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Tendo estreado em 1946, com os contos de Sagarana, João Guimarães Rosa tornou-se o escritor
de maior importância e prestígio da literatura brasileira no século XX. Escreveu contos, novelas e
um romance. Costuma ser tratado como regionalista, pois quase todo seu trabalho nasce da observação de tipos, costumes e geografia do interior mineiro. Mas ao imenso material observado, ele sobrepõe uma forte camada de matéria pensante e
problematizadora. Esse segundo componente é devido não só à sua imaginação, como também à sua
compreensão, através da cultura, de questões conceituais que envolvem a noção de homem universal. Suas narrativas, carregadas de mistério e revelação, possuem uma estrutura mítica ou alegórica,
isto é, apresentam sempre uma interpretação
pessoal e poética da existência e de seus grandes
problemas. Investigam sobre Deus, o bem, o mal, o
medo, a felicidade, as relações do homem com a
natureza. Principalmente, há em sua obra uma
constante indagação sobre a morte e os momentos
gloriosos da vida terrena, tais como o amor e o
triunfo guerreiro, particularmente em Grande Sertão: Veredas (1956).
Nessa perspectiva, as estórias de Guimarães
Rosa expressam uma visão metafísica da existência, porque todas, de alguma forma, comportam a
crença num bem verdadeiro e superior. Com efeito, no pensamento geral das estórias de Sagarana
há uma constante investigação filosófica, a qual,
não raro, se converte em contemplação mística do
universo, como acontece em “O Burrinho Pedrês” ,
abertura de Sagarana: a sabedoria extraordinária
desse animal humanizado decorre de seu permanente exercício de contemplação. A atitude dele
perante a vida aproxima-se da ataraxia, que é a calma contemplativa dos filósofos estóicos. Além de
Platão e dos Estóicos, encontram-se na base do
pensamento filosófico de Guimarães Rosa autores
como Plotino e o místico flamengo Ruysbroek, chamado o Admirável. Esses e outros pensadores apa-
GUIMARÃES ROSA
CONSIDERAÇÕES GERAIS
Guimarães Rosa situa-se na 3ª fase do Modernismo brasileiro, chamada Neomodernismo ou
geração de 45. Ao lado de Clarice Lispector (Perto
do coração selvagem, 1944), ele rompeu com os
esquemas narrativos dos anos 30 e instaurou um
novo processo ficcional, baseado na estilização inventiva de dados regionais e na constante pesquisa
do instrumento que lhe serve de base, a linguagem.
Por essas razões, Guimarães Rosa pode ser considerado um instrumentalista. Da mesma geração, o
seu correspondente formal e temático na poesia é
João Cabral de Melo Neto (Pedra do Sono, 1942).
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recem citados nas epígrafes dos textos de Guimarães Rosa. Aliás, convém destacar desde já que todos os contos de Sagarana são precedidos por epígrafes, cujo sentido necessariamente deve ser integrado ao do texto que precedem.
REGIONALISMO UNIVERSALIZANTE
Em virtude de sua capacidade de refletir sobre
tópicas consagradas pela tradição da literatura
mundial a partir do pitoresco regional, Guimarães
Rosa costuma ser estudado como representante do
regionalismo universalizante. Tal ampliação do significado literário do regionalismo brasileiro foi antecedida por experiências de grande valor, como
(Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha, e Fogo
Morto (1943), de José Lins do Rego. Nesse sentido,
talvez o mais bem acabado produto de todos os antecessores de Guimarães Rosa seja São Bernardo
(1934), de Graciliano Ramos.
Sagarana é um livro absolutamente novo com relação ao passado literário brasileiro e uma obra
meio envelhecida com relação aos livros subseqüentes de Guimarães Rosa. Por ocasião de sua
publicação, Álvaro Lins chamou a atenção para a
organicidade com que o documentário regional se
fundia com a ficção do livro. Observe-se este trecho de “O burrinho pedrês”, como exemplo de registro de uma particularidade regional tomada como fonte de construção literária:
Capa e página de rosto da 1ª edição
De modo geral, tais virtuosismos formais decorrem da estilização da linguagem oral, que, às
vezes, gera enunciados dificilmente admissíveis pela lógica gramatical, mas que se entendem perfeitamente como vivacidades da expressão oral. Sirva de
exemplo desse tipo de virtuosismo a seguinte frase
de “O burrinho pedrês”:
Agora, para sempre aposentado, sim, que
ele não estava, não.
Trata-se de uma estilização do falar regional, que,
tornado enunciado estético, caminha para a generalidade do conceito. Observe-se, nesse exemplo, o
jogo entre sim / não, que resulta numa afirmativa
genialmente sinuosa. Diga-se o mesmo para o contraste agora / sempre.
A percepção desse tipo de artesanato frasal
ajuda imensamente o entendimento de Sagarana.
Sem ela, a leitura do livro resultaria incompleta, senão totalmente incorreta.
Vinha-lhe de padrinho jogador de truque
a última intitulação, de baralho, de manilha;
mas, vida a fora, por amos e anos, outras tivera, sempre involuntariamente: Brinquinho,
primeiro, ao ser brinquedo de meninos; Rolete, em seguida, pois fora gordo,na adolescência; mais tarde, Chico-Chato, porque o sétimo
dono, que tinha essa alcunha, se esquecera, ao
negociá-lo, de ensinar ao novo comprador o
nome do animal e, na região, em tais casos,
assim sucedia...
INVENÇÃO LINGÜÍSTICA
A importância de Guimarães Rosa na literatura
brasileira advém principalmente de sua invenção
lingüística. Desde o início, notou-se em sua ficção
uma radical contestação da linguagem convencional e o propósito de revolucionar a expressão literária no Brasil. Sua invenção e revolução abrangem o nível semântico (significado), o sintático
(combinação) e o fonológico (som). Quer dizer: cria
palavras, descobre associações imprevistas entre
elas e reproduz ruídos da natureza ainda não registrados antes dele. E isso tudo se deve ao fato de
que a matéria de sua ficção é falada pelos jagunços
ou vaqueiros do sertão mineiro. Rosa escreve. Mas
quem fala são eles, os narradores. Por isso seus
textos se acham carregados de modismos e singularidades de um falar que soa ao homem urbano
como poesia em prosa ou prosa poética. Surge por
outro lado, a dificuldade de adaptação com seme-
A enumeração dos vários nomes da personagem constitui um dos recursos típicos do estilo
roseano. Note-se a perífrase adverbial por amos e
anos, logo no começo do trecho. Trata-se de uma
espécie de trocadilho baseado numa falsa rima,
que contribui para a eufonia do texto. Como se sabe, Rosa reescreveu os contos de Sagarana diversas vezes, tanto que resultou um trabalho com características invulgares na literatura brasileira. Minúcias dessa natureza são comuníssimas nos textos
do livro, e sua percepção completa a boa leitura de
suas páginas. Tais requintes formais caracterizam
o virtuosismo estilístico de João Guimarães Rosa, que
se tornam mais freqüentes e mais agudos em Grande Sertão: Veredas e em Primeiras Estórias.
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lhante universo moral e lingüístico. Note-se mais
um trecho de “O burrinho pedrês”:
Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o
ileso gume do vocábulo pouco visto e menos
ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se
jamais usado. Porque, diante de um gravatá,
selva moldada em jarro jônico, dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo, e, ao
descobrir, no meio da mata, um angelim que
atira para cima cinqüenta metros de tronco e
fronde, quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo — Ó colossalidade!
— na direção da altura?
E não é sem assim que as palavras têm
canto e plumagem.
E que o capiauzinho analfabeto Matutino
Solferino Roberto da Silva existe, e, quando
chega na bitácula, impõe: — “Me dá dez ‘tões
de biscoito de talxóts!” — porque deseja mercadoria fina e pensa que “caixote” pelo jeitão
plebeu deve ser termo deturpado. E que a
gíria pede sempre roupa nova e escova. E que
o meu parceiro José Cornetas conseguiu ampliar um tanto os limites mentais de um sujeito só bidimensional, por meio de ensinar-lhe
estes nomes: intimismo, paralaxe, palimpsesto, sinclinal, palingenesia, prosopopese,
amnemosínia, subliminal. E que a população
do Calango-Frito não se edifica com os sermões do novel pároco Padre Geraldo (“Ara,
todo o mundo entende...”) e clama saudades
das lengas arengas do defunto Padre Jerônimo. “que tinham muito mais latim”... e que a
frase “Sub lege libertas!”, proferida em comício de cidade grande, pôde abafar um motim
potente, iminente, E que o menino Francisquinho levou susto e chorou, um dia, com medo
da toada “patranha” — que ele repetira, alto,
quinze ou doze vezes, por brincadeira boba, e,
pois, se desusara por esse uso e voltara a ser
selvagem, E que o comando “Abre-te Sésamo
etc,” fazia com que se escancarasse a porta da
gruta-cofre...
Mas o Calundú cada vez ia ficando mais
enjerizado e mais maludo, ensaiando para ficar doido, chamando a onça para o largo e
xingando todo nome feio que tem. Aquilo, eu
fui bobeando de espiar tanto para ele, como
que nunca eu não tinha visto o zebu tão grandalhão assim! A corcunda ia até lá embaixo,
no lombo, e, na volta, passava do lugar seu
dela e vinha pôr chapéu na testa do bichão.
Cruz! E até a lua começou a alumiar o Calundú
mais do que as outras coisas, por respeito...
Trata-se de excelente exemplo da oralidade em
Sagarana. Trechos como esses demonstram perfeita incorporação artística da fala sertaneja, o que
ocorre não só nos diálogos praticados entre as personagens, mas também na elocução dos narradores, quase sempre fundidos com o universo ficcional das narrativas. Para produzir o efeito de espontaneidade da fala sertaneja, Rosa freqüentemente
prefere as formas mais trabalhosas de elaboração
textual. Ele é do tipo de escritor para quem a prosa
é uma questão de poesia. Isto é, ele toma a prosa
pela prosa, no sentido de trabalhá-la com a perfeição própria de um poeta. Por tal motivo, os textos
de Sagarana requerem leitura atenta e minuciosa.
