Civil brasileiro, tendo em vista a identificação daquela que mais
se adéqua ao bem-estar da criança e do adolescente.
Por fim, e não menos importante, temos a pesquisa de Gabriela Pessoa, que debate acerca Da vocação hereditária, tema de grande curiosidade e interesse geral, gerando sempre muitas dúvidas e debates e principalmente discutir de forma didática os aspectos mais relevantes acerca da
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vocação hereditária trazidos pela doutrina mais atualizada do Direito das
Sucessões.
Assim apresentamos a obra Apontamentos Didáticos em Direito:
Reflexões às margens do Jaguaribe. É uma coletânea em que a pluralidade se encontra na diversidade de temas e abordagens. Constrói-se a
unidade do Direito dessa forma. Unindo ciência e dogmática. Técnica e
especulação. Ser e dever ser.
Essa é a obra que os autores apresentam à comunidade jurídica brasileira.
Marcus Mauricius Holanda
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (Unifor).
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Unifor.
Coordenador do Curso de Direito da Faculdade do Vale do Jaguaribe.
15
APRESENTAÇÃO
Os agrupamentos humanos, por necessidade de sobrevivência, agregam-se preferencialmente às margens dos rios. As águas que correm alimentam e constroem riquezas. No Estado do Ceará, o Jaguaribe, o rio das
onças, nomeia uma região e uma comunidade. Às suas margens e por
causa de suas águas que desembocam nos mares do Fortim e do Aracati
têm se organizado agrupamentos urbanos, pessoas são conectadas pelas
suas veias até o outro rio, o salgado, lá pelas bandas do Icó. Mas além do
alimento necessário à vida biológica, o Jaguaribe alimenta almas, é símbolo de determinação, coragem e instituto de sobrevivência desses povos,
do baixo, alto ou médio Jaguaribe.
O rio agrega, movimenta e é em suas margens, em seu percurso torto
que se constrói uma das bases de educação superior dessa região. A Faculdade que leva o seu nome, Vale do Jaguaribe, indica pertencimento e
evoca uma causa, formar lideranças para fomentar o desenvolvimento
desse lugar. Por esse motivo, a iniciativa dessa instituição em ofertar um
curso de Bacharelado em Direito, considerando que a promoção da dignidade humana e o empoderamento de uma sociedade passam pelo acesso
à justiça, como principal forma de solidificação da democracia.
Como Escola de Direito, a FVJ articula, movimenta, induz, fomenta.
Reconhece-se como instituição capaz de forma colaborativa e articulada
de ser referência no ensino jurídico. Sua comunidade de professores, entusiasmados com essa causa, tem iniciativas como o lançamento de um
livro “Apontamentos didáticos em Direito, reflexões às margens do Jaguaribe”, que, de forma pioneira, em múltiplos temas e abordagens,
aponta questões pertinentes ao campo jurídico do Vale do Jaguaribe. A
esse esforço somam-se as contribuições de nossos alunos também pioneiros, em muito breve os primeiros bacharéis na área jurídica egressos com
a marca da FVJ. A todos eles, nosso reconhecimento e homenagem, mais
16
ainda, a confiança nos conhecimentos que adquiriram nessa instituição e
que tatuaram na alma o compromisso firme com a justiça.
Eduardo Neto Moreira de Souza
Diretor Geral da Faculdade do Vale do Jaguaribe.
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SOBRE OS AUTORES
Álisson José Maia Melo
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará (PPGD/UFC). Professor universitário.
Amanda Lima Gomes Pinheiro
Mestra em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(Unifor). Especialista em Direito Processual pela Universidade Anhanguera (Uniderp). Bacharela em Direito pelo Centro Universitário do
Norte Fluminense (Uniflu). Advogada. Professora e Coordenadora Adjunta da Faculdade do Vale do Jaguaribe (FVJ).
Gabriela Pimentel Pessoa
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGD/UFRGS), Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professora universitária.
Igor Moura Rodrigues Teixeira
Mestre em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Bacharel em direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR).
Professor no Curso de Direito da Faculdade Vale do Jaguaribe (FVJ).
José Evandro Alencar Correia
Mestre em direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Bacharel em Direito pela Faculdade 7 de Setembro (Fa7). Professor da Faculdade Vale do Jaguaribe (FVJ).
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Natallie Alves de Almeida
Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de
Tecnologia de Palmas. Bacharela em Direito pela Universidade de Fortaleza (Unifor). Advogada. Professora do Curso de Direito da Faculdade
Vale do Jaguaribe (FVJ).
Roberta Farias Cyrino
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza –
UNIFOR. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Farias
Brito – FFB. Professora da Faculdade Vale do Jaguaribe. Servidora Pública Federal.
Romana Missiane Diógenes Lima
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora nos cursos de Graduação em Direito da Faculdade Integrada da Grande Fortaleza e da Faculdade do Vale do Jaguaribe. Advogada.
Thiago Pinho de Andrade
Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza
(Unifor). L.L.M em Direito Coporativo, Advogado, Professor de Direito
Empresarial.
Venusto da Silva Cardoso
Mestrando pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Direito Penal pelo Centro Universitário de Ensino Superior
do Amazonas (Ciesa). Especialista em Direito Tributário pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Promotor de Justiça do Estado do
Ceará – 1ª Vara da Comarca de Aracati. Professor da Faculdade do Vale
do Jaguaribe (FVJ).
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CAPÍTULO I
O ENSINO JURÍDICO PARTICIPATIVO: UMA
PERSPECTIVA SOBRE O PROTAGONISMO
DO ALUNO DE DIREITO
Igor Moura Rodrigues Teixeira
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Análise sobre o ensino jurídico contemporâneo; 3. O modelo central de ensino e suas características; 4. O ensino
jurídico participativo e o protagonismo do aluno em sala de aula; 5. Considerações finais.
1 Introdução
O presente trabalho visa fazer uma reflexão sobre a estrutura do
ensino jurídico contemporâneo. O crescimento na quantidade de cursos
de graduação e da consequente oferta de vagas ofertadas é uma realidade
sob a qual a academia deve se ater. Da mesma forma que essa ampliação
promove a democratização no acesso a tais cursos, tendo em vista que
historicamente os cursos de nível superior sempre foram ocupados pelas
elites estabelecidas, como se observa nos cursos tradicionais como direito, medicina e engenharia, nasce uma preocupação com a qualidade
destes novos cursos.
Caso seja tomado como referência exclusiva ― o que não é o
mais adequado, cabe esclarecer ― no exame para ingresso nos quadros
da Ordem Brasileira de Advogados (OAB), verificar-se-á o baixo aproveitamento dos estudantes de direito na faculdade, tendo em vista que a
média de aprovação está em torno dos 19% (dezenove por cento)1. Isso,
por si só, já remete a uma ponderação sobre a estrutura do ensino jurídico.
1
Dados fornecidos na notícia: Crise no ensino jurídico. In: Prova da ordem (blog eletrônico). Disponível em: <http://www.provadaordem.com.br/blog/post/182-aprovacao-
20
Há autores que defendem a ideia de crise funcional na educação
jurídica, pois, em seu formato metodológico, presa-se por um modelo de
ensino tradicionalista. Tal estrutura pode ser resumida por duas características básicas. A primeira se remete ao exacerbado dogmatismo com o
que o conteúdo do direito é transmitido aos alunos, embasado em uma
análise eminentemente teórica dos institutos jurídicos sem acepção prática e diálogo com outros ramos do conhecimento humano. Esta perspectiva do ensino jurídico dificulta o preparo dos alunos no que tange à aplicação crítica e reflexiva do direito na prática cotidiana. Outro fator é o
protagonismo do professor em sala de aula, colocando o aluno em uma
situação secundária no processo de aprendizagem. O professor como
único detentor do conhecimento em sala de aula dita unilateralmente o
método de ensino, o nível do conteúdo e a dinâmica entre o conteúdo
passado e o aprendizado dos alunos, sem levar em consideração, por vezes, características peculiares daquela determinada turma.
As escolas de direito, historicamente, têm formado profissionais
que se aproximam do alto tecnicismo, vinculado ao conservadorismo presente no ensino unidisciplinar, comumente atrelado à pureza da ciência
jurídica, sob uma interpretação prevalecente ― porém em alguma medida
equivocada ― da teoria pura do direito de Hans Kelsen, bem como aos
métodos de ensino difundidos a partir da modernidade. Verifica-se, dessa
forma, que as instituições de ensino jurídico não têm a devida preocupação em proporcionar um ensino amplo e aberto à análise de questões recorrentes ao dia a dia do viver em sociedade, aliando a percepção de vida
e da ciência do direito sob o ponto de vista dos alunos.
no-xiv-exame-da-oab-fica-em-25-12-seria-uma-crise-do-ensino-juridico-no-brasil/>.
Acesso em 30 abr 2016.
21
Hoje, visto, dentre outros prismas, como negócio ou como meio
necessário ao alcance de determinados cargos jurídicos através dos concursos públicos, o curso de direito, por ora, é subjugado a esses objetivos
intermediários de um curso de graduação, a exemplo.
Observa-se, portanto, a necessidade na implementação de uma
educação mais aberta e que esteja vinculado as necessidades do aluno
como ser integrante da sociedade e da cátedra de ensino. O ensino jurídico deve estar atrelado aos anseios de justiça presente na sociedade, com
um olhar amplo aos reais problemas enfrentados pela comunidade. Dessa
forma, o ensino jurídico encontra-se no limiar entre a responsabilidade
direta dos profissionais do direito nas transformações sociais, no que cabe
ao direito como ferramenta, e a estabilização das expectativas sociais, diante dos conflitos postos.
Portanto, com fito de realizar uma reflexão adequada sobre as
deficiências do ensino jurídico, apontadas nos parágrafos anteriores, o
presente trabalho será dividido em três capítulos. No primeiro pretendese fazer uma análise do ensino jurídico contemporâneo, principalmente
no que tange à problemática relacionada ao dogmatismo, à unidisciplinaridade e ao protagonismo do professor em sala de aula, características
ainda presente nos cursos de direito. Em um segundo momento, abordarse-á o modelo central de ensino, fundado na unidisciplinaridade do ensino
jurídico, o que proporciona uma desconexão entre o conteúdo transmitido
aos alunos e a realidade vivenciada. Por fim, no terceiro capitulo será
exposto os elementos que compõem o modelo participativo de ensino, a
fim de estabelecer um método que coloque o aluno de direito em uma
posição de protagonista no processo de aprendizagem.
Tal aspecto se realiza atrelado à perspectiva de uma educação
cidadã, para que a formação do aluno esteja conectada a sua própria realidade factual e a sua percepção de mundo. Observa-se, por conseguinte,
a necessidade de em se criar mecanismos de comunicação entre as fontes
22
tradicionais e o método participativo de ensino, com o fito de proporcionar um ensino dialógico e reflexivo sobre as demandas sociais.
2 Análise sobre o ensino jurídico contemporâneo
A educação jurídica brasileira tem passado por diversas críticas,
seja em relação a estrutura dos cursos de bacharelado em direito, ou pelo
modelo de aula tradicional aplicado nestes cursos. Tais críticas se acentuam após o surgimento de diversos cursos de direito que se deu a partir
de um movimento de ampliação do ensino superior privado, ocorrido nos
últimos 13 anos2. O aumento do número de cursos de direito, entretanto,
não veio acompanhado de uma preocupação mais acentuada com a qualidade teórica e estrutural destes cursos. Da mesma forma, pela manutenção de um modelo tradicional e conservador de ensino que não acompanhou as mudanças ocorridas do sistema jurídico no período pós-guerras
mundiais até os tempos hodiernos.
Deve-se anotar, ainda, que a manutenção deste modelo tradicional de ensino só contribui para uma formação deficitária dos alunos dos
cursos de direito. Assim como existem mudanças constantes na sociedade, o direito tem o papel de estabilizar as expectativas sociais com o
seu aparato normativo. Um curso de formação jurídica dogmático e unidisciplinar, centrado na figura do professor e na falta de comunicação
com outros campos do conhecimento, está fadado a formar profissionais
com leituras limitadas e equivocadas dos fatos sociais e da aplicação do
direito a estes fatos.
Segundo informações coletadas pelo Censo INEP, “O número de Instituições de Ensino Superior (IES) no Brasil esteve em constante ascensão nos últimos 13 anos, com
um crescimento total de 102,6%, sendo 108,2% nas IES privadas e 71% nas públicas.
No entanto, em 2013, o setor da educação de nível superior decresceu cerca de 1% totalizando 2.391 instituições: 2.090 IES privadas e 301 públicas.”. SEMESP. Mapa do
ensino superior no Brasil. Disponível em: <http://convergenciacom.net/pdf/mapa-ensino-superior-brasil-2015.pdf> Acesso em: 30 abr. 2016.
2
23
Para Nathalie Carvalho (2014, p. 2), a má qualidade do ensino
jurídico perpassa
[…] pela massificação do ingresso nas universidades; pelo despreparo dos alunos provenientes de um ensino médio deficitário; pela
desvalorização das respectivas profissões, o que enseja o direcionamento para o sistema universitário não por vocação, mas como
caminho para uma participação qualificada no mercado de trabalho.
Dentre outros fatores significativos a essa problemática conjectural, destacam-se os de âmbito comportamental, no que tange, em um
primeiro momento, ao exacerbado individualismo, característico da sociedade contemporânea; e, em um segundo aspecto, mais específico à metodologia de ensino, ao centralismo do saber na figura do professor. O
individualismo é um fato social relevante neste processo, pois coloca o
indivíduo, enquanto estudante de direito, cada vez mais limitado nas suas
perspectivas enquanto profissional do direito, reproduzindo na sua atuação profissional as práticas decorrentes deste aprendizado dogmático e
unidisciplinar. O olhar para o outro, ou a tentativa de ver os problemas na
realidade de um terceiro, não faz parte do cotidiano de uma sociedade
individualista, mas é essencial para a defesa de direitos e prerrogativas de
terceiros, função precípua do profissional do direito.
Pode-se afirmar, nessa toada, que a problemática em referência
revela-se como efeito natural das características impostas pela modernidade, em seu sentido mais amplo, no que tange aos novos modelos de
convivência propostos por ela. Nas palavras de Dalmo Dallari (2009, p.
327), esse processo é estabelecido pelos “novos padrões de convivência,
com a supervalorização das atividades ligadas à produção econômica, ao
comércio e às atividades financeiras”. Trata-se de um contexto social
preso ao enfoque utilitarista, alheio, por vezes, às reflexões complexas do
viver em sociedade. O direito não pode se afastar da vida cotidiana.
24
Nesse prisma, o ensino jurídico tradicional se apresenta como
instrumento desse status quo, ao qual se encontra preso, em certa medida,
ao modo de se fazer ciência na modernidade, no que tange ao pressuposto
que o saber está fora do sujeito, mas dado por categorias, representadas
pela multiplicidade de sentidos de intuições sensíveis, no sentido kantiano. Essa concepção inicial contribui para o paradigma de que há um conhecimento posto, fincado sob bases tão sólidas que não pode ser questionado pelo estudante comum, mas apenas pelos detentores do conhecimento, os professores.
Entretanto, deve-se alertar para o fato de que “os estudantes de
direito têm de ser confrontados com problemas que suscitem reflexões e
ações éticas. A sua formação tem que ser prática, política e técnica, pois
só os limitados não aceitam que o direito seja um fenômeno de poderes.”
(AGUIAR, 2004, p. 246). Se não há uma formação atenta às variantes
realidades factuais presentes na sociedade, decorrente da influência de
outros ramos do conhecimento, sejam elas enquadradas como humanas
ou não, não há também uma compreensão adequada dos elementos que
compõem o próprio direito, observando-se a referência da teoria tricotômica do direito, do jurista brasileiro Miguel Reale.
Essas deficiências de formação ― que não é exclusividade dos
cursos de direito ― só contribui para a manutenção das diferenças sociais
historicamente estabelecidas. A ausência de preocupação com os problemas que afligem a coletividade, só torna a aplicação do direito, sob a
perspectiva dogmática e unidisciplinar, mais distante de qualquer concepção de justiça prática.
Relaciona-se, cada dia de forma mais acentuada, com a constituição de uma sociedade desigual, na qual prevalece o princípio que os
direitos estão destinados a certos grupos de pessoas, e os deveres são obrigações destinadas a outro grupo menos abastado. Assim compreende Fábio Comparato (1998, p. 47), que nos ensina:
25
[…] existem também, em toda sociedade, desigualdades, e estas
dizem respeito não a diferenças naturais ou culturais, mas a um
juízo de superioridade e inferioridade entre grupos, camadas ou
classes sociais. Esse juízo de superioridade ou inferioridade acarreta, necessariamente, uma apreciação de estima ou desestima de
um grupo em relação ao outro ― o que dá origem a preconceitos
― e de valor social. Ou, então, fundamenta posições jurídicas nítidas: tal grupo tem tais direitos próprios, que são conhecidos, na
linguagem tradicional do Direito, como privilégios; outro não tem
direitos, é um subgrupo, não pode se igualar aos demais.
Os fatores relacionados acima, dentre outros, corroboram para a
construção de uma sociedade desigual, a qual os princípios básicos de
convivência humana vão se distanciando da realidade das pessoas. Desta
forma, diante do presente objeto de estudo, aponta-se para a urgência em
colocar o aluno de direito em meio ao seu contexto social, nas ruas, nas
cidades, para que este conquiste na militância profissional cotidiana a
concretude perdida nas práticas jurídicas e se conecte com os anseios
mais basilares ao direito direcionado. (AGUIAR, 2004, p. 256).
Sob a perspectiva do protagonismo do professor, como único
detentor do saber, o aluno é visto como “tábula rasa”, tratando-se de um
ignorante, que nada sabe, ou que não sabe nada que importa. Nessa linha,
as condições individuais dos alunos não influem no saber abstrato, que
tem na figura do professor o seu principal detentor. Esta acepção seduz o
professor, ao colocá-lo em uma posição hierarquicamente superior ao
aluno.
Roberto Aguiar (2004, p. 261) alerta para características do ensino jurídico contemporâneo, que se resume em processos pedagógicos
primitivos,
[…] com pouca participação dialogal e alta carga retórica, tendo
como pano de fundo o acompanhamento do movimento textual dos
códigos. As aulas são tautológicas constituindo-se comentários requentados das leis, repetindo que já se encontra nos manuais. Não
há discussão de posições ou participação ativa dos discentes.
26
A crítica que se faz é válida, entretanto, difícil é a dissociação
do que se chama de crise do ensino jurídico, da conjuntura social-política
pela qual passa o ensino como um todo. O aluno, de certo, é a grande
linha de interseção entre as duas searas. Se no ensino básico este não recebe uma educação cidadã, participativa e dialógica, que contribua para
a ampliação dos seus horizontes enquanto integrante de uma sociedade.
Não será o ensino superior, detentor das mesmas características
― e outras ainda mais agravantes, como no caso do ensino jurídico: o
alto dogmatismo e a unidisciplinaridade desassociada de conhecimentos
mais plurais ― a suplantar tais deficiências, este, continuando com as
mesmas práticas, ao contrário, irá enfatizá-las. Portanto, verifica-se que a
estrutura de modelo de ensino jurídico posta hodiernamente se dá sob a
veste de um modelo central de ensino jurídico, a reboque desta concepção
moderna, e tradicional, sobre a qual se passa a analisar.
3 O modelo central de ensino jurídico e suas características
A expressão a qual se concebe como “modelo central de ensino
jurídico” é delineada por Inês da Fonseca Porto (2000), no que concerne
a uma análise crítica, contextualizada na perspectiva de diversos autores
sobre o ensino jurídico contemporâneo, dentre eles estão Boaventura de
Sousa Santos, Amartya Sen, Robert Alexy e Jürgen Habermas. Para Porto
(2000, p. 40), este modelo “funda-se num sistema de aprendizagem que
reproduz informações através de papéis estereotipadas”. Desenvolve-se,
portanto, consoante a influência da formatação da concepção de poder,
que detém suas implicações maiores sobre ao aspecto da idade moderna.
Paulo Freire (apud PORTO, 2000, p. 42) preocupou-se com o
desenvolvimento deste modelo, sob o qual “[…] os estereótipos fazem os
estudantes desacreditarem de suas próprias percepções e dos saberes de
27
que já dispõem. Dessa forma, não se mobilizam para reinterpretar a realidade que os cerca”. Dessa forma, cabe salientar o distanciamento, proporcionado por este modelo, entre o conhecimento científico e o senso
comum, ou melhor, aquele conhecimento vulgar produzido informalmente pelas pessoas de acordo com as suas vivências. Isso é prejudicial
ao direito, que, como ciência prática, ou que visa solucionar problemas
concretos, sejam eles individuais ou sociais, acaba por descontextualizarse diante de sua fonte primária, a sociedade.
Posner (2011, p. VII), na sua obra “Fronteiras da Teoria do Direito”, discorre que este modelo tradicional de ensino não fornece os instrumentos essenciais para a compreensão e o aperfeiçoamento do sistema,
uma vez que é incapaz de cultivar a “indispensável perspectiva externa”.
Para Porto, o modelo central de ensino jurídico é formatado sob
três características básicas, são elas: a descontextualização; o dogmatismo; e a unidisciplinaridade. Cumpre-se o dever de expô-las brevemente, para que se procure compreender o fenômeno responsável pelo
presente estado de crise do ensino jurídico, a fim de se estabelecer critérios para a sua superação.
Preliminarmente, destaca-se que a sociedade complexa, qualidade do mundo atual, existe em meio a estruturação da relação de poder,
que consiste as relações entre os homens e criando uma pluralidade de
contextos jurídicos. Assim, o ensino jurídico é apresentado em formato
destoante a esses conflitos oriundos das relações entre homens, o que ocasiona um estado de descontextualização entre o curso de direito e o seu
objeto de aprendizado, o direito real, a ser manuseado nos casos concretos. Sobre tais questões, Porto (2000, p. 37) discorre:
[…] a descontextualização do direito refere-se, portanto, às relações conflituosas entre os diferentes contextos jurídicos, marcadas
pela tentativa de o contexto da cidadania manter-se hegemônico
em relação aos demais. Sua hegemonia exerceu papel fundamental
na emancipação e democratização da vida pública, embora tenha
28
deixado ao sabor do despotismo da vida quotidiana, relações sociais cuja relevância para o direito é inegável.
Ademais, se o direito é visto sobre uma única forma de se ver o
poder, resumida a forma estatal, como defende Kelsen (1999), compreende-se o direito como a negação do pluralismo jurídico, o que vai de
encontro com as concepções mais contemporâneas da teoria do direito.
Tal característica, portanto, não há de ser vista isoladamente, tendo em
vista, que o dogmatismo se encontra presente a este conceito de direito
meramente estatal e que torna o ensino do direito por ora uníssono.
O ensino dogmático, nas palavras de Porto (2000, p. 53), “[…]
reflete o contraste entre um discurso unívoco ― que se apresenta como a
única interpretação legítima do direito ― e o acúmulo de evidências não
refletidas, ― todas as contradições que pensamento dogmático teve que
excluir, para manter intactas as premissas de seu pensamento”. Desta
feita, é característico o autoconhecimento do campo jurídico, sob o qual
prevalece a dogmática como o que há de legítimo em termo de direito,
fechado a qualquer influência externa ou nova concepção do que é direito.
Isto se dá devido pela justificação apresentada nas suas bases científicas, pelas quais, o dogmatismo, reivindica para si o monopólio da
interpretação do que é direito, pretendendo superar as contradições do
senso comum. Entretanto, apresentando-se desta forma, concebe-se um
ideário de não contradição, camuflando as contradições existentes na realidade cotidiana.
A unidisciplinaridade, por fim, “[…] significa a fragmentação do
objeto que se dá a conhecer no processo de ensino. Os alunos, sob esta
concepção, não se reconhecem no objeto de estudo, pois os saberes de
que dispõem não dialogam com ele” (PORTO, 2000, p. 57). Tal acepção
influi no isolamento dos alunos em seus “saberes desnecessários”
(PORTO, 2000, p. 59), no entanto, ao não permitir o diálogo, bloqueia o
trabalho de construção de referências comuns em grupo uma deficiência
29
no que tange a comunicação reflexiva sobre os temas pertinentes ao direito.
4 O ensino jurídico participativo e o protagonismo do aluno
em sala de aula
O ensino participativo denota uma nova perspectiva sobre o ensino do direito, na difusão do conhecimento jurídico. Esta concepção não
acredita que o saber seja externo ao sujeito, pois defende que não há uma
fronteira absoluta entre aquele que conhece e aquele que é conhecido.
Portanto, este aspecto centra na forma de conhecer e na forma pela qual
o sujeito constrói a verdade e o saber. (GHIRARDI, 2009).
Sob este prisma, a interação entre alunos é obrigatória, pois estrutura-se tal modelo frente a perspectiva dialógica e participativa, na
construção de um sentimento de igualdade que desemboca na atividade
jurídica próxima à realidade concreta da sociedade. Deve-se apontar para
a ênfase em uma visão interdisciplinar do direito ao qual “recolocandose no altar mor a que fazem jus a filosofia, a sociologia, a hermenêutica
e a história das instituições, atenderá à sagrada missão do sacerdócio do
magistério.” (FUX, 1998, p. 19).
Na concepção participativa vê-se o mundo diante da sua pluralidade, assim como as pessoas são diversas, os problemas também o são,
devendo, desta forma, serem vistos sob diversos pontos de vista. O aluno,
diante disso, deve se expor a esta diversidade para ser capaz de resolver
questões concretas. Assim, ele desenvolverá a capacidade de acreditar
que pode fazer, que pode conhecer e que poderá, no futuro, solucionar
problemas concretos no mundo real.
Nesse diapasão, apontam-se os ensinamentos de Richard Posner
(2007, p. 135), ao discorrer sobre a importância da educação jurídica interdisciplinar e dialógica, onde afirma que “a coisa mais importante que
30
a faculdade de direito confere a seus alunos, na época em que o processo
educacional se está efetuando, é uma percepção dos limites externos da
argumentação jurídica permissível”. Nessa mesma linha, complementa o
autor: “O que ‘pensar como um advogado’ significa não é o uso de capacidades analíticas especiais, massa consciência de quão relativamente flexível o direito é nas fronteiras […]”.
Desta feita, o ensino participativo representa uma grande inovação, no sentido de ciência, pois propõe uma nova forma de conhecer; de
ensino, já que propõe uma nova forma de aprender; e de ética, porque
propõe uma nova forma de se colocar o sujeito dentro da sociedade. Nessa
mesma toada, destaca-se, por oportuno, a necessidade de se aproximar o
conhecimento científico do senso comum, conforme expõe Habermas
(2013, p. 8-9):
É claro que o senso comum, que produz tantas ilusões sobre o
mundo, tem de ser esclarecido sem reservas pelas ciências. Mas as
teorias científicas que penetram o mundo da vida deixam intacto,
em seu cerne, o quadro do nosso saber cotidiano, no qual se constitui a autocompreensão de pessoas capazes de falar e agir.
Aproxima-se da concepção relacionada à construção do mútuo
conhecimento, ao qual, dialogicamente, o indivíduo, em participação com
os demais alunos, produz o conhecimento, através do seu saber cotidiano,
senso comum, atrelado a análise crítica do conhecimento científico. O
aprendizado por “mútuo conhecimento” (PORTO, 2000, p. 109), referese à ideia do aprendizado em grupo que “trabalha a partir de informações
científicas, ou seja, conteúdos comumente estudados nas escolas de direito ― ressaltando-se as deficiências limitativas do conhecimento científico ― […] A consciência dessa insuficiência é o mote do grupo, que
irá reconstruir a informação de forma genuína pelo coletivo.” (PORTO,
2000, p. 110).
31
Portanto, sob a perspectiva do ensino participativo avulta-se alguns métodos dignos de menção, tendo em vista a implementação de um
novo olhar sobre a educação jurídica, tendo como prisma a participação
e o protagonismo do aluno, devidamente expostos esparsamente por Ghirardi (2009). Destacam-se, dentre tais métodos: o método de caso, o role
play ou simulação e o diálogo socrático.
O primeiro método acena para a análise focada nos casos judiciais, método rotineiramente utilizado por Dworkin em suas obras. Aqui,
aponta-se para uma postura ativa do aluno, ao qual ele deve refletir sobre
a linha de raciocínio utilizada para determinado caso e sobre as implicações que determinada decisão pode gerar.
Já no role play, o aluno é chamado a interpretar um papel e a
defender um determinado ponto de vista a partir de um interesse concreto,
isto é, argumentar a partir de um interesse definido. Dá-se uma impressão
de verdade factual à sala de aula, através da simulação de personalidades
do exercício jurídico, a qual visa desenvolver certas habilidades, principalmente a de negociação.
Um método dos mais tradicionais, mas que ainda demonstra bastante eficácia é o método socrático, que busca fazer o aluno refletir sobre
a própria forma de pensar e construir argumentos. O método socrático,
portanto, treina o estudante de direito a explorar o conhecimento científico por meio da lógica utilizada como instrumento crítico, as indeterminações dos materiais jurídicos. (POSNER, 2007, p. 133). Desafia o aluno
com diversas perguntas que visa, em menor grau, o conteúdo da informação, mas, em primazia, a forma como ela se construiu logicamente.
Assim, o modelo participativo de ensino mostra-se eficaz na difusão do conhecimento jurídico atrelado à realidade social, bem como
com a prática vivenciada pelos próprios alunos nas suas esferas de vida.
É certo que a busca por instrumentos de integração e cooperação coletiva
32
no processo de aprendizado é fundamental para uma formação plural e
aberta aos diversos desígnios e problemas a serem enfrentados pelas sociedades contemporâneas.
5 Considerações finais
A grande máquina propulsora da humanidade é a educação. Almeja-se da educação jurídica, especificamente, a difusão do conhecimento técnico e teórico, trabalhado em consonância com princípios éticos
que forneçam uma análise coerente dos problemas sociais a serem enfrentados pelos futuros juristas. De certo, não se trata de uma tarefa simples, pois o ensino jurídico demanda muito preparo e dedicação, haja vista
que a sua riqueza em conteúdo e complexidade de aplicação torna o
aprendizado um caminho árduo e incerto a ser percorrido.
Dentre as principais características dos profissionais do direito
destaca-se a sua responsabilidade na realização de uma análise criteriosa
e crítica sobre a sociedade, seu principal objeto de estudo e atuação. Atrelado a isso, deve-se ressaltar que a função do direito se relaciona, em primazia, à pacificação das expectativas sociais, diminuindo ou resolvendo
conflitos, garantindo, desta forma, um meio para o convívio social minimamente harmônico. Não há dúvida, portanto, que a formação destes profissionais é uma questão que impacta toda a sociedade.
Diante disso, procurou-se abordar no presente trabalho as características do ensino jurídico tradicional, bem como apontar as suas principais deficiências, diante do contexto social contemporâneo. Identificouse, nessa toada, a necessidade de uma reforma no modelo de ensino jurídico posto, para além do protagonismo do professor em sala de aula, do
dogmatismo puro e da unidisciplinaridade nos cursos de direito. É sob
esta perspectiva que se desenvolve uma narrativa sobre o modelo participativo de ensino.
33
O modelo em questão, por sua vez, apresenta os elementos necessários para o reposicionamento do aluno em sala, tirando-o de uma
posição secundária e de passividade em relação ao conhecimento, para o
de protagonista. O protagonismo se dá pela sua inserção no processo de
conhecimento, atrelado a sua interpretação sobre o mundo e a sociedade,
no sentido de que, a partir de suas pré-compreensões de vida, ele possa
pensar na aplicação do direito correlacionando-a com as suas vivências
práticas. A participação discente em sala de aula é o primeiro passo para
o reposicionamento dos atores do processo de ensino e de legitimação
democrática do aprendizado.
Um segundo movimento é a superação do dogmatismo e da unidisciplinaridade, que tem como principal ferramenta propulsora a participação. Quando há o este reposicionamento de atores, o ambiente acadêmico se torna um centro de debate, que proporciona aos participantes a
reflexão sobre os temas abordados. Como o aprendizado é estabelecido
pelo debate, outras experiências estarão presentes, abordando outras áreas
do conhecimento ― o que obrigará os debatedores a refletirem a respeito
das novas abordagens avultadas ― proporcionando uma ampliação no
escopo da abordagem. Naturalmente, o aluno terá que relacionar os assuntos jurídicos com as áreas correlatas dos temas abordados, cabendo ao
professor a orientação na correlação entre tais áreas.
Dessa forma, a aula passa a ser multidisciplinar e o conteúdo
transmitido passa a ser objeto e fruto de debate, não se estabelecendo mais
como dogma, mas como decorrência de um discurso crítico entre todos
os participantes. As práticas de educação participativa são eficientes em
proporcionar a construção de uma formação plural e reflexiva sobre a os
problemas atinentes à sociedade. Se atrelada a um debate científico de
qualidade, representará, ao certo, uma aproximação comunicativa e crítica do profissional do direito com as demandas sociais mais urgentes.
34
O maior desafio do sistema educacional brasileiro na atualidade
é fazer dos seus alunos, cidadãos conscientes de seu papel social e transformadores ativos das relações interindividuais. A consciência do jurista
como agente transformador e reformador da sociedade, desenvolvido no
âmbito do ensino participativo, denota em um profissional com o conhecimento prático e social necessário ao bom exercício da profissão.
O aluno deve estar inserido no processo de aprendizagem, para
que este ocupe um espaço de destaque na sua própria formação e aprenda
a refletir sobre as questões que lhe são postas. O ensino dogmático e unidisciplinar pode contribuir com a absorção de uma alta carga teórica, entretanto, limita-se a isso em essência, afastando o aluno da análise prática
das demandas sociais mais relevantes.
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35
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GHIRARDI, José Garcez (coord.). Metodologia de Ensino Jurídico no Brasil: Estado da arte e perspectivas. V.6, n. 5. Rio do Janeiro: Cadernos FGV 31,
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PORTO, Inês da Fonseca. Ensino Jurídico, diálogos com a imaginação:
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POSNER, Richard A. Fronteiras da Teoria do Direito. Tradução: Evandro
Ferreira e Silva, Jefferson Luiz Camargo, Paulo Salles e Pedro Sette-Câmara.
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WALZER, Michael. Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade. Tradução: Jussara Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
TEIXEIRA, Igor Moura Rodrigues. O ensino jurídico participativo: uma
perspectiva sobre o protagonismo do aluno de direito. In: MELO, Álisson José
Maia (coord.). Apontamentos didáticos em direito: reflexões às margens do
Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 19-35.
37
CAPÍTULO II
INTERPRETAÇÃO E HERMENÊUTICA:
CONCEITOS AFINS E APLICABILIDADE
PARA O DIREITO
Álisson José Maia Melo
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Interpretação; 3. Signo, referência, sentido
e significado; 4. Hermenêutica; 5. Interpretação do Direito; 5.1. Sentido
e alcance; 5.2. Diferenciais da interpretação jurídica; 5.3. Interpretação e
figuras afins; 6. Hermenêutica jurídica.
1 Introdução
O tema da Hermenêutica Jurídica, entre outras dificuldades, enfrenta
certas confusões conceituais. Interpretação e hermenêutica comumente
são confundidas, além de outros elementos que muitas vezes são considerados inseridos na atividade interpretativa. Neste estudo, pretende-se
traçar algumas distinções terminológicas envolvendo os vocábulos mais
utilizados no discurso em que gira o tema. Metodologicamente, a pesquisa não tem cunho exploratório, é meramente descritivo sem pretensão
de esgotar a temática, nem procede a uma revisão exaustiva da literatura,
indicando algumas reflexões clássicas e atuais sobre o assunto.
Divide-se o estudo em seis partes. Após esta introdução (Seção 1),
discute-se primeiramente uma noção geral de interpretação (Seção 2)
bem como de seus elementos constitutivos (Seção 3), para somente então
verificar sua diferença em relação à hermenêutica (Seção 4). Após essa
etapa, passa-se ao exame da interpretação especificamente do Direito (Seção 5), que se subdivide em outras três subseções, arrematando com a
distinção dela para a Hermenêutica Jurídica (Seção 6).
38
2 Interpretação
A noção de interpretação remete à atividade intelectual de extrair um
novo conhecimento ou uma nova informação a partir de um elemento físico ou cultural que não é a mesma coisa desse novo conhecimento ou
informação. Trata-se, portanto, de uma atividade de tradução, de descoberta, ou ainda de atribuição de um sentido a uma coisa que é utilizada
como ponto de partida. Na lição de Adrian Sgarbi1: “‘Interpretar’ consiste
na realização de uma atividade intelectual; atividade intelectual que é
tanto concebida como de ‘descoberta’, de ‘atribuição’, como da ‘combinação’ de ambas quanto ao ‘sentido’ de algo”.
A interpretação é uma atividade tipicamente cultural, mas que pode
se aplicar a todo e qualquer tipo de conhecimento. Assim, um especialista
pode interpretar exames e sintomas indicados pelo paciente para descobrir qual a doença a que este é afligido. Interpretação é, assim, de cunho
prático, um ato de inteligência, cultura e sensibilidade. Nesse mesmo sentido, confira José de Oliveira Ascensão2: “Em todos os ramos da cultura
se põe o problema de extrair um sentido de certas exteriorizações”.
Sob outra perspectiva, a interpretação também permite ao ser humano
conferir sentido a eventos aleatórios, como ocorre nas manifestações teológicas mais primitivas. Segundo Paulo Nader3: “Interpretar é o ato de
explicar o sentido de alguma coisa; é revelar o significado de uma expressão verbal, artística ou constituída por um objeto, atitude ou gesto”. Aliás,
1
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2007, p. 428.
2
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral: uma perspectiva
luso-brasileira. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 368.
3
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2010, p. 263.
39
o termo “interpretação” seria de raiz latina, ora remetendo para uns a inter-penetrare, ou seja, penetrar mais para dentro4, ora remetendo para
outros a entre entranhas5, que é compreendido, em ambos os casos como
a atividade de adivinhação religiosa feita pelos sacerdotes mediante a introdução das mãos nas tripas de um animal sacrificado.
Interpretação também pode designar tanto o processo que vai do elemento material ao resultado como também o resultado do processo interpretativo.
3 Signo, referência, sentido e significado
Confusão terminológica também se verifica com os elementos que
compõem o processo de interpretação, a saber: o signo, a referência, o
sentido e o significado. Com efeito, signo é o ponto de partida para alcançar o significado; em outras palavras, signos são sinais, fenômenos
físicos que servem como substrato fático ou material a partir do qual se
produz a interpretação. Aliás, o signo também pode ser já em si o resultado de uma interpretação inicial (exemplificativamente, a identificação
de símbolos a partir de riscos numa parede pode remeter à produção de
um segundo sentido).
Se o signo é o ponto de partida, na outra ponta encontra-se a referência. A referência é, assim, o objeto ao qual o signo pretende se referir –
objetivamente ou sob o ponto de vista subjetivo do intérprete. Assim, as
expressões linguísticas, enquanto signos, podem remeter à ideia ou modelo padrão das coisas que elas buscam representar. A palavra “cadeira”
remete o intérprete a uma imagem geral ou ideal de cadeira (enquanto
coisa-em-si).
4
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 3.
5
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da
constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001, p. 33.
40
Entre o signo e a referência constrói-se ou encontra-se o sentido. O
sentido, portanto, é a forma, o caminho ou o ponto de vista pelo qual o
signo fala sobre o objeto. Sobre um mesmo objeto, pode-se expressar por
signos através de diversas maneiras, realçando características distintas do
objeto. Por exemplo, em “planeta Vênus” e “estrela d’alva” têm-se signos
diferentes que designam a mesma referência – o objeto celeste, sem brilho
próprio, que gira em torno do Sol e se encontra entre Mercúrio e a Terra
–, mas trazem sentidos distintos – no primeiro caso, um sentido astronômico, científico, associado à mitologia romana; no segundo caso, a um
efeito celeste, metafórico e poético, já que não se trata de uma estrela
propriamente dita por não possuir brilho próprio, associado ao momento
do dia em que aparece no firmamento.
Significado é compreendido como a união da referência com o sentido ao qual o signo remete. Assim, no exemplo acima, os dois signos
mencionados, por possuírem sentidos diferentes e um mesmo objeto, remetem a significados diferentes. Da mesma forma, um mesmo sentido,
associado a referências distintas, conduz a significados distintos.
Por fim, a significação é o resultado da atividade de dar a entender
por meio de sinais ou signos (significar). A relação entre esses elementos,
portanto, assume duas vias: de um lado, pode-se estar diante de um signo
que reclama a identificação de seu significado; de outro lado, pode-se
estar diante de uma referência (uma ideia, um pensamento) e o desafio de
traduzi-lo mediante signos para, constituindo uma mensagem, fazer-se
compreender por outros.
4 Hermenêutica
Enquanto a palavra “interpretação” deriva do latim, “hermenêutica”
provém do grego, mais especificamente de Hermes, deus da mitologia
grega, considerado o intérprete da vontade divina. Deus-alado, Hermes
41
seria o inventor ou descobridor da linguagem e da escrita, responsável
por traduzir e transmitir aos mortais as mensagens do destino proferidas
pelos deuses do Olimpo6. “Essa figura mitológica transmitira uma mensagem proveniente de um plano superior e transcendente para um plano
inferior e imanente, tornando-a compreensível”7. Daí que a interpretação
e a hermenêutica guardam, desde suas origens, algo de místico, sagrado
e mágico, um dom de desvendar sentidos de signos que parecem ser nada
explícitos.
De Hermes, encontra-se amparo no léxico grego as palavras hermeneuein e hermeneia, designando, respectivamente, “interpretar” e “interpretação”. Segundo Richard Palmer8, para a forma verbal, três orientações se apresentam: “1) exprimir em voz alta, ou seja, «dizer»; 2) explicar, como quando se explica uma situação, e 3) traduzir, como na tradução de uma língua estrangeira”. Veja-se, e ele desenvolve em pormenores, que cada uma dessas acepções inclui uma noção estrita como também
uma noção mais alargada, metafórica. Pode-se interpretar uma partitura
mediante a execução instrumental dela, ou seja, exprimir em voz alta o
que se encontra reprimido no papel.
Modernamente, a hermenêutica assume uma noção diferenciada de
interpretação. Nesse sentido, defende-se uma distinção forte entre interpretação e hermenêutica. A hermenêutica, em contraposição à interpretação, é teórica e visa a estabelecer princípios, critérios e métodos para interpretação, uma orientação geral para auxiliar o intérprete. Em outras
palavras, a hermenêutica é o estudo racional do processo interpretativo;
6
SOARES, 2010, p. 3.
MAGALHÃES FILHO, 2001, p. 33.
8
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999, p. 24.
7
42
enquanto a interpretação é a arte, a hermenêutica aproxima-se dos caráteres científico e filosófico. Segundo João Baptista Herkenhoff9: “Hermenêutica é a teoria científica da arte de interpretar”.
Já para Soares10, hermenêutica se presta “para designar um saber que
procura problematizar os pressupostos, a natureza, a metodologia e o escopo da interpretação humana, nos planos artístico, literário e jurídico”.
Em arremate, a hermenêutica tem por objetivo descobrir, fixar e sistematizar os princípios que regem a interpretação.
5 Interpretação do Direito
Quando se voltam as atenções para o fenômeno da interpretação especificamente jurídica, observa-se algumas nuances próprias do Direito
que o diferem das demais manifestações culturais. Algumas dessas nuances serão discutidas na Seção 5.2. Pelo fato de o Direito demandar uma
aplicação a um caso, embora com esta não se confunda – confira a Seção
5.3, é senso comum teórico o entendimento de que “Interpretar o Direito
representa revelar o seu sentido e alcance”11. Nesse mesmo sentido: “A
interpretação é um trabalho prático elaborado pelo operador do Direito,
através do qual ele busca fixar o sentido e o alcance das normas jurídicas
ou das ‘expressões do Direito’”12. A diferença entre sentido e alcance será
melhor desenvolvida na Seção 5.1, cabendo, nesta oportunidade, uma primeira aproximação.
Diz-se que, além da fixação, revelação ou atribuição do sentido, também ocorre a determinação do alcance, significa dizer que a aplicação de
9
HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao direito: abertura para o mundo do direito, síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Thex, 2006, p. 322.
10
SOARES, 2010, p. 4.
11
NADER, 2010, p. 263.
12
NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 10. ed. São Paulo:
Saraiva, 2011, p. 291.
43
uma norma jurídica, pela sua natureza normativa (um juízo de dever-ser),
reclama o reconhecimento dos contextos, das situações fáticas em que a
norma tem pertinência. Há, além das perspectivas sintática e semântica –
ou seja, de intuir um significado de uma norma dentro de um determinado
contexto –, um aspecto pragmático, de que a norma se presta a regular
certas situações.
Esclarecendo essa questão, afirma Christiano José de Andrade13 que.
“É preciso convir que a interpretação jurídica é uma interpretação prática.
Nesse sentido, a operação consiste em interpretar textos e situações a eles
referidas, tendo em vista uma finalidade prática”. Ainda numa perspectiva pragmática, defendendo que a interpretação do Direito não deva ser
meramente técnica e formalista, mas que reclama uma atitude teleológica,
André Franco Montoro14 obtempera que “interpretar uma norma não é
simplesmente esclarecer seus termos de forma abstrata, mas, sobretudo,
revelar o sentido apropriado para a vida real e capaz de conduzir a uma
aplicação justa”. Veja que, nessa argumentação, insere-se uma discussão
axiológica sobre a atividade interpretativa no Direito.
Outras duas abordagens merecem menção. Ascensão15 recorda que
no processo de interpretação do Direito, há uma relação imediata com as
chamadas fontes formais do Direito – Constituição, leis, tratados, decretos e outros atos administrativos, costumes e jurisprudência –, sendo
aquela entendida como a “atividade que nos permite, a partir da fonte,
chegar à regra que ela alberga é a interpretação”. O exame das fontes é o
ponto de partida para a interpretação jurídica. Rubens Limongi França16,
13
ANDRADE, Christiano José de. Hermenêutica jurídica no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 12.
14
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 28. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 420.
15
ASCENSÃO, 2003, p. 368.
16
FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva,
1997, p. 3.
44
por sua vez, ressalta que, através da interpretação e consequente aplicação
do Direito, ocorre a formação da relação jurídica: “A interpretação da lei
[…] é a operação que tem por fim fixar uma determinada relação jurídica,
mediante a percepção clara e exata da norma estabelecida pelo legislador”.
Unindo todas as contribuições, entende-se que das fontes formais do
Direito parte a interpretação jurídica, atividade consistente na fixação do
sentido e alcance das normas contidas nas fontes, para culminar na formação de uma relação jurídica, fundada num resultado justo.
5.1 Sentido e alcance
Cabe, rapidamente, fazer uma distinção forte entre sentido e alcance.
Para Nader, “Fixar o sentido de uma norma jurídica é descobrir a sua
finalidade; é pôr a descoberto os valores consagrados pelo legislador,
aquilo que teve por mira proteger”17. Essa noção adota uma teoria subjetivista da interpretação; ou seja, o sentido de uma norma seria o caminho
percorrido pelo legislador para chegar ao comando por este querido.
Numa teoria objetivista, fixar o sentido implicaria identificar um ou mais
caminhos que o texto permite alcançar, bem como os respectivos resultados possíveis.
Já quanto ao alcance, como já antecipado, ele possui um aspecto contextual, vale dizer, equivale à identificação das hipóteses possíveis de
aplicação de uma norma. Segundo Nunes18, “quando o objeto de interpretação é uma norma jurídica, é preciso, além do sentido, fixar seu alcance, de modo que se deixe patente a que situações ou pessoas a norma
jurídica interpretada se aplica”.
17
18
NADER, 2010, p. 263-264.
NUNES, 2011 p. 290.