CHAVE DO ENTENDIMENTO
A linguagem poética de Guimarães Rosa incorpora recursos de toda a espécie, sendo que um de
seus aspectos mais salientes é a invenção de palavras, isto é, o apelo ao neologismo. Numa passagem do conto “São Marcos”, de Sagarana, o narrador faz uma digressão para explicar sua teoria
sobre o efeito e a necessidade do vocábulo inventado para intensificar o calor da experiência vivida:
E eu, que vinha vivendo o visto mas vivando estrelas, e tinha um lápis na algibeira, escrevi também, logo abaixo:
Esse trecho contém a primeira teorização explícita na obra de Guimarães Rosa, ainda que enquadrada nos limites da própria ficção. Em seus livros
maduros, ele sempre fará digressões sobre a natureza da narrativa e do conceito de arte, principalmente em Grande Sertão: Veredas. Os quatro
prefácios de Tutaméia expõem de modo amplo e
anedótico o seu conceito sobre literatura. No que
concerne a “São Marcos”, não só o trecho citado,
mas todo o conto pode ser tomado como uma poética, isto é, um texto cujo propósito central é expor
e investigar o conceito de literatura, fundado na
exploração dos efeitos encantatórios da poesia e da
prosa. O assunto aparente de “São Marcos” é a
bruxaria, pois a estória se passa no Calango-Frito,
centro ativo e intenso de feitiçaria. Além da ação
Sargon
Assarhaddon
Assurbanipal
Teglattphalasar, Salmanassar
Nabonid, Nabopalassar, Nabucodonosor
Belsazar
Senakherib.
E era para mim um poema esse rol de reis
leoninos, agora despojados da vontade sanhuda e só representados na poesia.
Não pelos cilindros de ouro e pedras, postos sobre as reais comas riçadas, nem pelas
alargadas barbas, entremeadas de fino ouro.
Só, só por causa dos nomes.
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central do conto, todos os casos referidos envolvem o poder de práticas ocultistas ou vocábulos
mágicos. Há nessa estória várias pistas para a idéia
de que a literatura vincula-se a forças ocultas nem
sempre controláveis pelo artista, noção defendida
também num dos prefácios de Tutaméia.
na pressuposição de um leitor sensível a concretude das palavras. Em rigor, todo leitor de Guimarães Rosa deveria ser como a personagem desse
conto, que decorou a “reza brava” de São Marcos
sem entender o seu significado, só por achá-la engraçada e poética. Em outros termos, é preciso
admitir que “as palavras têm canto e plumagem”
Por outro lado, o “canto e plumagem” das palavras
possuem o poder de alargar a experiência existencial do indivíduo. O uso estético ou desinteressado
da linguagem tem poder utilitário. Essa idéia está
implícita no desfecho de “São Marcos”. Estando
embrenhado na floresta, o protagonista do conto
perde subitamente a visão, por força de um feitiço
de João Mangolô, do Calango-Frito. Depois de algum tempo de escuridão, Izé, por instinto e sem
saber exatamente o que fazia, põe-se a proferir a
“reza brava” de São Marcos, que o liberta da cegueira arranjada. Concebido como micro-ilustrações da idéia central do conto, o último parágrafo
do trecho citado enumera, em tom anedótico, casos pitorescos em que o uso sensorial das palavras
produz outros tantos efeitos mágicos na vida prática.
Ressalte-se, por fim, nessa unidade consagrada
às invenções lingüísticas de Guimarães Rosa, que o
nome Sagarana é criação do Autor: provém de saga (lenda em escandinavo) e rana (espécie de ou à
maneira de em tupi).
Poty
Consideremos especificamente o trecho acima
citado. A personagem-narradora, Izé, costumava
passear todos os domingos no mato que circundava o lugarejo do Calango-Frito, com a única finalidade de admirar a paisagem e observar os movimentos e cores dos animais, dos graúdos aos ínfimos. Um dia, ele descobriu uma quadrinha escrita
no gomo de um bambu e, como réplica poética,
gravou no mesmo bambu aqueles nomes de reis
assírios. A personagem considera a simples justaposição desses nomes antigos um verdadeiro poema. Adverte, então, que o efeito artístico da composição resulta tanto do “ileso gume” dos vocábulos (parte cortante, intocada), quanto do seu “sentido prisco” (significado antigo). Em outros termos,
a personagem — projeção das idéias do Autor —
põe em destaque o aspecto material, concreto da
composição literária. Para ele, vale mais a dimensão visual e sonora dos vocábulos do que o seu conteúdo abstrato. Vale dizer, a literatura é entendida
como o jogo dos significantes inusitados e não de
significados convencionais. Nasce daí a necessidade de se inventarem vocábulos novos (“melhor fora
se jamais usado”) para a expressão de sensações
inéditas. O Autor exemplifica tal convicção com
três neologismos: drimirim ou amormeuzinho, para
exprimir a ternura provocada por uma flor doméstica de vaso; e colossalidade, para traduzir o espanto diante de uma enorme árvore selvagem.
A leitura desse trecho de “São Marcos” indica
que a chave do entendimento da obra de Guimarães Rosa não consiste apenas na tradução de seu
vocabulário difícil e regional, mas também na decifração de sua poética, isto é, na assimilação do
princípio literário que presidiu à redação dos textos. Esse princípio prevê, conforme se depreende,
a utilização do vocábulo obscuro por natureza, sem
tradução definitiva ou imediata, como os nomes
daqueles reis assírios. Esse princípio baseia-se no
apelo intensivo à conotação radical da linguagem e
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PAISAGENS E DESCRIÇÕES
Resumindo e ampliando o que vimos anotando
para facilitar o primeiro contato com a estréia de
Guimarães Rosa, conclui-se que os contos de Sagarana oferecem basicamente duas grandes dificuldades de leitura: primeiro, o espaço geográfico explorado, que são as grandes e isoladas fazendas de
gado de Minas Gerais; depois, a linguagem adotada pelo Autor, que imita estilizadamente o falar dos
habitantes daquelas longínquas paragens.
Para as pessoas da cidade, é difícil, em primeiro contato, admitir que um autor possa dar tamanha importância aos pormenores da paisagem, como a nomeação das plantas e a descrição dos animais. Mas, conforme se viu acima, isso acontece com
freqüência nos contos de Sagarana. A paisagem
assume aí uma importância decisiva, porque o
autor vê o mundo dos homens como uma espécie
de extensão do universo natural. Tome-se mais um
exemplo expressivo do primeiro conto do livro, “O
Burrinho Pedrês”. Esse conto narra a tragédia
ocorrida com um grupo de vaqueiros que conduzia
uma boiada para o embarque no arraial. À noite,
os vaqueiros retornam embriagados. O tempo está
escuro e chuvoso, depois de ter ocorrido uma tormenta nas cabeceiras do riacho por onde deverão
passar. Nas proximidades da água, os cavalos,
pressentindo a enchente, empacam. De repente,
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um pássaro noturno canta: “João, corta pau! João,
corta pau!” Esse canto funde-se com as falas dos
vaqueiros, com o negrume e o frio da noite, assumindo tonalidades de aviso ou mau presságio. Os
vaqueiros percebem a necessidade de interpretar
tal anúncio da paisagem, mas erram na decifração
do sinal. Por isso, tendo insistido em que os cavalos
nadassem, morrem quase todos afogados, levados
pela enchente.
Essa passagem exemplifica a forte presença
dos animais e suas vozes nos contos de Sagarana.
De modo geral, os bichos exercem grande importância nas estórias desse livro. Por essa razão, não
se deve desprezar nenhuma das inúmeras referências feitas a eles, mesmo quando se trata de referências secretas e enigmáticas como a citada acima.
Outro exemplo de presença misteriosa dos animais no livro é a de uma irara no conto “Conversa
de bois”, o penúltimo de Sagarana. Esse cachorrinho do mato é, aliás, uma espécie de narrador do
conto, pois ele presenciou os eventos da estória,
contou-os a um tal Manuel Timborna, o qual os relatou ao verdadeiro narrador do texto. Nesse sentido, convém destacar com clareza que tais contos,
“O Burrinho Pedrês” e “Conversa de Bois”, são
dois trabalhos de invenção da psicologia dos animais. Mas nesse caso, os animais não pertencem à
paisagem. Transformam-se na essência dos textos.
Volte-se à consideração dos animais como elemento da paisagem. No início de “O burrinho pedrês”, existem, por exemplo, longas descrições de
bois, cavalos e vacas, depois da minuciosa apresentação física e psicológica do muar que dá título ao
conto. À primeira vista, tais descrições podem parecer desnecessárias. Nada mais errôneo. São
essenciais. É preciso ter paciência e observá-las
com atenção, pois delas dependem a ambiência
desse conto em particular e de Sagarana em geral.
Para exercício de percepção da força descritiva de
Guimarães Rosa, observe-se um trecho em que se
apresentam os vários tipos de chifres das vacas do
curral da Fazenda da Tampa, do Major Saulo, de
“O Burrinho Pedrês”:
E pululam, entrechocados, emaranhados,
os cornos longos, curtos, rombos, achatados,
pontuados como estiletes, arqueados, pendentes, pandos, com uma duas três curvaturas, formando ângulos de todos os graus com
os eixos das frontes, mesmo retorcidos para
trás que nem chavelhos, mesmo espetados
para diante como presas de elefante, mas, no
mais, erguidos: em meia-lua, em esgalhos de
cacto, em barras de cruz, em braços de âncora, puãs de caranguejo, em ornatos de satanás, em liras sem cordas — tudo estralejando
que nem um fim de queimada, quando há moitas de taboca finas fazendo ilhas no capinzal.
Há uma infinidade de passagens como essa em
Sagarana. A função delas é sempre a mesma: impressionar sensorialmente o leitor, isto é, saturá-lo
de informação, fornecendo-lhe tantos pormenores
quantos forem necessários para causar a ilusão da
tridimensionalidade do mundo. Tais descrições invariavelmente se fazem acompanhar de movimento
e energia. Baseia-se no processo da enumeração
exaustiva, às vezes tão longas e reiterativas que parecem esgotar todos os ângulos da realidade inventada. Também no início de “O Burrinho Pedrês”, há
um outro exemplo notável de descrição reiterativa,
cuja particularidade consiste na pintura dos
cavaleiros como extensão dos cavalos e vice-versa.
Com o domínio desses dados, podem-se ler
com mais facilidade os contos de Sagarana. Todos
terão a sua introdução descritiva a partir de cuja
atmosfera se desenrolam os acontecimentos da estória, sempre visceralmente dependentes do cenário. Esse é o papel estrutural da paisagem em Sagarana.
Igualmente a “O Burrinho Pedrês”, “Conversa
de Bois” apresenta uma viagem como fio condutor
da intriga. Naquele, os vaqueiros conduzem a boiada do Major Saulo da Fazenda da Tampa para o
trem no arraial; neste, Agenor Soronho e Tiãozinho guiam um carro de bois com rapaduras e um
defunto, do casebre deles até o cemitério de um outro arraial.
Já foi dito que ambos os contos investigam a
psicologia dos animais. Ambos possuem também
estrutura de fábula, porque os protagonistas, sendo bichos, comportam-se como gente. Do ponto de
vista da narrativa, convém destacar que esses contos possuem estórias intercaladas ao fio central da
ação, isto é, à medida que prossegue a viagem, as
personagens vão contando casos que assumem autonomia estrutural e interesse isolado relativamente ao todo em que se encaixam. Tal propriedade
confere dimensão épica aos contos de Sagarana,
conforme será visto mais adiante.
Mas, tornando à idéia da funcionalidade das
descrições roseanas, tome-se, para mais um exem-
Poty
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plo, a abertura de “Conversa de Bois”. Trata-se de
uma apresentação magistral, embora meio difícil
por causa do excesso de informes sobre o carro de
bois, veículo regional e antigo que muitas pessoas
da cidade nunca viram e talvez jamais venham a
ver. Esse instrumento terá importância decisiva na
tragédia final do conto. Sua descrição acha-se
organicamente vinculada aos bois que o fazem
mover:
a impregnação radical da cor preta; laranjo-botineiro: refere-se ao pé alaranjado do boi Realejo,
cuja canela era branca; jaguanês: diz-se do gado
que tem o fio do lombo e a barriga brancos e as laterais vermelhas ou pretas.
AS PERSONAGENS DE SAGARANA
Quanto ao universo moral, as personagens de
Guimarães Rosa estão sempre em situações limites.
São pessoas iluminadas ou dominadas pelas sombras. Estão sempre para além do normal: Riobaldo
(Grande Sertão: Veredas), que esteve com Deus e o
diabo, com o amor e o ódio — que vendeu a alma
ao demônio; Diadorim (idem), que era homem e
mulher; Gorgulho (“O Recado do Morro”), que recebeu um recado de morte do morro da Garça;
Grivo (“Cara-de-Bronze”), que foi buscar o quem
das coisas; o pai calado, que saiu de canoa em busca da “Terceira Margem do Rio” (Primeiras Estórias); a menininha que fazia milagres e dizia: “alturas de urubir, alturas de urubu não ir” (idem); o bugre solitário (“Meu Tio o Iauaretê”), amante de onças que acabou se transformando numa delas.
As personagens de Sagarana são também seres
excepcionais. Gozam de um estatuto especial, pois
fazem parte de um mundo que fica entre o real e o
fabuloso. Como o próprio Autor esclareceu um dia,
os textos de Sagarana são “Histórias adultas da Carochinha”. Com efeito, todas elas podem ser interpretadas como parábolas, isto é, possuem um significado transcendente ou alegórico, as quais formam, no conjunto, uma concepção de mundo a que
se poderia grosseiramente chamar de existencialismo panteísta.
Examinem-se a trama e as personagens de “Conversa de bois” para esclarecer esse conceito filosófico. Tiãozinho é ajudante do condutor de carros de
boi Agenor Soronho, o qual mora na mesma casa
em que ele, como amante de sua mãe, em flagrante
desrespeito à figura do pai, que, apesar de inválido
e cego, é vivo e coabita o mesmo teto. O pai de
Tiãozinho morre. Agenor e o auxiliar vão conduzilo ao cemitério do arraial. Durante a viagem, o carreiro maltrata e humilha o menino. Os bois, personagens importantes no conto, vão percebendo os
maus tratos e revoltam-se contra o homem grande.
Esperam o momento oportuno e esmagam-no, sob
a roda da “bárbara viatura”. Veja-se o trecho em
que os bois dão o veredicto contra o homem mau:
Vinha triste, mas batia ligeiro as alpercatinhas, porque, a dois palmos da sua cabeça,
avançavam os belfos babosos dos bois da
guia — Buscapé, bi-amarelo, desdescendo entre mãos a grossa barbeia plissada, e Namorado, caracú sapiranga, castanho vinagre tocado a vermelho — que, a cada momento, armavam modo de querer chifrar e pisar.
Segue-seguindo, a ativa junta do pé-daguia: Capitão, salmilhado, mais em branco
que em amarelo, dando a direita a Brabagato,
mirim-malhado de branco e de preto: meio
chitado, meio chumbado, assim cardim. Ambos
maiores do que os da junta da guia.
Passo após, a junta, mestra, do pé-do-coice: Dansador, todo branco, zebuno cambraia,
fazendo o cavalheiro; e, servindo-lhe de dama,
Brilhante, de pelagem braúna, retinto, liso, concolor. Ainda maiores do que os seus dianteiros da contra-guia.
E, atrás — ladeando o cabeçalho — conformes, enormes, tão tamanhões o quanto
bois podem ser, os sisudos sócios da junta do
coice: Realejo, laranjo-botineiro, com polainas
de lã brancas, e Canindé, bochechudo, de chifres semilunares, e, na cor, jaguanês.
Como se vê, o Autor destacou principalmente a
posição das juntas em relação ao carro e as cores
dos mesmos bois. O processo adotado foi novamente o da cumulação enumerativa, em que as cores são indicadas com muitas nuanças e variações.
É muito comum nas páginas de Sagarana encontrarmos imensas listas de cores, nuanças, variantes
e gradações de tons, ao que se ajuntam a disposição e o movimento. Conforme ficou dito, o propósito de tais descrições é fornecer a ilusão da tridimensionalidade da paisagem e dos seres. Vejamos
a tradução de alguns vocábulos pouco comuns, para auxiliar a percepção multicolorida dos animais:
belfo: beiço inferior dos bois; barbela: pele pendente do pescoço do boi; sapiranga: diz-se dos olhos
inflamados ou sem pestanas dos bois; samilhado:
salpicado de branco e amarelo; chitado: diz-se do
gado de pêlo branco; zebuno: relativo a zebu, gado
com grande corcova; zebuno cambraia: boi zebu inteiramente branco; braúna: boi bem preto; concolor: neologismo de Guimarães Rosa, no caso indica
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Poty
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— Que foi? Que há, boi Buscapé?
— É o boi Capitão! É o boi Capitão! Que é
que está dizendo o boi Capitão?
— Mhú! Hmoung!... Boi... Bezerro-de-homem... Mas, eu sou o boi Capitão! Moung!...
Não há nenhum boi Capitão... Mas, todos os
bois... Não há bezerro-de-homem!... Todos...
Tudo... Tudo é enorme... Eu sou enorme!...
Sou grande e forte... Mais do que seu Agenor
Soronho!... Posso vingar meu pai... Meu pai
era bom. Ele está morto dentro do carro... Seu
Agenor Soronho é o diabo grande... Bate em
todos os meninos do mundo... Mas eu sou
enorme... Hmou! Hung!... Mas, não há Tiãozinho! Sou aquele-que-tem-um-anel-branco-aoredor-das-ventas!... Não, não, sou o bezerrode-homem! Sou maior do que todos os bois e
homens juntos.
— Mû-ûh... Mû-ûh!... Sim, sou forte... Somos fortes... Não há bois... Tudo... Todos... A
noite é enorme... Não há bois-de-carro... Não
há mais nenhum boi Namorado...
— Boi Brabagato, boi Brabagato! Escuta o
que os outros bois estão falando. Estão doidos?!...
— Bhuh!... Não me chamem, não sou
mais... Não existe boi Brabagato! Tudo é forte.
Grande e forte... Escuro, enorme e brilhante...
Escuro-brilhante... Posso mais do que seu
Agenor Soronho!...
devem ser entendidas como símbolos do conjunto
alegórico dos contos. São símbolos psicológicos e
existenciais. Precisam ser interpretadas, para que
se nos revelem o sentido oculto de suas ações.
RESUMOS DOS CONTOS
Tem-se insistido em que todas as estórias de
Sagarana possuem feição alegórica, isto é, contêm
um segundo sentido para além do simples desenrolar dos fatos. No fim dos enredos que seguem,
sugere-se uma possível interpretação desses sentidos. Evidentemente, a leitura dos resumos pressupõe o conhecimento da parte anterior do presente
trabalho. A crítica tem consagrado como melhores
de Sagarana os contos: “O burrinho pedrês”, “A
hora e vez de Augusto Matraga”, “Duelo” e “Conversa de bois”. No volume, as narrativas apresentam a seguinte ordem, aqui acompanhadas das famosas ilustrações do Poty:
O Burrinho Pedrês
A fala dos bois deixa claro que, naquele momento, eles são expressão de uma força maior, que
os une a um todo indivizível e justo. Essa unidade
cósmica, que integra homens e bichos, não pode
ser maculada sem que haja uma repreensão deliberada por seus próprios elementos. Por essa razão,
os bois vingam a humilhação imposta ao menino.
Falou-se, acima, em existencialismo panteísta, porque Guimarães Rosa reflete sobre os problemas da
existência enquanto luta dramática pela harmonia
do todo. Etimologicamente, panteísmo quer dizer
Deus em tudo. Mas Rosa, embora seja otimista,
acredita em forças perturbadoras da ordem divina.