45
Reiterando o entendimento acima esposado, Nader19 correlaciona alcance de norma com seu campo de incidência: “Fixar o alcance é demarcar o campo de incidência da norma jurídica; é conhecer sobre que fatos
sociais e em que circunstâncias a norma jurídica tem aplicação”. A incidência é o efeito ocasionado pela constatação de que um determinado
conjunto fático se enquadra dentro do antecedente da norma jurídica hipoteticamente estruturada, e tem por efeito o nascimento de uma obrigação jurídica definida pelo consequente da norma. A determinação do
campo de incidência de uma norma pode acontecer tanto de modo genérico, partindo diretamente do texto para verificar que possíveis situações
ele abrange, quanto de modo específico, quando se parte de um caso concreto para verificar que, naquele caso, a norma tem aplicabilidade.
5.2 Diferenciais da interpretação jurídica
Como já antecipado, o Direito, como objeto cultural, possui certas
peculiaridades que o diferem de outros fenômenos culturais. A existência
mediada pela linguagem, a normatividade e a heteronomia, características
do fenômeno tipicamente jurídico, provocam consequências específicas
para a interpretação jurídica. Veja-se a seguir algumas delas.
A primeira, como já adiantado, é que o Direito possui pertinência
com os três segmentos da Semiótica, a saber, a função sintática, consistente na inter-relação entre as palavras, “as relações estruturais e a concatenação dos signos entre si”20, a função semântica, preocupada com a
significação dos textos conforme os contextos em que inseridos, “a relação entre o signo e o objeto que ele refere […], o estudo das significações
das palavras”21, e a função pragmática, no sentido de que o Direito, ao ser
interpretado, reclama uma tomada de ação pelas partes envolvidas, não
19
NADER, 2010, p. 264.
SOARES, 2010, p. 21.
21
SOARES, 2010,p. 22.
20
46
se limitando a ser meramente declarativo. Como diz Soares22, “A tarefa
de interpretar que afeta ao jurista não se esgota com o voltar a conhecer
uma manifestação do pensamento, mas busca também integrar a realidade
social em relação com a ordem e a composição preventiva dos conflitos
de interesses previsíveis”.
Em segundo plano, o caráter linguístico das expressões do Direito
remete a alguns problemas próprios desse tema. É claro que, com Gadamer, todo objeto passível de interpretação exige que este seja linguístico23, mas aqui se refere à utilização intencional da linguagem humana
para se construir o próprio objeto da interpretação do Direito. Daí que a
linguagem possui algumas falhas naturais. Uma delas é a ambiguidade,
ou seja, o texto comporta mais de um sentido, não sendo unívoco, mas
plurívoco. Outro problema natural da linguagem é sua vagueza: muitas
palavras, embora possam até possuir uma zona central precisa de aplicação, também possuem uma zona periférica de indeterminação de conteúdo; a vagueza parece estar relacionada simultaneamente tanto ao sentido
quanto ao alcance.
Especificamente para o fenômeno jurídico, existem inclusive os denominados conceitos jurídicos indeterminados, expressões vagas que são
utilizadas intencionalmente pelo legislador para que confira ao intérprete
certa margem de discricionariedade para que possa preencher, a partir do
caso concreto, o conteúdo desse conceito. É o caso, por exemplo, do uso
das expressões “interesse nacional relevante” e “segurança da sociedade”.
22
SOARES, 2010, p. 15.
MELO, Álisson José Maia. Contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer
para a interpretação jurídico-constitucional: uma análise crítica. Revista Eletrônica de
Direito, Democracia e Sociedade, Aracati-CE, v. 1, n. 1, p. 63-76, mar. 2016. Disponível
em:
<http://www.fvj.br/revista/wp-content/uploads/2016/04/5_1_Direito_20161.pdf>. Acesso em 5 maio 2016.
23
47
Uma terceira consequência, ainda ligada à questão linguística particular do Direito, se dá com a distinção entre o texto e a norma jurídica.
Para Sgarbi24, um e outra não devem ser confundidos, “Porque as ‘normas’ não são os textos, mas os resultados da interpretação de textos, enfim, da ‘legislação’”. Em outras palavras, as normas jurídicas são o resultado do processo de interpretação dos textos jurídicos. Pode-se dizer que
as normas jurídicas são o sentido objetivo dos atos de vontade expressados nas fontes formais do Direito.
Em quarto lugar, tem-se o caráter prescritivo do Direito, oriundo de
sua normatividade e heteronomia. Ao estabelecer juízos de dever-ser independentes da vontade do indivíduo, o Direito acaba por interferir na
vida social com a imposição de condutas normalizadas. A interpretação
do Direito, dessa maneira, “acaba por construir e oferecer ao meio social
em que está inserida verdadeiros ‘modelos’ de conduta”25.
Por fim, tem-se que o Direito pertence ao mundo das instituições.
Significa dizer, de uma banda, que as normas jurídicas incorporam também juízos de valor sobre eventos da realidade – a observação de fatos
por um jurista – por exemplo, a tradição de uma coisa entre duas pessoas
– pode fazê-lo identificar uma determinada situação que não existe no
mundo real, mas numa espécie de realidade aumentada, construída pelo
ser humano – a saber, que ali forma-se um contrato de doação, ou de mútuo, ou de compra e venda. De outra banda, apelar ao caráter institucional
do Direito remete ao poder criativo do intérprete: à medida que um juiz
interpreta o Direito para um caso concreto e cria a norma jurídica aplicável a essa situação, ele está diretamente contribuindo para a construção e
o aprimoramento dessa realidade institucional.
24
25
SGARBI, 2007, p. 434.
NUNES, 2011, p. 294.
48
5.3 Interpretação e figuras afins
A interpretação, enquanto atividade, aproxima-se de outras figuras
muito semelhantes, conduzindo os juristas a certas confusões terminológicas. Não se trata de problema específico da interpretação jurídica, mas,
como o Direito remete a outras figuras afins, torna-se mais adequado
tratá-las em conjunto. Nesta empreitada, propõe-se a diferenciar a interpretação da compreensão, da argumentação, da integração, da aplicação
e da denominada interpretação enunciativa.
A compreensão, segundo Andrade26, “é então a apreensão de um
sentido”. Ou seja, somente mediante a interpretação se possibilita ao intérprete apreender o sentido de um texto. Há, portanto, uma relação de
meio e resultado entre interpretação e compreensão, sendo a compreensão
o resultado último e o resultado útil da interpretação. Se uma interpretação leva a uma incompreensão, ela não é uma interpretação válida, ao
menos segundo a racionalidade moderna.
Por outro lado, argumentação difere-se da interpretação porque
aquela propõe-se a fundamentar ou expor razões para confirmar esta. Na
argumentação o Direito é visto como processo de comunicação. Mais
uma vez, para Andrade27, “No que concerne à teoria da argumentação, a
interpretação é um processo retórico-persuasivo, portanto, de convencimento e dirigido às partes e aos outros órgãos”. Enquanto a interpretação
é um processo interno do agente, que leva a um resultado (também chamado de interpretação), a argumentação é um expediente discursivo e externo, com objetivo de fazer com que outros agentes compreendam o resultado alcançado.
26
27
ANDRADE, 1991, p. 35.
ANDRADE, 1991, p. 12
49
Sgarbi28 em certa medida confunde as duas atividades no seguinte
excerto: “A atividade interpretativa é uma atividade estratégica. Os agentes-intérpretes empregam as técnicas interpretativas com a finalidade de
consignar, dos potenciais significados do texto normativo, aquele sentido
que mais favorece as suas pretensões”. Na realidade, a atividade argumentativa é que é propriamente uma atividade estratégica, em comparação com a interpretação, e as técnicas interpretativas na verdade acabam
sendo técnicas argumentativas, com o propósito de persuadir o interlocutor de que a interpretação ora proposta é a mais correta.
A integração é conceito próprio do Direito. Ela ocorre quando os
textos disponíveis ao intérprete não levam à solução do caso concreto. A
integração pressupõe a existência de lacunas na lei, mas não de lacunas
no sistema (ou no ordenamento jurídico). Pela falta de texto a ser interpretado, a integração visa a suprir as lacunas dadas pela lei; fala-se em
preenchimento ou colmatação dessas lacunas.
Para Ascensão29, a integração seria considerada uma espécie dentro
de uma interpretação em sentido amplo:
O jurista pode abordar o material normativo movido por duas ocupações muito diversas: ou chegar à solução do caso concreto, ou
determinar o sentido de uma fonte. Se atua com o objetivo de encontrar a solução dum caso faz interpretação em sentido amplo; se
é diretamente solicitado por uma fonte […] faz interpretação em
sentido estrito.
No mesmo sentido, veja-se o entendimento de Montoro30:
Em sentido amplo, emprega-se, muitas vezes, o vocábulo ‘interpretação’ para designar não apenas a determinação do significado
28
SGARBI, 2007, p. 573.
ASCENSÃO, 2003, p. 371
30
MONTORO, 2009, p. 421.
29
50
e alcance de uma norma jurídica existente, mas também, a investigação do princípio jurídico a ser aplicado a casos não previstos nas
normas vigentes.
A interpretação em sentido estrito opõe-se, em certa medida, à integração do Direito.
De todas as figuras afins, a que mais se aproxima da interpretação
jurídica certamente é a aplicação. Há quem pretenda que a interpretação
e a aplicação do Direito são atividades correlacionadas e simbióticas, não
se podendo falar em interpretação sem já estar pensando num caso concreto em que se aplique31. No entanto, é possível, ao menos no nível lógico, trabalhar a aplicação do Direito, pelo menos em seu último estágio,
como processo posterior à interpretação: “A aplicação da regra confundese por vezes com a interpretação. Para haver aplicação têm de se pressupor conhecidas as regras. Logo, a aplicação é logicamente posterior à determinação da regra”32.
Enquanto a interpretação consiste no processo de fixação do sentido
e alcance de uma norma jurídica, a aplicação trabalhar a relação dessa
norma jurídica com o caso concreto. É o que propugna Herkenhoff33, “A
aplicação do Direito consiste em submeter o fato concreto à norma que o
regule. A aplicação transforma a norma geral em norma individual, sob a
forma de sentença ou decisão administrativa”. Melhor seria dizer que a
aplicação parte já da norma individual, pressionando a situação concreta
para o cumprimento da consequência dessa norma.
Por fim, fala-se minoritariamente numa interpretação enunciativa.
Quem alerta para a existência desse fenômeno é Ascensão 34, para quem
31
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito. São Paulo: Malheiros, 2002.
32
ASCENSÃO, 2003, p. 372.
33
HERKENHOFF, 2006, p. 323.
34
ASCENSÃO, 2003, p. 367.
51
ela “representa um processo lógico de obtenção de uma nova regra a partir de uma regra já apurada”. Não se trata de uma intepretação em sentido
estrito, porque não se trabalharia com uma fonte formal a fim de extrair
dela uma regra. Cuida-se aqui propriamente de derivações lógicas – por
exemplo, segundo a lógica de “quem pode o mais pode o menos”, ou pela
lógica “a contrario sensu” – de uma interpretação propriamente dita, da
qual podem derivar princípios e regras implícitas.
6 Hermenêutica Jurídica
Em arremate, tal como se fez em relação à interpretação em geral,
cabe diferenciar a interpretação jurídica da Hermenêutica Jurídica. Segundo lição clássica, “A Hermenêutica Jurídica tem por objeto o estudo
e a sistematização dos processos aplicáveis para determinar o sentido e o
alcance das expressões do Direito”35. Logo, a Hermenêutica Jurídica possui teor primariamente científico, e secundariamente filosófico, acerca da
atividade interpretativa realizada pelos intérpretes jurídicos.
Nesse diapasão, Nunes36 afirma que “A Hermenêutica é a Teoria Científica da Interpretação, que busca construir um sistema que propicie a
fixação do sentido e alcance das normas jurídicas”. Da mesma forma expõe o conceito de França37, para quem a Hermenêutica Jurídica é “parte
da ciência jurídica que tem por objeto o estudo e a sistematização dos
processos, que devem ser utilizados para que a interpretação se realize,
de modo que o seu escopo seja alcançado da melhor maneira”.
Enquanto ciência que estuda a interpretação do Direito, a Hermenêutica Jurídica presta-se tanto para compreender como a interpretação é empreendida na prática pelos operadores do Direito (função descritiva),
35
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 1.
36
NUNES, 2011, p. 291.
37
FRANÇA, 1997, p. 3.
52
como para sistematizar os diversos mecanismos utilizados para racionalizar o processo interpretativo (função explicativa). Sob outras perspectivas, a Hermenêutica Jurídica possibilita ainda prever determinadas interpretações por parte dos juízes e tribunais (função prospectiva) e, problematizando os diversos aspectos envolvidos na interpretação, especialmente a realizada pelo Estado, apontar falhas e propor melhorias nessa
atividade (função prescritiva).
Referências
ANDRADE, Christiano José de. Hermenêutica jurídica no Brasil. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1991.
ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral: uma perspectiva luso-brasileira. 11. ed. Coimbra: Almedina, 2003.
FRANÇA, Rubens Limongi. Hermenêutica jurídica. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 1997.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do
Direito. São Paulo: Malheiros, 2002.
HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao direito: abertura para o mundo
do direito, síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Thex, 2006.
MAGALHÃES FILHO, Glauco Barreira. Hermenêutica e unidade axiológica da constituição. Belo Horizonte: Mandamentos, 2001.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000.
MELO, Álisson José Maia. Contribuições da hermenêutica filosófica de Gadamer para a interpretação jurídico-constitucional: uma análise crítica. Revista
Eletrônica de Direito, Democracia e Sociedade, Aracati-CE, v. 1, n. 1, p. 6376, mar. 2016. Disponível em: <http://www.fvj.br/revista/wp-content/uploads/2016/04/5_1_Direito_20161.pdf>. Acesso em 5 maio 2016.
MONTORO, André Franco. Introdução à ciência do direito. 28. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
53
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 32. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.
NUNES, Rizzatto. Manual de introdução ao estudo do direito. 10. ed. São
Paulo: Saraiva, 2011.
PALMER, Richard E. Hermenêutica. Lisboa: Edições 70, 1999.
SGARBI, Adrian. Teoria do direito: primeiras lições. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2007.
SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e interpretação jurídica.
São Paulo: Saraiva, 2010.
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
MELO, Álisson José Maia. Interpretação e hermenêutica: conceitos afins e
aplicabilidade para o direito. In: ______ (coord.). Apontamentos didáticos em
direito: reflexões às margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 37-53.
55
CAPÍTULO III
BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A
SUPOSTA CRISE DA DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA
José Evandro Alencar Correia
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A luta pela democracia; 3. O embate entre
Rousseau e Montesquieu; 4. As dificuldades do modelo representativo;
4.1. Conteúdo da representação; 4.2. Democracia política e democracia
social; 4.3. Democracia agregativa e democracia deliberativa; 4.4. Autofragilização no desenrolar histórico; 4.5. A apatia legislativa; 5. Conclusão.
1 Introdução
A sociedade está de frente com um novo debate sobre as clássicas
atribuições deferidas a cada um dos poderes. Uma sucessão de fatores
traz à tona a necessidade de se rediscutir a competência atribuída a cada
um dos Poderes. Urge, assim, realizar uma releitura dos seus aspectos
positivos e negativos, confirmar os pontos em que sua atuação é imodificável e delinear novos contornos em relação a uma atuação mais incisiva
de outros poderes em áreas que outrora era inconcebível.
Os principais atores desse processo de mutação do princípio da Separação dos Poderes são justamente o Legislativo e Judiciário.
Nessa nova discussão, o Poder de elaborar as normas sai fragilizado.
Vários são os fatores que hoje em dia provocam relutância quanto à aceitação dos pressupostos de Democracia Representativa, pilar desse Poder.
Não se aceita de forma pacífica que exista uma total confluência entre a
vontade dos representantes e dos representados, uma atuação desprovida
de interesses pessoais, resumindo, um sentimento do povo em relação aos
56
seus representantes de que esses realmente buscam e fazem o melhor para
a sociedade.
As vicissitudes do modelo representativo só foram ampliadas no desenvolvimento das sociedades. Diante desse fato, um movimento tácito
que paulatinamente rejeita as decisões legislativas começa a ser aprimorado. Um novo relacionamento entre um Legislativo fragilizado e um Judiciário como guardião da Constituição e “super-ego” da sociedade
(MAUS, 2010) ocorre de forma ampla, fazendo que a cada dia esse Poder
galgue novos obstáculos na concretização e criação de direitos.
Diante do exposto, se faz necessário trazer à tona de forma clara e
concisa os fatores que levaram até esse momento de releitura de tão importantes princípios para o desenvolvimento da sociedade moderna que
são o da Separação dos Poderes e o Democrático.
O caminho que será percorrido para demonstrar a suposta crise da
democracia representativa será: (i) breve digressão sobre o desenvolvimento da democracia na modernidade, com foco na ascensão dos direitos
individuais e posterior desenvolvimento dos direitos políticos; (ii) considerações sobre uma clássica oposição teórica entre Montesquieu e Rousseau sobre o poder e sua divisão, bem como o reflexo para a teoria da
democracia; (iii) alguns problemas que emergem na atualidade sobre a
teoria da democracia, com especial ênfase na democracia representativa.
Ao final, serão feitas algumas conclusões sobre o reflexo de tal crise para
a relação entre os poderes.
2 A luta pela democracia
O processo de democratização da sociedade não se desenvolveu de
forma pacífica. Um grande embate teórico e social foi deflagrado para
que ocorresse a democratização nos Estados que viviam sob os despautérios de alguns monarcas, no período chamado de Absolutismo.
57
A mesma força política que outrora contribuíra para a consolidação
dos poderes absolutistas foi a principal responsável pela sua derrocada.
Tal força, a Burguesia, não mais encontrava, na atuação dos monarcas, a
confluência de interesses para o desenvolvimento pacífico de suas atividades comerciais.
Enquanto o Absolutismo foi útil para a unificação dos Estados, visando, assim, diminuir a tarifação, dentre outros entraves para o desenvolvimento comercial, os monarcas foram tolerados, mas o Estado Absolutista passou a não mais atuar em prol do desenvolvimento burguês, chegando até mesmo, em certos momentos, a atrapalhar as suas atividades.
Nas palavras de Paulo Bonavides (2001, p. 29) a situação pode ser sintetizada da seguinte forma:
A máquina do poder absoluto e dos privilégios feudais, mantida e
criada pelo ancién régime, e pela arrogância de seus reis de direito
divino, desmantelou-se e produziu um estrondo cuja ressonância
chega aos nossos dias, e ainda perdura com a memória dos eventos.
O processo de limitação do poder do monarca começa então com essa
batalha política que tinha reflexo direto no campo econômico. Um dos
primeiros países onde houve uma luta por um processo mais democrático,
concedendo maiores poderes ao povo e a burguesia, ocorreu, foi na Inglaterra.
Cavalgando rente aos interesses políticos, toda uma nova teoria que
dava respaldo às novas intenções burguesas ia gradativamente surgindo.
Duas teorias especificamente merecem menção. A primeira é a ideia do
liberalismo político, com base nas ideias de Adam Smith sobre a existência de uma mão invisível que regulamentava o Estado e a economia, dispensando, assim, a existência de um Estado centralizado. Outra teoria, de
suma importância, era propugnada pelos iluministas, que visavam à existência de um governo limitado e que garantisse os direitos individuais,
58
protegendo o cidadão da interferência indevida do Estado na vida dos indivíduos.
Trazendo para uma realidade mais concreta, a formação do Estado
Parlamentar inglês foi essencial para o desenvolvimento da Democracia
Representativa. Foram várias pequenas batalhas e vitórias que gradativamente foram conformando os moldes que o parlamento inglês atualmente
tem, sendo necessário citar a formação da Câmara dos 25 Barões, atualmente chamada de Câmara dos Lordes, no século XIII. Por mais que fosse
uma representação aristocrática, já era uma representação que se contrapunha ao caráter absoluto do monarca, garantindo, assim, uma maior participação social na tomada das decisões.
Após essa vitória, outras tiveram campo, segmentando para buscar
novos voos. E foi assim que ocorreu, com a posterior formação da Câmara dos Burgueses, atualmente Câmara dos Comuns, em 1640, opositora tenaz dos poderes absolutistas e buscando, ao máximo, a efetivação
do princípio da soberania popular.
A experiência inglesa ecoou pelo mundo, chegando até mesmo a cruzar o Atlântico e aportar nos Estados Unidos, e ao continente, no caso a
França, sendo esses dois países as grandes referências para o processo de
democratização da sociedade.
Esse processo mobilizou todos os setores da sociedade. A grande
massa foi atraída em prol dos interesses burgueses, mas, uma vez adquirida a consciência de sua força, não de forma pacífica seria deixada de
lado do processo de tomada das decisões políticas.
Com a revolução industrial toda uma nova classe emerge e é completamente negligenciada no processo democrático, por mais que tivesse atuação decisiva na vitória sobre o Absolutismo. A burguesia não tinha interesse em garantir qualquer espécie de direito a essa classe, que futuramente veio a ser conhecida como proletariado.
59
Desse modo, foi desenvolvido um procedimento que visava ampliar
os campos de atuação democrática. A formação classista do operariado
— criando sindicatos, por exemplo — fez com que novas formas de organização viessem a ser criadas, objetivando ingressar no processo político, com direitos e garantias.
Situação que ilustra bem a divergência que ocorreu nos primeiros
momentos de instituição do modelo democrático e representativo está
também vinculada à ideia do estado parlamentar. Sabe-se que um estado
parlamentar não é necessariamente um estado democrático, uma vez que
se pode conceber a existência de um parlamento — órgão central onde as
decisões são tomadas — sem que haja necessariamente ampla participação popular, ou seja, uma formação democrática. Essa situação fica clara
nos ensinamentos de Bobbio (2002, p. 57):
Se por democracia entendemos, como devemos, um regime no
qual todos os cidadãos adultos têm direitos políticos — onde
existe, em poucas palavras, o sufrágio universal —, devemos considerar que historicamente os parlamentos vieram antes da extensão do sufrágio e que, portanto, por muito tempo existiram Estados
parlamentares que eram representativos mas não democrático.
Então, após esses conflitos, no primeiro momento, a burguesia lutando contra o absolutismo, e no segundo, o proletariado buscando direitos contra a burguesia, foi que se deu a luta pela democracia, visando
garantir maior participação na tomada das decisões, a serem tomadas por
aqueles que participam de uma forma mais ampla e que serão afetados
por elas, não somente por um pequeno grupo. O primeiro debate consistiu
em uma luta pela implantação, enquanto o segundo, pela ampliação do
procedimento democrático.
3 O embate entre Rousseau e Montesquieu
Uma vez assegurada uma maior participação no poder, um embate
teórico foi traçado entre dois pensadores cujas lições são estudadas com
60
muita atenção. O conflito entre os dois residia basicamente na forma
como deveria ocorrer a tomada das decisões atinentes à sociedade. O próprio povo deveria, diretamente, sem o intermédio de representantes, decidir o que mais lhe cabe — ideia esta de Rousseau — ou fazê-lo por
meio da escolha de representantes, uma vez que o povo seria bom para
escolher seus representantes, mas não bom o suficiente para tomar as decisões — ideia defendida por Montesquieu?
O posicionamento de Rousseau condiz com a ideia de democracia
direta, negando a viabilidade de representação, vez que não acredita nessa
hipótese de delegação da soberania. Aqui argui-se um dos principais entraves teóricos ao modelo representativo, o de que a vontade expressa
pelos representantes não seja condizente com a vontade do povo. Rousseau (2007, p. 87) era de tal modo contrário à percepção de representação
que chegou a se exprimir da seguinte forma:
A soberania não pode ser representada pela mesma razão por que
não pode ser alienada; consiste ela essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa; ou ela é a mesma, ou outra, e
nisso não há meio termo; logo os deputados do povo não são, nem
podem ser, representantes seus; são comissários dele, e nada podem concluir decisivamente. É nula, nem é lei, aquela que o povo
em peso não retifica.
Justamente essas contradições apontadas por Rousseau levam à fragilidade do modelo democrático representativo como atualmente é conhecido. Essas contradições eram conhecidas de longa data, mesmo na
época em que o primeiro conflito com o Estado Absolutista se deu, mas
eram amenizadas, tendo em vista a existência de um problema maior, que
era o monarca.
O conflito teve como vitorioso Montesquieu, como a história revela.
Mas as ideias de Rousseau até hoje ecoam com certo incômodo na cabeça
daqueles que optam pela escolha de representantes. Certos paradoxos
apontados por Rousseau ainda hoje têm densidade teórica suficiente para
61
condenar certos aspectos da democracia representativa. Essa linha de raciocínio foi delineada por Gilberto Bercovici (2005, p. 283):
O debate sobre a representação política durante a Revolução Francesa, de crucial importância para o Ocidente, teve como principal
fonte as obras de Montesquieu e de Jean-Jaques Rousseau. Para
Montesquieu, o povo deveria fazer por si mesmo tudo o que pudesse realizar, deixando para seus ministros (delegados, representantes), nomeados por ele, a execução das tarefas que não conseguisse cumprir. O povo possuiria suficiente capacidade para escolher (‘Le peuple est admirable pour choisir ceux à qui Il doit confier qulque partir de son autorité’), mas não para governar. […]
Rousseau, por sua vez, considerava todo legítimo republicano,
pois república, para ele, era todo Estado regido por leis, cujo autor
deveria ser o povo.
Os problemas na teoria da democracia também podem ser visualizados internamente, a partir da própria construção de democracia que Rousseau desenvolve, implicando no que Orlando Villas Bôas Filho chama
de sobrecarga moral do cidadão (2008). Ao que parece, colocar um fardo
muito intenso no cidadão e no seu papel na coletividade acaba por ser um
pouco idílico para o desenvolvimento de uma sociedade complexa, acreditar que os indivíduos vão ou devem abdicar dos seus interesses privados
e egoísticos em prol da coletividade.
Uma vez demonstrada a existência de boa parte dos problemas sobre
o governo representativo, o desenrolar histórico simplesmente tratou de
dar maior visibilidade a essas vicissitudes. As contradições teóricas foram
a cada dia ganhando mais escopo doutrinário e respaldo, tendo em vista
a atuação de representantes inescrupulosos que visam somente seus próprios objetivos, deixando de lado o real interesse social e a razão pela
qual foram escolhidos pelo povo.
62
4 As dificuldades do modelo representativo
Depois de expostas as críticas gerais existentes ao modelo de democracia representativa, se faz necessário adentrar em pontos mais específicos que circundam a crítica existente à democracia representativa, visando facilitar a compreensão do tema.
4.1 Conteúdo da representação
Talvez esse seja o paradoxo mais árduo e que até hoje mais pesa contra a Democracia Representativa. Uma das grandes dúvidas levantadas
sobre o modelo representativo é sobre qual vontade estaria sendo realmente expressa quando os representantes estão deliberando sobre certa
questão, a do povo ou a deles como particulares? Será que existe uma
total confluência de vontade entre o que está sendo decidido pelos parlamentares e o que de fato é a vontade do povo? Será que existiria uma
corroboração de tudo o que é decidido se fosse submetido ao crivo da
escolha pública?
Espera-se que, ao se escolher um grupo de pessoas que, em nome do
povo, devem, do melhor modo, decidir as questões da sociedade, sempre
buscando um aprimoramento da sociedade e que essas decisões sejam o
melhor para todos. Essa é, ao menos, a expectativa que se tem quando se
deposita a confiança nesse ou naquele candidato: que não irá poupar esforços na busca pelo bem comum.
Não obstante esse pensamento, a realidade é bem mais complexa do
que o esperado. O processo de escolha de representantes tem uma série
de problemas que já imprimem desconfiança em relação às espécies de
decisões que vão tomar ao longo do mandato.
Os representantes, antes de tudo, são também particulares, assim
como o resto dos brasileiros, mas, infelizmente, às vezes, são levados por
63
seus interesses particulares, usando a máquina política para ampliar e proteger a sua esfera de direito, não fazendo o que é melhor para a comunidade, mas sim, o que é melhor para si. Negam e negligenciam o objetivo
principal e essencial que deveria guiar a sua atuação.
Outro problema está associado ao aparato de campanha que é construído e que é responsável, de certo modo, por eleger os representantes,
tendo em vista os efeitos da publicidade que hoje em dia se vê nas eleições. Todo um grupo se erige em torno do candidato e espera que seus
esforços sejam recompensados quando chegar o êxito nas eleições. Isso
significa que o candidato já tem um pré-comprometimento com um grupo
de pessoas, fato que vai deturpar mais ainda o conteúdo da representação.
4.2 Democracia política e democracia social
A formação de uma Democracia é trabalho dos mais árduos para
qualquer época e qualquer sociedade. A análise das sociedades tidas
como democráticas levou à seguinte conclusão: existem campos democráticos complementares. Os dois grandes segmentos que viabilizam uma
democracia saudável são a existência simultânea de uma Democracia Política e uma Democracia Social.
Democracia Política está vinculada à ideia que todos têm sobre os
modelos tradicionais de apresentação de uma democracia, ou seja, com a
existência dos instrumentos que viabilizem ao povo sua participação no
processo de formação do parlamento e, até mesmo, decidindo de forma
direta em algumas questões específicas, lembrando a existência de uma
variação chamada Democracia Semidireta.
Em complementação à existência de uma Democracia Política, também há outro campo, talvez bem mais árduo, de efetivação do que a democracia que agora foi comentada. É o caso de uma Democracia Social,
na qual o povo tem ciência do seu papel e efetivamente luta pelas questões
64
mais relevantes, não se submetendo à vontade imposta, pelo legislador ou
qualquer outra força, de forma pacífica e questionando as decisões tomadas, não havendo indiferença quanto às questões políticas, mas envolvimento e busca de informação, com mais cobrança, ampliando e aperfeiçoando o debate democrático.
Hoje em dia, observa-se que o povo está gradativamente afastandose e mantendo-se indiferente ao que está sendo deliberado, enfraquecendo
o prestígio das decisões tomadas e ainda dando espaço para a corrupção
dos representantes. Lembrando a lição de Rousseau (2007, p. 87) sobre
os danos que essa apatia política acarreta: “Quando alguém diz dos negócios do Estado: ‘Que me importa?’ — pode-se contar com a perdição da
república”.
Observa-se que a efetivação de uma Democracia Social é um processo árduo e ininterrupto, com vários pressupostos, como educação, emprego e moradia, para que as pessoas possam ter, ao menos, uma situação
minimamente estável para que possam se preocupar com as questões políticas.
Uma vez que há um abismo entre essas duas esferas de democracia,
há um enfraquecimento no teor da representação, fazendo com que a democracia de cada Estado abatido por esse mal venha a ser debilitada,
abrindo espaço para a fragilização de sua sociedade e de sua política. As
lições de Bobbio (2002, p. 68) são úteis para o esclarecimento e o entendimento da questão:
Uma vez conquistada a democracia política, nos damos conta de
que a esfera política está por sua vez incluída em uma esfera muito
mais ampla que é a esfera da sociedade no seu todo e que não existe
decisão política que não seja condicionada ou até mesmo determinada por aquilo que acontece na sociedade civil. Percebemos que
uma coisa é a democratização do Estado (ocorrida com a instituição dos parlamentos), outra coisa é a democratização da sociedade,
donde ser perfeitamente possível existir um Estado democrático
em que a maior parte das instituições — da família à escola, da
65
empresa à gestão dos serviços públicos — não são governadas democraticamente.
Não somente Bobbio, mas outros doutrinadores perceberam a existência desses dois campos complementares da Democracia. Lenio Luiz
Streck e José Luis Bolzan de Morais (2000, p 98), com base nos ensinamentos de Guillermo O’Donnell, também fazem menção a um modelo
que se aproxima do que foi exposto por Bobbio:
a) A instalação de um governo democraticamente eleito abre caminho para uma ‘segunda transição’, provavelmente mais demorada e até mesmo mais complexa que a transição do regime autoritário; b) Espera-se que essa ‘segunda transição’ seja de um governo democraticamente eleito para um regime democrático ou, o
que equivalente, para uma democracia institucionalizada.
Feitas as devidas considerações sobre os campos complementares de
democracia, agora parte-se para a análise de outros pontos relacionados a
crise da democracia representativa.
4.3 Democracia agregativa e democracia deliberativa
A tomada das decisões no modelo representativo se faz pelas pessoas
escolhidas pelo povo no órgão central, parlamento, pela votação e com a
obtenção de votos pela maioria. Quanto a isso não há grandes problemas.
A temática ganha maior relevo quando questionados os motivos que levam aos votos, ao posicionamento de cada representante.
Tendo em vista esse fator, dois modelos democráticos representativos podem surgir: democracia agregativa e democracia deliberativa.
Democracia Agregativa é a mera junção de vontades, não havendo
um fator plausível para justificar a tomada desse ou daquele posicionamento específico pelo representante, vinculando-se somente à questão de
cunho partidário, de uma aliança específica, ou, simplesmente, o fato de
ser “oposição”, deixando de lado o questionamento real sobre o teor e a
66
relevância que a proposta tem para atingir o interesse popular. Nesse procedimento, é observada uma notória falta de racionalidade, uma vez que
boas propostas podem ser descartadas pela oposição, negligenciando o
seu teor, pelo simples fato de formarem a “oposição”, sendo maioria momentânea. As lições de Jânio Vidal (2009, p. 70) são elucidativas na compreensão da questão:
No modelo agregativo, a democracia é vista simplesmente como
um processo pelo qual os cidadãos, em virtude de suas preferências
comuns, são levados a se agregarem para a escolha de candidatos
e políticas públicas, na defesa de seus interesses. Daí, afirma-se
que o modelo agregativo traduz um tipo de democracia centrada
puramente em interesses, isto é, os diversos partidos buscam a adesão de um maior número de cidadãos às suas propostas para, dessa
forma, poderem determinar as ações dos responsáveis pela elaboração das leis e dos negócios públicos em geral, Dá-se, nesse modelo, uma espécie de competição entre grupos, na qual cada partido está mais preocupado com a satisfação de seus próprios interesses.
Já a Democracia Deliberativa é guiada não pela busca de interesses
individuais de forma desarrazoada, mas pela busca da solução para questões de ordem pública, pautada pela racionalidade e pelas trocas de ideias,
nas quais o melhor argumento deve triunfar. Aqui, deixam-se de lado as
questões particulares e busca-se a obtenção do que realmente é melhor
para o povo.
O modelo da Democracia Deliberativa espera que o povo e os representantes deixem de lado as questões privadas quando são levados a optar
por questões da esfera pública, que não pensem no que é necessariamente
melhor para a sua vida particular, mas que considerem a comunidade. Ou
seja, que adotem uma compreensão mais ampla sobre os interesses do
corpo social, desprovidos de interesses egoísticos, agindo de forma racional. Mais uma vez, faz-se uso das lições de Jânio Vidal (2009, p. 72)
para se esclarecer a questão:
67
Para os defensores do modelo deliberativo, seria possível, pelo menos no âmbito da esfera pública, exigir dos indivíduos uma conduta desprovida de sentimentos individuais. O modelo deliberativo
seria, portanto, a associação de cidadãos livres e iguais que, compartilhando valores mínimos, participam de um processo de discussão e tomadas de decisões sobre as políticas a serem adotadas,
e objetivos públicos a serem perseguidos.
A partir dessas considerações, percebe-se o quão fragilizada pode estar uma democracia que não esteja pautada nos valores deliberativos, deixando de lado o melhor argumento e considerando, unicamente, a união
de vontades, formando, assim, maiorias eventuais, mas que representam
simplesmente a soma de interesses individuais e que, em verdade, não
podem ser confundidos com os interesses gerais. Vale ressaltar que os
modelos apresentados guardam proximidade com as lições de Rousseau
(2007, p. 38) acerca da vontade de todos e da vontade geral:
Há comumente grande diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta só fita o interesse comum; aquela só vê o interesse
privado, e não é mais que uma soma de vontades particulares; porém, quando se tira dessas vontades os mais e os menos, que mutuamente se destroem, resta por soma das diferenças a vontade geral.
Diante do exposto, até o momento, uma série de dúvidas vão surgindo, gradativamente, sobre a Democracia que nos vivemos e sobre o
seu estado de saúde, criando uma situação de incômodo sobre as pessoas
escolhidas para representar o povo e sobre as decisões que são tomadas.
4.4 Autofragilização no desenrolar histórico
Além das problemáticas teóricas que o modelo representativo enfrenta, outros problemas foram aparecendo no próprio desenvolvimento
histórico desse modelo. Diferente das vicissitudes anteriores, estas são
devidas a situações históricas específicas, que levaram os representantes
a tomarem decisões políticas extremamente infelizes, fragilizando ainda
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mais o grau de sua importância e gradativamente plantando um sentimento de desconfiança no povo em relação aos representantes.
Três decisões específicas, dentre outras que poderiam ser citadas, serão brevemente comentadas. Todas guardam proximidade sobre o quão
questionável a opção política tomada pelos representantes foi.
Talvez a de maior relevo para a história mundial tenha sido o “Ato
de Habilitação” (Ermächtigungsgestz). Essa lei, expedida de acordo com
a teoria de Kelsen sobre a validade dos atos, conferiu legitimidade ao regime nazista para praticar qualquer ato jurídico, até mesmo a modificação
da Constituição. Isso concedeu poder para a produção, posteriormente,
das Leis de Nuremberg. Essas leis foram o grande suporte que deu validade legal para a execução de todas as barbaridades que ocorreram durante o período nazista. As lições de George Marmelstein (2008, p. 6)
ilustram a situação de forma precisa:
Em 1933, Hitler assumiu o poder através de sufrágio onde obteve
a maioria dos votos dos eleitores alemães. Naquele mesmo ano, foi
aprovado o chamado ‘Ato de Habilitação’ (Ermächtigungsgestz),
conferindo ao gabinete de Hitler o poder de editar normas capazes
de alterar até mesmo a Constituição. Foi esse ato, formalmente válido, que deu suporte jurídico para as barbaridades cometidas contra os judeus. As chamadas ‘Leis de Nuremberg’, aprovadas em
1935, no auge no regime nazista, oficializaram o anti-semitismo,
proibindo, por exemplo, a união matrimonial, a coabitação e as relações sexuais entre judeus e alemães, além de estabelecer uma
divisão social que relegava os judeus a cidadãos de segunda categoria.
Não somente na Alemanha, mas em outros países, algumas leis específicas, produzidas de forma “válida”, foram editadas e acarretaram um
mal-estar no povo e no âmbito jurídico. Outro exemplo a ser citado foram
as “Leis Intoleráveis” (The Intolerable Acts ou the Coercive Acts). Essas
leis foram produzidas pelo parlamento inglês e tarifavam de forma exces-
69
siva as suas colônias na América do Norte, sufocando seu desenvolvimento econômico e acarretando uma situação de insatisfação entre os colonos.
A criação dessas leis acarretou uma grande insatisfação popular,
tendo como ápice a revolta que ficou conhecida como The Boston Tea
Party, evento em que os colonos americanos invadiram um navio e destruíram várias caixas de chá pertencentes à Companhia Britânica das Índias Orientais. Esse fato serviu para instalar uma notória relutância na
sociedade americana em relação ao poder legislativo.
O outro exemplo está bem próximo à realidade brasileira. Trata-se do
Ato Institucional nº 5, que concedeu poderes extremos aos presidentes
militares. Suas principais inovações foram a possibilidade de decretar o
recesso do Congresso Nacional e de decretar a intervenção nos Estados e
Municípios, dentre outras inovações que mitigaram os Direitos Fundamentais.
A situação histórica pode ser sintetizada da seguinte forma, nas palavras de Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, p. 224):
[…] O Parlamento, que se revelou débil diante da escalada
de abusos conta os direitos humanos, perde a primazia que
o marcou até então. A Justiça Constitucional, em que se
viam escassos motivos de perigos para a democracia, passar a ser o instrumento de proteção da Constituição — que,
agora, logra desfrutar de efetiva força de norma superior do
ordenamento jurídico, resguardada por mecanismos jurídicos de censura dos atos que a desrespeitem.
Desse modo, o parlamento foi com sua própria torpeza, minando o
que foi almejado e conquistado com tanto fervor, que seria a soberania
popular, fazendo com que essa flâmula de poder depositado do povo em
si fosse perdendo força e respeito.
70
4.5 A apatia legislativa
Outro ponto que deve ser levado em consideração é a gritante apatia
legislativa visível nos tempos atuais. Ao falar nesse ponto, quer-se referir
ao medo e relutância que os representantes do povo brasileiro têm em
trazer ao cenário político certas questões um tanto constrangedoras, ou,
simplesmente, à opção pelo não legislar, por deixar sem qualquer espécie
de regulamentação certas matérias em torno das quais a sociedade, a cada
dia, clama por respostas definitivas.
Necessário ressaltar que o próprio ritmo do processo legislativo tende
a ser lento, em virtude dos vários fatores que contribuem para a formação
e definição dos moldes que a questão deve tomar. Isso é importante para
impedir a tomada de decisões levianas que não delimitem a questão de
forma correta, necessitando, em sequência, de nova legislação.
Outra questão, completamente diferente, é deixar a sociedade à
mercê, por um longo período de tempo, de um tratamento definitivo para
a matéria, por questões de conveniência política.
Esse fato ocorre, justamente, pela existência de um temor de se perder
o prestígio político ou de se ir de frente aos interesses daqueles que foram
o suporte financeiro de campanha, razões que vão de encontro ao que
seria objetivado pela sociedade, e pela própria percepção de representação. Mas, vale ressaltar, que uma parcela aufere benefícios em virtude da
ausência dessas inovações legislativas. A título de exemplo, pode-se
mencionar a questão da reforma agrária, que até hoje não é discutida seriamente no Brasil, e a questão das relações homoafetivas, que recentemente passou a ser “legislada” pelo Supremo Tribunal Federal.
Outra situação de igual gravidade ocorre em relação à regulamentação das normas de eficácia limitada, de acordo com a clássica classificação de José Afonso da Silva.
71
Essas normas para garantir a amplitude de seus efeitos necessitam de
uma atividade positiva do legislador, no sentido de ampliar o seu raio de
incidência, não podendo o direito albergado pela norma ser exercido de
forma plena até que o legislador atue no sentido de completar o seu alcance e sentido.
Passado um longo período após a promulgação da atual Constituição,
ainda existem certos direitos que carecem de regulamentação para que
possam surtir seus efeitos, como a situação do direito de greve dos servidores públicos (art. 7º, VII, CF/88), que até a modificação jurisprudencial
em relação ao mandado de injunção pelo Supremo, não podia ser exercido.
Ou seja, o medo de legislar faz com que a sociedade fique carente de
leis importantes para que possa ocorrer a definição clara sobre os contornos legais em relação a importantes fatos sociais, para que se possa falar
em segurança jurídica das relações. Os representantes temem de tal modo
a perda do prestígio político com as camadas mais elevadas, que simplesmente preferem a omissão no tratar de certos temas do que realmente
buscar o que seria melhor para a sociedade.
5 Conclusão
Diante do exposto nos itens anteriores, pode-se perceber que um
maior incômodo emerge de forma intensa sobre a questão da representação. Por mais que ocorra um paulatino afastamento entre a atuação esperada dos representantes e a que esses efetivamente vêm realizando, a sociedade não deixa de criar novas temáticas e problemas que causam opiniões divergentes, situações que não podem ficar alheias ao Direito, não
importa o quanto de inércia e inabilidade os representes revelem ao lidar
com elas.
72
Enquanto o Congresso permanece indiferente e evita adentrar nas
questões que implicam maior complexidade para a sociedade, temendo
perder prestígio político, a sociedade fica alheia e não produz resposta
que venha a garantir a estabilidade social para os novos conflitos que
emergem.
Não obstante esse processo de afastamento e fragilização capitaneado
pelos representantes brasileiros, novas possibilidades para a solução dessas controvérsias sociais vêm surgindo. A discussão, que de longa data já
é encontrada na doutrina americana, vem hoje ganhando mais espaço no
sistema constitucional pátrio, vinculada ao papel específico do juiz constitucional na construção, proteção e criação de novos direitos.
A questão torna-se ainda mais complexa em virtude do princípio do
“non liquet”, ou, simplesmente “não julgo”, que impede que o judiciário
não dê uma resposta para os casos concretos que lhe são submetidos, impede que o judiciário seja omisso em julgar a questão. O direito de autotutela, retirado do particular, salvo nos casos extremados, gerou uma obrigação para o Estado, especificamente para o Judiciário, de não se omitir
do julgamento das questões que ocorrem na vida social.
Em virtude do referido princípio clássico, assegurando, especificamente, o direito de ação e a inafastabilidade da tutela jurisdicional, como
deve ser pautada a atuação dos magistrados em virtude da inexistência de
normas regulamentadoras dos temas que chegam às suas mãos?
A Constituição Brasileira de 1988 trouxe uma alta base principiológica, e, sendo os princípios elevados à categoria mais alta, auxiliando na
interpretação das regras, podendo, inclusive acarretar sua invalidade,
pode-se perceber que um grande campo para a decisão judicial emergiu,
tudo com fundamento em uma questão de princípios, mesmo havendo um
vácuo legislativo regulando as matérias especificamente.
73
Uma fragilidade do Legislativo implica uma flâmula de poder negligenciada. A negligência em questão impele a uma nova corrida pelo poder, que tem como principal “competidor” o Poder Judiciário, tendo em
vista a fragilidade dos outros combatentes.
Por mais que a atuação jurisdicional venha ganhando espaço, novos
questionamentos inevitavelmente aparecem e começam a gerar controvérsia e incômodo na mente dos estudiosos de Teoria Geral do Estado, de
Direito Constitucional, dentre outras searas do Direito, sobretudo no que
se refere à Teoria da Separação dos Poderes: como garantir a harmonia
entre os poderes? O papel de um juiz ativista não irá, de certo modo, fazer
com que quem “fez” a lei venha a ser o mesmo que irá julgá-la?
Outro problema que pode ser verificado diz respeito à questão do
princípio democrático. Os deputados e senadores estão adstritos a um
processo de controle popular e podem ser substituídos periodicamente,
mediante o voto do povo. Qual a legitimidade, do ponto de vista democrático, de um juiz constitucional? Quem detém o controle de suas decisões? Quanto tempo um juiz constitucional fica no cargo?
Essas e outras questões emergem na pós-modernidade, na medida em
que se acentua a fragilização do princípio democrático. Percebe-se um
afastamento entre o papel que os representantes deveriam cumprir e o que
efetivamente cumprem, produzindo um vácuo em que um campo decisório sobre as questões da sociedade vaga nas esferas dos poderes. Nesse
momento, o Poder Judiciário realiza os primeiros movimentos em busca
de trazer para si o controle e o poder sobre essas decisões, que outrora
não ficariam ao seu rogo, resultando na ampliação de suas competências.
O esforço para a consolidação dos instrumentos democráticos ao
longo do desenvolvimento histórico passa por uma série de questionamentos. A Democracia representativa é justamente o principal obstáculo
74
que gera uma série de entraves à Democracia — a forma por meio da qual
se verifica, na atualidade, passa por uma crise.
Os representantes estão alheios às questões populares, fazendo opções políticas incorretas, pautando-se em procedimentos que não visam o
melhor para o povo, motivados por interesses classistas, e, talvez o pior,
a existência de um abismo entre a esfera social e o contexto político que
acarreta o descaso da população em relação às decisões políticas.
Tendo em vista esses fatores, uma nova leitura sobre a organização
política ocorre. O jogo de xadrez do poder passa a ter novos movimentos,
resultando em uma série de consequências que devem ser meticulosamente analisadas.
Em razão disso, uma nova flâmula de poder começa gradativamente
a ser içada, com a ampliação do seu campo de influência. O Poder Judiciário passa a tomar decisões que outrora eram completamente inviáveis.