Nesse sentido é que se pode entender a personagem Augusto Matraga, ora possuído pelas forças do Mal, ora possuído pelas forças do Bem. Mas
chega um momento em que não se sabe com clareza de que lado ele atua, pois passa a procurar o
Bem pela prática do Mal. O conto intitulado “Duelo” pode também ser integrado nessa visão de conjunto, em que as personagens são concebidas como expressão de problemas existenciais: Turíbio
Todo sai vencedor de uma caçada humana por ter
estado do lado da razão no começo; mas, ao morrer, o agressor Cassiano Gomes atinge a graça e
passa a Timpim Vinte-e-Um o poder e a incumbência de vingá-lo. Assim, as personagens de Sagarana
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Narrativa da viagem do Major Saulo, de seu secretário Francolim e de dez vaqueiros, tocando
uma boiada da Fazenda da Tampa até o arraial onde dois trens especiais esperavam. Por causa da fuga das melhores montarias na noite anterior, o Major Saulo determina que se utilize o Sete-de-Ouros:
burrinho velho, cansado e que jamais servira para
tocar boiada. João Manico, por ser mais leve, suportaria a humilhação de montá-lo. Após a entrega
do gado, todos partem de volta sob chuva e na escuridão da noite, menos o Major Saulo, que ficou
no arraial com a família. Badu, que bebera mais
que os outros, foi trapaceado e teve de voltar no
Sete-de-Ouros. Todos os cavalos preferidos e seus
cavaleiros foram tragicamente tragados pela enchente do ribeirão. Badu salvou-se abraçado, num
sono pesado, ao pescoço do burrinho, cuja experiência e calma, frutos da idade, não permitiram que
se desorientasse na confusão da travessia. Francolim também se salvou porque conseguiu agarrar-se
à cauda do cauteloso animal. Badu foi entregue,
dormindo ainda, à porta de casa. Entre outros sentidos, é evidente a alegoria da prudência e da sabedoria.
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ANGLO VESTIBULARES
Traços Biográficos de Lalino Salãthiel
ou a volta do Marido Pródigo
Conto sobre os efeitos morais da maleita: dois
caboclos, Primo Ribeiro e Primo Argemiro, passam
os dias sentados junto a um cocho emborcado, esperando os momentos de tremedeira e desvario. A
fazenda está deserta: além dos dois solitários, sobrou apenas a negra Ceição e um cachorro magro
chamado Jiló. Luísa, a esposa do Primo Ribeiro, fugiu com um vaqueiro que aparecia de tempos em
tempos. Como alívio para a tragédia passada, não
cessa de pedir ao primo que reconte a história do
diabo, o qual, sob forma de moço bonito, fugiu
com uma moça rio-abaixo. Em meio às conversas,
Argemiro acaba por confessar que viera morar
com o primo por amor de sua esposa, apesar do
respeito que afirma ter mantido. Primo Ribeiro expulsa-o de sua companhia. A sezão ataca Argemiro
no momento em que está deixando o companheiro
de desgraça. A linguagem do conto treme com as
personagens. Invenção lingüística das profundezas
do universo psicológico de pessoas vencidas pela
desolação.
Aventuras de um mulatinho irresponsável, simpático e trapaceiro. Querido de muitos e odiado de
alguns. Abandona os serviços de construção da estrada entre Belo Horizonte e São Paulo para conhecer mulheres de folhinha e gozar a vida na Capital.
Por isso, vende, de modo reticente, sua bela esposa
Maria Rita ao espanhol Ramiro. Seis meses depois,
acabado o dinheiro da venda, ei-lo que retorna a
casa. O espanhol o afugenta. Estando em época de
eleições, Eulálio de Sousa Salãthiel consegue emprego de cabo eleitoral com o Major Anacleto.
Graças às suas artimanhas, o Major liquida o adversário e expulsa, por arrumação do mesmo cabo,
a colônia espanhola do lugar. Assim, Lalino reconquista Maria Rita, que nunca o deixara de amar.
Trata-se de uma ironia bem humorada das oscilações interesseiras das convicções políticas do interior. A narrativa aproxima-se da novela picaresca,
isto é, sua trama decorre das andanças e da volubilidade de um malandro simpático.
Duelo
Turíbio Todo, ex-seleiro de profissão, foi pescar e avisou a mulher, Dona Silivana, que pernoitaria na casa do primo Lucrécio, no Dêcámão, para
tentar o pesqueiro das Quatorze Cruzes. Teve má
sorte e mudou de idéia: voltou no mesmo dia, deparando com a esposa em amores com o ex-militar
Cassiano Gomes, de grande pontaria e notável habilidade com as armas. Fingiu então que não voltara. Retomou na manhã seguinte, preparou uma
viagem, e, no outro dia, foi espreitar a casa de Cassiano Gomes. Meteu-lhe, pelas costas, um balaço
bem na nuca. Soube depois que o alvejado era Levindo Gomes, irmão do agressor e muito parecido
com ele. Sua viagem programada tornou-se fuga,
porque Cassiano Gomes, logo após o enterro do irmão inocente, pôs-se em busca de vingança. Após
cinco meses e meio de fuga cansativa, Turíbio Todo
atravessa o Paraopeba e vai para São Paulo. Cassiano Gomes não atravessa o rio e retoma para a
Vista Alegre, onde se reencontra com a mulher do
perseguido. Descansa, consulta um boticário, de
quem sabe da precariedade do coração, e apressa
o recomeço da caçada. Faz, porém, repouso involuntário no Mosquito, um povoado perdido e longe
Sarapalha
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ANGLO VESTIBULARES
São Marcos
de toda parte. Na beira da morte, auxilia o capiauzinho Timpim Vinte-e-Um, que, por agradecimento, jura cumprir sua vingança. Dona Silivana envia
a Turíbio Todo a notícia da morte do ex-amante.
Quando ele volta, dono da vitória e com planos de
levar a esposa para a cidade, Timpim Vinte-e-Um o
liquida, contra a própria vontade, com uma garrucha de dois canos. Alegoria do destino: enquanto
os dois se perdem na busca de um fim, algo superior a ambos dispõe o contrário.
Minha gente
Calango-Frito é o povoado das maiores bruxarias: Nhá Tolentina enriquece com trabalhos e despachos: a cafua de João Mangolô vive repleta de
clientes. Até o menino Deolindinho obteve feitiço
contra os cóques do professor. Dona Cesária atuava em calungas de cera. Mas o narrador José (Izé),
embora supersticioso, não acredita em feitiçaria.
Em suas visitas domingueiras ao mato das Três
Águas, passa rente à cafua de João Mangolô e
zomba sempre de sua arte e de condição. Uma vez,
a caminho do passeio habitual, cujo fim era apenas
observar os miúdos movimentos e as cores da natureza, topou com o Alísio Manquitola, que, espantado com o fato de o saber conhecedor da oração
mágica de São Marcos, narra-lhe casos sobre os
terríveis efeitos e poderes da reza.
Finda a longa prosa — que envolveu o Gestal
da Gaita, o Compadre Silivério, o Tião Tranjão, o
Cypriano, o Filipe Turco e outros —, o narrador
embrenha-se no mato e absorve-se na contemplação da natureza. Vai recordando o desafio poético
que vinha travando com um desconhecido a que
chamou “Quem-Será”: os versos eram escritos,
sem que os autores se defrontassem, nos gomos de
belíssimos bambus. Embora curioso, deixou para a
volta a surpresa dos últimos versos do anônimo
adversário, envolvendo-se cada vez mais com a
poesia de lagoa, das flores, das árvores, dos pássaros, das aranhas. De repente, ficou cego, sem
nenhum sintoma de doença. Desespera-se. Mas os
ruídos e os cheiros do mato, as vibrações dos ventos e os animais orientam-no. Irritado com a demora da luz, profere, com raiva, a reza de São Marcos.
O seu ânimo se transfigura, e ele avança obstinado
numa só e precisa direção. Os ruídos tornam-se
pouco a pouco mais familiares. Súbito, arrebenta
furioso dentro da casa do feiticeiro Mangolô e, ao
esganá-lo em cega fúria, torna a enxergar. O negro
O narrador conta liricamente sua viagem e estada na fazenda Saco-do-Sumidouro, do tio Emílio.
Ao desembarcar do trem, encontra com Santana,
inspetor de ensino e amante do xadrez. José Malvino é o guia que fala dos costumes mineiros e interpreta a natureza. Ao fim da tarde, Santana toca
para os Tucanos, e o narrador vai ter com o tio e a
prima Maria Irma, sua namorada de infância. Renasce a paixão. Maria Irma mantém-se reticente,
misteriosa. Bento Porfírio, empregado da fazenda,
desgraça-se pelo vício da pesca: deixou de conhecer a de-Lourdes, filha do Agripino do Pau Preto,
por causa de uma pescaria no Touno Tombo. A deLourdes casa-se com Alexandre, de alcunha Xandrão Cabaça. Porfírio, que ressentiu a perda da
moça, desposa Bilica, de raiva e sem amor. Mantém encontros fortuitos com a de-Lourdes. Enquanto isso, tio Emílio empenha-se na política; e o
narrador, na conquista da prima. Numa pescaria,
quando Bento Porfírio fala ao narrador da bobeira
do marido da amante, eis que surge o mencionado
que, dominado pelo ódio, assassina o amante da
esposa com uma foice. O moleque Nicanor, também da fazenda, tem oito anos e sabe pegar, em
campo aberto, qualquer montaria, sem cabrestos
nem milho, só com a esperteza natural. O narrador
visita tio Ludovico, nas Três Barras, para esquecer
a prima. Realizam-se as eleições: vitória do tio
Emílio (partido João-de-Barros). Retorno ao Sacode-Sumidouro. Maria Irma apresenta-lhe Armanda, por quem se apaixona e com quem se casa. Maria Irma está noiva e desposará Ramiro Gouvêia,
“dos Gouvêias da fazenda da Brejaúba, no TodoFim-É-Bom”. Paródia (entre sentimental e irônica)
das estórias de amor com final feliz (para os da casa grande), como pretexto para a documentação
dos infortúnios da roça.
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ANGLO VESTIBULARES
velho havia amarrado, por brincadeira vingativa,
uma tira nos olhos do retrato do passante zombador. A essência do conto não é a bruxaria ou o feitiço propriamente, a não ser aquele das palavras.
Trata-se, em rigor, de um poema de homenagem
ao conhecimento estético (sensual/sensível) do universo. A cegueira do narrador é pretexto de que se
vale o autor para pôr em uso outros sentidos além
da visão.
A irara Risolêta presenciara a tragédia e contou-a, em troca da liberdade, a Manuel Timborna,
que a relata, pelo prazer de uma boa prosa, ao narrador da novela, que, em nome da poesia, no-la
apresenta com espanto e minúcia. O carro-de-bois
de Agenor Soronho transporta, mal acondicionado
e sacolejando sobre uma carga de rapaduras, o
corpo do pai de Tiãozinho, o guia dos bois de Soronho. O menino chora. Sofre também pelo clima,
pelo cansaço e pelos maus tratos do carreiro Agenor, que mantinha relações misteriosas com sua
mãe durante a doença do pai. As quatro parelhas
de bois conversam enquanto puxam: Buscapé e
Namorado; Capitão e Brabagato; Dansador e
Brilhante; Realejo e Canindé. O boi Brilhante vai
contando aos demais a estória do boi Rodapião,
cuja morte se deveu à assimilação dos processos
mentais dos homens. Tiãozinho, sonolento e vagaroso, recorda a morte do pai e a de Didico, que aos
dez anos caíra diante do carro, e os bois limitaramse a comer apenas as roupas do corpo dele.
Ao entardecer, na ladeira do Morro-do-Sabão,
Agenor Soronho deparou com o carro da Estiva,
carreado por João Bala, espatifado pela queda na
subida da ladeira. Agenor consola o companheiro,
mas apenas o deixa, galga rapidamente a subida
para demonstrar ao Tiãozinho que era um carreiro
de verdade. Vitorioso da subida, Soronho colocase na dianteira do carro, junto aos bois, e dorme.
Os bois percebem que o homem-do-pau-comprido-com-o-marimbondo-na-ponta corre perigo, e
combinam derrubá-lo. Tumultuam-se voluntariamente. Agenor Soronho cai. A roda do carro passa
sobre seu pescoço e o leitor fica sem saber se morreu dormindo ou se acordou para saber que ia
morrer. Fábula sobre a justiça e a harmonia do
cosmos.
Corpo Fechado
Enquanto bebem cerveja, o médico de Laginha
diverte-se com os casos de Manuel Fulô, que tinha
em casa um rato enjaulado para o adestrar na amizade com um gato de rajas. O lugar sempre foi de
gente brava: José Boi, Desidério, Miligido, Dêjo
(Adejalma). Mas um por vez. Agora quem manda é
o Targino, cuja insolência o levou a reunir seu bando de jagunços para comer carne com cachaça em
frente da igreja em plena sexta-feira da Paixão.
Manuel Fulô contava ao doutor como aprendera,
com os ciganos, a arte de trapacear no comércio de
cavalos e o modo com que aplicou o ofício àqueles
de quem o aprendeu, quando entra no bar o valentão Targino para avisá-lo que, no dia seguinte ia se
encontrar com a noiva dele.
Depois de um pânico atormentador, Manuel
Fulô obtém um feitiço de Antonico das PedrasÁguas em troca de sua mula Beija-Flor, orgulho e
paixão do proprietário. De corpo fechado, Manuel
Fulô enfrenta o bandido: para espanto de todos, retalha-o com a faquinha do tamanho de um canivete. Casa-se com a das Dor e, de vez em quando, toma emprestada a mulinha para ostentar o novo
posto de valentão.
A Hora e vez de Augusto Matraga
Conversa de bois
Augusto Estêves, filho do Coronel Afonsão
Estêves, das Pindaíbas e do Saco-de-Embira - chamado No Augusto — é um bandoleiro das maiores
perversidades. Maltrata a todos e faz sofrer a esposa, Dona Dionóra. Ignora a filha Mimita. Anda
em descrédito político e em declínio econômico.
Dona Dionóra foge com Ovídio Moura, levando a
filhinha. Ao preparar a perseguição, Nhô Augusto
sabe, através de Quim Recadeiro, que todos os
seus capangas passaram para o comando do Major
Consilva. Matraga resolve ir ter com eles antes de
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matar Dionóra e Ovídio. Mas é espancado e marcado com ferro de gado.
No exato momento do homicídio completo, recobra as forças e atira-se no despenhadeiro do
rancho do Barranco. Tomam-no por morto. Todavia, no outro lado do mundo, quer dizer, lá no fundo do despenhadeiro, é socorrido por um casal de
negros velhos: a mãe Quitéria e o pai Serapião. Sarado, porém com seqüelas deformantes, leva os
protetores para o povoado do Tombador. Muda de
vida e de alma: trabalha o dia todo, reza com grande devoção, ajuda a quantos pode, na espera de
obter o céu. Mais de seis anos se passaram, quando surge o Tio da Thereza, que o informa da sorte
da ex-família: a esposa vive feliz com Ovídio Moura
e preparam o casamento; a filha fora enganada por
um cometa (mascate) e caiu na perdição. Quim Recadeiro, capanga tido como covarde, morreu na defesa da honra do ex-patrão.
Matraga resigna-se e sofre saudades. Por essa
época, aparece Joãozinho Bem-Bem, jagunço de
larga fama. Matraga admira suas as armas e seu
bando (Flosino Capeta, Tim- Tatu-tá-te-vendo, Zeferino, Juruminho, Epifânio), mas recusa acompanhá-los ou receber favor deles. Pouco depois, parte
sem destino num jumento. No arraial do Rala-Côco, encontra Joãozinho Bem-Bem prestes a dizimar
uma família, em cumprimento de vingança, Matraga intervém em nome da justiça. Liquida diversos
capangas e morre em duelo singular com o famoso
jagunço Joãozinho Bem-Bem,que tomba um pouco
antes.
bem e do mal, de Deus e do diabo, da guerra e da
paz, do amor e do ódio. Essas preocupações seriam retomadas, ampliadas e aprofundadas mais
tarde em Grande Sertão: Veredas (1956), a obra capital do autor. Formalmente, “Matraga” representa
o primeiro exercício realmente genial do autor com
os dispositivos clássicos da narrativa tradicional,
com princípio, meio e fim. O conto, assim como “O
Burrinho Pedrês” e “Duelo”, também de Sagarana,
restaura a efabulação romanesca e um certo formalismo lingüístico abandonados pelos modernistas da primeira e da segunda fase. Além do suspense bem organizado, o enredo apresenta final
surpreendente e compatível com a psicologia das
personagens. A linguagem do narrador aproximase do universo moral do protagonista, criando perfeita harmonia entre os discursos de um e de outro.
Enfim, a estória decorre muito naturalmente do
temperamento de Matraga, o qual se vincula de
forma poderosa com a paisagem e suas transformações. Nesse sentido, convém destacar a consonância entre o desenvolvimento das paixões do
protagonista e o ritmo das estações do ano: foram
as maitacas que lhe comunicaram a chegada de sua
hora e de sua vez, as quais só chegaram com o fim
das águas. Com efeito, depois da migração das
maitacas, Matraga abandona seu refúgio de asceta
no povoado do Tombador e parte para o duelo final. O próprio Guimarães Rosa preferia este texto
aos demais de Sagarana. Num depoimento sobre
todos os contos do volume, escreveu o seguinte
acerca de “Matraga”:
História mais séria, de certo modo síntese
e chave de todas as outras, não falarei sobre o
seu conteúdo. Quanto à forma, representa
para mim vitória íntima, pois, desde o começo
do livro, o seu estilo era o que procurava
descobrir.
IMPORTÂNCIA DE MATRAGA
Na ocasião do lançamento, dois críticos manifestaram-se de forma definitiva sobre o livro: Álvaro Lins e Antonio Candido. Embora houvesse uma
pequena divergência entre eles, ambos concordaram em que “A Hora e Vez de Augusto Matraga”, o
desfecho do volume, era a narrativa mais bem realizada do volume. Apesar disso, Álvaro Lins declarou preferir “Conversa de Bois”, o conto de
abertura da obra. Antonio Candido demonstrou
preferência absoluta pela estória de Matraga, incluindo-a entre os dez ou doze melhores contos da
língua portuguesa.
Desde então “A Hora e Vez de Augusto Matraga” tem recebido atenção especial dos leitores e
dos críticos. Sua estória foi filmada com sucesso
por Roberto Santos, em 1965, com Leonardo Villar
no papel central. Em 1986, foi adaptada para o
teatro por Antunes Filho. No conjunto da obra de
Guimarães Rosa, “Matraga” desempenha papel
fundamental, tanto por razões temáticas quanto
por questões formais. Do ponto de vista temático,
atribui dimensões metafísicas ao motivo da bandidagem, através do qual se investiga o conceito do
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Ambigüidades
Em linhas gerais, “A Hora e Vez de Augusto
Matraga” é a estória de um homem mau que, depois de mutilado para a prática da maldade, resolveu se tornar bom. Na busca do bem, revela a mesma obstinação que aplicava no exercício do mal,
pois costumava exclamar: “P’ra o céu eu vou, nem
que seja a porrete!” Na verdade, Matraga é um homem dominado pelo instinto guerreiro e não pelo
misticismo. Sua essência é de guerreiro, num período em que a guerra não se justifica mais como
prática corrente entre os homens, como ocorria
nos tempos heróicos da Ilíada ou de algumas fases
da Idade Média. Não obstante, há reminiscências
desse mundo no sertão mineiro, representadas
pelos cavaleiros itinerantes do bando de Joãozinho
Bem-Bem, com os quais Matraga se identifica mes-
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ANGLO VESTIBULARES
Estrutura narrativa
mo estando no apogeu de sua ascese em busca da
quietude, da bondade, da contemplação e de Deus.