O grande foco dessa fragilidade na questão da representação política está
no modo como o Poder Judiciário relaciona-se com ela. Com base nisso,
uma série de questionamentos vêm ganhando densidade e o Brasil entra
no cenário internacional, já tão rico em outros países, fazendo com que
uma nova disputa pelo poder ocorra. Ressalta-se, por pertinência, que o
resultado dessas questões terá reflexo direto na sociedade.
Essa digressão sobre a origem e o desenvolvimento histórico da Democracia, especificamente a Representativa, tem como resultado justamente o estudo de sua ascensão, estagnação e decadência. Uma vez ocorrendo essa fragilidade, esse poder que outrora era dado aos representantes
fica vagando, mas as questões da sociedade não ficam estagnadas, razão
pela qual uma nova disputa para definir quem estará legitimado a tomar
tais decisões emerge.
75
Referências
BERCORVICI, Gilberto. O impasse da democracia Representativa. In: ROCHA, Fernando Luiz Ximenes; MORAES, Filomeno (orgs.). Direito Constitucional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao professor Paulo Bonavides. Belo Horizonte: Del Rey.
BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia. Tradução de Marco Aurélio
Nogueira. São Paulo: Paz e Terra, 2002
BONAVIDES, Paulo. Teoria Constitucional da Democracia Participativa,
por um direito Constitucional de luta e resistência, por uma nova Hermenêutica por uma repolitização da legitimidade. São Paulo. Malheiros. 2001
MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais, São Paulo:
Atlas, 2008.
MAUS, Ingerborg. O judiciário como superego da sociedade. Tradução: Geraldo de Carvalho e Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires, BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva,
2009.
ROUSSEAU, Jean Jacques, Do Contrato Social, Martin Claret, 2007
STRECK, Lenio Luiz, MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.
VIDAL, Jânio Nunes. Elementos da teoria constitucional contemporânea:
estudos sobre as constantes tensões entre política e jurisdição. Bahia: Juspodivm, 2009.
VILLAS BÔAS FILHO, Orlando. Jean-Jacques Rosseau: a supremacia da
vontade geral, a unidade do corpo moral e coletivo e a sobrecarga ética do cidadão. Prisma Jurídico, v. 7, p. 93-108, 2008.
76
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
CORREIA, José Evandro Alencar. Breves considerações sobre a suposta crise
da democracia representativa. In: MELO, Álisson José Maia (coord.).
Apontamentos didáticos em direito: reflexões às margens do Jaguaribe.
Fortaleza: AJMM, 2016, p. 55-75.
77
CAPÍTULO IV
O PENSAMENTO JURÍDICO MODERNO A
PARTIR DA SOBERANIA
José Evandro Alencar Correia
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Alteração na fundamentação filosófica da
sociedade; 3. Hobbes como elaborador da soberania e do positivismo jurídico? 4. O desenvolvimento do direito baseado na soberania; 5. Conclusão.
1 Introdução
A formação do Estado contemporâneo e os princípios básicos do Direito Internacional moderno são eventos históricos congênitos (KRIELE,
2009, p. 99), ou seja, o nascimento de um está atrelado ao do outro. A
soberania, teoria que é o alicerce do Estado moderno (BONAVIDES,
2010, p. 35), tem reflexos no Direito interno e externo. Em virtude disso,
a soberania, para Nicola Matteucci (1998, p. 1180), se torna um ponto de
convergência entre as teorias políticas e jurídicas da Modernidade e importante para o adequado entendimento da estruturação política interna e
externa e por isso não há como compreender as modificações na estrutura
do Direito Internacional sem antes estabelecer as premissas da sua conformação inicial.
Deve ser feita a ressalva de que a ideia de soberania tem dois sentidos
diferentes, se aplicada no âmbito interno ou externo. No interno, significa
ausência de força superior em uma determinada delimitação territorial. O
Estado é tido como a autoridade suprema em um espaço territorial delimitado. Já no âmbito externo, que trata sobre a relação entre os diversos
Estados soberanos, o conceito é modificado. A relação entre Estados não
tem uma força superior que esteja acima de todos, não há um soberano.
Dessa forma, a soberania no âmbito externo é vista como autonomia entre
78
os diversos Estados soberanos. Todos os Estados soberanos, no âmbito
internacional, são vistos como iguais e autônomos, não podendo ser obrigados a alguma prática com a qual não tenham concordado previamente
(AZAMBUJA, 2008, p. 69).
Mudanças teóricas e históricas são conexas, uma vez que não é possível o desenvolvimento de determinadas concepções e teorias sobre o
mundo, se o contexto histórico não for propício para a reflexão sobre os
pontos que a teoria analisa. As reflexões sobre determinados problemas
só podem ser feitas quando a sociedade os torna minimamente pensáveis.
Não há por que refletir sobre liberdade de religião em um contexto marcado pela unicidade religiosa ou respeito à propriedade privada em uma
sociedade coletivista. A estrutura das relações sociais, em alguma medida, é condição de possibilidade para o pensar teórico. A dinâmica da
sociedade faz com que essas questões sejam problematizadas e possam
ser alvo de reflexão. Ao analisar esses dois flancos (mudança teórica e
social), é possível compreender como a pedra angular, que é a soberania,
se desenvolveu incialmente no âmbito interno e externo. O desenvolvimento da soberania será analisado a partir de dois ângulos ligados: (i) a
modificação da base filosófica; (ii) os eventos históricos que alteraram a
sociedade.
2 Alteração na fundamentação filosófica da sociedade
O desenvolvimento da fundamentação filosófica da soberania pode
ser visualizado nesse curso de eventos: (i) a inicial fundamentação religiosa da sociedade; (ii) processo de laicização social; (iii) desenvolvimento
de nova Filosofia Política; (iv) ascensão de uma nova Filosofia do Direito.
O contexto histórico da Europa era permeado por uma atmosfera que
aos poucos minava a posição central da Igreja como centro propulsor de
79
sentido compartilhado1 para as áreas política, cultural, religiosidade, científica. As primeiras mudanças começaram quando a razão tem seu papel ressignificado e passou a ter a função de explicar o mundo de uma
forma que não tivesse uma correlação necessária com a vontade divina,
mas desde bases racionais e por meio de uma metodologia adequada que
comprovasse suas afirmações. As mencionadas áreas que antes retiravam
seu sentido da religião passaram a ter sua atuação desvinculada dela e até
indo de frente com a igreja.
O direito, por sua vez, aos poucos, tentava se inserir nas mudanças
gerais que ocorriam nas demais áreas. Buscava outra estrutura metodológica que conseguisse garantir um fundamento racional para a sua validade. O défice da Ciência Jurídica fez com que a ideia de racionalidade
fosse aplicada no âmbito jurídico e deu origem à vertente chamada de
jusracionalismo, que tinha por intuito minorar a falta de racionalidade do
direito (WIEACKER, 1967, p. 281-282).
Dessa forma, o desenvolvimento da Modernidade representa gradativa ruptura com a forma de pensar cosmológica da Antiguidade e a teológica da Idade Média em relação ao Direito e outras áreas. Haja vista a
1
A ideia de sentido compartilhado deve ser vista desde o papel de comando que a religião tinha para as demais áreas. Política, Economia, Filosofia e outras áreas eram pensadas no viés religioso. Não tinham autonomia suficiente para pensar por si, mas eram
desenvolvidas com base no centro propulsor de sentido que era a religião. Marcelo Neves, ao analisar a ideia de sentido compartilhado, assim expõe: “As demais esferas e os
seus respectivos códigos de comunicação estariam subordinados a esse arcabouço supremo, composto de moral impregnada religiosamente e de dominação política: a arte,
o saber, o direito e a economia estavam semanticamente subordinados à diferença entre
o bem e o mal, assim como orientados pelos critérios do poder superior ou inferior.
Assim sendo, a diferença licitude e ilicitude (direito) não se distinguia nitidamente da
diferença entre bem e mal, antes se confundia amplamente com esta; o seu lado positivo
estava associado com a superioridade na dominação e o seu lado negativo, com a inferioridade. O mesmo se passava com as diferenças ‘ter/não ter’ (economia), ‘verdadeiro/falso’ (ciência) e ‘belo/feio’ (arte)”. (2009, p. 7). Nesse sentido que deve visto a
ideia de sentido compartilhado. Uma única forma de pensar consegue fazer com que a
sua racionalidade seja aplicada a outras áreas.
80
magnitude que essas alterações implicam, tal mudança no Direito e na
Política, em termos filosóficos, ocorrem aos poucos. Gradativamente, as
mudanças no modo de pensar da sociedade vão ganhando força e eco.
Três autores podem ser destacados como precursores desse processo:
Duns Scoto, Marsílio de Pádua e Guilherme de Occam (GOYARD-FABRE, 1999, p. 5).
Duns Scoto defendia uma nova leitura da relação entre a vontade divina e a vontade humana para atribuição de sentido as coisas. O autor
defendia a posição da vontade do homem na formação do sentido das
estruturas sociais e jurídicas2. Essa ideia de Duns Scoto também está relacionada à crítica nominalista à existência de valores e sentidos inatos,
universais, para palavras e coisas. O sentido das coisas não existe de
forma transcendente, mas é fruto da vontade e da convenção. O valor moral das atitudes humanas não deve ser visualizado desde uma dimensão
transcendente, mas sim com origem na vontade humana que os classifica,
escolhe nomes, significados e define a valoração. Simone Goyard-Fabre
(2002, p. 41) expõe que:
Reconhecia-se por certo que as capacidades de construção do homem são limitadas, muito particularmente pela ‘lei natural’, parte
da ‘lei divina’ que continuava a ser invocada. Mas, numa notável
consonância com as teses scotistas, disseminava-se a idéia segundo a qual as leis positivas do reino são deduções, por parte do
legislador ou do magistrado, das disposições gerais da lei natural
divina: procedimento lógico do qual se exprimem correlativamente os atos da vontade e da razão humanas.
2
A da formação de sentido e o papel humano buscam esclarecer que as coisas não possuem um sentido inato. Azul é azul por uma convenção. O ser humano é quem atua no
mundo, fazendo com que as coisas possam ser vistas como possuidoras de um sentido,
não há algum valor transcendente ou imanente que dê significado às coisas. Assim também, em relação aos valores, o bem ou um mal de uma conduta não está relacionado a
nenhum sentido feito por Deus ou qualquer instância transcendente, mas sim à valoração
humana dada a conduta.
81
Marsílio de Pádua e Occam fizeram uma análise que postulava uma
separação entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus – defendiam a
secularização da sociedade. Mesmo que a análise realizada por esses autores tivesse um resultado diferente do que era obtido pela tradicional
doutrina teológica, a argumentação utilizada por tais autores ainda derivava da fonte cosmológica e teológica, por isso é que a interpretação deles com eminentemente modernos ainda deve ser recebida como parcimônia (GOYARD-FABRE, 1999, p. 7, 10 e 11). O processo iniciado por
esses autores não representava uma ruptura total com a estrutura filosófica antiga, mas: “eles abriram uma brecha profunda na visão cosmoteológica até então correntemente aceita. Logo a brecha será tão grande que
a filosofia enfatizará o papel primordial do homem na instituição do direito […]”. (GOYARD-FABRE, 2002, p. 42)
A Guerra dos Cem anos fez com que a discussão filosófica passasse
por um período de adormecimento. Do ponto de vista empírico, no entanto, com a reconstrução econômica de alguns países (Inglaterra, Espanha, Itália e França), ocorreu uma tendência cada vez mais intensa para
centralização do poder, em virtude da criação de exércitos permanentes e
oficiais reais. Além disso, o papel da Igreja continuava a ser minado ante
os constantes escândalos. O fim da guerra implicou o fortalecimento dos
Estados, e mais uma, vez um ambiente adequado para as reflexões filosóficas em torno das questões sobre o poder, sua origem e limites. Nova
tríade de filósofos (Maquiavel, Bodin e Hobbes) contribuiu para a continuidade dos processos que estavam em curso e que iriam importar na superação da antiga mentalidade teológica e a formação de outra filosofia
política e jurídica (GOYARD-FABRE, 1999, p. 12-13).
Para Leo Strauss, Maquiavel traz um novo enfoque interpretativo sobre a política. Tal matéria não deve ser estudada com suporte em de uma
visão idealizada, mas sim de elementos que guardem correspondência
com a realidade. Leo Strauss (2013, p. 270) expõe que: “Chega de reinos
82
ou repúblicas imaginadas aquele que se orienta pela virtude para depreender como o homem deve viver. Foi exatamente o que fizeram os filósofos clássicos. Assim, chegaram aos melhores regimes da República e
da Política”.
Maquiavel, no âmbito da Filosofia Política, tem sua atuação comparada à de Cristóvão Colombo, uma vez que seria o desbravador do novo
mundo onde seria erigida a Filosofia Política moderna. O ponto diferencial de Maquiavel, na Filosofia Política, é ter se afastado tanto da fundamentação quanto do diagnóstico social que era dado pela Filosofia Antiga
e Medieval. A Filosofia Política iniciada por Maquiavel implica uma cisão total entre a Cidade dos Homens e a Cidade de Deus, representando
a secularização do pensamento político. Maquiavel inova também em relação ao uso do termo Estado, passando a ser utilizado com uma conotação moderna:
Essa novidade se concentra na invenção da palavra Estado e na
conotação que logo lhe é atribuída num registro que, rejeitando
qualquer ideal contemplativo, situa no seu conceito de pólo oposto,
conjuntamente, do idealismo antigo, do Cristianismo, do estoicismo e, de maneira mais geral, de qualquer moralismo. De fato,
sob a pena de Maquiavel, ainda que sem uma perfeita constância,
a palavra Estado assume uma conotação verdadeiramente ‘moderna’. (GOYARD-FABRE, 1999, p. 18).
Maquiavel iniciou a verdadeira modernidade do ponto de vista teórico, mas a sociedade ainda não estava pronta para incorporar suas lições.
Houve significativa reticência até que as lições da nova Filosofia Política
fossem aceitas3. Leo Strauss, ao interpretar o último capítulo de O Príncipe, de Maquiavel, traz à tona uma leitura sobre a exaltação feita por
Maquiavel ao príncipe Lourenço de Médici para a libertação e unificação
da Itália, onde o Florentino compara o príncipe a Moisés e sua atuação
3
A resistência era tal ao ponto de Wayne Morrison lembrar-se de que Maquiavel foi
acusado de escrever com o “dedo do demônio”. (2012, p. 90).
83
em relação ao povo judeu. Ocorre que, para Leo Strauss (2013, p. 272),
“Esse novo Moisés é o próprio Maquiavel, e o novo Decálogo são os ensinamentos inteiramente novos sobre o príncipe inteiramente novo em um
Estado inteiramente novo”.
O paralelo histórico com Moisés continua na medida em que não lhe
foi dado o papel de restabelecer o povo judeu na Terra Prometida, mas
sim de guiá-los até lá. Ao realizar sua tarefa, este faleceu nos portões da
Terra Prometida. O mesmo aconteceu em relação a Maquiavel, mesmo
que tenha encontrado e conduzido a Filosofia Política até a nova faceta
moderna, não seria este quem iria construir o edifício moderno, mas caberia a outros autores dar continuidade a sua empreitada. O projeto iniciado por Maquiavel seria continuado por outros filósofos. Desde esse momento, será dado especial destaque às contribuições de Hobbes para a
formação da doutrina da soberania.
Falar sobre o papel de Hobbes para a política e o direito, é se referir
ao princípio da soberania e como este será incorporado e desenvolvido de
forma intensa para a continuidade do pensamento jurídico contemporâneo.
3 Hobbes como o elaborador da soberania e do positivismo
jurídico?
O especial foco sobre o papel de Hobbes se justifica na medida que
algumas de suas conclusões remontam, mesmo que indiretamente, às seguintes ideias: (i) o Estado como detentor único da soberania, com competência exclusiva para produzir o direito válido e demais atribuições do
Estado; (ii) como os Estados são, apenas eles, detentores da soberania,
passam a ter posição primordial no sistema internacional, sem nenhum
poder superior que possa infringir sua soberania. As normas do sistema
84
internacional, então, só podem ser feitas com a devida anuência dos Estados no gozo de seus poderes soberanos. Essas duas teses dão a tônica
da elaboração jurídica moderna e podem ser remontadas à teoria criada
por Thomas Hobbes. A soberania foi essencial para a formação do Estados moderno e para o Direito Internacional.
A compreensão adequada da soberania passa necessariamente pela
obra de Hobbes, levando em consideração o contexto cultural, econômico
e político de sua época. Na medida em que esses pontos são compreendidos, o desenvolvimento da soberania e os reflexos para o Direito podem
ser dimensionados de forma clara.
Hobbes está inserido na nova conjectura filosófica que via o fortalecimento do empirismo (Francis Bacon), do racionalismo (René Descartes) e influenciaram de forma geral para o desenvolvimento do jusracionalismo (MORRIS, 2012, p. 95). As Ciências Naturais afastaram sua pesquisa da existência de uma ordem natural advinda de uma vontade divina.
Para o Direito e a Política, de acordo com Hobbes, deveria ser feito o
mesmo caminho das demais ciências.
Hobbes queria identificar uma premissa básica cujo conteúdo pudesse ser desenvolvido pela empiria ou por um processo indutivo racional. A grande questão para o Direito seria estabelecer a premissa inicial,
escolher a metodologia e que suas conclusões passassem pelo escrutínio
do tribunal da razão. Para realizar tais procedimentos, seria necessário
que o autor estabelecesse suas premissas e tivesse rigor metodológico na
sua interpretação para chegar às conclusões racionalmente adequadas.
Além do contexto cultural favorável ao florescimento da razão, Michel Villey (2009, p. 678), também, se recorda de que, do ponto de vista
econômico, para o desenvolvimento da sociedade de mercado, seria interessante que houvesse a centralização do poder em estrutura única, como
será postulado ao final por Thomas Hobbes, haja vista que as relações
85
comerciais poderiam ocorrer de modo mais estável, sem ter que pagar
tributos para os diversos feudos.
Do ponto de vista político, o contexto belicoso no qual Hobbes nasceu fez com que sua formulação filosófica fosse influenciada pelos temores da guerra civil e dos conflitos religiosos. Por isso, o propósito de
sua obra era a elaboração de uma estrutura que conseguisse alcançar a
paz. Martin Kriele relata as dificuldades em compreender o que significa,
os horrores da ameaça constante à vida, liberdade e segurança, para o
observador que não os vivenciou. Kriele (2009, p. 67) também lembra
que, além do medo da guerra, ainda resta o terror pós-guerra, com as atividades que submetiam os vencidos a constante humilhação. Dessa
forma, um dos pontos para o desenvolvimento social, naquele momento,
era que a paz interna fosse estabelecida. Por isso, compreender a soberania está atrelado justamente aos horrores da guerra civil e à questão de
como manter a paz (KRIELE, 2009, p. 68).
4
O ponto que mais causava turbulência interna advinha do conflito religioso entre protestantes e católicos e que tinha como pano de fundo a
questão envolvendo se o Estado deveria se portar de acordo com o princípio de conformidade religiosa ou tolerância confessional. Um dos eventos mais marcantes foi a Noite de São Bartolomeu, quando a Rainha Catarina convidou os huguenotes para as festividades do casamento de sua
filha, com uma promessa de tolerância, mas o convite se transformou em
uma forma de atacar os huguenotes indefesos e causar um banho de sangue (KRIELE, 2009, p. 70-71), quando foram vitimados 70 mil protestantes franceses.
4
Morrison lembra que Hobbes nasceu no dia que chegou na Inglaterra a notícia de que
a invencível armada espanhola havia zarpado em direção a Inglaterra, fazendo sua mãe
entrar em trabalho de parto prematuro diante dos temores da guerra. Hobbes afirma que
nesse dia sua mãe deu à luz a ele e ao medo que a guerra representa (2012, p. 92).
86
A guerra parecia não ter uma resposta adequada, a solução que aos
poucos se apresentava mais viável para essa situação foi o desenvolvimento da doutrina dos politiques de uma estrutura política com força superior para alcançar e manter a paz:
O seu objetivo era fortalecer a autoridade do rei de tal forma que
ele estivesse em condições de tornar os éditos de tolerância efetivos. Na prática, intencionava-se que o poderio militar do rei fosse
suficientemente reforçado para que pudesse se impor perante os
partidos em guerra com o objetivo de força-los à paz. Para essa
finalidade era necessário atingir um fundamento de lealdade suficientemente forte, o qual fosse mais intenso do que todas as formações feudalistas e mercenárias. A formulação da Doutrina da
Soberania serviu a esse objetivo. (KRIELE, 2009, p. 71-72).
A guerra e a instabilidade política têm reflexos de grande importância
para a compreensão que Hobbes tem sobre a sociedade humana, acerca
do próprio ser humano e qual a solução para escapar dele.
A partir dessas premissas, os dois grandes objetivos de Hobbes, de
acordo com Laurence Berns (2013, p. 355), eram: “(1) assentar, pela primeira vez, a filosofia moral e política sobre uma base científica e (2) contribuir para a concretização da paz cívica e da amizade e para a criação
de uma disposição na humanidade, para o cumprimento dos seus deveres
cívicos”.
O primeiro ponto está ligado diretamente ao espírito de renovação
científica e de prestígio da razão e o segundo também guarda ligação direta com a instabilidade política e de guerras fruto dos conflitos religiosos.
O foco metodológico que Hobbes adotava tem como aspectos primordiais a razão e o homem. A metodologia visava a uma análise da sociedade adequadamente delimitada e a uma argumentação que deveria
seguir uma linha de premissa e as derivações racionalmente justificadas,
mantendo coerência com o espírito racionalista. Como já exposto, o foco
de análise é o homem, Hobbes estabelece uma premissa sobre a natureza
87
humana, modificando a discussão em torno “da natureza das coisas”, para
“a natureza dos homens”, se adequando à ruptura com as premissas cosmológicas.
O estabelecimento da premissa inicial está diretamente relacionado
as guerras que a Europa vivia5. Ao analisar o homem com um viés antropológico, focando na dimensão da “psicologia mecanicista das paixões”,
Hobbes resgata o nominalismo, afirmando que não há bem ou mal inato
e que a valia das coisas está atrelada ao que é prazeroso ao homem e as
suas paixões. Esta, por sua vez, tem o poder até mesmo de ludibriar o
pensamento e captá-lo para que as atitudes humanas sejam guiadas para
realizar seus desígnios (BERNS, 2013, p. 357).
A situação na qual todos buscam tão-somente suas vontades é denominada de “Estado de Natureza” uma estrutura pré-política, sem poder
centralizado, e também sem qualquer direito que possa ser reivindicado
de forma legítima.
No Estado de Natureza o fato de os homens serem iguais em desejos
e possibilidades físicas, mesmo o mais forte pode sucumbir ante um outro
que seja mais fraco. Na medida em que eles são iguais, ocorre uma tendência natural de choques entre os diversos seres humanos, que podem
ser subjugados ou mortos por outros indivíduos que buscam a satisfação
dos desejos pessoais. A solução para a possibilidade de ser atacado e ter
sua vida retirada ou seus bens serem pilhados é atacar de forma preventiva e subjugar o maior número de outras pessoas. A consequências é a
5
Essa dimensão histórica de doutrina que pretendem ser ahistória é uma ironia que Franz
Wieacker (1967, p. 309) identifica no movimento do jusracionalismo. Além da imersão
geral no contexto de racionalidade, a concepção de Hobbes também bebe diretamente
da situação histórica, o que torna relativamente turva a sua concepção sobre o homem.
O mesmo raciocínio é exposto por Kinch Hoekstra (2007, p. 114), que ressalta o contexto histórico que Hobbes vivenciou: “There can be no doubt that Hobbes’s thought
was shaped by accounts of, and by his own experience of, civil war and international
conflict”.
88
guerra de todos contra todos (HOEKSTRA, 2007, p. 110). Essa situação
de conflito causa no ser humano um sentimento de angústia e de grande
frustação, pelo fato de que a todo momento estar em situação de perigo.
O único aspecto positivo do Estado de Natureza, para Hobbes, é a possibilidade de sua superação (BERNS, 2013, p. 359).
A solução que Hobbes oferece para fugir do Estado de Natureza deve
ser feita desde as bases racionais, mantendo a nova tônica do pensamento
científico. A interpretação feita por Kinch Hoekstra é de que Hobbes exibiu uma ideia baseada no dilema do prisioneiro. No Estado de Natureza,
seria melhor se todos os ataques cessassem e as pessoas pudessem viver
em paz, mas, tendo em vista que não há como garantir a cooperação dos
demais, o risco de sofrer um ataque e ter a posse de seus objetos espoliada
e sua vida ceifada é alta, fazendo com que a agressão preventiva e a dominação continuem sendo a alternativa mais adequada ao dilema. A
solução que Hobbes pensa é
What is needed is a way to change the cost-benefit matrix, making
cooperation more profitable for each person than conflict. This can
be seen as the role of the sovereign, who sets a stiff punishment
for attacking or otherwise disobeying, and so enables covenantkeeping and peace. (HOEKSTRA, 2007, p. 115).
A resposta matemática e individualista para os homens saírem do Estado de Natureza, as incertezas e os perigos que advêm dele, é por meio
do contrato social. Uma análise de custo e benefício entre o Estado de
Natureza, e o contrato civil, em que todos os homens devem abdicar de
sua liberdade em prol de um só soberano. O contrato será celebrado visando ao benefício próprio, as partes não mais terão que temer que todos
os homens a qualquer momento possam lhe agredir, mas, por outro lado,
todos devem respeitar os ditames daquele escolhido como o soberano. A
forma de manter a paz será alcançada por uma estrutura que tenha força
suficiente para se colocar de forma superior aos indivíduos e a sua tendência natural em buscar seu benefício, criando normas e garantindo que
89
elas sejam cumpridas, por meio da centralização do poder (BERNS,
2013, p. 361).
Essa formulação de Hobbes tem por intuito envolver o Direito nas
dimensões matemática e geométrica6, desenvolvido por Euclides, desde
uma estrutura lógica. O Direito poderia ser explicado e compreendido
com amparo na relação entre premissa maior e premissa menor (raciocínio lógico). Dessa forma, o Direito poderia ser constituído e justificado
racionalmente. Essa reflexão é corroborada por Michel Villey (2009, p.
685) e por Franz Wieacker (1967, p. 310). Este assim expõe:
Com o sistema do jusracionalismo, a ciência jurídica positiva
adoptou também a sua construção conceitual. Numa teoria que tinha de se comprovar perante o forum da razão através da exactidão
matemática das suas premissas, o conceito geral adquiriu uma
nova dignidade metodológica. Agora, ele não era já apenas um
apoio tópico, um artifício na exegese e harmonização dos textos,
mas o símbolo central que exprimia a pretensão de organização
lógica da ciência jurídica. As últimas fases do jusracionalismo, sobretudo, consideram que sua missão consistia numa demonstração
das normas jurídicas que aspirasse à evidência lógica da prova matemática, e que consistisse, portanto, numa ininterrupta progressão
dos conceitos mais gerais para os mais especiais: uma demonstratio more geometrico, a que corresponde, como precisamente se exprime no título e na forma expositiva da sua Ethica more geometrico demonstrata, a metafísica de Espinosa.
Ao soberano serão concedidos poderes para que ele tenha condições
de garantir a estabilidade social perante os conflitos que as paixões humanas naturalmente criam no convívio. O pacto social não implica que
os conflitos vão deixar de existir na sociedade, mas que eles vão ser desestimulados pela existência do soberano e pelo temor de que a sanção
será maior do que o benefício auferido com o desrespeito à norma. Para
6
Esse aspecto geométrico pode ser visualizado até mesmo em Kelsen, ante a clássica
estrutura piramidal. Logicamente construída com base em normas autorizadas por outras
normas. Até chegar à norma superior e única, forma a imagem de uma pirâmide. (2009,
p. 223).
90
que o soberano venha a realizar de forma eficaz sua função de garantir a
segurança jurídica, ocorre uma centralização nas suas mãos do poder de
legislar, punir e julgar os conflitos que porventura venham a aparecer
(BERNS, 2013, p. 364-365). A vingança privada passa a ser admitida em
hipóteses residuais e o único Direito válido é aquele produzido pelo Estado, detentor da soberania. Os reflexos disso são
O poder soberano, que o ato do contrato lhe confere, faz dele o
‘único legislador’, habilitado por sua autoridade irrestrita – apenas
submetida à condição de não contradizer os dictamina da ‘lei fundamental da natureza’ – a definir como um conjunto de ‘regras e
medidas’ que, aplicadas a particulares, são mandamentos de seu
poder supremo (summum imperium). (GOYARD-FABRE, 2002,
p. 47).
Essas considerações correlacionam o princípio da soberania e a concepção que tem o Estado como único produtor de normas. Se o Estado é
o soberano e só cabe ao soberano produzir normas, então, só são jurídicas
as normas produzidas pelo Estado. O ponto que segue tem por escopo
demonstrar como as elaborações teóricas após Hobbes assimilam a premissa do soberano e da unicidade do Direito que é formada pelo Filósofo
inglês.
4 O desenvolvimento do direito baseado na soberania
Na medida em que Hobbes explicita a relação entre o poder e o processo de desenvolvimento normativo, essa relação passa a ser uma das
questões mais sensíveis da Filosofia do Direito e, aos poucos, é enraizada
na ideia e formação do pensamento jurídico. Somente por meio da concentração do poder, do reconhecimento do soberano, seria possível superar o Estado de Natureza, estabelecer a paz e fazer as normas para que a
vida social pudesse se desenvolver de forma ordenada. A relação entre
poder e Direito passa a ter importância enorme para a Filosofia Jurídica
91
e Política. Retratando essa relação, Eduardo Bittar e Guilherme de Almeida (2005, p. 514) assim expõem:
Quando se está a pensar no Direito como um sistema coercitivo de
manutenção da ordem social, já aí se pode detectar a presença notória do poder, que parece ser o ingrediente fundamental para a
formação das estruturas jurídicas, ainda que mascarado ou suavizado sob o manto da racionalidade na norma jurídica. Enfim, o
poder normativo é um poder que veio substituir o poder violento,
uma vez que, ao menos, procura-se mascarar a dominação em atitudes controlas e que demanda, de qualquer forma, decisões sociais.
O poder (sentido amplo) passa por um processo de lapidação no qual
podem ser visualizadas três dimensões específicas: a força, o poder (sentido estrito) e a potência. O primeiro estágio implica uma atuação caótica
e anárquica na sociedade, desprovida de centralização. Na etapa do “poder”, é possível visualizar a institucionalização e a mitigação do uso indiscriminado da força, já que se reduz o soberano a uma figura, mesmo
que sujeito a excessos. A última fase, potência, já representa a domesticação até mesmo do soberano por estruturas jurídicas, uma transição para
uma faceta institucionalizada que regula e condiciona a utilização do poder; um processo que passa da força bruta, força desmedida, até chegar
em força jurídica (BITTAR; ALMEIDA, 2005, p. 519).
Na medida em que essas ideias foram externadas, é possível retornar
aos dois principais pontos para justificar o especial foco em Hobbes7. As
duas preocupações básicas de Hobbes eram: deixar de lado a perspectiva
idealizada da Filosofia antiga; desde bases racionais formar uma estrutura
7
Com o intuito de rememorar e facilitar a leitura, os pontos serão repetidos aqui: (i) as
teorias posteriores vão assimilar a ideia de Estado e Direito atadas pela soberania, de tal
forma que passa a ser uma questão natural a correlação entre Direito e Estado e a redução
do direito válido o unicamente produzido pelo Estado; (ii) como os Estados são os detentores da soberania, eles passam a ter uma a posição primordial no sistema internacional, sem nenhum poder superior que possa infringir sua soberania. As normas do sistema internacional, então, só podem ser feitas com a devida anuência dos Estados no
gozo de seus poderes soberanos.
92
política que conseguisse analisar o poder como uma estrutura de dominação, chegando à justificativa racional da soberania. A soberania é constituída de forma inacabada, mas seu alicerce principal encontrava-se relativamente acabado com Hobbes.
A questão discutida no momento é que, não obstante as mudanças em
vários aspectos, o ponto central do poder soberano expresso em Hobbes
foi inspiração para as demais teorias, mesmo críticas a ele, que tomam
esse ponto do seu arcabouço teórico. Simone Goyard-Fabre (1999, p. 74)
aponta justamente este aspecto:
Hobbes conduz a um ponto tão alto de desenvolvimento da temática do Poder produtor das normas da instituição política que ela
permanecerá, até nossa época, o fio condutor de um direito político
que conquistou sua autonomia: o Poder do Estado moderno tem o
monopólio da criação do direito, a tal ponto que, onde não existe
Poder, não há direito.
Anderson Vichinkeski Teixeira (2011, p. 69) traz um conceito de soberania que pode ajudar na correlação entre Hobbes e as considerações
precedidas até o momento:
A noção de soberania representa a racionalização jurídica e a institucionalização política do poder de fato exercido sobre um determinado espaço territorial, permitindo que tal poder se transforme
em um poder jurídico e diferencia aquela sociedade política das
demais formas de organização e associação humana.
Esse conceito de Teixeira é compatível às considerações feitas sobre
o soberano e o poder. Existe uma diversidade de concepções teóricas que
analisam exaustivamente o tema e o que é necessário na compreensão da
soberania é a sua essência e como ela reflete para as demais áreas.
O desenvolvimento da soberania em Hobbes tem dois aspectos, um
aspecto macro e micro. O primeiro reside na existência de um soberano
que centraliza as competências estatais. O segundo são as questões sobre
quem é o soberano e os limites de sua atuação. O desenrolar teórico não
93
submete a dúvida a existência de um soberano, mas modifica as concepções sobre quem ele é (monarca, povo, nação) e quais os limites de sua
atuação (direitos individuais, sociais).
Na medida em que o aspecto macro se mantém, o Direito moderno
passa a ser alicerçado nesse ponto básico: a existência de um soberano.
Ao analisar a teoria de Rousseau, por exemplo, Miguel Reale (2000, p.
226) vê que, mesmo com uma abordagem diferente sobre a natureza do
homem e acerca de quem é o detentor da soberania, este não rejeitou a
ideia de que toda a produção normativa advém do Estado, Rousseau:
“[…] acaba reconstruindo – no outro extremo do individualismo contratualista – todo o estatalismo da doutrina de Hobbes, isto depois de tentar
em vão resolver aprioristicamente a antítese liberdade-autoridade”. O que
Rousseau fez foi modificar o soberano do monarca, para a soberania popular, como Mário Lúcio Quintão Soares (2004, p. 108) também defende:
“Todavia, a doutrina do príncipe absoluta viu-se traduzida por Rousseau
em seu Contrato Social, como ausência de limitação da vontade popular”.
Os diversos teóricos insertos “contratualismo”, por mais divergentes
que possam ser entre si, não fogem à noção de soberania. No caso específico, assimilam a ideia de um estado de natureza (independentemente
se era pacífico, de guerra, ou estável), que é rompido com o desenvolvimento do estado civil e a ascensão de um soberano. Este raciocínio é corroborado justamente no ponto macro de concordância entre os diversos
autores:
Pode-se dizer, em resumo, que os contratualistas não podem deixar
de concordar com algumas proposições claramente enunciadas por
Hobbes: o estado de natureza é caracterizado negativamente pela
ausência de um poder legal, constituído por contrato, capaz de controlar e obrigar os membros da sociedade, caracterizado, portanto,
pela falta de monopólio legal da força. (MATTEUCCI, 1998, p.
275).
94
A soberania, na figura metafórica do Leviatã, é a coluna de sustentação da Modernidade. O Estado passa a ter a função básica de produção
normativa e, com o tempo, outras tantas funções passam a ser incorporadas. O Leviatã é domesticado pelas normas constitucionais, devendo usar
seu poder de acordo com o preceito da legalidade, respeitar a liberdade
individual, e chega até mesmo ao ponto de ser um propulsor da igualdade
e da justiça distributiva. As diversas mutações a que é submetido, entretanto, partem da sua existência e seu papel central na teoria jurídica, o
que é ressaltado por Simone Goyard-Fabre (2002, p. 68), quando expõe:
Sua força é quase incontestável: na via aberta pela filosofia construtivista do Estado-Leviatã, o direito, em sua juridicidade, mudou
de fonte, de forma e de sentido. Pouco importa se o Estado se inclina para um centralismo monárquico ou atende a uma inspiração
liberal: a legalização do direito está se efetuando. […] as tendências racionalizantes do pensamento moderno tentam arrancar das
sobrevivências ou das persistências dos esquemas tradicionais do
direito natural clássico, é que ele pende para o que, à primeira
vista, poderia parecer seu contrário, a saber, o positivismo jurídico.
Os reflexos da correlação entre um soberano e a capacidade de criação do Direito são importantíssimos. O Direito deixa de ser um dado que
deriva da ordem cosmológica e passa a ser um construto que advém exclusivamente da vontade do soberano. Se há uma correlação entre a vontade do soberano e a validade das leis, sendo o Estado o ponto de consolidação desse poder, também há uma ligação umbilical entre as normas
produzidas pelo Estado e as normas jurídicas. Só serão normas jurídicas
as que forem produzidas pelo soberano, no caso, pelo Estado. De acordo
com Nicolas Matteucci (1998, p. 1182),
A grande mudança consiste, pois, no fato de que o direito, que anteriormente era dado, agora é criado; antes era buscado, pensado
na justiça substancial, agora é fabricado com base na racionalidade
técnica, na sua adequação aos objetivos. Esta estatização do direito
ou esta redução de todo o a uma simples ordem do soberano, esta
legitimação do ius não pelo iustum, e sim pelo iussum, corresponde
95
a uma profunda revolução espiritual e cultural que, a partir da Reforma, atinge também a organização leiga da sociedade, que tem
como elemento central a vontade.
Assim expresso, o conceito de soberania e o papel do Estado passaram a ser centrais para a compreensão das estruturas políticas e jurídicas
vigentes na sociedade moderna. À proporção que esses dois pontos se
identificam, o Estado e a soberania são dois pilares que se fundem e são
essenciais para a compreensão da Modernidade. A soberania passa a ser
o norte de explicação da produção de normas para as relações nacionais
e internacionais. A formação da Modernidade acarreta o desenvolvimento do que foi chamado de “legicentrismo estatista”:
O direito do Estado é essencialmente um direito positivo determinado por uma razão construtiva que, além disso, disciplina sozinha
a autoridade de coerção vinculada às leis e às regras de direito.
Com Hobbes, fica plenamente estabelecido que o direito nada deve
ao Céu, nem à experiência, nem à história: ele se insere no âmbito
do legicentrismo estatal que é obra da razão, e seu valor provém
apenas do poder de decisão do poder público. (GOYARD-FABRE, 2002, p. 50-51).
Este diagnóstico também é feito por Bobbio (2006, p. 26), ao analisar
a formação do positivismo jurídico e a separação da relação entre Direito
natural e positivo. Com a afirmação da superioridade deste, o autor identifica tal momento com a dissolução da sociedade medieval e a ascensão
do Estado Moderno. Ele também destaca os reflexos que a transição da
sociedade medieval para a configuração moderna trouxe para o Direito:
Com a formação do Estado moderno, ao contrário, a sociedade assume uma estrutura monista, no sentido de que o Estado concentra
em si todos os poderes, em primeiro lugar aquele de criar o direito:
não se contenta em concorrer para esta criação, mas quer ser o
único a estabelecer o direito, ou diretamente através da lei, ou indiretamente através do reconhecimento e controle das normas de
formação consuetudinária. Assiste-se, assim, àquilo que em outro
curso chamamos de processo de monopolização da produção jurídica por parte do Estado. (BOBBIO, 2006, p. 27).
96
As diversas teorias contratualistas guardam afinidade entre si quanto
à conclusão da necessidade do poder soberano detentor das funções estatais, como afirma Bobbio. As distintas teorias não implicam mudanças
tão profundas quanto se imagina, mas, na verdade, continuam na estrada
do racionalismo jurídico e adotam algumas conclusões que defendem a
soberania. Os problemas que advém do absolutismo (abuso de poder, mitigação das liberdades) podem ser minorados não com a refutação da soberania, mas com a domesticação do Leviatã, por meio de princípios
como a separação dos poderes e a representação política para a formação
da vontade do corpo político. Recorrendo às palavras do próprio autor,
temos:
Fizemos esse paralelo entre concepção absolutista e liberal porque
a passagem de uma para a outra não implica num conflito tão drástico, como comumente se sustenta, relativamente ao problema que
aqui nos interessa. Na verdade, a concepção liberal acolhe a solução dada pela concepção absolutista ao problema das relações entre legislador e juiz, a saber, o dito dogma da onipotência do legislador (a teoria da monopolização da produção jurídica por parte
do legislador); as codificações, que representam o máximo triunfo
celebrado por este dogma, não são um produto do absolutismo,
mas do iluminismo e da concepção liberal do Estado. (BOBBIO,
2006, p. 38).
Em relação a herança de Hobbes para a Filosofia do Direito, Michel
Villey também ressalta a importância do Filósofo inglês para a Modernidade. O autor questiona qual foi a lição que restou para os modernos do
pensamento de Hobbes. Villey ressalta que sua doutrina política (absolutismo) foi amplamente rejeitada, mas que os conceitos jurídicos desenvolvidos por Thomas Hobbes foram aceitos pelos teóricos do contratualismo (Espinosa, Locke, Rousseau) e até mesmo por alguns teóricos do
Direito Natural. Além de ter se espalhado para esses autores, três perspectivas sobre a teoria jurídica também são originárias do pensamento de
Hobbes:
97
Para todo jurista imbuído de Hobbes, e que aceite suas premissas,
impõe-se uma concepção precisa, principalmente das fontes do direito; o positivismo jurídico, no sentido mais próprio dessa palavra, celebra sua vitória decisiva; a lei (agora definida como mandamento do soberano) se instala como fonte suprema do direito.
Mas no Sistema hobbesiano brota igualmente uma concepção renovada dos finalidades do direito, e essa outra estrutura do sistema
jurídico moderno que é a noção do direito subjetivo do indivíduo.
(VILLEY, 2009, p. 688-689).
Perante os argumentos expostos, pode-se afirmar que o desenvolvimento da soberania representa a coroação de uma variedade de alterações
em curso na sociedade europeia. Miguel Reale (2000, p. 222) é direto
também em relação a correlação do positivismo jurídico com a obra de
Hobbes e assim se expressão: “É em Hobbes, porém, que se deve procurar
os primeiros elementos da doutrina que reduziu o Direito ao Direito Positivo […]”. O desenvolvimento da soberania ainda vai ter o poder de se
alastrar para outras áreas jurídica e será utilizado como a lente básica para
a interpretação de outros fenômenos. O próximo ponto é justamente a
incorporação do racionalismo e da soberania no Direito Internacional,
quais os reflexos de tal processo para a interpretação e regulação das relações humanas no âmbito externo.
5 Conclusão
Ao final dessas considerações, pode-se destacar como o desenvolvimento da teoria jurídica moderna bebe na fonte do desenvolvimento da
soberania. O propósito específico desse trabalho foi uma investigação de
cunho arqueológico sobre o desenvolvimento da teoria jurídica contemporânea e a identificação do seu fio condutor básico, no caso, a soberania.
Além disso, outra ideia específica pode ser identificada no curso da
evolução social e que logo seria inserida no debate político e jurídico. A
necessidade de limitar o soberano. A criação dos direitos fundamentais e
suas várias dimensões vão problematizar a relação entre Estado e Direito,
98
criando a tensão entre poder e limites ao poder. Como controlar algo que
por natureza tem uma tendência expansionista e de abuso de poder?
Ao ter em mente esse desenvolvimento genealógico é possível inserir
historicamente tal conceito e também identificar quais são seus pilares de
sustentação e se eventuais alterações na estrutura histórica ou até mesmo
jurídica não poderiam implicar em transformação da base jurídica e teórica que dá sustentação ao Estado Moderno. Identificar a sua historicidade
é destacar sua suscetibilidade de mudanças e as premissas que lhe dão
sustentação, fugindo a dogmatismo e interpretações apressadas sobre o
direito e sobre a sociedade.
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António Manuel Hespanha, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1967.
100
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
CORREIA, José Evandro Alencar. O pensamento jurídico moderno a partir da
soberania. In: MELO, Álisson José Maia (coord.). Apontamentos didáticos em
direito: reflexões às margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 77-99.
101
CAPÍTULO V
FORMAÇÃO E CONFORMAÇÃO DO DIREITO
INTERNACIONAL
José Evandro Alencar Correia
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. As bases cosmológicas e teleológicas; 3. A
ressignificação a partir da soberania; 4. A consolidação teórica com a
Guerra dos 30 Anos; 5. Conclusão.
1 Introdução
O Direito Internacional dever ser compreendido dentro de um cenário
abrangente e complexo que foi a formação do pensamento jurídico moderno. Alguns conceitos podem ser identificados como chave para o Direito Internacional, como soberana, Estado, voluntarismo, igualdade jurídica, autonomia e etc. Tais termos orbitam a discussão em torno do fundamento do Direito Internacional e suas características. Entretanto, compreender o momento específico que tais termos passaram a ser as principais formas de visualizar o Direito Internacional deve ser feito dentro de
um contexto histórico e filosófico específico.
O propósito deste trabalho é revisitar a transição das bases filosóficas
antigas para o contexto moderno. Diante disso, será feita uma análise em
três etapas: (i) o contexto filosófico antigo baseado na ideia de recta ratio
como fundamento do Direito Internacional; (ii) a tácita alteração no paradigma filosófico e político, com ascensão do Estado Moderno e fundamentação a partir do voluntarismo para o Direito Internacional e, por fim,
(iii) destaque a eventos históricos específicos, no caso, a Guerra de Trinta
anos que levou a Paz de Vestfália.
102
Ao destacar esses três eventos será possível compreender a formação
e a conformação do Direito Internacional dentro de um panorama histórico. Como se originou, como se desenvolveu e até mesmo os limites que
são impostos ao atual desenvolvimento, uma vez que seu funcionamento
ainda se encontra atrelado as bases antigas e, ao que parece, inadequadas.
2 As bases cosmológica e teleológicas
A relação entre os diversos Estados, assim como as demais áreas do
pensamento humano, tinha seu conteúdo dominado pelo papel central que
a Igreja exercia. Da mesma forma que as outras áreas passaram pelas reformulações, com a explosão teórica que ocorreu com o Renascimento, a
doutrina em torno da relação externa também passou por um processo de
alteração de suas bases, até chegar a derrocada do centralismo religioso
(SHAW, 2010, p. 16 e 18).
As primeiras reflexões teóricas em torno do Direito Internacional
ocorreram durante os séculos XVI e XVII. O espírito de racionalismo
idealista fez com que o Direito entre as nações e o Direito dos povos fosse
pensando como forma de satisfazer as necessidades e aspirações da humanidade. A ideia de recta ratio guiava a formação do Direito para respostas que conseguissem formar preceitos racionais (TRINDADE, 2006,
p. 7). Suaréz, por exemplo, defendia a ideia de todas as pessoas possuem
um senso imanente do que é justo e que o Estado e o ser humano são
possuidores de direitos naturais (VILLA, 1997, p. 540).
A ideia que todos os seres humanos possuem de direitos inerentes
entra em choque com o princípio da soberania, já que aquela posição defende que os Estados não são totalmente livres para disciplinar as relações
jurídicas no seu território: “[…] the sovereignty of the individual State is
limited by the fact that it forms part of a community of nations linked by
solidarity and mutual obligations.” (VILLA, 1997, p. 544).
103
Esse racionalismo idealista foi desenvolvido, especialmente, pela Escola espanhola, que tinha uma visão baseada na razão reta e do ser humano, assim como o Estado, como o centro de preocupações do Direito
(VILLA, 1997, p. 547).