A guerra e a ação atraíam Matraga de forma
incontrolável. Por isso, entrega-se a elas, sob o pretexto de que, ao liquidar um bando inteiro, estava
praticando o bem. Nunca se sentira atraído por
mulheres, mesmo quando esteve casado com Dona
Dionóra e se entregava a desordens com mulheres
da vida. Preferia sempre a multidão dos homens,
em que pudesse demonstrar sua superioridade masculina. Por isso, sentiu-se irresistivelmente atraído
pelo jagunço Joãozinho Bem-Bem. Perto dele, estaria sempre ao lado da força bruta, do poder essencialmente masculino, que se sobrepunha a todas as
outras formas de poder. Matraga era, enfim, o tipo
do valentão que apalpava os braços fortes de um
guerreiro e admirava a envergadura das costas de
outro.
Joãozinho Bem-bem, esse então, é muito mais
ambíguo que Matraga: pois, sendo o mais temido
dos valentões, usava lenço azul no chapéu de couro; tinha sorriso bonito e mansinho de moça. Quando se tratou de confiscar umas mulheres, fez questão de declarar que não as queria para si (“mulher
não me enfraquece”), mas sim para os seus homens. Não obstante, tinha sempre um capanga preferido (Flosino Capeta) ao seu lado. Ao morrer, fez
questão de fazer as pazes com o seu matador, Augusto Matraga, pois vira nele um homem superior
a si. A um homem assim não hesitava em entregar
a própria vida. Matraga sentia da mesma forma:
matou o outro, mas sentiria o mesmo prazer em morrer em suas mãos.
Todavia, a estória de Matraga tem sido interpretada também como a trajetória de um encontro
com Deus através da guerra. Segundo essa perspectiva, o protagonista, no final, encontra o que
procurara durante todo o período de ascese mística no arraial do Tombador. Assim, Joãozinho BemBem seria uma espécie de instrumento para Matraga obter o céu.
Os nomes das personagens devem ser observados com cautela neste conto. O nome do chefe
do bando, Joãozinho Bem-Bem, com quem Matraga duela, poderia indicar o seu propósito de impor
justiça no sertão, pois ele julgava que só matava em
nome da paz. Por outro lado, ele não se separava
de um bandido chamado Flosino Capeta. Isso pode
significar que, além do bem, trazia consigo o mal.
Quanto a Matraga, convém observar que o protagonista recebe esse nome somente no final, ao
morrer. Em vida, ou seja, em todo o conto, ele só é
chamado de Nhô Augusto, que quer dizer o maior,
o primeiro entre todos, ou Nhô Augusto Esteves. O
apelido Matraga, que ocorre também no título, não
consta de seu nome próprio. Trata-se de um epíteto que surge com a lenda, depois de sua morte.
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“A Hora e Vez de Augusto Matraga” é um
conto longo, por isso pode ser considerado uma
novela. A crítica oscila entre essas duas designações, usando-as indiferentemente. Talvez seja conveniente aplicar ao texto a designação de estória,
termo consagrado por Guimarães Rosa para descrever qualquer narrativa em prosa. Há quatro
grandes seqüências narrativas na fábula dessa estória:
1. Apresentação de Matraga, numa festa de
igreja. A estrutura dessa seqüência aproxima-se
do teatro, pois é dominada pelo diálogo. O seu núcleo é a crueldade de Matraga contra a prostituta
Sariema (Tomásia). Possui, basicamente, a função
de caracterizar o protagonista, ressaltando seu desapego afetivo pelas mulheres e seu prazer em demonstrar força e poder perante os homens. Sariema, ao lado do namorado, era cobiçada por uma
pequena multidão. Ele a conquista sob o pretexto
de que a deseja como mulher; depois a abandona
sem a possuir.
2. Nó ou intriga. O protagonista é posto à prova por duas provocações paralelas e equivalentes:
sua esposa, Dona Dionóra, foge com Ovídio Moura; Major Consilva suborna seus capangas. Matraga pretende punir os dois infratores: primeiro vai
acertar as contas com Major Consilva, seu rival
imediato; depois, mataria a esposa e o amante dela.
Todavia, é derrotado no primeiro obstáculo que
enfrenta, sendo surrado e jogado num precipício.
3. Regeneração do protagonista. Dado por
morto, Matraga muda de vida e entrega-se à salvação da alma. Transfere-se do Córrego do Murici
para o arraial do Tombador, onde encarna outra
alma. Lá, ninguém conhecia sua verdadeira identidade. Todavia, trata-se de uma pseudo-regeneração. Impossibilitado de agredir o próximo, o protagonista agride a si mesmo, numa busca afrontada de Deus. O contato com os bandidos de Joãozinho Bem-Bem lhe desperta o antigo impulso. Quando recupera a plena força física, sai em busca de
aventura, esquecendo-se de que a guerra maior era
consigo mesmo, no sentido de domar o próprio gênio, conforme lhe sugerira o padre.
4. Viagem e duelo final. Deixando-se guiar
por um jumento, animal associado à vida de Jesus,
Matraga é conduzido pelo acaso ao encontro de
Joãozinho Bem-Bem, que estava prestes a dizimar
uma família no arraial do Rala-Coco. Sob o pretexto de proteger os indefesos, Matraga intervém na
justiça do jagunço, lutando sozinho contra o seu
bando. Depois de matar dois e afugentar os demais,
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ANGLO VESTIBULARES
duela com o chefe, numa luta alegórica que se
aproxima de um bailado ou de um ritual sagrado.
Primeiro morre seu Joãozinho Bem-Bem; depois,
Augusto Esteves Matraga.
Outro componente emblemático das epopéias é
o desfile dos guerreiros, presente em todas as
grandes realizações do gênero épico, desde a Ilíada
até Os Lusíadas. A chegada do bando de Joãozinho
Bem-Bem no arraial do Tombador organiza-se
dentro dos padrões das paradas heróicas, sendo
talvez a passagem mais empolgante do conto:
O bando desfilou em formação espaçada,
o chefe no meio. E o chefe — o mais forte e
mais alto de todos, com um lenço azul enrolado no chapéu de couro, com dentes brancos
limados em acume, de olhar dominador e tosse rosnada, mas sorriso bonito e mansinho de
moça — era o homem mais afamado dos dois
sertões do rio: célebre do Jequitinhonha a
Serra das Araras, da beira do Jequitaí à barra
do Verde Grande, do Rio Gavião até nos
Montes Claros, de Carinhanha até Paracatu;
maior do que Antônio Dó ou Indalécio; o
arranca-toco, o treme-terra, o come-brasa, o
pega-à-unha, o fecha-treta, o tira-prosa, o
parte-ferro, o rompe-racha, o rompe-e-arrasa: Seu Joãozinho Bem-Bem.
Tonalidade épica
“Matraga” é, essencialmente, um texto épico,
no sentido de explorar o universo guerreiro do sertão, ao lado de uma vertente mística, também própria desse espaço cultural. Como em todo texto
épico, há nesse conto descrições fortes da paisagem, com a participação dos bichos, dos pássaros
e das plantas. Vindo de cima, o ponto de vista ou
foco narrativo é em terceira pessoa, onisciente,
absoluto, pois domina todos os detalhes da estória.
A viagem de Matraga do Córrego do Murici para o
arraial do Tombador é exemplar nesse sentido:
Oralidade estilizada
Como todos os textos de Guimarães Rosa, “A
Hora e Vez de Augusto Matraga” pode ser entendido como expressão do regionalismo modernista,
desde que se entenda essa denominação num
sentido especial e aberto. Não há dúvida de que o
conto focaliza aspectos específicos do interior mineiro: fala, fauna, flora, geografia, tradições e matrizes culturais, como o banditismo e o misticismo.
Mas a narrativa supera o pitoresco local desses aspectos e apresenta uma situação de caráter universal, capaz de interessar e comover qualquer pessoa
de qualquer país. Esse tipo de literatura, viu-se, é
chamado regionalismo universalizante.
Um dos traços mais ricos do regionalismo de
Guimarães Rosa consiste na invenção lingüística
de seus textos, propriedade muito viva em “Matraga”. Rosa é um verdadeiro poeta da prosa, no sentido de explorar a sensorialidade plurissignificativa
dos vocábulos, ampliando ao máximo sua carga
emotiva e seu poder de sugestão. Isso pode ser
observado na incorporação da fala sertaneja ao
texto literário, depois de devidamente estilizada
pela imaginação do escritor. Veja como exemplo de
oralidade sertaneja estilizada, a abertura de “A
Hora e Vez de Augusto Matraga”:
Foram norte a fora, na derrota dos criminosos fugidos, dormindo de dia e viajando de
noite, como cativos amocambados, de quilombo a quilombo. Para além do Bacupari, do
Boqueirão, da Broa, da Vaca e da Vacaria, do
Peixe-Bravo, dos Tachos, do Tamanduá, da
Serra-Fria, e de todos os muitos arrais jazentes na reta das léguas, ao pé dos verdes morros e dos morros de cristais brilhantes, entre
as varjarias e os cordões-de-mato. E deixavam de lado moendas e fazendas, e as estradas com cancelas, e roçarias e sítios de monjolos, e os currais do Fonseca, e a pedra quadrada dos irmãos Trancoso; e mesmo as
grandes casas velhas, sem gente mais morando, vazias como o seus currais. E dormiam
nas brenhas, ou sob as árvores de sombra das
caatingas, ou em ranchos de que todos são
donos, à beira das lagoas com patos e das
lagoas cobertas de mato. Atravessaram o Rio
das Rãs e do Rio do Sapo. E vieram, por picadas penhascosas e sendas de pedregulho,
contra as serras azuis e as serras amarelas,
sempre. Depois, por baixadas, com outeiros,
terras mansas. E em paragens ripuárias, mas
evitando a linha dos vaus, sob o vôo das garças, — os caminhos por onde as boiadas vêm,
beirando os rios.