A ideia relativamente consensual nesses primeiros passos do Direito
Internacional é a defesa da existência de direitos inatos para os seres humanos. Esses direitos são limites ao poder dos Estados, ou seja, a soberania dos Estados é limitada. Essa forma de pensar o indivíduo no Direito
Internacional era fruto do racionalismo idealizado e ainda era influenciado de forma intensa pela doutrina religiosa e cosmológica. Villa (1997,
p. 549) traz uma síntese desse período:
The school of Spanish theologians, philosophers and jurisconsults
of late fifteenth century and the early sixteenth and seventeenth
centuries must be credited with the explicit definition of a law of
nations based at once on recognition of the independence of
nations — as opposed to imperialism and theocracy — and on
the guarantee of individual freedoms. A general law of human beings, higher than that of States, brings together and interlinks individuals through the agency of the State. The chief merit of Vitoria and Suarez lies in the fact that they emphatically asserted —
sooner and more effectively than Grotius — that nations are
bound by natural law, which is independent of God and based on
human nature itself.
Essas concepções teóricas são modificadas com Grócio, considerado
o fundador do Direito Internacional. A sua obra está conexa ao seu contexto histórico e seus predecessores, tendo recebido forte contribuição da
Escola Espanhola. Grócio parte da premissa da existência de um Direito
natural e imutável, que deriva da Filosofia estoica e da razão pura. Até
esse momento, Grócio não entra em confronto com a tradicional doutrina.
A inovação de sua obra ocorre quando este afirma que o Direito Natural
existiria independentemente da existência de um deus (HERSHEY, 1912,
p. 31).
104
Ao se debruçar sobre a questão da natureza humana, Grócio identifica como traço distintivo dos homens em relação aos outros animais, justamente, a racionalidade e seria essa característica que faria com que
fosse possível identificar a justiça como: “[…] uma virtude, um bem em
si e por si, independentemente, de quaisquer considerações de interesse
próprio ou conveniência” (COX, 2013, p. 347).
Haja vista a existência de uma razão inata e da posição privilegiada
do homem, ao analisar as normas, Grócio identifica três tipos: (i) jus gentium; (ii) jus voluntarium; e (iii) as normas advindas do Jus Nature ou da
razão natural. O foco primordial das reflexões de Grócio residia sobre as
normas advindas da natureza, da razão, mas sem deixar de lado aquelas
convencionadas entre os homens e que provinham dos usos e costumes
(OPPENHEIM, 1955, p. 93).
A obra de Grócio, entretanto, vai ter um reflexo prático no contexto
da sociedade europeia que o próprio autor talvez não tivesse objetivado.
Ao focalizar também na existência de um direito voluntário, tal concepção passou a ser compreendida dentro do contexto da ascensão do Estado
Moderno e do princípio da soberania. Ou seja, havia um novo contexto
filosófico e político brotando na Europa. Tais ideias possuíam um forte
apelo e passaram a ser utilizadas em outras áreas específicas para tentar
explicar o seu funcionamento. Com a relação entre as nações não seria
diferente, a soberania foi utilizada também como um conceito capaz de
explicar como elas ocorriam.
3 A ressignificação a partir da soberania
A escolha da dicção “formação e conformação” se dá pelo fato de
que a formação do Direito Internacional está atrelada ao processo histórico de criação da soberania, enquanto o segundo, conformação, tem ra-
105
zão em uma ambiguidade semântica. Ele pode ser visto desde o seu significado tradicional (dar forma) ou pode ser divisado como uma ideia de
submissão ou resignação. O princípio que deu forma ao Direito Internacional foi a soberania, mas também limitou a regulamentação internacional aos desígnios dos Estados. Corroborando o exposto,
This notion is a residuum of the dominant political theories of the
eighteenth and nineteenth centuries which venerated, sublimated
and personified the concepts of state and of sovereignty, thus
providing a theoretical framework for the existence of the nation-states as the sole participants in international intercourse.
(REMEC, 1960, p. 21 - 22).
Essa mudança teórica está correlacionada a ascensão da temática internacional. Existe uma variedade de fatores que tornou o relacionamento
entre as nações mais constante. De acordo com Lessa Oppenheim (1955,
p. 79-82), sete fatores colaboram para o renascimento da matéria: (i) o
redescobrimento do Direito Romano, considerado como a razão escrita,
em que várias questões sobre o Direito Internacional eram interpretadas
desde o Direito Romano; (ii) uma variedade de normas sobre Direito Marítimo atreladas ao comércio, que praticamente sumiram durante o período de estagnação comercial, mas que voltaram a ter importância na medida que as relações comerciais voltaram a florescer; (iii) o fortalecimento de ligas privadas que buscavam a resolução de conflitos entre os
seus membros e chegavam ao ponto de entrar em guerra, quando necessário para a proteção de seus interesses; (iv) a expansão da prática de
enviar embaixadores permanentes para os diversos países, fazendo com
que um canal de comunicação constante fosse desenvolvido entre os reinos; (v) a manutenção de exércitos permanentes. (vi) o Renascimento e a
Reforma Protestante. O primeiro fator fez com que a ciência e a arte dos
gregos fossem revitalizadas. Já a reforma acabou com o centralismo religioso que o Papa exercia. (vii) o último ponto que Oppenheim trabalha é
o desenvolvimento das utópicas ideias sobre a Paz Perpétua. Mesmo que
106
de improvável aplicação no momento, a consciência em torno da existência da diversidade de nações e a necessidade de buscar a paz já direcionam as discussões para o Direito Internacional.
A mudança que pode ser observada após a obra de Grócio ocorre na
interpretação da dicotomia entre as normas naturais e voluntárias. Essa
relação vai ser repensada no contexto de ascensão do Estado Moderno e
traz uma virada teórica na doutrina das fontes, chegando à supremacia
dos Estados e do Direito voluntário.
A transição das primeiras teorias sobre o Direito imanente do indivíduo e das nações era desconexa em relação à nova realidade que se desenvolvida e não dava o devido dimensionamento ao papel do Estado. Tal
descompasso levou a modificar sua caracterização e fundamentação, deixando de lado o idealismo e levando em conta os elementos mais objetivos que auferiam cada vez mais destaque.
Compreender para qual lado pendeu a discussão entre os dois tipos
de normas é um processo mais simples, tendo em mente o contexto que
foi apresentado, onde o papel do Estado se tornou central e passou a ser
o foco do contexto político e jurídico com o desenvolvimento da soberania. A coexistência entre normas positivas (voluntárias) e naturais representa o período de transição entre o pensamento medievo e o moderno. A
obra de Hobbes, por exemplo, um dos maiores marcos da formação do
Estado Moderno, ainda não havia sido publicada quando Grócio publicou
a sua, ou seja, a forma de raciocinar que advém de Grócio ainda seria
processada desde a mentalidade política e jurídica do pensamento de
Hobbes.
Um ponto importante é a correlação entre mudanças sociais e teóricas. Entender a ideia de limites aos Estados e direitos inatos ao ser humano deve ser interpretado em um contexto específico. Com o fortalecimento da doutrina da soberania e dos Estados, a sociedade muda, fazendo
107
com que a teoria também tenha que mudar. A soberania se tornara uma
das ideias mais fortes para o Direito e para a Política, conseguindo fazer
verdadeira convergência teórica entre os diversos pensadores. Esse processo afetou a discussão sobre como deve se dar a relação entre as nações
e os direitos dos indivíduos perante o Estado. O desenvolvimento da premissa do Estado como soberano faz com que a defesa de normas superiores ao Estado se torne inconsistente. Não havia mais espaço para a tese
de Direitos superiores aos Estados.
O desenvolvimento teórico de Hobbes representa a formação de um
paradigma, um guarda-chuva onde uma diversidade de outras teorias se
atrelam, buscando respaldo em suas premissas básicas. A formação de
um paradigma tem como marca justamente o fato de ser expandir para
outras áreas e servir como base para explicar o funcionamento e dar norte
de sentido. O paradigma estatal também iria se alastrar para a teoria do
Direito Internacional e a discussão sobre as fontes.
Tendo em vista a discussão que se formou em torno de qual fonte
deve ser a superior, três correntes teóricas sobre as fontes surgiram: (i)
naturalistas; (ii) positivistas; (iii) grotinianos (OPPENHEIM, 1955, p.
95). Como já exposto, deve-se ter em mente a ideia de que a resposta a
essa disputa teórica está relacionada ao desenvolvimento e ascensão do
Estado, de criação da soberania. Esse processo é um dos pontos de transição para o novo Direito Internacional:
The Spanish theologians and Grotius still thought of the jusgentium as personally bin ding sovereign princes and other persons
participating in international intercourse. Gradually, however,
the process of personification of the state eroded this conception
until Vattel expressly established the law of nations as the law between sovereign states only. The states not only became fictitious
subjects of rights and duties; they even came to displace the individual man entirely from the system of international law. (REMEC,
1960, p. 23-24).
108
Uma forma de compreender a transição desse período é por meio da
tênue modificação na nomenclatura que era primordialmente usada. Se
antes era utilizada de forma relativamente indiferente a expressão “Direito das Gentes” ou “jus gentium” com a transição para a doutrina que
dava maior foco às relações voluntárias entre as nações, a nomenclatura
passou a ser focada cada vez de modo mais intenso no termo “internacional”. Tal processo é destacado em Remec (1960, p. 29):
However, once phrases like ‘inter omnes gentes’, ‘inter populos’
or ‘gentium inter se’ were coined, they became slowly adapted, in
spite of the quite different intentions of their authors, to the emerging concept of the personalized and sovereign nation-state. Words
like gens, gentes, natio, populus, and others, lost their meaning of
the multitude of co-nationals and became used more and more to
designate the juridical personality of the state.
A modificação constituída com Grócio, desde o fortalecimento do
Estado, foi efetuada por Zouche, a quem Oppenheim chama de “segundo
pai” do Direito Internacional. O ponto mais importante na obra de Zouche
é o fato de que a fonte primordial deveria ser o Direito das Nações voluntário e não o Direito Natural. Para Grócio o Direito voluntário é acessório
e de menor importância, sendo a verdadeira fonte do Direito a razão pura,
o Direito Natural (OPPENHEIM, 1955, p. 94). A inserção da relação entre as nações e da soberania, que estavam em voga na Filosofia Política e
Jurídica, no âmbito da discussão sobre as fontes do Direito Internacional,
acarretou, de acordo com Oppenheim (1955, p. 106), “In denying the validity of sources of International Law other than the will of State it constituted yet another manifestation of the extreme doctrine of State sovereignty which, at that time, was typical of the science of law and of politics”.
Dessa forma, do ponto de vista filosófico, a soberania e Estado acarretaram uma remodelação do vínculo entre as fontes no Direito Interna-
109
cional. Se a doutrina anteriormente focava na ideia de razão reta, influenciada pelo estoicismo e a Escolástica, a secularização, bem como a ascensão da soberania estatal, fizeram com que o Direito produzido de forma
voluntária entre os Estados fosse identificado como a única, ou ao menos
preponderante, fonte normativa. A transição de tal processo é corroborada em Hershey (1912, p. 32-33), que assim expõe:
These fundamental principles, though not clearly stated by Grotius, underlay his system and were fully developed by his successors, more especially by Wolff, Vattel, and G. F. de Martens. They
were the inevitable outcome of the acceptance of the dogma of the
supreme power or sovereignty of states and princes as defiled by
Bodin, Grotius, Hobbes, and other political philosophers during
the sixteenth and seventeenth centuries.
A discussão em torno do princípio aplicado para as relações entre os
Estados não é desconexa de um contexto histórico específico que o torna
mais palatável. Com o fortalecimento dos Estados, o problema que surge
é a possibilidade não de brigas internas, mas de conflito entre os Estados.
Essa possibilidade ocorreu na Guerra dos Trinta anos.
4 A consolidação teórica com a Guerra dos 30 Anos
A guerra entre os diversos Estados, em virtude da intolerância religiosa, será superada com o desenvolvimento de tratados em Osnabrück e
Münster que juntos vão representam a paz de Westfália, em 1648, e a
consolidação das alterações filosóficas apresentadas. Ante os horrores da
guerra, uma nova forma de relacionamento entre os diversos Estados deveria ser criada e ter como norte o
[…] abandonment of the idea of hierarchical structure of society
and his option for a new system characterized by the coexistence
of multiplicity of states, each sovereign within its territory, equal
to one another, and free from any external earthly authority. The
idea of an authority or organization above the sovereign state is
no longer […] This new system rest on international law and the
balance of power, a law operating between rather than above
110
states and a power operating between rather than above states.
(GROSS, 1948, p. 28-29).
Tendo em vista que o princípio básico utilizado para o entendimento
da relação entre os Estados é a soberania, ao ser transplantado para o cenário externo, ele precisa ser adaptado de tal forma que possa manter sua
consistência teórica. A forma como a soberania se mantém adequada até
mesmo internacionalmente é ter como premissa a ideia de que os Estados
são igualmente soberanos, que não devem se intrometer em relação aos
assuntos internos dos demais e que qualquer limite na atuação estatal é
fruto da possibilidade de autolimitação que eles têm do seu comportamento.
Em respeito à soberania dos Estados, as normas internacionais só poderiam ser produzidas validamente se estivessem de acordo com a vontade dos Estados e estes não seriam suscetíveis de sanção, ou de submissão forçada a nenhum outro órgão jurisdicional. Tal sistema internacional
passou a ser conhecido como estadocentrismo, no qual as funções básicas
do Direito são pensadas com suporte no Estado, sem margem prática para
pensar as relações entre as nações em um contexto que não passe pela
vontade dos Estados. Leo Gross (1948, p. 38) descreve essa relação:
Instead of heralding the era of a genuine international community
of nations subordinated to the rule of law of nations, it led to the
era of absolutist state, jealous of their territorial sovereignty to a
point where the idea of an international community became an almost empty phrase and where international law came to depend
upon the will of state more concerned with the preservation and
expansion of their power than with the establishment of a rule of
law.
O foco na anuência nos Estados para a formação do Direito Internacional fortaleceu a doutrina conhecida como voluntarismo, a qual representava a ideia de que tão-somente pela vontade dos Estados, as normas
internacionais seriam desenvolvidas. Edith Brown Weiss (2000, p. 347)
111
traz a clássica decisão de 1927, da Corte Permanente de Justiça Internacional, no caso Lotus, no qual pode ser visto um conceito clássico do
Direito Internacional:
International law governs relations between independent States.
The rules of law binding upon States therefore emanate from their
own free will as expressed in conventions or by usages generally
accepted as expressing principles of law and established in order
to regulate the relations between these co-existing independent
communities or with a view to the achievement of common aims.
A decisão no caso Lotus demonstra como o Direito Internacional era
visto de forma acessória à vontade dos Estados. As normas só seriam produzidas pela sua vontade para regular as relações entre as nações independentes. A decisão judicial representa a corroboração da mentalidade
de um período específico.
Com essas considerações, é possível voltar ao termo conformação,
na sua feição negativa. Ele está relacionado ao fato de que o Direito Internacional estava por demais adstrito à vontade dos Estados para a sua
formação; não dispunha de instrumentos coercitivos para garantir sua
aplicação, nem de órgãos jurisdicionais que pudessem garantir o respeito
as suas normas. Parecia um Direito desprovido de dentes.
Em razão desses problemas, o Direito Internacional era um dos campos jurídicos em que o uso do termo “Direito” (ou “jurídico”) se mostrou
inicialmente problemático. As críticas deferidas ao caráter jurídico do Direito Internacional focam nos problemas: (i) ausência uma estrutura superior organizada que impossibilita o uso da sanção para fazer valer suas
normas o que pode acarretar a ineficácia de suas normas; (ii) inexistência
de relação entre os indivíduos que possa caracterizar uma comunidade,
mas tão somente uma sociedade internacional.
Considerando o seu objeto (regular Estados soberanos), e pelo fato
de não dispor dos meios tradicionais para fazer valer as normas produzi-
112
das entre Estados soberanos, o Direito Internacional, pelas teorias jurídicas decorrentes da matriz hobbesiana que davam especial ênfase ao elemento sanção para que as normas jurídicas fossem consideras jurídicas,
não poderia ser considerado Direito. A comparação entre a estrutura do
Direito no âmbito interno e externo deixa patente a ausência de instituições essenciais para o Estado-nação no âmbito internacional. Não há poder centralizado nem um sistema de produção normativa integrado, tampouco uma estrutura de tribunais organizados para dirimir qualquer conflito (SHAW, 2010, p. 2 – 3).
Os princípios jurídicos e políticos que formaram o Direito Internacional (igualdade soberana, não intervenção, ausência de força superior),
não deixava espaço para que fosse desenvolvida uma autoridade superior
que pudesse utilizar os mesmos instrumentos usados no âmbito estatal. A
teoria política e jurídica tinha como pressuposto o nacionalismo metodológico (consubstanciado na soberania) e o sistema internacional era feito
com base na premissa da relação entre Estados (ausência de soberano).
Não havia como ser implementado em uma estrutura que fosse além das
potencialidades do momento, ou seja, contra a pedra angular estatal. Em
razão da ausência de uma autoridade superior, não seria possível garantir
que as normas produzidas no âmbito internacional fossem aplicadas.
Como o conceito e a formação do Direito eram ligados à existência de
um soberano, o Direito Internacional, como não havia tal soberano, não
poderia ser visto como Direito.
Até mesmo a teoria kelseniana, que tenta subverter a relação entre
Direito e força, mudando o foco do Direito do uso da força para o condicionamento dela, interpreta o Direito Internacional como um sistema jurídico primitivo, haja vista que não possui as estruturas para garantir seu
funcionamento (2009, p. 358).
113
Os primeiros passos no desenvolvimento do Direito Internacional indicavam dificuldades para regulamentar e até mesmo em virtude da ausência de grande demanda para tanto. Com a Revolução Industrial, expansão das relações comerciais e as duas guerras mundiais, dentre outras
situações, se fez necessário que ocorresse uma mudança no Direito Internacional de mera convivência entre Estados. Emerge um contexto social
que tinha necessidade de maior regulamentação por parte do Direito Internacional. Um ambiente que tem necessidade de evitar novas grandes
atrocidades se repetissem e que também conseguissem estabilizar as novas relações sociais que gradativamente iam se fortalecendo no âmbito
mundial.
Alguns marcos temporais podem ser apontados: o fim da Primeira
Guerra em 1918; o término da Segunda Guerra Mundial em 1945; a queda
do muro de Berlim em 1989 que é o marco simbólico da derrocada comunista e fim da Guerra Fria. Cada um desses momentos ajudou para o
fortalecimento e expansão do Direito Internacional.
Além dessas mudanças mais objetivas, ainda resta aquela ocorrente
de modo mais discreto na sociedade mundial, com o fortalecimento de
grupos humanos em prol de interesses comuns, que tem sua origem na
expansão e facilitação das relações sociais ao patamar que consegue atuar
cada vez mais no globo. Esses fatores são a origem de grandes mudanças
na atualidade do Direito Internacional.
5 Conclusão
Ao cabo dessas considerações é possível verificar o processo histórico e filosófico que levou ao desenvolvimento do Direito Internacional,
destacado desde as mudanças mais intensas (secularização da sociedade)
até mudanças tênues, mas que são de grande significado para compreender a matéria (alteração terminológica e consolidação do termo Direito
114
Internacional). Além desses pontos, é de grande relevo também afastar
qualquer pretensão de ahistórica para qualquer matéria atinente as ciências sociais. Todas são desenvolvidas em contextos históricos e têm sua
metodologia influenciada por essas conjunturas.
Outro ponto de grande relevo que pode ser observado em relação as
questões que foram abordadas é a estrutura pendular no qual se desenvolve o Direito Internacional. De um lado é possível verificar vários institutos específicos que representam a mentalidade do voluntarismo e da
soberania estatal (reserva, denúncia) e também novos institutos que buscam o fortalecimento e a maior obrigatoriedade do Direito Internacional
(obrigações erga omnes e jus cogens).
Referências
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115
TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. A Humanização do Direito Internacional, Belo Horizonte, Del Rey, 2006.
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COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
CORREIA, José Evandro Alencar. Formação e conformação do direito
internacional. In: MELO, Álisson José Maia (coord.). Apontamentos
didáticos em direito: reflexões às margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM,
2016, p. 101-115.
117
CAPÍTULO VI
A EXTRAFISCALIDADE PROIBITIVA NA
RELAÇÃO ENTRE INTERVENÇÃO ESTATAL
E LIVRE CONCORRÊNCIA
Natallie Alves de Almeida
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A tributação extrafiscal proibitiva como
instrumento de intervenção estatal; 3. O caráter não sancionatório do tributo extrafiscal proibitivo; 4. O intervencionismo estatal associado à livre
concorrência econômica; 5. Considerações Finais.
1 Introdução
A tributação extrafiscal faz-se necessária para que o ente estatal possa
injetar na economia estímulos para o crescimento, tornando interessante
a análise desta forma de tributação no seu caráter “proibitivo”, uma vez
que estamos inseridos em uma sociedade conduzida, em certa medida,
por princípios neoliberais. Contudo, limitações ao Estado interventor devem ser impostas para que uma atitude autorizada não exceda os limites
da razoabilidade e inverta as prioridades, transformando, assim, a exceção em regra.
O Poder Público atua com uma crescente e constante intervenção em
setores privados e públicos da sociedade, principalmente no que toca à
atividade econômica. A tributação, logo, não é utilizada apenas com a
finalidade de arrecadação, para que despesas sejam supridas, e sim como
instrumento de intervenção na ordem econômico e social brasileira.
Notório é, contudo, que técnicas de exoneração tributárias são utilizadas mais frequentemente quando da implantação de políticas públicas
em detrimento de práticas de agravamento tributário, com o fito de desestimular a ocorrência de fatos geradores.
118
No entanto, a tributação através da sua finalidade extrafiscal de caráter “proibitivo”, qual seja, extrafiscalidade com a finalidade de agravamento pecuniário quando da exação tributária após a realização do fato
gerador, pode ser utilizada como forma de protecionismo econômico e
social. Ocorre que o limite entre a proteção e a ocorrência de desigualdades e injustiças entre os contribuintes é bastante tênue, necessitando de
maior cautela estatal para que assim seja resguardada a Carta Maior brasileira, em todos os seus princípios, diretrizes e objetivos.
Tal intervenção, portanto, não pode ser desarrazoada, tornando-se assim sancionadora. O intuito é que se hajam estímulos indutores à livre
concorrência, principalmente no que tange ao mercado interno, e não de
cunho sancionatório. Deve-se resguardar o direito de escolha do contribuinte em se arcar com o ônus de tributações mais elevadas, contudo, sem
sancioná-lo por tal escolha.
Visa-se assegurar, ademais, que princípios constitucionais como o da
capacidade contributiva e da vedação ao tributo com efeitos confiscatórios, assim como que o conceito maior de tributo, no que toca à não constituição de sanção por ato ilícito, sejam resguardados.
Dessa forma, o presente trabalho se dividirá em três capítulos. O primeiro abordará a natureza do tributo extrafiscal em seu caráter proibitivo
na instrumentalização da intervenção do Estado na economia, como elemento de desestímulo de determinadas práticas consideradas como nocivas à sociedade e, consequentemente, de indução para outras práticas.
Já no segundo capitulo, procurar-se-á discorrer sobre a afastabilidade
do possível caráter sancionatório do tributo proibitivo, tendo em vista que
a sua utilização com o objetivo de sanção, contraria todos o arcabouço
normativo do sistema tributário nacional. Por fim, no terceiro capítulo,
tratar-se-á da relação entre a intervenção estatal na economia, utilizando
o tributo extrafiscal proibitivo, e o necessário fomento à livre iniciativa e
119
à livre concorrência, já que tais princípios se encontram no arcabouço de
fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro.
2 A tributação extrafiscal proibitiva como instrumento de
intervenção estatal
O Estado, através do desenvolvimento de ações interventivas, independentemente da posição política adotada, seja ela de viés liberal ou social-democrática, respectivamente, contra e a favor de intervenções econômicas por parte do ente estatal, não pode omitir-se da evolução econômica: ações interventivas são aceitas pelo Estado brasileiro e cada vez
tem se proliferado pelo mundo, principalmente em razão da crise econômica que assolou o mundo recentemente, e em razão do fato de que “nenhuma das reivindicações pleiteadas hoje sob o título de direitos sociais
poderá alcançar seu objetivo sem uma intervenção do Estado na economia” (BECKER, 2010, p. 635).
O intervencionismo estatal no Brasil, como alhures mencionado,
deve ser instituído de forma indutora, ou seja, através de institutos que
venham a influenciar a atividade humana, cabendo ao contribuinte a decisão final em se arcar com o ônus da opção eleita, sempre havendo respeito entre a tributação instituída e os preceitos fundamentais constitucionais. O contribuinte não pode ser compelido a desenvolver fatos geradores que não forem por ele eleitos. Diego Bonfim (2011, p. 103) firma
entendimento de que:
[…] a ordem jurídica posta, como foi demonstrado, exige um intervencionismo programado (um intervencionismo limitado e pautado nos limites da Constituição Federal), não havendo razões jurídicas para que os tributos não sejam utilizados nessa seara. Os
tributos influenciarão os comportamentos humanos de uma ou outra forma; mesmo que estejam presentes apenas anseios fiscais,
ainda assim haverá reflexos comportamentais (grifo original).
120
Hoje em dia, entendidas como “normas promocionais de conduta”,
tais instrumentos jurídicos pautam-se por serem essenciais à atividade
econômica e amoldarem-se a estímulos e desestímulos promovidos pelo
ente estatal. Diego Bonfim (2011, p. 100) acrescenta que em relação a
tais normas “[…] em vez de prescrever a direção a ser tomada, o Estado
se vale de incentivos ou desestímulos, para fomentar a realização ou não
de determinadas condutas”.
A norma tributária, através dos seus componentes (fato gerador, base
de cálculo e alíquota) pode ser utilizada através da finalidade extrafiscal
e através dela induzir o contribuinte a tomar suas decisões, contudo sem
lhe tolher a livre iniciativa. Nesta mesma perspectiva Diego Bonfim
(2011, p. 102):
A tributação, no entanto, só se manifesta mediante a intervenção
por indução, nunca por direção. É que o contribuinte não pode ser
obrigado, mesmo por lei a praticar o fato gerador (o fato jurídico
tributário) de determinado tributo, sob pena de ofensa o princípio
do não confisco, bem como de quebra da fenomenologia tributária,
toda ela baseada na possibilidade de o sujeito passivo optar pela
não realização de atos que atraiam a incidência da norma tributária.
É justamente por essa razão que a tributação como instrumento de
indução comportamental se mostra efetiva.
Questão salutar refere-se à dinâmica do Estado, através de técnicas
indutoras, desestimular determinadas atitudes importantes de cunho econômico e social. O ente estatal, ao invés de considerar determinada atitude ilegal, opta por considerá-la legal, contudo, por entender que não é
de interesse da sociedade seu estímulo, assim, resolve por desincentivála através da tributação extrafiscal denominada “proibitiva”.
Marco Aurélio Greco (2001) entende que tal atitude seria incompatível com o cenário econômico insculpido pela Constituição Federal atual,
uma vez que se estaria intervindo na economia ao ponto de permitir desestímulos em determinadas atividade consideradas lícitas. Segundo seu
121
entendimento, o Estado deve apoiar e estimular todas as atividades econômicas consideradas lícitas, em consonância ao art. 174 da CF/88, não
citando tal imperativo legal em qualquer forma de desestímulo. Referido
autor entende ainda que as atividades indesejadas deveriam ser requalificadas como ilícitas e não serem permitidas, uma vez que são rechaçadas
pelo ordenamento jurídico pátrio.
Contudo, tal entendimento não pode ser visto de forma absoluta, visto
que determinada conduta pode ser considerada indesejável e isto não a
qualifica obrigatoriamente como ilícita. Em momento distinto, inclusive,
pode tal conduta ser considerada necessária à sociedade, a exemplo da
evolução industrial, que através da constituição de fábricas podem gerar
grande poluição, acaso não sejam fiscalizadas e desestimuladas a produzir resíduos poluidores.
Nesta toada, Alfredo Augusto Becker (2010, p. 634-635) pronunciase acerca das duas possibilidades de impedimento ou desestímulo do contribuinte quando da realização de um fato gerador frente às hipóteses de
incidência e distingue-as:
Por exemplo: o Estado para impedir ou desestimular determinado
fato social, tem dois caminhos a escolher: a) ou regra jurídica que
declare ilícito aquele fato social; b) ou tributo extrafiscal ‘proibitivo’. Optando pelo segundo, a intervenção do Estado será indireta
porque, mediante o tributo extrafiscal, aquilo que pode ser exigido
juridicamente é só o tributo e este é, precisamente, o objetivo secundário. Aliás, no tributo extrafiscal ‘proibitivo’, a percepção do
tributo contraria o objetivo do Estado, pois aquilo que o Estado
realmente deseja não é o tributo, mas sim aquele específico reflexo
econômico-social que resulta da circunstância dos indivíduos evitarem ou se absterem de realizar a hipótese de incidência do tributo
‘proibitivo’.
Luís Eduardo Schoueri (2005) entende que através de uma interpretação sistemática da CF/88 e das leis e atos infraconstitucionais existem
valores que devem ser resguardados, como a proteção ao trabalho, ao
meio ambiente, à saúde, à livre iniciativa e à livre concorrência, sendo
122
estes dois últimos considerados vetores essenciais à serem observados na
implementação de normas indutoras, sem a necessidade de qualificá-las
como ilícitas. Neste sentido, “surge a diferenciação entre prescrição de
dada conduta como ilícita ou mero desestímulo, pela utilização de tributos com anseios extrafiscais, de atividades não desejadas pelo Estado”
(BONFIM, 2011, p. 217).
Fato é que muitas das atitudes adotadas pelo Estado, quando da intervenção realizada por este na economia, pautam-se na técnica da exoneração tributária através de isenções e privilégios tributários, por exemplo. Políticas públicas são, em sua maioria, promovidas em face da desoneração do contribuinte, e por vezes relegam a segundo plano a arrecadação monetária, esta sendo visualizada através da oneração de tributos com
intuitos “proibitivos”, ou seja, desestimulantes.
Levando em consideração, por exemplo, o IPI e a majoração da sua
alíquota quando da incidência em produtos como cigarros, bebidas e perfumes, vê-se claramente a necessidade de desestimular o consumo dos
mesmos, pois em razão de condições de saúde e por se tratar de bens
supérfluos não devem ser prestigiados tributariamente, sendo assim considerado o princípio da seletividade.
Diferente deve ser o raciocínio quando levantamos a hipótese de tributação, por exemplo, do ICMS, em face de produtos essenciais a toda e
qualquer pessoa, tais como, os produtos alimentícios integrantes da cesta
básica. Arroz, feijão, café e farinha, a título exemplificativo, são produtos
consumidos em larga escala e devem atingir vasta parcela da população.
Portanto, vários fatores são considerados quando da majoração da
alíquota em determinado tributo, essencialmente a finalidade extrafiscal.
O acréscimo tributário necessita de análise apurada visto que pode acarretar consequências indesejadas em caso de excessos cometidos. O tributo, ainda que extrafiscal, não pode apresentar intento punitivo, caso
123
contrário estaria malferido a Carta Constitucional e ao CTN, como adiante será explanado. Diego Bonfim (2011, p. 217) explicita que:
Além disso, as normas tributárias indutoras que utilizam técnicas
de agravamentos podem não alcançar os fins pretendidos, tendo
em vista a possibilidade de assunção econômica da parcela adicional do tributo por parte dos agentes econômicos, o que, em última
análise, pode até gerar ofensa ao princípio da livre concorrência,
já que apenas os contribuintes com maior capacidade econômica
poderão, se for o caso, resistir à tributação e manter a prática desestimulada.
Percebe-se, por motivos óbvios, quão mais aceitável ao contribuinte
se torna a desoneração de encargos tributários. Ocorre que tão necessária
quanto a instituição de políticas públicas desonerativas, são as políticas
públicas instituídas através de tributos extrafiscais “proibitivos”, instituídos em razão de anseios econômicos e sociais latentes. Cabe ao ente Estado possuir tal sensibilidade, atitude e precisão ao implementá-las.
A intervenção estatal por meio da instituição de tributos extrafiscais
“proibitivos” não pode, contudo, atingir limites que impossibilitem a realização de fatos geradores desejados pelo contribuinte. Caso assim ocorresse, o modelo intervencionista estaria migrando de indução para direção, não concedendo qualquer opção ao contribuinte, interferindo na liberdade econômica e malferindo princípios constitucionais como o da capacidade contributiva e do não confisco. Neste sentido,
O desestímulo mediante a utilização de normas tributárias não pode
alcançar a impossibilidade de realização da conduta tida como indesejada. Se assim fosse possível, os tributos passariam a ser utilizados como
instrumentos de intervenção por direção e não por indução gerando
ofensa ao princípio do não confisco. (BONFIM, 2011, p. 217).
O liame entre a licitude da tributação extrafiscal proibitiva e o excesso de tributação que atinge o contribuinte é muito tênue, assim como
pode ser desastroso, acaso não observado cautelosamente. Quando, por
124
exemplo, institui-se, através de ato do Poder Executivo, majoração da alíquota do imposto sobre a importação de produtos estrangeiros (II) e consequente redução do imposto sobre a exportação (IE), para que tal determinação influa na economia brasileira, incentivando assim a exportação
e desestimulando a importação, utiliza-se da função extrafiscal tributária.
Da majoração do II, há vistoso interesse econômico do Estado de que
decaia a importação de produtos estrangeiros na busca do favorecimento
do produto confeccionado internamente.
Quando tal majoração ocorre dentro de limites em que se haja respeito à razoabilidade, capacidade contributiva e com efeitos não confiscatórios, a tributação extrafiscal proibitiva atingiu sua finalidade máxima,
desestimulando, in casu, a compra de produtos importados. Contudo, tal
tributação não pode tornar o produto oneroso a um ponto que já não se
haja escolha a ser feita pelo contribuinte, quando da compra.
Quando a oneração através da tributação extrafiscal proibitiva extrapola seus limites ocorre, por conseguinte, desvio de finalidade, possuindo
a tributação anseios sancionatórios pela opção eleita. Há plena distinção
entre tributação extrafiscal proibitiva do caráter sancionatório, estas não
se entrelaçando, como será adiante estudado.
3 O caráter não sancionatório do tributo extrafiscal
proibitivo
A tributação extrafiscal é essencial para que o ente estatal possa incentivar determinadas atitudes, assim como desestimulá-las também, de
maneira indireta, sendo importante a análise da tributação extrafiscal de
caráter “proibitivo” e sua distinção da norma de natureza sancionatória.
Quando se analisam tais conceitos pode-se em um primeiro momento
gerar confusão quanto à distinção entre tributação extrafiscal proibitiva
125
da sanção sobre determinada conduta. Não há razão para tal dúvida. Enquanto o primeiro trata de um instrumento que vem a auxiliar no desestímulo indireto à prática de determinados atos que sejam admitidos pela
ordem jurídica, a sanção sobre determinada conduta tem a finalidade de
desestimular diretamente condutas proibidas pela Ordem Jurídica.
Conforme instituído pelo imperativo legal “tributo é toda prestação
pecuniária, compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir,
que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (CTN, art. 3º).
Através de uma simples interpretação extrai-se que o tributo, seja ele
qual for, não pode ser constituído em razão de uma sanção a um ato considerado ilícito. Luciano Amaro (2010, p. 47) registra que “[…] o caráter
não sancionatório do tributo, dele distinguindo-se, portanto, as prestações
pecuniárias que configurem punição de infrações. Não se paga tributo
porque se praticou uma ilicitude, […]”. André Ramos Tavares (2009, p.
506) frisa, ademais, que “de qualquer sorte, é inafastável a importância
da sanção para o Direito e para a eficácia de suas regras de conduta, principalmente as de natureza obrigatória que imponham certos sacrifícios,
[…]”.
A tributação, portanto, não pode ser considerada uma penalidade instituída a um contribuinte, subentendendo-se, portanto, que as práticas que
venham a ser consideradas fatos geradores de tributos pressupõem-se lícitas, jamais ilícitas. Tal entendimento se substancia uma vez que a execução de atos ilícitos gerariam a imposição de multas, e não tributos.
Ocorre que em razão da cláusula pecunia non olet poder-se-ia admitir a
tributação de atos ilícitos, estudo que é deveras controvertido e que não
será objeto do presente trabalho.
A sanção, aqui mais especificamente voltada à seara tributária, refere-se a um consequente normativo em razão de um ato ilícito cometido.
126
A relação sancionatória, portanto, deve conter todos os elementos essenciais para que se identifique o agente violador e a norma malferida. Paulo
de Barros Carvalho (2007, p. 530-531) induz que:
Assim como se denomina obrigação tributária ao liame jurídico
que se estabelece entre dois sujeitos ― pretensor e devedor ― designa-se por sanção tributária à relação jurídica que se instala, por
força do acontecimento de um fato ilícito, entre o titular do direito
violado e o agente da infração. Além desse significado, obrigação
e sanção querem dizer, respectivamente, o dever jurídico cometido
ao sujeito passivo, nos vínculos obrigacionais, e a importância devida ao sujeito ativo, a título de penalidade ou de indenização, bem
como os deveres de fazer ou de não-fazer, impostos sob o mesmo
pretexto.
Ademais, o tributo não é considerado multa, assim como o pagamento de uma multa não é um pagamento de tributo. O instituto da multa
necessita de reserva de lei, conforme art. 97 do CTN. Na concepção de
Kyioshi Harada (2008, p. 297) a concepção “que não constitua sanção de
ato ilícito” previsto no art. 3º do CTN:
[…] serve para distinguir o tributo da multa, que sempre representa
uma sanção pecuniária pela prática de ato ilícito. É claro que o
descumprimento de normas tributárias, também, gera imposição
de penalidade pecuniária. […] O que a expressão significa é que a
cobrança de tributo não representa imposição de penalidade.
A multa caracteriza-se por uma sanção, ou seja, uma penalidade, possuindo caráter punitivo, em face do descumprimento da obrigação tributária, sendo ela principal ou acessória. Há, portanto, diferença de cunho
não meramente conceitual, mas também estrutural no que toca o tributo
e a multa.
O pagamento do tributo, aqui mais precisamente o tributo extrafiscal
“proibitivo”, é necessário em razão da incidência de determinado fato gerador. A multa, em contraposição, será devida caso seja descumprida uma
obrigação tributária. O tributo será devido em razão do poder fiscal inerente a qualquer que seja o tributo, e a multa será fundada no poder de
127
punir do Estado. Tratam-se de obrigações principais, conforme art. 113,
§ 1º do CTN, que respaldam no pagamento pecuniário, podendo ambas,
inclusive, incidirem em face do mesmo agente passivo.
Alfredo Augusto Becker (2010, p. 652-653) distingue precisamente
os institutos da sanção, do tributo extrafiscal “proibitivo” e o ilícito, muitas vezes emaranhados e confundidos pela sua proximidade doutrinária,
mas possuindo cada um a sua identidade.
Sanção é o dever preestabelecido por uma regra jurídica que o Estado
utiliza como instrumento jurídico para impedir ou desestimular, diretamente, um ato ou fato que a ordem jurídica proíbe.
Tributo extrafiscal ‘proibitivo’: é o dever preestabelecido por uma
regra jurídica que o Estado utiliza como instrumento jurídico para impedir ou desestimular, indiretamente, um ato ou fato que a ordem jurídica
permite.
O ilícito, como elemento integrante da hipótese de incidência, é o
único elemento que distingue, no plano jurídico, a sanção do tributo extrafiscal ‘proibitivo’. Noutras palavras, somente fatos ilícitos podem integrar a composição da hipótese de incidência da regra jurídica tributária
(grifos originais).
O tributo, além de não ser caracterizada como uma sanção, não pode
a esta se equivaler nos efeitos, não podendo, portanto, possuir efeito sancionador. Alfredo Augusto Becker (2010) de forma didática institui que
o tributo extrafiscal, de maneira indireta, auxilia no desestímulo de atos
considerados lícitos pelo ordenamento jurídico pátrio. De outro modo, a
sanção, de maneira direta, é utilizada para inibir atos que a norma brasileira refuta.
Infelizmente, a utilização de institutos sancionadores na sociedade,
em razão dos vícios que esta possui, pode ser desastrosa, neste sentido:
128
A imposição de regra jurídica que de súbito e diretamente, proíba
aqueles vícios ou obrigue a prática daqueles atos de solidariedade,
poderá desencadear graves perturbações de ordem econômica, social ou moral, cujas consequências serão piores que aqueles vícios
e egoísmo social. (BECKER, 2010, p. 633).
O tributo extrafiscal é um excelente instrumento e, desta feita, conforme o próprio autor supramencionado, a tributação extrafiscal, conforme entendimento de Alfredo Augusto Becker (2010), poderia ser utilizada com objetivos diametralmente opostos, mas concretamente muito
próximos: para a reforma social, como para impedi-la. Ambas as finalidades possuem um caminho, que através de instrumentos distintos podem
gerar um resultado final destoante de outro.
Não pode haver, portanto, qualquer intuito sancionatório em face do
tributo extrafiscal “proibitivo”, em razão da própria natureza do tributo e
suas distinções com o instituto da sanção, como alhures mencionado, e a
intervenção estatal, quando existente, deve ocorrer embasada em tais vetores, pois caso contrário está incidindo em inconstitucionalidade.
4 O intervencionismo estatal associado à livre concorrência
econômica
A competência concedida pela Carta Maior brasileira ao organismo
estatal legitimando este à intervenção econômica encontra-se firmada no
art. 174 da CF/88, que assim prediz em seu caput: “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da
lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”.
Ocorre que o Estado deve resguardar-se sobremaneira para que tal
intervenção não ocorra de forma prejudicial, pois “[…] mesmo nas oportunidades em que atue com maior intensidade, a intervenção do Estado
129
não deve, além do que for inevitável, influir sobre a liberdade ou subverter os demais valores essenciais ao regime liberal.” (FALCÃO, 1957, p.
15).
Mesmo uma competência tributária, atribuída, pois, pela Carta Constitucional, sofre limitações e respaldo quando da sua concretização, no
que toca à principiologia adotada no Direito brasileiro. Em razão de tamanha importância e poder concentrado em determinado ente estatal, que
princípios como da livre concorrência não podem ser relegados a segundo
plano.
O ente estatal deve realizar suas atividades interventivas pautado na
neutralidade concorrencial, visto ser necessária a guarda da livre concorrência entre os contribuintes e princípios constitucionais econômicos. O
princípio da neutralidade concorrencial é um desdobramento do princípio
da livre concorrência e garante que o Estado não interfira de forma negativa na concretização e na preservação do ambiente mercadológico no
Brasil. Sob esta ótica Diego Bonfim (2011, p. 103-104) afirma que:
Não restam dúvidas acerca da influência da tributação sobre as relações mercadológicas promovidas pelos agentes econômicos,
sendo importante que, uma vez assumida essa premissa, sejam realizadas tentativas de controle da tributação fiscal e extrafiscal,
principalmente ante o princípio da livre concorrência.
Na seara tributária tal princípio também se mostra presente, razão
pela qual o Estado deve-se manter imparcial quando da instituição da tributação em relação aos contribuintes. É a denominada livre concorrência
tributária. A neutralidade concorrencial assumida pelo Estado garante
que será desenvolvida, contudo, em igualdade de condições a todos os
contribuintes, como forma de se atingir a real isonomia entre eles.
O Estado, não pode, contudo, sem qualquer justificativa, fomentar
privilégios entre os contribuintes concorrentes, podendo, caso assim aja,
promover injustiças e desigualdades, pois o referido princípio assegura
130
aos contribuintes que competem entre sim, dentro de uma visão mercadológica, “um tratamento estatal em igualdade de condições, o que faz
nascer um dever de análise dos efeitos concorrenciais que atos do Poder
Público são capazes de gerar” (BONFIM, 2011, p. 202).
Necessita-se manter a neutralidade frente aos agentes econômicos
que desenvolvem relação concorrencial, para que assim possa ser mantido o tratamento mais justo possível àqueles. Inclusive, uma das vertentes concretizadoras da livre concorrência enquadra-se na “[…] neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes […]” (GRAU, 2008, p. 205).
Humberto Ávila (2008, p. 97-98) adverte, contudo, que quando da
utilização do referido princípio na seara tributária, onde se busca nenhum
tipo de interferência por parte do ente estatal no comportamento do contribuinte, esta vertente principiológica torna-se
[…] incompatível com o ordenamento jurídico, pois tanto os tributos com finalidade fiscal, quanto aqueles com finalidade extrafiscal influem no comportamento dos contribuintes: os tributos
com finalidade fiscal exercem influência indireta, na medida em
que a cobrança maior ou menor estimula comportamentos, mesmo
que isso não seja o propósito imediato da lei; os tributos com finalidade extrafiscal exercem influência direta, na medida em que visam precisamente a induzir o contribuinte a fazer ou deixar de fazer alguma coisa por meio da tributação.
Em razão da tributação sempre exercer algum resultado comportamental, Luís Eduardo Schoueri (2007, p. 15) afirma que “a neutralidade
da tributação chega a ser tratada por parte da doutrina como um dogma
superado”. O princípio da livre concorrência, um dos vetores da ordem
econômica brasileira, surge da necessidade, portanto, de se assegurar um
tratamento equânime aos agentes do âmbito econômico pelo Estado, já
que se torna necessário que o ente estatal não desequilibre a relação baseada na concorrência. É através do Estado Democrático de Direito que
131
se torna possível o desenvolvimento da presente temática, e segundo ensinamentos de Werther Botelho Spagnol (1994, p. 36):
O Estado Democrático de Direito é, destarte, o corolário de toda
uma evolução jurídico-política relativa à organização da sociedade. Procura-se, por meio dele, garantir a liberdade de livre iniciativa econômica (Estado Liberal) dentro de um contexto de igualdade de oportunidades (Estado Social).
Luís Eduardo Schoueri (2007, p. 252) concebe a utilização do normativo tributário com o fito de se proceder a correções em face de distúrbios advindos da concorrência onde:
[…] a livre concorrência aparece, neste sentido, como um dos critérios (uma das justificativas) para a norma tributária. A norma tributária fomentará a livre concorrência quando, por meio de estímulos, levar os agentes a práticas que incrementem o próprio mercado, ou melhor, a competição no mercado.
O Estado não se caracteriza como um agente desregulador e tampouco fomentador de desequilíbrios, razão porque “[…] se o princípio da
livre concorrência é prestigiado pela Ordem Econômica, justificando as
normas tributárias que o procurem alcançar, é coerente admitir que não
deve a mesma norma tributária atuar em sentido diverso daquela meta.”
(SCHOUERI, 2007, p. 255).
Em momentos nos quais o Estado se utiliza de institutos tributários
de caráter “proibitivo” e há o receio quanto a sua má instrumentalização,
isto ocorre porque na seara empresarial, por exemplo, a majoração de tributos pode atingir patamares gravosos à livre concorrência, estimulando
o crescimento e concentração de poder de poucas empresas apenas. Luís
Eduardo Schoueri (2005, p. 206), ao lembrar-se de ensinamentos de Böckli, se manifesta no sentido de que:
[…] o emprego de normas tributárias gravosas encontram seu limite jurídico quando se constata a ocorrência do paradoxo a que
se refere Böckli, que mostra que podem elas produzir um efeito
regressivo, implicando um prêmio para os contribuintes que tem
132
maior capacidade econômica, de modo que, após alguns anos, este
contribuinte acaba ficando ainda mais forte.