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Matraga não é Matraga, não é nada. Matraga é Esteves. Augusto Esteves, filho do Coronel Afonsão Esteves, das Pindaíbas e do
Saco-da-Embira. Ou Nhô Augusto — o homem — nessa noitinha de novena, num leilão
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ANGLO VESTIBULARES
humorísticas na novela e todas decorrem da imitação da linguagem falada, isto é, da oralidade expressiva, como se observa também neste período:
“E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que
assim foi.”
de atrás de igreja, no arraial da Virgem Nossa
Senhora das Dores do Córrego do Murici.
Este texto é poético por várias razões. Primeiro, porque explora a materialidade dos signos,
isto é, privilegia o aspecto significante dos vocábulos, como a sonoridade, a sugestão cromática e o
poder de estranhamento. Segundo, porque não se
trata de um texto apenas informativo, mas também
lúdico, programado para envolver sensorialmente
o leitor, estimulando a imaginação do leitor. O período inicial, por exemplo, não se explica pela razão; trata-se de um paradoxo, de uma frase absurda, cuja função é instaurar o mundo mágico da estória que se inicia. As palavras seguintes, estranhas
aos ouvidos do homem citadino, reforçam essa
função, contribuindo para a criação da atmosfera
desejada. Trata-se de um texto essencialmente
enumerativo, cumulativo, cujo objetivo é saturar o
leitor com dados sobre a personagem, processo
que acaba por obscurecer um pouco a abertura,
produzindo mais uma impressão sensorial do que
um entendimento racional. Esse procedimento,
próprio da linguagem poética, domina a construção da estória de Matraga.
LEITURA E EXERCÍCIOS
Leia o texto seguinte, para responder às questões 1 e
2, extraídas da prova da PUC-92.
Mas, afinal, as chuvas cessaram, e deu uma manhã
em que Nhô Augusto saiu para o terreiro e desconheceu
o mundo: um sol talqualzinho a bola de enxofre do fundo
do pote, marinhava céu acima, num azul de água sem
praias, com luz jogada de um para o outro lado, e um
desperdício de verdes cá embaixo — a manhã mais bonita que ele já pudera ver.
Estava capinando, na beira do rego.
De repente, na altura, a manhã gargalhou: um bando
de maitacas passava, tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir. E outro. Mais outro. E ainda outro, mais
baixo, com as maitacas verdinhas, grulhantes, gralhantes, incapazes de acertarem as vozes na disciplina de um
coro.
Depois, um grupo verde-azulado, mais sóbrio de gritos e em fileiras mais juntas. `
Metalinguagem, oralidade e humor
De modo geral, a literatura romântica é fantasista, apresenta ações inverossímeis, como, por
exemplo, aquela em que Peri arranca uma palmeira
do solo apenas com a força dos braços. Evidentemente, trata-se de uma tarefa impossível, mas o
narrador de O Guarani esforça-se por convencer o
leitor de veracidade do fato, dando explicações
para que o leitor admita a monumentalidade da
ação. Ao contrário dos romances de aventura de
Alencar, “A Hora e Vez de Augusto Matraga” é
uma narrativa que se apresenta como absolutamente verossímil, cheia de conexões com a realidade, apesar de ser também meio fantástica e dominada por uma forte atmosfera simbólica. Mesmo
admitindo os símbolos e alegorias do texto, a impressão que permanece é a da vida como ela é. Não
obstante, há lances metalingüística em que o narrador procura desmistificar a impressão de verdade, fazendo questão de ressaltar a ficcionalidade do
texto, como se observa na seguinte passagem:
— Uai! Até as maracanãs!
E mais maitacas. E outra vez as maracanãs fanhosas.
E não se acabavam mais. Quase sem folga: era uma revoada estrilando bem por cima da gente, e outra brotando ao norte, como pontozinho preto, e outra — grão
de verdura — se sumindo no sul.
— Levou o diabo, que eu nunca pensei que tinha tantos!
E agora os periquitos, os periquitinhos de guinchos
timpânicos, uma esquadrilha sobrevoando outra... E
mesmo, de vez em quando, discutindo, brigando, um casal de papagaios ciumentos. Todos tinham muita pressa:
os únicos que interromperam, por momentos, a viagem,
foram os alegres tuins, os minúsculos tuins de cabecinhas amarelas, que não levam nada a sério, e que choveram nos pés do mamão e fizeram recreio, aos pares,
sem sustar o alarido — rrrl-rrril! rrrl-rrrril!...
Mas o que não se interrompia era o trânsito das gárrulas maitacas. Um bando grazinava alto, risonho, para o
que ia na frente: — Me espera!... Me espera!... — E o
grito tremia e ficava nos ares, para o outro escalão, que
avançava lá atrás.
E assim se passaram pelo menos seis ou
seis anos e meio, direitinho deste jeito, sem tirar e nem pôr, sem mentira nenhuma, porque
esta aqui é uma estória inventada, e não é um
caso acontecido, não senhor.
— Virgem! Estão todas assanhadas, pensando que já
tem milho nas roças... Mas, também, como é que podia
haver um de-manhã mesmo bonito, sem as maitacas?!
O sol ia subindo, por cima do vôo verde das aves itinerantes. Do outro lado da cerca, passou uma rapariga.
Bonita! Todas as mulheres eram bonitas. Todo anjo do
céu devia de ser mulher.
Esta declaração em favor da ficção num texto
de tamanho poder realista acaba produzindo efeito
humorístico, traço importante no estilo de “A Hora
e Vez de Augusto Matraga”. Há diversas passagens
FUVEST 2006
“A Hora e Vez de Augusto Matraga”, em Sagarana
112
ANGLO VESTIBULARES
1. Sagarana, coletânea de contos, escrita por Guima-
homem rude e cruel, que sofre violenta surra de capangas inimigos e é abandonado como morto, num
brejo.
Recolhido por um casal de matutos, Matraga passa
por um lento e doloroso processo de recuperação,
em meio ao qual recebe a visita de um padre, com
quem estabelece o seguinte diálogo:
rães Rosa, enfoca o ambiente rural brasileiro e aponta novos rumos para a literatura modernista. Assim,
a) considerando que o espaço geográfico onde se
desenrolam as narrativas de Guimarães Rosa é o
do norte de Minas Gerais e o do sul da Bahia, que
novo conceito se pode ter de regionalismo na
obra desse autor?
b) que características de linguagem podem ser percebidos nas narrativas que constituem Sagarana?
— Mas, será que Deus vai ter pena de mim, com
tanta ruindade que fiz, e tendo nas costas tanto
pecado mortal?
— Tem, meu filho. Deus mede a espora pela rédea, e não tira o estribo do pé de arrependido nenhum... (...) Sua vida foi entortada no verde, mas não
fique triste, de modo nenhum, porque a tristeza é
aboio de chamar demônio, e o Reino do Céu, que é o
que vale, ninguém tira de sua algibeira, desde que
você esteja com a graça de Deus, que ele não regateia a nenhum coração contrito.
a) A linguagem figurada amplamente empregada
pelo padre é adequada ao seu interlocutor? Justifique sua resposta.
b) Transcreva uma frase do texto que tenha sentido
equivalente ao da frase não regateia a nenhum coração contrito.
2. O trecho em questão, de Guimarães Rosa, valoriza os
aspectos sensoriais, particularmente os ligados à visão e à audição. O escritor provoca o efeito poético,
valendo-se de figuras de linguagem. Assim sendo,
transcreva do texto, as seguintes figuras:
a) Metáfora;
b) Aliteração;
c) prosopopéia;
d) onomatopéia.
3. (UEL-PR/2004) O trabalho com a linguagem por meio
da recriação de palavras e a descrição minuciosa da
natureza, em especial da fauna e da flora, são uma
constante na obra de João Guimarães Rosa. Esses
elementos são recursos estéticos importantes que
contribuem para integrar as personagens aos ambientes onde vivem, estabelecendo relações entre
natureza e cultura. Em “Sarapalha”, conto inserido
no livro Sagarana, de 1946, referências do mundo
natural são usadas para representar o estado febril
de Primo Argemiro.
Com base nessa afirmação, assinale a alternativa em
que a descrição da natureza mostra o efeito da
maleita sobre a personagem Argemiro.
a) “É aqui, perto do vau da Sarapalha: tem uma
fazenda, denegrida e desmantelada; uma cerca de
pedra seca, do tempo de escravos; um rego murcho, um moinho parado; um cedro alto, na frente
da casa; e, lá dentro uma negra, já velha, que capina e cozinha o feijão.”
b) “Olha o rio, vendo a cerração se desmanchar. Do
colmado dos juncos, se estira o vôo de uma garça,
em direção à mata. Também, não pode olhar muito: ficam-lhe muitas garças pulando, diante dos
olhos, que doem e choram, por si sós, longo tempo.”
c) “É de-tardinha, quando as mutucas convidam as
muriçocas de volta para casa, e quando o carapana mais o mossorongo cinzento se recolhem, que
ele aparece, o pernilongo pampa, de pés de prata
e asas de xadrez.”
d) “Estava olhando assim esquecido, para os olhos...
olhos grandes escuros e meio de-quina, como os
de uma suaçuapara... para a boquinha vermelha,
como flor de suinã....”
e) “O cachorro está desatinado. Pára. Vai, volta, olha,
desolha... Não entende. Mas sabe que está acontecendo alguma coisa. Latindo, choramingando,
chorando, quase uivando.”
5. (U. E. Pará/2004) Observe o trecho extraído de “Burrinho Pedrês”, de Guimarães Rosa:
— Você é meu camarada de confiança, Francolim. Tem mais responsabilidade de ajudar, também...
— Isto, sim, dou meu pescoço! Em serviço do
senhor, carrego pedras, seu Major. Só peço é ordem
para o João Manico me dar de novo meu cavalinho,
na entrada do arraial, para não ficar feio eu, como
ajudante do senhor, o povo me ver amontado neste
burro esmoralizado... sem querer com isso ofender,
por ser criação de que o senhor gosta...