Ocorre que se deve ter cautela com o tributo extrafiscal “proibitivo”
e o princípio da livre concorrência, visto que na tributação com finalidade
extrafiscal há forte potencial oportunidade de ofensa ao princípio da livre
concorrência, necessitando, pois, de análise sistemática, sempre que possível, de princípios como da capacidade contributiva, da razoabilidade,
proporcionalidade e da não utilização do tributo com efeito de confisco.
Há, por conseguinte, a tributação com anseios extrafiscais, potencialidade de ofensa ao princípio da livre concorrência. Por certo que este
princípio não será desdobrado, neste caso, como um dever de neutralidade tributária, devendo se comportar como um dos vetores axiológicos
que serão levados em conta quando da análise da juridicidade da norma
instituidora da tributação (mediante o emprego, no caso concreto, do princípio da proporcionalidade). (BONFIM, 2011, p. 218).
Não se pode presumir que injustiças ocorrerão, mas o Estado devese pautar, através de atos cuidadosos, em linhas de proteção à economia.
Contudo, não se pode, através de justificativas protecionistas, introduzir
tributações de objetivos indutores desarrazoadamente, nem tampouco
instituir tributação extrafiscal “proibitiva” em face de situação concorrencial específica, visto que se estaria fomentando a desigualdade, assim
como ofendendo a generalidade da tributação. Neste prisma, Diego Bonfim (2011, p. 219) em entendimento consoante reitera que “[…] a pretexto de fomentar a livre concorrência, a tributação indutora pode acabar
estimulando a concentração empresarial”, fato que não se torna interessante frente à Carta Constitucional brasileira vigente.
Portanto, ainda que a tributação extrafiscal “proibitiva” seja concebida concretamente em face do ordenamento jurídico brasileiro, a utilização de agravamentos tributários com fins de fomento à livre concorrência
necessita de densa carga de fundamentação jurídica, capaz de demonstrar
133
toda a necessidade de sua instituição, assim como dos possíveis efeitos
gerados à sociedade e à economia.
5 Considerações finais
O presente tema foi desenvolvido em três capítulos, onde se abordou
a viabilidade da utilização do tributo extrafiscal, na sua vertente proibitiva, como instrumento de intervenção na economia sem prejudicar a livre
iniciativa e a livre concorrência. Sob este viés, procurou-se pautar a natureza do tributo extrafiscal proibitivo, o seu distanciamento de possível
caráter sancionatório da lei tributária, característica inerente ao tributo no
Estado Democrático de Direito contemporâneo, com o fim de permitir
uma análise adequada sobre a aplicabilidade de princípios constitucionais
tributários, da justiça social e da livre concorrência no Brasil.
Ainda que se trate de uma temática de índole eminentemente econômica, política e constitucional, procurou-se expor os conceitos que norteiam o referido tema, a fim de proporcionar uma compreensão sistematizada da utilização da tributação extrafiscal proibitiva pelo ordenamento
jurídico brasileiro. Ressalte-se ainda, que o tema estudado é dinâmico em
vários aspectos abordados, o que faz com que sua evolução seja permanente.
Havendo a necessidade de se viver em sociedade, surge a necessidade
de criação de um ente superior, o qual fosse responsabilizado pela constituição de regras de conduta. Independente da concepção de Estado que
se venha a adotar, será inerente a este o desenvolvimento da atividade
financeira, uma vez que serão necessários recursos para se alcançar objetivos e gerir atividades. No Brasil, tal intervenção deverá ser contida com
vistas a não interferir substancialmente na ordem econômica pátria.
O exercício direto da atividade econômica não é inerente ao Estado e
somente será permitido quando necessário aos imperativos da segurança
134
nacional, ou em face de relevante interesse coletivo. A despeito de todos
os benefícios que possam ser trazidos e internalizados na ótica da evolução econômica e social, assim como se mostrar um bom modo de intervenção estatal (sem qualquer anseio sancionatório), a finalidade extrafiscal “proibitiva” por vezes pode trazer prejuízos, caso não sejam observados limites à atuação do Estado.
O limite da atuação estatal é dado pela estrutura econômica esculpida
pelo texto constitucional, que coloca como fundamento da República Federativa do Brasil, dentre outros, a livre iniciativa, estabelecendo o norte
a ser seguido pelo Estado. É decorrente deste fundamento, portanto, que
o Estado deve pautar a sua relação com a economia, com uma postura de
auto controle constante, no que tange a limitação das atividades econômicas, e, por outro lado, como ente indutor de práticas de interesse da
coletividade. A extrafiscalidade proibitiva, dessa forma, ao ser utilizada
com prudência e sob critérios de razoabilidade e auto contenção estatal,
fornece o instrumentário necessário para a realização de tais fins.
Referências
AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 16. ed. São Paulo: Saraiva,
2010.
ÁVILA, Humberto. Teoria da igualdade tributária. São Paulo: Malheiros,
2008.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria geral do direito tributário. 5. ed. São
Paulo: Noeses, 2010.
BONFIM, Diego. Tributação e livre concorrência. São Paulo: Saraiva, 2011.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2012.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007.
135
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Keynes e a teoria geral. In: Revista do Serviço
Público, v. 74, p. 5, jan. 1957.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 13. ed.
São Paulo: Malheiros, 2008.
GRECO, Marco Aurélio. Contribuições de intervenção no domínio econômico
– parâmetros para sua criação. In: GRECO, Marco Aurélio. Contribuições de
intervenção no domínio econômico e figuras afins. São Paulo: Dialética,
2001, p. 9-31.
HARADA, Kyioshi. Direito financeiro e tributário. 17. ed. São Paulo: Atlas,
2008.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Livre concorrência e tributação. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Grandes questões atuais do direito tributário. São
Paulo: Dialética, 2007, v. 11, p. 241-271.
______. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
SPAGNOL, Werther Botelho. Da tributação e sua destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994.
TAVARES, André Ramos. Sanções em matéria tributária. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva (Coord.). Curso de Direito Tributário. 11. ed. São Paulo:
Saraiva, 2009.
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
ALMEIDA, Natallie Alves de. A extrafiscalidade proibitiva na relação entre
intervenção estatal e livre concorrência. In: MELO, Álisson José Maia
(coord.). Apontamentos didáticos em direito: reflexões às margens do
Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 117-135.
137
CAPÍTULO VII
ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
PERANTE AS NOVAS MEDIDAS
CAUTELARES
Venusto da Silva Cardoso
Amanda Lima Gomes Pinheiro
1 Introdução
O sistema processual no Brasil vem passando nos últimos anos por
profundas transformações, notadamente, com o advento da Constituição
Federal, ocorrendo verdadeira revolução branca quanto as mudanças no
aspecto jurídico e consequentes reflexos no âmbito social, político e econômico.
A par da fixação dos direitos fundamentais, o processo se tornou um
direito e uma garantia indissociável da preservação e defesa dos indivíduos.
Nos termos da Carta da República, ninguém pode ser privado de seus
bens ou de sua liberdade sem o devido processo legal.
Além do due process of Law, o processo haverá de justo, inafastável
das diretrizes fundamentais que atendam ao bem-estar social.
Daí que o processo não existe de per si, mas para servir de instrumento da realização da felicidade humana, da segurança jurídica e do alcance da pacificação social.
Um dos aspectos fundamentais da existência do processo é a celeridade processual, hoje expressamente consagrada no art. 5◦, inciso
LXXVIII, da CF/88.
138
Para instrumentalizar e realizar esse comando constitucional, as medidas cautelares vêm ao encontro da efetividade processual.
Em alguns aspectos ou facetas, o processo não visa antecipar o resultado da demanda em si, mas os efeitos de uma futura decisão, mediante
certos requisitos, geralmente apontados pela urgência e necessidade, dentre outros.
Com o advento da Lei nº 12.403/2011, as medidas cautelares ganham
um novo contorno, sendo aplicadas como regra e alternativa à prisão, medida extrema e de ultima ratio, além de outras com finalidades diversas.
No contexto e no centro dessas mudanças paradigmáticas encontrase o Ministério Público, uma vez que, como titular da ação penal e possibilidade de exercer poderes investigatórios confrontam-se novos horizontes a temática.
Veja-se, por exemplo, antes da Lei nº 12.403/2011 era tímido o poder
geral de cautela penal exercido pelo juiz.
Contudo, após a novel legislação, abre-se um leque variado de medidas que reforçam a possibilidade de maior elasticidade no exercício do
poder estatal através de seu agente judiciário e que se defronta o Ministério Público a par de suas atribuições institucionais.
O presente trabalho tem relevância pessoal haja vista vir ao encontro
da prática no desenvolvimento da carreira. Além de aumentar o referencial teórico, traz notadamente as balizas legais na operação do instituto.
Agrega segurança na operacionalização bem como ajuda nas manifestações escritas quando da abordagem do tema no ambiente de trabalho.
Por sua vez a relevância acadêmica se dá no sentido de aprimorar os
estudos dos institutos da prisão, dos seus efeitos, da visão do aplicador e
operador do direito. Foram relatados, além das questões doutrinárias e
jurisprudenciais, casos em concreto em que se pode visualizar as dificuldades de se tratar o tema nas questões práticas.
139
No tangente à relevância social o trabalho demonstra que a prisão tem
um estereótipo cultural de grande impacto na sociedade e na vida das
pessoas em geral. Com o este estudo, mostram-se outros caminhos que
viabilizam a repressão do estado contra o crime, como as medidas cautelares, alternativas à prisão, sem perder o viés pedagógico e punitivo da
sanção penal. Nesse sentido, demonstram-se outras formas de atuação estatal repressora alternativa à infringência do status libertatis.
O método foi de investigação científica a partir de um caso em concreto ocorrido na comarca de atuação ministerial. A metodologia empregada foi pesquisa em diversas leis, doutrinas e jurisprudências, bem como
a coleta de informações em geral. Além disso, foram executadas pesquisas bibliográficas, que permitem que se tome conhecimento de material
relevante, bem como balizar pesquisas futuras.
O trabalho é composto pela introdução que aborda uma visão geral
do tema. O Capítulo II traz um breve histórico das medidas cautelares no
Brasil abordando o nascimento do instituto das cautelares, suas aplicações no âmbito civil e notadamente o poder geral de cautela do juiz no
âmbito penal.
Por sua vez, o capítulo III mostra atuação do Ministério Público no
processo penal. Notadamente, afora a importância da atuação em outros
ramos do direito, ganha relevo aqui por se tratar do aspecto da liberdade
das pessoas. São abordadas as tratativas específicas no aspecto prisional,
seja na condição de requerente ou como executor de medidas, bem como
aquelas cautelares diversas da prisão.
Já o Capítulo IV aborda a atuação Ministerial e o poder geral de cautela penal do juiz, haja vista que no âmbito civil esse poder é pacificado
por se tratar de outros interesses jurídicos diversos da liberdade e de caráter disponível. Contudo, verifica-se no âmbito penal a divergência na
doutrina e jurisprudência dos limites de atuação diante da tímida franquia
140
legislativa, agora aumentada com a criação de um sistema cautelar penal
próprio.
A Análise de um caso em concreto compõe o Capítulo V, que trouxe
à baila as dificuldades enfrentadas num caso real quando da aplicação de
medidas cautelares, criando divergências quando da aplicação de tais medidas ou da necessidade da prisão.
Pela conclusão, faz-se um apanhado geral de toda argumentação expendida no trabalho bem como discorre sobre entendimentos doutrinários
e jurisprudenciais.
2 Breve histórico das medidas cautelares no Brasil
O processo cautelar no Brasil esteve centrado, com maiores especificidades no Código de Processo Civil. Funciona como processo autônomo
em relação ao de conhecimento.
A concessão das medidas cautelares, que podem ser de caráter liminar ou incidental, requer um mínimo de indícios da existência do direito
e urgência em seu provimento.
Visava, como regra, instrumentalizar o processo principal, qual seja,
o de conhecimento. Em muitas de suas características, uma das principais
é a fungibilidade do provimento jurisdicional.
No âmbito penal, as medidas cautelares tinham feições bem definidas. Em geral, muitas são as medidas cautelares aplicadas na seara penal,
tais como as prisões e as demais hauridas de leis extravagantes, bem como
a aplicação do processo civil em caso de omissão do penal.
Em respeito ao princípio da estrita legalidade no direito penal, a aplicação de medidas cautelares de caráter restritivo de liberdade não encontra dificuldades em sua aplicação, uma vez que vêm bem claras e definidas.
141
O advento da Lei nº 12.403/2011 vem convergindo com a concepção
de que a prisão é ultima ratio, medida extrema, encontrado amparo, antes
do trânsito em julgado, em excepcionalíssima situação conforme o caso
em concreto. A liberdade é consagradamente a regra.
A fim de concretizar o garantismo penal, bem como efetivar o princípio da presunção de inocência, vem buscando novas alternativas à prisão, tal qual como aconteceu com a ampliação do rol de medidas alternativas à prisão, conforme Lei nº n.º 9.714/98 e Lei nº 9099/95, bem como
a evolução e sedimentação da jurisprudência dos tribunais superiores, notadamente a do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça.
3 Atuação do Ministério Público no Processo Penal
O Ministério Público tem feições claras e definidas no processo penal. Como titular da ação penal, ou seja, dominus litis, centra-se uma das
figuras primordiais e Órgão estatal na busca pacificação social.
A Constituição Federal, em seu art. 129, defere ao Parquet a titularidade da ação penal. E nesse contexto, também pode e deve utilizar-se de
todos os instrumentos e meios, acessórios ou incidentais, na persecução
penal.
As medidas cautelares são imprescindíveis para a efetivação do processo. Sejam na fase inicial ou incidental, são mecanismos e instrumentos
necessários para colheita de provas, inspeções, exames e resguardo da
higidez processual.
Basicamente, atua o Parquet como parte (dominus liti) e custos legis.
Na condição de parte, é o órgão estatal quem oferece a denúncia e pugna
pela condenação.
Nesse ponto especificamente, é o estado, através do Ministério Público, agindo e interferindo na sociedade. O que está em jogo não um
142
interesse individual, mas da própria coletividade, de toda a sociedade em
manter e restabelecer a ordem a paz social.
Por isso não prospera o movimento de dar a condição de parte (estritamente particular) ao MP sob a máscara do manto da paridade de armas.
Paridade de armas não significa está no mesmo nível em tablado da vítima.
A igualdade pretendida está nas leis, nos mecanismos disponíveis, no
tratamento igual. O único fato de manter o Ministério Público em mesmo
patamar de igualdade perante o juiz não retira da parte adversa direitos,
mas ao contrário, demonstra que o estado e a coletividade estão agindo
devidamente frente à gravidade do delito praticado e que há um interesse
público relevante afetado com a conduta do agente.
Por outro lado, a condição do MP no processo penal é também de
custos legis, e nos dizeres de Hidejalma Muccio1, nessa condição age
“pugnando pela justa e correta aplicação da lei penal, (…) e pouco importa a natureza da ação penal, se pública ou privada”.
Ademais, a qualidade de fiscal da lei também é uma faceta do interesse público revestido no Órgão Estatal.
Além de posicionar a atuação do membro do Parquet no âmbito processual, é necessário afirmar e levar em consideração que o sistema penal
se funda na presunção da inocência, nos da CF/88, Art. 5º: LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória; e inciso LXI - ninguém será preso senão em flagrante
delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente
militar, definidos em lei.
1
Curso de Processo Penal, p.579.
143
Outro fator que chama atenção é consagrar que a liberdade é a regra.
As medidas cautelares, dentre elas a de prisão, são exceções e servem ao
processo e não para imputar culpa antecipadamente ao investigado.
Nesse viés, o processo penal não tem um sistema processual próprio
a respeito de medidas cautelares, tal como se vê no processo civil. Há
medidas esparsas de caráter pessoal e patrimonial não tanto sistematizadas no corpo do codex.
O termo medidas cautelares abrangem as prisões e outras diversas
destas. Em regra geral, nos dizeres de Eugenio Pacceli de Oliveira2, essas
medidas devem obedecer ao seguinte:
Como se vê, então, a prisão cautelar, a) depende de ordem judicial
fundamentada;b) pode ser decretada até a sentença condenatória;
e c) fundamenta-se nas razões da prisão preventiva.E, do mesmo
modo, a imposição de qualquer medida cautelar, diversa da prisão,precisamente por implicar restrições a direitos individuais, reclamará, sempre, fundamentação escrita da autoridade judiciária,
com base nos critérios de necessidade e de adequação da medida
(art. 282, CPP, e art. 283 e art. 315, CPP, extensivos às cautelares).
A nova lei vedou a aplicação das medidas cautelares se não foram
cominadas penas privativas de liberdade.
Frente a nova lei, todas as medidas cautelares devem ser fundamentadas e seguir o balizamento do art. 282, do CPP, ou seja, necessidade
para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e,
nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato
e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Não se dispensa também a existência da fumaça do bom direito e do
perigo da demora, que nos termos penais se revestem, respectivamente,
no fumus comissi delicti e no periculum libertatis.
2
Atualização do Processo Penal, pag. 11.
144
Genericamente, elas podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente. Isso quer dizer que se pode aplicar somente a prisão ou cumular
esta ou medidas diversas, desde que tenham relação como crime, sejam
expressamente previstas e evitem a prática de novas infrações.
Tais medidas, quanto à sua legitimidade, podem ser requisitada pelo
membro do Parquet, tanto na fase investigatória como na fase processual,
bem como podem ser representadas pela autoridade policial na fase inquisitorial.
Há de se observar e ter muita cautela com relação quando o juiz decretar de ofício. Mesmo podendo, sem ser provocado, aplicar uma medida
cautelar, deverá fixar somente àquelas previstas em lei, sem a possibilidade de inovar no mundo jurídico, dada a restrição ao poder geral de cautela penal diante do princípio da estrita legalidade penal.
Ainda a respeito da legitimidade, ressalte-se que esta se replica
quando houver descumprimento de qualquer das medidas aplicadas. Nos
termos do art. 282, § 4º, do CPP, o juiz, de ofício ou mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá
substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva (art. 312, parágrafo único).
Chama-se atenção que em sendo descumprida qualquer das medidas,
ainda assim não se aplicará a prisão preventiva diretamente, se couber
outra que alcance a finalidade. Contudo, não há nenhum óbice do Parquet
requerer diretamente a prisão preventiva se ficar demonstrado no caso em
concreto a ineficácia da demais.
Assim, é possível requerer aplicação direta de prisão preventiva, sem
desrespeitar o caráter de medida extrema, desde que demonstrado cabalmente que a substituição por outra medida cautelar diversa da prisão for
inócua ou não tiver eficácia na prática.
145
Nesse ponto, importante destacar que essas medidas têm caráter rebus sic stantibus, ou seja, podem ser decretadas ou revogadas até a prolação da sentença.
Nesse ponto é interessante notar todas as medidas se revestem de caráter de imprescindibilidade. Não podem ser aplicadas graciosamente.
Devem ter fundamento para resguardar o processo e servem até mesmo
para proteger o cidadão para que ele não seja submetido a medidas constritivas de direito sem que a mesma não seja imprescindível.
Muitas medidas cautelares têm imprimido em sua natureza e é ínsito
à sua decretação o fator da urgência. Contudo, diante do caso em concreto, poderá o juiz e defrontar com a necessidade, para melhor afirmação
do direito posto, de ouvir a parte adversa ou investigada, a fim de subsidiar sua decisão e adequar a medida mais apropriada.
Pode também o Parquet pedir que a parte contrária seja ouvida, uma
vez que na condição de fiscal da lei, evite a vulgarização da prisão. Há
também possibilidade que ao invés da prisão, uma medida cautelar diversa desta tenha o efeito melhor e maior eficácia, de forma que em alguns casos somente o investigado pode trazer informações uteis ao processo.
No tangente à possibilidade de revogação das medidas, elas podem
ser feitas até mesmo de ofício pelo juiz, por determinação do art. 282, §
5º, do CPP, que dispõe: “o juiz poderá revogar a medida cautelar ou substituí-la quando verificar a falta de motivo para que subsista, bem como
voltar a decretá-la, se sobrevierem razões que a justifiquem”.
Nesse ponto, deve-se ter muito cuidado para não haver manipulação
das medidas processuais a fim de beneficiar o investigado, principalmente no caso de revogação de prisão, a pretexto de se aplicar medida
diversa.
146
Deve-se, também, observar que a revogação tem relação fática com
a cláusula rebu sic stantibus. Ademais, a medida substitutiva precisa ter
eficácia para se adequar ao comando geral de aplicação das medidas cautelas estipulada no art. 282, do CPP. Não pode ser uma revogação graciosa, unicamente alegando que pode ser feito de ofício, mas guardar estreita relação com os fatos em concreto e com a efetividade do processo.
Um ponto importante trazido pela Lei nº 12.403/12 que há muito
tempo já vinha sendo defendido na doutrina e na jurisprudência é o fato
de considerar expressamente que a prisão cautelar, especialmente a preventiva, é medida extrema, consagrando o princípio presunção da inocência.
Muito embora a prisão, no mais das vezes, não se pode conceber
como ofensa ao princípio supracitado. Se decretada dentro dos preceitos
legais, obedecidos aos prazos processuais, a celeridade e a sua eficácia,
longe está de caracterizá-la como antecipação da condenação. Ao contrário, se aplicada corretamente, serve como proteção ao indivíduo e à sociedade e preservação da paz social.
Um ponto novo trazido pela legislação nova é a necessidade de se
deprecar a prisão quando o acusado estiver em outra comarca (art. 289,
CPP)
Essa regra traz grandes dificuldades na execução da medida. Veja-se,
por exemplo, o caso de o réu manter diversas residências ou se situar em
regiões metropolitanas.
Vemos que a realidade da magistratura, onde grande parte das comarcas, ao menos do Estado do Ceará está sem juízes e outras com apenas
juízes respondendo. Ademais, alguns provimentos demoram meses para
serem despachados, até mesmo o cumprimento de uma simples precatória.
147
Importante saber se a prisão do acusado, respeitada a regra constitucional do domicílio, sem que seja deprecada sua prisão implica em nulidade da medida. Será uma mera irregularidade, podendo ser suprida com
despacho ulterior do magistrado ou é da substância do ato haver a deprecação, de forma que sua ausência gere a nulidade do ato?
Ainda não há tratamento específico na doutrina, mas importante frisar que poderá ser executada a medida, uma vez que os motivos autorizadores da prisão restam inatacáveis e que seja demonstrada a urgência da
medida.
Importante discussão surgida com a nova lei é no caso de prisão em
flagrante, especificamente em saber se é necessário um parecer ministerial prévio.
Com efeito, dispões o art. 310, do CPP, o seguinte:
Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá
fundamentadamente:
I - relaxar a prisão ilegal; ou
II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas
da prisão; ou
III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
Não há nenhuma menção à possibilidade de manifestação prévia do
Ministério Público. Na prática, não obstante recebermos comunicação da
autoridade policial, muitos juízes sequer encaminham os autos judiciais
para parecer prévio sobre o caso.
Há necessidade sim, de prévia manifestação ministerial. Muito embora o comando legal não especifique essa necessidade, o fundamento
deve ser buscado na própria constituição (art.129, da CF), na posição de
parte no processo penal e dominus litis.
148
Igualmente, a prisão em flagrante é uma das facetas do processo investigatório e inquisitorial, cuja legalidade e condução será feito pela autoridade policial e o direcionamento das provas é para o titular da ação.
Daí que esse titular não pode ficar alheio a este processo inicial, uma
vez que sua manifestação também será necessária para a legalidade, fiscalização e condução do processo investigativo e até mesmo da validade
ou invalidade do ato.
Na verdade, na gênese dessa fase, onde se prende em flagrante uma
pessoa, é essencial a manifestação prévia ministerial, pois se está em jogo
um dos principais, se não o principal direito fundamental que é a liberdade em confronto com o direito da sociedade em ver punido os delinquentes.
Por outro lado, também está em jogo o poder estatal de punir, de garantir a paz social, uma resposta da sociedade e para a vítima, por isso a
intervenção necessária e prévia do MP.
Alguns juízes alegam que, se a prisão em flagrante tem suas balizas
na preventiva, e nesta eles podem conceder ou revogar de ofício, e não
seria necessária a manifestação prévia do MP, razão que podem se manifestar sobre a legalidade ou não do ato.
Outro dado relevante que aponta pela necessidade de prévia manifestação ministerial é o fato de que somente o MP poderá trazer mais elementos probatórios necessários para uma manifestação mais segura e fundamentada, haja vista que o Juiz, pelo princípio da inércia e da imparcialidade, não poderá adentrar nessa fase na seara de provas ou requisitar
outras, bem como proceder com novas colheitas sob pena de ferir os fundamentos da judicatura.
Assim, não há argumento que se sustente pela desnecessidade de prévia manifestação ministerial, até mesmo para subsidiar, com mais prudência, razoabilidade e proporcionalidade sobre a validade do ato ou não.
149
Não obstante os argumentos acima esposados, o STJ tem pacífica jurisprudência em sentido contrário, conforme REsp nº 752.4303.
Outra importante novidade na lei sobre a prisão, notadamente quanto
a preventiva é a possibilidade de sua decretação pelo descumprimento de
medidas cautelares anteriores fixadas, mas que foram descumpridas desmotivadamente.
Nesse ponto, deve-se chamar atenção ao fato que somente será decretada a prisão se não couber outra medida cautelar diversa, pois somente em último caso poderá se proceder com a preventiva. Contudo,
repise-se que não há óbice que se decrete prisão diretamente pelo descumprimento, desde que fundamentadamente se justifique que novas medidas cautelares não servirão para impedir a prática de novos crimes, por
exemplo.
Importante novidade trazida pela lei é o fato de limitar ainda mais a
possibilidade da decretação da preventiva e das demais cautelares que tenham essa espécie de prisão com fundamento. É o que estabelece o art.
312, do CPP, ao dispor que cabe prisão preventiva nos crimes dolosos
punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro)
anos de reclusão.
Essa hipótese vem demonstrar que somente para os crimes mais graves cabe a prisão preventiva.
3
AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. PENAL. PRISÃO
EM FLAGRANTE. LIBERDADE PROVISÓRIA. DEFERIMENTO SEM A PRÉVIA
OUVIDA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. POSSIBILIDADE.1. A decisão agravada deve
ser mantida por seus próprios fundamentos, dado que proferida em consonância com a
jurisprudência da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, "inexistindo os motivos legais da custódia cautelar, a falta da manifestação prévia do Ministério Público para a concessão da liberdade provisória constitui mera irregularidade formal, não acarretando nulidade qualquer no benefício legal concedido." (REsp nº
752.430/RS, Relator o Ministro Hamilton Carvalhido, DJU de 7/11/2006) 2. Agravo
regimental a que se nega provimento. (AgRg no Ag 887.601/RS, Rel. Ministro PAULO
GALLOTTI, SEXTA TURMA, julgado em 18/09/2007, DJ 08/10/2007, p. 396)
150
Polêmica nesse sentido surge quando se quer saber se os 04 (quatro)
anos são por crime praticado ou pode ser considerado na somatória de
crimes em concurso.
Quando e tratar de concurso de crimes, perfeitamente possível que se
faça na somatória dos delitos praticados. Ao revés, em caso de crimes
isolados, não se enquadrando nas hipóteses do art. 69, 70, 71, do CP, não
seria caso de cabimento da preventiva.
Também inovou a respeito da preventiva o art. 313, II, do CPP, ao
dispor que cabe a preventiva se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso
I do caput do art. 64 do Decreto-Lei nº no 2.848, de 7 de dezembro de
1940 - Código Penal.
Nesse caso especificamente, também na condição de membro do Parquet, há dúvidas em se saber se trata de crimes dolosos da mesma espécie
ou de qualquer outro tipo de crime doloso.
A lei não faz distinção, então seria qualquer espécie de crime doloso,
desde que, observe-se, tenha pena superior cominada acima de 04 anos
de reclusão, ainda que a pena fixada em concreto seja menor deste valor,
como por exemplo, uma pena fixada em 02 anos de reclusão.
Questão interessante é saber que pelo simples advento de condenação
em outro crime doloso já seria suficiente de per si para leva à decretação
da preventiva. Em nosso sentir, a simples condenação não é suficiente.
Deve-se levar em consideração um princípio implícito da custódia cautelar segregatória que é a sua extrema necessidade e caráter subsidiário.
Logicamente, em caso de nova condenação em crime doloso, se cabível uma medida cautelar diversa da prisão, não haveria necessidade de
decretar preventiva, pois ela seria um fim em si mesmo, desvirtuando da
sua finalidade que é servir ao processo.
151
A lei não descurou a respeito da necessidade de prisão em caso de
violência doméstica abrangida pela lei Maria da Penha. Disposição esta
que vinha normalmente regulada e atualizada pela citada lei.
Um problema sério enfrentado pelo Parquet no caso da Lei nº Maria
da Penha é pelo descumprimento de medidas cautelares daquela lei em
que cabe a prisão. É de se pensar se, em caso de crime cuja pena mínima
cominada seja menor de 04 anos se caberia a preventiva, dada a disposição do art. 313, I, do CPP.
A Lei nº Maria da Penha é especial em relação ao Código de Processo
Penal. Assim, não afronta o disposto no art. 313, I, do CPP, uma vez que
a lei especial prevalece sobre geral (CPP). Assim, é uma exceção à regra
do art. 313, I, do CPP que limita a hipótese do quantitativo da pena cominada.
Vale lembrar que a preventiva não sofre um rigor com relação ao
quantitativo de pena aplicado. Repise-se que cabe preventiva quando
houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.
Acaso essa pessoa que precisa ser identificada tenha cometido em
tese delito de contravenção penal, caberia prisão preventiva? Ou se for
um crime de menor potencial ofensivo, caberia da mesma maneira a prisão?
Nesse caso, defrontando-se o membro do Parquet com essa situação,
deverá intervir no sentido de não permitir que o réu seja preso preventivamente, salvo se os crimes praticados se enquadrarem nas hipóteses do
art. 313 e incisos, do CPP.
A simples hipótese da não identificação da pessoa ser motivo de prisão preventiva é extremamente criticada pela doutrina, haja vista ainda
152
ser um resquício da ditadura militar, de um estado de exceção e policialesco.
Com a tecnologia hoje existente e a facilidade de comunicação facilmente se descobre a identificação da pessoa, sem a necessidade de sua
prisão prévia.
Esta hipótese sim é caso de prisão que não se presta ao processo, mas
tão somente a responder ao caráter arbitrário do estado. Tristemente e sem
qualquer razão foi mantida na atualização legislativa, mesmo havendo
abalizadas vozes proclamando a sua inconstitucionalidade.
Ainda a respeito da prisão, há desnecessária e expressa dicção a respeito da necessidade de sua fundamentação. A CF/88 aduz que todos os
provimentos jurisdicionais serão motivados, não havendo necessidade de
lei prever. Contudo, por excesso de preciosismo o legislador ordinário
assim o quis.
Por fim, a apresentação espontânea foi retirada pelo advento da Lei
nº 12.403/12. Assim, mesmo se apresentado espontaneamente, a pessoa
se livra da prisão em flagrante, mas não da decretação da preventiva, caso
presentes os seus requisitos.
Merecem aplausos o fato de a lei nova trazer disposições a respeito
da prisão domiciliar, sendo mais uma alternativa ao encarceramento.
Antes da lei, cabia prisão domiciliar para os casos de condenados em
regime aberto. Tal fato gerava grande controvérsia nos tribunais quando
se tratava de pessoas em estado de saúde que impedisse o encarceramento
e que estavam em regime diverso do aberto.
As Leis nº 12.403/11 e 13.257/16 trouxeram regulamentação específica para também ter prisão domiciliar no caso de preso provisório, conforme arts. 317 e 318, do CPP:
Art. 317. A prisão domiciliar consiste no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se
153
com autorização judicial. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de
2011).
Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de
2011).
I - maior de 80 (oitenta) anos; (Incluído pela Lei nº 12.403, de
2011).
II - extremamente debilitado por motivo de doença grave; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011).
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6
(seis) anos de idade ou com deficiência; (Incluído pela Lei nº
12.403, de 2011).
IV - gestante; (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
V - mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos;
(Incluído pela Lei nº 13.257, de 2016)
VI - homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho
de até 12 (doze) anos de idade incompletos. (Incluído pela Lei nº
13.257, de 2016)
Parágrafo único. Para a substituição, o juiz exigirá prova idônea
dos requisitos estabelecidos neste artigo. (Incluído pela Lei nº
12.403, de 2011).
No atinente às medidas cautelares diversas da prisão, previstas no art.
319, do Código de Processo Penal, bem como uma aparente sistematização, trouxe importante alternativas à prisão.
Há muito reclamado pelos doutrinadores e juristas, a prisão tem servido como antecipação da própria pena, bem como servido de estigma
deletério no curso do processo.
Anteriormente à nova lei, poucas eram as alternativas de cautelares
no corpo do processo penal. Muitas das leis extravagantes vinham prevendo em seu corpo medidas similares, mas que somente se aplicavam
para aquele objeto da lei.
Com a previsão no CPP, irradia para toda a legislação extravagante
um mini e tímido sistema de cautelares, mas de certa forma, se mostra
eficiente à alternativa prisional.
Prevê o art. 319, do CPP, o seguinte:
154
São medidas cautelares diversas da prisão:
I - comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições
fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades;
II - proibição de acesso ou frequência a determinados lugares
quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado
ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de
novas infrações;
III - proibição de manter contato com pessoa determinada quando,
por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;
IV - proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência
seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução;
V - recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga
quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos;
VI - suspensão do exercício de função pública ou de atividade de
natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de
sua utilização para a prática de infrações penais;
VII - internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal)
e houver risco de reiteração;
VIII - fiança, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial;
IX - monitoração eletrônica.
As cautelares previstas nos incisos I a IV, as mesmas são autoexplicativas e bem conhecidas da seara jurídica.
Com relação ao inciso V (recolhimento domiciliar no período noturno e
nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho
fixos) traz importante instrumento de controle social das atividades do
investigado.
A razão é que, muito embora não tenha o Estado meios para fiscalizar
tal medida, a mesma fica a cargo do controle social exercido pela comunidade e pela própria vítima.
No Inciso VI (suspensão do exercício de função pública ou de atividade
de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utiliza-
155
ção para a prática de infrações penais) traz à baila instrumento útil ao afas-
tamento cautelar e provisório de agentes públicos que estão se utilizando
do cargo para fins criminais.
O afastamento do cargo tem se mostrado complexo nos pedidos ministeriais. A pergunta que se pode fazer é se a suspensão se dá com ou
sem vencimentos no caso de servidor público. Também se pode questionar se a suspensão no mesmo caso implica na suspensão das vantagens
funcionais, tais como tempo de serviço, contribuição previdenciária e
aposentadoria.
Importante ressaltar que a suspensão não deve implicar, no caso de
servidor estatutário, da restrição de nenhuma das garantias funcionais,
bem como de vencimentos e remunerações, salvo as proptem laborem,
até o trânsito em julgado da sentença, haja vista o princípio da inocência.
Além da suspensão das atividades funcionais, desde que caracterizadas que sua permanência na função é para a prática de crimes, pode o
membro ministerial requerer ao Juízo que se determine a instauração do
procedimento administrativo para apurar a responsabilidade funcional,
correndo de forma autônoma do processo principal.
Contudo, observe-se que em caso de servidor não estável, tal qual o
comissionado, não nenhum óbice a determinação judicial de sua exoneração.
A novidade nos termos de cautelar é a respeito do monitoramento
eletrônico. Esta medida ainda pende de regulação legislativa e de efetiva
implementação.
Não obstante, bom relembrar que o monitoramento visa desafogar os
presídios, que a cada dia se restringem apenas para os casos mais graves.
Essa medida também vai ao encontro para efetivar a fiscalização hoje
inexistente dos que estão cumprindo pena fora dos presídios ou casas de
internação. Não se concebe mais hoje tanta negligência estatal quando a
156
situação dos presídios, bem como aos que deveriam estar sendo fiscalizados pelo Estado.
Outra importante medida, já prevista, mas tão em desuso, é a fiança.
O revigoramento desse instituto veio ao encontro à nova realidade social
e dinâmica da sociedade.
Há tempos os crimes de grande repercussão financeira eram apenas
combatidos com a prisão. Esta, muitas das vezes se mostrava ineficaz no
combate e principalmente no ressarcimento de valores, seja para o erário
ou para a própria vítima.
A fiança arbitrada, no patamar dos novos valores cominados pela legislação, já pode ser, pó exemplo, meio para ressarcimento ao erário nos
crimes de desvio de recursos públicos.
Nesse ponto especificamente, o membro do Parquet pode enfrentar
questões de incompatibilidade de medidas cautelares.
No trato com crimes de desvio de recursos públicos, nos casos em
que se tem dificuldades de se estabelecer o quantum do valor desviado, a
fiança tem importante papel no sentido de se fixar um valor mínimo de
reparação, mesmo que seja um valor em potencial.
Ocorre que no curso do processo, a fiança pode ser incompatível com
outras medidas cautelares, tais como o bloqueio de bens e valores, pois
como se pagar a fiança, quando o acusado não pode dispor de seus bens.
É possível, todavia, que se libere bens de forma vinculada unicamente para o fim de se pagar fiança, caso assim seja desejo do acusado e
autorizado pelo juiz.
Uma discussão interessante ainda sobre a fiança o é o fato de comprovado desvio de recursos públicos, mas os valores já foram dissipados
pelo acusado e, fixada a fiança com base nos valores identificados, não
puder pagar a mesma, muito embora formalmente e materialmente ele
157
seja beneficiário dos valores desviados. É possível que permaneça preso
por não poder pagar a fiança?
No caso levantado é possível ficar preso, desde que fundamentadamente o juiz entenda que não seja caso de liberdade provisória, pois
mesmo sendo crime afiançável ou não, é direito do acusado consagrado
na constituição.
A análise do caso deve se deslocar para outro centro de gravidade,
qual seja, não pela falta de recursos a pagar, mas pela possibilidade ou
não de prisão e de liberdade provisória, que se afigura, à luz dos modernos dogmas penais, como direito público subjetivo da pessoa humana.
Afinal, a fiança é um acessório da prisão.
Não obstante, a fiança pode ser vista não como mera possibilidade de
alternativa à prisão, mas como preponderante vetor de punibilidade e ressarcimento de valores, seja para o próprio estado ou para eventuais vítimas.
Ainda na condição de alternativa, a fiança tem aspecto punitivo e repressivo, pois seus efeitos, notadamente naqueles crimes de grande repercussão financeira, têm o condão de afetar de natureza mais eficaz o patrimônio do acusado.
4 Atuação Ministerial e o poder geral de cautela penal do
juiz
A respeito do poder geral de cautela penal, importante e questionar a
princípio se o magistrado pode especificar medidas cautelares diversas
das requeridas pelo titular da ação penal ou se pode inovar, em não sendo
requeridas.
A resposta deve ser feita a partir da análise da evolução desse instituto no Brasil.
158
A doutrina e jurisprudência sempre foram unânimes em afirmar que
o poder geral de cautela no âmbito civil era possível, por expressa previsão legal, nos termos do art. 798 do Código de Processo Civil.
Em breve síntese, o poder geral de cautela do juiz é aquele em que se
reafirma a legitimidade do juiz para ordenar providências assecuratórias
previstas expressamente em lei e outras que, embora não especificadas
normativamente, sejam necessárias à proteção do direito provável contra
o dano iminente.
Assim, acaso a medida não estivesse prevista, pode o magistrado fixar outras, de ofício, para o caso em concreto.
Ao contrário do processo civil, no âmbito penal o poder geral de cautela sempre foi controverso.
Os Tribunais, até o advento da Lei nº 12.403/11, vacilavam4 em definir se havia o poder geral de cautela penal.
A razão está no fato de que no direito penal (lato sensu) vige o princípio da estrita legalidade, ou seja, somente poderá haver restrição de direitos e previamente prevista a medida em lei.
Contudo, à primeira vista, a nova lei passa a por uma colher de cal
sobre as dúvidas, uma vez que em seu enunciado permite que o juiz aplique de ofício as medidas cautelares diversas da prisão.
Ao se deparar com essa possibilidade, o membro do Parquet deve
atentar que as medidas aplicadas, substitutivas da prisão, devem ter referibilidade, ou seja, relação entre causa e efeito. A referibilidade significa,
para Marinoni e Arenhart5, que a tutela cautelar deve se referir a uma
4
Veja-se: Contra: HC n. 128599 / PR, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS
MOURA, Data: 07/12/2010, Data da Publicação/Fonte: DJe 17/12/2010; favor: HC
102124 / RJHABEAS CORPUS.2008/0056781-3.
5
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo civil - v. 4 - processo cautelar, p. 36.
159
tutela de direito material, ou, nas palavras dos autores, a "uma situação
substancial acautelada”.
As medidas devem estar relacionadas com o caráter do crime praticado, que vise, nos termos do art. 282, da Lei nº 12.403/11 o seguinte:
necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução
criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de
infrações penais; adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado.
Assim, o membro ministerial, defrontando-se ante a possibilidade de
aplicação de medida cautelar, poderá o juiz, diante de tais circunstâncias,
aplicar aquela medida que atenda ou se aproxime ao máximo ao comando
da norma, muito embora não tenha sido requisitada.
Ressalte-se que o art. 282, da Lei nº 12.403/11 ao estabelecer termos
tais como gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais
do indiciado dirige ao operador do direito comandos de caráter objetivos
e subjetivos, mas não imprecisos ou totalmente abertos.
O próprio sistema penal dá a baliza necessária para o ministério público aplicar tais conceitos jurídicos.
Chama-se atenção que a possibilidade de aplicação de medidas cautelares de ofício restringe-se àquelas previstas em lei, mas pode ser de
ofício.
Dessa forma, o poder geral de cautela penal se aproxima daquela previsto no direito civil notadamente quanto à possibilidade de se decretar
de ofício as medidas. Daí que mesmo não requeridas pelo Parquet, é possível haver restrição de direito por expressa previsão legal.
Em relação à possibilidade de inovar com medidas cautelares diversas da prisão, a lei penal ainda não deferiu ao juiz essa possibilidade. No
artigo 282, do CPP, é expresso que poderão ser aplicadas se previstas em
lei.
160
Logo, o poder geral de cautela penal ainda não adquiriu a pureza com
que é exercida no direito civil, ou seja, neste sistema há expressa permissão ao juiz, de ofício, aplicar outras medidas não previstas na lei.
5 Análise de um caso em concreto
No decorrer de agosto de 2011 foi realizada pela Polícia Federal,
PROCAP e CGU operação PROVÍNCIA II, oriunda da comarca de Ibiapina, para execução de medidas cautelares de prisão, busca e apreensão,
bloqueios e outras, o que gerou a ação cautelar naquela comarca.
Após a colheita de prova, iniciou-se um grande esforço no sentido de
se manter as medidas cautelares, notadamente a de prisão, haja vista que
as empresas e pessoas objeto da ação operavam com licitações em praticamente todo o estado.
O modus operandi de tais empresas, notadamente quanto ao objeto
de locação de veículo e festas e eventos, era fraudar o processo licitatório
concorrendo com outras empresas cujos valores já estavam previamente
ajustados.
Ademais, na sede de uma única empresa, haviam mais de 20 outras
operando pelo mesmo titular, a fim de burlar o caráter competitivo do
certame.
Outras características das empresas é que as mesmas serviam apenas
de fachada, existindo formalmente, mas não registram nenhum empregado em seus quadros, não têm sede de funcionamento e nenhum equipamento ou material necessário para cumprir o objeto da licitação.
Veja-se, por exemplo, que as empresas que operavam com locação
de veículos não tinham nenhum veículo registrado em seu nome, sublocando de terceiros os veículos. Em alguns casos, os motoristas eram fornecidos pelas próprias empresas, sem que tivessem seus direitos trabalhistas assegurados, muito embora admitidos pelas prefeituras.
161
O mais grave detectado é que havia conivência de servidores públicos
para dar funcionalidade ao esquema perante as administrações municipais.
Diante desse quadro, havia necessidade da segregação cautelar dos
autores das fraudes, uma vez que soltos, poderiam continuar operando
com outras empresas e em outros municípios, haja vista que as medidas
cautelares teriam vigência apenas no âmbito do território da comarca de
Ibiapina.
Equivocadamente, o juízo daquela comarca entendeu que medidas
cautelares diversas da prisão, tais como comparecimento pessoal, bloqueio de bens, apreensão de passaporte, vedação de contratar com a administração municipal, impossibilidade de adentrar no recinto da prefeitura e de operar com as empresas em que eram titulares gerou ineficácia
completa das medidas, ou seja, foram inócuas.
Com efeito, no dia seguinte após a liberação dos acusados da prisão
temporária, substituída pelas medidas cautelares acima expostas, os mesmos voltaram a operar o esquema normalmente nos municípios vizinhos.
Detalhe importante que financeiramente o município de Ibiapina tinha a menor parcela de contratos de tais empresas, muito embora se tenha
juntado provas suficientes que elas operavam em todo o estado e que naquele momento somente a prisão teria o condão de desarticular o esquema
criminoso.
Veja-se a ineficácia de tais medidas aplicadas. O comparecimento
pessoal não tem nenhuma compatibilidade com o modus operandi das
empresas que impeçam a prática reiterada do crime. Como as empresas e
seus titulares operam na região, a medida não tem nenhum caráter que
vise repreender a prática de crimes.
Em relação ao bloqueio de bens, inicialmente, restou uma medida
frágil, passível de recursos ou reforma, pois como não se tinha os valores
162
iniciais desviados, ficou sendo uma medida genérica. Repise-se, os valores desviados dependem de perícia em todo o material apreendido, um
grande calhamaço de documentos que compreendem mais de 30 volumes
processuais, aparelhos eletrônicos e computadores.
Em relação à perícia de equipamentos eletrônicos a polícia civil não
tem equipamento para realizar a inspeção técnica, o que resultou na demora na conclusão dos laudos e consequente fixação dos valores desviados.
No tangente à apreensão de passaporte, vedação de contratar com a
administração municipal, impossibilidade de adentrar no recinto da prefeitura e de operar com as empresas em que eram titulares demonstra a
falta de percepção do magistrado quanto ao fator corrupção.
O desvio de recursos públicos nos municípios do Estado é uma chaga
que tem se tornado regra nas administrações municipais.
Não são poucos os casos que verdadeiras quadrilhas se instalam na
administração pública com fins espúrios.
A medida cautelar de impedir que o titular da empresa adentre nos
recintos da prefeitura não tem qualquer efeito, uma vez que eles se utilizam de interposta pessoa, procuradores para operaram o esquema criminoso. Ao revés, é bem melhor operar com terceiros, pois desviam o foco
das atenções dos órgãos fiscalizadores e da própria população.
O que foi visto na prática é que o titular da empresa ficava de prontidão em frente ao prédio da prefeitura esperando seu cônjuge que estava
no interior do paço municipal negociando com o gestor. Veja-se que a
medida não impedia que seus parentes adentrassem no recinto, até mesmo
porque não faziam parte do processo.
Como operavam com empresas de terceiro, enviavam os titulares
destas para negociarem e participarem de outras licitações, mantendo o
163
controle de fato e financeiro do esquema criminoso, sem que tivessem
desrespeitando as ordens judiciais.
Também restou inócua esta medida cautelar pois alguns processos
licitatórios são feitos em caráter eletrônico. Pagamentos e entrega de documentos são também pela via eletrônica, sem que se fosse necessário
adentrar no recinto da prefeitura.
O mais grave visualizado e verificado na prática foi o fato de logo
após a audiência de apresentação para fixação das medidas cautelares, os
acusados foram para os municípios limítrofes e ficaram operando normalmente o esquema nas demais prefeituras, sem que estivessem desobedecendo as ordens judiciais.