Considerando o seu conteúdo e o conjunto da narrativa da qual foi retirada, é correto dizer que:
a) no momento em que se trava esse diálogo, o episódio do afogamento de alguns vaqueiros no córrego já havia acontecido.
b) a solicitação de Francolim para destrocar a montaria não será acatada pelo Major Saulo.
c) o diálogo evidencia o comportamento de independência dos vaqueiros em relação ao dono da
fazenda.
d) o comentário de Francolim sobre Sete de Ouros,
que se assemelha ao dos outros vaqueiros, irá revelar-se injusto, ao final, quando o burrico, além
de salvar Badu, irá salvá-lo, também.
e) o personagem João Manico, referido por Francolim, é o único vaqueiro a salvar-se na travessia do
córrego, por ter isso e vindo montado em Sete de
Ouros.
(FUVEST/2005) Texto para as questões 6 e 7
Sim, que, à parte o sentido prisco, valia o ileso gume
do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido, raramente usado, melhor fora se jamais usado. Porque,
diante de um gravatá, selva moldada em jarro jônico,
dizer-se apenas drimirim ou amormeuzinho é justo;
e, ao descobrir, no meio da mata, um angelim que
4. (FUVEST/2004) No conto “A hora e vez de Augusto
Matraga”, de Guimarães Rosa, o protagonista é um
FUVEST 2006
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ANGLO VESTIBULARES
atira para cima cinqüenta metros de tronco e fronde,
quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo
e bradá-lo — Ó colossalidade! — na direção da altura?
a) A luta entre Augusto Matraga e Joãozinho BemBem (do conto “A hora e vez de Augusto Matraga”)
apresenta, conjugados, os aspectos de guerra e de
festa referidos nos versos de Drummond. Você concorda com esta afirmação? Justifique sucintamente.
b) O conflito entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes
(do conto “Duelo”) apresenta essa mesma junção de
aspectos de guerra e de festa? Justifique sucintamente.
(João Guimarães Rosa, “São Marcos”, in Sagarana)
prisco = antigo, relativo a tempos remotos.
gravatá = planta da família das bromeliáceas.
6. Neste excerto, o narrador do conto “São Marcos” expõe alguns traços de estilo que correspondem a características mais gerais dos textos do próprio autor,
Guimarães Rosa. Entre tais características só NÃO
se encontra
a) o gosto pela palavra rara.
b) o emprego de neologismos.
c) a conjugação de referências eruditas e populares.
d) a liberdade na exploração das potencialidades da
língua portuguesa.
e) a busca da concisão e da previsibilidade da linguagem.
RESPOSTAS
1. a) Guimarães Rosa amplia os limites do regionalismo tradicional por duas razões principais: pela
recriação inventiva e estilizada do falar sertanejo,
levando às últimas conseqüências o experimentalismo com a linguagem; e pela dimensão problematizante e metafísica que introduz em seus textos, atribuindo inquietações de alto nível filosófico
a seus enredos e personagens. Dá-se o nome de
regionalismo universalizante ao processo instaurado por Rosa na literatura brasileira.
b) A renovação lingüística é uma das principais constantes da literatura de Guimarães Rosa. Entre os
principais procedimentos observados em sua
obra, podem-se destacar os seguintes no presente
texto:
• oralidade sertaneja: “Estava capinando, na beira do rego.”;
• desvios sintáticos: “...devia de ser...”;
• humanização dos animais: “Um bando (...) grazinava (...): — Me espera! Me espera!”;
• emprego de neologismos: “talqualzinho”;
• permutação de classes gramaticais: “um demanhã” (substantivação de uma locução adverbial);
• associação de som e sentido, mediante aliterações e assonâncias: “grulhantes, gralhantes”;
• ênfase através da repetição de palavras: “E outro. Mais outro. E ainda outro...”.
7. Comparando-se as concepções relativas à natureza
presentes no excerto de Guimarães Rosa com as que
se manifestam nos poemas de Alberto Caeiro, verifica-se que, em Rosa, ..........., ao passo que, em Caeiro, ............. .
Mantida a seqüência, os espaços pontilhados podem
ser preenchidos corretamente pelo que está em:
a) a observação da natureza provoca um desejo de
nomeação e até de invenção lingüística / o ideal
seria o de que os elementos da natureza valessem
por si mesmos, sem nome nenhum.
b) a natureza é pura exterioridade, desprovida de alma/ela é um ente animado, dotado de interioridade e personalidade.
c) a natureza vale por seus aspectos estéticos e simbólicos/ela tem valor prático e utilitário, ou seja, é
valorizada na medida em que, transformada pela
técnica, serve para suprir as necessidades humanas.
d) a relação com a natureza é pessoal e até íntima/a
natureza apresenta caráter hostil e, mesmo, ameaçador.
e) a natureza é misteriosa e indecifrável/ela é portadora de uma mensagem mística que o homem deve decifrar servindo-se dos instrumentos da Razão.
2. a) Metáfora: “azul de águas sem praias” (comparação implícita entre o mar e o céu); “uma esquadrilha sobrevoando a outra” (comparação implícita
entre o vôo dos pássaros e o de aviões); “choveram nos pés de mamão” (comparação implícita
entre a quantidade de pássaros com a quantidade
de pingos da chuva).
b) Aliteração: “tinindo guizos, partindo vidros, estralejando de rir” (repetição intensiva das consoantes t e r).
c) Prosopopéia: “a manhã gargalhou” (atribuição de
propriedade humana a entidade não humana).
d) Onomatopéia: “grulhantes, gralhantes” (a aliteração imita o som emitido pelas maitacas).
8. (FUVEST/2005) Considere os seguintes versos, que
fazem parte de um poema em que Carlos Drummond
de Andrade fala de Guimarães Rosa e de sua obra:
(…) ou ele mesmo [Guimarães Rosa] era
a parte de gente
servindo de ponte
entre o sub e o sobre
3. B
que se arcabuzeiam
de antes do princípio,
que se entrelaçam
para melhor guerra,
para maior festa?
Comentário:
A natureza meio embaralhada, a cerração se desmanchando, uma garça partindo... os olhos doentes assumindo o ambiente externo enevoando-se, ardendo, lacrimejando. A vida também se desmanchando e se esvaindo, como o rio.
(arcabuzeiam = lutam com arcabuzes, espingardas)
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4. a) Sim, porque, como penitente, Matraga se achava
7. A
dócil ao estilo sapiencial do sacerdote, marcado
pela mescla de erudição e regionalismo. Por outro
lado, o registro metafórico e alusivo do sacerdote
é verossímil com a função de orientador e conselheiro de fiéis em dificuldades. Estes, geralmente,
apreciam e acatam a linguagem solene e misteriosa da religião, o que se demonstra pelo fato de,
até algumas décadas atrás, as missas serem celebradas em latim. Assim, o tom metafórico do padre, sem se distanciar do interlocutor — pois incorpora vocabulário oriundo de sua profissão, a
de fazendeiro — marca uma distância que deve
haver entre o sagrado e o profano.
b) Há mais de uma frase cujo sentido se aproxima
do fragmento em destaque, dentre as quais se
contam as seguintes: “não tira o estribo do pé de
arrependido nenhum” e “o Reino do Céu, que é o
que mais vale, ninguém tira de sua algibeira”.
No fragmento de Guimarães Rosa, assim como na
obra poética de Alberto Caeiro, verifica-se uma forte presença da tópica literária da natureza. Esta, no entanto,
apresenta-se de modo diferente em cada um dos autores.
Segundo o texto de Rosa, o impacto causado pela observação das formas naturais provoca no observador um
impulso incontido de “nomeação e até de invenção lingüística”: “ao descobrir, no meio da mata, um Angelim(…) quem não terá ímpeto de criar um vocativo absurdo e bradá-lo (…)”.
A poesia de Alberto Caeiro, por sua vez, tem como
motivo recorrente a consideração de que o verdadeiro
conhecimento das coisas se dá por meio do contato sensorial e não das operações da inteligência. A linguagem
verbal seria um mecanismo que falseia a relaçnao entre
aquele que sente e cada coisa que se lhe oferece aos sentidos. Assim, “o ideal seria o de que os elementos da natureza valessem por si mesmos, sem nome nenhum”.
5. D
8. a) A afirmação é correta. A componente bélica está
6. E
implícita na própria circunstância do confronto
entre Augusto Matraga e Joãozinho Bem-Bem,
caracterizado pelo desejo mútuo de extermínio. O
aspecto celebrativo decorre da configuração alegórica dos movimentos das personagens, que sugerem uma dança dramática. Some-se a isso a noção de que a luta entre ambos é marcada tanto pela
discórdia quanto pela concórdia.
Com exceção da e, todas as alternativas resumem
premissas do texto, que deve ser entendido como uma
poética, isto é, um escrito que enumera princípios técnicos e temas a serem adotados por um artista. A passagem é exclusivamente auto-referencial ou metalingüística.
Nela, propõe-se a idéia de que a literatura deve se basear:
a) em vocábulos de baixa freqüência (“pouco visto e
menos ainda ouvido, raramente usado”);
b) na invenção de neologismos (“drimirim”, “amormeuzinho”, “colossalidade”);
c) na fusão do erudito com o popular (referência a
plantas por seu nome corrente: “gravatá”, “angelim”);
d) no uso expressivo da língua (exploração da dimensão conotativa das palavras, como em “atira
para cima cinqüenta metros de tronco e fronde”).
FUVEST 2006
b) No caso do conto “Duelo”, não ocorre confluência
entre a idéia de guerra e de festa. A perseguição em
si já funciona como indicação exclusiva de guerra.
Não há a celebração festiva, porque a relação entre Turíbio Todo e Cassiano Gomes é de puro ódio
e discórdia, sem abrir espaço para a identidade de
contrários que está presente na luta final de Joãozinho e Augusto, em “A hora e vez de Augusto
Matraga”.
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