Faixas e cartazes eram propositadamente e acintosamente fixadas nas
avenidas da própria comarca oferecendo os serviços de tais empresas para
serem prestadas em outras cidades.
Como desdobramento da operação Província II e da fragilidade das
medidas cautelares aplicadas em Ibiapina, foram oferecidas denúncias
nas cidades de Tianguá, Reriutaba e Pires Ferreira, cuja prisão foi devidamente decretada nessas cidades, coadunadas com medidas cautelares
mais consistentes e relacionadas com a realidade do caso em concreto.
Muito embora o Tribunal de Justiça tenha revogado posteriormente a
prisão preventiva decretada, sob o argumento, data vênia, também equivocado, de que com os bens bloqueados não havia como se pagar fiança
fixada, merecem aplausos as medidas cautelares aplicadas pelo magistrado monocrático.
O argumento da impossibilidade de se pagar fiança devido ao bloqueio de bens confunde, à evidência, a pessoa jurídica com a física.
O quadro exposto demonstra a dificuldades que o membro do Parquet
tem ao operar com as novas medidas cautelares frente ao caso em concreto, uma vez que a intenção principal das sanções requeridas, além da
164
punição ao delinquente, era a preservação do erário e impossibilitar a prática de novas condutas delituosas.
No caso apresentado, as medidas cautelares diversas da prisão, muito
embora algumas merecedoras de aplausos, não foram suficientes para impedir a continuidade dos crimes perpetrados.
Se em outras espécies de delitos as medidas cautelares têm pronta
reposta a inviabilizar a prática de novas condutas criminosas, no atinente
ao desvio de recursos públicos, notadamente no que concerne aos crimes
contra administração pública, restaram inadequadas no caso vertente,
uma vez que não havia, salvo nas exceções ilustradas acima, relação entre
o caso em concreto com as medidas aplicadas.
6 Conclusão
O presente trabalho procurou demonstrar o impacto do novo sistema
de medidas cautelares na atuação ministerial.
Verificou-se que, muito embora não se tenha no direito processual
penal um sistema de medidas cautelares, ou até para ser mais ousado, um
processo cautelar penal, nos termos vistos no direito civil, as medidas
cautelares têm foco no movimento nacional alternativo às prisões.
Estas, quando das vezes, eram banalizadas em sua aplicação, muitas
das vezes por ausência de alternativas processuais que pudessem substituí-las. Das outras vezes, traziam a pecha de condenação antecipada.
Não se pode olvidar que prisão tem um aspecto cultural e histórico
profundamente arraigados na sociedade ocidental.
Para muito, somente ela pode resolver e tem o poder imediato de solução de punibilidade.
Também não se estranha que muitas vozes proclamam que as medidas cautelares são vertente de um garantismo penal às cegas e estéril.
165
Mas na análise de tais medidas, muito embora elas se centram em
alternativas à prisão, têm seu valor no sentido de trazer à baila a possibilidade de regulamentação de outros temas, tais como o monitoramento
eletrônico e o revigoramento do instituto da fiança.
Tais reclamações ainda são a impregnação do forte fator cultural e
histórico da existência da prisão como única forma de se fazer justiça.
Contudo, muitas das medidas podem ter efeito mais efetivo que a prisão, com seu forte caráter de punição antecipada, como por exemplo, a
própria fiança ou outra adequada ao caso concreto e fixada com base no
poder geral de cautela penal.
Noutro giro, conclui-se também que as medidas cautelares vêm ao
encontro dos preceitos constitucionais que propugna a inexistência de penas cruéis e difamantes.
Ademais, como as prisões ainda são em sua maioria sindicatos de
crime, depósitos de pessoas e sofrem constantes as agruras de superlotação, nada mais eficaz que medidas substitutivas que não suprimem as finalidades da pena.
A propósito, as finalidades da punição estatal, quando se põe somente
a prisão como único meio capaz de fazer justiça, desvirtuam todos os preceitos éticos, jurídicos e filosóficos em que se assenta o moderno direito
penal e a constituição federal.
Os bolsões de pessoas na prisão são verdadeiros crimes de contra a
humanidade e o Ministério Público tem o dever de atuar contra essa hediondez.
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, v. 1: parte geral.
15ª edição. São Paulo: Saraiva, 2010.
166
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, v. 1: parte geral. 14ª edição. São
Paulo: Saraiva, 2010.
FERNANDES, Antonio Scarance. Medidas cautelares pessoais nos projetos de
reforma do Código de Processo Penal. Revista de informação legislativa,
Brasília a.46 n.183 julho./set.2009.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral. 12ª edição.
Rio de Janeiro: Impetus, 2008.
GRECO FILHO, Vicente. Manual do Processo Penal.- 8. ed. rev., atual. e
ampl. - São Paulo: Saraiva, 2010.
MIRABETE, Júlio Fabrinni. Manual de Direito Penal, volume 1 – parte geral. 26ª edição. São Paulo: Atlas, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz. Curso de processo
civil - v. 4 - processo cautelar.
MUCCIO, Hidejalma. Curso de processo penal. 2. ed., rev. e atualizada.- Rio
de Janeiro: Forense,; São Paulo: MÉTODO, 2011.
SOUZA, Alexandre Araújo. Abuso do Direito no requerimento de medidas
cautelares atípicas no processo penal. Revista dos Tribunais. Ano 96. Volume 856. Fevereiro de 2007.
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
CARDOSO, Venusto da Silva; PINHEIRO, Amanda Lima Gomes. Atuação
do ministério público perante as novas medidas cautelares. In: MELO, Álisson
José Maia (coord.). Apontamentos didáticos em direito: reflexões às
margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 137-166.
167
CAPÍTULO VIII
REFLEXÕES ACERCA DA CONTROVERSA
UNIFICAÇÃO DO DIREITO PRIVADO
Thiago Pinho de Andrade
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Desenvolvimento; 3. Conclusão.
O avanço do direito comercial sobre o direito civil é um fenômeno
inevitável nas sociedades modernas, quer estejam ambos regulados num só diploma ou não, haja vista a maior segurança e agilidade daquele ramo jurídico, decorrente da própria essência das
transações mercantis1.
1 Introdução
A evolução histórica do direito comercial e as regulações que permearam seu contexto evolutivo impulsiona a reflexão acerca da autonomia
de tal ramo a despeito da unificação do direito privado. O problema a ser
averiguado é saber até que ponto é necessário implementar nova codificação em detrimento de um aprimoramento de técnicas de execução e
compreensão das legislações já existentes.
Averiguar-se-á como se deu a reflexão e criação de tais diplomas
tendo como pano de fundo as necessidades e anseios à época, para após
isso, observar as discussões acerca da “unificação” do direito privado e
autonomia do direito comercial, tendo como parâmetro as legislações civilistas e comerciais, sobretudo, o projeto do novo Código Comercial.
A análise realizada neste ensaio justifica-se pela discussão enraizada
no cenário do direito comercial acerca das codificações refletidas e promulgadas ao longo dos dois últimos séculos, e a importância de cada uma
delas à época em que foram pensadas e concebidas. A evolução do direito
1
GARO, Francisco (1955, p.37).
168
comercial conjugada a uma posterior reflexão de um Código Civil causaram algumas incongruências e distorções do real sentido e necessidade
legislativa nas últimas décadas.
Nesse contexto, a recorrência da mencionada discussão acerca do direito comercial, sua respectiva codificação, e acrescentando-se a isso diálogo a respeito de sua autonomia, vem inquietando de tal modo que,
desde 2011, discute-se a confecção e matéria de um novo Código Comercial.
Desse modo, tal discussão deu ensejo ao projeto de Lei nº1.572/2011,
e toda uma reflexão acerca da real necessidade do referido projeto que
tem como objetivo não só promulgar novo Código Comercial, mas também conferir maior autonomia a tal ramo.
As peculiaridades de cada diploma e o respectivo contexto histórico
que serviu como pano de fundo para a efervescência de ideias, bem como
a tentativa de criar um novo código comercial como resposta as discussões acerca da autonomia deste ramo, desemboca na discutida “unificação” do direito privado.
2 Desenvolvimento
Antes de qualquer exame sobre a autonomia do direito comercial, é
preciso ter em mente a distinção entre as duas acepções do conceito de
autonomia, tal como estabelecidas pelo professor Waldirio Bulgarelli
(1998, p.55): a autonomia formal ou legislativa, e a autonomia substancial ou científica.
A primeira delas diz respeito às fontes formais do direito comercial.
Diz-se que ele é autônomo se estiver contido em um código próprio, distinto do código civil. A segunda autonomia, de caráter substancial, diz
respeito ao conteúdo das normas: diz-se que há um direito comercial autônomo se houver disposições independentes relativas aos institutos do
169
direito mercantil, estejam ou não reunidas em um código formalmente
autônomo. Afinal, como elucida Fábio Ulhôa Coelho (2005, p.24), a autonomia didática e profissional não é minimamente determinada pela legislativa.
Em segundo lugar, importa considerar que a bipartição do direito privado em direito civil e comercial, longe de ser uma opção legislativa deste
ou daquele Estado, foi uma decorrência histórica da própria maneira
como o direito comercial se desenvolveu (FERREIRA, 1954, p. 69): conforme visto no primeiro capítulo, o direito comercial surgiu como estatuto
das corporações de ofício – fase subjetiva, ganhando, em momento posterior, maior universalidade e entrando, pois, em sua fase objetiva.
Ora, percebe-se que o direito comercial, de início, não se destinava a
integrar o ordenamento jurídico na mesma categoria em que o faziam o
direito penal, o civil, etc, já que ambicionava ser, apenas, o estatuto de
uma dada categoria profissional. Foi o rumo da evolução econômica
dessa categoria que levou à equiparação deste ramo do Direito aos demais
e o pôs lado a lado com o direito civil. Essa equiparação, porém, evidenciou as similaridades entre esses dois ramos do direito e levantou o questionamento: por que não unificá-los em um só código?
A exemplo disso, pode-se mencionar as diretrizes constitucionais que
regulam a ordem econômica (art. 1702 e 1923, CF/88) que demonstram
Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre
iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observado os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade
privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente; VII – redução das desigualdades regionais e
sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas
de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no país.
3
Art. 192 - O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes
2
170
escorreita relação direta com a economia, concluindo por uma busca de
uma maior adequação e diálogo com o mercado4 e suas particularidades.
Nesse panorama, diversos comercialistas surgiram em defesa da unificação do direito privado, pugnando pela supressão da dicotomia entre
ambos os ramos. Entre eles, Cesare Vivante se tornou o principal representante da doutrina unificadora do direito privado. Segundo Rubens Requião, Vivante resumia em quatro os principais prejuízos ocasionados
pela autonomia do direito comercial.
Em primeiro lugar, ressaltava ele que as diferenças naturais entre o
direito civil e o comercial não seriam, de todo, banidas pela codificação
única de ambos. Para ilustar, Cesare Vivante tomou como referência o
direito suíço e também o direito anglo-saxônico, que regulam de forma
unificada as relações civis e comerciais.
Nesse contexto, importante salientar que a concepção anglo-saxônica
do direito comercial consiste em equipará-lo às demais subdivisões do
direito privado, tais como o direito das coisas, o direito de família, e assim
por diante, ao passo que a concepção românica do jus mercatorum indica
sua suposta excepcionalidade em face do direito civil, que corresponde à
regra geral. Como exemplo, pode-se apontar a exposição de motivos do
anteprojeto do Código Comercial de 1850 (loc. cit):
Nesta parte a Commissão firme no principio de que convém dar
aos nossos Commerciantes normas directoras de todos os seus actos mercantis, e attendendo a que as Leis Civis do Imperio são escassas na materia de Contractos, ordenou titulos completos das diversas naturezas de Contractos admissiveis em Commercio, nos
que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram.
4
Paula Forgioni (2009, p. 100), ao tratar da evolução do direito comercial, aduz que de
um direito medieval, ligado ao mercador, passou-se ao critério objetivo e liberal dos atos
de comércio, para a atividade da empresa, a qual deve ser estudada a partir da função
econômica, objetivo fulcral do mercado (teoria do mercado).
171
quaes pensa ter substanciado as regras que podem ter applicação
nas transacções mercantis.
Em segundo lugar, ressaltou Vivante a própria universalidade adquirida pelo Direito Comercial, graças a qual este passou a regular não somente os atos praticados por comerciantes, mas também os que outros
praticassem em sua relação com estes. Ora, esta possibilidade daria margem a que muitos abusos e fraudes fossem cometidas pelos mercadores,
além do inegável privilégio que teriam – já que eventuais conflitos,
mesmo que surgidos a partir das relações entre eles e não-comerciantes,
seriam submetidos às regras por estes instituídas.
Em terceiro, apontou que não só quanto às normas aplicáveis, no caso
concreto, teriam vantagem os comerciantes: também quanto a diversos
efeitos jurídicos, restariam prejudicados os não-comerciantes envolvidos
em conflitos considerados como de competência da Justiça Comercial.
Seria possível, por exemplo, que um indivíduo ficasse privado de crédito
perante a comunidade dos comerciantes pela prática de atos jurídicos erroneamente tidos como comerciais.
Por último, a bipartição do direito privado acabaria provocando danos à própria ciência jusprivatística, em razão – segundo Vivante – da
desatenção dos comercialistas às regras gerais do direito privado, motivo
que os levaria a erigir como “novidades” institutos já consagrados na esfera civil, ou mesmo a criar novas modalidades de contrato consoante sua
própria principiologia, afrontando, possivelmente, os princípios gerais estabelecidos no código civil, aduzia ele em seu Trattato di Diritto Commerciale (1906, p.2):
L'autonomia del diritto commerciale, che sorse spontanea quando
il commercio era eserciato esclusivamente dai commercianti
iscritti nelle corporazioni, sembra un anacronismo oggidì in cui
gli atti di commercio sei esercitano liberamente, ora per professione, ora isolatamente, da chiunque ne ha voglia. La separazione
tradizionale della nostra costituzione sociale, dove s'infiltra in
ogni senso il commercio colle sue consuetudini. Perciò mette il
172
conto de esaminare se le ragioni storiche di quell'autonomia la
giustificano anche nel mondo moderno, e ciò per affrettare la fusione del diritto privato in un Codice único5.
Apesar da firmeza com que defendeu a unificação do direito privado
no início de sua carreira, o mesmo Cesare Vivante, quando foi incumbido,
anos depois, de elaborar o anteprojeto de reforma do Código Comercial
italiano então vigente, alterou radicalmente seu posicionamento e passou
a sustentar a nocividade não da autonomia do direito comercial, mas de
sua fusão com o direito civil.
O argumento principal a embasar a nova argumentação era o da diferença essencial entre as realidades sociais sobre as quais incide o direito
comercial e aquelas que ficam sob a égide do direito civil. Com efeito,
percebeu ele que inúmeras questões estudadas pelo direito comercial não
podem receber do direito civil a correta regulamentação (REQUIÃO,
2012, p. 45):
Justifica-se a autonomia pela diferença de método entre o direito
civil e o direito comercial: neste prevalece o método indutivo; naquele, o dedutivo. O direito comercial tem, de fato, uma índole
cosmopolita que decorre do próprio comércio. A disciplina dos títulos de crédito, a circulação, o portador de boa-fé, são institutos
que dão uma feição diferente da que prevalece no direito civil. Os
negócios a distância, entre ausentes, são problemas que o direito
civil não resolve e, por fim, o direito comercial regula os negócios
em massa, ao passo que o direito civil se ocupa de atos isolados.
5 A autonomia do direito comercial, que surge espontânea quando o comércio era exercido exclusivamente pelos comerciantes inscritos nas corporações, parece um anacronismo hodiernamente, quando os atos de comércio se exercitam livremente, ora de
forma profissional, ora de forma isolada, por qualquer que um que o queira. A separação
tradicional do direito privado parecem contrastar com a homogeneidade da nossa constituição social, na qual se infiltra o comércio, em todos os sentidos, com seus costumes.
Por isso, incumbe examinar se as razões históricas daquela autonomia a justificam também no mundo moderno. (tradução livre)
173
No Direito Brasileiro, as discussões relacionadas à autonomia do direito comercial perante os demais ramos jurídicos teve início, notadamente, a partir do projeto de código civil apresentado pelo ilustre jurista
Teixeira de Freitas – o qual antecedeu, em muitos anos, qualquer tentativa
unificadora na Europa (inclusive a de Vivante).
Conforme explica o consagrado comercialista Waldemar Ferreira
(1954, p.72), antes de cumprir integralmente a tarefa elaborativa que lhe
fora cometida por decreto imperial, Teixeira de Freitas publicou uma exposição de motivos em que ofereceu diversas e severas críticas ao sistema
jurídico-privado então vigente e aceito pelo Império – especialmente no
que se refere ao direito comercial, sobre o qual discorreu:
Não há tipo para essa arbitrária separação de leis, a que deu-se o
nome de direito comercial ou código comercial; pois que todos os
atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação da existência. Não há mesmo alguma
razão de ser para tal seleção de leis; pois que em todo o decurso de
um código civil aparecem raros casos, em que seja de mister distinguir o fim comercial dos atos, por motivo da diversidade nos
efeitos jurídicos. Entretanto, a inércia das legislações, ao inverso
do progressivo desenvolvimento das relações jurídicas, formou
lentamente um grande depósito de usos, costumes e doutrinas, que
passaram a ser leis de exceção, e que de leis passaram a ser códigos, com seus tribunais de jurisdição restrita e improrrogável. Eis
a história do direito comercial! Eis falsificada a instrução jurídica
e aturdidos os espíritos com a frívola anatomia dos atos até extrairlhe das entranhas o delicado critério!
Ora, em que pesem os fortes argumentos em favor da unificação do
direito privado, é preciso reforçar o que têm dito muitos dos modernos
estudiosos do assunto, que, mesmo convindo com aqueles argumentos,
ressaltam a possibilidade de que a unidade do direito privado não se dê
de forma efetiva, de forma substancial, mas acabe se limitando à esfera
meramente legislativa.
174
Nesse sentido, pondera Francisco Garo (1955, p.37) que a unificação
do direito privado não impede os inconvenientes indicados pelos que a
defendem: o avanço do direito comercial sobre o direito civil é um fenômeno inevitável nas sociedades modernas, quer estejam ambos regulados
num só diploma ou não, haja vista a maior segurança e agilidade daquele
ramo jurídico, decorrente da própria essência das transações mercantis.
Outrossim, a possibilidade de surgirem dúvidas sobre qual das divisões do direito privado deve ser aplicada a determinada situação concreta
existe não só entre o direito civil e o comercial, mas também entre o direito civil e os outros ramos do direito (administrativo, penal, etc).
Além disso, o exemplo suíço de unificação – constantemente citado
pelos defensores da unidade privatística – acha-se vinculado às condições
históricas concretas daquele país, que por muito tempo ficou dividido em
inúmeras unidades político-administrativas – os cantões, em cada uma
das quais vigorava uma legislação mercantil em particular, o que justificava sobremodo a unificação.
Por fim, esses argumentos evidenciam que o simples fato do direito
comercial deixar de ser regulamentado em um diploma autônomo e passar a ser uma parte do direito civil não retira a eficácia de seus institutos,
isto é, não impede que disposições eminentemente mercantis continuem
a ser aplicadas, erroneamente, a situações que deveriam incidir sob a órbita do direito privado, dentre diversas outras situações que justificam a
unificação.
Em vista disso, cumpre manter um olhar crítico sobre a proposta unificadora do direito privado, a qual, mesmo quando realizada do ponto de
vista formal e legislativo, nem sempre corresponde à subordinação substancial do direito comercial ao direito civil – a qual seria, aliás, bastante
inconveniente, haja vista as inúmeras particularidades do mundo mercantil e a celeridade com que evolui perante outras ramificações jurídicas,
175
características suficientes para reforçarem, pois, sua autonomia no ordenamento jurídico.
No que tange especificamente a unificação das obrigações no Código
Civil de 2002, é importante observar que se deu, tão-somente, uma ampliação de dispositivos em um só código que, até então, encontravam-se
em fontes diferentes não perdendo, ali ou aqui, seu caráter complementar.
A unificação do direito obrigacional na legislação civil não foi e é suficiente para falar-se de uma unificação macro que, para muitos, seria a unificação do direito privado. A tão buscada autonomia não se encontra na
unificação legislativa (novas legislações, um novo código etc), mas sim
na observância ao mercado que vem se desenvolvendo, e a correta hermenêutica que se dá as normas já existentes.
3 Conclusão
A análise de qualquer legislação/codificação deve-se, sem sombra de
dúvida, observar não só os anseios que se pretendia com sua feitura, como
também o contexto histórico o qual fora pano de fundo da produção legislativa. Especificamente no Brasil, a atividade comercial (e as regras à
época), teve como início a abertura dos portos em 1808, modificando a
época colonial para uma fase de desenvolvimento da mercancia (nomeava-se como mercancia a atividade econômica desenvolvida com mercadorias).
Passaram-se algumas décadas, e sobre forte influência da era das codificações (tal “era” foi um momento histórico que se deu em 1807 na
França, encabeçado por Napoleão, com intuito de criar corpos normativos
para regulação de determinadas matérias), concebeu-se o Código Comercial de 1850. A evolução econômica e a necessidade de regulação, para
além das atividades comerciais, deu ensejo ao Código Civil de 1916, surgindo a partir daí, uma tímida dicotomia do direito privado.
176
Com a promulgação do Código Civil de 2002, revogou-se integralmente o Código Civil de 1916, e parcialmente o Código Comercial de
1850, ocasião em que claro restou os reflexos das discussões ao longo
dessa jornada reflexiva de regulações, quais sejam, a manutenção da dicotomia (civil e comercial), busca pela autonomia do direito comercial e
a unificação do direito obrigacional no atual código civil.
Nesse contexto, ao longo dessa trajetória, e tendo como argumento a
autonomia do direito comercial, hodiernamente, discute-se proposta de
um novo código comercial que não parece ser o melhor caminho para a
resolução de eventuais problemas do ramo aqui analisado.
Ademais, não é a feitura de novos instrumentos legislativos que irá
solucionar a integralidade dos problemas enfrentados. Apesar do respeitável objetivo de se desvincular da ideologia italiana que influenciou
nossa legislação civil (e esta ter sido concebida em outro contexto histórico), acredita-se que criar um novo código seria desnecessário, pois,
como se pretende hoje, estaria apenas reproduzindo dispositivos/diplomas esparsos da legislação pátria vigente.
Além disso, vale ressaltar que se tem dispositivos por demais, microssistemas bem definidos e redigidos, legislações bem pensadas. A deficiência que se mostra aparente está no campo ético, na hermenêutica de
tais microssistemas e na complementariedade positiva que se pode obter
através de exercícios hermenêuticos que tenham como objetivo otimizar
a prestação jurisdicional e a regulação da atividade econômica.
Importante mencionar, a título ilustrativo, as diretrizes constitucionais que regulam a ordem econômica que demonstram a relação íntima
com a economia, concluindo por uma busca de uma maior adequação e
diálogo com o mercado e suas particularidades. Por outro lado, a autonomia formal da discutida codificação não se traduziria em evolução e autonomia do direito comercial, mas pelo contrário, poderia limitar este
177
ramo e deixa-lo com prescrições restritas que prejudicaria a efetiva hermenêutica da função econômica e social do mercado.
Portanto, a falsa ideia de unificação do direito privado (em virtude da
promulgação do Código Civil de 2002, e consequente revogação de parte
do Código Comercial e integralidade do Código Civil de 1916), conjugada a discussão da autonomia do direito comercial, não se traduz em
unificação dos direitos civil e comercial, mas tão somente naquilo que
tange ao direito obrigacional (o que em contrapartida não retira a autonomia do direito comercial), não sendo, momentaneamente, a promulgação
de um novo código comercial a solução mágica para os impasses, divergências e problemas que permeiam o cenário empresarial e econômico.
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180
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
ANDRADE, Thiago Pinho de. Reflexões acerca da controversa unificação do
direito privado. In: MELO, Álisson José Maia (coord.). Apontamentos
didáticos em direito: reflexões às margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM,
2016, p. 167-179.
181
CAPÍTULO IX
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA VERSUS
PATERNIDADE BIOLÓGICA: ANÁLISE
DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL DOS
TRIBUNAIS SUPERIORES
Roberta Farias Cyrino
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Breve ensaio da evolução das famílias; 2.1.
Função social da família moderna; 3. Da filiação e do reconhecimento de
filhos; 3.1. Evolução legislativa da filiação e o reconhecimento de filhos;
3.2. Conceito de filiação; 3.3. Da posse do estado de filiação; 3.4. O reconhecimento de uma filiação. 4. O princípio da afetividade como núcleobase da família contemporânea; 5. A paternidade socioafetiva, uma paternidade verídica; 5.1. Breves apontamentos da paternidade socioafetiva;
5.2. Efeitos patrimoniais da paternidade socioafetiva; 5.3. Análise jurisprudencial dos Tribunais Superiores; 5.3.1. Paternidade socioafetiva e ativismo judicial; 5.3.2. A paternidade socioafetiva sobe a ótica do Superior
Tribunal de Justiça; 5.3.3. A paternidade socioafetiva sob a ótica do Supremo Tribunal Federal; 6. Conclusão.
1 Introdução
A evolução do conceito de família constitui preocupação constante
dos operadores do direito, principalmente no que tange ao vínculo afetivo
das relações familiares, o que torna o estudo da paternidade socioafetiva
carente de uma discussão complexa e significativa. Essa nova possibilidade de filiação promove uma alteração do pensamento tradicional dos
filhos serem apenas os biológicos ou adotivos, caso não permita a ampliação do conceito de descendente estará ressuscitando a ideia de filhos
ilegítimos para a contemporaneidade.
Desse modo, inicialmente, teceu-se comentários acerca da evolução
conceitual de família, buscando inseri-la no atual contexto do Estado democrático de direito brasileiro, à luz da dignidade da pessoa humana. Em
182
seguida, identificou-se o princípio da afetividade como força motriz da
evolução do conceito de família, e que hoje, pode-se afirmar, constitui
parte integrante de sua estrutura, revelando, pois, sua importância de instrumento efetivador da dignidade da pessoa humana.
Apresentou-se os contornos da filiação e das questões relacionadas
ao seu reconhecimento, verificando-se o enquadramento de uma nova
modalidade de filiação, qual seja, a paternidade socioafetiva, com base
no vínculo afetivo anteriormente estudado.
Por fim, a partir de uma análise doutrinária e jurisprudencial, objetivou-se tecer algumas questões controvertidas, em especial quanto ao patrimônio, que permeiam a paternidade socioafetiva, analisando esta espécie de paternidade e expondo os seus requisitos e possíveis efeitos. Muito
embora não exista até o presente momento legislação específica sobre o
assunto aqui abordado, sua importância vem se revelando cada dia mais
intensa, em virtude das ações, da cultura família hodierna, necessitando
de uma postura mais ativa do Poder Judiciário, a fim de encontrar respostas para questões até então silenciadas pelo legislador.
2 Breve ensaio da evolução das famílias
Não data de hoje a preocupação em torno da família, essa instituição
sofreu mutações, transformações crescentes no transcurso do tempo, assumindo outros contornos na contemporaneidade, com o advento do Neoconstitucionalismo, ressaltou a superioridade da Constituição Federal de
1988, garantidora da dignidade da pessoa humana. É nesse contexto que
merece destaque a análise da família, desde os primórdios até os dias atuais.
Desde a Colônia, o Império e boa parte do século XX, a legislação
civil brasileira adotou como modelo a família patriarcal, onde a figura
183
masculina representava a liderança, o responsável por prover a manutenção dos componentes, era necessária a instituição do casamento para reconhecer o agrupamento de pessoas na mesma casa como família e assim
receber a tutela Estatal. Só eram considerados legítimos os filhos provenientes do casamento, quem não possuía essa origem, recebiam a qualificação de ilegítimos. A mulher no momento que casava tinha sua capacidade alterada para relativamente incapaz, perdurando esse estado enquanto convivesse na sociedade conjugal, conforme o Art. 6º, inciso II do
Código Civil de 1916.
Com o Estatuto da Mulher Casada, Lei nº 4.121 de 1962, inaugurase a possibilidade da mulher administrar o seu capital adquirido na atividade laborativa, com a Emenda Constitucional nº 09 de 1977 e a Lei do
Divórcio, Lei nº 6.615 de 1977, há a previsão do término da sociedade
conjugal, permitindo que os cidadãos possam concluir um relacionamento afetivo para ingressar em um novo, permitindo o aparecimento de
novos modelos familiares.
A imagem unívoca de família entrou em crise, principalmente após o
advento da Constituição Federal de 1988, por introduzir novos valores,
novos alcances, passando a ser relevante o ser humano em si em contrapartida à concepção anterior da família matrimonial, a qual se apresentava com relevância à proteção ao patrimônio. O Código Civil de 2002
reitera os preceitos constitucionais, desta forma, pode-se afirmar que, a
família passou a se basear em um novo paradigma, a afetividade (LÔBO,
2011).
Em 1948, com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, houve
o reconhecimento normativo internacional da existência de um direito
humano de fundar uma família, em seu artigo 16.3, o qual aduz: “A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado”. Da reflexão deste dispositivo, Paulo
Lôbo (2011, p. 18) anota duas conclusões: “a) família não é só aquela
184
constituída pelo casamento, tendo direito todas as demais entidades familiares socialmente constituídas; b) a família não é célula do Estado (domínio da política), mas da sociedade civil, não podendo o Estado tratá-la
como parte sua”.
Sob o ponto de vista jurídico, entende-se que a família pode ser traduzida pela união de duas estruturas: os vínculos e os grupos. Neste sentido, continua o autor:
Há três sortes de vínculos, que podem coexistir ou existir separadamente: vínculos de sangue, vínculos de direito e vínculos de afetividade. A partir dos vínculos de família é que se compõem os
diversos grupos que a integram: grupo conjugal, grupo parental
(pais e filhos), grupos secundários (outros parentes e afins).
Desta forma, embora se possam estabelecer conceitos de família no
âmbito das ciências em geral (psicologia, biologia, filosofia, sociologia,
etc.), é sob o enfoque jurídico que se pretende traçar as diretrizes da família, entendendo-se, dada a sua evolução, a adoção de um conceito mais
abrangente, sobretudo no que diz respeito ao vínculo afetivo que une os
seus componentes. Neste sentido, afirma Maria Berenice Dias (2008, p.
42):
Agora, o que identifica a família não é nem a celebração do casamento nem a diferença de sexo do par ou o envolvimento de caráter sexual. O elemento distintivo da família, que a coloca sob o
manto da juridicidade, é a presença de um vínculo afetivo a unir as
pessoas com identidade de projetos de vida e propósitos comuns,
gerando comprometimento mútuo.
A preocupação atual está no desafio de se encontrar uma conceituação única de família. Assim, tece ainda a autora (2008, p. 43) que é de
todo necessário ter uma “visão pluralista da família”, buscando, pois,
identificar o elemento que possa abrigar no conceito de entidade familiar
todos os relacionamentos com origem no vínculo da afetividade.
185
A família representa vínculos, comunidades formadas por pessoas,
independente da orientação sexual, que se auxiliam mutuamente, estando
conectadas, ligadas umas para com as outras, pode-se considerar família
as pessoas que convivem em decorrência de um casamento, de uma união
estável, de laços de amizades, é o caso de pessoas que residem no mesmo
ambiente físico, adquirem patrimônio em comum, mas não “dormem” na
mesma suíte; há as famílias que se comunicam pela internet, isto é, os
membros residem em domicílios distintos em virtude das atividades laborativas, contribuindo para a ideia de família virtual. As interações entre
as partes são mutantes, progressivas, não há como traduzir em um único
conceito o que seja família hodiernamente.
2.1 Função social da família moderna
Ao longo da história, a família possuiu funções as mais diversificadas, a saber: religiosa, política, econômica e procracional, funções estas
que marcaram a estrutura patriarcal da família, traduzida por uma rígida
feição hierárquica, de supremacia do poder masculino sobre a mulher e
sobre os filhos (LÔBO, 2011).
Neste sentido, Fachin (2003) informa que a evolução da família de
família-poder para família-cidadã está relacionada ao valor jurídico do
afeto, o qual encontra-se disseminado na doutrina e na jurisprudência.
Desta feita, pode-se afirmar que a função atual da família passou a se
basear na identificação da solidariedade (art. 3º, I, da Lei Maior), onde os
membros de um mesmo agrupamento familiar são responsáveis uns pelos
outros. O Estatuto do Idoso1 traduz esta ideia ao conferir a prestação alimentícia em solidariedade em favor do ancião, tendo este o direito de
Conforme estabelece o Art. 11 e Art. 12 do Estatuto: “Art. 11 Os alimentos serão
prestados ao idoso na forma da lei civil. Art. 12. A obrigação alimentar é solidária, podendo o idoso optar entre os prestadores”.
1
186
optar a quem pedirá para satisfazer a obrigação. O princípio da solidariedade tem fundamento na afetividade. Neste sentido, Paulo Lôbo (2011,
p. 20) entende que:
A realização pessoal da afetividade, no ambiente de convivência e
solidariedade, é a função básica da família de nossa época. Suas
antigas funções feneceram, desapareceram ou desempenharam papel secundário. Até mesmo a função procracional, com a secularização crescente do direito de família e a primazia atribuída ao
afeto, deixou de ser sua finalidade precípua. […] Reinventando-se
socialmente, reencontrou sua unidade na affectio, antiga função
desvirtuada por outras destinações nela vertidas, ao longo de sua
história. A afetividade, assim, desponta como elemento nuclear e
definidor da união familiar, aproximando a instituição jurídica da
instituição social. A afetividade é o triunfo da intimidade como
valor, inclusive jurídico, da modernidade.
Dada a importância da afetividade no contexto da sociedade contemporânea, há entendimentos doutrinários que dispõem sobre a prevalência,
com poucas exceções, das relações socioafetivas frente às biológicas.
Neste sentido, veja-se2:
As relações de consanguinidade, na prática social, são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e da convivência
familiar, constituintes do estado de filiação, que deve prevalecer
quando houver conflito com o dado biológico, salvo se o princípio
do melhor interesse da criança ou o princípio da dignidade da pessoa humana indicarem outra orientação […].
Com o advento da nova função de família, nela inserindo-se o paradigma da afetividade, é que se torna possível a concretização do valor
supremo da dignidade da pessoa humana de cada um de seus integrantes,
vetor primeiro da consagração do Estado democrático de direito brasileiro.
2
LÔBO, Paulo Luiz Netto apud LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. São Paulo: Saraiva, 2011, p.27.
187
3 Da filiação e do reconhecimento de filhos
A mudança pertinente ao conceito de família passou a refletir os anseios de uma sociedade-cidadã e não mais de uma sociedade-patriarcal,
trouxe também relevantes contornos na disciplina da filiação e do reconhecimento dos filhos, o que irá se aprofundar neste tópico.
3.1 Evolução legislativa da filiação e o reconhecimento de
filhos
O artigo 227, §6º da Constituição de 1988, de forma inovadora ao
estabelecido na legislação civilista de outrora, resolveu de vez o problema
da discriminação entre os filhos, preceituando que: “os filhos havidos ou
não da relação do casamento, terão os mesmos direitos e qualificações,
proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.
Esta nova visão, não paira dúvidas, é a que melhor se coaduna com a
dignidade da pessoa humana, valor supremo da Lei Maior. É neste sentido que Farias; Rosenvald (2009, p. 472) lecionam:
[…] a nova concepção de filiação impõe uma nova arquitetura ao
instituto, que passa a ser compreendido como instrumento garantidor do desenvolvimento da personalidade humana. […] Promoveu-se, dessa maneira, uma total desvinculação, um desatrelamento completo, entre a filiação e o tipo de relação familiar mantida pelos genitores (ou mesmo não mantida por eles).
Na mesma linha de pensamento extraída do dispositivo supramencionado da Constituição Federal de 1988 também merecem destaque os artigos 26 e 27 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90),
os quais dispõem acerca do reconhecimento da filiação:
Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de
nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento
do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.
188
Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o
segredo de Justiça.
Em seus artigos 1.601 e 1.606, o Código Civil brasileiro estabeleceu
também a não aceitação de qualquer fator que dificulte o reconhecimento
ou a contestação da filiação, a saber:
Art. 1.601. Cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos
filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível.
Parágrafo único. Contestada a filiação, os herdeiros do impugnante
têm direito de prosseguir na ação.
Art. 1.606. A ação de prova de filiação compete ao filho, enquanto
viver, passando aos herdeiros, se ele morrer menor ou incapaz.
Parágrafo único. Se iniciada a ação pelo filho, os herdeiros poderão continuá-la, salvo se julgado extinto o processo.
Ainda no que diz respeito à legislação civilista, a doutrina tece severas críticas aos artigos 1.596 e 1.597. É o que se pode perceber das considerações de Farias e Rosenvald (2009, p. 473):
Aliás, o art. 1.596 da Codificação de 2002, recepcionando os novos paradigmas constitucionais sobre a filiação, prescreve terem
todos os filhos, havidos ou não da relação casamentaria, os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias. Todavia, de modo inexplicável, o legislador-codificador manteve uma presunção de paternidade (art. 1.597) somente
para os filhos nascidos de pessoas casadas, ignorando a existência
da pluralidade de núcleos familiares, protegida, de forma expressa,
pela Constituição Federal.
Deste entendimento, compartilha Gonçalves (2007, p. 282):
Malgrado a inexistência, por vedação expressa da lei, de diversidade de direitos, qualificações discriminatórias e efeitos diferenciados pela origem da filiação, estabelece ela, para os filhos que procedem de justas núpcias, uma presunção de paternidade e a forma
de sua impugnação; para os havidos fora do casamento, critérios
para o reconhecimento judicial ou voluntário; e, para os adotados,
requisitos para a sua efetivação.
189
Compartilha-se, portanto, da necessidade de aprimoramento dos instrumentos de verificação e de reconhecimento da filiação, em respeito aos
ditames constitucionais, de forma a dar ênfase efetiva à dignidade da pessoa humana. (FARIAS; ROSENVALD, 2009).
3.2 Conceito de filiação
De acordo com a nova visão estabelecida pela Constituição de 1988,
não há mais como se tentar conceituar filiação a partir de sua origem consanguínea ou não. Atualmente, o vínculo da filiação deve ser estabelecido
a partir de critérios não exclusivamente biológicos, envolvendo também
os aspectos afetivos, objeto de estudo do presente trabalho. Neste sentido,
Farias e Rosenvald (2009, p. 476) conceituam filiação, sob o aspecto técnico-jurídico, como sendo:
[…] a relação de parentesco estabelecida entre pessoas que estão
no primeiro grau, em linha reta entre uma pessoa e aqueles que a
geraram ou que a acolheram e criaram, com base no afeto e na
solidariedade, almejando o desenvolvimento da personalidade e a
realização pessoal. […]
Nota-se, com facilidade, tratar-se de uma relação jurídica multifacetária, envolvendo, a um só tempo, três diferentes perspectivas: a
filiação considerada pela ótica do filho (chamada filiação propriamente dita), pela ótica do pai (denominada paternidade) e pela
perspectiva da mãe (intitulada maternidade), entrelaçando diferentes consequências voltadas para a realização das pessoas envolvidas.
Lôbo (2011, p. 216) traça outro conceito de filiação: “Filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que se estabelece entre duas
pessoas, umas das quais nascida da outra, ou adotada, ou vinculada mediante posse do estado de filiação ou por concepção derivada de inseminação artificial heteróloga”.
Mais uma vez, percebe-se que não se pode mais nos dias atuais aferir
a filiação como sendo apenas a que deriva de vínculo biológico entre os
componentes de uma família. Prova disto é o aparecimento, na sociedade
190
contemporânea, de novos institutos, a exemplo da inseminação artificial
heteróloga, na qual se utiliza o material reprodutivo de outro homem que
não o marido ou companheiro para fecundar o óvulo da mulher; e da paternidade socioafetiva, baseada nos princípios da confiança e da afetividade que regem as relações familiares, onde o importante é a representatividade da pessoa que traduz e realiza as funções um pai.
Neste diapasão, entende-se que as noções conceituais relativas à filiação foram também alargadas com a evolução conceitual de família, devido à necessidade sentida de uma análise e compreensão mais voltada
aos novos ditames constitucionais.
3.3 Da posse do estado de filiação
A posse do estado de filiação diz respeito à situação de fato “na qual
uma pessoa desfruta do status de filho em relação a outra pessoa, independentemente dessa situação corresponder à realidade legal” (LÔBO,
2011, p. 236). E continua Paulo Lôbo (2011, p. 237): “A posse do estado
de filho oferece os necessários parâmetros para o reconhecimento da relação de filiação, fazendo ressaltar a verdade socioafetiva”.
É, pois, por meio da convivência familiar, que se pode averiguar a
efetivação da posse do estado de filiação, através do comportamento aparentado pelos pais e filhos perante a sociedade. Vê-se, pois, que a posse
do estado de filiação constitui requisito primeiro na demonstração da tese
da paternidade socioafetiva, há entre os envolvidos a total correspondência da interação pai e filho, seja no que se refere a dependência econômica, suprindo economicamente as despesas pertinentes a criação, ao cuidado como educação, saúde, alimentação, vestuário, lazer, ou seja pertinente ao carinho mútuo exercido entre ambos.
191
Neste sentido, a doutrina estabelece três requisitos para se identificar
o estado de filiação, sendo eles o trato, o nome e a fama. Existirá, pois,
segundo Paulo Lôbo (2011, p. 237), estado de filiação quando há:
tractatus (comportamento dos parentes aparentes: a pessoa é tratada pelos pais ostensivamente como filha, e esta trata aqueles
como seus pais), nomen (a pessoa porta o nome de família dos
pais) e fama (imagem social ou reputação: a pessoa é reconhecida
como filha pela família e pela comunidade; ou as autoridades assim a consideram). Essas características não necessitam estar presentes, conjuntamente, pois não há exigência legal nesse sentido e
o estado de filiação deve ser favorecido, em caso de dúvida.
Da análise destes requisitos, pode-se entender que, para haver a configuração da paternidade socioafetiva, deve existir o preenchimento do
requisito trato ou fama, ainda que não haja o aperfeiçoamento do nome.
Assim, a paternidade socioafetiva pode ser aferida através do comportamento havido entre os membros de uma família e/ou da imagem refletida
perante a sociedade, além do empréstimo do nome ao filho, deixando
transparecer a existência do vínculo afetivo. Havendo a presença de
quaisquer destes requisitos ou de todos eles, há que se falar em paternidade socioafetiva, com a realização das funções de pai, independentemente da consanguinidade.
Deste modo, através da inovação sentida no âmbito da família e da
filiação, não se pode utilizar da investigação da paternidade a fim de se
intentar unicamente ilidir a posse do estado de filiação, visto que a mesma
pode ser comprovada de outras formas, como as já mencionadas, na sociedade contemporânea.
3.4 O reconhecimento de uma filiação
O reconhecimento de filho pode se dar por ato voluntário (espontâneo) ou forçado (judicial). De acordo com o já citado e criticado artigo
1.597 do Código Civil de 2002, há a presunção relativa de paternidade
192
quando de filhos nascidos de pessoas casadas entre si. Logo, tais filhos
não precisarão ter por reconhecidos os seus estados de filiação. Já quando
se está diante de filhos advindos de pessoas não casadas entre si, há o
dever de reconhecimento pelos pais, o qual pode ser, como dito, por ato
espontâneo ou através do Judiciário.
Esta conclusão advém da seguinte passagem de Farias e Rosenvald
(2009, p. 524): “enquanto a filiação matrimonial decorre de uma presunção jurídica, a filiação extramatrimonial é materializada por meio do reconhecimento de filhos, por ato voluntário ou por decisão judicial”.
O reconhecimento voluntário é aquele firmado pela vontade de ambos os pais ou de um deles e tem natureza personalíssima, sendo, pois,
um ato livre, irrevogável e irretratável, o qual não pode estar submetido
a condição, termo ou encargo, de acordo com o que reza o artigo 1.613
do Código Civil de 2002: “São ineficazes a condição e o termo apostos
ao ato de reconhecimento do filho”.
Ainda quanto ao reconhecimento voluntário, o artigo 1.609 da legislação civil alude a quatro subespécies, a saber:
a) reconhecimento direto, feito no próprio registro de nascimento.
Ocorre quando o pai ou a mãe procede ao reconhecimento formal,
perante o Cartório, na presença de testemunhas;
b) reconhecimento indireto, mediante manifestação havida em outro documento que não seja levada imediatamente ao registro do nascimento, como é o caso de escritura pública ou escrito particular;
c) reconhecimento inserido em testamento. Aqui se deve ressaltar que a
invalidação do testamento não gera automaticamente a revogação do
reconhecimento de filho;
d) reconhecimento incidental, através de manifestação expressa e direta
pelo pai ou pela mãe perante o juiz.
193
Deve-se frisar entendimento doutrinário segundo o qual todas estas
espécies de reconhecimento voluntário acima citados dependem da inexistência de outra paternidade (ou maternidade) em registro de nascimento ou de sua invalidação em juízo, apenas podendo produzir efeitos
após a devida averbação (LÔBO, 2011).
É neste sentido também que Farias e Rosenvald (2009, p. 525) afirmam:
Se o filho a ser reconhecido já estiver registrado em nome de outra
pessoa, será necessária a propositura de ação para discutir, em juízo, o estado filiatório, com respeito ao devido processo legal e
com ampla produção de provas, de modo a evidenciar o vínculo
paterno-filial que se mostrou mais firme em cada caso concreto,
consideradas as possibilidades biológica e socioafetiva. É o que
deflui, inclusive, do art. 1.604 do Estatuto Substantivo Civil, ao
afirmar que ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro. Com isso, já havendo um registro anterior, a lavratura de um novo assento é ineficaz, prevalecendo o primeiro,
até que seja desconstituído em juízo.
Embora o reconhecimento voluntário de filhos se trate de um ato irrevogável e irretratável, entende-se possível a sua invalidação quando decorrente de erro ou de coação. Trata-se da verdade real sobrepujando a
verdade ficta na relação familiar.
A doutrina também aduz quanto ao momento da declaração de reconhecimento de filho que o mesmo pode ser feito anteriormente ao nascimento dele ou posterior à sua morte. No primeiro caso, seria a hipótese
de pai ou mãe que tivesse receio de morrer antes do nascimento do filho.
Já no segundo caso, trata-se de reconhecimento póstumo, o qual só é admitido se o filho falecido houver deixado descendentes ou se o reconhecente não levar vantagem no que diz respeito a direitos sucessórios ou
patrimoniais indiretos. (FARIAS; ROSENVALD, 2009).
Convém, ainda, ressaltar que, para haver a eficácia do reconhecimento de um filho maior e capaz, o mesmo (ou os seus herdeiros, no caso
194
do reconhecimento póstumo) deve consentir, passando o reconhecimento, nesta hipótese, a ser um ato bilateral com a devida concordância
do filho, através de escritura pública ou de documento particular, para a
efetivação da formalização do vínculo. (FARIAS; ROSENVALD, 2009).
Outra deve ser a análise em se tratando do reconhecimento de filhos
menores, de acordo com a exegese do artigo 1.614 do diploma civil, ao
afirmar que “o filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que
se seguirem à maioridade, ou à emancipação”.
Para tanto, a doutrina majoritária entende que a recusa do filho menor
ao pai registral após atingida a maioridade não necessita de justificativa
pertinente, não precisando provar a falsidade do registro ou a inexistência
de vínculo afetivo ou natural. É também esse o entendimento que se firmou na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e que, hoje, está
pendente de verificação pelo Supremo Tribunal Federal, como adiante se
verá.
4 O princípio da afetividade como núcleo-base da família
contemporânea
O princípio jurídico da afetividade pode ser conceituado como: “o
princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações
socioafetivas3 e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.”
Na lição de Maria Berenice Dias (2008, p. 43), a afetividade pode ser
definida como:
3
A socioafetividade faz-se presente tanto na paternidade quanto na maternidade, esta
última, poderá ocorrer quando na maternidade os recém-nascidos são trocados, as mães
biológicas não tomam ciência deste fato, vindo a descobrir posteriormente, entretanto,
que já foi firmado entre essa mãe e o filho não biológico a maternidade socioafetiva.
195
[…] o envolvimento emocional que leva a subtrair um relacionamento do âmbito do direito obrigacional – cujo núcleo é a vontade
– para inseri-lo no direito das famílias, que tem como elemento
estruturante o sentimento do amor que funde as almas e confunde
patrimônios, gera responsabilidades e comprometimentos mútuos.
Tal princípio está comtemplado no artigo 1.593 da Codificação Civil,
ao prever que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Desta forma, essa norma “impede que o
Poder Judiciário apenas considere como verdade real a biológica. Assim,
os laços de parentesco na família (incluindo a filiação), sejam eles consanguíneos ou de outra origem, têm a mesma dignidade e são regidos pelo
princípio da afetividade” (LÔBO, 2011, p. 72).
Além das mudanças já analisadas neste trabalho no que diz respeito
à família, que deixou de ser vista como patriarcal para ser estabelecida
sob uma visão cidadã, pode-se afirmar também que a família deixou de
ser entendida como uma unidade econômica para ser compreendida sob
a ótica do afeto e da solidariedade, na busca da promoção do desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros. (FARIAS; ROSENVALD, 2009).
É nessa linha de intelecção que, uma vez estando a família com essa
nova função de promover o desenvolvimento da personalidade de seus
membros, o vínculo do afeto que os une é externado em razão da “confiança essencial esperada naturalmente nas famílias” (FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 71). E continua (p. 72) afirmando que:
[…] o afeto caracteriza a entidade familiar como uma verdadeira
rede de solidariedade, constituída para o desenvolvimento da pessoa, não se permitindo que uma delas possa violar a natural confiança depositada por outra, consistente em ver assegurada a dignidade humana, assegurada constitucionalmente. E mais: o afeto traduz a confiança que é esperada por todos os membros do núcleo
familiar e que, em concreto, se materializa no necessário e imprescindível respeito às peculiaridades de cada um de seus membros,
preservando a imprescindível dignidade de todos […].
196
Deste modo, o mesmo autor chega à conclusão de que (p. 25) entidade familiar, hoje, pode ser entendida “como grupo social fundado, essencialmente, em laços de afetividade, pois a outra conclusão não se pode
chegar à luz do texto constitucional”.
É, aliás, de acordo com a Constituição Federal de 1988, que o princípio da afetividade, no contexto familiar, deve ser estudado, consagrando
os princípios constitucionais fundamentais da dignidade humana (artigo
1º, III) e da solidariedade (artigo 3º, I). Eis, portanto, segundo Lôbo
(2011, p. 71), a explicação de que o princípio da afetividade está implícito
na Constituição:
Encontram-se na Constituição fundamentos essenciais do princípio da afetividade, constitutivos dessa aguda evolução social da
família brasileira, além dos já referidos: a) todos os filhos são
iguais, independentemente de sua origem (art. 227, §6º); b) a adoção, como escolha afetiva, alçou-se integralmente ao plano da
igualdade de direitos (art. 227, §§5º e 6º); c) a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes, incluindo-se os
adotivos, tem a mesma dignidade de família constitucionalmente
protegida (art. 226, §4º); d) a convivência familiar (e não a origem
biológica) é prioridade absoluta assegurada à criança e ao adolescente (art. 227).
Nesta seara e considerando tais dispositivos do texto constitucional,
pode-se citar a paternidade socioafetiva como o exemplo mais atual que
revela a importância da afetividade nas relações familiares, levando os
Tribunais a refletirem a respeito, fundamentando suas decisões com base
na presença do referido afeto na convivência familiar.
5 A paternidade socioafetiva, uma paternidade verídica
Além de aspectos conceituais no que tange à paternidade socioafetiva, merece atenção também a forma como a jurisprudência vem trabalhando este tema, ora, a depender do caso concreto, dando preferência à
197
mesma em detrimento da paternidade biológica, excluindo-a, ora entendendo pela prevalência da paternidade biológica. Neste tópico, todas as
noções conceituais estudadas até o presente momento, serão analisadas
também de acordo com a jurisprudência dos Tribunais Superiores.
5.1 Breves apontamentos da paternidade socioafetiva
Alguns afirmam que toda paternidade é necessariamente socioafetiva, ou seja, que a paternidade socioafetiva é gênero, tendo por espécies
a paternidade biológica e a não biológica. (LÔBO, 2011).
Todavia, o entendimento predominante é no sentido de que se estará
diante da conhecida paternidade socioafetiva quando a função de pai
passa a ser exercida por pessoa diferente da figura do genitor, daquele
que transmitiu os caracteres biológicos, havendo, pois, uma relação baseada no afeto, e não necessariamente na ancestralidade.
O pai afetivo é definido por Farias e Rosenvald (2009, p. 517) como
sendo:
aquele que ocupa, na vida do filho, o lugar do pai (a função). É
uma espécie de adoção de fato. É aquele que ao dar abrigo, carinho, educação, amor…ao filho, expõe o foro íntimo da filiação,
apresentando-se em todos os momentos, inclusive naqueles em
que se toma a lição de casa ou verifica o boletim escolar […].
Nesta mesma sequência de pensamento, tal autor entende por filiação
socioafetiva aquela que:
Não está lastreada no nascimento (fato biológico), mas em ato de
vontade, cimentada, cotidianamente, no tratamento e na publicidade, colocando em xeque, a um só tempo, a verdade biológica e
as presunções jurídicas. Sócio-afetiva é aquela filiação que se
constrói a partir de um respeito recíproco, de um tratamento em
mão-dupla como pai e filho, inabalável na certeza de que aquelas
pessoas, de fato, são pai e filho. Apresenta-se, desse modo, o critério sócio-afetivo de determinação do estado de filho, como um
tempero ao império da genética, representando uma verdadeira
198
desbiologização da filiação, fazendo com que o vínculo paternofilial não esteja aprisionado somente na transmissão de genes.
É desta forma que se verifica uma separação entre a figura de genitor
e pai. Na paternidade socioafetiva, o pai deixa de ser o genitor, o transmissor dos caracteres biológicos, e passa a ser aquele responsável pela
dedicação, afeto, o que participa das atividades diárias do filho, sejam de
lazer, sejam de dever.
Entende-se que deva ser feita uma análise do caso concreto, a fim de
que se possa estabelecer qual o vínculo que deva prosperar, se o biológico
ou se o afetivo. É o que se pretende primordialmente com este estudo.
Esta análise deve girar em torno da verificação do afeto, o qual deve ser
intenso, marcante, capaz de deixar em segundo plano, insuficiente, o critério genético. É o que se depreende da seguinte passagem de Farias e
Rosenvald (2009, p. 518):
Enfim, não é qualquer dedicação afetiva que se torna capaz de estabelecer um vínculo paterno-filial, alterando o estado filiatório de
alguém. Para tanto, é preciso que o afeto sobrepuje, seja o fator
marcante, decisivo, daquela decisão. É o afeto representado, rotineiramente, por dividir conversas e projetos de vida, repartir carinho, conquistas, esperanças e preocupações, mostrar caminhos,
ensinar e aprender, concomitantemente.
Interessante questão e de relevantes contornos é trazida pela doutrina,
entendendo desnecessária a presença do afeto no momento em que se discute a filiação em juízo. Neste sentido, Farias e Rosenvald (2009, p. 519)
afirmam que:
Não raro, quando se chega às instâncias judiciais é exatamente porque o afeto cessou, desapareceu, por diferentes motivos […]. O
importante é provar que o afeto esteve presente durante a convivência, que o afeto foi elo que entrelaçou aquelas pessoas ao longo
de suas existências. Equivale a dizer: que a personalidade do filho
foi formada sobre aquele vínculo afetivo, mesmo que, naquele
exato instante, não exista mais. […] Mesmo cessado o afeto, em
determinado momento, nesse caso, a filiação se estabeleceu pelo
critério afetivo, que deve ser reconhecido pelo juiz.
199
Pode-se citar algumas hipóteses nas quais se pode evidenciar a filiação afetiva, em se verificando a comprovação da relação paterno-filial
baseada no vínculo da afetividade no tratamento cotidiano. São elas: “i)
na adoção obtida judicialmente; ii) no fenômeno de acolhimento de um
“filho de criação”; iii) na chamada “adoção à brasileira”; iv) no reconhecimento voluntário ou judicial da filiação de um filho de outra pessoa.
Ademais, outro exemplo é trazido, com base no art. 1.597, V, do Código
Civil de 2002, o qual estabelece que há presunção absoluta de paternidade
quando o nascimento do filho se dá por meio de uma fertilização artificial
heteróloga e o genitor consentiu expressamente. (WELTER apud FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 519-520).
Estando diante da realidade da paternidade socioafetiva, resta, neste
momento, analisar quais os efeitos jurídicos patrimoniais advindos dela.
5.2 Efeitos patrimoniais da paternidade socioafetiva
Conforme já aduzido, só mediante a análise do caso concreto que se
poderá dizer se o critério biológico deve prevalecer sobre o afetivo, e
vice-versa. O certo é que, uma vez estabelecida a filiação com base no
critério afetivo, finda-se, de forma definitiva, o vínculo biológico, não se
podendo mais obter vantagens patrimoniais ou de qualquer sorte em face
do genitor.
Quanto a isto, merece destaque, portanto, a afirmação de Farias e Rosenvald (2009, 520-521) de que não será mais possível, em regra:
cobrar alimentos ou participar da herança do genitor. Esta é a única
solução, confirmando, inclusive, o fenômeno de despatrimonialização do Direito Civil e do Direito de Família. Realmente, não faz
sentido que se determine a paternidade ou maternidade com base
em interesses econômicos, devendo ressaltar e ser prestigiado o ser
e a proteção da personalidade. Com isso, determinada a filiação
com base na afetividade, o filho terá direito a alimentos e a herança
(bem como todos os demais efeitos, como guarda, visitas…) do
seu pai – que é o afetivo.
200
Quanto à obrigação alimentar, há quem entenda pela possibilidade de
cobrança de alimentos do genitor quando o pai afetivo não tiver condições suficientes de prestá-los. É o que se denominou de paternidade alimentar. (MADALENO apud FARIAS; ROSENVALD, 2009). Entendese que esta situação deva ser colocada de forma excepcional, somente
sendo possível desde que “visivelmente o pai não tiver condições de prestar os alimentos e desde que não possam ser pleiteados de outra pessoa
da família sócio-afetiva (os avós afetivos, por exemplo)” (FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 521).
Quanto aos direitos hereditários, entende-se que “não parece cabível
o seu reconhecimento em relação ao genitor em nenhum caso, sob pena
de romper a igualdade constitucionalmente assegurada aos filhos, permitindo, por via indireta, que alguém possa suceder duas vezes.” (FARIAS;
ROSENVALD, 2009, p. 521).
Todavia, é possível ao filho afetivo, a qualquer tempo, ver reconhecida a sua origem genética, sem, contudo, gerar qualquer efeito patrimonial, mediante o ajuizamento de ação de investigação de origem genética.
(FARIAS; ROSENVALD, 2009, p. 521-522).
5.3 Análise jurisprudencial dos Tribunais Superiores
Neste tópico, busca-se analisar algumas decisões por parte do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema
paternidade socioafetiva, verificando se as mesmas guardam respeito aos
valores consagrados constitucionalmente relacionados à família.
5.3.1 Paternidade socioafetiva e ativismo judicial
A questão da paternidade socioafetiva ainda carece de regulamentação legislativa. Em vista disso, há críticas no sentido de o Poder Judiciário
201
estar assumindo uma postura mais ativa, ou seja, de estar havendo o que
se convencionou denominar de ativismo judicial.
No que se refere ao ativismo judicial, em Barroso (2002, p. 245) temse a seguinte lição:
O ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance. […] A ideia de ativismo judicial está associada a
uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência
no espaço de atuação dos outros dois Poderes.
Não obstante essa crítica existente acerca do ativismo judicial em
questões relacionadas ao Direito de Família, a interferência do Judiciário,
muitas vezes, se faz necessária, com o objetivo de dar uma resposta a um
caso concreto que envolva matéria ainda não regulamentada por lei, mas
que revela conexões com os valores constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre a filiação, da convivência e assistência
familiar, da preservação do melhor interesse da criança e da promoção do
desenvolvimento da personalidade de cada um dos membros da entidade
familiar.
Destarte, no que diz respeito à paternidade socioafetiva, não há que
se falar em um ativismo judicial prejudicial, mas em um ativismo judicial
necessário, que busca a equidade, a fim de acompanhar os avanços que
os assuntos ligados à família conquistaram através do tempo e que não
foram sentidos com a mesma velocidade, intensidade pelo legislador ordinário.
5.3.2 A paternidade socioafetiva sob a ótica do Superior
Tribunal de Justiça (STJ)
No pronunciamento do STJ acerca da paternidade socioafetiva que
data de 25/11/2002, em sede de recurso especial nº 440394/RS, o mesmo
202
entendeu pela imprescritibilidade da ação negatória de paternidade promovida por companheiro que não pode ser também considerado pai afetivo dadas as circunstâncias de fato demonstradas. Veja-se:
EMENTA: AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. União
estável. Decadência. Não se reconhece a decadência do art. 178, §
3º, do CCivil para o companheiro propor a ação negatória de paternidade de filho nascido durante a união estável. Precedentes.
Inexistência dos pressupostos que justificariam a preservação dos
laços que decorrem da paternidade sócioafetiva. Recurso conhecido e provido.
Merece destaque, pois, o seguinte trecho do voto do Ministro Ruy
Rosado de Aguiar:
Talvez mais importante do que esclarecer a verdade biológica da
paternidade seja manter a legitimidade da pessoa que exerce a função social de pai. No caso dos autos, porém, segundo reconhecido
nas instâncias ordinárias, isso não acontece porque há muito os laços entre as partes estão rompidos.
Algumas considerações devem ser feitas quanto à esta decisão. Primeiro, observa-se que a tese da paternidade socioafetiva não é nova, mas
que a ela deu-se maior importância nos últimos tempos, indo ao encontro
das mudanças que permearam o Direito de Família. Segundo, nota-se que
se deve entender pela paternidade socioafetiva ou não diante da análise
do caso concreto, com o intuito de se averiguar se o afeto esteve presente
na relação paterno-filial, embora comungue do entendimento de que o
mesmo não precise ser atual, quando da proposição da ação em juízo.
Em 25/09/2007, o STJ veio novamente a se pronunciar sobre questão
afeita à paternidade socioafetiva. Desta vez, o pai registral pretendeu anulação do registro de nascimento de criança, em que reconheceu voluntariamente a paternidade, sabendo ser inverídica a sua declaração. O STJ,
em sede de recurso especial nº 234833/MG, entendeu pela impossibilidade da referida anulação, sob o argumento de que não houve erro, dolo,
coação, simulação ou fraude quando do reconhecimento e também tendo
203
em vista a configuração da paternidade socioafetiva. Veja-se a seguinte
ementa:
EMENTA: RECURSO ESPECIAL. RECONHECIMENTO DE
PATERNIDADE. CANCELAMENTO PELO PRÓPRIO DECLARANTE. FALSIDADE IDEOLÓGICA. IMPOSSIBILIDADE. ASSUNÇÃO DA DEMANDA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO ESTADUAL. DEFESA DA ORDEM JURÍDICA OBJETIVA. ATUAÇÃO QUE, IN CASU, NÃO TEM O CONDÃO DE
CONFERIR LEGITIMIDADE À PRETENSÃO. RECURSO
NÃO CONHECIDO. […]3. Se o reconhecimento da paternidade
não constitui o verdadeiro status familiae, na medida em que, o
declarante, ao fazê-lo, simplesmente lhe reconhece a existência,
não se poderia admitir sua desconstituição por declaração singular
do pai registral. Ao assumir o Ministério Público sua função precípua de guardião da legalidade, essa atuação não poderia vir a beneficiar, ao fim e ao cabo, justamente aquele a quem essa mesma
ordem jurídica proíbe romper, de forma unilateral, o vínculo afetivo construído ao longo de vários anos de convivência, máxime
por se tratar de mera "questão de conveniência" do pai registral,
como anotado na sentença primeva. 4. "O estado de filiação não
está necessariamente ligado à origem biológica e pode, portanto,
assumir feições originadas de qualquer outra relação que não exclusivamente genética. Em outras palavras, o estado de filiação é
gênero do qual são espécies a filiação biológica e a não biológica
[…]. Na realidade da vida, o estado de filiação de cada pessoa é
único e de natureza socioafetiva, desenvolvido na convivência familiar, ainda que derive biologicamente dos pais, na maioria dos
casos" (Mauro Nicolau Júnior in "Paternidade e Coisa Julgada. Limites e Possibilidade à Luz dos Direitos Fundamentais e dos Princípios Constitucionais". Curitiba: Juruá Editora, 2006). 5. Recurso
não conhecido.
Seleciona-se o seguinte trecho do voto do Ministro Hélio Quaglia
Barbosa, dada sua importância:
Assumindo o Ministério Público a função precípua de guardião da
ordem jurídica objetiva, essa atuação não pode vir a beneficiar, ao
fim e ao cabo, justamente aquele a quem essa mesma ordem jurídica proíbe romper, de forma unilateral, o vínculo familiar e afetivo, construído ao longo de vários anos de convivência (na espécie
em exame, sete anos decorreram entre o nascimento da criança e o
ajuizamento da ação de cancelamento de registro), sobretudo a
partir de mera "questão de conveniência" do pai registral, como
204
anotado na sentença primeva. 4. Por fim, ainda que os argumentos
até aqui apresentados digam, tão-somente, com a validade, ou não,
do ato de reconhecimento de paternidade, não se desconhece, por
óbvio, a precedência dos princípios constitucionais da personalidade e da dignidade da pessoa humana, além da proteção conferida, pela Carta Maior da República, à família, à criança e ao adolescente, especialmente no que tange às questões ligadas à identidade afetiva entre pais e filhos, mesmo que não originada de descendência biológica.
Mais uma vez o que depreende da decisão analisada é a precedência
do interesse da criança, a qual não pode se ver destituída da figura do pai
afetivo por mero capricho deste, por um ato de arrependimento, que não
se baseia em vício de consentimento quando do seu reconhecimento voluntário, posto que sempre o teve como a sua referência de pai, devendose, então, ser mantida a paternidade socioafetiva.
Situações semelhantes foram as decorrentes do recurso especial nº
1059214/RS, de 16/02/2012, em que o Ministro Luís Felipe Salomão reconheceu a paternidade socioafetiva de pai registral que, à época do registro, o fez sabendo que não detinha a paternidade biológica, mas que
ficou comprovada a posse do estado de filho; e do recurso especial nº
1244957/SC, julgado em 07/08/2012, pela Ministra Nancy Andrighi, a
qual também reconheceu a tese da paternidade socioafetiva, posto que o
registro da criança fora realizado de forma consciente.
Em sentido contrário, a decisão proferida pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, em recurso especial nº1328306/DF, julgado em
14/05/2013, reconheceu a possibilidade de alteração do registro público
de nascimento da criança pleiteada pelo pai registral quando o mesmo
fora induzido a erro sobre a sua paternidade biológica e não restou comprovada a tese da paternidade socioafetiva, a ponto desta prevalecer.
A decisão proferida pelo Ministro João Otávio de Noronha, em sede
do recurso especial nº 709608/MS, em 05/11/2009, também caminhou no
sentido da impossibilidade de anulação do registro de nascimento pela
205
falta da comprovação de vício de consentimento, todavia, em vez de ter
sido pleiteada pelo próprio pai registral, a ação fora proposta pela filha
biológica do mesmo, ou seja, irmã afetiva da criança. Veja-se a ementa:
EMENTA: REGISTRO CIVIL. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE VIA ESCRITURA PÚBLICA. INTENÇÃO LIVRE E CONSCIENTE. ASSENTO DE NASCIMENTO DE FILHO NÃO BIOLÓGICO. RETIFICAÇÃO PRETENDIDA POR
FILHA DO DE CUJUS . ART. 1.604 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE VÍCIOS DE CONSENTIMENTO. VÍNCULO SOCIOAFETIVO. ATO DE REGISTRO DA FILIAÇÃO. REVOGAÇÃO. DESCABIMENTO. ARTS. 1.609 E 1.610 DO CÓDIGO CIVIL. 1. Estabelecendo o art. 1.604 do Código Civil que
"ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro
de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade de registro", a
tipificação das exceções previstas no citado dispositivo verificarse-ia somente se perfeitamente demonstrado qualquer dos vícios
de consentimento, que, porventura, teria incorrido a pessoa na declaração do assento de nascimento, em especial quando induzido a
engano ao proceder o registro da criança. 2. Não há que se falar
em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico efetivou-se em decorrência do reconhecimento de paternidade, via escritura pública, de forma espontânea, quando inteirado
o pretenso pai de que o menor não era seu filho; porém, materializa-se sua vontade, em condições normais de discernimento, movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza. 3. "O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de
vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da
declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento.
A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em
registro civil" (REsp n. 878.941-DF, Terceira Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 17.9.2007). 4. O termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob autêntica posse
de estado de filho, com proteção em recentes reformas do direito
contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral –
portanto, jurídica –, conquanto respaldada pela livre e consciente
intenção do reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de
afetar o ato de registro da filiação, dar ensejo a sua revogação, por
força do que dispõem os arts. 1.609 e 1.610 do Código Civil. 5.
Recurso especial provido.
206
Neste sentido, pode-se afirmar que, além do reconhecimento voluntário do pai registral, aqui também havia o interesse meramente patrimonial (o qual não fora pontuado na decisão), sucessório da autora (irmã
afetiva), o que não se coaduna com os anseios constitucionais do melhor
interesse da criança e do princípio da afetividade, merecendo, pois, ver
aprovada a tese da paternidade socioafetiva.
Destaca-se trecho do voto do Ministro João Otávio de Noronha:
Portanto, não há que se falar em erro ou falsidade se o registro de
nascimento de filho não biológico efetivou-se em decorrência do
reconhecimento de paternidade, via escritura pública, de forma espontânea, quando inteirado o pretenso pai de que o menor não era
seu filho; porém, materializa-se sua vontade, em condições normais de discernimento, movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza. Ora, reconhecida espontaneamente a paternidade por aquele que, mesmo sabendo não ser o pai biológico, admite como seu filho de sua companheira, é totalmente descabida a
pretensão anulatória do registro de nascimento, já transcorridos
mais de seis anos de tal ato, quando não apresentados elementos
suficientes para legitimar a desconstituição do assentamento público, e não se tratar de nenhum vício de vontade (erro, coação,
dolo, fraude ou simulação) e, tampouco, de falsidade. Realce-se
também que o reconhecimento da paternidade, inclusive tipificado
doutrinariamente e na jurisprudência como verdadeira "adoção à
brasileira", reveste-se de manifestação volitiva espontânea que,
não se vinculando ao nascimento, é animada pelo caráter socioafetivo da convivência, numa perspectiva de que os laços de família, notadamente os inerentes à filiação, revelam-se instrumentos
aptos à concretude da dignidade da pessoa humana.
Esta decisão também guarda conexão com as proferidas, pela Ministra Nancy Andrighi, em sede do recurso especial nº 1259460/SP, julgado
em 19/06/2012 e do recurso especial nº 1000356/SP, julgado em
25/05/2010. Neste último julgado, a Ministra entendeu também pela impossibilidade de anulação de registro de nascimento solicitada por irmã
em face de outra que foi reconhecida voluntariamente, sem vício de manifestação de vontade, pela mãe registral. Frisa-se que, nesta decisão, em
seu voto, a ministra enfatizou a socioafetividade, a qual não pode perecer
207
por interesses meramente patrimoniais de terceiros, o que deixou de ser
invocado na decisão anterior.
Em decisão proferida no recurso especial nº 1087163/RJ, em
18/08/2011, a Ministra Nancy Andrighi reconheceu a paternidade socioafetiva de pai afetivo que registrou a criança, acreditando ser o pai biológico, quando tempos depois soube que não o era, tendo havido comprovada má-fé da mãe. A ação anulatória de registro de nascimento fora proposta pelo pai biológico, muito tempo depois de saber da confirmação da
paternidade. Na ocasião, a Ministra ainda afirmou a possibilidade da criança, após atingida a maioridade, pedir a revisão do assento de seu nascimento.
Entende-se acertada tal decisão, embora deva ser aferida com bastante cautela a possibilidade da retificação de registro de nascimento de
criança ao completar a maioridade. Isto porque a real intenção pode ter
como pano de fundo interesses meramente patrimoniais, o que não deve
valer para fins de desconstituição da paternidade socioafetiva, prevalecendo-se a verdade biológica. O que pode ser válido, acredita-se, é o direito de se ver reconhecida a sua origem genética, em razão da dignidade
humana, sem que isso venha a interferir na paternidade socioafetiva, em
caso de verificação de meros interesses patrimoniais.
Situação contrária a esta foi trazida no julgado do Ministro Luís Felipe Salomão, no recurso especial nº 1167993/RS de 18/12/2012, em que
se excluiu a paternidade socioafetiva, dando prevalência à paternidade
biológica, quando a ação anulatória de paternidade fora proposta pela filha registral após atingida a maioridade, e não pelo pai registral, e àquela
não se podendo imputar meros interesses patrimoniais. Transcrevem-se
trechos de seu voto, por oportuno:
De fato, é de prevalecer a paternidade socioafetiva sobre a biológica para garantir direitos aos filhos, na esteira do princípio do melhor interesse da prole, sem que, necessariamente, a assertiva seja
208
verdadeira quando é o filho que busca a paternidade biológica em
detrimento da socioafetiva. […] Porém, no caso de ser o filho - o
maior interessado na manutenção do vínculo civil resultante do liame socioafetivo - quem vindica esse estado contrário ao que
consta no registro civil, parece claro que lhe socorre a existência
de "erro ou falsidade" para os quais não contribuiu. (…) 6. Ressalto, finalmente, que, ao contrário de como procedeu o acórdão
recorrido, os propósitos da autora em procurar o seu pai biológico
não podem ser investigados nesta ação, porque a eles, quaisquer
que sejam, opõe-se um direito de maior envergadura, alicerçado na
dignidade da pessoa humana, que é o de obter sua identidade genética, com todos os consectários legais. Tal investigação equivale
a colocá-la (a autora) no banco dos réus para que eventual amesquinhamento de sua pretensão fosse descortinado, esquecendo-se
que, por quase cinquenta anos, foi-lhe negado o conhecimento
acerca de sua ancestralidade. Se, agora, não existe afetividade entre ela e seu pai biológico, tal circunstância não pode ser imputada
à autora, que não escolheu estar nessa situação, sendo certo que,
em compensação, também não existe nenhum dado a revelar oportunismo por parte da filha em relação ao pai que se pretende o reconhecimento, o qual é aposentado do INSS e auferia, em 2004,
R$ 707,02 (setecentos reais e dois centavos, fl. 65).
Na mesma linha de intelecção, tem-se o recurso especial nº
1401719/MG, de 08/10/2013, em que a Ministra Nancy Andrighi também
entendeu pela prevalência da paternidade biológica quando o filho registral fora induzido a acreditar em uma verdade imposta por quem o registrou.
Frisa-se que, apesar de os dois últimos julgados terem silenciado
acerca dos efeitos patrimoniais advindos da aquisição do vínculo biológico, deve-se esclarecer que, uma vez restando não acolhida a paternidade
socioafetiva, todos os efeitos dela decorrentes, inclusive patrimoniais, devem ser também excluídos, decorrendo tais efeitos do novo vínculo, o
biológico.
No recurso especial nº 1189663/RS, julgado em 06/09/2011, a Ministra Nancy Andrighi reconheceu a paternidade socioafetiva, em razão
da demonstração da posse do estado de filho. Mais uma vez prevalece o
209
entendimento de que a paternidade socioafetiva deve ser aferida da análise do caso concreto, em se verificando a posse do estado de filho, requisito dela. Anote-se que situação diversa foi a reconhecida pela Ministra
Maria Isabel Gallotti, no agravo regimental no agravo de instrumento nº
1138467/MG, julgado em 17/11/2011, na qual a tese da paternidade socioafetiva restou prejudicada, em face da não comprovação da posse do
estado de filho.
No recurso especial nº 1207185/MG, julgado em 11/10/2011, o Ministro Luís Felipe Salomão acolheu a pretensão do padrasto em adotar
enteada que considera como filha, em situação de fato consolidada no
tempo e que é benéfica à mesma, sendo, pois, dispensável a prévia destituição do poder familiar. A adoção do menor, mesmo sem o consentimento paterno (o qual tem paradeiro desconhecido) foi reconhecida, em
virtude de que a menor, desde a tenra idade, tem salutar relação paternal
de afeto com o adotante (padrasto), o que privilegia o seu interesse.
Aqui, novamente se verifica a preferência da paternidade socioafetiva
em detrimento da biológica, uma vez que a mesma reflete os anseios
constitucionais da dignidade humana e do melhor interesse da criança.
Por fim, no recurso especial nº 1115428/SP, de 27/08/2013, o Ministro Luís Felipe Salomão entendeu que não há falar em presunção relativa
quando da recusa de filha registral de falecido em se submeter ao exame
de DNA, em razão da prevalência de sua personalidade, intimidade, identidade e do respeito à memória e existência do falecido pai registral face
ao interesse patrimonial de irmão (filho biológico do falecido) pelo reconhecimento da verdade biológica.
É fácil perceber, através dos estudos dos julgados supracitados que o
STJ vem firmando jurisprudência no sentido de, dependendo da análise
do caso concreto, dar prevalência à paternidade socioafetiva, uma vez ve-
210
rificada, face à paternidade biológica. Hoje, não é mais ao critério genético que deve ser dada preferência acima de qualquer outro critério. Só
através do exame do caso concreto que merece ou não ser acolhida a tese
da paternidade socioafetiva, com base, principalmente, na dignidade humana e no melhor interesse da criança, valores consagrados constitucionalmente.
5.3.3 A paternidade socioafetiva sob a ótica do Supremo
Tribunal Federal (STF)
A Terceira Turma do STJ, em 09/08/2011, negou provimento ao
agravo regimental no recurso especial nº 1203874/PB, entendendo pela
imprescritibilidade da pretensão de investigação de paternidade cumulada com a anulação do registro de nascimento no qual constava o nome
de outrem (dos avós paternos) que não o pai biológico. Consignou que,
em se tratando de adoção à brasileira, o filho adotado possui o direito de,
a qualquer momento, buscar judicialmente a nulidade do registro e fazer
prevalecer a paternidade sanguínea, independentemente da existência de
vínculo socioafetivo (situação semelhante à já explicitada anteriormente
no recurso especial nº 1401719/MG, de 15/10/2013, julgado pela Ministra Nancy Andrighi e no recurso especial nº 1167993/RS, de 15/03/2013,
julgado pelo Ministro Luís Felipe Salomão).
Desta decisão, os recorrentes (avós paternos) interpuseram recurso
extraordinário para o STF, arguindo ofensa ao artigo 226, caput, da Constituição Federal, vindo a Suprema Corte a reconhecer a existência de repercussão geral na questão relativa à prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica, em sede de recurso extraordinário com agravo - ARE 692186 RG / PB, que teve como Relator o
Ministro LUIZ FUX, em julgamento datado de 29/11/2012.
211
Desse modo, a questão ainda carece de análise pelo STF. Preza-se,
todavia, por uma decisão que acolha a prevalência da paternidade biológica face à socioafetiva apenas no caso de a filha registral não pretender,
através da anulação do seu registro público de nascimento, meros interesses patrimoniais advindos do novo vínculo, o biológico, tendo em vista a
importância da afetividade nas relações familiares, constatada do texto
constitucional e da jurisprudência do STJ.
6 Conclusão
No contexto brasileiro, com o passar do tempo, a família veio a apresentar novas funções, as quais foram responsáveis por ampliar o seu conceito. Isto ocorreu tendo em vista, principalmente, o advento da Constituição Federal de 1988, a qual consagrou o valor supremo da dignidade
da pessoa humana e o princípio da solidariedade.
Desta forma, no âmbito das relações familiares, passou-se a dar maior
importância à afetividade na convivência familiar. Nesse campo propício,
fortaleceu-se a tese da paternidade socioafetiva, a qual passou a ter como
requisito a posse do estado de filiação, que, para sua comprovação, fazse necessária a análise do caso concreto e das circunstâncias que o permeiam.
A paternidade socioafetiva, para uma parte da doutrina, divide-se em
paternidade biológica ou não biológica. Assim, a paternidade socioafetiva
pode coincidir ou não com a paternidade biológica. A coincidência entre
estas seria o ideal tão almejado. Todavia, em muitos casos, verifica-se a
dissociação entre ambas, devendo-se, ao analisar o caso concreto, verificar qual delas terá preferência sobre a outra.
Neste contexto, a jurisprudência predominante dos Tribunais Superiores é no sentido de dever averiguar, sobretudo, a existência ou não do
vínculo afetivo, analisando se, no caso concreto, houve a configuração da
212
posse de estado de filho, apta a caracterizar a paternidade socioafetiva e
levando à exclusão da paternidade biológica, ensejando, pois, a concretização dos efeitos patrimoniais decorrentes tão somente daquela.
Esta prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica, faz
parte do que hoje a doutrina denomina de efeito da “desbiologização” do
direito de família e, tanto para a doutrina como para a jurisprudência, visa
assegurar a dignidade humana de cada membro da entidade familiar e a
proteger o melhor interesse da criança, ao permitir o seu desenvolvimento
de forma saudável, mantendo a figura do pai afetivo, daquele que compartilhou os momentos mais importantes de sua vida.
O que ainda está a depender de uma solução é o caso da possibilidade
de exclusão da paternidade socioafetiva quando a criança atinge a maioridade e resolve optar por ver reconhecida a paternidade biológica, inclusive mediante ação negatória de paternidade cumulada com anulação de
registro público de nascimento.
A questão já havia sido apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça,
para o qual não há como não dar guarida à vontade desta pessoa maior de
idade capitaneada pela verdade biológica, pois se deve proteger o seu direito à identidade, à sua personalidade. Todavia, esta Corte de Justiça,
traçou apenas um impedimento para tanto: quando por trás do pedido do
filho registral se esconder interesses de caráter meramente patrimonial.
Já no âmbito do Supremo Tribunal Federal, a questão ainda está para ser
solucionada, tendo já sido dada a sua repercussão geral.
Pugna-se por um ativismo judicial que busque a equidade, motivado
sempre pelos ditames da dignidade humana prevista constitucionalmente,
o que se acredita estar de acordo com o que vem sendo entendido pelo
Superior Tribunal de Justiça acerca da possibilidade de exclusão da paternidade biológica, acompanhada de seus efeitos patrimoniais.
213
Referências
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COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
CYRINO, Roberta Farias. Paternidade socioafetiva versus paternidade
biológica: análise doutrinária e jurisprudencial dos tribunais superiores. In:
MELO, Álisson José Maia (coord.). Apontamentos didáticos em direito:
reflexões às margens do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 181-215.
217
CAPÍTULO X
GUARDA DOS FILHOS E O MELHOR
INTERESSE DA CRIANÇA E DO
ADOLESCENTE
Romana Missiane Diógenes Lima
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Conceito e evolução jurídica da guarda; 3.
Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente; 4. Modos de
exercício da guarda: aplicação do melhor interesse do menor; 4.1. Guarda
unilateral; 4.2. Guarda compartilhada; 5. Conclusão.
1 Introdução
O presente trabalho pretende demonstrar a importância do estudo da
guarda no Direito Civil Brasileiro, tendo em vista a identificação daquela
que mais se adéqua ao bem-estar da criança e do adolescente. Sabe-se que
a fixação da guarda pelo Juízo de Família é uma tarefa árdua. Atualmente
é comum ambos os genitores fazerem questão de manter os filhos em sua
companhia.
Nesse sentido, buscou-se tratar do tema devido à repercussão gerada
no Direito de Família Brasileiro. A discussão sobre a guarda de menores
numa sociedade marcada por elevado número de separações torna-se relevante, e reflete o papel da sociedade, do Estado e da família, como estabelece a própria Constituição Federal. É de suma relevância cuidar dos
interesses da criança e do adolescente, colocando-os em primeiro lugar,
para que possam desenvolver-se plenamente nos aspectos físico, psicoemocional, intelectual e social. Dessa forma, o estudo é relevante não só
para a comunidade jurídica, mas para a sociedade de um modo geral, pois
é dever de todos zelar e preservar os direitos dos menores.
218
A presente pesquisa objetiva comprovar que a guarda que consegue
manter igualmente o exercício do poder familiar dos pais, além da guarda
física, é também a que mais se adéqua ao melhor interesse dos filhos,
salvo poucas exceções.
2 Conceito e evolução jurídica da guarda
Segundo Paulo Lôbo (2011, p. 190), a guarda “consiste na atribuição
a um dos pais separados ou a ambos dos encargos de cuidado, proteção,
zelo e custódia do filho. […] a guarda integra o poder familiar, dele destacando-se para especificação do exercício”.
O mesmo autor relata que a concepção da guarda para o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) é diferente, pois, neste caso, a guarda
engloba apenas uma das modalidades de família substituta, juntamente
com a tutela e a adoção, devendo haver a perda do poder familiar dos pais
para que possa ser caracterizado, motivo pela qual é transferida a uma
terceira pessoa.
Fernanda Rocha Lourenço Levy (2008, p. 44) assim define guarda
compartilhada:
A guarda é um complexo de deveres (e direitos) que tem por objetivo a proteção integral do filho menor não emancipado. Estão inseridos no instituto da guarda os deveres de cuidar, vigiar, criar,
educar e ter os filhos em companhia e de persegui-los e reavê-los
de quem injustamente os detenha. Pode ser oposta perante terceiros e mesmo entre os pais (LEVY, 2008, p. 44).
O art. 90 do Decreto nº 181, de 1890 foi o primeiro dispositivo legal
a falar de guarda, quando dispôs que a sentença de divórcio mandasse que
os filhos comuns e menores fossem entregues ao cônjuge inocente pela
separação e fixasse, ainda, a cota com a qual o cônjuge culpado deveria
responder no tocante à educação dos filhos.
219
O Código Civil de 1916 tratava da matéria da seguinte forma: no caso
de a separação ser consensual, seria respeitado o que fosse acordado entre
os cônjuges quanto à guarda dos filhos menores e, em caso de separação
litigiosa, a solução seria dada entregando-se o menor àquele que não fosse
culpado pela dissolução do vínculo conjugal.
Ana Carolina Silveira Akel (2009, p. 77), em estudo sobre a evolução
legislativa do instituto, relata que a referida codificação civil inovou
quando passou a estabelecer que “havendo motivos substanciais, ou seja,
motivos graves, o magistrado consideraria, sempre, a prevalência do interesse do menor, decidindo da maneira mais conveniente para este, diferenciando, portanto, do estabelecido pelo antigo ordenamento jurídico”.
Em seguida surgiu o Decreto-lei nº 3.200/41, representando um retrocesso para a disciplina da guarda, ao dispor que, se o filho fosse reconhecido por ambos os pais, ao ocorrer a separação, ele ficaria sob o poder
do genitor masculino, salvo entendimento diverso do juiz, amparado pelo
interesse do menor.
A referida autora comenta que o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº
4.121) de 1962, trouxe as seguintes disposições: a guarda do menor seria
do cônjuge inocente, se houvesse; se ambos os cônjuges fossem culpados,
os filhos ficariam sob o poder da mãe, salvo entendimento diverso do
juiz, baseando-se sempre no interesse do menor; se não fosse conveniente
à permanência dos filhos sob a guarda de qualquer dos pais, essa poderia
ser atribuída a uma pessoa idônea da família de um dos progenitores, resguardado o direito de visitas.
A Lei nº 5.582, de 1970, que surgiu para alterar o Decreto-lei nº
3.200/41, estabeleceu que o filho natural, sendo reconhecido por ambos
os pais, ficaria sob a guarda da mãe, salvo em caso de prejuízo para o
menor. Entretanto, a Lei do Divórcio, Lei nº 6.515/77 assim regulamentou a questão:
220
[…] nas dissoluções consensuais, seria observado o acordo entre
os cônjuges; nas litigiosas, o destino dos filhos menores obedeceria às peculiaridades de cada uma das dissoluções existentes, ou
seja, na hipótese de divórcio-sanção, os filhos ficariam sob a
guarda de quem não deu causa à ruptura conjugal; no caso do divórcio-falência, permaneceriam sob a guarda do cônjuge em cuja
companhia estavam durante o tempo da ruptura da vida em comum; e, havendo o divórcio-remédio, a prole menor restaria sob a
guarda do cônjuge que possuísse condições físicas e mentais de
assumir o encargo e, conseqüentemente, todas as responsabilidades dele decorrentes (p. 77-78).
A Constituição Federal teve um papel muito importante nessa caminhada a favor de uma compatibilização entre o instituto da guarda e o
melhor interesse da criança e do adolescente, quando resguardou ao menor o direito à convivência familiar e comunitária, especificamente previsto em seu art. 227, além de ter influenciado a promulgação, em 1990,
do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
O Código Civil de 2002, também sob influência da Carta Magna, preconizou o princípio da proteção integral do menor. Assim como a Lei nº
11.698/08, que regulamenta a guarda compartilhada, instituto pensado
tão somente em prol da criança, do seu bem-estar e visando o melhor
desenvolvimento psíquico-emocional.
3 Princípio do melhor interesse da criança e do adolescente
Não há um conceito pré-estabelecido para o que seria o princípio do
melhor interesse da criança e do adolescente. Na verdade, essa acepção é
bastante ampla. Muitas são as tentativas na elaboração de uma definição
e todas elas acabam por se complementar. Não há uma uniformidade conceitual, mas sempre um desenvolvimento de concepções.
Dessa forma, sabe-se que, apesar dessa indefinição, o princípio tem
foco na criança e no adolescente, no seu desenvolvimento físico, psíquico, emocional, intelectual, social, enfim. Por ser hipossuficiente, elo
221
mais fraco nas relações em que é parte, merece toda a atenção e cuidado
possíveis.
Por essas razões, o referido princípio foi disciplinado em diversos
documentos jurídicos pelo mundo afora. Começou na Declaração de Genebra, de 1924, que estabeleceu a “necessidade de proclamar à criança
uma proteção especial”, depois foi reforçado na Declaração Universal de
Direitos Humanos das Nações Unidas, de 1948. Em seguida, caminhou
para a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959. Por fim,
veio a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança, de 1989,
que foi ratificada pelo Brasil por meio do Decreto nº 99.710/90.
A Constituição Federal Brasileira, por sua vez, estabeleceu absoluta
prioridade à efetivação dos direitos da criança e do adolescente e ainda
disciplinou que a proteção direcionada aos menores deveria ser empenhada não só pelo Estado, mas também pela família e a sociedade como
um todo, conforme dispõe o art. 227 da Carta Magna.
No âmbito da guarda, esse princípio deve ser observado pelos magistrados com todo o cuidado, para que não se corra o risco de afetar o melhor interesse da criança em detrimento dos pais. Na realidade, qualquer
decisão deve ser tomada tendo-se em vista primeiro os interesses da prole.
4 Modos de exercício da guarda: aplicação do melhor
interesse do menor
Antes de iniciar as considerações cabíveis ao tópico, é importante frisar que a titularidade do poder familiar, quando da separação ou divórcio,
continua a ser de ambos os genitores, pois a ruptura do vínculo conjugal
ou extraconjugal – no caso da união estável – em nada interfere nas relações jurídicas com a prole, que continuam imutáveis. O que passará a ser
discutido será a abrangência do exercício dessa autoridade parental para
cada um, a depender do tipo de guarda adotada, o que se dará por comum
222
acordo ou decisão judicial, conforme disposição do art. 1.583 do Códex
Civil.
O Código Civil Brasileiro disciplinou duas formas de exercitar a
guarda, assim disciplinadas em seu art. 1.583: através do unilateralismo,
onde a guarda cabe a um dos pais, e ao outro resta o direito de visitas, e
da guarda compartilhada, onde as atribuições do instituto caberão a ambos os genitores.
4.1 Guarda unilateral
A guarda única, exclusiva, unilateral ou, ainda, uniparental, é a tradicional guarda estabelecida a apenas um dos genitores, restando ao outro
a prática do direito de visitas. É o primeiro tipo de guarda praticada na
legislação pátria – embora o Código Civil de 1916 não fizesse menção
expressa ao direito de visitas, o que só ocorreu por meio do Decreto-lei
nº 9.701/46, que assegurou esse direito aos genitores – e até hoje é a mais
aplicada nos tribunais pelo país afora, inclusive extrajudicialmente, como
guarda de fato, quando há consenso entre os pais.
A guarda unilateral funciona por meio da atribuição a um dos pais da
guarda física do filho, o que delega a este a prerrogativa de criação, educação, acompanhamento psíquico e emocional da criança, dentre outros
fatores. Ao outro pai, chamado de não guardião, cabe o direito de visitas,
que se resume, em geral, aos dias e horários pré-estabelecidos para se
manter contato com a prole, além do direito de fiscalização, no fito de
poder observar se os filhos estão tendo um tratamento adequado, propiciador de um bom desenvolvimento como seres humanos.
Ademais, o genitor não guardião também exerce várias atribuições
que, por disposição legal, compete a ambos, como assevera Fernanda Rocha Lourenço Levy (2008). Não obstante esse fato, “os doutrinadores cos-
223
tumam referir-se a um esvaziamento do poder familiar sofrido pelo guardião descontínuo, uma vez que a guarda concentra em si grande parcela
do conteúdo do poder familiar” (2008, p. 86).
O direito de fiscalização tem um papel muito importante, na medida
em que o não cumprimento dos deveres do guardião para com a prole
pode implicar a perda da guarda jurídica em prol do genitor não guardião
ou, se este não for reputado apropriado para detê-la, a um terceiro.
Acontece que a aplicação da guarda exclusiva vem sendo criticada
pela doutrina, em virtude de não atender de forma satisfatória ao interesse
da criança e do adolescente de ter um pleno convívio com ambos os pais
e com a comunidade familiar, como um todo.
Ora, a guarda uniparental é demasiado limitada não só quando observada do ponto de vista da prole, mas também do genitor não guardião.
Primeiro, porque este não participa da criação e educação dos filhos, a
não ser de forma bastante restrita. É muito mais difícil, por exemplo, passar alguns valores éticos ao filho quando se tem pouco tempo com ele e,
consequentemente, tudo o que se quer é agradá-lo, com receio de ser tido
pela criança como “chato”, “ruim”.
Há, inevitavelmente, uma busca incessante para que os poucos momentos juntos sejam prazerosos, de alegria, de carinho e aceitação. No
entanto, quem mais sofre com isso é a própria criança, pelo menos a longo
prazo, pois perde a enorme contribuição que o pai ou mãe poderia dar na
formação do seu caráter.
Juntando-se a isso, existe o fato de que as visitas, em virtude da limitação que representam, terminam gradativamente esvaziando a aproximação que o não guardião e a prole mantêm. Como ensina Ana Carolina
Silveira Akel (2009, p. 92), esses dias e horários pré-estabelecidos aca-
224
bam criando um distanciamento que “acarreta a perda do vínculo de familiaridade, fazendo com que a espontaneidade se perda, de forma brutal”.
Tendo em vista estas considerações, observa-se que a prática unilateral da guarda não consegue ser eficaz na manutenção do vínculo filho/progenitor não guardião. Entende-se que a guarda compartilhada, embora não deva ser aplicada em qualquer caso, supre de maneira muito
mais efetiva as necessidades paternais e filiais. Os filhos, que são as pessoas mais prejudicadas com a separação de seus pais, em virtude da hipossuficiência psíquica e emocional a qual estão sujeitos, precisam de um
cuidado especial por parte da sociedade, do Estado, da própria família e
da comunidade jurídica como um todo.
4.2 Guarda compartilhada
A guarda compartilhada surgiu como um meio de se efetivar o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente e, ao mesmo tempo,
a igualdade entre homens e mulheres, quanto à responsabilização por seus
filhos. Sua previsão expressa no ordenamento jurídico pátrio surgiu com
a Lei nº 11.698, de 13 de junho de 2008, que alterou os artigos 1.583 e
1.584 do Código Civil, instituindo e disciplinando a aplicação da guarda
compartilhada como regra, tornando a guarda unilateral uma exceção, a
ser efetivada dependendo do caso concreto.
Observou-se que essa modalidade de guarda, além de proteger o direito do filho de ter uma convivência igualitária com ambos os pais, assegurando-lhe um desenvolvimento psíquico, moral, espiritual e social
mais completo, assegura também “o direito do pai de desfrutar da convivência assídua com o filho, perpetuando não apenas seu patrimônio genético, mas também seu patrimônio cultural, axiológico, e familiar (FONTES, 2009, p. 37)”.
225
O objetivo da guarda compartilhada é diminuir os traumas que a separação dos pais provoca nos filhos. Tenta-se promover um ambiente o
mais próximo possível daquele que existia quando os pais coabitavam.
Assim, não ocorre a perda do referencial materno, nem do paterno, já que
haverá uma aproximação muito mais sólida do que a vivenciada na
guarda unilateral.
Aqui, o genitor que não detém a guarda física tem uma liberdade
muito maior de contato com a criança ou adolescente, fora daquela tabela
fechada de dias e horários estipulados, o que estreita as suas relações com
a prole. Além disso, isso enriquece a concepção de família que o filho
tem. Ele passa a se sentir mais seguro, mais importante, crê que faz parte
de um todo, de uma comunhão de vidas, onde cada um se ajuda. Pois não
deixa de os próprios genitores manterem um contato, no qual estabelecerão a melhor forma de exercerem a guarda compartilhada.
Por isso, essa guarda não é recomendada em caso de conflito entre os
pais, em virtude da aproximação que deverão ter. De forma que, só deve
ser aplicada, quando houver uma relação harmoniosa entre ambos, sendo
equivocada a sua imposição, mesmo contra a vontade dos mesmos. Se
assim o fosse, ao invés de representar um benefício para os filhos, representará, ao contrário, um prejuízo, haja vista o ambiente hostil em que
terão que conviver, no qual assistirão muitas brigas e insultos durante
todo o percurso de suas vidas infanto-juvenil. Da mesma forma que esta
guarda também não é adequada quando um dos genitores apresenta algum
tipo de distúrbio ou vício que venha a prejudicar a prole. Nesse caso, a
solução mais acertada seria, realmente, a aplicação da guarda exclusiva.
Não é esse, porém, o entendimento da Ministra do Superior Tribunal
de Justiça, Nancy Andrighi, que compreende a aplicação da guarda compartilhada de forma tão benéfica à prole, que incita a sua utilização
mesmo nos casos de dissenso entre os pais:
226
A guarda compartilhada (art. 1.583, § 1º, do CC/2002) busca a proteção plena do interesse dos filhos, sendo o ideal buscado no exercício do poder familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para
que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal
psicológico do duplo referencial. Mesmo na ausência de consenso
do antigo casal, o melhor interesse do menor dita a aplicação da
guarda compartilhada. Se assim não fosse, a ausência de consenso,
que poderia inviabilizar a guarda compartilhada, faria prevalecer o
exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se
inexistente porque contraria a finalidade do poder familiar, que
existe para proteção da prole. A drástica fórmula de imposição judicial das atribuições de cada um dos pais e do período de convivência da criança sob a guarda compartilhada, quando não houver
consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação
dessa nova visão, para que não se faça do texto legal letra morta.
A custódia física conjunta é o ideal buscado na fixação da guarda
compartilhada porque sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral,
que é substituída pela implementação de condições propícias à
continuidade da existência das fontes bifrontais de exercício do
poder familiar. A guarda compartilhada com o exercício conjunto
da custódia física é processo integrativo, que dá à criança a possibilidade de conviver com ambos os pais, ao mesmo tempo em que
preconiza a interação deles no processo de criação. (BRASIL. STJ,
2012, online, REsp 1.251.000-MG, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23/8/2011)
Resta saber se tais imposições não acarretarão nenhum prejuízo ao
menor. O ideal seria que houvesse um estágio probatório sob esse modelo
de guarda, supervisionado por profissionais da área da psicologia e da
assistência social. Somente depois da elaboração de um laudo técnico a
favor, a medida fosse efetivamente aplicada.
A distância geográfica entre os genitores, por si só, não afeta a aplicação da guarda compartilhada, uma vez que as atribuições da autoridade
parental não restarão prejudicadas, podendo o pai ou a mãe que não detém
a guarda física estar a todo o momento participando e gerenciando a vida
do filho por meio das incontáveis formas de comunicação do mundo
atual, como telefone celular, e-mails, facebook etc.
227
O legislador também atentou para todos esses fatores quando estabeleceu, no § 1º do art. 1.584 do Código Civil que “Na audiência de conciliação, o juiz informará ao pai e à mãe o significado da guarda compartilhada, a sua importância, a similitude de deveres e direitos atribuídos aos
genitores e as sanções pelo descumprimento de suas cláusulas”. No
mesmo sentido dispõe o § 2º do citado artigo: “Quando não houver acordo
entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, será aplicada, sempre que
possível, a guarda compartilhada”.
Ora, de fato, o ideal é que a guarda compartilhada, suas características e vantagens sejam explicadas aos genitores, para que possam ter entendimento da dimensão do instituto e do quanto ele pode ser benéfico
para o filho.
Por fim, a guarda compartilhada é uma ótima aliada na luta contra a
Síndrome da Alienação Parental (SAP), caracterizada pela manifestação
de um dos pais, geralmente o guardião, de colocar o filho contra o outro
genitor, inventando histórias negativas a respeito dele, procurando atrapalhar as visitas, não entregando um presente, enfim, são diversas as formas de fazer a prole criar uma espécie de ojeriza, a ponto de querer distância do outro progenitor.
Para Paulo Lôbo (2011, p. 199): “A guarda unilateral estimula o que
a doutrina tem denominado alienação parental, quando o genitor que não
a detém termina por se distanciar do filho, antes as dificuldades de convivência com este, máxime quando constitui nova família”.
Fica evidente que, se os pais devem cooperar mutuamente para que
ambos possam exercer plenamente as atribuições da guarda jurídica a que
estão incumbidos, na modalidade compartilhada, muito mais difícil será
a dispersão de esforços para promover um distanciamento entre o outro
genitor e os filhos. Até porque é da essência do compartilhamento da
guarda uma relação harmoniosa entre os progenitores.
228
Visto o quão necessário é o instituto da guarda compartilhada para o
Direito de Família Brasileiro, deve-se zelar pela sua preferência, de modo
que apenas não seja implantada quando representar prejuízo aos interesses do menor. Como as separações entre os casais são cada vez mais comuns na atualidade, torna-se recorrente discutir qual o melhor modelo de
guarda a ser utilizado, tendo por base o princípio do melhor interesse da
criança e do adolescente. Por isso, deve-se debater e rebater o tema, posto
que se cuida dos direitos das pessoas mais frágeis da sociedade, a comunidade infanto-juvenil.
5 Conclusão
Por meio do presente trabalho, concluiu-se que a guarda compartilhada supera o tradicional modelo da guarda unilateral não só no atendimento ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, mas
também quanto à igualdade dos pais na criação de seus filhos.
Através da guarda compartilhada, o poder familiar é igualmente repartido entre o pai e a mãe, podendo ambos exercerem exatamente as
mesmas atribuições em relação à prole. Esse fator ainda é muito mais
benéfico aos filhos, que desfrutam de ambos os genitores aproximadamente do mesmo modo como faziam antes de seus pais terem se separado.
Esse modelo de guarda consegue manter um ambiente parecido com
o que a criança tinha antes, quando sua família era unida. Ela não é tão
afetada, pois continua mantendo a mesma relação ativa com seus dois
pais. A criança é menos prejudicada, pois de algum modo torna-se indiferente à separação operada entre seus genitores, porque ele não sente de
forma direta seus efeitos.
Desse modo, a criança ou adolescente não perde seu referencial paterno nem seu referencial materno. Quando a guarda unilateral é aplicada,
esse risco é muito frequente, pois o mero direito de visitas unido ao direito
229
de fiscalização esvazia bastante a relação paterno-filial, tornando-a fria e
recheada de formalismos. Perde-se a relação de intimidade com o genitor
não guardião, relação essa tão importante para o bom desenvolvimento
de qualquer pessoa.
Não obstante esses fatores, verificou-se que a guarda compartilhada
não deve ser aplicada em todo e qualquer caso, mas somente quando houver uma relação harmoniosa entre os progenitores. Do contrário, o filho
teria que conviver em um ambiente de hostilidade e restaria sempre dividido entre as agruras dos pais. No entanto, já existe jurisprudência que
incentiva a sua implantação mesmo nesses casos, sob o mesmo fundamento, de que se deve proteger e resguardar os direitos dos menores,
ainda que em face de seus pais.
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COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
LIMA, Romana Missiane Diógenes. Guarda dos filhos e o menor interesse da
criança e do adolescente. In: MELO, Álisson José Maia (coord.).
Apontamentos didáticos em direito: reflexões às margens do Jaguaribe.
Fortaleza: AJMM, 2016, p. 217-231.
233
CAPÍTULO XI
DA VOCAÇÃO HEREDITÁRIA
Gabriela Pimentel Pessoa
SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Da legitimação em geral; 3. Legitimação
especial na sucessão testamentária — prole eventual; 3.1. Administração
dos bens da prole eventual; 3.2. Regras gerais da curatela; 3.3. Nascimento da prole eventual; 3.4. Prazo para concepção da prole eventual; 3.5
Situações especiais; 4. Legitimação especial na sucessão testamentária —
pessoa jurídica; 5. Legitimação especial na sucessão testamentária — fundação; 6. Impedimentos legais sucessórios; 6.1. Efeitos jurídicos de disposições testamentárias; 6.3. Deixa a filho de concubinato; 7. Vocação
hereditária de animais e coisas; 8. Considerações finais.
1 Introdução
Entre os assuntos de Direito das Sucessões, o tema da vocação hereditária tem despertado dúvidas e curiosidades dos alunos, especialmente
quanto às pessoas que são legitimadas. Neste trabalho, pretendo apresentar a temática de uma forma mais didática. A pesquisa é descritiva, adotando principalmente o método documental pela análise da legislação,
basicamente centrada no Código Civil de 2002 (doravante CC/02). Há,
eventualmente, o recurso às posições teóricas da nova literatura em Direito das Sucessões.
Não é toda pessoa que pode ser chamada a suceder. Deverá ter legitimidade para receber a herança. É o que chamamos de vocação hereditária. A expressão vocação remete à ideia de missão para a qual alguém
é convocado, inclinação ou talento pessoal, mas também alude à noção
de tendência natural. Com efeito, a vocação hereditária é assim chamada
porque cuida da ordem naturalmente esperada, nos termos da lei, das pessoas que são aptas a receberem herança.
234
A pesquisa está dividida em oito partes, tratando-se, após esta introdução, do caso geral de legitimação (seção 2) e das hipóteses de legitimação especial na sucessão testamentária (seções 3 a 5), com destaque para
a prole eventual, dos impedimentos legais sucessórios e dos efeitos e exceções aplicáveis (seção 6) e da possibilidade jurídica de vocação hereditária de animais e coisas (seção 7). A título de conclusão, apresentamse as considerações finais (seção 8).
2 Da legitimação em geral: CC/02, art. 1.798
Dispõe o art. 1.798 do CC/021 que “Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão”.
Com efeito, os estudiosos do tema desenvolvem argumentos quanto à
existência de distinção entre legitimidade e capacidade. Para Maria Berenice Dias2:
Apesar do uso indistinto dessas duas expressões, não dá para confundir capacidade e legitimidade. A falta de capacidade decorre
da proibição imposta pela lei para determinada pessoa intervir em
qualquer relação jurídica. Já a ausência de legitimidade se caracteriza pela inaptidão para a prática de determinado ato ou negócio
jurídico, devido a condição que lhe é peculiar. Assim, o autor da
herança precisa ter capacidade ativa para testar. Já os beneficiários — quer na sucessão legítima, quer na testamentária — precisam ter legitimidade passiva para herdar.
O conceito em Dias não é tão esclarecedor, visto isoladamente, assim,
cabe agregar o exame do conceito em Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo
Pamplona Filho3:
1
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Brasília,
DF: Presidência da República, 2002. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24 abr. 2016.
2
DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 127.
3
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito
civil: direito das sucessões. 2. ed., v. 7. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 116.
235
Em virtude de um interesse que se quer preservar, ou em consideração à especial situação de determinada pessoa que se quer proteger, criaram-se impedimentos circunstanciais, que não se confundem com as hipóteses legais genéricas de incapacidade.
Assim, a capacidade deve implicar a verificação da possibilidade de
ser sujeito de direitos e de poder exercer autonomamente esses direitos,
nos termos em que ditados pelos arts. 3º e 4º do CC/02. Já a legitimação
é uma condição especial que a lei confere para que se possa considerar
alguém legitimamente interessado na questão. Como ressaltam Gagliano
e Pamplona Filho4:
Aplicando essa linha de raciocínio para o campo do Direito Sucessório, temos que, para se inserir na relação jurídica hereditária, o
sujeito deve ter uma pertinência subjetiva juridicamente autorizada, ou, em outras palavras, legitimidade sucessória passiva para
receber a herança. Não é toda pessoa, pois, que pode ser chamada
a suceder.
Portanto, a vocação hereditária nada mais é do que a legitimidade
para receber herança. Deve-se, portanto, superar a vocação hereditária da
testamenti factio passiva enquanto capacidade para herdar, que se opõe à
testamenti factio ativa (capacidade para testar). Melhor falar em legitimação.
Sobre o dispositivo legal examinado:
Em síntese, o art. 1.798 do Código Civil contém uma regra material para a sucessão hereditária em geral, que legitima as pessoas
nascidas ou os nascituros […], ao tempo da morte do autor da herança, para receber parte ou todo o patrimônio deixado pelo falecido. Todavia, situações peculiares também foram previstas. 5
Em outras palavras, o critério para determinação da pertinência subjetiva a uma herança, adotado pela legislação brasileira, é primariamente
cronológico.
4
5
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 117.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 119.
236
3 Legitimação especial na sucessão testamentária — prole
eventual: CC/02, art. 1.799, inc. I
As hipóteses de legitimação especial são todas voltadas para a sucessão testamentária. Isso porque a sucessão legítima obedece estritamente
aos ditames legais, enquanto na testamentária o testador tem mais autonomia da vontade para dispor e incluir outras pessoas. A primeira hipótese é a da prole eventual, na dicção do art. 1.799, inc. I, do CC/026:
Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados
a suceder:
I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão;
O dispositivo em questão não trata do nascituro. O nascituro já está
concebido, mas não nascido; para o Código Civil, já possui vida intrauterina. Ao nascituro se aplica o art. 1.798, já sendo legitimado mesmo na
ausência de testamento (cf. Seção 2). A prole eventual difere-se do nascituro por não ter sido ainda concebida; é fortuita, aleatória, dependente
de menção em testamento, mas a indicação deve ter alguma precisão. Para
Gagliano e Pamplona Filho7:
A conhecida categoria da ‘prole eventual’ caracteriza tais filhos
ainda não concebidos, valendo frisar que, por óbvio, o(a) genitor(a) indicado(a) deverá ser pessoa existente ao tempo da abertura
da sucessão, quando se verificará as circunstâncias da declaração
de vontade.
Põem-se de plano algumas questões. A primeira diz respeito à pessoa
que ficará responsável pelo quinhão da prole eventual, após a partilha.
Presume-se que seria a pessoa indicada pelo testador, mas não necessariamente.
6
7
BRASIL, 2002, online.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 120.
237
3.1 Administração dos bens da prole eventual: CC/02, art.
1.800, caput e § 1º
A regra geral da administração dos bens está disposta no art. 1.800,
caput e § 1º, do CC/028:
Art. 1.800. No caso do inciso I do artigo antecedente, os bens da
herança serão confiados, após a liquidação ou partilha, a curador
nomeado pelo juiz.
§ 1º Salvo disposição testamentária em contrário, a curatela caberá
à pessoa cujo filho o testador esperava ter por herdeiro, e, sucessivamente, às pessoas indicadas no art. 1.775.
Os dispositivos mencionados possuem conteúdos distintos. O caput
determina o regime da curatela para a administração dos bens da prole e
confere à autoridade judiciária a competência para definir o responsável.
No § 1º tem-se uma regra principal e duas subsidiárias: será o curador,
em primeiro plano, pessoa livremente indicada pelo testador para assumir
especificamente essa função; no silêncio do testador, presume-se que sua
intenção foi a de conferir a curatela à pessoa indicada como genitora da
prole eventual herdeira; a terceira regra, que ocorreria em caso de interdição deste último, aplicar-se-ia a ordem estabelecida pelo art. 1.775 do
CC/029:
Art. 1.775. O cônjuge ou companheiro, não separado judicialmente ou de fato, é, de direito, curador do outro, quando interdito.
§ 1º Na falta do cônjuge ou companheiro, é curador legítimo o pai
ou a mãe; na falta destes, o descendente que se demonstrar mais
apto.
§ 2º Entre os descendentes, os mais próximos precedem aos mais
remotos.
§ 3º Na falta das pessoas mencionadas neste artigo, compete ao
juiz a escolha do curador.
8
9
BRASIL, 2002, online.
BRASIL, 2002, online.
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Em síntese, na sequência: o cônjuge ou companheiro; o pai ou a mãe;
o descendente mais apto, do mais próximo ao mais remoto; por fim, qualquer outra pessoa indicada pelo juiz. Veja-se que esse rol se refere não à
pessoa do testador, mas daquele que foi indicado pelo testador para que
tivesse a prole eventual.
3.2 Regras gerais da curatela: CC/02, art. 1.800, § 2º
Seguindo a mesma lógica do § 1º, o § 2º do art. 1.800 do CC/0210
remete à disciplina da curatela dos incapazes a gestão da herança da prole
eventual:
Art. 1.800. […]
§ 2º Os poderes, deveres e responsabilidades do curador, assim nomeado, regem-se pelas disposições concernentes à curatela dos incapazes, no que couber.
Ressalta a parte final que se aplica no que couber, o que vai afastar
alguns dispositivos. Todavia, quando se investigam as regras da curatela,
o art. 1.781 do CC/0211 faz uma segunda remissão:
Art. 1.781. As regras a respeito do exercício da tutela aplicam-se
ao da curatela, com a restrição do art. 1.772 e as desta Seção.
Poderia o CC/02 ter sido mais econômico, mas optou pela coerência
sistêmica. Com efeito, os poderes do tutor estão previstos no art. 1.747
do CC/0212, dos quais destacam-se os seguintes como aplicáveis para a
curatela da herança da prole eventual:
Art. 1.747. Compete mais ao tutor: […]
II - receber as rendas e pensões do menor, e as quantias a ele devidas;
III - fazer-lhe as despesas de […] administração, conservação e
melhoramentos de seus bens;
10
BRASIL, 2002, online.
BRASIL, 2002, online.
12
BRASIL, 2002, online.
11
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IV - alienar os bens do menor destinados a venda;
V - promover-lhe, mediante preço conveniente, o arrendamento de
bens de raiz.
Art. 1.748. Compete também ao tutor, com autorização do juiz:
[…]
IV - vender-lhe os bens móveis, cuja conservação não convier, e
os imóveis nos casos em que for permitido;
No que diz respeito aos deveres, estes estão previstos nos arts. 1.741
e 1.745 do CC/0213, resumindo-se à administração dos bens:
Art. 1.741. Incumbe ao tutor, sob a inspeção do juiz, administrar
os bens do tutelado, em proveito deste, cumprindo seus deveres
com zelo e boa-fé.
[…]
Art. 1.745. Os bens do menor serão entregues ao tutor mediante
termo especificado deles e seus valores, ainda que os pais o tenham
dispensado.
Agregadas aos deveres, devem ser observadas as vedações aplicáveis, mesmo se houvesse autorização judicial, conforme previsto no art.
1.749 do CC/0214:
Art. 1.749. Ainda com a autorização judicial, não pode o tutor, sob
pena de nulidade:
I - adquirir por si, ou por interposta pessoa, mediante contrato particular, bens móveis ou imóveis pertencentes ao menor;
II - dispor dos bens do menor a título gratuito;
III - constituir-se cessionário de crédito ou de direito, contra o menor.
Por fim, quanto às responsabilidades do administrador, estas se resumem basicamente à exigência do caráter vantajoso no caso da alienação
prevista no art. 1.747, inc. IV, do CC/0215, e à responsabilidade civil subjetiva por prejuízos causados, nos termos dos arts. 1.750 e 1.752:
13
BRASIL, 2002, online.
BRASIL, 2002, online.
15
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Art. 1.750. Os imóveis pertencentes aos menores sob tutela somente podem ser vendidos quando houver manifesta vantagem,
mediante prévia avaliação judicial e aprovação do juiz.
[…]
Art. 1.752. O tutor responde pelos prejuízos que, por culpa, ou
dolo, causar ao tutelado; mas tem direito a ser pago pelo que realmente despender no exercício da tutela, salvo no caso do art. 1.734,
e a perceber remuneração proporcional à importância dos bens administrados.
Observe-se que o último dispositivo prevê ainda direitos ao administrador, de ser ressarcido pelas despesas realizadas e de ser remunerado
pelo exercício da função. Conquanto o art. 1.800, § 2º, não mencione direitos do curador, entende-se que se cuida aqui de garantias inafastáveis
ao exercício da atribuição.
3.3 Nascimento da prole eventual: CC/02, art. 1.800, § 3º
Em seguida, outra questão considerada importante pelo Código se dá
com a determinação das consequências do nascimento dessa prole eventual. Dispõe o art. 1.800, § 3º, do CC/0216:
Art. 1.800. […]
§ 3º Nascendo com vida o herdeiro esperado, ser-lhe-á deferida a
sucessão, com os frutos e rendimentos relativos à deixa, a partir da
morte do testador.
Assim, nascendo com vida a prole eventual, esta será tratada juridicamente como se viva estivesse ao tempo da morte do testador, fazendo
jus ao seu quinhão e todos os rendimentos oriundos dele. Na dicção de
Gagliano e Pamplona Filho17:
Em outras palavras, com o seu nascimento, o direito sucessório se
consolida, cabendo, logicamente, a partir daí, ao seu representante
legal, o encargo de gerir o interesse do incapaz até que atinja a
16
17
BRASIL, 2002, online.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 121.
241
capacidade civil plena, momento em que poderá pessoalmente assumir a administração do seu próprio patrimônio.
Ocorrendo o nascimento com vida, a administração dos bens normalmente seguirá com a mesma pessoa que exercia a curatela. O art. 1.731
do CC/02, todavia, menciona a figura dos colaterais como possíveis tutores, alcançando os tios.
3.4 Prazo para concepção da prole eventual
O CC/0218 também estabelece um limite cronológico para a ocorrência da condição suspensiva, cúmplice da vedação à indeterminação generalizada das regras privadas. Dispõe o art. 1.800, § 4º:
Art. 1.800. […]
§ 4º Se, decorridos dois anos após a abertura da sucessão, não for
concebido o herdeiro esperado, os bens reservados, salvo disposição em contrário do testador, caberão aos herdeiros legítimos.
Não acontecendo a condição no prazo fixado legalmente, é desconsiderada a disposição testamentária. Analogicamente, a mesma solução
também se dá no caso de a prole eventual nascer sem vida.
Concepção é diferente de nascimento. Logo, o herdeiro esperado
não precisa ter nascido no prazo de dois anos fixados na lei, mas,
sim, apenas ter sido concebido. Após o seu nascimento com vida,
consolidará o seu direito, herdando os bens reservados, conforme
já analisado. Não vindo a nascer vivo (natimorto), a hipótese é de
entrega dos bens reservados ao monte partilhável. 19
Os mesmos autores travam discussão quanto à razoabilidade do prazo
e quanto à possibilidade de flexibilização. Num primeiro momento, entendem que se trata de prazo “bastante razoável, considerando o período
de uma gestação, para a consolidação de um patrimônio cuja sucessão
18
19
BRASIL, 2002, online.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 123.
242
ficou pendente de condição”20, entendimento que incorre em equívocos,
já que o prazo é para concepção – e não para a gestação. No entanto,
obtemperam:
Todavia, ampliando os horizontes, talvez tal prazo não seja tão
elástico assim, uma vez que não contemplaria, por exemplo, situações de destinação testamentária de bens para filhos de pessoas
ainda longe da idade de ter condições para procriar.21
O Código Civil faz uma clara opção pela segurança jurídica. Ademais, talvez se considere que não haveria razões mais especiais para destinar uma parcela da herança à prole eventual de uma criança e não fazer
tal destinação diretamente à criança. Trata-se também de uma questão de
economia e simplificação.
No que concerne à flexibilidade, cuida-se da expressão “salvo disposição em contrário” prevista na segunda parte do § 4º do art. 1.800. Na
verdade, essa expressão está situada na frase num local muito específico,
a saber, logo após mencionar o destino dos bens reservados. Tem-se aí
novamente regra principal e subsidiária quanto ao destino dos bens em
caso de inadimplemento da condição:
Em nosso entender, porém, tal prazo não comporta flexibilização
pela autonomia da vontade, por imperativo de segurança jurídica.
A menção, no texto legal supracitado, à ressalva ‘salvo disposição
em contrário do testador’ se refere ao destinatário dos bens componentes do acervo, e não à possibilidade de alteração do prazo
peremptório previsto em lei. 22
Em outras palavras, caso não ocorra o advento da prole eventual, os
bens que foram reservados deverão ser destinados à pessoa subsidiariamente indicada pelo testador, caso o tenha feito; caso não, os bens vão
para os herdeiros legítimos.
20
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 122.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 122.
22
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 122.
21
243
O termo inicial da contagem do prazo de dois anos se dá com a abertura da sucessão e, pelo fato de cuidar do direito potestativo de herdar,
seria um prazo tipicamente decadencial, não comportando impedimento,
suspensão nem interrupção.
3.5 Situações especiais
Duas situações especiais surgem, a saber: a prole eventual ser oriunda
de adoção ou filiação socioafetiva; e ser ela derivada de embrião oriundo
de métodos artificiais.
Quanto à primeira situação, considerando a superação, desde o advento da Constituição Federal de 1988, da distinção dos filhos quanto à
origem, quase como uma vedação constitucional para tratamento diferenciado, deve-se interpretar o Código Civil considerando como prole eventual qualquer origem da descendência. Gagliano e Pamplona Filho23 também incluem a filiação socioafetiva:
De fato, em nosso sentir, nada impede que à categoria da prole
eventual tanto possam se subsumir os filhos biológicos da pessoa
indicada pelo testador como também os havidos por adoção, ou,
até mesmo, em virtude de reconhecimento direto de filiação socioafetiva.
Há, portanto, com o Código Civil de 2002, a inversão da presunção
da vontade: cabe ao testador dispor expressamente que só a prole biológica será herdeira; no silêncio, presume-se a indiferença na intenção. Assim, fica adequada a ponderação de Dias24, para quem é “[m]elhor falar
em filiação eventual”25.
23
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 125.
DIAS, 2015, p. 128.
25
Cf. nesta obra, sobre o tema da filiação socioafetiva, CYRINO, Roberta Farias. Paternidade socioafetiva versus paternidade biológica: análise doutrinária e jurisprudencial
dos tribunais superiores.
24
244
Já na hipótese de embrião oriundo de métodos artificiais, seja inseminação artificial homóloga (utilizando materiais genéticos dos pais),
seja heteróloga (utilizando material genético de terceiro), esse caso vai
adequar-se, segundo a legislação, ou nas regras do nascituro, se já implantado no útero, ou nas regras da prole eventual, se ainda não ocorreu
a implantação.
Gagliano e Pamplona Filho26 discutem a eventual existência de um
direito autônomo, em virtude dos avanços tecnológicos, à revelia da lei.
Mencionam duas correntes, uma que defende o direito autônomo, no sentido de que o testador poderá dispor sobre herança à prole decorrente de
inseminação artificial sem determinação de prazo; e outra que defende a
ausência de direito autônomo, devendo-se aplicar o Código Civil. E arrematam como se segue:
Em nosso sentir, ao menos enquanto não houver uma regulamentação específica, que leve em conta os avanços da tecnologia, a
segurança jurídica recomenda que, nos limites da Sucessão Testamentária, o embrião somente poderá figurar como beneficiário se
a implantação no útero materno ocorrer dentro do prazo de dois
anos […]. Após esse prazo, não deixará de ser considerado filho
do falecido, mas não terá direito sucessório.
Há que se considerar que o Direito das Famílias e o Direito Sucessório, embora correlacionados, não se confundem. Com efeito, a demarcação do lapso temporal para efeitos sucessórios, se por um lado afeta aqueles que faleceram antes do de cujus, também deve afetar aqueles que nascem depois dele, respeitado um lapso temporal razoável para garantia de
expectativas de direito.
26
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 129.
245
4 Legitimação especial na sucessão testamentária — pessoa
jurídica: CC/02, art. 1.799, inc. II
A segunda hipótese de legitimação para a sucessão testamentária, ou
seja, de pessoas que não compõem a ordem de vocação da sucessão legítima, mas que poderão herdar se houver disposição do testador falecido,
é a das pessoas jurídicas. Nos termos do art. 1.799, inc. II, do CC/0227:
“Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: […] II - as pessoas jurídicas”.
Excluída a possibilidade de o espólio ser detentor de quotas ou ações
em empresa, a herança somente poderá ser recebida sob a forma de doação.
Nada impede, pois, que o testador deixe parte de sua herança (ou
toda ela, caso não tenha herdeiros necessários) para uma associação de apoio a crianças carentes ou para uma igreja. É muito comum, por exemplo, que professores deixem suas bibliotecas particulares para instituições de ensino a que se dedicaram. 28
O mais natural é que a doação seja destinada à pessoa jurídica sem
fins lucrativos, como uma associação, fundação, igreja ou partido político, mas nada impede, a princípio, que a doação também ocorra para
empresa, particularmente sob a forma de bens móveis e imóveis. Veja-se
o caso de sócio que dedica a vida à manutenção e crescimento de sociedade empresarial e resolve doar seus materiais pessoais de trabalho e propriedades.
Situação especial apontada por Gagliano e Pamplona Filho29 diz respeito àquelas sociedades que, por um motivo ou outro, não se constituem
em pessoa jurídica. É o caso das sociedades constituídas irregularmente
e das chamadas universalidades de direito despersonalizadas:
27
BRASIL, 2002, online.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 129.
29
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 130.
28
246
Registre-se, porém, que, em nosso pensar, sociedades irregulares
ou de fato (despersonificadas) carecem do atributo necessário para
figurar como sucessoras testamentárias, dado o vício da sua constituição, assim como não poderão ser beneficiários os entes que,
posto dotados de capacidade processual, carecem de personalidade
jurídica, como o condomínio, a herança jacente ou a massa falida.
De fato, embora a menção a “pessoas jurídicas” pudesse em tese permitir uma interpretação analógica, para incluir essas situações anômalas,
o Direito das Sucessões sugere, nas hipóteses de sucessão testamentária,
a interpretação estrita, escancarando a prevalência do Código Civil pelos
direitos sucessórios dos herdeiros legítimos.
5 Legitimação especial na sucessão testamentária —
fundação: CC/02, art. 1.799, inc. III
A última hipótese de legitimação especial para suceder segundo previsão testamentária é uma versão diferenciada da hipótese anterior: no
lugar de destinar os bens a uma pessoa jurídica já existente, determinar a
criação de uma pessoa jurídica cujo patrimônio será constituído pela herança. Trata-se da hipótese de criação de fundação pelo testador. Na dicção do art. 1.799, inc. III, do CC/0230: “Art. 1.799. Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: […] III - as pessoas jurídicas,
cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação”.
c/c art. 62 CC/02
Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e declarando, se quiser, a maneira
de administrá-la.
30
BRASIL, 2002, online.
247
Esse tema é bem tratado por Gagliano e Pamplona Filho. Relembram
que o processo de criação de uma fundação, nos termos do CC/02, pode
ser dividido em cinco etapas:
a) inicialmente, ocorre a afetação de bens livres por meio de ato de dotação patrimonial – em outras palavras, são destacados bens desembaraçados para composição do patrimônio;
b) em seguida, dá-se a instituição da fundação por testamento, devendo
o testador dispor, no mínimo, sobre a indicação dos bens e da finalidade a ser perseguida pela instituição (art. 62);
c) a terceira etapa, dependente da deliberação anterior, consiste na elaboração dos estatutos (art. 65), que poderá ocorrer de três formas –
direta, se o testador já estabelece o conteúdo completo do estatuto,
fiduciária, se o testador indica pessoa para elaborar o estatuto, ou subsidiária, quando o estatuto é elaborado pelo Ministério Público na ausência de indicação pelo testador (art. 65, parágrafo único);
d) não ocorrendo a hipótese de elaboração de estatuto subsidiária, os documentos deverão se submeter à aprovação pelo Ministério Público;
e) por fim, com a aprovação do parquet, procede-se ao registro civil,
ocorrendo a constituição definitiva da fundação.
Ponderam, ademais, ser vedado à administração da fundação a alienação injustificada dos bens componentes do acervo patrimonial decorrentes da herança, sob pena de desvirtuamento da última manifestação de
vontade do testador:
Não se admite, por outro lado, sobretudo por sua precípua finalidade social, que a diretoria ou o conselho deliberativo da fundação,
desvirtuando inclusive a vontade do instituidor, aliene injustificadamente bens componentes de seu acervo patrimonial.31
31
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 131.
248
Lembre-se que o Ministério Público é responsável pela tutela das fundações, inclusive nesse tocante, em conformidade com o art. 66 do
CC/02. Ao final, os mesmos autores arrematam:
Com isso, concluímos que a legitimidade da fundação para figurar
como beneficiária de testamento comportaria uma análise jurídica
em dupla perspectiva:
a) a fundação, já existente é beneficiada por testamento (art. 1.799,
II, do Código Civil);
b) a fundação é criada pelo próprio testamento (art. 1.799, III, do
Código Civil).32
Ademais, pela própria leitura do art. 63 do CC/02, verificando-se que
o quinhão a ser determinado para a criação de fundação seja insuficiente
para garantir a viabilidade econômico-financeira da instituição, ele poderá ser incorporado em outra fundação com o mesmo propósito, ressalvada a disposição do testador em sentido diverso, inclusive para fazer
retornar aos herdeiros legítimos na impossibilidade de criação da fundação.
6 Impedimentos legais sucessórios: CC/02, art. 1.801
Ainda no mesmo capítulo da vocação hereditária, o CC/02 cuida
ainda dos denominados impedimentos legais sucessórios. Os impedimentos legais sucessórios são exceções gerais estabelecidas pelo Código para
a regra geral do art. 1.798, já examinado (cf. Seção 2). Dispõe o art. 1.801,
caput e incs. I, II e IV, do CC/0233:
Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros nem legatários:
I - a pessoa que, a rogo, escreveu o testamento, nem o seu cônjuge
ou companheiro, ou os seus ascendentes e irmãos;
II - as testemunhas do testamento;
[…]
32
33
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 133.
BRASIL, 2002, online.
249
IV - o tabelião, civil ou militar, ou o comandante ou escrivão, perante quem se fizer, assim como o que fizer ou aprovar o testamento.
A supressão do inc. III foi proposital, para que possa ser discutida à
parte, a seguir. Não se trata dos casos de exclusão da sucessão, mais conhecido como exclusão por indignidade, que afeta os herdeiros legítimos,
mas de sujeitos que, por conta da posição estratégica em que se localizam
na elaboração do testamento, podem atrapalhar a melhor manifestação de
última vontade caso possuam interesse direto. Com efeito, corroboram
Gagliano e Pamplona Filho34:
para evitar indevida interferência na manifestação de vontade do
testador, ou, até mesmo, a captação dolosa da sua vontade, […].
Tudo isso, como dito, para preservar incólume a real intenção do
testador, quando da manifestação da sua última vontade.
Em outras palavras, qualquer pessoa que tenha relação direta com a
elaboração e registro do testamento fica impedida de ser herdeira testamentária.
Mas o mesmo dispositivo, no inc. III, estabelece uma hipótese distinta de impedimento: “Art. 1.801. Não podem ser nomeados herdeiros
nem legatários: […] III - o concubino do testador casado, salvo se este,
sem culpa sua, estiver separado de fato do cônjuge há mais de cinco
anos”35. Essa situação legal sofre diversas sortes de críticas. Em primeiro
lugar, porque rompe com a sistematicidade lógica dos demais incisos do
art. 1.801. Em segundo lugar, quanto à determinação do prazo:
Não andou bem o legislador no estabelecimento desse prazo. Ora,
se o testador já estiver separado de fato do seu marido ou da sua
esposa, poderá testar, em nosso sentir, respeitada a legítima dos
herdeiros necessários, para quem quiser, pois não há que se falar
mais em traição, infidelidade, ou seja, em relação clandestina ou
34
35
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 134.
BRASIL, 2002, online.
250
concubinato. Até porque, […] tendo em vista a Emenda Constitucional n. 66/2010, o divórcio se tornou um direito potestativo sem
exigibilidade de prazo mínimo para sua manifestação, judicial ou
administrativa.36
Tal crítica, em verdade, é decorrente de uma interpretação atualizadora, fruto da evolução da legislação acerca do tema do divórcio e da
separação que em 2002 ainda possuía uma sistematização retrógrada e
burocrática. Em terceiro lugar, na mesma linha interpretativa da anterior,
destaca-se a evolução dos debates acadêmicos em torno da proteção das
relações concubinárias, especialmente as possuidoras das características
de relações familiares – estabilidade, afetividade, publicidade e ânimo de
constituição de família37 –, de modo a que, a longo prazo, possam vir a
ser contempladas com a possibilidade de receber quinhão ou legado,
ainda que na medida da contribuição para a constituição do patrimônio.
6.1 Efeitos jurídicos de disposições testamentárias: CC/02, art.
1.802
O art. 1.802 do CC/0238 estabelece os efeitos em caso de previsão
testamentária em favor de quem carece de legitimação, nos termos do art.
1.801:
Art. 1.802. São nulas as disposições testamentárias em favor de
pessoas não legitimadas a suceder, ainda quando simuladas sob a
forma de contrato oneroso, ou feitas mediante interposta pessoa.
Parágrafo único. Presumem-se pessoas interpostas os ascendentes,
os descendentes, os irmãos e o cônjuge ou companheiro do não
legitimado a suceder.
36
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 135.
Cf. SEVERIANO, Hernandes Diego; MELO, Álisson José Maia. “Bem feito – foi se
meter com homem casado!”: da possibilidade de reconhecimento do concubinato como
entidade familiar. Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v. 35, n. 1, p. 99-120,
jan./jun. 2014. Disponível em: <http://www.revistadireito.ufc.br/index.php/revdir/article/viewFile/292/244>. Acesso em: 24 abr. 2016.
38
BRASIL, 2002, online.
37
251
Vê-se que o Código teve uma preocupação especial com as situações
de simulação, mais uma vez para proteger os direitos dos herdeiros legítimos. Visa, assim, a evitar manobras fraudulentas, ampliando sobremaneira o rol dos impedidos previsto no art. 1.801. Resta saber se a presunção do parágrafo único é absoluta (juris et de jure) ou relativa (juris tantum); todavia, dadas as circunstâncias do caput, ou seja, de restrição de
direitos, e considerando a ausência de previsão expressa do dispositivo
quanto ao caráter absoluto, mais radical, e o objetivo último de proteger
as últimas manifestações de vontade do testador, entende-se que a presunção, ao ampliar o rol de impedidos, pode ser superada judicialmente
mediante robusta prova em sentido contrário.
6.2 Deixa a filho de concubinato: CC/02, art. 1.803
O CC/0239 prevê no art. 1.803 uma exceção ao art. 1.802, parágrafo
único: “Art. 1.803. É lícita a deixa ao filho do concubino, quando também
o for do testador”. Segundo Gagliano e Pamplona Filho40, “[t]al dispositivo, sem equivalente na codificação anterior, incorpora ao direito positivo brasileiro o anterior entendimento da Súmula 447 do Supremo Tribunal Federal”. Dispõe a Súmula do Supremo Tribunal Federal,41 no
Enunciado nº 447, aprovada em 1964, que “É válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino do testador com sua concubina”.
Aliás, se antes de ser filho do concubino, trata-se de filho do testador,
afasta-se automaticamente, por subsidiariedade, a regra do art. 1.802,
39
BRASIL, 2002, online.
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 135.
41
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 447. Brasília, DF: STF, 1964. Disponível
em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=447.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso em: 24
abr. 2016. Vale ressaltar que em 1964 o Supremo Tribunal Federal ainda possuía competência para deliberar em última instância sobre a legislação infraconstitucional, competência que somente vai lhe ser suprimida com a criação do Superior Tribunal de Justiça com a Constituição Federal de 1988.
40
252
ainda mais se considerado que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu o fim da discriminação dos filhos quanto à origem. A previsão legal,
além de consagrar o entendimento pretoriano, se presta a apaziguar qualquer ânimo retrógrado conservador ou de viés teológico.
7 Vocação hereditária de animais e coisas
Por fim, um último aspecto em torno da vocação hereditária se dá
quanto à discussão acerca da possibilidade de estender essa legitimação
para animais (semoventes), coisas e outros seres inanimados. A priori,
aplica-se o art. 1.798 do CC/02: somente possuem vocação para herdar
as pessoas. “A rigor, nada disso é permitido no Brasil. Semoventes e coisas são, no sistema brasileiro, bens, não tendo personalidade jurídica e,
muito menos, vocação hereditária”42; noutros termos:
Não há como falar em sucessão de qualquer espécie em favor de
seres inanimados, ou de um irracional. As coisas não podem ser
sujeitos de direito, faltando-lhes legitimação para suceder. Os animais, as almas, os santos, não podem suceder, pois não têm personalidade jurídica.43
No entanto, o direito brasileiro permite um arranjo no qual aquelas
coisas de interesse do testador possam vir a ser indiretamente beneficiadas. Como esclarece Dias44: “[n]o entanto, nada impede que o testador os
favoreça, atribuindo herança ou legado a uma pessoa com o encargo de
cuidar deles ou preservá-los”. A hipótese de herança ou legado com encargo, semelhante à doação imprópria, também é mencionada por Gagliano e Pamplona Filho45:
42
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 136.
DIAS, 2015, p. 135.
44
DIAS, 2015, p. 135.
45
GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2015, p. 136.
43
253
O que é possível é o estabelecimento de ônus para determinados
herdeiros, em disposições testamentárias, para que realizem o encargo, por exemplo, de cuidar de determinado animal, enquanto
ele viver. Da mesma forma é possível, como visto, destinar parte
ou totalidade da herança para uma fundação.
Cuidando de condição resolutiva, os herdeiros necessários serão os
principais fiscalizadores do cumprimento desse encargo pelo herdeiro ou
legatário.
8 Considerações finais
Empreendida a revisão do tema, com ênfase na interpretação dos dispositivos legais do Capítulo III do Título I do Livro V do CC/02, a pesquisa cumpriu satisfatoriamente seu objetivo principal: discutir de forma
didática os aspectos mais relevantes acerca da vocação hereditária trazidos pela doutrina mais atualizada do Direito das Sucessões.
Algumas conclusões e posições particulares foram tomadas ao longo
da pesquisa. Em especial, destaco:
e) o critério para determinação da pertinência subjetiva a uma herança,
adotado pela legislação brasileira, é primariamente cronológico;
f) a estipulação da administração dos bens da prole eventual, no art.
1.800, § 1º, do CC/02 contém uma regra principal e duas subsidiárias;
g) ocorrendo o nascimento com vida da prole eventual, a administração
dos bens normalmente seguirá com a mesma pessoa que já exercia a
curatela;
h) a determinação de prazo para concepção da prole eventual atende a
ditames de economia e simplificação, pois não haveria razões para se
querer destinar uma parcela da herança à prole eventual de uma criança e não fazer tal destinação diretamente à criança;
254
i) conquanto haja um liame estreito entre o Direito das Famílias e o Direito das Sucessões, a demarcação de lapso temporal para efeitos sucessórios é nota característica deste ramo, que não diz respeito em
geral às relações jurídicas daquele;
j) as regras de legitimação especial e de impedimentos legais pedem interpretação estrita, prestigiando o CC/02 os direitos dos herdeiros necessários;
k) o impedimento sucessório do concubino sofre críticas em relação à
lógica sistêmica do art. 1.801 do CC/02, ao anacronismo em virtude
da previsão de prazo e, por fim, à crescente consideração da relação
concubinária como entidade familiar e a necessidade de direitos para
garantir a sustentabilidade econômica dessa família;
l) a presunção do art. 1.802, parágrafo único, do CC/02 deve ser considerada relativa (juris tantum), porque cuida de restrição de direitos e
na ausência de previsão legal, deve-se dar a interpretação que favoreça a vontade do testador;
m) a exceção legal do art. 1.803, referente à deixa a filho do testador oriundo de relação concubinária, além de consagrar o entendimento sumulado do Supremo Tribunal Federal, se presta a apaziguar qualquer
ânimo retrógrado conservador ou de viés teológico;
n) no caso de herança ou legado com encargo em favor de animal ou
coisa, solução permitida pelo Direito brasileiro para beneficiar indiretamente aquilo que não é pessoas, os herdeiros necessários serão os
principais fiscalizadores do cumprimento desse encargo pelo herdeiro
ou legatário.
Referências
BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil.
Brasília, DF: Presidência da República, 2002. Disponível em:
255
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 24
abr. 2016.
CYRINO, Roberta Farias. Paternidade socioafetiva versus paternidade biológica: análise doutrinária e jurisprudencial dos tribunais superiores. In: MELO,
Álisson José Maia et al. Apontamentos didáticos em direito: reflexões à
margem do Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016.
DIAS, Maria Berenice. Manual das sucessões. 4. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2015.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de
direito civil: direito das sucessões. 2. ed., v. 7. São Paulo: Saraiva, 2015.
SEVERIANO, Hernandes Diego; MELO, Álisson José Maia. “Bem feito – foi
se meter com homem casado!”: da possibilidade de reconhecimento do concubinato como entidade familiar. Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v.
35, n. 1, p. 99-120, jan./jun. 2014. Disponível em: <http://www.revistadireito.ufc.br/index.php/revdir/article/viewFile/292/244>. Acesso em: 24 abr.
2016.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Súmula 447. Brasília, DF: STF, 1964.
Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=447.NUME.%20NAO%20S.FLSV.&base=baseSumulas>. Acesso
em: 24 abr. 2016.
COMO CITAR ESTE CAPÍTULO:
PESSOA, Gabriela Pimentel. Da vocação hereditária. In: MELO, Álisson José
Maia (coord.). Apontamentos didáticos em direito: reflexões às margens do
Jaguaribe. Fortaleza: AJMM, 2016, p. 233-255

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